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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS UFAM INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA PPGS TERRITÓRIOS SOCIAIS DA PESCA NO RIO SOLIMÕES Usos e formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso Pedro Henrique Coelho Rapozo MANAUS/AM 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – ICHL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS

TERRITÓRIOS SOCIAIS DA PESCA NO RIO SOLIMÕES Usos e formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso

Pedro Henrique Coelho Rapozo

MANAUS/AM

2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – ICHL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS

TERRITÓRIOS SOCIAIS DA PESCA NO RIO SOLIMÕES

Usos e formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso

Pedro Henrique Coelho Rapozo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Sociologia – PPGS/UFAM, da

Universidade Federal do Amazonas, como requisito

para obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Orientador: Dr. Antonio Carlos Witkoski

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Dr. Antônio Carlos Witkoski – Orientador

Universidade Federal do Amazonas – UFAM

_________________________________________________

Prof. Dra. Norma Felicidade Lopes da Silva

Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR

__________________________________________________

Prof. Dr. Manuel de Jesus Masulo da Cruz

Universidade Federal do Amazonas – UFAM

MANAUS/AM

2010

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R219t Rapozo, Pedro Henrique Coelho

Territórios sociais da pesca no Rio Solimões : usos e formas de

apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas de livre acesso /

Pedro Henrique Coelho Rapozo. - Manaus, AM : UFAM, 2010.

272 f. : il. color. ; 30 cm

Inclui referências.

Dissertação (Mestre em Sociologia). Universidade Federal do

Amazonas. Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski.

1. Sociologia rural 2. Pesca – Solimões, Rio (AM) 3. Pescadores -

Manacapuru (AM) 4. Pesca - Manacapuru (AM) I. Witkoski, Antonio

Carlos (Orient.) II. Título

CDU (2007): 316.334.55:639.2.052(811.3)(043.3)

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAM

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3

Dedico este trabalho à minha família

que sempre apoiou e respeitou minhas

escolhas, aos meus pais Ailton Rapozo, Maria

Aparecida Rapozo, ao meu irmão Silvio

Rapozo e meus sobrinhos Maria Clara e

Felipe, e à Tayana Freitas, meu refúgio e

fortaleza, agradeço pelo amor incondicional,

renúncias e compreensões nas horas ausentes.

Dedico, ainda, aos homens e mulheres

das comunidades Nossa Senhora das Graças –

Manacapuru (Am), por contribuírem na minha

formação acadêmica e pessoal quanto ao

aprendizado sobre o complexo mundo da vida

rural amazônica, da vida simples e rica nas

várzeas do rio Solimões, lugar de eterno

recomeçar.

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4

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

Universidade Federal do Amazonas pela dedicação e respeito ao exercício do aprendizado

constante e no desenvolvimento de pesquisas na e sobre a Amazônia brasileira. Meu especial

agradecimento à Marluce Lima pela amizade e impecável responsabilidade e dedicação a

frente da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Agradeço à Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa concedida ao longo

do desenvolvimento deste trabalho.

Agradeço aos colegas de Graduação da Faculdade de Ciências Sociais da

Universidade Federal do Amazonas, Silvio Rocha, Saadya Jezzine, Taciana Lima e Rony

Frutuoso, pelo convívio acadêmico quanto aos estudos sobre o mundo rural Amazônico.

Agradeço aos colegas Bruno Avelino, João Fábio Braga, Rila Arruda, Maglúcia Onetti,

Marco Antonio Brito, Elder Araújo, Samia Miguez, Tiago Jacaúna, David Spencer, Marcelo

Rodrigues, Raiana Ferrugem, Luana Rodrigues, Glaúcia Baraúna, Liliane Oliveira e

Jordeanes Araújo, estudantes nos Programas das Pós-Graduações em Sociologia –

PPGS/UFAM, em Antropologia PPGAS/UFAM, e Sociedade e cultura – PPGSCA/UFAM,

pelo companheirismo intelectual que tanto contribuíram para minha formação acadêmica e

pessoal.

Agradeço ao Núcleo de Socioeconomia da Faculdade de Ciências Agrárias da

Universidade Federal do Amazonas – NUSEC/UFAM, através dos pesquisadores: Suzy C. P.

Silva (pela valiosa contribuição no trato com as imagens cartográficas disponíveis neste

estudo), Albejamere Castro, Jozane Santiago, pelo compromisso no exercício das atividades

de pesquisa, ensino e extensão em comunidades rurais da região. Em especial, a amizade e

orientação da Profa. Dra. Therezinha Fraxe pela oportunidade de uma formação acadêmica

rica e interdisciplinar, pelo compromisso social e responsável com Amazônia. Ao amigo e

orientador, Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski, pela disciplina intelectual, companheirismo, e

valiosas contribuições neste estudo, propiciando-me uma formação acadêmica comprometida

com a sociedade.

Agradeço, sobretudo, aos responsáveis pelo desenvolvimento deste estudo, aos

moradores/pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro II em

Manacapuru (AM), sujeitos de seu tempo, conhecedores de um mundo singular.

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5

RESUMO

A pesca na Amazônia se constitui historicamente como um dos principais elementos do modo

de vida das comunidades rurais da região. Este estudo procura interpretar as relações

sociopolíticas instituídas na configuração dos territórios sociais da pesca e suas formas de

apropriação entre os pescadores da região do Baixo rio Solimões no município de

Manacapuru, Estado do Amazonas. As transformações socioeconômicas que marcaram nas

últimas décadas o desenvolvimento da pesca na Amazônia estão associadas aos processos de

intervenção do modo de produção capitalista, levando ao desencadeamento e intensificação da

pesca comercial na região. As transformações socioculturais do modo de vida e das

representações sociais do mundo demarcam a construção social dos conflitos socioambientais

em territórios de pesca nas comunidades rurais da região estudada

Palavras-chave: Pescadores; Trabalho;Territorialidades

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6

ABSTRACT

In the Amazon, fishing historically constitutes a major component of the livelihood of rural

communities in the region. This study seeks to interpret the socio-political relations

established in the configuration of social territories fisheries and their forms of ownership

among local fishermen of the Lower Solimões River in the municipality of Manacapuru,

Amazonas State. The socioeconomic changes that marked the last decades the development of

fisheries in the Amazon are associated with the processes of intervention of the capitalist

mode of production, leading to the initiation and intensification of commercial fisheries in the

region. The changing socio-cultural way of life and social representations of the world

demarcate the social construction of environmental conflicts in areas of rural fishing

communities in the region studied.

Keywords: Fishermen; Work; Territorialities

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Localização da Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do

Pesqueiro II ................................................................................................

23

Figura 2 Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II por

imagem de satélite ......................................................................................

24

Figura 3 Percentual de entrevistados que possuem filhos na comunidade Nossa

Senhora das Graças ....................................................................................

27

Figura 4 Percentual de entrevistados quanto à Situação do estado civil ................

27

Figura 5 Ocorrência dos tipos de família nuclear e extensa na Comunidade Nossa

Senhora das Graças ....................................................................................

28

Figura 6 Média de pessoas por família na Comunidade Nossa Senhora das

Graças.........................................................................................................

28

Figura 7 Perfil da participação comunitária em organizacoes sociais locais ..........

50

Figura 8 Croqui da Comunidade Nossa Senhora das Graças. Nota-se no croqui a

divisão espacial das áreas onde os moradores desenvolvem suas

atividades, assim como a centralidade da própria comunidade – por

exemplo, a casa do Presidente da Comunidade (Sebastião), a igreja, a

escola e o Centro social ..............................................................................

51

Figura 9 Croqui georeferenciado das moradias e das atividades desenvolvidas na

comunidade ................................................................................................

52

Figura 10 Escola e centro social da Comunidade Nossa Senhora das Graças ..........

53

Figura 11 Usina termelétrica local ............................................................................

54

Figura 12 Situação sobre a participacao religiosa dos comunitários .........................

55

Figura 13 Igreja católica da Comunidade Nossa Senhora das Graças, onde são

realizados os cultos.....................................................................................

56

Figura 14 Reunião no centro social da Comunidade Nossa Senhora das Graças para

explicar sobre o que seria a pesquisa e seu desenvolvimento...................

56

Figura 15 Armazenagem do pescado para o consumo imediato................................

63

Figura 16 Pescado levado para ser consumido em casa .............................................

63

Figura 17 Atividades da pesca comercial na Costa do Pesqueiro.............................. 64

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Figura 18 Casa de farinha, local utilizado para a produção da farinha de mandioca

como fonte de alimentação principal .........................................................

65

Figura 19 A criação do gado é uma alternativa para o consumo de carne na

comunidade................................................................................................

65

Figura 20 A criação de aves de maneira extensiva nos terreiros da casa também são

uma fonte de consumo indispensável as comunidades rurais .................

66

Figura 21 Nos canteiros suspensos são encontrados os temperos da alimentação

nas comunidades .......................................................................................

66

Figura 22 Frequência relativa ao tipo de atividade desenvolvida junto às atividades

da pesca .....................................................................................................

66

Figura 23 Percentual de origem do desembarque de pesca do Estado......................

127

Figura 24 Flutuante localizado na comunidade servindo como entreposto da

comercialização do pescado até seu destino final em Manacapuru .........

130

Figura 25 Terminal pesqueiro de Manacapuru, um dos locais que recebe

diariamente o pescado capturado pelos trabalhadores das comunidades

rurais do município ....................................................................................

130

Figura 26 Desembarque da captura do pescado em um dos flutuantes na

Comunidade ...............................................................................................

131

Figura 27 Barco atravessador que medeia a comercialização do pescado ...............

131

Figura 28 Destino de comercialização da pesca na Comunidade Nossa Senhora das

Graças .........................................................................................................

131

Figura 29 Apetrechos utilizados na captura do pescado ............................................

132

Figura 30 Processo de recepção do pescado no flutuante onde são separados por

espécies ......................................................................................................

133

Figura 31 O pescado é separado por tamanho e, em seguida, pesado .......................

133

Figura 32 Armazenamento do pescado para em seguida ser levado ao barco ..........

133

Figura 33 Material custeado para a captura do pescado em larga escala, utilizando

apetrechos específicos ...............................................................................

136

Figura 34 Composicão da renda familiar obtida através da pesca ..........................

138

Figura 35 Análise do valor pago aos pescadores obtido na comercialização do

pescado de acordo com o período hidrológico e a qualidade do peixe ...

140

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Figura 36 Frequência relativa ao período de sazonalidade das águas revela a

escolha dos melhores e piores períodos de captura do pescado ...............

141

Figura 37 Barco utilizado para o armazenamento do pescado que é levado aos

frigoríficos em Manacapuru .......................................................................

142

Figura 38 O porão do barco é utilizado para o armazenamento do pescado .............

142

Figura 39 O gelo é utilizado para a conservação do pescado até os frigoríficos .......

142

Figura 40 Fluxograma que identifica as etapas no processo de comercialização do

pescado .......................................................................................................

143

Figura 41 Índices relacionados às variáveis da pesca comercial intensiva nas

comunidade Nossa Senhora das Graças .....................................................

144

Figura 42 Índices de acesso ao gelo utilizado nas pescarias da comunidade Nossa

Senhora das Graças ....................................................................................

145

Figura 43 Pontos de venda ou empréstimo do gelo na comunidade Nossa Senhora

das Graças ..................................................................................................

