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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – ICHL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS
TERRITÓRIOS SOCIAIS DA PESCA NO RIO SOLIMÕES Usos e formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso
Pedro Henrique Coelho Rapozo
MANAUS/AM
2010
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – ICHL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS
TERRITÓRIOS SOCIAIS DA PESCA NO RIO SOLIMÕES
Usos e formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso
Pedro Henrique Coelho Rapozo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia – PPGS/UFAM, da
Universidade Federal do Amazonas, como requisito
para obtenção do título de Mestre em Sociologia.
Orientador: Dr. Antonio Carlos Witkoski
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Witkoski – Orientador
Universidade Federal do Amazonas – UFAM
_________________________________________________
Prof. Dra. Norma Felicidade Lopes da Silva
Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR
__________________________________________________
Prof. Dr. Manuel de Jesus Masulo da Cruz
Universidade Federal do Amazonas – UFAM
MANAUS/AM
2010
2
R219t Rapozo, Pedro Henrique Coelho
Territórios sociais da pesca no Rio Solimões : usos e formas de
apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso /
Pedro Henrique Coelho Rapozo. - Manaus, AM : UFAM, 2010.
272 f. : il. color. ; 30 cm
Inclui referências.
Dissertação (Mestre em Sociologia). Universidade Federal do
Amazonas. Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski.
1. Sociologia rural 2. Pesca – Solimões, Rio (AM) 3. Pescadores -
Manacapuru (AM) 4. Pesca - Manacapuru (AM) I. Witkoski, Antonio
Carlos (Orient.) II. Título
CDU (2007): 316.334.55:639.2.052(811.3)(043.3)
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAM
3
Dedico este trabalho à minha família
que sempre apoiou e respeitou minhas
escolhas, aos meus pais Ailton Rapozo, Maria
Aparecida Rapozo, ao meu irmão Silvio
Rapozo e meus sobrinhos Maria Clara e
Felipe, e à Tayana Freitas, meu refúgio e
fortaleza, agradeço pelo amor incondicional,
renúncias e compreensões nas horas ausentes.
Dedico, ainda, aos homens e mulheres
das comunidades Nossa Senhora das Graças –
Manacapuru (Am), por contribuírem na minha
formação acadêmica e pessoal quanto ao
aprendizado sobre o complexo mundo da vida
rural amazônica, da vida simples e rica nas
várzeas do rio Solimões, lugar de eterno
recomeçar.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Amazonas pela dedicação e respeito ao exercício do aprendizado
constante e no desenvolvimento de pesquisas na e sobre a Amazônia brasileira. Meu especial
agradecimento à Marluce Lima pela amizade e impecável responsabilidade e dedicação a
frente da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Agradeço à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa concedida ao longo
do desenvolvimento deste trabalho.
Agradeço aos colegas de Graduação da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Amazonas, Silvio Rocha, Saadya Jezzine, Taciana Lima e Rony
Frutuoso, pelo convívio acadêmico quanto aos estudos sobre o mundo rural Amazônico.
Agradeço aos colegas Bruno Avelino, João Fábio Braga, Rila Arruda, Maglúcia Onetti,
Marco Antonio Brito, Elder Araújo, Samia Miguez, Tiago Jacaúna, David Spencer, Marcelo
Rodrigues, Raiana Ferrugem, Luana Rodrigues, Glaúcia Baraúna, Liliane Oliveira e
Jordeanes Araújo, estudantes nos Programas das Pós-Graduações em Sociologia –
PPGS/UFAM, em Antropologia PPGAS/UFAM, e Sociedade e cultura – PPGSCA/UFAM,
pelo companheirismo intelectual que tanto contribuíram para minha formação acadêmica e
pessoal.
Agradeço ao Núcleo de Socioeconomia da Faculdade de Ciências Agrárias da
Universidade Federal do Amazonas – NUSEC/UFAM, através dos pesquisadores: Suzy C. P.
Silva (pela valiosa contribuição no trato com as imagens cartográficas disponíveis neste
estudo), Albejamere Castro, Jozane Santiago, pelo compromisso no exercício das atividades
de pesquisa, ensino e extensão em comunidades rurais da região. Em especial, a amizade e
orientação da Profa. Dra. Therezinha Fraxe pela oportunidade de uma formação acadêmica
rica e interdisciplinar, pelo compromisso social e responsável com Amazônia. Ao amigo e
orientador, Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski, pela disciplina intelectual, companheirismo, e
valiosas contribuições neste estudo, propiciando-me uma formação acadêmica comprometida
com a sociedade.
Agradeço, sobretudo, aos responsáveis pelo desenvolvimento deste estudo, aos
moradores/pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro II em
Manacapuru (AM), sujeitos de seu tempo, conhecedores de um mundo singular.
5
RESUMO
A pesca na Amazônia se constitui historicamente como um dos principais elementos do modo
de vida das comunidades rurais da região. Este estudo procura interpretar as relações
sociopolíticas instituídas na configuração dos territórios sociais da pesca e suas formas de
apropriação entre os pescadores da região do Baixo rio Solimões no município de
Manacapuru, Estado do Amazonas. As transformações socioeconômicas que marcaram nas
últimas décadas o desenvolvimento da pesca na Amazônia estão associadas aos processos de
intervenção do modo de produção capitalista, levando ao desencadeamento e intensificação da
pesca comercial na região. As transformações socioculturais do modo de vida e das
representações sociais do mundo demarcam a construção social dos conflitos socioambientais
em territórios de pesca nas comunidades rurais da região estudada
Palavras-chave: Pescadores; Trabalho;Territorialidades
6
ABSTRACT
In the Amazon, fishing historically constitutes a major component of the livelihood of rural
communities in the region. This study seeks to interpret the socio-political relations
established in the configuration of social territories fisheries and their forms of ownership
among local fishermen of the Lower Solimões River in the municipality of Manacapuru,
Amazonas State. The socioeconomic changes that marked the last decades the development of
fisheries in the Amazon are associated with the processes of intervention of the capitalist
mode of production, leading to the initiation and intensification of commercial fisheries in the
region. The changing socio-cultural way of life and social representations of the world
demarcate the social construction of environmental conflicts in areas of rural fishing
communities in the region studied.
Keywords: Fishermen; Work; Territorialities
7
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Localização da Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do
Pesqueiro II ................................................................................................
23
Figura 2 Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II por
imagem de satélite ......................................................................................
24
Figura 3 Percentual de entrevistados que possuem filhos na comunidade Nossa
Senhora das Graças ....................................................................................
27
Figura 4 Percentual de entrevistados quanto à Situação do estado civil ................
27
Figura 5 Ocorrência dos tipos de família nuclear e extensa na Comunidade Nossa
Senhora das Graças ....................................................................................
28
Figura 6 Média de pessoas por família na Comunidade Nossa Senhora das
Graças.........................................................................................................
28
Figura 7 Perfil da participação comunitária em organizacoes sociais locais ..........
50
Figura 8 Croqui da Comunidade Nossa Senhora das Graças. Nota-se no croqui a
divisão espacial das áreas onde os moradores desenvolvem suas
atividades, assim como a centralidade da própria comunidade – por
exemplo, a casa do Presidente da Comunidade (Sebastião), a igreja, a
escola e o Centro social ..............................................................................
51
Figura 9 Croqui georeferenciado das moradias e das atividades desenvolvidas na
comunidade ................................................................................................
52
Figura 10 Escola e centro social da Comunidade Nossa Senhora das Graças ..........
53
Figura 11 Usina termelétrica local ............................................................................
54
Figura 12 Situação sobre a participacao religiosa dos comunitários .........................
55
Figura 13 Igreja católica da Comunidade Nossa Senhora das Graças, onde são
realizados os cultos.....................................................................................
56
Figura 14 Reunião no centro social da Comunidade Nossa Senhora das Graças para
explicar sobre o que seria a pesquisa e seu desenvolvimento...................
56
Figura 15 Armazenagem do pescado para o consumo imediato................................
63
Figura 16 Pescado levado para ser consumido em casa .............................................
63
Figura 17 Atividades da pesca comercial na Costa do Pesqueiro.............................. 64
8
Figura 18 Casa de farinha, local utilizado para a produção da farinha de mandioca
como fonte de alimentação principal .........................................................
65
Figura 19 A criação do gado é uma alternativa para o consumo de carne na
comunidade................................................................................................
65
Figura 20 A criação de aves de maneira extensiva nos terreiros da casa também são
uma fonte de consumo indispensável as comunidades rurais .................
66
Figura 21 Nos canteiros suspensos são encontrados os temperos da alimentação
nas comunidades .......................................................................................
66
Figura 22 Frequência relativa ao tipo de atividade desenvolvida junto às atividades
da pesca .....................................................................................................
66
Figura 23 Percentual de origem do desembarque de pesca do Estado......................
127
Figura 24 Flutuante localizado na comunidade servindo como entreposto da
comercialização do pescado até seu destino final em Manacapuru .........
130
Figura 25 Terminal pesqueiro de Manacapuru, um dos locais que recebe
diariamente o pescado capturado pelos trabalhadores das comunidades
rurais do município ....................................................................................
130
Figura 26 Desembarque da captura do pescado em um dos flutuantes na
Comunidade ...............................................................................................
131
Figura 27 Barco atravessador que medeia a comercialização do pescado ...............
131
Figura 28 Destino de comercialização da pesca na Comunidade Nossa Senhora das
Graças .........................................................................................................
131
Figura 29 Apetrechos utilizados na captura do pescado ............................................
132
Figura 30 Processo de recepção do pescado no flutuante onde são separados por
espécies ......................................................................................................
133
Figura 31 O pescado é separado por tamanho e, em seguida, pesado .......................
133
Figura 32 Armazenamento do pescado para em seguida ser levado ao barco ..........
133
Figura 33 Material custeado para a captura do pescado em larga escala, utilizando
apetrechos específicos ...............................................................................
136
Figura 34 Composicão da renda familiar obtida através da pesca ..........................
138
Figura 35 Análise do valor pago aos pescadores obtido na comercialização do
pescado de acordo com o período hidrológico e a qualidade do peixe ...
140
9
Figura 36 Frequência relativa ao período de sazonalidade das águas revela a
escolha dos melhores e piores períodos de captura do pescado ...............
141
Figura 37 Barco utilizado para o armazenamento do pescado que é levado aos
frigoríficos em Manacapuru .......................................................................
142
Figura 38 O porão do barco é utilizado para o armazenamento do pescado .............
142
Figura 39 O gelo é utilizado para a conservação do pescado até os frigoríficos .......
142
Figura 40 Fluxograma que identifica as etapas no processo de comercialização do
pescado .......................................................................................................
143
Figura 41 Índices relacionados às variáveis da pesca comercial intensiva nas
comunidade Nossa Senhora das Graças .....................................................
144
Figura 42 Índices de acesso ao gelo utilizado nas pescarias da comunidade Nossa
Senhora das Graças ....................................................................................
145
Figura 43 Pontos de venda ou empréstimo do gelo na comunidade Nossa Senhora
das Graças ..................................................................................................
145
Figura 44 A pesca realizada através da meia une funções importantes, o condutor
da embarcação e o recolhedor do lanço .....................................................
149
Figura 45 Frequência das atividades de parceria na pesca realizado entre os
moradores da Comunidade Nossa Senhora das Graças .............................
150
Figura 46 Percentual das relações de parceria entre os pescadores na Comunidade
Nossa Senhora das Graças .........................................................................
151
Figura 47 As parcerias denotam como função social a reconstituição dos laços de
sociabilidade entre os indivíduos de mesmo parentesco, na medida que
se constituem como trabalho pela obtenção de renda na pesca comercial..
152
Figura 48 As mudanças no processo de trabalho da pesca associada ao uso dos
apetrechos e relações de trabalho estabelecidas .........................................
158
Figura 49 Pescador confeccionando a tramalha que será utilizada na captura do
pescado .......................................................................................................
160
Figura 50 Rede de Arrasto tecida pelo pescador da comunidade ...............................
160
Figura 51 Frequência relativa de respostas com relação à fabricação dos apetrechos
de pesca ......................................................................................................
161
Figura 52 Manutenção das redes de arrasto ..............................................................
162
Figura 53 Análise descritiva dos apetrechos que são feitos na localidade ............... 163
10
Figura 54 Croqui georeferenciado da localidade Costa do Pesqueiro II onde
apresenta a dimensão de organização espacial do território da
comunidade Nossa Senhora das Graças a partir das habitações dos
moradores ..................................................................................................
181
Figura 55 Mapa mental da comunidade elaborado por um morador, explica a
dimensão da localidade a partir do território delimitado e dos recursos
utilizados, onde podemos ver o rio principal, a disposição das casas, das
instituições presentes na comunidade que formam a centralidade, as
roças, o lago de uso comunitário, a floresta primária, etc. tidos como
elementos que pertencem ao mundo da comunidade ................................
183
Figura 56 Mapa mental elaborado por uma das crianças moradores da comunidade,
apresenta a dimensão das instituições e do ambiente que compreende a
comunidade ................................................................................................
184
Figura 57 Desenho elaborado por morador local apresentando as dimensões
constitutivas do território que compreende a comunidade Nossa Senhora
das Graças, as espacialidades das propriedades e sua relação com o uso
dos recursos naturais disponíveis, as plantações nas áreas de várzea à
beira do rio Solimões, as florestas e os lagos utilizados para a pesca de
subsistência atrás da comunidade, e áreas destinadas a outras atividades
como criação de pequenos animais ............................................................
185
Figura 58 Placa que identifica a comunidade Nossa Senhora das Graças se situa no
centro da comunidade e apresenta elementos importantes. As instituições
presentes, a relação com o lado religioso da comunidade, o time de
futebol como dimensão de sociabilidade, a localidade e a relação com o
mundo da pesca ..........................................................................................
187
Figura 59 Mapa mental elaborado por morador da comunidade Nossa Senhora das
Graças apresentando o núcleo central da comunidade constituída pelos
espaços de pesca, na figura aparece o rio Solimões em frente à
comunidade e o lago Tamanduá, ao fundo, como territórios que
pertencem à comunidade como espaços pertencentes ao modo de vida e
destinados a atividade pesqueira ................................................................
190
Figura 60 Mapa mental elaborado por pescador da comunidade Nossa Senhora das
Graças apresenta uma dimensão mais abrangente que relaciona a
localidade e os pontos de demarcação da pesca a partir do conhecimento
de ambientes próximos como a Costa do pesqueiro II e com outros
ambientes naturais, os furos, paranás e lagos, que são descritos da
maneira como são reconhecidos, a Boca do calado e a Boca do lago do
Paru .........................................................................................................
191
Figura 61 Os pontos de pesca demarcados no mapa mental elaborado pelo
pescador da comunidade apresentam uma percepção muito abrangente
do ambiente físico que constitui e delimita a localidade onde se encontra
a comunidade Nossa Senhora das Graças (acima do lago do Pesqueiro)
e os outros locais representados. Na figura, a Costa do Laranjal aparece
11
como um referencial importante da pesca, as embarcações, os lanços
com as redes de arrasto significam a concepção da atividade pesqueira
voltado para a comercialização, mas, sobretudo, demarcam os territórios
de pesca dos barcos no rio Solimões ..........................................................
192
Figura 62 Parceria entre crianças da comunidade chegando ao lugar onde é
praticada a pesca de vez. ............................................................................
197
Figura 63 A espera da vez demonstra o sentido de organização e cumprimento das
regras entre os pescadores da comunidade ................................................
198
Figura 64 O lanço é dado quando ocorre a pesca de vez, a rede de arrasto é jogada
no rio presa às boias flutuantes, enquanto o outro parceiro da pesca
conduz a canoa motorizada das margens até o meio do rio .......................
199
Figura 65 A boia é largada após a finalização do lanço, servindo como sustentação
da rede de arrasto que será levada correnteza abaixo até os limites da
comunidade ................................................................................................
199
Figura 66 Após o período de captura, a rede é recolhida em outro ponto mais
abaixo do rio, os peixes são retirados e a rede armazenada na canoa ......
200
Figura 67 Quando a vez não predispõe uma boa pescaria é necessário voltar para o
lugar de partida e esperar novamente, estes aspectos claramente são
evidenciados quando ocorre uma pesca mal sucedida ...............................
201
Figura 68 Informação referente aos pescadores que se deslocam para locais fora da
comunidade, em localidades distantes ou nas imediações .........................
204
Figura 69 Localidades distantes onde foi evidenciada a prática pesqueira
demonstram os pontos de pesca visitados pelos pescadores da
comunidade ................................................................................................
204
Figura 70 Principais localidades e ambientes relacionados com o desenvolvimento
da atividade pesqueira no lugar da pesquisa ..............................................
205
Figura 71 Finalidade da pesca nas localidades distantes da comunidade .................
207
Figura 72 Perfil total da denominação popular das espécies mais capturadas para
fins comerciais na região de pesca da pesquisa.
208
Figura 73 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os
ambientes no período da enchente .............................................................
209
Figura 74 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da enchente .............................................................
210
Figura 75 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os
ambientes no período da cheia ...................................................................
211
12
Figura 76 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da cheia ..................................................................
212
Figura 77 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os
ambientes no período da vazante ..............................................................
213
Figura 78 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da vazante ..............................................................
214
Figura 79 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os
ambientes no período da seca .....................................................................
215
Figura 80 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da seca ....................................................................
216
Figura 81 Melhores horários para a captura do pescado nos ambientes citados,
segundo os pescadores locais ....................................................................
217
Figura 82 Percentual de ocorrência sobre a prática da pesca comercial comunidade.
218
Figura 83 Períodos em que não se exerce a pesca comercial por ano na comunidade
Nossa Senhora das Graças .........................................................................
219
Figura 84 Pergunta referente à existência de descarte de pescado entre os
pescadores da comunidade ........................................................................
222
Figura 85 Análise descritiva das espécies de peixes que diminuíram na localidade..
223
Figura 86 Dinâmica dos modos de apropriação e gestão dos recursos ......................
239
13
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Preço do pescado pago/kg e relação com o período hidrológico entre os
entrepostos comerciais de pescado na comunidade Nossa Senhora das
Graças – Manacapuru (Am) ......................................................................
140
Quadro 2 Perspectiva comparativa entre os fatores de uso dos recursos pesqueiros
e de seus ambientes a partir dos regimes de propriedade comum ............
235
14
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
BASA - Banco da Amazônia
FAO - Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FISET/PESCA - Fundo de Investimento Setorial para a Pesca
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
MMA - Ministério do Meio Ambiente
MPA - Ministério da Pesca e Aquicultura
PVEA - Plano de Valorização Econômica da Amazônia
SPEVEA - Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia
SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
SUDEPE - Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura
ZFM - Zona Franca de Manaus
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................
17
CAPÍTULO 1 – A vida na costa do pesqueiro .........................................................
31
1.1 - História socioambiental da comunidade Nossa Senhora das Graças ................
33
1.2 - As formas de organização sociopolítica ............................................................
48
1.3 - Vida e labor: a constituição das atividades humanas na comunidade Nossa
Senhora das Graças ....................................................................................................
59
CAPÍTULO 2 – As transformações socioeconômicas da pesca ..............................
70
2.1 - A queda de Ícaro: Estado (sub) desenvolvimento e as políticas de uma
modernização forçada ................................................................................................
72
2.2 - Repensando as transformações do mundo do trabalho na pesca: Estado e
políticas econômicas legitimadoras do projeto de desenvolvimento nacional ........
88
CAPÍTULO 3 – Trabalhadores da pesca ..................................................................
109
3.1 - O trabalho na pesca e suas transformações sociais na Costa do Pesqueiro .......
110
3.2 - Trabalho, renda da água e as redes de comercialização ..................................
122
3.3 - As formas de organização do trabalho na pesca ................................................
148
3.3.1- Os parceiros do rio Solimões ...........................................................................
148
3.3.2 - O uso dos apetrechos na captura do pescado ..................................................
156
CAPÍTULO 4 – Tempo, Lugar e Espaço: a constituição política das
territorialidades da pesca ..........................................................................................
166
4.1 - Regimes de propriedade comum e livre acesso: aspectos sobre a constituição
das territorialidades da pesca no baixo Solimões ......................................................
166
4.2 - Cosmografias, territorialidades e espacialidades: dimensões simbólicas sobre
o conhecimento da pesca local ..................................................................................
175
4.3 - Relações sociais no uso das territorialidades ....................................................
194
4.3.1- A pesca da vez: elementos constitutivos de acesso e controle dos territórios
pesqueiros ..................................................................................................................
196
16
4.3.2 - Os pontos de pesca: formas de apropriação e territorialização dos
ambientes de pesca ....................................................................................................
202
4.4 - Dimensões representativas do conflito: a pesca entre os de dentro e os de fora
223
4.5 - Repensando territorialidades: dimensões interpretativas sobre o controle dos
recursos pesqueiros ....................................................................................................
234
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
243
REFERÊNCIAS .......................................................................................................
249
ANEXOS ................................................................................................................... 257
17
Introdução
A pesca é uma atividade que institui uma das dimensões da realidade que marca
historicamente a vida dos grupos sociais na Amazônia brasileira. A importância do
desenvolvimento e aperfeiçoamento da pesca, praticados pelos habitantes das várzeas e terras-
firmes da região, demonstra a capacidade de articulação de um modo de vida muito singular,
onde o domínio do saber prático considera a dinâmica da vida que corre nos rios da
Amazônia, na sazonalidade dos seus períodos hidrológicos, e nas transformações que atendem
aos interesses dos homens como agentes sociais interessados e que se apropriam destes
recursos.
O desenvolvimento histórico das atividades pesqueiras deve muito, por um lado, aos
processos sociais de intervenção e ação humana na região amazônica e, por outro, pela
formação e ocupação de grupos sociais no período anterior a colonização portuguesa, a partir
das estratégias e intensificação de interesses políticos com relação à sociodiversidade
encontrada na Amazônia (PEREIRA 2007).
O processo histórico e socioeconômico vivenciado pelos grupos sociais rurais locais,
no que se refere ao uso dos recursos pesqueiros, pode ser compreendido enquanto elementos
pertinentes à reprodução social de suas existências, como também pelas transformações
socioeconômicas ocorridas nesse processo, sobretudo, no decorrer do século XX, no nível das
macro-ações, ou seja, das estratégias de intervenção político-econômica na Amazônia, aliado
ao discurso desenvolvimentista (RUFFINO, 2004, SILVA, 1996).
No âmago deste processo, as transformações socioeconômicas que marcam o
desenvolvimento do setor pesqueiro na Amazônia articulam, de um lado, os processos e
projetos de intervenção do modo de produção capitalista que levaram ao desencadeamento da
pesca comercial na região e, de outro, as transformações culturais do modo de vida, das
18
representações sociais1 do mundo e da própria pesca como atividades constituintes da vida
dos grupos sociais locais. Nesse sentido, a pesca na Amazônia tem implicado na construção
de territorialidades sociais, ou seja, na demarcação dos espaços sociais na pesca comercial e
de subsistência entre os agentes envolvidos o que, conseqüentemente, tem criado/recriado
conflitos sociais pelo acesso aos recursos pesqueiros e (re) configurado as relações de trabalho
na atividade pesqueira.
A importância de compreender a territorialidade com uma das dimensões
significativas da apropriação comum do acesso aos recursos na atividade pesqueira
possibilita-nos verificar que, as representações dos territórios sociais e as formas de uso dos
recursos pesqueiros como elementos pertencentes à produção/reprodução material e simbólica
do mundo são, ordinariamente, construídas e (re) significadas.
Assim como em diversas áreas da Amazônia brasileira, o Rio Solimões, seus
paranás, lagos, afluentes etc., constituem-se em um dos principais complexos do meio físico e
biótico, traduzindo-se em fonte de riqueza para a produção e reprodução da vida dos grupos
sociais locais e, vem, também, tornando-se um dos principais pólos do setor comercial da
pesca. A região do Baixo Solimões, na qual se insere o município de Manacapuru, aparece
como um de seus principais referenciais do desenvolvimento desta atividade, assim como da
comercialização dos estoques dos recursos ictiofaunísticos local (BATISTA & FABRÉ,
2003).
O lócus desse espaço social da pesca tem apresentado, de forma latente e manifesta,
inúmeros conflitos sociais pela posse e uso dos recursos ictiofaunísticos envolvendo
1 “Compreendemos que a representação social é „uma forma de conhecimento socialmente elaborada e
compartilhada, que tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um
conjunto social‟” (JODELET, 2001, p. 08).
19
diferentes tipos de pescadores das comunidades locais.2 Esses conflitos vêm delineando a
constituição de territorialidades onde a demarcação pela apropriação de diversas áreas de
pesca comercial e de subsistência é mediada – ainda que de modo incipiente – pelas normas
instituídas através do Estado3 como mediador que regula o acesso aos recursos pesqueiros,
através de acordos de pesca, manejos, proibições de determinadas espécies e locais, sobretudo
nos lagos. De maneira geral, estas ações são pautadas sob uma política de Estado específica
que trata de questões pontuais sobre as formas de apropriação dos recursos pesqueiros.
Por outro lado, grande parte das áreas de livre acesso destinadas a apropriação
comum possuem delimitações locais especificas, fugindo das instâncias normativas estas
áreas, sobretudo ao longo do rio Solimões, está há décadas constituindo-se como territórios
específicos de pescadores comerciais onde a apropriação comum dos recursos pesqueiros não
considera somente o livro acesso como elemento estruturante da pesca, e sim os acordos
locais entre os agentes deste processo a partir dos mecanismos de controle e acesso dos
espaços nos rios e demais ambientes.
Como objetivo geral desta pesquisa pretendeu-se estudar as relações sociopolíticas
instituídas e instituintes da configuração dos territórios sociais da pesca e suas formas de
apropriação comum na Costa do Pesqueiro II, no município de Manacapuru (AM). Os
objetivos específicos pretendiam: a) compreender a história socioeconômica e ambiental da
pesca comercial e de subsistência no Baixo Solimões; b) identificar os territórios sociais da
pesca comercial e de subsistência dos pescadores e, c) evidenciar as formas de apropriação
dos recursos pesqueiros e suas implicações sociais.
2 “Ao estudar uma comunidade, vemo-nos diante de uma grande variedade de problemas. A questão é saber se
todos são igualmente centrais para compreendermos o que confere a um grupo de pessoas um caráter específico
– o caráter de comunidade” (ELIAS e SCOTSON, 2000, P. 165). 3 “O Estado pode ser entendido como um conjunto de instituições especializadas em expressar um dado
equilíbrio e uma condensação de forças favorável a um grupo e/ou classe social. Ele assegura a unidade de
qualquer sociedade dividida em interesses, particularmente de classes, mas também estamentais, pois garante o
monopólio (centralizada ou descentralizadamente) do uso da força nas mãos do grupo, da classe ou do
estamento” (BOCAYUVA E VEIGA, 1992).
20
A pesca e os ambientes destinados à captura do pescado são entendidos não só como
fonte de simbolização e significação de vida, suporte e potencial da riqueza material e
espiritual dos grupos sociais locais, mas também por se converterem em fontes de matéria-
prima valorizadas pelo mercado que, por sua vez, reproduz a inserção do modo de produção
capitalista na Amazônia através da acumulação do capital em escala local, regional, nacional e
mundial de forma desigual e combinada.
Embora sejam aparentemente homogêneo e indiviso, os rios apresentam marcas,
locais e territórios definidos e defendidos pelos pescadores durante suas atividades.
Reconhecer a existência dos territórios pesqueiros e identificar a estratégia de uso e defesa
dos mesmos pode auxiliar na elaboração de normas para o seu manejo constituindo-se em um
importante instrumento de gestão das pescarias, minimizando conflitos em áreas de livre
acesso.
Para Maldonado (2000) a pesca é uma das formas sociais em que a percepção
específica do meio físico é da maior relevância, não só para a ordenação dos homens nos
espaços sociais como também para a organização da própria produção e para a reprodução da
tradição pesqueira, tanto em termos técnicos como em termos simbólicos.
Os territórios também são flexíveis dados a sua apropriação, o que significa dizer que
esta flexibilidade fornece argumentos para a (re) configuração de espaços de uso comum,
como no caso dos rios. Espaços de uso comum são pensados aqui como elementos
constitutivos da realidade social local quanto ao uso dos recursos de forma delimitada e
socialmente controlada, através de mecanismos que garantem a gestão e manejo das áreas de
pesca assim como impõem as normas e sanções estabelecidas para a regularidade das ações
individuais e coletivas.
Neste sentido os rios, ou melhor, os pontos específicos de pesca, são pensados
também como territórios abertos, pois se situam entre o privado e o público a partir do uso de
21
seus recursos e da maneira que, não um agrupamento humano, mas diversos grupos sociais
com o mesmo interesse podem estabelecer regras ou leis internas de conduta que garantem ao
mesmo tempo o uso e o controle dos recursos (BEGOSSI, 2004). Contudo, em seu aspecto
mais fundamental, a territorialidade humana produz um leque de expressões sociais muito
amplas de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais.
Mas como é possível pensar em territórios pesqueiros em áreas específicas como
rios, por exemplo, que, diferente dos lagos e de outros ambientes mais privados, do ponto de
vista de seu uso por comunidades locais, pertencem jurídicamente à União?
Os processos de territorialização comportam elementos que fogem das instâncias
legais e muito menos jurídicas quando se tratam de espaços de uso comum, e que se tornam
uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências
históricas (LITTLE, 2002).
Para os grupos sociais rurais em áreas de várzea da Amazônia brasileira, a
racionalidade no uso dos recursos permeia a utilização dos espaços, territórios e lugares de
vida, compreendidos através dos saberes locais. Esta dimensão conflui para a predisposição
das atividades produtivas em seu mundo compartilhado, nas relações sociais e na reprodução
material e simbólica dos seus meios de vida. Estes fatores, tão importantes e singulares,
somente nas últimas décadas estão sendo vistos como legítimos para pensar o uso sustentável
dos recursos naturais disponíveis, e assim, criar soluções alternativas e estratégicas que
possibilitem modelos heterogêneos de apropriação, gestão participativa e parcimônia
eqüitativa no uso dos recursos naturais.
O significado do mundo que constitui as representações dos espaços destinados ao
uso dos recursos pesqueiros é tão complexo quanto sua delimitação física. A captura do
pescado não é reproduzida de maneira irracional, e sim constituída de uma racionalidade onde
as atividades são desenvolvidas em locais específicos. Neles a pesca é realizada através do
22
conhecimento adquirido pelos pescadores quanto aos locais e espécies possíveis de captura,
considerando, sobretudo as representações sobre o ambiente socialmente apropriado.
A compreensão da demarcação territorial dos conflitos pelo acesso aos recursos, no
Baixo Solimões, no município de Manacapuru (AM), se relaciona com uma diversidade de
elementos que, sobretudo, perpassam pela normatização do acesso à pesca e a regulamentação
do Estado no exercício de manter um olhar sobre as questões ambientais no local.
Entendemos que estas regulamentações mantêm relações estreitas com o projeto de
intervenção política adotado para a Amazônia, no fim do século XX, e que esta relação traduz
diretamente a tendência re-ordenadora do modo de produção capitalista na Amazônia no que
diz respeito ao uso dos recursos pesqueiros.
O lugar delimitado para a realização dos estudos foi a localidade Costa do Pesqueiro
II, no município de Manacapuru (AM) localizado na região do Rio Solimões, compreendido a
partir da microrregião do Baixo Solimões. A localidade conta com aproximadamente quinze
comunidades dentro de uma área maior denominada Costa do Pesqueiro, onde desenvolvem
diversas atividades – agricultura, criação de pequenos animais e extrativismo vegetal e animal
(principalmente a pesca). Contudo, a pesquisa realizou-se onde a pesca é desenvolvida de
maneira estruturante na vida (pesca de subsistência) e, como principal complementação da
renda dos moradores locais identificada como trabalho/profissão, a pesca comercial – na
Comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro II, localizada a margem direita
do rio Solimões, em frente ao Município de Manacapuru.
23
Figura 01 – Localização da Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II.
Fonte: Limite Territorial IBGE, 2007, organizado por Suzy Cristina Pedroza da Silva, 2010.
24
Figura 02 – Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II por imagem de satélite
Fonte: Sistema de georeferenciamento de imagens por satélite Google Earth, 2009.
25
A pesquisa como atividades prática sempre depende do modus operandi de quem a
executa, do arcabouço teórico e dos princípios que nortearam a visão do pesquisador, noutras
palavras, a pesquisa como artesanato intelectual torna-se sempre, necessariamente, uma
teoria em atos (BOURDIEU, 1989). Neste sentido, o recorte da realidade social pesquisada
incide sob o direcionamento dado pelo próprio pesquisador ao ato de compreender a ação
social dos homens e os significados da conduta humana da realidade pesquisada (WEBER,
1991).
A realização da investigação pretendida fora voltada para o uso de uma metodologia
de pesquisa qualitativa e, com as contribuições de dados quantitativos, foram evidenciados em
cada momento o desenvolvimento do estado da arte no processo da pesquisa realizada.
Além disso, a investigação implica em uma reconversão do olhar sociológico acerca
da realidade investigada. Essa postura incide na precaução de pensar o lócus a ser pesquisado
considerando seus aspectos endógenos e exógenos. O cuidado com os aspectos exógenos
implica em que o sujeito do conhecimento deve ampliar o seu campo de investigação
buscando articular o objeto da pesquisa a processos sociais mais amplos.
Para tornar exeqüível a pesquisa proposta, a participação durante certos períodos4 na
localidade estudada – o que implicou utilizarmos os preceitos da pesquisa participante – fora
fundamental para a constituição das representações sobre os objetivos inicialmente
pretendidos.
Neste sentido, a obtenção das informações a partir do cotidiano da vida local junto
aos pescadores, tornaram-se elementos fundamentais e enriquecedores da pesquisa por se
constituírem não só em princípios metodológicos adotados, mas servindo como fonte critica
4 Os períodos da pesquisa de campo realizada obedeceram a um calendário baseado na configuração dos
períodos hidrológicos que demarcam a sazonalidade das águas do rio nas áreas de várzea (períodos de enchente,
cheia, vazante e seca), revelando, sobretudo formas de apropriação diferenciadas quanto a realização da
atividade pesqueira no local.
26
de reflexão acerca da forma adotada no trato quanto ao diálogo junto aos sujeitos envolvidos
na pesquisa.
A coleta de dados para a realização da pesquisa foi executada através da obtenção de
informações primárias e secundárias.
Neste sentido, a constituição do estudo implicou no levantamento bibliográfico,
aplicando-o, sistematicamente, à delimitação do tema proposto, bem como a identificação dos
conhecimentos já existentes referentes ao estudo da localidade onde se configurou a pesquisa
e o levantamento de informações sobre o tema proposto. Desta forma, permitiu-se o
estabelecimento de um referencial teórico que nos ajudou a pensar a realidade investigada.
Este referencial implicou num aprofundado estudo das questões pertinentes aos objetivos da
pesquisa5. As leituras da bibliografia selecionada, também nos orientaram no sentido de
melhor analisarmos as informações durante a obtenção de dados.
Neste sentido a pesquisa realizada contemplou o uso de entrevistas semi-estruturadas
adequadas aos objetivos da pesquisa, enfatizando a percepção intersubjetiva dos agentes
envolventes, tendo como objetivo resgatar dados que indicassem a relação do dia-a-dia dos
trabalhadores da pesca e suas atividades, ou seja, a percepção de seu mundo vivido. Este
processo culminou diretamente num resgate por meio da história oral e história de vida,
através da memória social6, possibilitando-nos pensar no desenvolvimento da pesca comercial
e suas atribuições no local de pesquisa. O uso de diário de campo, a partir de anotações das
informações adicionais durante o acompanhamento da pesquisa em campo fora de extrema
relevância.
5 Além da pesquisa bibliográfica vem sendo realizado o mapeamento e levantamento de fontes documentais,
primárias e secundárias, que possam fornecer informações sobre a região, analisando os fatos que estejam
relacionados à questão pesqueira. 6 A noção de memória social é de Halbwachs (1990), que define a memória como uma construção coletiva sobre
o passado feita a partir das condições sociais que o grupo vivencia no presente. Ao mesmo tempo, a lembrança
do passado informa o grupo sobre o seu presente, de forma que passado e presente se constroem mutuamente –
são socialmente percebidos por meio de informações que um projeta sobre o outro. Na sua função de explicar o
presente, a memória (que às vezes se apresenta na forma de relatos míticos) equivale à herança de uma “lente
cultural” que define a visão e a interpretação que o grupo pode ter sobre os fatos que vivencia.
27
Outro elemento importante trabalhado foram a elaboração de mapas mentais (ou
mapas cognitivos), constituindo-se como desenhos elaborados pelos pescadores locais que
procuraram evidenciar suas significações sobre a pesca, enquanto elementos fundamentais
para a constituição e compreensão das representações sociais do mundo vivido, no lugar da
pesquisa, assim como para compreender a espacialização e a configuração da territorialidade e
suas relações sociais.
Para o desenvolvimento quantitativo das informações no decorrer da pesquisa, a
obtenção de informações fora realizada através da utilização de questionários consistindo em
perguntas abertas e fechadas7 envolvendo os agentes sociais diretamente relacionados com a
pesquisa e as organizações locais e grupos sociais relacionados com a questão da pesca. Esta
etapa da pesquisa nos conduziu, inicialmente, a uma validação dos instrumentos da coleta de
dados (ao seu pré-teste), procurando identificar e corrigir os limites e/ou imperfeições dos
instrumentos para melhor atender aos objetivos da pesquisa. Finalmente, a investigação, na
medida em que se realizou, fora complementada com o uso de material fotográfico visando
registrar/revelar os aspectos do imaginário social do cotidiano das práticas pesqueiras.
O primeiro capítulo intitulado A vida na Costa do Pesqueiro trata de analisar uma
interpretação sobre a constituição dos processos sociohistóricos que culminaram no
desenvolvimento particular do modo de vida comunitário na Costa do Pesqueiro a partir da
comunidade Nossa Senhora das Graças, evidenciando aspectos que demarcam as dimensões
sobre a apropriação social dos recursos naturais no ambiente habitado. As trajetórias de vida e
as dinâmicas que incidem sobre a formação da comunidade e dos tipos de atividades
desenvolvidas são evidenciadas enquanto dimensões materiais e imateriais da constituição
organizacional do mundo rural amazônico.
7 Por meio das questões fechadas pretendeu-se captar os dados acerca do perfil socioeconômico dos
entrevistados, e do trabalho realizado no local. Através das questões abertas, procuramos informações que
apresentassem elementos constitutivos do modo de vida local bem como das relações de trabalho entre os
sujeitos envolvidos.
28
Na medida em que dialogamos com estas questões – sobre a reprodução social do
mundo vivido nas áreas de várzeas do rio Solimões – procuramos destacar as categorias do
trabalho e do labor enquanto aspectos diferenciados e complementares ao mundo vivido, nos
possibilitando evidenciar por meio do cotidiano local, as atividades desenvolvidas e sua
conexão com demais dimensões da vida cotidiana. Estes elementos demonstram um pouco
das representações sobre a história de vida de seus moradores, as dimensões de suas práticas
socioculturais cotidianas, assim como as atividades econômicas que caracterizam a
comunidade.
O segundo capítulo denominado As transformações socioeconômicas da Pesca
procura compreender o desenvolvimento da atividade pesqueira na Amazônia e sua relação
com as políticas de desenvolvimento econômico adotadas pelo Estado nacional ao longo de
sua industrialização enquanto elementos constitutivos formação da sociedade brasileira
contemporânea.
Neste capítulo procuramos dialogar com uma reflexão acerca da formação do Estado
brasileiro frente as políticas de modernização da sociedade, neste sentido, evidenciando uma
abordagem sobre as conseqüências sociais diante da tomada de decisão em adotar uma
perspectiva de desenvolvimento econômico nacional que de fato permitiria tardiamente uma
preocupação com as questões ambientais.
A intensificação da pesca comercial aparece como um destes fatores resultantes das
transformações das políticas de desenvolvimento econômicos incentivadas para a Amazônia,
gerando inúmeras questões, dentre as quais destacamos o surgimento dos conflitos ambientais
e da sobreexploração dos recursos pesqueiros como aspectos engendrados neste processo,
sobretudo, advindos da inserção comercial do modo de produção capitalista na pesca.
Assim, apresentamos uma visão de como estas ações refletiram por meio das
políticas de consolidação nacional dos grandes programas de valorização (econômica) da
29
Amazônia, delineando como estes elementos tencionaram de forma ampla a relação entre os
grupos sociais rurais e as formas de uso dos recursos pesqueiros, as transformações
socioprodutivas da atividade regulamentada da pesca, e a consolidação/evolução de uma
legislação que regulamentaria o acesso aos recursos pesqueiros.
O terceiro capítulo, Trabalhadores da Pesca, discorre sobre as formas de
organização da pesca comercial no rio Solimões através da comunidade Nossa Senhora das
Graças na Costa do Pesqueiro, evidenciando as relações sociais de trabalho que constituem o
modo de uso e apropriação dos recursos pesqueiros. Neste sentido, procuramos estabelecer
um diálogo com as dimensões constitutivas da pesca comercial: a comercialização e a Renda
da água proveniente do trabalho na pesca entre os moradores da Costa do Pesqueiro. Outros
elementos abordados nesta seção são as formas de organização do trabalho na pesca,
evidenciando os aspectos que denota a existência das parcerias entre os pescadores e o uso
dos apetrechos na captura do pescado.
Consideramos que na medida em que há uma extensão do mercado consumidor e a
disponibilidade de recursos pesqueiros próximos às comunidades, é possível que um maior
número de sujeitos sociais passe a se dedicar à pesca comercial como principal meio de vida
para além das atividades de subsistência. Neste sentido, procuramos evidenciar que, para
viabilizar a produção pesqueira os sujeitos sociais tendem a se (re)organizar socialmente,
sobretudo de acordo com suas forças produtivas e as relações envolventes deste processo,
estes aspectos constituem as formas de controle e apropriação comum dos recursos pesqueiros
em determinadas áreas, produzindo territorialidades.
No quarto capítulo intitulado Tempo, Lugar e Espaço: a constituição das
territorialidades da Pesca, estabelecemos uma conexão com o exercício de pensar os
territórios sociais da pesca por meio da constituição de territorialidades em ambientes
socialmente apropriados pelas comunidades locais, sobretudo, enquanto veículo para
30
compreender o uso dos recursos pesqueiros, as formas de apropriação comum do rio Solimões
na atividades da pesca comercial e nos ambientes destinados à pesca de subsistência, como os
lagos. Dentre estes aspectos, destacamos as representações dos pescadores sobre os ambientes
territorializados, identificando os ambientes onde são exercida a pesca e as áreas recorrentes
de conflitos pela disputa ao acesso dos recursos pesqueiros.
Desta forma, procuramos estabelecer um diálogo com referenciais que nos
possibilitem dialogar sobre a constituição das territorialidades produzidas nos ambientes
destinados à atividade pesqueira. Neste capitulo as inferências teóricas apresentadas buscam
uma interpretação com os temas em questão, a relação entre regimes de propriedade comum e
áreas de livre acesso, considerando a forma como são destacadas de maneira diferenciadas e
complementares às analises pretendidas sobre as territorialidades e os espaços sociais na
disputa de acordo com a dimensão do conflito pela apropriação dos recursos pesqueiros.
31
CAPÍTULO 1 - A VIDA NA COSTA DO PESQUEIRO
A vida constitui o mundo material e imaterial dos homens, suas representações
tornam o intangível ao alcance da fabricação do mundo artificial das coisas
humanas. (ARENDT, 2000, p.11)
A vida como construção social é um processo em que os homens produzem/
reproduzem material e simbolicamente seus meios de existência (MARX, 2002), a partir das
relações constituídas historicamente por circunstâncias particulares. Hannah Arendt (2000)
em A condição humana, ao dialogar com Karl Marx, fará importante distinção entre o
trabalho e o labor para a vida humana: o trabalho tem a ver com a construção da
mundaneidade, isto é, com a edificação da durabilidade do mundo pelo homem; o labor se
relaciona com os processos vitais entre os homens, começando com o nascimento e
terminando com a morte numa dialética marcada por movimentos cíclicos que constituem a
própria vida.
Os processos históricos e socioambientais que culminaram no desenvolvimento do
modo de vida particular que marcam a constituição das comunidades rurais e demais
agrupamentos humanos na Amazônia englobam dimensões complexas de apropriação social
dos recursos naturais, trajetórias de vida, dimensões materiais e imateriais da constituição
organizacional das comunidades, processos de territorialização, enfim, envoltos numa
dinâmica característica do mundo rural amazônico.
A vida social na comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II não
foge destas características, sua constituição organizacional enquanto comunidade, suas
representações da historia de vida de seus moradores, as dimensões de suas práticas
socioculturais, do cotidiano, as atividades econômicas que caracterizam a comunidade, são
reflexos de um mundo vivido que nos possibilitam demonstrar o cotidiano do mundo vivido
32
no lugar, sua relação com as atividades do próprio mundo do trabalho desenvolvidos no local,
e sua conexão com demais dimensões da vida cotidiana.
Pensar a denominação comunidade como objeto de reflexão é tratarmos para além de
uma compreensão da autodenominação afirmativa que muitas vezes os sujeitos envolvidos
acabam tomando, é compreendê-la enquanto categoria sociológica de constituição das
relações sociais estabelecidas no processo de construção e demarcação das fronteiras
societárias, enquanto conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e de espaço,
seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo,
enquanto corpo social, caracterizado pelo modo de vida baseado em normas comuns.
Apesar de o termo envolver sinônimos como “sociedade, “vizinhança”, pode ser
pensado como um grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que se servem de
meios comuns para lograr fins comuns (FERNANDES, 1973).
Assim, os interesses comuns que constituem a formação de grupos humanos podem
estar relacionados com diversos aspectos: relações familiares fundamentados no patriarcado
e/ou na gerontocracia, religião, política, trabalho, a vida e posse do usos dos recursos naturais
disponíveis em seu meio envolvente, desta forma se estabelecem enquanto agrupamento
humano economicamente organizado (ARAÚJO, 2003).
O caráter da organização familiar se transfigura sendo a instituição-base mais
importante das comunidades rurais amazônicas, neste sentido, o compartilhamento de
heranças culturais manifestas nos locais são reflexos de possíveis formas de interpretações
sobre as normas e valores que se condicionam a cada região ou local.
A dimensão do espaço social, da territorialidade, é um dos fatores condicionantes
para a reprodução, ou seja, para a objetivação da realidade de um modo de vida, não só em
seu sentido físico, por exemplo, na visão de que existe, nas comunidades rurais da Amazônia,
um sentimento de pertença, nas ocasiões de comemorações públicas, nos dias dos Santos
33
(WAGLEY, 1988,) aos quais as populações de determinada comunidade se referem como
“nossas” as festas e comemorações em oposição aos “outros”, às pessoas que vivem “fora” da
comunidade ou aqueles que não usufruem de determinados recursos compartilhados pelo que
compreendem sua dinâmica e significado, e que detêm um código de conduta linguístico,
simbólico, repleto de denominações locais e comportamentos.
A disputa de espaços não somente territoriais, através de demarcações não só físicas,
mas também simbólicas, de determinadas comunidade, compreendem as dimensões
constitutivas do modo de pensar as relações sociais que direcionam o cotidiano local e,
sobretudo, que delimitam, demarcam, instituem e configuram a relação entre as comunidades,
através de seus laços sociais.
Neste sentido, pensamos em Nossa Senhora das Graças como uma comunidade, para
além da autodenominação de seus sujeitos, como sendo dotada pelas singularidades que
caracterizam os grupos sociais rurais da região amazônica, onde a vida exerce uma
complexidade que não envolve só o homem, e sim o homem e o espaço de vida que se define
como território e como lugar de exercício de suas ações como ser político.
1.1 História socioambiental da comunidade Nossa Senhora das Graças
O processo histórico de ocupação das áreas de várzea da região amazônica
possibilitou, ao longo de séculos, uma heterogeneidade de modos de vida. O ambiente e as
populações humanas se reconfiguram em um processo diversificado que combina inúmeros
elementos do espaço e da diversidade da cultura humana. A formação histórica dos grupos
sociais rurais da região são frutos do encontro de culturas seja de populações locais,
ameríndias, seja do colonialismo europeu em um dado momento, seja da recente presença
nordestina do período econômico da borracha. Estes últimos caracterizam veementemente o
modo de vida da várzea, sobretudo nos aspectos condizentes às atividades do trabalho (na
implementação de técnicas de cultivo, pesca, etc.), nas crenças, no forte sentimento de
34
religiosidade, os costumes alimentares e como afirma Diegues (2002) em “uma grande
dependência dos recursos naturais, acabando por se obter um profundo conhecimento dos
ciclos biológicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e uma
linguagem específica, com sotaques e inúmeras palavras de origem ameríndia, constituindo-se
como populações de determinados conhecimentos específicos, e por assim dizer,
tradicionais”, o que constrói o próprio processo de sociabilidade das relações sociais no
desenvolvimento e constituição das comunidades.
Quando se trata do rio Solimões, a influência na ocupação de suas margens por
grupos sociais não indígenas está ligada em um momento mais recente, diretamente aos
ciclos econômicos da região, à borracha, à juta e malva, que marcam ao mesmo tempo a
falência das políticas de desenvolvimento adotadas para a região, a expansão da fronteira
colonizadora por grupos sociais de diferentes áreas do país, sobretudo nordestinos; o
deslocamento e a ocupação humana mal planejada na região, que fizeram das várzeas dos
rios, último reduto das estratégias de subsistência por meio de sua posse, em busca de
melhores condições de vida pelas oportunidades que as atividades do trabalho rural e uso
dos recursos disponíveis apresentavam de antemão.
A localidade denominada Costa do Pesqueiro II possui uma historicidade que
remonta até antes a própria formação da comunidade evidenciada, haja vista que Nossa
Senhora das Graças está situada numa área bastante conhecida onde o desenvolvimento das
atividades pesqueiras possui importância considerável para o município de Manacapuru e
para a região, onde é possível pensar que a denominação da localidade está ligada ao
período colonial quando o exercício das atividades pesqueiras estava ligado à criação dos
chamados pesqueiros reais, que visavam abastecer um mercado específico.
A Costa do Pesqueiro, onde está situada a comunidade estudada, possui uma
história de ocupação muito antiga, antes mesmo da formação da comunidade Nossa
35
Senhora das graças que, de acordo com relatos obtidos em campo, passaram a ocupar o
lugar de forma a se organizarem em famílias advindas de diversas partes da região, em
geral, o perfil das famílias mais antigas é marcado por história de vida de pessoas que
trabalhavam para os patrões da borracha nos seringais do alto rio Juruá no início da década
de 60.
As condições de vida relatadas pelos entrevistados indicam a dificuldade de
sobreviver em função de relações de trabalho marcadas pela exploração do freguês pelo
patrão, pela intensificação da jornada de trabalho semiescrava e pela relação de poder que
por hora instituía uma violência física e simbólica, demarcando os campos do
autoritarismo nos seringais.
[...] A vida no [rio] Juruá era muito boa também, só era ruim porque as
pessoas eram sujeitas aos patrões. A pessoa andava na mata, meu marido
saía [...] uma hora da madrugada, pra cortar seringa, pra chegar quatro horas
da tarde, sem vim em casa, levava a boia dele, água, tudo. Aí quando
chegava ia defumar aquela borracha, coitado do freguês que vendesse menos
de um quilo pro patrão! Lá era uma fartura que a gente não comia quando
era mês de julho tinha íaçá; mês de agosto, tracajá; mês de setembro,
tartaruga. Era uma fartura imensa no (rio) Juruá, muito bom, mas resultado é
que a gente não tinha nada. Era tudo do patrão. Aquilo ali se tu fosse se
mudar, tinha que deixar a casa. Aquilo ali já era pra outro que o patrão
colocar. O patrão não deixava vender, ficava pra outro que o patrão fosse
colocar. A pessoa era subjugada [...] (C. P., 72 anos, moradora a 40 anos da
Comunidade Nossa Senhora das Graças).
As relações pessoais, as condições de ocupação e de trabalho foram se
desenvolvendo a partir da busca por um pedaço de terra para morar; neste sentido, a noção
de possuir terras significava ter as condições de reprodução da vida, de consolidar-se,
como no caso das primeiras famílias que detinham grande parte de propriedades ao longo
do Solimões, revelando os modelos mais recentes de uso e ocupação do solo nestes locais:
[...] Aqui não, a gente tem o que é da gente, se quiser vender vende, se quiser
dar dá. Nós comprava e vendia aí na vila, tinha uma casa que comprava,
ninguém tinha patrão. Patrão assim, porque a gente compra uma mercadoria,
e para muitos o dinheiro não dava pra pagar tudo. A gente comprava no
fiadinho. A gente considerava patrão né? Porque quando eu cheguei aqui eu
36
já trazia quatro filhos. Eu tinha uns trinta e tal anos, a gente trabalhava
arrendado logo quando chegamos, porque ninguém tinha com que comprar
uma terra pra ser da gente. A gente pagava pro dono parte da terra que nós
tinha [...] Quem arrendava era o compadre Zé Barroso, da família Barroso.
