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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC
FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FACED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PAN-AFRICANISMO, HISTORIOGRAFIA E EDUCAÇÃO:
EXPERIÊNCIAS EM CABO VERDE E NO BRASIL
FÁBIO FLORENÇO GOMES
FORTALEZA
2014
II
FÁBIO FLORENÇO GOMES
PAN-AFRICANISMO, HISTORIOGRAFIA E EDUCAÇÃO:
EXPERIÊNCIAS EM CABO VERDE E NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Educação do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Ceará, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Educação. Área de Concentração:
Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola.
Eixo: Sociopoética, Cultura e Relações Étnico-
raciais.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Jr.
FORTALEZA
2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
G614p Gomes, Fábio Florenço.
Pan-africanismo, historiografia e educação : experiências em Cabo Verde e no Brasil / Fábio Florenço
Gomes. – 2014.
268 f. : il. color., enc. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Movimentos sociais, educação popular e escola.
Orientação: Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Junior.
1.África – Antiguidades. 2.África – História – Até 1884. 3.Pan-africanismo. 4.África – História –
Estudo e ensino – Fortaleza(CE). 5.África – História – Estudo e ensino – São Tiago,Ilha de(Cabo Verde).
6.Ensino médio – Fortaleza(CE). 7.Ensino secundário – São Tiago,Ilha de(Cabo Verde). 8.Livros
didáticos – Fortaleza(CE). 9.Livros didáticos – São Tiago,Ilha de(Cabo Verde). I. Título.
CDD 960.200712
IV
FÁBIO FLORENÇO GOMES
PAN-AFRICANISMO, HISTORIOGRAFIA E EDUCAÇÃO:
EXPERIÊNCIAS EM CABO VERDE E NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Educação do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Ceará, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Educação. Área de Concentração:
Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola.
Eixo: Sociopoética, Cultura e Relações Étnico-
raciais.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Jr.
Aprovada em __________________
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Jr.(Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
________________________________________________
Profª. Dra. Sandra H. Petit
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________
Profª. Dra. Rosa Ribeiro
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
V
AGRADECIMENTOS
À Majestade Imperial Haile Selassie
Aos guias: Povo de Ta Neter, de Kush, do Kemet e de Palmares. Gente como Blyden,
Menelike II, Gama, Garvey e Nascimento.
Aos ancestrais: Teóphilo, Zenita e Claudemir .
À família: todos e todas no Brasil e na África
Aos anciãos e anciãs que me orientaram no Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau e Senegal.
Aos financiadores da Pesquisa: CNPQ
Ao professor dos professores: Henrique Cunha Jr.
À companheira do cotidiano da inspiração e do trabalho Inisabel (Abeba Makeda) pela
motivação total.
Não tenho condições de enumerar de forma justa os irmãos, irmãs e amigos que me ajudaram
nestes últimos anos de caminhada, por isto agradeço às suas organizações: Associação
Comunitária Waaldé, Movimento Negro Unificado, Núcleo de Consciência Negra Lélia
Gonzáles, Afrocentricidade Internacional Rio de Janeiro, Movimento Popular de Favelas,
Educafro, Sankofa Cultural Center, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Casa de Jurema,
Terreiro de Mãe Beata de Yemonja, Quilombo Xis, Capoeira Ypiranga, Chad – Cosméticos
Naturais, Capoeira Ayde, AJOPAR, DENEGRIR, Fundação Amílcar Cabral, Unisantiago,
Universidade de Cabo Verde, Arquivo Histórico e Biblioteca Nacional de Cabo Verde,
Acrides de Cabo Verde, Per Ankh, Codesria, OGKI, Ebukhosine Solutions, CACURA,
IFAN, PAIGC e INEP
VI
Viver é ajudarmo-nos uns aos outros a viver.
Provérbio africano (Mácua)
VII
RESUMO
A pesquisa transcrita nesta dissertação está inserida na linha de Movimentos Sociais,
Educação Popular e Escola, e no Eixo Sociopoética, Cultura e Relações Étnico-raciais do
Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. A
problemática da investigação é confronto entre propostas teóricas e conceituais da História
Geral da África (UNESCO), e a localização das civilizações africanas da Antiguidade em
programas e livros didáticos de História no Ensino Médio (Brasil) e no Ensino Secundário
(Cabo Verde). O objetivo geral é investigar a relação entre metodologia e antiguidade africana
propostas pelos Livros 1 e 2 da História Geral da África (UNESCO) e o que se é ensinado nas
salas de aula sobre a África na História Antiga da Humanidade. Os objetivos específicos são:
1) construir uma abordagem histórica e social sobre a História Geral da África a partir do Pan-
africanismo e de seus referenciais intelectuais, políticos e institucionais das décadas de 1950 e
1970; 2) Identificar a localização de civilizações da antiguidade africana em programas e
livros didáticos de história utilizados em escolas públicas da cidade de Fortaleza (Brasil) e da
Ilha de Santiago (Cabo Verde); 3) Propor elementos para superação de problemas e
valorização das potencialidades comuns ao Brasil e Cabo Verde. Nossa base teórica
concentra-se em autores como ZERBO (1972-2010), DIOP (1954-2010), RODNEY (1975-
1980), CABRAL (1978), CUNHA (2006), MONIZ (2009), ASANTE (1989), ANJOS (2002),
NASCIMENTO (2001), UNESCO (2009-2011) entre outros pesquisadores que possuem
como principais campos de estudo a História da África, metodologia, movimentos sociais,
Pan-africanismo, antiguidade africana e educação. Trata-se de um estudo de caso efetivado
através de uma abordagem qualitativa, tendo como análise livros didáticos, programas de
história e o diálogo com professores. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados
resumem-se a pesquisa bibliográfica, análise documental e entrevista semiestruturada com
professores. Para registrar dados da pesquisa utilizamos caderno de campo e gravação em
áudio. Neste momento apresentamos conclusões preliminares da pesquisa, uma vez que o
achado durante o trabalho de campo encontra-se em processo de sistematização. Entretanto, é
possível asseverar que: 1) atualmente a localização geográfica, o povoamento e o legado das
civilizações africanas na Antiguidade estão sob os mesmos princípios eurocêntricos em
materiais didáticos e programas de história no Ensino Médio (Brasil) e Ensino Secundário
(Cabo Verde); 2) há falta de materiais nos acervos das instituições visitadas, a História Geral
da África (UNESCO) e 3) o Uso Pedagógico da História Geral da África (UNESCO) são
pouco conhecidos e utilizados em programas e livros didáticos em Cabo Verde e no Brasil;
Este conjunto de fatores aponta para: o desconhecimento, a falta de interesse e o conflito de
estudantes com a história da África, sua cultura e identidade; o ensino de história da África e a
elaboração de livros didáticos devem ter como bases mínimas a conscientização, a educação
patrimonial e a integração regional entre países africanos e da diáspora.
Palavras-chave: História – Ensino - África - Livros didáticos - Pan-africanismo -
Antiguidade
VIII
ABSTRACT
This research intends to confront the theoretical and the conceptual proposals of the textbook
General History of Africa, published by UNESCO, as well as the locations of the ancient
Classic African civilizations in the syllabi of the textbooks adopted in History classes of
mediumschools in Brazil and secondary schools in Cape Verde. The general objective is to
investigate the relationship between the methodology and African antiquity in the textbooks
General History of Africa I and II, published by UNESCO It also analyses what is taught
about Africa in Ancient Human History. The specific objectives are 1) to build a historical and
social approach to teach about África General History based on Pan-Africanism and
Historical Knowledge; 2) to identify the location of Ancient Africa in History in the
curriculums and textbooks adopted in public schools in Fortaleza (Brazil) and in Santiago
Island (Cape Verde); The theoretical background of this research is based on authors such as
ZERBO (1972-2010), DIOP (1954-2010), RODNEY (1975-1980), CABRAL (1978),
CUNHA (2006), MONIZ (2009), ASANTE (1989), ANJOS (2002), NASCIMENTO (2001),
UNESCO (2009-2011), among other scholars devoted to the study of Ancient Africa and its
methodology, social movements, Pan-Africanism, Ancient Africa and Education. The
methodology adopted is a case study conducted through quantitative analysis of textbooks and
syllabi, as well as interviews with teachers. The instruments employed for data collection are
a bibliographical research, analysis of documents, and semi-structured interviews with
teachers. In order to record the research data, a field journal and audio recordings have been
used. After that, preliminary conclusions of the research are presented, even though the
findings during the field work are still being systematized. However, by then it is already
possible to affirm that the geographical locations, the settlements, and the legacy of the
ancient classic African civilizations are dealt with under the same Eurocentric principles
present in other textbooks and syllabi adopted in fundamental schools in Brazil and in
secondary schools in Cape Verde. The political and ideological apology of the mixture of
races exerts influence in the formation of identity, educational background and professional
attitude of History teachers in Brazil and in Cape Verde. There is also a shortage of materials
in the libraries of the institutions visited. Moreover, the textbooks General History of Africa I
and II and The Pedagogical Use of General History of Africa (both published by UNESCO)
are neither well-known nor widely adopted in Cape Verde or in Brazil. These factors point at
1) the lack of knowledge and interest, as well as at the conflict of students with African
History, its culture and identity; 2) the need to teach and to write textbooks which are
minimally based on the awareness, on the heritage and on the African regional integration.
Keywords: History - Education - Africa – Text books - Pan-africanism - Antiques
IX
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Capa de O Quilombismo -1980………………………………………....... 09
Figura 2 Núcleo de Consciência Negra Lélia Gonzales com Abdias Nascimento…. 11
Figura 3 Fábio Gomes e André Costa 2008………………………………………... 11
Figura 4 Atelier do Musik Fabrik………………………………………………....... 12
Figura 5 Oficina de Construção de Instrumentos 2010…………………………….. 14
Figura 6 Exposição da Construção de Instrumentos……………………………….. 14
Figura 7 Centro Escola do Pensamento africano …………………………………... 16
Figura 8 Visita Guiada –Tarrafal…………………………………………………… 16
Figura 9 AJOPAR –Guiné Bissau………………………………………………….. 17
Figura 10 Visita ao PAIGC…………………………………………………………. 17
Figura 11 Antenor Firmin……………………………………………………………. 44
Figura 12 Menelik II…………………………………………………………………. 48
Figura 13 Edward Wilmot Blyden…………………………………………………… 50
Figura 14 Marcus Garvey e Web Du Bois…………………………………………... 60
Figura 15 Jornal Negro World……………………………………………………….. 61
Figura 16 Jornal The Crisis………………………………………………………….. 61
Figura 17 Haile Selassie e Imperatriz Menen………………………………………... 63
Figura 18 Kwame N’krumah………………………………………………………… 80
Figura 19 Amílcar Cabral……………………………………………………………. 81
Figura 20 Cheikh Anta Diop……..………………………………………………….. 112
Figura 21 Quadro Vale dos Reis……………………………………………………... 120
Figura 22 Anu -Tera Neter…………………………………………………………... 123
Figura 23 Narmer…………………………………………………………………….. 123
Figura 24 1ª Face Palheta de Narmer………………………………………………... 124
Figura 25 2ª Face Palheta de Narmer………………………………………………... 124
Figura 26 Joseph Ki-Zerbo…………………………………………………………... 129
Figura 27 Walter Rodney……………………………………………………………. 133
Figura 28 Diagrama da Organização da Unidade africana………………………….. 144
Figura 29 Relatório do Congresso do Cairo 1974…...………………………………. 150
Figura 30 Entrevista semiestruturada…………...…………………………………... 199
Figura 31 Encontro Escola 2013…………………………………………………….. 209
Figura 32 Palestra para Professores –Lei 10639\3…………………………………... 211
Figura 33 Pedagogia da Unidade - Símbolo…………………………………………. 236
X
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Utilização da História Geral da África ……………………… 210
Tabela 2 Elaboração de Manuais ……………………………………… 212
Tabela 3 Produção de Manuais ……………………………………… 212
Tabela 4 Disponibilidade de Manuais ………………………………… 214
Tabela 5 Programa de História do 9 º ano - Cabo Verde ……………… 219
Tabela 6 Manuais de História do Secundário - Cabo Verde …………… 223
Tabela 7 Programa de História do 1º Ano Ensino Médio - Fortaleza 228
Tabela 8 Manual História do 1º Ano Ensino Médio – Brasil ………… 230
Tabela 9 Princípios da Pedagogia da Unidade ………………………… 237
Tabela 10 Proposta para o ensino de civilizações da antguidade africana 238
XI
SUMÁRIO
Nota do autor ………………………………………………………………………………… 01
Apresentação: sete razões para esta pesquisa …………………………………….………… 04
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………………… 20
i. Interesse pela Consciência Histórica ………………………………………… 21
ii. Delimitações do Campo de Pesquisa ……………………………..…………… 22
iii. Marco Teórico Conceitual …………………………………………………… 25
iv. Questões da Pesquisa ………………………………………………..………… 36
v. Objetivos .…………………………………………………………….……… 36
vi. Metodologia ...……………………………………………..………………… 36
vii. Estrutura da Dissertação ……………………………………………………… 38
PARTE I PAN-AFRICANISMO
Capítulo 1: PAN-AFRICANISMO: AÇÃO, CONCEITO E AUTO-DESENVOLVIMENTO 40
1.1 Pan-africanismo redefinido ………………………………………………...……… 41
1.2 Uma era de grandes combates ……………………………………………..……… 41
1.3 Organização, Integração e Resistência ……………………………………..……… 46
1.4 No Limiar Colonial ………………………………………………………...……… 51
1.5 Ambientes …………………………………………………………………..……… 52
1.6 A lâmina afiada de WEB Du Bois ………………………………………...……… 54
1.7 O Martelo pesado de Marcus Garvey …………………………………….……… 55
1.8 Etiópia de Marcus Garvey ………………………………………………...……… 58
1.9 Das Convergências ………………………………………………………...……… 60
1.10 Etiópia: signo do nacionalismo africano ………………………………...……… 62
1.11 Congressos Pan-africanos ……………………………………………….……… 64
Conclusões ………………………………………………………………….……… 68
Capítulo 2: LUTAS DE LIBERTAÇÃO AFRICANA E HISTÓRIA DA ÁFRICA
………… 69
1.1 Educação e Conhecimento Histórico ……………………………………………… 70
1.2 Pan-africanismo e movimentação anti-colonial …………………………………… 74
1.3 Grupos Motores das Independências africanas …………………………………… 75
1.4 O fator Unidade da África ………………………………………………………… 78
1.5 Unidade e Resistência: Kwame N’krumah e Amílcar Cabral ……………………… 81
1.6 Entre as Independências africanas ………………………………………………… 82
1.7 Similaridades ……………………………………………………………………… 85
1.8 Elites e Neocolonialismo …………………………………………………………… 86
1.9 O Neocolonial e a Resistência Nacional …………………………………………… 87
1.10 Resistência e conhecimento histórico …………………………………………… 94
Conclusões …………………………………………………………………………… 96
XII
PARTE II HISTORIOGRAFIA
Capítulo 3: ESCOLAS E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO ……… 99
1.1 Escolas e pensamento Histórico …………………………………………………… 99
1.2 Descolonização da História ………………………………………………………… 106
1.3 Dr. Cheikh Anta Diop ……………………………………………………………… 112
1.4 Dr. Joseph Ki-Zerbo ……………………………………………………………… 129
1.5 Dr. Walter Rodney ………………………………………………………………… 133
1.6 Educação e manuais de História …………………………………………………… 135
Conclusões ……………………………………………………………………………… 137
Capítulo 4: ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA E HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA 138
1.1 Unificar para Renascer ……………………………………………………………… 138
1.2 Educação e Organização da Unidade africana ……………………………………… 142
1.3 História Geral da África (UNESCO) ……………………………………………… 145
1.4 Cairo’74- História africana ………………………………………………………… 150
1.5 História Geral da África (UNESCO) ……………………………………………… 158
1.6 História Geral da África (UNESCO) no Brasil …………………………………… 163
1.7 Atribulações do Momento ………………………………………………………… 165
Conclusões ……………………………………………………………………………… 167
PARTE III EDUCAÇÃO
Capítulo 5: ANTIGUIDADE AFRICANA E ENSINO DE HISTÓRIA …………………… 169
1.1 Mestiçagem, racismo e educação: lógica curricular brasileira …………………… 169
1.2 Mestiçagem, neocolonialismo e educação: lógica curricular caboverdiana ……… 176
1.3 Brasil e Cabo Verde: civilização e sabotagem a Cheikh Anta Diop ……………… 186
1.4 Década de 2000: História da África ………………………………………………… 191
1.5 Pesquisa Militante ………………………………………………………………… 196
Conclusões ……………………………………………………………………………… 200
PARTE VI
Capítulo 6: UM ESTUDO DE CAMPO INTEGRADO PELA HISTÓRIA …………………… 201
1.1 Conexões Metodológicas e Categorias …………………………………………… 202
1.2 Uso Pedagógico da História Geral da África (UNESCO) ………………………… 204
1.3 Programas e manuais de História – Cabo Verde …………………………………… 218
1.4 Programas e manuais de História – Brasil ………………………………………… 226
1.5 Reflexões e recomendações ………………………………………………………… 232
1.6 Pedagogia da Unidade ……………………………………………………………… 236
Conclusões ………………………………………………………………………………
240
Conclusões Finais ……………………………………………………….....................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………………………………………
243
246
ANEXOS ……………………………………………………………………………………… 252
1
NOTA DO AUTOR____________________________________________________
Professores de História entrevistados no Brasil e em Cabo Verde foram sujeitos
colaboradores desta pesquisa. Todos estes profissionais contatados disponibilizaram seu
tempo, espaço, relatos e materiais para esta pesquisa. Manteremos em sigilo os seus nomes,
professores e professoras, cujas falas foram registradas em nosso diário de campo e gravador
de áudio, e suas respectivas Unidades Escolares. Para a substituição dos nomes verdadeiros,
utilizamos nomes fictícios: Biko; Titina, Djassy, Abdulay, Améli, Ramos, Malan, Telli, Djau.
Tais nomes são fictícios apenas como sujeitos desta pesquisa, todos são nomes de
combatentes da libertação africana de Cabo Verde, Guiné Bissau e África do Sul entre as
décadas de 1950 e 1970. Dupla consideração e gratidão! Aos ancestrais e aos encarnados.
Em nosso trabalho, assim como em nossas vidas, os termos são de grande importância
no sentido que expressam nossos pensamentos, memória coletiva, identidade, cultura,
existência e ancestralidade. Por isso, cabem agora algumas considerações sobre termos
utilizados nesta dissertação.
Negro\ africano -Brasileiro: termos que considero os mais adequados para designar a
população no Brasil que carrega consigo identidade, fenótipo, memória e cultura africana. O
termo negro possui um histórico de afirmação dentro dos movimentos sociais no Brasil.
africano -brasileiro não é comum, mas seu potencial é muito grande por localizar cultural e
historicamente a origem africana da população e sua condição geográfica fora do continente.
Preto: termo que tem ganhado força atualmente no Brasil, muito por influência
política e artística de países de língua inglesa (Black). Há uma tendência entre jovens adeptos
do Hip Hop no Brasil na defesa de uma substituição do termo negro pelo termo preto.
Mulato, mestiço e moreno: termos altamente pejorativos para a população negra no
Brasil, a palavra mulato, por exemplo, tem origem na cultura escravocrata, remete-se ao
animal Mula, do cruzamento entre cavalo e jumento, ou seja, um animal infértil. Mulato foi
utilizado em alusão à suposta infertilidade da mulher negra. No geral, estas expressões
2
indicam uma ideologia de branqueamento, apologia à miscigenação e desintegração entre
população negra no Brasil.
Afro-brasileiro e Afrodescendente: termos ambíguos que podem conotar de forma
afirmativa a origem, cultura e história africana no Brasil e integrar a população negra, mas ao
mesmo tempo, possibilitam que oportunistas assumam este termo como forma de obter
alguma vantagem social, política e financeira, principalmente a partir da década de 2000 com
a política de ações afirmativas no Brasil (cotas raciais em universidades e nos serviços
públicos, e bolsas de estudo em mestrado e doutorado).
Branco: uma forma de designar a população europeia e seus descendentes no Brasil e
em outras partes do mudo, neste sentido, branco não é apenas uma designação fenotípica, mas
também uma designação cultural, ou seja, uma atribuição ao sistema de dominação global
europeu no continente africano e na diáspora. O racismo, o eurocentrismo, o capitalismo e o
comunismo (por exemplo) integram a estrutura de um sistema “branco” de opressão e
dominação política, econômica, tecnológica e cultural.
Neocolonial: denominação das sequência de transformações ocorridas no sistema
colonial europeu instalado oficialmente no continente africano no final do século XIX. Na
perspectiva de lideranças africanas nacionalistas como Kwame Nkrumah do Gana e Amílcar
Cabral de Guiné Bissau e Cabo Verde, é entre as décadas de 1940 e 1960 que se conflagram
as independências nacionais que o neocolonialismo começa de forma efetiva a modificar as
formas de exploração do continente africano, evidenciadas nas relações econômicas e
cooperações de todos os tipos, como a educacional por exemplo. O Pós-colonial dentro da
nossa proposta é uma forma de negar ou negligenciar as novas gerações de dominação,
corretamente denominadas de neocoloniais.
Mundo africano : termo adequado para indicar a expansão forçada de africanos a
partir do século XV, sequenciada pela oficialização do colonialismo no século XIX, e que tem
sua continuidade no contexto neocolonial da segunda metade do século XX às primeiras
décadas do presente século XXI.
Maafa - holocausto africano : palavra no idioma africano Suahili, que significa
holocausto africano, processo histórico de genocídio em massa de africanos desencadeado
3
pelo tráfico europeu de africanos escravizados e guerra deslocada para as Américas entre os
séculos XV e XIX.
Escravizado: O termo escravo não e sinônimo de negro ou africano. Estranha às
sociedades africanas, a escravidão foi uma condição imposta pelo sistema europeu de trafico
de seres humanos no continente africano, a escravização teve como princípios a
desumanização e desagregação de homens, mulheres e famílias africanas.
Civilizações africanas da antiguidade clássica: expressão utilizada pelo historiador
senegalês Cheikh Anta Diop para caracterizar as civilizações africanas do período anterior à
era comum – ano zero \ nascimento de Cristo. Nesta perspectiva, o Antigo Egito e Etiópia
formaram complexos civilizacionais marcados por atividades sistemáticas de ciência e
tecnologia.
4
APRESENTAÇÃO: SETE RAZÕES PARA ESTA PESQUISA_______________
Sete razões determinaram o meu interesse em pesquisar sobre o ensino de história das
civilizações da antiguidade clássica africana (centralmente o antigo Egito) no Brasil e no
Cabo Verde, são elas: Consciência, Militância, História colonizada, África-Brasil-África, A
(outra) realidade, Meios de trabalho e Circunstância: Ntu
Consciência
Nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, e cresci no bairro do Lins. Recebi em casa
orientações para respeitar as folhas, as raízes, os ancestrais e a potência divina, Deus. Naquela
época, minha família era de religião de terreiro, denominadas hoje como religiões de matriz
africana, a exemplo do candomblé, umbanda entre outras. Uma vez por semana as mulheres
da minha família cultuavam em casa entidades espirituais denominadas Pretos Velhos,
espíritos de africanos que vieram para o Brasil durante a Maafa, grandes conhecedores de
medicina tradicional africana, aconselhadores espirituais, detentores de uma escrita própria
(ponto riscado) e em que sua grande maioria se autodenominava de origem angolana. As
participantes consultavam-se com os Pretos Velhos em um dos quartos da casa de minha avó,
onde passei a maior parte da infância.
Neste ambiente familiar apreendi algumas lições práticas sobre ajudarmo-nos uns aos
outros a viver, e de que é fundamental sabermos nossa própria história, pois sem ela nada faz
sentido na vida. Cresci vendo meus próprios familiares reagindo e debatendo questões sobre o
racismo no Brasil, uma patologia social impregnada em todos os lugares, desde os
supermercados às escolas, aos campos de futebol e aos museus, não havia (e nem há) lugar
onde o racismo não se manifestasse na sociedade brasileira.
A experiência em família, tanto as religiosas quanto as de cunho mais político e
cultural foram decisivas para o processo embrionário de minha conscientização
histórica\social. As práticas religiosas seguidas por minha família me fizeram perceber que
todas as nossas histórias eram muito mais amplas que o chão das senzalas, que as correntes
dos pelourinhos e que as fazendas de café onde nossos ancestrais foram escravizados. Mesmo
sem uma compreensão nítida daquele processo, eu comecei e me perceber como sujeito
5
integrante de uma história e legado maior no tempo e no espaço, e aquela percepção seriam o
sentido, ou direção, para a construção do meu próprio futuro.
O debate aberto sobre o racismo me fez perceber que por um lado havia uma grande
injustiça criminosa conosco na sociedade brasileira, e por outro lado, perceber que a nossa
História não começou no Brasil, mas no continente africano, tendo sua continuidade nos
quilombos, nos combates contra o racismo e na solidariedade do dia-a-dia. Estas percepções,
anos mais tarde, influenciaram diretamente a minha militância e a opção por ser professor de
história. Mas para um menino, muitos caminhos ainda deveriam ser trilhados, um caminho de
erros, acertos, reflexões e acima de tudo aprendizado.
Militância
Eu estudei no Colégio Pedro II, qualificado entre as maiores escolas da América do
Sul, no bairro do Engenho Novo, também no subúrbio do Rio de Janeiro, perto do Lins. Como
qualquer adolescente negro em uma escola pública, mas das altas elites do país, fui
hostilizado por colegas, funcionários e professores, no entanto, tenho também as minhas boas
recordações. O que agora posso ressaltar é que a minha tragetória escolar foi inicialmente de
excelente rendimento e boas amizades, entretanto a absorção da violência racial, muitas vezes
simbólica e não física, me reduziram a condição de aluno marginalizado, indisciplinado e de
baixo rendimento escolar.
Olhando para traz, vejo que não somente eu, como a maioria (que eram poucos!) dos
alunos negros da minha geração no Colégio Pedro II, não completou seus estudos do primeiro
e do segundo grau (atuais ensino fundamental e médio). Abandonei a escola e me dediquei ao
trabalho braçal em uma destas lanchonetes multinacionais, que exploram uma mão de obra
barata e produtiva, condenando uma geração inteira ao subemprego.
Mas eu não cheguei à juventude fora da escola com a ideia débil de que “nunca havia
passado por racismo”, em minha opinião, toda a violência que vivi na escola e que passei no
mercado de trabalho foi por motivos raciais, eu tinha consciência disto. Nunca reduzi o
racismo ao linchamento ou xingamento de “macaco”, sentia que o racismo era algo muito
diversificado, até mesmo sofisticado, uma questão política com traços econômicos, nuances
cultural e argumentos religiosos.
6
Todavia, no ritmo do subemprego perguntei-me diversas vezes se o estudo e a ciência,
se os centros de conhecimento enfim, eram realmente locais para mim, ou se o meu lugar não
era ali, onde eu estava preso a uma cozinha de lanchonete. Não escapei destas oscilações e
lembro-me bem que durante os anos fora da escola, os negros que conheci da minha idade
trabalhando em subempregos tinham o mesmo discurso: “o estudo não é para mim”. Creio
que este é um dos efeitos mais nefastos do racismo, e que pode ser colocado lado a lado com a
descaracterização física (alisamento de cabelo\clareador de pele). A frustração profissional
planejada para a juventude negra encaminha-nos para o mundo do crime, da droga, das
doenças psíquicas e de diversos outros tipos de violência social.
Com o apoio, ou insistência, familiar voltei a estudar para terminar o ensino médio,
mas depois dei mais um intervalo nos estudos, pois meu horário de trabalho era irregular.
Após dois anos de trabalho na rede de lanchonetes fui promovido a Treinador, cuja função era
orientar novos funcionários e coordenar equipes de trabalho em setores como balcão, cozinha,
limpeza de banheiros e etc. Mesmo com fortes chances de conseguir mais uma promoção de
cargo, alguns choques raciais e um acidente grave que sofri desgastaram muito minha
presença naquele ambiente de trabalho. Se por um lado eu não estava disposto a aceitar o
racismo de superiores hierárquicos, e mesmo de clientes, por outro, eu não tive a mínima
assistência no momento do acidente de trabalho que me levou a ficar semanas sem andar.
Nesta ocasião, entendi que eu era apenas uma peça negra descartável dentro do jogo de um
sistema branco, então resolvi me demitir e buscar melhores caminhos, mesmo sem saber para
onde.
Após uma série de entradas e saídas de empregos temporários tomei a iniciativa de
continuar os estudos, na verdade redescobri o gosto pelos estudos através de alguns
acontecimentos marcantes, dentre os quais, um pequeno curso sobre as independências
africanas no ano de 1999 promovido pelo departamento de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e leituras sobre revoltas de africanos escravizados no Brasil, Martin
Luther King e revolução cubana. Entretanto, a motivação maior nasceu do meu contato com a
militância negra organizada, em outras palavras, o contato com membros, militantes, do
movimento negro. Paulatinamente, eu mesmo busquei a militância e militantes para conseguir
enfrentar o racismo e adquirir mais conhecimento.
No Rio de Janeiro comecei a participar de reuniões do Movimento Negro Unificado
(MNU), onde conheci dois dos maiores militantes vivos do movimento negro no Brasil, o Sr.
7
Yedo Ferreira, emblemático combatente pelas Reparações, e Ras Romeu, artesão, militante,
poeta e musico Rastafari, ambos os detentores de grande conhecimento sobre história
africana. Busquei livros que militantes do movimento negro me indicavam, e os li. Pelas mãos
de um vendedor de livros e estudante de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Jorge Damião, conheci a EDUCAFRO, um projeto social de pré-vestibulares
comunitários coordenado no Rio de Janeiro pelo Senhor Frei Davi, religioso franciscano e
militante do movimento negro.
A EDUCAFRO tinha as suas próprias ações sociais, cursos pré-vestibulares
comunitários, jornal, manifestações\marchas contra discriminação racial e reuniões públicas,
para a comunidade jovem interessada nos estudos. A EDUCAFRO era parceira de outros
projetos semelhantes como o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC). No início de
2000 eu fui estudar em um PVNC localizado na Cidade de Deus, comunidade favelada na
Zona Oeste do Rio de Janeiro. As aulas deste pré-vestibular ocorriam nas dependências da
Escola Estadual João Batista aos sábados, domingos e durante o dia inteiro, uma vez por
semana à noite.
No pré-vestibular da Cidade de Deus eu tive a oportunidade de vivenciar formas mais
amplas de militância social, pois aquele ambiente era marcado pela brutalidade policial, pela
falta de infraestruturas (água, luz e sistema de esgoto) e por profundas lições de solidariedade.
Havia sérias frentes de resistência na Cidade de Deus e a família de uma das coordenadoras
do PVNC dirigia uma companhia teatral comunitária especializada em temas sobre negritude,
religião de matriz afro e militância negra, isso me marcou muito.
Outra marca importante e determinante na minha opção para o concurso vestibular em
história foi minha mãe. Ela era professora de pedagogia e sempre teve uma mente muito
aberta, sua consciência educacional permitiu-me experimentar na prática as ofertas positivas e
negativas da vida, sempre disposta a me transmitir uma mensagem otimista de força para
continuar em frente. No final daquele ano concorri no vestibular para graduação em História
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), porque esta oferecia
benefícios aos alunos de projetos parceiros da EDUCAFRO: 100% de bolsa de estudos,
alimentação e transporte mensais. A concessão de bolsas de estudo beneficiava a PUC-Rio
com isenção de impostos entre outros.
8
De início, por minha própria inexperiência, eu subestimei o nível de opressão e
alienação cultural da Pontifícia Universidade Católica, mas a realidade é que esta é uma
instituição Jesuíta, logo, seus conteúdos curriculares de ciências humanas, principalmente,
estão impregnados de racismo, eurocentrismo e um conservadorismo mesquinho. No final de
2002, juntei-me aos estudantes de graduação em história, Janaina Portella e Carlos Menezes,
de pedagogia, Wilian Barbosa, de ciências sociais, Lincoln Oliveira e Alexandre Nascimento,
e de literatura, André Costa (com mais alguns outros de direito e psicologia) para
organizarmos no campus daquela universidade o Núcleo de Consciência Negra Lélia
González, em homenagem a professora e diretora do departamento de sociologia da PUC-Rio
no início da década de 1990, historiadora e socióloga, que faleceu prematuramente em 1994,
deixando um legado de resistência e militância.
Foi importante homenagear a Prof.ª Lélia Gonzales pela relevância dos seus estudos
sobre a população afro-brasileira, e por que sua obra era completamente ignorada pela própria
universidade que a recebeu como professora, assim como o caso de Sebastião Rodrigues
Alves, militante do movimento negro da década de 1930 e aluno de Serviço Social desta
mesma universidade. A nossa sensação enquanto estudante era de que havia um complô
silencioso entre professores e funcionários para o apagamento da memória desta inteletual na
história da instituição. O objetivo do Núcleo de Consciência Negra Lélia Gonzales foi então
criar uma trincheira do conhecimento e um abrigo da cultura, de forma a conhecermos nossa
própria história e a nós mesmos, entendermos nossas próprias experiências políticas enquanto
um povo, além de nos solidarizarmos naquele ambiente de dissimulação racista. Nesta época,
interessávamos e procurávamos pelos clássicos da historiografia, da política, da filosofia e da
literatura africana.
Entre 2003 e 2004 participamos, enquanto organização, de atividades de militância na
PUC-Rio, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal
Fluminense (UFF), e na Universidade Estadual de Campos Goytacazes (UENF) em parceria
com o extinto NEGRO (Núcleo de Consciência Negra Guerreiro Ramos). A partir de 2005
começamos a coordenar um pré-vestibular criado por Alexandre Nascimento, um dos
membros do Núcleo de Consciência Negra Lélia Gonzales, no Céu Azul, pequena
comunidade, favela, localizada no Engenho Novo. O curso funcionava durante os finais de
semana dentro da associação de moradores do Céu Azul.
9
Figura 1: O Quilombismo
Fonte:http://biblioafrogriot.blogspot.com
No segundo semestre de 2005 enquanto membro Núcleo de Consciência Negra Lélia
Gonzales, formulei o projeto de pesquisa “Eugenia Lexical da Patologia Social – O negro
objeto em instituições de pesquisa no Estado do Rio de Janeiro entre 2002 e 2004”, cujo
objetivo foi denunciar a manipulação ideológica e historiográfica do negro usado como objeto
de estudos em instituições de pesquisa. No ano seguinre, 2006, eu e André Costa
apresentamos os resultados parciais da pesquisa no VI Congresso Brasileiro de Pesquisadores
Negros, organizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), realizado
na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mas infelizmente, a nossa falta de percepção
política e a militância imatura contribuíram para que esta fosse à última atividade do nosso
Núcleo.
História Colonizada
Ao começar os estudos de História na Puc-Rio tive a amarga constatação de que todo
o curso era uma afirmativa da supremacia branca no Brasil e no mundo. A história da África e
do Afro-brasileiro eram ignoradas, ou simplesmente desqualificadas, pelos professores, em
sua maioria teóricos egocêntricos frustrados por não terem nascido na Europa. Neste contexto,
criticas historiográficas como A Injustiça de Clio, escrita pelo jornalista e pesquisador Clóvis
Moura, foram de grande utilidade para mim, através deste livro comecei a descobrir as farsas
criadas pela historiografia brasileira sobre a história do negro no Brasil, principalmente em
relacão a resistência ao sistema escravista protagonizada pelos quilombos, uma tradição
guerreira africana espalhada por todas as regiões das Américas, e que receberam africanos
deportados do continente.
Outra obra que me impactou profundamente foi
O Quilombismo, escrita por Abdias Nascimento,
militante do movimento negro e de quem falaremos
adiante. Este livro, publicado originalmente em 1980, é
uma reunião de conferências apresentadas por Abdias
Nascimento em países africanos, Estados Unidos,
América Central e América do Sul entre 1974 e 1980.
Esta leitura foi minha introdução literária ao Pan-
africanismo, mas admito que somente anos depois,
comecei a alcançar a dimensão das intervenções de
10
Abdias Nascimento transcritas naquele documento. Abdias Nascimento trouxe-nos através do
seu livro uma orientação científica e um sentido político libertário global para nossas
profissões.
O Quilombismo nos apresentou um conjunto de clássicos da historiografia e
referências excluídas dos programas de história que conhecíamos, como Cheikh Anta Diop,
Joseph Bem Jochoman, Ivan Van Sertima e John Henrike Clarck. No sentido político, Abdias
nos ofereceu o conceito de Quilombismo não como mais um slogan, mas como um sentido de
luta pan-africana a partir das nossas experiências no Brasil, em conexão com o continente
africano e com sua diáspora. O Quilombismo foi um alerta de que não precisávamos nos
sujeitar a aderir às ideologias de uma historiografia europeia para pensar a nossa própria
história. Este livro despertou em mim a compreensão de que o estudo das civilizações
africanas da antiguidade serviu de base fundamental para historiadores do século XX. Perante
o direcionamento eurocêntrico que reveste as civilizações africanas da antiguidade, este tema
é tão ou mais relevante agora no século XXI.
Pois, a originalidade e legado de civilizações da antiguidade clássica africana como o
antigo Egito e Etiópia interferem diretamente nas bases dos conteúdos ensinados em todas as
disciplinas, assim como no próprio propósito da educação. Quaisquer mudanças e
transformações positivas na percepção política, histórica, filosófica, geopolítica e econômica
que africanos e africanos de origem possuem de si mesmos, devem passar por uma
reavaliação total das primeiras civilizações criadas no continente africano. Estudar as
civilizações do passado africano, e perceber seu legado no presente como uma herança para a
construção do futuro, essa mensagem é muito marcante em O Quilombismo.
No Brasil, a articulação política e as pressões de movimentos sociais possibilitaram
que no ano de 2003 fosse publicada a Lei Federal Número 10.639-3, que tornou obrigatório o
ensino de História e cultura africana e Afro-brasileira no país. Nós, estudantes de ciências
sociais e membros do Núcleo de Consciência Negra Lélia Gonzales, víamos a Lei 10639-3
como um perigo, pois o ambiente institucional das universidades era racista, os professores
debochavam tanto de nós estudantes quanto dos clássicos da historiografia africana. No caso
da história do negro no Brasil, a situação era mais profunda, autores de suma importância para
a nossa historiografia como Souza Carneiro, Maria Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales e
Clóvis Moura estavam excluídos dos programas. Questionávamos sobre qual História da
11
Figura 2: Encontro de integrantes do Núcleo de Consciência Negra Lélia Gonzales com
Abdias Nascimento em 2004
Fonte: Arquivo Pessoal -Foto de Lincoln
Oliveira (2004)
Figura 3: Fábio Gomes e André Costa,
comunidade Céu Azul, em 2008.
Fonte:www.ebukhosinisolutions.co.za
Foto de Baba Buntu (2008)
África seria ensinada, a colonial ou da libertação? Quem iria lecionar e coordenar pesquisas e
cursos?
O nosso Núcleo de Consciência Negra funcionou entre os anos de 2003 e 2006, neste
período mantivemos semanalmente um grupo de estudos. Os principais livros que estudamos
foram Steve Biko (Eu escrevo o que Eu quero), Abdias Nascimento (O Quilombismo, uma
nova versão ampliada e lançada em 2002), Malcom X (Autobiografia), Maria Beatriz
Nascimento (textos diversos), Lélia Gonzales (Lugar de Negro), Guerreiro Ramos (A
Redução Sociológica), Maria Aparecida Bento (Psicologia Social do Racismo), Clovis Moura
(Sociologia do Negro Brasileiro e Rebeliões da Senzala) e capítulos dos Volumes I e II da
História Geral da África (UNESCO).
A História Geral da África (UNESCO) proporcionou-me o primeiro contato com a
história e historiografia africana. De uma forma geral, todos os professores de história na
universidade organizavam seus pensamentos, formulavam provas, escolhiam estagiários e
preparavam suas aulas sob a perspectiva de que a história da humanidade começava na
Grécia, passava por Portugal e transitava pelos centros de pesquisa da Alemanha, França,
Itália e Estados Unidos, até chegarem à Universidade de São Paulo (USP) e a partir de então
serem distribuídos pelo território nacional. Eu nunca concordei com esse modelo neocolonial
e antiafricano de construção do conhecimento!
12
Figura 4: MusikFabrik atelier
Fonte: www.decult.uerj.br
Os professores Renato Emerson e Antônio Espirito Santo foram bases muito
importantes para a minha formação na época, tenho grande gratidão pelas oportunidades que
ambos me proporcionaram. A experiência com geógrafo Renato Emerson em investigação
sobre Políticas de Ação afirmativa e Pré-vestibulares para Negros e Carentes, levou-me ao
campo de pesquisa pela primeira vez. Durante o ano de 2002 percorremos dezenas de cursos
pré-vestibulares em todo o Estado do Rio de Janeiro. Os principais aprendizados que tive
foram sobre o valor do trabalho de campo, os relatos orais e seu registro. O professor Renato
Emerson assumiu uma postura em que não havia relacão sujeito-objeto, mas uma relacão
entre sujeitos de pesquisa.
Com Antônio Espirito Santo (Spirito
Santo) conheci a música e a musicologia,
integrei como aluno-monitor as oficinas de
construção de instrumentos musicais do seu
projeto MusikFabrik, instalado na década de
1990 na UERJ. No Musik Fabrik renovei
meu olhar para a história africana através da
musicologia, e tive acesso às informações
sobre as lutas africanas de independência,
principalmente do regime colonial português
em Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde. Entre tantos, os principais exemplos
que tive de Spirito Santo foram à dedicação ao trabalho de pesquisa independente, o holismo
em tratar da cultura e de tudo mais que se refere ao negro e a África, e a fundamental
importância da pedagogia, onde o holismo e a pesquisa independente devem ser aplicados
com muita atenção. Outro elemento muito valorizado por Spirito foi a influencia Bantu na
história, cultura, língua, religiosidade e tecnologia africana trazida para o Brasil.
Nas oficinas de construção de instrumentos musicais do MusikFabrik conheci Abeba
Makeda, cabo-verdiana e estudante universitária no Brasil. Uma jovem muito interessada
pelas lutas contra a colonização e neocolonialismo no mundo africano, ela expressava
abertamente uma grande admiração por Amílcar Lopes Cabral (Abel Djassy), aquele que foi
um dos maiores lideres políticos anticoloniais do Cabo Verde e Guiné Bissau, países
localizados na Costa Oeste africana. Amílcar Cabral fundou em 1956 o PAIGC-Partido
africano da Independência.
13
Ao retornar para Cabo Verde em 2006, esta cabo-verdiana trabalhou como assistente
internacional em conferências da Unidade africana (UA), participou de atividades em
associações de mulheres africanas e publicou artigos através da revista YOWLI, um projeto
da organização senegalesa pan-africana de mulheres Áfrican Women Milleniunm Initiative on
Poverty and Human Rights ( AWOMI). Makeda participou da criação de uma associação
comunitária voltada a trabalhos com jovens caboverdianos denominada Waaldé. Desde então
passamos a manter contato via internet.
África-Brasil-África
Após encerrar a graduação em História continuei os trabalhos de militância através de
projetos de educação alternativa em escolas, em comunidades e universidades, organizados
pelo MusikFabrik e do pré-vestibular do Céu Azul, o único trabalho que o Núcleo de
Consciência Negra Lélia Gonzales manteve. Em busca de uma continuidade dos estudos,
consegui uma bolsa de 50% para uma pós-graduação em História da África e do Negro no
Brasil pelo Centro de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Candido Mendes - Rio de
Janeiro. Esta oportunidade foi conseguida graças a uma indicação da livraria Kitabu (Rio de
Janeiro) e do comprometimento do prof. Edson Borges, iniciei o curso em 2009.
O programa do curso alertava indiretamente os discentes que temáticas relacionadas
ao Pan-africanismo estavam fora da proposta de ensino de História da África. O Pan-
africanismo é, em síntese, um amplo movimento organizado por africanos e seus
descendentes na diáspora para combater o racismo e o colonialismo, e reorganizar as
estruturas politicas e econômicas africanas devastadas pela exploração sistemática europeia
nos últimos séculos que antecederam o XXI.
Enquanto conceito, o Pan-africanismo surgiu no final do século XIX através de
conferencias e congressos denominados pan-africanos. Nas primeiras décadas do século XX o
Pan-africanismo foi à alavanca impulsionadora das lutas de libertação africana no continente e
na construção de estados independentes. O PAIGC, por exemplo, é, ou foi, um partido
político pan-africano de importância decisiva para as lutas de libertação nacional. Foram os
chefes de Estado e dos movimentos pan-africanos que formularam as propostas de efetivação
de uma confederação de Estados africanos, capaz de tornar a África um continente
autossuficiente. A Organização da Unidade africana, criada em 1963, e lideranças
nacionalistas pan-africanas foram alguns dos maiores incentivadores da confecção da História
14
Figura 5: Oficina de Construção de instrumentos musicais realizada na Fundação Amílcar Cabral,
2010.
Fonte: arquivo pessoal (2010)
Figura 6 : Oficina de Construção de instrumentos musicais realizada na Fundação
Amílcar Cabral 2010
Fonte: Arquivo Pessoal (2010)
Geral da África e de uma série de ações para modificação de currículos. Então, por que a
exclusão, no curso de pós-graduação, de um tema tão pertinente para a História da África?
O ensino de História no Brasil é estruturalmente eurocêntrico, comunga com valores
neoliberais racistas, e que acabam por marginalizar grandes movimentos e nomes da
historiografia africana como o senegalês Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo do Burkina Faso
e Walter Rodney da Guiana, todos três militantes de movimentos sociais nacionalistas Pan-
africanos. A própria metodologia Geral de pesquisa para a confeccão da História Geral da
África, formulada por Joseph Ki Zerbo, tem no Pan-africanismo um de seus princípios
fundamentais.
Entre os anos de 2008 e 2009 mantive contato via internet com organizações
internacionais de caráter pan-africano, comecei a elaborar um projeto sobre história da África
e Diáspora e construção de marimbas (xilofones). Com o projeto pronto, em Dezembro de
2010 iniciamos um intercâmbio em Cabo Verde custeado de forma independente pelas
organizações e pessoas envolvidas, dentre as quais a Associação Comunitária Waaldé, a
Fundação Amílcar Cabral, o programa Ritmos Afrocentricos – RA, e eu mesmo, com as
poucas economias que tinha.
No Cabo Verde realizamos este projeto de arte-educação na Ilha de Santiago e
fizemos uma pequena workshop do mesmo na Ilha do Sal. Neste período tive a oportunidade
de fazer apresentações informais sobre a história do negro no Brasil para os participantes do
projeto. Dialoguei com professores, pesquisadores e estudantes, frequentei instituições de
15
pesquisa, arquivos e bibliotecas da capital do país. Foi a partir destas vivências que percebi
que os programas, bibliografias e livros didáticos de história (manuais ) utilizados em Cabo
Verde estavam submersos em teorias coloniais racistas, muito parecidas com as do Brasil.
Mas meu visto de três meses já estava por terminar, retornei ao Brasil com a perspectiva de
voltar a Cabo Verde, me instalar de forma definitiva, trabalhar como professor de história e
interferir de forma cnstrutiva neste problema educacional.
No final do ano de 2010 retornei ao Cabo Verde com o apoio de Abeba Makeda e no
inicio de 2011 trabalhei com a Associação Comunitária Waaldé na criação de um programa
educacional denominado Grupo de Trabalho Amílcar Cabral 1956 (GTAC’56), em menção a
Amílcar Cabral e a criação do Partido africano para a Independência de Guiné Bissau e Cabo
Verde (PAIGC) em 1956. O objetivo do GTAC’56 foi realizar atividades de conscientização
política e identidade africana voltadas para um público jovem.
O programa GTAC´56 foi apoiado pela Fundação Amílcar Cabral, Associação de
Combatentes da Liberdade, Ministério da Juventude e pela senhora Ana Maria Cabral, viúva
de Amílcar Cabral e testemunha do seu assassinato no ano de 1973 em Guiné Conacri. A
Fundação Amílcar Cabral nos cedeu espaço para atividades do programa, sua biblioteca e
uma credencial tornando oficial o apoio. O ministério da juventude nos disponibilizou
transporte para atividades externas com os jovens, e a Sra. Ana Maria Cabral deu-me
orientações praticas para a condução do programa.
O primeiro projeto do GTAC’56 foi o Centro Escola do Pensamento africano
(CEPAFRO), que realizou semanalmente um grupo de estudos com jovens estudantes
universitários com os objetivos de estudar escritores do mundo africano, e conhecer
patrimônios culturais africanos, materiais e imateriais. O centro realizou uma formação de
oito encontros distribuídos por quatro semanas e as atividades desta formação resumiram-se a
sessões de vídeo documentário, exposição de livros e debates sobre história da África e
identidade africana, atividades realizadas na Fundação Amílcar Cabral. Nesta formação
ocorreram visitas guiadas a sítios históricos, como Cidade Velha (lugar onde foram iniciados
o processo de tráfico e povoamento do arquipélago de Cabo Verde no século XV), e no
campo de Concentração de Tchon Bom, um aparelho repressor para silenciar movimentos
anticoloniais criado pelo governo português na cidade do Tarrafal.
16
Figura 7: Primeiro encontro organizados pelo CEPAFRO, 2011, na Fundação Amílcar Cabral.
Fonte: Arquivo pessoal.
Foto: Abeba Makeda
Figura 8: Visita guiada organizada pelo CEPAFRO ao campo de concentração do Tarrafal, presídio
colonial desativado.
Fonte: Arquivo pessoal (2012)
Em meio às atividades do CEPAFRO consegui uma bolsa de estudos para participar
de um atelier sobre metodologia de pesquisa organizada na Universidade de Cabo Verde pelo
CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em África). Preparei um
projeto voltado ao estudo qualitativo sobre o ensino de civilizações da antiguidade africana
em Cabo Verde cuja ideia foi inicialmente criticada por caboverdianos e portugueses nascidos
em Angola, participantes do atelier. Os críticos argumentaram que o tema não era relevante,
mas ao mesmo tempo angolanos (professores Nzinga e Coda) e dois dos representantes do
CODESRIA (professores Carlos Cardoso e Elísio Makamo), deram-me total apoio, pois
viram que o tema envolvia questões chave sobre educação, política, relações internacionais e
historiografia.
Somada a minha convicção de que a proposta era pertinente, precisando ser
aperfeiçoada, as criticas e tentativas de desqualificação reforçaram minha intenção de
pesquisar sobre o ensino de história da África em Cabo Verde. Eu acharia estranho se
portugueses e pesquisadores caboverdianos concordassem com uma abordagem sobre as
bases do ensino de história, francamente eurocêntrica. Os caboverdianos sabiam que a minha
presença os denunciava como cumplices de um ensino de história eurocêntrico.
A Waaldé organizou em 2011 uma visita à Guiné Bissau, que se estendeu a Gambia e
Senegal, esta experiência resumiu-se em militância e pesquisa. Em Guiné Bissau fomos
recebidos pela Associação de Jovens Pan-africanos Revolucionários (AJOPAR), que nos
proporcionou a articulação necessária para participarmos em atividades com estudantes,
professores e militantes de movimentos sociais. Realizamos no Instituto Nacional de
17
Figura 9: Encontro com integrantes da AJOPAR no INEP em Guiné Bissau
Fonte : Aquivo pessoal
Figura 10: Encontro com secretário administrativo do PAIGC em Guiné Bissau
Fonte : Aquivo pessoal
Educação e Pesquisa (INEP), em Guiné Bissau, pesquisas bibliográficas, e com o apoio dos
professores Mamadu Jau, Imani na Umoja e Augusto Bock fizemos uma pequena palestra
sobre o legado de Abdias Nascimento, falecido no início daquele mesmo ano.
Para os guineenses foi uma surpresa o meu interesse por Amílcar Cabral, pelas lutas
de libertação e pelo ensino de história da África. Segundo Imani na Umoja, idealizador e líder
do AJOPAR, a grande maioria das pessoas do Brasil chega à Guiné Bissau interessadas na
disseminação de credos religiosos, trabalhos acadêmicos e atividades que possam gerar status
ou recursos financeiros para fins individualistas.
Com muitas informações na bagagem, saímos de Guiné Bissau em direção ao Senegal
pelas estradas e rios que cruzam a Gâmbia. No Senegal nosso trabalho foi buscar informações
sobre a vida e obra do historiador Cheikh Anta Diopág. Neste sentido, visitamos o Instituto
Fundamental da África Negra (IFAN), localizado em Dakar-Senegal, e onde Cheikh Anta
Diop trabalhou entre as décadas de 1960 e 1980. Tivemos a oportunidade de fazer
levantamentos bibliográficos na sede do CODESRIA em Dakar. Retornamos a Cabo Verde
renovados e fortalecidos com as experiências vividas.
Posso dizer que a partir dessas oportunidades sentia-me preparado para intervir de
alguma forma neste processo de colonizacão da história africana, algo que se ampliou a cada
conversa com estudantes e professores, a cada fronteira que passávamos e a cada instituição
em que pesquisamos. Os currículos eurocêntricos do Brasil e de países africanos estão
interligados a um mesmo sistema global de dominação e supremacia branca, europeia.
18
A (outra) realidade
Diante de toda esta rica experiência em território africano e do conhecimento havia
uma preocupação: Eu estava sem um emprego, sem uma renda regular. Até então, eu vivia em
um dos quartos da casa onde fiquei desde minha chegada em 2010, que pertencia à mãe de
Abeba Makeda e com um donativo simbólico pelas atividades para a Waaldé.
Procurava emprego em Cabo Verde como professor e pesquisador, mas não consegui
absolutamente nenhum sinal positivo, muitas promessas de abertura, e todas as portas do
magistério fechadas. No começo parecia que o problema era não ter títulos acadêmicos, mas
dado o contexto em que graduados de varias partes do mundo darem aula em universidades os
motivos começaram a vira a tona. Sinto que vivi em Cabo Verde uma tripla discriminação,
tudo muito parecido com a realidade brasileira, onde roupas de dilla (tecidos africanos),
cabelos e barba longos e a militância pan-africana, são utilizadas por artistas como adereços
em festas a fantasia em eventos de caráter cultural. Não abri mão do que eu sou e da minha
consciência, e paguei um preço por isso.
Em Cabo Verde eu poderia dedicar-me a arte educação e até trabalhar com músicos
que conheci, mas isso exigia minha total dedicação, e a minha inquietação no campo da
história não permitiu dividir-me, decidi-me pela história. O sistema de contratação que eu
encontrei no país era feito por inscrição de vagas ou indicação, em nenhuma das duas formas
tive sucesso. Eu teria que construir um caminho com toda a criatividade, produção e
perseverança possíveis.
Voltei-me aos conteúdos sobre civilizações da antiguidade africana nos livros
didáticos e programas de história, organizando estudos para mim mesmo sobre a vida e obra
de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter Rodney, e esta tem sido, desde então, minhas
escolas. Para estes três autores, muitos dos problemas da formação educacional dos jovens
começam na deturpação da história das civilizações africanas e no apagamento de seu legado
nos manuais de história, sob as quais se manifestava uma espécie de introdução ao racismo
institucional. Nesta linha de abordagem crítica construí meu projeto de pesquisa e cabia-me
encontrar meios financeiros de materializá-la.
19
Meios de trabalho
Aperfeiçoei o projeto de pesquisa apresentado em 2011 no CODESRIA, ampliando-o
a uma investigação sobre o lugar das civilizações da Antiguidade Clássica africana em
programas e livros didáticos no Cabo Verde e no Brasil. A Antiguidade Clássica africana é
uma classificação empregada por Cheikh Anta Diop (1989, pág. 43), para designar as
primeiras grandes civilizações do Vale do Nilo, como Antigo Egito e Etiópia.
Resolvi trabalhar Brasil-Cabo Verde como estudo comparado porque, em primeiro
lugar, percebi que havia um problema educacional com a mesma origem dentro das duas
sociedades. Em segundo, porque ter nascido no Brasil me facilitava à candidatura regular para
uma bolsa de mestrado em alguma uma universidade brasileira, que convertida na moeda de
Cabo Verde significava um modesto salário de professor, e no Brasil eu poderia contar com a
casa de minha família.
Circunstância: Ntu
Aguardando a abertura de algum mestrado em Cabo Verde pelo qual pudesse financiar
e orientar esse projeto, li um artigo sobre filosofia Bantu intitulado NTU, escrito pelo
engenheiro, historiador e filósofo Henrique Cunha Jr., professor da Universidade Federal do
Ceará. O professor Henrique Cunha Jr. tinha um vasto histórico nacional de militância no
movimento negro, ao mesmo tempo em que uma carreira de caráter internacional em ciências
humanas e exatas. Identifiquei-me pelo tema inserido na filosofia africana, e por suas
referências bibliográficas e pelo diálogo com George G. James, Theóphile Obenga, Ivan
Sertima, Martin Bernal e Cheikh Anta Diop. Uma abordagem completamente diferente do
que eu estava acostumado a ver no Brasil, tanto pelos escritores racistas quanto pelos
creditados como conscientes.
Entendi que a orientação do prof. Henrique Cunha Jr. seria excelente para o tipo de
trabalho de pesquisa e militancia que eu queria fazer. Comecei a preparar-me para o processo
de seleção do mestrado na Universidade Federal do Ceará, candidatei-me e consegui uma
vaga no processo seletivo de 2012 para ser um dos orientandos do Prof. Henrique Cunha Jr.
Mas haveria ainda uma grande luta pela frente, na verdade uma guerra.
20
INTRODUÇÃO ________________________________________________
A história situa-se no centro da sistematização da gestão
científica e cultural da existência dos povos negros.
Penda Mbow
Importante, nossa pesquisa foi de ordem qualitativa e nosso estudo de caráter
preliminar. Por isso, não tivemos a pretensão de atingir altos índices de quantidade de
materiais analisados ou de pessoas entrevistadas. Terminamos o nosso trabalho cientes de que
apenas uma primeira fase se encerrava, ousamos testar na teoria e na prática um estilo de
trabalho cientifico pan-africano, proposto pelas gerações anteriores de historiadores da África.
Podemos dizer que nosso trabalho de investigação é militante em diferentes sentidos:
1) a qualidade do ensino de história africana foi preocupação comum às primeiras gerações de
historiadores da África, lideranças de movimentos nacionalistas; 2) a Metodologia de
Pesquisa Geral proposta por Joseph Ki-Zerbo estrutura-se sob duas colunas fundamentais: o
Pan-africanismo e a Unidade Federal do Continente africano ; 3) durante todo o nosso
trabalho dialogamos com clássicos da história e historiografia africana; 4) realizamos um
estudo comparado entre o ensino de história em dois países, Cabo Verde (África) e Brasil
(América do Sul); 5) não trabalhamos sob a sentença eurocêntrica sujeito-objeto de pesquisa,
mas entre sujeitos da pesquisa; 6) propusemos e colocamos em prática no final do nosso
trabalho alternativas para colaborar com a resolução dos problemas que identificamos no
percurso da pesquisa.
Por isso, afirmamos um posicionamento politico de conhecimento pan-africanista e
estamos comprometidos em dar continuidade a este trabalho, uma vez que o mesmo está
dentro de um plano de militância permanente do se seu autor. Foi por este motivo que
iniciamos nosso trabalho com o tema civilizações africanas da antiguidade clássica, convictos
que o mesmo não pode ser negligenciado, pois é parte decisiva das estruturas dos sistemas
educacionais, do comportamento, da identidade e consciência histórica africana. Para
quaisquer pretensões de revisão ou qualificação de currículos educacionais as civilizações
africanas, seu construto científico e seu legado cultural devem ser considerados. Mas, para o
nosso caso, entendemos que além das revisões, é necessária uma nova estrutura pedagógica de
ensino, baseada em outros valores cujo tema civilizações é uma exigência.
21
Esta Introdução Geral foi baseada no meu projeto de mestrado, as alterações sobre o
documento original resultam das leituras, orientação, criticas, trabalho de campo e da defesa
do mestrado. As alterações que não decorrem dos motivos acima citados são consequência
dos avanços da minha própria consciência histórica enquanto investigador, professor e
militante pan-africanista.
i. Interesse pela consciência histórica
A investigação apresentada é sobre o ensino de História da África no qual nosso
campo de análise abrange manuais e programas de história utilizados por escolas em Cabo
Verde e no Brasil cujo foco de atenção são as civilizações africanas da antiguidade clássica,
neste caso o antigo Egito, situado no leste do continente africano. Nossa investigação teve
como parâmetro instrumental, ou referencial, textos clássicos da historiografia africana sobre
metodologia e antiguidade, alguns deles inseridos na História Geral da África (UNESCO).
Em nosso trabalho tratamos por clássicos da historiografia africana documentos
científicos dotados de propósitos libertários reconhecidos por organizações, movimentos
sociais e militantes. Neste sentido, Cheikh Anta Diop, Walter Rodney e Joseph Ki Zerbo são
referências principais para esta pesquisa, pois produziram intensamente, do período agitado
das lutas de libertação nacional africanas, durante a década de 1950, às problemáticas
neocoloniais da globalização do final do século XX. Para estes historiadores, não houve
dicotomia entre o trabalho científico e a militância política nacionalista\anticolonial.
Destacamos algumas convergências entre os teóricos supracitados enquanto elementos
que serviram como base para nossa pesquisa: a militância em movimentos sociais, o apelo à
integração africana, o combate ao racismo, o reconhecimento do legado para África das
civilizações da antiguidade africana, a preocupação com a qualidade de manuais de história, a
valorização da oralidade, a compreensão das consequências do sistema colonial para o
continente africano, a consciência histórica e a identidade africana.
De forma geral, foram historiadores da África que se organizaram para combater a
“colonização da história da África”, tanto no continente africano, quanto em sua diáspora.
Mas, a descolonização da história africana não esteve restrita ao ofício dos historiadores,
envolveram-se também neste processo, lideranças de movimentos de libertação nacional,
associações e instituições de pesquisa. Ao tratar-se da história da África sob o contexto
22
nacionalista anticolonial os fatores em questão eram o sentido de construção das sociedades
libertadas, a coesão nacional, a integração de territórios, a identidade e a restauração da
consciência histórica.
A coleção História Geral da África produzida pela Organização das Nações Unidades
para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, entre as décadas de 1960 e 1980 é uma
obra pensada dentro deste propósito de descolonização, nela existem variados e controversos
posicionamentos sobre a história da África, mas mesmo assim, este documento reúne
clássicos da historiografia africana. Dividida em oito volumes, os Livros I e II, sobre
metodologia de pesquisa e história antiga, foram bases importantes para a nossa pesquisa,
pois contaram com a participação decisiva dos historiadores Joseph Ki Zerbo e Cheikh Anta
Diopág. O objetivo desta Introdução é delimitar o conjunto de elementos teóricos,
conceituais, metodológicos que estruturam o nosso trabalho.
ii. Delimitações do campo de pesquisa
O projeto da História Geral da África nasceu durante as décadas de 1950 e 1960, sob
um contexto de forte movimentação de luta anticolonial no continente africano. Kwame
N’krumah do Gana, Amílcar Cabral de Cabo Verde e Guiné Bissau, Julius Neyrere da
Tanzânia, Sekou Turé de Guiné Conacri, Jomo Kenyatta do Quênia e muitas outras lideranças
de movimentos nacionalistas anticoloniais advogaram a criação de escolas capazes de
popularizar a educação e de construir conteúdos programáticos voltados à conscientização e
identidade africana.
Entre o final da década de 1950 e o início dos anos de 1960, a preservação, o ensino e
a pesquisa de História da África foram temas de congressos de historiadores africanos
realizados no Gana e na Tanzânia. A Organização da Unidade africana (O.U.A.) criada no ano
de 1963, em Adis Abeba (capital da Etiópia), por Estados africanos independentes,
influenciou um projeto para confecção de uma obra sobre a história do continente africano
que fosse formulado e financiado, cuja proposta foi à reformulação do sistema de ensino e a
unificação curricular continental, enquanto etapas do processo de descolonização da história
da África.
A partir de 1965, a UNESCO e a O.U.A. patrocinaram a criação de um Comitê
Científico Internacional para a Confecção da História Geral da África. O processo de escrita
23
da obra durou mais de vinte cinco anos, contando com a participação de aproximadamente
350 especialistas africanos e não africanos. Entre os cientistas selecionados para formar o
Comitê de redação da História Geral da África estavam Joseph Ki Zerbo do Burkina Faso,
Cheikh Anta Diop do Senegal e Walter Rodney da Guiana, autores de obras importantes para
a historiografia africana, críticos da qualidade dos manuais (livros didáticos) utilizados por
escolas e militantes de movimentos políticos anticoloniais.
A História Geral da África teve seu primeiro lançamento parcial na França, no final da
década de 1970 e foi publicada posteriormente em inglês, francês e árabe, e tiveram edições
resumidas em inglês, francês, árabe, Suahili, peule, haussa, em português, chinês, espanhol,
japonês, italiano e fulani. Os Livros I, II, IV e VI foram lançados no Brasil em português pela
Editora Ática enttre 1981 e 1982.
Durante as décadas de 1970 e 1980 historiadores negros no Brasil criticavam a
tradição historiográfica colonial no país, conduzida pelo que o escritor Clóvis Moura
denominou de intelectuais do sistema escravista. No final da década de 1980, com o apoio do
Ministério da Cultura, um projeto para confecção de uma História Geral do Negro no Brasil
começou a ser confeccionado sob a direção de Clóvis Moura, Décio Freitas e Joel Rufino,
mas o mesmo não foi adiante. No final da década de 1980, com o apoio do Ministério da
Cultura, um projeto para confecção de uma História Geral do Negro no Brasil começou a ser
confeccionado sob a direção de Clovis Moura, Décio Freitas e Joel Rufino, mas o mesmo não
foi adiante.
Esta tradicão historiográfica escravista brasileira (e de intelectuais do sistema
escravista no Brasil) possui uma correspondência com a historiografia colonial, muito
presente no continente africano do século XX e está ligada a distribuição diminuta das edições
da História Geral da África no país, ou a forma de ignorar a existência da obra. Por sua vez,
estes fatores influenciaram o desconhecimento dos autores, instituições e ideias que
fundamentaram a metodologia e as teorias presentes na História Geral da África.
Entre as décadas de 1980 e 1990, a UNESCO realizou três encontros sobre a História
Geral da África: em 1986 em Dakar (Senegal), em 1989 em Nairóbi (Quênia) e em 1999 em
Trípoli (Líbia). A partir destes encontros foi proposta, e aceita, a construção da segunda fase
da História Geral da África, intitulada Uso Pedagógico da História Geral da África (UPHGA)
24
que objetivou ampliar a difusão e a utilização pedagógica dos conhecimentos inseridos na
obra.
A participação das organizações do movimento social afro-brasileiro, ou organizações
do movimento negro, na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade Sul-africana de Durban, entre 30 de
Agosto e sete de Setembro de 2001, serviu de base para criação de politicas públicas de Ação
Afirmativa, direcionadas a população negra no Brasil. A finalidade teórica destas politicas de
ações afirmativas foi compensar as injustiças e discrepâncias sociais vividas pela população
negra em diferentes setores sociais, a começar pelo acesso a educação de qualidade.
A partir de 2002, políticas de ação afirmativa começaram a ser implementadas no país
sendo a primeira delas reserva de vagas para estudantes negros em universidades públicas. No
ano de 2003, o governo brasileiro sancionou a Lei Federal 10639\3 que alterou a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394\96, e o parecer CNE-CP 003-004,
tornando obrigatório o ensino de História e Cultura da África e do Afro-brasileiro em escolas
e universidades de todo o país. Complementar a lei 10639\3, em 2004 foi publicado as
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e africana. Este documento indica a pertinência
da vida e obra de Cheikh Anta Diop e das contribuições da ciência e das filosofias ocidentais
do Antigo Egito para o ensino de História da África no Brasil.
A União africana - U.A. (antiga Organização da Unidade africana) realizou um pedido
formal à UNESCO em 2007 para organização definitiva do uso pedagógico da História Geral
da África, objetivando com isto a adoção da História Geral da África como base de um
currículo comum dentro do continente africano. Por conseguinte, a partir de 2009 a UNESCO
e a União africana iniciaram efetivamente a confecção do Uso Pedagógico da História Geral
da África, com a realização de um diagnóstico quantitativo-qualitativo sobre o ensino de
História da África e a utilização da História Geral da África em países africanos. Segundo o
profº. ISSIFOU (2010, pág. 5), um dos coordenadores do diagnóstico e relator do documento
“Estado atual da História Geral da África”), a disponibilidade de exemplares da coleção em
países africanos ainda é mínima.
No Brasil, a lei 10.639/03 e as suas Diretrizes Curriculares Nacionais possibilitaram o
relançamento da História Geral da África no ano de 2010. A edição completa da obra foi
25
organizada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pela Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), e pelo Ministério da Educação do Brasil
(MEC). Desde então, toda a obra pode ser consultada em acervos digitais da UNESCO ou
adquirida em livrarias. Este relançamento da História Geral da África sinalizou uma
oportunidade de diálogo com autores de difícil acesso em língua portuguesa, como Cheikh
Anta Diop, Walter Rodney, Teophile Obenga, Alexis Kagame, G.Mokhtar, B. A. Ogot,
S.K.B. Asante, B.O.Oloruntimehin e dezenas de outros.
Contudo, o próprio relançamento da coleção e as leis que tornam obrigatório o ensino
da História da África, não são suficientes para enfrentar as tradições eurocêntricas da história
nas perspectivas escravistas e coloniais. Para além do enfrentamento necessário, nossa
ambição é continuar o trabalho dos clássicos da historiografia no campo educacional e de
pesquisa, foi por isso que estabelecemos como marco teórico conceitual as contribuições de
Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo.
iii. Marco Teórico Conceitual
A afirmativa de que o continente africano é o berço da humanidade é assinalada com
os avanços das pesquisas científicas no campo da antropologia, paleontologia, geologia,
botânica, genética e arqueologia realizada nos últimos oitenta anos. A posição do Planeta
Terra em relacão ao sol permitiu que a intensidade energética dos raios solares fosse
absorvida e ativasse processos de transformação macro e micro biológicos na região
meridional, leste e sul, do continente africano, o mesmo não foi possível na Europa devido à
baixa intensidade de raios solares, uma região dominada por geleiras.
Por motivos geoclimáticos a vida humana no planeta terra iniciou-se na região dos
grandes Lagos, próximo ao atual país Uganda, no Leste africano. Até a década de 1950, os
achados arqueológicos mais antigos da raça humana (Australopitecos africanos), taxado entre
6 e 1 milhão de anos, haviam sido realizados na África do Sul por pesquisadores como
Raymond Dart. A partir destes achados arqueológicos, as regiões da África Austral, Sul e
Meridional, tornaram-se focos de pesquisa de arqueologia e paleontologia.
Nas décadas entre 1950 e 1970, a descoberta de fósseis do homo habilis e do homo
herectus nas mesmas regiões africanas, datados com mais de 1,7 milhões de anos, isolaram o
continente africano enquanto lugar de possível origem da humanidade. No início da década
26
de 1970, pesquisas realizadas na Etiópia descobriram hominídeos com cerca de três milhões
de anos. Todavia, duas tendências dividiam as opiniões de cientistas, uma foi a monocêntrica,
baseada na ideia de que em 70 milhões de anos ocorreram em solo africano todas as
transições entre primatas (australopitecos) e os humanos modernos (homo sapiens–sapiens).
Neste sentido, as diferenciações fenotípicas estão associadas a fatores geoclimáticos (Eras
Glaciais) do planeta Terra. Outra tendência foi a policêntrica, em que seus teóricos não
discordavam das evidencias arqueológicas no continente africano, mas defendiam que
migrações fizeram com que o homo erectus habitasse o continente africano, europeu e
asiático, proporcionando que este homo (erectus\ australoptecus) evoluísse de maneira
distinta.
Considero que fica difícil sustentar a poligênese diante o fato de que os mais antigos
fósseis de homo sapiens encontrados na Europa possuem cerca de 40 mil anos, e que em
regiões do Quênia e Etiópia os fosseis mais antigos de homo sapiens-sapiens datam com mais
de 130 mil anos. O homo sapiens europeu também denominado homem de Grimaldi não
possui mais de 40 mil anos e migrou do continente africano para a Europa durante a era
glacial através do istmo de Gibraltar, atual estreito de Gibraltar, a cerca de 50 mil anos. Estes
africanos passaram por um processo de despigmentação e adaptação às condições geofísicas
da Europa durante a Era do Gelo, sob o contexto dos estratos médios do período quaternário.
No final do século XX, escavacões em Hadar, Etiópia, revelaram um fóssil de 52 ossos de
esqueleto de homo sapiens com mais de 4 milhões de anos, nomeado Birkimesh, que significa
você é uma pessoa de valor em amárico.
No último quarto do século XX foi iniciado nos Estados Unidos o Projeto Genoma
Humano, voltado ao estudo da constituição genética total do indivíduo. No ano de 2001
ocorreu o Congresso da Organização do Genoma Humano, que revelou – entre outras
questões, que os europeus modernos descendem de africanos migrados para o norte do
mediterrâneo entre 20 e 25 mil anos. A tese politeísta foi abalada pelos resultados do Projeto
Genoma Humana, e neste sentido, sua fundamentação ideológica racista ficou mais
evidenciada.
Mas não somos inocentes, sabemos que estes avanços na área de pesquisa
arqueológica, paleontológica e genética não interferiram na desconstrução sociocultural do
racismo. O racismo vigora, existe e continua determinando relações culturais, políticas,
econômicas e educacionais em todo o mundo.
27
Por isto, consideramos que no contexto da década de 2010, a frase “África berço da
humanidade” é um mero slogan, vazio da força transformadora que emana do conhecimento
verdadeiro, um berço somente não nos satisfaz. Um berço, é uma condição infantil que não
capacita o sujeito histórico africano de ter sido o emérito edificador das primeiras civilizações
complexas como Núbia e o antigo Egito. O sedentarismo e as migrações inter-africanas são
dois aspectos importantes para a compreensão da origem das civilizações a partir da região
dos Grandes Lagos, estas primeiras civilizações constituíram-se como impérios, centros de
peregrinação e conexão entre as cinco regiões do continente africano na antiguidade clássica.
Superamos a condição berço, avançamos sobre o autodesenvolvimento intelectual, a técnica, a
ciência, a sociedade, o Estado e os sistemas jurídicos e econômicos que o compõem.
E é deste ponto fundamental de reorganização do sentido histórico que optamos por
uma teoria da história que respeite as especificidades do tempo e do espaço africano, uma
teoria da história fora do controle ideológico racialista e condicionada a experiência prática,
em hipótese alguma fora dela. Nosso marco teórico conceitual divide-se entre a Metodologia
Geral de pesquisa em História da África, proposta por Joseph Ki-Zerbo, e as teorizações de
Cheikh Anta Diop sobre as civilizações da antiguidade africana clássica (Antigo
Egito\Nubia). Neste trabalho, o continente africano é considerado em sua unidade, a partir de
sua totalidade física, geográfica e cultural. A unidade, neste sentido de totalidade, é a base
nuclear da Metodologia Geral de Joseph Ki-Zerbo.