145

Figura 44 A pesca realizada através da meia une funções importantes, o condutor

da embarcação e o recolhedor do lanço .....................................................

149

Figura 45 Frequência das atividades de parceria na pesca realizado entre os

moradores da Comunidade Nossa Senhora das Graças .............................

150

Figura 46 Percentual das relações de parceria entre os pescadores na Comunidade

Nossa Senhora das Graças .........................................................................

151

Figura 47 As parcerias denotam como função social a reconstituição dos laços de

sociabilidade entre os indivíduos de mesmo parentesco, na medida que

se constituem como trabalho pela obtenção de renda na pesca comercial..

152

Figura 48 As mudanças no processo de trabalho da pesca associada ao uso dos

apetrechos e relações de trabalho estabelecidas .........................................

158

Figura 49 Pescador confeccionando a tramalha que será utilizada na captura do

pescado .......................................................................................................

160

Figura 50 Rede de Arrasto tecida pelo pescador da comunidade ...............................

160

Figura 51 Frequência relativa de respostas com relação à fabricação dos apetrechos

de pesca ......................................................................................................

161

Figura 52 Manutenção das redes de arrasto ..............................................................

162

Figura 53 Análise descritiva dos apetrechos que são feitos na localidade ............... 163

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Figura 54 Croqui georeferenciado da localidade Costa do Pesqueiro II onde

apresenta a dimensão de organização espacial do território da

comunidade Nossa Senhora das Graças a partir das habitações dos

moradores ..................................................................................................

181

Figura 55 Mapa mental da comunidade elaborado por um morador, explica a

dimensão da localidade a partir do território delimitado e dos recursos

utilizados, onde podemos ver o rio principal, a disposição das casas, das

instituições presentes na comunidade que formam a centralidade, as

roças, o lago de uso comunitário, a floresta primária, etc. tidos como

elementos que pertencem ao mundo da comunidade ................................

183

Figura 56 Mapa mental elaborado por uma das crianças moradores da comunidade,

apresenta a dimensão das instituições e do ambiente que compreende a

comunidade ................................................................................................

184

Figura 57 Desenho elaborado por morador local apresentando as dimensões

constitutivas do território que compreende a comunidade Nossa Senhora

das Graças, as espacialidades das propriedades e sua relação com o uso

dos recursos naturais disponíveis, as plantações nas áreas de várzea à

beira do rio Solimões, as florestas e os lagos utilizados para a pesca de

subsistência atrás da comunidade, e áreas destinadas a outras atividades

como criação de pequenos animais ............................................................

185

Figura 58 Placa que identifica a comunidade Nossa Senhora das Graças se situa no

centro da comunidade e apresenta elementos importantes. As instituições

presentes, a relação com o lado religioso da comunidade, o time de

futebol como dimensão de sociabilidade, a localidade e a relação com o

mundo da pesca ..........................................................................................

187

Figura 59 Mapa mental elaborado por morador da comunidade Nossa Senhora das

Graças apresentando o núcleo central da comunidade constituída pelos

espaços de pesca, na figura aparece o rio Solimões em frente à

comunidade e o lago Tamanduá, ao fundo, como territórios que

pertencem à comunidade como espaços pertencentes ao modo de vida e

destinados a atividade pesqueira ................................................................

190

Figura 60 Mapa mental elaborado por pescador da comunidade Nossa Senhora das

Graças apresenta uma dimensão mais abrangente que relaciona a

localidade e os pontos de demarcação da pesca a partir do conhecimento

de ambientes próximos como a Costa do pesqueiro II e com outros

ambientes naturais, os furos, paranás e lagos, que são descritos da

maneira como são reconhecidos, a Boca do calado e a Boca do lago do

Paru .........................................................................................................

191

Figura 61 Os pontos de pesca demarcados no mapa mental elaborado pelo

pescador da comunidade apresentam uma percepção muito abrangente

do ambiente físico que constitui e delimita a localidade onde se encontra

a comunidade Nossa Senhora das Graças (acima do lago do Pesqueiro)

e os outros locais representados. Na figura, a Costa do Laranjal aparece

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como um referencial importante da pesca, as embarcações, os lanços

com as redes de arrasto significam a concepção da atividade pesqueira

voltado para a comercialização, mas, sobretudo, demarcam os territórios

de pesca dos barcos no rio Solimões ..........................................................

192

Figura 62 Parceria entre crianças da comunidade chegando ao lugar onde é

praticada a pesca de vez. ............................................................................

197

Figura 63 A espera da vez demonstra o sentido de organização e cumprimento das

regras entre os pescadores da comunidade ................................................

198

Figura 64 O lanço é dado quando ocorre a pesca de vez, a rede de arrasto é jogada

no rio presa às boias flutuantes, enquanto o outro parceiro da pesca

conduz a canoa motorizada das margens até o meio do rio .......................

199

Figura 65 A boia é largada após a finalização do lanço, servindo como sustentação

da rede de arrasto que será levada correnteza abaixo até os limites da

comunidade ................................................................................................

199

Figura 66 Após o período de captura, a rede é recolhida em outro ponto mais

abaixo do rio, os peixes são retirados e a rede armazenada na canoa ......

200

Figura 67 Quando a vez não predispõe uma boa pescaria é necessário voltar para o

lugar de partida e esperar novamente, estes aspectos claramente são

evidenciados quando ocorre uma pesca mal sucedida ...............................

201

Figura 68 Informação referente aos pescadores que se deslocam para locais fora da

comunidade, em localidades distantes ou nas imediações .........................

204

Figura 69 Localidades distantes onde foi evidenciada a prática pesqueira

demonstram os pontos de pesca visitados pelos pescadores da

comunidade ................................................................................................

204

Figura 70 Principais localidades e ambientes relacionados com o desenvolvimento

da atividade pesqueira no lugar da pesquisa ..............................................

205

Figura 71 Finalidade da pesca nas localidades distantes da comunidade .................

207

Figura 72 Perfil total da denominação popular das espécies mais capturadas para

fins comerciais na região de pesca da pesquisa.

208

Figura 73 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os

ambientes no período da enchente .............................................................

209

Figura 74 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da enchente .............................................................

210

Figura 75 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os

ambientes no período da cheia ...................................................................

211

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Figura 76 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da cheia ..................................................................

212

Figura 77 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os

ambientes no período da vazante ..............................................................

213

Figura 78 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da vazante ..............................................................

214

Figura 79 Formas de apropriação dos recursos pesqueiros de acordo com os

ambientes no período da seca .....................................................................

215

Figura 80 Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da seca ....................................................................

216

Figura 81 Melhores horários para a captura do pescado nos ambientes citados,

segundo os pescadores locais ....................................................................

217

Figura 82 Percentual de ocorrência sobre a prática da pesca comercial comunidade.

218

Figura 83 Períodos em que não se exerce a pesca comercial por ano na comunidade

Nossa Senhora das Graças .........................................................................

219

Figura 84 Pergunta referente à existência de descarte de pescado entre os

pescadores da comunidade ........................................................................

222

Figura 85 Análise descritiva das espécies de peixes que diminuíram na localidade..

223

Figura 86 Dinâmica dos modos de apropriação e gestão dos recursos ......................

239

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13

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Preço do pescado pago/kg e relação com o período hidrológico entre os

entrepostos comerciais de pescado na comunidade Nossa Senhora das

Graças – Manacapuru (Am) ......................................................................

140

Quadro 2 Perspectiva comparativa entre os fatores de uso dos recursos pesqueiros

e de seus ambientes a partir dos regimes de propriedade comum ............

235

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14

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

BASA - Banco da Amazônia

FAO - Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação

FISET/PESCA - Fundo de Investimento Setorial para a Pesca

IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis

MMA - Ministério do Meio Ambiente

MPA - Ministério da Pesca e Aquicultura

PVEA - Plano de Valorização Econômica da Amazônia

SPEVEA - Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia

SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia

SUDEPE - Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura

ZFM - Zona Franca de Manaus

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15

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................

17

CAPÍTULO 1 – A vida na costa do pesqueiro .........................................................

31

1.1 - História socioambiental da comunidade Nossa Senhora das Graças ................

33

1.2 - As formas de organização sociopolítica ............................................................

48

1.3 - Vida e labor: a constituição das atividades humanas na comunidade Nossa

Senhora das Graças ....................................................................................................

59

CAPÍTULO 2 – As transformações socioeconômicas da pesca ..............................

70

2.1 - A queda de Ícaro: Estado (sub) desenvolvimento e as políticas de uma

modernização forçada ................................................................................................

72

2.2 - Repensando as transformações do mundo do trabalho na pesca: Estado e

políticas econômicas legitimadoras do projeto de desenvolvimento nacional ........

88

CAPÍTULO 3 – Trabalhadores da pesca ..................................................................

109

3.1 - O trabalho na pesca e suas transformações sociais na Costa do Pesqueiro .......

110

3.2 - Trabalho, renda da água e as redes de comercialização ..................................

122

3.3 - As formas de organização do trabalho na pesca ................................................

148

3.3.1- Os parceiros do rio Solimões ...........................................................................

148

3.3.2 - O uso dos apetrechos na captura do pescado ..................................................

156

CAPÍTULO 4 – Tempo, Lugar e Espaço: a constituição política das

territorialidades da pesca ..........................................................................................

166

4.1 - Regimes de propriedade comum e livre acesso: aspectos sobre a constituição

das territorialidades da pesca no baixo Solimões ......................................................

166

4.2 - Cosmografias, territorialidades e espacialidades: dimensões simbólicas sobre

o conhecimento da pesca local ..................................................................................

175

4.3 - Relações sociais no uso das territorialidades ....................................................

194

4.3.1- A pesca da vez: elementos constitutivos de acesso e controle dos territórios

pesqueiros ..................................................................................................................

196

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16

4.3.2 - Os pontos de pesca: formas de apropriação e territorialização dos

ambientes de pesca ....................................................................................................

202

4.4 - Dimensões representativas do conflito: a pesca entre os de dentro e os de fora

223

4.5 - Repensando territorialidades: dimensões interpretativas sobre o controle dos

recursos pesqueiros ....................................................................................................

234

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................

243

REFERÊNCIAS .......................................................................................................

249

ANEXOS ................................................................................................................... 257

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17

Introdução

A pesca é uma atividade que institui uma das dimensões da realidade que marca

historicamente a vida dos grupos sociais na Amazônia brasileira. A importância do

desenvolvimento e aperfeiçoamento da pesca, praticados pelos habitantes das várzeas e terras-

firmes da região, demonstra a capacidade de articulação de um modo de vida muito singular,

onde o domínio do saber prático considera a dinâmica da vida que corre nos rios da

Amazônia, na sazonalidade dos seus períodos hidrológicos, e nas transformações que atendem

aos interesses dos homens como agentes sociais interessados e que se apropriam destes

recursos.

O desenvolvimento histórico das atividades pesqueiras deve muito, por um lado, aos

processos sociais de intervenção e ação humana na região amazônica e, por outro, pela

formação e ocupação de grupos sociais no período anterior a colonização portuguesa, a partir

das estratégias e intensificação de interesses políticos com relação à sociodiversidade

encontrada na Amazônia (PEREIRA 2007).