Quando nós chegamos aqui eles já tavam. Isso aqui tudo era deles, esse
terreno que eu moro, centos e tantos metros que ele me vendeu aí, do marido
da comadre Dadá, esse aqui extremado comigo também era dos Barroso, eles
tinham muita terra. Por que foram os primeiro morador né. Tinha também os
Carneiro, que era a família do Zé Carneiro, o velho Raimundo Carneiro, ele
é antigo aqui, quando nós chegamos aqui ele era antigo (C.P, 72 anos,
moradora a 40 anos da Comunidade Nossa Senhora das Graças).
O processo de ocupação dos grupos sociais nordestinos na região amazônica
caracterizou não só o ciclo histórico de ocupação dos soldados da borracha, mas também
implementou, dentro da diversidade cultural da região, características singulares que
podem ser evidenciadas na linguagem, nos processos de trabalho, nas crenças religiosas,
enfim, no mundo do homem amazônida. Devido à vida difícil em função da estiagem que
assolava o nordeste do país, fazendo com que famílias e indivíduos em geral migrassem
para esta região em busca de melhores condições de vida e de trabalho, tornando o
processo de ocupação da área atual uma realidade.
[...] A gente não veio numa embarcação a motor, lancha, nem coisa
nenhuma, viemos a remo num batelão coberto de palha, baixando do rio
Juruá até aqui. Os primeiros moradores foram: Francisco Chagas de
Mendonça, Flávio Gomes da Silveira, Valdir Mendonça de Souza,
Raimundo Nonato Mendonça, Raimundo Cardoso de Lima, Raimundo
Nicolau da Rocha, Otávio Gomes da Silveira e Edmar Mendonça da Silveira.
Essas pessoas tinham uma grande relação de parentesco. A gente veio do
Alto Rio Juruá quase juntos, e mesmo assim quando chegamos aqui por
ironia do destino a gente veio morar no mesmo local, na mesma área, era tio
e primo, mas tinha pessoas estranhas, que não eram da família, mas eram
amigos de infância lá dos seringais. Nós viemos de um lugar muito
escondido na mata, quando chegamos aqui encontramos um lugar meio
arejado, meio limpo, mas só que desenvolvimento era o que nem de lá, as
mesmas posturas... Só que aqui a gente podia evoluir mais um pouco, porque
aqui já teve escola, né, aqui já teve um patrão, que você ia buscar coisa lá,
não era aquele patrão que nem de lá que quando, uma senhora tirava o saldo
e o patrão percebia, ele lhe cacetava. Isso não é história de trancoso, isso é
história verdadeira. O patrão mandava matar o camarada que tirou aquele
saldo. (S. M., 50 anos, agricultor, morador da Comunidade Nossa Senhora
das Graças).
37
Na comunidade pesquisada, as famílias nucleares são mais numerosas, devido ao fato
de a maioria dos filhos, após o casamento, passarem a viver em nova residência, construindo
assim, uma nova família e proporcionando o aumento no número de residências na
comunidade (Figuras 03 e 04).
A propriedade familiar é sucessivamente subdividida no processo de herança entre
herdeiros que são geralmente os filhos, de modo que cada pedaço de terra se torna pequeno
demais para cada núcleo familiar (WOLF, 1970). As famílias extensas atuam organizadas e de
forma cooperada nas unidades produtivas, na divisão do trabalho e na concentração dos
recursos.
Figura 03 - Percentual de entrevistados que
possuem filhos na comunidade Nossa Senhora das
Graças
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de pesquisa,
2009.
Figura 04 - Percentual de entrevistados quanto à
Situação do estado civil.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de pesquisa,
2009.
38
Figura 05 – Ocorrência dos tipos de
família nuclear e extensa na Comunidade
Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,
2008.
Figura 06 – Média de pessoas por família na
Comunidade Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,
2008.
As unidades de produção se estruturam da seguinte forma: algumas concentram
várias famílias nucleares em uma mesma residência, outras concentram estes núcleos
familiares em uma mesma área com as casas próximas umas das outras, com a casa dos pais
geralmente no meio das dos filhos (FRAXE, 2000). Na maioria das comunidades, geralmente
são os filhos homens que trazem as esposas para morarem juntos aos pais.
Nós viemos do Juruá, município de Carauari. Tem muita gente que veio do
Juruá, tem, pelo menos meu pai, minha mãe, meus irmãos, tudo viemos do
Juruá. O pai do compadre Sabá, era do Juruá. Porque ele já faleceu, só tem a
velha, a velha, mãe dele. Viemos por informação, porque meu compadre
Chagas Mendonça, pai do compadre Sabá, ele veio por intermédio da família
dele por aqui, ele veio e trouxe a minha nora. Era casada com meu irmão que
mora em Manaus, compadre Antônio, ela veio achou muito bom pra cá e
escreveu, por que nesse tempo não tinha telefone, não havia celular, só
negócio de rádio, aí ela foi, escreveu e disse que nos preparássemos, papai,
mais mamãe, que ela ia buscar, que aqui era muito bom pra morar, era em
frente a cidade, no que a pessoa quisesse comprar, tinha onde comprar.
Quando eu cheguei aqui essa cidade (Manacapuru) tinha poucas casas, só
era caminhos, como diz ramal, era poucas casas, a casa maior que tinha era
do finado Zeca Ventura, que ensinava um remedinho pra gente, consultava,
mas esse já morreu. Aí nos viemos, em nossa canoa grande, batelão,
vendemos umas coisas, aí o papai mais o compadre Manel, vieram no
batelão no reboque do Batistinha, nesse tempo era um motor grande, então
39
chegamos e ficamos por aqui, cada um comprou seu local, um pedaço de
terra pra morar, meu marido comprou esse outro aqui do compadre Zé
Barroso, compadre Manel comprou um que era do Deusdete (L. P. C. 70
anos, moradora da Comunidade Nossa Senhora das Graças).
A história de vida, da jornada travada pelo objetivo de assentar-se, das formas de
deslocamentos de um lugar para outro, são relatadas de maneira pormenorizadas nas palavras
daqueles que possuía esperanças no trabalho de recomeçar a vida em outros lugares, também
revela um pouco da constituição dos agrupamentos familiares e das disposições da estrutura
de parentesco muitas vezes encontradas em comunidades de várzea, estas relações aliados ao
apadrinhamento e aos sistemas de casamento, onde encontramos geralmente membros de
diferentes famílias que habitam o mesmo lugar e se casam, reproduzindo a manutenção da
estrutura fundiária e a relação de posse das áreas de uso comum da comunidade, a
demarcação dos terrenos, das casas, etc...
As ações constitutivas do espaço de vida dos grupos sociais, dos moradores da
comunidade que se instalaram no local, são reflexos das transformações cotidianas, as
mudanças, visões de mundo que fazem hoje da comunidade um modo especifico de serem
observadas por seus moradores diante de diversas condições econômicas, políticas, culturais,
religiosas, etc. Ficando evidente as ações do indivíduo na ocupação do território que hoje
formam a comunidade e na transformação da paisagem natural realizada pelas atividades de
trabalho na agricultura de subsistência e comércio:
[...] Foi chegando as famílias e juntando. Pode-se dizer que a comunidade é
uma família só. O que é diferente é duas ou três casas, porque a família do
compadre Valdemar já é meu primo, então entrou na minha família. Porque
o que não é da minha família é o pessoal da comadre Dadá e o pessoal do
compadre Zé Barroso [...] Naquela época eu plantava roça, milho, melancia,
feijão, juta, nós plantava de tudo, eu dava o maior duro, com a força de
Deus, pra criar meus filhos. Tive nove filhos e me julgo feliz porque tenho
essa idade e os meus filhos tão tudo ao redor de mim. Criei com sacrifício e
Deus me deu força de dar a luz aos meus filhos. Deus não me tirou nenhum.
Aqui era mata, daqui de onde eu tô, pra chegar na Ressaca do Pesqueiro, até
nos terrenos dos Barroso, não tinha flutuante não tinha morador, era
mulateiro, era tudo quanto era pedaço de pau. Aí foi o tempo que foi caindo,
foi caindo, aí pessoal foi comprando dele e abrindo, fazendo terra, roçado, e
agora tudo é campo. Mas isso aqui era uma mata danada quando nós
40
compremo, aqui pra trás. E estamos vivendo por aqui até hoje, eu acho que
eu morro e os filhos ficam por aqui, porque não adianta eles estarem por aí
(C. P., 72 anos, moradora a 40 anos da Comunidade Nossa Senhora das
Graças).
As transformações da paisagem natural revelam um fator importante de mudança,
das características que demarcam as comunidades, as formas de uso de seus recursos, o
conhecimento de determinadas espécies locais que faziam e fazem parte da complementação
alimentar e do uso de seus produtos entre os moradores da comunidade, revelando, sobretudo,
o conhecimento local no uso destes recursos e a dimensão territorial que se constitui na
memória dos mais antigos, que percebem as mudanças físicas na comunidade e como se
refletem atualmente nos fatores produtivos:
[...] E aqui quando nós chegamos aqui, a beira do rio era lá onde tava essa
praia, pro lado de lá. Nós plantávamos todos nessa área aqui, juta, juta
mesmo, não era malva não, tinha milho, juta, roça, feijão, melancia, enfim.
Quando nós chegamos aqui, a mata era aqui detrás da cozinha, era macaúba,
louro mamuí, castanhola, castanharana, piranheira, enfim, madeira de lei.
Mas não sei o que aconteceu que em 64 houve um fogo muito forte que
danificou toda a mata ao redor e nunca mais virou mata alta. O sinhor vai
achar aqui, se nós andar aqui, uns 3 km é que nós vamos achar mata alta,
porque daqui dessa capoeira, o sinhor sai numa campina, que só é arrozal,
buritizal, capim, vai ver muita caveira de pau de lei mesmo, âmago, que tá
assim por cima um do outro. Toda aquela madeira morta... E quando foi em
68 e 69 aqui atrás, houve uma grande enxurrada, que os lagos não secaram,
aguentaram aquela água que matou todo aquele araçazal, parecido com essas
barragens que fazem hidroelétrica. Mas foi a natureza que fez isso, tornando
campo, onde o pessoal criam muito gado aí agora. E aí a mudança foi essa,
essa terra caiu, o barranco levou, o rio levou, aí nós viemos botar roçado pra
cá, mas já na capoeira, ninguém derrubou mata mais não. Não existia mais
mata, só capoeira já deixada do fogo, daquela época. (S. M. 50 anos,
agricultor e morador da Comunidade Nossa Senhora das Graças).
Estas informações possibilitam uma interpretação dos fenômenos decorrentes das
transformações que se sucedem na comunidade Nossa Senhora das Graças. Pois, como
resultado da última grande enchente ocorrida em 2009 no estado do Amazonas (superior à
maior cheia antes registrada, no ano de 1954), este período marcou uma mudança estrutural
no modo de vida dos habitantes das áreas alagadiças de várzea na região, sobretudo, no rio
41
Solimões, onde está localizada a comunidade. Assim como em tempos anteriores, como
relatado na entrevista acima, estas mudanças serão reflexos de uma constituição simbólica
daquilo que representa fisicamente a comunidade nos dias atuais.
A criação da comunidade é resultado de uma articulação de fatores para além da
ocupação humana de determinada porção de terra, é, sobretudo, reflexo de processos
históricos e políticos, da apropriação e legitimidade identitária em ocupar e manter um lugar
de habitação, de estabelecer posse e usufruto da terra. A participação dos movimentos
religiosos na Amazônia, através da Igreja Católica, contribuíram na formação e organização
das comunidades através de incentivos à formação política nas localidades e na construção da
própria noção de comunidade, muito utilizada pelos movimentos eclesiais de base (MEBEs).
Contudo, a formação religiosa dos grupos locais contribuiu no sentido de manter e reproduzir
as relações de sociabilidade determinantes ao padrão de constituição da comunidade enquanto
grupo social coeso, a figura dos Santos católicos, das novenas e missas, foram elementos
cruciais na consolidação das relações intra-comunitárias que culminaram na formação da
comunidade:
[...] A minha tia criou no final dos anos 60 uma novena em honra de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro e dali foi nascendo de acordo com a fé das
pessoas as celebrações [...]. Com a vinda da equipe pastoral, padre Soares,
chamou atenção das famílias e perguntou: “por que não faz uma
comunidade? Que bicho é esse? Que bicho é a comunidade?” – aí ele deu a
idéia, aí a pessoa começou a se reunir já em termo de comunidade, pra ter
isso, pra ter uma comunidade tem de ter uma diretoria, aí as pessoa foram
falando: o fulano dá pra ser presidente, o cicrano dá pra ser o tesoureiro... E
assim foi nascendo devagar. (L. M. morador da Comunidade Nossa Senhora
das Graças).
[...] Quando começou a comunidade, o pessoal dizia: ah! que comunidade,
muitos disseram o seu Pedro que veio de lá e formou a comunidade, porque
lá pra cima ele já tinha uma comunidade. Aí começaram a orientar nós, e
ficou assim a comunidade, as pessoas ajudando uns aos outros, fazendo o
roçado e agora quase não se vê ajuri. As casas antigamente eram cobertas de
palha, não tinha aluminho e nem de brasiliti, tudo era de palha. Tinha uma
festa da comunidade, em abril, derradeiro sábado de abril, uma festa
medonha, embalava muita gente. As novenas eram na Igreja, toda vida teve
igreja, quando se acabou a do papai, fizeram aí no centro da comunidade. Se
reunia nós todos naquela igreja pra celebrar o culto, celebrar a novena,
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A minha irmã dizia, eles podiam ter
42
botado pra padroeira sendo a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, porque
nós já vinha trazendo a novena todos os dias, todas as sexta-feira, aí
mudaram pra Nossa Senhora das Graças, eu não sei por qual motivo, porque
quiseram. (C. P. 72 anos, moradora há 40 anos da Comunidade Nossa
Senhora das Graças).
Compreenderemos esse estado de coisas se considerarmos a estreita ligação das suas
representações religiosas com a vida agrícola, a caça, a pesca e a coleta, e de ambas com a
literatura oral. Os sentidos dados à compreensão das festas como elementos de sociabilidade,
por exemplo, demarcam as transformações socioetárias entre os habitantes e a sociedade
envolvente.
Na medida em que a comunidade busca os mecanismos de interação e sociabilidade
através das festas de santo, cultos religiosos, procissões e demais elementos que agregam os
fatores religiosos com outras dimensões da vida, tende a estruturar enquanto habitus as
condições de reprodutibilidade social das relações intracomunitárias, estabelecendo uma
ordem social8 através de códigos de compreensão internos aos valores e modos de agir.
Para que possamos compreender os aspectos socioeconômicos da constituição da
comunidade Nossa Senhora das Graças é necessário conhecer os padrões de organização
familiar que se expressam no mundo vivido, assim podemos relacioná-los aos tipos de
famílias existentes e, desta forma revelar um pouco da organização sociopolítica local.
De acordo com Wolf (1970), devemos considerar que existem diversos tipos de
famílias, mas que estão estruturadas basicamente em nucleares (compostas exclusivamente
pelos cônjuges e sua prole) ou extensas (que agrupam em uma única estrutura outras famílias
nucleares em número variado), para Chayanov (1974) a família se expressa como unidade de
produção e como unidade familiar, baseada no conceito da unidade de exploração agrícola
8 Neste sentido, Weber (1982) afirma que as ações sociais quando tendem a uma aceitabilidade coletiva, seja
qual forem seus fins e objetivos obedecendo a dada racionalidade, estruturam os tipos de relação social em
determinados contextos. Assim, estas relações procuram se legitimar por uma ordem social estabelecida pelos
tipos de dominação presentes em cada sociedade, demarcando as estruturas sociais, neste caso móveis ou fixas,
estabelecendo-se por meio de aspectos sociais tradicionais, religiosos, carismáticos, etc. ao passo em que se
apresentam reais a determinado grupo social.
43
como unidade econômica familiar na qual a família, como resultado de seu trabalho de um
ano, recebe uma simples remuneração do trabalho e mede seus esforços com relação aos
resultados materiais obtidos, reflexos de sua divisão e da suas ações, através de um trabalho
composto de objetos de produção – matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de
trabalho humana essencialmente familiar, a unidade de produção familiar produz e reproduz
suas condições de existência (WITKOSKI, 2007).
[...] Aqui trabalha em família, nós trabalha em parceria, com as minhas
filhas, nós trabalha e divide, tudo é de todos, agiliza o trabalho o bem estar é
mais contribuintes um pro outro, [...] Em tempos atrás era mais forte, se
juntava de 18 pra trabalhar. Agora nem todos, hoje todos já tem uma
profissão diferente. Por exemplo, hoje na agricultura são poucos que tá, a
maioria é mais pescador, só os mais velho, aí fica mais difícil. Mas na época
da comunidade, uns 25 anos atrás, nós trabalhava de mutirão em roçais, em
semeação, em colheita tanto de juta, milho ou arroz. E com o tempo foi se
acabando. No meu ponto de vista não se tem mais mutirão porque acho que
dividiu as profissão né? Hoje na área da pesca só tem de ajuda o comprador
do peixe e o pescador, se esse trouxer o peixe pra ele. Aí ele ajuda: compra
uma canoa pra ele pagar; ele só vende pra ele ficá dependente [...] Aí por
isso que eu digo que mudou. Cada um que se ajudava, se dividia tantas
tonelada de arroz de milho, o lucro era do trabalhador, mudou muito. Era
uma forma de cooperativismo. Eu achei que tinha muito mais de facilidade,
mas hoje eu sinto assim que tem gente que num ajuda (E. S., 55 anos,
morador da Comunidade N. S. das Graças).
A relação de trabalho entre os membros da família extensa ou entre os moradores são
denominadas de meia ou parceria segunda a qual são divididos os resultados do trabalho
entre os membros pertencentes à família extensa. Estes tipos de transação geralmente são
estabelecidos através de contratos verbais pelos chefes de família.
Nesse sentido, Fraxe (2000) afirma que, além da cooperação familiar, a capacidade
de trabalho acaba sendo complementada pela ajuda mútua entre os moradores e as
comunidades rurais, onde os mesmos se organizam para o trabalho de várias maneiras, as
principais são o mutirão, troca-de-dia e a parceria ou meia, evidenciadas na fala dos
moradores locais ao mesmo tempo em que percebemos suas mudanças, mostrando como de
fato tais características se legitimam, através de um processo onde a cooperação no trabalho
44
irá pressupor várias especificidades. A importância destas relações no trabalho cria
mecanismos que reproduzem a subsistência biológica e social do habitante local além de
fornecer um fundo cerimonial que remonta um processo de sociabilidade e construção
simbólica calcadas no modo de divisão do trabalho e no desempenho da família (WOLF,
1970).
De acordo com Wolf (1970), a unidade camponesa não é somente uma organização
produtiva formada por um determinado número de mãos prontas para trabalhar nos campos;
ela é também uma unidade de consumo, ou seja, ela tem tanto bocas para alimentar quanto
mãos para trabalhar. Assim, na comunidade também podemos verificar que o discurso
traduz-se no fato de que a possível relação que se estabelece entre as atividades desenvolvidas
tanto na pesca quanto em outras atividades que complementam a renda e a subsistência das
famílias pode ser evidenciada aqui pela quantidade de força de trabalho adquirida pela
família, traduzindo-se nos filhos e agregados.
A percepção sobre as transformações no mundo do trabalho é evidenciada nas falas
locais demonstrando fatores de dinâmica nas atividades tradicionalmente desenvolvidas entre
as famílias dos moradores locais. As mudanças na estrutura socioprodutiva, na relação entre
os trabalhadores bem como nas transformações das atividades que historicamente marcaram a
formação socioeconômica da comunidade Nossa Senhora das Graças, são evidenciadas na
fala dos interlocutores demonstrando elementos pertencentes ao modo de vida, ao passo que
caracterizam os fatores de desequilíbrio na apropriação dos recursos naturais e nas
transformações do trabalho coletivo, em comunidade.
Novos elementos estão inseridos no processo de formação e organização da
comunidade Nossa Senhora das Graças, indicando, para além do desenvolvimento de uma
forte organização comunitária, a capacidade de mobilização das lideranças locais. O
fortalecimento político das comunidades rurais da região é resultado da intensificação dos
45
processos de legitimidade política, pela busca da participação organizada e da constituição de
identidades sociopolíticas, aumento do capital social na luta pela regularização de seus
direitos, possuindo, desta forma, o objetivo de alcançar maiores benefícios infraestruturais
que atendam uma demanda comunitária, como educação, trabalho e outros elementos:
[...] Hoje em dia a nossa comunidade possui Associação de Pais e Mestres,
que é da escola e tem a Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural
dos Produtores e Moradores da Comunidade Nossa Senhora das Graças. O
estatuto já foi feito, a comunidade foi fundada oficialmente de acordo com as
leis em 31 de maio de 1974 e organizada no dia 29 de dezembro de 1997,
originada de movimento coletivo de produtores e moradores daqui da
comunidade. O estatuto tem vários capítulos, ele foi registrado no cartório de
Manacapuru e a comunidade está oficialmente, pode dizer que ela tem uma
organização formal através da sua regulamentação pelo seu estatuto e de
suas ata. A ata da formação foi protolocada no II Registro de Títulos lá no
Cartório de Manacapuru no dia 15 de agosto de 2006. (S. M. 50 anos,
presidente da associação e morador da Comunidade Nossa Senhora das
Graças).
A percepção sobre as compreensões de mundo vivido, onde o passado serve como
referência de análise para justificar melhores condições de vida, condições mais benéficas que
se fazem presentes na fala dos moradores, repercutem em suas analises sobre as mudanças
ocorridas na comunidade:
[...] Nós entendemo a comunidade como um lugar que tenha união, escola,
igreja, sede. Onde os agricultor e pescador possam congregar juntos, ajudem
uns aos outros, como foi o caso da preservação do Lago Tamanduá. (L. M.
morador da Comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] Ainda hoje, eu digo, essa comunidade é abençoada por essas coisas,
porque no tempo, quando faziam a festa da comunidade, botavam torneio,
tudo, graças a Deus nunca houve uma discussão, por isso, que eu digo, a
gente julga feliz nossa comunidade, porque, tem comunidade que brigam e é
aquela coisa [...] (C. P. 72 anos, moradora a 40 anos da Comunidade Nossa
Senhora das Graças).
O depoimento dos sujeitos locais nos possibilita a compreensão da comunidade a
partir de inúmeras características, aos quais os fatores levantados indicam, em um contexto
mais amplo, a percepção do mundo cotidiano e vivido nas várzeas do rio Solimões. A lógica
de organização de diversos elementos, dentro de um panorama histórico, fez da ocupação da
46
Costa do Pesqueiro, um espaço de reprodução do modo de vida voltado para as atividades e
uso dos recursos disponíveis, como no caso da agricultura, da pesca e do cultivo de fibras.
As influências de grupos humanos diferenciados se reconfiguraram em vários
aspectos e possibilitaram um estilo de vida característico daqueles decorrentes de um processo
de ocupação mais recente com as transformações dos ciclos econômicos e, consequentemente,
dos grupos sociais locais, desta forma, marcados sobretudo pelas transformações do modo de
produção capitalista na Amazônia e os aspectos relacionados com as mudanças que
configuraram as relações de trabalho, como o rompimento com determinadas praticas
tradicionais, a aceitabilidade de outros modos de compreensão da vida social e de suas
atividades cotidianas.
As especificidades na formação da comunidade nos permitem marcar não só
regularidades, mas também especificidades da história da própria região. Algumas
características tipológicas são bastante exploradas na literatura sobre as comunidades
amazônicas e ficam explicitas nestes contextos descritos, por outro lado, não há como deixar
de refletir sobre a diversidade existente. A visão monótona de pequenas cidades ilhadas no
espaço e no tempo se rompe diante das várias possibilidades que se apresentam nos relatos
dos moradores destas comunidades.
Diferentes aspectos das relações de poder, da religiosidade, de instituições
tradicionais e dos novos desafios em relação a uma nova lógica de produção voltada para o
mercado citadino. Todos estes fatores perpassam de formas diferentes e específicas no
universo da comunidade.
A dimensão de expansão do modo de produção capitalista não só força os moradores
a redimensionarem suas atividades e a multiplicar o esforço físico, mas também tende a
atrofiar as formas coletivas de organização do trabalho (como as práticas de ajuda mútua
47
relatadas), amputando as possibilidades de uma sociabilidade mais viva e de uma organização
comunitária mais estável.
Entregue cada vez mais a si mesmo, o trabalhador é projetado do âmbito comunitário
para a esfera da influência da economia regional, individualizando-se, transformando suas
relações de trabalho e as relações sociais que derivam deste processo, bem como a própria
percepção sobre o uso dos recursos disponíveis. Condição de eficácia e, portanto,
sobrevivência, é a renuncia aos padrões anteriores e a aceitação plena do trabalho integral,
isto é, trabalho com exclusão das atividades outrora florescentes e necessárias à integração
adequada, como tanto relatava os moradores antigos e suas lembranças sobre a fartura nas
regiões onde habitavam.
Para sugerir esse processo, Cândido (1987) recorre a uma profunda análise da
realidade social brasileira, ao assinalar o fato de que, antes, o ajustamento dos grupos
tradicionais se dava em relação a um meio total, em que se absorviam de certo modo,
formando com ele uma espécie de continuidade. Enquanto isso, atualmente, o ajuste se dá
não em relação a este meio global e imediato, mas a vários, imediatos e mediatos, decorrentes
da fragmentação daquele e estabelecimento de novas relações com o mundo externo.
Nas experiências sociais da vida cotidiana relatada pelos moradores locais,
percebemos que o meio representava para o grupo uma totalidade, cujos limites coincidiam
com os da atividade e da mobilidade grupais. Havia entre suas atividades uma correlação
estreita, e todas elas representavam, no conjunto, síntese adaptativa das transformações da
vida econômico-social.
Assim, o trabalho agrícola, a caça, a pesca e a coleta não eram práticas separadas e
de significado diverso – mas complementares, significando cada uma por si, e todas no
conjunto, os diferentes momentos dum mesmo processo de utilização do ambiente mais
próximo. A representação da roça, das águas, do desbarranqueamento causado pelas
48
correntezas do rio, os matos e campos, encerrava-se numa continuidade geográfica e
construíam as representações da dinâmica varzeana de acordo com suas percepções sobre o
mundo vivenciado.
A história da comunidade nos é apresentada pelos próprios agentes construtores desta
historia particular que tanto se assemelha às demais histórias da formação dos agrupamentos
humanos na Amazônia, reflexos das condições que propiciaram culturas diferenciadas na
região, um mosaico de conhecimento refletido nos mitos, nas crenças, nas representações do
mundo, do espaço que se torna território para depois virar lugar, lugar de vida, lugar das
memórias, da constituição da organização socioeconômica, do estabelecimento das relações.
1.2 As formas de organização sociopolítica
Pensar sobre o processo de construção das relações sociais dos povos amazônicos é
tratarmos de compreender o complexo sistema de organização política, econômica e territorial
dessas comunidades, que refletem as condições de apropriação do espaço, de adaptabilidade,
e, sobretudo, de subsunção da natureza, mas na percepção de um espaço físico e simbólico,
social, no contexto onde se dão as relações, ou seja, no cotidiano dialético entre homem e
natureza e principalmente entre os próprios homens no sentido em que se verificam suas
práticas socioculturais.
A vida coletiva das populações amazônicas esbarra em condições sui generis de
existência, influenciada por inúmeros fatores socioculturais e ambientais. Nesse sentido, as
estratégias e formas de organização encontradas são determinadas pelas especificidades que
envolvem os grupos sociais locais. Podemos observar essas formas organizativas tanto no
âmbito das instituições criadas pelos próprios moradores – é claro que grande parte dessas
organizações teve influências externas como da igreja etc. – quanto da própria organização
social para a produção (trabalho).
49
O espaço comunitário enquanto produto social demonstra as relações sociais e o
estabelecimento das atividades humanas a partir dos diferentes contextos em que estas se
apresentam em seus múltiplos usos do espaço (seja do ponto de vista físico ou simbólico),
compreendido por nós como o palco onde se desenrolam as atividades articuladas pelos
grupos sociais em cada comunidade, entre a constituição das famílias existentes na mesma,
suas atividades e suas formas de organização.
Assim, as formas de organização presentes em Nossa Senhora das Graças aparecem
como estratégias institucionais locais de atuação política no sentido de se fazerem ouvidos,
lutar por condições dignas de existência. No processo de organização social das populações
que habitam as áreas rurais da região, a Igreja Católica, como afirmamos anteriormente,
possuiu e possui papel fundamental, foi a partir de sua atuação junto aos grupos sociais locais
que teve início o processo de organização dos núcleos rurais em comunidades na Amazônia.
Nota-se que o termo comunidade não possuía sentido algum aos habitantes das áreas
rurais da Amazônia antes da interferência da Igreja Católica no cotidiano dos grupos sociais
rurais. Assim, a ideia de comunidade na Amazônia ocorreu por influência da igreja católica
em sua missão pastoral de delimitar politicamente as regiões para o seu trabalho religioso.
Desse modo, percebemos o forte papel da instituição igreja no processo de
organização social na Costa do Pesqueiro II. Atualmente, não só as igrejas católicas assumem
esse papel, mas também as transformações sociopolíticas decorrentes das organizações
religiosas neopentencostais possuem importante papel na consolidação da vida política das
comunidades rurais.
Contudo, o mundo religioso e/ou a religião para as estes grupos sociais não são tão
somente um estado de espírito, mas uma forma de organização política onde as afinidades
religiosas são capazes de mobilizar os grupos sociais no sentido de reivindicarem seus
direitos.
50
Atualmente as organizações institucionalizadas por meios legais e burocráticos como
as cooperativas, colônias de pescadores e associações de produtores, ganham espaço surgindo
como um fenômeno social e garantem a participação política e legitimidade no processo de
obtenção de melhores condições de vida, demonstrando que o complexo sistema de
organização social dos grupos sociais das comunidades de várzea se intensifica e domina cada
vez mais a intermediação com a racionalidade do mundo moderno e as formas ditas
tradicionais de seus meios de vida, tal qual a importância da participação dos moradores
locais nestas organizações.
Quando se pretende estudar as manifestações culturais existentes nas comunidades
rurais, é necessário refletir sobre as tradições e costumes que se fizeram prevalecer em
determinados momentos históricos, considerando que as condições sociais e culturais mudam
com o passar dos dias, dos anos, das gerações, não se trata de lamentar a perda da
autenticidade das práticas culturais passadas, mas de entender como elas se manifestam no
presente, como se adaptaram às mudanças socioeconômicas no espaço. Assim nos é possível
Figura 07 - Perfil da participação comunitária em organizacoes
sociais locais.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
51
fazer uma breve caracterização das organizações, dos lugares, das praticas que envolvem os
moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II.
A centralidade da comunidade é formada pela igreja, pela escola, sede comunitária,
pela casa do líder comunitário e pelo campo de futebol, como lugares que propiciam construir
e reconstruir os laços de sociabilidade entre os moradores, e nos indicam a participação em
assuntos de interesse comum aos envolvidos.
A organização espacial da comunidade também pode ser compreendida pela
distribuição das atividades produtivas e pelos usos dos recursos naturais disponíveis no
entorno das moradias, dos ambientes e da formação do seu território.
Estas dimensões delineiam o mundo vivido, e reproduzem o modo de vida rural da
várzea. O trabalho é indissociado do mundo vivido, e por ser uma das representações do real,
Figura 08 – Croqui da Comunidade Nossa Senhora das Graças. Nota-se no croqui a divisão espacial
das áreas onde os moradores desenvolvem suas atividades, assim como a centralidade da própria
comunidade – por exemplo, a casa do Presidente da Comunidade (Sebastião), a igreja, a escola e o
Centro social.
Fonte: BENIZ, Gabriel, Arquivo do Núcleo de Socioeconomia, 2006.
52
ele condiciona as relações de sociabilidade, a disposição racional da organização e uso dos
recursos, e aparece como elemento constitutivo da vida e do espaço que compreende a
moradias dos habitantes da comunidade.
A escola da comunidade, com a denominação de Escola Municipal Getúlio Vargas,
está localizada no centro da comunidade entre a igreja e o centro social. A escola foi
construída pela Prefeitura Municipal de Manacapuru, atualmente vem passando por reformas
estruturais que aumentaram consideravelmente seu espaço, pois antes possuía apenas uma
dependência considerada desconfortável, na qual também estava localizada a biblioteca.
Durante o inverno (período de chuvas intensas na região), os alunos sofrem com as
acomodações da escola, uma vez que costuma entrar água pelas portas e janelas. Atualmente,
há duas professoras lecionando na escola, sendo que uma possui ensino superior incompleto e
Figura 09– Croqui georeferenciado das moradias e das atividades desenvolvidas na comunidade.
Fonte: Centro de Excelência Ambiental da Petrobras, CEAP/PIATAM, 2007.
53
outra possui ensino superior completo. Além das professoras, há uma merendeira voluntária
que serve o lanche para os estudantes. Em 1999, foi criada uma Associação de Pais e Mestres,
reunindo todos os meses os pais e mães dos alunos.
Figura 10 – Escola e centro social da Comunidade Nossa Senhora
das Graças.
Fonte: RAPOZO, 2008.
A comunidade Nossa Senhora das Graças não possui posto de saúde, tal como é
possível observar na maioria das comunidades da Amazônia, no entanto, possui agentes de
saúde. Estes agentes têm a função de fornecer medicamentos para as pessoas, orientá-las no
uso desses medicamentos, bem como nos cuidados necessários com a saúde, desde a higiene
doméstica com as crianças e idosos.
Além dos problemas de saúde, outras dificuldades são recorrentes como os
problemas relacionados à atividade produtiva e comercial, uma vez que os moradores ainda
dependem do antigo sistema de comercialização, no qual o atravessador representa o principal
obstáculo. A comunidade não possui energia elétrica regular, existe uma pequena usina
termelétrica abastecida por combustível cedido pela prefeitura local, funcionando somente 5
horas por dia das 18:00 horas às 23:00 horas que beneficia somente uma pequena parte das
casas localizadas no centro da comunidade, as demais moradias ou não possuem nenhum tipo
54
de energia elétrica ou se utilizam dos pequenos geradores a diesel de uso particular, os
denominados motores de luz.
Figura 11 – Usina termelétrica local.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Possuindo uma infraestrutura razoável quando comparada com outras comunidades
pesquisadas, Nossa Senhora das Graças apresenta a existência de sede comunitária, escola,
energia elétrica parcial, capela religiosa. O caráter de organização e disposição dos grupos
familiares também reflete a organização formal e informal em Nossa Senhora das Graças.
Quando a família se mantém num mesmo local ou comunidade, cuja base de organização do
grupo é a vizinhança, as relações de parentesco e compadrio formam a organização social
baseada nas relações interfamiliares, esta organização pode ser entendida como grupo local.
Esta caracterização organizacional foi recorrente no processo de formação da
comunidade Nossa Senhora das Graças, na medida em que a maioria das famílias que habita a
comunidade migrou na década de 60, por influência de uma família, constituindo uma
comunidade com uma nova estrutura organizacional, adaptando-se e transformando-se a esta
nova realidade socioambiental.
55
É possível, dessa maneira, verificar que o processo que leva a ação das atividades de
organização e participação política dos moradores de Nossa Senhora das Graças se concentra
na questão das atividades produtivas que se relacionam com o vínculo comunitário; e, para
isso, a importância de estabelecer a procura por melhores condições de vida, a igreja, a
associação de pescadores, a escola, são elementos significativos e estruturais que congregam e
produzem o direcionamento coletivo das questões relativas a seus modos de vida.
A prática das pescarias contribui na produção e significação dos sentidos,
organizando as relações humanas e sua relação com a natureza. Ocorre, portanto, o processo
de junção de várias informações sobre elementos da natureza que vão orientar as práticas
produtivas e, neste caso, colabora para o desenvolvimento das atividades sociais.
A vida social na comunidade é preservada com os cultos religiosos católicos e
evangélicos realizados aos domingos, com os batizados, casamentos e eucaristia, sem
demonstrar explicitamente uma diferenciação ou problemas relacionados com o credo
religioso local dos moradores
Figura - 12 Situação sobre a participacao religiosa dos
comunitários.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
56
Reuniões na sede da comunidade ainda são realizadas com frequência pelo líder da
associação, no entanto, práticas antigas como os mutirões e ajuris não são mais encontradas
com frequência na comunidade quando se fala das atividades relacionadas à agricultura,
diferente da pesca, onde este tipo de relação ainda é importante como veremos.
Figura 13 – Igreja católica da Comunidade Nossa Senhora das
Graças, onde são realizados os cultos.
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 14 – Reunião no centro social da Comunidade Nossa
Senhora das Graças para explicar sobre o que seria a pesquisa e
seu desenvolvimento.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
57
Embora não tenha um clube de mães na comunidade, suas moradoras costumam se
reunir para a prática de atividades artesanais, muitas costumam confeccionar cortinas, redes e
peneiras. Esta atividade costuma ser realizada apenas para o uso doméstico, não sendo
destinada à comercialização.
As atividades realizadas e organizadas entre os jovens são, na maioria das vezes,
práticas esportivas, torneios de futebol masculino e feminino além de vôlei. De acordo com a
professora da Escola Getúlio Vargas, os jovens da comunidade Nossa Senhora das Graças
estão perdendo cada vez mais o interesse em permanecer trabalhando e estudando na
comunidade, muitos estão se preparando para ingressar nas universidades, enquanto outros
possuem planos de ingressar na carreira militar ou simplesmente ir a Manaus em busca de
emprego.
Por essa razão, os tradicionais festejos realizados na comunidade estão perdendo
cada vez mais o brilho, embora ainda sejam realizadas festas religiosas como: as festas em
homenagem a Nossa Senhora das Graças e São Francisco. No entanto, estas festas não contam
mais com a participação significativa dos moradores da comunidade, muitos perderam o
interesse em participar, uma das razões é uso de bebidas alcoólicas e músicas altas, salientam
os moradores.
[...] em outros tempos, as festas possuía maior representatividade, eram
organizadas por todos os moradores, de forma que raramente havia conflitos
e discórdias. (O. M. morador da comunidade Nossa Senhora das Graças)
Sem dúvida, muitas mudanças podem ser verificadas nas comunidades amazônicas,
buscamos constatar a persistência ou não destas transformações, uma vez que estas
informações constituem instrumentos imprescindíveis para entender a complexa organização
sociocultural das comunidades amazônicas.
O interesse dos estudos relacionados à dinâmica cultural está no entendimento de
como as manifestações culturais são produzidas e não apenas quais são elas. Na comunidade
58
Nossa Senhora das Graças as famílias estão perdendo cada vez mais o interesse pelos festejos
comunitários religiosos da igreja católica, embora grande parte das famílias locais seja
identificada como católica. Uma das razões está no fato de os festejos não serem organizados
com os mesmos ritos, entusiasmos e tradição de antes, a falta, pode ser justificado pela
ausência e/ou participação diminuta dos jovens nestes eventos sociais.
No entanto, outros tipos de festividades são realizados na comunidade, tendo outros
grupos participantes, as novas gerações são motivadas para a realização de novas atividades.
De acordo com um dos moradores, as festas sociais continuam sendo realizadas na
comunidade, no último sábado do mês de abril, envolvendo inúmeros elementos, os times de
futebol, a Igreja, as festas dos Santos. Estas festas costumam ser organizadas pelos jovens da
comunidade, uma vez que o futebol ou a pelada, como eles mesmos dizem, constitui um dos
passatempos preferidos dos moradores, pois eles se reúnem todos os dias para a realização
desta prática esportiva.
As manifestações sociais da comunidade, traduzidas aqui por meio de sua
organização para as atividades desempenhadas, caracterizam a reprodução social de seus
costumes e apresentam-se como habitus (BOURDIEU, 2003) enquanto principio criador, re-
criador e estruturante da organização comunitária, refletindo o nível de atuação e participação
dos moradores.
A vida social em Nossa Senhora das Graças atualmente, é reflexo do
desenvolvimento histórico que propiciou, por meio das forças internas, sociopolíticas,
culturais e econômicas, a dimensão como a comunidade se apresenta para os outros e como
ela representa a si mesma por meio do mundo vivido por seus agentes sociais, as famílias
como unidades de produção e unidades de vida compartilhada, os moradores que
desenvolvem suas atividades por meio do uso dos recursos naturais disponíveis, sem contar, é
claro, que, as representações, são atribuídas o simbólico, o imaginário, que se constituem
59
como fenômenos das ações materiais do real, da vida em seu sentido mais objetivo e
subjetivo, na constituição de um mundo relacionado com o mundo moderno (por se tratar que
a própria comunidade faz parte deste mundo), enfim na construção diária da vida.
No limiar destes processos, resulta dizer hoje que a comunidade Nossa Senhora das
Graças possui um raio de abrangência significativa quando se fala da organização das
atividades pesqueiras, e, sobretudo, quando se verifica o nível de participação política dos
moradores e trabalhadores da pesca. Eles são, em sua maioria, comprometidos e atuantes
como sócios nas representações políticas organizadas, dentro e fora da comunidade, como
verificamos na pesquisa, no caso de suas participações em entidades como na Associação dos
Moradores e Trabalhadores Rurais da Comunidade, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Manacapuru, na Colônia dos Pescadores de Manacapuru que servem como interface com seus
interesses comuns e acessíveis.
Suas ações demonstram o nível de organização e legitimidade política para com as
atividades exercidas na comunidade, pois tornam-se processos contínuos que levam à procura
de melhoria e soluções na qualidade de vida dos moradores na comunidade, e também
contribuem para a sua legitimação frente ao Estado em razão das suas atividades
profissionais.
1.3 Vida e Labor: A constituição das atividades humanas na comunidade
Nossa Senhora das Graças
As atividades desempenhadas pelos habitantes das comunidades rurais na Amazônia
apresentam complexos sistemas de organização em suas técnicas produtivas, permeadas por
relações de trabalho configuradas através de vínculos sociais, geralmente comunitários. Estas
condições se devem ao fato de estas famílias constituírem uma economia de subsistência, em
razão da dificuldade de escoamento de sua produção e mercado para a sua comercialização.
Além disso, esta rede comercial está frequentemente dependente de pequenos grupos de
60
pessoas, nesse caso, atravessadores, donos de frigoríficos ou barcos de pesca, pois não
possuem as condições para a venda direta de seu trabalho, os moradores raramente recebem a
quantia justa pela sua produção, tornando-se dependentes deste sistema.
No mundo da vida rural, onde o trabalho não é dissociado da própria condição de
existência humana e sim uma de suas dimensões complementares, é possível pensar numa
complementaridade em que subjaz a própria condição humana. As atividades desenvolvidas
nas várzeas do rio Solimões, como a pesca, entre outras, refletem dimensões significativas da
vida, da ação humana.
Contudo, antes de tornarem-se socializadas, as relações humanas produzem
expressões significativas de existência humana, do ser social enquanto ser vivo. Hannah
Arendt (2000), a partir dos conceitos de labor e de trabalho, delimita as manifestações sociais
do mundo humano em sociedade, afirma que o labor condiz como processo vital à própria
condição de subsistência e reprodução material, e o trabalho diz respeito à fabricação do
mundo artificial das coisas, contido na imagética constituída socialmente pela ideia humana
que reproduz um mundo de durabilidade das coisas, um mundo onde as ações humanas
ultrapassam a própria condição de viver e transformam-se para além, em um imperativo da
vida e da dimensão material e simbólica do homem.
Neste sentido, a vida enquanto labor e trabalho se traduz pela cultura e modo de vida
na várzea amazônica, das manifestações sociais, da objetividade e manutenção da existência
humana por meio dos recursos disponíveis ao seu meio envolvente, assim, antes de
reproduzirem as satisfações enquanto determinados grupos sociais, os indivíduos necessitam
reproduzir a vida enquanto reprodução biológica.
A partir destas dimensões concretas sobre as atividades desempenhadas pelos
trabalhadores da pesca e ao mesmo tempo moradores da comunidade Nossa Senhora das
Graças, são pensados aqui dimensões intercaladas entre labor e trabalho, ora complementares,
61
ora divergentes, mas que fazem parte do mundo vivido do homem da várzea, e se traduzem
numa plasticidade singular ao próprio sentido de existência e em sua relação com o ambiente.
No sentido que Arendt (2000) nos apresenta as singularidades do próprio mundo
concreto, é possível pensar que estes indivíduos se utilizam das terras, florestas e águas para
sua existência física e social tanto como homo faber, o fabricante e artífice do mundo e da
durabilidade das coisas, assim como animal laborans, que se mistura com o seu mundo
quando o consome, o reproduz de uma outra forma que seja pela pura necessidade de
consumir e desgastar o mundo físico, ou seja, da disponibilidade de seus recursos.
Pensar a partir destas possibilidades nos indica que o mundo social do trabalho da
pesca condiz com duas irremediáveis e inseparáveis vertentes: a do uso das coisas e a do
consumo das coisas. Ambas requerem, para legitimar-se enquanto representantes do mundo
real, sua própria condição criadora e reprodutora da existência humana, sejam pertencentes à
dimensão das coisas onde tudo é consumido em prol da necessidade e da subsistência, seja
pela dimensão onde o fabricar e o fazer dão vida à durabilidade do mundo e da existência de
coisas que movem o mundo das atividades humanas, ambas também contribuem para as
representações do mundo vivido do homem.
Assim nos é possível apresentar aqui como estas situam-se como perspectivas
complementares no mundo do trabalho da pesca em Nossa Senhora das Graças, onde labor e
trabalho também se misturam, mas deixam evidencias profundas quanto aquilo que pode ser
encontrado de maneira distinta e não somente associadas.
Pensando na ideia de que o labor assegura a sobrevivência humana e a vida em
espécie e, como faz parte da dimensão material do mundo, ele jamais pode estar dissociado do
ambiente e da natureza do mundo real. Assim, o que quer que faça parte do mundo humano é
posto como pertencente ao seu mundo, tudo que é trazido para dentro do mundo humano é
transformado em sua condição sob sua existência (ARENDT, 2000).
62
No mundo vivido das comunidades rurais da Amazônia, esta prerrogativa se torna
um imperativo do mundo real, à necessidade da subsistência não cabe a mera reprodução
biológica (como seres animais que também somos) tampouco pela utilidade das coisas que
nos possibilitam sobreviver como espécie, elas se equacionam para além das condições
primárias de o homem adquirir as condições mínimas para sua existência (MARX, 2002),
porque se incorporam ao mundo do homem, no mundo de suas representações, daquilo que é
consumido e que é posto como condição humana, “a condição humana não é o mesmo que a
natureza humana, pois tudo que corresponde às capacidades humanas não se assemelham à
natureza humana, a condição, em grande parte, ainda é produzida pelos próprios humanos e
pela natureza dada à sua condição de vida” (ARENDT, 2000, p.18).
A comunidade Nossa Senhora das Graças possui a atividade pesqueira como
atividade relevante, mas é necessário demonstrarmos que os moradores nos seus espaços de
moradia trabalham em outras atividades, plantando roças, cultivando hortaliças, fibras,
possuindo a criação de animais, voltadas diretamente para o consumo e em alguns momentos
para a comercialização, o que garante a possibilidade de subsistência local a partir de
atividades que não os caracterizam somente como pescadores, pois a importância de
complementar a unidade de produção familiar por parte de atividades polivalentes é uma
característica significante do mundo rural amazônico, embora a agricultura e a criação de
animais não estejam entre as principais fontes de renda da comunidade, elas ainda possuem
relevante expressividade devido à função que ocupam.
Na comunidade Nossa Senhora das Graças, a dimensão do Labor condiz com o fato
de que tudo o que é consumido e faz parte do mundo natural garante a reprodução da vida e
garante a reconstrução dos laços de sociabilidade. Arendt (2000) afirma que a produtividade
do labor só produz ocasionalmente objetos, sua preocupação são os meios de sua reprodução,
o labor produz vida e não outra coisa e que o resultado do labor é consumido quase tão
63
depressa quanto o esforço despendido. Isto implica dizer que, neste caso, ele suplanta ou
interpõe-se à atividade da pesca enquanto atividade profissional ou que busca a garantia da
existência humana por meio de outras estratégias que não estão ligadas diretamente ao labor,
mas a pesca garante, ao mesmo tempo, a dimensão do labor, pois insere-se como parte
indissociável da reprodução humana na várzea, onde o consumo do pescado é vital e
complementar como mantedor do balanço entre proteínas e carboidratos que fazem parte da
constituição da dieta alimentar do camponês amazônico.
A pesca se insere como uma das atividades importantes que assegura a vida, e torna-
se fundamental com as outras atividades introduzidas no cotidiano da comunidade, como a
criação de animais de grande porte, por exemplo, o gado, e a criação de animais de pequeno
porte (galinhas), que servem também como uma alternativa ao consumo de carne que não seja
a do pescado, e dificilmente, como fonte de renda, a plantação de pequenas roças com uma
produção voltada para o consumo da farinha a partir da mandioca, dos canteiros que dão o
sabor e o tempero à comida na várzea, assim como as árvores frutíferas que possibilitam o
balanceio entre o que é consumido.
Figura 15 – Armazenagem do pescado para
o consumo imediato.
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 16 – Pescado levado para ser
consumido em casa.
Fonte: RAPOZO, 2008.
64
Figura 17 – Atividades da pesca comercial na Costa do Pesqueiro.
Fonte: RAPOZO, 2008.
A criação de animais também pode ser acentuada como um dos elementos
constitutivos da unidade de produção familiar, nos quintais florestais das comunidades,
segundo Fraxe (2006), os agricultores familiares possuem criações de animais de pequeno
(aves), médio (suínos, caprinos e ovinos) e grande porte (gado). Na época da seca em área de
várzea, estes animais são criados de forma extensiva. Além da criação dos animais
domésticos, há também a criação de animais silvestres. Foi observado, em algumas
residências na comunidade pesquisada, que algumas espécies são criadas para alimentação e
outras são criadas como animais de estimação.
Na comunidade Nossa Senhora das Graças situada em área de várzea, as famílias que
criam somente animais de pequeno e médio porte improvisam marombas na época da cheia
ou fazem instalações suspensas para acomodar seus animais que, em época da seca, são
criados de forma extensiva. Dos animais criados na comunidade pesquisada, destacam-se as
aves e os bovinos.
A produção obtida da criação de animais nos quintais agroflorestais é destinada
exclusivamente para subsistência da família (FRAXE 2006). No entanto, os agricultores
65
comercializam seus animais na própria comunidade quando há um aumento nas criações ou
em ocasiões especiais como nas festividades promovidas nas comunidades. Em área de
várzea, a redução do plantel é programada de modo a atender as limitações de local para
acomodar e de oferta de alimento para as criações durante o período da cheia. Os agricultores-
criadores constroem apenas pequenas instalações suspensas e/ou flutuante para acomodar suas
matrizes neste período.
Figura 18 – Casa de farinha, local utilizado
para a produção da farinha de mandioca como
fonte de alimentação principal
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 19 – A criação do gado é uma alternativa
para o consumo de carne na comunidade.
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 20 – A criação de aves de maneira
extensiva nos terreiros da casa também
são uma fonte de consumo indispensável
as comunidades rurais
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 21 – Nos canteiros suspensos são encontrados os
temperos da alimentação nas comunidades.
Fonte: NUSEC, 2008.
66
Também é possível verificar que a complementaridade das atividades destinadas ao
consumo repercutem sobre as atividades exercidas junto com a pesca comercial. As atividades
produtivas dos moradores da comunidade revelam a racionalidade no uso dos recursos a partir
das atividades polivalentes desenvolvidas na várzea. Esta dimensão possibilita, do ponto de
vista econômico, verificarmos, por exemplo, que a renda média obtida pelos moradores na
comunidade Nossa Senhora das Graças chega a ser de R$ 207,61 mensais (dados obtido
conforme entrevistas em pesquisa de campo, 2008), resultado de uma série de atividades em
conjunto executadas conforme a finalidade objetivada em seus trabalhos ligados à
comercialização de determinados produtos.
As atividades que pertencem à constituição do real e que garantem a reprodução do
modo de vida na várzea transparecem na comunidade a partir da racionalidade do uso de seus
recursos disponíveis e pela capacidade de garantira manutenção do modo de vida através do
cálculo feito entre a capacidade de trabalho a partir da unidade de produção familiar.
Neste sentido, demonstramos que a dimensão do labor não produz interface somente
com a dimensão de mera existência, ARENDT (2000) afirma que, das coisas tangíveis as
menos duráveis são aquelas necessárias ao processo de vida, ou seja, são as relacionadas com
o labor – elas possuem como meio de vida, associar a criação de pequenos animais, a
Figura 22 - Frequência relativa ao tipo de
atividade desenvolvida junto às atividades da
pesca.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,
2008.