O historiador Gamal Mokhtar ilustra-nos a importância da metodologia de Ki-Zerbo
dentro do contexto em que foi criada entre as décadas de 1960 e 1970:
Até aqui, costumava-se situar o início da história da África subsaariana no século
XV da Era Cristã, e isso por duas razões principais: a penúria de documentos
escritos e a clivagem dogmática que os historiadores costumam estabelecer
mentalmente entre essa região do continente, de um lado, e o Egito antigo e a África
do Norte, de outro. A despeito das lacunas e insuficiências das pesquisas efetuadas,
este volume contribui para mostrar a possibilidade da existência de uma unidade
cultural do conjunto do continente nos mais variados domínios. (MOKHTAR, 2010,
pág. 862)
A Antiguidade aqui é o período compreendido entre o fim da proto-história no
continente africano, por volta de 7.000 a.C, à decadência de Cartago (Norte da Tunísia ), em
aproximadamente 200 a.C., ocasionada por uma invasão do império romano em 180 a.C.,
que marca o fim de uma grande era da marcha africana sob o planeta Terra. Acontecimento
que na perspectiva de Cheikh Anta Diop foi o precedente para a dominação militar colonial
28
europeia no continente africano no século XIX. O general e estadista de Cartago naquela
época era Annibal (247-183 a.C).
As civilizações da antiguidade clássica africana do Vale do Nilo1, como o antigo Egito
e a Núbia, detiveram um grau elevado de auto-desenvolvimento educacional, jurídico,
político, econômico e tecnológico, que as permitiu estabelecer rotas de migração
intercontinental. Estas migrações serviram de base para formação de grandes Estados e
Impérios, como Gana e Nok na costa oeste africana. Podemos citar grandes complexos
civilizacionais africanos na antiguidade e suas correspondências contemporâneas de acordo
com as pesquisas de Cheikh Anta Diop (1987, pág. 213): Núbia-Egito; Uganda-Ruanda-
Burundi; Tanzânia-Quenia-Zaire; Zimbábue-Moçambique; Botswana; Madagascar-Comores;
Namíbia-Zâmbia; Congo-Angola; Nigéria-Camarões; Gana-Burkina-Costa do Marfim;
Senegal-Guiné-Mali; Mauritânia; Marrocos-Tunísia-Argélia; Chade-Líbia. Nossas atenções
estão direcionadas ás civilizações da Núbia e do Egito.
Na antiguidade africana, o Egito localizava-se ao norte do mar mediterrâneo, Sul e
Sudeste entre Núbia e Etiópia, e a Oeste pelo deserto da Líbia. Kemet é o nome vernáculo do
antigo Egito, que e significa “terra de pretos” ou “terra de negros”. As primeiras culturas da
região datam de cerca de 10.000 a.C. e foram elas que configuraram parte significativa do que
veio a ser a civilização do Kemet ( antigo Egito ) no quarto milênio a.C.
De acordo com o pesquisador Asante (1992), a partir da unificação das regiões ao sul e
ao norte do rio Nilo, por volta de 3500 a.C., o império do Egito foi fundado e perdurou até 50
a.C. A periodização do Kemet é composta por 26 dinastias reais subdivididas em períodos de
grande prosperidade (as Três Eras de Ouro) e os Três Períodos de Instabilidade.
Conforme o Dicionário da Antiguidade africana (2004), a Núbia foi conhecida pelos
habitantes do antigo Egito como Ta Seti - Terra do Arco, estava localizada ao redor do Rio
Nilo, no atual Sudão e dividiu-se em: Baixa Núbia - entre as primeira e segunda cataratas do
Rio Nilo; Dongola, após a terceira catarata; Cush, entre a quarta e quinta cataratas, finalizada
por Uauat mais ao Sul do Nilo. Cush foi o primeiro grande Estado da região, e base para a
criação das civilizações de Napata e Meroé. De acordo com Cheikh Anta Diop (1954,
pág.73), a região da Núbia foi o ponto de partida para a construção do antigo Egito e de outras
1 Ver mapa em anexo.
29
civilizações e sua relação com o Kemet foi marcada por parcerias equilibradas, trocas
comerciais, relações culturais e momentos de conflitos geopolíticos.
Não utilizamos os conceitos de África Negra e África Branca, uma vez que esta
divisão acaba por atribuir ao imaginário social dúvidas sobre a origem étnicocultural e a
identidade africana dos egípcios na antiguidade. Mas reconhecemos que entre as décadas de
1950 e 1970, historiadores como Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo afirmaram o termo
África Negra como forma de contradizer os historiadores coloniais que tentavam a todo custo
provar que o norte da África foi primeiramente ocupado por brancos e posteriormente por
Árabes, negligenciando o vestígio de quaisquer civilizações negras africanas. Uma ideologia
racista que construiu-se um mito criminoso de que o norte da África é desenvolvido e o sul
(“subsaariana”) subdesenvolvido.
Obras como Nações Negras e Cultura, de Cheikh Anta Diop, e História da África
Negra, de Joseph Ki-Zerbo, desconstruíram estas falácias através de argumentos
interdisciplinares. As ideologias coloniais serviram para “afastar” o antigo Egito do
continente africano, e foram reforçadas pela ideia aberrante de que o mesmo teve sua origem
na região do Delta, noroeste do continente africano. É nesta seara que a ideia de duas
“Áfricas”, uma negra e outra branca, exclui o continente africano dos processos de
hominização, socialização e civilização como observa Cunha Jr. (2012, pág.2):
Há a necessidade de mudar o caminho até hoje utilizado no ensino de História e que
não é bom para formação ética, moral e cidadã de todos. […]. A principal razão para
o estudo da história africana é que sem ela se torna impossível conhecer bem a História do Brasil. Nesse sentido, entende que o reconhecimento das civilizações
Egípcias e Etíopes da Europa, enquanto base de constituição Greco Romana, é
necessário para ilustração da importância e da bagagem africana trazida para o
Brasil.
O conhecimento científico foi um elemento conceitual importante para nossa pesquisa,
pois, entendemos que no continente africano, por meio da experimentação, dos ofícios, das
técnicas e da ciência, o ser humano desenvolveu invenções como abrigo, roupas, alimentos,
fogo, escrita, medicina e a matemática, por exemplo. Durante a antiguidade africana estes
conhecimentos e experiências científicas ascenderam em diversas partes do continente, com
muito vigor no Vale do Nilo, a exemplo do próprio antigo Egito. O povoamento do Alto Nilo,
próximo a região dos Grandes Lagos, exigiu muitos esforços de sobrevivência e adaptação
por parte de seus primeiros habitantes, ou grupos sociais.
30
Em concordância com as orientações do profº. Cunha Jr. (2006, pág.12) substituimos o
conceito de “raça” pelo termo “etnocultural”, e optamos por uma abordagem diversialista dos
grupos sociais africanos . Tal abordagem nos foi importante para a efetuação de analogias
entre os relatos recolhidos dos professores participantes e as análises de materiais ( manuais e
programas/currículos) .
Na metade do século XX, a utilização do termo raça em obras escritas por Joseph Ki-
Zerbo e Cheikh Anta Diop justifica-se por não haver termos mais adequados na época para
distinguir o povo original do continente africano dos povos invasores e/ou colonizadores. Na
obra Nações Negras e Cultura, publicada em 1954, por exemplo, Cheikh Anta Diop defendeu
a existência de uma única raça humana detentora de diferentes ramificações influenciadas
fundamentalmente por questões geoclimáticas, e não por aspectos intelectuais e culturais,
como os cientistas do racismo no século XIX idealizaram. Não menos importante,
trabalhamos com o conceito de consciência histórica definida enquanto:
[...] um reflexo de cada sociedade, e mesmo de cada fase significativa na evolução
de cada sociedade, compreender–se á que a concepção que os africanos possuem de
sua própria história e da história em geral seja marcada por seu singular
desenvolvimento, e de consciência histórica [...]. (ZERBO, HAMA, 2010, pág.23)
Para M. M’Bow (2010) a consciência histórica deve ser “renovada, intensamente
vivida e assumida de geração em geração”, portanto, a consciência histórica em nossa
pesquisa foi dimensionada a partir do sentido que o livro didático e seus conteúdos ocupam
no processo de construção do conhecimento sobre África. Concordamos com o conceito de
memória de Nascimento (1982) que a diz possui um caráter fundamental de coesão grupal. A
partir desta perspectiva, entendemos que o projeto político-pedagógico adotado por livros
didáticos e programas curriculares de história é uma das posições mais determinantes e
influentes para a construção de uma memória sobre África. A relação entre livros didáticos,
programas/currículo e memória foi o que orientou o conceito de consciência histórica no
nosso trabalho.
No contexto da história da África o termo diáspora significa dispersão e subdivide-se
em três momentos. O primeiro, decorre do movimento dos povos africanos para a Ásia no
período da antiguidade. Esta dispersão voluntária difundiu os conhecimentos científicos e
técnicos africanos para o Crescente Fértil e Ásia, onde foram criadas grandes civilizações no
31
Azerbaijan, Armênia, Bahrain, Bangladesh, Butano, por exemplo. Em um sentido moderno,
Nei Lopes (2010, pág. 2004) apresenta outros dois momentos da diáspora africana:
O primeiro, gerado pelo comércio de escravos (…) ocasionou a dispersão dos povos
africanos tanto através do Oceano Atlântico quanto do Índico e do mar vermelho,
caracterizando um verdadeiro genocídio (…). O segundo momento ocorre a partir do
século XX, com a imigração, sobretudo para Europa, em direção as antigas
metrópoles coloniais. O termo diáspora serve também para designar, por extensão de
sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio
cultural que construíram.
Nei Lopes está correto quando afirma que a diáspora gerou um patrimônio cultural de
ordem material e imaterial e que este patrimônio foi construído e compartilhado entre
africanos e afrodescendentes sob circunstâncias de extrema tensão sociocultural geradas pelo
tráfico de pessoas. Ainda oferece outro elemento, que destacamos, por se tratar da realidade
complexa que envolve o patrimônio cultural, a desafricanização:
[…] se tiram ou se procuram tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que
o identificam com a origem africana [...] O processo de desafricanização começava
no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes do
embarque. Seguia-se a adoção compulsória do nome cristão, bem como do
sobrenome do dono […] Processo psicológico e cultural de desconstrução da
identidade dos africanos e seus descendentes dispersos. A principal estratégia do
escravismo nas américas era fazer com que os cativos perdessem o mais
rapidamente sua condição de africanos […] De qualquer forma a desafricanização da
diáspora é e continua sendo um processo altamente desagregador (LOPES, 2004,
pág. 233).
Entre os séculos XV e XIX nossos ancestrais enfrentaram, resistiram e sobreviveram à
desafricanização através da solidariedade e de uma profunda consciência histórica, elementos
transformados em valores. No final do século XIX com o avanço do sistema colonial de
exploração do continente africano, e da opressão racial na diáspora, lideranças organizadas
em coletivos de ação anticolonial passaram a definir como Pan-africanismo as articulações
políticas de resistência baseadas nestes valores.
No início do século XX, o Pan-africanismo tomou forma de movimento social e
doutrina política através das ações de organizações e movimentos dirigidos por líderes como
WEB Du Bois, dos Estados Unidos e, Marcus Garvey, da Jamaica. O primeiro foi
economista, pedagogo, filósofo e historiador, participando ativamente da Associação
Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor – NAACP. Marcus Garvey trabalhou em ampla
área da militância política, criou cursos, marchas populares, jornais e circuitos comerciais de
produtos. No ano de 1914, fundou a Universal Negro Improvement Association - UNIA.
32
Estas representações políticas e intelectuais valorizaram o conhecimento histórico africano
como instrumento de conscientização política e cultural das massas negras de sua época.
Durante os primeiros quarenta anos do século XX, a organização de congressos e
conferências pan-africanistas foram fundamentais para formação de uma ampla rede de
relações políticas e culturais entre diáspora africana e África. Em sua época, WEB Du Bois e
Marcus Garvey foram críticos severos do racismo na diáspora e do colonialismo europeu no
continente africano. E, em essência, possuem muito mais convergências que divergências, a
começar pelo interesse de ambos pela melhoria da qualidade de vida global das populações
negras, e pelo conhecimento histórico enquanto força motriz de conscientização.
No contexto dos conflitos armados e da expansão colonial de Estados europeus na
África, a invasão da Etiópia pela Itália, em 1935, foi duramente criticada por Du Bois e por
Garvey. Naquela época, a Etiópia era governada pelo imperador Tafari Makonen, coroado em
1930 e nomeado Haile Selassie - Poder da Santíssima Trindade, o Rastafari (Cabeça Criadora
– Rei). Haile Selassie foi o general do exército etíope durante luta vitoriosa da nação africana
contra dominação das forças colonialistas de Mussolini, general dos exércitos e presidente da
Itália. A vitória etíope na década de 1930 foi compreendida como signo do nacionalismo
africano e embrião de diversos movimentos anticoloniais que surgiram posteriormente.
As lutas de independência africana das décadas de 1940 e 1960 foram um momento de
renovação para o Pan-africanismo em que líderes e partidos assumiram grandes embates
políticos, assim como organizaram movimentos armados de libertação. Kwame Nkrumah do
Gana e Amílcar Cabral de Cabo Verde e Guiné Bissau foram dois dos líderes de destaque
durante esse período. Kwame Nkrumah pertenceu ao Convention People Party e conduziu
processo politico de independência comprometido com o Pan-africanismo. Amílcar Cabral
fundou o Partido africano da Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde – PAIGC, no ano
de 1956, e durante a década de 1960 dirigiu o processo de luta armada contra a dominação
colonial portuguesa em Guiné Bissau e Cabo Verde, derrotada entre 1973 e 1974. Contudo,
foi antes, em 1957, que Gana tornou-se o primeiro país independente da região oeste africana.
Amílcar Cabral e Kwame Nkrumah valorizavam a educação e mais especificamente o
conhecimento de história sobre África, reconheciam a importância do legado das grandes
civilizações africanas para a formação de uma consciência histórica mais ampla que a do
nacionalismo estreito. No início da década de 1960, presidentes de países independentes,
33
como o próprio Kwame N’krumah, e Julius Neyrere da Tanzânia, apoiaram a construção de
centros de pesquisa em seus países, incentivaram congressos de historiadores, publicações e
orientaram ideias para elaboração de livros sobre a história do continente africano. Na grande
década das independências africanas, 1960, a história da África passou por um momento
especial de valorização enquanto patrimônio, assumida e afirmada por lideranças politicas e
movimentos sociais como um bem material e imaterial inalienável.
Durante a década de 1960, as escolas do pensamento histórico - de Dakar no Senegal,
de Ibadan na Nigéria e de Dar ES Salaan na Tanzânia, por exemplo - foram aquelas
instituições que reuniram historiadores empenhados na reescrita e descolonização da história
da África. Entre as décadas de 1960 e 1980, a escola de Dakar e de Daar Es Salan
conseguiram congregar historiadores como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter
Rodney em seus quadros de pesquisadores e professores. de Dakar no Senegal, de Ibadan na
Nigéria e de Dar ES Salaan na Tanzânia são alguns exemplos
Na diáspora, os movimentos sociais também empregaram à história da África uma
dimensão social de conscientização e combate ao racismo. No Brasil, os denominados
genericamente como movimentos negros produziram materiais didáticos, jornais e minicursos
sobre História da África. Nas décadas de 1980 e 1990 jornais como SINBA (Jornal da
Sociedade de Intercâmbio Brasil África) e a revista Afro diáspora (periódico do Instituto de
Pesquisa e Educação Afro-brasileiro) publicaram matérias sobre as lutas do PAIGC e da
SWAPO (South-West África People's Organisation) da Namíbia.
Alguns militantes do movimento negro do Brasil participaram de congressos
internacionais Pan-africanos, como o de 1974, na Tanzânia, que contou com a presença de
Abdias Nascimento que se dedicou à militância cultural, à manifestações artísticas e às
organizações política em defesa dos direitos do negro no Brasil e no mundo. Entre as décadas
de 1980 e 1990, Abdias Nascimento trabalhou enfaticamente pelo ensino de História da
África, coordenou uma pesquisa pioneira sobre o ensino de Civilizações africanas em escolas
públicas do Rio de Janeiro, e como senador da república, dedicou-se a formulações de leis
para a inserção da história da África no currículo escolar nacional, algo que se materializou
em 2003 através da lei nº. 10.639\3.
O Brasil sediou, no ano de 2006, a II Conferência de Intelectuais Africanos e da
Diáspora - CIAD, que por reunir um vasto número de professores, religiosos, artistas,
34
pesquisadores, militantes e ativistas políticos em um mesmo espaço de debate na cidade de
Salvador – Bahia, entre 12 e 14 de Julho, sublinha-se como um evento capital na história da
educação do país. Com o objetivo de projetar ações sobre o tema da diáspora e do
renascimento africano apresenta um debate pautado nas dificuldades do ensino de antiguidade
africana e suas civilizações em uma das mais importantes conferência do evento: “A
contribuição da África para a civilização”.
A polêmica e o entusiasmo gerados pelos palestrantes e pelo tema em si chamaram à
atenção do público negro no Brasil para a emergência do tema civilizações africanas, e das
questões sobre a falsificação da história, denuncia feita por Cheikh Anta Diop na década de
1940. Colocou-se na conferência ser fundamental conhecer e explorar a obra deste autor, em
um sentido paradigmático. Após a promulgação da Lei Federal nº. 10.639, em 2003, e, de
suas Diretrizes Curriculares Nacionais em 2004, a II CIAD foi a primeira grande
oportunidade de diálogo nacional sobre o ensino de história da África e suas civilizações e o
nível crítico deste diálogo realizado na conferência foi da mais alta relevância para o nosso
trabalho.
Como comentamos no início desta introdução, muitos dos clássicos da historiografia
africana permanecem sem tradução, desconhecidos e ignorados pelas academias brasileiras,
isto é um fato. Como um país que se vangloria enquanto um promotor da história da África
sustenta quase que uma total ignorância sobre temas, obras e autores clássicos da história e
historiografia africana? Que ações concretas podem reverter esta situação?
A segunda fase da História Geral da África, intitulada Uso Pedagógico da História
Geral da África, nos serviu com dados importantes sobre o uso da obra no ensino primário e
secundário no continente africano. Em uma pesquisa feita entre 44 países do continente que
apresenta que o índice de utilização varia entre 2,27% e 15, 9 %, ou seja, é praticamente
desconhecida nas escolas africanas. Os dados oferecidos sobre a baixa utilização do material
didático na África auxiliaram-nos com informacões gerais do contexto africano de ensino de
história entre outras informações que trataremos no último capítulo.
Nosso trabalho confirma a importância de uma investigação sobre o lugar do tema das
civilizações africanas em livros didáticos. Na nossa perspectiva, a História Geral da África e o
seu Uso Pedagógico são ferramentas mínimas para mantermos um diálogo entre Brasil e Cabo
35
Verde, e a partir deste enfrentarmos desafios comuns no campo do ensino e da pesquisa em
história da África, assim como a confecção de manuais e programas.
Em Cabo Verde encontramos o silêncio sobre o assunto, precedido de críticas veladas
ao Pan-africanismo, e diretamente a Diopág. Entretanto, tivemos a oportunidade de conhecer
o trabalho pioneiro do professor Peter karibe Mendy sobre a influência neocolonial de
Portugal e a ausência curricular da obra de Cheikh Anta Diop nos conteúdos curriculares de
países como Cabo Verde e Guiné Bissau, suas ex-colônias. Durante a nossa pesquisa de
campo em Cabo Verde encontramos fatores alarmantes sobre as condições-conteúdos do
ensino de civilizações africanas, e como no Brasil, revelou-nos uma das únicas reais e
possíveis colunas de mudança no ensino de história da África, a dedicação de professores
conscientes.
No Brasil, o historiador Muryatan Santana Barbosa, no ano de 2012, defendeu pelo
departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo a tese de doutorado “A África por ela mesma: a perspectiva
africana na História Geral da África (UNESCO)”. Sua tese parte do principio do que ele
denomina de “perspectiva africana da Coleção História Geral da África” e seu estudo propõe
uma análise sobre a história institucional do projeto que originou a obra.
A pesquisa de Muryatan é a primeira integralmente dedicada à coleção, mas em nossa
perspectiva a História Geral da África deve ser mais explorada, principalmente sobre um
olhar crítico militante. Não podemos ser inocentes sobre a existência de unicidade de um
pensamento africano entre mais de trezentos e cinquenta autores da coleção, de diferentes
continentes, formações e escolas. Se foi importante para o projeto da História Geral da África
em 1964 objetivar a descolonização da história africana, e este objetivo não foi atingido, não
será mais a coleção a única forma capaz de enfrentar este problema cinquenta anos depois.
Acreditamos que uma pesquisa de caráter pan-africanista possa nos dar condições
iniciais, ou preliminares, de compreender problemáticas inerentes ao ensino da história das
civilizações da antiguidade africana no Brasil e em países africanos. É então a partir desta
exposição crítica que determinamos questões que puderam orientarr os nossos objetivos com
a pesquisa.
36
iv. Questões da Pesquisa
1) Sob que aspectos da lei 10.639/3 as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino
de história e cultura africana e afro-brasileira influenciaram mudanças teóricas e
metodológicas sobre o lugar do antigo Egito em livros didáticos e programas de história no
Brasil?
2) Qual o lugar da história das civilizações africanas nos livros didáticos utilizados em
Cabo Verde e Brasil?
3) Qual proposta pode ser inicialmente um caminho educacional pan-africano para
resolução dos problemas encontrados durante a pesquisa?
v. Objetivos
O objetivo geral desse projeto de pesquisa foi identificar o lugar que o antigo Egito,
enquanto civilização da antiguidade clássica, ocupa em programas/currículos e em livros
didáticos (manuais) de ensino de história, no Ensino Médio de escolas brasileiras e em nível
de ensino correspondente (Ensino Secundário) nas escolas cabo-verdianas.
Os objetivos específicos desta pesquisa foram: 1) fazer uma análise crítica sobre a
localização das civilizações africanas da antiguidade nos livros didáticos brasileiros e
caboverdianos; e 2) propor os princípios fundamentais de uma pedagogia que auxilie o ensino
de temas e abordagens sobre civilizações africanas na antiguidade clássica.
vi. Metodologia
Esta pesquisa possui uma abordagem qualitativa, pois converge com a perspectiva
interpretativista da pesquisa social-histórica e com os procedimentos de entrevistas semi-
estruturadas. A metodologia escolhida é a Metodologia Geral de Pesquisa, formulada por
Joseph Ki Zerbo (2010), a seguir comentamos seus principais conceitos e características .
37
A Metodologia Geral de Joseph Ki Zerbo define-se por quatro grandes princípios,
sendo o primeiro de interdisciplinaridade, base de sustentação para o diálogo entre diferentes
fontes de conhecimento e disciplinas, exemplificada pelas tradições orais, economia,
arqueologia, linguística, química, botânica, biologia, arte, geografia, cartografia e outros. O
segundo princípio é o da perspectiva interfricana, em que busca uma história completamente
inserida em valores africanos e na consciência de uma personalidade própria e independente.
Neste princípio a localização de um referencial africano para as experiências dos povos
africanos, em que se exige que a história da África seja concebida a partir de seu conjunto, da
origem em comum de valores, culturas e povos, interações ocorridas através de intercâmbios
milenares de bens materiais e espirituais entre regiões do continente africano (ZERBO,
2010).
O terceiro é o da consideração ao conjunto da história dos povos africanos, evitando
assim a fragmentação política e geográfica forjada pelas fronteiras coloniais. Nesse sentido,
Zerbo (2010) ressalta a relevância dos estatutos da Organização da Unidade africana – OUA,
para a Metodologia Geral. A OUA foi criada em 1963 por países africanos independentes na
cidade de Adis Abeba, na Etiópia e seus estatutos prezavam pela libertação das regiões
dominadas por países europeus e pela unificação política, econômica e administrativa das
cinco regiões do continente africano (Centro, Oeste, Sul, Leste e Norte) e suas ilhas. O quarto
princípio proposto é o de uma história dedicada e situada sobre tríplice: civilizações,
instituições e estruturas africanas em que o investigador defende que a história é um
elemento patrimonial nacional africano de valor inestimável e de merecida atenção política.
Viver sem história é ser uma ruína ou trazer consigo as raízes de outros. É renunciar
a possibilidade de ser raiz para outros que vêm depois. É aceitar, na maré da
evolução humana, o papel anônimo de plâncton ou de protozoário. É preciso que o
homem de Estado africano se interesse pela história como uma parte essencial do
patrimônio nacional que deve dirigir, ainda mais porque é pela história que ele
poderá ter acesso ao conhecimento dos outros países africanos na ótica da unidade
africana. (ZERBO, 2010, pág. LVII)
Sob esta orientação do Quarto Princípio proposto por Joseph Ki-Zerbo , organizamos
o trabalho de campo sob três categorias estruturais de análise : 1) Civilizacional: o Antigo
Egito e a Núbia , 2) Institucional: as escolas visitadas no Brasil e em Cabo Verde e 3)
Estrutural: configura-se nos programas e livros didáticos (manuais) de história analisados.
A partir destas três categorias estabelecemos contatos com professores através de entrevistas
ou atividades nas escolas; analisamos programas e livros didáticos cedidos por professores;
38
realizamos analogias entre os materiais coletados no Cabo Verde ( cidade da Praia e St.
Catarina) e Brasil ( Fortaleza), entre os anos de 2012 e 2013.
Recolhemos para análise dois tipos de materiais em Cabo Verde e no Brasil, livros
didáticos (manuais) e programas de história, utilizados em séries, ou anos, em que as
civilizacões da antiguidade são parte do conteúdo. Determinamos seis categorias para a
análise temática dos livros didáticos e programas: 1) Estrutura do livro; 2) Geografia africana;
3) Origem e Povoamento do antigo Egito; 4) Cronologia da História do Antigo Egito; 5)
Conhecimento Científico produzido pelas civilizações africanas; 6) Referências Bibliográficas
da História Geral da África.
No Cabo Verde analisamos três livros didáticos (manuais) utilizados na 9ª serie do
ensino secundário e um programa geral dos conteúdos referentes a história antiga, tema
inicial da 9ª série, ou 9º ano. No caso brasileiro, analisamos um programa e dois livros
didáticos de história do primeiro ano do Ensino Médio utilizados em escolas da rede publica
de ensino em Fortaleza.
Em Cabo Verde realizamos entrevistas com nove professores da 9ª série do Ensino
Secundário, e recolhemos programas e livros didáticos ( manuais) para análise. No Brasil
realizamos uma série de três palestras com estudantes do ensino médio sobre a temáticas
civilizações africanas e conhecimento científico. Em Fortaleza fizemos um encontro com
professores sobre a utilização da História Geral da África e a Lei Federal 10639-3.
Acompanhamos o cotidiano de trabalho no Brasil de um dos professores colaboradores da
pesquisa durante o segundo semestre e 2012.
vii. Estrutura da Dissertação
Dividimos a dissertação em três partes: Pan-africanismo; Historiografia; e Educacão.
Na primeira parte abordamos os momentos do desenvolvimento histórico e social do Pan-
africanismo, seus valores e suas estruturas de pensamento politico. Nossa teoria central é que
o Pan-africanismo influenciou movimentos nacionalistas anticoloniais, a valorização
patrimonial da história da África, Escolas de pensamento e a própria historiografia africana
sobre civilizações e antiguidade clássica.
39
O segundo momento, trabalhamos sobre as iniciativas de reescrita da história das
civilizações africanas a partir dos trabalhos de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter
Rodney. Abordamos nesta parte a relação entre a criação da Organização da Unidade africana
em 1963, o projeto de confecção da História Geral da África em 1964 e os desafios
enfrentados por historiadores da África.
A terceira e última parte desta dissertação apresentamos algumas similaridades entre
Cabo Verde e Brasil sobre educação, ensino de História e identidade. Apresentamos o
trabalho de campo (entrevistas\análise de materiais), recomendações gerais para superacão do
que identificamos como problemas e os princípios fundamentais da nossa proposta
denominada Pedagogia da Unidade.
40
PARTE I PAN-AFRICANISMO_____________________________________________
Capítulo 1: PAN-AFRICANISMO: AÇÃO, CONCEITO E AUTO-
DESENVOLVIMENTO
O Pan-africanismo é um movimento social com características políticas, econômicas e
culturais. Enquanto ação, fez frente às agressões sofridas pelas populações africanas e da
diáspora, entre os séculos XV e XX, período conhecido como holocausto africano - Maafa, no
idioma Swahili. O conceito de Pan-africanismo surge no final do século XIX com o advento
de conferências internacionais organizadas na diáspora e no continente africano por iniciativas
nacionalistas de caráter anti-colonial que ampliaram o sentido ideológico do conceito.
Sublinhamos que alguns dos valores estruturais do Pan-africanismo, como a solidariedade, a
identidade e a consciência histórica estão intrínsecas as experiências milenares de formação
dos primeiros Estados africanos durante a antiguidade.
É neste bojo que elaboramos uma periodização do Pan-africanismo em quatro fases
referentes ao seu auto-desenvolvimento histórico e social:
1ª Fase de resistência e luta contra sistema europeu de tráfico de africanos
escravizados e colonialismo entre os séculos XVI \XIX;
2ª Fase de organização ideológica de movimentos nacionalistas de libertação entre
as décadas de 1900\1920;
3ª Fase de ascensão dos movimentos e partidos políticos nacionalistas no continente africano, assim como a projeção de uma confederação continental entre as décadas
de 1930 \1950;
4ª Fase de independências nacionais, construção da Organização da Unidade
africana, Golpes de Estado, e avanço do neo-colonialismo entre as décadas de 1960
\1980.
Neste capítulo nossos objetivos são: desenvolver ideias referentes as duas primeiras
fases do auto-desenvolvimento histórico-cultural do Pan-africanismo, e destacar o lugar do
conhecimento histórico nas perspectivas de militantes anti-coloniais na virada do século XIX
e metade do século XX. Entre os militantes deste período destacamos Antenor Firmin,
Edward Wilmot Blyden, WEB Du Bois e Marcus Garvey. O capítulo está dividido em três
momentos, o primeiro de redefinição histórico conceitual do Pan-africanismo, e o segundo
sobre o caráter pan-africano no pensamento político de lideranças de movimentos sociais na
diáspora africana no início do século XX.
No terceiro momento, tratamos de fatos históricos do nacionalismo africano e das
articulações internacionais organizadas na forma de congressos pan-africanas. Nosso diálogo
41
geral neste capítulo foi realizado com os pesquisadores Henrique Cunha Jr., Molefi Kete
Asante, Joseph Ikinori, Kabenguele Munanga, Maria Beatriz Nascimento, Joseph Ki-Zerbo,
Maulana Karenga entre outros.
1.1. Pan-africanismo redefinido
Concordamos com a perspectiva do prof. Molefi Kete Asante de que uma das
operações mais importantes para a compreensão global do Pan-africanismo é a
descentralização dos Estados Unidos como seu lugar de origem:
Nós não podemos discutir o Pan-africanismo, sem a referência afro-americana em
um sentido geográfico. Por Afro-america queremos dizer o domicílio das pessoas de ascendência africana nas Américas. Nossa preocupação não é apenas com os
Estados Unidos, mas inclui o Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, México,
América Central e Índias Ocidentais. Mais de40% de africanos do novo mundo
vivem no Brasil, 37% vivem em Estados Unidos [...] (ASANTE, 1988, pág. 62).
É neste sentido que abordamos a primeira fase de Pan-africanismo, ou as raízes do
Pan-africanismo enquanto movimento social entre os séculos XV e XIX. Este período refere-
se inicialmente a um contexto histórico de desafricanização, marcado por ações de luta pro-
ativa contra o sistema europeu de escravização e tráfico de africanos. Os conflitos de
resistência ao tráfico ocorreram em regiões portuárias dentro do continente, a bordo dos
“navios negreiros”, e nas terras do denominado Novo Mundo (Américas). Fora do continente
de origem, africanos formaram micro-estados dotados de complexas estruturas políticas,
denominados quilombos, palenques ou cumbes, dependendo da região.
1.2. Uma era de grandes combates
O pesquisador Joseph Inikori em sua obra “Migrações Forçadas. O impacto da
exportação do trabalhador escravo em sociedades africanas” (1982 apud M’BOKOLO et AL.,
2009) construiu condições historiográficas para estudos sobre perdas de navios motivadas por
rebeliões na costa africana.
Entre 1680 e 1807 foram registradas 1052 perdas de embarcações, dentre as quais
17,9% (188) por motivos desconhecidos, e 17,7% (187) devido a ações empreendidas por
42
africanos dentro e fora dos navios. Nas Zonas costeiras ocorreram diferentes tipos de revoltas,
as de maior destaque foram promovidas por embarcados, como em 1763 no navio inglês
Industry, próximo à Costa do Ouro (atual Gana). Populações se manifestaram contra as
embarcações, a exemplo das interceptações dos navios ingleses Nancy e Annde, atacados na
Costa da Guiné. Na maioria destes casos, as tripulações das embarcações eram exterminadas
ou conduzidas a trabalhos forçados.
A desafricanização da diáspora instalou-se como uma rede de trabalho forcado em
regiões da Costa Oeste africana, sul, leste e oeste da Europa, e em maior escala em todas as
Américas. A partir do século XVI, Brasil, Cuba, México, Porto Rico, Honduras, Guatemala,
Peru, Jamaica, Argentina, Venezuela, Colômbia, México, Estados Unidos passaram a receber
contingentes de africanos sob o regime escravista. Desde os primeiros anos de chegada (dos
que sobreviveram às guerras de captura, a falta de alimentos, epidemias e toda a
desumanidade do processo de travessia no Oceano Atlântico), muitos dos escravizados
conseguiram canalizar seu intelecto, energias físicas e criativas na formação de micro-estados
capazes de reconstituir instituições e culturas africanas fora da África.
O Brasil foi a região das Américas que mais recebeu africanos escravizados, e onde o
regime escravista durou mais tempo. Os quilombos, ou mocambos, exerceram uma
implacável tensão sobre o regime, existiram dezenas de centenas de quilombos espalhados por
regiões do país, como os de Laranjeiras e Itabaiana em Sergipe, Cachoeira, Cabula e Urubu na
Bahia, Jabaquara e Moji Guaçu em São Paulo, Mazagão no Amapá, Preto Cosme no
Maranhão, Chico Rei em Vassouras (Rio de Janeiro) e muitos outros. O pesquisador Clóvis
Moura identificou (1972, pág. 90) pelo menos sete tipos de quilombos: agrícolas,
mineradores, mercantis, pastoris, serviços, extrativistas e militares.
A palavra quilombo (kilombo) tem origem nas línguas Bantu, mais especificamente no
umbundu dos Ovimbundu, que integra uma esfera social de outros povos como Lunda,
Mbundu, Kongo e Imbangala, espalhados nas regiões que hoje são atual Angola e Zaire. O
professor Kabenguele Munanga (1996) define os quilombos em África como uma instituição
sociopolítica e militar resultante das migrações de povos nômades e guerreiros, que formaram
verdadeiros Estados durante os séculos XVI e XVII. Na perspectiva do prof. Munanga, o
amadurecimento político dos quilombos no continente africano foi o seu perfil trans-etnico e,
entre outras características relacionadas à filosofia e cosmo-visão Bantu, que influenciaram
diretamente a religião, arte, economia e cultura dos quilombos.
43
Ao mesmo tempo, Kabenguele Munanga e a historiadora Maria Beatriz Nascimento
convergem na percepção de uma continuidade institucional entre os quilombos na África e no
Brasil dos séculos XVI e XVII. No Brasil, devido à predominância de populações de regiões
Bantu, os quilombos organizados por africanos e seus descendentes mantiveram
características estruturais desse grupo, sem deixarem de ser transculturais estabeleceram
oposição ao regime escravista através da implantação de outra estrutura política e conômica,
baseadas na justiça e dignidade humanas.
Na perspectiva de Maria Beatriz Nascimento (2009, pág. 71), os quilombos geraram
uma série de princípios políticos, culturais e ideológicos fundamentais para a conscientização
histórica da população negra na sociedade brasileira colonial. Durante todo o período de
colonização os quilombos instalaram-se fora do nascente perímetro urbano, e foram alvos de
seguidas investidas do exército imperial. O Quilombo dos Palmares foi um dos mais
emblemáticos do período, situado na Serra da Barriga em Pernambuco, região norte do atual
Estado brasileiro, sua população girava em torno de 3000 habitantes, maioritariamente de
origem Congo.
A história deste quilombo começa no século XVII, estendendo-se em séculos de luta
por soberania territorial. Palmares era formado por uma confederação de quilombos, o que
permitiu ao mesmo deter uma interdependência de atividades de pecuária, cerâmica,
agricultura, engenho de açúcar e farinha entre outras. As lideranças mais populares de
Palmares foram Nganga Zumba e Zumbi, ambos com conhecimentos militares,
administrativos, dotados de grande capacidade de mobilização e mediação de conflitos.
De forma geral, as experiências antiescravistas vividas pelas populações africanas
escravizadas no Brasil, Jamaica, Colômbia e outras regiões das Américas foram maximizadas
pela revolução do Haiti, iniciada no século XIX. Um elenco magistral de lideranças participou
desta revolução, dentre os quais Jean François, George Biassou, Toussanint L’overture, Jean
Jacques Dessalines entre dezenas de outros. A revolução haitiana foi marcada por levantes
populares, e terminou com a derrubada do regime escravista em 1804, momento em que a
população europeia que administrava o regime escravocrata na ilha foi expulsa, a partir de
então foi proclamada a república independente proclamada pelos revolucionários.
A revolução do Haiti desencadeou uma série de ações de ruptura e tentativas de
guerras pela libertação de escravizados nas Américas, tornando-se uma referencia de
44
Figura 11: Antenor Firmin
Fonte : www.afrocentricite.com
resistência para a diáspora ou de temor para países imperialistas. A expansão simbólica e
cultural da revolução haitiana nas Américas chegou ao Recife, região norte do atual Brasil,
durante uma insurreição popular comandada pelo líder Emiliano Mandacaru, que inspirado na
revolução haitiana escreveu um manifesto referindo-se a Henri Cristophe, um dos lideres
haitianos. Abdias Nascimento destaca o seguinte trecho poético do manifesto escrito por
Emiliano Mandacaru no seu livro O Quilombismo (MOURA, 1972, pág. 106 apud
NASCIMENTO, 2001, pág. 66):
Qual eu imito Cristóvão
Esse imortal haitiano
Eia!Imitar seu povo
Ó meu povo soberano!
No século XIX foi criada no Brasil a expressão “haitianismo”, para designar
iniciativas e ações antiescravistas protagonizadas por africanos. Na revolução haitiana a
religião Vodu teve um papel fundamental de mobilização e conscientização social. De acordo
com o historiador John Henrique Clarke (1991), a revolução do Haiti possuía um caráter
estrutural popular, sendo capaz de constituir uma escola de pensamento intelectual sobre a
resistência ao imperialismo e a união entre povos de
ascendência africana. Um dos líderes da revolução
em 1805, Jean Jaques Dessalines, chegou a
oferecer cidadania haitiana a todos os afro-
descendentes interessados em colaborar na
reconstrução do país.
No final do século XIX, o presidente do
Haiti M. Geffrard apoiou o trabalho do advogado
haitiano Antenor Firmin, escritor exímio que
refutou sistematicamente as ideologias racistas
sobre uma pseudo inferioridade intelectual, física
e cultural de africanos, sustentadas entre outras, pela antropologia colonial europeia. Na
década de 1880, Antenor Firmin publicou a obra De L’Égalité des Races Humaines (Da
Igualdade das raças humanas), uma resposta ao francês Arthur de Gobineau, teórico da
inferioridade racial negra, apologista do racismo anti-africano e autor de Essai sur L’inégalité
des races humaines (Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas) publicado
originariamente em 1856.
45
Para Antenor Firmin, no início do século XIX as teses sobre inferioridade e
superioridade racial serviam apenas para desagregar africanos do continente e da diáspora, ou
para justificar a exploração econômica coordenada por Estados europeus. Refletindo sobre o
impacto da Revolução do Haiti na diáspora, Firmin alegou que (FIRMIM, 2003, pág. 204):
Não há nenhuma diferença fundamental entre o negro da África e do Haiti. Recuso-
me a compreender que, quando se fala da inferioridade da raça negra, a alusão tenha
mais alcance contra o primeiro do que contra o segundo […] do mesmo passo, essa
independência (haitiana) mudou o regime econômico e moral de todas as potencias
europeias detentoras de colônias, e a sua realização pesou também sobre a economia
interior de todas as nações americanas que mantêm o sistema da escravatura.
Em Da Igualdade das raças humanas, Antenor Firmin defendeu a tese de uma única
raça e espécie humana, descartando qualquer tipo de hierarquia e desigualdade inerente às
características fenotípicas africanas. Firmin defendeu que a hierárquica entre raças era apenas
uma ficção pseudo-científica, inserida em uma concepção universalista da história da
humanidade onde os africanos não teriam possuído experiências civilizacionais e culturais
relevantes para a história da humanidade. Neste sentido, Firmin elaborou teses sobre o
percurso histórico e civilizacional africano afirmando que (FIRMIN, 2003, pág. 182):
O Egito era um país de negros africanos, a raça negra foi a primogênita de todas as
raças no percurso da civilização; é ela que se deve o primeiro brilho do pensamento,
o primeiro despertar da inteligência na espécie humana. […] Terá a raça negra ainda
um dia a oportunidade de exercer um papel de superioridade na história do mundo,
retomando o facho que empunhou nas margens do Nilo e com que a humanidade foi
iluminada nos primeiros vagidos da civilização? Creio ter provado que nada lhe falta
para atingir esse fim .
De Légalité des races humaines de Antenor Firmin foi publicado em meio a
organização da Conferencia de Berlin, cujo objetivo foi dividir oficialmente as fronteiras de
exploração do continente africano pelas potencias europeias imperialistas. O Sr. Firmim
pensou o Haiti e civilizações como a do antigo Egito enquanto exemplos de desconstrução
dos mitos raciais, mas não só, ele também interpretou o sentido histórico do conteúdo destas
experiências para a organização e resistência africana dentro do contexto colonial do século
XIX.
46
1.3. Organizações, Integração e Resistência
No continente africano do século XIX ocorreram importantes experiências de
expansão e integração regional através da cultura, política, militarização e economia. Entre as
experiências de expansão e integração, Joseph Ki Zerbo (1972, pág. 59) sublinha algumas das
mais importantes. As coordenadas por Chaka Zulu na África do Sul, por Samori Touré no
antigo Mali, o elevado expansionismo islâmico de Usman Dan Fodio no Niger, Chad e Sudão
Central, a política baseada na preservação coletiva difundida por El Hadj Omar Tall do
Sudão, e a defesa da soberania de Menelike II da Etiópia.
Joseph Ki Zerbo (1972) compreende que tais experiências de integração africana
foram uma convergência de interesses entre a construção de vastos reinos políticos, capazes
de transcender os particularismos. Estas movimentações eram formas de definir um
posicionamento frente ao perigo eminente do avanço europeu sobre as fronteiras do
continente. Um dos maiores obstáculos para concretização das experiências de integração foi
a carência de meios técnicos militares, e inexistência de unidades políticas consistentes.
Complementar a análise de Joseph Ki-Zerbo, para o historiador Walter Rodney (1975) o
impacto do comércio de escravizados sobre a juventude (massa criativa) e o bloqueio europeu
de informações tecnológicas dificultaram a integração duradoura entre zonas comerciais da
costa oeste africana, além de outras conseqüências drásticas para toda a África.
A partir da década de 1840 as tentativas africanas de integração regional receberam o
impacto implacável das missões cristãs religiosas. A penetração de missões religiosas no
interior do continente possibilitou a comunicação via telégrafo, este fato viabilizou o envio de
dados estratégicos para a instalação militar e administrativa colonial. O historiador G.N.
Ozoigwe (2010) observa que durante a década de 1870 ocorreram conferências promovidas
por Bélgica e Portugal, e posteriormente por França e Reino Unido, para a criação do Estado
Livre do Congo pelos Belgas, e anexados territórios moçambicanos à Portugal.
Até a década de 1880 cerca de 80% do continente africano estava sob controle
africano. Com o propósito de organizar áreas de exploração do território africano, Itália,
França, Alemanha, Portugal, Holanda, Inglaterra, Bélgica e Espanha organizaram a
Conferência de Berlin, ocorrida de 1884 a 1885.No final desta Conferencia foi elaborado um
documento oficial de partilha colonial do continente africano denominado Tratado de Berlin .
47
O continente africano passou por quatro séculos de ataques militares europeus, que
geraram um processo permanente de enfraquecimento de fronteiras, possibilitando a perda de
soberania territorial para Estados e Nações estabelecidos. Neste sentido, as ações imperialistas
da França foram decisivas para a derrubada de Estados liderados por chefes como Lat Dior no
Senegal em 1883, do Soninke durante a campanha de Taiba Kouta em 1887, Machemba no
Tanganica, Hendrik Witboi na Namíbia, e a total desintegração do reinado da Rainha
Ranavalona de Madagascar em 1897.
Destacamos a posição de lucidez do chefe Wogobo Naba, do Ouagadugu (atual
Burkina Faso), em 1895, durante diálogo com um europeu sobre o imperialismo francês, uma
ocasião que ilustra a situação da época (BOAHEM, 2010, pág. 4):
Sei que os brancos querem me matar para tomar o meu país, e, ainda assim, você
insiste em que eles me ajudarão a organizá-lo. Por mim, acho que meu país está
muito bem como está. Não preciso deles. Sei o que me falta e o que desejo: tenho
meus próprios mercadores; considere-se feliz por não mandar cortar lhe a cabeça.
Parta agora mesmo e. Principalmente, não volte nunca mais.
No ano de 1890, Bruxelas foi palco de uma convenção internacional, onde países
europeus se comprometeram a não vender armamentos e conhecimentos de engenharia bélica
à Estados s africanos, como no caso da metralhadora Gatling e Maxim de Lugard. Mesmo
assim, alguns territórios africanos como o Daomé conseguiram conduzir as lutas de
resistência durante mais tempo, graças à confecção de armas artesanais. Além da dificuldade
de armamentos, um dos maiores desafios da resistência militar africana foi ultrapassar as
fronteiras arbitrárias criadas pelo colonialismo, fator que dificultava a mobilização
anticolonial.
A Etiópia, sob o governo de Menelike II e com poucas pretensões expansionistas, se
estabeleceu como território integrado e soberano durante toda segunda metade do século XIX.
O Estado etíope conseguiu defender sua soberania e manter o colonialismo fora de suas
fronteiras através de uma concatenação entre solidariedade, resistência cultural e consciência
social. Ao contrário do que vinham acontecendo panoramicamente no continente africano, os
etíopes estabeleceram uma série de parcerias diplomáticas e cooperações internacionais com
Itália e França no final do século XIX, relações perigosas que se desvelariam como grandes
armadilhas políticas.
A prosperidade e esperança social materializaram-se na sociedade etíope através da
fundação da cidade de Adis Abeba (Capital), da construção de pontes, implantações de
48
Figura 12: Menelik II
Fonte : http://ethiograph.com
Fonte : www.afrocentricite.com
sistemas fiscais, aberturas de estradas de ferro e instalações de linhas telegráficas, a “parceria
com países europeus foi utilizada para estes empreendimentos”. Entretanto, paulatinamente a
política de cooperação internacional revelou-se como uma estratégia de dominação. Italianos
começaram a ocupar o mar vermelho, e em 1870 ocorreram confrontos militares entre
italianos e etíopes na região de Dogali, onde os etíopes saíram vitoriosos.
A oposição de Menelike II contra o avanço da dominação europeia não se restringia à
soberania da Etiópia, mas sim a totalidade do continente africano. Menelik II que afirmava
não ter: […] a intenção de assistir de braços cruzados à chegada das potencias europeias de
além-mar com a intenção de dividir entre si a África (ZERBO, 1972, pág. 62)
Inevitavelmente, o avanço colonial
fragilizou as relações diplomáticas e políticas
entre Etiópia e países europeus, os apoios
prestados a obras de infra-estrutura eram ações
para o enfraquecimento e ocupação do território
etíope. No inicio da década de 1890 Menelik II
descobriu que a Itália falsificou acordos sobre as
fronteiras, desde então o soberano etíope não
poupou esforços para enfrentar o exército italiano
que avançava sobre as fronteiras, entre 1894 e
1896 ocorreram confrontos militares em território
etíope. Ingleses e franceses apoiaram
incondicionalmente este plano de invasão italiano
à Etiópia.
A tentativa italiana de colonização do território etíope foi frustrada na região de
Adowa. Sob comando militar e logístico de Menelik II e da Imperatriz Taitu o exército etíope
conseguiu mobilizar e centralizar etíopes e outros povos circunvizinhos em guerras de
guerrilha. As táticas de guerrilha e conhecimento do terreno determinaram o fracasso italiano
em Adowa, que se tornou rapidamente um exemplo de resistência para diversas outras regiões
do continente africano e da diáspora. O governo haitiano, por exemplo, enviou uma missão
diplomática para Adis Abeba no inicio do século XX, a fim de prestar solidariedade e
compreender os esquemas estratégicos da vitória etíope.
49
No final do século XIX a comunicação entre africanos e negros na diáspora ficou mais
dinâmica, isto foi viável pela ampla divulgação da imprensa e avanço tecnológico de
embarcações a vapor, mas principalmente pelo aumento do nível de consciência e identidade
africana dos dois lados do Oceano Atlântico. Na ilha de Cuba Emmanuel Wilians George
criou em 1892 a União africana e seus Descendentes, uma linha marítima cujo objetivo foi
promover o retorno de africanos e afrodescendentes ao continente de origem africana.
Por motivações de ordem racista e paternalista, governos e instituições filantrópicas
norte-americanas incentivaram o retorno de afro-descendentes para o continente africano,
principalmente aqueles que demonstravam mais insatisfação com as condições sociais em que
viviam. Países como Estados Unidos e Brasil programaram políticas de estimulo a esse
retorno, neste contexto, no Benin foi fundado um bairro denominado “brasileiro”, e em uma
proporção maior, os Estados Unidos financiaram a criação da Libéria, um país projetado
dentro da África Ocidental.
Para a criação da Libéria foi necessárias à compra de terras ao leste da Costa do
Marfim, sua população era formada por povos da região e grupos migrantes do Congo. A
instituição filantrópica denominada Sociedade Americana de Colonização foi a responsável
pelo envio de negros libertos dos Estados Unidos, Antilhas e Jamaica. A Libéria foi vista por
muitos afrodescendentes como uma oportunidade de recomeço fora da difícil realidade social
estado-unidense. No ano de 1822 fundava-se Monróvia, a capital da Libéria, e em 1847 a
Libéria foi declarada república, entretanto, suas potencialidades agrícolas e comerciais
permaneceram condicionadas a administração inglesa, holandesa e alemã.
O antilhano Edward Wilmot Blyden foi estudante do Rutger’s Theological College
nos Estados Unidos e chegou à Libéria através da organização filantrópica New York
Colonization Society, organização filantrópica fundada em 1917. E. W. Blyden foi
responsável pela educação do Libéria College e mais tarde trabalhou em Free Town, capital
de Serra Leoa – outra região do país fundado por negros migrados para o continente africano.
50
Figura 13 : Edward Blyden
Fonte: http://www.columbia.edu
E.W. Blyden teve a possibilidade de percorrer países do continente africano, Europa e
Oriente Médio, e mesmo com formação cristã não se deteve a apartação religiosa e travou
inúmeros diálogos com o islã, publicou artigos e teses ligadas a educação, história e religião.
No seu artigo The negro ancient history escrito em 1868, Edward E. Blyden expôs suas teses
sobre o lugar dos africanos da antiguidade no Vale do
Nilo e suas contribuições à arte e ciência mundial,
sublinhando a existência de migrações e trocas entre
as populações do vale do Nilo e da costa oeste
africana.
Sem desconsiderar o aprendizado possível
com as experiências políticas, científicas e culturais
provenientes das sociedades europeias, E.W. Blyden
afirmava o imperativo que os africanos na diáspora
dessem atenção e dedicação aos estudos sobre
instituições, culturas, música e línguas africanas,
para não se tornarem meros imitadores de
experiências alheias, nulos em capacidade crítica e intelectualmente bloqueados. Edward W.
Blyden empenhou-se em desconstruir as teses de inferioridade racial que a partir da década de
1870 infestaram o pensamento e a cultura política ocidental, estas teses atingiram diretamente
a população africana. Enquanto reitor da Universidade da Libéria, E.W. Blyden esboçou
algumas de suas preocupações com a educação como destaca o sociólogo:
Em todos os países de fala inglesa, a mente da criança negra inteligente se revolta
contra as descrições do negro encontradas nos textos primários das escolas -
geografias, viagens e histórias. […] Tendo abraçado, ou ao menos assentido, essas
falsidades sobre a si mesma, ela conclui que sua única esperança de se elevar na
escola da humanidade respeitável é esforçar-se na direção de tudo aquilo que é
distinto de si e mais estranho às suas preferências peculiares. (ANDRADE,
1998,pág. 69 apud BLYDEN, 1892,pág. 30).
As preocupações de E. W. Blyden com a qualidade e conteúdo educacional eram de
nível global, uma de suas críticas principais foi sobre a alienação global africana
(ANDRADE, 1998, pág. 145 apud BLYDEN pág.42) : [...] africano fica alienado de si
mesmo e de seus compatriotas. Não é um africano nem por seus sentimentos nem por seus
objetivos. Não respira África através das lições que lhe são dadas. Estas não transcendem o
cheiro da terra africana: tudo é Europa e europeu.
51
Na década de 1880, E. W. Blyden passou a criticar abertamente a instalação colonial
no continente africano, segundo ele a aparente boa vontade e filantropia das organizações
ocidentais com o continente africano foi durante séculos um canal para o tráfico iniciado no
século XVI, e para o colonialismo do século XIX. Na perspectiva de E.W. Blyden, os
africanos não deveriam iludir-se com ajudas e apoios estrangeiros, mas sim construírem sua
própria libertação, e nesse sentido, as experiências obtidas na diáspora com o Haiti seriam de
grande valia dentro do continente.
Em 1893 Blyden cunhou a expressão Personalidade africana como símbolo
fundamental do direito a autonomia e auto-determinação de todos os povos do continente,
uma expressão que serviria de base para movimentos e lideranças africanas e da diáspora
durante toda a metade do século XX. Neste sentido, Antenor Firmin e Edward Wilmot Blyden
anteciparam o que as gerações futuras de lideranças nacionalistas e historiadores perceberiam
durante a primeira metade do século XX, a história africana é a base onde se assentam a luta
de libertação e a autodeterminação do continente africano .
1.4. No Limiar Colonial
No final do século XIX as movimentações políticas em prol da abolição da escravatura
no Brasil coincidiram com o processo de colonização efetiva do continente africano. O
encerramento do regime escravista europeu no Brasil deu-se por muitas pressões internas de
quilombos e organizações abolicionistas, uma das personalidades mais representativas dos
movimentos de libertação foi Luiz Gama, advogado, jornalista e político abolicionista negro,
que conseguiu vitória nos tribunais em centenas de casos de libertação de escravizados
africanos. Como jurista Luís Gama argumentou sobre a legitimidade de o escravizado
defender a sua própria vida através do assassinato do seu algoz.
Luís Gama desenvolveu forte trabalho literário de denúncia à escravidão, retratou o
racismo e as desigualdades estabelecidas pelas elites da sociedade brasileira em jornais da
época. Concordamos com a opinião do historiador Luiz Santos (2010) de que as ações de Luiz
Gama foram meticulosamente pensadas como uma futura contribuição às próximas gerações
de negros no Brasil. Naquele período, os jornais, imprensa, começaram a formar uma frente
52
importante de comunicação, articulação política e organização negra para luta contra a
escravidão.
Neste mesmo período no continente africano, a literatura, os panfletos e os jornais
anti-coloniais em línguas europeias (inglês, Frances e português) e africanas (suahili e wollof)
começaram a tomar forma na última década do século XIX. A instalação da primeira gráfica
de Luanda em 1891 foi importante neste sentido, pois, através da impressão de panfletos
diversos criticas a exploração e indignidades coloniais puderam ser publicadas e
difundidas.Mesmo assim a comunicação continuou sendo um desafio comum dentro do
mundo africano.
1.5. Ambientes
A desagregação e a falta de comunicação entre pessoas foram dois dos principais
fatores que garantiram o processo contínuo de desafricanização da África e da diáspora.
Temos interesse pela análise do Prof.Walter Rodney (1975) sobre a consolidação da
exploração, opressão e do racismo cotidianos, enquanto expressões dos regimes escravista e
colonial. Neste sentido, a consciência, a resistência e a solidariedade foram os valores
estruturais das iniciativas de libertação colonial e integração política, muitos das quais
projetados em encontros internacionais agendados por movimentos sociais e partidos
políticos.
Entre 1900 e 1930, os congressos internacionais pan-africanos organizados por WEB
Du Bois e as ações políticas coordenadas por Marcus Mosiah Garvey conseguiram reunir
africanos das Américas, Europa e África em uma esfera de interesses em comum. Tratamos
do contexto social e das atividades promovidas pelos dois, considerados nesta dissertação
como duas colunas estruturais para o estabelecimento político, social e cultural do Pan-
africanismo no século XX.
O clima cultural, político e econômico dos Estados Unidos vividos por WEB Du Bois
e Marcus Garvey no início do século XX era de ácida tensão racial. O país havia acabado de
sair da Guerra de Secessão ocorrida entre as décadas de 1850 e 1860. O conflito armado
envolveu as regiões norte e sul do país, e originou-se de tensões entre o Sul, rural e favorável
à manutenção do regime escravocrata, e da região Norte, industrializado e favorável ao fim do
53
regime de trabalho escravo. A vitória da região Norte em 1963 determinou a abolição do
sistema de trabalho escravo, entretanto a opressão, discriminação e perseguição racial
continuaram tanto nas regiões norte quanto sul.
Martin R. Delany foi um dos lideres abolicionistas mais emblemáticos durante a
guerra de Secessão. Nascido na Virgínia ocidental, médico e jornalista autodidata. Martin
Delany impediu a proliferação de cólera em 1850 e dirigiu com o abolicionista Frederik
Douglas o jornal Estrela do Norte. Debatedor das condições universais do negro, Delany foi
ativo defensor do direito ao retorno dos negros da diáspora para o continente africano, tema
pelo qual se dedicou a escrever e divulgar. Martin Delany teorizou de forma eloquente críticas
à arbitrariedade dos nomes e línguas de origem europeia impostos aos negros, e o lugar de
inferioridade ocupado pela África na narrativa histórica universal.
Após a guerra de Secessão foi criado um programa de organização social denominado
Reconstrução, entre seus objetivos estava a inserção da população afrodescendente nova
sociedade e a garantia de direitos básicos. Todavia, as iniciativas baseadas na solidariedade,
na consciência e na resistência coordenadas por lideranças populares que provocaram os
maiores impactos à vida da comunidade negra Estado Unidos. Hakin Adi (2008)lembra-nos
que o Instituto Educacional Tuksguee, criado no final do século XIX por Booker T.
Washignton foi mais eficaz que muitos projetos do governo.
Nascido em 1856 no sul dos Estados Unidos, Booker T. Washington criou um
programa de formação em ofícios manuais para a população negra no sul dos Estados Unidos.
Entretanto. O Sr. Washington desqualificava formações de ordem política, econômica e
filosófica, compreendo-as como fora das prioridades da população. Mesmo assim, Booker T.
Washington colaborou imensamente com a autoconfiança, auto-educação e formação prática,
essas iniciativas atraíram a atenção de jovens de dentro e de fora do país,como a do jamaicano
Marcus Garvey.
Dentro da análise do prof. Molefi Kete Asante (1988, pág. 57), os elementos que mais
o Sr. Washington prezava eram a educação, a economia e o avanço político. Entre seus
documentos escritos há uma autobiografia traduzida no Brasil por Graciliano Ramos durante a
década de 1940 (sob o título Memória de um negro). Nesta obra, Booker T. Washington narra
de uma forma muito superficial seu encontro com o educador WEB Du Bois em uma
conferencia nos EUA.
54
O posicionamento de B.T.Washington sobre a formação prática obteve críticas do
National Association for the Advanced of Colored People (NAACP) – Associação Nacional
para o Progresso das Pessoas de Cor. Organização governamental (com colaboração de
entidades civis) criada após a Guerra de Seceção com o objetivo de criar políticas à melhoria
das condições de vida da população negra. O historiador, pedagogo, sociólogo e economista
WEB Du Bois dirigiu o NAACP durante mais de uma década. A partir do próximo tópico
iniciamos a segunda porta deste capítulo com uma breve apresentação do perfil de WEB du
Bois e de Marcus Garvey.Ambos marcam um novo momento, ou fase, do auto-
desenvolvimento do Pan-africanismo enquanto ideologia política e movimento social.
1.6. A lâmina afiada de WEB Du Bois
Willian Edward Burghardt Du Bois nasceu em 1868 em Great Barrington Estados
Unidos- Massachucets, foi considerado durante congresso de escritores negros do Senegal da
década de 1960 um dos homens mais influentes do século XX. Primeiro afro-americano a
receber título de doutor em filosofia pela faculdade Harvard,Web Du Bois publicou em 1896
o livro The Supression os the Áfrican Slave Trade e em seguida The Souls of the Black Folk.
Desde a juventude Web Du Bois enfrentou problemas de ordem racial infligidos a
população negra, seu ativismo político consolidou-se na liderança do Niagara
Moviment,movimento social pela reinvidicação de direitos civis afro-americanos.
Posteriormente, o trabalho de Du Bois obteve impacto internacional através de seu jornal The
Crisis, que denunciava o racismo nas Américas e o colonialismo na África. Sua participação
na organização dos Congressos Pan-africanos entre 1919 e 1945 foi muito importante, pois
estes eventos influenciaram uma dimensão doutrinária e política do Pan-africanismo.
Uma das principais características do trabalho de WEB Du Bois eram suas análises
críticas e em específico, a avaliacão avaliação sobre os primeiros anos do pós-guerra era que:
Desde então anos já se passaram – dez, vinte, quarenta; quarenta anos de vida
nacional, quarenta anos de renovação e desenvolvimento e, contudo [...] A nação
ainda não se libertou dos seus pecados; o liberto ainda não encontrou na liberdade a
sua terra prometida. O que quer de bom que tenha vindo nesses anos de mudança, a
sombra de um profundo desapontamento paira sobre o povo negro- um
desapontamento ainda amargo porque o ideal inalcançado era irrealizável, exceto
para a ignorância simples de um povo humilde (BOIS, 199, pág. 56).
55
Em 1897 durante um congresso internacional em Londres sobre colonialismo, Du Bois
defendeu que a condição para África e africanos alcançarem um lugar na história era um
movimento pan-negro, em outras palavras, uma força popular capaz de reunir as
reivindicações de africanos sob a dominação colonial e dos negros sob jugo racial. Web Du
Bois criou o jornal The Crisis, com o objetivo de difundir ideias, dialogar sobre os direitos
sociais nas Américas e denunciar o colonialismo na África, o The Crisis também serviu de
ferramenta para a articulação da organização, entre 1919 e 1945, dos congressos pan-
africanos.
Du Bois formou-se na Universidade de Berlin e em Harvard, como a maioria dos
intelectuais de sua época incorporou muitos elementos do darwinismo, freudianismo,
marxismo tradicionais, as Escolas em voga do pensamento europeu. Por conseguinte,tais
elementos limitaram seus trabalhos a parâmetros estranhos à realidade diaspórica e africana.
Mas, Molefi K. Asante (1988, pág. 145) observa que Web Du Bois capturou importantes
elementos do pensamento de Buker T Washingtone procurou desenvolver uma utilização do
marxismo para interpretar a história e o próprio racismo.
A partir de 1910 o Pan-africanismo comeca a conquistar a força das ruas e o espírito
das massas através de grandes movimentos sociais, pois foi capaz de mobilizar milhares de
pessoas em manifestações e marchas. Neste contexto, o mais proeminente entre os
movimentos sociais foi a UNIA (Universal Negro Improvement Association). A UNIA
foicriada por Marcus Garvey e por sua esposa Amy Ashwood Garvey em 1914, a organização
chegou a ter seis milhões de membros espalhados pelas Américas, África e Europa.
1.7. O Martelo pesado de Marcus Garvey
Marcus Garvey nasceu na Jamaica em 1887, lugar onde iniciou sua trajetória política
de liderança. Orador dedicado à conscientização política das massas, Marcus Garvey
trabalhou na divulgação de ideias sobre a soberania política das nações africanas, o retorno
das populacões negras da diáspora à África, o valor do autoconhecimento,da pesquisa
científica e da sustentabilidade econômica das organizações. Marcus Garvey fundamentava a
mensagem Bíblica sob uma perspectiva africana.
56
Os contatos com ativista político egípcio Dusé Mohamed, criador do jornal Áfrican
Times & Orient Review em 1912, iniciaram-no na prática do jornalismo e da organização
institucional. Em 1914 a UNIA iniciou suas atividades, cujo programa definia para seus
associados à promoção do desenvolvimento cultural comunitário, criação de fundo social para
escolas de formação humanista e industrial, subsídios para familiares de associados falecidos
ou acidentados, palestras e debates sobre atualidades e temas de interesse comunitário.
Através da UNIA, Marcus Garvey estabeleceu uma extensa rede de contatos nas Américas,
África e Europa. Concordamos com Molefi Kete Asante sobre o perfil multidimensional da
UNIA que pode ser visto nos seu programa desete dos pontos (ASANTE, 1988, pág.10):
1. despertar e unir todos os africanos
2. Mudar o pensamento para despertar o potencial
3. Canalizar energias emocionais em direção a interesses raciais construtivos
4. Sacrificar-se em trabalhos de massa
5. Promover a educação em ciência e indústria entre as massas 6. Preparara nações para exercerem o nacionalismo
7. Manter as jovens nações juntas, depois que elas estiverem formadas
Em nossa opinião, Marcus Garvey entendia, de forma similar a Edward Wilmot
Blyden, que a herança cultural africanadeveria ser plenamente assumida pelos princípios
africanos no continente e na diáspora. Estimulado pelos trabalhos do instituto criado por
Booker T. Washington, em 1916 Marcus Garvey transferiu a UNIA da Jamaica para os
Estados Unidos.
A UNIA produziu um o jornal The Negro World (O Mundo Negro), alcançando
organizações como a Frente Negra Brasileira, do Brasil, e a Liga africana de Angola. Nos
Estados Unidos Marcus Garvey organizou uma marinha mercante denominada Black Star
Line (Linha da Estrela Negra) com o objetivo de criar um trânsito livre de pessoas e negócios
entre diáspora africana e África.
No ano de 1917 a UNIA possuía instalações na África do Sul, pontos de apoio em
Angola e Moçambique, na década de 1920 havia articulações para instalação da organização
em Guiné Bissau e Senegal, como destacam Basil Davison (2010) e Oloruntimehin (2010).
Entre 1919 e 1921 em Angola foram criadas duas instituições de cunho pan-africano
importantes, o Partido Nacional africano e a Liga africana, ambas mantinham diálogo com o
Congresso Nacional africano (ANC) e a Associação Universal para o Progresso do Negro
(UNIA), a repressão política portuguesa combateu-os severamente conseguindo desintegrar as
organizações posteriormente.
57
Os militantes da UNIA distribuiram-se por vários países ao longo de sua história,
como México, Honduras, Austrália, África do Sul, Serra Leoa, França, Portugal, São Tomé e
Príncipe, Guiné Bissau, Senegal, Venezuela Panamáe Inglaterra. Quanto à penetração africana
do projeto de Marcus Garvey, o professor Bob Blaisdell, organizador de Select Writings and
speeches of Marcus Garvey (Seleção de escritos e discursos de Marcus Garvey), comenta que
(GARVEY, XI, 2004): Desde a década de 1920, Garvey tem influenciado aspirações do
queniano Jomo Keniatta para a independência do seu país, bem como Kwame Nkrumah, do
Gana, que disse ter ficado entusiasmado pela filosofia e opiniões de Marcus Garvey.
Em 1920 ocorreu a Primeira Convenção dos Povos africanos do Mundo realizada em
Nova York, este evento reuniu 25 mil delegados responsáveis pela confecção da Declaração
de Direitos de africanos e Afrodescendentes. O objetivo desta Primeira Convenção foi à união
e solidariedade em defesa do legado histórico africano e da autodeterminação do continente e
seus povos. Durante a Segunda Convenção dos Povos africanos do Mundo realizada em Nova
York em 1921, Marcus Garvey alegou que:
Neste momento, eu vejo o anjo de Deus, empunhando o standart, o vermelho, o
preto e o verde, e dizendo: ”homens da raça negra, homens da Etiópia, sigam-me”.
Esta noite estamos seguindo. Estamos seguindo com a força de 400.000.000.
Estamos seguindo determinados que devemos ser livres antes da destruição da
matéria. Antes da destruição dos mundos "(Garvey, 2004, pág. 47)
Na perspectiva do pesquisador A. Adu Boahen (2010), as organizações políticas
africanas de cunho internacional criadas na década de 1920 abriram um caminho para a
penetraçãodo Pan-africanismo de Marcus Garvey e de Web Du Bois em territórios africanos.
A Liga Universal para a Defesa da Raça Negra, do Daomé (atual Benin), o Comitê de Defesa
da Raça Negra, Senegal, se identificaram diretamente com as ideias de Marcus Garvey, no
Daomé a UNIA teve como aliada de base à organização local denominada União
Intercontinental. A UNIA avançou no campo empresarial de produtos que variavam de livros,
roupas, brinquedos e de uma marinha mercante denominada Black Star Line.
Os objetivos gerais da Black Star Line eram divulgar valores de solidariedade entre
povos africanos e da diáspora, expandir circuitos de negócios, e alivre circulação de pessoas,
culturas e mercadorias. Em um dos seus discursosproferidos em 1923 no Libert Hall (Nova
York) Garvey afirmou que (GARVEY): Nosso ponto de vista é que não podemos enganar a
nós mesmos, no sentido de promover a Black Star Line, uma linha de navios a vapor
operados por negros para a promoção política [...].
58
Em 1925 ojornal Negro World Garvey publicou o Manifesto Religioso de Orgulho da
Raça Negra, em que defendeu a solidariedade, o autoconhecimento e o conhecimento
histórico como a única forma possível de ruptura teórica e ideológica com os discursos
racistas sobre a história da África. Durante toda a década de 1920 Garvey dedicou-se a
lecionar filosofia africana paragrupos de associados da UNIA.
A tradição da imprensa afro-brasileira iniciada em 1888 com o “Jornal 13 de Maio” no
Rio de Janeiro,e em São Paulo com os jornais“A Pátria” e “Menelike” em circulação entre
1889 e 1915, constituíram um laço de comunicação importante de organizações afro-
brasileiras com as lutas mundiais contra o racismo. Uma das instituições mais dedicadas à
autossuficiência e organização nacional foi a Frente Negra Brasileira, criadano ano de1931
em São Paulo, ecom sedes em diversos outros Estados do país.
Durante seus anos de atividade a Frente Negra Brasileira (FNB) manteve escolas,
escritórios, clubes, barbearias, gráficas, livrarias e jornais como o Clarin da Alvorada. Através
de o jornal Chicago Defender ocorreram trocas de informação entre a Frente Negra Brasileira
e a UNIA. Nas palavras do jornalista e militante do Movimento Negro José Correia Leite
(apud Araújo Pereira, 2009, pág. 113): As ideias de Marcus Garvey vieram reforçar as nossas
com elas nós criamos mais convicção de que estávamos certos. Fomos descobrindo a
maneira sutil do preconceito brasileiro, a maneira de como agente era discriminado.
A Frente Negra foi fechada em 1934 com o golpe militar que levou o presidente
Getúlio Vargas ao poder máximo do país. O governo Vargas foi ditatorial e de perfil fascista,
o presidente não escondia sua admiração por Adolf Hitler. Em 1937 Getúlio Vargas outorgou
a constituição da República e tornou partidos políticos, associações e movimentos
clandestinos e sujeitos a intervenção policial e jurídica. Desde então, a Frente Negra
Brasileira encerrou suas suas atividades e não conseguiu se reestabelecer.
1.8. Etiópia e Marcus Garvey
A partir de 1925, Marcus Garvey começou a enfatizar no jornal Negro World e em
discursos públicos que a Etiópia era o lugar sagrado para os africanos de todo o mundo, e os
etíopes os escolhidos de Deus. Marcus Garvey passou a utilizar termos como “babilônia”,
59
para indicar a decadência humana e os valores ocidentais, e “Rastafari” (em Aramaico) para
se referir ao Rei dos Reis, o imperador africano que se ergueria na Etiópia.
Após a morte de Menelik II em 1913 e da finalização do governo permissivo de Lij
Yasu (na época filho do influente governador da província de Wallo),a filha de Menelike II,
Imperatriz Zauditu, assumiu o trono junto ao príncipe herdeiro regente Tafari Makonen em
1917. Durante a década de 1920 a Etiópia viveuum período de prosperidade. A Imperatriz
Zauditu assumiu o ministério da educação e incentivou amodernização das escolas e
instituições de pesquisa criadas por Menelike II, tais serviços foram oferecidos amplamente às
populações de províncias de Makalle, Harar, Lakamli, e Gondar, distantes da capital Adis
Abeba. O professor e historiador Lance Seunarine (1999) apresenta-nos outras mudanças
importantes para a Etiópia neste período, a nacionalização do antigo banco da Abssynia em
Banco da Etiópia, a extinção dos antigos sistemas de servidão clânicas e familiar,a promoção
da imprensa e da literatura em amárico, língua nacional.
Em 1930 Tafari Makonen foi coroado imperador da Etiópia! Tafari Makonen assumiu
o legado de Menelike I (filho de Salomão e da Raiha de Sabá) e de Menelik II sob o título
dinástico de Haile Selassie (Santíssima Trindade), Rei dos Reis, o Leão conquistador da
Tribo de Judah. Lembra-nos o prof. Lance Seunarine (1999, pág. 48) que durante a coroação
em Adis Abeba, Tafari Makonen quebrou o protocolo real e fez ser coroada sua esposa
Menem como imperatriz em uma mesma cerimônia. A coroação de Haile Selassie em 1930
influenciou diretamente as igrejas cristãs africanas dentro do continente, onde já havia sedes
da UNIA e movimentos sociais de inspiração religiosa e espiritual etíope.
Para os associados da UNIA, a máxima de Marcus Garvey sobre ascensão de um
imperador etíope que seria denominado Rastafari revelou que a coroação de Tafari Makonen
não foi um acontecimento de ordem política somente, mas o cumprimento de uma profecia
divina e espiritual. No Caribe, a confirmação das palavras de Marcus Garvey impactaram
muitos os associados da UNIA, e movimentos sociais rurais organizados por marrons
(quilombolas), remanescentes da resistencia negra contra a escreavidão na Jamaica. Este
amálgama desencadeou ummovimento comunitário de homens emulheresdenominado
Rastafari.