O processo histórico e socioeconômico vivenciado pelos grupos sociais rurais locais,

no que se refere ao uso dos recursos pesqueiros, pode ser compreendido enquanto elementos

pertinentes à reprodução social de suas existências, como também pelas transformações

socioeconômicas ocorridas nesse processo, sobretudo, no decorrer do século XX, no nível das

macro-ações, ou seja, das estratégias de intervenção político-econômica na Amazônia, aliado

ao discurso desenvolvimentista (RUFFINO, 2004, SILVA, 1996).

No âmago deste processo, as transformações socioeconômicas que marcam o

desenvolvimento do setor pesqueiro na Amazônia articulam, de um lado, os processos e

projetos de intervenção do modo de produção capitalista que levaram ao desencadeamento da

pesca comercial na região e, de outro, as transformações culturais do modo de vida, das

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representações sociais1 do mundo e da própria pesca como atividades constituintes da vida

dos grupos sociais locais. Nesse sentido, a pesca na Amazônia tem implicado na construção

de territorialidades sociais, ou seja, na demarcação dos espaços sociais na pesca comercial e

de subsistência entre os agentes envolvidos o que, conseqüentemente, tem criado/recriado

conflitos sociais pelo acesso aos recursos pesqueiros e (re) configurado as relações de trabalho

na atividade pesqueira.

A importância de compreender a territorialidade com uma das dimensões

significativas da apropriação comum do acesso aos recursos na atividade pesqueira

possibilita-nos verificar que, as representações dos territórios sociais e as formas de uso dos

recursos pesqueiros como elementos pertencentes à produção/reprodução material e simbólica

do mundo são, ordinariamente, construídas e (re) significadas.

Assim como em diversas áreas da Amazônia brasileira, o Rio Solimões, seus

paranás, lagos, afluentes etc., constituem-se em um dos principais complexos do meio físico e

biótico, traduzindo-se em fonte de riqueza para a produção e reprodução da vida dos grupos

sociais locais e, vem, também, tornando-se um dos principais pólos do setor comercial da

pesca. A região do Baixo Solimões, na qual se insere o município de Manacapuru, aparece

como um de seus principais referenciais do desenvolvimento desta atividade, assim como da

comercialização dos estoques dos recursos ictiofaunísticos local (BATISTA & FABRÉ,

2003).

O lócus desse espaço social da pesca tem apresentado, de forma latente e manifesta,

inúmeros conflitos sociais pela posse e uso dos recursos ictiofaunísticos envolvendo

1 “Compreendemos que a representação social é „uma forma de conhecimento socialmente elaborada e

compartilhada, que tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um

conjunto social‟” (JODELET, 2001, p. 08).

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diferentes tipos de pescadores das comunidades locais.2 Esses conflitos vêm delineando a

constituição de territorialidades onde a demarcação pela apropriação de diversas áreas de

pesca comercial e de subsistência é mediada – ainda que de modo incipiente – pelas normas

instituídas através do Estado3 como mediador que regula o acesso aos recursos pesqueiros,

através de acordos de pesca, manejos, proibições de determinadas espécies e locais, sobretudo

nos lagos. De maneira geral, estas ações são pautadas sob uma política de Estado específica

que trata de questões pontuais sobre as formas de apropriação dos recursos pesqueiros.

Por outro lado, grande parte das áreas de livre acesso destinadas a apropriação

comum possuem delimitações locais especificas, fugindo das instâncias normativas estas

áreas, sobretudo ao longo do rio Solimões, está há décadas constituindo-se como territórios

específicos de pescadores comerciais onde a apropriação comum dos recursos pesqueiros não

considera somente o livro acesso como elemento estruturante da pesca, e sim os acordos

locais entre os agentes deste processo a partir dos mecanismos de controle e acesso dos

espaços nos rios e demais ambientes.

Como objetivo geral desta pesquisa pretendeu-se estudar as relações sociopolíticas

instituídas e instituintes da configuração dos territórios sociais da pesca e suas formas de

apropriação comum na Costa do Pesqueiro II, no município de Manacapuru (AM). Os

objetivos específicos pretendiam: a) compreender a história socioeconômica e ambiental da

pesca comercial e de subsistência no Baixo Solimões; b) identificar os territórios sociais da

pesca comercial e de subsistência dos pescadores e, c) evidenciar as formas de apropriação

dos recursos pesqueiros e suas implicações sociais.

2 “Ao estudar uma comunidade, vemo-nos diante de uma grande variedade de problemas. A questão é saber se

todos são igualmente centrais para compreendermos o que confere a um grupo de pessoas um caráter específico

– o caráter de comunidade” (ELIAS e SCOTSON, 2000, P. 165). 3 “O Estado pode ser entendido como um conjunto de instituições especializadas em expressar um dado

equilíbrio e uma condensação de forças favorável a um grupo e/ou classe social. Ele assegura a unidade de

qualquer sociedade dividida em interesses, particularmente de classes, mas também estamentais, pois garante o

monopólio (centralizada ou descentralizadamente) do uso da força nas mãos do grupo, da classe ou do

estamento” (BOCAYUVA E VEIGA, 1992).

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A pesca e os ambientes destinados à captura do pescado são entendidos não só como

fonte de simbolização e significação de vida, suporte e potencial da riqueza material e

espiritual dos grupos sociais locais, mas também por se converterem em fontes de matéria-

prima valorizadas pelo mercado que, por sua vez, reproduz a inserção do modo de produção

capitalista na Amazônia através da acumulação do capital em escala local, regional, nacional e

mundial de forma desigual e combinada.

Embora sejam aparentemente homogêneo e indiviso, os rios apresentam marcas,

locais e territórios definidos e defendidos pelos pescadores durante suas atividades.

Reconhecer a existência dos territórios pesqueiros e identificar a estratégia de uso e defesa

dos mesmos pode auxiliar na elaboração de normas para o seu manejo constituindo-se em um

importante instrumento de gestão das pescarias, minimizando conflitos em áreas de livre

acesso.

Para Maldonado (2000) a pesca é uma das formas sociais em que a percepção

específica do meio físico é da maior relevância, não só para a ordenação dos homens nos

espaços sociais como também para a organização da própria produção e para a reprodução da

tradição pesqueira, tanto em termos técnicos como em termos simbólicos.

Os territórios também são flexíveis dados a sua apropriação, o que significa dizer que

esta flexibilidade fornece argumentos para a (re) configuração de espaços de uso comum,

como no caso dos rios. Espaços de uso comum são pensados aqui como elementos

constitutivos da realidade social local quanto ao uso dos recursos de forma delimitada e

socialmente controlada, através de mecanismos que garantem a gestão e manejo das áreas de

pesca assim como impõem as normas e sanções estabelecidas para a regularidade das ações

individuais e coletivas.

Neste sentido os rios, ou melhor, os pontos específicos de pesca, são pensados

também como territórios abertos, pois se situam entre o privado e o público a partir do uso de

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seus recursos e da maneira que, não um agrupamento humano, mas diversos grupos sociais

com o mesmo interesse podem estabelecer regras ou leis internas de conduta que garantem ao

mesmo tempo o uso e o controle dos recursos (BEGOSSI, 2004). Contudo, em seu aspecto

mais fundamental, a territorialidade humana produz um leque de expressões sociais muito

amplas de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais.

Mas como é possível pensar em territórios pesqueiros em áreas específicas como

rios, por exemplo, que, diferente dos lagos e de outros ambientes mais privados, do ponto de

vista de seu uso por comunidades locais, pertencem jurídicamente à União?

Os processos de territorialização comportam elementos que fogem das instâncias

legais e muito menos jurídicas quando se tratam de espaços de uso comum, e que se tornam

uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências

históricas (LITTLE, 2002).

Para os grupos sociais rurais em áreas de várzea da Amazônia brasileira, a

racionalidade no uso dos recursos permeia a utilização dos espaços, territórios e lugares de

vida, compreendidos através dos saberes locais. Esta dimensão conflui para a predisposição

das atividades produtivas em seu mundo compartilhado, nas relações sociais e na reprodução

material e simbólica dos seus meios de vida. Estes fatores, tão importantes e singulares,

somente nas últimas décadas estão sendo vistos como legítimos para pensar o uso sustentável

dos recursos naturais disponíveis, e assim, criar soluções alternativas e estratégicas que

possibilitem modelos heterogêneos de apropriação, gestão participativa e parcimônia

eqüitativa no uso dos recursos naturais.

O significado do mundo que constitui as representações dos espaços destinados ao

uso dos recursos pesqueiros é tão complexo quanto sua delimitação física. A captura do

pescado não é reproduzida de maneira irracional, e sim constituída de uma racionalidade onde

as atividades são desenvolvidas em locais específicos. Neles a pesca é realizada através do

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conhecimento adquirido pelos pescadores quanto aos locais e espécies possíveis de captura,

considerando, sobretudo as representações sobre o ambiente socialmente apropriado.

A compreensão da demarcação territorial dos conflitos pelo acesso aos recursos, no

Baixo Solimões, no município de Manacapuru (AM), se relaciona com uma diversidade de

elementos que, sobretudo, perpassam pela normatização do acesso à pesca e a regulamentação

do Estado no exercício de manter um olhar sobre as questões ambientais no local.

Entendemos que estas regulamentações mantêm relações estreitas com o projeto de

intervenção política adotado para a Amazônia, no fim do século XX, e que esta relação traduz

diretamente a tendência re-ordenadora do modo de produção capitalista na Amazônia no que

diz respeito ao uso dos recursos pesqueiros.

O lugar delimitado para a realização dos estudos foi a localidade Costa do Pesqueiro

II, no município de Manacapuru (AM) localizado na região do Rio Solimões, compreendido a

partir da microrregião do Baixo Solimões. A localidade conta com aproximadamente quinze

comunidades dentro de uma área maior denominada Costa do Pesqueiro, onde desenvolvem

diversas atividades – agricultura, criação de pequenos animais e extrativismo vegetal e animal

(principalmente a pesca). Contudo, a pesquisa realizou-se onde a pesca é desenvolvida de

maneira estruturante na vida (pesca de subsistência) e, como principal complementação da

renda dos moradores locais identificada como trabalho/profissão, a pesca comercial – na

Comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro II, localizada a margem direita

do rio Solimões, em frente ao Município de Manacapuru.

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Figura 01 – Localização da Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II.

Fonte: Limite Territorial IBGE, 2007, organizado por Suzy Cristina Pedroza da Silva, 2010.

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Figura 02 – Comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II por imagem de satélite

Fonte: Sistema de georeferenciamento de imagens por satélite Google Earth, 2009.

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A pesquisa como atividades prática sempre depende do modus operandi de quem a

executa, do arcabouço teórico e dos princípios que nortearam a visão do pesquisador, noutras

palavras, a pesquisa como artesanato intelectual torna-se sempre, necessariamente, uma

teoria em atos (BOURDIEU, 1989). Neste sentido, o recorte da realidade social pesquisada

incide sob o direcionamento dado pelo próprio pesquisador ao ato de compreender a ação

social dos homens e os significados da conduta humana da realidade pesquisada (WEBER,

1991).

A realização da investigação pretendida fora voltada para o uso de uma metodologia

de pesquisa qualitativa e, com as contribuições de dados quantitativos, foram evidenciados em

cada momento o desenvolvimento do estado da arte no processo da pesquisa realizada.