67
plantação de roças, a manutenção de canteiros e quintais, como processos sociais que
traduzem a interface entre cultura e o modo de vida na Amazônia, e possuem um sentido
superior à reprodução biológica, pois torna-se uma maneira de pensar o espaço como lugar de
vida, e assim racionalizar esses lugares e fazê-los pertencer à realidade de seus mundos
socialmente construídos, onde a dimensão do terreno para o roçado é singular, distinto e
nunca associado ao espaço de criação do gado ou da galinha, muito menos ao do canteiro.
Estes elementos nos possibilitam pensar que o consumo produtivo é antes condição
fisiológica do homem, onde “tudo o que labor produz destina-se a alimentar quase
imediatamente o processo de vida humana, e este consumo, regenerando o processo vital,
produz nova força de trabalho de que o corpo necessita para seu próprio sustento” (ARENDT,
2000, p.111).
Podemos refletir que é, na várzea, onde a dimensão do mundo das coisas que são
consumidas se inserem na dimensão das representações do mundo associado à domesticação
da natureza através da criação de animais e de plantas como um processo que demarca o
mundo vivido e apresenta a maneira ribeirinha de viver na várzea. São modelos estruturados e
estruturantes de perpetuação da organização social humana caminhando historicamente
paralelas à adaptação reguladora, do que um mero processo que condiz com o uso dos
recursos enquanto meio de manter-se vivo e garantir força de trabalho. Fica claro que, para
além dos fatores que indicam apenas a animalidade do homem, a vida e o modo de produzi-la
se apresentam como um diferencial na várzea e objetivamente na comunidade Nossa Senhora
das Graças, isto parece contrapor-se à afirmação de que
Os produtos do labor, produtos do metabolismo do homem com a natureza,
não duram no mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele, e a
própria atividade do labor, concentrada exclusivamente na vida e em sua
manuntencao, é tão indiferente ao mundo que é como se este não existisse
[...] O animal laborans, compelido pelas necessidades do corpo, não usa esse
corpo livremente como o homo faber utiliza as mãos, que são os seus
instrumentos primordiais (ARENDT, 2000, p. 130-131)
68
A vida na comunidade Nossa Senhora das Graças parece indicar que o metabolismo
entre homem e natureza tão evidente enquanto pertencentes à capacidade de construir-se
como elementos e meios de produção indissociáveis à reprodução humana, duram o suficiente
no mundo vivido e consumido ao ponto de possibilitarem não só a manutenção da força de
trabalho e sim a racionalidade necessária à compreensão da importância e constituição de um
mundo necessário ao consumo que difere do mundo necessário ao trabalho, como fonte
estratégica de aquisição de outros recursos que também possibilitam a contribuição para a
reprodução da vida por outro viés. Existe (de fato) mais calculabilidade no mundo racional
das coisas do animal laborans do que aparentemente é possível perceber.
É claro que nossas observações sobre as formulações teóricas de Arendt (2000) sobre
a sua concepção da noção de labor e de animal laborans, são tidas como um parâmetro de
análise sociológica para pensar o mundo do trabalho e o mundo vivido – creio indissociáveis
no mundo rural – na complexidade que é a Amazônia de maneira diferenciada em nossa
pesquisa, distanciando-se das margens do pensamento arendtiano e a concepção pura de labor
e como este é discutido como um dos pontos centrais pela autora.
Se de fato o labor pode ser pensado enquanto categoria sociológica para
compreender uma das dimensões da vida rural da várzea, este só pode ser realizado
considerando os elementos constitutivos da vida na várzea e na Amazônia como um todo a
partir de um conjunto de processos que caracterizam a reprodutibilidade humana e de um
mosaico singular construído pelos grupos sociais rurais da Amazônia, pois o processo de
trabalho, de labor, e a dimensão estratégica de uso dos recursos naturais, são elementos que se
chocam frente à durabilidade do mundo e do homem.
Em Nossa Senhora das Graças, a singularidade da dimensão lógica e simbólica de
produção da vida não foge a esta regra, tanto é possível percebê-la que a dimensão do labor se
69
constitui como a base para a sustentação das atividades pesqueiras em quanto trabalho, pois
garantem uma das partes indispensáveis na constituição do mundo material e simbólico.
Assim o cultivo do solo ou seu uso, assim como o uso das águas, não se dão apenas como
meios de subsistência humana, no decorrer do processo, constrói-se um mundo, um mundo do
trabalho e do labor, das atividades humanas.
70
Capítulo 2 – As transformações socioeconômicas da pesca
Pensar o desenvolvimento e as transformações socioeconômicas do modo de vida
dos grupos sociais na Amazônia, sobretudo, quando relacionados às atividades da pesca
enquanto fenômeno investigativo, requer, para além de um entendimento compreensivo da
história, encontrar os mecanismos sujeitos a uma análise sobre determinados ângulos diante
das transformações político-econômicas do Estado brasileiro.
Pretendemos, neste capítulo, introduzir uma reflexão acerca da formação do Estado
brasileiro frente às políticas de modernização da sociedade, abordando quais as suas
consequências diante da tomada de decisão em adotar uma perspectiva de desenvolvimento
econômico que de fato permitiu tardiamente uma preocupação com as questões ambientais,
traduzindo-se como um momento mais recente da nossa sociedade.
Neste sentido, apresentamos uma visão de como estas ações refletiram através das
políticas de consolidação nacional dos grandes programas de valorização (econômica) da
Amazônia, delineando como estes elementos tencionaram de forma ampla a relação entre os
grupos sociais rurais e as formas de uso dos recursos pesqueiros9, as transformações
socioprodutivas da atividade regulamentada da pesca, e a consolidação/evolução de uma
legislação que regulamentaria o acesso aos recursos pesqueiros.
Os discursos políticos a partir das temáticas sobre desenvolvimento, sustentabilidade,
desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento aparecem enquanto frutos das condições
históricas engendradas a partir de determinada situação social, envolvendo as transformações
socioeconômicas do mundo, a crise racional do esgotamento não só dos recursos naturais, mas
também de uma esgotabilidade do saber técnico-científico que levaram a uma
9 A noção de recursos naturais utilizadas aqui implica na condição de pensar a pesca enquanto recurso natural
renovável. Para Vieira e Weber (2002) isto implica no fato de que sua reprodução não é forçada ou controlada
pelo homem, sendo usados, geridos, mas não produzidos, como a fauna selvagem aquática e terrestre.
considerando que recursos renováveis são recursos vivos ou em movimento, onde presença da variável implica a
adoção de enfoques centrados na noção de fluxo e variabilidade, não implicaria necessariamente em uma
interpretação biofísica, pois a condição de renovabilidade pode ser analisada também como um fenômeno social
complexo, enquanto categoria construída mediante a interação social (VIEIRA E WEBER, 2002).
71
complexificação e insurgência de saberes produzidos como ausentes10
em esferas não
dominantes da ordem cultural e econômica da sociedade global.
A simplificação dos discursos economicamente dominantes cunharam, para o cenário
amazônico, dimensões estratégicas de desenvolvimento perpassando por vários setores da
economia local, digo dimensões econômicas de desenvolvimento ao afirmar que, no campo
das contradições sociais, pouco se fez ou se resolveu para solucionar os velhos dilemas
desenvolvimentistas entre economia, ambiente e sociedade ao longo da formação do Estado
brasileiro.
A relação antagônica entre economia e meio ambiente se traduz na Amazônia como
reflexos de um contraditório sistema de compreensão das dimensões de desenvolvimento da
sociedade brasileira, onde as esferas de ordem política, ao passo que externalizavam os fatores
ambientais e internalizavam por vias do desenvolvimento os fatores econômicos11
, sujeitaram
grupos sociais, determinados setores de atividades de trabalho fundamentais à economia
regional e modos de vida tradicionais.
Nesta perspectiva, compreender a formação do Estado moderno brasileiro e como se
introjetam os discursos sobre a questão ambiental nas esferas políticas e econômicas em
determinado momento histórico, é um fator crucial para pensarmos do ponto de vista macro e
micro-sociológico, as dimensões do subdesenvolvimento, neste caso, a experiência da
sociedade brasileira, e a legitimação dos discursos consolidados enquanto estratégia política
sob as transformações de determinados setores pertencentes ao modo de vida específico dos
grupos sociais da Amazônia.
10
Boaventura de Sousa Santos (2006), ao desenvolver a ideia de uma sociologia das ausências retoma uma
perspectiva de pensar criticamente as condições interpretativas dos fenômenos sociais globais para além das
epistemologias do Norte globalizado, que se legitima enquanto ciência e discurso dominante ao produzir como
ausente as experiências sociais e o conhecimento produzido nos países periferizados do sul, que hoje insurgem
como uma sociologia das emergências ao se deparar com a crise produzida por um saber racionalizado, esgotado
frente à crise social da razão nas sociedades contemporâneas. 11
Ver Leff (2000) sobre a racionalização do capital ou a reapropriação social da natureza.
72
As transformações socioeconômicas da atividade pesqueira na Amazônia brasileira
são pensadas sob a perspectiva da dinâmica das relações de trabalho instituídas e resultantes
dos modelos de desenvolvimento adotadas que intensificaram ao mesmo tempo a sobre-
exploração dos recursos pesqueiros, e tornaram latentes os conflitos socioambientais na
medida em que o Estado não conseguia ver-se situado diante das contradições sociais
causadas pelo projeto de modernidade12
acreditado.
Neste sentido, apresentamos que os modelos de desenvolvimento adotados para a
Amazônia brasileira da segunda metade do século XX possibilitaram outras formas de ação e
de apropriação dos recursos naturais locais, transformando as relações sociais de produção e
as forças produtivas do setor pesqueiro.
2.1 A queda de Ícaro ou a profecia do colapso: Estado, (sub)desenvolvimento e as
políticas de uma modernização forçada
A sociedade moderna, a partir de uma perspectiva weberiana, incide sobre o conceito
de racionalidade e a maneira como atribui a esta os critérios que demarcam o surgimento do
Estado moderno frente à economia capitalista, sua organização empresarial e sua estrutura
burocrática. Sua preocupação com a institucionalização da racionalidade, em relação aos fins
de organização burocrática da ordem social moderna das sociedades, demarcará um dos
critérios de diferenciação e consolidação do Estado moderno.
Para Weber (1991), o Estado racional representa a figura moderna da formação dos
Estados nacionais, sendo a única estrutura capaz de dar suporte ao desenvolvimento do
capitalismo moderno, tendo como base a composição de uma estrutura administrativa
fundamentada na burocracia profissional e no direito racional.
12
Modernidade e Modernização são pensados aqui, inicialmente, de maneiras diferenciadas, mas que dizem
respeito ao mesmo aspecto central, as transformações sociais. Para Berman (1986) a modernidade traduz-se
enquanto um tempo histórico, como uma fase, correspondendo a transformações do pensamento das sociedades,
seus costumes, hábitos e valores; Modernização se caracterizaria enquanto processo de intensificação das
transformações marcadas pela dimensão racional do modo de vida moderno.
73
O Estado moderno é a estruturação de um espaço público ampliado, com a
separação dos possuidores individuais ou grupais de seus instrumentos
privados de força, da neutralização ou erradicação da administração
particular da justiça, do cerceamento da gerência autônoma e arbitrária da
emergência da coisa pública, isto é, da desprivatização dos assuntos de
interesse geral, junto com a ampliação do seu âmbito de
abrangência.(WEBER, 1991 p. 1048)
Desta forma, a racionalidade dos fins e meios demarca a constituição característica
da modernidade para Weber, este fato se consolida pela racionalização social da vida
instituída e em processo de modificação da compreensão do mundo pelos indivíduos vivendo
em sociedade, penetrando em todas as esferas sociais com a ajuda da técnica.
No que concerne ao entendimento da categoria de Modernização e como este aspecto
delineia a compreensão das categorias de análise pretendidas aqui sob a interpretação destes
fenômenos na sociedade brasileira, Habermas (1990) a considera como um feixe de processos
cumulativos que se reforçam mutuamente “através da formação de capital e mobilização de
recursos, ao desenvolvimento de forças produtivas e ao aumento da produtividade do
trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades
nacionais, à expansão de direito de participação política, de formas urbanas de vida e de
formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas” (HABERMAS, 1990,
p.14)
O processo de modernização do Estado brasileiro, as experiências de transição
econômica de uma economia agrário-exportadora para uma economia industrial em ritmo
acelerado (ou desenfreado) erigiram o discurso dominante entre o início do século XX até as
últimas décadas do mesmo, sobre a priorização dos fatores econômicos como resposta aos
problemas sociais, contudo a modernização do Estado no início do século passado é reflexo
dos processos de racionalização da sociedade na tentativa de buscar a eficácia do sistema
produtivo, da administração pública das instituições políticas.
74
Neste sentido, a urbanização e a industrialização forjadas, sobretudo a partir da
década de 30, apresentavam fenômenos de transformação políticas e econômicas, demarcando
segundo Ianni (1999), uma ruptura estrutural na sociedade à qual passava a crise de transição
da sociedade brasileira.
O fenômeno das mudanças sociais frente às condições do país fora marcado por uma
intervenção cada vez maior do Estado na economia, principalmente no campo das condições
estratégicas de desenvolvimento enquanto a consolidação dos ideais de nação. As teorias do
planejamento deram suporte às políticas de desenvolvimento que buscavam o crescimento
econômico.
A abordagem desta transição histórica é tomada como objeto central dos estudos de
Florestan Fernandes em Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1969), delineando os
temas correlacionados com o desenvolvimento econômico do Brasil e a estratificação social
dos indivíduos nas sociedades urbanas industriais.
A questão do subdesenvolvimento como categoria estrutural para compreender a
noção de capitalismo dependente frente à estruturação de um regime de classes na América
Latina é crucial para empreender como fenômeno investigativo os aspectos daquilo que o
autor denominou de revolução burguesa.
Na situação dos países subdesenvolvidos, com frequência a ação do Estado é
duplamente contida pela ordem legal que ele encarna. De um lado, os
modelos de ordenação e de legitimação do poder político, transplantados dos
países avançados, oferecem margem a sérias ambigüidades e até à
contradições pitorescas no ajustamento da ordem legal às condições reais de
existência social. De outro, a escassez de recursos afeta as finanças e
deteriora a capacidade de atuação do Estado, conseqüências agravadas pela
indisciplina administrativa e pela dissipação improdutiva reinante nos gastos
oficiais. (FERNANDES, 1976, p.326).
A consolidação de um projeto de Estado frente às transformações sociais, para
Fernandes (1976), resulta do fato de que o modelo de organização econômico-político,
estimulado enquanto revolução, não se concretizava em si, na medida em que não conseguiu
75
servir como propulsor para a aceleração do crescimento econômico, do desenvolvimento
social e da mudança cultural com processos irreversíveis de autonomização nacional, de
negação e superação do subdesenvolvimento.
Neste sentido, a analogia com o mito grego de Ícaro13
representaria metaforicamente
as promessas nãos consolidadas dos modelos de desenvolvimento adotados na constituição do
Estado moderno frente às falências institucionais de uma modernização forçada. Para Furtado
(1996), o contexto da realidade brasileira associada a interpretação do mito implica dizer que,
sua função principal, é orientar, a partir de um plano intuitivo, a construção daquilo que a
teoria econômica de Joseph Schumpeter (1883) chamou de visão do processo social, sem o
qual o trabalho de análise jamais teria sentido.
Os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do
cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e
nada a ver de outros, ao mesmo tempo em que lhe proporciona conforto
intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem no seu
espírito como um reflexo da realidade objetiva (FURTADO, 1996, p.8)
Ao passo que o desenvolvimento tardio marcaria as políticas de valorização
econômicas e racionalização do aparelho estatal e incorporava as promessas de um voo,
guiado pela lógica do crescimento econômico dos Estados nacionais, sobretudo, no pós-guerra
com os rearranjos políticos e institucionais. Desta forma, gerando o declínio das promessas
diante dos modelos econômicos e dos programas de desenvolvimento adotados, mas também
representariam as principais consequências ao subdesenvolvimento periférico de
determinadas regiões do país, como na Amazônia.
Ainda na concepção de Furtado (1996), o mito do desenvolvimento econômico se
traduz como um destes aspectos, na medida em que aparece como fenômeno investigativo nas
13
No Mito, Dédalo fabrica dois pares de asas artificiais formada por grossas camadas de cera amarrando as
penas caídas dos pássaros que sobrevoavam o Labirinto, construindo por ele quando presos em seus exílios na
ilha de Creta. Desta forma, alçaram voo juntos, deixando o cárcere para trás, porém Ícaro, empolgado com a
possibilidade de voar, esqueceu-se da recomendação do pai em não se aproximar em demasia do sol ou do mar.
Inebriado pela sensação das alturas, da liberdade e das promessas de um voo, cada vez mais o jovem se acercava
do sol até que a cera que fixava as asas começou se derreter e Ícaro despencou dos céus ao mar morrendo
afogado.
76
ciências sociais, procurando evidenciar que os padrões de desenvolvimento adotados pelos
países em estado de subdesenvolvimento não se consolidam, pois refletem uma dimensão
marginalizada e periférica da revolução industrial dos países hegemônicos de economia
capitalista.
Neste sentido, a profecia do colapso, na visão do autor, explica que a permanência
deste modelo de desenvolvimento adotado enquanto crença, sobretudo após a segunda guerra
mundial, indicaria um estilo de desenvolvimento predador onde a busca dos padrões
consumistas e a pressão sobre os recursos renováveis do planeta iriam acarretar uma exclusão
social ainda maior, colocando em risco o sistema econômico mundial.
Os obstáculos da herança colonial e suas implicações quanto ao modelo de sociedade
e de Estado demarcavam uma revolução ao modelo de sociedade, mas uma revolução dentro
da ordem. Neste sentido, as questões políticas de mudança social e cultural da sociedade
brasileira são colocadas em debate para pensar, segundo Fernandes (1969), o comportamento
irracional das camadas conservadoras da sociedade quanto às pressões revolucionárias do
processo de integração nacional, sua ligação com a expansão do capital industrial e
intensificação da dependência socioeconômica e cultural, levando, assim, à construção dos
fenômenos estudados pelo autor.
Num aspecto mais amplo da análise, para Ruy Mauro Marini (2000), a formação
econômica dependente que caracterizava as economias periféricas dos países
subdesenvolvidos seria que, ao permanecer em torno do mercado mundial e subordinados aos
centros do capitalismo, estas não teriam como constituir de forma consolidada seus mercados
internos, perpetuando um modelo colonial de desenvolvimento dependente.
Neste sentido, a América Latina ingressaria na etapa da industrialização a partir das
bases criadas pela economia de exportação, ao mesmo tempo em que aprofunda a contradição
própria de seu ciclo do capital e seus efeitos sobre a exploração do trabalho. O resultado disso
77
é o não desenvolvimento de bases tecnológicas e, por consequência, o não surgimento das
indústrias mais produtivas e também a necessidade da manutenção da superexploração do
trabalho, em seus mais diversificados aspectos e formas de organização (CORREA &
CARDEAL, 2005).
Segundo Brito (2001), a sociedade brasileira se encontrava em uma condição
diferente, a industrialização tardia significou a imposição de um ordenamento produtivo sobre
a estrutura social cercada de elementos sociais tradicionais, que acabaram ativando os
elementos organizacionais do capitalismo industrial, intervindo diretamente na economia e
redimensionando parcialmente os esquemas políticos tradicionais.
No entendimento das mudanças que se processaram na sociedade brasileira a partir
da década de 30 com o rearranjo das forcas políticas e econômicas, Burity (1988) apud Brito
(2001) destaca que o papel histórico atribuído pelos teóricos da revolução democrático-
burguesa e da modernização da classe burguesa, enquanto classe portadora do voo futuro tal
qual o de Ícaro, é, na verdade mais uma construção político-ideológica do que um fato real no
caso brasileiro, pelo menos, considerando o autor que não havia um passado feudal a
ultrapassar, pois a ordem econômica brasileira já surge de um passado colonial que
corresponde à fase de acumulação primitiva do capitalismo, como modo de produção em vias
de se tornar dominante e que, a partir do século passado, se insere em uma ordem econômico-
social sob a égide do imperialismo. “A nota mais destoante é atinente ao papel central
assumido pelo Estado brasileiro na modelagem da ordem capitalista excludente, disciplinando
e tutelando a sociedade, de forma a enquadrá-la e torná-la funcional a um esquema de
acumulação privada do capital.” (BURITY, 1988 apud BRITO 2001, p. 21)
Neste bojo de transformações, o autor considera que as características mais
importantes deste processo indicam elementos importantes de compreensão dos fenômenos de
dinâmica e rearranjos político-institucionais. Primeiro, não ocorre de forma igual uma
78
racionalização dos processos de modernização da sociedade. Segundo, os elementos que
demarcam a estrutura organizacional e jurídica do Estado não são absorvidos pela ordem
política instituída. Por último, este processo induz ao desenvolvimento de uma economia
industrial tendo como base um núcleo tecnocrático solidificado no interior da instância estatal.
Neste sentido, a modernização brasileira é marcada por dimensões políticas,
econômicas e técnico-burocráticas administrativas, na medida em que absorve e não absorve
elementos pertencentes aos padrões de racionalidade do modelo de Estado nacional adotado
no processo de modernização dos países desenvolvidos. Assim, no campo político, não se
absorve tais elementos, enquanto a estrutura técnico-burocrática desenvolve um modelo de
desenvolvimento econômico incontestável, autonomizando a estrutura burocrática que
conduziria o processo de voo ao desenvolvimento.
O Estado brasileiro constituído a partir da racionalização dos sistemas políticos
buscava a eficácia do sistema produtivo, da administração pública, das instituições políticas.
“o aparecimento da sociedade industrial é resultado de um desdobramento histórico que
introduziu uma visão de mundo voltada para a objetividade da técnica” (BRITO, 2001, p.17).
A configuração dessa estrutura de poder permitiu que se criassem instrumentos políticos
eficazes para acelerar o desenvolvimento da economia industrial, rompendo de forma
definitiva com a sociedade tradicional.
Com as transformações sociais decorrentes dos processos de refuncionalização
político-econômicos da estrutura estatal, insurgem novas abordagens de intervenção direta em
setores de desenvolvimento do Estado. Neste contexto, podemos chamar a atenção, segundo
Brito (2001), para o fato de que o desenvolvimento marca a separação da instância estatal
correspondente à esfera administrativa, que passa por uma reformulação na sua estrutura
burocrática e isola-se da esfera política.
79
Neste sentido, para o autor, a modernização e o capitalismo industrial na sociedade
brasileira possuem sua fundamentação no autoritarismo que marca a constituição política do
Estado nacional.
A estrutura burocrático-racional-legal não se torna autônoma na medida em que sofre
um processo de insulamento, permitindo que as identidades estatais executem ações pautadas
pela formalização dos procedimentos legais. Contudo, na base dessa movimentação, estaria o
controle de grupos oligárquicos que se impõem hegemonicamente, controlando e
direcionando, por meio de uma série de relações, troca de favores, compadrios e nepotismos,
desta forma, a ação estatal, em função de seus interesses particulares, dá forma legal a uma
atitude autoritária do Estado.
Esta contextualização seria denominada por Octávio Guilherme Velho (1976) de
capitalismo autoritário. As condições dos projetos de desenvolvimento baseados nas
premissas do modelo de desenvolvimento econômico adotados pelo Brasil possuíam
elementos particulares que acabaram desenvolvendo-se em países periféricos a partir de outra
realidade, tornando real o mito do desenvolvimento (econômico), sobretudo no mundo rural
das comunidades e grupos sociais sujeitos às políticas do governo.
É necessário levar em consideração que os modelos dominantes de desenvolvimento
econômico aplicados aos países subdesenvolvidos são assimilados e forjados no âmbito do
processo de consolidação de discursos legitimadores de determinados interesses estratégicos.
O planejamento, como forma de racionalizar as ações do governo em longo prazo,
passou a ser o norteador das políticas econômicas, gerando no país uma modernização
paradoxal ou uma modernização da superfície (BRITO, 2001), enquanto projeto
racionalizador das instituições políticas criava ou acreditava em soluções por meio de
medidas de desenvolvimento pela ótica econômica que, no entanto, se traduziram apenas do
80
ponto de vista econômico, não atingindo uma camada mais profunda da realidade brasileira,
relacionada com as contradições sociais geradas pelo seu discurso.
O termo modernização da superfície corresponde aos efeitos de racionalização
parcial do Estado14
na medida em que não se aprofunda na estrutura social, absorvendo
determinados aspectos da sociedade, sobretudo na esfera burocrático-administrativa, em
detrimentos das dimensões econômico-políticas, excluíndo grande parte dos grupos sociais
subjugados, mantendo uma estrutura arcaica e um processo secular de exclusão social frente
ao desenvolvimento de uma economia globalizada.
A estrutura social, administrativa e política que aparece no Brasil está
assentada sobre um conjunto de normas, hábitos e procedimentos visando
um estilo de mediação social em que a organização política esteja voltada
para assegurar o status quo estabelecido. E, assim, a esfera política, como
característica peculiar da cultura política brasileira, se autonomiza e tende a
isolar-se do restante da sociedade. Surge com isso uma estrutura estatal
superdimensionada, legando aos governos instrumentos de efetivo controle
dos processos sociais e econômicos (BRITO, 2001, p. 22-23).
Estes impulsos desequilibraram, de maneira desenfreada, uma tendência
desenvolvimentista no processo de modernização do Estado brasileiro. Do ponto de vista
regional, tais fenômenos ocorrem na Amazônia na medida em que elementos de ordem
sociopolíticas e culturais são arrastados para os planos do desenvolvimento econômico de
capitalismo tardio e periférico. Ocorre que, a racionalização das estruturas e aparelhos do
Estado desintegram parcialmente o modo de administração política dos Estados amazônicos,
criando um misto de administração pautada na racionalização da burocracia e na continuidade
absorvida pelo patriarcalismo e patronagens da política local.
14
Para Habermas (1987) a racionalização parcial do Estado é resultado de uma absorção desequilibrada dos
elementos racionalizadores pelas diversas esferas da vida social. Do ponto de vista da organização da sociedade
moderna, isso quer dizer que a expansão da economia capitalista impõe a outras esferas da vida social formas de
racionalidade econômica e administrativa que não são incorporadas ou são incorporadas de maneira distorcida,
forçada ou reconfigurada dada à realidade contextual.
81
Os modelos de desenvolvimento adotados para a sociedade brasileira frente às
condições de transformação e reordenamento político-econômico se delineiam como
estratégias fundamentais à inserção forçada de um ordenamento social.
A racionalização parcial da estruturação política, amparada pelos elementos
modernizantes da tecnoestrutura jurídica e administrativa serviram como elementos
propulsores à constituição de uma visão econômica do desenvolvimento e crescimento
econômico, externalizando os fatores ambientais e sociais de grande parte das regiões
brasileiras dando sentido à valorização de determinados aspectos no plano econômico.
A compreensão do fenômeno de consolidação do Estado brasileiro, em se tratando de
um projeto de modernidade, é crucial para verificarmos como estas diretrizes nortearão, a
partir da metade do século XX, com as modalidades de governo em transição (ditatorial ao
democrático-representativo), os programas de desenvolvimento econômicos para a Amazônia.
A política de integração regional significou uma tentativa de dar homogeneidade às
estruturas socioeconômicas, neste sentido, o papel do Estado brasileiro foi de impor um
processo de modernização acelerada (forçada) através da crença nos programas de
desenvolvimento e valorização econômica da região.
Particularmente nos estados da Amazônia brasileira esta política de valorização tem
início a partir da década de 50, demarcando um processo de homogeneização dos espaços
econômicos nacionais como uma consequência da integração, por meio das políticas de
desenvolvimento em regiões pouco integradas ao espaço econômico nacional e global, isto, é
claro, ao custo de uma dissolução ou de uma lesão das estruturas regionalmente homogêneas
(ALTVATER, 1989 apud BRITO, 2001), sobretudo no que diz respeito aos aspectos
socioculturais que demarcam as fronteiras de organização das sociedades locais.
82
Este modo de inserção da Amazônia é marcado pelo naufrágio de sucessivas tentativas
da consolidação de políticas de governo sob o interesse estratégico de potencializar o uso dos
recursos naturais e a timidez dos processos de industrialização nas capitais amazônicas.
Estas políticas, notadamente iniciadas com o Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (PVEA) na década de 50, visava uma atenção à
economia extrativista e as dimensões de atraso ao desenvolvimento, como
justificativa ao isolamento parcial das sociedades locais constituindo-se
como um espaço vazio, economicamente improdutivo e politicamente
perigoso (SPVEA, 1954b:24 apud BRITO, 2001, p. 135).
A valorização tardia da economia local trouxe, para além de impactos a uma
modernização forçada, a procura de melhores ações aplicadas sob o objetivo de implantar um
sistema com forças para reunir e estabelecer estratégias de aplicação de uma forma
centralizada pelo governo federal (BRITO, 2001). Estas ações foram pautadas pelo
aprofundamento do conceito de valorização, através da discussão sobre o modelo político de
desenvolvimento adotado para a região da Amazônia legal.
Desta forma, segundo Brito (2001), a criação de uma Superintendência do Plano de
Valorização da Amazônia (SPVEA) daria uma conotação muito mais econômica, adotando-se
um modelo de política que recebeu a incumbência de incentivar a valorização econômica, em
detrimento de uma política de transformações sociais alcançáveis pela sociedade em geral.
As primeiras ações que demarcaram a consolidação do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia são a instituição de medidas de estímulo ao desenvolvimento
econômico de setores considerados potencializáveis, intensificando a produção de matérias-
primas, alimentos, financiamento através de créditos capazes de capitalizar a iniciativa
privada, estimulando, sobretudo, a criação de colônias agrícolas através do estímulo
estratégico da agricultura a partir da ocupação de fronteiras e da introdução de uma
mentalidade agrícola na população local, permitindo assim, “superar hábitos e concepções de
trabalho e de organizações advindas do modo de produção local marcado pelos ciclos
extrativistas” (SPVEA, 1954b:6 apud BRITO, 2001).
83
Não pretendemos ir longe para interpretarmos que as políticas governamentais, ao
passo em que se baseavam na consolidação de uma valorização econômica do
desenvolvimento regional, resultaram em grandes transformações sociais. Na realidade, em
impactos negativos nas populações locais, sobretudo nas comunidades rurais, habitantes dos
grandes rios da região, engendrados desde o legado do ciclo econômico da borracha, e das
etnias indígenas que, até então, disponibilizavam de pouco contato com a sociedade
envolvente.
Desta forma, suas atividades de extrativismo, a produção para subsistência e para o
comércio em pequena escala foram impactados, transformando as relações que demarcavam a
realidade da pesca artesanal local, os grupos sociais rurais passaram a conviver cada vez mais
com o avanço das fronteiras agrícolas através do desmatamento, contaminação e sobre-
exploração dos recursos naturais. A partir das próximas décadas iriam agravar-se cada vez
mais, tencionando as relações conflituosas por acesso aos recursos e bens naturais de
consumo, reconfigurando os processos de territorialização e reapropriação dos ambientes.
É interessante observar que a adoção destas estratégias instituía uma dimensão
conceitual daquilo que viria a ser chamado de desenvolvimento para a Amazônia, sendo a
SPVEA, segundo Brito (2001), o órgão que centralizaria e administraria os recursos
destinados ao plano de valorização econômica da Amazônia.
A partir da década de 60 com a decadência das políticas desenvolvimentistas
instituídas no pós-guerra , a falta de critérios técnicos para balizar as ações do Estado e a crise
política entre a SPVEA e a transição para um governo autoritário-militar eram visivelmente
agravadas, criando, desta forma, as condições de falência do plano de valorização econômica
da Amazônia, sobretudo diante do embate ideológico instituído no período ditatorial:
Em meados da década de 60, quando os militares implantaram um novo
regime político no país, a SPVEA e toda a estrutura organizacional montada
para coordenar a política de desenvolvimento foram julgadas incapazes de
enquadrar-se no novo esquema institucional do regime. O período
compreendido entre 1964 e 1966 foi um momento de transição para o
84
modelo institucional do Plano de Valorização da Amazônia. Com os
militares no poder, foi dado inicio a „Operação Amazônia‟, um conjunto de
medidas com o objetivo de prosseguir a política de desenvolvimento, porém
dentro de um novo arcabouço institucional (BRITO, 2001, p. 144).
A “Operação Amazônia” anunciada pelo Presidente da República Marechal Humberto
Castelo Branco em setembro de 1966 impulsionava outra vertente adotada para o
desenvolvimento da Amazônia: a extinção da SPVEA e a criação da Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM15
, como alternativa ao desenvolvimento de
projetos e programas de estímulo a economia regional, efetivadas através da captação de
recursos com a criação anterior do Banco da Amazônia – BASA16
, sendo diretamente o
agente financeiro das ações governamentais, administrando os recursos oriundos de repasses
do Orçamento Geral da União para a Amazônia como dos fundos de investimento Privados
(BRITO, 2001).
No entanto, ao longo das décadas que se estenderam o plano de atuação política
adotado pelo governo militar em se tratando de um quadro geral, o modelo de
desenvolvimento econômico manteve, segundo Brum (2009), a característica concentradora
porque beneficiou a grande empresa em detrimento da média e pequena, estimulando a fusão
de empresas dos setores industriais, comerciais e financeiras, desta forma, favorecendo,
segundo o autor, a concentração da propriedade da terra viabilizando a grande e a média
empresa rural em detrimento da propriedade familiar.
Acredita-se que estas ações, do ponto de vista macroeconômico, possibilitaram em seu
reflexo a expansão econômica nos estados e nas regiões mais ricas, deixando as demais
regiões, como a Amazônia, em segundo plano, ainda que, por conta das superintendências e
programas de desenvolvimento regional e valorização econômica criados, tornar-se-iam
retardatários, ainda que privilegiando a lucratividade do capital em detrimento de ganhos do
15
Através da Lei 5.173 de outubro de 1966. 16
Sancionado através da Lei 5.122 de setembro de 1966.
85
trabalho e medidas paliativas de crescimento econômico em regiões periféricas dos grandes
centros urbano-industriais produtivistas, gerando desigualdades sócio-regionais históricas.
No processo histórico dos modelos políticos adotados neste período, a introdução da
noção de desenvolvimento apresentou-se na perspectiva de mudança econômica, evolução,
mudança contra a noção de atraso. Rodolfo Stavenhagen (1985) observa que o discurso
econômico enquanto remédio para o atraso “naturalmente” se afirmava a partir do
crescimento econômico em diferentes contextos, visava à aceleração e enfatizava a
necessidade de uso dos recursos naturais, sustentando como elemento chave ao Capital aliado
às tecnologias.
Nesse contexto, a proposta de desenvolvimento econômico se caracterizava pela
própria especificidade do mercado de produção capitalista, como um fenômeno global, nas
palavras de Ianni (1999), configurava-se como projeto e processo civilizatório mundial, que
nesta perspectiva incorporava novas tecnologias produtivas e a transformação das
organizações sociais tradicionais em organizações sociais modernas, marcadas por intensos
processos de burocratização.
Este período é marcado pela implementação de programas políticos e militares que
visavam estrategicamente à Amazônia a partir de um processo histórico e geopolítico
desencadeado no Pós-Guerra, tendo, como concepção de desenvolvimento, a abertura de
estradas, estimulando a colonização, ocupação e estabelecimento das fronteiras17
.
Como verificamos anteriormente, estas ações eram marcadas, segundo Loureiro
(2001), pelos inúmeros incentivos e vantagens fiscais aos empresários desejosos em investir
capital na região; pela facilitação ao acesso de grandes extensões de terra e à natureza em
geral, desconsiderando a legislação existente e ao direito de propriedade aos grupos sociais
17
Para Bertha Becker (2006), a fronteira se configura como fundamento histórico da produção do espaço
regional e no caso da Amazônia deixa de ser o eixo central e se configura como uma efetiva região, nela
coexistindo fronteiras de vários tipos
86
locais; a garantia de infraestrutura para os novos projetos por conta do governo federal e, por
fim, a utilização de mão de obra barata de trabalhadores locais e de outras áreas do país.
Estas ações, que visavam ao desenvolvimento econômico através da ocupação,
instalação de infra-estrutura e um programa de incentivos fiscais que atraiu capitais nacionais
e internacionais para a região18
, foi marcada por uma abertura desenfreada para o
desenvolvimento de atividades que potencializaram penosas transformações socioambientais
para a Amazônia, do ponto de vista da sequela deixada em seus grupos sociais e no ambiente
físico.
No entanto, durante o período da ditadura, quando o governo militar
promoveu de forma autoritária o desenvolvimento do capitalismo na
Amazônia, os projetos de desenvolvimento não incluíram a Amazônia
ribeirinha entre suas prioridades, mas voltaram-se para a extensa terra do rio
Jarí. A exclusão da várzea dos grandes projetos modernizadores, na verdade,
a protegeu de conseqüências negativas do que também se conhece como o
“modelo predador”de desenvolvimento da Amazônia. Ao contrario do que
propõe hoje o modelo socioambiental, o projeto modernizador não
considerava nem os custos ambientais nem os custos sociais de suas
iniciativas, priorizando o desenvolvimento do capitalismo como um fim em
si mesmo (LIMA, 2005, p. 13).
A metáfora ao mito da queda de Ícaro representa, assim, o Estado brasileiro frente ao
projeto de modernidade levada a cabo pela racionalização da sociedade no que concerne às
transformações socioeconômicas, políticas e culturais de uma visão desenvolvimentista. Não
se concretizando na medida em que consolida, parcialmente, nas esferas da sociedade, os
elementos condizentes à racionalidade de uma economia planejada, onde aspectos
estruturantes da conjuntura econômica e política se tornaram desconexos por um lado e por
outro marcados pela incapacidade de acompanhar o ritmo de desenvolvimento planejado,
sobretudo diante das insuficiências acarretadas pelas forças produtivas e pela acumulação do
18
Sobre estes processos Beth Middlin & Celso Laffer (1970), Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1990) explicam
o como se deu o planejamento no Brasil e a criação de projetos de desenvolvimento nos setores econômicos.
87
capital, marcando desta forma, o caráter de capitalismo tardio periférico e de economia
industrial restringida19
.
Estes elementos consolidarão o não desenvolvimento e as consequências de uma
modernização forçada, imposta na projeção dos grandes programas de desenvolvimento para
a Amazônia, sobretudo no período pós-guerra de regime militar-autoritário, desarticulando a
possibilidade de profundas transformações mais democráticas na estrutura social das
sociedades amazônicas.
Para Lima (2005), em termos sociais, as consequências de um projeto modernizador
excluía a Amazônia ribeirinha significava que a sociedade local não fora atingida pelas
mudanças em seu padrão tradicional. Formada basicamente por duas classes principais, a elite
mercantil e os pequenos produtores familiares das áreas de várzea, instituía-se também o
conflito20
ligados geralmente ao acesso, à apropriação e à manutenção de estoques dos
recursos naturais disponíveis, desta forma, entravam em consonância frente às propostas de
desenvolvimento e conservação iniciadas a partir da década de 80.
Ao interpretarmos as significativas transformações do Estado e das políticas de
planejamento ao desenvolvimento nacional e suas consequências, possibilitamos uma
compreensão das mudanças de reordenamento do setor pesqueiro comercial e da pesca de
subsistência na região Amazônica a partir de um debate envolvendo ao mesmo tempo Estado,
sociedade, modelos de produção relacionados com as transformações sociais do trabalho na
pesca e com a consequente crise do modelo de apropriação dos recursos naturais.
Estes aspectos mais do que nunca possibilitam o debate entre Estado,
desenvolvimento e economia sob uma perspectiva ambiental. Para considerarmos estes
19
Ver Cardoso de Melo (1982) e a discussão sobre o desenvolvimento do capitalismo tardio. 20
Para Lima (2005) as principais causas dos conflitos foram o crescimento da população, principalmente urbana,
as mudanças na economia e o surgimento de novas tecnologias, acarretando maior exploração dos recursos
naturais disponíveis, sobretudo do pescado. O aumento da pressão sob os estoques e a competição por áreas de
pesca acabou provocando a reação dos pequenos produtores rurais preocupados em manter os recursos
importantes para a reprodução de seus modos de vida.
88
elementos, pretendemos um olhar verticalizado sob a dinâmica nos processos
socioeconômicos relacionados com as transformações no mundo do trabalho da pesca frente
às políticas de desenvolvimento adotadas para a região, sob um duplo aspecto: pensar em que
medida tais questões direcionam as ações de reordenação estratégica do uso e controle dos
recursos naturais e, em que medida se enquadram diante do perfil social adotado pelo Estado
quanto à dinâmica histórico-social das atividades pesqueiras no Brasil e, particularmente, na
Amazônia.
2.2 Repensando as transformações do mundo do trabalho na pesca: Estado e as políticas
econômicas legitimadoras do projeto de desenvolvimento nacional
O desenvolvimento histórico das atividades pesqueiras deve muito aos processos
sociais de intervenção e ação humana na região amazônica. De um lado, pela formação e
ocupação dos grupos sociais na região no período anterior a colonização e, de outro, a partir
das estratégias e intensificação de interesses políticos com relação à sociodiversidade – e,
nesse contexto, os recursos pesqueiros – encontrados, sempre na perspectiva de trazer o
aprimoramento do processo de subsunção do homem ao ambiente.
A contextualização histórica das atividades pesqueiras concomitantes aos modelos
econômicos de desenvolvimento incidem a partir dos elementos de regulamentação e do
incentivo crucial à produção e comercialização do pescado. Nesta perspectiva, é possível
traçarmos uma interpretação sob o processo histórico vivenciado pelas sociedades rurais
amazônicas no que se refere ao uso dos recursos pesqueiros, assim como as transformações
socioeconômicas decorrentes da racionalização e controle do acesso destes recursos mediante
a criação de legislações específicas no que tange à gestão da pesca no Brasil.
Antes das primeiras regulamentações e o estímulo à comercialização por meio dos
grandes programas de desenvolvimento econômico, a atividade pesqueira no Brasil era
predominantemente artesanal, e sua produção estava voltada basicamente para atender o
89
mercado interno. Com a adoção de medidas reguladoras dos recursos pesqueiros e com a
consolidação de uma política de incentivos fiscais à pesca, desenvolveu-se de forma
cadenciada a pesca industrial em larga escala, visando sobretudo ao mercado externo.
Segundo Batista et al (2004), a importância da pesca na Amazônia remonta ao
período anterior à colonização, quando indígenas já utilizavam o pescado como parte
essencial de alimentação (VERÍSSIMO 1985) embora as necessidades primárias de proteínas
dos ameríndios que viviam ao longo do rio Amazonas fossem satisfeitas por quelônios e pelo
peixe-boi, o aumento do consumo local de animais aquáticos devido ao crescimento da
população amazônica durante o período colonial fora contraposta ao aumento do comércio
destes recursos, afetando inúmeras espécies de quelônios. Ao mesmo tempo, havia a
intensificação do consumo do pescado, em muitos rios amazônicos, reduzindo também a
fartura de algumas espécies cuja abundância tinha sido destacada por naturalistas e viajantes
(BATISTA et al 2004):
A tecnologia de pesca utilizada apresentou uma evolução desde o contato
dos indígenas com os portugueses. Redes passivas já eram utilizadas pelos
índios Carajás do rio Araguaia, Pará, durante os séculos XVII e XVIII, sendo
confeccionadas com feixes de fibra de imbaúba (cecropia spp.), estes
apetrechos eram utilizados como barreiras ao deslocamento dos peixes que
eram capturados manualmente [...] assim outras redes eram confeccionadas
com outros materiais. (p. 64).
Veríssimo (1985) apresenta uma importante coleção de informações históricas com
enfoque maior no Baixo Amazonas, onde destaca que, já, no século XV a administração do
império colonial, aproveitava o potencial pesqueiro da região para alimentação local e
comércio, utilizando-o como moeda de pagamento e troca no século XVII. Para Batista et al
(2004), tais preocupações geraram necessidades de controle da produção, o que foi
consolidado com a criação dos chamados pesqueiros reais, existindo três pesqueiros, em
1667, na Amazônia central, extintos em 1827.
O desenvolvimento pesqueiro na Amazônia e das ações do Estado pode ser
distinguido a partir dos períodos históricos relacionados com o processo de intensificação da
90
pesca e das transformações socioeconômicas decorrentes deste processo histórico. Até 1912,
as leis eram promulgadas pelas municipalidades, após a criação da Inspetoria Federal de
pesca, houve a centralização do controle da atividade, aparecendo outros atos legais que
viriam a transformar as ações sobre a pesca.
Por um lado, as políticas regulamentadoras do uso dos recursos pesqueiros se
preocuparam com a racionalização e controle por meio da criação de órgãos e de uma
legislação destinada a mediar e executar as ações de controle ao acesso. Contudo, de forma
mais abrangente, o conjunto de regras e disposições que possibilitariam o uso racional dos
recursos pesqueiros é dado a partir das condições regulamentadas sob normas de usufruto, ou
seja, num conjunto de preceitos ou métodos para o tratamento e/ou exploração de
determinando recurso ou área de atuação.
Do ponto de vista histórico, a gestão dos recursos pesqueiros, através da
implementação de uma legislação somente na década de 60, estabeleceria as condutas pelas
quais a atividade sofreria um controle do acesso à predisposição comercial, ao passo que
pressupunha o incentivo dado ao desenvolvimento do setor econômico pesqueiro proposto na
Operação Amazônia no período ditatorial do governo militar. Conduto, o ordenamento e
maior controle dos recursos refletem a criação recente de legislações destinadas a combater as
conseqüências da sobrepesca e a crise dos recursos pesqueiros ao longo das últimas décadas21
.
Sabe-se que, por meio dos preceitos legais e hierárquicos contidos na constituição
federal, que versa sobre a gestão ambiental de recursos compartilhados, a consolidação destas
ações sobrevinham das políticas de legislação das bacias hidrográficas no que tange aos
21
Somente com a instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação através da lei n° 9.985 de 18 de
julho de 2000, que uma política de ordenamento dos recursos pesqueiros foi estabelecida pensando a dimensão
do estoque de pescado mediante os recursos disponíveis.
91
recursos da união e seu uso compartilhado, neste caso, os recursos transformados em bens22
–
o peixe em pescado.
Para Veríssimo (1985), a pesca na Amazônia se caracterizava pela diversidade de
modalidades, pela prática tradicional que sempre desempenhou papel de atividade
complementar integrada às demais atividades da economia familiar, na qual sabemos que viria
intensificar-se com a pesca profissional de caráter comercial. Com relação à pesca, afirma
ainda que o uso do anzol, arpão, curral ou arco e flecha eram mais frequentes, sendo raro o
uso de redes e tarrafas num período anterior a década de 60.
Segundo Violeta Refkalefsky Loureiro (2001), as condições de vida e de trabalho do
homem na Amazônia, no momento anterior à ocupação recente23
, foram marcadas pela
acentuada taxa de população rural24
, que habitavam as comunidades rurais, e pela produção
econômica constituída pelo extrativismo.
As cidades e vilas ficavam situadas à beira dos rios e cumpriam a função de
entrepostos comerciais que recolhiam a produção vinda do interior e que
distribuíam os produtos procedentes das cidades maiores – Belém e Manaus,
principalmente – as quais importavam os produtos industrializados do sul do
país. (LOUREIRO, 2001, p.47)
A introdução do cultivo de juta, no final da década de 30, pela colonização japonesa,
aliada à borracha, tornou-se importante atividade econômica, mas que entrou em crise na
metade do século XX, dando lugar ao crescimento da atividade pesqueira como atividade
profissional prioritária e/ou permanente. As causas socioeconômicas destas transformações
foram induzidas pelo crescimento demográfico e o aumento da demanda urbana de pescado.
Até a década de 1910 verificava-se a preocupação das autoridades em
preservar os recursos pesqueiros e evitar o uso de técnicas predatórias de
pesca por intermédio de varias normas com o caráter de lei. Nesse período
que poderia ser chamado de pré-legislativo, destacam-se dispositivos que
proibiam a pesca com venenos, tapagens e currais de pesca em rios e lagos
22
Nestes casos, recursos são entendidos, do ponto de vista jurídico, como as fontes de riquezas materiais que
existem em estado natural, tais como florestas, reservas minerais, animais. E bens, do ponto de vista da
economia, entendido como mercadoria ou serviço que pode satisfazer uma necessidade humana. 23
Leia-se como recente a integração da Amazônia aos modelos de desenvolvimento econômico e ao mercado
nacional frente sua modernização às avessas. 24
Considerando que a população urbana era de apenas 37% até próximo da década de 60.
92
[...] as comunidades ribeirinhas mantinham normas de controle da
exploração dos recursos aquáticos, as quais faziam parte da sua tradição.
(RUFFINO, 2005, p. 14).
Para Ruffino (2005), com a tecnificação do setor pesqueiro, a partir de 1933, a
atividade passou a ser controlada pela Inspetoria de caça e pesca através do ministério da
Agricultura subordinada ao departamento de Produção Animal culminando com as ações
desempenhadas pela Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia – SPVEA, que
buscava transformar o sistema tradicional de pesca praticado pelos grupos sociais rurais em
uma atividade de caráter nacional e de alta produtividade.
Firmavam-se convênios com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação – FAO e a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura
– UNESCO, onde implementaram os primeiros estudos científicos sobre a pesca e o potencial
das espécies mais capturadas. Esta preocupação estava condicionada à visão
desenvolvimentista da região e à acentuada transformação do modo de produção capitalista,
que, nas próximas décadas, marcaria as grandes mudanças decorrentes deste processo.
A política de incentivo ao desenvolvimento do setor pesqueiro não deixa de
representar uma das ações do Estado nacional25
, possibilitando uma reflexão recorrente acerca
dos modelos que possibilitassem crescimento econômico e desenvolvimento social, sob a
prerrogativa da articulação de tecnologias adequadas e modos de produção e apropriação dos
recursos naturais compatíveis para o plano de integração da Amazônia.
Segundo Loureiro (2001), os obstáculos ao desenvolvimento econômico regional e a
integração aos mercados nacionais e internacionais eram pautados pela insuficiência de
capitais produtivos e de infraestrutura capazes de pôr em marcha novos investimentos.
25
Sobretudo a partir do processo histórico iniciado no período pós-guerra, com a discussão sobre a criação e
adoção de planos de desenvolvimento econômico pelos países desenvolvidos. A ideia de desenvolvimento
acarretava para si um processo de priorização das questões econômicas que, no início, ocupou lugar central nos
objetivos dos modelos políticos vigentes, capitalista e socialista, da chamada guerra fria, ambos viabilizando
desenvolvimento pela perspectiva econômica. (STAVENHAGEN, 1985).
93
Para pensarmos nesta perspectiva associada às transformações socioeconômicas
ocorridas na região amazônica que, sobretudo, afetaram a atividade pesqueira, é possível
perceber como elas foram adotadas, considerando alguns aspectos significativos para a ação
de medidas políticas que se tornaram fruto da relação estabelecida entre crescimento
econômico e sobre-exploração dos recursos naturais.
Este período se caracterizou como um momento significativo para o
desenvolvimento econômico da região – o que acarretou a expansão da atividade pesqueira, e
a transformação de suas forças produtivas (da relação Homem e Natureza), e de suas relações
sociais de produção (da relação Homem e Homem).
Para Batista et al (2004), na década de 60, três eventos são marcantes para os novos
rumos da atividade pesqueira na região. O primeiro foi a introdução e a popularização do
polietileno (ou isopor), como isolante térmico, permitindo a conservação e, portanto, a
acumulação do pescado por mais tempo, viabilizando ampliar o raio de ação da frota.
O segundo foi a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), a partir de 1967, que
causou um rápido crescimento da população urbana da cidade, via migração das populações
rurais, ocasionando, como reflexo, os problemas relativos ao desenvolvimento da expansão de
ocupações urbanas não planejadas, gerando aí, uma série de elementos problemáticos
resultantes deste processo e que caracterizaram as urbes periféricas na Amazônia26
.
Assim, ocasionou-se, particularmente, nas cidades do Estado do Amazonas, o
aumento do consumo de pescado, estabelecendo um importante mercado urbano do produto
pesca em razão da forte e densa migração do campo para a cidade. Em terceiro lugar, temos a
introdução de linhas sintéticas, as quais popularizaram as redes de arrasto e de espera
enquanto apetrechos utilizados como técnicas de captura na pesca comercial, facilitando o
26
Para Edneia Mascarenhas Dias (1999), a ilusão do Fausto se torna realidade na medida em que o
desencantamento do mundo e das situações problemáticas da vida cotidiana em expansão nas cidades configura
uma realidade não desejável para aqueles que possuíam expectativas com o modelo econômico adotado para a
região.