Os Rastafaris dedicam-se e seguem as orientações de Marcus Garvey,
compreendemHaile Selassie como a personificação da potência divina em carne e espirito.
60
Figura 14: Marcus Garvey e WEB Du
Bois
Fonte: http://garveybois.afrikblog.com e
http://unia.afrikblog.com
Leonard pág. Howell, associado da UNIA, elaborou uma base doutrinária paraRastafari e um
assentamento comunitário denominado Pinacle. Algumas das principais ideias de Howell
foram transcritas em um livro denominado The Promisse Key, documento que junto a livros
considerados apócrifos, como Kebra Negast (Glória dos Reis) e Fetha Negast (A Justiça dos
Reis), formam a base de uma extensa literatura espiritual e política da cultura Rastafari.
1.9. Das convergências
O prof. Maulana Ron Karenga propõe um interessante quadro geral e analítico da
situação da população afro-americana nos Estados Unidos. Em sua opinião, durante as
primeiras décadas do século XX estava dividida em frentes de ação: os comodistas que
pensavam as condições da população afro-americana sob o ângulo da subalternidade, como
Booker T. Washington, os teóricos e políticos da confrontação ao anticolonialismo, ativistas
dos direitos sociais e reformistas, representados por Web Du Bois; e os nacionalistas negros,
favoráveis à integração entre africanos e afrodiaspóricos, simbolizados por Marcus Garvey.
Sem desconsiderar as diferenças de
temperamento e estratégias utilizadas por WEB
Du Bois e Marcus Garvey, entendemos que os
dois lutaram pelaresolução de problemas
enfrentados pela população africana de uma
forma global. Com Maulana Karenga (1987)
concordamos que os aspectos mais importantes
em relação ao trabalho de WEB Du Bois e de
Marcus Garvey foram suas convergências.
Através de um grande censo de solidariedade e
justiça os dois conseguiram integrar um plano
psicossocial e uma agenda política voltada à autodeterminação de povos historicamente
oprimidos a partir de valores culturais africanos.
Aceitamos a opinião do prof. Molefi Asante (1988) de que os objetivos de Marcus
Garvey e WEB Du Bois eram os mesmos, os dois dividiam uma profunda consciência da
dimensão global da presença africana. Entendiam que a comunicação entre África e diáspora
61
Figura 15: Jornal Negro World
Fonte: http://unia.afrikblog.com
Figura 16: Jornal The Crisis
Fonte: http://crisis.afrikblog.com
poderia ser viabilizada por jornais, pela diplomacia, por organizações internacionais e
relações econômicas construídas pelo trafego transatlântico de pessoas e produtos. Marcus
Garvey e WEB Du Bois projetavam e incentivavam a criação de escolas e cursos de formação
dentro das comunidades por saberem que a confluência de conhecimentos práticos e teóricos
era decisiva paraa descolonização africana e emancipação negra na diáspora.
Os jornais Negro World e The Crisis de Marcus Garvey e WEB Du Bois conquistaram
um circuito de comunicação dentro do continente. Foi através desta imprensa que
organizações africanas como o Congresso Nacional africano (ANC) tiveram os primeiros
contatos com as mensagens libertárias de Marcus Garvey e WEB Du Bois. O Congresso
Nacional africano foi fundado na África do Sul em 1912, com o objetivo de unir africanos
politicamente ativos e investir em diversas formas de resistência política, prontificou-se em
garantir suas relações de força internacional participando no primeiro congressos pan-
africanos em 1919.
Nas primeiras décadas do século XX, as resistências internas do continente africano
ao colonialismo europeu proliferaram-se através de jornais, artes e movimentos sociais
anticoloniais. Mas foi o nacionalismo etíope que de forma mais sistemática utilizou-se da
resistência, da solidariedade e da consciência como armas de luta contra a dominação colonial
europeia no continente africano naquele momento. Após a triunfal vitóriaem Adowa no ano
de 1896, a soberania etíope seria novamente colocada à prova com a tentativa de invasão
italiana no final da década de 1930. Por isto, são fundamentais algumas pontuações sobre a
resistência etíope enquanto signo do nacionalismo africano .Nosso tema da terceira e última
parte deste capítulo.
62
1.10 Etiópia: Signo do nacionalismo africano
Após a vitória de Menelik II em Adowa as igrejas cristãs etíopes assumiram uma
postura progressista dentro do continente africano, com forte divulgação e penetração social.
Estes templos desencadearam um movimento denominado etiopianismo, que rapidamente
tornou-se uma potencial ameaça aos interesses coloniais. O professorLance Seunarine observa
que o etiopianismo pregava onacionalismo anticolonial, a igualdade e a solidariedade na
década de 1920 o movimento alcançou o sul e oriente do continente africano .
O recrutamento de jovens e o apoio de recursos cedidos por chefes africanos foram
suportes comuns para o financiamento do conflito armado entre países da America do Norte,
Europa e Ásia entre 1914 -1918, denominado de Primeira Guerra Mundial. Um conflitode
caráter imperialista entrepaíses europeus em busca de recursos minerais e áreas de livre
comércio. Países como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal identificaram-se com o racismo
cientificamente organizado no século XIX, e usaram-no como base ideológica para
justificativas políticas religiosas e culturais para dominar territórios asiáticos, africanos e sul-
americanos.
No final do conflito a devastação territorial dentro da Europa motivoupaíses europeus
a explorarmaisrecursos primários africanos, utilizados pelas indústrias bélica e alimentícia
europeia. Na perspectiva do historiador Adu Boahen esse foi um momento de consolidação do
caráter autoritário e racista do colonialismo no continente. Adu Boahen (2010, pág. 741)
destacaque a Etiópia, neste contexto de exploração colonial, manteve-se livre e soberana no
continente africano.
Na década de 1930 doisblocos imperiais iniciavam uma nova disputa por hegemonia
econômica, militar e geopolítico: o Eixo, formado por Alemanha, Japão e Itália, e os Aliados
constituidos pelos EUA, Inglaterra, França e Brasil. O imperialismo nazista alemão,
idealizado por Adolf Hitler, e as ações fascistas de Benito Mussoline executaram manobras
militares e invasões na África Oriental a partir do mar Vermelho. Oterritório etíope até então
soberano passou a ser duramente ameaçado pelo exercito italiano.
O fascismo italiano de Benitto Mussolini em 1935 protagonizou a invasão do território
etíope com a condescendência de França, Inglaterra e Estados Unidos. Contraditoriamente,
todos estes países integravam a Sociedade das Nações, uma organização internacional dos
63
Figura 17: Haile Selassie e Imperatriz Menen
Fonte:
http://selassiemeneni.afrikblog.com
países ocidentais criada após a I Guerra Mundial sob o pretexto central de evitar conflitos
militares entre nações! O objetivo imediato de Mussolini foi anexar a Etiópia ao projeto
Colônia da África Oriental Italiana.
A Etiópia foi ocupada em 1935 por meio da
utilização massiva de gases tóxicos, que mataram
milhares de pessoas, destruíram plantações e
poluíram rios. As vésperas da invasão o povo etíope
vivia momentos de esperança e de auto-
desenvolvimento com o governo de Haile Selassie.
Durante a invasão, Haile Selassie investiu
pessoalmente em diversos acordos e diálogos
internacionais para o fortalecimento militar de seu
exército, mesmocom o território ocupado, o país
resistiu internamente através de milícias e
guerrilhas.
Na diáspora ocorreram centenas as reações condenando a invasão etíope, fortaleza e o
último reduto de soberania africana. No ano de 1935 a International Áfrican Friends of
Abyssinia foi fundada em Londres por intelectuais e ativistas políticos de movimentos sociais
pan-africanos, como historiador das Antilhas C.L.R. James das Antilhas, a escritora jamaicana
A. Ashwood Garvey (esposa de Marcus Garvey), e o militante anti-colonial queniano Jomo
Keniatta. Movimentos e lideranças de regiões como Costa do Ouro (atual Gana) e Nigéria
também se posicionaram em solidariedade a Etiópia.
Sob o comando de Haile Selassie os etíopes derrubaram 56 batalhões em inúmeras
guerrilhas dentro do país. Em 1936 as tropas italianas foram definitivamente expulsas do
território, pondo fim à presença colonial europeia na Etiópia. Ohistoriador Ali Marzui (2010)
entende quea invasão etíope de 1935 elevou o sentido de consciência e identidade africana
dentro e fora do continente de origem A imprensa e rádio foram de grande importância para
mobilização internacional contra a invasão da Etiópia. Três anos após a vitória etíope o Eixo
de Hitler desencadeava um conflito armado entre os dois blocos que durouentre 1939 e 1945,
terminando com a vitória dos Aliados liderados por Estados Unidos, França e Inglaterra.
64
1.11. Congressos Pan-africanos
Na diáspora africana, militantes anticoloniais como Henry Silvester Wilians de
Trinidad Tobago, Dusé Mohamed Ali do Egito, Amy Ashwood Garvey da Jamaica, Ras T.
Makonnem da Guiana, George Padmore de Trinidad e Ladipo Felix Solanke da Nigéria
participaram de conferencias internacionais sobre o tema racismo e colonialismo. No ano de
1898 o advogado Silvester Wilians fundou a Associação africana para organização de
encontros e projetos de apoio a interesses de afrodescendentes. De acordo com Adi (2003,
pág. 234), o programa da Associação Pan-africana objetivava em sua plataforma:
1. Garantir os direitos civis e políticos para os africanos e seus descendentes em
todo o mundo; 2. Incentivaras relações amistosas entre caucasianos e africanos;
3. Incentivar o empreendimento educacional, industrial e comercial entre os
africanos; 4. Influenciar a legislação que dizia respeito à População Negra; 5.
Melhorar a condição de" negros oprimidos" em África, na América, o Império
Britânico e em outras partes do mundo.
Após criar a Associação Pan-africana, em julho de 1900, Silvester Wilians obteve
apoio de Buker T. Washington e Web Du Bois dos EUA, Bishop James Johnson da Nigéria,
James Holly do Haiti para organizar em Londres, onde vivia como imigrante, uma
Conferencia Pan-africana. A Conferência tratou temas como direitos iguais nos EUA e nas
colônias britânicas, a exploração de empresas no continente africano e a opressão e
escravidão na África do Sul.Foram debatidos na conferência a filosofia darwinista, os
movimentos eugênicos impregnados de racismo, e o lugar do continente africano como
origem das civilizações, nascedouro de cientistas, artistas e escritores.
Nesta Conferencia Henry Silvester Wilians trabalhou como secretário geral e WEB Du
Bois o redator, a conferência reuniu representantes dos Estados Unidos, Canadá, Jamaica,
Antigua, Trinidad Tobago, St. Lucia, Cuba, Haiti, Dominicana, Libéria, Costa do Ouro, Serra
Leoa, Costa do Marfim, Etiópia e Guiné Bissau. Durante o evento a conferência Silvester
Willians elaborou o projetodo jornal Pan Áfrican, que no ano seguinte entrou em circulação.
Este encontro é considerado como referência na articulação do Pan-africanismo enquanto
pensamento político intelectual e como base para os Congressos Pan-africanos.
Os congressos Pan-africanos possibilitaram diálogos e trocas de experiências entre
povos africanos em todo o mundo. O primeiro Congresso Pan-africano foi organizado por
WEB Du Bois em Paris no ano de 1919, compareceram 57 representantes de colônias nos
Estados Unidos e do Caribe, uma das questões mais debatidas foi à autodeterminação e
65
direitos internacionais dos povos africanos e da diáspora. O apoio político do parlamentar
senegalês Blaise Diagne foi fundamental para a realização do evento, uma vez que havia
ameaças da própria França e de outras metrópoles à produção de atividades anticoloniais
dentro do continente. O Congresso contou com 57 congressistas de Colônias francesas,
americana e inglesa, além de representações da América Central. Ao final do Congresso foi
elaborado um documento oficial pela Liga africana sobre a exploração colonial no continente
africano .
O Segundo Congresso Pan-africano foi realizado em três seções, Londres, Paris e
Bruxelas durante o ano de 1921. O encontro foi organizado por WEB Du Bois, estiveram
presentes 113 delegados oriundos de territórios africanos e da diáspora para discutir sobre o
progresso político e social das comunidades afrodescendentes na diáspora. Um dos destaques
de resultados desse congresso foi à confecção da Declaração ao Mundo em nome de justiça e
igualdade entre povos pretose brancos, o documento foi elaborado por WEB Du Bois.
O Terceiro Congresso Pan-africano dividiu-se em duas seções no ano de 1923, em
Londres e em Lisboa. Os temas variaram entre a necessidade de definição objetiva sobre
cooperação entre africanos dentro e fora do continente, e a situação dos territórios coloniais
portugueses, por isso a participação de angolanos e moçambicanos representados por Luanda
(Angola) e Lourenço Marques (atual Maputo- Moçambique) foi de suma importância.Neste
congresso foi defendida a necessidade de reformas nos sistemas de trabalho das colônias
portuguesas. A população cabo-verdiana, por exemplo, viveu nas décadas de 1930 e 1940
períodos de repressão política e administrativa que geraram a escassez de alimentos, e
consequentemente, a morte de milhares de pessoas. As reinvidicações do documento foram
ignoradas pelo governo português.
O quarto Congresso Pan-africano ocorreuem 1927 na cidade de Nova York (EUA), no
evento o número de delegados chegou a 208 e os posicionamentos concentraram-se na
necessidade de abertura de diálogo entre os governos coloniais e suas possessões em África.o
grupo de mulheres afro-americanas Circulo de Paz e Relações Exteriores participou
ativamente deste congresso .
Para um jovem militante pan-africano do Gana chamado Kwame N'krumah (1977),
um dos desdobramentos mais importantes do Quarto Congresso Pan-africano foi a criação em
1937 do International Áfrican Service Bureau, um organismo com a finalidade de promover o
66
bem estar continente africano e na diáspora, através da cooperação entre todos os povos do
mundo. Todavia, durante a década de 1930 não ocorreram congressos pan-africanos,
principalmente por causa do conflito imperialista terminado em 1945.
Entre 1932 e 1940 publicações críticas ao colonialismo como a revista Legitima
Defesa e o Jornal Estudante Negro, produzidas por intelectuais da América central e do
Senegal radicados em Paris. O termo “negritude” comeca e se popularizar e recebe uma ampla
divulgacão ideologica a partir do poema do martinicanoAimée Cesárie em 1939. A partir de
então,ativistas destacaram-se produzindo o movimento literário, acadêmico, cultural da
negritude, que reuniu uma gama de intelectuais comoo próprio Aimé Césaire, o guianense
Leon Damas,e o senegalês Leopold Sedar Senghor.
O historiador Boubacar Barry (2004) comenta que sob a orientação de leopold
Senghor a Negritude assumiu um triângulo ideológico e hierárquico misturando os valores da
civilização francesa, o socialismo e valores tradicionais africanos. Mesmo sem um
posicionamento político anti-colonial firme, o movimento da Negritude colaborou para
solidariedade e identidade, explorando a arte e a cultura, onde a integração da coletividade
“negro-africana” tornou-se um ato político.
Os conflitos imperialistas do final da década de 1930 atingiram a juventude africana
em mais de 200.000 pessoas recrutadas como soldados. O contacto mais próximo com
sociedades europeias, a exclusão social e racismo direcionados aos combatentes que
sobreviveram ao conflito fizeram com que africanos percebessem de forma objetiva o sistema
internacional de exploração do continente africano como um todo. O historiador F. Canale
(2010, pág. 192) observa a que esta experiência de deslocamento para a Europa levou vários
combatentes africanos a alinharem-se aos movimentos nacionalistas de libertação colonial.
A partir de 1945 consolidaram-se movimentos de resistência social e plataformas
políticas voltadas à independência nacional no continente africano. Contudo, foram
necessárias novas estratégias para o enfrentamento da OTAN (Organização do Tratado do
Atlântico Norte) e de Israel, apoiadores do colonialismo português e aliado do regime da
apartheid sul-africana.
O Quinto Congresso Pan-africano foi realizado no mês de março de 1945 em
Manchester(Inglaterra). O Congresso contou com a presença de 200 participantes, as sessões
67
foram coordenadas por lideranças africanas nascentes e com certa experiência de militância
anticolonial, comoKwame Nkrumah, George Padmore, R.T. Makonem e Peter Abrahamns.
No encontro foi objeto de denúncia às fronteiras artificiais e arbitrárias do colonialismo, a
exploração econômica desenfreada e o controle de terras cultiváveis por colonos europeus na
África, nesta oportunidade os participantes foram delimitadas ações objetivas de boicote nas
colônias através de greves.
Os delegados presentes no Quinto Congresso apresentaram propostas ligadas a
nutrição, educação, direito legal de associações, sindicatos e petições voltadas à libertação
colonial. Para a visibilidade destas propostas foi criado um comitê, o West Áfrican National
Secretariat cujo responsável era Kwame N’krumah,delegado da Costa do Ouro (atual Gana).
Na perspectiva de N’krumah, neste Quinto Congressoo Pan-africanismo e o nacionalismo
africano “receberam uma expressão verdadeiramente concreta”,principalmente por causa das
participações de operários, sindicalistas, agricultores e estudantes em sua maior parte do
continente africano. Muitos jovens africanos engajados em movimentos nacionalistas de
Angola, Moçambique, Alto Volta (atual Burkina Faso), Costa do ouro (atual Gana), Nigéria,
Congo e Senegal tornaram práticas as deliberações teóricas resultantes dos congressos pan-
africanos.Uma das declarações oficiais após o congresso formalizava que:
O quinto congresso pan-africano conclama os intelectuais e trabalhadores das
colônias a tomarem consciência das suas responsabilidades. A longa noite terminou.
Lutando pelos direitos sindicais, pelo direto de formar cooperativas, pela liberdade
da imprensa, de reunião, de manifestação e de greve, de imprimir e divulgar
literatura necessária à instrução das massas estará a utilizar os únicos meios que vos
permitiram conquistar preservas as vossas liberdades. Atualmente só há uma
maneira de atuar fixamente : a organização das massas”.-declaration to the colonial
peoples of the world. (NKRUMAH, 1977, pág. 158)
A década de 1930 foi um período de forte influência comunista entre os articuladores
do Pan-africanismo, principalmente na esfera dos intelectuais congressistas. Não havia
homogeneidade entre os movimentos, pensadores e lideranças pan-africanas, a convergência
entre diferentes tendências dos movimentos assentava-se sobre a necessidade de
descolonização, integração regional e combate ao racismo, elementos centrais do Congresso
de Manchester.
No congresso de Manchester que os ideais comunistas foram muito valorizados como
linha de ação dos movimentos, mas a busca de um caminho ideológico e filosófico baseado
nas experiências, ou valores, africanos criou certa tensão entre os participantes. Esta questão
68
continuaria a ser uma problemática dentro do Pan-africanismo, mesmo uma contradição
carregada entre movimentos de diferentes frentes de luta. No entanto, mesmo com uma
formação marxista, na prática económica, politica, teórica e militar das lutas de libertação
lideranças nacionalistas conseguiram transcender a formatação política europeia, em alguns
casos sem perceber, para conceber uma via africana de desenvolvimento, o endógeno.
Conclusões
Concluímos que a resistência africana contra o regime escravista entre os séculos XVI
e XIX, através de movimentos quilombolas, a revolução haitiana e os movimentos
abolicionistas formaram, um conjunto fundamental de práticas de resistência e solidariedade.
Neste sentido, pensadores, militantes e ativistas políticos do final do século XIX como
Antenor Firmin e Edward Wilmot Blyden conseguiram construir uma sistematização teórica
das principais frentes de luta dos povos africanos contra o colonialismo, a opressão
econômica e o racismo. Para ambos, a educação e o ensino de história deveriam ser revistos e
transformados em ferramentas de conscientização histórica e política.
A importância fundamental da história e da educação foi retomada na segunda fase do
desenvolvimento histórico e social do Pan-africanismo (1900-1945) por WEB Du Bois e
Marcus Garvey. Os trabalhos políticos destes dois militantes em jornais, palestras e
movimentos sociais tiveram na história sua base para mobilização e conscientização de
pessoas. Os congressos pan-africanos ocorridos nesta fase do Pan-africanismo não seriam
realizados sem um mínimo de conscientização sobre a história e identidade em comum a
todos os povos africanos do continente e da diáspora, o apoio incondicional da diáspora a
libertação etíope marca este processo.
Nosso próximo passo é avançar sobre as lutas de libertação colonial no continente
africano como uma terceira fase do auto-desenvolvimento do Pan-africanismo. Outro aspecto
importante é entender qual o lugar que a história da África assume dentro dos
posicionamentos de movimentos e partidos políticos africanos anti-coloniais.
69
Capítulo 2: LUTAS DE LIBERTAÇÃO AFRICANA E HISTÓRIA DA ÁFRICA
É preciso que o homem de Estado africano se interesse pela história como uma parte
essencial do patrimônio nacional que deve dirigir, ainda mais porque é pela história
que ele poderá ter acesso ao conhecimento dos outros países africanos na ótica da
Unidade africana.
Joseph Ki Zerbo
Neste capítulo trabalhamos dentro da terceira fase de auto-desenvolvimento histórico e
social do Pan-africanismo, entre o final da década de 1940 e início da década de 1960.
Entendemos que nesta fase o Pan-africanismo conseguiu forjar um sentido, ou dimensão,
continental e transcontinental para o nacionalismo africano, no que diz respeito a memória
coletiva e a resistência cultural. Esta fase possui duas características marcantes, as ações de
grandes movimentos e partidos políticos anticoloniais de luta pelas independências nacionais,
e o projeto de formação de uma unidade federal africana, incentivado por presidentes
africanos como Sekou Touré de Guiné Conacri, Haile Selassie da Etiópia, Kwame N’krumah
do Gana entre outros.
A maioria das lideranças nacionalistas pan-africanistas possuía formação em ciências
humanas. Daqueles que se alinharam ao projeto de uma unidade federal africana incentivaram
a educação e o ensino de história da África, considerada pelos mesmos como instrumento de
coesão e identidade nacional, elementos fundamentais para construção dos novos Estados
Nacionais independentes. Mas seriam necessárias todas as forças para enfrentar outros
desafios, como o nacionalismo “estreito” por exemplo, um obstáculo para a interdependência
econômica entre regiões. Na década de 1950, o historiador senegalês Cheikh Anta Diop
alertou sobre os riscos da apartação econômica, que poderia levar os Estados independentes
para a órbita de seus ex-colonizadores, neste seguimento Kwame N’krumah e Amílcar Cabral
(de Guiné Bissau e Cabo Verde) definiram como neocolonialismo as políticas de
reaproximação entre países europeus e africanos.
Nosso objetivo central neste terceiro capítulo é identificar o lugar do conhecimento
histórico na mensagem política de lideranças pan-africanistas de partidos nacionalistas. Na
primeira parte abordamos questões sobre educação e colonialismo, na segunda sobre a
movimentação nacionalista africano e na terceira estabelecemos um diálogo entre Kwame
70
N’kruma e Amílcar Cabral. Algumas das nossas referências teóricas básicas são, Walter
Rodney, Joseph Ki-Zerbo e Ali Mazrui.
2.1 Educação e conhecimento histórico
Historiadores e antropólogos do século XX usaram ideologias de supremacia branca
para elaborar teorias sobre os supostos benefícios que o sistema colonial instaurou nas
sociedades africanas. Estas ideologias e argumentos a favor do colonialismo baseavam-se na
argumentação de que antes dos contatos sistemáticos com europeus, a partir do século XVI,
não havia educação ou qualquer tipo de conhecimento científico no continente africano. Neste
sentido, o historiador Walter Rodney (1975) nos traz uma série de fatores importantes sobre a
educação tradicional africana:
Entre os quais, os seus laços estreitos com a vida social, no sentido material e
espiritual que expressavam uma natureza coletiva do conhecimento; o caráter
multifacetado da educação;
O seu desenvolvimento progressivo em conformidade ao progresso físico e mental
da criança;
A não separação entre educação e atividade produtiva, ou entre atividade manual e
intelectual;
Programas específicos e divisão consciente entre professores e alunos;
Educação totalmente interligada a propósitos sociais.
No século XV os europeus encontraram pelo menos três sistemas educacionais no
continente africano, e que muitas vezes complementavam-se, como a educação tradicional
entre os povos Yorubá e Tuareg, A educação cristã entre os etíopes e a educação islâmico-
corânica nas universidades do Marrocos, Mali e Timbuctu. Nas palavras de Rodney (1975,
pág. 347):
Os colonizadores não introduziram a educação em África. Introduziu sim um tipo
mais de instituições educacionais formais que suplementaram e em parte e
substituíram as que já existiam. O sistema colonial também estimula valores e
práticas de educação formal. O principal propósito do sistema educacional colonial
era treinar africanos para servir como homens da administração a um plano
extraordinariamente baixo e fornecer mão de obra para as firmas capitalistas
privadas, pertencentes a europeus.
Em espaços providos por estruturas sociais de clãs e famílias, os períodos de estudo
variavam, podendo durar semanas ou anos, como na preparação para ritos de passagem de
idades, na integração em novas comunidades, na formação médica e na matemática, no
71
aprendizado de técnicas de fundição, agricultura e cerâmica e no comércio profissional. Neste
sentido, os Asante do Gana, produziram um tipo de técnica de fiação e alfaiataria
extremamente sofisticada que misturava seda e algodão (kemte), por sua vez, o povo Zulu
investiu em especificidades filosóficas da educação militar. O ensino de história possuía uma
função muitas vezes de integração nacional e preservação da memória ancestral havendo
centros com esse propósito no Estado Yorubá de Keta durante o século XIX.
A falta de objetivos na utilização racional de recursos materiais e sociais, somada a
doutrina de submissão face ao sistema capitalista foram duas das principais tendências do
sistema educacional europeu na África. As características principais da educação europeia
eram as relações desequilibradas de grupos sociais com poderes diferentes na sociedade, o
racismo e a jactância cultural. Na opinião de Walter Rodney, os primeiros quarenta anos após
a Conferência de Berlin, ocorrida na década de 1880, foram dedicados à implantação do
sistema educacional colonial no continente africano. Paulatinamente a educação passou a ser
mais sistematizada, principalmente em áreas de exploração mineral como Congo e Rodésias.
Walter Rodney (1975) comenta-nos que a falta de investimentos em escolas era
justificada pelos governos coloniais por motivos financeiros, com essa premissa, os ingleses
alegavam a necessidade de cobranças mais acentuadas de impostos. Nas colônias estas eram
apenas justificativas políticas para exploração financeira, uma vez que na década de 1940 os
investimentos em educação em colônias inglesas como Quênia e Nigéria formavam as somas
desprezíveis de 2,26% e 3,4% orçamento coloniais.
Após 1945, com o fim do conflito armado organizado por nações ocidentais
considerado a II Guerra Mundial, a tendência dos governos europeus foi investir na instrução
de tarefas no continente africano, para facilitar o escoamento de matérias primas africanas
para a Europa. No Tanganica, por exemplo, o investimento em escolas primárias esteve
atrelado à exploração do algodão e do café. Os locais de construção de escolas eram capitais
administrativas como Balhurst no Gâmbia e Buganda em Uganda, fator este que criou grandes
contrastes entre o setor rural e urbano. Para o supracitado autor, alguns dados possibilitam
comprovar o absurdo da implantação do sistema escolar colonial no continente africano, nas
formações primária 50% dos alunos eram reprovados, ou seja, para cada um que completava o
ciclo escolar há um que não, há ausência de escolas técnicas e universidades, e
preponderância da formação de padres e pastores.
72
As problemáticas de nível qualitativo passavam primeiramente pelos conteúdos dos
livros didáticos, totalmente baseados em uma concepção europeia do conhecimento, e sem
nenhuma ligação com as realidades locais. As escolas da segunda metade do século XX
possuíam conteúdos do século XIX, ao mesmo tempo em que conteúdos de ordem científica,
técnica e pedagógica eram de referência europeia. Os programas de colônias inglesas e
francesas alunos africanos aprendiam história, geografia e língua desses países como se
fossem superiores as suas, ou seja, civilizadas, úteis e dignificantes.
De forma geral, os temas dos currículos relativos à história eram centrados nas
experiências europeias, inclusive a de iniciar a “civilização” no continente africano como
insistiam franceses belgas e ingleses. Africanos eram considerados incivilizados e europeus
ocidentais civilizados, o antigo Egito, por exemplo, era tratado de maneira isolada como se
fosse externo à África. Os currículos asseguravam a subalternidade, gratidão, serventia e
assimilação, inclusive, entre os mais educados estavam os mais desafricanizados, acadêmicos
reduzidos a meros imitadores e consumidores de valores do capitalismo europeu. No currículo
escolar da Tanganica estudantes aprendiam obrigatoriamente informações sobre a família real
inglesa, seus cavalos e castelos.
Walter Rodney observa duas outras tendências desenvolvidas pelos governos
coloniais, uma de falso respeito à cultura africana, que se contradizia pelo vil desprezo às
línguas locais. Neste sentido, Walter Rodney expõe o tratamento prestado à cultura africana
no Congo pelos belgas, que lançaram verdadeiras campanhas educacionais em língua local,
entretanto a língua escolhida para a campanha era do grupo étnico diretamente ligado à área
de exploração de recursos e algo que se desdobrava em conflitos internos entre diferentes
grupos locais, obrigados a aceitar a estratificação social criada pelos colonizadores europeus.
Os portuguêses e os espanhóis desprezaram sempre a língua e a religião africanas.
Os jardins de infância e as escolas primárias para africanos nas colônias portuguesas
não passaram de agências de difusão da língua portuguesa. Muitas escolas eram
controladas pela igreja Católica, como reflexo da união estreita entre Igreja e o
Estado no Portugal fascista. Na pouca conhecida colônia espanhola da Guiné (Rio
Muni), a pouca educação proporcionada aos africanos baseava-se na eliminação da linguagem local e nas tentativas de infundir nos seus corações o “sagrado temor de
Deus [...]”.“Outro aspecto da educação colonial e do padrão cultural que carece
investigação é o modo como o racismo e o desprezo europeu eram expressos não
somente pela hostilidade para com a cultura africana, mas também pelo
paternalismo”. (RODNEY, 1975, pág. 360)
A outra tendência contraditória da lógica colonial observada pelo autor foi coordenada
pelos progressistas europeus nas colônias, que fizeram propaganda demagógica sobre a
73
educação de mulheres africanas, algo que não ocorria nem mesmo nos países europeus.
Dentro do sistema colonial racista e sexista a educação feminina não tinha sentido, a mesma
demagogia foi empregada ao discursso sobre o estímulo ao ensino agrícola, impossibilitado
por não haver condições para uma indústria e técnicas autônomas. O imperialismo cultural
europeu no continente africano baseou-se em três pilares: língua, religião e educação, por isto
o desenvolvimento de uma educação para a manutenção do subdesenvolvimento econômico
foi consciente.
Entre as décadas de 1930 e 1940 a educação e as escolas tornaram-se um ponto de
referência e convergência para as movimentações nacionalistas africanas. Há exemplos de
movimentos sociais como All África Peoples Conference do Gana, African Nationalist
Congress (ANC) da África do Sul, Partido africano da Independência de Guiné Bissau e
Cabo Verde (PAIGC), e de ativistas políticos como Sekou Turé de Guiné Conacry, Kwame
Nkrumah do Gana, Obafemi Awolowo da Nigéria, Patrice Lumumba do Congo e Julius
Neyrere da Tanzânia, que compreendiam a educação como ferramenta capaz de construir o
processo de libertação nacional de territórios africanos dominados pelo colonialismo europeu.
Desta forma, fazia-se necessária uma educação popular, anteriormente impossibilitada
pelo número limitado de escolas durante o regime colonial, as poucas escolas que existiam
estavam voltadas à formação de elites e à proteção de interesses coloniais, na opnião de Sekou
Turé era fundamental uma renovação dos conteúdos (apud HABTE et al, 2010): Nós devemos
africanizar a nossa educação e livrarmo-nos das falsas ideias herdadas por um sistema
educativo concebido para servir aos objetivos coloniais.
Sekou Turé não estava isolado em sua opinião, na verdade, as lideranças nacionalistas
anticoloniais comungavam das mesmas perspectivas em relação a descolonização do sistema
educacional. Vimos nos capítulos anteriores que a consciência histórica é um dos valores
fundamentais do Pan-africanismo, no dealbar da primeira metade do século XX o Pan-
africanismo e seus valores estruturam o pensamento nacionalista e os movimentos de
independência. São estas algumas das questões que abordamos no próximo tópico.
74
2.2 Pan-africanismo e nacionalismo anti-colonial
O fim do conflito armado entre potências imperialistas do ocidente em 1945 reinicia
um clima de tensão política e militar entre dois blocos de países. Um bloco capitalista
liderado pelos Estados Unidos, inserido em um sistema político e econômico de exploração
liberal, e outro bloco imerso no sistema político e econômico socialista-comunista,
comandado pela União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS). Estes dois blocos de
países estabeleceram relações de cooperação com o continente africano baseadas na
submissão e trocas desiguais de recursos.
Desde a década de 1920, foi criada uma instituição denominada Liga das Nações com
o objetivo de mediar conflitos e promover a paz entre as nações, principalmente do ocidente.
Em 1945, a Liga das Nações foi transformada na Organização das Nações Unidade (ONU),
uma entidade internacional com a finalidade máxima de promover e assegurar a paz e os
direitos humanos no mundo. Contudo, as contradições da ONU começaram em sua própria
estrutura, formada a partir dos interesses de grandes potências econômicas como Estados
Unidos e França.
O nacionalismo africano no final da década de 1940 refletiu muitas consequências da
desafricanização, da degradação socioeconômica, do trabalho forçado e da destruição do
meio-ambiente em regiões como Moçambique, Angola e Cabo Verde. Amílcar Cabral (1978)
e os historiadores F.Canale e Adu Boahen (2010) comentam que no arquipélago de Cabo
Verde, localizado na costa oeste africana e colonizado por Portugal, entre os séculos XVI e
XX, a população de aproximadamente 150.000 habitantes foi reduzida a cem mil entre 1940 e
1948, por fome causada pela opressão administrativa portuguesa na região.
Na ótica do historiador B.O. Olatunji Oloruntimehin (2010), o nacionalismo africano
da primeira metade do século XX foi por essência pan-africano, e enquanto movimento foi
abrangente, alcançando populações rurais e do perímetro urbano que se mostravam
insatisfeitas e conscientes da exploração econômica e de outros abusos do sistema colonial. A
partir da década de 1940 eram nítidas as diferentes correntes pan-africanas no continente e na
diáspora. Havia divergências em relação à ideologia marxista-socialista e a busca por uma
opção política fundada em uns referenciais africanos. Algumas tensões entre correntes
políticas diferentes foram inesgotavelmente exploradas pelos colonizadores, como brecha
para criação de conflitos políticos.
75
George Padmore foi um dos mais importantes críticos da postura imperialista dos
comunistas em relação ao continente africanos e aos afrodescendentes na diáspora. Padmore
nasceu em Trinidad em 1902, foi amigo de infância pelo historiador e influente escritor CRL
James,um dos criadores do movimento da Negritude. Na juventude Padmore dedicou-se aos
estudos de medicina e direito, conciliando-os à militância comunista junto a sindicalistas nos
Estados Unidos e Inglaterra. Trabalhou em ações coletivas contra a invasão da Etiópia através
da International Áfrican Friends of Abyssinia que após 1945 tornou-se o International
Áfrican Service Bureau, organização que realizou inúmeras publicações e encontros
políticos.George Padmore construiu uma rede de referenciais que possibilitaram seu contato
mais direto com as experiências anticoloniais na África Oeste. Estes contatos fizeram-no
conhecer Kwame Nkrumah, com quem trabalhou como conselheiro político..
O caráter político pan-africano do nacionalismo na África consolidou-se através do
que Joseph Ki Zerbo denominou de “grupos motores” das independências africanas, que era
formado por sindicatos, intelectuais, movimentos de estudantes, igrejas, partidos políticos, e
movimentos de jovens e mulheres. Os grupos motores trabalharam na mobilização e
conscientização popular, prepararam e condicionaram o Pan-africanismo teórico, cultural e
político ao plano do cotidiano, fatores que possibilitaram a construção das independências a
partir da década de 1950.
2.3 Grupos Motores das Independências africanas
A partir da década de 1930, os sindicatos africanos catalisaram diferentes aspirações
populares, principalmente em regiões de industrialização ou em fase de industrialização,
como a Costa do Ouro (Gana) e Nigéria. Foram considerados organismos subversivos pelos
sistemas coloniais, tiveram que enfrentar obstáculos impostos pela administração colonial, as
críticas estabelecidas por muitos sindicatos abrangiam todo o sistema colonial e não somente
suas condições de trabalho, tornando-os alvo da repressão dos governos coloniais. A
estabilidade profissional de professores possibilitou que a categoria cria-se seus primeiros
sindicatos na década de 1950, sem o risco eminente de demissões. Mas os sindicatos de maior
autonomia e articulação política foram a Confederação Geral dos Trabalhadores africanos na
Guiné Conacri a partir de 1956, e a Confederação africana de Sindicatos Livres, criada em
Abidjã no ano de 1958.
76
O combate a alienação cultural se deu sob diversas frentes de luta, na forma de
associações de escritores, instituições de educação e pesquisa, conferências e na formação
política de jovens e estudantes. As organizações de estudantes aproximaram-se das
perspectivas políticas e sociais do Pan-africanismo. Na França de 1952 estudantes senegaleses
fundaram a Federação de Estudantes da África como movimento nacionalista, a revista
Presence Africaine, criada pelo senegalês Alione Diop e sua esposa foi um potencial canal de
comunicação desta Federação. Países como Portugal e Bélgica começaram a realizar seleções
mais cuidadosas de bolsistas africanos, para evitar tendências nacionalistas pan-africanas.Em
1956 e 1959 estudantes negros realizaram em França e Roma congressos de Escritores e
artistas africanos com o apoio da Presence Africaine.
Os jovens articularam seus pontos de vista políticos em inúmeros grupos religiosos,
cristãos, islâmicos e das religiões tradicionais africanos. Durante toda a primeira metade do
século XX no Senegal, Gana, Nigéria, Congo e África do Sul ocorreram diversas atividades
anticoloniais promovidas em caráter coletivo de templos religiosos. Mesmo sistematicamente
combatidos desde a decada1920 movimentos islâmicos como Mouride no Senegal e Sokoto
da Nigéria deram continuidade aos seus trabalhos e manifestações anticoloniais.
No campo cristão, as igrejas de Jesus Cristo Sobre a Terra (dirigida por Simon
Kimbangu do Congo), Cristo Negro na Nigéria, Antepassados no Quênia, Cristo para União
dos Bantus na África do Sul, a Igreja autóctone do Exército da Cruz de Cristo liderada por
Jeremiah Jehu–Apiah na Costa do Ouro (atual Gana), e asigrejas independentes na África do
Sul assumiram uma postura de oposição ao colonialismo, e conseguiram congregar setores
intelectuais e populares da sociedade. O historiador Basil Davison (2010) nos revela que entre
1918 e 1932 havia mais de 800 igrejas etiopes pro - ruptura e sionistas no continente africano.
O caráter de movimentação de massas das organizações de jovens operou como
verdadeiro catalisador das aspirações populares,os movimentos estudantis assumiram a
produção intelectual e cultural pan-africana. Sabemos através do Historiador T. Odhiambo
(2010) queorganizações de jovens reivindicavam melhores condições de trabalho, salariais,
educacionais, autonomia política, e políticas antirracistas em suas reuniões e
conferências.Neste sentido, podemos citar o Young Baganda Association de Uganda, e a East
Áfrican Association do Quênia, o Nigérian Youth Moviment, os clubes e as associações da
Costa do ouro (atual Gana) como o West Áfrican Youth League e em Serra Leoa o West
Áfrican Youth.Muitas organizações de jovens foram criadas fora do continente por
77
universitários africanos, como a West Áfrican Studants Union (WASU) na Inglaterra,
Federation dês Etudiants d’Áfrique Noire (FEANF) na França e a Casa dos Estudantes do
Império em Portugal. Em muitos casos lideranças dos processos de independência adquiriram
sua primeira formação política nessas associações estudantis.
A partir de 1945 outro grupo motor das independências entrava em cena, os partidos
políticos, que começaram aproliferar-se de um encadeamento entre fatores anteriores à
colonização, dentre os quais a anterioridade dos chefes tradicionais, organizações clânicas e
grupos religiosos. Na década de 1950 tais características foram suplantadas pela difusão da
informação por novos meios de comunicação através de rádio e jornais como Evening News
do (Gana) e West Áfrican Pilot da Nigéria.
Mas sem dúvida, a consolidação dos partidos deu-se com a adesão por parte dos
sindicatos, grupos de jovens interessados pela unidade africana, e pelas mulheres com suas
perspectivas sobre o anticolonialismo, comissões educacionais e de tradicionais contadores de
história, responsáveis pela divulgação da memória através de canções, muitas das quais,
tornaram-se símbolos de partidos. Joseph Ki Zerbo (1972) argumenta que os comícios eram
pedagogicamente baseados em informações sociais e conhecimento histórico, tais eventos
transformaram-se em centros de educação popular. Os partidos políticos de caráter
nacionalista pan-africano como o Centre for Áfrican Studies (CAS), Partido africano da
Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC), African Revolutionary Front
(FRAIN), Conferência das Organizações Nacionais das Colônias Portuguesas, Comitê de
Libertação dos Territórios africanos sob Dominio Português, o Convention People Party, o
All Áfrican People Conference, e o African Nationalst Congress destinaram todo o empenho à
formulação e cumprimento de seus programas políticos de libertação. Muitos destes optaram
por não medir forças militares contra as instituições do regime colonial por três motivos, as
fronteiras artificiais do colonialismo, a falta de poder bélico dos movimentos e a existência de
força militar colonial exterminadora.
Nos territórios sob dominação francesa, inglesa e portuguesa formaram-se os grandes
partidos políticos, primeiramente naquelas regiões onde havia assembleias legislativas, assim
foram criados no Gana o United Coast Convention (UGCC) e o Convention People Party
(CPP), na Nigéria o Action Group, Serra Leoa o Sierra Leoa People Party, Cabo Verde e
Guiné Bissau o Partido africano para Libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde – PAIGC e
em Gâmbia o People Progress Party. Tais partidos tinham em sua base jovem do perímetro
78
rural e urbano, organizações femininas, militares, estudantes, chefes tradicionais, sindicatos,
comerciantes, artistas e negociantes.
As mulheres formaram uma linha horizontal de participação e atuação nas estruturas e
das bases dos partidos políticos. No contexto africano as mulheres foram à força motriz dos
movimentos anticoloniais, Joseph Ki Zerbo (1972, pág. 181) observa que:
[...] seu papel foi ainda mais decisivo nas regiões do litoral do Golfo da Guiné, onde
tradicionalmente tomava parte de maneira mais ampla nos assuntos públicos, como
consequência de sua maior liberdade, do regime matrilinear e da sua força
econômica. As associações de quitandeiras na Costa do Marfim e do Togo
dominavam o mercado pelo monopólio da venda de certos produtos de grande
consumo. As quitandeiras politizadas eram propagandistas de choque, com atividade
permanente, e iam ao ponto de exigir do cliente apresentação do cartão do seu
próprio partido antes de o servirem. Certas mulheres são exaltadas ainda como
heroínas da luta anticolonial.
Mesmo a luta anticolonial possuia diferentes direcionamentos, desde as intencões
individualistas de grupos locais que viram na independência uma forma de assumir uma
espécie de colonização doméstica, aos que pretendiam reproduzir as experiências socialistas
sovieticas dentro do continente africano. Sem negarmos a influência das ideias socialistas no
seio das lutas anticoloniais, as frentes de luta que nos interessam são aquelas que buscaram
nas experiencias históricas africanas um direcionamento para o pós independencia, mais
objetivamente os que viram na Unidade Federal africana a única saida para a auto-
determinacão da nacões recêm independentes.
2.4 O Fator Unidade na África
As associacões, organizacões de estudantes, sindicatos e partidos politicos engajaram-
se em iniciativas e manifestações pela melhoria das condição nacional e pela independência
propriamente dita. Todavia, setores destas organizações dedicaram-se a luta pela
independencia nacional consiliando-a a perspectiva de unidade federal dos Estados africanos
independentes. Como vimos no Capítulo 1, a unidade africana tem sido uma questão pensada
e posta em prática por lideranças africanas – como Samory Touré e Chaka Zulu, desde o
século XIX, antes das instalações militares coloniais.
79
Nas decadas de 1940 e 1950 a proposta de uma unidade federal africana foi tema de
militancia estudantil, fator estrutural de movimentos sociais, partidos politicos, e a linha de
trabalho seguida por lideres nacionalistas.Entre as associações instaladas na França por
exemplo havia a Associacão dos Estudantes do Alto Volta (AEVF), Federacão dos Estudantes
da África Negra (FEANF) e Associacão dos Estudantes africanos de Paris ( AEAP). O jovem
estudante senegalês Cheikh Anta Diop fazia parte de um partido politico nacionalista
denominado Reunião Democrática Africana (RDA) e da Associacão de Estudantes da RDA
(AERDA). Na segunda metade de 1940, Diop realizou uma série de conferências sobre
aspectos do nacionalismo africano , dentre os quais a lingua, cultura, economia, história e
política.
No ano de 1948, Cheikh Anta Diop escreveu o artigo Quando vamos falar de uma
Renascimento africano , onde sintetizou uma reconstrução das nações africanas independentes
apartir das suas próprias tradições e experiências históricas .O jovem Diop enfatizou o papel
dos escritores, dos artistas e das linguas maternas como base de fundacão da cultura, na sua
perspectiva os cientistas e principalmente das massas jovens africanas deveriam acreditar
mais em si perante os desafios da luta nacionalista contra o colonialismo.
Mas foi no jornal da AERDA em 1952, que Cheikh Anta Diop elaborou um programa
do pensamento nacionalista sobre a Unidade, “Vers une idéologie politique Áfricaine”, em
que tratou da identificação e transposicão dos obstáculos para a constituição de uma
federação de Estados africanos. Dentre as problemáticas observadas pelo autor estavam a
alienação cultural atrelada a falta de consciência histórica e a relação entre conflitos étnicos
e qualidade da educacão .
No campo dos partidos politicos pan-africanos podemos citar dois exemplos daqueles
que consiliaram a luta por independencia com a proposta de Unidade Federal, o CPP de
Kwame Nkrumah do Gana, e o PAIGC de Amílcar Cabral da Guiné Bissau\Cabo Verde.
Aproveitando-se de assembleias gerais e linhas de diálogo diplomático com a Inglaterra os
partidos UGCC e posteriormente o CPP do Gana foram apoiados pelo grupo cultural Veranda
Boys, que organizou na déecada de 1950 uma verdadeira campanha popular pelos ideais pan-
africanos do CPP, a independencia do Gana, a unificação política e econômica do continente
africano. Em 1957, ano de independência do Gana, a substituição do nome Costa do Ouro
para Gana baseou-se no conhecimento histórico sobre o antigo Reino do Gana, ao mesmo
tempo, tal escolha era uma posição de resitência cultural.
80
Figura18: Kwame Nkrumah
Fonte: correionago.ning.com
O PAIGC nasceu equanto partido por volta de 1956, mas no início da decada de 1960
os objetivos principais do Partido, independência e Unidade, já estavam sendo movimentados
na prática por seu fundador, Amílcar Cabral. O PAIGC enquanto partido africano, ou seja,
continental, foi pensado como um elo histórico entre duas regiões invadidas e colonizadas por
Portugal, Guiné Bissau e o arquipelago de Cabo Verde. Na década de 1960, o PAIGC foi a
ferramenta de luta política e militar para a libertação de ambas nações na decada seguinte.
A Unidade dizia respeito a organizacão política administrativa, as relações
econômicas, restruturação dos sistemas educacionais, impulsionar o avanço da ciência e criar
novas infraestruturas, ao mesmo tempo, uma forma de estirpar através da resistência conjunta
as ações dos exploradores do continente. Unidade e a resistência, ou os tipos de resistência,
foram os elementos decisivos que lideranças nacionalistas empregaram nas lutas de libertação
nacional. E é este painel de elementos que na terceira parte desta capítulo delineamos dentro
do perfil biográfico de formacão politica de kwame Nkrumah e Amilcar Cabral.
2.5 Unidade e resistência: Kwame N’kruma e Amílcar Cabral
Kwame Nkrumah nasceu no ano de 1909
em Nkroful, província de Nzima, antiga Costa do
Ouro (atual Gana), onde foi aluno de escolas
missionárias criadas pela administração colonial
para formação de quadros administrativos. Em
1935 migrou para os Estados Unidos onde estudou
direito e sociologia na Lincoln School. Logo nos
primeiro anos no EUA identificou-se com trabalho
de WEB Du Bois e com a UNIA de Marcus
Garvey.
O jovem Nkrumah participou com empenho de atividades estudantis, que o
possibilitaram conquistar a presidência da organização de estudantes West African Students.
Durante os Congressos Pan-africanos conheceu o antilhano George Padmore, os dois
estabeleceram uma parceria sólida na formulação de teorias sobre independência, no Pan-
africanismo e na política internacional.
81
Figura 19: Amílcar Cabral
Fonte : www.reunionblackfamily.com
Em 1945 N´krumah e George Padmore trabalham na Pan-African Federation, uma
plataforma para a organização do congresso pan-africano de Manchester, neste mesmo ano
Nkrumah liderou do The Circle, uma organização secreta de combate ao colonialismo e para
organizacão nacional africana. Após o Congresso Pan-africano de Manchester em 1945
Nkrumah fundou a West Áfrican National Secretariat e em 1947 retornou ao Gana. Sob a
indicação do líder sindicalde J.B. Danquah, Kwame N’krumah assume o cargo de secretário
do United Gold Coast Convention (UGCC), organização que coordenava reuniões periódicas
para formação política de trabalhadores e para boicotes ao monopólio de produtos europeus,
essas atividades levaram Nkrumah à prisão diversas vezes.
Sentindo-se limitado com o excesso de teorização e poucas ações práticas da UGCC,
Nkrumah cria um movimento de massas denominado Convention People Party (CPP), uma
organização diretamente ligada a setores como os sindicatos e associações organizações da
juventude, sob o lema de: “ação positiva para autonomia imediata (“ self goverment now”),
auto governo e unidade entre diferentes setores sociais, tal envergadura política leva Nkrumah
e uma série de militantes do CPP para a prisão. Sob negociação com Inglaterra o CPP
consegue intermediar eleições públicas para primeiro ministro através da campanha de voto
consciente “ação positiva”. Através das eleições, mesmo em cárcere, N’krumah foi eleito
primeiro ministro em 1952, situação que preparou as medidas necessárias para em 1957 a
Costa do Ouro assumir sua independência como primeiro Estado africano liberto da
dominação colonial, passando a se chamar Gana, e utilizando a bandeira da Etiópia como base
de construção da sua própria bandeira.
Filho de pai e mãe cabo verdianos,
Amílcar Cabral nasceu no ano de 1924 em Bafatá,
região sul da Guiné Bissau em 1924, território
regido pela dominacão colonial portuguesa. Em
1945 Cabral migrou para Portugal para estudar
economia e engenharia hidráulica, onde se
envolveu no ativismo político com outros
estudantes africanos tornando-se Secretário Geral
na Casa dos Estudantes do Império. Com
estudantes africanos de outras colônias
portuguêsas realizou atividades no Centro de Estudos
82
africanos, estudos críticos sobre o colonialismo. Após formar-se em Portugal, Amílcar Cabral
foi enviadoà Guiné Bissau para realizar um recenseamento agrícola em 1953. Tal atitude deu-
lhe apossibilidade de conhecer todo o país, e projetar caminhos de organização popular.
Durante a década de 1950, Amílcar Cabral optou pelo Pan-africanismo e pela unidade
africana como caminhos e ferramentas viáveis para a independência e desenvolvimento
africano das nações. Em 1956 fundou o Partido africano da Independência (PAI), o embrião
do que se tornou o Partido africano da Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde.
Os países europeus imperialistas assumiram diferentes estilos administrativos no
continente africano. No contexto social da África Meridional, do Sul e Central o colonialismo
belga, holandês e português investiu na espoliação das condições de trabalho de campo, a
proletarização e urbanização mais rápidas que em outras áreas como a região leste do
continente, o historiador Basil Davison (2010, pág. 788) chama a atenção para o fato que na
região meridional: […] os brancos tinham monopolizado todos os emprego que poderiam ser
acessíveis aos africanos instruídos, seja na administração, no setor econômico, na igreja ou
em outros setores [“…]”
No ano de 1956, sob a liderança de Cabral foram lançadas as diretrizes do Partido
africano da Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde, no mesmo sentido, o Convention
People Party de Kwame Nkrumah avançava nos enfrentamentos políticos e diplomáticos para
a libertação e independência do Gana. O CPP e o PAIGC militaram pela integração e
autossuficiência do continente africano. As tendências de fragmentação regional apoiavam-se
na vulnerabilidade industrial e militar do continente africano, na dependência psicológica de
dirigentes e de setores elitistas que inseriam cada vez mais o continente das aventuras e
desventuras de sistemas econômicos de países europeus e Estados Unidos.
2.6 Entre as independências africanas
A construção nacional dos primeiros territórios libertos passava por toda uma
reorganização da economia, da divisão social do trabalho, infraestrutura e língua nacional…
enfim, uma retomada do que os historiadores Joseph Ki Zerbo e Ali Marzrui denominam de
valores políticos africanos. A coletividade era, por exemplo, um valor político do
83
nacionalismo africano, nesse sentido Joseph Ki Zerbo (2010, pág. 566) destaca a perspectiva
de Sekou Ture da Guiné Conacri:
A África é, essencialmente, ”comunocrática”. A vida coletiva, marcada pela
solidariedade social, confere aos seus hábitos um caráter humanístico que muitos
povos podem invejar. Igualmente em razão destas qualidades humanas, na África,
um ser não pode conceber a organização da sua vida à margem da estrutura própria à
sociedade familiar fundada sobre pequenas comunidades ou clânicas. [...]
Intelectuais ou artistas, pensadores ou pesquisadores, as suas capacidades não têm
valor, senão à condição de concorrerem em prol da vida do povo, salvo se estiverem
integradas, de modo fundamental, à ação, ao pensamento, assim como às aspirações da população.
Na década de 1960 durante os processos de independências africanas formaram-se
dois blocos políticos distintos. Um bloco integrado por cerca de doze dirigentes africanos que
advogavam a continuidade das relações de submissão aos interesses de países europeus e dos
Estados Unidos, esse bloco ficou conhecido como Monróvia, por que iniciou uma série de
conferências em Monróvia, capital da Libéria. O outro bloco minoritário era formado por
Gana, Guiné Conacri, Mali, Egito (República Árabe Unida), Argélia e Marrocos, sua postura
era de ruptura e independência imediata com o colonialismo e advogavam pela unidade
africana, suas primeiras reuniões ocorreram em Casa Blanca, capital do Marrocos, conotando
ao mesmo a denominação de “Casa Blanca”.
Sob um contexto geopolítico nitidamente dividido, o III Congresso dos Povos
africanos ocorreu em 1961 no Cairo comandado por Abdel Nasser do Egito. A realização do
Congresso foi uma vitória, pois não existiam voôs regulares, muitos participantes tiveram que
viajar de navio, e as linhas telefônicas funcionavam com precariedade, no geral a
comunicação era feita através do correio e de emissários.
O encontro conseguiu reunir 250 delegados, partidos políticos, sindicatos e
organizações africanas com a proposta de encerramento das ações do imperialismo dentro do
continente, nessa oportunidade foram definidos deliberações pertinentes, entre as quais: a)
Formação de um comitê responsável por um fundo para sustentar custos dos processos de
libertação e estruturação nacional; b) Rede de rádio difusão para diálogo direto com as
populações em línguas locais; e c) Solidariedade com movimentos de libertação da diáspora
africana.
Entre 1954 e 1961 a repressão colonial executou uma série consecutiva de assassinatos
às lideranças de movimentos, de partidos e de presidentes africanos com posturas
84
anticoloniais. Podemos exemplificar com as mortes de Dedan Kimathi do Movimento Mau
Mau no Quênia, Reuben Um Nyobe do Camarões, Barthelemy Boganda da República Centro
africana e Felix Rolant Moumié do Camarões. Algumas das agências de espionagem e
repressão vinculadas a países europeus e Estados Uidos envolvidos nestes golpes foram o
Serviço de Inteligência da França (SDECE), o Serviço de Inteligência de Portugal (PIDE) e
serviços secretos dos Estados Unidos (CIA) E Grã-Bretanha (M5).
Patrice Lumumba foi o primeiro ministro do Congo, seu assassinato na província de
Katanga em 1961 está ligado a uma aliança entre Estados Unidos, Bélgica e França e elites
locais interessados nos recursos minerais e energéticos da região, o assassinato de Lumumba
está inserido em um universo de intrigas de países europeus e conivências de organizações
internacionais como a ONU. O assassinato de Lumumba desencadeou uma série de protestos
no continente e diáspora, organizados por grupos como a Associação Cultural de Mulheres de
Tradição africana, dirigida pela escritora Maya Angelou, e a Nação do Islã (NOI) presidida
por Elijah Mohamed e representada por Malcom X nos Estados Unidos.
As ações de Kwame Nkrumah e Amílcar Cabral merecem o devido destaque por
alguns motivos, ambos assumiram a posição nacionalista, anticolonial e pan-africana em seus
projetos e atividades políticas. Integrantes de grandes movimentos sociais de massas, os dois
preocuparam-se com a educação popular, com a escola e com o conhecimento histórico,
produziram também uma gama de documentos escritos. Kwame Nkrumah e Amílcar Cabral
instrumentalizaram-se do socialismo, mas não se limitaram as teorizações e conceitos
marxistas e soviéticos, o socialismo obteve função circunstancial, instrumental e política do
Pan-africanismo naquele período.
2.7 Similaridades – N’krumah e Cabral
Nas perspectivas de Kwame N’krumah e Amílcar Cabral a Unidade africana era uma
resposta à dominação colonial, e principalmente uma resolução das problemáticas políticas e
econômicas do continente. Neste sentido era projetada como caminho concreto para formação
de um Mercado Comum africano, a interdependência econômica seria capaz de servir aos
interesses dos Estados africanos, em substituição às aberrações econômicas importadas dos
países industrializados, mas sim das riquezas do continente dentro do próprio continente.
85
A unidade administrativa e econômica africana esteve na base das perspectivas
políticas dos partidos e movimentos de luta pelas independências nacionais, mas seus
obstáculos diretos foram às elites locais separatistas. Sob os diferentes estatutos políticos
coloniais (francês, inglês, português, belga, italianos, espanhol e alemão) governos europeus
reprimiram movimentos sociais e partidos politicos, desistimulando quaisquer iniciativas
africanas de integração, pois, a desagregação era uma forma de controle político e econômico
do continente africano. Grupos políticos e militares fortes o suficiente para contrapor a
dominação estrangeira e estabelecer a plena independência.
Kwame N’krumah (1977) tinha uma posicão muito nítida sobre o Pan-africanismo
enquanto um movimento pela unidade africana e independência .Na mentalidade de Nkrumah,
o significado da independência do Gana só seria completo com a independência ideológica ao
sistema colonial, unificação federativa do continente, e de sua autonomia econômica, política
e militar. Para N’krumah a Unificação, ou Unidade africana, manifestou-se com a percepção
do que Wilmot Blyden definiu de personalidade africana. O nascimento do Pan-africanismo,
como foi expresso por Nkrumah (1977) deveria ser compreendido no âmbito da política
mundial, pois seria impossível separar a África das questões mundiais.
Kwame N’krumah foi decisivo ao afirmar que a independência africana só se dará
com libertação do continente, e a libertação do continente será a face de sua unificação: Só
poderemos celebrar avitória final da luta pan-africana edos movimentos africanos de
libertação quando tivermos conseguido uma unidade política perfeita.(NKRUMAH, 1977,
pág. 161). No caso de Amílcar Cabral não havia divergência entre independência e unidade,
os dois propósitos caminhavam juntos, interdependentes. O historiador venezuelano Reinaldo
José Bolívar destaca o seguinte pensamento de Cabral sobre o tema (BOLIVAR, 2003, pág.
72):
“[...] somos pela unidade africana à escala regional ou continental, enquanto meio
necessário para construção do progresso dos povos africanos, para garantir a unidade
e segurança desse processo […] não devemos esquecer que a característica essencial
da história, a situação concreta da África exige a liquidação total do colonialismo, a
construção de uma base fundamental para realização da unidade africana”.
Ocorreram exemplos contemporâneos bem sucedidos de unidade, como a realizada
por Julius Neyrere entre Zanzibar e Tanganica, que se tornou o Estado da Tanzânia em 1964.
No caso específico de Guine Bissau e Cabo Verde, a Unidade era elemento estrutural do
PAIGC, Amílcar Cabral (1978, pág. 118) afirmava que:
86
Pusemos o problema da unidade na nossa terra, tanto na Guiné quanto em Cabo
Verde, no sentido de tirar ao inimigo a possibilidade de explorar as contradições que
pode haver entre a nossa gente para enfraquecer a nossa força, que temos de opor a
do inimigo […]. A contradição limita-se apenas a uma pequena burguesia (…) é
dessa pequena burguesia que surgem os grupos oportunistas que tem combatido o
PAIGC. Grupos de oportunistas que, no primeiro movimento que fizeram, já eram
ministro disso e daquilo […].
Mas, esta pequena burguesia, ou elite identificada e criticada por Amílcar Cabral se
elevaria ao agente da colonizacão doméstica. As elites formaram o elemento chave para a
perpetuacão das relacões de exploracão, Kwame Nkrumah denominou de sistema neo-
colonial, aquele que foi um dos maiores obstáculos a independencia nacional e unidade
africana.
2.8 Elites e Neocolonialismo
As elites formadas pelo sistema de dominação colonial exerceram o papel de
desarticulação da unidade politica e econômica africana. Trabalharam sob a perspectiva de
individualismo e busca de privilégios e obtenção de benefícios dos sistemas econômicos
internacionais, além de fazerem apologias aos mitos de superioridade cultural europeia e
inferioridade cultural africana. Esses mitos aberrantes eram reconhecidos por Kwame
N’krumah como um problema para o nacionalismo e à própria unidade africana:
Os efeitos sociais do colonialismo são ainda mais insidiosos que os efeitos políticos e econômicos, por que penetrando profundamente nos espíritos, demoram mais a
desaparecer. Os europeus relegaram-nos para uma situação de seres inferiores em
todos os aspectos da vida quotidiana. Muitos dos nossos compatriotas chegaram a
admitir que eramos um povo inferior. Só depois de essa ideia ter sido postacausa é
que a revolta se manifestou e os fundamentos do colonialismo foram abalados.
(NKRUMAH, 1977, pág. 47)
Sob análise de N’krumah (1977), os separatismos regionais, étnicos e culturais
promovidos pela cultura colonial e seus representantes africanos dessas ideias foram os
propulsores das mais diversas privações para os Estados recém-independentes nesse contexto,
a posição de não alinhamento à política externa dos colonizadores europeus de nações
afrianas tornou-se um imperativo para a administração econômica do Gana, assim como da
Tanzânia de Julius Neyrere, e da Guiné Conacri de Sekou Turé.
O comentário de Amílcar Cabral (1974, pág. 125) sobre a “Vigilância porque quem
divide o nosso povo, ele é pior que o inimigo tuga (português) que de certeza se vai embora”
87
estava diretamente ligada a duas questões perigosas: o papel das elites e o neocolonialismo.
Amílcar Cabral observava que em Cabo Verde e Guiné Bissau os portugueses investiam
estrategicamente na formação de administradores, apostando no reforço das relações de
exploração e investindo na ganância das elites africanas.
2.9 O neocolonial e Resitência Nacional
A década de 1960 foi à década das independências africanas, período em que uma
série de nações conquistaram a independência, entre as quais o Alto Volta (atual Burkina
Faso), Uganda, Togo, Nigéria e Mali. Todavia, o processo das independências africanas fez
com que as classes burguesas constituídas durante o colonialismo ficassem politicamente
mais fortes, e esta força irradiava da reorganização global do colonialismo conduzida por
Estados Unidos, França, Alemanha Bélgica, Espanha e Portugal. Na perspectiva de Kwame
Nkrumah esse era o retrato crítico da geopolítica do novo colonialismo, ou neocolonialismo:
[...] na Ásia, África, região das Caraíbas e América Latina, o imperialismo
simplesmente muda de tática. Sem qualquer escrúpulo, dispensa as bandeiras e
mesmo determinados dos seus funcionários mais odiados no estrangeiro. Isso
significa segundo afirma que está dando independência aos seus antigos súditos, que
será seguida de “ajuda” para o desenvolvimento. Sob essas frases, no entanto, imagina meios inumeráveis para alcançar os objetivos que eram anteriormente
atingidos pelo colonialismo […] a soma dessas tentativas modernas para perpetuar o
colonialismo ao mesmo tempo em que falam em liberdade, que veio a ser conhecida
como Neocolonialismo (NKRUMAH, 1967, pág. 281).
Em busca de uma definição mais precisa do neocolonialismo no continente africano,
Kwame N’krumah insistiu na fragilidade politica das independências africanas na década de
1960, problematizando que:
[...] dando a independência aos seus antigos súditos, que será em seguida de ajuda
para o desenvolvimento. Sob essas frases ,no entanto, imagina meios inumeráveis
para alcançar os objetivos que eram anteriormente atingidos pelo colonialismo […].
É a soma dessas tentativas modernas para perpetuar o colonialismo, ao mesmo
tempo em que falam de liberdade, que veio a ser conhecida como neo-colonialsmo.
(NKRUMAH, 1975, pág. 281)
Para Kwame Nkrumah, um dos passos mais importantes para todo o movimento de
unificação africana foi dado em 1958 no Gana com a I Conferência de Estados africanos,
onde foi confeccionado um documento geral e um núcleo para Organização dos Estados
africanos. Kwame Nkrumah considerava que as experiências promovidas pelas conferências
foram de suma importância:
88
“[...] outras conferências de todos os povos da África se realizarão, e as suas
resoluções e declarações terão um peso cada vez maior Outra reuniões pan-africanas
continuarão a surgir, para discutir problemas políticos, econômicos e sociais”. Já não
se passa uma semana se que se ouça falar de qualquer reunião e africanos de
diversas partes do continente. À medida que África se for livre, estes encontros
crescerão em participação, em força e eficácia. (ZERBO, 1977, pág. 163)
Nesse encontro foram oportunizados diálogos entre o Governo Provisório da Argélia e
o governo Francês. Ao mesmo tempo em que ocorreram cisões e principalmente medidas
conjuntas de cerceamento econômico, energético e jurídico à África do Sul através da
Comewelth e do Tribunal da Haia. Em 1959 II Conferência dos Estados Independentes
realizada em Monróvia, foram condenados os testes nucleares franceses no Saara, os conflitos
no Camarões e na Argélia, essa conferência foi uma oportunidade de reunir diversos tipos de
apoio à Força de Libertação Nacional da Argélia responsável pela instauração do Governo
Provisório no país.
Durante o I Congresso dos Povos africanos em 1958 o projeto pan-africano de
unificação do continente deparou-se com cisões políticas entre os países recém-
independentes. No mesmo ano ocorria em Adis Abeba – Etiópia a III Conferência dos Estados
independentes organizada por Haile Selassie, o historiador Lance Seunarine destaca o
seguinte trecho do discurso de abertura do evento feito por Haile Selassie: Os povos africanos
só conhecerão o seu pleno desenvolvimento no dia e que cada um deles conquistar a
independência e liberdade totais. (SEUNARINE, 1999, pág. 75)
No ano de 1960 ocorreu o II Congresso dos Povos africanos na Tunísia, com a
participação de 32 países a maioria representante de territórios dominados ou influenciados
pela França entre os quais Guiné Conacri, Togo e Camarões. Deste congresso foi retirado um
comitê formado por Ahmed Boumendjel, Félix Moumié e Sekou Turé de Guiné Conacri e
Patrice Lumumba do Congo. O tema central do encontro foram as dificuldades e as estratégias
a serem tomadas para a libertação definitiva de territórios dominados.
Perante o contexto neocolonial enfrentado pelas nacões independentes como Gana,
Tanzânia, Quenia, Egito e Guiné Conacri, e pelas colônias em luta pela independência a
exemplo de Namibia, Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola e Mocambique, Nkrumah
compreendia que havia uma série de desafios para a o desenvolvimento do processo de
unidade africana, dentre os quais o desafio cultural, um deles foi o idioma :
89
[…] os neo-colonialistas tudo fazem […] encorajando a formação de comunidades
baseadas na língua dos antigos colonizadores. Não podemos permitir que este
processo nos divida e desorganize. Fato de falar inglês não faz de mim um inglês.
Do mesmo modo o fato de alguns de nós falarmos Frances ou português não os
transforma em franceses ou portugueses. Somos africanos, simplesmente africanos,
e só poderemos defender os nossos interesses nos unindo no quadro de uma
comunidade africana […]. (NKRUMAH, 1977, pág. 244)
Para N’krumah os sindicatos eram encarados como um verdadeiro “grupo motor”, um
setor com potencial força de construção da Unidade africana, e um meio de impedir as
intenções de continuidade do sistema colonial no setor industrial e semi-industrial. Após a
independência do Gana foi criada uma Federação Pan-africana de Sindicatos dos países
africanos independentes, no primeiro evento organizado por este sindicato no ano de 1959
Nkrumah afirmou que:
Devido à sua orientação africana e independente, considero a federação pan-africana
dos sindicatos um instrumento dinâmico e positivo para unidade dos povos
africanos. Pode servir de ponto de encontro para todos os sindicatos do continente,
pode constituir uma união de fato, imediata, reunindo os sindicatos que já existem
nos estados independentes e acolhendo os restantes quando os seus países libertarem-se. Temos que optar em unir-nos para defender os interesses africanos ou
sucumbir às manobras imperialistas para nos recolonizar. (NKRUMAH, 1977, pág.
158)
Os imperialistas colonizadores europeus investiram nas elites marionetes como a
continuidade de seus interesses de exploração de recursos africanos. Beneficiadas enquanto
classe econômica e politica, essas elites receberam subsídios internacionais para enfraquecer
os governos das nações recém-independentes, assim como sindicatos, escolas e planos de
cooperação regional. Neste contexto ocorreram golpes de Estado e a reprodução no setor
administrativo de valores comportamentais ocidentais racistas, elitistas e individualistas, nas
palavras de Kwame N’krumah:
[…] é preciso atacar com determinação a minoria reacionária, fortemente entrincheirada entre os nossos povos. Porque a suceção de golpes de Estado
reacionários perpretados na África ocidental e central demonstram claramente […] a
relação existente entre os interesses do neocolonialismo e da burguesia local.
(N’KRUMAH, 1975, pág. 8)
Neste sentido, o capital estrangeiro, americano e europeu, investido em elites locais,
crioupara as mesmas uma falsa ideia de poder, uma vez que eram facilmente substituídas pela
influência de empresas das antigas dominações europeias. Empresas estas dedicadas a
extração de diversos tipos de recursos naturais, principalmente minérios. Uma questão
problemática e diretamente ligada ao assassinato de Patrice Lumumba do Congo, pois a
90
província de Katanga era um território cobiçado por belgas e franceses como setor energético
e mineral.
Na administração de Nkrumah no Gana a posição perante a exploração do capital
estrangeiro era de combate, e teve como objetivo impedir que a força financeira de nações
como Estados Unidos, França e Inglaterra empobrecesse a economia não somente do país
como de nações com menos condições. Nesse sentido, a política de não alinhamento
promovida por países africanos independentes, e reforçada pela Conferência de Bandung, que
teve como motivação central a defesa dos interessesde países com menos poder de capital, em
outras palavras criar mecanismos de poder para os mesmos.
A exploração neocolonial dividia-se entre as políticas econômicas de mercado e a
extração desenfreada de matérias e fontes de energia do continente. Mercados financeiros e
bancos passaram a ser agentes do sistema neocolonial, invadindo de forma predatória as
antigas coloniais no continente usando como instrumento de diálogo consórcios financeiros e
industriais de bancos e organizações. N’krumah (1982) exemplifica este fato com as ações da
Oppenheimer, Hambro, Drayton, Rothschild, D.Erlanger, Gillet, Lafond,Robiliard, ligadas a
países como Reino Unido, França, Estados Unidos, Alemanha entre outros.
Entre o final da década de 1940 e metade da década de 1950 a população africana era
estimada em 280 milhões de pessoas (oito por cento da população mundial), distribuída em
regiões com reservas minerais duas vezes maiores que das Américas e leste europeu em cerca
de dois bilhões de toneladas métricas, além de reservas de carvão, petróleo e quarenta por
cento potenciais de energia elétrica mundial. Contudo, em “Neocolonialismo: Ultimo Estágio
do Imperialismo” Kwame Nkrumah (1982) ressalta que detendo 53 dos mais importantes
minerais e metais básicos do mundo, nenhum destes bens estavadisponível para o a
industrialização e desenvolvimento endógeno do próprio continente africano .
Em síntese, no final da década de 1950 foram contabilizados os seguintes produtos
explorados em benefício de países internacionais, segundo N’krumah (1982): Grã- Bretanha–
minério de estanho e concentrados, minério de ferro, manganês, cobre, bauxita, minério de
cromo, amianto, cobalto e antimônio; França- algodão, minério de ferro, zinco, chumbo e
fosfato; Alemanha- artigos de cobre importados, minério de ferro, minério de chumbo,
minério de manganês, minério de cromo e fosfóritos.
91
Ao mesmo tempo, crescia o perigo da existência de uma falsa proposta de cooperação
internacional baseada na ideia de desenvolvimento dos setores financeiros, educacionais e
culturais. Todavia, os países não alinhados ao sistema capitalista as viam como um método
eficaz para conter o desenvolvimento real das nações independentes. Nas regiões não
independentes os enfrentamentos destas práticas duvidosas de cooperação exigiram um
verdadeiro elenco de forças anticoloniais denominadas por algumas lideranças pan-africanas
por “resistência”, ou formas de resistência. A ideia de resistência econômica, política e
cultural são por diversas vezes confundidas com um posicionamento de refúgio estático,
entretanto, no sentido social e histórico do Pan-africanismo a resistência é sinônimo de
movimentação, persistência, dinamismo e criatividade.