Além disso, a investigação implica em uma reconversão do olhar sociológico acerca

da realidade investigada. Essa postura incide na precaução de pensar o lócus a ser pesquisado

considerando seus aspectos endógenos e exógenos. O cuidado com os aspectos exógenos

implica em que o sujeito do conhecimento deve ampliar o seu campo de investigação

buscando articular o objeto da pesquisa a processos sociais mais amplos.

Para tornar exeqüível a pesquisa proposta, a participação durante certos períodos4 na

localidade estudada – o que implicou utilizarmos os preceitos da pesquisa participante – fora

fundamental para a constituição das representações sobre os objetivos inicialmente

pretendidos.

Neste sentido, a obtenção das informações a partir do cotidiano da vida local junto

aos pescadores, tornaram-se elementos fundamentais e enriquecedores da pesquisa por se

constituírem não só em princípios metodológicos adotados, mas servindo como fonte critica

4 Os períodos da pesquisa de campo realizada obedeceram a um calendário baseado na configuração dos

períodos hidrológicos que demarcam a sazonalidade das águas do rio nas áreas de várzea (períodos de enchente,

cheia, vazante e seca), revelando, sobretudo formas de apropriação diferenciadas quanto a realização da

atividade pesqueira no local.

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de reflexão acerca da forma adotada no trato quanto ao diálogo junto aos sujeitos envolvidos

na pesquisa.

A coleta de dados para a realização da pesquisa foi executada através da obtenção de

informações primárias e secundárias.

Neste sentido, a constituição do estudo implicou no levantamento bibliográfico,

aplicando-o, sistematicamente, à delimitação do tema proposto, bem como a identificação dos

conhecimentos já existentes referentes ao estudo da localidade onde se configurou a pesquisa

e o levantamento de informações sobre o tema proposto. Desta forma, permitiu-se o

estabelecimento de um referencial teórico que nos ajudou a pensar a realidade investigada.

Este referencial implicou num aprofundado estudo das questões pertinentes aos objetivos da

pesquisa5. As leituras da bibliografia selecionada, também nos orientaram no sentido de

melhor analisarmos as informações durante a obtenção de dados.

Neste sentido a pesquisa realizada contemplou o uso de entrevistas semi-estruturadas

adequadas aos objetivos da pesquisa, enfatizando a percepção intersubjetiva dos agentes

envolventes, tendo como objetivo resgatar dados que indicassem a relação do dia-a-dia dos

trabalhadores da pesca e suas atividades, ou seja, a percepção de seu mundo vivido. Este

processo culminou diretamente num resgate por meio da história oral e história de vida,

através da memória social6, possibilitando-nos pensar no desenvolvimento da pesca comercial

e suas atribuições no local de pesquisa. O uso de diário de campo, a partir de anotações das

informações adicionais durante o acompanhamento da pesquisa em campo fora de extrema

relevância.

5 Além da pesquisa bibliográfica vem sendo realizado o mapeamento e levantamento de fontes documentais,

primárias e secundárias, que possam fornecer informações sobre a região, analisando os fatos que estejam

relacionados à questão pesqueira. 6 A noção de memória social é de Halbwachs (1990), que define a memória como uma construção coletiva sobre

o passado feita a partir das condições sociais que o grupo vivencia no presente. Ao mesmo tempo, a lembrança

do passado informa o grupo sobre o seu presente, de forma que passado e presente se constroem mutuamente –

são socialmente percebidos por meio de informações que um projeta sobre o outro. Na sua função de explicar o

presente, a memória (que às vezes se apresenta na forma de relatos míticos) equivale à herança de uma “lente

cultural” que define a visão e a interpretação que o grupo pode ter sobre os fatos que vivencia.

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Outro elemento importante trabalhado foram a elaboração de mapas mentais (ou

mapas cognitivos), constituindo-se como desenhos elaborados pelos pescadores locais que

procuraram evidenciar suas significações sobre a pesca, enquanto elementos fundamentais

para a constituição e compreensão das representações sociais do mundo vivido, no lugar da

pesquisa, assim como para compreender a espacialização e a configuração da territorialidade e

suas relações sociais.

Para o desenvolvimento quantitativo das informações no decorrer da pesquisa, a

obtenção de informações fora realizada através da utilização de questionários consistindo em

perguntas abertas e fechadas7 envolvendo os agentes sociais diretamente relacionados com a

pesquisa e as organizações locais e grupos sociais relacionados com a questão da pesca. Esta

etapa da pesquisa nos conduziu, inicialmente, a uma validação dos instrumentos da coleta de

dados (ao seu pré-teste), procurando identificar e corrigir os limites e/ou imperfeições dos

instrumentos para melhor atender aos objetivos da pesquisa. Finalmente, a investigação, na

medida em que se realizou, fora complementada com o uso de material fotográfico visando

registrar/revelar os aspectos do imaginário social do cotidiano das práticas pesqueiras.

O primeiro capítulo intitulado A vida na Costa do Pesqueiro trata de analisar uma

interpretação sobre a constituição dos processos sociohistóricos que culminaram no

desenvolvimento particular do modo de vida comunitário na Costa do Pesqueiro a partir da

comunidade Nossa Senhora das Graças, evidenciando aspectos que demarcam as dimensões

sobre a apropriação social dos recursos naturais no ambiente habitado. As trajetórias de vida e

as dinâmicas que incidem sobre a formação da comunidade e dos tipos de atividades

desenvolvidas são evidenciadas enquanto dimensões materiais e imateriais da constituição

organizacional do mundo rural amazônico.

7 Por meio das questões fechadas pretendeu-se captar os dados acerca do perfil socioeconômico dos

entrevistados, e do trabalho realizado no local. Através das questões abertas, procuramos informações que

apresentassem elementos constitutivos do modo de vida local bem como das relações de trabalho entre os

sujeitos envolvidos.

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Na medida em que dialogamos com estas questões – sobre a reprodução social do

mundo vivido nas áreas de várzeas do rio Solimões – procuramos destacar as categorias do

trabalho e do labor enquanto aspectos diferenciados e complementares ao mundo vivido, nos

possibilitando evidenciar por meio do cotidiano local, as atividades desenvolvidas e sua

conexão com demais dimensões da vida cotidiana. Estes elementos demonstram um pouco

das representações sobre a história de vida de seus moradores, as dimensões de suas práticas

socioculturais cotidianas, assim como as atividades econômicas que caracterizam a

comunidade.

O segundo capítulo denominado As transformações socioeconômicas da Pesca

procura compreender o desenvolvimento da atividade pesqueira na Amazônia e sua relação

com as políticas de desenvolvimento econômico adotadas pelo Estado nacional ao longo de

sua industrialização enquanto elementos constitutivos formação da sociedade brasileira

contemporânea.

Neste capítulo procuramos dialogar com uma reflexão acerca da formação do Estado

brasileiro frente as políticas de modernização da sociedade, neste sentido, evidenciando uma

abordagem sobre as conseqüências sociais diante da tomada de decisão em adotar uma

perspectiva de desenvolvimento econômico nacional que de fato permitiria tardiamente uma

preocupação com as questões ambientais.

A intensificação da pesca comercial aparece como um destes fatores resultantes das

transformações das políticas de desenvolvimento econômicos incentivadas para a Amazônia,

gerando inúmeras questões, dentre as quais destacamos o surgimento dos conflitos ambientais

e da sobreexploração dos recursos pesqueiros como aspectos engendrados neste processo,

sobretudo, advindos da inserção comercial do modo de produção capitalista na pesca.

Assim, apresentamos uma visão de como estas ações refletiram por meio das

políticas de consolidação nacional dos grandes programas de valorização (econômica) da

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Amazônia, delineando como estes elementos tencionaram de forma ampla a relação entre os

grupos sociais rurais e as formas de uso dos recursos pesqueiros, as transformações

socioprodutivas da atividade regulamentada da pesca, e a consolidação/evolução de uma

legislação que regulamentaria o acesso aos recursos pesqueiros.

O terceiro capítulo, Trabalhadores da Pesca, discorre sobre as formas de

organização da pesca comercial no rio Solimões através da comunidade Nossa Senhora das

Graças na Costa do Pesqueiro, evidenciando as relações sociais de trabalho que constituem o

modo de uso e apropriação dos recursos pesqueiros. Neste sentido, procuramos estabelecer

um diálogo com as dimensões constitutivas da pesca comercial: a comercialização e a Renda

da água proveniente do trabalho na pesca entre os moradores da Costa do Pesqueiro. Outros

elementos abordados nesta seção são as formas de organização do trabalho na pesca,

evidenciando os aspectos que denota a existência das parcerias entre os pescadores e o uso

dos apetrechos na captura do pescado.

Consideramos que na medida em que há uma extensão do mercado consumidor e a

disponibilidade de recursos pesqueiros próximos às comunidades, é possível que um maior

número de sujeitos sociais passe a se dedicar à pesca comercial como principal meio de vida

para além das atividades de subsistência. Neste sentido, procuramos evidenciar que, para

viabilizar a produção pesqueira os sujeitos sociais tendem a se (re)organizar socialmente,

sobretudo de acordo com suas forças produtivas e as relações envolventes deste processo,

estes aspectos constituem as formas de controle e apropriação comum dos recursos pesqueiros

em determinadas áreas, produzindo territorialidades.

No quarto capítulo intitulado Tempo, Lugar e Espaço: a constituição das

territorialidades da Pesca, estabelecemos uma conexão com o exercício de pensar os

territórios sociais da pesca por meio da constituição de territorialidades em ambientes

socialmente apropriados pelas comunidades locais, sobretudo, enquanto veículo para

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compreender o uso dos recursos pesqueiros, as formas de apropriação comum do rio Solimões

na atividades da pesca comercial e nos ambientes destinados à pesca de subsistência, como os

lagos. Dentre estes aspectos, destacamos as representações dos pescadores sobre os ambientes

territorializados, identificando os ambientes onde são exercida a pesca e as áreas recorrentes

de conflitos pela disputa ao acesso dos recursos pesqueiros.

Desta forma, procuramos estabelecer um diálogo com referenciais que nos

possibilitem dialogar sobre a constituição das territorialidades produzidas nos ambientes

destinados à atividade pesqueira. Neste capitulo as inferências teóricas apresentadas buscam

uma interpretação com os temas em questão, a relação entre regimes de propriedade comum e

áreas de livre acesso, considerando a forma como são destacadas de maneira diferenciadas e

complementares às analises pretendidas sobre as territorialidades e os espaços sociais na

disputa de acordo com a dimensão do conflito pela apropriação dos recursos pesqueiros.

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CAPÍTULO 1 - A VIDA NA COSTA DO PESQUEIRO

A vida constitui o mundo material e imaterial dos homens, suas representações

tornam o intangível ao alcance da fabricação do mundo artificial das coisas

humanas. (ARENDT, 2000, p.11)

A vida como construção social é um processo em que os homens produzem/

reproduzem material e simbolicamente seus meios de existência (MARX, 2002), a partir das

relações constituídas historicamente por circunstâncias particulares. Hannah Arendt (2000)

em A condição humana, ao dialogar com Karl Marx, fará importante distinção entre o

trabalho e o labor para a vida humana: o trabalho tem a ver com a construção da

mundaneidade, isto é, com a edificação da durabilidade do mundo pelo homem; o labor se

relaciona com os processos vitais entre os homens, começando com o nascimento e

terminando com a morte numa dialética marcada por movimentos cíclicos que constituem a

própria vida.