94
aumento do esforço de pesca e, consequentemente, da produção e otimização do setor,
caracterizado pela alta-tecnificação e re-inserção do modo de produção capitalista.
Concomitante a este processo, a constituição de uma legislação especifica tornava o
cenário da pesca nacional mais consolidado quanto à gestão dos recursos disponíveis. A
promulgação do Decreto-lei 221 de 22 de fevereiro de 1967 definiria e estimularia os
parâmetros da pesca através da consolidação de uma política específica voltada para a
atenção, ainda que parcialmente, das condições de acesso aos recursos pesqueiros.
Estas ações definiam os critérios para a atividade da pesca considerada enquanto “ato
tendente a capturar ou extrair animais ou vegetais que tenham na água seu meio normal ou
mais frequente de vida” (Decreto-lei 221/67 apud RUFINO, 2005), considerados como
patrimônios da União e podendo ser utilizados pelos cidadãos brasileiros através da
regulamentação dos órgãos públicos competentes. O decreto ainda definia os conceitos e
diferenciações entre Pesca comercial, Pesca esportiva e Pesca científica considerando as ações
estipuladas no usufruto dos recursos.
Para Abdallah (1998), o Decreto-Lei 221/67 permitiu deduções tributárias para
investimentos em projetos pesqueiros, além de isenção de impostos e taxas federais para a
importação de máquinas, equipamentos e instrumentos em geral. Segundo o autor, estes
incentivos fiscais atuaram no período de 1967 a 1986 e contribuíram, significativamente, para
dinamizar a produção nacional de pescado e o parque industrial processador desse produto27
.
Neste sentido, ao longo dos anos iniciais das políticas de incentivos à pesca, segundo
Abdallah (1998), entre 1967 a 1972, do total dos recursos captados no quadro de
desenvolvimento prevista aos programas destinados ao incentivo da pesca nacional, cerca de
91% foram investidos na indústria, captura, administração e comercialização, não sendo
27
Através do decreto-lei no 1.376/74, é criado o Fundo de Investimento Setorial para a Pesca (FISET/Pesca) no
sentido de controlar a alocação de recursos dos incentivos fiscais de maneira mais centralizada e de ajustar o
desequilíbrio no mercado de incentivos fiscais, identificado no decorrer da vigência do decreto 221/67.4 O
FISET/Pesca era supervisionado pela Superintendência de Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE
(ABDALLAH, 1998).
95
verificado algum tipo de investimento nas áreas de pesquisas e levantamentos de dados, o
autor ainda considera que 78% dos recursos captados ocorreram no período inicial de
incentivo à política pesqueira (de 1967 a 1974), sem, no entanto, considerar a dimensão do
estoque de pescado e uma previsão de impactos quanto à sobre-exploração dos recursos.
A implementação de um conjunto de projetos, planejados pelo governo brasileiro, a
partir de 1966, resultou em crescimento urbano acelerado, aumento demográfico e expansão
das áreas rurais utilizadas diretamente. Com a criação da zona de livre comércio de Manaus, a
Zona Franca, o Estado do Amazonas passou por importantes transformações, incluindo
ampliação do mercado para a pesca comercial. A pesca, então, deixou de ser um “problema
localizado” para ser uma questão regional com fortes implicações econômicas, sociais,
políticas, culturais e ecológicas.
O modelo de desenvolvimento pesqueiro, concebido na década de 60 e desenvolvido
até o final da década de 80 pela Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE,
buscava, principalmente, o aumento da produção pela produção – desconsiderando o tempo
de produção da própria natureza. A pesca era vista como um setor econômico, deixando de
lado as suas outras dimensões a ela intrinsecamente relacionadas – as dimensões sociais,
culturais e ambientais que interagem para o seu desenvolvimento (RUFFINO, 2005).
A SUDEPE, que institucionaliza a atividade pesqueira em todo o país, formulando,
executando e coordenando as políticas e as ações de pesquisa e ordenamento da exploração
pesqueira, ao passo que consolidou o segmento industrial pesqueiro, e ocasionou também a
sobre-exploração dos recursos pesqueiros ocasionado na década de 80, sobretudo decorrente
das praticas de pesca e de uma maior profissionalização da atividade e dos meios para o
trabalho.
A efetivação desse modelo de “desenvolvimento nacional”, que respondeu a políticas
estratégicas idealizadas para a região, baseou-se em incentivos a grandes empresas, por meio
96
de benefícios fiscais28
, estimulando a estruturação da indústria pesqueira, cujo crescimento
estava defasado em comparação com outros setores da economia nacional. Essa nova
dinâmica acarretou o agravamento das desigualdades, com relação ao acesso e ao uso dos
recursos pesqueiros, e o estratificou em duas grandes categorias sociais.
Esta situação se caracterizava pelo aparecimento de dois sujeitos sociais, os
pescadores artesanais, segundo Maldonado (1986), pela simplicidade da tecnologia
produtiva, baixo custo de produção, relações de parentesco no âmbito do processo de
trabalho, ausência de vínculos empregatícios, destinação mercantil e de uso próprio para o
produto, autonomia de produção e dependência de terceiros para a comercialização. Por outro,
o surgimento dos pescadores industriais como uma categoria que vivencia a condição do
trabalho parcelizado na indústria, assalariado e ausente de controle sobre o processo produtivo
(altamente sofisticado e gerenciado por terceiros), e uma produção exclusiva de mercadorias
enquanto propriedade direta da empresa.
Segundo Pereira et. al (2007), a expansão do sistema rodoviário na Amazônia
também contribuiu para a revolução comercial do setor pesqueiro (grifo dos autores), na
medida em que serviu como alternativa de transporte do pescado, pois o escoamento da
produção se limitava às vias fluviais e marítimas havendo uma incrementação da produção
pesqueira por conta da demanda proveniente das capitais
A pesca se tornou, assim, uma atividade economicamente dominante no seio da
organização social e produtiva dos povos da Amazônia, haja vista que a comercialização do
pescado se tornou mais intensiva e extensiva, sendo valorizado como produto de troca.
Cresciam a quantidade de barcos de pesca industrial e surgiam as primeiras empresas
de pesca industrial, ao mesmo tempo em que se introduzem motores a diesel e as fibras de
28
A constituição brasileira de 1969 isentou de pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICM) o
pescado beneficiado e destinado ao Mercado externo (Ruffino, 2005).
97
nylon para redes de malha, dando o suporte técnico que faltava para uma mudança qualitativa
no poder de pesca.
No período anterior à década de 60, a pesca na Amazônia era realizada com o uso de
embarcações de pequeno porte e propulsão de deslocamento geralmente não motorizada.
Contudo, com as políticas de incentivo ao setor pesqueiro a partir da década de 60
implementariam também o uso de embarcações motorizadas com larga escala de
deslocamento. Surge, aqui, segundo Ruffino (2005), a figura do pescador profissional
itinerante, que pesca de forma permanente em lugares distante da sua moradia e vende o seu
peixe em frigoríficos e mercados dos centros urbanos29
.
Mello (1985) observa que não havia a figura do pescador profissional ou
“especialista”, isto é, aquele dedicado exclusivamente à atividade pesqueira. Ao contrário,
havia o que o autor descreve como pescador-agricultor, isto é, o pescador não profissional,
aquele agente social que não fazia da pesca sua única base econômica, pois se tratava de uma
atividade complementar da agricultura, da caça, do extrativismo e de outras atividades que
praticava para a sobrevivência de sua família.
Mas as transformações que se sucederam no setor da pesca e na vida dos moradores
da região se formaram em decorrência das intervenções do Estado associado com os grupos
economicamente dominantes – nacionais e multinacionais – que passaram a interessar-se pela
exploração direta do setor na Amazônia. Pereira (2007) verifica que as mudanças na estrutura
produtiva do pescado estiveram associadas à divulgação de uma verdadeira ideologia do
29
A alteração do modo artesanal de produção da pesca pelo modo de produção industrial, onde a máquina passa
a ter a primazia sobre o elemento humano, representará uma espécie de golpe que dará o capital nesta „última
posse‟ do pescador – o que lhe havia restado do modo de produção tradicional. Em conseqüência, pode-se
afirmar que a dominação se torna mais completa e radical: o trabalho em si (a condução do processo de trabalho)
é agora posse real do capital, que passará a ditar a forma e maneira pelo qual ele será exercido. Para Mello
(1994), o mundo especificamente capitalista de produção representa, nesta perspectiva, não apenas uma nova
estruturação do sistema produtivo erigido a partir da aplicação em grande escala da ciência e da maquinaria no
processo imediato de trabalho aponta contemporaneamente um aprimoramento dos mecanismos de poder do
capital, que passa a comandar a classe operaria inclusive por meio do trabalho em si, impondo-lhe mais produção
m troca de salários proporcionalmente mais baixos.
98
progresso pesqueiro, que irá concorrer para constituir a atual estrutura socioeconômica e
política da pesca comercial.
As categorias sociais distinguidas a partir das relações sociais e produtivas que
compõem a estrutura socioeconômica e cultural dos grupos locais construíram singularidades
sociais que nortearam a forma de uso dos recursos naturais, principalmente no que tange aos
recursos pesqueiros.
É claro que as transformações ocorridas na região em decorrência da intensificação
das atividades pesqueiras não fizeram com que os grupos sociais envolvidos na região
ficassem de fora deste processo, tampouco que se sobressaísse de maneira benéfica. Pois o
modelo de crescimento econômico adotado pelo governo militar acarretou grandes custos ao
País, em termos de agravamento dos conflitos sociais entre grupos com diferentes capacidades
de exploração (por exemplo, pescador artesanal versus pescador industrial), com o rápido
esgotamento dos recursos naturais e agravando ainda mais os conflitos e os processos sociais
que desenvolveram na região reflexos destas ações.
Para Furtado (1993), a implantação do parque industrial da pesca na Amazônia teve
como reflexo a invasão das áreas de pesca artesanal por barcos pesqueiros de grande porte,
como resultado disso, engenhos de pesca são destruídos, estoques pesqueiros e cadeias
tróficas são seriamente comprometidos em seu ciclo biológico, devido ao ritmo do esforço de
captura para fins industriais, ao mesmo tempo em que se observa o surgimento dos conflitos
no campo da pesca. O que se justifica pelo fato de que:
Dos programas oficiais para desenvolvimento regional, nascem tensões e
descrenças em suas políticas, em razão da exclusão do saber nativo como
contribuição a esses programas, e ao desconhecimento da realidade por parte
daqueles que detêm o poder de decisão. Como resultado, assiste-se, muitas
vezes, à falência de programas, desorganização e miséria de grupos sociais
[...] no conjunto, todos estes programas cravaram um rastro: a desorientação
do caboclo amazônico que vive da pesca e de atividades afins, a migração
rural-urbana com traços de irreversibilidade e tendências a anomias sociais.
(FURTADO, 1993, p. 12)
99
As imperfeições dos modelos econômicos adotados levaram o País a uma situação
insustentável do ponto de vista financeiro, ocorrendo quedas significativas de alguns estoques
de peixes tradicionalmente explorados. Assim, surgem no fim desse período regulamentações
que tenderiam a monitorar a atividade pesqueira, delimitando o esforço sob a captura, os tipos
de aparelhos permitidos, malhas, áreas de pesca, épocas do defeso e tamanho mínimo de
captura e de cotas.
No cenário nacional, o relativo declínio dos estoques de pesca causado, sobretudo,
pelo impacto do modelo econômico-desenvolvimentista que estimulava a pesca industrial-
comercial, acabou determinando também os tipos insurgentes de conflitos sociais causados
pela disputa de acesso a determinados territórios de pesca fundamentados pela captura
desenfreada.
Desta forma, a criação da Lei n° 7.679 de 1988 regulamentaria a proibição da pesca
em determinados períodos de reprodução de espécies ameaçadas ou que tivessem seu ciclo
reprodutivo comprometido. Instituía-se o período do defeso penalizando, entre outras
atividades, a utilização de determinados apetrechos de pesca que causariam grandes impactos
na captura do pescado, assim como maior restrição a embarcações e pescadores sem
autorização de órgãos competentes.
O final da década de 80 e início dos anos 90 foram marcados pelas ações políticas
que caracterizaram um período de profundas transformações na Amazônia no que diz respeito
ao discurso de uso dos recursos naturais, datados sobretudo pela consolidação da ocupação
humana na região, pela intensificação do desmatamento e concentração urbana, iniciaria um
amplo debate nacional e internacional sobre o tipo de desenvolvimento que se pretendia para
a região e para os recursos naturais de uso comum.
A criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis – IBAMA representava a preocupação de ações comprometidas com estes
100
propósitos, assim com o fato de que, para evitar o colapso dos recursos pesqueiros, seria
necessário pensar em ações que propiciassem o uso sustentado dos recursos, a economicidade
dos empreendimentos e a justiça socioambiental.
O desenvolvimento de diversos mecanismos gerenciais a partir da década de 90
possibilitaram pensar numa gestão integrada dos recursos ictiofaunísticos, fortalecendo o
estabelecimento de diretrizes claras sobre gestão integrada dos recursos, através de parcerias
do IBAMA com diversas agências e instituições de cooperação nacionais e internacionais.
Estas ações circulariam na esfera de um debate público sobre as possibilidades de
gestão dos recursos pesqueiros desencadeada pelas crises que, anteriormente, marcaram a
falência dos modelos de desenvolvimento econômico e de organização administrativa dos
recursos naturais, assim como o levante de debates sobre as questões ambientais e os termos
insurgentes: sustentabilidade, desenvolvimento sustentável, etnodesenvolvimento, etc.
O surgimento de uma legislação mais voltada para as questões ambientais tomava
corpo e consolidaria, através da normatização dos órgãos responsáveis, as dimensões
representativas do significado atribuído às questões ambientais e sua relação com a sociedade
e o modelo de produção vigente.
Basta tomarmos como centro de nossas análises a Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981
que dispõe sobre a política nacional do meio ambiente. Especificamente, o texto versa sobre
os mecanismos de formulação e aplicação das diretrizes dos órgãos responsáveis, contudo os
elementos constitutivos do texto-base são reflexos das mudanças de pensamento do Estado
sobre as questões ambientais.
A construção de um discurso ambiental aparece como elemento norteador das
políticas de reestruturação do Estado brasileiro pós-ditadura. A instituição dos objetivos da
política nacional do meio ambiente trata sobre duas questões fundamentais da realidade social
contemporânea as quais a sociedade brasileira vivenciou: as perspectivas de desenvolvimento
101
econômico e sua relação com os modelos de gestão dos recursos naturais. A preservação,
melhoria e recuperação da qualidade ambiental assegurando as condições de
desenvolvimento socioeconômico aparecem como elementos fundamentais aos interesses da
segurança nacional nas políticas ambientais a partir da década de 80.
Os termos conceituais que norteiam estas ações são melhores exemplificados nos
parágrafos que se seguem no Art. 2º da Lei 6.938/81. Os aspectos gerais que versam sobre as
questões ambientais aparecem de acordo com um discurso que prioriza: a ação governamental
de manutenção do equilíbrio ecológico; racionalização, planejamento e fiscalização no uso
dos recursos disponíveis; proteção e preservação do patrimônio nacional; controle e
zoneamento das atividades potencialmente poluidoras; o incentivo a pesquisas e uso racional
dos recursos ambientais; acompanhamento do estado de qualidade do meio ambiente assim
como a recuperação e proteção de determinadas áreas; e por último, estímulo à educação
ambiental enquanto possibilidade de uma atuação mais ativa na sociedade.
Tais elementos compreendem um eixo discursivo sobre o planejamento e gestão dos
recursos naturais disponíveis. É claro que estas ações, incorporadas por um modelo central de
reordenamento dos bens necessários à sociedade, resultam de objetivos centrais quanto ao
modelo de política adotado pelo Estado brasileiro, sobretudo, com a tomada de decisões
políticas no cenário internacional quanto aos parâmetros de conservação do meio ambiente30
.
30
Em 1974, a Declaração de Cocoyoc no México trazia a discussão sobre ecodesenvolvimento no sentido de
incorporação de certas premissas. Em 1975, o Informe Dag Hammarskjold na Alemanha reunia a assembleia das
Nações Unidas sobre a gestão dos recursos naturais, demonstrando as possibilidades que viabilizariam um
processo de agregação dos ideais de conservação ambiental. Em 1984, é formada a Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento que, diante dos debates antecedentes , apontava para a elaboração de
propostas de avaliação dos processos de degradação ambiental e eficácia na construção de políticas ambientais, o
que culmina em 1987 com o relatório Bruntland publicado pelas Nações Unidas, conhecido como “Nosso futuro
comum”, abarcava a proposta objetiva de sustentabilidade igualitária satisfazendo as necessidades da população
sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras.
Em 1992, no Rio de Janeiro – Brasil, aconteceria a ECO 92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio
ambiente e desenvolvimento que enfocava dentro dos suscetíveis debates a vinculação da Agenda 21 como um
programa global para orientação de uma transição para o desenvolvimento sustentável que buscava discutir os
problemas ambientais e os modelos de desenvolvimento, a busca por parcerias para desenvolvimento local
sustentável, uma avaliação de necessidade de apoio externo e redução dos desperdícios potencializando a
diversidade local. Contudo, o conceito de desenvolvimento sustentável, que surge na década de 70 através do
relatório de união internacional para a conservação da natureza e se populariza no início dos anos 80, acaba
102
As estratégias de ecodesenvolvimento emergiram no terreno de uma luta
política pela definição de uma nova ordem mundial apontando a possibilidade
de novos estilos de desenvolvimento, baseados no potencial ecológico de
diferentes regiões, na renovabilidade dos recursos naturais e na capacidade
própria dos povos do Terceiro Mundo. (LEFF 2000, 263);
Neste caso, a formulação de uma política ambiental brasileira incidia, ao mesmo
tempo, sob a preocupação com a exploração e desgaste dos recursos naturais disponíveis, na
medida que transpareceria em seus objetivos a compatibilização do desenvolvimento
econômico social aliado à preservação e equilíbrio do meio ambiente.
Considerando estas questões, ainda na Lei 6.938/81, podemos exemplificar, no Art.
4º dos objetivos da política nacional do meio ambiente, que o estabelecimento dos critérios,
padrões e normas relativas ao manejo de recursos ambientais são prioritários à ação
governamental dos interesses estratégicos da União, tornando-se central o desenvolvimento de
pesquisas, racionalização dos recursos disponíveis e difusão de tecnologias nacionais na
formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade
ambiental, além, é claro, de instituir os parâmetros que sancionam os mecanismos de pena e
indenização referentes a quaisquer tipos de ação considerados degradante ou poluidores do
meio ambiente.
Neste contexto, a Lei n° 9.605/98, em 12 de fevereiro de 1998, por exemplo,
representava o estabelecimento de sanções penais31
executadas pelos órgãos correspondentes
quanto aos crimes ambientais. Especificamente, o capítulo V na Seção I contemplaria os
crimes cometidos contra a fauna, assinalando no Art. 29, as penas referentes à legislação,
transparecendo como um discurso ecológico oficial e não oficial sem consenso algum enquanto significado, sem
refletir as possibilidades questionáveis de sabermos se suas propostas possuiriam algum sentido dentro do
quadro de organização institucional e econômico do capitalismo. 31
Posteriormente, o Decreto n° 3.179 de 21 de Setembro de 1999 regulamentaria a penalidades sobre o caráter
de multas às atividades causadoras de prejuízos ao meio ambiente.
103
demonstrando a preocupação com a racionalização e controle contra quaisquer atos
criminosos contra recursos naturais patrimônios da União.
Estes casos são melhores exemplificados quando se estendem para o caso da pesca,
onde os Arts. 34, 35 e 36 da mesma lei, revelam aspectos sobre a proibição da pesca em
período e/ou lugar interditado; discutem sobre a normatização dos apetrechos frente às penas
e versam sobre o significado da atividade de pesca, apresentando especificamente as
penalidades às quais estão sujeitos: a detenção e reclusão para os crimes cometidos contra os
recursos pesqueiros.
A questão da pesca aparece como um dos elementos em que a regulação normativa
de acesso aos recursos assegurava, neste momento, um controle institucional mais eficaz.
Considerando as experiências passadas e, sobretudo, a pesca comercial predatória tanto na
costa marítima quanto nas águas interiores.
A racionalização do controle a partir das regras de acesso significava uma resposta,
ainda que carregada de ineficiências, pois produzia, muitas vezes, um discurso monológico e
verticatilizado quanto à relação entre Estado e Sociedade civil, geralmente representada por
conflitos sociais intracomunitários em detrimento de determinados espaços e seus recursos
disponíveis, apropriados pelos sujeitos interessados32
.
Estes aspectos contribuíram para a produção de um contra-discurso sobre as atuações
de órgãos fiscalizadores como o IBAMA, gerando uma tensão dual entre os sujeitos
envolvidos, servindo para a produção de uma visão negativa do órgão, ao mesmo tempo em
que endossava a organização ou surgimento dos movimentos sociais advindos de camadas
populares das sociedades rurais, sobretudo daqueles atingidos pela reestruturação de seus
modos de vida.
32
A relação entre a pesca comercial e a pesca de subsistência, por exemplo, representa exemplarmente as
dimensões tensionais dos atores em discurso.
104
Ao longo dos últimos anos, a regularização e normatização administrativa de
controle ao acesso dos recursos pesqueiros passa por um processo mais complexo, garantindo
uma estruturação organizacional do setor bem como da execução das atividades de captura do
pescado.
A partir da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca criada através da Lei n°
10.683, de 28 de Maio 200333
, ocorrem, de forma mais centralizada, as atividades como a
regularização e a concessão de licenças para o desenvolvimento da pesca artesanal e
comercial, assim como das atividades ligadas aos acordos internacionais de pesca ultramarina
e litorânea, e, sobretudo, da manutenção administrativa dos registros, permissões e
autorizações do exercício da profissão pesqueira (RUFFINO, 2005).
Outro elemento importante consolidado ao longo daquilo que poderíamos considerar
resultado das ações das políticas públicas em debate com a sociedade civil, através das
organizações sociais e movimentos de trabalhadores da pesca, está na regulamentação da Lei
n° 10.779 de 25 de novembro de 2003, que estipularia a concessão de seguro-desemprego aos
pescadores profissionais e artesanais no período em que suas atividades estivesses paralisadas
parcialmente, em detrimento ao período do defeso, quando ocorre a reprodução de algumas
espécies de ciclo reprodutivo ameaçados.
Neste caso, o beneficio de um salário mínimo é concedido mensalmente no período
de proibição da pesca, sendo adotados alguns critérios para o recebimento, como a
comprovação dos registros profissionais, seguro social e filiação à colônia de pescadores
local.
O desenvolvimento da produção brasileira do pescado marcado pelas políticas de
governo, a partir da década de 60, representa as ações do Estado no sentido de estimular
economicamente o setor pesqueiro. Contudo as transformações decorrentes deste processo
33
Adiante veremos como este quadro vem ao longo do último ano se redimensionado a partir da criação do
Ministério da Pesca e Aquicultura - MPA no ano de 2009 sem, no entanto, nos fornecer possibilidades seguras
de uma interpretação mais coerente com suas ações recentes.
105
implicaram mais aspectos contraditórios do que os previstos pelo simples condicionamento
das questões sociais à dimensão econômica.
Com o desenvolvimento do setor pesqueiro, também se intensificaram os conflitos, a
disputa territorial, a competição desigual entre a indústria pesqueira comercial – através da
modernização das embarcações, técnicas e apetrechos utilizados na captura. Contudo, a
sobrecarga da exploração dos recursos vem, ao longo das duas últimas décadas, se
intensificando na medida em que se consolidam também as normas de gestão e controle
através das leis estabelecidas pelos órgãos competentes.
No entanto, apesar de possuir os mecanismos específicos para o manejo, resolução
de conflitos por disputas e normas de pesca estabelecidas, as informações disponíveis
apresentam uma realidade diferenciada quanto à questão dos recursos disponíveis.
De acordo com as informações do Anuário Estatístico do Brasil, ao longo das
décadas em que houve maior desempenho das atividades de pesca, a produção nacional do
pescado passou de 281,5 mil toneladas em 1960 para 971,5 mil toneladas em 198534
. No
entanto, observa-se que, desde o ano de 1986, houve um declínio da produção, passando a
serem produzidos produzidas 798,6 mil toneladas de pescado em 1989, atingindo 697,6 mil
toneladas em 1994 (ABDALLAH, 1998).
Considerando ainda a dimensão de uso dos recursos, os dados do IBAMA segundo
Abdallah (1998) para o quinquênio 1996 a 2000, apontaram uma produção média nacional de
aproximadamente 650 mil toneladas, de alguma forma, confirmando a taxa decrescente da
produção do pescado no Brasil. Segundo o autor, é necessário considerarmos que, antes dos
anos 90, a produção média anual devido à pesca em águas interiores e à aquicultura era cerca
de 22%.
34
Os dados indicam a produção geral da pesca marinha e de águas interiores.
106
Contudo, este percentual para os anos 90 aumentou para cerca de 30%,
caracterizando, por um lado a menor participação da pesca marítima35
– apenas 450 mil
toneladas em 2000 na reduzida produção pesqueira nacional. Além do efeito das políticas
públicas sobre os estoques de pescados, há que se considerar seu efeito sobre a indústria, a
renda e o emprego no setor pesqueiro que, considerando os modelos dos programas adotados,
revelam um pouco das condições para uma interpretação das novas iniciativas que marcam a
constituição das politicas atuais para a pesca no Brasil, sobretudo com a recente criação do
Ministério da Pesca e Aquicultura.
A redução do valor da produção pesqueira e do nível de emprego na captura e na
indústria do pescado revela um perfil diferenciado ao longo dos estudos analisados sobre o
estado evolutivo da pesca no Brasil. O número de estabelecimentos industriais de preparação
e fabricação do pescado, durante o período dos incentivos fiscais, aumentou
significativamente, passando de 174 em 1970 para 272 estabelecimentos em 1985, mostrando
uma taxa média de crescimento anual de 3%; enquanto essa taxa entre 1985 e 1995 (período
posterior à política de incentivos) foi de apenas 0,18% (ABDALLAH, 1998).
É possível pensar que todos os fatores que contribuíram para o processo de
incorporação das estratégias de desenvolvimento econômico aliado ao modelo de produção
capitalista da pesca comercial, elevaram o crescimento da economia e o acúmulo de capital,
transformando radicalmente a estrutura produtiva da pesca na Amazônia. Contudo não deixou
de consolidar grupos economicamente hegemônicos, consolidando relações de poder,
dominação, uso e exploração desenfreada dos recursos naturais patrocinadas pelos incentivos
e pela forma com que tratou o Estado na busca por alternativas viáveis ao desenvolvimento
econômico da Amazônia brasileira.
35
Para Paez (1993) e Giulietti & Assumpção (1995), a redução na produção pesqueira marítima se deve à
sobrepesca de algumas espécies, sobretudo à predação dos recursos naturais pesqueiros e à conseqüente
diminuição dos estoques.
107
As inserções destes modelos acabaram causando a transformação dos padrões de
exploração das atividades pesqueira, de comercialização do pescado e de mudanças no quadro
de constituição de uma legislação específica voltadas para as questões ambientais e
verticalizadas sob a questão dos recursos pesqueiros.
Nas últimas três décadas, exerceu-se uma reconhecida influência na diminuição da
abundância dos principais estoques pesqueiros da Amazônia. Segundo Batista et. al (2004), o
quadro social que se observa dentre as comunidades pesqueiras da Amazônia está marcado
pelo o endividamento e exploração da força de trabalho dos grupos locais, transformações
socioculturais destes, mediante a introdução de novas técnicas e métodos na pesca, aumento
do esforço de pesca nos rios e lagos da região, bem como dos conflitos sociais, e pode ser
considerado como resultante da intensificação da pesca comercial.
O desenvolvimento histórico e socioeconômico da atividade pesqueira, como
atividade profissional e como uma dimensão da realidade do mundo do trabalho da região
amazônica, configura-se pelos processos que viabilizaram e inviabilizaram alternativas que
são hoje frutos da dimensão ambiental e do debate atual acerca do uso racional e sustentável
dos recursos pesqueiros.
É sob este contexto que as transformações socioeconômicas e políticas do Estado
brasileiro se articulam num processo histórico global que insere a Amazônia num discurso
onde a intensificação de estratégias que solucionassem a assimetria entre o desgaste dos
recursos naturais e o modo de produção vigente se tornaria uma preocupação global.
Neste sentido, o plano de ação para modelos de desenvolvimento econômico
possibilitaram a articulação de propostas que assegurassem sustentabilidade e crescimento
econômico, ao mesmo tempo em que assegurava a reacomodação estratégica do Capital
(LEFF, 2000) como modelo de produção vigente e inserido na região. Esta relação, de fato,
impõe à região Amazônica não só como objeto de preocupação geopolítica estratégica, mais
108
também, reflete suas feições históricas e políticas moldadas nos surtos de
nacionalização/internacionalização dos seus lugares; estas estratégias e suas transformações
decorrentes configuram uma ruptura entre as realidades pretéritas e presentes (SILVA, 2002).
Na medida em que a sobre-exploração dos recursos naturais decorre de uma
intensiva ação comercial, do cerceamento de determinados locais de pesca, da
territorilialização simbólica dos rios e demais ambientes de pesca, as formas de controlar os
espaços traduzem-se como maneiras de aproveitar de maneira múltipla os recursos
disponíveis.
Contudo, também se traduzem como reflexo dos conflitos pelo acesso aos recursos
pesqueiros, sejam eles voltados para os interesses comerciais ou para a subsistência dos
grupos sociais rurais locais, representam uma dimensão daquilo que decorre das ações de
políticas governamentais em vistas ao desenvolvimento local.
109
Capítulo 3 – Trabalhadores da Pesca
Neste capítulo, procuramos discorrer sobre as formas de organização dos pescadores
pensando a dimensão da pesca como trabalho, a partir da perspectiva diferenciada da ideia de
labor apresentada no primeiro capítulo. Desta forma, compreender o Baixo Solimões através
da comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro, e evidenciando as relações
sociais de trabalho que constituem os modos de uso e apropriação dos recursos pesqueiros.
Neste sentido, estabelecemos um diálogo com as dimensões constitutivas da pesca local
através de aspectos como as transformações sociohistóricas e econômicas das atividades
pesqueiras na região da pesquisa, os processos de comercialização e renda proveniente do
trabalho na pesca, bem como as relações sociais de produção e organização do trabalho na
Costa do Pesqueiro.
Os aspectos apontados como fenômenos interpretativos da análise social pretendida,
decorrem do fato de pensar a pesca como um elemento fundamental na constituição das
sociedades rurais amazônicas, seja enquanto atividade profissional, seja como dimensão das
experiências sociais relacionadas à reprodução do modo de vida local. Estes elementos
demonstram um diálogo quanto à relação entre sociedade e ambiente frente às dimensões que
demarcam fronteiras de acesso aos recursos disponíveis, relações sociais de trabalho e
economia local.
Na medida em que ressaltamos os resultados da pesquisa, procuramos dar
inteligibilidade no sentido de interpretar de forma mais contextualizada a fala dos
participantes da pesquisa. Compreender as condições apresentadas frente às experiências
sociais dos pescadores possibilita um entendimento das relações de trabalho nas áreas de
várzea da Amazônia quanto a sua relação com a sociedade envolvente, o Estado e as políticas
de desenvolvimento regionais que asseguram um debate sobre as questões ambientais.
110
3.1 O trabalho na pesca e suas transformações sociais na Costa do
Pesqueiro
O trabalho, como atividade humana, garante a produção e reprodução das relações
sociais de trabalho e não só o sustento da vida e da geração de renda das comunidades rurais
da Amazônia, desta forma, possibilitando adquirir outros artefatos necessários que não são
constituídos no mundo social rural por apresentarem-se como valor-de-troca.
Assim, o trabalho é entendido como um processo social mediado pela natureza que
garante não só a constituição do mundo material, mas também a cultura, o modo de vida e
manutenção das representações sociais produzidas e reproduzidas a partir do próprio trabalho.
No modo de vida da comunidade Nossa Senhora das Graças, a atividade pesqueira aparece
preponderante como fonte de renda, possibilitando-nos a percepção de sua importância para a
própria vida das famílias que lá habitam.
É necessário compreender o trabalho na pesca não a partir dele mesmo, mas da
maneira como ele constituiu e constitui os sujeitos sociais – os pescadores e as características
associadas ao mundo social da comunidade.
Para Arendt (2000), a durabilidade do trabalho humano é a marca ontológica daquilo
que denominou a prática do homo faber36
, ou seja, que fabrica a infinita variedade de coisas
cuja soma total constitui o artifício humano. Fabrica, por exemplo, na pesca, os apetrechos, o
acúmulo social dos saberes, as representações do mundo, as relações sociais de produção – o
mundo material e o imaterial. Sua durabilidade transparece pelo que fabrica e o que deixa no
mundo da reprodutibilidade da vida.
Pode-se dizer que as coisas fabricadas pelo homo faber são “objetos destinados ao
uso, dotados de durabilidade, elas não desaparecem e emprestam ao artifício a estabilidade e a
36
O homo faber que “faz” e literalmente “trabalha sobre” os materiais é a oposição ao animal laborans que
labora e “se mistura com eles” (ARENDT, 2000). Hannah Arendt explica que a palavra latina faber se relaciona
com facere (fazer alguma coisa no sentido de produção).
111
solidez sem as quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e
instável que é o homem” (ARENDT, 2000, p.149). Para a autora, as coisas fabricadas são
frutos do artifício humano e servem para a durabilidade de seu uso, o que o uso desgasta é a
durabilidade da coisa em si e não seu ideal.
A constituição do trabalho, enquanto elemento do mundo vivido, pertence à
dimensão social das representações, da construção social da historia de vida e organização dos
grupos sociais. Neste sentido, compreender esta relação requer um entendimento das
instituições da ação humana diante das transformações do mundo, no intuito de possibilitar
uma interpretação dos fenômenos sociais decorrentes das mudanças. Estas interpretações
coincidem com a dimensão da memória social dos indivíduos diante daquilo que os marca e
demarca as suas condições de existência. Considerar estes elementos na constituição das
transformações do trabalho e das mudanças nas atividades pesqueiras é um fator crucial na
medida que possibilita uma abordagem inteligível das lembranças e mudanças sociais.
Para Halbwachs (1990), a memória social pode ser compreendida como uma
construção coletiva sobre as dimensões representativas do passado sobre as condições sociais
que determinado grupo vivenciou ou vivencia no presente. Assim, a lembrança do passado
informa o grupo sobre o seu presente, dando sentido ao fato de que ambos se constroem
mutuamente – pois são socialmente perceptíveis através das redes de informações que ligam
um sobre o outro. Desta forma, a função de explicar o presente partindo das constituições da
memória social, incide sobre os valores e heranças culturais vivenciadas, definindo a visão e a
interpretação lógica que determinado grupo pode adotar sobre os fatos que vivenciaram ou os
circundam.
Como um retrato do passado, a memória coletiva tem também um papel
importante na construção da identidade do grupo. Os indivíduos se
apresentam aos outros e enxergam a si mesmos tendo como referencial
básico as suas origens, desenhadas a partir de uma memória compartilhada e
transmitida através das gerações. Neste sentido em particular, a memória
coletiva expressa os valores culturais do grupo, pois se a memória é
constituída por uma seleção de feitos e marcos « memoráveis », ou seja,
112
dignos de lembrança, ela demonstra os critérios que o grupo utiliza para
fazer sua seleção (LIMA & ALENCAR, 2001, p. 22)
A pesca vem se constituindo historicamente como atividade importante na
Comunidade. Tão importante que a denominação da localidade é Costa do Pesqueiro II onde
está localizada Nossa Senhora das Graças, a saber, que o trabalho na pesca se originou por
uma série de elementos que ao longo da história de formação da comunidade, se estabeleceu
enquanto fonte de renda para os moradores locais.
Tomando como análise as entrevistas realizadas por pescadores/moradores da
comunidade, é possível a interpretação de alguns fenômenos relacionados com o modo de
organização social da comunidade através da memória social dos sujeitos envolvidos e da
ocupação humana num período mais recente da vinda de famílias nordestinas que,
deslocando-se dos seringais do rio Purus, procuraram se estabelecer em locais como as
cabeceiras de rios e áreas de várzea principais.
No caso das áreas que compreendem o Baixo Solimões, as comunidades pertencentes
à Costa do Pesqueiro no município de Manacapuru – localizada nos arredores do perímetro
urbano do município – são exemplos significativos dos processos de dinâmica das populações
de várzea quanto ao modelo de distribuição demográfica e suas atividades socioeconômicas,
sendo relacionadas com as dimensões intersubjetivas da história social de vida.
[...] Porque os meus pais mesmo eles não são daqui não eles eram mais
antigos aqui, né. Porque eu já nasci aqui. E eu sou um dos mais novos. Aí
então que eu moro aqui mesmo eu tenho trinta e oito anos. Mas eles vivia no
Seringal, aí depois que nós viemos pra cá, né? A gente nascemos aqui, nós
trabalhava na agricultura. Aí depois apareceu o ramo da pesca aí nós viremo
pescador. Rapaz, eu... eu desde... na base de uns dezoito anos que eu
comecei a pescar. Dezoito anos pra cá, tenho vinte anos de pesca [...] (A. S.
43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
113
Também é necessário salientar que o trabalho da pesca na comunidade se insere num
contexto situado e datado dentro do processo de desenvolvimento socioeconômico da própria
região, onde as atividades pesqueiras se tornaram relevantes, na medida em que o ciclo
econômico da juta e da malva decaíam e surgiam outras alternativas de renda, como a pesca
comercial, é importante perceber que este processo culmina com os projetos desenvolvimento
econômico voltados para a Amazônia, sobretudo para a pesca comercial. A pesca comercial é
inserida como dimensão do mundo do trabalho e da vida dos grupos sociais rurais na
Amazônia brasileira diante das próprias transformações que delineariam as sua interpretações
sobre o mundo que em vivem.
As mudanças que decorrem no processo de escolha pelo desenvolvimento de uma
atividade ou trabalho que garanta um renda para além da subsistência implicam as questões
sociais e históricas referentes à vida pessoal, às escolhas e, sobretudo, àquilo que constitui a
realidade local. As transformações decorrentes destes processos indicam que a adoção de uma
atividade considerada principal predispõe uma lógica tendencialmente voltada para um
mercado mediante as políticas de incentivos adotadas.
No caso das comunidades da Costa do Pesqueiro, onde a pesca historicamente
caracteriza as atividades locais enquanto profissão, procuramos evidenciar como acontece esta
passagem de um ciclo de economia local para outro37
, considerando a fala local, sendo
representante de uma explicação lógica para o abandono de um tipo de trabalho que resultava
uma renda sazonal. Neste caso, o trabalho na Malva e na Juta bastante comercializáveis com
sua introdução no fim da década de 20 pelos migrantes japoneses e seu declínio a partir da
década de 70, sendo paulatinamente substituída nas comunidades rurais de várzea pela prática
37
É claro que, não no sentido determinista de impor uma interpretação geral e válida, mas no sentido de
compreender as ações sociais decorrentes de uma escolha como atividade de trabalho, neste caso o relativo
abandono da malva – e não da agricultura sempre praticada de forma equivalente às outras atividades – para a
pesca.
114
da pesca comercial, enquanto reflexo das condições de desenvolvimento e incentivo do
Estado.
[...] Aqui o trabalho mermo era malva, negócio da malva, da juta, mas
aconteceu porque é o seguinte. A malva, a pessoa tinha muito trabalho e o
rendimento não dava essas grande coisa. E as pessoa ficava dentro d‟água,
né? Aí começava a pegar reumatismo, fora as picada de arraia, de cobra, de
inseto, poraquê, “shami shuga” (sanguessuga). Isso aqui, ó (mostrando uma
cicatriz), isso aqui gerou de uma mordida. Aí nós visamos pro rumo da
pesca. E nós mudemos pra pesca, mas ainda ficava na pesca e na agricultura.
Aí nós criava gado também, aí nós acabamos com o gado e entramo no rumo
da pesca, mas aqui e acolá... porque afinal, a minha mãe era cearense e se
não plantasse malva pra ela, ela não criava os filhos, ela tinha uma fé muito
grande na malva. Aí antes ela nos botou todinhos pra malva. Aí isso pra ela
foi uma tristeza quando nós passamo a ser pescador. Ela ficou assim dizendo
que pra ela a pesca não ia ter lucro. Mas só que de primeiro a pesca ela tinha
uma prosperação (prosperidade) maior. Dava mais dinheiro... tinha mais
peixe. O dinheiro era quase a mesma coisa só que o peixe é que era farto
demais[...] (J. C. 59 anos, pescador e morador da comunidade Nossa
Senhora das Graças).
Podemos verificar, através dos relatos, que a pesca nem sempre foi uma atividade
predominante. Contudo, como salientamos, o desenvolvimento socioeconômico dos grupos
sociais rurais da Amazônia sempre estiveram ligados à intervenção política dos projetos
desenvolvimentistas adotados pelo Estado e, no caso da pesca, desde seu início na
comunidade não foi diferente. Como verificamos, até nos períodos mais recentes destas
intervenções, propôs-se a substituição dos “ciclos econômicos” impostos outrora através de
outros modelos de desenvolvimento econômico.
[...] antes eu não era pescador não, nem todo mundo aqui era disso, antes era
mais agricultura quando tinha umas terra aí que já se foram comida pelos
barranco nos rio, eu plantava malva...dava dinheiro, agora aqui é difícil viver
da agricultura pra vender só pra comer mesmo, aqui é difícil ter agricultor
agora, mais é pescador mesmo, mais recente a culpa foi do Amazonino (ex-
governador do Estado do Amazonas) que teve aqui e tirou a Malva pra
querer plantar soja, aí não deu certo e o pessoal se arranjou pela pesca...aí
quando o Eduardo Braga (atual governador do Estado) entrou e foi querer
dar semente de Malva pra nós plantá de novo já tava todo mundo na pesca
[...] (S. A. C. 63 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora
das Graças).
115
Para Pantoja (2005), a malva e juta conheceram sua queda a partir de 1970 quando o
Brasil começa a importar a fibra, na medida em que ainda se adotavam medidas buscando a
autossuficiência dos plantios em regiões de várzea. Considerando que grande parte das
comunidades rurais de várzea trabalham sob condições de atividades polivalentes conforme o
período hidrológico de sazonalidade das águas – agricultura, extrativismo animal e vegetal.
Cabe ressaltar que a racionalidade no que tange a escolha ou mudança de uma atividade para
outra não implica necessariamente deixar de praticá-las.
Na medida em que o ciclo econômico da malva e juta decaía em decorrência da
falência de projetos específicos voltados para este setor, abriam-se outras possibilidades de
uma renda por meio do trabalho que garantisse dinheiro para a compra de bens não
produzidos no local, necessários à reprodução social do modo de vida rural.
Alguns fatores também determinam os critérios da escolha de uma atividade para
outra: a malva e a juta eram substituídas pela profissionalização do trabalho da pesca
comercial na medida em que perdiam espaço na política de planejamento e desenvolvimento
econômico regional adotado pelas secretarias e órgãos de produção38
. Enquanto isso,
observava-se um impulso ao comércio e industrialização da pesca na região.
Por outro lado, as condições de trabalho no processo produtivo da fibra, como afirma a
fala do morador local, sempre se constituíram como práticas insalubres, oferecendo perigo
sob diversas condições e situações39
já que demandavam extensivas áreas de plantio e força
de trabalho geralmente suplementar à força de trabalho familiar.
Diferente das demais situações, onde na agricultura se pratica determinados plantios
para alimentação, base da reprodução da unidade familiar, no cultivo das fibras, sua relação é
puramente comercial – já que não se come malva ou juta – estando subjugados às leis da
38
Para uma informação mais detalhada ver FERREIRA, A. da S. Trabalhadores da malva: (re) produção material
e simbólica da vida no baixo rio Solimões. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação Sociedade e
Cultura na Amazônia/UFAM. Manaus, 2009. 39
Também não significa dizermos que as condições insalubres e perigosas da pesca comercial não oferecessem
os mesmos ou piores riscos como de fato ocorrem.
116
comercialização, sendo explorados pelos atravessadores locais e submetidos às condições
ambientais e climáticas que por hora também prejudicavam o plantio.
Contudo, com a crise da juta e malva e a inserção da prática comercial da pesca,
insere-se outra lógica quanto à apropriação social dos recursos naturais, delineando muito dos
problemas encontrados quanto a questão de sobre-exploração dos recursos pesqueiros.
A crise da juta trouxe também um aumento expressivo da pressão sobre a
fauna aquática, notadamente peixes. A pesca comercial conheceu grande
expansão nesse período. Geleiras e pescadores de fora das comunidades
passaram a freqüentar as águas dos rios, paranás e lagos, comprometendo os
estoques e potencializando conflitos com moradores locais com quem
disputava o acesso ao peixe (PANTOJA, 2005, p.161)
Neste caso, as abordagens na fala dos sujeitos entrevistados, quanto ao estoque de
pescado nos rios e lagos onde eram desenvolvidas as práticas pesqueiras, referenciam a
realidade da interpretação obtida quanto à questão das transformações, através das condições
sociais do trabalho entre os pescadores e quanto a dimensão de acesso aos recursos. Ressalta-
se muito nas falas dos entrevistados, a relação do acesso à fartura abundante de determinadas
espécies consideradas essenciais ao setor comercial, assim como seu declínio em determinado
momento.
[...]Naquela época ainda existia muito tambaqui... nos lagos, nós tínha um
motorzinho e nós subia aqui pra cima, e nós íamos pescar lá pra dentro do
copeá ali pra dentro do Solimões acima de Coari. Ave Maria, nós trazia
palpado só de “tambaquizão” mesmo. Tinha muito peixe. Não dava preguiça
pra você... olha nós saia por aí por esses lagos pra pescar, né? Aí nós dava
aqueles lance com esses arrastão grande de peixe miúdo aí, as vezes tinha
aquele urubuzal na beira perseguindo. Aí nós cansamo de partir quatro ou
cinco tambaqui assim miudinho e botava para os urubus, na hora que nós já
vínhamos embora. E sobrava que o motor não pegava. Que naquela época
tinha muita fartura, tinha muito peixe, né? O preço era quase a mesma coisa,
mas era fácil de pegar, num mês tu fazia duas, três viagem num era? Aí dava
muito. Dava pra garantir a vida né? Aí de uns tempos aí foi
fracassando mais, foi fracassando [...]. (S. C. 43 anos, pescador e
morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
A atividade é marcada por um processo social que inclui elementos bastantes
peculiares da região, a comercialização entre pescadores locais e os agentes de
117
comercialização dentre inúmeros fatores demonstram este fato. O processo de “aviamento”40
,
por exemplo, é um destes fatores que resulta da mediação desigual travada entre possuidores
do capital comercial (compradores) e donos da força-de-trabalho que obtém através dela sua
subsistência, como é o caso do moradores e trabalhadores da pesca nas comunidades rurais.
Segundo Pereira et al. (2007), o problema nesta relação socioeconômica é que o
pescador paga geralmente a sua dívida com o “aviador” com bastante dificuldade, devido ao
fato de o preço dos produtos vendidos ser bastante elevado, ao passo que o preço pago pelo
pescado se mantém quase sempre o mesmo. Esta relação desigual faz com que o pescador não
consiga manter uma receita estável e satisfatória, pois, mesmo que possa pagar sua dívida,
sobra bem pouco para investir em outras necessidades.
As informações sobre a comunidade Nossa Senhora das Graças revelam aspectos
constitutivos das atividades de pesca na Costa do Pesqueiro, sobretudo em relação aos
primeiros moradores que iniciaram a prática, sendo observados os períodos, o contexto
histórico e as formas utilizadas num momento em que ainda se popularizavam as redes de
malha, polietileno e o nylon. De forma detalhada, percebem-se às mudanças quanto as
relações sociais de trabalho entre os pescadores e suas representações quanto aos processos de
inclusão dos apetrechos utilizados na captura do pescado.
[...] O primeiro pescador aqui foi o seu Carlito. Eu era pequeno que nem esse
menino assim, eu tinha uns oito anos, né. Aí as malhadeiras as boias eram
essas latas, num têm essas latas de leite ninho? Pois é! Era, tampada.
amarrava uma corda aí botava aquelas curtiças que a gente colocava no
arrastão, aí que ele chamava meu pai pra pescar e ele só tinha uma
malhadeira, era uma malhadeira daqui pra essa cerca aí ó...ele tinha uma
canoa maior do que essa que a gente andava hoje. Era um quarenta na popa,
uma canoazona dessas de popa. Um avuador41
que ele tinha. Vinte e cinco
litros, vinte e cinco. E sempre eu fui apegado com meu pai, aí então eu
chorava pra ir com meu pai, aí nós se atava nesse barranco aí mesmo, nós só
40
Para Mello (1985), o “aviamento” é um processo caracterizado por um sistema de crédito que se estabelece
entre o „aviador‟ e o „aviado‟, onde aquele antecipa produtos ao segundo que, nada tendo em troca a dar no ato
da transação, só lhe pagará posteriormente com o resultado de seu trabalho, geralmente aparecem na figura do
patrão, regatão, feirantes, donos de frigoríficos, despachantes e marreteiros. 41
Pequenas embarcações com motor de velocidade considerável para o deslocamento nos rios, popularmente
conhecido na região como voadeiras.
118
descaía essa malhadeira só num lance, aquilo mexia nas lata tudo, a canoa só
era o bastante, essa arriada pra canoa vir até o talo de peixe. E era todo tipo
de peixe que tu imaginar, Aí o pessoal pra ter uma malhadeira era daqui pra
li... não existia linha naquela época, né [...](S. C. 43 anos, pescador e
morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
Os tipos de instrumentos utilizados apontam para um período intermediário das
transformações do modelo de pesca introduzido na Costa do Pesqueiro, já que grande parte
das atividades eram destinadas à subsistência, logo utilizavam apetrechos de baixo impacto e
relativamente artesanais como descreve Veríssimo (1985). Com o desenvolvimento intensivo
da pesca comercial no Baixo Solimões, as mudanças e introdução de novos apetrechos na
captura de espécies comercializáveis, sobretudo dos bagres42
, a partir de uma lógica mercantil
patrocinada pela grande leva de barcos de pesca, frigoríficos, e novas formas de trabalho na
captura do pescado incentivaram as comunidades locais da Costa do Pesqueiro a uma corrida
desenfreada ao trabalho comercial da pesca.
[...] As primeiras linhas que vieram depois eram aquelas linha grossa de
nylon, aqueles lombo grosso assim, hoje aqueles nylon que eles pescavam
naquele tempo é o que já entralha aqui a malhadeira. Hoje o que pesca já é
bem fininho já, mas naquela época a malhadeira era bem grossona mesmo.
Porque tinha fera que pra embarcar era uma luta, aquela ferazona monstra.
Aí aquilo era bioador. Nessa época só era de noite que a gente pescava
porque era na beira da pauzada, não pescava de dia, porque todos
trabalhavam na agricultura e tavam ocupados, o meu pai cortava seringa às
vezes saía de madrugada, aí só tinha aquele tempo pra ir só à boca da noite,
era perigoso, muita gente morria mas dava dinheiro né [..]. (S. C. 43 anos,
pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] Naquela época, tu acha que dava mais dinheiro, mas num dava quase
dinheiro era porque pegava muito. Uma época dessa se conseguisse pegar,
encher um canoa daquela de peixe que nós andava tu já ia ficar boçal de
mais porque com o dinheiro que tu ia pegar numa canoada daquela. Antes
tudo era peixe grande. Agora os peixe tudo são pequeno [...](J. C. S. 64 anos,
pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
42
Popularmente chamados de peixes lisos ou feras, ocorre uma intensificação de sua captura já que não eram
tradicionalmente consumidos por possuírem uma estética diferenciada dos peixes de escama tradicionalmente
consumidos. O termo fera parece denominar uma distinção daquilo que é animalesco e não pode ser domado
(consumido) pelo homem na medida em que circundam elementos e crenças populares à seu respeito, tais como
a reima descrito por Mariza Peirano (1975) em A reima do Peixe: Proibições Alimentares numa Comunidade de.
Pescadores.
119
A pesca representa hoje boa parte da renda dos moradores da comunidade, ao mesmo
tempo em que ela se impõe como atividade importante, traz mudanças significativas do ponto
de vista das relações estabelecidas entre a comunidade e o mercado da pesca. Por se tratar de
uma atividade que possui um caráter muito singular, acabou desenvolvendo-se de maneira
crescente nas comunidades a ponto de se verificar, através dos depoimentos seguintes,
importantes transformações:
[...] quando eu comecei num era tudo isso que é hoje, num era todo mundo
que tinha material não, eu só tinha uma rede, hoje cada um tem quatro ou
mais rede de pesca (A. A. S., 42 anos, morador, pescador e proprietário de
um flutuante que comercializa a produção do pescado na comunidade).