Na perspectiva imperialista todas as atividades políticas, econômicas, religiosas e
artísticas ligadas à unidade africana eram ameaças ao sistema, pois colocavam em risco os
interesses múltiplos de exploração. Sobre a exploração das riquezas, Amílcar Cabral entendia
que a resistência econômica era uma forma de assegurar vida do trabalhador e dos bens da
terra, nesse sentido, em seu conjunto de documentos denominado “Unidade e Luta”, Cabral
(1974, pág. 158) afirmava que era fundamental:
[…] destruir tudo, completamente, o sistema econômico colonial português na nossa
terra […] construir a nossa própria economia. […] em Cabo Verde, o nosso objetivo
é destruir principalmente a exploração no nosso povo pelo regime de grandes
propriedades de terras ao nosso povo. O nosso povo tem que ser rendeiro, o quer
produza ou não, tem que pagar a renda, vivendo na miséria, submetido à fome e sujeito a ser vendido ou contratado como trabalhador forçado para outras colônias.
Devemos destruir isso.
A resistência, no pensamento de Amílcar Cabral (1974, pág. 136) resumia-se em uma
prática comportamental,formada por um conjunto de atitudes cotidianas contra os abusos da
colonização, e em favor da independência e autodeterminação do povo de Cabo Verde e
Guiné Bissau. A solidariedade foi considerada por Amílcar Cabral o fundamento das formas
de resistência, pois a mesma possibilitava a consciência socialda necessidade de união entre
Guiné Bissau e Cabo Verde.
Temos que estar vigilantes para não permitirmos a ninguém dividir o nosso povo.
Temos que definir claramente, como vos disse o que é o povo, na fase atual da nossa
história. Eu repito: o povo é todo o filho da nossa terra, na Guiné e Cabo Verde, que
quer correr com os colonialistas portugueses, mais nada. Ele quer, ele é o nosso
povo, e nós não queremos que ninguém divida o nosso povo. Vigilância porque
quem divide o nosso povo, ele é pior que o inimigo tuga (português) que de certeza
se vai embora (CABRAL, 142, pág. 1974)
92
Amílcar Cabral considerava que o sentido da União era sua potencialidade não
somente nacional como regional e continental. Na prática, Amílcar Cabral manteve ativa e
contínua suas relações com Angola, onde foi um dos fundadores do Movimento de Libertação
de Angola (MPLA), da Frente de Libertação de Moçambique-FRELIMO em Moçambique, e
de movimentos de libertação na Argélia, Tanzânia, Senegal, Congo Brazzaville, Costa do
Marfim, Zâmbia, Quênia, e nas articulações que criaram a Organizações da Unidade africana
criada em 1963.
Cabral dividia a resistência em quatro campos, o político, econômico, cultural e o
armado. A resistência política baseava-se na União Nacional, no isolamento político do
governo colonial português, e no empenho resignado e convicto da vitória política.A
resistência cultural tinha como objetivo fundamental acabar com a ideia de divisão entre uma
cultura de massas e a cultura das elites assimiladas.
O colonialismo construiu por assim dizer, uma mentalidade colonial de hierarquia
reafirmada pelo neocolonialismo, e por isso era necessário quebrar barreiras étnicas para
melhor integração nacional, e de reconhecimento do papel popular da educação através do
acesso a informação, do conhecimento histórico e das artes populares como as mornas e
coladeiras, ritmos musicais típicos do Cabo Verde. Amílcar Cabral (1974) compreendia que
historicamente oarquipélago de Cabo Verde, povoado em sua maioria por etnias da atual
Guiné Bissau, era de conhecimento de povos africanos muito antes da chegada de Portugal no
século XV e por esses fatores não poderia ser considerado uma mera invenção do
colonialismo português.
Desde quando a fundação do PAIGC, em 1956, Amílcar Cabral comprometeu-se a
trabalhar sob a lógica do diálogo político com a administração colonial portuguesa, por saber
que um possível conflito armado exigiria um trabalho de treinamento militar, financiamento e
aquisição de poder bélico e alianças transcontinentais. Mudar a opinião pública internacional
contra a violência do colonialismo português foi uma estratégia utilizada pelo PAIGC para
tentar isolar Portugal em termos políticos internacionais enquanto guineenses e cabo-
verdianos recebiam formação militar e intelectual para a luta revolucionária por
independência e unidade nacional.
A partir de 1960 Amílcar Cabral começa uma série de tentativas de diálogos com
Portugal, objetivando a libertação nacional de Guiné Bissau e Cabo Verde, sem respostas cria
93
a Frente Revolucionária africana para a Independência Nacional das Colônias Portuguêsas
(FRAIN) e o jornal Libertação. Em 1961 a repressão colonial do governo português do
presidente Salazar provocou uma grande chacina aos trabalhadores portuários da região
guineense de Pidjiguiti, que reivindicavam melhores condições de trabalho, conhecido como
Massacre de Pidjiguiti. Nesse mesmo ano o PAIGC inicia treinamentos militares na Argélia,
Rússia e China. Em concordância com o historiador Joseph Ki Zerbo (1972) podemos afirmar
que governo colonial de Salazar foi um misto de hipocrisia, violência, sadismo e auto-
satisfação.
Nos anos de 1961 e 1962 Amílcar Cabral apresentou comunicações às Organizações
das Nações Unidas sobre a situação colonial, mas não obteve ações concretas como desejava.
Completamente ignorado pelas tentativas de diálogo com o governo português, o PAIGC fez-
se ouvir em 1963, ao desencadear a luta armada pela libertação nacional a partir do Sul de
Guiné Bissau com o objetivo de ampliá-la ao arquipélago de Cabo Verde. Os principais
aliados para resistência do PAIGC foram Sekou Turé de Guiné Conacri e Kwame Nkrumah
do Gana.
A resistência cultural, na perspectiva de Amílcar Cabral, nascia à resistência armada.
Enquanto Portugal recebia apoio tanto da OTAN quanto do governo sul africano o PAIGC
recebeu apoio internacional da URSS, China e das nações independentes Guiné Conacri,
Gana e Argélia, naquele momento Kwame N´krumah defendeu que: […] chegou à altura de
passar a fase decisiva do processo revolucionário, em que a luta armada que há pouco
começou deve ser agora intensificada e coordenada a níveis estratégicos e táticos
(NKRUMAH, 1975, pág. 8).
O objetivo da luta armada foi defender a dignidade africana e abrir um caminho de seu
progresso nacional. Sob uma justificativa racional de continuidade histórica e de destruição
das ideologias coloniais, Amílcar Cabral (1974, pág. 234) afirmava que:
Hoje pegamos de novo em armas, continuando a luta de nossos antepassados, que
não queriam perder o direito de decidirem eles mesmos da sua vida. Em Cabo
Verde, podemos interpretar a nossa luta, ainda hoje política, mas possivelmente
amanhã armada também, como o prolongamento da resistência daqueles africanos filhos da Guiné ou de qualquer outro lado da África perto da Guiné, que foram
levados para Cabo Verde como escravos, e que, como escravos, resistiram,
sofreram, negando, lutando contra a dominação dos escravizadores tugas
(portugueses) que os venderam na América, no Brasil e noutras parte do mundo,
como se fossem bichos.
94
O conhecimento histórico africano foi empregado não somente para os disrcursso
politicos de Cabral, mas para as diretrizes do partido e para a conscientizacão total das razões
objetivas da luta de libertacão. De forma mais ampla a história aliou-se a cultura como
potênciais forcas de resistência.
2.10 Resistência e Conhecimento Histórico
Amílcar Cabral compreendia a educação como parte de um processo de resistência ao
sistema colonial. Criou uma escola em Bissau denominada LAR, onde foi responsável por
momentos de recreação com crianças, aconselhamentos e formação política para jovens e
adultos. Na sua perspectiva a história possibilitava conhecer a extensão dos desequilíbrios
sociais e a consciência social mais profunda sobre a necessidade das lutas pela libertação, nas
palavras de Cabral (1978, pág. 180):
No fundamento da libertação nacional reside no direito inalienável que assiste a cada
povo, independente das formulações adotadas pelo direito internacional de ter sua própria história. O objetivo da libertação é, portanto a reconquista desse direito
usurpado pela mineração imperialista.
A identificacão das elites caboverdianas, principalmente, com os portugueses era um
fato objetivo, e Amílcar Cabral percebeu e criticou isto. Na perspectiva de Amílcar Cabral
(1978, pág. 139) a manipulação das informações sobre o processo histórico e social de
povoamento das ilhas de Cabo Verde gerou uma série de mitos sobre raça e cultura,
hierarquia racial e cultural em Cabo Verde, através deste tipo de perspectiva a formação
escolar em liceus de administradores poderiam assegurar os interesses coloniais.
Amílcar Cabral estava ciente de que a resistência cultural deveria renovar a cultura no
continente africano. Entendendo que a resistência Cultural estava atrelada a educação e
consciência histórica da africanidade negada pelo sistema colonialista. Neste sentido, Amílcar
Cabral iniciou um programa denominado Reafricanização de Espíritos e mentalidades, que
consistia na desconstrução dos valores coloniais instaurados nos propósitos alienantes da
educação colonial:
Revela-se assim indispensável uma reconversão dos espíritos – das mentalidades-
para sua verdadeira integração no movimento de libertação. Essa reconversão –
ReÁfricanização, no nosso caso – pode –se verificar –se antes da luta, mas só se
completo decurso desta, no contato quotidiano com as massas populares e na
comunhão de sacrifícios que a luta exige. (CABRAL, 1978, pág. 227)
95
Entre 1955 e 1960 Amílcar Cabral formou um centro de estudos sobre história da
África em Guiné Bissau, em que eram trabalhados temas como civilizações africanas, cultura
e formação política, sobre as civilizações africanas Amílcar Cabral (1978, pág. 321) que:
De Cartago ao Zimbábue, de Meroe ao Benin e a Ifé, do Saara ou de Tombouctou a
Kilwa, através da imensidão e da diversidade das condições naturais do continente, a
cultura dos povos africanos é um fato indismentível, nas obras de arte como nas
tradições orais [.] nas concepções cosmogonias como na musica e nas danças [...] no
equilíbrio dinâmico das estruturas política e sociais que o homem africano soube
criar.
Na visão de Kwame N’krumah o Renascimento africano viria ser uma realidade a
partir da renovação do conhecimento histórico. A história na perspectiva de N’krumah
ocupava um lugar teórico fundamental dentro da lógica política e filosófica das lutas de
libertação, e na própria Unidade africana. Para N’krumah o colonialismo construiu um: [...]
vazio perfeito através da linha traçada atrás da nossa história...Como se tivesse
deliberadamente querido reprimir todos os vínculos entre o passado e o presente que
poderiam ter- nos ajudado a retomar a marcha. (NKRUMAH,1977,pág. 123)
No livro Conscientism escrito por Kwame Nkrumah, o autor propôs uma teoria
política a partir do conhecimento histórico e da função estratégica do historiador. O
historiador Thiermo Bah destaca alguns dos elementos definidos por Nkrumah como
fundamentais para o trabalho do historiador enquanto formador de consciências (BAH, 2009,
pág. 210):
(a) denunciar os mitos perversos que negava à África qualquer historicidade;
(b) desconstruir o lugar da história da África como anexo da História europeia;
(c) considerar a sociedade africana como processo de sua própria integridade;
(d) a importância da história para o renascimento africano ; (e) relacionar a forma de escrever a história, a história e a ideologia;
(f) engajamento social do historiador;
As teorias da antropologia sociais europeias defendidas por essas elites africanas
ignoravam o passado do continente africano anterior à colonização, o que tornava a
reformulação dos conteúdos de manuais uma emergência. Na compreensão de N’krumah
(1977, pág. 65): sobre o tema:
Foi durante o período chamado aberturada África que surgiu uma escola de
antropólogos imperialistas, como lhes chamaram alguns fervorosos nacionalistas
africanos, escola cuja descendência tem sobrevivido até os nossos dias. Assuas obras
pretendem provar a inferioridade do africano. Atribuem tudo o que de bom se opõe
encontrar em África à influência de certo grupo pretensamente superior eu teria
vivido no continente, ou a algum povo não africano.
96
Kwame N’krumah defendeu a reformulação dos conteúdos nos livros didáticos, pois
entendia que a cultura e a educação colonial influenciaram a história antiga, principalmente na
negação da origem das civilizações africanas como a do antigo Egito:
Evita-se pensar que a África tem podido exercer qualquer influencia civilizadora
sobre outros povos, ou nega-se essa influencia. […] Certos historiadores e
antropólogos pensam que a civilização surgiu simultaneamente na China e em
África. “Mas há ainda muitas investigações a realizar para descoberta de novos
dados que permitam determinar a proto-história do homem no continente africano .”
Está confirmado que a cultura europeia tem as suas raízes nas antigas civilizações do
Vale do Nilo. “Geógrafos e cronistas antigos falam de Estados e Impérios africanos
organizados que existiam e um e de outro lado do continente (NKRUMAH,
1977:16)
Na nossa perspectiva, a história da África durante o período das independências
passou por um processo de valorização patrimonial. Esta valorização da história, enquanto
patrimônio nacional e continental foi é uma continuação renovada dos pensamentos
esboçados no final do século XIX por Martin Delany, Antenor Firmin e Edward Wilmot
Blyden, assim como os de WEB Du Bois e Marcus Garvey nas primeiras décadas do século
XX.
Conclusões
Os Grupos Motores determinaram uma dimensão social e popular ao Pan-africanismo,
assumindo-o como caráter político central. A educação popular ocupou posição proeminente
na visão de lideranças de movimentos nacionalistas. Estes movimentos foram fundamentais
durante o processo nacionalista anticolonial das décadas de 1950 e 1960. O posicionamento
de Amílcar Cabral e Kwame N’krumah foi de valorização e estímulo ao conhecimento
histórico africano.
Na perspectiva do historiador Thiermo Bah (2009), Amílcar Cabral e Kwame
N’krumah possuem entre si inúmeras convergências ideológicas, principalmente com relação
à libertação, dignidade e bem estar coletivo do continente africano. Ambos exerceram uma
função fundamental na popularização da educação, aderimos à análise de Thiermo Bah sobre
o lugar da história nas perspectivas de Kwame Nkruma e Amílcar a Cabral dividiu-se entre
três bases: ponto de referência; narrativa; e análise.
97
Em 1962 em Acra no Gana foi realizado o primeiro Congresso de Áfricanistas entre
11 e 18 de dezembro, presidido pelo historiador nigeriano Kenneth Onuwuka Dikie. O
congresso contou com a participação de cerca de 500 especialistas de todo o mundo, e o apoio
da UNESCO (United Nations Educational Scientific and Cultural Organization). Este
congresso foi de suma importância para desencadear um projeto para a construção de uma
história do continente africano fora da perspectiva colonial. Segundo o historiador P. D.
Curvin (2010), o maior promotor do congresso – Kwame N’krumah – insistiu positivamente
na responsabilidade dos historiadores e do lugar do ensino de história para a construção da
unidade africana.
Os valores e legados construídos pelas civilizações africanas não foram negligenciados
pelos movimentos de libertação e independências africanas. Neste capítulo, observamos
citações sobre civilizações como o Antigo Egito e Meroé em projetos e raciocínios políticos
de Kwame N’krumah e Amílcar Cabral.
Há uma nítida continuidade de interesse pela história e historiografia africana entre o
final do século XIX e primeira metade do século XX. Na nossa compreensão, este interesse
foi fundamental para a formação de Escolas de pensamento e historiadores dedicados a
descolonização da história da África e revisão da historiografia africana, no próximo capítulo
dedicamo-nos a esta questão.
98
PARTE II HISTORIOGRAFIA ______________________________________
Capítulo 3: ESCOLAS E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
Na primeira parte desta dissertação propusemos uma reinterpretação histórica do Pan-
africanismo, e seu lugar estrutural para a constituição do nacionalismo africano
contemporâneo. Destacamos o quanto o conhecimento histórico sobre civilizações clássicas
africanas foi importante para o pensamento anti-colonial do final do século XIX e nacionalista
pan-africano da segunda metade do século XX.
Para a segunda parte desta dissertação retomamos o tema civilizações da antiguidade
africana dentro do trabalho de historiadores da África. Nossa tese é de que entre as décadas de
1950 e 1970 foi erigida uma nova historiografia africana fundamentada no Pan-africanismo e
na proposta de unidade federal africana. Este capítulo número 3 inicia a segunda parte desta
dissertação, cujo tema é História e Historiadores da África. Nosso objetivo central é
identificar semelhanças entre três gerações de historiadores da África, Cheikh Anta Diop,
Joseph Ki-Zerbo e Walter Rodney. A partir deste objetivo é de nosso interesse destacar
algumas as principais contribuições destes historiadores em relação a teoria, método,
educação e militância política.
Neste capítulo vamos trabalhar as Escolas do Conhecimento Histórico, descolonizacão
da História da África e sobre os historiadores Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo e Walter
Rodney.
3.1 Escolas e pensamento Histórico
As movimentações europeias no continente africano construíram durante séculos as
condições favoráveis para a sua divisão, dominação e exploração oficial através do Tratado de
Berlin criado por europeus no final do século XIX. A divisão do continente e dominação
colonial do final do século XIX provocaram uma séria ruptura na transmissão do
conhecimento, impactando diretamente as tradições orais e as escritas tradicionai.
Valores, tradições africanas e seus conhecimentos foram atacados no século XIX
através da desqualificação intelectual e destruição física das estruturas tradicionais de ensino
99
no continente africano. Segundo Marzrui (2010), em sociedades africanas tradicionais, o
conhecimento complexo da matemática e da engenharia, da flora e da medicina, dos mitos,
costumes e da justiça não se distinguiam da “razão, experimentação, imaginação e fé, e ao
mesmo tempo, não se reduziam às abordagens quantitativas e mecanistas”.
Neste contexto foi forjada uma escrita da história colonial, endereçada a um público
europeu, entretanto muitos africanos absorviam e reproduziam a ideia de que não tinham
história e civilizações e etc. Sobre o ensino de história, Ali Marzrui (2010) comenta que a
educação colonial teve o papel estratégico de apagamento do passado africano, negando
sumariamente a origem da população e civilização egípcia na antiguidade, provocando as
ideias de: impotência científica coletiva do continente; complexo de inferioridade técnica e de
dependência.
No final do século XIX a criação de instituições de ensino e pesquisa em territórios
africanos colonizados objetivava a ordenação e manutenção do regime de exploração colonial.
O ensino fundamentava-se em uma mensagem teológica cristã de submissão, e no treinamento
em atividades capazes de assegurar os interesses de exploração colonial, como serviços
domésticos e carpintaria. Durante as décadas de 1930 e 1940, as escolas coloniais dedicavam-
se a formação de indígenas em cargos administrativos. O historiador Boubacar Barry (2000)
destaca que havia um rígido controle nos conteúdos ensinados e na expedição de diplomas, a
maioria de professores era europeia, as formações em áreas de tecnologia e ciências sociais
foram marginalizadas.
Durante as décadas de 1950 e 1960, as primeiras escolas secundárias e universidades
na Nigéria, em Uganda, Senegal, Quênia e Gana, criaram novas desigualdades em uma
mescla de racismo e opressão econômica. No ano de 1959 em Uganda, a partir de dados
analisados por Walter Rodney (1975), para cada aluno africano o investimento era de 11
libras, indiano 35libras e europeu 156 libras, no liceu do Senegal em 1946 dos 723 alunos
somente 174 eram africanos, durante a década seguinte na Universidade de Dakar 30% dos
alunos eram africanos e 70 % franceses. Na realidade social dos territórios portugueses os
investimentos no setor educacional eram mínimos, em Moçambique, por exemplo, a
prioridade era para portugueses. A exploração do Congo no final da década de 1940 provocou
tímidos investimentos em formação educacional, entre os 18.000.000 de habitantes 16 eram
licenciados.
100
Baseado em dados cedidos pela UNESCO, Walter Rodney (1975) apresenta alguns
aspectos pertinentes sobre o acesso ao ensino na África dos anos 1960. A população de
nações africanas independentes chegava a torno de 170.000.000 de pessoas, 25.000.000 em
idade escolar, 13.000.000 sem oportunidades contra 12.000.000 com oportunidade, desse
numero cerca de 6.000.000 completam a série primária, três em cada 100 conhecem o
secundário, e 2 em cada 1.0000 ingressavam em universidades, dentro do continente como no
Gana, Ibadan, Sudão e Makerere.
O processo de transformação implantado pelos movimentos de independênciaentre
1950 e 1960 gerou grandes centros universitários no continente africano. As Universidades de
Dakar no Senegal, Makerere College de Kampala em Uganda, Gordon College de Cartum no
Sudão, Universidade de Ibadan na Nigéria, Universidade de Loranuin no Congo,
Universidade de Daar es Salan em Tanzânia e Universidade de Nairóbi no Quênia fazem parte
deste período. A perspectiva de formulação destes centros era popularizar conteúdos e
currículos de qualidade, diferentes dos gerados durante o período colonial, inadequados para a
realidade e solução dos problemas na vida africana.
Em congressos organizados por presidentes nacionalistas entre 1956 e 1965 a história
da África foi tema de especial destaque, por dois motivos principais: 1) o interesse político
cultural de construção e coesão nacional; 2) o interesse ético e educacional de historiadores
nacionalistas. Em 1956 durante o primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros,
realizado em Roma, o tema Civilizações africanas recebeu uma abrangência internacional
com a ampla divulgação da obra Nações Negra e Cultura, escrita pelo historiador senegalês
Cheik Anta Diop.
A Revista Presence Africaine organizou o Primeiro Congresso de Escritores e artistas
Negros em Roma foi organizado pela Revista Presence Africaine reuniu intelectuais
nacionalistas pan-africanos do continente e da diáspora africana. Durante o congresso foi
fundada a Sociedade Africana de Cultura, esta organização teve como objetivo promover a
solidariedade entre africanos e afrodescendentes a partir da tradução de obras e intercâmbios.
Em 1958 a Sociedade africana de Cultura tornou-se órgão consultivo da UNESCO e
promoveu em Roma o Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros.
Em 1958 foram múltiplos os esforços políticos e financeiros empregados pelo governo
independente do Gana na formulação do primeiro bloco regional de unificação política e
101
econômica. Na ocasiãofoi criada a União de Estados africanos (UEA), que para o presidente
Kwame N’krumah objetivou o apoio estratégico às lutas de libertação travadas em Guiné
Bissau pelo PAIGC de Amílcar Cabral. Kwame N’kruma e Amílcar Cabral investiram
especificamente na construção de grupos educacionais de formação política, baseados em
estudos sobre cultura, política, comportamento e história da África.
Na década de 1960 o presidente Julius Neyrere da Tanzania patrocinou em seu paíso
primeiro Congresso Internacional de Historiadores africanos na universidade de Dar El
Salaam. Esta universidade tornou-se um dos maiores centros de pesquisa do continente onde
trabalharam grandes intelectuais do mundo africano como o geografo Milton Santos (Brasil).
Durante as décadas de 1960 e 1970 aquela universidade albergou em seus programas o
historiador da GuianaWalter Rodney.
As nações africanas independentes buscaram encontrar equilíbrio entre o
conhecimento científico, artístico, filosófico e tecnológico tradicional africano, assim como de
outros povos e regiões do mundo. Esta busca de utilização do conhecimento para a construção
dos Estados Independentes foi interpretada por Walter Rodney (1975) como desenvolvimento
por contradição, uma vez que as escolas coloniais foram originalmente pensadas para a
manutenção do colonialismo, e posteriormente resignificadas pelos Estados Independentes. O
caso do Quênia ilustra esta situação:
No Quênia, pode-se dizer que o governo só construiu escolas para os africanos
depois dos anos trinta. Assim os Kikuyos os construíram próprios, fundando a
Kikuyu Indepentent Schools Association. Para recrutar professores, Peter Koinange criou o Quênia Teacher’s College de Githunguri, que mais tarde viria ter como
diretor Jomo Keniatta. Não admira, pois que essas escolas Kikuyu tenham formado
ardentes nacionalistas, nem que tenham sido suprimidas pelos ingleses depois da
revolta Mau Mau em 1952. Em 1955 só havia 35 estabelecimentos de ensino
secundário neste país de cinco milhões e meio de habitantes africanos (NKRUMAH,
1977, pág. 60).
Após os conflitos entre potências imperialistas ocidentais, denominado pelos países
envolvidos de “II Guerra Mundial”, a falta de recursos em colônias africanas levou algumas
dessas instituições de ensino à decadência. Os movimentos de libertação das décadas de 1960
e 1970 mudariam sensivelmente a função das Escolas coloniais, que passaram por processo de
Africanização. Universidades como Ibadan (Benin), Legon (Gana), Makerere (Tanzania) e
Dakar (Senegal) deixaram de ser usadas para propósitos coloniais, Ali Marzrui (2010, pág.
775) propõe duas categorias de instituições escolares: as de experiência acadêmica pan-
africana, e as nacionais de pesquisa privada ou pública.
102
Na categoria experiência acadêmica pan-africana os países africanos que mais
realizaram investimentos foram o Gana, Nigéria e Costa do Marfim, principalmente nas áreas
de ciências naturais, engenharias e agronomia. Entre os anos de 1963 e 1970 University of
East África abrangia os territórios de Uganda, Tanzania e Quenia. A University of East África
foi um conjunto de academias bem sucedidas, envolvendo Maquerere College de Uganda no
campo da medicina, a engenharia da University College da Namíbia, o direito e a economia
em Dar es Salaan, Tanzania. A academia africana de ciência do Nairóbi e o Instituto
Internacional de Ciência da Nigéria incentivaram estudantes com bolsas de pesquisa dentro do
continente em áreas técnicas e científicas.
As escolas africanas tornaram-se grandes centros de pensamento e pesquisa,estruturas
que subsidiaram o trabalho científico, educacional, a formulação e formação política. Os
estudos técnicos para a produção de gás combustível, infraestruturas (esgoto, luz, água),
transportes e industrialização eram preocupações coexistentes com as lutas contra o
colonialismo e o neocolonialismo. Os estudos no campo das ciências humanas também
tiveram importância e atenção de presidentes e lideranças de partidos políticos, como vimos
no capítulo anterior. A História da África precisava ser descolonizada para libertar a memória
africana, encarcerada pela educação colonial.
Joseph Ki Zerbo (1972) comenta que entre as décadas de 1960 e 1970 o Instituto de
Estudos africanos do Gana e as universidades de Ibadan e Kaduna descobriram e trabalharam
em centenas de documentos Haussa (nordeste da Nigéria) sobre a origem dos reinos dos
Mossis.Os Historiadores nacionalistas foram responsáveis por transformações na construção
do conhecimento histórico e historiográfico africano
No seio de universidadesde Portugal, França e Bélgica, estudantes africanos
imigrantes organizaram-se em associações e movimentos nacionalistas. Um verdadeiro senso
de justiça, de consciência, de caráter mobilizou estudantes a questionarem a postura
imperialista e eurocentrada dessas universidades. No continente, as Escolas de conhecimento
histórico começaram a ser organizadas no final da década de 1940 e início da década de 1950
por pesquisadores que retornaram de suas formações na Europa e Estados Unidos. As Escolas
africanas que mais se destacaram nas ciências sociais e econômicas foram as de Dakar no
Senegal, Ibadan na Nigéria e Dar Es Salaan na Tanzania. Diversos historiadores especialistas
em África articularam-se em mais de uma Escola, Cheik Anta Diop do Senegal trabalhou na
103
Universidade de Dakar e na Universidade do Cairo, Walter Rodney da Guiana trabalhou na
Universidade de Dar Es Salaan e de Dakar, por exemplo.
Entretanto, em um contexto onde as colônias eram consideradas como vazios
intelectuais, os historiadores coloniais continuaram a ignorar e desqualificar os trabalhos de
historiadores africanos. As Escolas e historiadores da África assumiram o compromisso de
reescrever a história da África.O professor Boubacar Barry (2000) comenta que as diferenças
linguísticas foram sobrepujadas pela consciência social de reescrever a história, e a escola de
Dakar é um exemplo importante nesse segmento.
A escola de Dakar no Senegal tem sua história interligada ao Instituto Francês da
África Negra e do Departamento de História da Universidade de Dakar. O objetivo da
Universidade de Dakar era a formar elites locais, mas com a independência do Senegal no
início da década de 1960 e a influência literária do movimento da Negritude, a instituição
assumiu uma postura progressista em relação aos interesses pelo autodesenvolvimento e
preservação dos patrimônios materiais e imateriais africanos.
Com a independência do Senegal Leopold Sedar Senghor, ex-militante de
organizações de estudantes africanos na França, e uma das mais conhecidas referências do
movimento da Negritude, assumiu a presidência da República do Senegal. O movimento da
negritude ocupou papel importante na militância de uma identidade africana e na luta conjunta
entre africanos e diaspórico no mundo.Todavia, na visão crítica de historiadores e
pesquisadores como Boubacar Barry (2000), Joseph Ki Zerbo (1972), Cheik Anta Diop
(1954) e Femi Ojo Ade (2006) faltou mais posicionamento político ao movimento da
Negritude, e,à Leopold Senghor, um projeto anticolonial de governo sob o respaldo de uma
agenda educacional realmente pan-africana.
Para historiadores nacionalistas militantes as Escolas tornaram-se setores estratégicos,
porque possibilitavam a sobrevivência da palavra e do corpo. Enquanto as ruas, sindicatos,
marchas e grupos secretos serviram de base prática para conscientização e protesto, eram elas
que nutriam o seu propósito da ciência e da pesquisa. Historiadores como Joseph Ki-Zerbo,
SKB Asante, Walter Rodney e Cheikh Anta Diop envolveram-se em partidos e movimentos
políticos anticoloniais, assim comoematividades sociais comunitárias nenhum deles, não
ficaram fechados em um gabinete pensando como escrever sobre um ou outro tema.
104
Por um lado os historiadores elevavam a história da África a uma posição de
proeminência e valorização em que as civilizações incorporavam-se ao legado e continuação
de valores e cultura. Por outro lado, presidentes como Leopold S. Senghor advogavama
função paternalista da Europa e a superioridade de suas civilizações em relação à África.
Boubacar Barry lembra-nos que Senghor era “partidário a mestiçagem, que para ele era o
melhor meio de chegar à civilização do universal” (BARRY, 2000, pág. 21).
Na Europa, muitos estudantes africanos bolsistas em universidades perceberam o jogo
político de alienação eurocêntrica, e alguns reagiram através da militância politica e produção
científica, como Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo. Como comentado, os desafios do
historiador da África foram múltiplos, principalmente no que se refere ao eurocentrismo como
colonizador da história africana. O Europocentrismo, ou paradigma eurocêntrico, determina o
continente europeu como referência universal para toda a humanidade. O eurocentrismo é
muito evidente no ensino de história, mas opera em todas as áreas da atividade humana.
Enquanto estudante africano em intercâmbio na França, Cheikh Anta Diop interessou-
se pelo estudo de história como forma de deslegitimar o colonialismo, e lutar pela libertação
imediata do Senegal e de todo o continente. Cheik Anta Diop e o historiador AbdulayLy
foram asprincipais referências da primeira geração da escola de Dakar. Ambos foram punidos
pelo governo senegalês de Senghor enão tiveram a oportunidade de lecionar história na
universidade de Dakar. Na perspectiva de Boubacar Barry (2000, pág. 37), a postura de Cheik
Anta Diop foi de ruptura com a historiografia colonial, vendo a história como ferramenta de
libertação africana.
Na Escola de Dakar, Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter Rodney da Guiana
edificaram um escopo epistemológico fundamental àconstrução do conhecimento histórico e
historiográfico africcano. Cheik Anta Diop publicouNações Negras e Cultura de 1954, Joseph
Ki Zerbo História da África Negra em 1969 e Walter Rodney, escritor de de Como a Europa
Subdesenvolveu a África, de 1972.Dividimos em quatro campos os desafios enfrentados pela
historiografia africana entre as décadas de 1950 e 1970. Descolonizar a história da África,
desenvolver uma crítica teórica as ideologias coloniais, construir uma concepção de história
da África e explorar suas dimensões pedagógicas, politicas e temáticas. Abordamos a seguir
estes desafios mesclados à biografia de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo e Walter Rodney.
105
3.2. Descolonização da História
Nas décadas de 1950, 1960 e 1970 historiadores da África optaram pela utilização das
palavras sociedade, tradição, história e cultura no singular. Este foi um posicionamento
afirmativo poruma matriz, por uma perspectiva de uma unidade africana. Coube aos
historiadores da África desconstruir mitos sobre a inexistência de uma história própria do
continente africano. ParaKi Zerbo e Boubou Hama (2010) a história tem seu lugar nas
sociedades africanas, e os africanos tem consciência de serem agentes da sua própria história.
Quem pensa que a história da África iniciou-sedo contato de africanos comasiáticos, árabes e
europeus está completamente equivocado.
A história enquanto evento social interpretado, dinamizado, analisado, divulgado e
sistematizado pelo historiador ocupou um espaço de fundamental importância no contexto
africano de libertação colonial. Ali Marzrui (2010) orienta-nos a perceber que durante a
primeira metade do século XX, a história e outras ciências sociais não derivam do sistema
colonial, elas nascem e originam-se, sobretudo de valores e tradições africanos.
Os achados arqueológicos, principalmente de fósseis, no continente africano a partir
da década de 1970 revelaram quea vida humana começou nas regiões da Bacia do Chade,
Vale do Olmo, Etiópia e Quênia há 120.000 anos. Somente 50.000 anos depois se inicia um
movimento de dispersão da África para outros continentes, Europa, Ásia e posteriormente
América. De acordo com o Congresso de Organização do Genôma Humano realizado em
2001, os europeus modernos descendem de africanos que migraram há 25.000 anos a partir de
seu referencial para o norte do Mar Mediterrâneo.
A partir Com base nos trabalhos do historiador Cheik Anta Diop (1979), durante o
período da proto-história (pré-história) ocorreram diversas migrações da região dos grandes
Lagos para a Bacia do Nilo. Estas populações migradas iniciaram a civilização do antigo
Egito, a partir do século 16 a.C. as invasões persas na região forçaram esta população a se
dispersar para diversas regiões do continente e desencadear outras civilizações como Gana,
Nok e Zimbábue. Tais teses lançadas por pesquisadores da segunda metade do século XX
foram confirmadas através do avanço dos sistemas de datação. Nas décadas de 1940 e 1950 o
Carbono 14 foi o elemento básico para a datação, compartilhando função importante com
estudos interdisciplinares nos campos da linguística,envolvendo tradições orais e escritas.
106
As tradições orais africanas foram desqualificadas enquanto confiáveis pelo ocidente
europeu. Contrariando esta perspectiva, historiadores e especialistas em tradição oral como
Joseph Ki Zerbo, Boubacar Barry ,Boubou Hama, Niane Djibril Tamsir e Amadou Hampate
Ba especializaram-se no cruzamento de fontes, conexões de metodologias e pela
interdisciplinaridade. Realizaram trabalhos importantes utilizando as tradições orais como
fontes primárias, orientação arqueológica e aporte fundamental à pesquisa histórica e o seu
ensino. Nas décadas de 1950 e 1960 pesquisadores realizaram verdadeiras proezas no registro
de tradições orais, Joseph Ki Zerbo e Amadou Hampaté Ba (2010) relatam suas frustrações
com a morte de um ancião sem o correto aproveitamento de sua “biblioteca mental”, de seus
conhecimentos do tempo e do espaço dentro de uma dimensão africana, pois essas pessoas
eram verdadeiras memórias vivas.
O racismo foi o agente motivador das críticas à oralidade africanas formuladas pelas
academias europeias. Foi com indignação que Amadou Hampaté Bâ (2010, pág. 169)
percebeu que acadêmicos europeus passaram a alegar deliberadamente que povos sem escrita
não possuíam cultura. Boubacar Barry orienta-nos a entender que a as tradições orais
africanas eram preservadas, construídas e divulgadas por verdadeiros tradicionalistas, pessoas
iniciadas em escolas especializadas em histórias sobre famílias, dinastias, contextos sociais e
processos de migração.
Os tradicionalistas africanos divulgavam seus conhecimentos e ideias através de
narrativas da história e da animação cultural. Eram muitos os contadores de história, em
ambientes predominantemente coloniais, e sua importância foi quantitativamente ampliada.
Entretanto, somente os contadores de história com formação tradicional (iniciados nas Escolas
Tradicionais) seguiam um estatuto de princípios éticos, que serviam para trabalhar com
informações, conhecimentos e técnicas de narrativa.
De acordo com Amadou Hampate BA (2010) os contadores de história tradicionalistas
tem um compromisso com valores jurídicos e ancestrais, através dos quais Estados, ou
famílias, e pequenas cidades mantinham seu patrimônio vivo, sabido e reconhecido. Esses
sujeitos mantem o “contar história” através de seus instrumentos musicais, guitarras, koras,
tambores ,marimbas e timbres de voz dos mais variados.
O ofício destes tradicionalistas representava instituições dentro de lógicas políticas,
religiosas e econômicas. O prof. Boubacar Barry comenta que o dom da palavra, estruturas de
107
mediação e educação foram três das características implícitas ao trabalho dos tradicionalistas.
Na opinião do prof. Barry o islã e o colonialismo comprometeram o trabalho dos
tradicionalistas por motivos teológicos e políticos, em relação ao islã: Em todo caso, as
tradições muçulmanas tendem a ocultar o passado pagão e a ligar os líderes muçulmanos
fundadores de teocracias muçulmanas dos séculos XVII-XVIII e XIX a ancestrais
muçulmanos próximos dos companheiros do Profeta (Mohamed )(BARRY, 2000, pág. 13).
Sobre o colonialismo o professor observa que: […] não analisaram suficientemente a
lógica do discurso histórico que teria sido transmitido com o objetivo bastante preciso contar
a história (BARRY, 2000, pág. 5). No Centro Oeste africano, as narrativas dos tradicionalistas
contadores de história Mandinga possibilitaram grandes avanços em estudos sobre as
migrações do antigo Egito para a Costa Oeste africana. Através de instrumentos musicais
como o Korá e seus cânticos, os tradicionalistas: [...] ensinam sobre a origem das coisas.
Essas narrativas trazem dados preciosos sobre as civilizações mandinga, ao mesmo tempo em
que revelam os laços indiscutíveis entre estas e as civilizações do antigo Egito (BARRY,
2000,pág. 8).
Muitas das evidências do antigo Egito enquanto uma civilização negra africana foram
ignoradas, desqualificadas e até escondidas. Dentro desta problemática, concordamos com
opesquisador Teophile Obenga (2010), quando este afirma que as regras gerais da
historiografia relativas ao cruzamento de diferentes fontes do conhecimento e integração
interdisciplinar de métodos é uma contribuição africana a ciência e a consciência historica.
A utilizacão das ciências físicas modernas com as medidas de radiatividade, como no
caso do carbono 14, permitiram a construção de cronologias e estudos sobre o passado e
origem da humanidade em milhões de anos, o que metodologicamente foi decisivo. Na
perspectiva de Theóphile Obenga a egiptologia enquanto “arqueologia histórica e decifração
de textos” (2010) foi pouco usada pela historiografia africana, ela é de extrema importância
para o estudo da língua do antigo Egito, denominado CIKAM.
O CIKAM foi utilizado durante 5.000 anos por meio da escrita de signos hieroglíficos,
da escrita cursiva dos signos, hierática e a sua simplificação, a escrita demótica. O estudo do
CIKAM para o historiador é a possibilidade de conhecer mais e melhor o espírito e as ideias
de um povo. Theóphile Obenga sublinha o fato de que a difusão do CIKAM no que são hoje o
Quênia, Nigéria, Serra Leoa, Libéria, Camarões e Mali é importante, pois há :
108
[...] possibilidade de ver nascer e se desenvolver uma epígrafia absolutamente
desconhecidas e que até aqui e cujo objeto será o estudo rigoroso das relações
mútuas entre famílias escriturais da África Negra. O historiador tiraria proveito
disso, já que, através da história da escrita e das decifrações surge a história dos
homens responsáveis por essas grafias. O exame dos sistemas gráficos é em si
mesmo uma fonte preciosa de história. (OBENGA, 2010, pág. 68)
Para Obenga (2010) o conhecimento da CIKAM é fundamental na desmistificação das
ideias francamente racistas sobre a origem, povoamentoe conexão do Vale do Nilo com todo
o continente africano. Muitas escolas europeias assumiram um posicionamento criminoso ao
ignorar regras gerais da historiografia e as bases da historiografia africana, pois formularam
uma prática científica de exclusão e corrupção de informações. Neste sentido, é relevante a
análise de Obenga de que a historiografia europeia tornou a história da Europa “toda à
história”.
No campo da história e especificamente sobre o tema civilizações, as teorias raciais
foram utilizadas como ideologias para afastar as civilizações do Vale do Nilo de outras
regiões do continente africano. Esse afastamento parte do princípio de que os egípcios eram
civilizados enquanto as demais regiões do continente africano mergulhavam em práticas
culturais primitivas e selvagens.Nesta linha de pensamento, os egípcios da antiguidade
passaram a ser classificados como brancos, asiáticos, semitas, mestiços... e até seres de outros
planetas!
Cabe lembrar que França e Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX efetuaram dezenas
de pilhagens materiais durante seguidas invasões ao Egito. A literatura de Alan Quatermain e
Indiana Jones, por exemplo, que encantaram plateias do mundo inteiro através do cinema
nada mais são que relatos coloniais de viajem, onde a ficção está em sua boa vontade de
“preservar a história da humanidade das acões de selvagens”. O pesquisador e artista plástico
Nur Ankh Amen (1999) nos lembra que ano de 1798 sob a coordenação de Napoleão
Bonaparte 167 cientistas foram recrutados na missão do general para África, Cairo. O quê
levaria uma equipe internacional de cientistas para um lugar considerado inóspito e selvagem?
O quê esses homens e mulheres arrancaram do Eguto? Como esses documentos foram
absorvidos pelos cientistas e pelas igrejas cristãs ocidentais? O quê realmente sabemos é que
o século XIX foi de efervescência das teorias raciais e seu papel no direcionamento
disciplinar da História, da linguística e da Antropologia.
Walter Rodney (1975) observa que no final do século XIX acadêmicos europeus
tentaram desesperadamente negar as experiências dos Yorubas, herdeiras da civilização antiga
109
de Nok, atual Nigéria e Benin. A civilização de Nok sofisticou consideravelmente técnicas de
trabalho com fornos de altas temperaturas para fundição e manipulação de metais como ferro,
por motivações racistas acadêmicos ingleses e franceses alegaram que todo este conhecimento
foi levado à Nigéria e ao Benin por gregos, cartaginenses e portuguêses. Na perspectiva
criminosa destes cientistas, os africanos em Nok não tinham conhecimentos complexos e
estruturas institucionais para tal.
Ali Marzui colabora com nossa reflexão ao afirmar que na concepção de pensadores
europeus no final do século XIX o processo de construção de uma civilização ocorria através
do posicionamento imperialista de um povo perante outros povos e territórios. Isto fica muito
nítido na concepção de civilização dentro da mentalidade de Friedrich Engels, no texto
“Construção da Nação e Evolução das Estruturas Políticas” (MAZRUI, 2010, pág. 27):
[…] a conquista da Argélia já forçou os bey de Túnis e de Trípoli, e inclusive o
imperador do Marrocos, a se engajarem na via da civilização […] .E, sobretudo, o
burguês moderno – com a civilização, a indústria e as luzes, pelo menos relativas, de que está cercado – será preferível ao senhor feudal ou ao bandido salteador, bem
como ao bárbaro estado social ao qual pertencem.
A educação e o ensino de história foram profundamente afetados por estas ideologias
racistas sobre civilizações. O ensino de história na perspectiva colonial prezava
primordialmente pela exclusão da história da maioria da população, caracterizadas pela
subordinação e o desprezo ao próprio passado. Neste sentido, a história foi completamente
manipulada enquanto ferramenta de privilégios do poder colonial e suas elites locais
marionetes. No final do século XIX na diáspora e no continente africano os livros didáticos
de história foram diretamente influenciados por teorias racistas sobre a origem do antigo
Egito.
Entretanto, neste período autores africanos e da diáspora, como Martin Delany e E.W.
Blyden e Souza Carneiro, e mesmo os ingleses John Baldwin, Gerald Massey e David Mc
Ritchie esboçaram suas reflexões sobre a influência das civilizações africanas do Vale do Nilo
sobre a Grécia e Europa de forma geral. Wole Soyinka ajuda-nos a perceber a posição
totalmente adversa de Edward Wilmot Blyden, reitor do Libéria College, sobre as relações
entre educação, civilização e África:
[…] a história do homem negro desde a antiguidade, Edward Blyden publicou suas
conclusões afirmando a anterioridade de uma civilização negra no Egito e provando que Heródoto era um comentador digno de fé do que seus anotadores europeus, os
quais, além de não serem contemporâneos dos acontecimentos escritos, tinham
110
restituído o seu saber entregando-se a preconceitos racistas (SOYINKA, 2010, pág.
632).
No final da década de 1940 o uso das ciências exatas possibilitou ao Dr.Diop dosar
taxas de melanina e queratina em corpos mumificados com a utilização de carbono 14, com
estes corpos Diop argumentou sobre a identidade e a origem étnica e cultural africana do
antigo Egito. Na primeira metade do século XX,Aimé Cesaire, um dos principais
articuladores do movimento da Negritude, via que sobre civilizações africanas o trabalho do
historiador Cheikh Anta Diop foi exemplar.
Segundo Cesaire (1978), Diop conseguiu desmontar os mecanismos coloniais racistas
da historiografia, da sociologia e da psicologia através de seu livro Nações Negras e Cultura,
publicado em 1954 pela editora Présence Áfricaine. Diop conseguiu influenciar um sentido
politico revolucionário para o ensino de história da África nos Estados africanos
independentes.
A partir da segunda metade do século XX, pesquisas no campo da arqueologia e da
genéticades construíram cientificamente inúmeras teses e teorias pseudocientíficas sobre raça.
As ideias racistas sobre superioridade e inferioridade racial ancoraram-se nas argumentações
dos teóricos poligenistas sobre a origem da humanidade. De acordo com os poligenistas a
suposta superioridade e inferioridade entre raças explicava-se através de diferenças genéticas
entre povos que surgiram em diferentes momentos e locais do planeta terra.
Pesquisadores no continente africano e em sua diáspora nas Américas e Europa
dedicaram-se a hipótese monogenista, baseadas em evidências de que a humanidade tem sua
origem no continente africano. Estes cientistas começaram a relacionar diferenças fenotípicas
às diferenças ambientais dos continentes, com o auxilio da linguística, arqueologia, oralidade,
arte, botânica entre outras áreas do conhecimentoos estudos sobre a origem da humanidade e
das civilizações convergiram para uma mesma localização geográfica e constituição etnico-
cultural: as populações do Vale do Nilo (Egito, Núbia, Etiópiaentre outras).
Joseph Ki Zerbo (2010) observa que as evidências materiais da arqueologia
possibilitaram a existência de apenas uma raça humana, e não de várias raças organizadas
hierarquicamente pelos continentes Mas isso não impediu que as teorias pseudocientíficas
sobre raça fossem utilizadas com interesses políticos, econômicos e culturais de grupos
111
Figura 20: Cheik Anta Diop
Fonte : http\www.senegalheritage.com
hegemônicos, influenciando currículos, livros didáticos, programas, prática de pesquisa
ensino e em toda a teoria da história.
Trabalhamos agora com as contribuições de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e
Walter Rodney. Consideramos que estes três historiadores colaboraram decisivamente com o
processo de de descolonização da história africana entre as décadas de 1950, 1960 e 1970. As
intervenções destes três ícones da historiografia africana alcançaram livros didáticos,
movimentos sociais e o tema civilizações da antiguidade clássica.
3.3 Dr. Cheikh Anta Diop
A obra de Cheikh Anta Diop foi dedicada a duas
frentes de trabalho, a antiguidade africana clássica,
onde civilizações como Etiópia e o antigo Egito
desempenharam o papel central na construção de
técnicas e conhecimentos científicos. Em segundo
lugar a resolução das problemáticas e consequências
do sistema colonial e neocolonial, através da projeção
de uma unidade federal do continente africano.
Cheikh Anta Diop nasceu no distrito de
Diourbel, em Caytou,sul do Senegal em 1923, seu
avô foi o Cheikh Amadou Bamba, fundador do
movimento islâmico e anticolonial Mouride. Diop formou-se em escolas corânicas no
Senegal, e em 1946 decidiu estudar física nuclear, matriculando-se na Universidade de
Sorbone na França, onde trabalhou com Madame Curie, prêmio Nobel de física, pela
descoberta o elemento químico Rádio.
Na França de 1946, Cheik Anta Diop realizou seus estudos em uma situação diferente
da maioria dos estudantes africanos, pois detinha amplos conhecimentos de línguas como o
Bambara, Tocoleur, árabe e francês. Diop detinha segurança intelectual e emocional o
bastante para estar disposto a problematizar e buscar respostas sobre os postulados científicos
europeus que enfatizavam a inferioridade africana. Outro fator fundamental para Diop foi seu
112
posicionamento político anticolonial, participando ativamente das organizações de estudantes
africanos em França e de movimentos anticoloniais de luta pela independência.
No ano de 1948 Diop publica o ensaio “Quando falaremos de uma renascença
africana” propondo uma reavaliação e reconstrução do passado africano. Após
aproximadamente dez anos de formação em França, fez o cursou pós-graduação em história,
antropologia, sociologia e linguística, com estudos parciais em arqueologia e egiptologia. No
ano de 1949 sua tese sobre a anterioridade civilizacional africana e a origem dos antigos
egípcios não foi aceita pela banca da universidade de Sorbone,sendo rejeitadas duas vezes.
Em suas teses, Diop propunha uma mudança pan-africana de paradigma dentro da
investigação acadêmica, objetivando a construção de uma nova estruturadisciplinar e sentido
social, político e econômico do conhecimento. O trabalho ao lado de especialistas e químicos
e físicos da França credenciou Diop a realizar seus estudos de tal forma que segundo o
pesquisador Charles Finch III (2009 ,pág. 74): Foi-lhe particularmente útil enquanto se
preparava para uma batalha vitalícia contra a erudição estabelecida ao interpretar
ereconstruir o passado da África, batalhada qual emergiria como um verdadeiro homem da
Renascença africano.
Entre 1950 e 1953 Cheik Anta Diop foi membro fundador e secretário geral de
Association des Etudiantsdu Rassemblement Démocratique Africain (AERDA) e participoude
outras associações de estudantes africanos. Comprometido com as política e ciência,Diop
participou em 1951 do primeiro congresso pan-africano de estudantes africanos em Paris,
tornando-se colunista do jornal AERDA – Lavaix de l’Afrique Noire, em 1954 sua tese de
doutorado foi publicada sob o título de Nações Negras e Cultura.
Após traduzir hieróglifos e desenvolver inúmeros estudos da relação entre civilizações
do vale do Nilo e outras regiões do continente africano Cheikh Anta Diop concluiu que a
história da África fora falsificada em seus documentos escritos por interesses imperialistas de
países europeus, este foi um dos enfoques da sua tese de doutorado transformada no livro
Nações Negras e Cultura. Na perspectiva de Diop, as distorções dostestemunhos orais dos
escritores da antiguidade sobre a origem do antigo Egito, Etiópia e Nok comprometeram o
legado civilizacional para o continente africano e sua diáspora.
113
No inicio da década de 1960, Cheikh Anta Diop começou a trabalhar no Departamento
de Física e Energia da Universidade de Dakar, Senegal. Um laboratório de radio carbono, em
quedeu continuidade as pesquisas sobre o antigo Egito, e em paralelo continuou suas
atividades políticas anticoloniais. Em 1961 foi um dos fundadores do Bloc de Masses
Senégalaise (BMS) oposto ao governo abertamente neocolonial de Leopold Sedar Senghor –
que o levou a prisão em 1962 por causa do seu envolvimento com o movimento Front
Nacional du Senegal. No total, durante o governo de Leopold S. Senghor, Diop foi preso por
motivos políticos quatro vezes.
As teses sobre inferioridade africana estavam a serviço do colonialismo, e as
ideologias sobre a incapacidade intelectual dos povos de pele preta difundiram-se na Europa
com facilidade através do racismo. Por isto, na opinião de Diop era indispensável que
africanos encaminhassem a sua própria história e civilização, que estudassem a história para a
conhecer melhor seu passado, para perceber o caráter grotesco do estilo e estratégia de
dominação cultural europeu e sobrepujá-la. Diop percebeu que havia um clima de alienação
em relação ao conhecimento africano atingiu profundamente a personalidade dos negros
intelectuais,que acabariam por perder confiança em suas próprias possibilidades e de seu país,
segundo Diop (1979, pág. 54), este foi o caso de Leopold Sedar Senghor. Em suas próprias
palavras:
No cumulo do cinismo: se apresenta a colonização como um dever da humanidade,
invocando a missão civilizadora do Ocidente,o qual se incumbiu da carga de elevar
o africano ao nível dos demais homens. A partir de então, o capitalismo campará as
suas anchas (em África): poderá exercer a exploração mais feroz sobre o respaldo de
um pretexto moral.
Nações Negras e Cultura foi um trabalho seminal, onde o autor explorou de forma
interdisciplinar e multidimensional as teorias sobre as origens da humanidade, a anterioridade
das civilizações africanas no Vale do Nilo e as conexões milenares desta região com outras do
continente. Diop debruçou-se sobre documentos históricos falsificados e o que tais ações de
cientistas europeus geraram a humanidade, além da presença africana na antiguidade na Ásia,
nas Américas entre outros temas.
Nações Negras e Cultura atingiu o interesse de movimentos sociais nacionalistas, pan-
africanistas, culturais, artísticos e literários. Mas foram poucos os africanos estudantes,
pesquisadores e professores com coragem e humildade o suficiente para apoiar um trabalho
científico nitidamente dedicado à justiça social, a qualidade de vida e função do fazer ciência.
114
Segundo o próprio Diop, o único a dedicar um diálogo com suas teses em 1954 foi Aime
Cesaire. Ao ler Nações Negras e Cultura, Aimé Cesaire destacou doze teses contidas em
(DIOP, 1979, pág. 5) que abaixo apresentamos com tradução nossa:
1) Independência da África; 2) A criação de um Estado Federal Continental
africano; 3) A origem africana e negroide da humanidade e da civilização; 4) A
origem negra da civilização egípcio Núbia; 5)A contribuição das civilizações
africana, e portanto, do pensamento negro a civilização ocidental no campo das
ciências, letras e artes; 6)A identificação de grandes correntes migratórias e da
formação de etnias africanas;7)Parentesco linguístico entre o Egito e as regiões
centro, e oeste do continente africano .8) A verdadeira origem do mundo semítico;
9) A delimitação da área cultural do mundo negro, que se extende através da Ásia
ocidental até o Rio Indo; 10) Caracterização das estruturas políticas africanas; 11) A
formação dos Estados africanos em todo o continente após a decadência do Kemet e
a continuidade dos vínculos históricos e culturais até os tempos modernos; 12) A descrição do universo artístico africano e de seus problemas (escultura, pintura,
musica, arquitetura, literatura e etc.); 13) A demonstração da atitude de nossas
línguas para expressar o pensamento científico e filosófico e, a primeira transcrição
africana não etnográfica destas línguas;
A publicação de Nações Negras e Cultura gerou três consequências de pequeno, médio
e longo prazo, a perseguição profissional; o recrudescimento das teorias racistas sobre a
história da África; e a construção de uma frente de historiadores dispostos a romper com a
epistemologia da história colonial europeia. A obra foi dividida em duas partes, a primeira
sobre a história da África na antiguidade, e a segunda sobre aspectos estruturais da cultura
nacional.Comentamos alguns tópicos dos três primeiros capítulos da primeira parte.
Inicialmente com o capítulo “Quem eram os egípcios” Diop estabelece um diálogo
com historiadores, geógrafos e filósofos gregos, e, em um segundo momento, relaciona os
relatos bíblicos sobre a antiguidade, especificamente os contidos em Gênese (Bíblia).
Heródoto, Diodoro da Sicília, Estrabão foram testemunhas oculares do cotidiano, da política,
da estética, economia, línguae cultura da civilização egípcia e segundo Cheikh Anta Diop não
teriam por que ocultar ou inventar uma descrição física dos egípcios diferente das que eles
mesmos viram.
Na perspectiva dos próprios gregos o antigo Egito era à base de sua civilização, suas
realizações no campo da arte, literatura, ciências e construções eram aperfeiçoadas e
inspiradas pelas experiências milenares das populações do Vale do Nilo. A partir de 610 a.C.
pesquisadores gregos como Tales, Pitágoras, Solon, Anaximandro e Platão (para citar alguns)
viveram anos de aprendizado no Egito. Pitágoras, por exemplo, passou dois anos no século VI
ac para formular o que hoje é considerado o fundamento da filosofia ocidental .
115
Lembra-nos o prof. Charles Finch III (2009) que o chauvinismo racista do século XIX
tornou tais informações – trazidas pelos próprios gregos – inaceitáveis, uma vez que na
mentalidade colonial o continente africano não passava de um conglomerado de tribos
selvagens sob um solo extremamente rico em minérios e pedras preciosas. Sob-
responsabilidade de historiadores e antropólogos coloniais as referências sobre o antigo Egito
foram aglutinadas em centros de estudos afro-orientais ou do oriente próximo, demarcando a
ideologia racista de negar a África sua própria história.
Em visita ao antigo Egito em diferentes épocas, estudiosos gregos descrevem
egípcios e etiopes sob as mesmas características físicas. Os relatos do historiador Heródoto
são explorados por Diop, por sua riqueza de detalhes e honestidade. Heródoto viveu no Egito
durante o século V a.C e chegou a conhecer a Índia, descreveu parte dos povos escuros da
Índia parecidos com etiopes e egípcios, considerou também que mulheres pretas, egípcias,
foram raptadas de Tebas para fundar em Roma os oráculos religiosos. Geógrafos antigos
como Diodoro da Sicília e Estrabão identificaram que estruturas como leis, honra, escultura e
escritura resultaram de inúmeros movimentos de migração entre egípcios, ou kemeticos, para
o norte do Mediterrâneo.
Cheikh Anta Diop (1979) destaca que arqueólogos e egiptólogos do século XIX e
início do século XX, como Gaston Maspero e Christiane Desroches Noblecout, confirmaram
semelhanças culturais e físicas testemunhadas pelos historiadores, geógrafos e filósofos
gregos da antiguidade. Na perspectiva de Diop é completamente plausível o fato de Heródoto
confundir-se com a leitura e compreensão de certos hábitos, mas não inventar ou mentir,
Heródoto posicionava-se cético a respeito de história de povos que se transformavam em
animais, assim como assumia a diferença entre o que lhe era narrado e o que ele mesmo
testemunhava, como arquiteturas do Labirinto de Hawara construído entre 1900 e 1800 a.C,
encontradas pela arqueologa Christiane Desroches Noblecout no século XX.
Heródoto, na perspectiva de Cheikh Anta Diop (1979), possuía um espírito
racionalista, escrúpulos e um trabalho científico e objetivo para a época, sem ser um
informador passivo, buscava explicações cientificas para fenômenos complexos, como as
cheias do Nilo. O antigo Egito possuía mais de 6.000 anos de história quando a chegada de
Heródoto, que encontrou uma civilização preta africana, em que era possível identificar
nômades, comerciantes e invasores de fora da África, esse era o retrato do final do Egito.
Segundo o pesquisador M.de Paw, no final do século VII a incorporação de tropas
116
estrangeiras e de colônias distantes enfraqueceu o Kemetdemasiadamente, um fator somado
ao que J.J.Buchofen identificou como política grega de assimilação.
Os relatos bíblicos são importantes a partir do momento que possuem correspondência
com resultados de investigações de nível arqueológico, linguístico, botânico e geográfico. Os
judeus chegaram ao Egito em número de 70 pessoas divididas em 12 famílias sem indústria
ecriticados pela população local,por seu nomadismo (causado pela expulsão da palestina no
século 18 a.C.). Povo errante das estepes, assentados em um sistema patrilinear, os judeus
encontraram porto seguro em torno de José, foram usados como mão de obra para a
construção da cidade de Ramsés e seu aumento populacional foi visto com receio por dois
motivos, influência de um sistema religioso patriarcal, e possíveis levantes internos em
períodos de guerra contra invasores.
O surgimento de Moisés corresponde ao período denominado Tell Amarna quando
Amenofis IV – Akhenaton e Nefertite durante o século 15 a.C. instauraram uma renovação do
monoteísmo egípcio primitivo contra a corrupção de corporações de sacerdotes. Diop
comenta que era necessário transferir o centralismo político para uma esfera religiosa e
espiritual, e essa grande reforma promovida por Akhenaton e Nefertite transformou
profundamente Moisés e o povo judeu como um todo, que foram guiados para fora do antigo
Egito por Moisés após 400 anos de sofrimento, em um número de 6.000 pessoas e com uma
religião integralmente baseada no culto monoteísta local. Na perspectiva de Diop é a partir
deste momento que se constrói uma mitologia do povo amaldiçoado marcados pela cor preta,
a maldição de Kerma.
Com base na bíblia, Diop (1979) explica-nos que o antigo Egito foi formado pelos
descendentes de Kam, em hebreu a palavra Kam significa preto, queimado e escuro, na língua
egípcia o kemet significa preto e por extensão o território que os gregos denominaram Egito
tinha o nome vernacular de Kemet, que significa: terra dos pretos. Há uma dupla utilização do
termo Kam, a bíblica- indicando o povo amaldiçoado e preto que criou o Egito, e com quem
ironicamente os judeus viveram e aprenderam religião e valores civilizacionais, e outra versão
da historiografia e arqueologia-em que Kam era um povo branco e de fora da África, os
verdadeiros criadores do Egito, ou seja, uma negação total da origem africana das
civilizações.
117
No segundo capítulo “Nascimento do mito do negro” Cheikh Anta Diop desconstróios
mitos sobre a história da África, observando queHeródoto chega a um antigo Egitoinvadido,
dominado e conquistado por persas, macedônios, romanos, árabes, turcos. A civilização do
Egito, se constituiu no período antigo-clássico, durante 4.425 anos, mas o povoamento data de
17.000 mil anos, se pensarmos uma cronologia ampliada a partir da construção de calendário,
que exigiu milênios de observação. Gregos e Romanos obtiveram conhecimentos científicos,
religiosos, morais e sociais do Egitoem peregrinações que se transformaram em invasões
sistemáticos.
A partir do século IV d.C., o esgotamento do paganismo, a ascensão do cristianismo e
as invasões bárbaras construíram uma nova civilização assumidamente herdeirados progressos
técnicos originado dos contatos com outros povos e excitadamente disposta a lançar-se a
conquista do mundo no século XVI. Na perspectiva de Diop esse contato dos europeus com
África na modernidade foi à base da construção da ideologia do negro primitivo, para
entender o histórico social desta construção Diop propõe como necessária a compreensão de
que a população negra africana passou porgrandes movimentos de descolamento, um dos mais
importantes foi a cerca de 7.000 a.C., com a desertificação do Saara as populações negras que
lá habitavam migraram para o Alto Nilo, sua adaptação aos costumes da população também
negra lá encontrada, deu início a um ciclo civilizatório de 10.000 anos.
Esse núcleo desenvolvido no Alto Nilo expandiu-se dentro do continente africano
formando outros núcleos civilizacionais, que através do Vale do Nilo se expandiramaté o
Delta e o Mediterrâneo. As seguidas invasões ao antigo Egito tornaram esses núcleos fora do
Vale do Nilo fortes em termos organizacionais,sociais, políticose moral, mas que ficaramcada
vez mais isolados e sem contato com o Vale do Nilo. Na interpretação de Diop(1979,pág.
51),a investigação cientifica especulativa, a busca por soluções para irrigação e cheias e as
técnicas daí resultantes não se justificavam fora do Vale do Nilo.
Outro detalhe importante, relacionado às invasões, é sobre a deficiência militar do
antigo Egito, pois, mesmo inventando técnicas de operação do ferro e a pólvora os egípcios
snão criaram canhões ou munições. Todavia, as organizações eram dotadas de sofisticação e
complexibilidade, as monarquias constitucionais, conselhos populares formados por
estamentos sociais e em certos casos primeiros ministros e uma constituição a ser seguida.
Observa Diop que durante os séculos da idade média europeia, o conhecimento sobre a
anterioridade civilizacional africana foi esquecido em bibliotecas e soterrado em ruínas.
118
A perspectiva do negro primitivo de mentalidade pré-lógica foi construída na Europa
com base em alguns fatos, principalmente a ignorância sobre a história antiga do negro, o
racismo, costumes distintos e a necessidade econômica de exploração. Diop destaca a
surpresa do pesquisador Volney no século XVIII ao se deparar com a população egípcia não
árabe, ou seja, nativa e remanescente do antigo Egito:
[...] esta raça de homens negros, hoje nossos escravos e objeto do nosso menosprezo
é o mesmo a quem devemos nossas artes, nossas ciências e até o uso da palavra, de
imaginar, enfim, que é por intermédio do povo que se diz mais amigo da liberdade e
da humanidade de onde provem a mais Barbara da escravidão, profundamente
problemática se o homem negro tiver uma inteligência do tipo da dos Brancos!(DIOP, 1979, pág. 58, tradução nossa)
Na Europa a produção literária moderna consolidou a ideologia mito de inferioridade
humana tornando-se um forte elemento de alienação entre africanos. Mesmo com alto nível de
instrução uma grande maioria de africanos tem a supremacia branca introjetada em seu
psicológico, que corrobora com um processo de autonegação tamanho, que nem mesmo eles
aceitam o fato a origem da primeira civilização que se propagou pela terra e que fez progredir
a humanidade foi no continente africano. Foi uma falsificação moderna da história esse
movimento de interpretação criminosa da história africana, nas palavras de Diop (1979,
pág.59), tradução nossa:
[...] falsificação mais monstruosa da história da humanidade perpetrada pelos
historiadores modernos […] O nascimento da egiptologia se caracteriza assim pela
necessidade de destruir, a qualquer preço e em toda memória, a recordação do Egito
negro.“O denominador comum de todas as teses dos egiptólogos, seu parentesco
intimo, sua afinidade profunda se resumirão em uma tentativa desesperada de refutar
a teoria de um Egito negro.” (DIOP,
Desde então, na perspectiva de Diop (1979, pág. 60), tradução nossa:
[…] aqueles que ignoravam a grandeza passada dos negros, incluindo os próprios
negros encontravam cada dia mais dificuldade de incluso inadmissível, que estes
puderam estar na origem da primeira civilização que se propagou pela terra e a qual
a humanidade deve o que é essencial para o seu progresso
O capítulo “Falsificação moderna da História” apresenta-nos um estudo e
problematização sistematizados sobre a falsificação de documentos da antiguidade africana,
mais diretamente a respeito da antiguidade clássica. Meu interesse aqui é destacar alguns
aspectos propostos pelo capítulo no que diz respeito às teses falsificadas esuas contradições.
Por razões de tempo e espaço limitado dedicar-me-ei aos registros em pintura, escultura e
objetos pessoais analisados por Dr Diop.
119
Figura 21: Quadro do vale dos Reis
A B C D
Fonte: L’Antiquité Áfricaine Par L’imag (1994)
Cheikh Anta Diop inicia sua abordagem com o período entre a campanha de Napoleão
Bonaparte em 1789 e a década de 1920 e 1930, que integram a tradução de hieróglifos feita
por Champolion Figeac e a criação da egiptologia. A primeira tese sobre falsificação
analisada refere-se aos quadros em baixo relevo da XVIII Dinastia, século XV a.C,
encontrados por Champolion O Jovem, irmão de Champolion Figeac, na Tumba de Ouser I
localizada no Vale dos Reis. Os quadros do Vale dos Reis são considerados por Cheik Anta
Diop (1979) como o primeiro documento etnográfico que se tem registro na humanidade, pois
nele os egípcios registraram sua visão a cerca de si mesmos e de grupos humanos de regiões
estrangeiras.
De acordo com Diop (1979) a figura A representa os egípcios – Kemet; a figura B os
Amu – asiáticos; C eram os Nahasi – africanos de outras regiões do continente; e a figura D
representando os Tehemu – europeus;Em uma série de cartas, Champolion descreve sua
própria consternação em constatar que os Tehemu (europeus) enquadravam-se em uma
situação selvagem perante os outros povos, principalmente os africanos. Este documento
encontrado na expedição de Napoleão veio ratificar os testemunhos oculares de historiadores,
geógrafos e filósofos gregos da antiguidade.
Os comentários de Champolion-O Jovem entraram em um contexto científico europeu
inundado de teses racistas e pre-colonialista. Assim como as observações anteriores feitas por
C.Volney sobre a origem negra africana do Egito, as observações de Champolion tornaram-se
praticamente inaceitáveis, seu próprio irmão, Champolion Figeac, considerado o pai da
120
egiptologia,prontificou-sea desconstruir e relativizar os relatos antigos de Heródoto, de
Volney e de seu próprio Champolion-O Jovem. Champolion Figeac utilizou-sede
argumentações absurdas alegando que a cor da pele, os traços físicos e o tipo de cabelo das
múmias, retratados pelos monumentos e esculturas, não eram suficientes para provar que os
egípcios formavam uma grande civilização negra africana.
Champolion Figeac optou por inventar teorias que pudessem sustentar sua recusa às
evidencias históricas. Primeiramente propôs a existência de três raças habitantes do continente
africano, os negros no interior, os cafres na costa oriental, e os mouros,entendidos por ele
como os verdadeiros egípcios, homens brancos. Cheik Anta Diop (1979) chama-nos atenção
para o fato de que a palavra cafre designa um titulo empregado pelos muçulmanos aos povos
não muçulmanos da época em que islã invadiu a África oriental através de Zanzibar. O termo
Mouro foi utilizado para os descendentes dessas invasões árabes, que percorreram os séculos
VII ao XV, experiências extremamente recentes no continente africano .
Em um processo consciente, político e raciologico de manipulação da história,
Champolion Figeac entrou em uma série de contradições ao ignorar que as esculturas,
pinturas e monumentos confeccionados no antigo Egito foram retratos do cotidiano e registros
de diversos estratos sociais, dos faraós, aos músicos, passando por agricultores, crianças e
escribas. A arte egípcia conseguia em suas estéticas ser mais preto-africana que em qualquer
parte do continente e na diáspora. Outros teóricos como Cherubine tentaram descartar o fato
de a tinta usada nas pinturas ser para representar a cor da pele, um argumento que não
conseguiu ser sustentado com solides.
O elemento mestiçagem também é abordado por Diop (1979) em três sentidos
importantes, primeiro que tal processo não criou um grupo racial distinto e diferenciado, uma
vez que o tom da pigmentação possuía diversas variações dentro do próprio continente
africano. Em segundo lugar a presença estrangeira no antigo Egito tornou-se contínua a partir
da XI dinastia, principalmente em Tebas. Cheikh Anta Diop faz uma analogia sobre a
presença estrangeira em Paris do século XX, uma grande capital com alta circulação de
pessoas estrangeiras. Outro aspecto importante é que a presença de estrangeiros do norte do
mediterrâneo e semitas nas pinturas e esculturas revela-nos processo gradual de finalização do
Kemet, o encerramento de sua época clássica.
121
A desconstrução do mito sobre o conceito de preto-negro africano deveria ser
realizada com urgência para uma compreensão correta sobre a formação populacional do
antigo Egito (DIOP, 1979, pág. 105), tradução nossa:
No sentido exato do termo, tampouco existe uma cor negra (associada à pele
humana)... não sendo possível aplicar um qualitativo exato, dificuldade essa
agravada pela variedade de matizes entre as regiões.…por exemplo, os negros que
vivem em regiões calcárias possuem a pele menos escuras que em outras regiões.
Logo, é muito difícil reproduzir a cor do negro através da pintura e o habitual é
contentar-se com a aproximação de suas diversas matizes […].
Para Diop a questão chave das representações gráficas era o início do povoamento e o
retrato de ordem cultural e civilizacional presentes no antigo Egito. A atribuição de uma cor
branca aos egípcios, empregada pela egiptologia e pelos historiadores coloniais,por exemplo,
era uma maneira de criar uma origem não africana para os mesmos. Nesse sentido, estava
descartado o processo de migrações do Vale do Nilo para regiões centro,suloeste do
continente africano, como defendeu Diop.
O elemento crucial das distorções modernas sobre o antigo Egito foi à falsificação,
propriamente dita, dos quadros em alto relevo encontrados no Vale dos Reis. Champolion
Figeac não respeitou os originais registrados por seu irmão, optando conscientemente por
trocar a cor preta dos egípcios pela cor branca, o que desencadeou um sério problema na
compreensão da história da humanidade. A egiptologia organizou um conjunto de alegorias
subjetivas para provar a origem externa da população egípcia, contradizendo-os testemunhos
oculares dos antigos perante a realidade objetiva do Egito, ignorando-os e silenciando-os
sobre a origem e povoamento da região.
Em diálogo com Amélineau, a segunda tese analisada por Cheikh Anta Diop, é sobre o
Anu, um grupo africano do período proto-histórico fundou os elementos da civilização
egípcia. Os estudos arqueológicos de Amélineau indicam que os Anu integram um processo
milenar de migração populacionalda região norte do continente africano para a região ao sul
do Nilo, onde com a população já instalada deram inicio a construção da civilização do antigo
Egito, nas palavras de Amélineau sobre os Anu :
[...]eram uma população agrícola habitava a margem do Rio Nilo, em cidades
muradas onde se defendiam”. É a esta população a quem podemos atribuir sem
medo de erro os livros mais antigos do Egito, o Livro dos Mortos e os Textos das
Pirâmides, e, em consequência, todos os mitos e encenações religiosas, e eu quase
diria que incluo todos os sistemas filosóficos até então conhecidos, que sempre
foram denominados egípcios. É evidente que conheciam todos os ofícios necessários
122
Figura 22 : Anu -Tera Neter
Fonte: Nações Negras e Cultura (1979)
Figura 23 : Narmer
Fonte:Nações Negras e Cultura (1979)
para desenvolver toda a civilização e,portanto, também conheciam o uso dos metais,
pelo menos os metais elementares... (DIOP, 1979, pág. 133, tradução nossa)
É seguro que este povo já conhecia as artes principais. Há provas disso na arquitetura e
nas tumbas de Abydos, em especial na tumba de Osíris. Nestas tumbas foram encontrados
objetos que levam a marca indelével de sua origem, como as peçasde marfim esculpidas,
como uma pequena cabeça de Núbia talhada em um sepulcro destinado ao Deus Osíris, ou
como os pequenos recipientes de madeira, ou marfim, em forma de cabeça de felino, todos
eles documentados publicamente no primeiro volume das minhas Fouilles de Abydos.
Todavia, Amélineau entra em contradição aoafirmar que após a fundação do Egito as
populações do Vale do Nilo eos Anu foram dominados por uma população branca oriunda do
interior do continente. A tese de Amélineau fundamenta-se na palheta de Narmer, artefato de
dupla face encontrado em Hierakonpolis, uma escultura de 3.200 a.c. que evoca a guerra de
unificação do Baixo e do Egito sob a liderança de Narmer, fundador da primeira dinastia
faraônica.Todavia, sob a análise de Cheikh Anta Diop, não há nenhum indicador na palheta
que suporte a tese sobre um contingente branco dominante no Egito antigo. Primeiro, a
escultura de Narmer é precisa na caracterização da origem étnico cultural africana e traços
físicos de Narmer,em absolutamente nada estas características correspondemà asiáticos ou
europeus, como se pode observar abaixo na figura 23.