Os processos históricos e socioambientais que culminaram no desenvolvimento do

modo de vida particular que marcam a constituição das comunidades rurais e demais

agrupamentos humanos na Amazônia englobam dimensões complexas de apropriação social

dos recursos naturais, trajetórias de vida, dimensões materiais e imateriais da constituição

organizacional das comunidades, processos de territorialização, enfim, envoltos numa

dinâmica característica do mundo rural amazônico.

A vida social na comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II não

foge destas características, sua constituição organizacional enquanto comunidade, suas

representações da historia de vida de seus moradores, as dimensões de suas práticas

socioculturais, do cotidiano, as atividades econômicas que caracterizam a comunidade, são

reflexos de um mundo vivido que nos possibilitam demonstrar o cotidiano do mundo vivido

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no lugar, sua relação com as atividades do próprio mundo do trabalho desenvolvidos no local,

e sua conexão com demais dimensões da vida cotidiana.

Pensar a denominação comunidade como objeto de reflexão é tratarmos para além de

uma compreensão da autodenominação afirmativa que muitas vezes os sujeitos envolvidos

acabam tomando, é compreendê-la enquanto categoria sociológica de constituição das

relações sociais estabelecidas no processo de construção e demarcação das fronteiras

societárias, enquanto conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e de espaço,

seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo,

enquanto corpo social, caracterizado pelo modo de vida baseado em normas comuns.

Apesar de o termo envolver sinônimos como “sociedade, “vizinhança”, pode ser

pensado como um grupo territorial de indivíduos com relações recíprocas, que se servem de

meios comuns para lograr fins comuns (FERNANDES, 1973).

Assim, os interesses comuns que constituem a formação de grupos humanos podem

estar relacionados com diversos aspectos: relações familiares fundamentados no patriarcado

e/ou na gerontocracia, religião, política, trabalho, a vida e posse do usos dos recursos naturais

disponíveis em seu meio envolvente, desta forma se estabelecem enquanto agrupamento

humano economicamente organizado (ARAÚJO, 2003).

O caráter da organização familiar se transfigura sendo a instituição-base mais

importante das comunidades rurais amazônicas, neste sentido, o compartilhamento de

heranças culturais manifestas nos locais são reflexos de possíveis formas de interpretações

sobre as normas e valores que se condicionam a cada região ou local.

A dimensão do espaço social, da territorialidade, é um dos fatores condicionantes

para a reprodução, ou seja, para a objetivação da realidade de um modo de vida, não só em

seu sentido físico, por exemplo, na visão de que existe, nas comunidades rurais da Amazônia,

um sentimento de pertença, nas ocasiões de comemorações públicas, nos dias dos Santos

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(WAGLEY, 1988,) aos quais as populações de determinada comunidade se referem como

“nossas” as festas e comemorações em oposição aos “outros”, às pessoas que vivem “fora” da

comunidade ou aqueles que não usufruem de determinados recursos compartilhados pelo que

compreendem sua dinâmica e significado, e que detêm um código de conduta linguístico,

simbólico, repleto de denominações locais e comportamentos.

A disputa de espaços não somente territoriais, através de demarcações não só físicas,

mas também simbólicas, de determinadas comunidade, compreendem as dimensões

constitutivas do modo de pensar as relações sociais que direcionam o cotidiano local e,

sobretudo, que delimitam, demarcam, instituem e configuram a relação entre as comunidades,

através de seus laços sociais.

Neste sentido, pensamos em Nossa Senhora das Graças como uma comunidade, para

além da autodenominação de seus sujeitos, como sendo dotada pelas singularidades que

caracterizam os grupos sociais rurais da região amazônica, onde a vida exerce uma

complexidade que não envolve só o homem, e sim o homem e o espaço de vida que se define

como território e como lugar de exercício de suas ações como ser político.

1.1 História socioambiental da comunidade Nossa Senhora das Graças

O processo histórico de ocupação das áreas de várzea da região amazônica

possibilitou, ao longo de séculos, uma heterogeneidade de modos de vida. O ambiente e as

populações humanas se reconfiguram em um processo diversificado que combina inúmeros

elementos do espaço e da diversidade da cultura humana. A formação histórica dos grupos

sociais rurais da região são frutos do encontro de culturas seja de populações locais,

ameríndias, seja do colonialismo europeu em um dado momento, seja da recente presença

nordestina do período econômico da borracha. Estes últimos caracterizam veementemente o

modo de vida da várzea, sobretudo nos aspectos condizentes às atividades do trabalho (na

implementação de técnicas de cultivo, pesca, etc.), nas crenças, no forte sentimento de

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religiosidade, os costumes alimentares e como afirma Diegues (2002) em “uma grande

dependência dos recursos naturais, acabando por se obter um profundo conhecimento dos

ciclos biológicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e uma

linguagem específica, com sotaques e inúmeras palavras de origem ameríndia, constituindo-se

como populações de determinados conhecimentos específicos, e por assim dizer,

tradicionais”, o que constrói o próprio processo de sociabilidade das relações sociais no

desenvolvimento e constituição das comunidades.

Quando se trata do rio Solimões, a influência na ocupação de suas margens por

grupos sociais não indígenas está ligada em um momento mais recente, diretamente aos

ciclos econômicos da região, à borracha, à juta e malva, que marcam ao mesmo tempo a

falência das políticas de desenvolvimento adotadas para a região, a expansão da fronteira

colonizadora por grupos sociais de diferentes áreas do país, sobretudo nordestinos; o

deslocamento e a ocupação humana mal planejada na região, que fizeram das várzeas dos

rios, último reduto das estratégias de subsistência por meio de sua posse, em busca de

melhores condições de vida pelas oportunidades que as atividades do trabalho rural e uso

dos recursos disponíveis apresentavam de antemão.

A localidade denominada Costa do Pesqueiro II possui uma historicidade que

remonta até antes a própria formação da comunidade evidenciada, haja vista que Nossa

Senhora das Graças está situada numa área bastante conhecida onde o desenvolvimento das

atividades pesqueiras possui importância considerável para o município de Manacapuru e

para a região, onde é possível pensar que a denominação da localidade está ligada ao

período colonial quando o exercício das atividades pesqueiras estava ligado à criação dos

chamados pesqueiros reais, que visavam abastecer um mercado específico.

A Costa do Pesqueiro, onde está situada a comunidade estudada, possui uma

história de ocupação muito antiga, antes mesmo da formação da comunidade Nossa

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Senhora das graças que, de acordo com relatos obtidos em campo, passaram a ocupar o

lugar de forma a se organizarem em famílias advindas de diversas partes da região, em

geral, o perfil das famílias mais antigas é marcado por história de vida de pessoas que

trabalhavam para os patrões da borracha nos seringais do alto rio Juruá no início da década

de 60.

As condições de vida relatadas pelos entrevistados indicam a dificuldade de

sobreviver em função de relações de trabalho marcadas pela exploração do freguês pelo

patrão, pela intensificação da jornada de trabalho semiescrava e pela relação de poder que

por hora instituía uma violência física e simbólica, demarcando os campos do

autoritarismo nos seringais.

[...] A vida no [rio] Juruá era muito boa também, só era ruim porque as

pessoas eram sujeitas aos patrões. A pessoa andava na mata, meu marido

saía [...] uma hora da madrugada, pra cortar seringa, pra chegar quatro horas

da tarde, sem vim em casa, levava a boia dele, água, tudo. Aí quando

chegava ia defumar aquela borracha, coitado do freguês que vendesse menos

de um quilo pro patrão! Lá era uma fartura que a gente não comia quando

era mês de julho tinha íaçá; mês de agosto, tracajá; mês de setembro,

tartaruga. Era uma fartura imensa no (rio) Juruá, muito bom, mas resultado é

que a gente não tinha nada. Era tudo do patrão. Aquilo ali se tu fosse se

mudar, tinha que deixar a casa. Aquilo ali já era pra outro que o patrão

colocar. O patrão não deixava vender, ficava pra outro que o patrão fosse

colocar. A pessoa era subjugada [...] (C. P., 72 anos, moradora a 40 anos da

Comunidade Nossa Senhora das Graças).

As relações pessoais, as condições de ocupação e de trabalho foram se

desenvolvendo a partir da busca por um pedaço de terra para morar; neste sentido, a noção

de possuir terras significava ter as condições de reprodução da vida, de consolidar-se,

como no caso das primeiras famílias que detinham grande parte de propriedades ao longo

do Solimões, revelando os modelos mais recentes de uso e ocupação do solo nestes locais:

[...] Aqui não, a gente tem o que é da gente, se quiser vender vende, se quiser

dar dá. Nós comprava e vendia aí na vila, tinha uma casa que comprava,

ninguém tinha patrão. Patrão assim, porque a gente compra uma mercadoria,

e para muitos o dinheiro não dava pra pagar tudo. A gente comprava no

fiadinho. A gente considerava patrão né? Porque quando eu cheguei aqui eu

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já trazia quatro filhos. Eu tinha uns trinta e tal anos, a gente trabalhava

arrendado logo quando chegamos, porque ninguém tinha com que comprar

uma terra pra ser da gente. A gente pagava pro dono parte da terra que nós

tinha [...] Quem arrendava era o compadre Zé Barroso, da família Barroso.

Quando nós chegamos aqui eles já tavam. Isso aqui tudo era deles, esse

terreno que eu moro, centos e tantos metros que ele me vendeu aí, do marido

da comadre Dadá, esse aqui extremado comigo também era dos Barroso, eles

tinham muita terra. Por que foram os primeiro morador né. Tinha também os

Carneiro, que era a família do Zé Carneiro, o velho Raimundo Carneiro, ele

é antigo aqui, quando nós chegamos aqui ele era antigo (C.P, 72 anos,

moradora a 40 anos da Comunidade Nossa Senhora das Graças).

O processo de ocupação dos grupos sociais nordestinos na região amazônica

caracterizou não só o ciclo histórico de ocupação dos soldados da borracha, mas também

implementou, dentro da diversidade cultural da região, características singulares que

podem ser evidenciadas na linguagem, nos processos de trabalho, nas crenças religiosas,

enfim, no mundo do homem amazônida. Devido à vida difícil em função da estiagem que

assolava o nordeste do país, fazendo com que famílias e indivíduos em geral migrassem

para esta região em busca de melhores condições de vida e de trabalho, tornando o

processo de ocupação da área atual uma realidade.

[...] A gente não veio numa embarcação a motor, lancha, nem coisa

nenhuma, viemos a remo num batelão coberto de palha, baixando do rio

Juruá até aqui. Os primeiros moradores foram: Francisco Chagas de

Mendonça, Flávio Gomes da Silveira, Valdir Mendonça de Souza,

Raimundo Nonato Mendonça, Raimundo Cardoso de Lima, Raimundo

Nicolau da Rocha, Otávio Gomes da Silveira e Edmar Mendonça da Silveira.