[...] aumentou muito o número de utensílios pros pescadores, isso porque a
colônia financiou pra quem não tinha condições também ( D. C. B. 32 anos,
morador, pescador e proprietário de um flutuante que comercializa a
produção do pescado na comunidade).
Na medida em que o capital se expande e dinamiza as relações sociais de produção
torna as mudanças inexoráveis. A mobilidade dos recursos pesqueiros nos ecossistemas
marcados pela complexidade dos fenômenos naturais é, em grande parte, responsável pela
imprevisibilidade da captura com reflexos imediatos na própria organização da produção e do
mercado, as modalidades de relações sociais entre os agentes da produção parecem ser
também influenciadas pelas condições naturais em que se realiza essa atividade (DIEGUES,
1983), no entanto, denotam mais elementos constitutivos que possibilitam as transformações
necessárias para a efetividade da prática pesqueira.
As mudanças sociais decorrentes dos processos de constituição da comunidade
Nossa Senhora das Graças incidem sobre os momentos de transformação das condições de
reprodução social local e das formas de trabalho estabelecidas. Para além das mudanças
físico-espaciais que instituem o território ambiente das localidades, a dimensão do trabalho e
120
dos ciclos econômicos de desenvolvimento local demonstra aspectos significativos ao
entendimento da formação das práticas de pesca.
A instrumentalização da racionalidade comercial na pesca, incentivada por um boom
do modo de produção capitalista na Amazônia, pode ser pensada na medida em que
contextualizamos a dimensão empresarial das grandes indústrias de beneficiamento do
pescado na região. Particularmente em Manacapuru, este processo fora incentivado pela
chegada dos frigoríficos43
, proliferando o tipo de pesca embarcada, incentivando os
moradores locais à profissionalização da prática pesqueira sem, no entanto, fomentar as
condições legais para estas ações.
Isto implica dizer que a parte significativa de todo o processo de produção/captura do
pescado era realizada de forma autônoma pelos pescadores, já que o investimento da pesca se
voltava para as grandes empresas e para a aquisição de materiais e apetrechos, armando os
pescadores moradores das comunidades e incentivando a lógica do comércio do pescado,
assim, vendia-se o peixe convertendo em dinheiro e este convertido em bens necessários ao
modo de vida rural local dos pescadores.
Para Cruz (2009), estes fatores decorrentes da mudança social da vida ribeirinha na
Costa do Pesqueiro ocasionariam a ânsia de se conseguir uma boa pescaria entre os
comunitários e uma boa venda, lançando-se na captura de espécies até então não pescadas,
abrindo a concorrência pela captura dos peixes lisos e ocasionando o controle do acesso a
determinados locais de pesca, demandando territorialidades e mecanismos de uso dos recursos
interpretados sob leis consuetudinárias locais enquanto expressões da organização dos
pescadores.
Esse tipo de relação impôs uma lógica de exploração da mão de bra autônoma e sem
custos para as grandes empresas frigoríficas, além de incentivar à subordinação à captura
43
Ver Smith (1979) e Parente et. Al. (2005) sobre o desenvolvimento da pesca e sua relação com os modelos de
inserção industrial do capitalismo na pesca dos peixes lisos.
121
desenfreada e uso extensivo e intensivo de apetrechos mais eficazes, tensionando os estoques
de pesca nos lagos e rios de livre acesso. Na medida em que se instigavam os conflitos e
disputas territoriais demarcando-se espaços, incentiva-se a pesca nas noites e madrugadas a
bordo de pequenas canoas nos grandes rio da região e nos lugares onde tradicionalmente se
pescava para fins de subsistência.
Para pensar a atividade pesqueira, a partir deste contexto, é necessário salientarmos a
sua importância na medida em que resulta numa alternativa de subsistência e renda. Alguns
aspectos representativos que se tornam importantes nas comunidades rurais, onde a pesca se
insere como atividade profissional, é a predominância da pesca como atividade monovalente.
Tal como compreende Furtado (1993), a pesca monovalente se ocupa prioritariamente
enquanto elemento único ou principal de atividade remunerada, reservando pouco tempo para
outras atividades de subsistência. Contrário a isso, na categoria social da pequena pesca
comercial, destaca-se a figura do pescador polivalente, pescador não especialista, que, devido
a diversos fatores, como o hidrológico, costuma exercer uma multiplicidade de atividades de
subsistência.
No caso da comunidade Nossa Senhora das Graças, os princípios encontrados que
caracterizam os moradores como pescadores profissionais monovalentes estão em sua
singularidade e na maneira como lidam com esta atividade. Na medida em que há uma
extensão do mercado consumidor e a disponibilidade de recursos pesqueiros próximos às
comunidades, é possível que um maior número de sujeitos sociais passe a se dedicar à pesca
como principal meio de vida. Para viabilizar a produção pesqueira, os sujeitos sociais tendem
a se (re)organizar socialmente, inclusive no âmbito de suas forças produtivas, objetivando
garantir a sua sustentação material e social.
A reorganização das unidades de produção, isto é, dos grupos de pescadores
e de suas forças produtivas ou meios de produção se distingue quanto à
intensidade da pesca comercial praticada em nível local. A quantidade e
diversidade de apetrechos, o tempo gasto na atividade da pesca, o número de
pescadores atuando coletivamente na captura do pescado varia conforme o
122
interesse e as condições dos grupos sociais.As famílias destas comunidades
dispõem de diversos ambientes de pesca e de uma infinidade de espécies de
peixes potencialmente comercializáveis, sobre as quais atuam diferentes
categorias sociais de pescadores (PEREIRA et al. 2007).
As atividades da pesca no Amazonas possibilitaram, nos dias de hoje, o crescimento
de um mercado que também inseriu a comunidade Nossa Senhora das Graças, pois possibilita
um acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento desta atividade, na medida em
que os pescadores possuem compreensão da demanda e comercialização do pescado nesta
região. A expansão do capital, a articulação de formas diferentes de organização da produção,
a dominância de uma forma de produção sobre as outras, sua realização histórica diferenciada
em nível nacional e regional são elementos que, segundo Diegues (1983), são as bases na
interpretação das chamadas diferenças regionais existentes na pesca.
Estas também se caracterizam pela apropriação final do produto pelo modo
tipicamente capitalista das relações sociais de produção, que é realizado pelo intermédio das
pequenas unidades de produção familiares, em regime de produção mercantil simples, como
no caso das comunidades rurais que trabalham com a pesca, mas a comercialização do
produto é realizada por empresas capitalistas de fora da área.
3.2 Trabalho, Renda da água e as redes de comercialização.
Trabalhar com a dimensão da renda da água significa uma interpretação sobre as
atividades desenvolvidas no trabalho da pesca considerando a constituição dos fatores
socioeconômicos e ambientais, já que a teoria da renda se refere a uma capitalização dos
recursos disponíveis, sejam eles a força de trabalho e as condições de acesso ou
transformações dos bens e recursos. Em todo caso, o objetivo maior é compreender os
sentidos dados aos rios, lagos e demais ecótipos sobre sua capacidade produtiva diante da
atividade da pesca, sobretudo comercial, criando a possibilidade de transformarem-se em
123
renda para grande parte dos moradores das comunidades que possuem na pesca esta
viabilidade.
Na tentativa de compreender a relação entre o trabalho da pesca e o uso dos recursos
pesqueiros, procuramos delinear algumas características que constituem o marco referencial
da análise pretendida. As dimensões do trabalho e sua relação com a renda obtida através da
água – de seus recursos – permite-nos interpretar o processo de comercialização e as relações
sociais de produção. Porém, acreditamos ser essencial uma reconstituição, ainda que grosso
modo, das categorias de entendimento sobre a teoria da renda da terra nos estudos da
economia clássica para que, desta maneira, possamos viabilizar uma interpretação mais
fundamentada a respeito da realidade amazônica44
.
Nas teorias do pensamento econômico clássico, a teoria da Renda da terra aparece
como elemento constitutivo do modo de produção capitalista e possue lugar considerável nas
estruturas de organização da sociedade e seus modelos de produção.
Geralmente, atribui-se a teoria da renda da terra a partir das análises de David
Ricardo sobre as taxas de lucro da acumulação capitalista e sua relação com as questões
fundiárias e os antagonismos das classes sociais. Contudo, a questão ganha um profundo
debate a partir de outros teóricos da economia inglesa, sobretudo Thomas Malthus, Adam
Smith e, mais adiante por Karl Marx.
É claro que, no processo de compreensão dos fenômenos econômicos decorrentes da
sociedade européia, as transformações que demarcam a constituição do mercado e da
consolidação do modo de produção capitalista não poderiam se deslocar do centro do debate
sobre produção e riqueza a questão da terra. Com a valorização dos recursos naturais, a terra é
vislumbrada enquanto dimensão representativa de todos os recursos naturais (o solo fértil, as
árvores, os rios) passíveis de se transformarem em bens para a necessidade humana, tornando
44
Para outra interpretação sobre o processo de trabalho nas várzeas e sua relação com a questão da Renda
consultar Fraxe (2000): Elementos constitutivos da produção camponesa: A renda da “terra molhada” e a
Renda da água.
124
sua relação com o homem crucial, frente à produção de riquezas enquanto sua necessidade de
valor de troca.
A teoria Malthusiana sobre a análise do crescimento populacional e sua relação com
a produção de alimentos mostrava, para além de uma análise fisiocrata, que a tendência de
progressão aritmética do crescimento da população acarretaria uma demanda pela terra. Logo,
o preço e os custos da produção e uso da terra tenderiam a crescer, explicando que a renda
obtida desta relação poderia ser interpretada através de elementos como a qualidade e
fertilidade do solo, as características singulares do produto como uma demanda do mercado e
a escassez de terras mais férteis para o processo de produção. Para Lenz (1981), destes três
elementos, Malthus afirma que o primeiro é mais importante do que o fator de monopólio que
foi reconhecido anteriormente. Pois ele afirma que a qualidade da terra é um presente da
natureza ao homem e é essencial na formação da renda.
Utilizando as teorias de Malthus, David Ricardo assinala que as questões
relacionadas à renda da terra indicam uma constituição onde os diferentes graus de
produtividade da terra exigiriam uma maior quantidade de trabalho para a sua produção,
ocasionando sua teoria do valor sobre o preço de determinado produto e gerando, desta forma,
a renda. Neste sentido, propõe, como hipótese, que a renda da terra poderia ser pensada pelo
grau de fertilidade dos recursos naturais que ela dispõe para a produção, assim outros fatores
como a concorrência igualariam a taxa de lucro dos trabalhadores de terra que arrendassem
terras dos proprietários capitalistas.
Ricardo denomina de a Lei da Renda Fundiária, a relação em que os produtos das
terras mais férteis são produzidos a custo menor, porém vendidos ao mesmo preço das
propriedade menos férteis, possibilitando aos seus proprietários uma renda fundiária igual à
diferença de produção, pois se acreditava que o preço da terra era dado em função das piores
125
condições de produção, o que significa as piores terras, desta forma, a melhor terra tinha o
maior preço, Ricardo denomina esta diferença de renda da terra.
Sua definição, segundo Lenz (1981), corresponde ao fato de que a renda se configura
como parte do valor do produto total que resta ao proprietário após o pagamento de todas as
despesas de qualquer espécie correspondente ao cultivo; nestas, incluindo todas as despesas e
os lucros do capital empregado, fazendo o calculo da taxa usual e comum dos lucros do
capital agrícola no período de tempo considerado.
A renda da terra, para Adam Smith, corresponde ao preço pago pela existência da
propriedade privada da terra. Neste sentido, deve-se ressaltar o fato de ter sido o primeiro
autor a identificar a renda da terra como uma categoria econômica e ter empreendido o estudo
mais exaustivo e mais longo existente na história do pensamento econômico (LENZ, 1981).
Para Smith, sua análise econômica decorre sobre os aspectos que marcam o fenômeno de
relação entre a renda da terra e a questão da determinação dos valores e preços atribuídos ao
processo produtivo e, sobretudo, sua distribuição a partir de classes sociais diferenciadas
economicamente, traçando, assim, um perfil sobre o processo de desenvolvimento econômico
e da riqueza dos países capitalistas. Para Lenz (1981), a análise de Adam Smith significa um
marco, um divisor de águas, em relação à abordagem dada à análise da renda da terra, pois é
só a partir de seu estudo que fica estabelecida a base analítica da qual todos os autores que o
sucederam se utilizaram necessariamente.
Em Karl Marx, a teoria da renda da terra ganha as contribuições teórica de David
Ricardo no sentido de formular suas observações acerca da concentração fundiária do capital
através do processo de especulação e acumulação. Ampliando o domínio das interpretações
econômicas do modo de produção capitalista, Marx (1971) diferencia os tipos de renda a
partir da categorização de alguns aspectos cruciais ao entendimento do fenômeno. Neste
126
sentido, apresenta quatro tipos de renda: A Renda Absoluta, a Renda de Monopólio e as
Rendas Diferenciais I e II.
Para Marx (1971), esta diferenciação resultava em elementos de compreensão
ordenados de acordo com as ações no processo produtivo. A Renda Absoluta era obtida pelo
próprio solo, ou seja, suas características físicas (relevo, área, etc.), já a Renda do Monopólio
era determinada pela condição única do solo em relação ao mercado (Valor). Contudo, em
ambos os casos, o proprietário obtinha a renda.
Aprofundando estes aspectos, Marx (1971) delineia outros os elementos constitutivos
da teoria da renda da terra, através da Renda diferencial I e II. Assim, a Renda Diferencial I
seria determinada pelas condições naturais do solo explorado no processo de produção de
riqueza no capitalismo, neste sentido, destacam-se, por exemplo, a fertilidade e a localização
da terra, pois permitiriam menores gastos para produzir pelo mesmo equivalente de espaço a
quantidade de produtos que em outros lugares com piores condições de produção. Na Renda
Diferencial II, os termos da taxa de lucro se ajustam pela determinação da quantidade de
capital investido na terra por meio da utilização de equipamentos favoráveis a um melhor
resultado na produção, por exemplo, o uso da irrigação, drenagem, insumos e fertilizantes,
possibilitando maior volume de produção de forma intensiva em quantidades de terra menos
favoráveis.
A partir de uma análise sobre o uso dos recursos pesqueiros e sua relação com o
trabalho desenvolvido e a renda obtida pelos pescadores, procuramos apontar alguns
elementos que constituem a realidade social da pesca na Costa do Pesqueiro através dos
resultados obtidos em campo de pesquisa, para que possamos pensar na constituição daquilo
que denominamos de renda da água.
O fato de Manacapuru ser um dos municípios responsáveis pela grande quantidade
de pescado comercializável no Médio e Baixo Solimões, comporta a dimensão de município
127
dotado de grande quantidade de profissionais da pesca no abastecimento de mercados
regionais e nacionais. A racionalidade econômica da pesca perpassa pelas ações dos
pescadores em voltar seus interesses para a captura e comercialização do pescado em espaços
socialmente diferenciado e territorialmente demarcados.
Contudo, tornar a pesca uma atividade de trabalho que necessariamente possibilita
uma renda em dinheiro, decorre dos pescadores uma compreensão de que existe uma
demanda estabelecida sobre o acesso e comercialização, estrategicamente desenvolvida no
campo econômico regional, antes pouco pretendido na região e agora estabelecida pelo
advento da pesca comercial na região e de seus incentivos à tecnificação do setor pesqueiro
(Figura 23).
Entendido como fonte de valor-de-troca na obtenção de outros bens de consumo não
produzidos no mundo rural, a pesca comercial possibilita no Baixo Solimões e demais
regiões, uma reconfiguração das relações de trabalho, apropriação dos recursos naturais
disponíveis e, conseguinte, maior intensificação das relações comerciais entre pescadores
(indiferente de seus métodos artesanais ou não de captura) e o comércio estabelecido entre os
Figura 23 – Percentual de origem do desembarque de
pesca do Estado.
Fonte: CARDOSO, 2004.
128
agentes interessados em se apropriar do pescado, sobretudo os flutuantes nas comunidades e
frigoríficos em Manacapuru, formando, assim, as redes de comercialização da pesca.
Os ribeirinhos vendem os produtos dos diversos ecótipos em que trabalham e
compram, através do mercado em rede, produtos que nem eles, nem seus
vizinhos produzem. Os agentes de comercialização, por isso, assumem um
papel fundamental, adquirindo, em outros setores da sociedade global, esses
produtos (vestuário, óleo, remédios, café, açúcar, querosene etc.), cada um
desses produtos pode, inclusive, ter sido originário (matéria prima) de mãos
camponesas de outras regiões, Estados ou nações (FRAXE, 2000, p.159).
Para Wolf (1970) a definição de mercado em rede agrega elementos distintos entre a
predisposição comercial das sociedades rurais e o fruto de seu trabalho manterem um diálogo
com extensões comerciais de troca de bens socialmente diferenciados, pressupondo um valor-
de-troca, neste caso, a relação entre a renda proveniente da pesca. Ainda que haja uma
distinção entre grupos socialmente diferenciados, enquanto membros de comunidades ou de
pescadores em determinados espaços, o mercado se encarregaria, por um lado, de agregar
indistintamente estes sujeitos, mediando seus objetivos e agindo como elemento regulador das
relações de interesse e troca comercial.
Essa cadeia de troca envolve não somente um número crescente de
intermediários, mas também, adicionam ao movimento horizontal bens e
serviços aos membros de uma população camponesa. Através deles, os bens
passam, do campo às vilas, das vilas às cidades do interior, das cidades aos
portos, dos portos aos mercados da capital (Manaus), ou até mesmo a outros
países. Nesta perspectiva, as trocas em um mercado local, dos bens
produzidos também localmente, formam apenas um pequeno setor de trocas,
no mercado regional. As permutas regionais são, apenas, uma pequena
amostra da rede nacional de troca, que é uma pequena parcela dos mercados
internacionais (FRAXE, 2000, p.160).
Evidentemente, não podemos reduzir as redes de comercialização da pesca a partir
de uma perspectiva que considere somente a dimensão econômica já que, em se tratando da
vida rural dos grupos sociais amazônicos, outros elementos sociais também constituem sua
relação com o mercado e as redes de comercialização da pesca, aspectos fundados nas
129
relações tradicionais que agregam fatores como parentesco, religião e organização político-
comunitárias.
Ainda que a intensificação das atividades pesqueiras proporcione uma relação
diferenciada entre o uso dos ambientes, os sujeitos envolvidos e as relações comerciais
predispostas numa rede de comercialização e a constituição de aspectos do mundo
tradicionalmente vivido em comunidade delineiam as trocas, o trabalho e até mesmo a relação
de conflito na disputa territorial de acesso ao pescado.
Por outro lado, não devemos desconsiderar que todos estes fatores não interessam ou
interessam parcialmente ao mercado pesqueiro, já que são parcialmente invisíveis em
detrimento das condições impostas sobre o trabalho executado e o valor do produto obtido,
possibilitando não muito além de laços econômicos45
entre detentores do capital comercial –
os grandes frigoríficos, flutuantes e barcos de compra do pescado (atravessadores) – e os
pescadores que trabalham de forma autônoma ou embarcados.
Em Nossa Senhora das Graças, a pesca é realizada em ambientes diferenciados entre
espaços abertos e fechados, dentre os quais, os lagos, furos e os rios Solimões e Purus,
principais ambientes de pesca local, apresentam atividades consideráveis para as quais se
deslocam alguns pescadores com barcos motorizados, e os diferentes lagos e igapós sempre
muito piscosos.
As informações obtidas demonstram a relevância das atividades pesqueiras no
município de Manacapuru, assim como na comunidade Nossa Senhora das Graças, onde a
presença do mercado comercial da pesca transparece nas relações entre os pescadores locais e
os flutuantes existentes na comunidade, que funcionam como um entreposto do pescado até a
45
É claro que não deixamos de considerar que, para além das condições econômicas, existe uma esfera da vida
política bastante atuante que regulamenta os direcionamentos das políticas pesqueiras, sua relação com a
economia e com o ambiente e recursos disponíveis. Atualmente esta relação ganha mais sentido e
reconhecimento quando consideramos a importância da participação política dos pescadores através de
sindicatos, associações e colônias de pescadores mediando o dialogo tenso entre Sociedade civil e Estado.
130
comercialização final nos grandes frigoríficos na sede do município em Manacapuru, e de lá
para outras regiões do país.
Os frigoríficos, por sua vez, mantêm relações com os trabalhadores da pesca nas
comunidades através da compra dos seus produtos e também pelos vínculos de parentesco e
de convivência com os pescadores já que também são moradores da comunidade.
A comercialização da pesca na comunidade é mediada na maioria das vezes pelos
flutuantes e pelos barcos de pesca que funcionam como atravessadores e levam o pescado
para os frigoríficos em Manacapuru, já que poucos pescadores se dirigem diretamente aos
frigoríficos localizados na sede do município; nos flutuantes, o produto da pesca é pesado e
armazenado, seu equivalente é pago aos pescadores conforme a tabela que designa o preço do
pescado, seu tamanho e qualidade de acordo com o período hidrológico do momento.
Figura 25 – Terminal pesqueiro de Manacapuru, um
dos locais que recebe diariamente o pescado
capturado pelos trabalhadores das comunidades rurais
do município.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 24 – Flutuante localizado na comunidade
servindo como entreposto da comercialização do
pescado até seu destino final em Manacapuru.
Fonte: RAPOZO, 2008.
131
Como afirmamos, poucos são os pescadores que se deslocam ao mercado de venda
do pescado em Manacapuru, além dos custos de deslocamento, existem outras relações que
demarcam a renda final obtida na captura do pescado, muitas vezes, condicionadas a uma
Figura 26 – Desembarque da captura do pescado em
um dos flutuantes na Comunidade.
Fonte: RAPOZO, 2008.
Figura 28 – Destino de comercialização da pesca na Comunidade
Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
Figura 27 – Barco atravessador que medeia a
comercialização do pescado
Fonte: RAPOZO, 2009.
132
relação de controle dos flutuantes, através da subsunção dos apetrechos utilizados na captura
ou do pagamento adiantado do produto aos pescadores.
Este processo induz a pesca em pequena escala e de forma autônoma na comunidade,
pois, nas condições atuais, o custo para os pescadores seria mais alto se ocorresse diretamente
a entrega do pescado direto aos frigoríficos na sede do município, por isso os pescadores
optam em manter relações comerciais com os patrões donos dos flutuantes, na comunidade,
estando sujeitos à variação dos preços do pescado, como afirmamos, dependendo do período
(ciclo hidrológico dos ambientes aquáticos), da oferta e da demanda do pescado.
Figura 29 – Apetrechos utilizados na captura do pescado.
Fonte: RAPOZO, 2009.
133
A partir destes elementos é possível demonstrar como ocorrem os processos que
desencadeiam as redes locais de comercialização do pescado e a renda da água como
resultado da força de trabalho e enquanto valor-de-troca dos pescadores da comunidade Nossa
Senhora das Graças.
Figura 30 – Processo de recepção do pescado
no flutuante onde são separados por espécies.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 31 – O pescado é separado por tamanho
e, em seguida, pesado.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 32 – Armazenamento do pescado para em seguida ser levado ao
barco.
Fonte: RAPOZO, 2009.
134
Em se tratando das condições apresentadas sobre o tipo de renda proveniente do
trabalho na pesca, podemos considerar alguns aspectos para o entendimento de nossa
interpretação. O valor da renda absoluta, ou seja, obtida sob as condições ambientalmente
dispostas é o elemento estrutural das atividades desenvolvidas, já que na renda da água não
há uma apropriação física do cerceamento dos rios e lagos (no sentido de delimitação de
propriedade territorial individual amparada por legitimidade jurídica), posto que os recursos
pertencem ao patrimônio da União. Logo, há uma apropriação social dos recursos pesqueiros
disponíveis nestes ambientes de livre acesso com fins puramente comerciais. Contudo, a
existência de áreas de uso fisicamente definidas – sobretudo, das comunidades rurais,
demonstra o surgimento de uma renda através da captura do pescado em determinados locais
e da apropriação comum a determinadas áreas.
Se todos os ambientes de pesca (lagos, rios, furos e paranás) possuíssem as mesmas
condições de estoque dos recursos pesqueiros sendo ilimitados e predisposto à apropriação
comum, sua utilização não arrecadaria custos nem a formação de uma renda do ponto de vista
estritamente econômico. Somente porque os recursos pesqueiros encontrados nos ambientes
apropriados pelos pescadores possuem seu caráter limitado, pressupondo uma disputa pelo
acesso e controle, é que se tenderia a gerar uma valorização do uso dos ambientes aquáticos,
levando posteriormente à renda.
Segundo os princípios da oferta e da demanda, nenhuma renda seria paga em troca
do uso do ar e da água, ou de quaisquer outros bens da natureza existentes em quantidade
ilimitada. Considerando que os recursos pesqueiros são finitos, a renda referente à pesca
pressupõe uma demanda do mercado e conseguinte valor atribuído ao trabalho.
Dessa forma, somente porque os recursos pesqueiros não são ilimitados em
quantidade nem uniforme na qualidade, e porque a crescente demanda do mercado impõe as
condições comerciais, o trabalho na pesca tende a propiciar aos pescadores as desvantagens
135
no processo de obtenção da renda, já que as condições de demanda e comercialização do
pescado não acompanham os custos relativos ao processo de trabalho e a sobrecarga da
exploração de determinadas áreas que, ao longo dos últimos anos, se tornaram escassas e
altamente controladas pela pressão interna de comunidades e grupos sociais, resultado da
intensificação da pesca comercial.
Como afirma Marx (1971), a Renda Diferencial I é determinada por meio das
condições naturais do solo explorado no processo de produção de riqueza no capitalismo. Nas
águas dos ambientes de pesca, os recursos disponíveis se apresentam de forma distinta, não é
o ambiente físico do espaço que determina a renda, mas a força de trabalho empregada na
captura do pescado nas áreas propícias, naturalmente ao encontro de determinados tipos de
peixes ou cardumes que possuam valor de troca no mercado dos grandes frigoríficos em
Manacapuru.
Marx vai além quando destaca que o valor da renda obtida em determinada local é
resultado de sua boa localização e fertilidade. Neste caso, o saber dos pescadores em
determinar áreas de pesca já conhecidas indica, geralmente, a riqueza ictiofaunística em áreas
de livre acesso, como nos rios e em lagos altamente piscosos, férteis de pescado.
Considerando, desta forma, que estes elementos permitam menores gastos para a captura –
pois o fator do tempo é estruturante na pesca – facilitando as melhores condições de captura e
comércio enquanto elementos importantes do processo de aquisição na renda da água.
Os estudos disponíveis sobre a comercialização do pescado na região dos rios e lagos
do Estado do Amazonas geralmente apontam para categorias de trabalho sobre a pesca
relacionadas aos aspectos como o caráter artesanal, a identificação das embarcações e do
desembarque comercial a partir de condições ou fatores relacionados com o processo de
comercialização (Falabella, 1994; Parente, 1996), contudo, apontam para uma dimensão
136
econômica daquilo que representaria a renda obtida no trabalho da pesca, além de possibilitar
um diálogo sociológico sobre as questões discutidas46
.
Nos ambientes de pesca local, como os lagos e, principalmente, o rio Solimões, a
captura do pescado requer, além do conhecimento local sobre determinados pontos e
pesqueiros, a composição dos custos relativos à atividade. Estes custos, considerados como
um investimento sobre a captura do pescado vão desde o tipo de embarcação, e motor
propulsor, geralmente utilizado em pescarias de rio, o combustível para o deslocamento, o
período de dias viajando quando nas pescarias embarcadas, a confecção ou compra de
apetrechos específicos para o tipo de pescaria e de espécies pretendidas, o gelo para conservar
o pescado e até a força de trabalho complementar paga em adiantamentos aos parceiros da
pesca47
.
46
Cardoso et al (2004) ressalta que a escassez de pesquisas com enfoque socioeconômico na região acabou
gerando apenas abordagens bio-ecológicas que não viabilizariam uma avaliação de instrumentos efetivos para o
manejo da atividade pesqueira. 47
Elemento das relações de trabalho analisado mais adiante.
Figura 33 – Material custeado para a captura do pescado em larga escala,
utilizando apetrechos específicos.
Fonte: RAPOZO, 2009.
137
Nas pescas embarcadas48
, Cardoso et al. (2004) afirma que os custos de
comercialização são aqueles decorrentes das taxas pagas pelo desembarque e a comissão do
despachante no momento da comercialização da produção. Estes custos são ressarcidos após a
venda do pescado e o lucro eventual é dividido em parcelas denominadas de cotas-parte, entre
o armador e os participantes da pesca, de acordo com a função exercida (Parente, 1996)49
.
Na Renda Diferencial II, segundo Marx (1971), os termos da taxa de lucro obtida
no trabalho se refere ao ajustamento da determinação da quantidade de capital investido no
trabalho por meio da utilização de equipamentos favoráveis a um melhor resultado na
produção.
Desta forma, entendemos que a realidade da composição dos custos contidos na
renda da pesca refletem não só aquilo que objetivamente é gasto, mas também se pressupõe
que os custos relativos ao trabalho sejam ressarcidos com o resultado final da renda para o
trabalhador. A composição da renda resultante da pesca é fruto do trabalho exercido entre os
moradores da comunidade, geralmente efetuada com a ajuda de parceiros ou parentes,
contudo, em grande parte, a composição da renda familiar tem origem no trabalho do pai e de
seus filhos ou da própria mulher, sendo crucial para a manutenção da unidade econômica,
(Figura 34).
48
A pesca embarcada é entendida aqui como uma atividade profissional da pesca mediada pelo relação
assalariada ou não dos pescadores mas que dispunham de condições contratuais com empresas de pesca ou
frigoríficos destinados à comercialização, efetuando um tipo de pesca marcado geralmente por longos períodos
embarcados nos rios e lagos à procura da captura do pescado, utilizando-se duma divisão social do trabalho
através da racionalização da mão de obra e uso diferenciado de apetrechos de pesca mais sofisticados quanto ao
processo de captura. 49
Para o autor, com exceção dos adiantamentos (encargo do armador), os itens de maior dispêndio para o custeio
das expedições de pesca embarcada (combustíveis, gelo e rancho) são frequentemente financiados por seus
frigoríficos e seus prepostos, por despachantes ou pelos fornecedores (comércio em geral e balsas fornecedoras
de combustíveis, os pontões, para grandes embarcações).
138
Contudo, sabemos que as dificuldades em obter melhores resultados nas pescarias é
um fator de risco na atividade, pois entram em jogo outras questões, a disputa pela
apropriação e controle dos territórios, a escassez do pescado em determinados períodos, as
normas de controle e as formas de trabalho vide relação com os flutuantes e frigoríficos que
normatizam o preço da comercialização. Todos são elementos cruciais que refletem de
alguma forma no resultado final da renda obtida pelo trabalho na pesca.
A quantidade de embarcações no Baixo Solimões e de pescadores das comunidades
que trabalham de forma autônoma (no sentido de não manter algum vínculo empregatício
profissional com os grandes frigoríficos, diferente do tipo de pesca embarcada financiada por
estes) demonstra uma importância quanto à função social da renda obtida através da pesca,
pois significa a manutenção do modo de vida da economia familiar local e da economia do
município de Manacapuru.
Figura 34 – Composicão da renda familiar obtida através da pesca.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
139
[...] antigamente nós pescava só numa época agora a gente pesca todo tempo,
nós fazemo isso porque agora tem comprador direto de todos os estados,
vem tudo comprá fera aqui em Manacapuru. ( A. P. M. 51 anos, pescador e
morador da comunidade).
Contudo, a concorrência elevada entre os pescadores barateia a mão de obra
pertencente à força de trabalho empregada nas atividades pesqueiras, já que a oferta de
pescado tende a crescer quanto maior for a quantidade de pescadores envolvidos na captura e
apropriação territorial dos rios e lagos.
Este elemento indica outro fator, a redução do preço do pescado em determinados
períodos de fartura na captura, o que induz ao monopólio dos frigoríficos mediados pelos
flutuantes que compram o pescado nas comunidades, por um preço abaixo do cobrado em
outros períodos sazonais, reduzindo consequentemente a renda per capita do pescador em
certos períodos que a atividade possibilita maiores ganhos.
Independente dos ambientes onde a pesca é exercida, verificamos que a taxa de
comercialização e preço do pescado é o mesmo, indiferente do fato de que o trabalho nas
pescarias possa demandar maiores custos aos pescadores - deslocando-se para lugares mais
distantes (sendo necessário combustível), com a depreciação de seus apetrechos de pesca e de
sua embarcação, a comercialização mediada pelas redes de comércio dos agentes locais
estipulará o preço, independente dos custos adicionais da pescaria, o que lança o pescador a
correr riscos materiais, quando, por exemplo, não obtém sucesso na captura do pescado.
A pesquisa implica que a relação preço/kg/captura do pescado varia de acordo com o
período do ciclo das águas. Exemplo disso é o fato de observamos que, no período de vazante
e seca, período em que a pesca é mais produtiva, o preço/kg do pescado tende a cair devido à
grande quantidade de pescado capturado; já no período da enchente e cheia, momento em que
encontra dificuldade na captura do pescado, o preço/kg tende a subir (Quadro 1).
140
Período
hidrológico
Preço pago por pescado conforme a classe/qualidade em kg
1ª classe 2ª classe 3ª classe
Enchente R$ 4,00 R$ 3,00 R$ 1,40
Cheia R$ 4, 50 R$ 3,00 R$ 1,70
Vazante R$ 3,50 R$ 2,80 R$ 1,00
Seca R$ 3,00 R$ 2,50 R$ 0,80
As variações no valor obtido da comercialização se apresentam de forma condicionada
aos períodos de alta e baixa oferta de demanda do pescado, considerando a qualidade do peixe
ou seu alto ou baixo valor no mercado (entre 1ª , 2ª e 3ª classe). Nos períodos onde a oferta do
pescado é maior – entre a vazante e na seca dos rios e lagos –, o preço comercial do peixe
estipulado pelos frigoríficos e flutuantes nas comunidades tende a ser menor. Contudo, nos
periodos de escassez do pescado – entre a enchente e cheia dos rios e lagos –, o valor tende a
subir de acordo com as demandas do mercado e com a especulação dos frigorífico, (Figura
35).
Quadro 1 - Preço do pescado pago/kg e relação com o período hidrológico entre os entrepostos
comerciais de pescado na comunidade Nossa Senhora das Graças – Manacapuru (Am).
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2008-2010.
Figura 35 – Análise do valor pago aos pescadores obtido na
comercialização do pescado de acordo com o período hidrológico e a
qualidade do peixe.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de Campo, 2009.
141
É possível também verificarmos, a partir dos pescadores entrevistados, os melhores e
os piores períodos para pesca entre os moradores da comunidade segundo a dimensão
comercial e de subsistência (Figura 36). Verificamos que os períodos correspondentes à
vazante e à seca se apresentam, segundo os moradores, como épocas onde a captura do
pescado é facilitada por conta da diminuição das áreas alagadiças. Segundo os moradores, este
diferencial se explica porque, na vazante e na seca, “os peixes estão juntos”, o que facilita sua
captura, revelando a diminuição do canal dos rios, lagos e paranás e a concentração do
pescado.
Diferente dos períodos correspondentes à enchente e à cheia, onde, para os moradores,
os peixes “se espalham” nos lagos e em outros ambientes, o que nos possibilita pensar na
diversidade de ambientes alagados que dificulta a concentração dos cardumes tidos como
preferenciais na comercialização e revela também a dificuldade encontrada no uso dos
apetrechos e na captura do pescado.
Figura 36 – Frequência relativa ao período de sazonalidade das águas revela a escolha dos
melhores e piores períodos de captura do pescado.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de Campo, 2009.
142
Alguns elementos são importantes para explicar a pesca na comunidade Nossa
Senhora das Graças: a facilitação do desembarque do pescado nos flutuantes; os barcos de
grande porte que facilitam a pesca; o uso de utensílios que facilitaram, ao longo do
desenvolvimento histórico, a atividade pesqueira – tais como o uso das caixas de isopor e do
gelo que conserva o pescado nos grandes barcos.
Figura 37 – Barco utilizado para o armazenamento do pescado que é levado aos
frigoríficos em Manacapuru.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 38 – O porão do barco é utilizado para
o armazenamento do pescado.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 39 – O gelo é utilizado para a
conservação do pescado até os frigoríficos.
Fonte: RAPOZO, 2009.
143
Para compreendermos este processo, também, podemos demonstrar como a
comercialização poder ser entendida se considerarmos um fluxograma que identifique os
processos que delineiam as etapas que vão desde os trabalhadores da pesca até os
consumidores (Figura 40).
No sentido de complementar o quadro de informações sobre a pesca local, Pereira et
al. (2007) demonstraram a partir de variáveis quantitativas uma caracterização dos elementos
que fazem parte do processo que desencadeia na comercialização do pescado na comunidade
Nossa Senhora das Graças (Figura 41).
Para a realização do quadro da atividade pesqueira, o autor adota as seguintes
variáveis: número de ambiente disponível para a pesca nas proximidades da comunidade
(AMB); número de famílias que comercializam o pescado (NfamCmr); número de espécies
comercializadas (spCmr); número de famílias que utilizam gelo para conservação do peixe
(gelo); número de famílias que mantêm relações de troca com agentes de comercialização do
pescado (AgtCmr); número de famílias que destinam o peixe comercializado para várias
localidades (DstCmr) e o número de espécies capturadas por comunidade (spCpt), seja para
consumo próprio, seja para venda.
Os resultados demonstram o uso de apetrechos e a relação com os ambientes de
pesca de uma maneira que os possibilita relacioná-los com a dimensão do modo de vida da
comunidade aliado ao trabalho da pesca enquanto atividade profissional.
PPeessccaaddoorreess
FFlluuttuuaanntteess
AAttrraavveessssaaddoorr
FFrriiggoorrííffiiccooss
CCoommeerrcciiaannttee
CCoonnssuummiiddoorr
Figura 40 – Fluxograma que identifica as etapas no processo de comercialização do pescado.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
144
O uso de gelo pelas unidades de produção pesqueira das comunidades, isto é, pelos
grupos de pescadores, é algo recorrente na pesca, uma vez que os sujeitos locais, por não
disporem de energia elétrica, precisam conservar o peixe em caixas de isopor até o término da
pescaria ou até adquirir uma quantidade razoável de gelo para, posteriormente, vender todo o
produto da pesca aos agentes compradores – atravessadores, regatões, feirantes, donos de
frigoríficos, despachantes, patrões, marreteiros – que compõem a cadeia produtiva da pesca.
Figura 41 - Índices relacionados às variáveis da pesca comercial
intensiva nas comunidade Nossa Senhora das Graças.
Fonte: PEREIRA et al. 2007
145
O resultado desta relação decorre, geralmente, de um processo de exploração e
monopólio das relações de trabalho, pois o gelo nas comunidades rurais pode significar
relações de poder e de domínio sob o outro, já que também se constitui como um dos
elementos pertencentes aos custos efetuados na relação de obtenção da renda da água. Muitas
vezes, o gelo é utilizado como forma de pagamento ou de empréstimo dos flutuantes locais
para os pescadores, sendo descontado do resultado financeiro com a pesca.
Figura 42 - Índices de acesso ao gelo utilizado nas pescarias
da comunidade Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.
Figura 43 - Pontos de venda ou empréstimo do gelo na comunidade Nossa
Senhora das Graças.
Fonte: RAPOZO, 2010
146
Pereira et al. (2007) apontam, com relação a estas variáveis, que há forte tendência ao
uso do gelo na comunidade. Com relação à comercialização e aos agentes compradores do
pescado (AgtCmr), verifica-se que as famílias vendem o seu pescado para nove diferentes
agentes de comercialização – agentes situados e não situados na comunidade.
A última variável acima (Figura 41) trata do número de famílias e dos locais para
onde é destinado o produto de suas pescarias (DstCmr). Sobre este aspecto, em Nossa
Senhora das Graças, por exemplo, observou-se que 34 famílias destinam o seu pescado para
diversos lugares, distribuídos entre a sede do município de Manacapuru, para municípios
próximos, para a capital Manaus, para outros estados e outros países.
Pereira et al. (2007) ressaltam que uma mesma família possivelmente comercializa o
seu pescado com mais de um comprador, destinando-o para locais distintos. Em Nossa
Senhora das Graças a comercialização do pescado está localizada numa área geograficamente
estratégica, nas margens do rio Solimões, e em frente do município de Manacapuru, um dos
principais mercados consumidores do estado do Amazonas.
Do outro lado, a comercialização do pescado induz à especulação e acúmulo do
produto que, quando congelado durante meses, passar a valer um preço mais alto que o pago
na aquisição, gerando, desta forma, um lucro (no sentido da mais-valia marxiana) para os
flutuantes e frigoríficos que comercializam o peixe em nível regional e nacional como
resultado do capital investido na compra do pescado resultado do trabalho socialmente
necessário para a obtenção da manutenção da vida dos pescadores/moradores das
comunidades da Costa do Pesqueiro que se aventuram neste tipo de atividade no sentido de
obter uma renda financeira advinda deste tipo de trabalho.
Estes agravantes refletem não só o modelo de incentivo ao monodesenvolvimento da
atividade pesqueira na região, pois os frigoríficos estimulam indiretamente os pescadores a
largar outras atividades pertencentes ao seu mundo rural, como a agricultura. Para Cardoso et
147
al (2004), esta inflexibilidade de mão de obra é comum no setor pesqueiro, devendo ser
estudada a priori para permitir a melhor alocação deste, de modo que viabilize a melhora da
economicidade do setor.
Isto significa dizer que, apesar do trabalho da pesca regulado ou não enquanto
atividade exercida de forma autônoma ou profissional (no sentido do contrato de trabalho para
empresas e barcos de pesca), pelos moradores da costa do Pesqueiro (o que se evidenciou em
geral fora a pesca autônoma de relações contratuais com as empresas), revela que a relação
entre os custos, o mercado do pescado, a demanda e a oferta do produto nem sempre
interagem em beneficio do sujeito que pesca, já que trazer o produto para a venda contratual
ou não para os flutuantes e frigoríficos que mantêm uma relação direta, não significa um
retorno financeiramente considerável daquilo que fora gasto, permitindo, em muitas das
vezes, a reprodução do sustento familiar em detrimento de uma atividade que viabilize em
curto prazo uma renda proveniente da pesca.
A renda da água pode ser pensada como o resultado da principal atividade de
trabalho para grande parte das famílias rurais da Costa do Pesqueiro e, em particular, para a
comunidade Nossa Senhora das Graças, onde, praticamente, inexiste a comercialização de
demais recursos naturais disponíveis, já que a agricultura, a criação de pequenos animais e a
caça representam valor de uso relacionados a subsistência do modo de vida local. Desta
forma, a pesca passa a ser praticada como atividade comercial, criando uma dependência
maior enquanto, geralmente, única fonte de renda da unidade familiar, na qual resulta do
resultado final do esforço de trabalho, subtraindo-se os ganhos financeiros (mais-valia) dos
agentes de comercialização e dos recursos empregados na pescaria.
É claro que, no outro lado da questão, a renda da água produz mais-valia ao outro
que não é o pescador autônomo morador da comunidade: os donos dos flutuantes e
frigoríficos em Manacapuru, que se apropriam do pescado da forma mais barata e com os
148
menores custos possíveis, especulando através do congelamento do pescado, segurando o
produto para sua revenda nos períodos de escassez, logo, sendo beneficiados pelo melhor
preço e comercialização no processo de demanda e oferta.
3.3 As formas de organização do trabalho na pesca
3.3.1 Os parceiros do rio Solimões
A pesca na comunidade também revela fatores resultantes dos processos internos das
relações sociais de produção. Além de demonstrarmos o caráter constitutivo e real das
condições materiais necessárias à reprodução da pesca como trabalho, falta-nos outro
elemento importante neste processo – a dimensão das relações estabelecidas entre os homens.
A pesca também revela o delineamento das relações sociais, os laços de solidariedade e a (re)
afirmação da sociabilidade comunitária, da identidade do pescador, os valores e os códigos
internos de compreensão entre aqueles que pertencem ao mundo especifico da pesca local e o
entendem como sujeitos agentes.
Em Nossa Senhora das Graças, por meio das relações de parentesco, as parcerias na
pesca ou prática da meia, são fatores cruciais para compreender como o mundo vivido
estruturado pelo habitus comunitário e a dimensão do trabalho são indissociáveis.
O estatuto social que assume as relações da pesca, no momento em que
predomina o mundo das águas, implica conservar relações sociais
consolidadas, mas também, diante do imperativo das novas condições da
vida, se for necessário, engendrar novas formas de convivência.
(WITKOSKI, 2007, p. 328)
As parcerias revelam a maneira como os moradores da comunidade interagem na
atividade pesqueira, pode ser considerada como um dos elementos mais importantes de
integração social da vida rural na várzea amazônica, integração social intracomunitária e
intercomunitária (WITKOSKI, 2007). Elas acontecem nas comunidades rurais como
alternativa na busca da subsistência utilizada para a comercialização, onde os pescadores em
149
número de dois ou mais se unem em canoa buscando um melhor resultado na pesca,
geralmente um na direção com o remo enquanto o outro prepara o lanço (a rede que é
estirada).
A parceria entre os pescadores na comunidade Nossa Senhora das Graças acaba
sendo essencial à medida que é mantida e reafirmada pelos pescadores como estratégia de
obtenção do pescado seja para comercialização ou para subsistência. As parcerias, por
acontecer em um espaço natural/social extremamente plástico (WITKOSKI, 2007), a as águas
parecem unir os homens e potencializar, assim, a interação social entre os moradores da
comunidade a partir das unidades de produção familiar distintas e interconectadas através das
relações de parentesco.
Os resultados indicam, também, a frequência e as relações de parentesco exercidas
na parceria (Figura 45). A maioria dos pescadores estabelecem uma relação muito rígida no
exercício da atividade pesqueira quando se fala na escolha do parceiro, estes, por sua vez,
geralmente, são filhos, primos, cunhados ou ainda vizinhos, que são pertencentes ao
cotidiano, a construção de suas biografias como homens da várzea e como pescadores, ou
seja, compartilhando muitas vezes do mesmo capital cultural, das mesmas dimensões de
representação do mundo.
Figura 44 - A pesca realizada através da meia une funções
importantes, o condutor da embarcação e o recolhedor do lanço.
Fonte: RAPOZO, 2009.
150
Quando não há força de trabalho que satisfaça as condições efetivas de determinada
atividade, como no caso da pesca, seu complemento acaba sendo quase que inerentemente
praticável resultando consequentemente na divisão final do produto estabelecido de forma
igualitária ou não, observando, neste contexto, o caráter da reciprocidade explícita sobre as
condições materiais instituídas pelos agentes no processo de trabalho.
[...] aqui cada um tem seus parceiros e ninguém larga porque se largar fica
ruim pra arranjá [...] (R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da
comunidade).
[...] meus filho tudo pesca e estuda junto, pesca com os primo deles e tudo,
tem uns que num querem continuá nem a estudá, alguns se arrependeram
num aprenderam nada, mas querem mesmo é pesca, e é pescá com o outro
da família também, porque num pode ser com qualquer um não. (R.S. 53
anos, pescador e morador da comunidade)
As parcerias revelam não só a dimensão comercial das práticas de pesca, mas
também dão sentido aos momentos de sociabilidade e de solidariedade em grupo,
ressignificando a dimensão de cooperação, o que condiz com a seguridade da própria
reprodução física e social da existência em comunidade, calcadas sobre a sociabilidade
Figura 45 - Frequência das atividades de parceria na
pesca realizado entre os moradores da Comunidade
Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.
151
marcada por distinções próprias, de relações onde se identifica que as parcerias acabam
surgindo da necessidade de mão de obra complementar para o trabalho.
[...] Tenho quatro filhos, 3 meninas e esse menino, mas ele num pesca
comigo mais não, ele já pesca na outra canoa. Porque eu tenho duas canoa, aí
ele pescava comigo, né, só que ele estuda à noite e ele chega onze horas, dez
e meia aí a minha faixa de sair é duas horas da madrugada pra sair pra pesca,
porque o peixe ali ele dá mais no amanhecer do dia, o peixe sempre se move
mais assim de quatro horas em diante, aí a pessoa tem que pegar aquele
horário que ele esteja andando que é pra melhor ele cair no arrastão. Aí ele
ficou pra sair nessa outra canoa porque ele já sai mais de manhã porque ele
estuda, né? Ele sai com um meu sobrinho aí que já sai pra ir com ele. (S. C.
43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] Não dá pra pescar só, e eu só faço isso, porque é através de uma parceria
porque aí eu pesco com ele, né. Antes eu pescava com o meu menino,
quando eu pescava com o meu menino tudo era nosso, o quê que nós tinha?
Só as despesas e vinha tudo pra mim, pra família, né? Agora tem outros
gastos quando é com os outros[...] (L. S. 32 anos, pescador e morador da
comunidade Nossa Senhora das Graças).
Não descartamos que existam, no âmago dessas relações de trabalho, contradições
que resultem numa não realização destas atividades. O sentido dado à reciprocidade material
da força de trabalho reflete também as disputa entre famílias ou espaços de pesca, sejam
Figura 46 - Percentual das relações de parceria entre os
pescadores na Comunidade Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.
152
voltados para a subsistência ou, na maioria das vezes, para a comercialização (o que para o
capital se revela como algo tão comum, a disputa).
O que ressaltamos é o fato de que as parcerias se configuram a partir de distintas
especificidades encontradas no campo simbólico da relação entre os indivíduos, mediadas
pelas condições ambientais disponíveis, considerando ainda que sugerem a complementação
da força de trabalho para além do círculo familiar, insurgindo em contratos informais pré-
estabelecidos que diretamente nada tem a ver com o processo ao qual estão inserido – os das
relações de produção tipicamente capitalista.
A divisão social do trabalho realizado na pesca de parceria considera ainda a maneira
como resultado do produto da pesca é repartido. Existe uma racionalidade subjacente ao
processo de divisão do produto da pesca. O resultado compreendido sobre o que é
denominado de meia, implica as questões de repartição do resultado final da pesca obtido
através das condições do custo gasto no trabalho através dos materiais utilizados. Neste
Figura 47 - As parcerias denotam como função social a reconstituição
dos laços de sociabilidade entre os indivíduos de mesmo parentesco, na
medida que se constituem como trabalho pela obtenção de renda na
pesca comercial.
Fonte: RAPOZO, 2009.
153
sentido, força de trabalho, divisão social do trabalho e os apetrechos usados na captura,
embarque e transporte dão o significado para o modo de divisão da renda obtida.
[...] a meia na pesca é assim, é diferente da meia do roçado, se pesca dois ou
mais, mas é repartido por três, por exemplo você tem uma rede e uma rabeta
e eu tenho minha vontade, aí quando nós voltá da pesca eu tiro a minha
parte, e você tira a sua parte e mais a parte da rabeta e da rede, então reparte
em três né, porque você tem o que eu num tenho e ainda gasta a gasolina
né.” (A. S. 33 anos, morador e pescador da comunidade Nossa Senhora das
Graças)
[...] A pesca de meia pode ser assim, eu tenho a canoa, o arrastão, e a rede aí
eu pego o vizinho pra pescar lá ele não tem nada ele vem só com a força de
trabalho e a comida, aí quando é na semana, eu tenho até a nota ali do que
nós fabriquemos essa semana (daquilo que foi pescado). Aí, vamos supor, aí
analisa, ele vai comigo, se nós pegar bem ele ganha bem porque aqui nós
tiramos as despesas e divide em três partes, uma parte é dele, aí então se eu
tenho uma canoa, uma Honda, uma rede e entro que nem ele, eu fico com
duas parte. (S. C. 43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa
Senhora das Graças).
As relações se complexificam na medida que, ao expressar a informação sobre o fato
de a divisão do produto na pesca compreender além da força de trabalho, os elementos
pertencentes aos meios de produção. O barco, as redes de pesca, o motor e o gasto do
combustível são fatores muito importantes neste processo chegando a ser considerados como
uma força de trabalho complementar que se incorpora ao trabalho humano, já que é
introduzida a racionalidade do tempo de depreciação das máquinas e instrumentos utilizados
na captura, superando até a vontade do outro que possui somente a força de trabalho e não os
meios de produção necessários para a pesca, geralmente comercial.