123
Figura 25 : Palheta de Narmer - Face 2
Fonte: Nações Negras e Cultura (1979)
Figura 24: Palheta de Narmer - Face 1
Fonte:Nações Negras e Cultura (1979)
No caso da palheta, Cheikh Anta Diop (figura 24) nos explica que as duas faces
narram momentos distintos da unificação entre Baixo e Alto Egito conduzidas por Narmer
contra adversários políticos núbios e invasores estrangeiros semitas. Na primeira face, Narmer
usa um amuleto eveste uma coroa representando a Baixo Egito, em uma das mãos segura uma
massa de guerra e na outra segura o adversário pelos cabelos, acima de Narmer o Deus Hórus
segura uma corda que sai das narinas de uma cabeça decepada, e na parte inferior da palheta
encontram-se dois homens correndo.
O contexto da primeira face indica um momento de sacrifício ritual em um local
sagrado, pois Narmer está descalço sob um patamar, o que indica um ambiente sacro. O
sacrifício ritual foi comum durante muito tempo em regiões africanas como no Daomé. O
amuleto no peito de Narmer, a cultura de servidão e os tipos de sandálias comuns no Senegal,
e em outros lugares do continente africano, também são sinais do ambiente, da cultura,
geografia africanos.
Por influência do islã, o gorro usado por Narmer tem se extinguindo no continente
africano, mas ainda é tradicional entre os Dogon do Mali, por exemplo. Outro dado
interessante trazido por Diop é a relação das narinas com a vida, uma crença antiga nas
culturas africanas. Os fugitivos portam perucas típicas, muito parecidas com as utilizadas no
Senegal,e seus traços físicos são indubitavelmente africanos.
124
A segunda face da palheta divide-se em três dimensões, primeiramente uma grande
marcha em que soldados carregam standarts diversos à frente de Narmer e de seu servo. No
centro são justapostasas figuras dedois homens controlando dois felinos. No plano inferior um
touro impõe-se sobre um homem estendido no chão. O exército em marcha carrega insígnias
do Alto e Baixo Kemet, como as núbias representadas pelo chacal e pelo gavião. Assim como
na primeira face da palheta, Narmer porta na cintura um objeto muito comum entre os chefes
religiosos da Nigéria, o rabo de touro – outro animal totêmico do Baixo Kemet, que ilustra as
duas faces da palheta. Diferente da primeira fase, os vencidos possuem traços físicos semitas.
Voltando a parte superior da palheta, Narmer porta uma nova coroa a do Baixo Egito
o recém-conquistado, eseguranas mãos símbolos do Alto e Baixo Egito, o fato de seu servo
carregar suas sandálias indica o lugar sagrado onde os conquistados não foram simplesmente
executados, mas sim imolados ritualisticamente. No centro da palheta há total simetria entre
os dois homens e entre os dois felinos, os homens iguais simbolizam o Baixo e Alto Egito,
ambos controlam felinos que representam os dois reinos, dominados e unificados, impedidos
de lutar entre si. Essa ilustração central é chave enquanto símbolo da união entre os habitantes
do Egito e os povos negros em geral.
A ideia de que os faraós eram entidades asiáticas não correspondearte encontrada pela
arqueologia e vistas de forma pública como a esfinge, uma imagem de um rosto preto
africano. Outra tese falsificada foi a da existência de uma raça intermediária oriunda do
cruzamento de negro com branco, teoria considerada por Diop (1979), como um mito baseado
na ideia de incapacidade dos povos melanodérmicos constituírem uma civilização, por isso foi
tecnicamente importante para acadêmicos racistas considerar os egípcios como mestiços,
herdeiro do gênio europeu .
Este primeiro capítulo do livro Nações Negras e Cultura é encerrado com a
desconstrução das teses sobre o povoamento do antigo Egito. A primeira tese criticada por
Diop é sobre o Delta como lugar de origem do Egito, apresentada como uma zona de
confluência de asiáticos, árabes e europeus na região do Delta. Diop defende a origem local
do Egito, a partir da região do Alto Egito, que reúne todas as fases históricas da civilização,
com documentos materiais comprovados dos períodos Tarsiense, Badariense, Amratiense,
Proto-dinastico, Dinástico e etc. Em relação ao processo de povoamento do Alto Egito, o
povoamento do Delta é recente.
125
Outros indicadores contrários à preponderância do Delta se dão pelos textos antigos,
como o Livro dos Mortos, que denominam Isis e Osíris, originários da Núbia, nascidos no
Alto Egito, Isis em Dendera e Osíris em Tebas. Cheikh Anta Diop (1979), destaca que o culto
a ancestralidade presente no Egito é típico de todo o continente africano, o enterro dos faraós
em Tebas, por exemplo, justifica-se por a mesma ser no alto Egito o lugar de origem dos seus
ancestrais, e de onde se erigiu a civilização.
Da primeira dinastia nascida no Alto Egito com o Faraó Narmer foi não somente
responsável pela unificação do Egito, mas pela construção de diques e de Menfis no Delta,
Menfis foi uma verdadeira base militar contra invasores. Entre o período proto dinástico e a
XIX Dinastia não ocorriam invasões serias, mas a presença da Líbia em terras outorgadas por
faraó, e a persistência de nômades estrangeiros sempre foram uma ameaça, até o Faraó
Narmer, o Delta era uma região insalubre.
A origem asiática do Egito é descartada por inúmeros elementos que comprovam a
origem local, populacional e cultural africana no Alto Egito. Para a sustentação da tese
asiática deveria haver uma civilização anterior a do Egito na Ásia, e não há. A origem
mesopotâmica é insustentável historicamente, uma vez que naquela região não havia técnicas
de cozimento do barro (adobe), o que tornou a chuva um carrasco climático da arquitetura e
engenharia. A escrita cuneiforme da Mesopotâmia, por sua vez era praticamente restrita a
registros comerciais, mas a mesma foi levada para aregião através de sacerdotes do antigo
Egito denominados Caldeus.
Com base em testemunhos escritos e oculares de gregos, romanos e de egípcios, não
há uma anterioridade mesopotâmica em relação à civilização doantigo Egito. A contribuição
dos Caldeus foi de suma importância para a Mesopotâmia,para Diop (1979) a Torre de Babel
foi um aparelho astronômico construído pelos Caldeus, palavra que originou em grego o
termo astrologia, inclusive a estética da pirâmide escalonada, como era Babel, tem origem no
Egito e foi expandida do mesmo para outras regiões do continente como Costado Marfim,
para a Índia e México. Na concepção do autor os semitas originam-se da miscigenação entre
africanos e europeus, sua hipótese é de que semitas judeus e árabes são fruto desta
confluência.
Para concluir este debate sobre origem do antigo Egito, Diop faz uma analogia entre o
mesmo efenícios, árabes e sabeus, em uma reflexão sobreorigem e características dos egípcios
126
vistos pela antropologia. O autor reconstrói a árvore genealógica fenícia a partir de canaan,
que na proto-história significava preto, os cananeus, por conseguinte, eram os descendentes de
canaan, irmãos do egípcio Mizrain e do etíope Cush. Os fenícios, na análise Diop, foram
descendentes dos cananeus e mantiveram relação direta de lealdade com a população do
Egito.
A religião dos fenícios é outro aspecto de ligação entre o Egito com o restante do
continente. A influência do Egito foi muito grande no aparato teológico fenício, como no
culto a Toth e Osíris, virtudese os valores. Os fenícios eram africanos de origem, e junto aos
egípcios dominaram o mar Mediterrâneo,mantendo as populações da antiga Europa sob forte
influência econômica e cultural. Diop menciona que o culto de Isis, por exemplo, difundiu-se
por toda a Europa em ambientes denominados Casa de Isis,uma indicação dos locais onde a
ancestral era adorada. De acordo com os estudos de Diop a contração das palavras Peer (Casa)
e Isis originou a palavra “Paris”, capital da França.
A influência das línguas africanas sob as línguas latinas sobrepõem-se à família indo-
europeia, o que se explica devido à anterioridade civilizacional e organizacional do antigo
Egito (1979, pág. 181). Os pesquisadores negligenciaram a influência africana linguísticano
mediterrâneo, esquecendo e fazendo esquecer que os homens de Grimaldi eram africanos que
migraram e povoaram a Europa no final do paleolítico. No caso da árabe, Cheik Anta Diop
(1979) Frances François Lenormant que apresentou inúmeros materiais sobre a expansão do
império de Cush sobre toda a Arábia. Durante a época do Rei dos Aditas, neto de Kam, seu
filho Ad-Keddad, foi responsável em sua época pela construção do paraíso terrestre
mencionado no sagrado Corão. O Império Adita foi destruído no século XVIII a.C. por
povosjectanidas do norte do mediterrâneo, parte dos Aditas por consequência migraram para
Etiópia estabelecendo fortes laços linguísticos e etnográficos.
A expansão Cushita na Arábia e posteriormente a invasão nômade dos jectanidas
ajuda-nos a compreender a formação do povo árabe semita, originalmente mestiça e recente,
em analogia ao Egito antigo. De acordo com as pesquisas revistas por Cheik Anta Diop
(1979) antes do século XVIII a.C. o mundo árabe era uma extensão do reino de Cush. Todas
essas informações são fundamentais para a desconstrução de uma ideologia sobre a influência
semita na criação da escrita no Egito, a origem desta escrita é anterior ao século XVIII a.C. e
expressa somente à flora e fauna africana.
127
No século XIX, a arqueologia europeia defendia que os Sabeus eram da mesma
linhagem dos Cushitas, seus descendentes. Cheikh Anta Diop analisa dois aspectos da
questão, os costumes e as instituições dos sabeus. Estas possuem uma interligação direta com
o Vale do Nilo, pois, os Sabeus praticavam a circuncisão, sistema de castas, literatura,
hidráulica e engenharia, sua religião era um arremedo de elementos doantigo Egito e da
Fenícia. O islã realizou uma verdadeira depuração dos conhecimentos sabeus para a
construção de sua própria teologia). Através de métodos de datação com o carbono 14, Diop
alega que nenhuma das civilizações dos fenícios,sabeus,árabes... é anterior ao antigo Egito,
pelo contrário, na verdade todas foram profundamente influenciadase mesmo dependentes das
civilizações do Vale do Nilo.
Entretanto, Cheik Anta Diop exige-nos no final desse terceiro capítulo uma reflexão
crítica sobre o trabalho de antropólogos a respeito do antigo Egito, apresentado como uma
civilização de origem externa ao continente africano, uma civilização culturalmente e
intelectualmente branca,ignorando todas as evidências materiais contrarias a esta tese.
Inúmeros tratados antropológicos prestaram um verdadeiro desserviço à ciência, confundindo
estudantes e pesquisadores através de ideologias, como a de África Negra e África Branca.
Diop não se dedicou as tradições orais propriamente ditas, mas suas pesquisas nos
campos da linguística e da etimologia serviram de suporte a trabalhos no campo da oralidade,
como os dohistoriador Djibril Tanzim sobre a formação do reino do Mali (Epopéia
Mandinga). O professor Boubacar Barry (2000) observa que as narrativas do Reino do Mali
“Trazem dados preciosos sobre civilizações mandinga, ao mesmo tempo em que revelam os
laços indiscutíveis entre estas e as civilizações do Antigo Egito”.
O final da década de 1950 historiadores africanos buscaram, a partir da oralidade,
construir ferramentas de pesquisa, narrativas e linguagens capazes de descolonizar a história
da África. Entretanto, no campo epistemológico foi necessário desenvolver uma nova
concepção de história desvinculadas ideologias raciais e reabilitar a história das civilizações e
cultura. O historiador Joseph Ki Zerbo dedicou-se a isto.
128
Figura 26: Joseph Ki-Zerbo
Fonte: http\www.ceda.com
3.4 Dr. Joseph ki Zerbo
Joseph Ki Zerbo nasceu em 1922 em
Ouagadougou, capital do Alto Volta (atual Burkina
Faso), com excelente desempenho escolar e oriundo
da primeira família cristã da região, o jovem Ki-
Zerbo teve a oportunidade de conseguir uma bolsa
de estudos na Universidade Sorbone na franca, para
onde emigrou no ano de 1949. Em 1955 Joseph Ki-
Zerbo adquiriu o título de historiador pelo Institut
d'Études Politiques.
Durante a graduacão participou ativamente em iniciativas educacionais em
associacões nacionalistas de estudantes africanos na Franca como a Associacão dos
Estudantes do Alto Volta (AEVF), Associacão de Estudantes africanos na Franca e da
Federação de Estudantes da África Negra em Franca, com Abduale Wade, Cheikh Anta Diop
e A. Mahtar Mbow). Joseph Ki Zerbo, dedicou-se a pesquisa histórica e valorizacão de fontes
documentais africanas como a arte, arqueologia e principalmente a oralidade, que na
compreensão de Ki- Zerbo era uma das fontes documentais mais preciosas do conhecimento
africano.
Ki Zerbo enfrentou os discursos racistas sobre a história da África e trabalhou–com
outros historiadores- na construção de uma literatura científica dotada de conhecimentos,
métodos, conceitos e instrumentos próprios. Ki Zerbo intensificou a integração de fontes
linguísticas, arqueológica, orais e antropológicas para uma concepção de história favorável a
edificação do autoconhecimento, da confiança e da dignidade.
Retornou ao Burkina Faso – na época denominada Alta Volta- para unir-se as forças
de resistência anticolonial de Sekou Turé em Guiné Conacri, que enfrentava as pressões do
neocolonialismo Frances de Charles De Gaulle. Trabalhou com chefes de Estados e partidos
como Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Modibo Keitá, Jomo Keniatta, Amílcar Cabral,
Tom Mboya e Julius Neyrere. Em 1958 no Burkina fundou o Movimento de Libertação
Nacional, propondo uma democracia baseada em valores africanos. Ao longo de sua vida
Joseph Ki Zerbo conquistou inúmeras inimizades por criticar a opção individualista dos
lideres africanos, principalmente no caso das cooperações internacionais:
129
Há um provérbio africano que diz: “Quando um cavalo tem demasiados
palafreneiros, arrisca-se a morrer de fome”. Ora, o número de médicos que se
apressam para a cabeceira do continente doente aumenta paradoxalmente, numa
altura em que se vê uma maior desobrigação em relação à África; é neste momento
que sefala mais e que se constroem teorias sobre o direito e o dever de ingerência,
que se parecem estranhamento com as ideologias do tempo do tráfico de negros e da
conquista colonial. (ZERBO, 2007, pág. 5)
Participou de congressos africanos de história da África como o de 1965 na Tanzania,
e a partir de 1962 iniciou as pesquisas de seu primeiro trabalho da história e historiografia
africana História da África Negra, terminado em 1969 e publicado em 1972. Nesta mesma
década Ki Zerbo integrou o Comitê Internacional para Confecção da História Geral da África,
sua responsabilidade neste comitê foi construir a metodologia de pesquisa da coleção. Joseph
Ki Zerbo (2007, PÁG. 134) não deixou de criticar a hegemonia europeia na construção do
conhecimento histórico, assim como a sua preservação e difusão:
[...] à frente da caravana da humanidade ia a Europa, pioneira da civilização, e atrás
os povos primitivos” da Oceania, Amazônia e África. Como se pode ser índio,
negro, papua, árabe? O “outro”, atrasado, bárbaro, selvagem em diversos graus, é sempre diferente, e por essa razão torna-se objeto de interesse do pesquisador ou de
cobiça do traficante. A etnologia recebeu, assim, procuração geral para ser o
ministério da curiosidade europeia diante dos “nossos nativos”. Apreciadora dos
estados miseráveis, da nudez e do folclore, a visão etnológica era muitas vezes
sádica, lúbrica e, na melhor das hipóteses, um pouco paternalista [...]
O objetivo central de História da África Negra é elaborar uma nova concepção cada
História da África, pois a concepção é um elemento fundamental para uma mudança
metodológica e utilização do conhecimento. Em História da África Negra Joseph Ki Zerbo
propões uma concepção de História da África desprovida das ideologias racistas presentes na
historiografia da época, que afirmavam não haver uma história da africana perspectiva de Ki
Zerbo ( 1972), as ideologias coloniais baseadas em autores como Hegel, Coupland, P.
Gaxotte, Charles André Julien, deveriam ser imediatamente descartadas, para a construção de
métodos e linguagens historiográficas autônomas:
[...] o continente africano quase nunca era considerado como uma entidade
histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse reforçar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma ‘África branca’ e uma ‘África
negra’ que se ignoravam reciprocamente. Traçavam-se fronteiras intransponíveis
entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e aquelas dos povos subsaarianos.
[...] nos dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente
africano, ela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as
vertentes históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços
seculares.” (M’BOW, 2010, pág. XIII).
130
Para Joseph Ki Zerbo (1972, pág. 46), o método ocupa lugar central para construção
de uma história africana descolonizada. Mas para isso, seria necessário o enfrentamento das
ideologias racistas, através do cruzamento de fontes, e o trabalho interdisciplinar :
Tudo pode histórico para o historiador atento. Tudo e não apenas as datas das
batalhas ou de tratados, os nomes dos príncipes e dos presidentes da república. O
homem tornou histórico tudo àquilo que tocou com a sua mão criadora: a pedra
como o papel, os tecidoscomo os metais, a madeira como as joias mais preciosas.
Não negamos longe disso o valoas provas escritas. Mas por necessidade e por
convicção, rejeitamos a concepção estreita e ultrapassada da história só pelas provas
escritas, teoria segundo a qual certas zonasda África mal acabariam agora e sair da
pré-história […] somos por uma história de múltiplas fontes e polivalente, que tome
em conta absolutamente todos os vestígios humanos deixados pelos nossos
antepassados […].
Os fetichistas da escrita eram os historiadores agentes da historiografia colonial, que
influenciavam a desqualificação da oralidade enquanto documento histórico. Havia também a
categoria dos funcionalistas que viam a história como fonte mitológica, a dos iconófilos, que
desconfiam de sistemas de contagem do tempo fora da estética e logica do calendário greco-
romano. Outro problema identificado por Zerbo (1972) era a respeito dos historiadores
especialistas em África que consideravam a legitimidade da história oral, condicionavam-na a
fontes escritas, entendidas como mais precisas, ele considerava que o debate mais importante
sobre a história oral era sobre que método adotar para diagnosticar as tradições e selecionar
com toda a segurança aquilo que é digno de servir como fonte para a história.
A concepção de história elaborada por Joseph Ki Zerbo (1972) está no campo amplo
de ação investigativa que transcende laboratórios, museus e o universo livresco da literatura
científica. Por um lado, o historiador deve reconstruir o passado africano, e por outro, deve ser
capaz de desconstruir mitos e preconceitos sociais, eenfrentar as dificuldades referentes aos
métodosno campo da oralidade. Na perspectiva do historiador, a história enquanto ciência não
admite uma postura neutra do historiador da África, que mesmo participando ativamente de
seu tempo, comunidade e sociedade, deve mantero tempo e distância necessários para
conservar seu papel de testemunha.
O historiador da África, sem ser um mercador do ódio, deve dar à opressão do
tráfico de escravos e à exploração imperialista o lugar que elas realmente ocuparam
na evolução do continente e que tantas vezes e tão habilmente é minimizado por certos historiadores europeus, com resultados terríveis para a mentalidade dos
jovens africanos que nos bancos das escolas se alimentaram deses manjares
envenenados. (ZERBO, 1972,pág. 35)
131
O antigo Egito está presente na História da África Negra, Joseph Ki Zerbo não se priva
em estabelecer continuidade entre as atividades ocorridas no Egito e na África atual. Neste
sentido, cita os exemplos dos Mossi que comemoram os trinta anos do Rei, assim como no
Egito comemoravam-se trinta anos do Faraó, durante a festa do Sed. Em diálogo aberto com
Cheik Anta Diop, Joseph Ki Zerbo refere-se ao parentesco linguístico entre o Egito e demais
regiões do continente, afirmando que:
Fornece uma hipótese cientifica de trabalho. abre perspectivas espantosas,
intrigantes e estimulantes ao historiador, que vê o parentesco linguístico do haussa e
do egípcio antigo ....Tais trabalhos podem permitir, pelo estudo genético e
comparativo das gramáticas, reconstituir como no caso das línguas indoeuropeias,
tronco da evolução. (ZERBO, 1972:24)
Ki Zerbo explora evidências da rota do milho a partir do antigo Egito para o centro
leste do continente. A expansão do totemismo das populações do vale do Nilo, exemplificadas
pela cabeça de boi apresentadas de perfil e com chifres de frente, possui similares com as
configurações no Vale do Nilo, como na palheta de Narmer. Na perspectiva de Joseph Ki
Zerbo o continente africano possui uma forte rede de inter-relações de regiões, o autor
assume a existência de uma espécie de solidariedade histórica entre as populaçõesdo Vale do
Nilo, Sudão, África Oriental e a floresta guineense: Houve trocas interafricanas que
constituem um puzzle apaixonante e explicam as analogias surpreendentes que se verificam
através do continente do ponto de vista das estruturas políticas, das materiais e artísticas
(ZERBO, 1972,pág. 34).
Joseph Ki Zerbo critica as ideologias raciais presentes na construção do conhecimento
histórico, na sua perspectiva a divisão em etnias e cores ocupa um lugar tão pernicioso quanto
à rigidez das fronteiras coloniais criadas pelo tratado de Berlin. Para os historiadores da
África a reconstrução da história das civilizações da antiguidade, a concepção e o método
foram questões chave para a descolonização da história da África. A seguir, o trabalho de
Walter Rodney acrescenta mais um elemento fundamental para a descolonização da história, a
dimensão do ensino e militância do historiador.
132
Figura 27: Walter Rodney
Fonte: http\www.rodneyfoundation.com
3.5 Dr.Walter Rodney
O historiador Walter Rodney compartilha
com Joseph Ki Zerbo e Cheikh Anta Diop o
reconhecimento internacional, entretanto no
Brasil, ambos compartilham o desconhecimento
nacional. Faltam traduções e, em alguns casos, a
desqualificação acadêmica é um obstáculo ao
conhecimento histórico e historiográfico africano.
Nascido em 1942 na Guiana, Walter Rodney deu
continuidade ao ativismo político de seus
familiares, que integravam movimentos sociais
anti-imperialistas.
Em 1966 Walter Rodney concluiu o curso de P.H.D. pela escola de Estudos africanos
e Orientais de Londres, e a partir deste ano iniciou seus trabalhos na Universidade de Daar es
Salaan na Tanzania, associando-se a lendária East Áfrican Publishing House. Em sua época,
um dos diferenciais do trabalho de Rodney foi construir uma rede de diálogo entre o
pensamento marxista e o pensamento pan-africano, mas a posição de Walter Rodney foi de
exceção, por que o marxismo exerceu um poder hegemônico no pensamento intelectual no
continente e na diasporico, assim como Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo, o Pan-
africanismo em Rodney era uma plataforma de militância política, afirmação cultural e do
fazer ciência.
A obra de mais impacto e popularidade de Walter Rodney é Como a Europa
Subdesenvolveu a África, original de 1972. A tese central de Como a Europa Subdesenvolveu
a África é de que o colonialismo foi um sistema criado conscientemente pelos
paíseseuropeuspara subdesenvolver o continente africano, por conseguinte, as consequências
seculares do mesmo precisavam ser analisadas sob a perspectiva da dimensão social da
exploração africana e da distorção da sua tecnologia. Outra característica importante da obra
foi à metodologiade trabalho, orientada sob uma perspectiva historiográfica nitidamente pan-
africana (RODNEY, 1975, pág. 50):
1) Reconstruir o caráter do desenvolvimento africano anterior à chegada dos
europeus;
2) Reconstituir o caráter da evolução registrada na Europa antes de sua expansão;
133
3)Analisar o contributo da África ao desenvolvimento presente da Europa;
4)Analisar o grau de responsabilidade da Europa no atual subdesenvolvimento
africano
Na proposta de Rodney as fronteiras acadêmicas deveriam ser ultrapassadas e o
intelectual dedicar-se a mediação pública dos problemas vividos pelasociedade, com os
movimentos sociais e suas reinvidicações. A partir do início da década de 1960 Dr. Rodney
participou de atividades e vivências no Caribe com o movimento Black Power, comunidades
Rastafarie remanescentes da UNIA de Marcus Garvey.
As experiências de Walter Rodney com movimento Black Power e Rastafari foram
compiladas no livro Os Fundamentos com Meus Irmãos, publicado em 1969 pela Bogle-
L’Overture Publications, editora administrada em Londres pelos ativistas políticos e
empresária Jessica Huntley e Eric L. Huntley. Neste trabalho, Rodney fez considerações
importantes sobre a atenção e dedicação que Marcus Garvey prestou ao ensino de história
para a mobilização e conscientização política das massas .
Na perspectiva de Walter Rodney a estratégia de mobilização da população preta e a
aquisição do conhecimento africano eram dois princípios básicos para a utilização da história
como arma de libertação mental. Rodney criticou duramente o governo jamaicano durante a
década de 1960, por vetar projetos para o ensino de história da África e de línguas africanas
no país (1990, pág. 65). Sob a temática das civilizações africanas Rodney também expôs suas
análises e reflexões nos ensaios “História africana e Cultura” e “História africana a serviço da
Revolução Preta”, em que dialogou com Nações Negras e Cultura de Cheik Anta Diop.
Destacamos aqui três ideias de Walter Rodney sobre história e civilizações da
antiguidade presentes nos ensaios História africana a serviço da revolução Preta, e História
africana e Cultura inseridos em Os Fundamentos com meus irmãos. Rodney critica a forma
elitizada que os estudiosos europeus trabalharam a história das civilizações africanas,
estritamente vinculadas à formação de Estados, sem elementos importantes como a cultura
cotidiana, famíliae sociedade (RODNEY,1990, pág. 66), tradução nossa:
A presente história escrita do continente não toca nas vidas de milhões de africanos
que viviam fora dos estados: como Egito, Kush, Etiópia, Gana, Benim, etc. Esses reinos mesmo dentro os relatos históricos, muitas vezes concentram-se estritamente
sobre o comportamento dos grupos de elite e dinastias, precisamos retratar os
elementos do cotidiano, para compreendermos a cultura de todos os africanos...A
hospitalidade africana, a morte e o tratamento com idade, a lei e a ordem pública, a
tolerância social e etc.
134
Na perspectiva de Walter Rodney, o lugar da mulher e a questão de gênero na
antiguidade africana não deveriam ser ignorados, uma vez que (RODNEY,1990, pág.
53,tradução nossa): As mulheres desempenharam na parte importante na estrutura política de
Kush, e isso é algo que se encontra na maior parte da África Negra. Havia grandes rainhas de
Kush, e considera-se que Candace, mencionada na Bíblia como a rainha da Etiópia, era uma
Kushita. No ensaio África História e Cultura, Rodney reconheceu na geografia africana um
fator chave para a localização das primeiras civilizaçõese criticou a forma pela qual o Antigo
Egito era apresentado nos livros didáticos (RODNEY, 1990, pág. 54), tradução nossa:
As civilizações do Nilo. O Nilo é um dos grandes rios da África e do mundo. Um
ramo, o Nilo Azul começa na Etiópia, enquanto o Nilo Branco começa em Uganda. Eles se reúnem no Sudão e, em seguida, correm para o mar através do Egito. Poucos
locais são mais espetaculares do que as Murchison Falls no Nilo Branco e Tisisat cai
no Nilo Azul, mas o Nilo é famoso não só por causa de seu tamanho e de grande
beleza, mas o Porquê é o berço de civilizações antigas... A história do Egito dos
faraós é bem conhecida, e não deve ser difícil obter um bom livro (com fotografias).
Mesmo assim, os brancos são rápidos em negar que o Egito Antigo era africano
...Por muitos anos uma linhagem de reis negros governou o Egito.
A problemática dos manuais que abordam a antiguidade africana sempre foi elemento
de preocupação de historiadores comprometidos com mudanças de concepção, propósito e
objetivo da ciência histórica. Em nossa opinião, Walter Rodney poderia estabelecer uma
análise crítica sobre diversos períodos da história africana, mas optou em observar o tema das
civilizações porque é a partir do mesmo que toda a história antiga, recente e atual do
continente africano é alienada e distorcida. Cheik Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter
Rodney estiveram demasiadamente preocupados com esta situação e não deixaram de
registra-las em suas obras.
3.6. Educação e manuais de história
Cheikh Anta Diop expressou sua preocupação com a educação dos jovens,
especificamente em relação aos livros didáticos, na perspectiva de Cheikh Anta Diop os livros
didáticos foram capazes de influenciar graves distorções a respeito da composição etnico-
cultural do antigo Egito. Em Nações Negras e Cultura (1979) Diop criticou a formação nos
níveis fundamental e universitário na formação psicológica das pessoas, desencadeada pelos
manuais didáticos, e não se intimidou em acusar as academias ocidentais de ter ciência da
falsificação de documentos e produzir manais de história “voluntariamente confusos” (1974),
por manipularem racialmente cores dos egípcios como forma de assegurar a supremacia
branca e o eurocentrismo em livros didáticos de estudantes de 13 e 14 anos.
135
No terceiro capítiulo de Nacões Negras e Cultura, Falsificacão Moderna da História,
Diop (1979,pág. 202) após fazer uma crítica as teses antropológicas de tentativa de
branqueamento e afasatamento do antigo Egito da realidade etnico-cultural africana, analisa o
efeito, ou reflexo, destas teses nos manuais didáticos de história:
Os manuais atuais, simplesmente se suprime a questão : o mais frequente é que se
tome partido, que se afirme categoricamente que os egipcios era brancos.Todos os
leigos honestos tem então a impressão de que uma afirmação semelhante deveria estar apoiada necessariamente sobre trabalhos solidos anteriormente estabelecidos e
não há nada disso.
Durante a década de 1960 Joseph Ki Zerbo via que o ensino de história da África tinha
um papel estratégico e fundamental, pois: O ardor nacional baseado no conhecimento do
passado africano não pode ser detido porque determinado arqueólogo evita pronunciar-se
sobre origem de um crânio pré-histórico. Na concepção de Rodney as tensões raciais e
coloniais encontravam campo espaço de ação nos livros didáticos. Sob as temáticas da
antiguidade africana e suas civilizações Rodney via como problemática a dificuldade de se
conseguir imagens do antigo Egito e as que existiam eram reproduções das originais
arbitrariamente clareadas ou pintadas de branco. Uma critica também compartilhada por Diop
(1979) em Nações Negras e Cultura. De forma incisiva, Walter Rodney chegou a afirmar que:
Seria preferível, num certo sentido, ignorar esse lixo e afastar os nossos jovens
desses insultos, mas,infelizmente, um dos aspectos do atual subdesenvolvimento
africano são o fato de os editores capitalistas e os acadêmicos burgueses dominarem
a cena cultural e assim ajudarem a moldar as opiniões do Mundo inteiro. É
precisamente por isso que, escritos desse calibre que justificam o tráfico de escravos
devem ser denunciados como propaganda racista burgueses absolutamente afastados
da realidade[...] interpretações erradas das causas do subdesenvolvimento são provocadas pelo preconceito de pensar e pelo erro de crer que se poderão descobrir
as razões do subdesenvolvimento dentro da economia subdesenvolvida. Só se
conseguirá uma explicação verdadeira se se analisarem as relações entre África e
certos países desenvolvidos e se reconhecerem nelas relações de exploração”
(RODNEY, 1972 pág. 60).
Entre os três autores, como podemos observar, houve um conjunto de preocupações e
acões direcionadas a qualificacão dos manuais de história da África. Faz-se necessária a
compreensão que no quadro da descolonizacão da história da África, a educacão e o estudo de
história foram questões chave para os historiadores, e consideradas como estruturais na
constituicão dos novos Estados africanos independentes.Foi este lugar de protagonismo da
história da África que justificou que dez anos após a primeira publicação de Nacões Negras e
Cultura e um ano após a criacão da Organização da Unidade africana (OUA) fosse criado o
projeto História Geral da África em 1964, tema do nosso próximo capítulo, mas antes faremos
alguns comentários conclusivos .
136
Conclusões
A valorização patrimonial da história da África verificada no pensamento de
lideranças políticas africanas durante as lutas de libertação e construção de Estados
independentes foram beneficiadas pela construção de grandes centros de ensino e pesquisa,
assumidamente de caráter pan-africano. Entretanto, sem o trabalho de historiadores realmente
conscientes, estas instituições estariam fadadas a reprodução das ideologias racistas presentes
em temas, concepção e propósito do ensino de história.
Os historiadores reabilitaram a história africana em um projeto árduo de pesquisa,
ensino e produção de materiais, cujo objetivo era a descolonização da história e identidade
africanas. O trabalho sobre a antiguidade africana e suas civilizações foi imperativo para este
processo, uma vez que tal temática sofreu manipulação dos pensadores racistas e acabou por
desencadear uma série de distorções para a história da África como um todo. A própria
egiptologia teve sua parte em uma tendência eurocêntrica de afastamento do Antigo Egito do
restante do continente, uma prática acadêmica racista sustentada na ideologia de que uma
civilização milenar como o antigo Egito não poderia ter sido criada por africanos, entendidos
como selvagens e primitivos.
Destacamos os trabalhos de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo e Walter Rodney por
que identificamos a preocupação direta dos três com a renovação total de método, propósito e
concepção da história. E neste sentido, os três não deixaram de prestar atenção ao
conhecimento sobre o Antigo Egito, e a qualidade do material didático oferecido aos
estudantes, materiais repletos de distorções e ideologias de cunho racista.
A ideia de descolonização da História africana foi transformada em um projeto para a
formulação de uma obra capaz de sintetizar toda a história do continente africano. O projeto
foi criado em 1963 e apoiado por Estados africanos independentes e pela UNESCO.
Entendemos que Organização da Unidade africana (OUA) criada em 1963 influenciou
diretamente a proposta de formulação da História Geral da África. No próximo capítulo
comentamos a relação influência da maior instituição pan-africana continental, a Organização
da Unidade africana, com a projeção e confecção da História Geral da África.
137
Capítulo 4: ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA E HISTÓRIA GERAL DA
ÁFRICA (UNESCO)
O conhecimento da nossa história é indispensável para estabelecer a nossa
personalidade e a nossa identidade de africanos. Proclamamos hoje aqui que a nossa
maior tarefa consiste na libertação definitiva de todos os nossos irmãos africanos
que se encontram ainda sob o jugo da exploração e do domínio estrangeiro.
Haile Selassie
A História é uma fonte na qual poderemos não apenas ver e reconhecer nossa
própria imagem, mas também beber e recuperar nossas forças, para prosseguir
adiante na caravana do progresso humano.
Joseph ki-Zerbo
Há uma equação política envolvendo a Organização da Unidade africana criada em
1963, e o projeto da História Geral da África iniciado em 1964. Historiadores, movimentos
sociais e lideranças políticas foram os agentes que protagonizaram uma grande e diversificada
frente de luta, tanto pela descolonização do território, quanto pela descolonização da história
africana. Ao mesmo tempo, a formulação de uma história de caráter continental está
completamente interligada as intenções de uma unidade federal africana.
Nosso objetivo neste capítulo é estabelecer uma relação entre os propósitos da
Organização da Unidade Africana e a História Geral da África. Interessamos-nos pelo
processo de criação da Organização da Unidade africana, pelas etapas de confecção da
História Geral da África e por seu lançamento parcial no Brasil durante o início da década de
1980.
4.1 Unificar para Renascer
O contexto político e econômico da década africana de 1960 foi de nítida bipolaridade
entre um grupo numeroso de líderes políticos defensores da continuidade dos laços de
dependência colonial (Togo, Daomé, Alto Volta e Costa do Marfim e outros), e outro grupo a
favor da independência e formação de uma confederação de estados africanos, formado por
Etiópia, Gana, Tanzânia, Mali e Guiné Conacri basicamente. O grupo disposto a manter as
relacões de dependência econômica foi denominado Monróvia, em referencia a capital da
Libéria, sede da sua primeira reunião. Em menor número, o grupo denominado Casa Blanca,
em referencia a sua primeira grande reunião na capital do Marrocos.
138
O ano de 1962 foi especialmente produtivo para o projeto da Unidade africana, porque
os grupos de Monróvia e Casa Blanca aceitaram dialogar entre si. Este diálogo foi dinamizado
pelo Imperador Etíope Haile Selassie e pelo movimento Pan-African Freedom Movement for
East, Central e South Africa. Haile Selassie foi um militante incansável pela Unidade
africana. Lutou bravamente para a dissolução dos grupos de Monróvia e Casa Blanca através
da mediação de conflitos e da produção de conferências internacionais voltadas ao
estabelecimento de acordos entre diferentes lideranças políticas.
Mas, o contexto das independências no início da década de 1960 mostrava seus
primeiros sinais trágicos. No Togo, o recém-eleito presidente Silvanus Olímpio foi
brutalmente assassinado em Lomé durante um golpe de Estado, em nossa opinião, a ascensão
de Olímpio poderia deslocar o Togo para uma posição de insubmissão frente às investidas
neocoloniais. A morte de Silvanus Olimpio foi um drástico sinal da prática de golpes militares
contra Estados africanos que assumiram uma posição anticolonial.
Para Haile Selassie, as ameaças e tensões entre chefes de Estado deveriam ser
imediatamente solucionadas de forma institucional, tal posição foi de encontro às intenções de
todo o grupo de Casa Blanca e atingiu lideranças mais identificadas com Monróvia, como
Milton Obote de Uganda. Após uma série de encontros com chefes de Estado, Haile Selassie
lançou a pedra fundamental da maior reunião de lideranças já realizada no continente
africano, onde em 1963 foram criadas a Carta africana e a Organização da Unidade africana,
assinadas e concordadas por trinta e um chefes de Estado.
Em diálogo com os pesquisadores Edem Kodjo e David Chanawa (2010), observamos
que os primeiros dez anos da OUA foram totalmente dedicados à mediação e arbitragem de
conflitos, apoios aos movimentos de libertação e relações diplomáticas. O campo dos
conflitos onde a OUA inseriu suas competências dividiu-se entre o combate ao colonialismo
(e luta contra o racismo), e as tensões em fronteiras coloniais, como entre Togo e Gana, Líbia
e Níger, Etiópia e Somália, Gabão e Guiné Equatorial. A primeira reunião extraordinária da
OUA foi realizada em 1976, em Adis Abeba, objetivando a resolução dos conflitos em
Angola. De forma objetiva, o regime do Apartheid na África do sul foi duramente criticado e
condenado, o apoio de Israel aos colonizadores Portugal e África do Sul foi denunciado, e
meios foram acionados para impedir as relações econômicas destes em território africano.
139
Para a luta de libertação foram criados fundos financeiros e um comitê africano de
libertação, sediado em Dar es Salaam na Tanzânia, os países que integram o comitê foram
Argélia, Uganda, Egito, Senegal, Egito, Etiópia, Zaire, Guiné, Tanzânia e Nigéria. Os apoios
aos movimentos de libertação foram em nível material, logístico e de formação em
conhecimentos técnicos e políticos, entre os movimentos diretamente beneficiados pela OUA
estiveram a FRELIMO, MPLA, Patriotic Front, SWAPO e o ANC. A diplomacia
internacional da OUA na Europa conquistou importantes aliados contra o Apartheid, como a
Organização Internacional de Trabalho, ONU e UNESCO, que criaram comitês antiapartheid.
A consciência e determinação política de Haile Selassie foram decisivas para criação
da Organização da Unidade africana em maio de 1963. Uma das maiores preocupações de
Haile Selassie foi à relação às tensões e cisões internas entre as lideranças africanas
representadas na OUA, mais que um patrocinador material da organização, Haile Selassie foi
o mediador pacífico entre o grupo de Casa Blanca e Monróvia, chegando a afirmar durante a
cerimônia de fundação da OUA que:
Temos de evitar, antes de qualquer coisa, cair nas ciladas do tribalismo. Se nos
dividirmos entre nós numa base tribal, isso constitui um convite à intervenção
estrangeira, com todas as consequências nefastas daí advêm... reconhecendo que e o
futuro deste continente reside, em ultima instancia, numa união política, devemos
reconhecer também que são numerosos e difíceis os obstáculos a vencer para lá
chegar (ZERBO, 1972, pág. 400).
Haile Selassie rogou a superação das diferenças artificiais entre países africanos
através da OUA, a criação de um centro político e administrativo do continente africano seria
na verdade o espírito da Organização da Unidade africana. Nas palavras de Haile Selassie
durante a conferência em 1963, em tradução nossa:
Reconhecendo que o futuro do continente reside, em ultima instancia, numa união política, devemos reconhecer também que numerosos e difíceis os obstáculos a
vencer para lá chegar. Por consequência, é inevitável um período de transição...
certas organizações regionais devem assumir funções e satisfazer necessidades que
não poderiam ser satisfeitas de outra maneira. Mas o que existe de diferente aqui é
que reconhecemos estas situações no seu justo valor, isto é, como sucedâneos e
expedientes temporários de que nos servimos até o dia em que tivermos atingido as
condições que tornem possível a unidade africana total ao nosso alcance... esta
conferencia não pode terminar sem a adoção de uma carta africana uma, que reúna
os atributos que escrevemos. A da Carta africana de que falamos deve ficar de
harmonia com a das Nações Unidas. (SELASSIE, 1967, pág. 143)
De acordo com o segundo artigo da Carta africana os objetivos da OUA eram os
seguintes: a) Fortalecer a unidade e a solidariedade dos Estados africanos; b) Coordenar e
intensificar sua colaboração e seus esforços para proporcionar uma vida melhor aos povos
140
africanos; c) Defender sua soberania, integridade territorial e independência; d) Erradicar
todas as formas de colonialismo no continente africano; e) Promover a cooperação
internacional, observando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos
do Homem.
A função da Carta africana, que Haile Selassie cita em seu discurso, era formalizar e
amalgamar o processo de independência e unidade do continente africano. As partes fracas da
organização foram aquelas que abriam espaço para influências de países europeus e Estados
Unidos, estas brechas foram articuladas pelas elites africanas marionetes, preocupadas com a
manutenção de seus privilégios individuais:
Apesar de obstáculos, conseguimos estabelecer a organização de unidade africana.
Isto tem conseguido porque a unidade que buscamos resultou da profunda convicção
de que o povo da África para a aceleração do seu desenvolvimento político, social e
económica. O fato de que tivemos sucesso em colocar a Fundação da nossa unidade
deveu-se principalmente ao desejo de todos os africanos se unem em uma luta
comum contra o colonialismo, a pobreza, a doença e a ignorância que são inimigos
da África. (SELASSIE, 1967, pág. 247, tradução nossa).
A Organização da Unidade africana dividia-se entre uma Conferência de Chefes de
Estado e de Governo, um Conselho de Ministros, sete ministérios (organizados em comissões)
e um Secretariado Geral. As comissões eram de Mediação de Conciliação e Arbitragem;
Econômica e Social; Educação e Ensino; Defesa; Científica, Técnica e Pesquisa; Higiene e
Nutrição e o Comitê africano de Libertação.
Mesmo com muita dificuldade de se formar uma ideia objetiva sobre o tipo de unidade
necessária para o continente, houve consensos e sinais de esperança. Joseph Ki Zerbo (1972)
comenta que as propostas de um mercado e moeda comuns para todo o continente
conquistaram aliados poderosos, como Milton Obote de Uganda, e Julius Neyrere da
Tanzânia. Estes lideres enfatizavam que a dominação psicológica e espiritual era um
impedimento a unidade africana. As unanimidades também existiam, em relação à libertação
colonial, ao fim do apartheid, à criação do banco de desenvolvimento e da concepção da
Unidade envolvendo todos os Estados e Ilhas.
Os primeiros anos da Organização da Unidade africana foram de fissuras e desgastes
internos, os problemas entre Monróvia e Casa Blanca sobrepujaram o ordenamento estrutural
promulgado pela Carta africana. Joseph Ki Zerbo (1972) observa que imediatamente após a
criação da OUA os franceses esforçaram-se para fortalecer a União africana e Malgaxe
141
através de Togo, Costa do Marfim e Madagascar. A União africana e Malgaxe foi uma
organização nitidamente neocolonial, referencial político de países africanos de língua oficial
francesa para ONU, um contrassenso para os objetivos da OUA. Ocorreram tensões a respeito
da criação de um exército continental que foi vetada, mas substituída pela criação em Uganda
da Comissão africana de Libertação. Existiam problemas de fronteira entre Argélia e
Marrocos, logo mediados e apaziguados pela intervenção de Haile Selassie e de Amadou
Keitá do Mali.
A unidade africana requeria a superação de uma série de desafios, e a educação foi um
dos centrais, e esteve presente na formação da militância social, nas perspectivas dos
historiadores e nos projetos políticos de chefes de Estado. Comentamos alguns exemplos
desses posicionamentos anteriormente, sublinhando as ações de Kwame Nkrumah com o
Convention People Party no Gana, e de Amílcar Cabral com o Partido africano da
Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde. No sentido educacional, historiadores da
África como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo e Walter Rodney defenderam em suas
pesquisas a necessidade de uma história e currículos adequados à realidade do continente,
cabendo ao ensino de história à construção de uma consciência humana e africana para as
atuais e futuras gerações.
4.2 A Educação na Organização da Unidade africana
Durante as décadas de 1950 e 1960, as primeiras escolas secundárias e universidades
na Nigéria, em Uganda, Senegal, Quênia e Gana, criaram novas desigualdades em uma
mescla de racismo e opressão econômica. No ano de 1959 em Uganda, a partir de dados
analisados por Walter Rodney (1975), para cada aluno africano o investimento era de 11
libras, indiano 35 libras e europeu 156 libras, no liceu do Senegal em 1946 dos 723 alunos
somente 174 eram africanos, durante a década seguinte na Universidade de Dakar 30% dos
alunos eram africanos e 70 % franceses. Na realidade social dos territórios portuguêses os
investimentos no setor educacional eram mínimos, em Moçambique, por exemplo, a
prioridade era para portuguêses.
A exploração do Congo no final da década de 1940 provocou tímidos investimentos
em formação educacional, entre os 18.000.000 de habitantes 16 eram licenciados. Com base
142
em dados cedidos pela UNESCO, Walter Rodney (1975) apresenta alguns aspectos
pertinentes sobre o acesso ao ensino na África dos anos 1960. A população de nações
africanas independentes chegava a torno de 170.000.000 de pessoas, 25.000.000 em idade
escolar, 13.000.000 sem oportunidades contra 12.000.000 com oportunidade, desse número
cerca de 6.000.000 completam a série primária, três em cada 100 conhecem o secundário, e 2
em cada 1.0000 ingressavam em universidades, dentro do continente como no Gana, Ibadan,
Sudão e Makerere.
A posição da Educação dentro da estrutura da Organização da Unidade africana
(OUA) recebeu influência direta da experiência de Haile Selassie e da Imperatriz Menen,
responsáveis pela formulação da educação etíope. Na década de 1940 a Imperatriz Menen
coordenou a criação escolas e pela qualificação de currículos técnicos na década de 1940. A
educação dentro do esquema geral da OUA esteve sob responsabilidade do primeiro
secretário de educação e cultura da Comissão de Educação e Ensino, o professor M. Diallo
Telli, intelectual progressista de Guiné Conacri. Durante a conferência da OUA Haile Selassie
apresentou a todos os Estados membros da OUA um projeto formal para criação de uma
Universidade africana, capaz de transcender interesses individuais em nome das necessidades
do continente, na verdade uma universidade pan-africana.
A OUA realizou sua primeira conferência de ministros em 1964, a partir da qual foram
prestados incentivos em defesa das línguas africanas, escolas, alfabetização e currículo. O
apoio da OUA foi fundamental para a produção dos festivais Pan africanos, conhecidos como
World Black and Áfrican Festival of Arts and Culture em Argel no ano de 1969, e na Nigéria
em 1977. No Festival Pan africano de Argel foi lançado o Manifesto Cultural africano, na
edição nigeriana o tema central foi Civilizações Negras e Educação, foi durante o Festival de
Argel que Joseph Ki-Zerbo terminou suas pesquisas para a confecção de História da África
Negra, publicado em 1972.
Entre 1980 e 1982 ocorreram importantes avanços no setor cultural e educacional da
Organização da Unidade africana. No ano de 1980 foi fundado o Centro de Estudos
Linguísticos Orais e um Fundo Cultural Interafricano. Em parceria com a UNESCO, a OUA
organizou em 1981 em Libreville importante Congresso de Ciência e Cultura, em 1982 a
Segunda Conferência de Ministros da Educação, Primeira Conferencia de Reitores africanos e
Vice Chanceleres das Universidades africanas, onde foi criada uma Comissão Cientifica
africana com um secretariado executivo em Lagos (Nigéria) possibilitando posteriormente a
143
criação do primeiro Congresso dos Cientistas africanos e a premiação do Renascimento
Científico africano .
Mencionamos na abertura desse capítulo que as lutas políticas e armadas pelas
independências africanas confundem-se com as lutas para descolonização da história, ruptura
epistemológica com os limites raciais do euro centrismo. Historiadores da África, nascidos na
diáspora e no continente assumiram o lugar militante em movimentos sociais, e de
interlocução com o Estado.
No continente africano, dedicamos quase que todo o quarto capítulo a importância do
trabalho das escolas e dos historiadores articulados com a militância política, nesse sentido,
vimos o exemplo de Joseph Ki Zerbo e Cheikh Anta Diop. Os historiadores africanos e da
diáspora encararam frontalmente o desafio de descolonizar a história africana, mas para isso
teriam que cumprir etapas de sua reorganização, escrita, reescrita e ensino. A percepção real
destes desafios foi importante para a criação do projeto da História Geral da África em 1964.
Figura 28: Diagramas estruturais das comissões da Organização da Unidade africana - OUA
Fonte: Adaptado da História Geral da África Livro VIII (2010)
Comissão de defesa
Conferência de chefes de Estado e de
Governo
Conselho de Ministros
Comitê Africano De Libertação
Comissão De Higiene E Nutrição
Comissão Cientifica Tecnica E Pesquisa
Secretariado Geral
Comissão De Mediação De Conciliaçãoe
De Arbitragem
Comissão Economica E
Social
Educação e Cultura
144
4.3 História Geral da África (UNESCO)
As primeiras reformas educacionais em países africanos independentes foram
iniciadas após a Conferência dos Ministros africanos em Adis Abeba em 1961, uma
Conferencia que conclamaram Estados-membros a Africanizar seus sistemas
educacionais. Em essência, essas reformas envolveram a revisão dos programas e livros
didáticos, a fim de excluir conteúdos da ideologia colonial. O ensino de História foi
diretamente afetado pelas ideologias coloniais, tradições, personalidades, sociedades, culturas,
contextos e civilizações africanas foram apagadas ou inferiorizadas pelos currículos e
programas das escolas coloniais.
No ano de 1961 Kwame Nkrumah adianta os debates e ações em prol da organização
de uma história africana, convidando o historiador WEB Du Bois para contribuir com a
redação do projeto da Enciclopédia africana. Para Du Bois aquela era uma oportunidade de
exílio do contexto de segregação racial oficial dos Estados Unidos, em meio aos trabalhos e
residente no Gana com sua esposa, em 1963 Du Bois tornou-se cidadão do Gana, mas faleceu
em 29 de Agosto do mesmo ano sob a égide fúnebre de um grande chefe de Estado.
Neste mesmo período, a UNESCO United Nations Educational Scientfic and Cultural
Organization disponibilizou um programa cooperação educacional para países africanos
independentes. Para historiadores da África, a aliança com UNESCO disponibilizou recursos
para pesquisa e escrita de uma nova história da África. A obra História da África Negra,
escrita por Joseph Ki Zerbo entre 1962 e 1969, obteve financiamento parcial da UNESCO seu
setor educacional foi um canal de diálogo com o continente africano e com a diáspora nos
campos da pesquisa, educação e combate ao racismo.
No ano de 1962 ocorreu no Gana o Primeiro Congresso Internacional de Africanistas,
incentivado pelo presidente Kwame N’krumah, que advogava a história da África como
imperativo para os países independentes. A UNESCO participou formalmente como
agenciadora deste congresso, que reuniu mais de 500 especialistas, na ocasião foi
confeccionado por historiadores e chefes de Estado um pedido de parceria com a UNESCO
para a elaboração de uma História da África. Da parte dos historiadores africanos e da
diáspora, alguns já haviam lançado obras de alta relevância – como J.C. Graft-Johnsondo do
Gana, autor de Áfrican Flory: The story of vanished negro civilizations, e Cheikh Anta Diop
do Senegal, autor de Nações Negras e Cultura, duas obras publicadas em 1954.
145
A descolonização africana prosseguiu em sua versão educacional através do projeto de
confecção da História Geral (HGA). O projeto nasceu do posicionamento formal de nações
independentes africanas à UNESCO, em um contexto político, cultural e econômico de luta
pela Unidade africana, como afirma Bethwell Ogot, presidente do Comitê Científico
Internacional criado para confecção da História Geral da África (Ogot). As principais
justificativas apresentadas para confecção de uma obra capaz de reunir a história do povo e
continente mais antigo foram, a preservação de fontes escritas e orais, a construção da
plataforma de um currículo continental e a desconstrução dos mitos racistas instalados
hegemonicamente no oficio dos historiadores da África.
Os processos de criação, conceituação e confecção da História Geral da África
ocorreram ao longo de quase três décadas, em meio a circunstâncias marcadas por conflitos,
tensões, rusgas e acima de tudo muito trabalho. Sem a determinação profissional de
historiadores e especialistas, e os apoios logísticos e financeiros da Organização da Unidade
africana e da UNESCO a obra não seria possível.
No ano de 1965 o presidente da recém formada Tanzânia, Julius Neyrere, ofereceu
todo o apoio a produção de um congresso internacional de historiadores africanos no país. O
pesquisador Hakin Adi (2003) destaca que Julius Neyrere desde quando chegou a presidência
da Tanzânia através do partido TANU (Tanganyka African National Union), evocou políticas
educacionais e apoios internacionais para a população que até 1957 possuía apenas dez por
cento de seu contingente adulto alfabetizada. Em 1963 Neyrere foi condecorado Chanceler da
East African University. Com a união Tanganica – Zanzibar em 1964 Julius Neyrere assumiu
a presidência da Tanzânia, investindo diretamente na educação e no ensino de História – sua
área de formação.
Identificando o momento histórico como propício, Julius Neyrere apoiou a iniciativa
dos historiadores africanos em organizar um congresso, que também contou com o
financiamento da UNESCO. O Congresso internacional de historiadores africanos foi
realizado em Dar ES Salaam, de acordo com o professor Bakary Kamian da École Normale
Supérieure de Bamako, Mali, o objetivo maior do Congresso foi identificar problemas
diretamente relacionados ao campo do ensino e pesquisa da história da África, no campo das
ações concretas para resolução dos problemas quatro pontos foram destacados: historiografia
africana, seus métodos, seus temas emergentes, e o ensino da história africana.
146
A partir de 1965, o projeto de confecção da História Geral da África passa por uma
série de momentos marcados por reuniões administrativas, estruturação da obra, escolha de
temas, comissões e editores. A UNESCO através de seu web site disponibiliza atas das
reuniões, deliberação elaborada pelo comitê cientifica e comissão de especialistas
responsáveis pela confecção da obra. Em 2012 o pesquisador Muryatan Santana Barbosa, do
Brasil, dedicou pesquisa de doutorado ao projeto da coleção História Geral da África.
Baseando-se principalmente na documentação disponibilizada pela UNESCO, Muryatan S.
Barbosa (2012) destaca quatro fases importantes da confecção da História Geral da África.
A primeira fase entre 1965 e 1969, foi definido o comitê científico para confecção da
obra, dirigido pelo professor Kenneth Onuufidjike da Nigéria (vice-reitor da Universidade de
Ibadan). Em 1966 foi realizada reunião em Abidjan, em que foi criada uma Comissão
Científica e definidos os objetivos de organizar fontes, sintetizar o conhecimento até então
existente construir uma nova história da África. Durante esta fase de Confecção da História,
ocorreu em Dakar – no Senegal- o Festival das Artes Negras de 1966, promovido pelo
presidente Leopold Sedar Senghor. O evento reconheceu a influência mundial de WEB Du
Bois, já falecido, e de Cheikh Anta Diop. Este festival promoveu uma aproximação entre
Escolas de todo o continente.
Mas a promoção da educação no continente enfrentaria um velho problema, as elites
subalternas e individualistas, completamente manipuladas pelos interesses neocoloniais de
países europeus. O neocolonialismo conseguiu formar quadros em dois setores decisivos na
estrutura dos novos Estados africanos independentes, o setor militar e na imprensa. Assim, a
serie sangrenta de golpes de Estado coordenados por militares que inflamaram o continente
africano durante toda a década de 1960 foram precedidos por uma forte propaganda contra
lideranças nacionalistas pan-africanas, via jornal impresso, panfletos e rádio. Em 1966,
Kwame Nkrumah – um ardente defensor da liberdade de imprensa e direitos de militares- foi
traído por um conluio entre imprensa, militares e governo do Reio Unido, durante viajem
diplomática a Hanoi, Vietnam do Norte, militares organizaram um Golpe de Estado,
prenderam e eliminaram pessoas com apoio de uma forte campanha contra o governo de
Nkrumah, orquestrada por esquemas políticos internacionais .
Neste mesmo ano Nkrumah direciona-se a Guiné Conacry para trabalhar ao lado de
Ahmed Sekou Turé, mas o impacto político do golpe atingiu a saúde de Kwame Nkrumah que
acabou por ser diagnosticado por um cancro na garganta, doença que o fez falecer
147
prematuramente em 1972, sem ter tido a possibilidade de retornar ao Gana. Seu amigo e
companheiro político Amílcar Cabral prestou-lhe um tributo durante Simpósio Organizado
pelo Partido Democrático da Guiné, no Palácio do Povo de Conakry, por ocasião do dia
dedicado a Kwame Nkrumah, em 13 de maio de 1972.
Prestamos homenagem ao pioneiro do Pan-africanismo, ao combatente infatigável,
sempre inspirado, da Unidade africana. Prestamos homenagem ao inimigo declarado
do neocolonialismo em África, como no resto do mundo, ao estratega do desenvolvimento econômico do seu país. (…) Os povos da África, e principalmente
os combatentes da liberdade, não se deixam enganar. Não venham dizer-nos que
Nkrumah morreu com um cancro na garganta ou qualquer outra doença. Não,
Nkrumah foi morto pelo cancro da traição, cujas raízes devem ser extirpadas de
África, se queremos de fato liquidar definitivamente a dominação imperialista neste
continente. (CABRAL, 1976, pág 195)
As palavras de Amílcar Cabral evocam por si mesmas gratidão, unidade, luta e justiça
perante as agressões neocoloniais vividas no continente africano. Mas ele mesmo, Amílcar
Cabral, estaria no ano seguinte à passagem de Nkrumah em uma situação de traição muito
parecida, mas antes disto voltemos ao processo de confecção da História Geral da África. No
segundo momento, entre os anos de1969 e 1975, a Comissão Científica passou a ser presidida
por Akilulu Habte da Etiópia. O Comitê Cientifico Internacional organizou seminário em
Adis Abeba, onde foram definidos a divisão da obra em oito volumes, a organização
administrativa do projeto, conteúdos e a coordenação das pesquisas. Em 1971 ocorreu outro
seminário, para a escolha dos Editores e uma comissão responsável, formada F. A. Ajay,
Joseph Ki Zerbo, Cheikh Anta Diop e outros.
A quarta fase ocorrida entre 1975 e 1978 foi marcada por dificuldades na confecção do
oitavo Volume - África desde 1935. Nesta fase ocorreram conflitos de ordem ideológica e
organizacionais previsíveis, não há duvidas de que questões relacionadas às ideologias
coloniais, ao Pan-africanismo, raça e racismo não coadjuvaram todas as fases de confecção da
obra, em um volume diretamente relacionado ao momento atual das lutas de independências.
Todavia, durante a última fase entre e 1978 e 1982, a História Geral da África foi finalizada.
Durante a década de 1970 Walter Rodney ingressou na equipe responsável pelo sétimo
volume da História Geral da África, dirigido pelo historiador Adu Boahen. Em 1974 a
UNESCO organizou um dos eventos mais polêmicos dos mencionados trinta anos da
historiografia africana (1950-1970), o Colóquio sobre o povoamento do Antigo Egito e a
Decifração da Escrita Meroíta ocorrido no Cairo em 1974, onde o tema civilizações africanas
148
e os nomes de Cheikh Anta Diop e Teophile Obenga tornaram-se referências de porte
mundial, para o bem e para o mal.
No ano de 1972 foram publicados História da África Negra de Joseph Ki Zerbo e
Como a Europa Subdesenvolveu a África de Walter Rodney, neste ano a Escola de Dakar,
Abidjan, Camarões e Zaire criam a Associação Pan-africana de Historiadores, um organismo
muito criticado por um considerável grupo de intelectuais europeus. No ano seguinte o
governo senegalês apoiou a criação do CODESRIA (Conselho para o desenvolvimento de
Pesquisa em Ciências Sociais em África), com a participação de o Samir Amin, Boubacar
Barry, Joseph Ki Zerbo ente outros.
Junto à ascensão da historiografia e da educação dentro do continente africano as
ações anticoloniais protagonizadas por movimentos remanescentes de luta pela libertação
como SWAPO na Namíbia, MPLA de Angola e o PAIGC de Guiné Bissau e Cabo Verde
continuavam em plena vigor. Com quase uma década de duração a luta campal desencadeada
pelo PAIGC avançou poderosamente na derrubada do governo neocolonial português, no final
do processo de libertação, Amílcar Cabral foi violentamente assassinado em Guiné Conacri
em1973, resultado de um conluio entre PIDE e traidores do movimento de libertação,
infiltrado em Guiné Bissau e em Cabo Verde.
Mas mesmo com a morte de Amílcar Cabral, o PAIGC conseguiu concluir suas
atividades consolidando – pelo menos simbolicamente- a independência de ambos os países.
Amílcar Cabral foi um dos maiores incentivadores da educação e da formação política, de
certa maneira, a vitória do PAIGC em Guiné Bissau favoreceu os combates em outras
colônias portuguesas no continente africano. Portugal viu-se enfraquecido pelas humilhações
sofridas com as derrotas militares na África, e as burguesias forçaram a queda da ditadura
terrorista portuguesa comandada pelo presidente Salazar.
Para a história e a historiografia africanas o inicio da década de 1970 foi marcado pelo
“Colóquio Internacional sobre o povoamento do antigo Egito e a decifração da escrita
Meroíta”, organizado pela UNESCO no Cairo em 1974. No próximo tópico fazemos uma
cobertura geral do colóquio.
149
Figura 29: Relatório do Congresso sobre povoamento do Egito e Decifração da Escrita Meroíta
Fonte: http\:www.unesco.org (2012)
4.4 Cairo’ 74 - Historiografia africana
O Colóquio Internacional sobre o povoamento do antigo Egito e a decifração da
escrita Meroíta foi realizado em dois momentos, o primeiro do dia 28 a 31 de janeiro sobre o
Povoamento do Antigo Egito, e a segunda de1 a 3 de fevereiro tratou da Decifração da Escrita
Meroíta. Participaram do evento pesquisadores representando o Canadá, EUA, França,
Sudão, Republica Árabe Unida, Congo Brazavile, Senegal, Suécia, Malta e Egito. Os
representantes da UNESCO ( 2010, 824) foram Maurice Glélé, Monique Velar e o professor
J. Devisse, que assumiu o cargo de relator do Colóquio.
Cheikh Anta Diop e Theóphile Obenga do
Congo participaram como palestrantes e colaboraram
significativamente na organização do evento, seus
trabalhos foram polêmicos por dois motivos. Primeiro
pelas argumentações científicas de suas teses, segundo
por que ambos prepararam um trabalho
interdisciplinar rigoroso sobre a origem negro africana
do antigo Egito, suas conexões e continuidade
contemporânea no continente africano, com especial
destaque ao parentesco genético linguístico.
Com base na síntese do Colóquio publicada pela UNESCO, comentamos a seguir
aspectos que entendemos como os mais pertinentes nas duas partes do congresso. A síntese
da UNESCO (2010) o divide em cinco momentos: resumo dos textos dos participantes;
declaração dos participantes; discussão geral; conclusão geral; e recomendações.
Os resumos dos textos introdutórios produzidos pelos participantes foram estudados
pelo professor Vercoutter e pela prof. Blanc. Para Vercoutter no campo da antropologia física
e da iconografia as pesquisas sobre o Antigo Egito estavam, até aquele momento, em um
estágio insuficiente, todavia o relator da UNESCO (2010) não se deteve a defender a
preponderância do Delta e a indefinição estética como características do povoamento e
origem do Egito. A Sra Blanc reconheceu a pertinência observou questões mais interessantes
sobre o papel do sedentarismo, e a facilitação de comunicação através do Nilo.
150
Vercouter e Le Blanc identificaram nos resumos, duas tendências historiográficas
distintas, a primeira que desde o período pré-dinástico o Antigo Egito foi habitado por
brancos de pele escura ou negra, e neste sentido os negros só apareceriam a partir da XVIII
Dinastia. Conforme o relatório (2010), A segunda tendência historiográfica entendia que o
Egito foi povoado por africanos desde o início do Neolítico até o final das dinastias nativas,
rechaçando completamente a linha de pensamento racista onde branca civilizada povoou o
Egito do norte para o sul.
As declarações preliminares dos participantes no relatório da UNESCO seguiram as
tendências observadas por Vercoutter e Le Blanc. Professores Cave Soddeberg, Debono,
Ghallab, Abdelgair M. Abdalla, Sauneron, Gordon Jaquet defenderam a origem caucasoide do
Antigo Egito e a pouca credibilidade das migrações internas do Vale do Nilo para outras
regiões do continente. O professor Diop iniciou sua declaração preliminar de forma
pedagógica, apresentando o processo de hominização no continente africano, o processo
orgânico de pigmentação humana (melanina), a ocupação sul-norte do Vale do Nilo entre o
paleolítico superior, e o período proto-histórico. Segundo o registro do redator:
[“...] o professor Diop estudou diversas preparações submetidas a exame de
laboratório em Dacar, constituídas por amostras de pele extraídas de múmias
provenientes das escavações de Mariette”. Todas revelaram e o professor Diop convidou os especialistas presentes a examina-las a presença de considerável teor de
melanina entre a epiderme e a derme. A melanina, ausente na pele branca,
conserva-se durante milhões de anos (ao contrario do que frequentemente se afirma),
como se pode observar pelo exame das peles de animais fosseis. O professor Diop
manifestou o desejo de realizar pesquisas semelhantes com as peles dos faraós cujas
múmias encontram-se no Museu do Cairo.(UNESCO, 2010, pág. 822)
Diop fez uma série de recomendações no campo da antropologia física,
especificamente nos estudos ozonométricos e de grupos sanguíneos, pois os antigos egípcios
pertenciam ao mesmo grupo B da África Ocidental, e não ao grupo O característico da
Europa. Segundo o relatório da UNESCO (2010), no campo iconográfico o prof. Diop
apresentou um dossiê de documentos, e destacou que a iconografia do Antigo Egito era
diferenciada por características sociais e não raciais. Diop registrou a importância das fontes
escritas de autores gregos e latinos como Aristóteles, Luciano, Apolodoro, Ésquilo, Estrabão,
Diodoro da Scicilia entre outros, a demais, para o professor as pesquisas de Volney no século
XVIII e o testemunho bíblico não podem ser negligenciados.
Para finalizar, o professor ressaltou o valor imperativo da autodescrição feita pelos
próprios egípcios, exemplificados pela palavra Egito representado por um pedaço de carvão
151
vegetal. No relatório geral da UNESCO (2010), há o destaque para o depoimento de Diop
sobre o significado de Kemet, o termo mais forte na língua faraônica para a palavra negra ou
preta. O pesquisador não poupou em sua explanação críticas a recusa na aceitação dos
testemunhos antigos, e os propósitos da egiptologia enquanto ciência, uma prática nascida do
imperialismo europeu no continente africano. Professores como Le Clant, Ghallab,
Abdegaldir M. Abdalla concentraram suas exposições na critica a traducão do termo Kemet,
enquanto forma de autodesignação, nos comparativo genético linguístico intercontinental e
nas migrações internas. Em sua declaração, o professor Teophile Obenga apresentou dados de
parentesco entre o egípcio faraônico, o copta e línguas africanas, observando que há uma
diferença entre parentesco linguístico tipológico e parentesco genético de origem (UNESCO,
2010, pág. 829):
Antes de arriscar qualquer comparação, deve-se tomar cuidado para não confundir
parentesco linguístico tipológico, que não permite reconhecer o ancestral pre-dialetal
comum as línguas comparadas, e parentesco genético. Por exemplo, o inglês
moderno, considerado do ponto de vista tipológico, apresenta afinidades com o
chinês; já na perspectiva genética, as duas línguas pertencem a diferentes famílias
linguísticas. Do mesmo modo, o professor Obenga rejeitou a moção de língua mista
com um contrassenso linguístico.
O parentesco genético depende da formulação de leis fonéticas através da
comparação de morfemas e fonemas de línguas próximas. Com base nessas
correspondências morfológicas, lexicais e fonéticas, poder-se-ia chegar às primeiras
formas comuns. Tal procedimento permitiu reconstituir abstratamente uma língua “indo-europeia” teórica, que serviu de modelo operacional e revelou uma
macroestrutura cultural comum partilhada pelas línguas que em seguida se
desenvolveram separadamente.
O professor Obenga também se manifestou interessado nos estudos em semelhanças
tipológicas de natureza gramatical, por entender que estes estudos são capazes de estabelecer
semelhanças entre o egípcio e outras línguas africanas atuais. Na perspectiva de Theóphile
Obenga (2010) os estudos comparativos são capazes de apresentar estreitos parentescos entre
o egípcio antigo comum na língua Bantu. Há uma estrutura genética comum entre os dois, o
redator destaca que o prof. Obenga concluiu afirmando que:
[...] paralelos entre palavras de diferentes línguas palmeira, espirito, arvore, lugar e
entre pequenos fonemas: por exemplo, km (Kem), “negro” em egípcio antigo, torna-
se kame, kemi, kem em copta; ikama em Bantu (com o sentido de carbonizado em
consequência de exposição a calor excessivo), kame em azer (cinzas); Romé,
“homem” em egípcio antigo, torna-se lomi em Bantu. Os mesmos fonemas exercem
as mesmas funções nas diferentes línguas comparadas.
Dessas comparações o professor T. Obenga deduziu a possibilidade de identificar, no
futuro, uma língua “negro-egípcia”, análoga ao “indo-europeu”: [...] Nesse contexto, e
152
considerando o inegável fundo cultural comum a todas as línguas comparadas, dispõe-se de
uma base solida para o desenvolvimento de estudos futuros “(UNESCO, 2010, pág. 831)
O momento de discussão geral sobre os trabalhos foi estabelecido pelos contrastes
entre um Antigo Egito de origem local, negra africana, e um Antigo Egito de origem externa,
caucasoide ou asiática. As argumentações dividiram os participantes em dois lados, um com
Cheikh Anta Diop e Teophile Obenga, origem local, e outro com todos os professores
presentes, origem externa. De acordo com a UNESCO (2010), as principais questões
abordadas direcionaram-se a cronologia, existência de migrações, antropologia física, estudos
iconográficos, análises linguísticas e desenvolvimento de metodologias interdisciplinares e
pluridisciplinares para pesquisas.
Diop iniciou sua argumentação apresentando dados sobre a origem da raça humana no
continente africano há aproximadamente cinco milhões e trezentos mil anos. Defendeu que o
homo sapiens há cento e cinquenta mil anos iniciou seus primeiros movimentos de migração
para outros continentes. A população que ocupava o Vale do Nilo nesse período era Negra.
Considerando a defesa da mestiçagem feita por professores como Vercoutter e Massoulard
como atributos de base raciologica, na concepção de Diop a população negra do Antigo Egito
deve ser considerada em seu todo, e não em subdivisões racialistas modernas e
ideologicamente hierarquizadas. Mesmo sem negar o processo de mestiçagem no Antigo
Egito, o professor Diop salientou que a existência da mesma se deu de fora para dentro do
continente africano, no Alto Egito, por exemplo, a população negra diminuíra a partir das
invasões persas.
Segundo os redatores da síntese do Colóquio (2010), houve um profundo desacordo
dos participantes com as teses do professor Cheikh Anta Diopág. As argumentações
contrárias às teses do prof. Diop concentraram-se na defesa de um paleolítico caucasoide pelo
professor Ghallab, da existência de homo sapiens de várias procedências pelo professor
Shinie, da predominância do Delta como lugar de origem do Egito por El Nadury, e sobre a o
povoamento mestiço, advogado pelos pesquisadores Vercouter, Saunerone Abu Bakr. A ideia
de uma migração do Saara para o povoamento do Antigo Egito foi apresentada como
argumento contrário ao povoamento sul-norte defendido por Diop e Theóphile Obenga. Na
compreensão de Diop, termos como negroide possuíam uma conotação pejorativa, e as
críticas feitas ao seu trabalho eram desprovidas de uma sólida base fatual.
153
Os debates sobre migrações envolvendo o Vale do Nilo e outras regiões africanas
foram entendidos pelos redatores como confusos e inconclusivos. Mais uma vez, conforme a
síntese dos relatores estas críticas direcionaram-se a tese de Diop sobre as migrações em
massa para o Vale do Nilo a partir dos grandes lagos, do sul para o norte gradativamente. O
homo sapiens, nesse sentido, instalou-se progressivamente no Nilo até a latitude de Menfis.
Em corroboração as teses do prof. Diop, o professor Obenga defendeu um contínuo e
uniforme povoamento do Antigo Egito entre o paleolítico superior e o neolítico, com base nas
tradições orais do Egito que indicavam a região dos grande lagos como terra mãe e a Núbia
como um país idêntico.
Diop apresentou um estudo mais amplo a partir de testes com radio- carbono e análise
climatológica no Saara, para a compreensão das migrações interafricanas. De acordo com o
relatório Diop ofereceu aos conferencistas algumas das teses de Nações Negras e Cultura
sobre o povoamento sul-norte, citando a chegada dos Anu durante o proto-dinástico, e o
calendário datado de 4.236 anos com um padrão cíclico de 1461 anos, a estabilidade causada
por abalos sísmicos na bacia do mediterrâneo por volta de 1.450, os ataques dos povos do
mar, e a conquista e expansão coordenada por Narmer em 3.330. No registro dos redatores,
mediante esta exposição do professor não houve debate.
No debate a cerca da antropologia física, a maior parte dos professores insistiu na
necessidade de pesquisas para uma definição conceitual de negro, nesse sentido, na avaliação
dos redatores, Cheikh Anta Diop e Teophile Obenga foram considerados imprudentes ao
alegarem que a própria antropologia física já havia feito suas definições sobre o negro, muitas
delas racistas, e que, por conseguinte, o conceito já possuía sua definição, neste sentido, negar
as características africanas dos egípcios era apenas oportunismo. Para Diop era importante
que os professores parassem de ignorar dados como os trinta e dois mil anos do homem de
Grimaldi, os vinte mil anos do Cro-magnon e os quinze mil do magdeliano. O problema do
Antigo Egito negro africano escorava-se em fatores psicológicos e educacionais dos
professores, mesmo convincente, as teses de Diop foram alvo de crítica direta dos
participantes.