Essas pessoas tinham uma grande relação de parentesco. A gente veio do

Alto Rio Juruá quase juntos, e mesmo assim quando chegamos aqui por

ironia do destino a gente veio morar no mesmo local, na mesma área, era tio

e primo, mas tinha pessoas estranhas, que não eram da família, mas eram

amigos de infância lá dos seringais. Nós viemos de um lugar muito

escondido na mata, quando chegamos aqui encontramos um lugar meio

arejado, meio limpo, mas só que desenvolvimento era o que nem de lá, as

mesmas posturas... Só que aqui a gente podia evoluir mais um pouco, porque

aqui já teve escola, né, aqui já teve um patrão, que você ia buscar coisa lá,

não era aquele patrão que nem de lá que quando, uma senhora tirava o saldo

e o patrão percebia, ele lhe cacetava. Isso não é história de trancoso, isso é

história verdadeira. O patrão mandava matar o camarada que tirou aquele

saldo. (S. M., 50 anos, agricultor, morador da Comunidade Nossa Senhora

das Graças).

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Na comunidade pesquisada, as famílias nucleares são mais numerosas, devido ao fato

de a maioria dos filhos, após o casamento, passarem a viver em nova residência, construindo

assim, uma nova família e proporcionando o aumento no número de residências na

comunidade (Figuras 03 e 04).

A propriedade familiar é sucessivamente subdividida no processo de herança entre

herdeiros que são geralmente os filhos, de modo que cada pedaço de terra se torna pequeno

demais para cada núcleo familiar (WOLF, 1970). As famílias extensas atuam organizadas e de

forma cooperada nas unidades produtivas, na divisão do trabalho e na concentração dos

recursos.

Figura 03 - Percentual de entrevistados que

possuem filhos na comunidade Nossa Senhora das

Graças

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de pesquisa,

2009.

Figura 04 - Percentual de entrevistados quanto à

Situação do estado civil.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de pesquisa,

2009.

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Figura 05 – Ocorrência dos tipos de

família nuclear e extensa na Comunidade

Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,

2008.

Figura 06 – Média de pessoas por família na

Comunidade Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,

2008.

As unidades de produção se estruturam da seguinte forma: algumas concentram

várias famílias nucleares em uma mesma residência, outras concentram estes núcleos

familiares em uma mesma área com as casas próximas umas das outras, com a casa dos pais

geralmente no meio das dos filhos (FRAXE, 2000). Na maioria das comunidades, geralmente

são os filhos homens que trazem as esposas para morarem juntos aos pais.

Nós viemos do Juruá, município de Carauari. Tem muita gente que veio do

Juruá, tem, pelo menos meu pai, minha mãe, meus irmãos, tudo viemos do

Juruá. O pai do compadre Sabá, era do Juruá. Porque ele já faleceu, só tem a

velha, a velha, mãe dele. Viemos por informação, porque meu compadre

Chagas Mendonça, pai do compadre Sabá, ele veio por intermédio da família

dele por aqui, ele veio e trouxe a minha nora. Era casada com meu irmão que

mora em Manaus, compadre Antônio, ela veio achou muito bom pra cá e

escreveu, por que nesse tempo não tinha telefone, não havia celular, só

negócio de rádio, aí ela foi, escreveu e disse que nos preparássemos, papai,

mais mamãe, que ela ia buscar, que aqui era muito bom pra morar, era em

frente a cidade, no que a pessoa quisesse comprar, tinha onde comprar.

Quando eu cheguei aqui essa cidade (Manacapuru) tinha poucas casas, só

era caminhos, como diz ramal, era poucas casas, a casa maior que tinha era

do finado Zeca Ventura, que ensinava um remedinho pra gente, consultava,

mas esse já morreu. Aí nos viemos, em nossa canoa grande, batelão,

vendemos umas coisas, aí o papai mais o compadre Manel, vieram no

batelão no reboque do Batistinha, nesse tempo era um motor grande, então

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chegamos e ficamos por aqui, cada um comprou seu local, um pedaço de

terra pra morar, meu marido comprou esse outro aqui do compadre Zé

Barroso, compadre Manel comprou um que era do Deusdete (L. P. C. 70

anos, moradora da Comunidade Nossa Senhora das Graças).

A história de vida, da jornada travada pelo objetivo de assentar-se, das formas de

deslocamentos de um lugar para outro, são relatadas de maneira pormenorizadas nas palavras

daqueles que possuía esperanças no trabalho de recomeçar a vida em outros lugares, também

revela um pouco da constituição dos agrupamentos familiares e das disposições da estrutura

de parentesco muitas vezes encontradas em comunidades de várzea, estas relações aliados ao

apadrinhamento e aos sistemas de casamento, onde encontramos geralmente membros de

diferentes famílias que habitam o mesmo lugar e se casam, reproduzindo a manutenção da

estrutura fundiária e a relação de posse das áreas de uso comum da comunidade, a

demarcação dos terrenos, das casas, etc...

As ações constitutivas do espaço de vida dos grupos sociais, dos moradores da

comunidade que se instalaram no local, são reflexos das transformações cotidianas, as

mudanças, visões de mundo que fazem hoje da comunidade um modo especifico de serem

observadas por seus moradores diante de diversas condições econômicas, políticas, culturais,

religiosas, etc. Ficando evidente as ações do indivíduo na ocupação do território que hoje

formam a comunidade e na transformação da paisagem natural realizada pelas atividades de

trabalho na agricultura de subsistência e comércio:

[...] Foi chegando as famílias e juntando. Pode-se dizer que a comunidade é

uma família só. O que é diferente é duas ou três casas, porque a família do

compadre Valdemar já é meu primo, então entrou na minha família. Porque

o que não é da minha família é o pessoal da comadre Dadá e o pessoal do

compadre Zé Barroso [...] Naquela época eu plantava roça, milho, melancia,

feijão, juta, nós plantava de tudo, eu dava o maior duro, com a força de

Deus, pra criar meus filhos. Tive nove filhos e me julgo feliz porque tenho

essa idade e os meus filhos tão tudo ao redor de mim. Criei com sacrifício e

Deus me deu força de dar a luz aos meus filhos. Deus não me tirou nenhum.

Aqui era mata, daqui de onde eu tô, pra chegar na Ressaca do Pesqueiro, até

nos terrenos dos Barroso, não tinha flutuante não tinha morador, era

mulateiro, era tudo quanto era pedaço de pau. Aí foi o tempo que foi caindo,

foi caindo, aí pessoal foi comprando dele e abrindo, fazendo terra, roçado, e

agora tudo é campo. Mas isso aqui era uma mata danada quando nós

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compremo, aqui pra trás. E estamos vivendo por aqui até hoje, eu acho que

eu morro e os filhos ficam por aqui, porque não adianta eles estarem por aí

(C. P., 72 anos, moradora a 40 anos da Comunidade Nossa Senhora das

Graças).

As transformações da paisagem natural revelam um fator importante de mudança,

das características que demarcam as comunidades, as formas de uso de seus recursos, o

conhecimento de determinadas espécies locais que faziam e fazem parte da complementação

alimentar e do uso de seus produtos entre os moradores da comunidade, revelando, sobretudo,

o conhecimento local no uso destes recursos e a dimensão territorial que se constitui na

memória dos mais antigos, que percebem as mudanças físicas na comunidade e como se

refletem atualmente nos fatores produtivos:

[...] E aqui quando nós chegamos aqui, a beira do rio era lá onde tava essa

praia, pro lado de lá. Nós plantávamos todos nessa área aqui, juta, juta

mesmo, não era malva não, tinha milho, juta, roça, feijão, melancia, enfim.

Quando nós chegamos aqui, a mata era aqui detrás da cozinha, era macaúba,

louro mamuí, castanhola, castanharana, piranheira, enfim, madeira de lei.

Mas não sei o que aconteceu que em 64 houve um fogo muito forte que

danificou toda a mata ao redor e nunca mais virou mata alta. O sinhor vai

achar aqui, se nós andar aqui, uns 3 km é que nós vamos achar mata alta,

porque daqui dessa capoeira, o sinhor sai numa campina, que só é arrozal,

buritizal, capim, vai ver muita caveira de pau de lei mesmo, âmago, que tá

assim por cima um do outro. Toda aquela madeira morta... E quando foi em

68 e 69 aqui atrás, houve uma grande enxurrada, que os lagos não secaram,

aguentaram aquela água que matou todo aquele araçazal, parecido com essas

barragens que fazem hidroelétrica. Mas foi a natureza que fez isso, tornando

campo, onde o pessoal criam muito gado aí agora. E aí a mudança foi essa,

essa terra caiu, o barranco levou, o rio levou, aí nós viemos botar roçado pra

cá, mas já na capoeira, ninguém derrubou mata mais não. Não existia mais

mata, só capoeira já deixada do fogo, daquela época. (S. M. 50 anos,

agricultor e morador da Comunidade Nossa Senhora das Graças).

Estas informações possibilitam uma interpretação dos fenômenos decorrentes das

transformações que se sucedem na comunidade Nossa Senhora das Graças. Pois, como

resultado da última grande enchente ocorrida em 2009 no estado do Amazonas (superior à

maior cheia antes registrada, no ano de 1954), este período marcou uma mudança estrutural

no modo de vida dos habitantes das áreas alagadiças de várzea na região, sobretudo, no rio

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Solimões, onde está localizada a comunidade. Assim como em tempos anteriores, como

relatado na entrevista acima, estas mudanças serão reflexos de uma constituição simbólica

daquilo que representa fisicamente a comunidade nos dias atuais.

A criação da comunidade é resultado de uma articulação de fatores para além da

ocupação humana de determinada porção de terra, é, sobretudo, reflexo de processos

históricos e políticos, da apropriação e legitimidade identitária em ocupar e manter um lugar

de habitação, de estabelecer posse e usufruto da terra. A participação dos movimentos

religiosos na Amazônia, através da Igreja Católica, contribuíram na formação e organização

das comunidades através de incentivos à formação política nas localidades e na construção da

própria noção de comunidade, muito utilizada pelos movimentos eclesiais de base (MEBEs).

Contudo, a formação religiosa dos grupos locais contribuiu no sentido de manter e reproduzir

as relações de sociabilidade determinantes ao padrão de constituição da comunidade enquanto

grupo social coeso, a figura dos Santos católicos, das novenas e missas, foram elementos

cruciais na consolidação das relações intra-comunitárias que culminaram na formação da

comunidade:

[...] A minha tia criou no final dos anos 60 uma novena em honra de Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro e dali foi nascendo de acordo com a fé das

pessoas as celebrações [...]. Com a vinda da equipe pastoral, padre Soares,

chamou atenção das famílias e perguntou: “por que não faz uma

comunidade? Que bicho é esse? Que bicho é a comunidade?” – aí ele deu a

idéia, aí a pessoa começou a se reunir já em termo de comunidade, pra ter

isso, pra ter uma comunidade tem de ter uma diretoria, aí as pessoa foram

falando: o fulano dá pra ser presidente, o cicrano dá pra ser o tesoureiro... E

assim foi nascendo devagar. (L. M. morador da Comunidade Nossa Senhora

das Graças).