[...] De primeiro nós dividíamos em quatro partes, porque tirava uma da
rede, e uma da Honda e comigo eu tinha que ganhar três. Aí tinha que ser
uma pra cada um, aí se tu for tirar uma pra cada um não tem quem vai querer
pescar contigo. Tu não acha nenhum, tu... depois tu diz, rapaz ele não ta
mentindo não, se eu for repartir em quatro parte eu vou sozinho pescar
porque não tem quem queira ir comigo porque o lucro dá, mas dá pouco.Aí
não tinha quem quisesse mais pescar. (L. S. 32 anos, pescador e morador da
comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] Hoje eu tiro duas parte, uma parte da Honda, e outra da rede juntos, aí
uma parte pra mim, porque é o direito mesmo... porque acaba a rede e acaba
154
o motor, né? É. o gasto da Honda e o gasto da rede, esse é que é o negócio.
Aí, mas analisa bem. Aí depois tu analisa bem, aí olha, essa minha rede ela
tá nova, essa minha Honda ele tá com oito anos que eu comprei ela, mas só
que essa Honda aí é uma Honda daquelas de oito, essas Honda de oito de
antigamente são muito boa, potente, ela tá com oito anos e eu nunca abri
nem sequer um parafuso, né. Agora pra dizer, é na minha mão. Com zelo,
entendeu? Assim até que dá pra juntar. Mas de primeiro a pessoa compraria
assim ganhando meia parte compraria uma Honda e um arrastão agora não
dá mais. Se tu ganhar que nem ali, eu ganho uma parte dali eu tenho certeza
que se a colônia não financiasse isso daí eu não conseguia comprar mais uma
rede e uma Honda com aquele que eu tiro dali que não dá [...] (S. C. 43 anos,
pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
Outras maneiras também garantem a atividade da meia na pesca. As relações entre os
patrões ou donos dos flutuantes com os pescadores também estabelecem um modo especifico
de atividade onde, por exemplo, um indivíduo (patrões e donos dos flutuantes nas
comunidades) que possui os meios de captura do pescado (barco, apetrechos, motor, etc.)
empresta a outros pescadores (que formam uma parceria e possuem somente sua força de
trabalho para realizar a pesca comercial no rio) os apetrechos destinados a captura. O
resultado final obtido na pesca é repartido entre os 3 sujeitos, o indivíduo que possui os
elementos indispensáveis para a captura do pescado e não executa a tarefa de ir à pescaria, e
os pescadores que recebem sua parte obtida de uma divisão equivalente em decorrência do
resultado final.
Verifica-se que estas atividades marcam profundamente as relações de exploração de
reprodução das relações de poder entre patrões e pescadores autônomos em um sistema de
aviamento dos meios necessários à reprodução da atividade pesqueira que é descontada ao seu
final.
[...] eu, por exemplo, tenho um flutuante, e não pesco muito porque tem que
cuidá da pesca dos outro, então eu dou o meu material, as rede e a rabeta,
pra dois irem pescá, aí quando eles volta nós divide em três, uma parte de
um, outra parte de outro e a minha parte por causa do meu material. (A. A.
D. S. 42 anos, morador, pescador e proprietário de um flutuante que
comercializa a produção do pescado na comunidade Nossa Senhora das
Graças).
155
[...] aí então os flutuante daqui desse lado compra do pessoal que pesca por
aí, né?Só que bota pra trabalharem também, no caso de um aqui, ele tem
oitenta arrastão, viu? Então se ele faz assim, arrenda a canoa e bota a gente
pra pescar lá, ele nem pesca, nem o filho dele, ninguém. Ele só fica pra dar o
material pra tu pescar, aí ele só ganha uma parte boa, aí ele compra o peixe,
né? Rouba muito na balança. Paga do preço que ele quer que o arrastão é
dele, só que agora ele tá caindo muito, né que o pessoal com esse
financiamento cada qual tá fazendo o seu arrastão, o flutuante dele chega ta
chato n‟água com os arrastão dele tudo em terra que não tem ninguém pra
pescar mais com ele. (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade
Nossa Senhora das Graças).
A pesca é (re)construída na comunidade sob condições específicas. As características
descritas variam de comunidade para comunidade na Costa do Pesqueiro, dependendo da
relação estabelecida entre a organização dos grupos sociais e, sobretudo, da maneira como
estes são motivados socialmente a agir a partir de determinados objetivos.
A pesca comercial – por se tratar de uma das dimensões do mundo vivido e das
relações de trabalho rural que tem a ver com a própria constituição deste mundo, seja como
garantia para reprodução dos laços sociais, ou da existência humana – impõe pelo trabalho a
possibilidade de garantir os meios materiais para o consumo, pois é valor de troca e se insere
na esfera das mercadorias comercializáveis como um fator característico da comunidade
Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro.
É claro que não podemos subtrair a dimensão que situa a pesca como atividade de
subsistência (labor), pois seu resultado é consumido e redimensiona-se como força de
trabalho. Contudo, para além disso, ela produz a durabilidade necessária para a construção
artificial da mundaneidade, como trabalho e pelo trabalho cria e recria percepções, códigos,
apetrechos, une o material e o ideal de uma maneira em que somente é recriado e recriado
pelas mãos humanas e pela artificialidade da imaginação e criatividade do homem que habita
a várzea e compreende as relações de trabalho estabelecidas em seu mundo vivido.
156
3.3.2 O uso de apetrechos na captura do pescado
Com as transformações decorrentes da dinâmica do setor pesqueiro não só as
relações de trabalho mudaram, recriando outras formas para além das parcerias, contudo, o
modo como se pesca hoje é resultado das mudanças sociais decorrentes das revoluções
técnicas no processo de captura do pescado. Mesmo assim, as parcerias ainda decorrem da
relação predisposta entre indivíduos interessados sob o mesmo fim, daí a importância de
interpretar as mudanças do tipo de trabalho executado na pesca a partir da contextualização
histórica anteriormente apresentada no lugar de pesquisa.
As pescarias decorrem da forma como os indivíduos organizam sua força de trabalho
para efetuar a captura do pescado. Os usos e introdução de novos apetrechos, como
afirmamos, fora essencial para a consolidação das práticas de pesca, pois demonstram o
sentido e as funções sociais decorrentes da organização para o trabalho conforme a
dinamização do uso de determinados utensílios, principalmente na pesca de rio.
Para Cruz (2009), estas transformações decorrem, sobretudo a partir da década de 90
do século passado, com as mudanças do setor pesqueiro, delineando uma abertura comercial
mais intensiva, sobretudo com o estabelecimento dos frigoríficos em Manacapuru. O autor
aponta para alguns aspectos interessantes quanto às mudanças decorrentes da prática de pesca
comercial nas comunidades do Pesqueiro em Manacapuru, como por exemplo, a substituição
do uso de canoas movidas a remo para as canoas movidas a motores, as denominadas rabetas
ou os Hondinhas50
. Desta forma, a pesca, antes executada através de duas canoas e 4 pessoas
movidas a remo, passa ser feita por uma canoa e duas pessoas.
50
Devido à popular introdução dos motores de marca Honda financiado pelos governos locais, permitindo
maior acesso à aquisição dos moradores locais, para deslocamento e utilizado na pesca.
157
A predominância do uso de apenas uma canoa se deu em função da
introdução do motor e principalmente da introdução da boia. Isso
possibilitou uma liberação de mais camponeses-ribeirinhos para essa
atividade, pois na pesca em canoas movidas a remo geralmente usava-se a
parceria entre duas famílias. O advento do motor na embarcação
impulsionou cada família a adquirir o seu e tornar-se “independente”
(CRUZ, 2009, p. 256).
Estas transformações foram decorrendo na medida que o setor comercial da pesca se
estruturava, possibilitando uma abrangência maior e “livre comércio” entre os agentes de
comercialização, incentivando cada vez mais as comunidades locais trabalharem na pesca
mediante outras condições, surge por exemplo a pesca noturna, possibilitando maiores perigos
pela corrida ao pescado.
Antigamente naquela época não existia malhadeira, não tinha bóia, é porque
ali naquela época só era o anzol e o arpão, a gente arpoava muito, tinha tanto
que a pessoa arpoava na beira assim. E aquele que já teve aquela primeira
ideia de fazer a primeira malhadeira... mas era muito difícil ter uma
malhadeira e aquele que tinha os outros roubavam. Tinha que pegar aquela
malhadeira e colocar num canto bem escondido porque tinha aquele outro
que queria roubar aquela malhadeira [...] (L. S. 32 anos, pescador e morador
da comunidade Nossa Senhora das Graças).
Outros elementos como a introdução das boias no lanço, facilitaram a captura que
agora obedecia outras leis, as do tempo do mercado e a possibilidade que grandes quantidades
e cardumes de pescado fossem vendidos entre os pescadores, mudando o tempo de pesca
antes executado somente no período de águas baixas (agosto e dezembro) e agora realizado
também no período de águas altas (janeiro a julho), tornando-se um trabalho diário (CRUZ,
2009).
158
Desenho: Ma rcos Castro/2007
Org.: Ma nuel de Jesus Ma sulo da Cruz/2007
Fonte: tra balho de ca mpo/2006
Figura 48 - As mudanças no processo de trabalho da pesca associada ao uso dos apetrechos e
relações de trabalho estabelecidas.
Fonte: Desenho de Marcos Castro (2007) in: Cruz (2009).
159
Estas grandes transformações como afirma Polanyi (1980)51
, decorrem não só da
maneira como se ocasionaram as revoluções técnicas do modo de captura na pesca, sendo
bastante impulsionadas pelo mercado de comercialização local, mas também pelas condições
da relação social de trabalho efetuada pelos pescadores sob a forma de uso dos apetrechos.
[...] Ah, agora a pesca ela ficou mais fácil porque... você... de primeiro a
pesca, ali onde você viu aquelas boias ali, eram duas canoas botavam uma
canoa remando uma pra lá e outra pra cá. Aí tu ficava remando. Assim que
as redes... as malhadeiras eram tudo pequenas, né? Aí se encolhesse muito aí
não pegava quase peixe. Aí tu ficava remando pra cá e o outro pra lá. Eram
duas canoas. Agora já tiveram essa ideia de botar essas duas boias[...] (S. C.
43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] Hoje em dia na pesca aqui no rio é uma boia de um lado e uma do outro,
aí a correnteza atrás. Mas de primeiro era assim duas canoas uma remando
pra cá e outra pra lá. Aí vamos supor tu ficava no meio do sol quente, ai
agora vamos supor se o sol tá quente e se tá chovendo se tu não quiser pegar
o sol aí tu bota lá e tu vem praí pra sombra aí ela vai passar aí se ela não
engatar ela vai ter que passar aí. Aí só faz sair pra puxar. Que nem naquela
hora que nós vinha ali ela já vinha n‟água. Aí naquela hora nós já tinha que
sair pra puxar[...] (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade Nossa
Senhora das Graças).
Neste sentido, um dos elementos que possibilita pensar o trabalho na pesca e suas
formas de organização em Nossa Senhora das Graças é o uso de apetrechos enquanto
essenciais para esta atividade. O trabalho da pesca é tido como um elemento que associa a
dimensão de apropriação dos recursos pesqueiros com vistas à manutenção da subsistência
familiar e em grande parte, como demonstramos, para a comercialização. Contudo, esta ação
só é possível pela conduta que regula os artifícios essenciais para a obtenção do pescado.
Neste sentido, a importância histórica do desenvolvimento e aparecimento dos apetrechos
destinados à pesca é crucial para uma interpretação sobre as ações que constituem a prática da
pesca como trabalho.
51
Para Karl Polanyi (1980) em A Grande Transformação - as origens de nossa época, os processos sociais e
econômicos vividos pela constituição da sociedade moderna são ocasionados pelas mudanças decorrentes dos
rearranjos político-institucionais que reordenaram o modo de produção capitalista enquanto sistema de produção
difundido e consolidado em nossa sociedade, permitindo desta forma uma compreensão das relações de troca, de
trabalho e de mercado até então não vividas em sociedade, propiciando para além destes aspectos, profundas
modificações nos grupos sociais e suas organizações.
160
O uso dos apetrechos de pesca, por um lado, é mediado por um acesso que permite a
compra através de financiamentos pela colônia de pescadores de Manacapuru, atualmente
possibilitando e incentivando o empréstimo de recursos, aumentando o tempo e tornando mais
eficiente as atividades de captura do pescado, popularizando ainda mais o uso das grandes
redes de arrasto confeccionadas para a captura em larga escala, especialmente de bagres.
Figura 49 - Pescador confeccionando a tramalha que será utilizada
na captura do pescado.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 50 – Rede de Arrasto tecida pelo pescador da comunidade.
Fonte: RAPOZO, 2008.
161
Por outro lado, a confecção dos apetrechos aparece como um elemento importante
das atividades pesqueiras, pois dele resulta o trabalho e o resultado da pesca enquanto força
de trabalho, na medida em que o próprio pescador constrói suas possibilidades de obtenção de
renda. Em Nossa Senhora das Graças, onde a pesca é uma atividade representativa, os
apetrechos produzidos e utilizados são de diversos tipos, voltados geralmente para a captura
em escala comercial, o uso do material para a confecção das redes de arrasto é obtido por
meio da compra dos tipos específicos de linhas de tecer destinadas ao tipo de apetrecho
pretendido (Figura 47).
Em geral, a pesca realizada tanto para fins comerciais – sobretudo no rio Solimões,
quanto para fins de subsistência nos lagos, são reguladas por apetrechos que garantam maior
eficiência na captura do pescado como as redes de diversas modalidades, sendo pouco
utilizados os tipos de pescaria mais artesanais, como o uso do arco e flecha, zagaia e arpão.
Figura 51 - Frequência relativa de respostas com relação
à fabricação dos apetrechos de pesca.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2008.
162
Desta forma, o processo de fabricação e uso dos apetrechos possui uma dimensão
muito particular. Como afirmamos, geralmente os apetrechos são feitos ou, quando
comprados, sua manutenção é realizada para não inviabilizar a captura do pescado.
Os apetrechos aparecem como resultado da efetiva concreticidade do mundo do
trabalho, sua fabricação depende muito da racionalidade alcançada com a percepção de uso da
força de trabalho que será gasta, do etnoconhecimento dos recursos ictiofaunísticos, dos
territórios de pesca, enfim, de uma relação mais abrangente com o próprio mundo enquanto
associado com a predisposição de seus recursos.
Os apetrechos encontrados na comunidade, a partir da fabricação própria, remetem a
duas dimensões: a primeira é o conhecimento das técnicas que viabilizam a fabricação, tendo
a ver com a durabilidade do mundo e da atividade humana. A segunda possibilita demonstrar
a dimensão comercial da pesca através dos apetrechos que possuem a maior frequência
relativa a sua fabricação ou compra, considerando que representam parte significativa dos
Figura 52 - Manutenção das redes de arrasto.
Fonte: RAPOZO, 2009.
163
custos relacionados à pesca e do resultado obtido transformado em dinheiro para o
proprietário do apetrecho (Figura 53).
O arrastão e o tresmalho (ou tramalha) aparecem como apetrechos que facilitam a
captura do pescado voltado para o comércio, diferenciando-se da malhadeira e dos demais
apetrechos que são utilizados pelos moradores tanto para o consumo quanto para a venda,
possuindo menor relevância quanto sua capacidade de captura que é infinitamente menor do
que a do arrastão e da tramalha. Ainda no caso da comercialização, quando a comercialização
do pescado se torna atividade profissional tem-se a necessidade de pensar na própria
capacidade de produção e de super-exploração dos recursos, assim como na combinação e
produção de utensílios destinados a sua captura.
Por associarem-se enquanto peça fundamental das atividades da pesca visando à
comercialização, os apetrechos e os materiais utilizados emprestam às coisas do mundo sua
relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a objetividade que as faz
resistir e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus
Figura 53 - Análise descritiva dos apetrechos que são feitos na localidade.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
164
fabricantes e usuários (ARENDT, 2000, p.150). Sua confecção ou compra revelam, por trás
de seus objetivos comerciais, a importância de sua relação com a manutenção da vida, já que,
em grande parte, refletem o modelo de apetrecho utilizado e voltado para a dimensão de
intensificação da captura e disputa comercial.
A fabricação dos instrumentos que nos permite pensar, resultado do trabalho do
homo faber (ARENDT, 200), no caso específico dos trabalhadores da pesca na comunidade
Nossa Senhora das Graças, consiste na concretude do ideal materializado nos apetrechos.
Significa dizer que, no caso da confecção dos materiais e dos apetrechos para a
pesca, está incluso o quanto será gasto, a dimensão de uso, a racionalidade direcionada para
cada parte detalhada na confecção de determinado apetrecho, o conhecimento advindo do
processo de saber-fazer empírico o qual se constitui como representação do real, sem contar é
claro, com a objetividade da ação, a captura da pesca.
No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando
algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no
mundo como unidade independente, é acrescentado ao artifício humano [...].
O processo de fabricação, ao contrário da ação, não é irreversível, tudo o que
é produzido por mãos humanas pode ser destruído por elas, e nenhum objeto
de uso é tão urgentemente necessário ao processo vital que o seu não lhe
possa sobreviver e permitir-se destruí-lo. (ARENDT, 2000, P.157)
Disto resulta que a solidez das coisas do mundo durável é um produto do homem, e
ele a condiciona da maneira de como necessita e interpreta, que age e como conhece. A pesca
traduz a singularidade das ações que, mesmo voltadas como trabalho e para a comercialização
revelam que “a solidez inerente das coisas, até mesmo as mais frágeis, resulta do material que
foi trabalhado; mas essa mesma matéria não é dada ou disponível, o material já é um produto
das mãos humanas, ou no caso de qualquer outro objeto passível de ação humana”
(ARENDT, 2000, P.152). Assim, a qualidade da permanência do modelo ou imagem, o fato
de existir antes que a fabricação comece e de permanecer depois que ela termina,
165
sobrevivendo a todos os possíveis objetos de uso que continuam ajudando a criar o mundo faz
parte da ação humana e do trabalho na pesca.
Isto nos possibilita demonstrar quais e como são utilizados os apetrechos pelos
pescadores de Nossa Senhora das Graças, o que inicialmente representa uma dimensão
objetiva de uso, uma dimensão definida a partir de estratégias adotadas na captura do pescado.
Também é, ao mesmo tempo, uma representação das ações das incursões do modo de
produção capitalista associado à pesca comercial que é introduzida por meio dos apetrechos e
como são relacionados com os ambientes de pesca.
Toda ação humana resulta em um fim objetivado, no caso da pesca e no uso dos
utensílios apresentados não se difere muito, pois o fim produz e organiza os meios, os meios
pelos quais inserem a atividade pesqueira comercial da comunidade no mercado capitalista da
pesca. Assim, os fins tendem a ser de curta duração e transformar-se em meios para outros
fins (ARENDT, 2000).
No caso da pesca, o fim está associado tanto ao valor de uso quanto ao valor de troca,
na medida em que se transfere da posição condutora para manutenção da vida pelo consumo,
ao nível de mediação estratégica para objetivar-se como valor de troca no mercado, dos bens
materiais necessários à produção/reprodução material e simbólica dos trabalhadores da pesca
na comunidade Nossa Senhora das Graças. Assim, do comércio resulta a aquisição de novos
bens de consumo duráveis (ou não) que se distinguem do consumo puramente material
inserido no labor por meio dos instrumentos de trabalho.
A pesca se apresenta como recurso indispensável a uma alternativa de renda extra, é
o ideal de serventia concebido como algo de que se necessita para que se obtenha outra coisa,
e segundo Arendt (2000), sua serventia não admite discussão, pois a utilidade e o valor de
algo – como no caso do produto do trabalho da pesca – quando promovida a significância
gera a ausência de significado.
166
Capítulo 4 - Tempo, Lugar e Espaço: a constituição política das
territorialidades da Pesca
No quarto capítulo, estabelecemos uma conexão com o exercício de pensar os
territórios da pesca a partir da territorialidade enquanto veículo para compreender o uso e a
apropriação comum dos recursos pesqueiros, considerando o debate sobre as áreas de livre
acesso, interpretando as formas de apropriação dos lagos e do rio Solimões nas atividades da
pesca de subsistência e, sobretudo, comercial.
Neste sentido, o interesse perpassa pela compreensão das representações dos
pescadores, identificando os ambientes onde é exercida a pesca pelos comunitários e os
principais aspectos que constituem a organização destes ambientes em territórios de pesca.
Assim, compreender a relação entre a apropriação dos recursos, a formação das
territorialidades e a dimensão social dos conflitos estabelecidos pela posse, se torna elemento
crucial.
Para uma melhor interpretação do tema em análise, procuramos estabelecer um
diálogo com referenciais que nos possibilitem pensar a realidade da constituição das
territorialidades construídas na atividade pesqueira. As inferências teóricas perpassam sobre
os temas de regimes de propriedade comum, territorialidades e espaços sociais na disputa e
conflito pela apropriação dos recursos pesqueiros, estando assim inerentes à constituição da
abordagem pretendida.
4.1 Regimes de propriedade comum e livre acesso: aspectos sobre a constituição das
territorialidades da pesca no Baixo Solimões
Os conceitos apresentados como diretrizes para a compreensão dos processos de
territorialidade na pesca neste estudo perpassam sobre uma questão crucial já debatida, a
relação entre o trabalho humano e a apropriação social dos recursos naturais disponíveis, este
167
aspecto pode ser entendido por meio de um determinado conjunto de mecanismos reguladores
do acesso ao controle dos recursos pesqueiros.
Na tentativa de compreender como estes fenômenos se apresentam na realidade da
pesca comercial e de subsistência na Costa do Pesqueiro no baixo Solimões em Manacapuru,
procuramos uma interpretação a partir dos modelos de uso e apropriação dos recursos
pesqueiros através das áreas de pesca que se configuram ora pela dimensão do livre acesso,
ora enquanto espaços onde recursos naturais de uso comum são regulados por meio de
elementos que demarcam os fatores constitutivos de suas territorialidades.
O debate quanto à racionalização do uso dos recursos naturais vem sendo
amplamente discutida nas últimas décadas, sobretudo quando se fala nos limites de sobre-
exploração do ambiente pelo homem. No processo de consolidação deste debate, incluem-se
os termos e as categorias de análise que se constituem como parâmetros fundamentais à
compreensão dos fenômenos reais observados em sociedades. No meio desta discussão,
trabalhos acadêmicos representativos de correntes intelectuais que versam sobre a questão
ambiental surgem como elementos ou categorias possibilitando uma melhor interpretação e a
viabilidade de uma contribuição prática.
Dentre estes estudos, a “Tragédia dos Comuns” publicado por Garrett Hardin em
1968 se configura como uma discussão pertinente sobre o manejo de recursos de propriedade
comum. Na medida em que estabelecia um diálogo com as ciências sociais e econômicas
junto às ciências da natureza52
, Hardin (1968) propunha que os recursos comuns deveriam ser
privatizados ou definidos como propriedades públicas para as quais direitos de acesso e uso
deveriam ser concedidos (FEENY et alii, 2001).
Neste sentido, o autor parte do pressuposto de que as condições estabelecidas pela
apropriação comum e em sociedade dos recursos disponíveis é um fator condicional à
52
É claro que análise proferida por Hardin (1968) subjaz a um debate por ele popularizado, mas contido em
estudos anteriores encontrados em Gordon (1954) e Scott (1955) acerca dos debates teóricos quanto às questões
relacionadas com o uso comum dos recursos naturais.
168
competitividade, maximização dos lucros ou renda obtida, levando a um desgaste
incomensurável do ambiente e seus recursos, neste caso, devendo ser mediado por
mecanismos que permitam a coerção e controle, elementos que só poderiam ser destacados na
fundamentação de que a propriedade privada dos recursos e a gestão administrativa do Estado
nacional seriam os fatores que possibilitariam a conservação.
A tragédia dos comuns se desenvolve da seguinte maneira. Considere
uma pastagem à qual todos têm acesso...como seres racionais, cada
criador procura maximizar seus ganhos...ele concluiu que o único
caminho sensato a ser seguido é adicionar outro animal ao seu
rebanho...e outro, e outro... Então advém a tragédia. Cada indivíduo é
preso a um sistema que o compele a indefinidamente aumentar seu
rebanho – em um mundo limitado. A ruína é o destino a qual todos se
dirigem, cada um perseguindo seus próprios interesses em uma
sociedade que acredita na liberdade dos comuns. A liberdade em
relação aos comuns a todos arruína. (HARDIN, 1968, p. 1244 apud
GOLDMAN, 2001, p. 48)
O debate acerca das teorias elaboradas sobre este contexto estimularam uma
compreensão de seu processo, já que o próprio Hardin (1968) fora obrigado a admitir
posteriormente53
que suas considerações iniciais necessitariam de uma revisão acerca daquilo
que indicava como as soluções para uma gestão dos recursos naturais de uso comum.
Para Goldman (2001), a interpretação acerca das condições de uso comum dos
recursos naturais estava no fato de que a perspectiva da tragédia contida nos escritos de
Hardin (1968) e demais intelectuais da época se contextualizava num período que florescia
dentro do feudo intelectual da elite dos cientistas naturais participantes dos movimentos
ambientalistas nos Estados Unidos entre as décadas de 60 e 70.
Segundo o autor, o campo politicamente conservador dos representantes das ciências
naturais, sobretudo dos biólogos conservacionistas, defendia uma crítica veemente à
destruição ambiental causada como fator da Segunda Guerra mundial nos países
desenvolvidos e em desenvolvimento, atribuindo a culpa à irracionalidade das sociedades.
53
Para uma compreensão mais aprofundada dos argumentos gerados pelo artigo publicado pelo autor, ver Hardin
(1978). Political requirements for preserving our common heritage. In: BROKAW, H.P. (Ed.) Wildlife and
America.Washington, D.C. Council on Environmental Quality, PP. 310-317.
169
Neste sentido, a substituição das instituições comunais e da forma de uso dos recursos de
maneira descompromissada, para uma passagem à propriedade privada e por maiores
imposições governamentais, reverteria as ações de depredação dos recursos, sendo crucial no
que tange sua conservação.
A visão conservacionista, segundo Goldman (2001), possuía suas raízes no discurso
político anglo-americano de que as comunidades e propriedades de uso comum – advindas da
dimensão feudal do século XIV – constituíam-se como os maiores obstáculos à produtividade
agrícola, consolidando uma visão antiprogressista onde, a crença na propriedade privada e a
permissão individual de uso das terras convertidas de bens comum se tornariam fator
comercialmente relevante. Para isso se acreditava no direito pela posse individual e na
desestruturação das instituições tradicionais que regulamentavam o uso comum a fim de se
obter a privatização das áreas de uso dos recursos.
Para Diegues (2001), a teoria de Hardin (1968) sobre a tragédia dos comuns induzia
a um apelo cada vez maior da necessidade de intervenção do Estado, impondo regras rígidas
de exploração dos recursos ou induzindo à propriedade privada como forma mais adequada de
proteção dos recursos e garantias de rentabilidade.Contudo, a elaboração dos termos de
análise sobre a temática em questão contribuiu para inúmeras reflexões sobre a gestão dos
recursos de uso comuns e a dimensão da propriedade e apropriação.
A visão determinista hoje é substituída pela diversidade de trabalhos que
contestaram a pressuposição teórica de Hardin (1968), demonstrando que a possibilidade do
manejo, diálogo e da racionalização dos recursos em regime de propriedade comum podem se
configurar como sucesso em algumas situações54
, considerando a realidade em questão, já
que, em inúmeros casos, o próprio Estado criou políticas e mecanismos de incentivos fiscais
54
Segundo Diegues (2001), a literatura recente tem registrado e analisado um número considerável, no mundo
inteiro, de formas comunitárias de acesso a espaços e recursos que têm assegurado um uso adequado e
sustentável dos recursos naturais, desta forma conservando o ecossistema e gerando modos de vida socialmente
mais equitativos, mesmo que não sejam necessariamente difundidos e amplamente bem sucedidos.
170
que colaboraram para a devastação ambiental, como no caso da Amazônia e a ocorrência de
desterritorialização de comunidades tradicionais por meio da expansão da grande propriedade
privada, da propriedade pública e dos grandes projetos de desenvolvimento (DIEGUES,
2001).
No entanto, é consensual que suas contribuições possibilitaram um amplo debate e
que venham sendo utilizadas na formulação de políticas de manejo de recursos, na medida em
que configuraram o desenvolvimento de conceitos aplicáveis em determinadas realidades
quanto ao uso social e às formas de apropriação comum ou privada dos recursos. Neste
sentido, Feeny et alii (2001) apresentam quatro categorias de direito de propriedade
fundamentados enquanto regimes de acesso ao uso comum e a forma como são manejados os
recursos naturais.
As concepções desenvolvidas, segundo o autor, compartilham características
importantes em suas formas de uso, geralmente sendo demarcado pela exclusividade ou
controle de acesso e pela subtração, ou seja, a capacidade que cada usuário possui de subtrair
parte da prosperidade do outro, gerando, por vezes, a rivalidade e divergências no que tange à
racionalização individual ou coletiva da apropriação dos recursos.
Para Feeny et alii (2001), a distinção entre os quatro regimes básicos de direitos de
propriedade permanece enquanto modelos típico-ideais (sob uma concepção weberiana de
construção da realidade analisada), sendo que, na prática, em muitos casos, há uma
combinação conflitante e não harmoniosa destas categorias e de suas variações. Estes regimes
são: o livre acesso, a propriedade privada, a propriedade comunal e, por fim a propriedade
estatal.
O livre acesso para Feeny et alii (2001) corresponde à ausência de direitos de
propriedade bem definidos, neste caso, o acesso aos recursos não é regulado, estando livre ou
aberto a qualquer indivíduo ou grupo social.
171
A propriedade privada enquanto um dos regimes de apropriação é caracterizada pelo
direito de exclusão de terceiros sob a exploração e na regulação da exploração dos recursos,
delegando aos indivíduos ou grupos de indivíduos, o direito de uso.
A propriedade comunal, ou propriedade comum, é marcada pelo manejo dos recursos
aplicados por uma ou mais comunidades entre usuários interdependentes, neste caso, os seus
usuários criam mecanismos de inclusão e exclusão sob direitos de fato (geralmente
consuetudinários) de apropriação, regulando a participação de seus membros, equilibrando o
acesso e o uso dos recursos.
A propriedade estatal consolida a situação onde os direitos aos recursos são alocados
pelo governo vigente que toma decisões em relação aos recursos e ao nível e natureza da
exploração. Para Feeny et alii (2001), a categoria de propriedade estatal pode ser aplicada em
relação ao uso dos recursos onde seu acesso pode ser público respeitando os direitos
igualitários, como as rodovias e parques, ou de acordo com sua natureza, podem ser
destinados a outros fins, já que o Estado regula a imposição coercitiva dos modelos de
apropriação, como no caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentáveis e Unidades de
Conservação.
Em todo caso, a análise pretendida aqui se interessa por dois dos aspectos
apresentados: a constituição das formas de territorialização da pesca demarcadas pelas
condições do livre acesso aos ambientes geralmente constituídos em espaços no rio Solimões,
e na propriedade comum dos ambientes onde a pesca é regulada de forma a possuir
mecanismos de controle ao acesso dos recursos pesqueiros, como em determinados pontos de
pesca e nos lagos.
É necessário compreender que estas dimensões configuram um dos lados relevantes
do debate sobre a questão de produção das territorialidades na pesca, pois demarcam as
fronteiras políticas das relações de apropriação social dos recursos pesqueiros a partir dos
172
modelos adotados. Ambos os regimes incidem de acordo com a mesma perspectiva, possuem
como objetivo utilizar os ambientes aquáticos para uma das dimensões da reprodução do
modo de vida local, através da pesca para a subsistência ou para a comercialização.
O contexto em debate subjaz ao fato de que as formas sociais de apropriação comum
dos lagos e do rio Solimões na Costa do Pesqueiro em Manacapuru, constituem-se sobre os
mecanismos de manutenção das atividades pesqueiras de subsistência e principalmente da
pesca comercial, sejam elas mantidas através de conteúdos jurídico-formais ou
tradicionalmente impostos de fato, como acontece na maioria dos casos.
Os ambientes possuem singularidades diferenciadas, logo, existem formas distintas
de uso de acordo com sua finalidade, estas interpretações são possíveis pela atribuição à
dimensão simbólica que constituem as representações sociais dos indivíduos, ou seja, a
maneira como reconhecem, delimitam e utilizam os ambientes, sendo elementos sociais
fundamentais para a consolidação de territórios de pesca em ambientes polivalentes.
Por um lado, o livre acesso na apropriação dos recursos pesqueiros se apresenta
como a possibilidade de uso das áreas informais do rio, onde a pesca é realizada de forma
aberta aos indivíduos em geral sob o manuseio de apetrechos de pesca diferenciados e
altamente eficazes em seu processo de captura, diferenciada das áreas onde ocorrem regimes
de organização comum da pesca, como nas áreas da pesca de vez, nos lagos ou pontos de
pesca em geral, permitindo somente aos usuários estabelecidos o seu acesso.
Para Mackean & Ostrom (2001) os regimes de propriedade comum se referem à
correlação dos arranjos de direito de propriedade sob os quais grupos de usuários dividem
direitos e responsabilidade sobre o uso dos recursos apropriados. Partir do ponto de vista do
termo propriedade é ligá-lo às dimensões institucionais da sociedade e não às qualidades
naturais geralmente atribuídas aos fenômenos naturais que advêm sob a base comum55
dos
55
Base comum de recursos é compreendido de forma diferente do regime de apropriação comum, pois associado
suas qualidades físicas e biológicas, possui duas importantes características que as distinguem: a dificuldade do
173
recursos. A saber, que, para os autores, os regimes de propriedade historicamente surgem em
situações onde as demandas por recursos são muito elevadas para possibilitar o livre acesso,
tornando-se necessária a criação de direitos de propriedade, na mesma medida que os fatores
adicionais a divisão dos recursos acabam se tornando indesejáveis.
Afirmar que os recursos naturais são disponíveis ao uso social ou ao livre acesso dos
indivíduos em geral significa compreender que o processo de apropriação perpassa por uma
inter-relação dos usos do mesmo ambiente de base comum por determinados grupos sociais.
Contudo, o fato de se estabelecerem de forma comunal não significa que sejam livres ao
acesso de todos, mas limitados a um grupo específico de usuários, pressupondo mecanismos
de controle e regulação da apropriação.
Para Ostrom (1990), os regimes que regulamentam o sentido de propriedade comum
permeiam sobre alguns princípios, tais como a demarcação de fronteiras socialmente
delimitadas; os mecanismos que regulam a ordem social interna; a gestão e controle
monitorado do uso dos recursos pelos comunitários; as sanções aplicadas à desobediência de
normas reguladoras; a resolução dos possíveis conflitos através dos mecanismos de mediação;
e o reconhecimento socialmente estabelecido dos direitos de organização em comum acordo.
“Em regime de propriedade comum, um grupo particular de
indivíduos divide os direitos de acesso aos recursos, assim
caracterizando uma forma de propriedade – ao invés de sua ausência.
Em outras palavras, existem direitos, e estes são comuns a um
determinado grupo de usuários e não a todos (MACKEAN &
OSTROM, p. 81, 2001)”.
A noção do termo propriedade comum requer uma diferenciação das demais
categorias referentes ao termo propriedade, pois, tratando-se de uma dimensão dos direitos de
acesso, posse e formas diferenciadas de uso entre sujeitos coletivos, requer consequentemente
desenvolvimento de instrumentos de exclusão dos potenciais indivíduos beneficiários, a solução para as
dificuldades encontradas demandam custos, logo abre possibilidades para o uso predatório dos bens comuns caso
não exista mecanismos de conservação e manejo consolidados. Por outro lado, as unidades de recursos utilizadas
antes por indivíduos comuns, deixam de estar disponíveis (MACKEAN & OSTROM, 2001).
174
uma interpretação multifacetada dos aspectos que as constituem de forma distinta da
propriedade privada individual ou do livre acesso.
Por outro lado, a noção dos direitos sobre a propriedade privada de determinado
espaço ou recursos estão relacionadas aos elementos subjacentes às questões sociais
estabelecidas entre os indivíduos que as constituem e não à concepção de natureza regida
pelos ambientes de uso. Neste caso, as formas de apropriação são reguladas pela
racionalização do uso social comum a grupos e indivíduos sob determinados locais,
institucionalizando o tipo de apropriação e os mecanismos que permitem o acesso aos
recursos.
Desta forma, entende-se que propriedade comum, na verdade, é propriedade privada
compartilhada (MACKEAN & OSTROM,2001), pois seus regimes de direito ao acesso se
caracterizam pelos elementos e mecanismos cruciais à sua manutenção compartilhados entre
os membros usuários. É claro que, no processo de estruturação e dinâmica dos recursos
socialmente apropriados, podem existir ineficiências quanto ao discurso produzido, como no
caso dos regimes de territorialidades apresentados na pesca, possuindo fraquezas e, em muitas
vezes, levando ao conflito como última relação de possibilidade de mudanças drásticas
mediadas pelos mecanismos de controle que nem sempre se apresentam de forma eficaz.
As territorialidades da pesca comercial e de subsistência revelam que os lagos e rios,
enquanto propriedades comuns de acesso a determinados grupos na realidade, são formas de
privatização por meio do direito sobre os recursos socialmente utilizados. No entanto, sem
dividi-los em pedaços ou fragmentos espacialmente separadas – apesar de ocorrer formas de
divisão representativas ao mundo em comunidade – acabam oferecendo a viabilidade de
obtenção de renda ou lucro de acordo com o trabalho socialmente necessário para a
reprodução da vida local.
175
4.2 Cosmografias, Territorialidades e Espacialidades: dimensões simbólicas sobre o
conhecimento da pesca local
A atividade da pesca produz iniciativas que incidem sobre o mundo concreto do
homem da Amazônia. No entanto, a pesca, ou melhor, os homens que exercem a pesca dentro
de suas ações motivadas pelo objetivo da captura para comércio ou subsistência, criam e
interpretam as percepções do mundo e do ambiente que os rodeia. Somente a nós que, pela
ação humana, erigimos a objetividade de um mundo que nos é próprio, a partir do que a
natureza nos oferece, o construímo-lo dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele,
podemos ver a natureza como algo objetivo e sob circunstâncias singulares e diferenciadas.
(ARENDT, 2000).
O uso dos espaços destinados à pesca se configura pela apropriação social dos
recursos comuns ou não de determinados grupos humanos, o estabelecimento deste processo
envolve a dimensão das representações, do imaginário, e, sobretudo, das condições materiais
que constroem os usos desses espaços.
Para Santos (2002) o espaço é um sistema de valores que se transforma
permanentemente pela ação humana, assim a natureza do espaço é resultado material
acumulado das ações humanas através do tempo, e, de outro lado, animado pelas ações atuais
que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade. Também podemos compreender
que o espaço é anterior ao território (RAFFESTIN, 1993), e que ele é condicionado pela
racionalidade de quem dele usufrui.
A atividade da pesca não é feita por acaso, pois nela está implícito todo o
conhecimento dos recursos naturais, os locais específicos, as representações simbólicas, e
também que o homem não age sobre um objeto de trabalho estático, mas sobre um complexo
biológico regido por leis e processos alheios à vontade humana, sobre os quais o homem pode
interferir, introduzir novas formas até então exteriores ao ambiente considerado (DIEGUES,
1983).
176
A saber, que os organismo vivos, os peixes não estão distribuídos de maneira
uniforme, eles distribuem-se em manchas. Segundo Begossi (2004), essas manchas são
constituídas por recursos agregados que ocorrem em uma determinada área. Transferindo este
raciocínio para a pesca, poderemos supor que o pescado é, em geral, encontrado agregado, em
manchas, nos rios, lagos, paranás, ou seja, “o que os pescadores denominam como pesqueiros
são na realidade manchas de pescado, ou locais onde determinadas espécies são encontradas”
(p.223).
Alguns desses pesqueiros são constituídos por áreas que incluem lajes de pedra,
praias, pontas de ilhas, costas, etc., servindo também como pontos de demarcação no uso
desses recursos pelos pecadores, colocando em movimento suas percepções. Para Maldonado
(2000), a pesca é uma das formas sociais em que a percepção específica do meio físico é da
maior relevância, não só para a ordenação dos homens nos espaços sociais mas também para a
organização da própria produção e para a reprodução da tradição pesqueira, tanto em termos
técnicos quanto em termos simbólicos.
Desse modo, os pescadores conhecem pontos no rio onde determinadas espécies são
encontradas, e em função do aspecto seletivo da pesca, diferentes técnicas são usadas, assim
como os pontos de pesca são em geral direcionados à captura de determinadas espécies. Esses
pontos são reconhecidos pelos pescadores por meio de referências aquáticas ou terrestres
(BEGOSSI, 2004).
Procuramos destacar aqui os aspectos que fazem parte da dimensão da pesca na
comunidade Nossa Senhora das Graças, estes aspectos se apresentam a partir de um estudo
que buscou a caracterização dos espaços destinados à pesca pelos moradores da comunidade
usados como territórios, e como áreas de pesca (BEGOSSI, 2004).
Para Begossi (2004), as atividades como a pesca apresentam algumas definições que
nos fornecem uma compreensão diferenciada destes espaços: as áreas de pesca são os espaços
177
aquáticos usados na pesca por diversos indivíduos ou por uma comunidade; pontos de pesca
são os locais específicos, ou micro-áreas onde é realizada a pescaria; pesqueiros são os pontos
de pesca onde há alguma forma de apropriação, regra de uso ou conflito, sendo então
território em seu sentido ecológico.
A dimensão da apropriação social dos recursos naturais, de maneira muito singular,
é datada por um ritmo movimentado pelas forças de reprodução social dos grupos humanos.
Esta dimensão social nos apresenta a maneira como os pescadores/moradores das
comunidades percebem as áreas de pesca, a maneira como são criados os territórios sociais da
pesca, a maneira como preexiste o processo de des-territorialização ou re-territorialização
dos espaços de pesca na medida em que consideramos os conflitos em ambientes fechados
como os lagos e igapós, e sobretudo os conflitos em espaços abertos, a forma como estes
lugares são interpretados, assim, como os apetrechos e a forma destinada ao uso dos recursos.
A territorialidade, diferente do conceito de território, possui um papel importante na
constituição de grupos sociais. A noção atribuída ao território aqui, possui uma abordagem
que considera a conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos.
Para Little (2002), a territorialidade se define como o esforço coletivo de um grupo
social em usar, ocupar, controlar e se identificar com a parcela específica de seu ambiente
biofísico, convertendo-a, assim, em seu “território”. Neste sentido, as territorialidades da
pesca são pensadas como elementos formados pela apropriação e permanência do uso social
dos recursos aquáticos em locais específicos.
Mas, como é possível pensar em territórios pesqueiros em áreas especificas como
rios, por exemplo, que, diferente dos lagos e de outros ambientes mais privados do ponto de
vista de seu uso por comunidades locais, não se restringem por fazerem parte do domínio
público, e, portanto, pertencentes do ponto de vista legal à União?
178
Para Begossi (2004), território é um espaço que foi, ou está sendo apropriado por
algum individuo, grupo, ou comunidade sob formas de defesa ou de regras de uso, ou sob
conflito de uso, e territorialidade é uma forma de controlar espaços e recursos. “Um território
é um forma de controlar espaços e recursos, como uma área defendida, ou uma área de uso
exclusivo” (p.227).
No caso da pesca, quando, além da marcação do espaço pesqueiro, há alguma forma
de apropriação desse espaço, há também o aparecimento de outras relações entre os
pescadores, que podem envolver conflitos territoriais, regras de uso, divisão de informação ou
segregação de informação, estas regras e o conceito, neste sentido, aplicm-se a aos lagos e
rios de uso comunitário assim como outros ambientes mais endógenos (como
demonstraremos no caso especifico na comunidade estudada).
Os processos de territorialização comportam elementos que fogem das instâncias
legais e muito menos jurídicas quando se tratam de espaços ditos de uso comum, pois tornam-
se uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências
históricas (LITTLE,2002).
O fato de um território surgir diretamente das condutas da territorialidade de um
grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e
políticos, ao passo que podem se constituir como territórios e também podem se reconfigurar
em não territórios de uma ou mais comunidades, tornando-se espaços, no nosso caso, em
pontos de pesca que carregam dentro de si a conduta de territórios por abarcar interesses
comuns de grupos diferenciados com o mesmo objetivo.
Como no caso dos rios e dos denominados pesqueiros que são partes das áreas de
uso, ou do espaço aquático usados por pescadores, entretanto nem sempre os pesqueiros
localizados nas áreas de uso de uma comunidade de pescadores estão divididos de maneira
uniforme, ou de forma eqüitativa, entre todos os pescadores da comunidade (BEGOSSI,
179
2004). Por mais que não existam delimitações específicas de uso ou amparadas por leis, não
significa que inexistam códigos de controle e conduta no uso dos recursos através de um
grupo específico de comunidades que estabelecem relações (conflituosas ou não) entre si.
Assim, podemos refletir a partir da ideia de que os territórios também são flexíveis
dada a sua apropriação, o que significa dizer que esta flexibilidade fornece argumentos para a
(re)configuração de espaços de uso comunitário onde existam áreas consideradas de livre
acesso, como no caso dos rios.
Neste sentido, os rios, ou melhor, os pontos específicos de pesca, são pensados
também como territórios abertos, pois se situam entre o privado e o público a partir do uso de
seus recursos e da maneira que não um agrupamento humano mas diversos grupos sociais
com o mesmo interesse podem estabelecer regras ou leis internas de conduta que garantam, ao
mesmo tempo, o uso e o controle dos recursos, apesar de verificarmos também o contrário
disto em casos mais específicos. Contudo, em seu aspecto mais fundamental, a territorialidade
humana produz um leque de expressões sociais muito amplas de tipos de territórios, cada um
com suas particularidades socioculturais.
Buscamos pensar, a partir da comunidade Nossa Senhora das Graças, a percepção de
uma territorialidade definida enquanto comunidade, possuindo de forma compartilhada outros
territórios, como os da pesca que ora se apresentam abertas – os rios e os denominados
pesqueiros – ora fechadas – os lagos e outros recursos de uso da própria comunidade.
Os espaços constituídos como territorialidades, que compreendem o uso dos recursos
naturais pertencentes à comunidade Nossa Senhora das Graças, refletem os elementos que
delineiam a vida local, sobretudo os sentidos, a percepção e as representações, como
elementos expressos do cotidiano, aquilo que Tuan (1980) denominou de topofilia, o apego e
o sentimento ao lugar de vida.
180
Compreender a racionalidade dos processos de territorialização através das relações
sociais engendradas no mundo vivido da comunidade nos permite refletir sobre as dimensões
de uso dos recursos pesqueiros. No sentido de adotarmos uma sistematicidade a respeito da
percepção territorial dos pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças, devemos
compreender suas representações sobre território e como se apresentam através da
multiplicidade de expressões, produzindo um leque muito amplo de tipos de territorialidades,
com suas particularidades socioculturais.
Para Little (2002), podemos compreender este processo se considerarmos a
cosmografia de um determinado grupo social. A cosmografia é entendida como os saberes
ambientais, ideologias e identidades – coletivamente criadas e historicamente situadas – que
um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território.
A cosmografia de um grupo considera seu regime de propriedade, os
vínculos afetivos que mantém com seu território especifico, a história de
sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao
território e as formas de defesa dele (LITTLE,2002, p.4)
Como descrevemos em capítulo anterior, a comunidade Nossa Senhora das Graças
possui, assim como a maioria das comunidades rurais, um território bem definido do ponto de
vista de suas relações sociais. Este espaço, quando surge como um território que é palco das
relações humanas, acaba estabelecendo, moldando e transformando os em lugares de vida,
tornando-os mais complexos. Em principio, pode-se notar como ele é formado do ponto de
vista físico, e a partir daí, compreendermos como se delineiam as relações sociais, a saber,
que o território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações
de poder56
.
56
Marcelo José Lopes de Souza (2006) demonstra a partir de concepções bastante objetivas como as de Claude
Raffestin (1993) em Por uma Geografia do poder, como é possível pensarmos nesta relação, entre território e
poder, a partir de dimensões configurativas que expressam a vontade humana de não só delimitar, mas de manter
em uso o território.
181
Figura 54 – Croqui georeferenciado da localidade Costa do Pesqueiro II onde apresenta a dimensão de organização espacial do território da comunidade
Nossa Senhora das Graças a partir das habitações dos moradores.
Fonte: Centro de Excelência Ambiental da Petrobrás, CEAP/PIATAM, 2007.
182
O sentido de pertença que surge por meio das representações da territorialidade
perfaz o mundo construído da cosmografia camponesa da várzea, abarca um apanhado
complexo de imagens, sentimentos, sensações e interpretações. A estes fatores também
inserimos a dimensão material da vida, compreendendo que a comunidade Nossa Senhora das
Graças só pode ser considerada como tal a partir das manifestações do ambiente envolvente e
como ele se apresenta e, sobretudo, como este é (re)significado e colocado em uso.
De maneira concreta, a comunidade também é formada pelas manifestações e
percepções do lugar enquanto espaço físico, um lago, uma praia, uma restinga, um igapó são
elementos constitutivos que contribuem para este processo. Nos mapas mentais desenhados
pelos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro está
expressa a visão adulta e infantil de indivíduos da comunidade sobre seu mundo. Estas
representações indicam a percepção do ambiente e do uso dos recursos disponíveis, fatores
que demarcam a dimensão de territorialidade coletiva.
O ambiente é reconhecido pela percepção do indivíduo, mas somente parte
dessa percepção entra na cognição devido às estruturas ecológicas que
derivam da linguagem e às rotinas passadas do indivíduo na sociedade. Tais
estruturas também servem para avaliar o que entrou no consciente. A partir
daí se segue um processo de decisão no qual interagem avaliação com
rotinas culturais baseadas em experiências anteriores. Daí surge à decisão de
fazer ou não fazer alguma coisa que, por sua vez, será influenciada pelas
condições externas que possam restringir a ação. (MORAN, 1989 apud
PEREIRA 2007, p. 2)
183
Figura 55 – Mapa mental da comunidade elaborado por um morador, explica a dimensão da localidade a partir do território delimitado e dos recursos utilizados, onde
podemos ver o rio principal, a disposição das casas, das instituições presentes na comunidade que formam a centralidade, as roças, o lago de uso comunitário, a floresta
primária, etc. tidos como elementos que pertencem ao mundo da comunidade.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
184
Figura 56 – Mapa mental elaborado por uma das crianças moradores da comunidade, apresenta a dimensão das instituições e do ambiente que compreende a
comunidade.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
185
Figura 57 – Desenho elaborado por morador local apresentando as dimensões constitutivas do território que compreende a comunidade Nossa Senhora das Graças, as
espacialidades das propriedades e sua relação com o uso dos recursos naturais disponíveis, as plantações nas áreas de várzea à beira do rio Solimões, as florestas e os
lagos utilizados para a pesca de subsistência atrás da comunidade, e áreas destinadas a outras atividades como criação de pequenos animais.
Fonte: NUSEC, 2008.
186
Os elementos físicos que constituem as imagens, ainda que descritos por diferentes
olhares e de maneiras muito singulares, revelam alguns pontos em comum caracterizando a
comunidade como ela é, a partir de suas instituições (igreja, escola, centro social) ou de seus
ambientes (rio, lago, ilha, as áreas de plantio e de roçado, a floresta). Estes mesmos elementos
congregam a comunidade e as apresentam para os outros que não fazem parte de seu mundo
relacional, daqueles que não estabelecem nenhum tipo de uso direto de sua territorialidade e
de seus recursos naturais, e não estabelecem – ou ainda que de maneira mínima – se inserem
na reprodução de uma sociabilidade básica existente que coloca em movimento a própria
comunidade.
[..] olhe só! de tudo aqui eu sei um pouco, e se eu sei é porque eu
conheço..por isso que eu sei da pesca, do rio, pra mim minha terra é a minha
água, e eu num tenho medo porque é dela que nós vive também. (A. S. 33
anos, morador e pescador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
O sentido de autoafirmação do morador com o território é de suma importância, pois
contém fatores bastante singulares e pertencentes ao lugar onde se estabelecem as relações
sociais necessárias para a produção da vida. A percepção, a ação, o discurso e o pensamento,
em primeiro lugar, devem ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida transformados,
coisificados, em algum tipo de registro, seja ele simbólico ou documental. Para Arendt
(2000), todo o mundo factual dos negócios humanos depende em primeiro lugar da presença
de outros que tenham vistos e ouvidos e que se lembrarão, e em segundo lugar, da
transformação do intangível na tangibilidade das coisas:
A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no
fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade
pela qual formam produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que
a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é a criadora do
mundo, está empenhada e consiste em um processo de reificação, e o grau de
mundaneidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício
humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo”
(ARENDT, 2000, p.107).
187
As representações territoriais enquanto relação entre sistema social (das relações
humanas) e sistema natural(do ambiente físico), transparecem em muitos elementos contidos
no mundo da comunidade Nossa Senhora das Graças. A placa de identificação da comunidade
pode ser pensada como um bom exemplo de síntese das representações do mundo vivido, pois
quando identifica a comunidade, na realidade estar-se falando em seu sentido mais direto, o
de construção de uma identidade a partir do território social delimitado e os territórios em uso
pertencentes à comunidade mas são abarcados por sua representação na dimensão do trabalho
e do uso de seus recursos, como no caso dos territorios de pesca localizados fora dos
domínios comunitários dos pescadores em Nossa Senhora das Graças.