No âmbito da validade das pesquisas iconográficas, os participantes consideravam sua
interpretação demasiadamente subjetiva. O prof. Diop desafiou os professores presentes ao
analisar, através de artefatos artísticos, que aquela foi uma expressão nitidamente da
dignidade, em que negros eram representados pela arte do Antigo Egito. Na interpretação de
154
Diop, as representações em vermelho foram uma forma de identificar o negro, enquanto as em
amarelo indicavam algo comum no continente, à tonalidade mais clara entre as mulheres de
certas etnias e regiões.
Sobre os estudos linguísticos, o redator considerou os trabalhos de Cheikh Anta Diop e
Theóphile Obenga os mais avançados em matéria de pesquisa e resultados. O prof. Diop
desconsiderou a influência semítica no antigo egípcio, e Teophile Obenga sustentou a
necessidade de metodologias capazes de suportar estudos comparados com outras línguas
africanas, nesse sentido Diop apresentou sua pesquisa sobre o parentesco linguístico entre os
Kaw na Núbia e os Wollof no Senegal.
A respeito do desenvolvimento de uma metodologia interdisciplinar e
pluridisciplinares a concordância foi geral entre os participantes, principalmente para Cheikh
Anta Diop, que há vinte anos antes do Colóquio já fazia suas pesquisas seguindo esta base
metodológica. O prof. Diop comentou alguns pontos importantes no âmbito da metodologia,
relacionada à rota dos povos do Darfur para a região Oeste do continente, atingindo
posteriormente à Costa Atlântica para o Sul, Vale do Zaire e norte emdireção ao Senegal e
Nigéria. Outros elementos importantes foram às pormenores da relação entre Antigo Egito e
continente africano. Neste sentido, Diop citou o exemplo da estatueta de Osíris, encontrada na
província de Shaba, África do sul, datada de VII antes da era cristã. E finalmente, a
necessidade de considerar a hipótese dos impactos para o continente de acontecimentos
ocorridos no Vale do Nilo, entre os quais o saque de Tebas pelos sírios em 525 a. C. (Ver
mapa 3 em anexo). A conclusão geral do Colóquio sobre povoamento do Antigo Egito foi
direcionada as questões metodológicas (UNESCO, 2010, pág. 849):
Embora o texto preparatório enviado pela UNESCO especificasse o que se esperava
do Simpósio, nem todos os participantes prepararam comunicações comparáveis às
contribuições, minuciosamente pesquisadas, dos professores Cheikh Anta Diop e Obenga. Em consequência, houve um verdadeiro desequilíbrio nas discussões.
As recomendações dividiram-se entre a antropologia física, estudos das migrações,
linguística e metodologia, muitas das quais se basearam diretamente nas propostas e
intervenções de Cheikh Anta Diop e Theóphile Obenga (2010): o estudo de vestígios
humanos; estudos arqueológicos cruzados entre Egito e Dakar; estudo das línguas africanas
com prioridade aos Kaw Kaw da Núbia; aplicabilidade de metodologia interdisciplinar
prioritariamente na Núbia, regiões do Nilo e Darfur.
155
O professor J. Leclant foi o redator do relatório preliminar do seminário sobre a
Decifração da Escrita Meroíta. Segundo análise do redator, as quatro reuniões de especialistas
sobre a escrita Meroíta organizadas pelo grupo de Estudos da História Meroíta nos anos de
1970 em Cartum, 1971 em Berlim, e em1972 e 1973 em Paris foram muito importantes para
avanços na pesquisa para decifração da escrita Meroíta, mas não para sua compreensão. A
comparação entre línguas africanas, à arqueologia em busca de documentos bilíngues, e o
auxilio da informática foram vistos como os focos de auxilio à decifração da escrita Meroíta.
Durante o debate, o professor Cheikh Anta Diop afirmou sua satisfação com os
processos realizados por outros pesquisadores, observando que a utilização da informática era
um imperativo (UNESCO: 2010 pág. 853):
No caso do Meroíta, o procedimento correto seria combinar o multilinguísmo e as
potencialidades do computador da seguinte maneira:
- Postular, por meio de um procedimento puramente metodológico, um parentesco
entre o Meroíta e as línguas negro-africanas, o que e uma maneira de reencontrar o
multilinguísmo;
- Uma vez que dispomos atualmente, em cartões perfurados, de 22 mil palavras
Meroítas de leitura razoavelmente segura, estabelecer um vocabulário básico de
quinhentas palavras por língua para cem línguas africanas rigorosamente escolhidas
por uma equipe de linguistas devidamente credenciada. As palavras selecionadas
poderiam ser as que indicam, por exemplo, as partes do corpo, as relações de
parentesco, o vocabulário religioso, os termos relativos à cultura material, etc.;
- O computador deveria ser programado para reconhecer, por exemplo, três consoantes idênticas, duas consoantes idênticas, etc.;
Com base nos resultados obtidos, seria necessário comparar as estruturas, das
línguas justapostas.
Os professores Le Clant, Sauneron e Sorderbegh concordaram e reforçaram as
posições do professor Cheikh Anta Diop, no que se refere aos procedimentos operacionais e
de investigação. O responsável pela UNESCO – prof. Gleglé, e também do Ministério da
Educação da OUA, cobrou pessoalmente mais dedicação de professores que pouco
contribuíram no Colóquio, como Knorossov, Patrouski, Hothoer e Hinze, pois os mesmos
foram convidados para contribuir com as pesquisas e seus debates. O prof. Glelé também
assumiu que mais investimentos no campo da linguística africana iriam ser oferecidos a partir
daquele momento.
Cheikh Anta Diop esboçou sua sincera esperança para a continuidade dos estudos
Meroítas, observando que eram necessárias as compilações de sistemas de vocabulário no
Sudão, e que a participação profissional do prof. Theóphile Obenga era importante por conta
de suas competências na área como linguista. O professor Obenga propôs o primeiro
156
inventário de características gramaticais Meroítas, o que foi de pleno acordo entre todos os
participantes.
Dentro das recomendações, o redator Leclant (2010), assumiu sua satisfação com os
trabalhos do Grupo de História Meroíta de Paris. As recomendações foram unânimes no
campo dos estudos Meroítas, no auxilio de informática e divulgação, elaboração de listas com
nome de pessoas, lugares e títulos, elaboração de um repertório de escrita e um vocabulário
Meroíta completo. A UNESCO e o Colóquio e o Comitê Cientifico Internacional para a
História Geral da África comprometeram-se a investir financeiramente nos avanços das
pesquisas, elaborar proposta à Universidade de Cartum para estudos linguísticos, custear
secretariado e publicações, pesquisas, deslocamentos de especialistas e informática em
beneficio a escrita Meroíta e línguas africanas modernas.
Cheikh Anta Diop e Teophile Obenga foram obrigados a enfrentar a maior parte dos
acadêmicos participantes, que em uníssono defenderam a origem externa da civilização
egípcia, rechaçando qualquer tipo de referencial distinto do norte do mediterrâneo e da Ásia.
As argumentações de Cheikh Anta Diop e Teophile Obenga baseavam-se em conhecimentos
históricos, antropológicos e linguísticos, contra as teses de fundo raciologica e ideológico que
negavam a qualidade e legitimidade documental sobre a origem africana. Charles Finch III
(2009, pág. 75) observa que ao final do Colóquio, a comissão organizadora declarou que
somente Obenga e Diop prepararam suas pesquisas e argumentos com suficiente cuidado e
rigor científico. Trinta anos após o Colóquio Obenga comenta alguns dos posicionamentos de
estudiosos europeus consagrados sobre o tema:
Por sua natureza intrínseca, o egípcio faraónico era o mundo africano : A prática
religiosa dos negros é a mais recente expressão das doutrinas da Etiópia e do Egito.
Nas atas do famoso colóquio Internacional do Cairo organizado pela UNESCO em
1974, as duas seguintes passagens se destacam por sua relevância e focada precisão
o: a) declarou o professor Vercouter que na sua opnião o Egito foi africano em sua
escrita, sua cultura e sua maneira de pensar e b) o professor Leclant reconhece que a
mesma qualidade no temperamento africano os egípcios e na sua forma de pensar
(OBENGA, 2004, pág. 15).
O Colóquio de 1974 significou uma estreia de alto nível para o trabalho Teophile
Obenga, e um momento de consagração para a obra de Cheikh Anta Diop, pelo
reconhecimento irrevogável do Colóquio. Em 1974 foi feita nos Estados Unidos a tradução
parcial de Nações Negras e Cultura e Anterioridade das Civilizações Negras, sob o título A
origem africana da Civilização: mito ou realidade para a língua inglesa em 1974. Alfa Oumar
157
Diallo e Cintia Santos Diallo (2007, pág. 9) analisam o universo impactante a Nações Negras
e Cultura:
[...] não somente por que Cheikh Anta Diop propôs a “descolonização” da história
africana, mas também porque o livro criou uma “Historia” africana e colocou-se nas
fronteiras do engajamento político, analisando a identificação das grandes correntes
migratórias e a formação das etnias; a delimitação da área cultural do mundo negro,
que se estende até a Ásia Ocidental, no Vale do Indus; as demonstrações da aptidão
das línguas africanas para suportarem o pensamento cientificam e filosófico e,
fazendo, pela primeira a transcrição africana não etnográfica destas línguas.
Durante o Colóquio de 1974, Cheikh Anta Diop percebeu que as tentativas
desesperadas de negar a origem e identidade africana do antigo Egito não se davam por
questões técnicas, cientificas ou metodológicas, mas por questões psicológicas e educacionais.
Professores africanos e europeus como Abdalla, Vercoutter, Abu Bakr e Sauneron
defenderam a mestiçagem no Antigo Egito e seu povoamento de fora, ou do norte, para o sul,
negando uma origem local, mesmo sem conhecer a história da África. De uma forma quase
que insana, os professores participantes buscaram desconstruir o trabalho de Cheikh Anta
Diop.
A participação de Obenga demarcou o campo da linguística, a necessidade de
compêndios, e o exemplo de confiança e produtividade da relação mestre–aluno, estabelecida
entre ele e Diop. A maioria dos cientistas participantes era formada por acadêmicos centrados
em gabinetes e arquivos, Diop e Obenga desenvolveram trabalhos intelectuais, dedicados à
educação, a formação da personalidade, aos problemas comunitários, ao rigor cientifica e a
qualidade metodológica.
O Colóquio de 1974 foi o último evento de caráter científico internacional antes da
publicação da História Geral da África. A seguir, faremos um breve apanhado das
contribuições de Cheikh Anta Diop e Joseph Ki Zerbo da História Geral da África, nos
campos da metodologia e teorização.
4.5 História Geral da África (UNESCO)
A História Geral da África obteve sua primeira publicação em 1981 na França.
Dividida em oito volumes e em diferentes idiomas como Suahili, Peul, Português, Inglês,
Árabe, Espanhol entre outros. A História Geral da África também obteve edições sintese e de
158
bolso, o editor e presidente do comitê científico da História Geral da África – Joseph Ki-
Zerbo criou uma metodologia de pesquisa para a obra e editou o primeiro volume, na
introdução justifica-a:
A História da África, como a de toda a humanidade, é a história de uma tomada de
consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser reescrita. E isso porque, até
o presente momento, ela foi mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada. Pela
“força das circunstâncias”, ou seja, pela ignorância e pelo interesse. Abatido por
vários séculos de opressão, esse continente presenciou gerações de viajantes, de
traficantes de escravos, de exploradores, de missionários, de pro-cônsules, de sábios
de todo o tipo, que acabaram por fixar sua imagem no cenário de miséria, da
barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem foi projetada e extrapolada
ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro
(ZERBO, 2010, pág. 22).
Joseph Ki Zerbo apresenta a metodologia Geral de pesquisa da História da África a
partir da utilização interdisciplinar de fontes, com o objetivo de estabelecer um ponto de
equilíbrio entre a singularização excessiva da África, enquanto experiência histórica, e a
tentativa de alinhamento dessa experiência as história de outros continentes. Na perspectiva
de Ki Zerbo (2010), os desafios da pesquisa histórica no continente africano enfrentados pelo
pesquisador historiador, dividem-se entre o domínio das fronteiras materiais e imateriais do
terreno, e do que ele denomina de “ignorância voluntaria”, ou seja, os argumentos que
advogam sob o prisma da inferioridade racial.
Na Introdução Geral da obra Joseph Ki Zerbo afirma as fontes documentais escritas,
arqueológicas e a tradição oral, compreendidos enquanto pilares do conhecimento histórico. O
autor orienta-nos a necessidade de um cruzamento interdisciplinar entre antropologia,
linguística e geografia, para um aproveitamento holístico, intimo e qualificado das
experiências vividas na África. No campo das fontes, Ki Zerbo identifica às escritas, a
arqueologia, a tradição oral, a linguística, a antropologia e a etnologia como fundamentais.
Outro aspecto importante é que na Introdução Geral, Joseph apresenta os Quatro
Grandes Princípios Metodológicos para a pesquisa em história da África. O primeiro princípio
é a Interdisciplinaridade, o segundo resume-se a uma perspectiva africana da sua própria
história, onde e a concepção da mesma deve assumir como característica os propósitos de
conscientização, identidade e autenticidade. O terceiro principio é a história integral – total,
capaz de considerar a geografia e cultura africanas e transcender as divisões políticas e
étnicas do regime colonial, um história dos povos. Para Joseph Ki Zerbo, este terceiro
princípio deve considerar a integralidade do continente africano conforme estipulado nos
159
estatutos da Organização da Unidade africana. O Prof. Ki-Zerbo definiu como quarto grande
principio a não exacerbação da fatualidade na história da África, para assim evitar uma
dependência de considerados grandes acontecimentos e que inúmeras vezes estão atrelados a
uma razão externa, como as invasões na antiguidade, a diáspora e o colonialismo.
Na conclusão de cada Volume é responsabilidade do Editor, que neste caso foi Joseph
Ki Zerbo. Sob o título Da natureza bruta à humanidade liberada, Ki Zerbo recapitulou os
momentos centrais do volume, fez críticas a pseudo-originalidade das teses marxistas para a
realidade social e experiências milenares africanas, identificou as etapas pelas quais o
continente africano foi o ambiente propício para os processos de hominização, socialização e
civilização. Ki Zerbo define que Antigo Egito foi uma civilização nascida do ventre do
continente africano.
Ki Zerbo(2010) propõe cinco fatores que caracterizam essas fases de hominização,
socialização e civilização: 1) a adaptação ao meio, responsável por características
morfossomáticas (pele, melanina, nariz, queratina, lábios entre outros); 2) o conhecimento do
meio ambiente, que permitiu a sobrevivência humana; 3) as dinâmicas sociais de
comunicabilidade; 4) a troca de conhecimentos e técnicas que emergiram da necessidade de
vida em conjunto; 5) as relações sociais, marcadas por uma grande fase de sedentarismo e
surgimento de grupos como Khoisan, Pigmeus, Bantu e Sudaneses. O autor chama atenção
para o período neolítico no continente africano, que começou pelo menos três mil anos antes
do neolítico na Europa.
Ki Zerbo justifica e especifica a capacidade da história africana de mesclar diversos
elementos dentro de um mesmo espaço físico-temporal. Joseph Ki Zerbo faz comentários
sobre as fontes escritas e estruturas sociais, a desconstrução da historiografia colonial,
especificidades fundamentais e marcos decisivos para a história da África. Neste sentido, o
autor considera que as concepções de St. Agostinho (354-430) e de outros pensadores
africanos não podem ser negligenciadas. Cita o exemplo de Ibn Khaldun (1332-1406), que em
sua opinião foi o fundador da história enquanto ciência, e onde se encontram os primeiros
registros de categorias e análises sobre modos de produção, cultura e sociedade, civilização e
materialismo histórico.
No que concerne às estruturas, o Ki-Zerbo entende que a experiência africana
diferencia-se fundamentalmente do modo de produção asiático. Segundo o autor (2010) não
160
houve um sistema escravista no continente africano antes das invasões árabes e europeias,
mas havia uma condição marginal de cativos, e os mesmos a possuíam mobilidade de
integração em famílias. O cativeiro em África comenta Ki Zerbo: “não arrancava do homem
sua condição humana”.
O autor critica como desprezíveis as atribuições feudais no contexto africano, onde a
terra era um bem comunitário e inalienável, o comércio era um atributo de nascimento e da
matrilinearidade. Ki Zerbo destaca que a matrilinearidade possuía diversas implicações
sociais, políticas e econômicas, radicalmente transformadas com as intervenções do Islã e das
civilizações ocidentais com a patrilinearidade. O decline do Antigo Egito para o império
Roma é interpretado pelo autor como uma grande abertura para as invasões dos séculos XVI e
dominação territorial no século XIX.
O arqueólogo do Antigo Egito, G. Mokhtar editou o Livro II, História Antiga. As
civilizações da antiguidade foram organizadas nos 15 primeiros capítulos da obra. Cheikh
Anta Diop escreveu “Quem eram os egípcios”, o primeiro capítulo do livro. Cheikh Anta
Diop utilizou-se da primeira parte de Nações Negras e Cultura, trabalhando com o
povoamento e origem do Egito. O capitulo alberga a origem da humanidade na região dos
grandes lagos, a desconstrução das teorias poligenistas, e na demarcação do pioneirismo
africano no processo de hominização, socialização e civilização na região do vale do Nilo.
O capítulo “Quem eram os antigos egípcios” foi organizado em dois momentos, o
primeiro momento formado por evidências da antropologia física, as representações humanas
do período pré-histórico, teste e dosagem de melanina, medidas osteológicas e grupos
sanguíneos. Complementar a tais evidências, Cheikh Anta Diop apresenta (2010) os egípcios
de acordo com os testemunhos oculares de autores clássicos, os egípcios vistos por si
mesmos, as classificações divinas e os testemunhos bíblicos. O segundo momento reúne
dados culturais e afinidade linguística, originalmente apresentada na segunda parte de Nações
Negras e Cultura e desenvolvida ao longo dos anos de pesquisa.
Esta foi uma oportunidade de Diop reapresentar uma série interdisciplinar de
evidências sobre a origem da humanidade, povoamento e identidade do Antigo Egito. Diop
(2010) utilizou fontes como as do VIII Congresso Pan africano de Pré-História realizado em
Adis Abeba no ano de 1971, este congresso reuniu os resultados das últimas pesquisas que
confirmavam a origem africana da raça humana na região dos Grandes Lagos, o que
161
confirmava a homogeneidade étnica do povoamento do Nilo e do Saara, do paleolítico
superior à época dinástica.
Diop fez críticas contundentes aos livros didáticos e suas distorções, que abrem um
precedente para o embranquecimento do Antigo Egito. Questionou o trabalho dos acadêmicos
europeus em evitar a anterioridade civilizacional africana a partir de uma classificação racial
criada por eles, e aplicadas ao continente africano de forma completamente arbitrárias, de
forma que a pessoa são negras, brancas e mestiças de acordo com interesses do pesquisador.
Insistiu categoricamente na utilização das representações humanas enquanto documentos de
grande valor histórico, e ampliou detalhadamente o contexto de testemunho ocular de gregos
e romanos no continente africano entre 480 a.C. a 58 a.C..
O prof. Diop (2010) fez importantes considerações às palavras negro e vermelha no
Kemet. O negro era um indicativo dos Deuses ancestrais, e o vermelho o deserto infértil, os
espíritos maléficos e os animais selvagens. O professor advogou que a partir dos estudos
comparativos entre o egípcio antigo e as línguas africanas é possível estudar o vocalismo do
Egito. A afinidade linguística foi apresentada a partir das correspondências fonéticas em uma
listagem da maioria dos fonemas e formas verbais entre presentes no antigo egípcio e no
Wollof.
A conclusão do capítulo aborda a continuidade de ritos e costumes do vale do Nilo no
restante do continente africano, no campo da cosmogonia e totemismo, exemplificado através
da festa do Sed e da circuncisão. O autor também comentou sobre o processo de confecção
do Livro II da História Geral da África que exigiu três conferências, uma delas foi o
“Colóquio sobre o povoamento do Egito e decifração da escrita Meroíta” em 1974. Diop
destaca os comentários de J. A. Vercouter que assumiu a que não há dados para determinar o
grau de mestiçagem do Antigo Egito, e que o mesmo era africano em sua escrita, cultura e
maneira de pensar, neste sentido a hipótese de que o antigo egípcio é uma língua semítica foi
completamente descartada.
Neste capítulo Diop é categórico ao afirmar que o Colóquio do Cairo em 1974 foi uma
nova pagina na historiografia africana. O Colóquio revelou que há a necessidade de se
reescrever a história da humanidade a partir de um ponto de vista cientifico, que considere o
componente negro africano como preponderante no espaço e no tempo. Do contrário, a farsa
sobre fatos históricos importantes continuará em vigor. E finalmente, o elemento crucial do
162
capitulo é o retrato do propósito mais elevado da reescrita e ensino da história e civilizações
africanas:
A redescoberta do verdadeiro passado dos povos africanos não deverá ser um fator
de divisão, mas contribuir para uni-los, todos e cada um, estreitando seus laços de
norte a sul do continente, permitindo-lhes realizar, juntos uma nova missão histórica
para o bem da humanidade (DIOP, 2010, pág. 36).
O lançamento da História Geral da África no final da década de 1970 foi um marco
inédito na história da humanidade, a obra reuniu alguns dos maiores historiadores da história e
historiografia africana. A obra foi publicada em 1982 em São Paulo – Brasil, durante um
encontro internacional de editoras (Bienal do Livro). Entretanto, em língua portuguesa foram
publicados somente cinco dos oito volumes, e a tiragem foi em diminuta quantidade, dividida
entre Brasil e países africanos de língua oficial portuguesa.
4.6. História Geral (UNESCO) da África no Brasil
O professor Ladislau Dowbor foi o único pesquisador do Brasil autor da História
Geral da África. Aproveitando a oportunidade de lançamento do Volume I durante a Bienal
do Livro em São Paulo no ano de 1982, Dowbor escreveu o texto Redescoberta da África. O
texto, originalmente escrito para a Folha de São Paulo em 1982 faz uma crítica à falta de
reconhecimento dos processos civilizacionais africanos pela história e historiografia no Brasil.
O documento aborda quatro questões: 1) tecnologia; 2) tradição religiosa; 3) ciência; e
4) crítica à folclorização do continente africano pela indústria cinematográfica. Sob o
contexto social da Guiné Bissau e do Mali na década de 1980, Ladislau Dubor (1982)
destacou a herança civilizacional viva entre historiadores tradicionais, a resistência oferecida
pelas tradições religiosas e pela oralidade, e a capacidade intelectual e tecnológica de
reaproveitamento do lixo ambiental descarregado pelas multinacionais no continente africano.
O autor sublinha a importância da História Geral da África para o conhecimento do
continente e para a desmitificação criada pela escravidão e colonialismo. Em destaque, Dubor
comenta sobre a lucides de Joseph Ki Zerbo ao encaminhar uma verdadeira saga de reescrita
da história africana e de construção de uma metodologia interdisciplinar importante para a
desconstrução de conceitos pejorativos como tribos e sociedades estáticas. Ladislau Dubor
(1982) reconheceu que mesmo em quantidade diminuta os trabalhos realizados no Brasil por
163
Kabenguele Munanga, Kazadi Wa Mukuna e Abdias Nascimento foram pioneiros no campo
da história da África:
Para nós, no Brasil, a importância da edição desta obra é óbvia. E os historiadores
africanos não deixam de mencionar esta curiosidade de dois países, onde a
população africana teve papel fundamental no desenvolvimento econômico e
cultural, como o Brasil e os Estados Unidos, estarem praticamente na estaca zero em
termos de estudo do passado africano : “Por mais importantes que fossem os
vestígios culturais africanos, nem o Brasil, nem as Caraíbas deram a atenção
merecido ao assunto... O interesse era anda menor nos Estados Unidos...”.
Com base nos comentários do autor, a questão que nos colocamos a partir do
comentário de Ladislau Dubour é para nós quem? O otimismo do autor talvez tenha o feito
ignorar o fato de que para a grande maioria de historiadores, filósofos, sociólogos e
antropólogos do Brasil a História da África não oferecia nenhum interesse, e uma obra como a
História Geral da África, por exemplo, representava até certa ameaça, fator que ajuda a
explicar seus ostracismo desde o lançamento em 1982 até sua reedição em 2010. Por motivos
que desconhecemos o autor deixa de salientar que o Brasil é um pais racista regido por elites
antiafricano e, por mais contraditório que pareça, é o próprio racismo que lhe conferiu
vantagens suficientes para participar como autor da História Geral da África, diferente dos
que ele cita como pioneiros.
Para finalizar, o autor afirma “A história oficial africana se descoloniza” com a
publicação da História Geral da África, e questiona até quando a nossa permanecerá na Casa
Grande? No nosso entendimento, o fato da história da África estar em processo de
descolonização justifica o argumento que a história do negro no Brasil continua na casa
grande, acorrentada nas senzalas, chicoteada nos pelourinhos e nos porões do navio negreiro.
Em outras palavras, enquanto a história da África permanece colonizada a nossa história afro-
brasileira permaneceu escravizada.
O questionamento inicial do texto de Ladislaw Dowbor sobre “Quem de nós conhece
as civilizações africanas” em 1982 reflete um pouco do que vivi em 2002 durante a graduação
em História. Fui aluno de um professor consagrado em História Antiga Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, indiscutivelmente um dos maiores especialistas em
História antiga no Brasil. Responsável pela cadeira de história antiga, este professor fez
questão de comentar que a africanidade do antigo Egito era uma invenção dos negros dos
Estados Unidos que usavam desta argumentação para se auto afirmarem durante as lutas por
direitos civis na década de 1960. O professor defendia a origem semita da população e da
164
língua dos antigos egípcios. Em determinado seminário sobre revolução neolítica, chegou a
me advertir que eu não abordasse absolutamente nada sobre África, pois a mesma não cabia
no assunto.
Mesmo com uma tiragem diminuta, o lançamento da História Geral da África no
Brasil gerou tanto o interesse de setores de movimentos sociais afro, quanto à indiferença e
desqualificação acadêmica racista durante as décadas de 1980 e 1990. Ao mesmo tempo, na
esfera internacional este foi um momento atribulado, a começar pelo deflagração de um ciclo
de assassinatos de lideranças africanas nacionalistas que militavam pela confederacão de
Estados africanos, uma das consequências desta série de assassinatos foi seguida pela
decadência cabal da Organização da Unidade africana e por pressões políticas sistemáticas
para historiadores da África.
4.7. Atribulações do momento
No ano de 1974 o contrato de professor de História de Walter Rodney em Dar Es
Salaam terminou. Ao retornar para a Jamaica Rodney teve sua entrada proibida no aeroporto
de Kingston, capital do país, sob a alegação criminal de seus envolvimentos políticos com
partidos e movimentos considerados subversivos, o que na verdade era uma retaliação as
criticas de Walter Rodney ao contexto político-militar de corrupção que infestou o Caribe e
toda a América Latina, inclusive no Brasil. Em nosso artigo sobre Walter Rodney (Gomes,
2012), comentamos que a historiadora Lélia Gonzáles considerava no início da década de
1980 que Walter Rodney conseguiu fazer uma leitura coerente da relação entre colonialismo,
capitalismo e racismo no Brasil.
Instalado na Guiana com sua família, Walter Rodney dedicou-se a militância no
movimento social Working People Alliance, organização em oposição ao governo corrupto e
neocolonial de Burnhan na Guiana, que levou Rodney e mais sete militantes a cadeia nacional
do pais. Após sérias ameaças, algumas delas relatadas em belíssimo artigo escrito por Eusi
Kwanza em Jamaica Under Siege, o professor Walter Rodney foi brutalmente executado em
13 de Junho de 1980, por uma bomba armadilhada em seu carro. Rodney deixou mulher e três
filhos pequenos, que continuam seu legado através de instituição não governamental, Walter
Rodney Foundation.
165
Walter Rodney participou no livro 7 da Coleção História Geral da África – A África
sob dominação colonial, 1880-1935, editada por Albert Adu Boahen. Rodney escreveu o texto
A economia colonial, capítulo em que analisaram, os impactos desastrosos das duas guerras
mundiais sobre as economias africanas, e de como os africanos combateram as crises e
criaram soluções alternativas em regiões como Gana, Níger e Tanzânia (2010). Mesmo com
uma carreira multidimensional e meteórica, Rodney construiu uma obra sólida, de cunho pan-
africano e em dialógica com a produção histórica africana. O propósito do ensino de história
da África, o aperfeiçoamento dos livros didáticos, a metodologia e as civilizações da
antiguidade foram questões pelas quais historiadores do porte de John Henrik Clark, Joseph
Bem Jochoman, Joseph Ki Zerbo, Cheikh Anta Diop e Walter Rodney dedicaram-se
sistematicamente.
Ao formular a questão título do primeiro capitulo de Nações Negras e Cultura, “Quem
eram os egípcios”, Cheikh Anta Diop alegou que jamais os egípcios precisaram questionar
quem eles mesmos eram, pois, assim como seus próprios testemunhos e de outros povos da
antiguidade (gregos, romanos e asiáticos) os egípcios eram homens e mulheres negros
africanos. Recentemente, em meio às orientações para essa pesquisa, o professor Henrique
Cunha Jr. chamou-me atenção para o fato de que a obviedade da origem e experiência
civilizacional negra e africana do Egito é um fator polêmico por conta do racismo e suas
distorções criminosas da história da África.
Os adeptos das Escolas de pensamento colonial tentaram empobrecer a complexa obra
de Cheikh Anta Diop, acusando-o de apenas procurar provar que os egípcios eram negros.
Críticas desse nível não tomarão nosso tempo aqui, mas sabemos que elas são
permanentemente reproduzidas por acadêmicos, professores e estudantes de história, muitos
dos quais desconhecem a vida e obra de Cheikh Anta Diop, sobretudo suas críticas à
falsificação da história. Enquanto houver negligência sobre a origem e identidade africana do
Egito, a humanidade continuará vivenciando uma farsa cultural e histórica, com efeitos
diretos sob a formação psicossocial de juventude no continente africano e na diáspora.
Após anos marginalizado na Universidade de Dakar, em 1984 C. Anta Diop foi
contratado em 1984, vindo a falecer de problemas cardíacos dois anos depois, sob uma
pressão muito grande de pessoas, organizações e instituições contrários as suas teses. Sua
herança continua viva através de sua vasta obra, não somente na história, mas no campo da
física, química, linguística e política. O governo senegalês da época mudou o nome da
166
Universidade de Dakar para Universidade Cheikh Anta Diop em sua homenagem. Mais de
vinte anos após seu desaparecimento físico seus trabalhos continuam direcionando todo tipo
de iniciativa em prol do continente africano e de sua história.
No final da década de 1980, os historiadores da África enfrentaram um período de
silenciamento por parte de governos neocoloniais e pró-união soviética. No Burkina Faso,
Joseph Ki Zerbo aos sessenta anos de idade, foi obrigado a sair com sua esposa, Jaqueline ki
Zerbo, do país por conta de ameaças e ações terroristas do governo socialista do presidente
Thomas Sankara, que via em Ki-Zerbo uma vanguarda descartável e perigosa para o seu
regime socialista. A percepção da gravidade do problema tornou-se óbvia, quando a sua
biblioteca com mais de onze mil livros foi violentamente queimada, completamente destruída.
A Organização da Unidade africana passou praticamente toda a década de 1980
enfrentando problemas internos em apoio a conflitos armados na Argélia, Angola, Namíbia,
Marrocos e Saara Ocidental. Externamente a instituição via-se mergulhada em dívidas e com
dificuldades de bloquear os apoios de Israel e países europeus ao regime sul-africano do
apartheid. A inoperância da OUA neutralizou sua agenda de ações no continente africano,
dentre as quais a educação e o ensino de história.
Conclusões
Neste capítulo, tivemos condições de identificar a relação entre a criação da
Organização da Unidade africana em 1963 e do projeto de confecção da História Geral da
África em 1964. Como vimos a OUA nasceu dos esforços de chefes de Estado como Haile
Selassie e Kwame N’krumah que dedicaram todos os seus recursos ao projeto de um
continente africano confederado, autossuficiente e totalmente livre do colonialismo. Por
ironia, tanto N’Nkrumah quanto Haile Selassie não foram poupados de violentos golpes de
Estado motivados por elites marionetes comandadas de fora para dentro do continente. Na
metade da década de 1970 os dois e mais uma dezena de líderes desapareceram em meio a
circunstancias violentas e degradantes.
Trabalhamos as fases do processo de confecção da História Geral da África, onde nos
dedicamos a entender o “Colóquio Internacional sobre o povoamento do antigo Egito (Kemet)
e a decifração da escrita Meroíta”, promovido pela UNESCO no Cairo em 1974. A reunião
167
internacional contou com a presença de Cheikh Anta Diop e Theóphile Obenga, na nossa
compreensão a reunião foi uma tentativa de desqualificação das teses de Cheikh Anta Diop
sobre a origem e povoamento do Antigo Egito, entretanto a brilhante participação de Cheikh
Anta Diop e Teophile Obenga fortaleceram ainda mais seu trabalho .
O que Cheikh Anta Diop encontrou no Cairo em 1974 foi um grupo ou bando como os
define Teophile Obenga (2013) de racistas acadêmicos tentando a todo o custo mostrarem que
os africanos não tinham condições de construir um processo arrojado, complexo e sofisticado
de civilizações no Vale do Nilo durante a antiguidade africana, Diop inclusive passou a
trabalhar com o termo “civilizações da antiguidade clássica”. Na nossa reflexão, uma vez que
os representantes da UNESCO como o Sr.Vercouter se portaram de forma tão covarde e
mesquinha, os discursos de isenção da UNESCO durante o processo de elaboração da História
Geral da África caem por terra.
Os problemas verificados durante a construção da História Geral da África e a próprio
Colóquio do Cairo, talvez possam explicar a participação mínima de Cheikh Anta Diop no
Volume II da obra. A História Geral da África foi publicada no Brasil em 1981 em meio a um
contexto politico e governamental de ditadura militar, somado a todo o elitismo e racismo
acadêmico tradicional no Brasil, e não só. A década de 1980 como um todo foi de
silenciamento e violência para os historiadores africanos, mortos prematuramente e em certos
casos até banidos de seus países como ocorreu com Joseph Ki Zerbo.
Pensando exatamente cinquenta anos após o início do projeto de confecção da História
Geral da África em 1964, será que a história da África foi descolonizada, se não em que etapa
está hoje, 2014? Essa pergunta é de suma importância e voltaremos à mesma no sétimo
capitulo em que analisaremos livros didáticos e a utilização nas escolas da História Geral da
África, e o lugar das civilizações africanas em manuais e programas de história. Para nós,
estes são verdadeiros termômetros sobre a descolonização da história da África, no sexto
capítulo, nosso objetivo é apresentar o contexto sociocultural em que nosso trabalho de
campo inseriu-se no Brasil e no Cabo Verde.
168
PARTE III EDUCAÇÃO _____________________________________________________
Capítulo 5: ANTIGUIDADE AFRICANA NO ENSINO DE HISTÓRIA
Leia!Leia!Leia! E nunca pare antes de descobrir o conhecimento do Universo.
Marcus Garvey
Os Estados africanos devem organizar equipes para salvar, antes que seja tarde
demais, o maior numero possível de vestígios históricos. Devem-se construir museus
e promulgar leis para a proteção dos sítios e dos objetos. Devem ser concedidas
bolsas de estudo em particular para a formação de arqueólogos. Os programas e
cursos devem sofrer profundas modificações, a partir de uma perspectiva africana.
Joseph Ki Zerbo
Neste capítulo analisamos aspectos educacionais e culturais sobre o ensino de
antiguidade africana no Brasil e no Cabo Verde e apresentamos a nossa pesquisa de campo
realizada nestes dois países. O objetivo deste capítulo é identificar desafios comuns ao ensino
de história no Brasil e no Cabo Verde. Trabalhamos sob duas perspectivas, a primeira de que
os discursos sobre identidade mestiçagem possuem uma fundamentação racista e interferem
diretamente no ensino de história da África. Nossa segunda perspectiva de trabalho é que no
Cabo Verde e no Brasil as contribuições de Cheikh Anta Diop à História e Historiografia
africanas vêm sendo boicotadas pelo eurocentrismo acadêmico. Apresentamos um panorama
geral de atividades sobre a história da África no Brasil, esboçamos a nossa posição militante e
a preparação para realização da pesquisa de campo. Dialogamos aqui com os professores
pesquisadores Petronília Rodrigues, Abdias Nascimento, Henrique Cunha J., José Carlos dos
Anjos e Elias Moniz Alfama.
5.1 Mestiçagem, Racismo e educação: lógica do eurocentrismo curricular brasileiro
Nossa abordagem não permite, neste momento, uma avaliação aprofundada das
reformas educacionais ocorridas no sistema de ensino cabo verdiano e brasileiro entre 1960 e
1990, mas podemos salientar tendências e convergências importantes no que se refere ao
ensino de história. No caso brasileiro, o golpe militar instaurado no país a partir de 1964 foi
motivado pelo descontentamento de setores militares e de oligarquias regionais do país, mas,
sobretudo pela política norte-americana de controle capitalista e anticomunista em toda a
América do Sul.
169
A partir de Abril de 1964, o presidente brasileiro João Goulart foi deposto, e os
militares assumiram a governação do país, sob a orientação das agências de segurança do
governo estados-unidense Lyndon B. Johnson. A ditadura militar brasileira realizou uma série
de ajustes sociais através de reformas em todos os campos, inclusive na educação. Durante a
década de 1970 houve uma maior conscientizacão do movimento negro do Brasil com as lutas
de libertação nacional no continente africano e na perspectiva do professor Cunha Jr (1992),
esta se deu pela compreensão histórico cultural de um passado e de um sistema de opressão
racial em comum, entre Brasil e África, e a busca do movimento negro no Brasil por uma
alternativa ao sistema de opressão capitalista.
A influência dos movimentos por direitos humanos e civis nos Estados Unidos
também foi da mais alta relevância para movimentos no Brasil, entretanto, a mesma ateve-se
mais à estética, uma vez que as informações políticas e ideológicas foram obscurecidas pela
mídia e o desconhecimento da língua inglesa também foi outra barreira de difícil transposição.
Cunha Jr. (1992) identifica que até a primeira metade da década 1970 o movimento Negro no
Brasil enfrentou três problemáticas centrais: 1) o esvaziamento dos movimentos como a
Frente Negra Brasileira por governos autoritários como o de Getúlio Vargas, nas décadas de
1930 e 1940; 2) as perseguições da ditadura militar a partir de 1964; e 3) o isolamento político
de organizações e pessoas no território nacional. Ao mesmo tempo, os avanços políticos e
sociais no decorrer da década de 1970 foram demarcados pela ruptura com posicionamentos
das gerações anteriores, onde a busca por emprego foi substituída pela busca de novas
relações de trabalho.
Em um sentido mais estrutural, o prof. Henrique Cunha Jr. reconhece três fases
importantes dos avanços: a revisão histórica sobre o negro no Brasil; a crítica ao capitalismo;
e a valorização da cultura negra enquanto ferramenta de recuperação dos valores africanos e
afro-brasileiros. O professor considera que com o afrouxamento do sistema político
bipartidário da ditadura militar brasileira, pouco a pouco começaram a surgir mais negros em
partidos políticos, que mesmo com pouca autonomia eram referências, como Hélio Santos e
Milton Santos, detentores de plataformas voltadas para a população afro-brasileira. No plano
internacional, o próprio prof. Henrique Cunha Jr. teve uma participação brilhante no III
Congresso das Américas Negras, ocorrido no Panamá em 1976, onde defendeu aquele
momento histórico como de ruptura dos movimentos negros no Brasil com os critérios e
valores impostos pela população branca.
170
Em 1974 o militante Pan-Africanista Abdias Nascimento participou do 6º Congresso
Pan-africano na Tanzânia, onde denunciou a farsa da democracia racial brasileira, e a suposta
inexistência de movimentos de resistência no país. Três anos depois, o trabalho do professor
Abdias ampliou-se à Nigéria, onde lecionou na universidade de Ilé Ifé em 1976. No ano de
1977 Abdias Nascimento participou do Festival de Artes e Culturas Negras da Nigéria,
conhecido como FESTAC’77.
A participação de Abdias no FESTAC’77 foi muito polêmica por causa seus choques
com os diplomatas brasileiros na Nigéria, eles tentaram inviabilizar sua participação no
evento. Abdias Nascimento articulou-se com o prof. Maulana Ron Karenga dos Estados
Unidos e fez uma apresentação eletrizante no evento, chamando atenção das autoridades
internacionais para o genocídio da população negra no Brasil, para a necessidade de melhorias
nas condições de vida dos estudantes africanos no país, e para o ensino de história das
civilizações africanas no currículo escolar, enquanto uma ferramenta de reconstrução da
identidade africana do afro-brasileiro.
No plano nacional, em 1976 o debate sobre cidadania e direitos, e as relações entre
raça e classe elevaram o nível qualitativo do movimento negro. Entretanto, concordamos com
prof. Henrique Cunha Jr. (1992) sobre a imaturidade teórica do movimento negro que em
nossa opinião tornou frágeis às estratégias de ações em nível pratico, como a criação de
instrumentos de mobilização e mesmo fundação de escolas e instituições voltadas aos nossos
interesses. Entre os anos de 1978 e 1980, os Estados brasileiros mais ativos na militância
eram São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. O ano de 1978 foi
especialmente importante porque concatenou em uma dubiedade entre iniciativas de
unificação nacional do movimento negro e crise entre os movimentos. Em 1978 foi fundado o
Movimento Negro Contra a Discriminação Racial, cujo o nome foi objeto de crítica,
entendido como reducionista, mais tarde, foi substituído pela sigla MNU, Movimento Negro
Unificado.
Ademais, algumas tensões em relação a alianças com organizações de esquerda, como
a Convergência Socialista, alimentavam desconfianças de militantes negros, pois
historicamente os movimentos marxistas e de esquerda em geral oscilavam entre a
desqualificação e a utilização do movimento negro como massa de manobra. Para Cunha Jr
(1992), a crise do Movimento Negro em 1970 concentrou-se na falta de mobilização, na
presença majoritária de militantes de gabinete e na inexistência de um apoio das massas. Mas
171
há pontos muito positivos a ser considerada nesse período, como a ampliação do movimento a
todos os Estados da Federação, a ampliação dos debates em um nível nacional e, em menor
proporção, internacional.
Em 1985, dez anos após as convulsões do sistema colonial no continente africano e da
instalação do neocolonialismo, a ditadura militar no Brasil encerrava sua hegemonia deixando
um legado de racismo, favelização e falta de infraestruturas, êxodo rural e péssima qualidade
da educação, fatores que atingiram diretamente a população afro-brasileira. Entre os anos de
1964 e 1985, o regime militar brasileiro assumiu o caráter radical de perseguições,
extermínios, exclusões, tortura e exílio, supressão de direitos constitucionais e repressão aos
discordantes do sistema. Escolas, universidades e o sistema educacional como um todo se
tornaram aparelhos ideológicos do Estado militar brasileiro a partir de 1964. Em 28 de
novembro de 1968, foi criada a lei nº. 5540, regulamentada pelo decreto n.464 de fevereiro de
1969, o ensino foi unificado em uma base de primeiro e segundo graus, o primeiro grau em
oito anos (primeira a oitava séries) e segundo grau em três anos.
O ensino universitário de História e Geografia passou a ser uma disciplina única
denominada Estudos Sociais (PCNS, 2000, pág. 7), em uma ação de nítida censura ao
conhecimento histórico e geopolítico. Esta medida influenciou negativamente capacidade
crítica no campo da pesquisa, ensino básico e produção de materiais didáticos. Enquanto
aparelho ideológico do Estado ditatorial militar, a razão do ensino centrou-se em propósitos
nacionalistas e patrióticos.
No ano de 1971 ocorreu outra reforma nacional do ensino básico, que unificou as
disciplinas História e Geografia em Estudos Sociais, posteriormente complementada pela
disciplina Educação Moral e Cívica, e Educação Social e Política do Brasil. Dois anos depois,
em 1973, professores de história e geografia reuniram-se na Universidade de São Paulo para
realizar um grande Fórum sobre estudos sociais, nesta ocasião foram criadas a Associação de
Geografia do Brasil (AGB) e a Associação Nacional dos professores de História (ANPUH).
Há um aspecto inerente à estrutura ideológica da ditadura militar muitas vezes
ignorado pelos pesquisadores, o racismo. Neste sentido, os discursos nacionalistas e
patrióticos brasileiros tiveram como base fundamental, a valorização da mestiçagem como
forma ideológica de branqueamento da população e afastamento da presença africana no
Brasil. A ditadura militar brasileira foi uma alavanca política para a propagação da
172
democracia racial brasileira. Entretanto, os trabalhos de pesquisadores afro-brasileiros foram
de suma importância para a desconstrução das ideologias racistas que impregnaram áreas
como cultura, saúde e educação.
Atenta a situação do afro-brasileiro na sociedade, a prof. Petronília Rodrigues no final
da década de 1990 contribuiu com o debate sobre o pensamento negro na educação no Brasil,
pontuando a elaboração de um pensamento próprio do negro no país, a partir de suas
experiências históricas iniciadas dentro do continente africano. Partindo do princípio que
foram construídos inúmeros estereótipos sobre a incapacidade intelectual do negro do negro
no Brasil, a proposta trazida pela Prof. Petronília em parceria com a Prof.ª Lúcia Maria no
livro “O Pensamento Negro em Educação no Brasil - Expressões do Movimento Negro”
define o pensamento como:
Um processo de expressar conhecimentos constituídos na experiência vivida e
refletida, de combinar compreensões do vivido com julgamentos, propostas,
avaliações,hipóteses. Processo este que revela escolha crítica de concepções de mundo, de sociedade, de relações entre pessoas, de educação. (SILVA, BARBOSA,
1997, pág. 10)
Em diálogos com movimento negro, professores, pesquisadores e estudantes Petronília
Beatriz e Lúcia Maria definiram postos-chave da relação entre Pensamento Negro e Educação
no país, afirmando que:
A população de origem africana, no Brasil, desde sempre expressou suas
concepções, convicções, orientações tendo em vistas a educação de suas crianças e adolescentes, visassem ou não a educação escolar; suas posições costumam ser
desconsideradas, desvalorizadas; há quem argumente ser difícil ou impossível saber,
hoje, o que em suas escolhas e decisões tem por base uma visão africana de mundo;
para que tais argumentos possam ser debatidos, faz se necessário ampliar e
intensificar investigações junto à comunidade negra na diáspora e na África;
(SILVA, BARBOSA, 1997, pág. 12).
Ao considerar a história africana como base para definição de pensamento negro, a
prof. Petronília nos permite uma compreensão não universalista da história do negro no
Brasil. Inclusive, a autora chama nossa atenção para o fato de as primeiras referências sobre
educação da humanidade estão nas civilizações africanas. Essa relação entre história da
África, continuidade histórica, cosmovisão africana, e pensamento negro, nos confere a
possibilidade de uma abordagem pan-africana para pensarmos formas de superação dos
desafios enfrentados pela população afro-brasileira na educação, dentre os quais o combate ao
racismo e o direito ao acesso a história africana.
173
A eugenia é uma ideologia racista que tem como perspectiva central a evolução da
condição humana a partir dos valores e comportamentos ocidentais, brancos e europeus. A
apologia à miscigenação como forma de branqueamento físico e todos os atributos da
desafricanização são ferramentas operacionais da eugenia. Portanto, a eugenia contempla o
racismo, a supremacia branca e o eurocentrismo. Na definição do professor Jerry Dávila
(2006, pág. 31):
A eugenia foi uma tentativa científica de “aperfeiçoar” a população humana por
meio do aprimoramento de traços hereditários – noção popular por toda a Europa e
Américas no período entre guerras. Os cientistas voltaram-se a eugenia como uma
ciência de ampla abrangência, que combinava diferentes teorias sobre raça,
hereditariedade, cultura e influência do meio ambiente em práticas e receitas que
visavam geralmente a “melhorar” a população nacional.
Devemos estar atentos às tentativas de diluição do significado prático da eugenia, pois
documentos como o dicionário Aurélio da língua portuguesa define eugenia como o “estudo
das condições mais propícias à reprodução e melhora da raça humana” (FERREIRA, 2010,
pág. 326), uma definição que não condiz com a realidade histórica e social da eugenia no
Brasil. A eugenia foi incorporada às políticas de educação e cultura do Estado brasileiro
oficialmente na década de 1930, através da constituição outorgada pelo presidente fascista
Getúlio Vargas, em 1934. O professor Michael Mitchell (1984, pág. 96) destaca a referência à
eugenia no artigo 138 b.: Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis
respectivas: (...) estimular a educação eugênica.
Nossa observação é que a eugenia não “foi”, ela é e existe mesmo que não
oficialmente entranhada na politica, pensamento cultura e no que se construiu como
identidade brasileira. Partindo do principio que o ocidente cristão, através do tráfico de
africanos escravizados, estabeleceu uma relação de franca guerra cultural e física contra
africanos, a professora Maria José Lopes da Silva (1994) entende que a educação oficial
brasileira incorporou a discriminação racial, doutrinando crianças e jovens negros sobre uma
ideologia de subalternidade social. Propondo uma atualização do contexto da educação
brasileira no início da década de 1990, Maria José argumenta que a não inclusão da história da
África serviu ao fortalecimento das falácias sobre democracia racial e da negação da
identidade da maior parte da maior parte da população do Brasil.
Sob a justificativa de mudança dos conteúdos escolares e, em nome da inserção de
temáticas africanas e afro-brasileiras no currículo, a historiadora Jussara França coordenou a
pesquisa denominada “Racismo na Escola- Linguagem do silêncio”. A pesquisa indica que a
174
discriminação sofrida por crianças negras nas escolas está relacionada diretamente a evasão
escolar das mesmas, a pesquisa realizada em uma dezena de escolas durante três anos, revelou
traumas e uma profunda autonegação da parte de alunos negros em todas as escolas.
Outra pesquisa importante conduzida pela professora Vera Moreira (1994) expõe
resultados sobre preconceito racial na escola, um trabalho financiado pela Fundação Ford e
pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos no âmbito do centenário da abolição em 1988. Mesmo
direcionada ao Rio de Janeiro, a pesquisa de Vera Moreira Figueira abrangeu a visão do
aluno, a visão do professor e livros didáticos, nos interessa destacar alguns aspectos
destacados pela autora sobre o livro didático. Em primeiro lugar, a interpretação do livro
didático enquanto um instrumento formador da memória, a função das imagens no processo
de formação da memória, e a existência de intencionalidades nas mensagens dos conteúdos,
com sérias consequências psicológicas e políticas para os estudantes. A autora salienta os
efeitos do racismo nos livros didáticos na esfera psicológico-identidade (FIGUEIRA, 1994,
pág. 55): De um ponto de vista psicológico, o livro didático funciona como um agente de
destruição da identidade do sujeito negro, do mesmo modo que confirma no branco o
sentimento da supremacia de sua raça.
No âmbito da identidade, a Prof.ª Maria José Lopes da Silva denomina como uma
verdadeira guerra o racismo na educação brasileira, afirmando que esta guerra:
Vem matando paulatinamente a personalidade do negro, sua dignidade, sua
identidade, destruindo suas raízes e tradições e seus próprios projetos de futuro,
lançando-o e a seus descendentes numa vida sem história e sem perspectivas de mudança. Foi o que sucedeu quando foi transplantado para as Américas. Atacado em
sua personalidade, ele perdeu, em parte, a identidade, tornando-se presa fácil nas
mãos daqueles que o exploravam continuamente. (SILVA, 1994, pág. 15)
De acordo com a reflexão da prof. Petronília Beatriz, a anterioridade civilizacional
africana proveu ao continente tradições educacionais desqualificadas pelo racismo. Neste
sentido, a professora entende que são fundamentais estudos e pesquisas que possam cruzar
informações sobre educação e currículo na diáspora e no continente africano. O arquipélago
do Cabo Verde localizado na Costa Oeste africana é a nossa referência para desenvolver estes
estudos e cruzar informações.
175
5.2 Mestiçagem, neocolonialismo e educação: lógica do eurocentrismo curricular
Cabo verdiano
O povoamento das ilhas de Cabo Verde foi iniciado em 1460, através de violência
física e cultural do desterro das populações da região da Guiné, que povoaram primeiramente
a parte sul do arquipélago, região Sotavento- o norte do arquipélago foi posteriormente
povoado e denominado Barlavento. Para o sociólogo José Carlos dos Anjos (2002) a elite
intelectual cabo-verdiana desde o século XIX ocupou um espaço de mediação e formulação
da identidade nacional. Uma identidade mestiça baseada no racialismo evolucionista de
Darwin, traduzido na supervalorização material e cultural da Europa e do Branco enquanto
modelo, nas palavras de José Carlos dos Anjos (2002, pág. 26):
A trajetória ascendente dos intelectuais, desde os fins do século passado,
fundamenta-se no acesso limitado às instâncias de importação de modelos e diálogo
com a intelectualidade das metrópoles. Resumindo, até fins do século XIX, a
sociedade colonizada cabo-verdiana se estruturava sob a dominação racial de uma
minoria branca sobre a maioria negra da população.
Segundo Anjos (2002) e Alfama (2009), a partir da década de 1930 a elite intelectual
cabo verdiana apropriou-se do discurso luso-tropicalista-brasileiro, como uma espécie de
revigoramento das já instaladas ideologias de superioridade racial e apologia à miscigenação,
eugenia. Entre as décadas de 1930 e 1960 o maior movimento literário do país foi a
Claridade, que até mesmo pelo nome já conota a perspectiva de branqueamento no
pensamento e postura intelectual na colônia. O movimento defendia uma valorização da
mestiçagem através do que veio a se chamar “criolidade” e “morabeza”que correspondem à
ideia de “cordialidade brasileira”. Destacamos abaixo a análise de José Carlos dos Anjos
(2002, pág. 131) sobre esta relação entre Brasil e Cabo Verde no âmbito da identidade a partir
da década de 1930:
Os intelectuais cabo-verdianos reapropriaram-se do discurso colonial português que
concebe a província num papel geoestratégico (sobretudo para a navegação) entre o
Brasil, a Europa e a África, para reformulá-lo em termos culturais. O que Cabo
Verde, uma pobre província, tem a oferecer ao domínio colonial? Como se os
intelectuais cabo-verdianos da década de 1930, sob uma estratégia que consolida sua
posição de grupo e reforça o discurso ideológico da colonização, oferece a cultura
cabo-verdiana como modelo, à vanguarda de um processo de luso Áfricanidade. Na
verdade, uma cópia do mito brasileiro da mistura e ajustamento racial. Toda a afinidade ideológica se estabelece entre ideólogos do nacionalismo brasileiro, os
intelectuais portugueses engajados na colonização e os intelectuais cabo-verdianos.
Aqui, José Carlos dos Anjos nos apresenta com nitidez os fundamentos de um
processo de construção da identidade cabo-verdiana, a partir da exportação de um modelo
176
indenitário criado no Brasil. O autor também nos concede uma importante dos intelectuais
colonialistas na articulação destas ideias. E neste sentido, Gilberto Freyre foi um dos maiores
entusiastas da eugenia enquanto caminho para a construção de uma identidade mestiça no
Brasil na primeira metade do século XX. O trabalho de Gilberto Freyre foi consagrado a partir
de década de 1930 com o livro Casa Grande e Senzala, em que o autor defendeu a brandura
do regime de trabalho escravo no Brasil – capaz de integrar africanos e europeus em um
circulo de cumplicidade permeado por sexo e trocas culturais.
Na perspectiva de Gilberto Freyre, a relação de cumplicidade entre portugueses e
africanos no Brasil foi determinante para desencadear um processo de miscigenação em larga
escala no país. A miscigenação, em Freyre, é um aspecto de diferenciação entre a colonização
portuguesa- vista como branda- e a colonização inglesa, observada como racista e
extremamente violenta. Por essa visão amena e distorcida do processo colonial português,
entendido por nós como genocida. Na década de 1930 Gilberto Freyre torna-se uma referência
para os intelectuais cabo-verdianos, segundo José Carlos dos Anjos (2002), Freyre era tido
nos meios intelectuais como o “messias brasileiro”.
No ano de 1951 Gilberto Freyre visitou o arquipélago de Cabo Verde sob uma grande
expectativa da intelectualidade cabo-verdiana, no entanto ao participar de programas de rádio
e palestras, Gilberto Freyre decepcionou intelectuais do movimento da Claridade, como o
escritor Baltasar Lopes. Na perspectiva de Gilberto Freyre a sociedade cabo-verdiana possuía
características muito distintas do Brasil, e por isso suas teorias sobre miscigenação não eram
cabíveis naquele contexto. Nas palavras do próprio Gilberto Freyre:
A estabilização cultural de uma gente que, procurando ser europeia, repudia as
origens africanas e encontra-se, em grande número, em estado ou situação precária
de instabilidade cultural e não apenas econômica. Instabilidade cultural de que são
indícios: por um lado, o uso generalizado, pelos ilhéus, de um dialeto; e, por outro
lado a ausência, entre esses mesmos ilhéus de artes populares em que se exprimisse
uma saudável interpenetração das culturas que neles se cruzam. (FREYRE, opcitp
250, apud ELIAS ALFAMA, pág. 141)
Na nossa compreensão desses comentários de Freyre, é que o mesmo via que o
processo de miscigenação deveria avançar mais para se adaptar ao lusotropicalismo,ou seja,
Cabo Verde precisava ser mais desafricanizado. De 1939 a 1942 Freyre foi convidado pelo
governo colonial português de Salazar para visitar as suas colônias no continente africano. De
acordo com Abdias Nascimento (2001) um dos propósitos das visitas de Freyre foi a
177
formulação em Angola da lei do indigenato, uma espécie de versão portuguesa do sistema sul-
africano do apartheid.
Sob o contexto das independências africanas, a partir da década de 1950 as
perspectivas sobre a relação colonial entre Portugal e Cabo Verde começam a tomar uma
nova conotação crítica nos meios populares. Jornais e organizações de contestação começam a
tomar uma dimensão ampla no arquipélago, os abusos coloniais e tornaram-se cada vez mais
agudos e o nacionalismo ganha força entre a população local e estudantes em intercambio que
começam a se organizar com estudantes de outras colônias como São Tomé e Príncipe,
Angola e Moçambique.
Como vimos no terceiro capítulo esta dissertação, o PAIGC iniciou no sul de Guiné
Bissau os primeiros combates armados para libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde, neste
mesmo ano começam os estudos do PAIGC sobre as possibilidades de programar a luta
armada nas ilhas. Após grande parte da luta armada ter reconquistado o território de Guiné
Bissau do domínio colonial português entre 1963 e 1972, Amílcar Cabral foi assassinado em
uma emboscada da PIDE em Guiné Conacri. Amílcar Cabral demonstrou preocupação com a
burguesia local como mediadora da estrutura colonial, o que podemos ler como a raiz das
elites analisadas por José Carlos dos Anjos. Cabral também criticava a atitudes de soldados
que agiam como militares, apenas seguindo regras, em sua opinião a militância era mais
eficaz, pois exigia a utilização do intelecto.
A independência em Guiné Bissau e Cabo Verde entre 1973-1974 consolidaram-se de
forma frágil, talvez para Cabo Verde mais ainda devido à falta de estruturas internas para uma
maior autonomia. De toda forma, o arquipélago de Cabo Verde, na nossa percepção,
estabeleceu uma rede de parcerias, numa espécie de política externa mestiça, ou seja, uma
politica internacional que aceitou fazer parceiras com Portugal, África do Sul, Cuba, Estados
Unidos e União das Republicar Socialistas Soviéticas (URSS).
Com o advento das independências africanas tardia, como no caso das colônias
portuguesas, as problemáticas no campo de ensino estavam entre os grandes desafios para
estruturação dos novos Estados. Em comum aos países africanos do pós-independência foi à
importação de modelos de governação ocidentais de tendência capitalista ou socialista. No
caso do Cabo Verde, de acordo com José dos Anjos (2002) a opção foi por uma democracia
participativa com uma correspondência remota com o modelo soviético, em um momento
178
entre 1975 e 1980 denominadas primeiras república, conduzida a maior parte do seu tempo
pelo regime mono- partido único PAIGC-PAICV, ou Partido Estado. A partir de 1990, Anjos
(2002) explica que teve inicio a Segunda Republica marcada pelo encerramento do sistema de
Partido Estado e pela administração neoliberal do Movimento para Democracia (MPD).
Desde 1975, o partido único fundamentou-se na fusão binacional Cabo Verde – Guiné
Bissau. Mas esta fusão foi objeto detenção em Cabo Verde. Setores das elites entendiam que
havia uma tendência dentro do PAIGC de supervalorização dos combatentes das matas da
Guiné Bissau, em detrimento aos combatentes clandestinos de Cabo Verde na época da luta.
Nesse sentido, a cisão entre duas tendências tornou-se cada vez mais latente entre a defesa de
uma “identidade mestiça cabo-verdiana” e uma “identidade africana guineense”.
A crise do bi nacionalismo chega ao seu ponto crucial com o golpe de Nino Vieira em
Guiné Bissau no ano de 1980. Nino Vieira foi o primeiro ministro de Guiné Bissau através de
um golpe de Estado que depôs o presidente Luís Cabral (irmão de Amílcar Cabral), esta crise
constitui o fator decisivo para a Segunda Republica. O Golpe de Estado em Guiné Bissau
serviu como espaço propício à ala caboverdiana dirigente do PAIGC para se afastar da
Unidade com Guiné Bissau, inclusive não cumprindo com os acordos que asseguravam uma
espécie de retaguarda Militar em risco de ataques a soberania, foi nesse contexto que se criou
o Partido da Independência de Cabo Verde PAICV. Segundo Anjos (2002, pág. 227):
Fica Claro que a parte cabo-verdiana tinha outros grandes interesses além da
unidade e que de certa forma ficavam embaraçados pela unidade: o da reconciliação
da elite política com a elite intelectual maldita que promovera a tese de mestiçagem e não acreditava na Áfricanização do país.
Como vimos, o princípio racista da identidade cabo-verdiana foi formatado durante o
movimento Claridade, esse principio baseou-se em ideologias racistas como a existência de
uma “inferioridade tribal” de Guiné Bissau e “superioridade intelectual de Cabo Verde”
segundo José dos Anjos. Tal perspectiva foi alimentada nas argumentações em defesa da
separação entre Guiné Bissau e Cabo Verde. O prof. Elias Alfama faz uma avaliação
pertinente da transição entre o regime colonial e a independência em Cabo Verde a partir da
perspectiva de continuidades e descontinuidades na estruturação e funcionamento da
sociedade. Alfama (2008) entende que as continuidades foram diminutas, resguardadas ao
encerramento da administração colonial portuguesa, e de novas políticas de cooperação
internacional com países como Holanda, Brasil e Estados Unidos, por exemplo. As
continuidades foram inúmeras, primeiramente em relação à permanência do esgotamento do
179
solo e sub-aproveitamento das capacidades pescatórias, influenciando a dificuldade de
produção de alimentos, exportação e um processo intenso de migrações populacionais em
busca de melhores condições socio-econômicas.
No campo cultural-político, o prof. Elias Alfama (2008) também observa uma forte
continuidade da influência portuguesa, uma vez que as elites cabo verdianas se identificavam
com Portugal, e foi nesse país europeu que os governantes adquiriram a base de sua formação.
Como consequência previsível, o ensino também apresentou seus laços de continuidade com o
período colonial, a partir de 1975 coube ao ministério da Educação e Cultura e ao Ministério
da Saúde a Assuntos Coloniais a responsabilidade sob a educação em Cabo Verde. Poucas
foram às mudanças estruturais e segundo avaliação de Alfama, as educações nos primeiros
anos de independência entrou em uma fase estática no que diz respeito a reformas e
mudanças. Nas palavras de Elias Alfama (2002, pág. 253) sobre a estrutura colonial de
ensino, temos:
No período colonial, a pedagogia utilizada, o conteúdo das disciplinas, o objetivo da
educação e a utilização do português como língua veicular do ensino, transformando
a escola num espaço de legitimação de diferenciações entre grupos oriundos dos
diferentes quadrantes da sociedade, assim como reforço da situação de subjugação
da maioria por uma pequena elite.
A estrutura de ensino em Cabo Verde, em níveis, entre 1958 e 1973 dividia-se em
Ensino Primário (EP), Ciclo Preparatório (CP), Ensino Liceal (EL), Ensino Técnico
Profissional (ETP), Ensino Eclesiástico (ECL) e Ensino Normal (EN). Em 1975 no pós-
independência o ensino passou para uma estrutura de Educação Pré-escolar não obrigatória,
Ensino de Base: básico elementar EBE – Básico complementar EBC Ensino Secundário e
Secundário Geral ESG – Ensino Secundário Complementar.
Livros escolares com grande ênfase na história lançados pelo Ministério da Educação
e Cultura como a “Coletânea de Textos de Português” para o primeiro ano do ensino
secundário. Muitos materiais expressam o momento educacional de inserção de valores e
fatos inerentes à independência do Cabo Verde, a Unidade com Guiné Bissau, mensagens de
lideranças africanas, cultura e conhecimentos gerais de ciência e tecnologia. Entretanto,
mesmo com o discurso de ruptura com as determinações educacionais do regime colonial, dez
anos após a independência o ensino em Cabo Verde continuou desconectado da realidade
cultural, geografia e humana local, na perspectiva de Alfama (2008).
180
Questões objetivas como a integração entre Escola e vida da comunidade, Escola e
mundo do trabalho ficaram apenas no plano teórico. Este distanciamento gerou consequências
diretas sobre a identidade cultural, tornando-a confusa e tencionada pela unidade política
binacional Cabo Verde Guiné Bissau institucionalizada pelo PAIGC.
Em um plano geral, Alfama (2008) propõe uma análise trifásica de reestruturação do
sistema de ensino em Cabo Verde entre as décadas de 1970 e 1990. A primeira fase entre
1975 e 1980 diz respeito à massificação do ensino caracterizada pelo aumento de efetivos e
uma grande carência infraestrutura, exemplificada pela ausência de pré-escolar por falta de
profissionais qualificados. Para o ensino básico logo após a independência foi criado na
cidade da Praia – Santiago, capital, um curso para formação de professores voltada
exclusivamente para o ensino secundário, mas no geral, a formação profissional ainda
continuou sendo um problema. Observamos nesse sentido que foram recorrentes as
requisições de cooperação com Portugal para formação de professores, algo que
indubitavelmente comprometeu a formação qualitativa desses profissionais.
A segunda fase percorre a década de 1980, e é composta por um período de
ajustamentos em um sistema educacional desequilibrado pelo apelo governamental a
educação e ao mesmo tempo falta de formação profissional e infraestrutura precária, de
acordo com Alfama (2008). Os ajustamentos, ou tentativas de ajustes, foram coordenadas por
reformas denominadas Planos Nacional de Desenvolvimento (PND) I e II. O PND I está
inserido na segunda fase proposta por Elias Alfama, e dentro de uma perspectiva de
valorização dos recursos humanos e democratização do ensino. O PND I em operação entre
1982 e 1985 teve como objetivo central eliminar as marcas do colonialismo para a criação de
um desenvolvimento amplo e independente.
Na aplicabilidade com o PND I constataram-se contradições graves entre o discurso
governamental de ruptura e a situação do sistema educacional, mais diretamente para o Ciclo
Básico, Secundário e Secundário Liceal. Dentre as problemáticas, Alfama (2008) cita algumas
de cariz mais emergencial, como as de ordem financeira, que comprometeram as
infraestruturas de salas de aula, assistência alimentar, materiais pedagógicos e formação de
professores. No sentido curricular, as mudanças foram muito tímidas, mas ocorreram nas
disciplinas de História, Geografia, Filosofia e Formação Política.
181
Elias Alfama comenta que outros problemas de nível estrutural nas cidades, pois a
dificuldade das estradas e transportes públicos na Ilha de Santiago sacrificou a presença de
estudantes, aumentando índices de evasão escolar. Outro grave problema identificado por
Alfama foi à desconexão entre as diferentes áreas da educação tanto no nível Secundário
quanto no Técnico Profissional, na nossa perspectiva essa falta de dialogo interdisciplinar
esteve ligada a não oficialização do kriolo como língua nacional, que por questões de ordem
ideológica e política permaneceu marginal no currículo, no livro didático e na própria sala de
aula. Houve na época uma justificativa infame de que a oficialização do kriolo cabo-verdiano
como língua nacional, e do português como estrangeira, iria isolar Cabo Verde das relações
internacionais fundamentais para sua estrutura nacional.
O Plano Nacional de desenvolvimento II entre 1986 e 1990 insere-se na terceira fase
de estruturação do Sistema Educacional em Cabo Verde, dentro de um contexto nacional de
reforma política, reforma da função publica, reforma educacional e reforma econômica. Os
objetivos desta terceira fase de estruturação foram direcionados a uma nova dinâmica
educacional integrada as mudanças de nível nacional e internacional, o que por si só tornou-se
um desafio para um regime de partido único. O II PND teve como metas centrais melhorar o
ensino básico, tornar a escolaridade obrigatória a partir dos seis anos, a redução do
analfabetismo, a ampliação do sistema extra escolar, a formação profissional, a articulação
escola-comunidade e a escola, o desenvolvimento socio econômico, a democratização ao
acesso ao ensino, principalmente no secundário onde as discrepâncias sociais eram mais
evidentes. Todavia, Elias Alfama comenta que os problemas estruturais inviabilizaram as
metas ou objetivos educacionais do II PND.
Os dois primeiros congressos do PAICV foram nos anos de 1977 e 1987, e no ano de
1988 foi realizado o III Congresso, em que a temática educacional recebeu atenção destacada
no evento em meio a um contexto curricular de programas euro centrados. O discurso e cunho
radical do PAICV no III Congresso previa a valorização das capacidades físicas, intelectuais e
espiritual complementar a educação física e patriótica com base nas diretrizes do Estado.
Entretanto, o ensino de História, por exemplo, persistia em iniciar a história do Cabo Verde a
partir da colonização, concordamos com que essa postura foi um nítido distanciamento da
“reafricanização de espíritos” proposta por Amílcar Cabral (1978, pág. 283):
O sistema escolar foi-se configurando, cada vez mais, como uma forma de
esgarçamento dos alunos e seus familiares das suas raízes e estando afastados dos
182
seus contextos não têm condições de produzir argumentos em relação às formas de
poder vigentes, concentrados em mãos de uma pequena minoria.
As consequências para Cabo Verde da inexistência de uma revolução cultural capaz de
destruir uma identidade nacional racista baseada na mestiçagem esteve enraizada nas próprias
posturas dos dirigentes do PAICV, que se voltou em conciliação aos ideólogos da Claridade.
A reabilitação da Claridade que na época das lutas de independência era muito criticado foi
uma marca de convergência para o PAICV no encerramento do ciclo monopartidário, e para a
ala neoliberal entre as elites que estruturou o Movimento para Democracia, o MPD. Neste
contexto, a identidade racial miscigenada já estava posta como fato consumado e irrevogável.
A Ilha de Santiago – capital- foi simbolicamente um ícone referencial de cultura e
fenótipo de resgate da identidade nacional africana reverenciada pelo PAIGC. Conforme
explica Anjos (2002), Santiago tornou-se o sentido de uma direção africana para o
arquipélago, e palco de diversas disputas internas para a condução do país, principalmente nas
divergências quanto o regime monopartidário. Segundo José Carlos dos Anjos, o
nacionalismo africano vacilou por dedicar-se a autonomia política e negligenciar a revolução
cultural (língua, códigos burocráticos e políticos).
Na década de 1990 tem inicio a Segunda Republica de Cabo Verde, favorecida pela
decadência do modelo soviético, a ala neoliberal outorgou-se da importação de modelos
democráticos, que nada mais foram que uma inserção sistemática do país em um jogo de
subserviência ao imperialismo euro-norte-americano. O MPD programou uma série de
políticas de desafricanização dos pais, mudança dos nomes africanos de ruas, bandeira e hino,
um sutil e constante distanciamento de outros países africanos, aproximação maior com
Portugal, investimentos no setor de turismo, privatizações e cooperação internacional em
todos os serviços públicos. José Carlos dos Anjos apresenta um interessante perfil das elites
no final da década de 1990:
Em fins do século XX Cabo Verde é uma sociedade estruturada sob a dominação de
elites que, pela manipulação dos códigos político-culturais ocidentais, fazem a
mediação entre o sistema internacional e a população local. Desaparecem
internamente as contraposições assentes em critérios raciais e, ou étnicos, ao mesmo
tempo em que se reforçam as distancias culturais, não mais se diferenciando grupos
étnicos, mas criando-se elites destacadas pelo desempenho e manipulação dos
códigos dominantes ocidentais, (ANJOS, 2002, pág. 214).
A Reforma Educacional de 1990 assumiu duas vertentes, uma estrutural sob o ensino
básico e ensino complementar, e uma vertente de ordem pedagógica. A vertente estrutural
183
preocupou-se diretamente com problemas alarmantes de evasão escolar e da falta de
articulação entre o ensino básico e secundário, seguida por preocupações como a aproximação
entre escola e mundo do trabalho, inserção de novas disciplinas e métodos de trabalho,
principalmente no ensino secundário, mais deficitário. A segunda vertente atuou sobre duas
problemáticas centrais, a falta de qualidade no ensino e a continuação dos estudos no ensino
secundário para aqueles que encerravam o ciclo básico.
Os principais obstáculos da Reforma de 1990 foram à falta de profissionais
qualificados, a importação de livros didáticos a altos preços, falta de laboratórios para estudos
de ciências e conteúdos distantes da realidade local e nacional. Algumas das necessidades
centrais constatadas pela reforma encontravam-se na inexistência da interdisciplinaridade, de
flexibilidade entre entradas e saídas, da formação técnica, distanciamento em relação ao
mercado de trabalho, e acesso a tecnologias de informação. A lei número 103-III-90 tinha
como objetivo sanar problemáticas inerentes ao sistema educacional, entre outras as
anteriormente comentadas. Artigos como o 10º demarcavam a importância da educação
integral universalista, consciência ética, cívica e de unidade nacional.
A Reforma de 1990 precisou assumir como propósitos a formulação do pensamento
sociocultural, análise e reflexão sobre historicidade, formação do estudante também para
atender o mercado de trabalho, a promoção da ciência e da pesquisa. Na perspectiva de Elias
Alfama (2008) os interesses internacionais estão nas raízes mais profundas dos obstáculos à
Reforma. Entretanto, na análise de Alfama a dificuldade da Reforma de 1990, mesmo com
índices, constatações e metas não conseguiram levar ao nível prático as mudanças se deu pelo
fato da mesma ser dirigida por grupos hegemônicos na direção do país.