[...] Quando começou a comunidade, o pessoal dizia: ah! que comunidade,

muitos disseram o seu Pedro que veio de lá e formou a comunidade, porque

lá pra cima ele já tinha uma comunidade. Aí começaram a orientar nós, e

ficou assim a comunidade, as pessoas ajudando uns aos outros, fazendo o

roçado e agora quase não se vê ajuri. As casas antigamente eram cobertas de

palha, não tinha aluminho e nem de brasiliti, tudo era de palha. Tinha uma

festa da comunidade, em abril, derradeiro sábado de abril, uma festa

medonha, embalava muita gente. As novenas eram na Igreja, toda vida teve

igreja, quando se acabou a do papai, fizeram aí no centro da comunidade. Se

reunia nós todos naquela igreja pra celebrar o culto, celebrar a novena,

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A minha irmã dizia, eles podiam ter

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botado pra padroeira sendo a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, porque

nós já vinha trazendo a novena todos os dias, todas as sexta-feira, aí

mudaram pra Nossa Senhora das Graças, eu não sei por qual motivo, porque

quiseram. (C. P. 72 anos, moradora há 40 anos da Comunidade Nossa

Senhora das Graças).

Compreenderemos esse estado de coisas se considerarmos a estreita ligação das suas

representações religiosas com a vida agrícola, a caça, a pesca e a coleta, e de ambas com a

literatura oral. Os sentidos dados à compreensão das festas como elementos de sociabilidade,

por exemplo, demarcam as transformações socioetárias entre os habitantes e a sociedade

envolvente.

Na medida em que a comunidade busca os mecanismos de interação e sociabilidade

através das festas de santo, cultos religiosos, procissões e demais elementos que agregam os

fatores religiosos com outras dimensões da vida, tende a estruturar enquanto habitus as

condições de reprodutibilidade social das relações intracomunitárias, estabelecendo uma

ordem social8 através de códigos de compreensão internos aos valores e modos de agir.

Para que possamos compreender os aspectos socioeconômicos da constituição da

comunidade Nossa Senhora das Graças é necessário conhecer os padrões de organização

familiar que se expressam no mundo vivido, assim podemos relacioná-los aos tipos de

famílias existentes e, desta forma revelar um pouco da organização sociopolítica local.

De acordo com Wolf (1970), devemos considerar que existem diversos tipos de

famílias, mas que estão estruturadas basicamente em nucleares (compostas exclusivamente

pelos cônjuges e sua prole) ou extensas (que agrupam em uma única estrutura outras famílias

nucleares em número variado), para Chayanov (1974) a família se expressa como unidade de

produção e como unidade familiar, baseada no conceito da unidade de exploração agrícola

8 Neste sentido, Weber (1982) afirma que as ações sociais quando tendem a uma aceitabilidade coletiva, seja

qual forem seus fins e objetivos obedecendo a dada racionalidade, estruturam os tipos de relação social em

determinados contextos. Assim, estas relações procuram se legitimar por uma ordem social estabelecida pelos

tipos de dominação presentes em cada sociedade, demarcando as estruturas sociais, neste caso móveis ou fixas,

estabelecendo-se por meio de aspectos sociais tradicionais, religiosos, carismáticos, etc. ao passo em que se

apresentam reais a determinado grupo social.

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como unidade econômica familiar na qual a família, como resultado de seu trabalho de um

ano, recebe uma simples remuneração do trabalho e mede seus esforços com relação aos

resultados materiais obtidos, reflexos de sua divisão e da suas ações, através de um trabalho

composto de objetos de produção – matéria-prima, instrumentos de trabalho e força de

trabalho humana essencialmente familiar, a unidade de produção familiar produz e reproduz

suas condições de existência (WITKOSKI, 2007).

[...] Aqui trabalha em família, nós trabalha em parceria, com as minhas

filhas, nós trabalha e divide, tudo é de todos, agiliza o trabalho o bem estar é

mais contribuintes um pro outro, [...] Em tempos atrás era mais forte, se

juntava de 18 pra trabalhar. Agora nem todos, hoje todos já tem uma

profissão diferente. Por exemplo, hoje na agricultura são poucos que tá, a

maioria é mais pescador, só os mais velho, aí fica mais difícil. Mas na época

da comunidade, uns 25 anos atrás, nós trabalhava de mutirão em roçais, em

semeação, em colheita tanto de juta, milho ou arroz. E com o tempo foi se

acabando. No meu ponto de vista não se tem mais mutirão porque acho que

dividiu as profissão né? Hoje na área da pesca só tem de ajuda o comprador

do peixe e o pescador, se esse trouxer o peixe pra ele. Aí ele ajuda: compra

uma canoa pra ele pagar; ele só vende pra ele ficá dependente [...] Aí por

isso que eu digo que mudou. Cada um que se ajudava, se dividia tantas

tonelada de arroz de milho, o lucro era do trabalhador, mudou muito. Era

uma forma de cooperativismo. Eu achei que tinha muito mais de facilidade,

mas hoje eu sinto assim que tem gente que num ajuda (E. S., 55 anos,

morador da Comunidade N. S. das Graças).

A relação de trabalho entre os membros da família extensa ou entre os moradores são

denominadas de meia ou parceria segunda a qual são divididos os resultados do trabalho

entre os membros pertencentes à família extensa. Estes tipos de transação geralmente são

estabelecidos através de contratos verbais pelos chefes de família.

Nesse sentido, Fraxe (2000) afirma que, além da cooperação familiar, a capacidade

de trabalho acaba sendo complementada pela ajuda mútua entre os moradores e as

comunidades rurais, onde os mesmos se organizam para o trabalho de várias maneiras, as

principais são o mutirão, troca-de-dia e a parceria ou meia, evidenciadas na fala dos

moradores locais ao mesmo tempo em que percebemos suas mudanças, mostrando como de

fato tais características se legitimam, através de um processo onde a cooperação no trabalho

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irá pressupor várias especificidades. A importância destas relações no trabalho cria

mecanismos que reproduzem a subsistência biológica e social do habitante local além de

fornecer um fundo cerimonial que remonta um processo de sociabilidade e construção

simbólica calcadas no modo de divisão do trabalho e no desempenho da família (WOLF,

1970).

De acordo com Wolf (1970), a unidade camponesa não é somente uma organização

produtiva formada por um determinado número de mãos prontas para trabalhar nos campos;

ela é também uma unidade de consumo, ou seja, ela tem tanto bocas para alimentar quanto

mãos para trabalhar. Assim, na comunidade também podemos verificar que o discurso

traduz-se no fato de que a possível relação que se estabelece entre as atividades desenvolvidas

tanto na pesca quanto em outras atividades que complementam a renda e a subsistência das

famílias pode ser evidenciada aqui pela quantidade de força de trabalho adquirida pela

família, traduzindo-se nos filhos e agregados.

A percepção sobre as transformações no mundo do trabalho é evidenciada nas falas

locais demonstrando fatores de dinâmica nas atividades tradicionalmente desenvolvidas entre

as famílias dos moradores locais. As mudanças na estrutura socioprodutiva, na relação entre

os trabalhadores bem como nas transformações das atividades que historicamente marcaram a

formação socioeconômica da comunidade Nossa Senhora das Graças, são evidenciadas na

fala dos interlocutores demonstrando elementos pertencentes ao modo de vida, ao passo que

caracterizam os fatores de desequilíbrio na apropriação dos recursos naturais e nas

transformações do trabalho coletivo, em comunidade.

Novos elementos estão inseridos no processo de formação e organização da

comunidade Nossa Senhora das Graças, indicando, para além do desenvolvimento de uma

forte organização comunitária, a capacidade de mobilização das lideranças locais. O

fortalecimento político das comunidades rurais da região é resultado da intensificação dos

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processos de legitimidade política, pela busca da participação organizada e da constituição de

identidades sociopolíticas, aumento do capital social na luta pela regularização de seus

direitos, possuindo, desta forma, o objetivo de alcançar maiores benefícios infraestruturais

que atendam uma demanda comunitária, como educação, trabalho e outros elementos:

[...] Hoje em dia a nossa comunidade possui Associação de Pais e Mestres,

que é da escola e tem a Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural

dos Produtores e Moradores da Comunidade Nossa Senhora das Graças. O

estatuto já foi feito, a comunidade foi fundada oficialmente de acordo com as

leis em 31 de maio de 1974 e organizada no dia 29 de dezembro de 1997,

originada de movimento coletivo de produtores e moradores daqui da

comunidade. O estatuto tem vários capítulos, ele foi registrado no cartório de

Manacapuru e a comunidade está oficialmente, pode dizer que ela tem uma

organização formal através da sua regulamentação pelo seu estatuto e de

suas ata. A ata da formação foi protolocada no II Registro de Títulos lá no

Cartório de Manacapuru no dia 15 de agosto de 2006. (S. M. 50 anos,

presidente da associação e morador da Comunidade Nossa Senhora das

Graças).

A percepção sobre as compreensões de mundo vivido, onde o passado serve como

referência de análise para justificar melhores condições de vida, condições mais benéficas que

se fazem presentes na fala dos moradores, repercutem em suas analises sobre as mudanças

ocorridas na comunidade:

[...] Nós entendemo a comunidade como um lugar que tenha união, escola,

igreja, sede. Onde os agricultor e pescador possam congregar juntos, ajudem

uns aos outros, como foi o caso da preservação do Lago Tamanduá. (L. M.

morador da Comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] Ainda hoje, eu digo, essa comunidade é abençoada por essas coisas,

porque no tempo, quando faziam a festa da comunidade, botavam torneio,

tudo, graças a Deus nunca houve uma discussão, por isso, que eu digo, a

gente julga feliz nossa comunidade, porque, tem comunidade que brigam e é

aquela coisa [...] (C. P. 72 anos, moradora a 40 anos da Comunidade Nossa

Senhora das Graças).

O depoimento dos sujeitos locais nos possibilita a compreensão da comunidade a

partir de inúmeras características, aos quais os fatores levantados indicam, em um contexto

mais amplo, a percepção do mundo cotidiano e vivido nas várzeas do rio Solimões. A lógica

de organização de diversos elementos, dentro de um panorama histórico, fez da ocupação da

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Costa do Pesqueiro, um espaço de reprodução do modo de vida voltado para as atividades e

uso dos recursos disponíveis, como no caso da agricultura, da pesca e do cultivo de fibras.

As influências de grupos humanos diferenciados se reconfiguraram em vários

aspectos e possibilitaram um estilo de vida característico daqueles decorrentes de um processo

de ocupação mais recente com as transformações dos ciclos econômicos e, consequentemente,

dos grupos sociais locais, desta forma, marcados sobretudo pelas transformações do modo de

produção capitalista na Amazônia e os aspectos relacionados com as mudanças que

configuraram as relações de trabalho, como o rompimento com determinadas praticas

tradicionais, a aceitabilidade de outros modos de compreensão da vida social e de suas

atividades cotidianas.

As especificidades na formação da comunidade nos permitem marcar não só

regularidades, mas também especificidades da história da própria região. Algumas

características tipológicas são bastante exploradas na literatura sobre as comunidades

amazônicas e ficam explicitas nestes contextos descritos, por outro lado, não há como deixar

de refletir sobre a diversidade existente. A visão monótona de pequenas cidades ilhadas no

espaço e no tempo se rompe diante das várias possibilidades que se apresentam nos relatos

dos moradores destas comunidades.

Diferentes aspectos das relações de poder, da religiosidade, de instituições

tradicionais e dos novos desafios em relação a uma nova lógica de produção voltada para o

mercado citadino. Todos estes fatores perpassam de formas diferentes e específicas no

universo da comunidade.