Figura 58 – Placa que identifica a comunidade Nossa Senhora das Graças se situa no centro da
comunidade e apresenta elementos importantes. As instituições presentes, a relação com o lado
religioso da comunidade, o time de futebol como dimensão de sociabilidade, a localidade e a relação
com o mundo da pesca.
Fonte: RAPOZO, 2008.
188
As denominações do lugar, as instituições presentes na afirmação da localidade
enquanto comunidade demonstram uma apresentação daquilo que possui autossignificado
para os moradores. O time de futebol, a escola municipal, a relação religiosa com a santa
católica e o nome da comunidade, a dimensão do trabalho na pesca que é considerado como
atividade principal, a localidade que situa-se historicamente marcada pelo uso de seus
recursos pesqueiros, são relações estabelecidas que Godelier (1981) denominaria de a parte
ideal do real (social), ou seja, uma parte material – o homem e seu ambiente – e sua dimensão
simbólica que são as representações do lugar como enquanto processo de territorialidade e
explica que o ideal é o que faz o pensamento e sua diversidade e complexidade
correspondentes em funções do pensamento:
As ideias não aparecem como uma instancia separada das relações sociais,
re-apresentando-as como demasiadamente tarde na consciência e ao
pensamento. O ideal está presente e atuante em todas as atividades do
homem, que só existe em sociedade, só existe como sociedade. O ideal não
se opõe ao material, já que pensar é por em movimento a matéria, o cérebro.
A idéia é uma realidade não-sensível, uma realidade que não é
imediatamente evidente. (GODELIER, 1981, p. 187)
Para a legitimidade do mundo, podemos pensar nas funções do pensamento e das
realidades ideais que o pensamento produz, segundo Godelier (1981), compreendidas por
quatro fatores que se demonstram a partir de uma reflexão clara e coerente da dimensão de
compreensão e representação do mundo material a partir do ideal. As representações para o
autor tornam presentes ao pensamento realidades exteriores ou interiores ao homem, inclusive
o próprio pensamento, sendo estas realidades, materiais e/ou intelectuais, visíveis e/ou
invisíveis, concretas e/ou imaginárias.
A reprodução do mundo e das representações, as funções de produção e reprodução
do pensamento e das interpretações e, em nosso caso específico, os territórios e a maneira
como são reconstruídos de forma comunitária, devem: apresentar ao pensamento qualquer
realidade, inclusive o pensamento; interpretar o que está presente e o que define sua natureza,
189
origem e funcionamento; organizar, em consequência desta interpretação, as relações dos
homens entre si e com a natureza e por fim, legitimar ou ilegitimar a ordem social e/ou
cósmica existente. Para Godelier (1981) estas são as formas de ordenações do mundo, o que
nos faz perceber como o mundo em sua realidade e em sua representação são produzidos e
reproduzidos.
Na comunidade Nossa Senhora das Graças estas funções também estão presente sob
graus diferentes em todas as atividades sociais que compõem as relações estabelecidas entre
os moradores. As representações do mundo, a maneira como são interpretadas e organizadas
legitimam uma ordem estabelecida pautada no convívio e nos códigos de compreensão da
sociabilidade existentes e nas regras que delineiam o uso dos recursos naturais. Daí podemos
também refletir como se estabelecem, a partir da dimensão do trabalho, as representações do
real na constituição dos territórios de pesca.
Quanto à representação dos espaços de pesca, estes são apresentados de modo a
observarmos a percepção dos pescadores locais quanto ao uso de mapas e desenhos que
explicitam as formas de compreensão dos locais utilizados para a captura, sobretudo
comercial na região que se estende entre a comunidades e demais áreas onde a pesca é
exercida de forma intensiva, concentrado-se principalmente no rio Solimões.
Os pontos de pesca e as denominações das localidades funcionam como demarcações
dos territórios pesqueiros. As demarcações são reproduzidas pelo mundo do trabalho e pelo
uso social dos recursos, o que possibilita de maneira concreta a constituição do mundo pelo
espaço repleto de significados pertencentes a cosmografia da várzea e da pesca dos moradores
da comunidade. Através dos mapas mentais elaborados pelos pescadores da comunidade,
verificarmos como estes fenômenos são representados articulando a lógica e a simbólica no
mundo da pesca.
190
Figura 59 – Mapa mental elaborado por morador da comunidade Nossa Senhora das Graças apresentando o núcleo central da comunidade constituída pelos espaços de
pesca, na figura aparece o rio Solimões em frente à comunidade e o lago Tamanduá, ao fundo, como territórios que pertencem à comunidade como espaços pertencentes ao
modo de vida e destinados a atividade pesqueira.
Fonte: Pesquisa de campo , 2009.
191
Figura 60 – Mapa mental elaborado por pescador da comunidade Nossa Senhora das Graças apresenta uma dimensão mais abrangente que relaciona a localidade e os pontos de
demarcação da pesca a partir do conhecimento de ambientes próximos como a Costa do pesqueiro II e com outros ambientes naturais, os furos, paranás e lagos, que são descritos
da maneira como são reconhecidos, a Boca do calado e a Boca do lago do Paru.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
192
Figura 61 – Os pontos de pesca demarcados no mapa mental elaborado pelo pescador da comunidade apresentam uma percepção muito abrangente do ambiente físico que
constitui e delimita a localidade onde se encontra a comunidade Nossa Senhora das Graças (acima do lago do Pesqueiro) e os outros locais representados. Na figura, a
Costa do Laranjal aparece como um referencial importante da pesca, as embarcações, os lanços com as redes de arrasto significam a concepção da atividade pesqueira
voltado para a comercialização, mas, sobretudo, demarcam os territórios de pesca dos barcos no rio Solimões.
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
193
O significado do mundo que constitui as representações dos espaços destinados ao
uso dos recursos pesqueiros é tão complexo quanto sua delimitação física. A demarcação dos
lugares, o sentido dado de maneira diferenciada pelos elaboradores dos mapas mentais, os
próprios pescadores da comunidade, o simbolismo da paisagem natural reconvertido em
território pelo saber cartográfico construído na prática, no ato de pescar diariamente, é dotado
de uma complexidade que só pode ser compreendida por aqueles que possuem o domínio do
conhecimento empírico que delineia o mundo da pesca, o mundo vivido na comunidade
Nossa Senhora das Graças.
Esta realidade e a confiabilidade de representação do mundo humano, segundo
Arendt (2000), repousam no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a
atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de
seus autores. “A vida humana, na medida em que é a criadora do mundo, está empenhada e
consiste no processo de reificação, e o grau de mundaneidade das coisas produzidas, cuja
soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste
mundo” (p. 107).
A indivisão do mundo vivido no trabalho da pesca é o fundamento essencial para o
equilíbrio econômico e moral do mundo rural da várzea, cuja relação com o meio é
inicialmente de usufruto e não de posse, onde os rios e lagos são pensados como patrimônio
comuns, seja de uma ou de várias comunidades, pois sabem que deles dependem para seu
sustento.
Contudo, as transformações decorrentes da apropriação privada dos lagos e demais
espaços abertos no rio Solimões demonstram uma outra lógica de interpretação dos bens
utilizados. Esta lógica é definida pela dimensão comercial das relações estabelecidas,
pressupondo os esquemas de rearranjos relacionais que impedem ou deliberam pelo acesso
coletivo dos recursos pesqueiros.
194
Segundo Maldonado (2000), as formas especificas e predominantemente simbólicas
na sua expressão de apropriação dos ambientes de pesca, suas formas de percepção, de uso e
de divisão, arrastam consigo outras noções e comportamentos sem os quais a produção
pesqueira e a reprodução dos pescadores estariam inviabilizadas. O aprofundamento da
análise sobre o espaço que antecede e precede o mundo constitutivo dos pescadores considera
outros traços sociais fundamentais que também são específicos à pesca, como a divisão do
trabalho, a tradição, a família, a modernização e a mudança (MALDONADO, 2000).
A territorialidade destes grupos em termos de domínio prático e de espaço
prático, noções como habilidade especificas surgidas da familiaridade do
homem com o espaço, estão intrinsecamente ligadas às atividades,
percepções e atitudes adquiridas na socialização e na relação com o meio,
gerando hábito e capacidade de orientação e de exploração do espaço.
Assim, a náutica e a arte de pescar são constructos sociais que surgem e se
desenvolvem num espaço prático, onde se expressam outras noções que
informam a visão de mundo e a organização produtiva dos pescadores.
(MALDONADO, 2000, p.62)
Assim, o cálculo e a organização produtiva dos pescadores, no que diz respeito ao
espaço, se fazem sobre pontos que permanecem, enquanto outros se re-situam, de modo que
os “pesqueiros” estão sempre sendo reafirmados como pontos de pesca. Desta maneira, é
compreensível a percepção individual sobre o mesmo olhar que constrói formas bastantes
características de apreender o lugar em uma imagem mental.
4.3 As relações sociais no uso das territorialidades
Segundo Diegues (2001), a pesca enquanto apropriação material e social de recursos
renováveis e móveis coloca problemas relevantes na análise entre homem e natureza. Neste
sentido, procuramos estabelecer a relação da dimensão de uso dos recursos proporcionados
pela pesca com a racionalidade de apropriação dos ambientes, considerando a noção de
195
territorialidade estabelecida em espaços diversificados, delineando a existência das formas de
organização captadas através dos sistemas de pesca comercial no rio Solimões.
Denominado localmente como pesca de vez, sua relação com a disposição territorial
dos pontos de pesca estabelecidos no deslocamento e uso do rio e lagos apropriados de forma
privada por determinados grupos revela a possibilidade de uma interpretação acerca da
relação conflituosa ou não do uso de determinados ambientes, suas regras e mecanismos de
controle que definem os padrões constitutivos das territorialidades.
Para tanto, quanto à relação de disponibilidade dos territórios da pesca, Begossi
(2004), compreende que é possível pensar na articulação entre territórios e a racionalidade no
uso dos recursos a partir de três hipóteses que consideram a dimensão de administração destes
recursos.
A primeira hipótese indica que, quanto mais escasso o recurso, ou quanto maior for o
número de pescadores numa área, maior será a probabilidade de encontrar pesqueiros
(territórios) ou a presença de regras. A segunda diz que, quanto menos móvel for uma
tecnologia de pesca, maior a probabilidade de encontrar territórios ou regras de uso, ex:
tecnologias que necessitam de espaços delimitados de uso, como redes ou espinhéis, tendem a
induzir comportamentos territoriais entre pescadores. A terceira afirma que, quanto mais
móvel uma presa, menor a probabilidade de haver delimitação de territórios.
Estes apontamentos contribuem para pensarmos nas possibilidades de rever o
processo que compreende a percepção dos pescadores de Nossa Senhora das Graças em
relação aos recursos e o estabelecimento das regras de uso dos territórios compartilhados. O
espaço está imbricado na organização dos grupos humanos, expressando-se aqui e ali na vida
social, informando ordenações de mundo e viabilizando acordos entre as inteligências,
sobretudo no que diz respeito à territorialidade (MALDONADO, 2000).
196
4.3.1 A pesca de vez: elemento constitutivo de acesso e controle dos territórios pesqueiros
A consolidação de territorialidades da pesca em lagos e no rio Solimões ao longo da
Costa do Pesqueiro (compreendendo a comunidade Nossa Senhora das Graças e demais
comunidades) revela a necessidade do estabelecimento de regras, contendo a invasão de
forasteiros frente à proteção das áreas onde se pesca de forma controlada.
Apesar de os pescadores moradores das comunidades possuírem de forma delimitada
a sua representação sobre os espaços constituídos em territórios comunais de uso, as regras
estabelecidas de aceso aos recursos disponíveis apontam para uma racionalidade qual à
apropriação social, deliberando formas de organização, visando eliminar a concorrência
desleal de barcos comerciais de pesca, impondo normas aos agentes internos ao processo local
de captura.
Na medida em que ocorre um significativo aumento da pesca em larga escala,
reconfigurando as relações estabelecidas, sobretudo pela dimensão comercial de captura e
incentivo do capital a partir dos grandes frigoríficos e empresas em Manacapuru e Manaus,
intensifica-se a procura pelo estabelecimento de locais apropriados onde a captura é exercida
intensamente e para determinados objetivos, quais sejam comerciais.
A reordenação do setor da pesca comercial estimula também uma reconfiguração das
relações de trabalho e apropriação social dos recursos pesqueiros, visando à internalização de
regras de captura que viabilizassem um controle maior, prevendo uma sobrecarga dos
recursos disponíveis. Da preocupação com o número crescente de embarcações e do número
cada vez maior de redes de arrasto nos lanços ocorrendo nas proximidades das comunidades,
configura-se uma espécie de pesca que iria delimitar, pelo valor do tempo, o uso de
determinados apetrechos na captura comercial dos bagres vendidos ao mercado em
Manacapuru, a pesca de vez.
197
A pesca de vez é estruturada em lugares delimitados, geralmente espacializados entre
uma comunidade e outra, considerando as margens do rio, sem que haja a invasão de
pescadores não estabelecidos no perímetro determinado. Este relação induzida de apropriação
contratual dos recursos pesqueiros em áreas definidas pelos pescadores decorre, sobretudo, a
partir do início dos anos 90 (CRUZ,2009) com a intensificação comercial do setor em
Manacapuru, estabelecendo regras gerais quanto à forma de uso dos espaços aquáticos.
Para Cruz (2009), a ordem que dá sentido ao modo de apropriação através da pesca
de vez possui como mecanismo evitar conflitos pelo uso dessa porção de água.
Desta forma, a vez funciona como um sistema de organização mediado por códigos
internos de compreensão do grupo de pescadores, sendo introduzida na prática do lanço a
partir de duas preocupações fundamentais: racionalizar os espaços delimitados na pesca
comercial, diminuindo ou minimizando os conflitos e controlando a pressão sob os estoques
de peixes lisos disponíveis no rio Solimões, internalizado como regra aos pescadores locais.
Em Nossa Senhora das Graças, a pesca de vez ocorre numa ação que consiste sob as normas
estabelecidas.
Figura 62 – parceria entre crianças da comunidade chegando ao lugar onde é
praticada a pesca de vez.
Fonte: RAPOZO, 2009.
198
Os pescadores, geralmente em parcerias, se deslocam em suas canoas motorizadas
até determinado local que, provavelmente, será a fronteira de sua comunidade com a outra,
delimitando as fronteiras de territorialidades; a vez de pescar é mediada pelo tempo de
chegada e de espera entre uma canoa e outra.
Desta forma, os pescadores vão se aglomerando em fileiras de canoas esperando sua
vez para dar o lanço, este consistindo na largada da rede (geralmente com 150 a 300 metros
de comprimento da margem a quase o meio do rio) no local delimitado pelos pescadores,
colocado contra a correnteza do rio e sustentada por uma boia de cada lado (utilizando-se na
maioria das vezes, grandes baldes ou tambores fechados que flutuam e suportam o peso da
rede com o peixe) para que a rede seja levada abaixo e ao encontro aos cardumes dos bagres
que sobem o rio Solimões.
Figura 63 – A espera da vez demonstra o sentido de organização e
cumprimento das regras entre os pescadores da comunidade.
Fonte: RAPOZO, 2009.
199
A rede de arrasto, ou arrastão é levada ao rio pela correnteza abaixo até as
imediações da comunidade, o papel fundamental de soltura da rede cabe a um dos pescadores
na parceria que escolhe o melhor lugar de iniciar o despejo da rede e, ao final, das boias de
sustentação que asseguram o equilíbrio do arrastão, possuindo força equivalente ao peso do
peixes capturados.
Figura 64 – O lanço é dado quando ocorre a pesca de vez, a rede de
arrasto é jogada no rio presa às boias flutuantes, enquanto o outro
parceiro da pesca conduz a canoa motorizada das margens até o meio do
rio.
Fonte: RAPOZO, 2009.
Figura 65 – A boia é largada após a finalização do lanço, servindo
como sustentação da rede de arrasto que será levada correnteza abaixo
até os limites da comunidade.
Fonte: RAPOZO, 2009.
200
Assim, a rede é recolhida quando chega ao ponto máximo do limite estabelecido
entre uma comunidade e outra, ou entre uma porção delimitada de rio e outro grupo de
pescadores. O período total da pesca de vez dura entre 40 minutos a 1 hora, desta forma,
quando a rede é recolhida imediatamente inicia-se a vez de outros pescadores que aguardam
na fila.
Os pescadores que possuíram a vez de executar o lanço e que gostariam de retornar
para a mesma prática, devem se dirigir ao final da fila e novamente aguardar pela ordem de
chegada sua vez, respeitando a ordem para que seja reproduzido o tipo de delimitação das
regras consensuais da constituição deste tipo de territorialidade na prática da pesca.
Geralmente, quando a pesca não foi bem sucedida, este ato tende a se reproduzir por inúmeras
vezes a fim de proporcionar um lucro na captura em grande quantidade, considerando o
despendido de força executada no trabalho e dos custos do material empregado.
Figura 66 – Após o período de captura, a rede é recolhida em outro
ponto mais abaixo do rio, os peixes são retirados e a rede armazenada
na canoa.
Fonte: RAPOZO, 2009.
201
Os fatores de organização não excluem as possibilidades de conflitos internos, pois a
disputa é simbolicamente mediada pelas regras, mas o ato material da captura revela os riscos
quanto ao tipo de relação social estabelecida e o caráter circunstancial da pesca, já que não se
pode contar com a possibilidade real de uma boa pesca, desta forma, presumem-se os
períodos e horários melhores para a obtenção de melhor resultado, a escolha do tipo de
apetrecho, os períodos de sazonalidade das águas que propiciam melhor aproveitamento e
lucro, surgindo assim, como elementos de tensão entre os próprios pescadores.
Os elementos que estruturam e dão sentido à pesca de vez revelam as formas de uso e
apropriação comum pressupondo o estabelecimento de regras. Fatores como a ordem de
chegada, a organização das canoas, a espera, o momento de lançar a rede delimitada pelo
período estipulado e a recolha da rede com os peixes capturados, exercem uma
sistematicidade regular ao grupo de pescadores.
Nesta regularidade naturalizada, tais fatores são explicados pela intensificação da
pesca comercial, onde criam-se os mecanismos favoráveis à mediação de conflitos pelo
Figura 67 – Quando a vez não predispõe uma boa pescaria é necessário
voltar para o lugar de partida e esperar novamente, estes aspectos claramente
são evidenciados quando ocorre uma pesca mal sucedida.
Fonte: RAPOZO, 2009.
202
território de pesca, a disputa individualizada pela captura e venda para os flutuantes locais é
normatizada pelo conjunto simbólico de regras, pelos fatores de organização que proíbem, por
exemplo, o estabelecimento de outsiders na pesca – pescadores de outras comunidades ou
lugares que não mantenham relação social ou comunitária com os demais pescadores, ou
ainda, a proibição de mais de um tipo de apetrecho utilizado na vez estipulada para a captura.
4.3.2 Os pontos de pesca: formas de apropriação e territorialização dos ambientes de
pesca
Os ambientes de pesca apresentam indiretamente as informações que demarcam as
forma de uso dos pescadores mediante a sazonalidade dos períodos hidrológicos, os
apetrechos direcionados para a finalidade da pesca – consumo e/ou comercialização, a relação
estabelecida entre os sujeitos e apontam a perspectiva da exploração dos recursos pesqueiros
através da produção de territorialidades locais.
De acordo com Begon et al (1996), no caso da pesca, o processo de territorialidade
ou de dominar um território/ambiente envolve custos. Desse modo, o recurso a ser defendido
deve compensar os custos de manutenção de um território. Para a autora. podemos pensar nas
áreas de pesca a partir de três elementos: Em pesqueiros que não são territórios de pesca
(denominados pontos de pesca); em pesqueiros onde há conflitos de pesca e por ultimo, em
pesqueiros onde há regras de uso.
Na comunidade Nossa Senhora das Graças, encontramos as três dimensões
correlacionadas de maneiras muito singulares. A primeira está ligada ao uso dos ambientes ou
pontos de pesca aos quais denominamos abertos, no caso dos rios e outras localidades que
estão situadas nas imediações e distantes das comunidades da Costa do Pesqueiro, fazendo
indiretamente parte do uso comum de territórios da comunidade. A segunda compreende as
áreas onde repercutem os conflitos, geralmente marcados pela proximidade das áreas de uso
203
comum às quais denominamos espaços fechados, no caso da comunidade, estão ligadas ao
lago pertencente ao seu limite de territorialidade e aos pontos de pesca mais utilizados e
próximos. O terceiro elemento está ligado às regras que constituem, de maneira muito sutil, os
ambientes destinados à captura do pescado.
O perfil dos pescadores e da relação estabelecida com os ambientes de pesca em
Nossa Senhora das Graças revela a configuração de uso dos espaços aos fatores como
deslocamentos e destino da pesca.
Neste caso, a maioria dos pescadores (71%) entrevistados deslocam-se para
ambientes situados nas imediações e em lugares distantes do território da comunidade
(Figura 68). Este dado revela uma dimensão bem compreensível, o fato de deslocar-se para
pontos de pesca distantes implica a adoção de uma racionalidade objetiva com respeito a fins
específicos, neste caso, a comercialização do pescado, lançando-se aos riscos deste tipo de
pesca.
Os pescadores que não se deslocam para locais considerados distantes ou fora da
comunidade (21%) formam um conjunto importante de elementos para pensarmos o tipo de
pesca executado. Estes fatores geralmente estão associados à pesca de subsistência através do
uso do lago comunitário em períodos favoráveis. No entanto, não significa dizermos que
preexista uma diferenciação entre pescadores comerciais e pescadores de subsistência
apontados separadamente nas informações obtidas, e sim que é possível associar a finalidade
do deslocamento aos ambientes usados e à finalidade da pesca estabelecida, pois o
deslocamento – como apontamos anteriormente – requer custos associados à força de trabalho
empregada e aos materiais disponíveis para a pescaria, que, nem sempre, estão acessíveis aos
pescadores em geral.
204
Os locais para onde se deslocam os pescadores da comunidade também revelam que
a perspectiva da distância indica o tipo de pescaria, estas informações apontam para o fato de
que, nestes ambientes, são encontrados pontos de pesca específicos quanto às regras de seu
uso. Estes pontos de pesca estão distribuídos em lugares localizados nos rios Solimões e
Purus e em seus lagos (Figura 69).
Figura 68 - Informação referente aos pescadores que se
deslocam para locais fora da comunidade, em localidades
distantes ou nas imediações.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
Figura 69 - Localidades distantes onde foi evidenciada a prática pesqueira
demonstram os pontos de pesca visitados pelos pescadores da comunidade
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
205
Figura 70 - Principais localidades e ambientes relacionados com o desenvolvimento da atividade pesqueira no
lugar da pesquisa.
Fonte: Elaborado por Suzy C. P. Silva a partir dos dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
206
Nos ambientes encontrados, a localidade Costa do Laranjal – localizada numa parte
do rio Solimões – aparece como o ponto de pesca que possui a maior frequência das
informações obtidas, sendo o lugar com que os pescadores possuem uma relação bastante
assimétrica referente ao seu uso diferenciado dos demais locais apresentados. A costa do
Laranjal aparece nos mapas mentais desenhados através dos pescadores, pois compreende
uma área de pesca aberta e de livre acesso aos comunitários locais, situando-se como um dos
principais pontos comerciais de captura do pescado localizados nas imediações não tão
distantes da Costa do Pesqueiro onde está a comunidade Nossa Senhora das Graças, sendo de
apropriação comum aos pescadores que estabelecem as regras de uso locais.
Em alguns momento mais longo, a gente pesca lá no Laranjal, tem que ser lá
a pescaria porque aqui fica tudo em terra, aqui tem tempo que não tem como
pescar, aí o ramo é esse tem que pescar lá. É, porque lá é mais fundo e dá
mais peixe, porque vamos supor, aqui nessa área aqui nós pesca...nós
atingimos se botar de beira a beira nós era campeão no peixe também aqui,
só que nós só bota do meio do rio pra cá pra lá não vai que é pedral, e lá não,
lá visa da beira a outra o Laranjal, entendeu? lá visa da beira, a outra tapa o
rio todinho aí o peixe tá ribando, né? (R. N. N. R. 41 anos, pescador e
morador da comunidade).
Sempre nós pesca lá no Laranjal porque é bom pegar lá. Ainda tem gente
daqui pescando lá, mas pra quem tem rede fina que nem essa minha não faz
vantagem ir sempre pra lá, o rio tá mais fundo lá e é mais graúdo os peixe
que passa lá, né? Aí eles fura a rede, não pega bem. Às vezes não pega o
peixe. Porque essa linha esse meu arrastão a linha é vinte e quatro, lá a linha
uma época dessas (enchente) a linha tem que ser trinta e seis pra cima, trinta
e seis que é pra segurar o peixe, porque tá mais fundo lá. A fundura. Eu acho
que lá no Laranjal, aqui nós tava vendo aí cinco metros sete metros, lá o
mínimo no mundo tá dando de vinte e cinco metros pra lá, se não tiver
dando mais. (A. S. 33 anos, morador e pescador da comunidade Nossa
Senhora das Graças)
Nos outros lugares citados, também verificamos as intenções e as particularidades da
pesca exercida. O arrendamento de lagos em comunidades situadas nas proximidades da
reserva do Abufari no rio Purus em determinados períodos, por exemplo, indica as práticas
estritamente comerciais das quais surgem os objetivos do deslocamento, sobretudo, causados
pela pesca em lugares disputados comercialmente.
207
Desta forma, os conflitos não fogem à prática da pesca exercida em lugares
inicialmente proibidos, tais como reservas naturais, possibilitando uma interpretação de que o
intuito desta prática e os custos subjacentes ao exercício de deslocamento por um número
considerável de dias para obtenção de um bom resultado final, ainda possibilitam uma
apropriação dos recursos disponíveis sob estes mecanismos – o arrendamento de lagos, por
exemplo – garantindo um lucro.
Contudo, grande parte dos pescadores de Nossa Senhora das Graças optam ou apenas
possuem condições para a pesca em suas imediações, o tipo de finalidade indica o percentual
mais expressivo quanto ao fato do deslocamento. A pesca, em lugares distantes, envolve
custos investidos no trabalho logo, pressupondo a obtenção de um lucro, assim o
deslocamento em si indica o tipo de pesca subjacente, a pesca comercial, diferente do tipo de
pesca executada nas proximidades da comunidade, geralmente nos lagos, onde a finalidade é
o consumo (Figura 71).
A identificação dos ambientes relaciona o tipo de atividade pesqueira em Nossa
Senhora das Graças, demonstrando a articulação entre a finalidade comercial da pesca através
Figura 71 - Finalidade da pesca nas localidades distantes da
comunidade.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
208
das espécies capturadas (Figura 72), na medida em que a dimensão de uso dos recursos
pesqueiros quanto aos modelos de apropriação se diferenciam pelo lugar.
A pesca realizada nos locais apontados possui um diferencial relacionado com o
período de sazonalidade dos períodos hidrológicos em que acontece a atividade, assim como o
período hidrológico influencia o preço no mercado do pescado, também influencia a
finalidade, os apetrechos utilizados, o significado dado aos territórios da pesca, assim como os
elementos pertencentes à constituição do mundo da pesca como umas das representações do
mundo vivido entre os pescadores.
As informações dos ambientes onde são desenvolvidas as atividades pesqueiras entre
os moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças apresentam as formas de
territorialidades construídas a partir dos lugares e sob determinadas normas de acesso. Dentre
estas, destacamos as mais expressivas a partir da divisão decorrente dos períodos hidrológicos
(enchente, cheia, vazante e seca) como fatores condicionantes à atividade pesqueira e o modo
de apropriação dos ambientes.
Figura 72 – perfil total da denominação popular das espécies mais
capturadas para fins comerciais na região de pesca da pesquisa.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
209
Nos dados obtidos, destacamos a Costa do Laranjal situada no rio Solimões e
localizada próxima à Costa do Pesqueiro, às margens do rio Solimões onde se localiza a
própria comunidade – lugar onde é exercida a pesca de vez, e o Lago do Tamanduá, utilizado
em períodos de acesso fácil, localizado atrás da comunidade e tido como um lago
especificamente para a pesca de subsistência de peixes de escama (diferente dos peixes lisos
comercializados em grande escala nos rios), apresentando também uma dimensão comercial
em determinadas situações. Os demais ambientes citados constituem espaços apropriados de
forma comum entre os pescadores de Nossa Senhora das Graças e demais comunidades,
demonstrando a frequência de uso.
Os lagos e paranás, assim como a Reserva Abufari, aparecem predominantemente
como lugares em que se pressupõe a finalidade comercial, considerados ora espaços abertos,
ora fechados de acordo com o grupo que o define como território e pressupõe o seu uso
comum. A prevalência do rio Solimões também é indicada como local abrangente, que não se
delimita em seus ambientes particulares como os furos, costas e lagos, revelando sua
utilização de maneira heterogênea entre os pescadores, ou seja, enquanto ambiente maior que
não se limita a localidades específicas, sendo para os pescadores qualquer lugar que seja
conhecido por suas capacidades de estoque pesqueiro, respeitando suas regras, geralmente
pautadas pelo convívio e pelas relações sociais estabelecidas entre as comunidades mais
próximas.
Figura 73 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de
acordo com os ambientes no período da enchente
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
210
Nos meses correspondentes ao período sazonal da enchente, observa-se que o uso
dos rios se torna predominante na medida em que a intensificação da pesca comercial
prevalece como atividade principal, pois é visada a captura dos peixes lisos. Ocorre, ainda,
que a espacialização da pesca neste período resulta, também, na intensificação de outras áreas,
como os lagos e paranás ao entorno e distantes da comunidade. Os ambientes revelam uma
apropriação muito variada conforme os períodos, o que nos leva a refletir sobre condições de
uso diferenciado das territorialidades.
O uso dos recursos pesqueiros nas localidades citadas no período de enchente
revelam uma dimensão muito singular. Os pontos de pesca encontrados com a finalidade
comercial e para consumo são rios, lagos e paranás, no entanto, destaca-se a atividade
pesqueira desenvolvida na localidade Costa do Laranjal, também aparecem os pontos de pesca
em frente à comunidade, assim como inúmeros trechos do rio Solimões, revelando que, em
Figura 74 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da enchente
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
211
determinados momentos, não preexiste uma localidade especifica e adota-se o rio como um
todo.
Sempre alternados sob a possibilidade das variações apresentadas (venda/consumo),
a maioria dos locais citados no período de enchente possuem como finalidade o comércio. As
atividades de pesca cuja finalidade é o consumo, somente ocorrerão no lago Tamanduá e com
frequência bastante acentuada, esta afirmação revela a relação da comunidade com o lago, a
noção de trato com o ambiente representando como um lago-despensa, o que significa que a
pesca de subsistência neste período possui uma dimensão muito importante.
Na cheia, a dificuldade de captura do pescado cria obstáculos ao desenvolvimento
das atividades comerciais e, neste caso, o local torna-se parte da dimensão de consumo e de
reprodução da força-de-trabalho, contudo ainda apresenta a mesma dinâmica quanto as
formas de uso, prevalecendo em grande parte o uso dos rios para a atividade comercial e,
neste caso apresentando algumas alterações quanto sua finalidade, passando a ser utilizado
para o consumo.
Figura 75 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de
acordo com os ambientes no período da cheia.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
212
No período correspondente à cheia, a apropriação dos pontos de pesca revela, na
Costa do Laranjal, assim como em todo o trecho correspondente ao rio Solimões, a dimensão
de subsistência e comércio como fatores muito relacionais.
Nos outros ambientes, as mesmas finalidades aparecem num quadro de manutenção
que segue revelando a permanência do lago Tamanduá como ambiente destinado ao consumo,
mas que apresenta a diminuição de seu uso em relação ao período de enchente, em detrimento
do uso do rio Solimões como um ambiente disperso.
No período de descida das águas, denominado de vazante, a pesca em Nossa Senhora
das Graças se apresenta de forma diferenciada quanto à maneira de obtenção do pescado,
assim como suas formas de reordenamento das áreas consideradas pontos de pesca. Esta
singularidade revela a apropriação de quatro locais específicos, desaparecendo os pontos mais
distantes de pesca – fator que se deve primeiro à dificuldade de deslocamento no período da
vazante, ao alto custo do deslocamento considerando o produto final da pescaria.
Figura 76 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais apontados
no período da cheia.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
213
Contudo, as territorialidades da pesca, sobretudo nos rios como o Solimões a partir
da vazante, vai reconfigurando as formas de uso dos espaços considerados comuns, pois os
rios se tornam cada vez espaços propícios à captura dos peixes com características comerciais,
sendo utilizados de forma mais intensiva que os lagos e demais espaços.
Esta tendência se manifesta, sobretudo, com o fenômeno denominado pelos
pescadores de repiquete, período marcado pela estabilização das águas da cheia e posterior
descida das mesmas, manifestando o período de vazante até a seca, melhor período de pesca
para os moradores das comunidades da Costa do Pesqueiro.
Como o período da vazante é reconhecido pelo início da melhor época de captura ou
fartura do pescado, a comercialização aparece relacionada ao consumo. Segundo as
informações obtidas, o excedente da pesca é mais acentuado, permitindo, por exemplo, a
pesca para a venda e para o consumo em frente à comunidade ou em menor grau no lago
Tamanduá, utilizado pelos moradores locais para o consumo, apresentando-se de maneira
Figura 77 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de
acordo com os ambientes no período da vazante.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
214
muito diferenciada da pesca voltada unicamente para a dimensão comercial realizada em
outros pontos de pesca reconhecidos, como na Costa do Laranjal (Figura 78).
Com a facilidade da captura do pescado iniciada com a vazante dos rios, a divisão de
locais específicos voltada para a venda e para o consumo se demonstra de forma mais
explícita, pois direciona o uso do local escolhido e as ações desenvolvidas na pescaria, como
o uso de apetrechos específicos. A demarcação de áreas de acesso comum, sobretudo no rio
Solimões, torna-se mais latente quanto maior forem os processos de intensificação da captura,
gerando, por vezes, tensões entre os pescadores e as formas de uso dos locais.
Assim, como na vazante, o período correspondente ao período de águas baixas ou de
seca também é visto pelos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças como uma
boa época para a pesca. A facilidade na captura do pescado se deve à diminuição no nível de
água dos rios e lagos e na concentração dos cardumes propícios à dimensão comercial e
também ao consumo.
A pesca comercial se torna mais acentuada no período de seca, (Figura 79), logo, a
apropriação comum, contudo de forma privada entre os pescadores locais, se torna mais
Figura 78 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais
apontados no período da vazante.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
215
expressiva. O uso do rio Solimões sofre grande pressão da pesca comercial quando
comparado aos demais ambientes, neste caso, a sobrecarga induz à competição da pesca
comercial, representando grande percentual das áreas demarcadas pelos pescadores através
dos mecanismos de controle, já que os pontos de pesca demarcados neste período representam
uma boa obtenção de lucro com o pescado.
Neste período, o aproveitamento dos pontos de pesca é tamanho que revela a
diversidade da apropriação dos espaços de forma a direcionar as finalidades da pesca (Figura
80). Para além da localidade Costa do Laranjal que, neste período, aparece com uma
frequência bastante acima das demais épocas, o uso acentuado da pesca no lago Tamanduá,
pela primeira vez, revela sua dimensão comercial em relação aos outros locais citados e aos
outros períodos correspondentes.
Figura 79 – formas de apropriação dos recursos
pesqueiros de acordo com os ambientes no período da
seca.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
216
A pesca no período de seca é vista como a melhor época para os moradores de Nossa
Senhora das Graças, porque, também, apresenta um excedente comercializável relacionando-
se, também, com a dimensão do consumo. Por mais que seja um período em que a dificuldade
no abastecimento de água, por exemplo, é tido como um problema infraestrutural entre os
moradores, por outro lado, expõe a facilidade na pesca que contribui para a reprodução dos
meios de manutenção física e social da comunidade.
A comercialização e posterior obtenção da renda possuem mais visibilidade com a
captura em grande quantidade do peixe liso. Contudo, o processo de comercialização, como
apresentado anteriormente, se reconfigura conforme a oferta do pescado, transformando,
também, as disputas e o acesso a determinadas porções de território demarcado nos rios e
lagos.
A diversidade de apropriação dos locais mediante a racionalização no uso dos
ambientes diante nos períodos hidrológicos correspondentes indica a existência de melhores e
piores momentos em que a pesca é executada. A escolha dos melhores horários e dos
Figura 80 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais apontados no
período da seca.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
217
apetrechos utilizados na captura demonstra a finalidade da pescaria, evidenciando o
conhecimento acerca dos ambientes, esta dimensão subjaz à representação dos lugares
considerados enquanto territorialidades e que estruturam as atividades de captura do pescado.
O período da manhã é ressaltado como o melhor horário para efetuar a pesca
comercial e de subsistência, por isso aparece como o horário mais frequente. Diferente do
horário da manhã, a pesca realizada à noite e na madrugada representa boa parte da finalidade
comercial e onde a captura, principalmente dos bagres, é tida como atividade principal quanto
à renda obtida entre os pescadores profissionais.
A estratificação dos horários revela, na esfera do trabalho, o modo de inserção da
produção capitalista na pesca. Indiferente aos períodos e horários cuja atividade comercial é
executada, gera disputas entre os pescadores, a apropriação dos recursos pesqueiros em
horários incomuns, revelando aspectos fundamentais à compreensão dos riscos desta
Figura 81 - Melhores horários para a captura do pescado
nos ambientes citados, segundo os moradores da
comunidade Nossa Senhora das Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
218
atividade, como as pescarias executadas à noite e em demais horários visando à
comercialização.
Sabe-se que a dimensão comercial da pesca profissional na comunidade Nossa
Senhora das Graças revela um número expressivo de indivíduos envolvidos nesta atividade,
onde grande parte dos pescadores (56%) afirma não deixar de pescar comercialmente durante
o ano, não significando, é claro, que aqueles que não comercializam o pescado durante o
período anual não estejam envolvidos diariamente com a pesca.
O período hidrológico revela uma das possibilidades de compreensão das formas de
organização do trabalho na pesca comercial, pois indica aos momentos onde se deixa de
pescar em detrimento de outras práticas que ditam o regime do modo de vida local (Figura
83).
Figura 82 - Percentual de ocorrência sobre a prática da
pesca comercial comunidade.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
219
As dificuldades encontradas, sobretudo no período da enchente, revelam informações
sobre os aspectos constituintes da pesca comercial. Nestes períodos ocorre a subida repentina
das águas, reconfigurando os espaços de pesca, dando maior locomoção aos cardumes antes
concentrados, dificultando a pescaria no rio, envolvendo maiores custos e tempo desperdiçado
no processo de captura, logo sendo um dos fatores que resultam na diminuição da atividade
comercial.
Contudo, a pesca continua fazendo parte do modo de vida local, pois se configura
como atividade de subsistência, exercida, neste momento, principalmente, nos lagos que
recebem grandes quantidades de cardumes bastante apreciados pelos moradores locais,
sobretudo dos peixes de escama.
A enchente e a cheia são também períodos que requerem uma organização
antecipada dos espaços de uso familiar entres os moradores da comunidade Nossa Senhora
das Graças, pois, com a subida das águas na várzea, as porções de terra diminuem, limitando,
também, os espaços destinados à criação dos animais, às plantações e demais áreas de cultivo.
Logo, é necessário concentrar forças em atividades que antecedem as enchentes (a colheita do
Figura 83 - Períodos em que não se exerce a pesca
comercial por ano na comunidade Nossa Senhora das
Graças.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
220
roçado de mandioca, a modificação dos canteiros e jirais, a mudança de lugar dos animais
criados), para que não ocorram imprevistos no período de cheia, desta forma, a pesca
comercial também sofre uma diminuição em decorrência do tempo de atividades no preparo
para a espera da subida das águas.
A atividade da pesca comercial nos leva a pensar sobre a capacidade de exploração
dos recursos pesqueiros e compreender sua dinâmica quando relacionados ao uso definido de
pontos de pesca territorialmente demarcados e socialmente diferenciados nos períodos
hidrológicos. Nas localidades citadas pelos pescadores destinadas à pesca comercial, a Costa
do Laranjal se revela como o lugar de maior importância, diferenciando-se do lago Tamanduá,
na medida em que este, na maioria do ano, é entendido como território de uso comum à pesca
de subsistência dos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças. A noção do lago
como despensa, ou como depósito vivo de alimentação para os moradores revela a
importância deste espaço como território de uso comum entre os moradores, no entanto,
também, esconde o conflito.
A apropriação territorial de determinados espaços de pesca pelos moradores de
Nossa Senhora das Graças está relacionada com a dinâmica de seu uso. Isto significa que a
capacidade de captura do pescado, através da diferenciação dos períodos hidrológicos, do
conhecimento local e da pré-disponibilidade de seus recursos, direcionará a finalidade da
pesca. A realidade de uso do Lago do Tamanduá se demonstra como exemplo válido, onde a
finalidade de comercialização só aparece quando a captura, ou o produto final do trabalho
objetivado na pesca, produz um excedente comercializável, já que este lugar é reconhecido
como ambiente destinado à pesca para consumo entre os moradores.
Diferente dos outros locais, sobretudo no rio Solimões, onde a finalidade da pesca é
ditada pelo ritmo de comercialização e da capacidade de exploração dos recursos pesqueiros,
os ambientes fundamentais ao exercício desta atividade se configuram, em sua maioria,
221
localizados em territórios onde há uma diferenciação simbólica e material dos espaços
comunitariamente endógenos, logo, configurando-se enquanto sua delimitação e demarcação
legitimada pela relação de oposição ente territórios abertos – de acesso comum aos grupos de
pescadores locais – e territórios fechados – ambientes cuja apropriação envolve regras e
mecanismos de controle sob a pressão dos recursos de forma mais acentuada entre os
moradores do mesmo lugar, legitimando a conduta da pesca exercida nos locais apresentados.
A atividade da pesca comercial de forma intensiva nestes ambientes vem
possibilitando uma interpretação não só da constituição das dimensões territoriais da pesca,
pois, na medida em que consideramos os espaços demarcados, estamos lidando com outra
situação, bem mais real aos objetivos dos pescadores, sendo a disposição dos recursos
pesqueiros disponíveis nestas áreas.
Neste sentido, a capacidade de exploração dos recursos é determinada pela dinâmica
de apropriação dos ambientes, pois a territorialidade surge exatamente daquilo que o território
demarcado pode propiciar aos indivíduos, ou seja, dos recursos pesqueiros, e, neste caso, de
forma mais acentuada para fins comerciais.
A intensificação da captura para fins comerciais, principalmente nas áreas onde
ocorre territorialização do rio Solimões, vem ao longo das últimas décadas se revelando como
um dos principais problemas relacionados com a pesca comercial local, resultando da
quantidade de peixe capturado, não aproveitado ou descartado na captura, gerando diminuição
considerável das espécies comercialmente importantes, assim como aquelas necessárias ao
consumo local das comunidades.
222
Em Nossa Senhora das Graças, a diminuição das espécies consideradas importantes
para a comercialização apresenta resultados expressivos na visão dos pescadores locais. Pois,
na medida em que ocorre, sobrecarga os estoques, a tendência é um controle mais rígido das
áreas através da normatização dos espaços comuns de pesca regidas por acordos locais e
mediados ou pela interlocução dos representantes do setor pesqueiro, por alguma instituição
ou pelas próprias comunidades envolvidas por meio de seus pescadores, visando, desta forma,
solucionar o problema do desgaste e diminuição.
Figura 84 - Pergunta referente à existência de descarte de
pescado entre os pescadores da comunidade.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
223
Por outro lado, a intensificação da pesca comercial representada pela diminuição dos
estoques de determinadas espécies, sobretudo dos peixes lisos bastante visados
comercialmente, traduz outras questões que envolvem o processo de delimitação dos
territórios da pesca comercial e de subsistência e as relações de trabalho que possibilitam uma
rede de comunicação entre os agentes envolvidos.
4.4 Dimensões representativas do conflito: a pesca entre os de dentro e os de fora
Os conflitos são inerentes às relações instituídas entre os indivíduos em grupo.
Contudo, eles se apresentam de acordo com o modelo de desenvolvimento da sociedade e
capacidade de gestão sobre determinadas formas e aspectos. Na teoria social os conflitos
aparecem ora como aspectos que denotam a luta pela relação de poder entre os indivíduos de
determinadas classes, enquanto o motor da história (MARX, 2004), ora como formas
emergentes nas relações das sociedades urbano-industriais (DURKHEIM, 2004) e ainda
Figura 85 - Análise descritiva das espécies de peixes que diminuíram na localidade.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
224
sendo a expressão máxima da relação circunscrita sob as bases da sociedade moderna
enquanto elemento de luta, sendo uma relação social intencionada (WEBER, 1991).
Para Simmel (1973) apud Theodoro (2005), conflito é uma das formas mais vivas de
interação, sendo constituído pelo processo de associação, considerando que os fatores
responsáveis pela dissociação são o ódio, a inveja, a necessidade e o desejo. Neste caso, para
o autor, o conflito tenderia à missão de resolver dualismos divergentes enquanto maneira de
reconstruir uma unidade perdida, ainda que pelo meio de destruição de uma das partes
envolvidas.
Com o desenvolvimento dos modos de produção e dos modelos político-econômicos
adotados na contemporaneidade, os conflitos, segundo Theodoro (2005), assumem cada vez
mais seu espaço de importância, sendo que, nas sociedades atuais, suas particularidades são
encontradas em uma modalidade especifica, aquela que se dá em torno da relação entre
homem e natureza quanto aos dilemas de apropriação dos recursos naturais.
Os conflitos socioambientais podem ser comparados a outros tipos de
conflito existentes em nossa sociedade, com a diferença de que normalmente
eles englobam coletividades em torno de bens difusos, com base em uma
legislação que, por vezes, ainda é incipiente. Isto não quer dizer que as
outras formas de conflito tenham desaparecido, mas apenas que se
acrescentou uma nova forma, desta feita envolvendo os recursos naturais.
(THEODORO, 2005, p. 54)
Para Little (2004), os conflitos socioambientais podem ser pensados a partir de
grandes tipologias que os caracterizem, a) sua relação em torno do controle sobre os recursos
naturais disponíveis; b) em torno dos impactos gerados pela ação humana, sendo estes sociais
ou ambientais, e c) a partir de valores e modos de vida divergentes ou ainda de ideologias não
consensuais. Para o autor, é interessante refletir sobre o que está em jogo nos processos de
mediação, considerando uma identificação e análise dos atores sociais e dos interesses que
denotam a disputa.
225
Quando um ou mais indivíduos se utilizam dos mesmos ambientes, predispondo que
o uso dos recursos naturais disponíveis é dado à apropriação comum significa que há regras
no processo de uso que estão ou não internalizadas entre os agentes. Contudo, a questão
também implica que, no contexto sobre a utilização de áreas bem definidas, está em jogo
representações sobre o ambiente, sobre o espaço físico e a maneira como este é constituído.
Neste sentido, as relações sociais estabelecidas em determinado espaço físico, como
a constituição de territorialidades da pesca, possibilitam a compreensão de como são
construídos os espaços sociais no processo de interação entre indivíduos.
Para Bourdieu (2003), os espaços sociais são produzidos a partir da posição relativa
que determinados agentes ocupam na relação com outros lugares, desta forma é definido pela
exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de
justaposição de posições sociais. Para o autor, a estrutura do espaço social se manifesta,
assim, nos contextos mais diversos, sob a forma de oposições, o espaço habitado (ou
apropriado) funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social.
A compreensão das condições de reconfiguração dos espaços físicos onde são
produzidas as territorialidades da pesca se traduz pela relação entre aquilo que é socialmente
construído pelos indivíduos quanto à questão da apropriação dos recursos. Isto significa que
os conflitos sociais pela utilização coletiva dos mesmos ambientes e recursos estão dispostos
na interação entre o espaço social e a maneira como este se estabelece no espaço físico.
Neste caso, a apropriação se daria na relação entre a estrutura espacial da distribuição
dos agentes (pescadores) e nas estruturas da distribuição dos bens a serem alcançados, como
no caso dos recursos pesqueiros. Assim, as divergências quanto à apropriação e uso dos
ambientes levariam, por este lado, ao conflito pela disputa e acesso aos recursos comuns.
Desta forma, Bourdieu (2003) afirma que, como o espaço social subjaz inscrito ao mesmo
tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais que constituem as representações
226
locais dos indivíduos que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, o
espaço se apresentaria como um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, sobretudo a
partir de sua forma mais sutil, a da violência simbólica como violência despercebida.
Na produção social de territorialidades da pesca comercial e de subsistência nos
lagos e no rio Solimões, a convergência ou divergência no uso dos recursos possibilita em
muitos casos, os conflitos, sobretudo quando os mecanismos de controle e regulamentação
das pescarias não são internalizados, estando os indivíduos sujeitos às sanções do grupo em
comum.
Em situações recorrentes como a frequente diminuição de espécies que possuem um
bom preço no mercado da pesca, possibilita também as contradições no processo de captura
do pescado e de uso comum das áreas territorialmente definidas, tencionando a relação entre
os pescadores por meio da disputa ao acesso das áreas e do uso dos apetrechos. Os conflitos
pelo acesso às áreas consideradas principais ao desenvolvimento da pesca tanto comercial
quanto de subsistência, demonstram-se enquanto reflexo das relações sociais de trabalho que
envolve a pesca e a disputa/controle sob determinados ambientes na medida em que se
observa a configuração de um cenário dinâmico da pesca na região.
Algumas dimensões do conflito podem ser expressas por meio dos relatos obtidos
entre os pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças, tomando, como enfoque, os
principais pontos de pesca considerados entre os moradores locais. A disputa pelo acesso aos
recursos pesqueiros evidencia as formas de organização dos espaços em disputa pela
apropriação para fins comerciais, a territorialidade produzida pela pesca comercial demonstra
aspectos variantes, ordenados pela compreensão dos grupos locais a respeito dos sistemas
abertos e fechados de acesso aos ambientes predispostos.
227
Isto significa dizer que os espaços delimitados, além de possuírem regras de acesso
comum aos agentes envolvidos, reproduzem suas representações quanto à forma de controle
e acesso de acordo com a maneira que os ambientes são apropriados.
Um lago, por exemplo, tende a ser considerado um ambiente de apropriação
endógena de uma ou algumas comunidades de acordo com sua dimensão espacial, logo
define-se a capacidade de obtenção dos recursos nele disponíveis e sua finalidade, geralmente
para subsistência, representado desta forma, um ambiente fechado do ponto de vista mais
geral de seu acesso, estando mais restrito ao uso comum dos sujeitos envolvidos.
No caso dos rios, costas e paranás, a apropriação é resultante da composição
organizacional dos recursos disponíveis de forma a apresentarem-se tendencialmente como
ambientes abertos entre os sujeitos envolvidos, contudo, prevalecendo os códigos que
normatizam o seu acesso, dando sentido a uma apropriação comum na medida em que seus
mecanismos de controle são internalizados pelos agentes envolvidos. Desta forma, acredita-se
que a pesca exercida nos rios é diferente do tipo de pescaria exercida nos lagos, considerando
que o acesso ao primeiro seria mais diversificado e de forma menos problemática do que em
relação ao segundo.
Porém, ambos os espaços revelam a apropriação comum e privada a determinados
grupos sociais, envolvendo lugares naturalmente vistos como harmônicos, contudo uma das
dimensões da territorialidade na pesca é expressa pela insurgência dos conflitos nos ambientes
disputados, visto que o território é produto social e político dos grupos envolvidos. Logo, a
latência dos conflitos só se expressa na medida em que os elementos estruturantes da ordem
social imposta pelos mecanismos de controle do acesso aos recursos são desrespeitados, neste
caso a intensificação da pesca comercial nos rios e nos lagos é um fator agravante que resulta
deste processo.
228
É sabido que os conflitos pela disputa dos recursos pesqueiros nos rios e lagos da
Amazônia brasileira tem se constituído como um fenômeno historicamente recorrente,
inúmeros relatos são passíveis de uma interpretação quanto aos tipos de ocorrência e em que
se fundamentavam, tomando, como um destes exemplos, um dos conflitos mais marcantes no
Estado ocorrido em 1973 entre os municípios de Careiro e Manaquiri, especificamente no
lago do Janauacá, este conflito denominado de “a guerra do peixe”, foi ocasionado pela
intensificação da pesca comercial na área, resultando na morte de vários moradores locais e de
muitos pescadores profissionais embarcados.