Fortemente influenciada por objetivos político-partidários, a reforma de 1990 foi
pensada para enraizar na cultura cabo-verdiana perspectivas evolutivas, de estilo
eurocêntrico, ignorando problemas que reformas realizadas outrora- período colonial-não considera, pelo menos em sua essência, obstando a superação de
questões que afligiram e ainda afligem populações cabo-verdianas. (ALFAMA,
2008, pág. 306).
Elias Alfama recomenda a incorporação de metodologias e materiais didáticos
condizentes com a realidade do país, pois os mesmos permanecem nitidamente
eurocentrados. No ano de 1990 ocorreu a primeira Reforma Educacional propriamente dita
em Cabo Verde. As problemáticas, ou obstáculos encontrados pela reforma foram de ordem
socioeconômica completamente desfavorável, estruturas coloniais ainda vigentes, desajustes
184
econômicos e demográficos entre ilhas, migrações intensas e o que o prof. Elias Alfama
denominou de “vazio de identidade histórico cultural”.
Este vazio, muito bem observado pelo professor, possui relação direta a qualidade
desfavorável do ensino de história, mas também, sob nossa perspectiva, a permanência da
ideologia racista de uma identidade mestiça. As ideologias de apologia à miscigenação
difundiram-se por todos os meios de comunicação, religião, cultura, idioma e sistemas de
educação, no Brasil e no Cabo Verde. No campo educacional a apologia de uma identidade
mestiça incorporou-se ao perfil eurocêntrico das disciplinas, e de forma mais aguda no ensino
de história. A mestiçagem na sociedade brasileira, por exemplo, foi durante muito tempo uma
propaganda de democracia racial. Destacamos a reflexão de Cheikh Anta Diop sobre esta
questão:
Eu acredito que mestiçagem biológica, a mestiçagem cultural, elevada ao nível de
uma doutrina política aplicada a uma nação, é um erro que pode mesmo conduzir a
resultados lamentáveis. Eu creio que todas as nações devem cooperar no plano cultural, mas neste momento as expressões que empregarão são as de intercâmbio
cultural, não se deve ir além e criar uma doutrina da mestiçagem cultural ou
biológica. Isso pode levar em longo prazo, a uma crise de identidade dos indivíduos
e crise de identidade nacional, como parece ter ocorrido no Egito na baixa era... Eu
acredito que se devam deixar as relações prosseguir naturalmente e não pressionar
uma mestiçagem qualquer, o que é um erro político e que nada tem a ver com uma
abertura e o desenvolvimento de uma civilização multirracial (MOORE, apud DIOP,
2009, pág. 323)
A opinião de Cheikh Anta Diop traz os elementos fundamentais do que estamos
trabalhando em relação à lógica do racismo e a lógica do colonialismo no Brasil e no Cabo
Verde, a miscigenação enquanto doutrina política e a crise indenitária. Concordamos com
Diop que as relações humanas devem seguir seu caminho natural sem interferências
propagandistas. Observamos que as elites, tanto brasileiras quanto cabo-verdianas,
fundamentaram-se nesse erro de procurar uma formatação cultural e biológica através de
propagandas políticas de caráter racista.
Para começarmos a construir um pensamento crítico sobre o ensino de civilizações
africanas enquanto um referencial, e o diálogo entre países africanos e da diáspora, como
indicado pela Prof. Petronília Rodrigues, e a renovação de materiais didáticos comentados
acima por Elias Alfama, apresentamos uma breve crítica à forma pela qual as contribuições de
Cheikh Anta Diop foram percebidas e recebidas no contexto elitista cabo-verdiano e brasileiro
na década de 1980, quando foi lançada a História Geral da África.
185
5.3 Brasil e Cabo Verde: civilizações e sabotagem a Cheikh Anta Diop
No mesmo ano de lançamento da História Geral da África foi publicado no Brasil o
livro “O Egito Antigo” do historiador Ciro Flamarion. O Egito Antigo é possivelmente a
primeira produção no Brasil exclusivamente sobre o tema. Ciro Flamariam apresenta um
material compacto e focado nos temas povoamento, economia e sociedade e vida intelectual
no antigo Egito. Este é um material interessante para entendermos uma face de construção
colonial eurocêntrica da história do Antigo Egito nas academias brasileiras. Na Introdução
(1982) é possível perceber algumas das tendências que delineiam o material, dentre as quais,
crítica ao Pan-africanismo, desqualificação do trabalho de Cheikh Anta Diop e tese sobre
origem e povoamento do antigo Egito não africano, tendo como referência a tese de
desenvolvimento hidráulico de Karl Marx.
No primeiro capítulo Ciro Flamarion (1982, pág. 22) dialoga com J. Vercoutter se a
tese de Karl Marx sobre a preponderância das técnicas hidráulicas como imperativo para
surgimento e unificação do Antigo Egito. Na perspectiva do autor, o sistema hidráulico é
resultado de um Estado, a base pela qual surgiu a civilização. Flamarion argumenta que o
povoamento do Egito (1982) ocorreu através de migrações de brancos do Saara para o Vale
do Nilo, e essa gênese originou uma população mestiça (branca-negroide-semita) e um grupo
linguístico hamita. Dentro dessa perspectiva Flamarion defende que a cor dos egípcios é um
fator sem importância. O autor faz uma análise sobre a participação de Cheikh Anta Diop e
Theóphile Obenga no Colóquio de 1974, alegando que:
Felizmente algumas vozes sensatas fizeram-se então ouvir. Mostrou-se absurdo
querer estabelecer correlações automáticas entre grupos étnicos, línguas e sistemas
culturais (a verdade é que termos como hamita e negroide, por exemplo, não
correspondem a conceitos claros). Foi lembrado também que o Egito, situado na
confluência da África e da Ásia, nunca esteve isolado, sendo inaceitável pretender
que sua população foi exclusiva ou predominantemente branca, tanto quanto negra,
já que tudo indica ter sido sempre muito mesclada, pelo menos desde o Neolítico. E
recordou-se que, no fundo, uma discussão abstrata sobre a cor da pele é bastante
irrelevante diante de questões bem mais importantes, como por exemplo, a necessidade de explicar descontinuidades e continuidades étnico-culturais em
distintas épocas no interior do Egito e entre o Egito e a Nubia. (FLAMARION,
1982, pág. 16)
Ciro Flamarion estabelece uma relação entre racismo e Pan-africanismo para criticar o
que ele entende como dogma lançado por Diop e Obenga, sua definição de Pan-africanismo é
de uma teoria com conotações sentimentais e políticas. No primeiro capítulo o autor considera
que os maiores legados da Mesopotâmia para o Antigo Egito foram às leis. A partir do
186
segundo capítulo, a narrativa de Ciro Flamarion divide-se entre a preponderância
civilizacional do Delta para o Egito, a herança das técnicas da Mesopotâmia e o
distanciamento do Egito de outras regiões do continente.
A Nubia é apresentada como região para punição e aquisição de recursos naturais, e o
Alto Egito é praticamente ignorado na narrativa do autor. Em diálogo com os pesquisadores
europeus K. Wittfogel, J. Vercoutter e Karl Marx, o autor identifica o antigo Egito como uma
sociedade Pré-capitalista. No que se refere aos aspectos da vida intelectual, o pensamento no
Egito é considerado como pre-filosófico e mítico, em outras palavras, não havia razão e
ciência, mas empiria e fantasia. Sobre a cultura religiosa, ou espiritual, no antigo Egito, o
autor comenta que:
A um homem de hoje pode parecer incoerente e contraditório que o céu pudesse ser
descrito como uma vaca, como uma mulher, e ainda como um rio no qual navegava
o barco do Sol. Ou que Osíris – deus ligado à ideia do renascer, daquilo que morre e
volta a despertar – fossem associadas ao mesmo tempo as coisas tão diferentes
quanto à cheia do Nilo, que decorria dos humores que fluem de seu cadáver..., o
grão é enterrado e germina a lua com suas fases, e finalmente o Sol noturno que
atravessa o mundo subterrâneo (FLAMARION, 1982, pág. 44).
Sobre a língua, a escrita e literatura no Antigo Egito, o autor baseia-se no conceito de
“hamita”, que segundo ele mesmo não é nítido. Nesse tema todas as argumentações de origem
técnica fora do Egito são expostas. O calendário, por exemplo, é na visão de Flamarion uma
influencia grega de Ptolomeu. Na conclusão, o autor entende que o povoamento e criação do
Egito na antiguidade são o resultado do que Karl Marx e Frederik Engels denominaram de
modo de produção asiático, na perspectiva de Flamarion esta tese justifica-se na história do
antigo Egito pelas seguintes características do mesmo: ausência de uma comunidade e
aldeamento, a presença de Estado Despótico, a escravidão, a inexistência de comércio e a
tendência à estagnação.
O que Ciro Flamarion nos traz em O Egito é um conjunto de teses eurocêntricas e
completamente contrárias a todo o trabalho pioneiro de historiadores africanos de grande
estatura como Cheikh Anta Diop e Joseph Ki Zerbo. Ciro Flamarion nos deixa nítido que a
sua perspectiva é de desqualificação de intelectuais e Escolas africanas, o autor optou por
inventar que as participações de Diop e Obenga no Colóquio do Cairo foram um fracasso,
entretanto, segundo os próprios organizadores Obenga e Diop foram os mais bem preparados
pesquisadores no evento.
187
O autor apoia-se nas teses sobre origem branca do antigo Egito de forma
completamente arbitrária e criminosa. Segundo Flamarion “povos brancos” do Saara foram os
fundadores do Egito. Mas quem eram esses povos? O autor não nos informa, mas afirma que
o Egito era mestiço em sua composição biológica e cultural, neste sentido a língua era semita,
o calendário grego e o conhecimento técnico da Mesopotâmia. Vemos aqui um Egito
completamente descontextualizado, desafricanizado e arrancado do continente africano.
acordo com nossos estudos nesta dissertação todos estes elementos que Flamarion
considera que chegaram ao Egito através do Delta, do Norte do Mediterrâneo e da Ásia são
falsos. De acordo com Cheikh Anta Diop, como vimos detalhadamente no Capítulo 4 desta
dissertação, o povoamento, a língua, a escrita a religião, a tecnologia e os calendários foram
criações milenarmente anteriores as civilizações da Grécia e Mesopotâmia citadas por
Flamarion. E se a cor da população do Egito realmente não fosse importante não haveria
porque dedicar à introdução um espaço para criticar o trabalho de Cheikh Anta Diop e afirmar
a origem branca dos antigos egípcios.
Quando Flamarion alega que para “A um homem de hoje pode parecer incoerente e
contraditório que o céu pudesse ser descrito como uma vaca, como uma mulher, e ainda como
um rio no qual navegava o barco do Sol” ele está pensando em seu grupo sociocultural cristão
ocidental, uma vez que em diversas expressões culturais e religiosas africanas e indígenas nas
Américas não há contradição ou incoerência nas descrições cosmológicas do céu enquanto um
ser divino e fértil, capaz de gerar a vida e alimentar a humanidade em seu ventre sagrado.
Na Metodologia Geral e no na Conclusão do Volume I da História Geral da África,
Joseph Ki Zerbo recomenda que a pesquisa histórica sobre o continente africano não deve
depender de teses e experiências externas, Ki Zerbo cita justamente a impropriedade das
teorias de como a de Karl Marx sobre o sistema hidráulico, pois como vimos no Capitulo
quatro tal experiência asiática é milenarmente posterior à civilização do Antigo Egito. A
partir deste panorama geral em O Antigo Egito podemos obter algumas tendências das escolas
coloniais reproduzidas no Brasil e que foram profundamente absorvidas por livros didáticos,
cursos de formação de professores e de graduação em História. Sem uma metodologia nítida e
fortemente calcada na supremacia branca .O livro O Egito Antigo enquanto livro de bolso e
produzido no Brasil tornou-se rapidamente Popular, uma distorção histórica que encontrou
terreno fértil no meio acadêmico brasileiro estéreo.
188
Em relação ao Cabo Verde, no ano de 1983 a associação de imigrantes cabo-verdiana
denominada “Solidariedade Cabo Verdiana” fez uma publicação de textos e biografia em
homenagem a Pedro Monteiro Cardoso denominada Folclore Cabo-verdiano. Poeta cabo
verdiano da primeira metade do século XX, e militante das primeiras gerações preocupadas
com a secessão da dominação colonial. Pedro Cardoso nasceu na ilha do Fogo em 1890 e
faleceu na cidade da Praia em 1942. A Ilha do Fogo é tradicionalmente conhecida pelas fortes
tensões de tendência racial, aos dezesseis anos Pedro Monteiro assumiu o pseudônimo Afro, o
que foi na época e contexto um ato de identidade africana. Por volta de 1906 o Afro, Pedro
Monteiro, assinava seu primeiro soneto intitulado “Ao Egito” (MARGARIDO, apud DIOP,
1983, pág. XXXIV) :
Ao Egito
Egito! Berço de Isis Lacrimosa,
Do sacro Nilo de caudais enchentes:
Pátria dos Faraós armipotentes
E da Hipatia e Cleópatra formosa!
Se hoje a Tebas de portas cem, famosa,
Envolve o manto de areais candentes,
Ninguém inda os enigmas transcendentais! Ergue-te, pois! E o jugo anglo-otomano
Sacudindo, proclama soberano.
A tua independência ante as nações!
Que no halo envolto de uma gloria infinda,
Doa alto dessas Pirâmides ainda
Lança ao mundo rútilos clarões!
A introdução de Folclore Cabo-verdiano foi feita por Luiz Silva e prefaciada por
Alfredo Margarido. Chamou-nos atenção à análise feita por Alfredo Margarido sobre o soneto
“Ao Egito”, na sua perspectiva os afro-americanos envolvidos com o Pan-africanismo
mitificaram a história da África sem nenhuma legitimidade para tal, na concepção do crítico:
Estamos hoje em face de uma de formação da história cultural africana e afra americana que leva a maior parte das pessoas a aceitar a ideia de que a recuperação
do Egito pelos africanos se processou a partir da reflexão e da demonstração teórica
de Cheikh Anta Diopág. Trata-se de uma visão puramente francófona da situação,
visto esta revisão da história cultural do mundo, nas suas relações com o homem
africano, se elaborar graças aos afro-americanos E. W. Blyden, Casal Watford e
Carter G. Lodoso. (Margarido, 1982, pág. XXXV)
A posição arrogante, autoritária e reacionária de Alfredo Margarido é importante
porque nos revela algo que no campo literário intelectual era obscuro em relação a Cabo
Verde: a perspectiva das elites sobre a antiguidade africana e mais precisamente dos trabalhos
do historiador do país vizinho Cheikh Anta Diop. Negar a africanidade em Cabo Verde e as
Civilizações africanas fizeram, ou faz parte da formação intelectual portuguesa, ao mesmo
189
tempo, a influência de Alfredo Margarido deu-se por uma das características da educação em
Cabo Verde, a propaganda de apologia à miscigenação como doutrina política
embranquecimento.
Para entendermos mais sobre o tema civilizações e Cheikh Anta Diop em Cabo Verde
consultamos o historiador guineense Peter Karibe Mendy. Na década de 1990 Karibe Mendy
assumiu em Guiné Bissau a presidência da maior referência educacional do país, o INEP –
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. O Prof. Mendy produziu um excelente trabalho de
crítica à influência do colonialismo português nos estudos de História, principalmente através
do silenciamento e apagamento de Cheikh Anta Diop. Para o professor Mendy (1997) a
importância de Cheikh Anta Diop em Cabo Verde e Guiné Bissau se da pelas contribuições
aos estudos históricos e pela dedicação a construção de uma federação africana continental e
democrática, no caso da realidade neocolonial dos dois países os estudos sobre Diop
tornaram-se imperativos.
Refletindo sobre a observação do professor Mendy (1997) , entendemos que para a
ação neocolonial portuguesa sob o sistema educacional de suas ex-colônias, manter distante
dos currículos, programas e livros didáticos uns cientistas de múltiplas vertentes como Cheikh
Anta Diop distante foi mais que necessário, uma questão de segurança pública praticamente.
Se por um lado Nações Negras e Cultura subsidia uma nova compreensão sobre a origem da
humanidade e civilizações, Fundamentos econômicos para União Federal africana oferece
uma série de propostas para se repensar a marginalização das línguas maternas e políticas de
fronteira. O professor Karibe Mendy nos lembra de que originalmente o território atual de
Guiné Bissau, de onde foram arrancadas violentamente a população para ocupar Cabo Verde,
foi originalmente uma região ocupada por populações migradas dos Grandes Lagos e do Vale
do Nilo, essas populações edificaram importantes impérios Salesianos como Tukulor, Gana e
Mali (1997). Para o prof. Mendy o trabalho de Diop também foi de denúncia da
desonestidade e do colonialismo denro da historiografia (MENDY, 1997, pág. 18) :
Uma consequência significativa da marginalização histórica da África foi à
marginalização da sua contribuição para a civilização mundial. A importância do
professor Cheikh Anta Diop reside na sua enorme e bem sucedida luta contra a ardente crença dos historiadores europeus, sancionando a dominação colonial, de
que os africanos eram intrinsecamente incapazes de fazer história, ou de produzir
obras de arte extraordinárias, quanto mais conhecimento científico e know-how.
As elites africanas locais desprezavam o imperativo de uma federação pan-africano
democrático defendido por Cheikh Anta Diop e por Amílcar Cabral foi incapaz de impedir a
190
desintegração política e as relações de dependência econômica e educacional de Guiné Bissau
e Cabo Verde com países europeus: O necessário trabalho de base para reduzir as distancia
e culturais, sarar velhas feridas e mudar enraizados preconceitos herdados da dominação
colonial não portuguesa não foi realizado de forma adequada e satisfatória (MENDY, 1997,
pág. 23).
Como salientamos em dialogo com o prof. Elias Alfama, o sistema educacional cabo
verdiano sofreu fortes impactos do autoritarismo das elites dirigentes de uma estrutura
neocolonial de governo no país. Os ideais pan-africanos lançados por Amílcar Cabral foram
transformados em palavras mortas de discursos, jornais e poesias saudosistas. A coragem e o
empenho pela libertação africana foram relegados ao conceito medíocre de “utopia”.
5.4 Década de 2000 – História da África
A luta pela história da África faz parte do histórico de atividades dos movimentos
sociais afro-brasileiros ( movimento negro) desde a primeira metade do século XX. De acordo
com Kabenguele Munanga (2008) iniciativas de educação e pesquisa no campo da história
africana foram articuladas no Rio de Janeiro e São Paulo durante as décadas de 1940 e
1950através doTeatro Experimental do Negro, do professor Abdias Nascimento, e do Teatro
Popular, de Solano Trindade. Entre o final da década de 1950 e 1960 o sociólogo Alberto
Guerreiro Ramos foi o maior articulador de diálogos com cientistas do mundo africano, como
Kwame Nkrumah e Cheikh Anta Diop, cujo trabalho de revisão histórica em Nações Negras e
Cultura foi incorporado como referencia ao livro introdução critica a sociologia brasileira, de
1956. Relata-nos o Henrique Cunha Jr. que durante a década de 1970 professores militantes
do movimento negro em São Paulo, inclusive ele mesmo, dedicaram-se a ensinar História da
África e criticar as distorções eurocêntricas. As críticas às distorções passavam pelos
seguintes termos:
O principal problema encontrado no processo de ensino e aprendizado da História
africana não é relativo à história e à sua complexibilidade, mas é com relação aos
preconceitos adquiridos num processo de informação desinformada sobre a África.
Estas informações de caráter racista, produtoras de um imaginário pobre e
preconceituoso, brutalmente erradas, extremamente alienantes e fortemente
restritivas. Seu efeito é tão forte que as pessoas quando colocadas em frente a uma
nova informação sobre África tem dificuldade em articular novos raciocínios sobre a história deste continente (CUNHA, 2002, pág. 58)
191
Este contexto de críticas ao eurocentrismo na História narrado por Cunha Jr. foi
sistematicamente combatido por professores conscientes e organizações afro-brasileiras
comprometidas em todo o Brasil. Além das críticas ocorreram iniciativas voltadas à
renovação do conhecimento histórico africano durante a década de 1990. Perante um contexto
persistente de símbolos negativos sobre África vinculados por livros didáticos, jornais, rádio e
televisão, Cunha Jr. (2002, pág. 59) propôs naquele período cinco pontos fundamentais para a
desconstrução da imaginação sobre África selvagem e primitiva no Brasil:
1. A África não é uma selva tropical
2. A África não é mais distante que os outros continentes
3. As populações africanas não são isoladas e perdidas na selva
4. O europeu não chegou um dia na África trazendo a civilização
5. A África tem história e também tinha uma escrita
Entre diversas iniciativas de renovação do ensino de História da África desenvolvidas
na década de 1990 identificamos o 1º Fórum Estadual sobre o Ensino da História das
Civilizações africanas na Escola Pública. O Fórum foi realizado no Rio de Janeiro em 1991,
entre os meses de junho e agosto, pelo Instituto de Pesquisa e Educação Afro-brasileiro-
IPEAFRO, criado por Abdias Nascimento com o apoio de uma serie de militantes do
movimento negro em São Paulo, no ano de 1984.
O 1º Fórum sobre o Ensino de História das Civilizações africanas na Escola Pública
foi realizado nas dependências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
organizado pelo IPEAFRO em parceria com a Secretaria Extraordinária de Defesa e
Promoção das Populações Negras (SEAFRO). O IPEAFRO e o SEAFRO possuíam como
objetivo comum – de acordo com o documento do IPEAFRO (1991), integrar assuntos
africanos e afro-brasileiros ao currículo escolar, e formação de professores de escolas do
Estado do Rio de Janeiro.
O projeto assumiu uma perspectiva teórica interdisciplinar, a filosofia adotada para a
orientação do trabalho foi à visão Afrocentrada do conhecimento. A Afrocentricidade é uma
proposta criada pelo professor Molefi Kete Asante no final da década de 1960. Molefi Asante
é diretor do departamento de Estudos africanos da Universidade de Temple nos Estados
Unidos. Segundo a definição do autor (ASANTE, 2009, pág. 93):
A ideia afrocêntrica refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar.
Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país
seja feita com base em uma localização centrada na África e em sua diáspora.
192
Começamos com a visão de que a Afrocentricidade é um tipo de pensamento,
prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos
atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com os seus próprios
interesses humanos.
O conceito de localização citado pelo professor Molefi Asante é fundamental para a
Afrocentricidade. A localização refere-se ao lugar psicológico, histórico, individual ou
cultural de uma pessoa em relação a sua própria história, neste sentido a localização procura
identificar a posição central ou marginal do africano dentro e no centro de sua própria
história. A referencia da Afrocentricidade a africano diz respeito a todos os africanos nascidos
no continente e aos afrodescendentes no mundo.
Dentro da proposta do 1º Fórum, a Afrocentricidade foi utilizada para renovar e
valorizar a identidade africana no Brasil, combatida e discriminada pelo eurocentrismo, e – de
acordo com Larkin, para trabalhar pedagogicamente um conhecimento distinto do ocidental
europeu e analisar criticamente matérias, temáticas e currículos. Em minha opinião a
Afrocentricidade é de extrema importância para a desconstrução da miscigenação enquanto
doutrina politica, e para reconstrução da dignidade humana de todos nós que tivemos nossas
vidas, sociedades e projetos interrompidos pela escravidão e pelo colonialismo. Os conteúdos
sobre civilizações clássicos africanos propostos pelo Fórum para ações pedagógicas concretas
no ensino fundamental, médio e universitário referiram-se a (Larkin, 1994, pág. 35):
1. Ensino Fundamental: referencia às civilizações clássicas da África Antiga em
todos os contextos que abordam a antiguidade ou as origens das civilizações ocidentais (Grécia e Roma);
2. Ensino Médio: Implantação da Matéria História Geral das Civilizações africanas;
3. Cursos sobre as civilizações clássicas africanas da antiguidade ( Nubia, Meroé,
Axum, Egito) como fonte dos fundamentos científicos e filosóficos das civilizações
clássicas greco-romana, e sobre sua presença e participação na Antiga Europa, Ásia
e América.
O relatório do 1º Fórum sobre o Ensino de História das Civilizações africanas na
Escola Pública foi publicado em 1994 pela SEAFRO, cujo coordenador na época era
Nascimento. Através do Partido Democrático Trabalhista (PDT) Abdias Nascimento assumiu
como suplente o cargo de Senador da Republica entre 1996 e 1999. Enquanto Senador,
Abdias trabalhou no parlamento em projetos de lei direcionados a introdução das civilizações
africanas no currículo escolar, a exemplo do Projeto de Lei No 75 de 1997: II- Incorporar ao
conteúdo dos cursos sobre história geral o ensino das contribuições positivas das civilizações
africanas, particularmente seus avanços tecnológicos e culturais antes da invasão europeia
do continente africano. (NASCIMENTO, 1997. pág. 59).
193
No final da década de 1990 o governo brasileiro iniciou os preparativos para sua
participação na III Conferencia Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na cidade sul-africana
de Durban, entre 30 de agosto e 7 de setembro de 2001. O governo brasileiro organizou uma
série de seminários durante o ano de 2000, objetivando construir uma agenda de discussão na
Conferência Mundial na África do Sul.
A partir de Durban foi desenvolvido um programa de ação, um dos itens do mesmo
foram as Políticas de Educação, que incorporaram programas especiais para o ingresso de
negros e índios na pós-graduação universitária e a obrigatoriedade do ensino de História e
cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar nacional, através da Lei 10639-3. No ano
de 2004 foram lançadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações
Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana (DCN). Entre
uma série de orientações, o DCN indica o ensino de clássicos da história e da historiografia,
especificamente a vida e obra Cheik Anta Diop, assim como as contribuições do antigo Egito
para a ciência e filosofia ocidentais.
A partir da lei 10.639-3 e do DCN, uma série de eventos sobre a história da África de
nível nacional e internacional foram realizados no Brasil por instituições não governamentais,
instituições do governo, centros de pesquisa e Universidades. Destacamos aqui dois daqueles
que tiveram sessões especiais voltadas à história das civilizações africanas, a II Conferência
de Intelectuais da África e da Diáspora em 2006 (II CIAD) e os dois Colóquios sobre a
Presença Global africana e Ensino da História da África e Diáspora organizados em 2008 e
2009 no Rio de Janeiro e em Brasília pelo Centro das Artes e Civilizações Negro-africanas da
Nigéria (CBAAC).
O II CIAD foi realizado em Salvador entre 12 a 14 de julho de 2006 com o tema A
Diáspora e o Renascimento africano. O evento foi o primeiro evento de grande porte após a
lei 10639-3 e do DCN, e reuniu uma gama de organizações, intelectuais, políticos e temáticas
em mesas e Grupos de Trabalho sobre Perspectivas da Juventude na África e na Diáspora,
Economia e sociedade na África e na Diáspora, Perspectivas da cooperação na área da saúde
entre outros. O tema do Grupo de Trabalho número 12 foi A Contribuição da África para a
Civilização, dividido em dois blocos, o Bloco-A tematizou “O legado das antigas civilizações
africanas”, e contou com as participações de André Salifou (ex-Ministro das Relações
Exteriores -Niger), Berhanou Abebe da Comissão Econômica da ONU para a África- Etiópia,
194
Cheikh Mbake Diop (historiador –Senegal, filho de Cheikh Anta Diop), Dudley Thompson
(historiador e diplomata -Jamaica), Elisa Larkin Nascimento do IPEAFRO - EUA/Brasil,
Molefi K. Asante do Departamento de Estudos africanos, Temple University - EUA e
Oyeweso Siyan da Universidade Federal de Lagos -Nigéria.
No Bloco A as principais questões debatidas foram sobre a falsificação da história e a
apropriação eurocêntrica do antigo Egito e outra questão de suma importância, a tendência da
educação europeia em estabelecer uma relação triangular entre a raça, inteligência e
civilização. De acordo com o relator Eddy Maloka, Diretor da África Institute of South África
alguns dos participantes fizeram menção ao discurso afrocentrico como um imperativo para a
reescrita da história da África.
Os palestrantes advogaram a necessidade de se retomar a obra de Cheikh Anta Diop
como referencial para uma nova forma de se fazer ciência no continente africano e na
diáspora. Palestrantes também expuseram o legado das civilizações africanas nas áreas de
ciência, língua, religião, cultura, etc. Outra questão muito debatida no Bloco foi à urgência da
inclusão nos currículos escolares da história dos povos africanos e da diáspora interligada
diretamente ao combate ao racismo.
O CBAAC realizou na década de 2000 dois Colóquios no Brasil, o primeiro em 2008
com o tema Ensinando e Propagando a História e a Cultura da África na Diáspora e da
Diáspora na África – entre 10 e 14 de novembro na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O segundo foi realizado em Brasília em 2009 de 9 a 13 de novembro sobre o tema: O Ensino
e a Divulgação da História e Cultura africanas à Diáspora e Ensino da História e Cultura da
Diáspora à África. O encontro de 2008 contou com grandes nomes da historiografia como
Runoko Rashid dos Estados Unidos, Bahru Zewede da Etiópia e Doulaye Konate do Mali.
No campo da antiguidade africana contou com os trabalhos do professor Kimani S.K.Nehusi
da Universidade de East London (Londres), Mukasa África da Filadelfia (EUA) e Ras E.S.P.
Mc Persson da Filadélfia ( EUA).
Um dos trabalhos mais impactantes no campo da história antiga foi do prof. Kimani
S.K. Nehusi sobre o sistema de educação no antigo Egito. O trabalho tratou de uma forma
panorâmica as origens do sistema educacional do Egito, a linguística, as instituições e o
trabalho dos escribas, os estudantes e material pedagógico, educação e gênero, o lugar dos
professores-mestres, o currículo e a metodologia de ensino.
195
Em seu trabalho, o prof.Kimani (2010) apresentou com foi o detalhes as instituições
de estudos avançados no Antigo Egito denominadas Hersetha que significa “professores dos
mistérios”, onde eram ensinados conhecimentos divididos em departamentos de astronomia e
astrologia, geografia, geologia, filosofia e teologia, lei e comunicação. De acordo com Kimani
Nehusi estas instituições em sua grande maioria foram destruídas nas seguidas invasões do
Egito por europeus, asiáticos e árabes.
No ano de 2010 o Ministério da Educação em parceria com a Universidade Federal de
São Carlos e UNESCO realizaram o relançamento da História Geral da África em versão
material e eletrônica, o que desde então tem possibilitado o acesso ao vasto conteúdo dos oito
volumes da obra. Alguns dos Volumes foram alterados com apêndices, como o Volume II,
que na versão de 2010 apresenta o resumo do Colóquio da UNESCO sobre o Povoamento do
Egito e Decifração da Escrita Meroíta, realizado no Cairo em 1974.
5.5. Pesquisa Militante
Optamos por um trabalho de pesquisa militante, sobre as civilizações africanas nos
livros-manuais didáticos e a utilização da História Geral da África. Militante no sentido
empregado por Amílcar Cabral (1978) de não nos limitarmos a parâmetros fechados e
preestabelecidos, típicos do trabalho acadêmico, quase que militarizado por conceitos e
práticas distantes da realidade.
Antes de iniciarmos nosso trabalho de campo pré-determinamos que fossem
entrevistar dezenas de professores, percorrer diversas escolas e recolher uma quantidade
elevada de livros-manuais didáticos de história. Na prática percebemos que nosso
planejamento inicial não condizia com a disponibilidade dos professores, que as escolas não
estavam abertas a nossa presença e que o universo de utilização dos livros didáticos é de
grande complexibilidade que nosso trabalho não termina nesta dissertação.
Nossa militância, neste sentido, foi de estabelecer um conjunto de categorias –
enquanto referenciais básicos e nos abrirmos ao que os professores tinham a nos oferecer a
partir de suas próprias vivências e reflexões. Foi a partir do contato com os professores que
tivemos acesso as escolas, aos seus programas e aos livros didáticos utilizados pelos mesmos,
196
e não simplesmente a partir do que nós resolvemos investigar. Na verdade todo o trabalho de
campo esteve permeado pela troca, pelo diálogo e respeito.
O que percebemos como elementos realmente decisivos para a realização do trabalho
de campo foram à superação de (aparentes) obstáculos culturais e a construção de uma
proposta de contribuição final. Em síntese, o nosso propósito central com esta pesquisa de
campo identificar problemas relacionados ao material utilizado no ensino de história e propor
soluções para superação da mesma.
A superação a qual nos referimos, é a ruptura com a chamada barreira linguística,
Cabo Verde é um país africano que possui uma língua africana (denominada kriolo
caboverdiano). Não consideramos o kriolo caboverdiano um obstáculo, mas uma ponte de
troca e acesso ao cotidiano africano em Cabo Verde, por isso nossas entrevistas e demais
diálogos com os professores sujeitos contribuintes da pesquisa foram realizados no idioma
caboverdiano. Enquanto propósito libertário dialógico, apresentamos no final da dissertação
nossa proposta para Cabo Verde e Brasil.
A Ilha de Santiago é localizada na região sul do arquipélago de Cabo Verde –
denominada região de Sotavento. Atualmente, Santiago é a capital do país, no século XV foi o
ponto inicial da colonização portuguesa no século XV, na região de Cidade Velha- ex Ribeira
Grande. Segundo autores como Antônio Carreira (1983), José Carlos dos Anjos (2002) e Elias
Alfama (2008) a existência da ilha já era de conhecimento de wolofs da costa oeste africana (
Senegal) e Árabes.
Percorremos três Liceus (Escolas Públicas) da Ilha de Santiago, Capital do país. Os
Liceus visitados estão localizados na cidade da Praia e no concelho (município) de Santa
Catarina. Na cidade da Praia começamos a nossa trajetória, a Praia foi inicialmente
denominada Vila da Praia de Santa Maria, criada em 1615 por portugueses devido à expansão
do povoamento da Ilha iniciado na região de Ribeira Grande, hoje conhecida como Cidade
Velha. O primeiro instituto de ensino secundário do país – Liceu Nacional – foi criado em
1861 na cidade da Praia, que por falta de recursos foi transferido para a Ilha de São Nicolau
(Região Norte do arquipélago - denominada Barlavento), ficando sob administração da igreja
católica, muito presente no país. O ensino secundário é reinstalado no país em 1960, passando
a albergar a partir das décadas de 1980 e 1990 uma série de instituições voltadas ao ensino
primário, secundário e universitário.
197
Visitamos um (1) Liceu no concelho de Santa Catarina, uma região em pleno
crescimento habitacional, de forte atividade agrícola e com um histórico de ativismo político
por parte de seus moradores. No livro A Vila de Assomada o pesquisador Henrique Vieira
(1993) ajuda-nos a compreender o histórico da região, marcado por lutas contra o regime de
trabalho escravo português, como a revolta dos Engenhos em 1822, as Revolta de Ribeirão
Manuel em 1910 e do Monte Agarro em 1850. No período entre as décadas de 1950 e 1970, a
região foi um pólo dos debates anticoloniais encaminhados por trabalhadores rurais e
estudantes, e ainda hoje é um termômetro que mede a satisfação política da sociedade.
Amílcar Cabral viveu parte da infância e adolescência em Cabo Verde, no concelho de Santa
Catarina, na cidade de Assomada, antes de se mudar com os pais para Guiné-Bissau.
No Liceu da Praia obtivemos a colaboração de uma (1) professora (Profa. Titina), e,
no Liceu do concelho de Santa Catarina colaboraram conosco sete (7) Professores (Djassi,
Abdulay, Améli, Ramos, Malan, Telli, Djua) em um total de oito (8). Os professores nos
cederam gentilmente dois dos manuais utilizados no Liceu de Santa Catarina, e um manual
alternativo utilizado pela professora do Liceu da Praia. Todos os professores cabo-verdianos
que colaboraram com a pesquisa trabalham com ensino de história no 9º Ano do Ensino
Secundário I.
No Brasil trabalhamos na cidade de Fortaleza, localizada no Estado do Ceará, região
nordeste do Brasil. O Ceará é reconhecido na história do Brasil e afro-brasileira como um
pioneiro no encerramento do regime escravocrata do século XIX, através de Francisco José do
Nascimento, popularmente conhecido como Dragão do Mar, devido as suas atividades
abolicionistas no meio dos trabalhadores jangadeiros no litoral cearense no final de 1870.
Entretanto, como no restante do país, a população afro-brasileira do Ceará no pós-
abolição foi completamente apartada de um processo de seus direitos humanos e civis pelas
elites brancas da região. O Ceará é geograficamente o Estado brasileiro mais próximo do
continente africano, e que recebe um contingente considerável de jovens estudantes de Guiné
Bissau e Cabo Verde. Se não for o único, é um dos poucos sítios no Brasil que possibilitam
voos diretos para o continente africano, cuja escala passa obrigatoriamente por Cabo Verde.
Todavia, no sentido cultural e social, Fortaleza está muito distante do continente africano e da
população afro-brasileira, devido ao racismo e aos altos índices de violência que atingem
principalmente a população jovem africana e afro-brasileira nas periferias e centros urbanos
do Estado.
198
Na cidade de Fortaleza, no Ceará, visitamos três escolas da periferia da cidade,
localizadas na região periférica da barra do Ceará. Entrevistamos o Prof. Biko, que trabalha
nas três escolas, por ser o único professor contribuinte na pesquisa desenvolvemos uma
relação de convivência em atividades voltadas ao mês da consciência negra em Novembro de
2012 e de 2013. As atividades que realizamos juntos foram com os estudantes do Primeiro
ano do Ensino Médio em 2012.
Organizamos questões para a nossa entrevistas semi-estruturadas a partir da literatura
de Diop e Joseph Ki Zerbo. Outras questões são do nosso interesse, como a qualidade de
manuais, programas e a utilização da História Geral da África. A partir destas organizamos
um pequeno quadro esquemático do trabalho de campo:
Figura 31: Quadro da entrevista semiestruturada
Fonte: adaptação Nossa (2013)
MANUAIS E
PROGRAMAS
CIVILIZAÇÕES
AFRICANAS
COOPERAÇÃO
INTERNACIONAL
PROPÓSITO
REFERÊNCIAS
HISTÓRIA GERAL DA AFRICA
EDUCAÇÃO
199
Conclusões
Procuramos neste capítulo construir um panorama geral sobre a educação e ensino de
História no Brasil e no Cabo Verde. Baseamo-nos em questões desafiadoras, como o racismo,
a mestiçagem enquanto doutrina política, as sabotagens ao trabalho de Cheikh Anta Diop e o
ensino de civilizações africanas, em especial o antigo Egito. Neste sentido, uma das questões
mais elementares que observamos que foram à necessidade de estudos cruzados entre África e
Brasil estudos que possam colaborar com análises e resoluções de problemas enfrentados por
ambas as sociedades.
Consideramos relevantes as iniciativas do movimento negro no Brasil na educação, e
principalmente no ensino de civilizações africanas, e a ocorrência de congressos em promoção
da lei 10639\3, que focalizaram atividades no campo das civilizações africanas da
antiguidade. Observamos que muitas das iniciativas de professores e organizações do
movimento negro, assim como congressos precisam ser mais valorizados, pois a impressão
que tivemos é que os mesmos passam por um processo de esquecimento na memória das
iniciativas afro-brasileiras pela educação.
200
Capítulo 6: BRASIL E CABO VERDE – UM ESTUDO DE CAMPO INTEGRADO
PELA HISTÓRIA
Viver sem história é ser uma ruína, ou trazer consigo as raízes dos outros. É reiniciar
a possibilidade de ser raiz para outros que vem depois. É aceitar, na maré da
evolução, o papel anônimo do plâncton ou do protozoário.
Joseph Ki Zerbo
A reflexão do historiador Joseph Ki Zerbo sobre a história e a sua importância
enquanto patrimônio são fundamentais para a agência no ensino da história da África. Aqui,
pensamos o conceito de agência em diálogo com o professor Molefi Kete Asante (2009), ou
seja, a sustentação de competências de ordem cultural e psicológica necessárias para a
libertação humana. Neste sentido, o agente é o ser com competências, ou recursos
psicológicos e culturais, que o permitem ser o protagonista em sua vida, nos seus
pensamentos e seus objetivos dentro de uma sociedade. Doravante, o ensino de história da
África é uma ferramenta de construção da agência.
A história é um ativador orgânico da consciência de continuidade histórica entre
África e diáspora, e de todo o seu patrimônio material e imaterial. É a partir desta consciência,
que conseguiremos retomar a direção do nosso próprio destino e dos nossos interesses,
interrompidos pelo tráfico internacional de pessoas, pelo regime escravocrata e colonial dos
últimos seis séculos, o ensino de história possui uma relevante tarefa nesse empreendimento.
O que os jovens aprendem sobre a história da África em escolas de países africanos e da
diáspora? O que os professores ensinam sobre a história africana? Temas como civilizações
africanas possuem espaço em programas e manuais de História? Em que estágio está no
processo de descolonização da história da África?
Estes questionamentos formam o espírito desta pesquisa sobre ensino de história da
África. Optamos pelo tema civilizações, e mais precisamente o antigo Egito, porque o mesmo
faz parte dos primeiros contatos com a história da África, que adolescentes e jovens tem
diariamente nas escolas africanas e na diáspora. Entendemos que este tema é fundamental
para organizar uma compreensão de potencialidades problemas que devem ser superados no
campo da educação e das ciências. Ao mesmo tempo, pensamos que o patrimônio deve ser
usado como ferramenta para a conscientização histórica e agência. O conhecimento sobre os
valores, a tecnologia e ciência criados e vivenciados pelo antigo Egito são os primeiros passos
201
em direção à libertação mental de um povo desafricanizado, que teve sua memória e
identidade atacada por séculos de genocídio e escravidão.
Neste capítulo, apresentamos uma síntese do nosso trabalho de campo sobre o lugar do
antigo Egito nos livros didáticos utilizados em escolas da cidade de Fortaleza, e escolas da
ilha de Santiago, Cabo Verde, entre os anos de 2012 e 2013. Procuramos identificar e analisar
a utilização de referências da História Geral da África, e dialogar com a experiência e
colaboração de professores de ambos os países. No Brasil a nossa investigação concentrou-se
no primeiro ano do ensino Médio, e no Cabo Verde dedicamo-nos ao 9º Ano do Ensino
Secundário (equivalente à 6ª Série do Ensino Fundamental do Brasil). A história do antigo
Egito integra os conteúdos temáticos destas duas séries.
Este capítulo está dividido em três momentos, no primeiro apresentamos as conexões,
metodologia e categorias utilizadas no trabalho de campo. No segundo momento
apresentamos uma plataforma de dados sobre o ensino de história da África no continente
africano, extraídos do Uso Pedagógico da História Geral da África (UNESCO). No terceiro
momento fazemos a análise de programas e manuais de história para em seguida
encaminharmos nossas reflexões, recomendações e propostas.
6.1 Conexões, Metodologia e Categorias
Optamos pela orientação de Theóphile Obenga, sobre a utilização de conexões entre
fontes e métodos para o trabalho de pesquisa em história e para a historiografia. Estas
propostas do autor nos permitem estabelecer diálogos e valorizar o elemento qualitativo
dentro da pesquisa. No artigo “Fontes e técnicas específicas da história da África-Panorama
Geral”, o prof. Obenga (2010, pág. 91) afirma que:
Devem-se buscar de forma sistemática novas relações intelectuais que estabeleçam
ligações imprevistas entre setores anteriormente distintos. A utilização cruzada de
fontes aparece como uma inovação qualitativa. Certa profundidade temporal só pode
ser assegurada pela intervenção simultânea de diversos tipos de fontes, pois um fato
isolado permanece, por assim dizer, à margem do movimento de conjunto. A
integração global dos métodos e o cruzamento das fontes constituem desde já uma eficaz contribuição da África à ciência e mesmo a consciência historiográfica
contemporânea.
202
A metodologia Geral para pesquisa em história da África criada pelo historiador
Joseph Ki Zerbo possui quatro fundamentos: 1) a interdisciplinaridade; 2) a perspectiva
africana (autenticidade-identidade-consciência); 3) a história dos povos africanos em seu
conjunto; 4) a tríade: civilizações, instituições e estruturas. Todos esses quatro fundamentos
foram utilizados direta e indiretamente nesta dissertação, mas para o trabalho de campo
dedicamo-nos aos terceiro e quarto fundamentos. Por quê?
A perspectiva de uma história da África a partir dos povos africanos em seu conjunto
tem como imperativo a integração de todas das regiões Norte, Centro, Sul, Leste e Oeste do
continente africano, em conformidade com a Organização da Unidade africana (OUA) de
1963. A OUA e seus estatutos foram substituídos pela União africana, cujos estatutos
adotaram uma perspectiva mais ampla das regiões do continente africano, incorporando a
Diáspora como a 6ª Região administrativa do continente africano. Entretanto, mesmo
considerando os estatutos da UA, a consciência de uma continuidade histórica, e a identidade
africana são as bases elementar da nossa perspectiva de diálogo e trabalho entre Brasil e Cabo
Verde.
O terceiro fundamento ocupa lugar de destaque, para organização das etapas e
categorias do trabalho de campo. Consideramos que as civilizações africanas da antiguidade
clássica como o antigo Egito, Etiópia e Núbia, formam a categoria civilizacional. As escolas
visitadas representam a categoria institucional, e a categoria estrutural cabe à análise dos
manuais-livros de história e programas. Entendemos que as civilizações na antiguidade
africana foram sociedades que detiveram um grau elevado de autodesenvolvimento
educacional, cultural, jurídico, político, científico econômico.
A Metodologia Afrodescendente de pesquisa, criada pelo professor Henrique Cunha
Jr., propõe uma relação entre sujeitos da pesquisa, e não uma relação entre sujeito-objeto de
pesquisa. Esta metodologia permitiu-nos estabelecer no Cabo Verde e no Brasil um trabalho
de colaboração com os professores enquanto sujeitos desta pesquisa. Em Fortaleza,
trabalhamos diretamente com o Prof. Biko, vivenciando seu cotidiano e reflexões como
professor e militante do movimento negro. No Cabo Verde, realizamos entrevistas
semiestruturadas com os Professores e Professoras Titina, Djassi, Améli, Ramos, Malan,
Telli, Abdulay e Djua.
203
Para a análise dos manuais de história, trabalhamos dentro da tríade proposta por
Joseph Ki Zerbo com seis subcategorias: 1) Estrutura: o espaço ocupado pela África na
antiguidade em manuais - livros didáticos; 2) a Geografia do antigo Egito nos manuais; 3) a
origem e povoamento do antigo Egito nos manuais; 4) a cronologia do antigo Egito nos
manuais; 5) o conhecimento técnico e científico do antigo Egito; seis ) as referências
bibliográficas, da História Geral da África, presentes nos manais de história analisados .
Outro elemento importante para a análise dos materiais foram os dados do Uso
Pedagógico da História Geral da África, os utilizamos como um parâmetro preliminar sobre
ensino de história e utilização da História Geral da África. No próximo tópico selecionamos
dados do Uso Pedagógico e os interseccionamos a relatos dos Professores colaboradores da
pesquisa.
6.2 Uso Pedagógico da História Geral da África (UNESCO)
Durante a década de 1990, os presidentes africanos Robert Mugabe do Zimbábue, e
Muamar Kadafi da Líbia realizaram esforços para reformulação da Organização da Unidade
africana (OUA), sob o discurso politico e ideológico de criação de um mercado econômico
comum entre países africanos. Na quarta reunião extraordinária da OUA em 1999, a Líbia
propôs aos países membros da organização a criação da União africana, uma instituição capaz
de reformular e assumir o lugar da O.U.A. Em 2000 27 Estados africanos aderiram ao projeto
oficializado, em um ato constitutivo realizado em Durban, África do sul. No ano de 2001, a
União africana fez sua primeira reunião geral, com objetivos de integração econômica,
renovação e qualificação educacional.
Dentro do campo educacional, a qualidade do ensino de história da África é uma
questão desafiadora, fundamental para a consciência de integração do continente, preservação
de seus patrimônios e identidade cultural. Na perspectiva do pesquisador Zakari Dramani
Issifou (2009), durante a década de 2000 foi nítido no debate educacional sobre a História da
África no continente africano, permanecia de tendências eurocêntricas, como o nacionalismo
estreito (história estritamente local). Lembra-nos Issifou, que não existe um documento oficial
sobre o estado da educação no continente africano. Entretanto, há um conjunto de documentos
produzidos entre os anos de 2004 e 2007que esboçam perspectivas politicas do ensino de
204
história da África em relação à integração do continente, dentre os quais (ISSIFOU, 2009,
pág. 20, tradução nossa):
1) Plano Estratégico da Comissão da União africana, Volume 1 – formulado durante
Conferencia da União africana, terceira sessão ordinária ocorrida entre 6 e 8 de
Junho de 2004 em Adis Abeba, Etiópia;
2) Plano Estratégico da Comissão da União africana, Volume 2, produzido pela UA
entre 2004 e 2007;
3) Carta do Renascimento Cultural africano, produzida durante a Conferência da
União africano - a sexta sessão de 23 a 24 de Janeiro de 2006 em Cartum, Tunísia;
(4) O plano de ação para a Segunda Década da Educação em África (2006-2015)
Através de uma parceria entre a UNESCO e a União africana, em Março de 2009 foi
oficialmente lançada à segunda fase da História Geral da África, intitulada Uso Pedagógico da
História Geral da África. O objetivo desta fase é construir um currículo continental baseado
na utilização da História Geral da África. De acordo com o relator do projeto Zakari Dramani
Issifou, o Uso Pedagógico da História Geral da África foi dividido em etapas, conferências
regionais com os principais países interessados na definição de estratégias para resolução de
problemas ligados a história da África, a organização de grupos de perítos para os
desenvolvimentos de conteúdos, guias e outros materiais didáticos para as escolas primárias e
secundárias, o desenvolvimento de campanhas de comunicação e informações sobre o projeto,
a incorporação de conteúdos comuns nos currículos nacionais, o estabelecimento de um
Comité de 10 membros seleccionados a partir das cinco sub-regiões da África (Norte, Centro,
Sul, Oeste e Leste).
Vimos com estranhamento o fato da diáspora não ser inserida entre o comitê de
membros. Na perspectiva de um dos historiadores contratados para a organização do projeto,
o prof. Mamadou Ndoye (2009, pág. 10), o Uso Pedagógico da História Geral da África criou
uma agenda de apoio direto à realização da Unidade africana sob as perspectivas de:
Desenvolver conteúdo comum para os currículos e livros didáticos de história
africanos
Fortalecer a formação inicial e continuada para professores de história restaurados,
Reorganizar e atualizar o site da História Geral da África para carregar o conteúdo
de oito volumes, produção de materiais didáticos e de literatura pertinente, incluindo
uma ordem, para facilitar o acesso livre a todos esses recursos digitais.
Durante a primeira reunião do Comité Científico (16 e 17 de Março de 2009) sobre o
projeto O uso pedagógico da História Geral da África, a comissão responsável decidiu
desenvolver um quadro conceitual para a compreensão objetiva de diferentes questões sobre o
ensino de história da África, e a utilização da História Geral da África no continente africano.
A partir do objetivo de renovar o ensino de História nas escolas e universidades, o quadro
205
conceitual buscou: A) Uma melhor compreensão da rica história da África, o seu património e
a sua contribuição para o progresso geral da humanidade; B) A consciência de valores
partilhados e laços que unem os povos de África; e C) Promover a identidade e cidadania no
continente africano ;
A confecção do quadro conceitual dividiu-se em duas etapas, primeiro a construção de
um questionário sobre ensino de história e utilização da História Geral da África, e em
segundo, a produção de uma série de recomendações. Os questionários foram enviados para
os departamentos de educação dos Estados membros da União africana, que o responderam.
As respostas foram analisadas por comissão técnica e divulgadas através do site da UNESCO.
Entre Março de 2009 e Agosto de 2010, os 53 Estados do continente africano receberam o
questionário e 44 responderam as questões propostas, ou seja, 84%.
O questionário está dividido em sete capítulos principais, compreendendo um total de
32 perguntas, muitas das quais questões de múltipla escolha. As Perguntas abordam as
estruturas do ensino de História em três níveis, o ensino primário, o ensino secundário inferior
e superior (ou Ensino secundário I e II), que no Brasil correspondem ao ensino Fundamental e
Ensino Médio. O Capítulo I do questionário centra-se na organização do sistema educativo, as
estruturas, idades de entrada no sistema e duração do ensino primário e secundário nos países.
O capítulo II trata do ensino de História no currículo educacional, o status do ensino de
História e o lugar do sujeito da História. As questões número 7 e número 8 deste capítulo nos
interessam, pois elas abordam diretamente a entidade responsável pela elaboração do
currículo e sua supervisão.
Sobre a entidade responsável pela elaboração do currículo, em 35 países, ou seja, em
(79, 54 %) dos casos, em 11 dos países entrevistados (25%) existe um instituto orientado pelo
Ministério da Educação, responsável pela elaboração da pedagogia de ensino. Organizações
independentes em comitês de províncias e de professores exercem ações voltadas à
elaboração de currículos, dentre os entrevistados elas correspondem a 9%%. A supervisão do
ensino de história é realizada por departamentos do ministério da Educação em 39 países
(88,6%), através de uma Inspeção Geral de Ensino em 23 países (52,27%), por instituições
pedagógicas em 5 países (11,36%) e pelas próprias escolas em 10 países, ou seja, 22, 72% dos
casos.
206
O relator Zakari Dramani Issifou (2009) comenta que o papel do Estado, através do
ministério da educação, continua predominante em quase 88% dos casos. Na perspectiva do
relator, seria ideal que essa tarefa fosse assegurada em conjunto pela Inspecção-Geral de
Ensino, a instituição de avaliação pedagógica e com as escolas (cuja participação é muito
limitada), a fim de garantir uma pedagogia mais equilibrada, com base em critérios e
habilidades de experiência na área.
Pareceu-nos problemático que na maior parte dos países entrevistados, os Estados
exercerem um papel preponderante na formulação de currículos e supervisão do ensino de
História, por que as elites neocoloniais africanas ocupam física e ideologicamente estes
departamentos e ministérios, na maioria dos países africanos. A pouca ou quase nula
intervenção de organizações independentes de províncias e professores (escolas) torna a
situação ainda mais grave, fazendo com que o ensino público de história esteja
completamente vulnerável às ideologias eurocêntricas, em nossa opinião.
O Capítulo III, do Questionário, trata do conteúdo do ensino de História Geral e de
História da África. Este capítulo é composto por nove perguntas, a Pergunta 15aborda temas
abordados nas escolas, e nos revela os seguintes dados sobre antiguidade africana no
Primário, Secundário I e Secundário II: a) Primários 25 países (56,85 %); b) Secundário I: 35
países (79,5 %); c) Secundário II: 39 países (88,6%).
No Cabo Verde, contactamos professores de Liceus para colaborarem com nossa
pesquisa. Na cidade da Praia, nossa colaboradora foi a Profa. Titina, responsável por lecionar
história em três turmas de 8º e 9º Anos do Secundário I. Procuramos entender com a
professora, qual o lugar da história antiga (geral) no curso Secundário, segundo ela:
O ensino de história antiga é oferecido somente à 9ª Série do Ensino Secundário I,
de 1990 para o ano 2000 alguns temas foram reduzidos dos currículos e programas,
principalmente após o governo do Movimento Para Democracia (MPD). Pois, a
partir das reformas realizadas por este governo, o ensino – de forma geral passou a
ser mais voltado ao mercado... Alguns temas da história foram perdendo espaço e
importância (Prof.Titina – entrevista, nome fictício).
Procuramos entender sobre o lugar do antigo Egito no programa do ensino Secundário
I, e de como os professores trabalhavam com esse tema:
207
O Egito é um tema importante, por ser uma das primeiras civilizações do continente
africano e da humanidade. Antes, na época em que eu estudava no Secundário,
aprendíamos muito mais sobre a história da África, mas isso tem mudado muito, os
programas de história do Secundário hoje são quase que inteiramente voltados à
história da Europa, o Egito é tratado como uma civilização oriental, enquanto Kush
e Etiópia estão fora dos manuais programas. Mas eu não me prendo aos programas e
amuais, consulto as fontes que tenho em casa e procuro introduzir o que sinto
necessidade, o que está fora dos conteúdos. Quando trabalhamos o Egito enquanto
uma civilização de origem africana os jovens estranham... Mas depois demonstram
mais interesse pela história do Egito e pela história da África como um todo. Se não
houver uma interferência nossa (professores) nos manuais os alunos aprenderam que o Egito Antigo era mediterrâneo e semita (Prof.Titina – entrevista, nome fictício).
No Liceu do concelho de Santa Catarina, dialogamos neste mesmo sentido com o
Professor Djassi e com a Professora Améli, que lecionam história em turmas do Secundário I
e II. Segundo o Prof. Djassi:
Eu visitei os Estados Unidos a cerca de dois anos, meus sobrinhos moram e estudam
lá. Fiquei muito motivado ao vê-los falando da história da África como sua própria
história e reconhecendo nas civilizações antigas um legado vivo e atual. Eu sei que isso não acontece em todo o país, eu estava em Nova Jersey... mas pelo menos
acontece. Aqui em Cabo Verde a história antiga está concentrada na Europa, e
mesmo assim somente no 9ºAno do Secundário I tem acesso aos seus conteúdos. O
Egito nos manuais é um tema pouco trabalhado. Em minha opinião, tudo que
envolve África no ensino depende do nosso interesse (Professores) em abordar estes
temas. (Prof.Djassi – entrevista, nome fictício).
Na opinião da Prof. Améli sobre Antiguidade e o ensino do Egito:
Nós vemos a antiguidade com os alunos no 9º Ano do Secundário I. Como
professora, acho a Antiguidade importante, mas a história atual é mais, nossos
jovens precisam saber mais sobre Cabo Verde, o Egito é muito distante e faz parte
de uma África Branca, Árabe. Saber sobre as pirâmides e matemática é importante como uma base de compreensão da história mundial. O que eu sinto falta no ensino
é a história “di terra”, a nossa história cabo-verdiana. (Prof.Améli – entrevista, nome
fictício).
Perante os dados do Uso Pedagógico da história Geral da África, Cabo Verde está
entre os trinta e cinco países que abordam a História Antiga no Secundário I, e, ao mesmo
tempo, entre os países que não abordam o tema no Primário e no Secundário II, Nos
comentários dos Professores Djassi e Titina pecebemos uma insatisfação com o lugar do
Egito no ensino de antiguidade, e ao mesmo tempo a iniciativa própria de melhorar conteúdos
a este respeito. No campo das iniciativas, em Fortaleza o Prof. Biko organiza atividades com
os alunos do Ensino Médio todo mês de Novembro (Mês da Consciência Negra), para reforçar
seu trabalho anual sobre história da África e do afro-brasileiro.
208
Figura 32 :Encontro na Escola
Fonte: Arquivo pessoal
Em 2012 participei com o Prof.
Biko de atividades nas três Escolas onde
leciona, nesta oportunidade apresentei aos
estudantes de 1º do ano alguns dos
conhecimentos criados pelos egípcios e
que ajudaram a prolongar nossa vida no
planeta terra, como a medicina, implantes
dentários, prótese de membros, operações
cerebrais,química,matemática, engenharia
e etc.
Mesmo familiarizados como assunto – por causa do trabalho do Prof. Biko, muitos
dos jovens demonstravam não acreditar nas informações apresentadas, mesmo com as
imagens apresentadas através de slides, registramos em nosso caderno de campo a reflexão do
Prof. Biko sobre este nosso trabalho e suas consequências nas escolas:
Esse trabalho foi importante por que reforçou os temas que tenho apresentado aos
alunos. Alguns deles, na semana seguinte à sua visita, estavam muito questionadores
sobre a situação atual do continente africano, e do porque os outros professores não
falavam sobre aqueles assuntos da história da África. (Prof.Biko – entrevista,
registro de caderno de campo. 2012 nomes fictício)
As Perguntas 16, 17 e 18 do Uso Pedagógico objetivam identificar utilização da
História Geral da África. O número 16 questiona o conhecimento sobre a publicação da
História Geral da África nos países, entre os 44 que responderam 39 responderam que sim, 20
responderam que não, e 6 não responderam. Dos participantes 45, 45 % dos países
responderam não estarem familiarizados com a obra, e outros afirmaram nunca terem ouvido
falar sobre a mesma.
A pergunta 17 buscou entender a disponibilidade dos volumes da História Geral da
África, 41 dos 44 entrevistados afirmaram que sim, 30 que não e 3 países não responderam. A
pergunta número 18 questiona e trata da utilização pedagógica da História Geral da África:
209
Tabela 1 : Utilização da História Geral da África
Séries Utilizam
A HGA
Pouco
Utilizada
Não
Utilizada
PRIMÁRIO 1 país
(2,27%)
12 países
(27,27%);
9 países
(20,45%)
SECUNDÁRIO
INFERIOR
5 países
(11,36 %)
6 países
(13,6%);
12 países
(27,27%);
SECUNDÁRIO
SUPERIOR
7 países
(15,9 %)
17 Países
(38,6%);
Cinco países
(11,36%).
Fonte: Adaptado do Uso Pedagógico da História Geral da África (2009)
É interessante a relação entre as perguntas 15, 16, 17 e 18. O ensino de antiguidade faz
parte do primário e dos dois secundários, e a História Geral da África é afirmada na resposta
dos países, como uma obra conhecida, entretanto os mesmos países que alegaram conhecer a
obra assumiram também não ter acesso nem familiaridade à mesma. Com exceção de um
único país que utiliza a História Geral da África no ensino primário, e 12 outros que utilizam
no secundário, não há uma utilização pedagógica da obra. Neste sentido, quais as bases de
fundamentação teórica para a antiguidade no ensino Secundário, por exemplo?
Uma das questões da nossa entrevista foram sobre a utilização da História Geral da
África entre os professores e a disponibilidade das escolas, todos os professores comentaram
conhecer a obra, todavia, da mesma forma que aparece no Uso Pedagógico da História Geral
da África, não havia entre os mesmos a familiaridade e manuseio do conteúdo da obra. Dos
nove professores que colaboraram conosco sete reconheceram a obra como uma grande
referência, destes sete, somente dois alegaram fazer consultas à obra, o Prof. Telli de Santa
Catarina, e o Prof. Biko de Fortaleza. O prof. Telli comentou que:
[...] através da minha sobrinha, que trabalhava na época como secretária do
Ministério da Educação e Desporto. Ela é formada em comunicação e está sempre
procurando informações sobre o continente africano, recebeu um correio electrónico
do Brasil, na verdade, uma propaganda do Ministério da Educação sobre a
publicação da História Geral da África, ela me falou sobre isso e fez download para
mim (Prof.Telli entrevista, nome fictício)
210
Figura 33 : Palestra Escola
Fonte: Arquivo Pessoal (2013)
Observamos no conhecimento, e no
desconhecimento, dos professores sobre o
lançamento da História Geral da África
uma divulgação ineficaz da mesma. No
caso de Cabo Verde, na Ilha de Santiago há
uma sede das Nações Unidas, uma Casa de
Cultura Brasil Cabo Verde e universidades,
entendemos que estas instituições tinham a
obrigação de divulgar esta obra. Sobre o
Uso Pedagógico da História Geral da África, entre os nove professores colaboradores da
pesquisa, nenhum conhecia o projeto, é interessante demarcar que, nas duas escolas visitadas
em Santiago, não havia exemplares da primeira edição da História Geral da África. Nas três
Escolas que visitamos em Fortaleza, nenhuma possuía exemplares da História Geral da África
em suas bibliotecas. O Prof. Biko criticou esta situação e comentou sobre a sua relação com a
História Geral da África, enquanto ferramenta de trabalho:
Eu soube através da internet, em um site da Bahia chamado Correio Nagô. Mas já
conhecia a obra, o livro 1, que tenho até hoje um exemplar em casa. Acho muito
cansativo consultar a obra no computador, prefiro ter os livros materiais, físicos... Na verdade, eu já fiz um pedido formal a Escola para obtenção da História Geral da
África, mas eles (escola) estão sempre criando impedimentos, por parte dos
professores que eu conheço não há interesse nenhum pelo tema ou pela obra.
(Prof.Biko – entrevista, registro de caderno de campo, nome fictício).
Assumido como militante do movimento negro, o Prof. Biko organiza há cinco anos
atividades nos meses de consciência negra, em Novembro. O Prof. alega que não tem sido
fácil enfrentar os obstáculos da Escola em relação à lei de ensino de História da África:
É uma possibilidade de fazer cumprir a lei, ou pelo menos alertar sobre sua
existência, e ao mesmo tempo conscientizar esses jovens. Uma das maiores
dificuldades dessa lei nas escolas que trabalho é os gestores. Eles fazem tudo para
dificultar a maior divulgação da lei 10639-3, para mim isto está relacionado
diretamente com racismo. O mes da consciência negra é uma forma mais ampla de
militância e debate na escola. O dia 20 de Novembro é em memória de Zumbi dos
Palmares, a história da África precisa ser refletida especialmente nesta data.
(Prof.Biko – registro de caderno de campo, nome fictício).
Participamos durante o ano de 2013 da atividade "Reflexões sobre os Dez anos de Lei
para o ensino de História da África”. Nossa atividade concentrou-se em uma das Escolas de
Fortaleza, onde apresentamos aos professores uma palestra dentro do tema da atividade. Este
trabalho foi organizado pelo Prof. Biko, em nome da organização do movimento negro da
211
Bahia que o mesmo faz parte, a Quilombo Xis. Nesta oportunidade, registramos em nosso
caderno de campo que entre os 20 professores que compareceram na atividade, nenhum
haviam lido ou manuseado a História Geral da África. Mesmo os professores mais
interessados no tema história e cultura africana, percebemos rejeição a obra História Geral da
África. Esta rejeição pareceu-nos oriunda de dois motivos, a formação eurocêntrica através da
qual fontes africanas de conhecimento histórico-historiográfico são desqualificadas, e uma
cultura (também relacionada à formação) de pouca leitura.
O capítulo IV é composto por seis questões sobre o ensino de história e procedência
dos livros didáticos. O tema das perguntas 21 e 22 abordam a elaboração e autoria dos
materiais didáticos, os dados fornecidos foram os seguintes:
Tabela 2: Elaboração de Manuais
Elaborados pelo
Estado
Elaborados por
professores
Primário 36 países (81,8%); 19 países (43,18%);
Secundário
Inferior 36 países (81,8%); 20 países (45,45%);
Secundário
Superior 12 países (27,27%); 25 países (56,8%);
Fonte: Adaptado do Uso Pedagógico da História Geral da África (2009)
Tabela 3 - Produção de Manuais
Ministério da Educação 30 países (68,18%)
Editoras nacionais 13 países (29,54%)
Editoras nacionais privadas 21 países (47,7%);
Editoras africanas 13 países (29,54%)
Editoras estrangeiras 17 países (38,6%)
Fonte: Adaptado do Uso Pedagógico da História Geral da África (2009)
212
A baixa produção de livros didáticos pelos Estados africanos, e a falta de interação
entre escolas, organizações de professores, a partir do secundário é um sinal de abertura para a
interferência estrangeira na produção de materiais. É diminuta a quantidade de livros
produzidos por editoras africanas, e seria importante que o questionário identificasse se as
editoras privadas são de estrangeiros residentes no continente. Sem dúvida alguma, este
espaço vazio deixado pela falta de uma produção local do conhecimento é ocupado por
grupos estrangeiros e seus interesses políticos, culturais e ideológicos. Nossos colaboradores
de Santa Catarina expressaram suas opiniões sobre a procedência dos manuais.
Os manuais que nós utilizamos para História Geral são produzidos em Portugal, e eu
não vejo problemas nisso, porque nós não temos outras opções no momento, e os livros portugueses são de qualidade. A história geral é universal, independente de
onde é produzida. O importante é que a história de Cabo Verde é nós que
produzimos. (Profa. Améli entrevista, nome fictício).
O Prof. Djua compartilha de opnião parecida com a da Prof. Améli:
Aqui em Cabo Verde nós não temos editoras fortes como Portugal, a nossa relação
com os portugueses é histórica, as nossas histórias estão interligadas profundamente.
Em Cabo Verde somos um povo mestiço e sem barreiras a contribuições de
Portugal, os manuais são portugueses, mas quem dá aulas somos nós! (Prof.Djua-
entrevista, nome fictício).
A perspectiva do Prof. Ramos sobre a procedência de manuais em Cabo Verde destoa
severamente das anteriores:
Na minha opnião isso é um absurdo, mas é decisão que vem das elites proletárias do
país... Que estão nos ministérios, governo. Antigamente nós nos organizávamos em
oficinas para criar nossos programas e construir conteúdos para a história geral, mas
tudo tem mudado aqui em Cabo Verde. Parece que nós professores de história estamos desarticulados, e aceitamos esses manuais de Portugal sem contestação,
essa é uma forma de recolonizar nossas mentes, pegue um desses documentos para
analisar, o continente africano não existe em geografia e cultura. (Professor Ramos
– entrevista, nome fictício).
No caso brasileiro, que a perspectiva do Prof.Biko sobre os livros didáticos é
semelhante a do Professor Ramos de Cabo Verde:
Eu sou muito insatisfeito com os livros de história aqui no Brasil, mesmo com a lei
10639 \3 em vigor parece que pouca coisa mudou na concepção de livros, na verdade... Quem produz esses materiais são as elites brancas do país, e a influência
das concepções racistas é muito forte. No caso da história antiga, por exemplo, o
antigo Egito continua tão branco quanto à Etiópia continua invisível. Infelizmente
nós, professores negros, não conseguimos nos organizar o suficiente para produzir
bons materiais, livros didáticos de história... nosso passado não está em nossas
mãos…(Prof.Biko – registro de caderno de campo, nome fictício).
213
Sobre as formas de aquisição dos materiais didáticos, o objetivo da Pergunta do Uso
Pedagógico 24 é identificar os meios pelos quais os livros didáticos são adquiridos por alunos
e famílias:
Tabela 4 - Disponibilidade de Manuais
Series Dada
gratuitamente
Emprestados Alugado Adquiridos
pelos alunos
Primário 22 países
(50%);
10 países
(22,7%)
1 país
(2,27%)
17 países
(38,6%)
Secundário
inferior
5 países
(11,36%)
7 países
(15,9%)
3 países
(6,8%)
25 países
(56,8%)
Superior
secundário
9 países
(20,45%)
6 países
(13,6%)
2 países
(4,54%)
25 países
(56,8%)
Fonte: Adaptado do Uso Pedagógico da História Geral da África (2009)
De acordo com os dados fornecidos, observamos que a partir do Secundário inferior o
Estado diminui sua cobertura de materiais gratuitos e emprestados, e isso nos faz questionar a
maneira pela qual os estudantes se preparam para outros graus de ensino técnico e
universitário. Segundo os relatores do Uso Pedagógico da História Geral da África, as
alternativas dos alunos muitas vezes é a utilização de livros de anos anteriores, o Prof.Telli
comentou que:
Nós fazemos o que está ao nosso alcance, emprestamos livros quando temos e
orientamos muitos dos jovens, mas são as famílias com mais condições que podem
investir em seus filhos, compram livros pensando na bolsa de estudos em Portugal
ou no Brasil, principalmente na cidade da Praia, onde há mais concentração de
renda. .(Prof.Telli – entrevista, nome fictício).
Considerando as poucas editoras africanas existentes, entendemos que as cooperações
internacionais são responsáveis pelos livros que chegam ao país e são oferecidos por
empréstimo, ou dados gratuitamente. O aumento da aquisição por aluguel e por conta própria
indicam outro elemento, a busca pela continuação do secundário, e estudos universitários no
país ou no estrangeiro, as famílias com mais condições investem nisto. No Liceu do concelho
de Santa Catarina procuramos saber como os professores entendiam as políticas de
cooperação de Cabo Verde com Portugal em termos de educacionais:
A cooperação é importante, muitos de nós fomos para Portugal nos formar. Eu me
formei no Porto por exemplo. Portugal é um país amigo e irmão de Cabo Verde,
somos um país sem restrição, nossa história mestiça faz-nos ter uma cultura rica e
dinâmica. Portugal nos ajuda muito com manuais de todas as matérias. .(Prof.Malan
– entrevista, nome fictício).
214
Registramos a opinião do Prof. Abdulay sobre o mesmo questionamento:
A cooperação Portuguesa é boa e é ruim. É boa por que sempre temos o que
aprender uns com os outros, ainda mais nessa profissão de professor. È ruins porque
estão sempre privados de materiais e condicionados e receber coisas de fora, com
você aqui me entrevistando eu fico até com vergonha em assumir que nossos
manuais de História Geral são feitos em Portugal e estão completamente
desatualizados. Eu me formei aqui, no Instituto de Formação de Professores, quando éramos estudantes organizávamos fichas que seriam utilizadas para fazer manuais
próprios.... Mas o tempo foi passando, e tornou-se mais prático receber os que o
governo indica de Portugal e fazer as alterações e modificações que achamos
necessárias, não temos apoio suficiente para produzirmos nossos materiais.
(Prof.Abdulay – entrevista, nome fictício).
Percebemos uma diferença de perspectivas entre os professores, e observamos que a
mesma está relacionada à formação em Portugal, e a identificação cultural-estética com os
portugueses. Entre os professores, os que se formaram em Portugal não demonstraram o
mesmo tipo de crítica como aqueles formados em Cabo Verde, no Instituto de Formação de
Professores. Os Professores Djassi e Améli, formados em Portugal, apresentam uma opnião
muito parecida com a do Prof. Malan sobre a cooperação com Portugal, na perspectiva do
Prof. Djassi:
Nós precisamos de Portugal aqui nesse país, não temos um parque gráfico para produzir manuais, e os de Portugal são muito bons, nós fazemos os manuais de Cabo
Verde e eles fazem os manuais de história geral, eu não vejo problema nisso. Nós
somos países irmãos. (Prof.Djassi – entrevista, nome fictício).
Na opinião da Profa. Améli sobre os livros didáticos de Portugal:
Não vejo problemas, nós aqui em Cabo Verde aceitamos a cooperação com Portugal
porque precisamos e porque se não fosse este apoio teríamos dificuldades de formar
nossos jovens aqui e lá, pois eles estudam com esses livros e isso facilita muito para
conseguir bolsas de estudo em Portugal. Com esses manuais nossos jovens estão
aptos para competir com o mundo. .(Prof.Améli – entrevista, nome fictício).
Através deste depoimento da Profa. Améli percebemos as engrenagens da relação de
cooperação internacional entre os países e as escolas. A problemática não se restringe a
qualidade do conhecimento, mas a toda uma relação política, cultural e neocolonial complexa.
A utilização dos manuais portugueses enquadrar-se em uma perspectiva de continuação dos
estudos em Portugal, não simplesmente para aprenderem a história a partir de uma visão
portuguesa. E, nos parece que aqueles professores que se formaram em Portugal, não
entendem isso de uma maneira crítica. Neste sentido, a educação é um elemento implícito à
política de migração no país.