O resultado da intensificação da pesca comercial, associada à implementação de
apetrechos de alto poder de captura neste período – como as malhadeiras e arrastões –
deflagrariam maior disputa pelos recursos pesqueiros e pela sobreposição de áreas
tradicionalmente ocupadas em lagos e no próprio rio.
A Costa do Laranjal e o Lago do Tamanduá são exemplos de contrastes que revelam
o uso dos recursos pesqueiro e as relações estabelecidas entre os agentes envolventes nos
ambientes diferenciados nas áreas de pesca aberta e fechada. Nos discursos encontramos a
preocupação com os problemas que envolvem a pesca e a dimensão de importância desta
atividade para os moradores.
A preocupação com as relações estabelecidas no uso do Lago Tamanduá demonstra
um pouco da história dos conflitos, muitas vezes através de agressão física, e ao mesmo
tempo a descrença da opinião dos moradores em relação à possibilidade de mudanças,
considerando a crise do desgaste dos recursos pesqueiros.
[...] há um estrago nos lago hoje, e por causa disso houve até ameaça de
morte (ocorrida em 2005, segundo o entrevistado)...nós reivindicava por
causa desse lago aí (Lago do Tamanduá)..por causa da documentação
dele...eu juntei a turma e levei lá num dia que teve um problema, só que o
cara lá tava com uma espingarda e queria atirar em nós... desde desse dia
pararam a intervenção do lago...acho que os lago tudo vão se acabar! O lago
é importante demais porque é dele que a gente sobrevive na época de seca,
229
mas o pessoal faz baderna lá (S. S. 54 anos, pescador e morador da
comunidade).
Muitas vezes, o conflito apresenta agentes externos que acirram a disputa no uso dos
recursos. Em Nossa Senhora das Graças, a pesca no Lago Tamanduá em determinados
períodos do ano se torna conflituosa por indicar uma particularidade muito característica, a
comunidade utiliza o lago para a obtenção de alimento na maioria dos períodos sazonais.
[...] o pessoal de lá do Manaquiri queria puxar pra eles a pesca dessa área
daqui, Ave Maria! isso foi um conflito horrível aí, só que não conseguiram
puxar porque o certo mesmo por uma parte isso aqui tinha que ser município
de Manaquiri que é do outro lado do rio, né? Aí passa a ser município de
Manacapuru, mas se o Manaquiri não conseguiu não que era mais pequeno.
Aí a maioria também do pessoal viu a dificuldade, né? Que quando seca o
Manaquiri fica todo seco, aí fica dificultoso pra pescar, mas o pessoal do
Manaquiri ainda tenta várias vezes vim pra essa costa aqui do lago, já
levaram até porrada (R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da
comunidade).
.
[...] tem muito conflito aí pra dentro do lago com o pessoal do Manaquiri,
tem parte pro senhor saber que o lago tudo vira pesca deles lá do Manaquiri,
muito na seca também, Aí pra trás, só é essa costa aqui daí pra cá que é
nossa daqui da comunidade. O lago aí do Tamanduá faz parte daqui, né, Mas
eles ainda entram em conflito puxando querendo ser Manaquiri, bem aí o
lago que vocês sempre vão lá, né? Aí eles por isso que eles faz isso, só
porque é grudado no lago do Manaquiri aí. (L. S. 32 anos, pescador e
morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
Mas o lago também possibilita, indiretamente, que outros grupos possam ter acesso,
neste caso, pescadores de outras comunidades que entram no lago sem a autorização dos
moradores da comunidade e realizam arrastões com grandes redes para pesca comercial, esta
prática revela, na fala dos moradores, uma preocupação latente com a própria legitimidade de
uso do território do lago ao mesmo tempo em que caracteriza os de fora como agentes de
conflito no processo de apropriação dos recursos.
[...] o lago (referindo-se ao Lago do Tamanduá) tá faltando preservar,
porque tem as criança né, elas precisam comer, tá faltando uma união muito
grande, tem gente daqui que levava os outros pescadores de outras
comunidades, do Manaquiri (município vizinho) pra pegá peixe
230
aqui...existem muito problema de comida. E às vezes num tem peixe, e a
gente não se une, nos lutava de primeiro mas hoje não, tem mais de 8 ano
atrás, antes era bom...você pegava todo tipo de peixe agora você vai lá no
lago e só pega aqueles bodó magro... deveria haver uma fiscalização
melhor pra preservar os peixes pequeno, porque todo ano estraga (R.
A. P. S. 50 anos, pescador e morador da comunidade).
[...] lá no lago é um problema, os pessoal do Manaquiri (município vizinho
a Manacapuru) entram no Tamanduá pra pescar e o lago é pra despensa, tem
problema, eles acham que num pode proibir mas a gente qué porque é bom
pra nós...nós tem filho né? Eles precisa comer” (A.P. A. 39 anos, pescador e
morador da comunidade).
Sobretudo, a fala dos moradores locais expressa a particularidade do uso do lago,
mas explicita a relação com o território pertencente ao modo de vida em Nossa Senhora das
graças. O lago pode ter uma dimensão comercial para os agentes externos à comunidade, mas
para os moradores, pode representar a delimitação da comunidade, a história de vida
associada à apropriação e transformação do espaço em comunidade, à associação com a
reprodução material da vida, levando a elementos muito além da comercialização e trazendo
para si a representação do lugar.
Em contraposição ao lago, o caso da Costa do Laranjal, somando o fato da pesca ser
exercida no rio e sem delimitação, visivelmente a priori – considerando é claro, a existência
das comunidades próximas que se identificam com o lugar – o conflito se dá pelas regras de
uso e pelo maior número de pescadores quanto ao acesso da área como um importante ponto
de pesca.
[...] olha, lá (na Costa do Laranjal) onde nós pesca tem muito conflito.
Quando tá na época da seca todo mundo abate lá, e tem muito pescador que
dá conflito demais porque eles querem mandar lá na área né? Mas vamos
supor, tem conflito assim se tu caçar conflito porque tu botar o arrastão na
frente do outro aí lá vai aquela confusão, mas eu tô com todo esse tempo de
pesca comigo nunca aconteceu lá. É porque eu sou uma pessoa assim que,
vamos supor, chega uma pessoa ambiciosa e tenta botar na minha frente, aí
eu fico com a minha rede na minha canoa e deixo ele botar aí depois se tiver
tempo de eu botar a minha eu boto senão eu fico na minha. Porque o que é
meu ele não pega, aí eles criam aquele olhão querendo expulsar nós, mas aí
eles também de primeiro quando nós começamos lá eles quiseram embargar
231
pra lá. (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das
Graças).
[...] a pesca aqui na frente da comunidade num é muito boa não, mas pra
outras áreas como lá no Laranjal é bom... lá é bom de fera. (A. M. S. 23
anos, pescador e morador da comunidade).
Nas afirmações dos pescadores que se deslocam para a Costa do Laranjal
verificamos os elementos que apontam para o desgaste dos recursos pesqueiros associados ao
conflito e à identificação dos pescadores de outras comunidades. A mediação institucional dos
órgãos competentes reflete a possibilidade de mediação dos conflitos na medida em que os
agentes se delimitam no campo de disputa.
[...] os pessoal falam pra gente acabar com isso de pescar lá, só que é gente
que não pertence nem de lá, é já no lado de longe do Laranjal. Mas eles se
sentem dono dessa área, eles querem botar moral, nas primeiras vezes eles
queriam barrar, né? Aí foi aquele furdunço monstro, levaram IBAMA lá e
tudo e aí eu ainda naquela época eu ainda via uma hora do IBAMA cancelar
tudinho, né?eles pode porque eles têm o poder pra ninguém pescar. Depois
de novo o IBAMA teve por lá pra querer embargar de pescar aqueles que
têm mais dinheiro lá, aí aqueles que se metem a ter mais dinheiro querem
embargar a compra também, né? Se o pescador não fosse documentado
mesmo eles tinham embargado, né? Só que aí todo pescador eles têm
documento, né? aí o IBAMA não pode porque nós têm cadastro, têm
carteira. Se é um pescador mesmo, aí o IBAMA não pode impedir de
pescarem, em todo canto do rio nós pode pescar. (R. N. N. R. 41 anos,
pescador e morador da comunidade).
Neste caso, a relação entre aqueles que possuem o acesso e os pescadores de fora ou
aqueles que rompem com os mecanismos de controle, sobretudo da organização da pesca
comercial, impõe as sanções, entrando em litígio com os demais pescadores estabelecidos.
[...] lá no Laranjal eu já vi mais de 100 lanço, lá tinha conflito uns três anos
atrás porque o pessoal do IBAMA foi lá com eles” (A. P. M. 51 anos,
pescador e morador da comunidade).
[...] onde nós pesca sempre tem conflito com o pessoal da Comunidade do
Pesqueiro aqui de perto, eles sempre querem impedir nós de pescar lá no
Laranjal(R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da comunidade).
A dimensão do conflito revela a apropriação dos recursos pesqueiros e a
competição comercial que se apresenta, muitas vezes, de maneira nem um pouco amistosa, e
232
sim tolerável segundo os pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças. A
compreensão deste fenômeno apresenta também os interesses pessoais das comunidades no
aproveitamento dos recursos, principalmente nos períodos de maior relevância na captura do
pescado, na vazante e na seca.
[...] rapaz, aqui não saia essas praias antes, depois que saiu essas praias é
que nós fomos pra lá (para a Costa do Laranjal) por causo que a praia
dificulta a gente de pescar, mas nós não íamos pra lá não, todo tempo era
aqui. Isso foi pra uma base do ano de noventa e pouco pro ano dois mil, de
dois mil pra cá, foi quando essas praias baixaram, né? Que não tinha essas
praia, mas de primeiro só era aqui a pescaria e nos lugares mais longe que
tinha de passar dia como lá pro (rio) Purus. Aí aqui depois que fica tudo em
terra não tem como a gente pescar, então às vezes quando nós vamos pescar
lá eles ainda dizem assim: aqui não é lugar de vocês, vão pescar em cima da
praia de vocês lá, aí como é que o cara vai pescar em cima de praia? (A. C.
43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).
[...] na época da seca, tem muita ambição, todos querem manda, é que na
seca num dá pra pescá aí na frente (da comunidade) e tem que ir pra lá
(Costa do Laranjal) e eles (os moradores e pescadores do local) ficam com
raiva (S. C. S. 36 anos, pescador e morador da comunidade).
O uso dos recursos pesqueiros apresenta uma diversidade de informações que sobre
as formas de apropriação no mundo do trabalho da pesca considerando a percepção e o saber
constituído na prática da atividade pesqueira. Os recursos compartilhados nos espaços de uso
comum indicam os mecanismos de controle, e possibilitam a produção e a reprodução da vida
material e simbólica das comunidades locais, como a comunidade Nossa Senhora das Graças,
a representação dos territórios da pesca como elementos constitutivos do mundo ordinário são
mantidos e (re)construídos através da estruturação do habitus comunitário, dando sentido ao
modo de vida que impulsiona a ação social coletiva.
A construção social dos territórios de uso enquanto áreas ou pontos pesqueiros estão
relacionados não só com as condições biológicas, mas sobretudo com as condições sócio-
históricas que instituíram uma política de acesso e intensificação das relações comerciais de
pesca local.
233
Para que os pescadores tenham acesso aos recursos disponíveis nos ambientes
aquáticos, é preciso considerar a organização social do trabalho, as implicações nas relações
sociais internas dos grupos de trabalhadores da pesca, a apropriação racional e social dos
recursos naturais, a dimensão cultural do imaginário que constitui a pesca, a relação entre a
pesca e o mercado da pesca inserido no modo de produção capitalista desenvolvido na
Amazônia, os apetrechos que otimizam a captura para a comercialização e os projetos de
desenvolvimento econômicos e políticos adotados em condições históricas situadas e datadas
que repercutem no modo de vida amazônico.
Os conflitos se destinam à compreensão de um mundo entre aqueles que possuem
seus domínios, a relação com os pontos de pesca são marcados pela relação de sociabilidade
entre os pescadores sejam harmoniosas ou conflituosas, indicando um domínio de
territorialidades da pesca.
Para além da dimensão daquilo que possam representar, os conflitos demarcam a
consolidação de espaços sociais, logo a disputa considera que o que está em jogo são os
ganhos, ou seja, os benefícios proporcionados pelo resultado das lutas dentro do campo de
conflito.
Para Bourdieu (2003) os ganhos do espaço, ou seja, do território ocupado e usado
podem tomar a forma de benefícios que consideram ganhos de localização, associados ao fato
de estarem situadas perto de agentes e de bens raros cobiçados – como pela disputa de
determinadas áreas em lagos e no rio; os ganhos de posição ou de classe, estando
relacionados aos ganhos simbólicos de distinção que estão ligados à posse monopolística de
uma propriedade distintiva – tal como na apropriação comum de espaços como os lugares da
pesca de vez; e os ganhos de ocupação (ou de acumulação), sendo relacionados com a posse
de um espaço físico, podendo ser uma forma de manter a distância ou de excluir toda espécie
234
de intrusão indesejável – tal como no conflito gerado pela intensificação comercial no local e
referente a uma relação não tão harmônica com os outsiders da pesca.
Os mecanismos de apropriação comuns destes ambientes são dispostos de acordo
com a dimensão do reconhecimento entre os sujeitos que os legitimam, reconhecer os de fora
ou os de dentro entre aqueles que se utilizam dos recursos pesqueiros, requer o sentimento de
pertença, estando diretamente articulado à indivisão do mundo material e simbólico. A pesca
representa mais do que uma atividade que garante a reprodução da vida, ela se apresenta
como uma das representações da própria vida, da realidade cotidiana de seus trabalhadores na
comunidade Nossa Senhora das Graças e na Costa do Pesqueiro em geral.
4.5 Repensando territorialidades: dimensões interpretativas sobre o controle ao acesso
dos recursos pesqueiros
A constituição dos mecanismos de reprodução social dos territórios incide sobre a
capacidade de manter o uso comum dos recursos pesqueiros de acordo com as possibilidades
encontradas quanto à gestão das áreas ocupadas. Contudo, a diferenciação entre as áreas de
livre acesso particularmente encontradas em determinadas porções do rio onde não se
pressupõe a apropriação das comunidades locais, e as áreas de propriedade comum onde
acontecem uma acentuada demarcação dos lagos e pontos de pesca restritos aos sujeitos de
um mesmo grupo, são evidentes e demonstram aspectos diferenciados sobre o controle ao
acesso dos recursos disponíveis.
A atividade da pesca se configura não só pela captura do pescado, mas também pela
apropriação e formas de uso onde é realizada, permitindo uma reconfiguração social do
ambiente envolvente quanto à sua finalidade. Desta forma, implica sobre alguns parâmetros
de compreensão e de acordo com a maneira que é realizada e, sobretudo, daquilo que ela
reflete, como a organização do trabalho, a demarcação social das áreas, as representações
sobre o ambiente apropriado, as formas de uso através do manuseio de apetrechos específicos
235
e os conflitos destinados à interpretação das práticas de pesca comercial enquanto decorrência
da intensificação da competitividade nos rios e lagos comunitários.
No sentido de estabelecer uma correlação a partir dos elementos evidenciados, e,
considerando os aspectos que constituem a dimensão das territorialidades e formas de
apropriação dos recursos pesqueiros, buscamos traçar um quadro de análise por meio de
alguns parâmetros comparativos de acordo com as observações de Mackean & Ostrom,
(2001) sobre os fatores que permitem uma interpretação dos usos e apropriação dos regimes
de propriedade comum nas áreas evidenciadas, sendo estes diferentes das áreas de livre
acesso e da concepção Hardiana sobre o esgotamento dos recursos.
Desta forma, pretendemos demonstrar que, a capacidade de gestão das
territorialidades nas áreas de pesca, correspondem a determinados fatores, tais como a
comercialização, e se estruturam por meio de normas locais comunitárias que medeiam e
demarcam o acesso a espaços circunscritos à indivíduos específicos, ocorrendo geralmente em
casos onde a participação das instituições governamentais é menos acentuada, estas
geralmente tendem a aparecer conforme se estabelecem latências quanto às relações indicadas
pelos conflitos e, sobretudo, em lugares muito particulares, como nos lagos onde ocorrem
manejos comunitários, diferente das áreas apropriadas nos rios.
Parâmetros comparativos sobre alguns fatores de uso dos recursos pesqueiros e de
seus ambientes a partir dos regimes de propriedade comum.
Sobre os fatores em prol da integridade dos
recursos (MACKEAN & OSTROM, 2001)
Elementos constitutivos das atividades de pesca
na comunidade Nossa Senhora das Graças da
Costa do Pesqueiro de acordo com o uso dos
recursos
Indivisibilidade
O recurso pode possuir características físicas que o
tornem inacessíveis a divisões ou demarcações
físicas, seja pelo fato de o sistema não poder se
delimitado, seja pelo fato de os recursos em
questão movimentarem-se por amplos territórios,
como os peixes, sendo necessário o manejo em
A apropriação dos recursos pesqueiros realizada
pelos moradores da comunidade Nossa Senhora
das Graças possibilita o uso de determinados
espaços transformados em territórios de pesca
onde o uso deste ambientes não se constitui numa
delimitação puramente física, mas numa
236
grandes unidades a fim de que, para além da
obtenção dos produtos retirados, haja a
manutenção do valor ambiental das áreas
utilizadas.
demarcação social dos lugares, onde a captura
revela a ocorrência da concentração de pescado,
estando envolto por sistemas de apropriação dos
recursos mediados por mecanismos de acesso ao
controle da pesca, visando garantir a manutenção
dos estoques e da própria atividade.
Incerteza na localização de zonas produtivas
Em ambientes frágeis, a natureza pode impor
elevadas incertezas na produtividade de
determinadas zonas e na identificação anual de
zonas improdutivas de um sistema mesmo que sua
produtividade seja estável. Nesta situação, o
sistema de recursos é fixo e pode, inclusive, ter
fronteiras óbvias, mas as zonas produtivas são
variáveis. Os usuários podem preferir o
compartilhamento de toda a área e coletivamente,
decidir onde concentrar a exploração em um
período particular – dividindo riscos e benefícios –
ao invés de dividirem a área em parcelas
individuais, situação em que todo o risco incorreria
sobre alguns de seus membros.
A demarcação social das áreas de pesca incide sob
as condições variáveis de captura nas zonas
territorialmente definidas ou fixas. Contudo, as
fronteiras que delimitam o acesso aos recursos
pesqueiros entre um lago ou rio, ou ainda entre
vários espaços no mesmo rio ou lago, condizem
com a definição física dos ambientes comuns
apropriados, estando a pescaria sujeita às
inconstâncias de seu processo produtivo, ou seja,
da captura do pescado, haja vista a movimentação
dos cardumes e as condições de uso que ora
restringem os sujeitos envolvidos, ora permitem
maior possibilidade de sucesso de acordo com a
localização destes agentes.
Eficiência produtiva através da internalização das externalidades
Em vários sistemas de recursos, o uso em uma
determinada zona imediatamente afeta opções e
níveis de produtividade em outra. Neste caso,
regimes de propriedade comum se tornam opções
desejáveis quando usos mais intensivos
multiplicam a externalidade entre parcelas,
promovendo acordos coletivos com regras de uso
fortemente restritivas, e quando a coação coletiva a
essas regras se torna mais fácil em relação a
eternos acordos individuais.
Nos ambientes evidenciados, onde a pesca possui
maior intensidade quanto a sua captura, sobretudo
para fins comerciais, a tendência ao zoneamento
ou territorialização é mais abrangente e
consolidada pelos sujeitos locais, ocorrendo maior
controle e eficácia nas áreas de pesca do que em
áreas onde o livre acesso da pesca comercial–
mesmo em se tratando dos mesmos ambientes,
como o rio Solimões – é muitas vezes significado
de conflitos e de disputas demarcadas pela
competitividade.
Eficiência administrativa
Mesmo em situações em que recursos sejam
facilmente divisíveis em parcelas, instrumentos
administrativos que imponham direitos de
propriedade individual sobre as mesmas podem
não estar disponíveis. A criação de regimes de
propriedade comum pode ser uma maneira de
institucionalizar regras coletivas de manejo – que
atuem como cercas imaginárias e júris informais e
internos aos grupos de usuários.
A organização do sistema de territorialização da
pesca, por exemplo, através da criação de pontos
de pesca, ou da regulamentação da divisão em
áreas definidas como ocorre na pesca de vez nas
águas do rio Solimões e nos lagos apropriados
pelas comunidades local, evidencia mecanismos
que possibilitam a mediação social dos conflitos
entre os agentes internos a este processo. Contudo,
só se demonstram pela existência da atividade
comercial loca. Desta forma, criando maneiras
especificas de uso – para além da existência de
acordos firmados no campo jurídico-representativo
do Estado e das instituições competentes, como o
IBAMA – sendo racionalizados os recursos para
determinados fins sob o ambiente apropriado,
pressupondo uma gestão local geralmente marcada
por acordos verbais ou consuetudinários,
demonstrando, neste caso, preocupação com a
atividade desenvolvida e com os recursos
pesqueiros.
Quadro 2 – Perspectiva comparativa entre os fatores de uso dos recursos pesqueiros e de seus ambientes a
partir dos regimes de propriedade comum.
Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.
237
A discussão sobre os regimes de propriedade comum e de uso social dos recursos
disponíveis de forma “livre” implicam aspectos que circundam a constituição da noção de
territorialidades da pesca, pois se configuram enquanto elementos cruciais no debate quanto
às formas de apropriação dos recursos pesqueiros, já que apresentam dimensões bastante
específicas quanto ao modo de uso dos recursos em áreas geralmente consideradas livres de
qualquer controle e regulação, logo, existindo mecanismos que delineiam de forma prática os
tipos de pescaria existentes em cada lugar, sejam rios ou lagos, estando os indivíduos
sujeitados às sanções aplicáveis.
Não significa dizermos que inexistem áreas de livre acesso nas pescarias,
principalmente porque sua ocorrência em grandes áreas abertas dos rios é evidente, contudo
apresentando pouca expressividade já que as melhores áreas consideradas perfeitas para a
prática da pesca comercial estão em regime de territorialização, sendo apropriadas por
comunidades ou grupos de pescadores em determinados locais.
Os regimes de propriedade definidos pela territorialização da pesca comercial e de
subsistência contrariam os argumentos de Hardin (1968) em torno da pressuposição de que
todos os recursos explorados na forma de regimes de propriedade comum necessariamente
implicariam sob as condições de livre acesso, e que este processo induziria ao passar do
tempo na extinção ou sobreexploração dos recursos. Um número maior de estudos indica que
a natureza coletiva da propriedade não implica necessariamente a condição de livre acesso,
ainda que os ambientes e seus recursos em questão sejam considerados como patrimônios da
União. Porém, não invalidamos a existência de que, recursos em ambientes onde não haja
mecanismos de controle e que ocorra sobre-exploração em um local específico, possam
indicar as condições analíticas da tese apresentada por Hardin (1968).
Para Vieira e Weber (2002), as modalidades de acesso e controle do acesso aos
recursos pressupõem, na maioria dos casos, a regulação múltipla das formas de uso do
238
ambiente, sendo exemplos a criação de regras e instituições baseadas em costumes, o cultivo
de mitos ou representações, a instauração de direitos coletivos ou de direitos históricos pela
posse e uso do ambiente.
Estes aspectos refletem os modelos de apropriação dos recursos pesqueiros, a forma
como são representados indica maior ou menor grau de controle sobre as áreas transformadas
pela pesca comercial no rio, e pelo uso comunitário dos lagos na pesca de subsistência.
Contudo, compreender as condições diferenciadas da formação dos territórios de pesca e sua
condição de territorialização frente à apropriação comum de seus recursos por determinados
grupos, torna-se fator fundamental na constituição dos mecanismos de controle ao acesso das
áreas, e do desenvolvimento da atividade nos ambientes disponíveis.
Sua constituição requer o entendimento das formas de interpretação do uso dos
recursos e a maneira como são representados material e simbolicamente pelos indivíduos que
deles compartilham. Esta relação, entre sociedade e ambiente, indica o importante papel do
comportamento humano na tomada de decisões e escolhas sobre o processo de apropriação
social dos recursos.
Esta dinâmica pode ser interpretada se considerarmos, como um dos elementos
gerais, a instituição do processo organizacional destes grupos sociais, permitindo uma
abordagem sobre os aspectos socioeconômicos subjacentes às transformações decorrentes das
dinâmicas naturais e sociais, como aponta Vieira e Weber (2002), delimitando os fatores de
escolha e de apropriação dos recursos mediante a internalização dos sistemas de valores e
representações quanto ao ambiente envolvente.
239
Os modelos de apropriação, como uma das dimensões válidas de interpretação sobre
o uso dos recursos, indicam a correlação dos fatores estruturantes do meio de vida das
sociedades, sobretudo o modo de vida em comunidades rurais, já que transparecem os acordos
e as normas de classificação do mundo, das coisas, dos homens e das relações sociais. A
instituição destes sistemas de valores e de representações compartilhadas pelos membros de
determinadas sociedades demonstram o gradiente de importância e interdependência do
ambiente envolvente e socialmente reconfigurado.
Figura 86 - dinâmica dos modos de apropriação e gestão dos recursos.
Fonte: Organizados por Vieira e Weber (2002).
240
O fato de determinadas espécies ou objetos naturais chegarem a ser
percebidos e explorados pelo homem em termos de recursos decorreria,
portanto, não somente das pressões induzidas pela busca de satisfação de
necessidades imediatas de sobrevivência, mas fundamentalmente daquelas
oriundas do universo simbólico que permeia todo o tecido da vida social
(FRIEDBERG, 1992 apud VIEIRA E WEBER,2002, p. 26)
Contudo, a permanência das atividades desenvolvidas e dos modelos de apropriação
dos recursos pesqueiros requerem uma compreensão dos valores ambientais e
socioeconômicos estipulados para a prática da pesca, considerando as possibilidades de
manejos e acordos intercomunitários e interinstitucionais dos lagos e até mesmo das áreas
interpretadas como de livre acesso, constituída pelos rios, neste caso o rio Solimões.
Os territórios, socialmente construídos para a prática pesqueira, possibilitam não só
a constituição das identidades comunitárias e as relações de sociabilidade, mas também
indicam o quão necessário se tornam os diálogos entre os agentes locais em relação ao uso e
conservação dos recursos apropriados de forma comum, compartilhando responsabilidades e
regularizando normas coletivas de acesso e uso conforme as regras estabelecidas localmente.
A participação da sociedade civil no que tange à mediação do uso dos recursos
pesqueiros, e do incentivo às políticas públicas e de Estado para a pesca, é fundamental na
medida em que ocorre maior abertura para o diálogo nos espaços institucionais. A mediação
representativa das colônias, cooperativas e associação de pescadores se torna inerente à
execução deste processo, já que possuem acentuada visibilidade e cada vez mais cruciais à
consolidação de uma política nacional para a pesca em águas interiores do país.
Não podemos invalidar o fato de que as contradições sociopolíticas no ambiente
deste debate incitam oposições tendencialmente favoráveis a uma ou a outra estratégia de
correlação de forças entre os agentes deste processo, já que está em jogo no campo a disputa,
a mediação dos recursos apropriados e os custos e incentivos comerciais dados ao setor
pesqueiro nas últimas décadas. Desta forma, é necessário considerar as externalidades
241
ambientais e socioculturais que constituem a base da economia familiar da pesca comercial e
de subsistência das sociedades rurais em geral, nas dimensões do setor econômico nacional e
no plano de desenvolvimento pretendido para a atividade pesqueira.
Estas mudanças tendem a ser debatidas na medida em que, com a criação do
Ministério da Pesca e Aqüicultura em junho de 2009, ocorram rearranjos institucionais
previsto para as transformações possíveis do cenário da pesca nacional. Com estas mudanças,
os elementos discutidos tendem a se configurar na medida em que ocorram as mudanças
necessárias diante do cenário de debate nacional sobre a questão pesqueira. Na esfera pública,
esta discussão tende a ganhar um cenário mais amplo na medida em que ocorrem maiores
participações dos sujeitos envolvidos neste processo.
Contudo, sabe-se que, com sua criação, de acordo com lei nº 11.958, de 26 de junho
de 2009, o Ministério passa a ter exclusividade sobre a autorização de operação e
arrendamento de embarcações estrangeiras de pesca, operando, também, sob a concessão da
subvenção econômica ao preço do óleo diesel ao setor comercial da pesca.
Entre outras execuções, o órgão ganha agora a competência para decidir sobre o
zoneamento econômico-ecológico (ZEE) e mediação dos conflitos e manejos das áreas
nacionais antes realizadas pelo IBAMA, definindo também a política nacional pesqueira e
aquícola, considerando, é claro, todos os fatores que envolvem a produção, transporte,
beneficiamento, transformação e comercialização até o abastecimento e armazenagem do
pescado.
O Ministério da Pesca e Aquicultura também decidirá sobre fomento da produção,
infraestrutura de apoio, beneficiamento e comercialização do pescado, além da organização
do Registro Geral da Pesca, estando sob sua guarda a concessão de licenças, permissões e
autorizações para aquicultura e pesca comercial (industrial e artesanal), ornamental,
subsistência, amadora ou desportiva.
242
As mudanças decorrentes do cenário atual da pesca, considerando, como foco de
análise, a questão das territorializações dos recursos pesqueiros em áreas de apropriação
comum, podem indicar futuramente maior ou menor comprometimento a partir de uma
refuncionalização das instituições públicas quanto à gestão dos recursos em voga.
No entanto é crucial delimitar este debate a partir do cenário que inclua os agentes
sociais interdependentes neste processo – pescadores artesanais e comerciais, representações
populares do setor pesqueiro, agentes de comercialização e setores institucionais do governo -
considerando maior e acentuada participação da sociedade civil e, organizando, na esfera
pública, uma ampla discussão – como vem acontecendo com os fóruns e congressos regionais
e nacionais para o futuro da pesca nacional - sobre as viabilidades de gestão e das formas de
apropriação comum dos recursos pesqueiros.
243
Considerações finais
Os eventos sociohistóricos associados demarcam o surgimento e transformações dos
setores pesqueiros, assim como a dinâmica sociocultural das sociedades rurais amazônicas
quanto a questão de apropriação dos recursos. As transições econômicas e a maior inserção do
modo de produção capitalista na região reconfiguram as dimensões relacionais do trabalho no
mundo rural, intensificam os padrões de uso dos recursos e, consequentemente, tornaram
iminente e consolidado as disputas territoriais e os conflitos na pesca e em demais atividades
extrativistas, sendo exemplos claros daquilo que se concretizava enquanto resultado da crença
no projeto de modernidade da sociedade brasileira, resultando muito mais em face do
desenvolvimentismo tardio e periférico de economia capitalista dependente, na medida em
que internalizava os aspectos econômicos em detrimento dos elementos socioambientais que
se discutem somente hoje.
Os processos de territorialização da pesca comercial e de subsistência no baixo
Solimões revelam uma pequena dimensão daquilo que constitui o debate acerca do uso e
propriedade comum dos recursos pesqueiros em regime de controle e acesso a determinados
ambientes. Os elementos apresentados como foco da investigação revelam muito mais do que
as condições obtidas nas pesquisas de campo realizada – entre aquilo que se pretendia e aquilo
que se alcançou – quanto à situação dos trabalhadores da pesca na Costa do Pesqueiro e,
particularmente, em Nossa Senhora das Graças. Pois demonstram que a pesca permite uma
interpretação sociológica dos modelos de desenvolvimento socioeconômico instituído pelas
políticas nacionais nas últimas décadas.
A pesca se torna importante atividade local na obtenção de renda no processo de
aquisição de bens de consumo não produzidos no mundo rural. Esta relevância expressa
aquilo que evidentemente se traduz como um trabalho, onde os recursos naturais são tidos
244
como mercadoria e denotam, enquanto mercadoria, a sujeição às condições de
comercialização e de preço estipuladas pelo mercado regional do pescado.
Logo, o trabalho na pesca requer uma interpretação complexa dos fatores que o
constituem enquanto atividade de subsistência – e que historicamente estão associados à
reprodução social do modo de vida dos grupos sociais rurais habitantes das várzeas na
Amazônia brasileira – e como atividade comercial que surge enquanto fenômeno decorrente
dos processos socioeconômicos engendrados pelo padrão de desenvolvimento econômico
pretendido pelos modelos estatais adotados.
Os elementos do trabalho, do modo de vida e da produção de territorialidades nos
ambientes onde a pesca é realizada, sobretudo em áreas comumente consideradas como livre
acesso, permitem uma interpretação mais aprofundada de seu conteúdo investigativo, pois
denotam a constituição política e organizacional dos grupos sociais locais em delimitar,
utilizar e defender espaços físicos enquanto espaços sociais apropriados em regime de uso
comum, porém comum em se tratando de fatores exclusivos a determinados grupos de
indivíduos.
Desta forma se evidenciam os mecanismos de controle social ao uso dos recursos
pesqueiros, sendo relacionados de acordo com as representações simbólicas de constituição
do tempo e do espaço no mundo vivido nas várzeas do rio Solimões, estando permeadas pelos
meandros das transformações socioeconômicas que demarcam o advento da pesca comercial
local e sua intensificação.
As cosmografias das territorialidades apresentada indicam, como que pelo uso dos
mapas mentais, o aporte simbólico daquilo que representa a constituição dos ambientes
vivenciados cotidianamente no mundo real. O fato de recorrerem ao sentimento de pertença a
determinados lugares, como os lagos, porções do rio e das várzeas na comunidade, demonstra
245
a capacidade de articulação entre a realidade socialmente construída e os ambientes
fisicamente consolidados.
No entanto, os ambientes socialmente apropriados enquanto territorialidades, como
indicam os pontos de pesca e o sistema da pesca de vez apresentados aqui, ainda que
permitam uma interpretação acerca da intensificação da pesca comercial local, revelam a
organização territorial dos sistemas de uso e regime comum dos recursos naturais. O debate
apresentado resulta como discussão a partir daquilo que erroneamente vem sendo tratado
como áreas de livre acesso, sobretudo na pesca realizada em espaços onde os recursos são
reconhecidamente públicos, como os rios.
Os conflitos socioambientais pela disputa e demarcação das áreas definidas e
apropriadas por determinados grupos de indivíduos expressam claramente que os mecanismos
sociais de regulação e controle dos recursos pesqueiros possuem uma racionalidade quanto à
sua utilização e conservação, já que denotam não só a condição em manter a pesca como
atividade de renda local, mas também a garantia que por meio das constituições de espaços
socialmente demarcados a partir de concepções de territórios de uso, a atividade da pesca
pode continuar e garantir a mediação social dos recursos disponíveis.
A gestão dos recursos pesqueiros nos rios, assim como ocorre nos lagos, também
deve ser considerado na medida em que compreendem fatores de suma importância à
reprodução do modo de vida local das comunidades pesqueiras em áreas de várzea e da
conservação dos ambientes e recursos utilizados neste locais. Pouco ou recentemente se
incluem como discussões pertinentes os debates na esfera pública quanto aos processos de
territorialização, porém são resultantes de um processo que nas últimas décadas vem
ganhando força, na medida em que a comercialização dos peixes lisos, como os bagres
migradores da bacia amazônica, tornaram-se alvos do setor comercial de exportação.
246
Os mecanismos de gestão legal dos ambientes e recursos geralmente são efetuados
pela legislação pertinente por meio das instituições responsáveis que, ao longo das ultimas
décadas, vêm demonstrando profunda preocupação com a mediação dos recursos naturais
disponíveis e apropriados. A proibição da pesca para determinadas espécies em período de
reprodução e o manejo em áreas conflituosas expressam uma dimensão da realidade
recorrente. Contudo, a resolução de conflitos e o manejo dos recursos pesqueiros ainda se
demonstram de certa forma, incipientes quando relacionados à demanda de ocorrências,
sobretudo nas áreas que, geralmente, possuem pouca visibilidade, como os ambientes de
pesca nos rios, ainda mais se considerarmos a pressão de sobrepesca gerada pela
intensificação da captura estimulada pelos grandes comerciantes.
Os regimes de propriedade comum das áreas definidas como atividade de uso para
fins de subsistência e comercialização, em pequena e media escala, devem assegurar o
respeito pelo conhecimento tradicional dos regimes de propriedade já estabelecidos pelas
localidades. Para Mckean e Ostrom (2001), estes aspectos devem considerar algumas
recomendações, estas, por sua vez, compreendem as formas que asseguram a respeitabilidade
socioambiental pelos fatores associados ao uso dos recursos.
Desta forma, as autoras apontam que: a) grupos de usuários devem ter o direito de
organizar suas atividades, ou, ao menos, a garantia de não interferência; b) as fronteiras no
uso dos recursos devem ser claras; c) os critérios para o ingresso a grupo de usuários devem
estar claros; d) os usuários devem ter o direito de modificar suas regras de uso ao longo do
tempo; e) as regras de uso devem corresponder ao que o sistema pode tolerar e devem ser
ambientalmente conservadoras para impossibilitar margens de erro; f) regras de uso devem
ser claras e facilmente impostas; g) infrações das regras de uso devem ser monitoradas e
punidas; h) métodos baratos e rápidos para a solução de conflitos menores devem ser
247
concebidos e; i) instituições para o manejo de sistemas muito amplos devem ser estabelecidas,
devotando considerável autoridade a pequenos componentes.
Contudo, ainda é necessário reconhecer que determinados regimes de uso comum
dos recursos são falhos e, geralmente, induzidos por pressões externas, como através da
intensificação da pesca comercial, estando sujeitos a reconfigurações e rearranjos alternativos
a fim de se consolidarem os meios que induzam à apropriação consensual dos recursos
disponíveis.
A circularidade social do debate quanto às políticas de Estado para a pesca devem
garantir, na esfera pública, a participação política dos indivíduos, considerando essencial
pensar os impactos causados quanto às mudanças decorrentes do regime de intensificação no
uso dos recursos pesqueiros, os aspectos que definem a territorialização das áreas de pesca e a
viabilidade de resolução dos conflitos expressos nos mecanismos de regulação do acesso e
controle comum em determinadas áreas.
Estes aspectos denotariam um movimento de ressignificação da questão ambiental,
resultante da apropriação do discurso sobre a temática do meio ambiente e das dinâmicas
sociopolíticas, tal como define Acselrad (2010) a partir da noção de justiça ambiental, onde
esse processo de ressignificação estaria associado a uma reconstituição das arenas onde se dão
os embates sociais pela construção dos futuros possíveis. Para o autor, nessas arenas, a
questão ambiental se mostra cada vez mais central e vista crescentemente como entrelaçada às
tradicionais questões sociais do emprego e da renda.
A justiça ambiental combina a defesa dos direitos a ambientes culturalmente
específicos – comunidades tradicionais situadas na fronteira da expansão das atividades
capitalistas e de mercado; a defesa dos direitos a uma proteção ambiental equânime contra a
segregação socioterritorial e a desigualdade ambiental promovidas pelo mercado; a defesa dos
direitos de acesso equânime aos recursos ambientais, contra a concentração das terras férteis,
248
das águas e do solo seguro nas mãos dos interesses econômicos fortes no mercado
(ACSELRAD, 2010)
As políticas de Estado permeadas pelo campo da correlação de forças instituídas
pelos movimentos representativos da pesca e de outros setores da sociedade civil organizada,
devem compreender que a perspectiva de participação é fundamental na contextualização da
dinâmica sociopolítica futura, sobretudo quando voltadas para o cenário da pesca nacional.
Por outro lado, é necessário também um esforço contínuo no que tange à socialização
dos conhecimentos produzidos sobre o campo de estudo das questões socioambientais. A sua
correlação prática enquanto alternativa de análise e possível contribuição, não pode ser
dissociada da esfera política do debate pretendido, já que resulta em complexa interpretação
dos fenômenos sociais decorrentes, viabilizando, a partir de experiências sociais investigadas,
as alternativas viáveis ao diálogo em sociedade sobre os recursos naturais disponíveis e à
constituição de suas formas de uso.
249
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Editora 2006.
SANTOS, J. V. T. Colonos do vinho: estudo da subordinação do trabalho ao capital. 2 ed;
São Paulo: Hucitec, 1984.
SANTOS, M. Natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo: EDUSP,
2002.
SCOTT, A. D. The fishery: the objectives of sole ownership. Jornal of political economy
63: 116-124, 1955.
SILVA, M. C. O Paiz do Amazonas. Manaus: Edua, 1996.
____ . Metamorfoses da Amazônia. EDUA, Manaus. 2002.
SMITH, N. J. H. A pesca no rio Amazonas. Conselho Nacional de Desenvolvimento
Tecnológico – CNPq/INPA. Manaus, 1979.
SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In:
CASTRO, I. E., GOMES, P. C. C.; CORREA, R. L. (orgs.) Geografia: conceitos e temas.
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STAVENHAGEN, R. Etnodesenvolvimento: Uma dimensão ignorada no pensamento
desenvolvimentista. In: Anuário Antropológico/84. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985.
256
THEODORO, S. H. (org.). Mediação de conflitos socioambientais. Rio de Janeiro:
Garamond, (2005)
TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em
educação. São Paulo: Atlas, 1987.
TUAN, Y. F. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
São Paulo: Difel, 1980.
VELHO, O. G. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: Difel, 1976.
VERÍSSIMO, J. A pesca na Amazônia. Rio de janeiro: Livrara Alves, 1985.
VIEIRA, P. F. , WEBER, J. (orgs.). Gestão de recursos naturais e desenvolvimento: Novos
desafios para a pesquisa ambiental. 3. Ed. – São Paulo: Cortez, 2002.
WAGLEY, C. Uma Comunidade Amazônica: estudo do Homem nos Trópicos. 3 ed; São
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WITKOSKI, A. C. Terras, florestas e águas trabalho: os camponeses amazônicos e as
formas de uso de seus recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007.
WOLF, E. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
WOORTMANN, E. O trabalho na terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa.
Brasília: UnB, 1997.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília,
DF : Editora da Universidade de Brasília, 1991.
257
Anexos
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
QUESTIONÁRIO INDIVIDUAL N.º _______
COLETOR: ________________________________________ DATA: ___/___/____ HORA:
___________
LOCALIDADE: _________________________ COMUNIDADE:
__________________________________
MUNICÍPIO: ___________________________________________________________
UF: _______
COORDENADAS: Latitude ______________________ Longitude
______________________
PERIODO DO QUESTIONÁRIO APLICADO: Enchente ( ) Cheia ( ) Vazante ( ) Seca ( )
1 IDENTIFICAÇÃO NOME: _____________________________________________ IDADE: ________ SEXO:
M ( ) F ( )
Local de Nasc. (Localidade): _____________________________ Município: ____________
UF: ______
Local da última moradia (localidade/município):
_____________________________________________
Estado Civil: solteiro ( ) casado ( ) união consensual ( ) viúvo ( )
separado ( )
Grau de escolaridade: Nunca estudou ( ) não lê e não assina o nome ( ) só assina o
nome ( ) 1a a 4a série ( ) 5a a 8a série ( ) Ensino Médio completo ( ) Ensino
Médio incompleto ( )
Outros:________________________________________________________________________
_________
Qual a sua religião?
_______________________________________________________________________
Qual a sua denominação?
__________________________________________________________________
Existem divergências de religião na comunidade? SIM ( ) NÃO ( )
258
2 FAMÍLIA
Você tem filhos? ( ) SIM ( ) NÃO QUANTOS: ________ Quantas pessoas moram na casa?
___________
Identificação dos membros da família
Nome Parentesco Idade Sexo Pesca? Ocupação
Pai
Mãe
3 ATIVIDADES PESQUEIRAS Existem associações na comunidade: SIM ( ) NÃO ( )
Especificar:
_____________________________________________________________________________
Há quanto tempo existe a associação dos moradores? _______________ O Sr. participa da
associação? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )
O Sr. Ou alguém da sua família participa de associação/colônia de pescadores, sindicato,
ou cooperativa?
1 SIM ( ) 2 NÃO ( ), caso SIM, Quais?
_______________________________________________________
Quem participa?
Nomes ________________________________________________
Há quanto tempo? ________________
Além da Pesca com quais dessas atividades você se identifica? Agricultor ( ) Caçador ( )
Criador de animais ( ) Outros ( ) ___________________________________________
O Sr. Pesca Há quanto tempo? _______________________
O Sr. Pesca para: ( ) Subsistência ( )Comercial ( )Sub./Com.
259
Quais os apetrechos que o senhor mais utiliza para pescar? [hierarquizar]
Malhadeira ( ) Linha de mão (linha e anzol) ( ) Tramalha ( )
Zagaia ( ) Arrastadeira ou rede ( ) Tarrafa ( )
Caniço ( ) Arrastão ou redinha ( ) Arpão ( )
Estiradeira (espinhel) ( ) Currico ( ) Arco e flecha ( )
Outros ( ) _____________________________________
O senhor faz algum apetrecho de pesca? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( ) Quais?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
O senhor compra apetrechos de pesca? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( ) Quais são:
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Como o senhor conserva o pescado para comer? [hierarquizar]
No gelo ( ) salga ( ) Outros ( ):
____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Como o senhor conserva o pescado para vender?
No gelo ( ) salga ( ) Outros ( ):
___________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
O senhor costuma pescar com seus familiares? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )
Quais ?
__________________________________________________________________________
Você costuma manter alguma relação de ajuda( meia, parceria, etc.) com outros
pescadores? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )
Caso SIM especifique:
_____________________________________________________________
260
Com quem ?
_____________________________________________________________________
O senhor ou alguém da sua família ganha algum tipo de benefício?
Quem? Qual benefício?
(aposentadoria, salário pesca, bolsa escola, bolsa família e outros)
Valor mensal (R$)
O senhor possui :
TRANSPORTE QUANTIDADE
BARCO
CANOA
RABETA
Outros:
Total de embarcação por família
261
4 CARACTERIZAÇÃO DA PESCA LOCAL - QUAIS OS LOCAIS DE PESCA EM QUE O SENHOR COSTUMA IR?
Período Local de pesca (ambientes e
nomes)
Tipo de
Transporte
Tempo de deslocamento (ir ao local)
Dias / Horas
Horário (melhor horário
para pescar)
Tempo de
pesca
Dias/Horas
Apetrecho Espécies
capturadas
Finalidade
C V C/V
ENCHENTE
CHEIA
262
Período Local de pesca (ambientes e
nomes)
Tipo de
Transporte
Tempo de deslocamento (ir ao local)
Dias / Horas
Horário (melhor horário
para pescar)
Tempo de
pesca
Dias/Horas
Apetrecho Espécies
capturadas
Finalidade
C V C/V
VAZANTE
SECA
263
5 MODALIDADES DE PESCA
5.1 O Sr. pesca mais para? venda ( ) consumo ( )
Porquê? ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
5.2 A maioria dos moradores pesca para vender? SIM ( ) NÃO ( )
O Sr. usa caixa de isopor na pescaria? SIM ( ) NÃO ( )
E o gelo, onde o Sr. consegue (identificar os fornecedores)?
LOCAL FORNECEDOR PREÇO
Quantas pessoas da casa pescam diariamente para vender? __________________
Existe algum tipo de peixe considerado venda certa [mais fácil de vender]?
Sim ( ) Não ( )
Quais? Por que?
264
6. DADOS DE COMERCIALIZAÇÃO DO ÚLTIMO PERÍODO COMPLETO DE PESCA
Quem compra:
1 – Flutuante/Patrão
2 – Marreteiro
3 – Barco recreio
4 - Frigorífico
5 - Outros
Espécies
Categ
oria
(1, 2
ou 3)
Ambientes
Embarcação
Apetre
chos
Quantidade
Kg/und
Valor ($)
Kg/und
Quem
compr
a?
Destino Sec
a
Chei
a
Ambientes Apetrechos
1 – Lago 1 – Malhadeira 8 – Arrastão
2 – Rio 2 – Zagaia 9 – Currico
3 – Ressaca 3 – Caniço 10 – Tresmalha
4 – Paraná 4 – Espinhel 11 – Tarrafa
5 – Poço 5 – Redinha 12 – Arpão
6 – Igapó 6 – Linha de mão 13 – Arco e flecha
7 – outros__________________________ 7 - Rede 14 – outros___________________________
265
7 CONFLITOS E GESTAO DOS RECURSOS PESQUEIROS
O senhor pesca em locais muito distantes? ( ) SIM ( ) NÃO
Quais?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Por quê?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Qual a sua relação com esses lugares e com os seus moradores ? BOA ( ) REGULAR ( ) PÉSSIMA ( ) Por que?
______________________________________________________________________________
Existe aqui hoje, ou existiu algum conflito por causa do uso dos recursos naturais?
1. Sim (mês/ano):__________________________________; 2. Não
Quais foram os motivos do conflito (pesca, caça, recurso madeireiro e não/madeireiro,
água etc.)?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Quem eram as pessoas (ou agentes/instituições) envolvidas no conflito?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Houve soluções?
1. Sim
Quais?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
266
2. Não
Por quê?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Na sua comunidade existe algum acordo para cuidar ou guardar os peixes? Sim ( ) não ( )
Há quanto tempo existe este acordo?
___________________________________________________________________________
O senhor teve conhecimento da discussão e criação de algum acordo de pesca? Sim ( ) não ()
Se, SIM, Por quê a comunidade criou este acordo?
______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 8 ETNOCONHECIMENTO E GESTÃO DOS RECURSOS PESQUEIROS Tem alguma época em que o senhor deixa de pescar para vender? SIM ( ) NÃO ( )
Qual? _________________________
Porquê?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
O senhor sabe quando os peixes estão desovando? Colocar X e nome do local.
Espécies Época Lugar onde desova
Enchente Cheia
Piramutaba
Dourada
267
Há estrago de pescado? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )
Por que?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Houve uma diminuição da quantidade de peixes nos locais de pesca?
SIM ( ) NÃO ( )
Por que?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Quais os locais que diminuíram?
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
______________________________________________________________________
Quais foram os peixes que mais diminuíram na Comunidade? [hierarquizar]
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Quais são os peixes que o senhor e sua família não gostam de comer?
Por que?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Qual o melhor período do ano para pescar? Enchente ( ) cheia ( ) vazante ( )
seca ( )
Por que?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
268
Qual o pior período do ano para pescar? Enchente ( ) cheia ( ) vazante ( ) seca
( )
Por que?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
Qual o tipo de isca que o senhor usa para pescar?
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Quais são os melhores horários para pescar? Manhã ( ) Tarde ( ) Noite ( ) Madrugada ( )
Quais são os piores horários para pescar? Manhã ( ) Tarde ( ) Noite ( ) Madrugada ( )
No caso destes peixes:
Piramutaba
Quais os melhores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )
Quais os piores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )
Dourada
Quais os melhores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )
Quais os piores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )
O que os peixes costumam comer? Colocar o nome do alimento.
Espécies Tipo de alimentos
Enchente Cheia Vazante Seca
Piramutaba
Dourada
269
OBSERVAÇÕES GERAIS
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
270
Roteiro de entrevista semi-estruturada
1 Descrição da história de vida
2 O Sr. se considera que tipo de trabalhador?
3 Que tipo de pescador o Sr. se considera?
4 O que é um pescador de subsistência?
5 O que é um pescador profissional?
6 Como era a pesca antigamente?
7 Que tipo de utensílio era mais usado?
8 Quais as espécies mais capturadas?
9 Qual a época que os peixes começam a entrar e sair dos locais de pesca (lagos)?
10 O que é preparo?
11 Como o Sr. aprendeu a pescar?
12 Como o Sr. repassa esse conhecimento sobre a pesca para os filhos?
13 Como eram feitos os utensílios de pesca antigamente (tipo de material)?
14 Que tipo de utensílio o Sr. usa para pescar para vender? (explorar as estratégias de pesca,
locais, quantidade de utensílios)
15 Que tipo de utensílio o Sr. usa para pesca para comer? (explorar as estratégias de pesca,
locais, quantidade de utensílios)
16 O Sr conhece áreas de cerrado (de dificil acesso) onde existe pesca?
17 O Sr. pesca no cerrado? Por quê?
18 As pessoas costumam pescar no cerrado?
19Existe alguma área que o Sr. Tenha preferência?
20 Em que época os peixes começam a entrar no igapó?
21 Em que época os peixes começam a deixar o igapó?
22 Como o Sr. faz para pescar no igapó?
271
23 Como o Sr. faz para pescar na época em que os peixes estão entrando e saindo dos lagos?
24 Qual a época que os peixes estão migrando? (rota, tipos de cardumes, estratégias de pesca)
25 Por que eles fazem essa migração?
26 Como o Sr. vê o pescador que só pesca pra vender?
27 Vêm pescadores de outras localidades pescarem na comunidade?
28 existem conflitos de pesca na localidade?
29 os moradores da comunidade se reúnem para fiscalizar a pesca?
30 Existe acordo de pesca na comunidade?
31 O Sr. acha que o desmatamento causa algum problema para a pesca?
32 E a criação de gado?
272