215
Aqui, podemos encerrar um conjunto de informações que envolvem a produção, o
acesso, a procedência de livros didáticos, a abordagem do tema antiguidade e a utilização da
História Geral da África. No caso das escolas em Cabo Verde, os professores conhecem a
obra, mas não estão familiarizados com a mesma. No Brasil, de acordo com a atividade que
participamos os professores já ouviram falar, mas demonstraram não ter interesse, alegando
que a obra é cara e muito extensa.
Os relatos do Prof. Biko, nos ajudaram a perceber que os professores tem dificuldade
de aceitar trabalhar a história da África e utilizar a história geral da África. Registramos o fato
que, com excesso, ou com a falta de materiais como nos casos do Brasil e do Cabo Verde,
aqueles professores conscientes e realmente interessados na qualidade do ensino, pesquisam,
alteram e buscam melhorar suas fontes e meios materiais de trabalho. Há dois momentos no
relatório do Uso Pedagógico da História Geral da África, comentados pelo relator Zakari
Dramani, que são muito significativos, primeiro sobre o histórico de reformas educacionais no
continente:
No final dos anos 60 e 70, a segunda onda de reformas dos sistemas de ensino em
sido no sentido de uma Africanização menos defensiva e mais "socrática"
(introspecção), na medida em que procurou integrar programas, escola, patrimônio,
práticas endógenas e conhecimento local, valores, culturas e línguas africanas.
(ISSIFOU, 2009, pág. 21, tradução nossa).
Para justificar a importância da Utilização Pedagógica da História Geral da África, o
relator Zakari Dramani Issifou (2009, pág. 22,tradução nossa) afirma que:
Tendo em conta as capacidades de compreensão da história por idade e nível de
escolaridade do aluno... Algumas propostas aparecem a partir da consideração do
desenvolvimento do pensamento intuitivo, para um pensamento operacional e
conceitual da criança (Piaget).
A introspecção e o pensamento infantil não podem ser encerrados pelas experiencias
europeias. No Egito durante o 3º Milênio a.C. Ptahotep foi um grande pensador escreveu
documentos filosóficos exemplares no campo da introspecção. Na história contemporânea, as
experiências de vida do prof. Amadou Hampatê Ba no Mali é um excelente documento para
compreensão do pensamento infantil. Porque optar por franceses e gregos para fundamentar
ideias sobre educação e história da África? As escolhas não são aleatórias.O eurocentrismo
antecede todos os problemas relacionado ao ensino de história da África que temos visto até
agora.
216
Para nós, este foi um péssimo sinal. Fez-nos pensar sobre as intenções mais realistas
de projetos financiados e coordenados de fora para dentro do continente, a UNESCO –
mesmo com seu departamento de cultura e Seção africana – é uma organização internacional
administrada pelos países que mantem uma relação neocolonial com o continente africano
(França, Itália, Portugal, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e et).Não esquecemos que em
meio a confecção da História Geral da África, a tentativa frustrada das lideranças da
UNESCO de humilhar o prof. Cheikh Anta Diop em 1974, durante o Colóquio Internacional
sobre o Povoamento do Egito e Decifração da Escrita Meroíta.
No ano de 2009 o Setor da Cultura da UNESCO produziu a Revisão do Conteúdo da
História Geral da África. Uma série de recomendações para a utilização pedagógica da obra
coordenada pelo prof. Doualaye Konate. As recomendações cobrem todos os capítulos dos
oito Volumes da História Geral da África. Para Douale Konate durante o período da
antiguidade, a história da África foi dominada pelo do Vale do Nilo, onde organizações sócio
politicas foram estabelecidas por africanos. Na perspectiva de Konatédeve-se evitar a
fragmentação da história Antiga da África através de analogias como período antigo da
história europeia, dominada pela da costa norte da bacia do Mediterrâneo.
No que se refere ao ensino sobre o Antigo Egito o relator recomenda que, de acordo
com o Capítulo 3 do Volume II: Os três aspectos para serem mantidos aqui seriam as bases do
desenvolvimento econômico no Egito, administração egípcia e o estudo da ciência, das artes e
técnicas. Um quarto aspecto poderia incidir sobre "a vida cotidiano no Egito (KONATE,
2010, pág. 12, tradução nossa)
O capítulo 3, do Volume II, da História Geral da África, foi escrito por J.YoYotte,
Egiptólogo francês e coordenador de estudos na École Pratique des Hautes Études de Paris.
Novamente, questionamos o porquê o destaque especial os europeus de todas as eras e épocas
em uma documentação de valorização da história da África. A super valorização da economia
também nos parece uma tendência de J. YoYotte assumida por konaté. , o capítulo escrito por
J.Yoyotte – O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura- aborda temáticas a economia,
administração e cultura militar no Antigo Egipto.
217
Em relação ao Capitulo 1, escrito por Cheikh Anta Diop ( Quem eram os Antigos
Egípcios), o relator recomenda:
A história dos órgãos políticos criados pelos pretos começou com o reino do Antigo
Egito (Gana continua a ser apresentado nas escolas como africano sendo o mais
antigo Estado preto conhecido) estabelecido no final do quarto milênio BC. Com
base em argumentos desenvolvidos por Cheikh Anta Diop, pode-se afirmar de
acordo com Babacar Sall, que os fundadores de civilizações africanas e do reino do
Egito eram negros. (KONATE, 2010,pág. 13,tradução nossa)
O trabalho e os esforços de historiadores em prol da descolonização da história da
África foram árduos durante a segunda metade do século XX. Esses nomes não podem ficar a
margem das referências principais de um documento, que pretende recomendações para a
utilização do Volume II sobre antiguidade africana. Não tivemos acesso à abordagem
completa do prof. Babacar Sall, mas entendemos deveras reducionista o destaque dado à
contribuição do prof. Cheikh Anta Diop no capítulo I. Entretanto, reconhecemos aqui que a
própria participação do autor na coleção foi muita a quem do seu trabalho. A partir dos
estudos sobre a antiguidade, o trabalho de C. Anta Diop foi de renovação total dos estudos
sobre história da África, e da própria forma e propósito de se fazer ciência, uma proposta de
renovação paradigmática. Nosso próximo passo é analisar um programa da nona série do
ensino secundário em Cabo Verde, e três manuais de história.
6.3 Programa e Manuais de História – Cabo Verde
Primeiro analisamos o lugar da antiguidade africana nas temáticas e objetivos de um
programa da 9º série, do ensino Secundário, no Liceu de Santa Catarina, e três manuais
utilizados pelo Liceu de Santa Catarina e pelo da Cidade da Praia. O programa da 9ª Série
analisado data de 2012-2013, e os livros-manuais de história que analisamos datam das
décadas de 1970 e 1990, os datados de 1990 são utilizados por professores das escolas de
Santa Catarina e da Praia. O livro mais recente que nos indicaram data de 2011, mas não
conseguimos um exemplar, contudo, uma vez que os analisados estão em uso nossa análise
não perdeu o sentido.
218
Tabela 5: Programa de História 9 º ano Cabo Verde
Antigo Egito Grécia Roma
OBJETIVOS OBJETIVOS OBJETIVOS
1-O desenvolvimento dos mais
variados setores da vida no Egito
e respectivas características;
1-Explicar a formação do povo
grego;
2-Identificar e compreender
aspectos comuns às civilizações
urbanas mercantis da antiguidade;
3-Explicar a formação do povo
grego;
4-Conhecer a evolução política da
Grécia e caracterizar a
democracia ateniense;
5-Compreender como se formam as cidades Estadas Gregas;
6-Relacionar a colonização com
os problemas dos vários setores
da população;
7-Referir os traços particulares da
religião grega;
8-Distinguir as grandes figuras
das várias áreas da cultura
helenísticas
9-Compreender as causas da
decadência da Grécia;
10-Compreender as causas da decadência na Grécia;
1-Compreender a origem da
população romana;
2-Compreender as implicações
econômicas, sociais e políticas da
expansão romana.
3-Compreender as razões da difusão
do cristianismo no império romano
4-caracterizar a cultura romana;
5-reconhecer a vida viária, a
administração, o direito e a língua
como fatores de integração dos povos do império;
6-relacionar o clima de insegurança
com a decadência do império;
CONTEÚDOS CONTEÚDOS CONTEÚDOS
1-Econômia e sociedade egípcia;
2-Evolução Política;
3-Religião e Cultura;
1-Aspectos comuns: localização
geográfica e meio natural
2-Aspectos comuns: estrutura
social e religião
3-Aspectos diferenciados: Grécia
4-Origem da população;
5-Evolução política: a democracia
ateniense
6-A formação das cidades-estados
gregas
7-colonização grega 8-a vida religiosa:
particularidades
9-As manifestações culturais e
artísticas
10-decadencia da Grécia
1-Origem da população
2-A expansão-situação econômica,
social e política antes e depois;
3-Evolução da vida religiosa (aspectos
particulares da fase politeísta e a
adoção do cristianismo-suas
características)
4-As manifestações culturais e
artísticas;
5-A romanização
6-Adecadência do império romano;
Fonte : Programa de História -Escola de Santa Catarina – adaptação nossa (2012-3)
O programa de história do Liceu em Santa Catarina foi confeccionado no Encontro
Nacional de Coordenadores de História, que ocorre anualmente durante o mês de setembro,
este encontro recomenda uma lista de referências bibliográficas. O ano escolar em Cabo
Verde é composto por três trimestres, o conteúdo sobre História Antiga cobre os dois
primeiros trimestres do ano. A seguir, destacamos os conteúdos e objetivos sobreas
civilizações no primeiro e segundo trimestre de história antiga. Utilizamos nas análises de
manuais e programas de História o termo Egito e Antigo Egito, a forma como o mesmo
aparece nos materiais investigados.
219
A História Antiga faz parte dos conteúdos programáticos de todo o Segundo
Trimestre, e alberga o Egito, Grécia e Roma. Há um desequilíbrio notório entre Egito, Grécia
e Roma. O Egito resume-se a economia e a política, o que nos parece um distanciamento do
processo de experimentação, migração e socialização que constituiu o Egito na história
africana. A economia e a política existiram, mas a partir de uma série de valores, fatos e
tecnologias, relacionados a códigos de justiça, espiritualidade, migrações e os calendários. A
tendência demasiadamente econômica que observamos nas recomendações do Uso
Pedagógico, faz-se presente neste programa, contudo somente em relação ao Egito.
Observamos que o 2º Trimestre é quase inteiramente dedicado a Europa, ou seja, a
Roma e Grécia na antiguidade. No total, há uma diferença de 17 temáticas com objetivos
direcionados a compreensão do mundo europeu, e três temas relacionados ao Antigo Egito.
Na coluna Grécia e Roma, o aluno tem o direito de estudar a formação dos povos, a formação
das cidades, problemas sociais, arte, língua e integração dos povos, economia, política,
religião, personalidades e expansão. O Egito resume-se a economia, politica, cultura e religião
de forma vaga e durante duas semanas de aula.
Os objetivos e conteúdos sobre Grécia e Roma não estão restritos a economia e ao
Estado, por mais que os mesmos sejam abordados. Entendemos que as dimensões oferecidas
sobre estas duas civilizações aproximam mais os alunos dos conteúdos, que estão distribuídos
em oito semanas. De acordo com o programa, Roma e Grécia foram “civilizações” e o Egito
uma sociedade, outros dois aspectos que destacamos em relação à Grécia e Roma é a
demarcação de uma localização geográfica e origem da população, dois elementos
fundamentais para o caso do antigo Egito, tradicionalmente distorcido em sua origem
populacional e posição geográfica.
As consequências para o psicológico e identidade dos adolescentes atendidos por um
programa completamente eurocentrados são devastadoras. Mesmo com os esforços e em certa
medida, com a militância de alguns dos professores, dificilmente um adolescente terá algum
respeito e interesse por um tema pautado “pela economia e evolução política”. Esta situação
agrava-se mais, atentamos para o fato que a história contemporânea, é oferecida como
conteúdo da8ª Série do Secundário, ou seja, antes do contato com a história antiga. Uma das
questões do nosso diálogo com os professores foi sobre as condições de formação dos
mesmos, mais de uma vez, surgiu o nome professora brasileira Carmen. A procura de mais
detalhes sobre, a Prof.Titina relatou-nos que:
220
Ela (Carmen) ajudou a organizar o currículo de história aqui em Cabo Verde e
formou muitos professores no Instituto Pedagógico de Formação de Professores foi
a Prof.ª Carmen Gabriel Anhorn, ela era uma excelente professora... Mas nós não
gostamos muito das mudanças que ela introduziu no primeiro ciclo, agora está tudo
de cabeça para baixo. Mesmo depois de anos de mudança alguns alunos perguntam
por que estudamos ao contrário. (Profa. Titina – entrevista, nome fictício).
A Prof. Titina não possuía um exemplar do manual no momento, mas o mesmo é
utilizado na lista obrigatória de livros em praticamente todos os Liceus da Ilha de Santiago. O
Prof. Djassi, ex-aluno da Prof.ª Carmen no Instituto de Formação de Professores, deu-nos
mais informações sobre a mesma, inclusive me presenteando comum a cópia do material,
segundo o mesmo:
A Prof.ª Carmen Gabriel Anhorn chegou aqui na década de 1990, seu marido era
embaixador da Suíça em Cabo Verde. Ela fez amizade com o pessoal do Ministério
da Educação, Ciência e Cultura da época. Trabalhou no instituto e produziu o livro Conhecimento do Mundo Contemporâneo. Ela trabalhou muito pelas reformas na
época, estávamos em 1996, pouco antes de deixar o país com a família. (Prof.Djassi
entrevista, nome fictício).
Para o nosso conhecimento, além da inversão cronológica absurda implantada nos
currículos, foi uma pessoa do Brasil a responsável pela condução deste processo político
pedagógico. A História contemporânea de Carmen no Cabo Verde não poderia ser diferente
da história eurocêntrica produzida no Brasil, seu livro inicia-se no século XIX – Revolução
Industrial Inglesa, sem citar o esmagamento das sociedades africanas para a consecução da tal
“Revolução”, contudo ficará para outro momento. Questionamos o Prof. Ramos sobre dois
aspectos da lista de livros, a procedência portuguesa e a desatualização do material.
Cabo Verde produz apenas o livro História Geral de Cabo Verde, e mesmo assim em parceria de autores portugueses. A escolha de livros e o programa são feita de cima
para baixo, são opções políticas. Quando eu era jovem, estudava história da África
nos livros didáticos cabo-verdianos, lembro-me bem do livro “História. Guiné
Bissau e as Ilhas de Cabo Verde” com civilizações africanas e inteiramente
dedicadas ao continente... Mas isso acabou. (Prof. Ramos – entrevista, nome fictício)
A Profa. Titina foi enfática ao alegar que os livros para história antiga eram de
péssima qualidade, e que os professores precisavam actualizar e acrescentar temas africanos,
segundo ela:
No final da década de 1970 eu me formei aqui em Cabo Verde no secundário, minha
professora... Esqueci o nome, mas ele era angolano, valorizava muito Joseph Ki-
Zerbo, nós adorávamos o livro da época, pois contava a história de Egito, Gana,
Mali, Songhai, Guiné Bissau e Cabo Verde. .(Prof.Titina entrevista, nome fictício).
221
Infelizmente, os professores e as escolas não possuíam exemplares do livro citado.
Neste sentido, incorporamos aos nossos objetivos de campo encontrar esse material, e ao
encontrarmos acrescentamos o mesmo a lista de manuais analisados. Procurei na Fundação
Amílcar Cabral e na biblioteca nacional, mas não obtive maiores informações. No Arquivo
público de Cabo Verde uma funcionária relatou que a partir da mudança de governos durante
a década de 1990, os manuais produzidos pelo governo antecessor foram substituídos e
descartados.
Segundo a funcionária do arquivo os manuais eram produzidos pelo PAIGC – Partido
africano da Libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde. Contudo, dias depois consegui um
exemplar deste manual com um jovem raper, estudante de Relações Internacionais e que já
havia participado de trabalhos em nossas oficinas em Cabo Verde. Ele possuía um exemplar
do livro, oferecido por um tio seu. O manual “História: Guiné Bissau e Ilhas de Cabo Verde”
foram publicadas em 1974, e é assinado pelo PAIGC. Após a pesquisa, descobri outro
exemplar na Biblioteca Nacional, cidade da Praia. Analisamos as lista de manuais utilizados
no ano letivo 2012 e 2013 pelo Liceu de Santa Catarina, da mesma, nós conseguimos
exemplares dos livros três e quatro:
1. Nova História. Livros do Aluno 7º Ano de Escolaridade. Porto Editora, 1984.
2. História 7º Ano. Porto Editora. Naércia Crisanto. 1992.
3. História -7º Ano. Texto Editora .Ana Maria Leal de Faria;Joaquina Mendes
Pereira; Maria Eugenia Reis Gomes; Margarida Mendes Matos .1993
4. História 7.Editorial o Livro. Maria Emília Diniz. 1994
5. História 7.História 7º Ano. Porto Editora. Almiro Pedro Neves, Cláudia Amaral,
Ana Lídia Pinto – Editor Porto 2011.
Os manuais portuguêses 2,3,4 e 5 foram publicados e projetados para estudantes de
Portugal, europeus. Os manuais são do 7º Ano escolar do Ensino Secundário em Portugal são
utilizados no Cabo Verde para o 9º Ano, o que nos leva a crer que os jovens portugueses tem
contato com a história antiga antes dos jovens caboverdianos. Esta situação de manuais
estrangeiros não está de acordo com as perspectivas e lutas pela descolonização da História da
África, e com o próprio pensamento de Amílcar Cabral sobre a autonomia intelectual africana
e no caso de Cabo Verde.
222
Os três manuais de 1974, 1993 e 1994 foram publicados por editoras portuguesas,
Editorial O Livro, Texto Editora e Apartado 532. Não encontramos indicação de autores do
manual História das Ilhas de Guiné e Cabo Verde, mas de acordo com membros da
Associação de Combatentes da Liberdade e do Arquivo Publico este tipo o material feito por
membros do PAIGV.
Tabela 6 – Manuais de História – Secundário - Cabo Verde
Título Editora Ano Autores
História da Guiné e das
Ilhas de cabo Verde
Edições Afrontamento:
Porto 1974 PAIGC
História -7º Texto Editor 1993
Ana Maria Leal de Faria;
Joaquina Mendes Pereira;
Maria Eugenia Reis Gomes;
Margarida Mendes Matos.
História 7 ano
Lisboa-Porto
Editorial - O livro 1994
Marilia Emília Diniz
Aderito Tavares
Arlindo M. Caldeira
Fonte: Adaptação , Escola do Concelho Santa Catarina e Cidade da Praia (2012-2013)
O manual do PAIGC é integralmente dedicado ao continente africano e possui 31
capítulos. Sua abordagem temporal se estende entre a pré-história, e as independências de
Guiné Bissau e Cabo Verde no início da década de 1970. Neste manual, do PAIGC o Antigo
Egito ocupam tópico dentro do capítulo “O Começo do período Histórico”, o manual faz
menções a Egito, Etiópia, Kush, Núbia e Nok durante a antiguidade africana. O manual
História 7, de 1993, possui doze capítulos, o Antigo Egito divide o capítulo “Contributos das
Primeiras Civilizações” com Mesopotâmia, Pérsia, China, Israel e India.Omanual História 7,
de 1994, possui dez capítulos divididos, o Antigo Egito divide um capítulo com
Mesopotâmia, Fenícia e Israel.
No manual do PAIGC (1974) a primeira referência ao Egito é de uma civilização do
Vale do Nilo, criadora da escrita e que influenciou Ásia e Mediterrâneo. Na concepção dos
autores da História 7, de 1993, a origem da civilização egípcia é o Delta do Nilo. O Egito
Antigo na História 7, de 1994, é apresentado como uma Civilização dos Grandes Rios, uma
civilização oriental do Crescente Fértil. Nos dois Manuais de História 7, Grécia e Roma
ocupam um capítulo inteiro cada uma.
223
No campo geográfico, no manual do PAIGC o Antigo Egito é trabalhado sob a
perspectiva de uma civilização africana da antiguidade. O PAIGC produziu um mapa parcial
do continente africano na antiguidade, onde destacou as rotas de migração do Vale do Nilo
para a Costa Oeste africano durante a antiguidade (PAIGC, 1974). Todavia, os autores
defendem que o Egito não exerceu influência em regiões fora da Costa Oeste africana. Na
perspectiva dos autores, as civilizações da Núbia e Etiópia surgiram a partir do século 4 a.C.
sob influência grega no Egito. Ver Mapa 4 em anexo, - Migrações do Vale do Nilo
O Manual História 7(1993) apresenta mapas parciais do continente africano, o Antigo
Egito é posicionado como um foco civilizacional do Crescente Fértil ( Zona fértil entre os
rios Tigre e Eufrates), a geografia do Egito é restrita ao Delta, os autores utilizam o termo
“Terra Negra” e “Dom do Nilo” para indicar a fertilidade do Delta e a origem da civilização.
No Manual de 1994, História 7, o Egito foi inserido na região do Crescente Fértil, os autores
o apresentam no mapa geral do continente africano e a região do Nilo demarcada a partir do
Delta, este manual é o primeiro a trazer um mapa completo do continente africano. Mesmo
assim, os autores circunscrevem a civilização no Delta, afirmando que (DINIZ, TAVARES,
CALDEIRA, 1994, pág. 26):
O Egito é um território desértico atravessado por um grande rio, o Nilo, que corre de
sul para o Norte. A terra fértil limita-se a uma nesga de campos verdejantes, nas
margens, que nunca atinge mais de uma dezena de quilômetros de largura. Apenas
junto à foz, na região do Delta se alargam as terras cultiváveis.
A cronologia do Egito varia nos três manuais entre o 4º milênio a.C. e o século 6 a .C.
No Manual de 1974, do PAIGC (1974), a história do Egito é iniciada pela escrita no 5º
milênio às ocupações de Roma no século IV a.C. O Manual de 1993 trabalha a partir do 4º
milênio ao século 6º a.C., e o História 7, de 1994, apoia-se em uma cronologia do 5º milênio
ao século 5º a.C. No livro do PAIGC, o Antigo Egito é apresentado como uma civilização
africana do Vale do Nilo. Sem maiores detalhes sobre a origem e povoamento, todavia há
duas indicações geográficas externas, ou mediterrânicas da população do Egito, primeiro
afirmam que o mesmo: “irradiou durante Séculos sua grandeza sobre o Mediterrâneo, a Ásia
ocidental, o Vale do Alto Nilo”. A outra indicação é de que (PAIGC, 1974, pág. 9):
Os Gregos e Romanos Antigos conheciam os Negros: estes ocupavam, como hoje, o
alto vale do Nilo (Núbia) e o Sul do Egito. Por volta de 400 anos antes de Jesus
Cristo o historiador grego Heródoto viajou por estas regiões e descreveu os
guerreiros negros. Ele menciona e descreve os Pigmeus que teriam habitado, nesta
época, até o Saara.
224
Será que os Antigos conheceram as regiões situadas ao sul do Saara... A África ao
norte do Saara é muito bem conhecida: todas as indicações dadas sobre a África do
Sul do Saara são, pelo contrário, imprecisas e fantasiosas.
Os autores do Manual português de 1993 não são objetivos quanto à origem e
povoamento do Egito, mas todos os referenciados autores são direcionados às supostas
migrações do crescente fértil para o Delta. No Manual de 1994, os autores trabalham sob a
perspectiva de região dos grandes Rios, onde o Delta é preponderante como origem do Egito,
os autores não são objetivos sobre “quem eram os antigos egípcios”.
No Manual do PAIGC (1974), os conhecimentos técnicos e científicos são
exemplificados pela escrita e pelas técnicas de construção das pirâmides. Os autores citam a
Núbia e Mero, como referências da metalurgia do ferro no século 4 ac, e sua influência na
Costa Oeste africana .Os autores do manual do PAIGC destacam os reinos de Napata e
Meroé da região da Núbia como difusores da metalurgia na África tropical, influenciando
diretamente a civilização de Nok na antiguidade (Nigéria). Os autores também ressaltam a
Ascenção da civilização etíope no 4º século a.C.
Os manuais portugueses de 1993 e 1994 oferecem uma série de informações ilustradas
sobre o uso de técnicas de irrigação, o Chaduf para tirar água do Nilo, as técnicas de arado na
agricultura e ourivesaria. Os autores do Manual de 1993 estipulam uma lista de técnicas
utilizadas pelos egípcios, como drenagem de campos, arado e conhecimentos agrícolas, a
construção de barragens pirâmides, a manipulação do vidro no artesanato, a arquitetura, e a
química, utilizada na medicina e cosmética. Todavia, a matemática é caracterizada como
limitada a soma, medicina e a magia. Na perspectiva dos autores, as técnicas agrícolas no
Egito são uma herança de povos antecessores, neste sentido, na concepção dos autores, as
técnicas de ferro e metalurgia foram herança de seus antecessores sumérios e hititas.
As primeiras considerações feitas pelo manual de 1994 sobre técnicas são os
progressos da metalurgia, que de acordo com os mesmos foi uma característica das planícies
fluviais na antiguidade. Os autores citam os exemplos de técnicas nas áreas de construção de
diques, papiros, escritas a literatura (no 4º Milênio), o artesanato e a construção de templos.
Na proposta do Manual de 1994, a Medicina, o cálculo e a astronomia foram fruto da
observação e astronomia, e não de uma ciência propriamente dita, pois a influência da magia
era muito grande.
225
O livro do PAIGC não apresenta quais foram às referências bibliográficas utilizadas na
obra. Contudo, o mapa de migrações no primeiro capítulo, nos leva a crer que houve algum
referencial provavelmente Cheikh Anta Diop- para a fundamentação desta matéria. Nossa
hipótese é reforçada pelo Capítulo X, “Coli Tenguela e as Primeiras Migrações (Fulas)”, que
indica a as rotas de migração entre o Vale do Nilo e Costa Oeste africana como a origem dos
Fula (PAIGC, 1974, pág. 32):
Povo de Pastores, especializados na criação de gado bovino, os Fulas viera
provavelmente do Vale do Nilo para a África Ocidental, passando pelo Saara, nos
tempos pré-históricos em que esta região era mais húmida. Pinturas existentes nos
rochedos em pleno centro do Saara representam pastores com as suas manadas de
bovinos. Esses pastores parecem-se muito com os Fulas e correspondem,
provavelmente aos seus antepassados.
Capítulos mistos entre o Egito e civilizações da Ásia possibilitam a distorção
geográfica e cronológica do mesmo. Como vimos com Cheikh Anta Diop (1979), o período
pré-dinástico, as migrações dos Anu e os milênios de observação, exigidos para construção de
calendários como Dendera do 5º Milênio não podem ser ignorados. Na nossa compreensão a
falta de uma demarcação do período pré-dinástico em todos os manuais é propícia para a
definição do Delta como origem da civilização, de forma a ignorar o restante do continente.
Esta perspectiva, muito presente nos dois manuais de 1993 e 1994, possibilita aos
autores argumentarem que as ciência e tecnologia no Egito Antigo não existiram, ou tiveram
origem estrangeira. Mesmo com contradições de ordem conceitual e ideológica o único
material que trabalha com o continente africano é o livro do PAIGC de 1974, com mapas e
temas que nos surpreenderam, como as migrações e origem dos Peule.
No manual português de 1993, por exemplo, os autores definem que a utilização da
matemática foi restrita a soma, e a medicina dependente da magia. A partir desta questão, os
autores advogam que não havia conhecimento científico no Egito (1993). A preponderância
do Delta é uma marca decisiva dos manuais analisados. De forma silenciosa ela orienta o
leitor a ignorar o continente africano, como se o mesmo não existisse, principalmente nos
manuais de 1993 e 1994.
A partir do Delta, os autores do Manual português de 1993 recuperaram Heródoto para
sustentar a ideia corrupta de “dádiva do Nilo”, e no Manual de 1994 os autores optaram por
“dádiva divina”. O Egito é resultado do intelecto, da técnica e da pesquisa científica de
homens e mulheres africanos, que criaram o Egito da região do Alto Egito (Sul), para o Baixo
226
Egito (Norte) - no Delta. Os autores dos Manuais de 1993 e 1994 utilizam muitos recursos de
imagens e interpretação de papiros, iconografias e escrituras. Em um documento denominado
pelos autores do Manual de 1994, por eles, de Hino ao Nilo do 3º Milênio. Onde há o seguinte
trecho (DINIZ, TAVARES, CALDEIRA, 1994.39):
Salve, ó Nilo,
Que sais da Terra
E vens dar a beber ao Egito! Misteriosa é a tua saída das trevas.
Em seguida, os autores pedem para os estudantes interpretar o trecho: “Misteriosa é a
tua saída das trevas”. Aqui, fica muito nítida a ideia de que o Alto Egito representa as trevas
por causa do interior do continente africano, desta formados autores distorcem e confundem
os jovens. Não identificamos referências bibliográficas no Manual do PAIGC, e nos manuais
portugueses não há referências a História Geral da África. Nosso entendimento é de que o
universo confuso dos materiais didáticos é um espelho de problemas já identificados no
programa. Entretanto, se pensarmos fora das aparências há problemas políticos, educacionais
e de ordem ideológica que a colaboração dos professores ajudou-nos a perceber.
6.4 Programa e Manuais de História Brasil
No Brasil, em Fortaleza, analisamos um programa de história do 1ºano do ensino
Médio. O programa que analisamos foi produzido em 2009 pelo Governo do Estado do
Ceará, e os livros didáticos que analisamos cobrem uma faixa de quatro anos, entre 2010 e
2011. O programa e os manuais estão sendo utilizados atualmente pelas escolas visitadas.
Destacamos a seguir os conteúdos referentes à história antiga no programa, cedido
gentilmente pelo prof. Biko, que trabalha em três escolas da rede Estadual de Ensino. Natural
de Salvador e residente em Fortaleza há quinzeanos, o Prof.Biko é professor do ensino Médio
e Fundamental em Escolas publica na periferia de Fortaleza, região da Barra do Ceará.
Nossa primeira observação é a posição das civilizações da América central Maias
Astecas e Incas em posição de anterioridade ao Egito, inclusive tais sociedades são
apresentadas pelo programa como “comunidades primitivas”, um termo pejorativo. Esta
orientação confunde a percepção do espaço e do tempo histórico.
227
Neste programa do 1º Ano do Ensino Fundamental há a persistência do modo de
produção asiático, cujo fundamento marxista é uma tendência eurocêntrica foram duramente
criticadas por Joseph Ki Zerbo (2010) na História Geral da África como impróprias e
descartáveis. Segundo Ki Zerbo as civilizações africanas são milenarmente anteriores às
asiáticas, e precisam de um parâmetro próprio para sua historiografia.
Tabela 7: Programa de História do 1º Ano Ensino Médio - Fortaleza
Antiguidade
Objetivos Gerais
(Competências e habilidades)
1. Construir a identidade pessoal e social na
dimensão histórica, a partir do conhecimento do
papel do individuo como sujeito da história e
produtor do conhecimento
2. Interpretar, analisar e criticar fontes,
documentos de natureza diversas, reconhecendo o papel das diferentes linguagens, dos diferentes
agentes sociais nos contextos envolvidos em sua
participação
3. Entender e relativizar as diversas concepções
de tempo e formas de periodização,
reconhecendo-as como construções culturais e
históricas.
4. compreender o conhecimento histórico como
produção do saber
5. Situar as diversas produções da cultura –as
linguagens, as artes, a filosofia, a religião e as
manifestações culturais- como representações sociais que emergem no cotidiano da vida social e
se solidificam nas diversas organizações e
instituições da sociedade.
6. analisar as diversas concepções de Estado no
passado, comparando as permanências e
mudanças na contemporaneidade
7. Desenvolver o conceito de ideologia enquanto
instrumento de dominação e resistência dos
diferentes grupos humanos .
8. Compreender os conceitos de Capitalismo,
Socialismo e Democracia, fundamentando-se na historiografia contemporânea
Conteúdos
Egito Grécia e Roma
As primeiras civilizações(Egito, Mesopotâmia, Fenícios,
Hebreus e Persas) – o modo de produção asiático:
estabelecer um paralelo entre as atividades econômicas
percebendo as semelhanças e diferenças de cada
civilização. A influência da religiosidade na organização
social, política e cultural dessas civilizações, sua relação
com a sociedade e civilizações africanas. 5-
Antiguidade Clássica (Civilizações Grega e
Romana) – A Pólis grega, as cidades-estado e o
legado cultural (mitologia, filosofia, democracia e
artes) da civilização grega; Formação, expansão e
decadência da civilização romana, sua relação
com as sociedades e civilizações africanas; 5-7
Civilizações africanas A formação dos reinos africanos, aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais
(mitologia, filosofia, relação política e artes). 5-6
Fonte: Governo do Estado do Ceará (2009)
228
Os autores nos oferecem outro problema, separam o Egito das demais civilizações
africanas, na perspectiva do programa, as civilizações da Europa e o Egito influenciaram a
política, religião e formação social das civilizações africanas... isso é um crime que está sendo
feito com nossos estudantes! O programa entende que as civilizações africanas criaram uma
concepção diversa de Estado, o que nos indica um pressuposto de matriz não africana, por
isso as experiencia africanas tornam-se “diversas”. No campo “Civilizações africanas”, que a
palavra mito surge pela primeira vez. Não se trata aqui do mito histórico, impulsionado pela
oralidade conforme analisava Hampate Ba e Ki Zerbo, mas o mito pejorativo, da imaginação
desprovida de uma lógica e dinâmica de conhecimentos .
Grécia e Roma, consequentemente, estão sob o título de Antiguidade Clássica, e seu
primeiro tópico temático no programa é o modo de produção asiático e ideologia, para
diferencia-las da “mitologia” africana e o que é mais preocupante, estabelecer uma linha de
continuidade histórica entre as sociedades baseadas no modo de produção asiático. Mediante a
constatação das questões problemáticas do programa produzido pelo Governo do Estado do
Ceará, consultei o Prof.Biko sobre qual a interpretação dele sobre o programa de história:
O programa é eurocêntrico. As civilizações africanas são completamente
marginalizadas. Eu sou professor de filosofia e de história, e por isso trabalho
sempre no sentido interdisciplinar, procurando cruzar informações de uma e outra disciplina.... Sempre quando posso adiquir um livro sobre África ou consulto, faço
adaptações ao programa. Se eu for trabalhar somente com o programa oferecido as
aulas ficarão insuportáveis para mim e para os alunos..(Prof.Biko – registro de
caderno de campo, nome fictício).
Problematizamos para o Prof.Biko a relação entrea lei 10639\3 e o programa de
história oferecido pelo Estado do Ceará, registramos em nosso caderno de campo a seguinte
fala do professor:
Quando eu comecei a trabalhar nessas escolas aqui de Fortaleza, percebi que a
relação com os professores seria muito difícil. Nas reuniões eles indiretamente me
diziam que a lei não fazia sentido em um lugar como o Ceará, pois no Ceará não
havia negros. Inicialmente eu achei que fosse uma piada.... mas não era. Há no
Ceará uma cultura de que o “negro” é uma pessoa de pele muito escura, pessoas –na
mentalidade deles – que vivem em tribos no continente africano. Sendo assim, os
professores com tom de pele clara se assumem enquanto brancos ou mestiços. É a
partir desta perspectiva que eles alegam não serem “negros”, que no Ceará não há
“negros”, e que uma lei para história da África não se sustenta em uma sociedade
mestiça. .(Prof.Biko – registro de caderno de campo, nome fictício).
O depoimento do Prof. Biko levou-me a lembrar da celebração do dia da África em 25
de maio de 2013 naUniversidade Federal do Ceará. O evento foi organizado por professores
de história desta universidade e por uma organização não governamental do Ceará que possui
229
projetos de preservação do meio ambiente em Guiné Bissau. Confesso que meu primeiro
estranhamento foi este, com tantos problemas ambientais em Fortaleza e no Ceará, o que
levaria uma Ong para Guiné Bissau, um país africano considerado pobre, sem recursos?
De toda maneira, fui convidado para assistir o evento, iniciado com o pronunciamento
de um professor de história daquela universidade. Em 2013 completaram-se dez anos da Lei
10639\3, um dos professores palestrantes fez questão de dizer que não concordava com a lei,
sob a justificativa que não somente africanos e afro-brasileiros mereciam uma lei, mas todos
os povos de vários continentes contribuíram com a história e sociedade brasileira como
japoneses, alemães e árabes, “o Brasil é mestiço”, afirmou ele . Imediatamente, eu pedi a
palavra para argumentar que a perspectiva do professor era uma contradição ao próprio
evento, pois, ali naquele lugar, a África deveria ser celebrada, e em nenhum momento eu vi
ou ouvi uma manifestação sobre Amílcar Cabral, referência da libertação guineense e cabo
verdiana.
Celebrava-se naquele ambiente o trabalho de uma ong brasileira para “salvar o
continente africano ”, e encerrei alegando que o dia da Europa no Brasil era todo dia, bastava
caminhar pela universidade e observar as casas de cultura hispânica, inglesa, francesa e
alemã! Não havia nenhuma casa de cultura etíope, angolana ou sul-africana. Ao comentar o
fato ocorrido no dia da África com Prof. Biko, este contribuiu com a seguinte reflexão :
Pois é, são esses professores que produzem os nossos manuais e programas de
história. Como todasas leis neste país, a lei 10630\3 não é respeitada, e muito menos
nossa história e cultura, meus colegas me acham insuportável por insistir no cumprimento desta lei, mas eu insisto por militância e consciência, a qualidade do
ensino deve mudar, com o objetivo de combater o racismo, melhorar a qualidade dos
materiais didáticos e reorientar a mentalidade do negro a cerca de si
mesmo.(Prof.Biko – registro de caderno de campo, nome fictício)
Tabela 8: Manual História do 1º Ano Ensino Médio - Brasil
Título Editora Ano Autores
Estudos de História FTD 2010
Ricardo de Moura Faria
Monica Liz Miranda
Helena Guimarães Campos
História 1 Saraiva 2010
Ronaldo Vainfas
Sheila de castro Faria
Jorge Ferreira
Georgina dos Santos
A Escrita da História Escola Educacional 2011
Flávio de Campos Renan Garcia Miranda
Fonte :Lista de Livros utilizados pelas Escolas Estaduais (2012)
230
Estudos de História divide-se em Seis Unidades e uma delas dedicada a Antiguidade,
Povos da Antiguidade. Esta unidade foi dividida em três capítulos: 1). Oriente Próximo:
sociedades, reinos, impérios; 2) O mundo Grego ; 3) O Mundo Romano. O Egito divide o
capitulo Oriente Próximo: sociedades, reinos, impérios – com Mesopotâmia, Pérsia, Hebreus
e Fenícios, As temáticas são Escritas; Deuses; economia; cultura.
O manual Estudos de História está dividido em seis unidades, das quais uma é para a
antiguidade. Esta unidadedivide-se em quatro capítulos: povos dos orientais ; as estruturas das
sociedades orientais; Grécia antiga;mundo romano. Em anexo um tema denominado
DossiêÁfrica. O Antigo Egitona perspectiva dos autores faz parte do oriente próximo,
poisestá inseridono capitulo Povos Orientais e Estruturas das Sociedades Orientais. A
Unidade possui um anexo denominado Dossiê África, onde os seguintes temas são abordados:
1) relações entre o povo egípcio e o rio Nilo; 2) caminhos e fronteiras do antigo Egito; 3)
Reinos e impérios; 4)Nossos ancestrais africanos; 4) olhar grego sobre África.
O livro A Escrita da História divide-se em 9 Unidades, Antiguidade : 1 Unidade –
Nas Fronteiras da Antiguidade. Capitulo 2:Antiguidade Oriental : Mesopotâmia, O Egito
Antigo, Poder dos faraós, A sociedade egípcia, As pirâmides, A religião no Egito, Antigo
Império, Médio Império, Monoteísmo; e Cleópatra.
O manual Estudos de História utiliza o Atlas geográfico para a localização das
civilizações na antiguidade. História 1 e A Escrita de História trabalham com mapas parciais,
demarcados pelo Delta do Nilo. Estudos de História e História 1 trabalham com uma
cronologia entre 4.000 ac e 400 a.C. A Escrita da História propõe um período mais extenso,
3000 ac à 400 ac.. Na perspectiva dos três materiais a civilização do Antigo Egito inicia-se no
Delta do Rio Nilo.Os três livros trabalham com a ideia de sociedade hidráulica beneficiada
pelo Crescente Fértil, oconhecimento técnico e cientifico resume-se a escrita e construção de
pirâmides. No A Escrita da História é aberta a possibilidade da escrita do antigo Egito ter
origem na Mesopotâmia.
Dentro do anexo Dossiê África os egípcios são apresentados enquanto um povo que
habitou o continente africano. Os autores utilizam um mapa parcial do continente africano.
Cush – Egito e Nubia são civilizações marcadas por guerras entre si ao longo da história.
Destacamos as palavras de (FARIA; MIRANDA; CAMPOS, 2010, pág. 82):
231
Até recentemente, a única região africana que era estudada no período
tradicionalmente conhecido como idade antiga era o Egito. Curiosamente esse país
era associadomais a Ásia do que a África propriamente dita. O Egito fazia parte do
chamado Crescente fértil, que englobavam a região do oriente próximo
Mesmo com estas palavras, os autores apresentamo Egito como uma civilização do
oriente. Segundo os autores, o Egito Antigoignorou os povos do continente africano e
manteve com os mesmos uma relação imperialista. O Livro 1 de 1983 da História Geral da
África é citado na bibliografia geral do manual Estudos de História, e do manual A escrita da
História, o Livro 1 de 1983. Não há indicações do autor da História Geral da África utilizado
na obra.
A utilização da causa hidráulica é uma maneira de assegurar a predominância do Delta
e o afastamento do Alto Egito, na nossa compreensão. Os fatores novos que encontramos nos
manuais foram o a periodização até o ano 100 a.C de A Escrita da História onde é citada a
invasão do Egito pela macedônia, e a presença de Cleópatra, representada no livro com a foto
da atriz Elisabeth Taylor. Os três manuais desenvolvem a perspectiva de civilizações orientais
e com a perspectiva de sociedades hidráulicas. Outro ponto de igualdade que se extende aos
manuais de Cabo Verde é a forma de apresentação do faraó enquanto um ser opressor e
detentor da terra, enquanto um bem privado, e de uma estruturação da sociedade similar a
feudal: camponeses, religiosos, guerreiros, pequenos comerciantes e artesãos.
O fator realmente novo foi entre os três materiais foi o Dossiê África, por criticar a
localização Asiática do Egito em livros didáticos, mas por contradição, este mesmo manual
identifica o Egito como uma civilização oriental. Livro I da História Geral da África é citado
no quadro Geral das referências, pensamos que durante a confecção destes manuais, a coleção
ainda não havia sido relançada.
6.5 Reflexões e Recomendações
Todavia, reanalisando os dados e vivências da pesquisa chegamos a conclusão de que
o ensino de história nos manuais utilizados no Cabo Verde está em plena decadência. Mesmo
com deficiências o manual de 1974 possui a abordagem mais avançada que encontramos nas
análises.
232
Se avaliarmos isto dentro de um contexto de lei federal 10639-3, e o Uso Pedagógico
da História Geral da África poderemos perceber que existem governos demais envolvidos
nestas ações. Uma contradição quando pensamos o envolvimento na história da África
empreendido por organizações, movimentos e historiadores nas décadas de 1950, 1960 e
1970.A cooperação internacional entre Cabo Verde e Portugal, e a democracia brasileira,
criaram para cabo-verdianos e afro-brasileiros uma falsa impressão de independência
nacional. O cabo-verdiano continua tão dependente de Portugal, quanto nós afro-brasileiros
estamos dependentes de uma elite branca que regula e produz o que devemos estudar sobre a
nossa própria história .
Entre as décadas de 1960 e 1980 foi produzido um dos maiores projetos dos maiores
projetos de pesquisa em história realizados, a História Geral da África. Um projeto ambicioso
de reconstrução da história do continente africano, através da colaboração de centenas de
historiadores durante trinta anos de trabalho. Entre 1980 e 1990 a História Geral da África foi
publicada pela UNESCO. Um dos objetivos centrais da História Geral da África foi a
descolonização e reconstrução da história do continente africano .
Em diversas regiões da diáspora africana, a reconstrução da história da África foi vista
como um elemento capital para militantes de movimentos sociais. O tema história da África
foi elemento de pesquisa e ensino desde a década de 1940 no Brasil.Professores das mais
diversas formações estiveram durante as últimas décadas engajados na oficialização do ensino
de História da África no país, que passou a ser obrigatória a partir do ano de 2003, através da
lei 10639-3. Marcada por uma diminuta promoção no Brasil a História Geral da África
lançada parcialmente no país durante a década de 1980, recebeu uma nova edição e
lançamento em 2010, motivada pela Lei 10639-3 e pelas movimentações de países africanos e
da UNESCO em prol do Uso Pedagógico da História Geral da África.
A pesquisa sobre o atual estado do ensino de história e utilização da história Geral da
África, realizada pelo Uso Pedagógico da História Geral da África revelou-nos graves
obstáculos para o ensino de história da África no continente africano do século XXI. Dentre
eles, a dificuldade de acesso a Manuais e o desconhecimento da História Geral da África, uma
obra importante enquanto subsídio básico para o ensino e pesquisa em história africana.
Consideramos tais problemas como de ordem estrutural, manuaisde História produzidos por
editoras não africanas, a dificuldade para aquisição de livros e o distanciamento
dascomunidades em relação à Escola, as decisões curriculares e programáticas.
233
Quando identificamos as reflexões dos organizadores do Uso Pedagógico da História
Geral da África, referências à Grécia Antiga e França contemporânea, questionamos a
serventia de um projeto sobre o uso pedagógico da História da África e ensino de História no
continente africano. Uma vez que as referências para reflexão e organização da história e
educação no continente africano desprezam os pensadores do próprio continente, é
economicamente mais viável convidar o ministro da educação do governo francês para criar
um plano padrão para reformulação e ajuste dos sistemas educacionais africanos. Inclusive,
no setor militar, os franceses possuem larga experiências em fazer “ajustes” em países
africanos.
No Brasil, em nosso trabalho de campo em escolas públicas de Fortaleza (Ceará)
vivenciamos o interesse dos de estudantes sobre temas e abordagens sobre civilizações
Áfricans pouco conhecidaspelos mesmos, e que não deveriam ser, por que o tema faz parte da
história da humanidade,e há dez anos existe uma lei no país para o ensino de história da
África. Mesmo com o trabalho de excelente nível do Prof. Biko, ele está completamente
isolado, dividido em três escolas, procurando cobrir a falta de informações dos jovens e a
negligência profissional de professores e gestores. Mas, o mais importante entre os estudantes
foi à consciência que há um conflito entre as narrativas históricas, pois, somente o Prof.Biko
aborda temáticas sobre civilizações, combate ao racismo, história da África e do afro-
brasileiro.A consciência e militância do professor foram fundamentais para um desbloqueio
na consciência dos jovens. Sem a consciência e formaçãodo próprio professor, a lei 10639-3
não possuiria significado algum.
Neste sentido, tivemos a mesma sensação nos diálogos travados com os professores de
três escolas em Cabo Verde, uma vez que neste país, e em uma série de outros países
africanos, os manuais didáticos são pensadose formulados para um publico europeu,
documentos eurocêntricos e desprovidos de compromisso com quaisquer projetos de
conscientização histórica africana.
A iniciativa e empenho dos professores cabo-verdianos é o elemento que faz a
diferença no ensino de história, além da procedência portuguesa dos manuais de história,
existem outros dois agravantes, a desatualização dos materiais e a corrupção dos programas,
que não passam de espelhos dos manuais e das intenções neocoloniais no país. Entendemos
que, no caso de Cabo Verde, a inexistência de um manual de história de qualidade, impede a
formação de uma consciência histórica. Talvez, a dependência psicológica construída por
234
esses materiais na mentalidade do cabo-verdiano seja o elemento que precede a dependência
econômica e cultural do país, sedento por uma aproximação cultural com países europeus e
distante de uma apropriação oficial de seu próprio idioma.
É inaceitável que algo tão básico e fundamental como programas e manuais de história
no Brasil e no Cabo Verde sejam completamente manipulado pelos interesses mesquinhos,
alienados e racistas de uma minoria que controla estes países, direta, ou indiretamente. Neste
contexto de tensão, entre um conhecimento marginalizado e um conhecimento hegemônico
sobre a história africana, o Egito enquanto conteúdo continua devassado pelas intenções de
supremacistas brancos, podemos dizer de uma tradição des distorções sobre o tema.
O manual do PAIGC de 1974 e seu conteúdo nos revelaram que o processo de
reconstrução da história da África, e de sua descolonização foi interrompido. Há professores
interessados em utilizar este material como uma forma legítima de resistência, militância e
iniciativa intelectual, entendeu este fato como algo demasiadamente positivo e um grande
potencial de transformação.A pesquisa realizada pelo IPEAFRO sobre o ensino de
civilizações africanas nas décadas de 1980-1990 emescolas públicas no Brasil, e as iniciativas
de professores de história, como Henrique Cunha Jr., estão inseridas em um processo de
reconstrução da história da África no Brasil.
O Prof. Biko afirmou e apresentou-nos uma série de referências que utiliza para a
preparação de suas aulas, entre os quais o Livro I da História Geral da África, textos de uma
série de documentos denominada Thoth, uma revistaproduzida pelo gabinete de Abdias
Nascimento durante seu mandato como Senador na década de 1990, e trabalhos escritos pelo
Prof. Henrique Cunha Jr. como Ntu e A História africana e os elementos básicos do seu
ensino. Muitos dos textos da revista Toth,e os dois documentos citados do Prof. Henrique
Cunha desenvolvem questões históricas sobre a antiguidade africana, sua pesquisa e ensino.
No Cabo Verde os Professores como Ramos, Telli, Abdulay, Djassy e Titina
apresentaram entre as suas próprias referências História da África Negra de Joseph Ki Zerbo,
alegando que o mesmo é inegavelmente um historiador comprometido com o ensino de
história. Os professores afirmaram que Ki Zerbo oferecia em seu livro uma história a partir do
próprio continente africano. A Prof. Titina revelou-nos que enquanto mulher e professora de
história tinha a obrigação de continuar o trabalho de Ki Zerbo nas salas de aula, procurando
235
Figura 34: Pedagoga da Unidade
Fonte: Criação do autor
motivar seus alunos a conhecerem o continente africano, para valorizarem sua memória e a si
mesmos como seres humanos.
6.6 Pedagogia da Unidade
Unidade é o motor da história da África e
razão da vida no planeta terra. Unidade não é
homogeneidade, é interdependência, equilíbrio e
poder. Tudo o que divide África a enfraquece
enquanto continente, pois aparta africanos uns dos
outros em categorias como claros e escuros, do
norte e do sul, mais fortes e mais fracos,
ocidentalizados e não ocidentalizados, mestiços e
“africanos puros”, mais africanos e menos africanos
e etc. A apartação é essencialmente uma acão anti-
africana, como tal precede a descaracterizacão física ( alisantes de cabelo \ clareadores
(dispigmentadores de pele) entre africanos, dependência econômica de países e crises de
identidade cultural.
Estamos convictos que o reconhecimento da importância da Unidade por si só não
basta, é necessária uma profunda consciencia histórica africana que possa orientar praticas
culturais são necessárias acões práticas culturais cotidianas capazes de materializar todo o
sentido da Unidade capaz de tranaformar vida de pessoas e fazer com que o continente
africano renasça. Foi dentro desta perspectiva que no campo educacional elaboramos a ideia
de uma Pedagogia da Unidade, um conjunto de princípios e práticas voltados a restauração
geral da consciencia histórica africana.
O símbolo da pedagogia da unidade é formado por duas adinkras, uma no centro que
representa a unidade das relacões humanas na vida material e espiritual Nkonsonkonson, e
outra adinkra Hwemudua que significa exame e controle da qualidade, em um número de seis,
cada uma envolvidos por um círculo vermelho.Esta formacão de adinkras significa que é da
unidade entre relacões humanas que se constroi e distribui a melhor qualidade de vida, este é
para o sentido pedagógico que propomos para o ensino de História, a tranformação humana.
236
Na perspectiva da Pedagogia da Unidade, estudante, professor e pesquisador de
história da África são um só. Não é a tecnologia ou a titulação académica o fator que qualifica
o ensino de história, mas a consciencia histórica africana do estudante-professor-pesquisador.
Os princípios fundamentais da Pedagogia da Unidade são resultados de um conjunto de
experiências que vivi enquanto professor de história e não só, quanto um estudante
permanente e pesquisador ciente de que o aprendizado é infinito. Estes princípios servem
como direcionamento necessário a pratica das ideias trabalhadas durante esta dissertação e
direcionadas a restauracão da consciencia histórica africana.
Tabela 9: Princípios da Pedagogia da Unidade
I. África e diáspora devem ter pleno direito a auto-determinação oral e historiográfica
II. África e diáspora tem pleno direito a sua própria consciência histórica, que é inalienável e
intransponível
III. A história africana é energia viva, imortal e infinita, base para presente e futuro dos próprios
africanos enquanto um povo
IV. A história da África é a raiz, a continuidade, razão da existência e base para o futuro de todo o
povo africano, no continente e na diáspora V. A “árvore do esquecimento” e o “portão do não retorno” criados por europeus para destruir
memóra e identidade africana durante o holocausto africano ( Maafa) devem ser relembrados,
criticados e toda a forma de sua continuidade combatida .
VI. As determinações de europeus sobre quem é ou não é africano a partir do local de nascimento,
idioma, religião e cor de pele não devem ser respeitadas.
VII. O ensino de história da África tem por objetivo primeiro a formação de militantes e guerreiros
conscientes da urgente libertação mental e física do racismo e do neocolonialismo que afligem o
povo africano no continente e na diáspora
VIII. O ensino de história deve combater todas as teorias racistas, suas práticas e conceitos ( mestiço,
macaco, tortura, assassinatos, intimidação, fome, miséria, alienação )
IX. Todo o estudante, professor e pesquisador de história deve investir em auto-conhecimento, para sua própria conscientizacão, de forma permanente e ininterrupta .
X. A história da África faz parte de todos os povos nascidos no continente e daqueles que nasceram
fora da África durante o holocausto africano (maafa), sobreviventes.
XI. Todos os que resistiram e sobreviveram ao processo de escravidão, colonialismo e
embranquecimento durante a maafa são africanos, conscientes ou inconscientes disto.
XII. Todo o ancião historiador ,tradicional e/ ou profissional, deve ser respeitado a partir de seu
histórico de luta pela libertação
XIII. Todo o historiador da África deve prestar serviços a organizações pan-africanas e afrocentradas
Abaixo são apresentados tópicos resumidos para o ensino de civilizacões da
antiguidade clássica africana, com enfase no antigo Egito, entre a Unificacão no 3º milênio
por Narmer a morte de Aníbal no século 2 a.C. .Nossa proposta baseia-se nos quadros
cronológicos de Joseph Ki Zerbo em História da África Negra e de Molefi Kete Asante no
livro Kemet, Afrocentricity and Knowledge.
237
Tabela 10: Proposta de tópicos para o ensino de civilizações da antguidade clássica africana
Introdução
Galáxia, cosmo e formacão geologica e geográfica do planeta terra
I. Ciclo Pré-histórico e Proto-histórico 5.300.000 a.C.
Contributo de historiadores da África contemporaneos
Primeiro a terceiro Pluvial ( Kegeriano, Kamasiano, Gambliano) e das três idades da
pedr: 1700000 -1200000 a.C.
Origem, Gênese, da raça humana : continente africano, região dos grandes Lagos
Neolítico africano , arte rupestre do saara e todos os indícios pre-históricos africanos
II. Ciclo Egípcio \Núbio civilizações do Vale do Nilo 10.000 - 5.200 a.C.
Migracões centro, sul e norte africanas para o vale do Nilo, região sul ( alto Egito) -
10.000-7000 a.C. Agricultura e criação de gado - 4.000 a.C.
Fundação do Império egípcio (Kemet)\ Unificação do Egito e Formação das primeiras
dinastias- 3500\ 2890 a.C.
Primeira Dinastia
3500-2890 a.C.
Narmer
Aha Djer
Den
Semerkhet
Qaa
Primeiros documentos escritos – Paleta de Narmer 3200
a.C.Matemática e valores éticos, Farmacopéia,Medicina humana e animal
Núcleos Agricolas da Etiópia do Alto e médio Níger
3200 a.C
Construções das grandes pirâmides 3200 a.C
Primeira Era do Ouro
Segunda Dinastia
2890 – 2686 a.C
Hotepsekhemwi
Nynetjer
Peribsen
Khasekhemwi
Proliferação das gravuras rupestres do
Saara 2780 a.C
Iniciativas expansionaistas das 2ª Dinasta
2.778 a.C.
3ª Dinastia
2686 -2613 a.C.
Sanakhte
Zoser
Sekhemkhet
Huni
4ª Dinastia
2613-2494 a.C.
Sneferu
Cheops Chephren
Micerinus
Dessecação gradual do Saara 2500 a.C.
5ª Dinastia
2494-2345 a.C.
Userkafi
Sahure
Yuserre
Unas
6ª Dinastia
2345-2181 a.C.
Teti
PepiI
Merenre
Pepi II
Primeiro período de (grande) instabilidade polítca que abrangeu da 7ª a 10ª dinastias
238
Segunda Era do Ouro
11 ª Dinastia
2133-1991 a .C.
Mentuhotep I
Inyotef I-III
Mentuhotep II-IV
Migrações para Sul, sudeste e leste
2000 a.C.
12 ª Dinastia
1991-1786 a.C
Amenemet I
Sesostris I
Sesostris III
Amenemet III
13 ª Dinastia
1786-1633 a.C.
Sebekhotep III
Neferhotep
Introdução do carro -1700 a.C.
Invasão dos Hicsos - 1700 a.C.
Segundo Período de Instabilidade - Instabilidade política gerada pela invasão e permanência de Hycsos
da 14 ª Dinastia à 17ª Dinastias as leis de governação foram instáveis, alternadas entre egípcios e Hycsos.
Novo Reinado
18ª Dinastia
1567 – 1320 a.C.
Amosis Amenophis
Tuthmosis I
Tuthmosis II
Hatshepsut
Tuthmosis III
Amenophis II
Tuthmosis IV
Amenophis III
Akenaton
Smenkhkare
Tutankhamen
Ay Horemheb
19 ª Dinastia
1320-1200 a.C.
Rameses I
Seti I
Rameses II
Merneptah
Amen-meset
Seti II
20ª Dinastia
1200-1080 a.C.
Sethnakhte
Rameses III
Ramases IV-XI
3º Período de Instabilidade – período de
instabilidade política entre 1166 a 750 A.C.
,basicamente desencadeado por rivalidades entre
famílias e desorganização da ordem social e valores
culturais tradicionais estabelecida
Desenvolvimento de Cuxe ( capital Napata) -1080 a.C.
Expansão da navegação Egipcia -1000 a.C.
Fundacão de Cartago -814 a.C.
3º Era do Ouro
25 ª Dinastia
750-656 a.C.
Piankhi
Shabaka
Taharka
Shabataka
Pianky de Cuxe exerce governo até
a região de Menfis- 716 a.C.
Chabaka de Cuxe funda no Egito a
25ª Dinastia -715 a.C.
Taharka de Cuxe - 669 a.C.
26 ª Dinastia
664- 525 a.C.
Psammetichus I
Necho II
Apries
Amasis
239
26 ª Dinastia
Inveção do Navio com Balanceiro -600 a.C.
Périplo dos Fenícios enviados pelo Faraó Nacau para uma exploração em volta do continente africano -600 a.C.
Tomada de Chipre pelos egípcios-565 a.C.
Decresce o número de rainhas enterradas em Napata. A Capital de Cuxe é transferida de Napata para Méroe -
553 a.C.
Declínio do grande reinado, desencadeado por seguidas invasões de Assirios que dominaram da 28ª a 30ª
Dinastias, implementando suas proprias leis estrangeiras ; seguidas por invasões de Macedônios, a dominação do
general Alexandre – período Ptolomaico e das presenças de gregos e do Império Romano 526 a 50 A.C.
Introdução do camelo no Egito pelos persas - 500 a.C.
Agravação do deserto do Saara – 480 a.C.
Florescimento da civilizaçao de Nok -450 a.C. Heródoto visita Núbia e Egito -445 a.C.
Amannete Yeriki de Méroe lança incursões contra nomedes do Oeste -420 a.C.
Florescimento da metalurgia em Méroe -420 a.C.
Os cartagineses invadem a Sicília - 409 a.C.
Os Malaios desembarcam em Madagascar-400 a.C.
A revolta dos Berberes ameaça Cartago -379a.C.
Segunda conquista Persa no Egito-341 a.C.
Exército de Alexandre invade o Egito -332 a.C.
Fundação de Alexandria -331 a.C.
Dinastia dos Ptolomeus no Egito -323 a.C.
Os Bantos chegam a África Oriental, Tanzânia - 300 a.C.
Restauração do canal do Nilo ao Mar vermelho -250 a.C. Arkamani leanta imensas pirâmides em Méroe - 220 a.C.
Vitória de Amílcar Barca de Cartago ( Pai de Aníbal) - 237 a.C.
Morte de Aníbal -183 a.C.
Dinasttia das Candaces de Méroe - 160 a.C.
Cartago é destruida pelos romanos que criam a provincia África - 146 a.C.
Fonte : Kemet, Afrocentricity and Knowledge (1992)
Conclusões
Para o nosso trabalho e campo as conexões metodológicas foram indispensáveis , pois
sem elas poderíamos incorrer nos mesmos equívocos do eurocentrismo metodológico, como
por exemplo a imcompreensão do tempo e espaço africano e a desqualificação da experiência
africana na diáspora . Por isto o diálogo entre metodologia geral de pesquisa em história de
Joseph KI-Zerbo e a metodologia afrodescendente de pesquisa foram bases de diálogo,
através do qual preparamo-nos para o trabalho de campo.
Os manuais que analisamos são oferecidos a dezenas de centenas de estudantes, é
possível identificar que os mesmos utilizados neste momento em Cabo Verde e no Brasil
abordam o tema civilizações e principalmente o antigo Egito de forma muito semelhante, e
contraditória a todas as referências que possuímos de Cheikh Anta Diop, por exemplo.Como
trabalhamos ao longo deste trabalho, as distorções sobre o tema civilizações e antiguidade
clássica africana se arrastam desde o século XIX.
240
A indagação inicial sobre para o queserve a história da África pode ser substituída por
outra,qual o propósito do ensino da história da África. O que nós vimos até aqui foi uma
silenciosa guerra intelectual sobre o ensino de história da África. Avaliando o contexto
nacional brasileiro da lei 10639 em 2003, o relançamento da História Geral da África em
2010, e projeto Uso Pedagógico da História Geral da África de 2009,não é plausível que
manuais didáticos apresentem um tema que foi sempre tão importante para a descolonização
da história – o Egito-relegado à formação do Estado, opressão de faraós, predominância do
Delta e etc. No campo das questões estipulamos três para esse trabalho, a seguir comentamos
cada uma delas: A lei 10639/3, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino de história
e cultura africana e afro-brasileiranão influenciaram mudanças teóricas e metodológicas
sobre o lugar do Egito antigoem livros didáticos e programas de história no Brasil?
A lei 10639/3 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira (DCN) são utilizadas em três escolas que visitei em Fortaleza como
ferramentas de trabalho por um professor, que compreende as mesmas com o argumento
político para justificar suas atividades e propostas de trabalho. Segundo o mesmo, a Lei e o
DCN são “canais de conscientização”. De acordo com nossas visitas a escola não encontrou
exemplares da História Geral da África, algo que nos revela um descompromisso dos
gestores: 1) O Racismo e o neocolonialismo são dois elementos influentes no ensino do Egito
na História Antiga em escolas do Brasil e do Cabo Verde?.
A temática africana na antiguidade nos programas e manuais de história dos dois
países é elaborada a partir de uma perspectiva eurocêntrica do antigo Egito, e por uma
minoria privilegiada, no caso do Cabo Verde, autores portugueses, e no caso do Brasil autores
brancos, em sua grande maioria.
Entendemos que as tensõesracistas pautadas por uma doutrina politica da mestiçagem
no Brasil e em Cabo Verde estão inseridas nas próprias dinâmicas dos manuais de história em
ambos os países, um dos resultados é a persistência do Egito antigo ser considerado uma
civilização não africana. As elites brasileiras precisam ter sua devida contra ofensiva a
imposição de uma identidade mestiça a parte de sua população não branca, assim como as
elites cabo-verdianas que estimulam e promovem as cooperações internacionais devem ser
encaradas como marionetes do neocolonialismo no país.
241
A partir de agora,outro caminho deve ser tomado. A lei 10639-3, as Diretrizes
Curriculares Nacionais e a História Geral da África são canais e ferramentas de trabalho, e
como podemos perceber limitados, uma vez que somente a consciência e um proposito
poderão assegurar a qualidade da educação. O exemplo de Amilcar Cabral (PAIGC) e das
ações de base do movimento negro, professores e pesquisadores precisamretomar ou iniciar
uma ação de militância junto aos movimentos e organizações africanos e na diáspora (mundo
africano), produzindo e divulgando materiais educacionais,e ações deformação política.
Somente a partir destes encaminhamentos que poderemos pensar em escolas e editoras
independentes.
Não podemos ser neutralizados pela argumentação de que a antiguidade clássica não é
importante, especialmente o conhecimento sobre o Antigo Egito, que significa uma
reintegração de todos os povos da África e diáspora (mundo africano ) ao fluxo da vida, ao
caminho ascendente dos valores ancestrais. Nós não abriremos mão disso.
242
Conclusões Finais
As sete razões que me levaram a iniciar esta pesquisa sobre o ensino de história da
África podem ser reduzidas agora, no momento da conclusão, em duas palavras, justiça e
libertação. Busquei nesta investigação justiça no sentido de possibilitar aos leitores acesso a
informações sobre periodos decisivos da história e historiografia africana, restritas ou
ignoradas por sistemas educacionais neocoloniais, tanto no continente africano e em sua
diáspora. Como um povo pode ser livre para decidir seu destino sem consciência histórica do
que foi no passado, de onde e como está no momento presente?
A partir do meu interesse pela consciência histórica confeccionei o projeto desta
investigação atento a três pontos chave do ensino de história da África , as civilizações da
antiguidade clássica, os programas e manuais de história, por saber que os trabalhos geniais
de Cheikh Anta Diop e Joseph Ki Zerbo estiveram concentrados nestas pontos. Os problemas
estruturais do ensino de história persistem concentrados sob estes pontos, e não será possível
a construção de uma consciência histórica concistente sem o devido conhecimento da
antiguidade clássica africana e do seu legado milenar que permanece adormecido na mente e
no espirito de africanos e pessoas de ascendência africana em todo o mundo .
O Pan-africanismo foi um elemento decisivo dentro do nosso trabalho de pesquisa,
desde sua fundação conceitual no final do século XIX, o pan-africanismo proveu a
consciência histórica africana uma diretriz singular de unidade, incorporando a mesma valores
de interdependência, coletiviadade, identidade e solidariedade dentro de um proposito de
libertação para africanos no continente e na diáspora. Lideranças nacionalistas durante o
processo de luta para independencias africanas entre 1940 e 1970 perceberam rapidamente o
lugar da história da África para a integração nacioanal e esforçaram-se para descolonizar os
sistemas educacionais e curriculos, como foram os casos de Sekou Turé, Kwame Nkrumah e
Julius Neyrere.
Movimentos de caráter pan-africano durante a primeira metade do século XX foram
bases de Escolas do conhecimento e militância para historiadores da África. Historiadores
como Walter Rodney, Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo form grandes desbravadores da
descolonizaão da história da África, propositalmente dedicaram trabalhos a civilizações,
manuais e programas de história. Foi no seio de movimentos pan-africanos que nasceram
projetos como o da História Geral da África apoiado pela O.U.A. e pela UNESCO entre 1964
243
até suas primeiras publicações na decada de 1980.Uma obra que abrigou a ambição de
subsidiar a descolonização da história da África, mas que foi frustrada pelo neocolonialismo e
por um certo teor conservador em muitos e seus autores .
Este conservadorismo historiográfico, um composto de racismo, eugenia e
eurocentrismo, construiu um imaginário deturpado das civilizações da antiguidade clássica
africana o Egito Antigo (Kemet) orientado em uma egiptologia criminosa. Vimos através de
fatos objetivos que historiadores e suas obras foram sistematicamente sabotados pela opção
eurocêntrica de sistemas educacionais africanos e da diáspora. Obras do calibre de Nações
Negras e Cultura escrita por Cheikh Anta Diop sessenta anos depois e escritas estão distantes
de programas e manuais de história no Brasil e Cabo Verde.
Foi dentro de nossa proposta de preliminar estudo sobre o ensino de antiguidade
africana no Brasil e no Cabo Verde que planejamos um trabalho de campo integrado, onde
identificamos problemas comuns e propusemos um caminho de solução , princípios para uma
pedagogia da Unidade, que tenha na hitória da África uma base de integração entre África e
Diáspora, mas sobretudo um mesmo propósito de libertação mental, pela libertação da
consciência histórica africana .
Brasil e Cabo Verde são dois países criados a partir do desterro de povos africanos,
condicionados a um contexto de radical desafricanização. Após a conclusão desta
investigação, estou convicto de que é necessário um propósito de conscientização histórica e
libertação no ensino de história capaz de transcender leis, programas e projetos
governamentais. Um propósito de “reafricanização das mentalidades e dos espíritos”, como
afirmou Amílcar Cabral.O propósito em comum ao ensino de história da África no Brasil e
Cabo deve prezar pela integração e construção de uma identidade africana, capaz de
transcender diferenças linguísticas, geográficas e epidérmicas.
Pretendemos a partir de esta dissertação ampliar nossos estudos e contribuições sobre
o ensino e pesquisa em história da África, objetivamente sobre a antiguidade clássica, o Egito
e o Vale do Nilo. A proposta da Pedagogia da Unidade em seus princípios possui uma pontos
objetivos para o ensino de história em sociedades anti-africanas e marcadas pelo desterro,
como é o caso do Cabo Verde e no Brasil.
244
A necessidade de construção de novos manuais de história da Africa fundamentados
em pesquisas e orientações de Cheikh Anta Diop, Joseph Ki Zerbo, Walter Rodney é um
imperativo de ordem qualitativa e de propósito libertário para o ensino de história. Ignoradas,
desqualificadas ou mesmo desconhecidas pelo grande público de professores e estudantes,as
contribuições destes professores no campo da ciência, da política, da tecnologia e da cultura
estão sendo confirmadas e compreendidas no século XXI como os principais desafios do
processo de descolonização da história da África. Somente juntos e assentados em uma sólida
plataforma de luta alcançaremos a vitória para a nossa própria libertação.
245
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251
ANEXOS__________________________________________________________________
MAPA 1
252
MAPA 2
253
MAPA 3
254
MAPA 4
255
ROTEIRO DE ENTREVISTAS
Caros Professores
Estou desenvolvendo um trabalho de pesquisa e mestrado em Escolas\Liceus aboverdianos e brasileiros, cujo
objetivo geral é compreender o lugar das civilizações africanas no ensino de história antiga.
Solicito sua colaboração e gentileza respondendo as questões que seguem e desde já agradeço a colaboração.
Roteiro
1. Enquanto professor de História , qual escola que o sr. ou sra. escolheu para trabalhar como base de
referencial teórico e metodologico para o ensino de história antiga, e por que ?
2. Na sua opnião qual a imporância do ensino de história antiga nas escolas e qual o lugar da África
na história antigua da humanidade?
3. Qual a sua opnião sobre a qualidade dos materias didáticos para o ensino de história antiga ( mapas
, livros , programas e manuais)
4. O professor (ou professora) utiliza os volumes I e II da História Geral da África ( UNESCO) ?
5. Na sua opnião , nos últimos anos quais os avanços da história da África no campo educacional em
Cabo Verde, em outros países africanos e na diáspora ?
Ficha de Identificação
1. GERAL
I. Sexo ( ) masculino ( ) feminino
II. Qual a sua faixa etária ? ( ) -25\ ( ) 26 a 35 /( ) 36 a 45/ ( ) 46 a 55\ ( ) + de 56
2. DADOS PROFISSIONAIS
I . Escola que trabalha
III. Osrnada de trabalho ( ) até 20h ( ) 21 a 30 h ( ) 31 a 40 h ( ) 41 a 50 h ( ) +50h
IV. Vínculo empregatício ( ) efetivo ( ) contrato temporário
V. Está satisfeito com a profissão ( ) sim ( ) não ( ) razoável
VI. Tempo e serviço (anos) magistério __________________________
3. ACADÊMICA
I . Possui alguma formação específica em História ? ( ) sim ( ) não
II. Formação
Curso de graduação ( )
Especialização ( )
Pós-graduação ( )
Mestrado ( )
Doutorado ( )
Pós-doutorado ( )
4. CONCEPÇÕES POLÍTICO PEDAGÓGICAS
I.Considera a História uma disciplina :
256
( ) Neutra – desprovida de enunciados de valores e visões de mundo
( ) Não Neutra – constituída de enunciados de valores e visões de mundo
( ) Não sei
II. Considera que a historiografia colonial exerce influência nos conteúdos de história do seu país?
( ) sim – em todos
( ) as vezes – em alguns conteúdos
( ) Não – em nenhum conteúdo
III. Considera importante atribuir uma perspectiva etnico-cultural ao ensino de história ? Ou
seja ,contextualizar o ensino dos conteúdos etnica e culturalmente ?
( ) sim – em todos os conteúdos
( ) as vezes – em alguns conteúdos
( ) Não – em nenhum conteúdo
IV. Considera que os movimentos de libertação das décadas de 1950,1960 e 1970 influenciaram o
ensino e a pesquisa em história da África ? (no caso do Brasil : movimento negro das décadas de
1950,1960 e 1970)
( ) sim
( ) não
V. e sua resposta à questão IV foi sim em qual sentido influenciaram a história da África:
( ) político pedagógico
( ) científico
( ) cultural
( ) os três sentidos
( ) não influenciou em nenhum dos três sentidos
VII. Qual a sua opnião sobre os atuais trabalhos de cooperação internacional entre Cabo Verde no
campo educacional ( Brasil : (…) qual tem sido o papel do Brasil na cooperação internacional em
países africanos no campo educacional ? )
5.PERSPECTIVAS TEÓRICO PEDAGÓGICAS
I . Qual seu método para o ensino das civilizações africanas durante a antiguidadde geral histórica ?
II. Como o antigo Egito e Etiópia estão apresentados no material didático (manuais e programas) ?
III. A antiguidade africana é contemplada por seu material didático (livros e mapas) ?
IV. Conhece o Uso Pedagógico da História Geral da África ?
V. Considera que há uma concepção europocentrica na abordagem do livro didático utilizado sobre antiguidade?
Se há está em benefício de quem ?
VI . Estabelece relação entre o ensino de civilizações africanas da antiguidadecom outras disciplinas do
programa ?