A dimensão de expansão do modo de produção capitalista não só força os moradores

a redimensionarem suas atividades e a multiplicar o esforço físico, mas também tende a

atrofiar as formas coletivas de organização do trabalho (como as práticas de ajuda mútua

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relatadas), amputando as possibilidades de uma sociabilidade mais viva e de uma organização

comunitária mais estável.

Entregue cada vez mais a si mesmo, o trabalhador é projetado do âmbito comunitário

para a esfera da influência da economia regional, individualizando-se, transformando suas

relações de trabalho e as relações sociais que derivam deste processo, bem como a própria

percepção sobre o uso dos recursos disponíveis. Condição de eficácia e, portanto,

sobrevivência, é a renuncia aos padrões anteriores e a aceitação plena do trabalho integral,

isto é, trabalho com exclusão das atividades outrora florescentes e necessárias à integração

adequada, como tanto relatava os moradores antigos e suas lembranças sobre a fartura nas

regiões onde habitavam.

Para sugerir esse processo, Cândido (1987) recorre a uma profunda análise da

realidade social brasileira, ao assinalar o fato de que, antes, o ajustamento dos grupos

tradicionais se dava em relação a um meio total, em que se absorviam de certo modo,

formando com ele uma espécie de continuidade. Enquanto isso, atualmente, o ajuste se dá

não em relação a este meio global e imediato, mas a vários, imediatos e mediatos, decorrentes

da fragmentação daquele e estabelecimento de novas relações com o mundo externo.

Nas experiências sociais da vida cotidiana relatada pelos moradores locais,

percebemos que o meio representava para o grupo uma totalidade, cujos limites coincidiam

com os da atividade e da mobilidade grupais. Havia entre suas atividades uma correlação

estreita, e todas elas representavam, no conjunto, síntese adaptativa das transformações da

vida econômico-social.

Assim, o trabalho agrícola, a caça, a pesca e a coleta não eram práticas separadas e

de significado diverso – mas complementares, significando cada uma por si, e todas no

conjunto, os diferentes momentos dum mesmo processo de utilização do ambiente mais

próximo. A representação da roça, das águas, do desbarranqueamento causado pelas

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correntezas do rio, os matos e campos, encerrava-se numa continuidade geográfica e

construíam as representações da dinâmica varzeana de acordo com suas percepções sobre o

mundo vivenciado.

A história da comunidade nos é apresentada pelos próprios agentes construtores desta

historia particular que tanto se assemelha às demais histórias da formação dos agrupamentos

humanos na Amazônia, reflexos das condições que propiciaram culturas diferenciadas na

região, um mosaico de conhecimento refletido nos mitos, nas crenças, nas representações do

mundo, do espaço que se torna território para depois virar lugar, lugar de vida, lugar das

memórias, da constituição da organização socioeconômica, do estabelecimento das relações.

1.2 As formas de organização sociopolítica

Pensar sobre o processo de construção das relações sociais dos povos amazônicos é

tratarmos de compreender o complexo sistema de organização política, econômica e territorial

dessas comunidades, que refletem as condições de apropriação do espaço, de adaptabilidade,

e, sobretudo, de subsunção da natureza, mas na percepção de um espaço físico e simbólico,

social, no contexto onde se dão as relações, ou seja, no cotidiano dialético entre homem e

natureza e principalmente entre os próprios homens no sentido em que se verificam suas

práticas socioculturais.

A vida coletiva das populações amazônicas esbarra em condições sui generis de

existência, influenciada por inúmeros fatores socioculturais e ambientais. Nesse sentido, as

estratégias e formas de organização encontradas são determinadas pelas especificidades que

envolvem os grupos sociais locais. Podemos observar essas formas organizativas tanto no

âmbito das instituições criadas pelos próprios moradores – é claro que grande parte dessas

organizações teve influências externas como da igreja etc. – quanto da própria organização

social para a produção (trabalho).

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O espaço comunitário enquanto produto social demonstra as relações sociais e o

estabelecimento das atividades humanas a partir dos diferentes contextos em que estas se

apresentam em seus múltiplos usos do espaço (seja do ponto de vista físico ou simbólico),

compreendido por nós como o palco onde se desenrolam as atividades articuladas pelos

grupos sociais em cada comunidade, entre a constituição das famílias existentes na mesma,

suas atividades e suas formas de organização.

Assim, as formas de organização presentes em Nossa Senhora das Graças aparecem

como estratégias institucionais locais de atuação política no sentido de se fazerem ouvidos,

lutar por condições dignas de existência. No processo de organização social das populações

que habitam as áreas rurais da região, a Igreja Católica, como afirmamos anteriormente,

possuiu e possui papel fundamental, foi a partir de sua atuação junto aos grupos sociais locais

que teve início o processo de organização dos núcleos rurais em comunidades na Amazônia.

Nota-se que o termo comunidade não possuía sentido algum aos habitantes das áreas

rurais da Amazônia antes da interferência da Igreja Católica no cotidiano dos grupos sociais

rurais. Assim, a ideia de comunidade na Amazônia ocorreu por influência da igreja católica

em sua missão pastoral de delimitar politicamente as regiões para o seu trabalho religioso.

Desse modo, percebemos o forte papel da instituição igreja no processo de

organização social na Costa do Pesqueiro II. Atualmente, não só as igrejas católicas assumem

esse papel, mas também as transformações sociopolíticas decorrentes das organizações

religiosas neopentencostais possuem importante papel na consolidação da vida política das

comunidades rurais.

Contudo, o mundo religioso e/ou a religião para as estes grupos sociais não são tão

somente um estado de espírito, mas uma forma de organização política onde as afinidades

religiosas são capazes de mobilizar os grupos sociais no sentido de reivindicarem seus

direitos.

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Atualmente as organizações institucionalizadas por meios legais e burocráticos como

as cooperativas, colônias de pescadores e associações de produtores, ganham espaço surgindo

como um fenômeno social e garantem a participação política e legitimidade no processo de

obtenção de melhores condições de vida, demonstrando que o complexo sistema de

organização social dos grupos sociais das comunidades de várzea se intensifica e domina cada

vez mais a intermediação com a racionalidade do mundo moderno e as formas ditas

tradicionais de seus meios de vida, tal qual a importância da participação dos moradores

locais nestas organizações.

Quando se pretende estudar as manifestações culturais existentes nas comunidades

rurais, é necessário refletir sobre as tradições e costumes que se fizeram prevalecer em

determinados momentos históricos, considerando que as condições sociais e culturais mudam

com o passar dos dias, dos anos, das gerações, não se trata de lamentar a perda da

autenticidade das práticas culturais passadas, mas de entender como elas se manifestam no

presente, como se adaptaram às mudanças socioeconômicas no espaço. Assim nos é possível

Figura 07 - Perfil da participação comunitária em organizacoes

sociais locais.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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fazer uma breve caracterização das organizações, dos lugares, das praticas que envolvem os

moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro II.

A centralidade da comunidade é formada pela igreja, pela escola, sede comunitária,

pela casa do líder comunitário e pelo campo de futebol, como lugares que propiciam construir

e reconstruir os laços de sociabilidade entre os moradores, e nos indicam a participação em

assuntos de interesse comum aos envolvidos.

A organização espacial da comunidade também pode ser compreendida pela

distribuição das atividades produtivas e pelos usos dos recursos naturais disponíveis no

entorno das moradias, dos ambientes e da formação do seu território.

Estas dimensões delineiam o mundo vivido, e reproduzem o modo de vida rural da

várzea. O trabalho é indissociado do mundo vivido, e por ser uma das representações do real,

Figura 08 – Croqui da Comunidade Nossa Senhora das Graças. Nota-se no croqui a divisão espacial

das áreas onde os moradores desenvolvem suas atividades, assim como a centralidade da própria

comunidade – por exemplo, a casa do Presidente da Comunidade (Sebastião), a igreja, a escola e o

Centro social.

Fonte: BENIZ, Gabriel, Arquivo do Núcleo de Socioeconomia, 2006.

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ele condiciona as relações de sociabilidade, a disposição racional da organização e uso dos

recursos, e aparece como elemento constitutivo da vida e do espaço que compreende a

moradias dos habitantes da comunidade.

A escola da comunidade, com a denominação de Escola Municipal Getúlio Vargas,

está localizada no centro da comunidade entre a igreja e o centro social. A escola foi

construída pela Prefeitura Municipal de Manacapuru, atualmente vem passando por reformas

estruturais que aumentaram consideravelmente seu espaço, pois antes possuía apenas uma

dependência considerada desconfortável, na qual também estava localizada a biblioteca.

Durante o inverno (período de chuvas intensas na região), os alunos sofrem com as

acomodações da escola, uma vez que costuma entrar água pelas portas e janelas. Atualmente,

há duas professoras lecionando na escola, sendo que uma possui ensino superior incompleto e

Figura 09– Croqui georeferenciado das moradias e das atividades desenvolvidas na comunidade.

Fonte: Centro de Excelência Ambiental da Petrobras, CEAP/PIATAM, 2007.

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outra possui ensino superior completo. Além das professoras, há uma merendeira voluntária

que serve o lanche para os estudantes. Em 1999, foi criada uma Associação de Pais e Mestres,

reunindo todos os meses os pais e mães dos alunos.

Figura 10 – Escola e centro social da Comunidade Nossa Senhora

das Graças.

Fonte: RAPOZO, 2008.

A comunidade Nossa Senhora das Graças não possui posto de saúde, tal como é

possível observar na maioria das comunidades da Amazônia, no entanto, possui agentes de

saúde. Estes agentes têm a função de fornecer medicamentos para as pessoas, orientá-las no

uso desses medicamentos, bem como nos cuidados necessários com a saúde, desde a higiene

doméstica com as crianças e idosos.

Além dos problemas de saúde, outras dificuldades são recorrentes como os

problemas relacionados à atividade produtiva e comercial, uma vez que os moradores ainda

dependem do antigo sistema de comercialização, no qual o atravessador representa o principal

obstáculo. A comunidade não possui energia elétrica regular, existe uma pequena usina

termelétrica abastecida por combustível cedido pela prefeitura local, funcionando somente 5

horas por dia das 18:00 horas às 23:00 horas que beneficia somente uma pequena parte das

casas localizadas no centro da comunidade, as demais moradias ou não possuem nenhum tipo

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de energia elétrica ou se utilizam dos pequenos geradores a diesel de uso particular, os

denominados motores de luz.

Figura 11 – Usina termelétrica local.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Possuindo uma infraestrutura razoável quando comparada com outras comunidades

pesquisadas, Nossa Senhora das Graças apresenta a existência de sede comunitária, escola,

energia elétrica parcial, capela religiosa. O caráter de organização e disposição dos grupos

familiares também reflete a organização formal e informal em Nossa Senhora das Graças.

Quando a família se mantém num mesmo local ou comunidade, cuja base de organização do

grupo é a vizinhança, as relações de parentesco e compadrio formam a organização social

baseada nas relações interfamiliares, esta organização pode ser entendida como grupo local.

Esta caracterização organizacional foi recorrente no processo de formação da

comunidade Nossa Senhora das Graças, na medida em que a maioria das famílias que habita a

comunidade migrou na década de 60, por influência de uma família, constituindo uma

comunidade com uma nova estrutura organizacional, adaptando-se e transformando-se a esta

nova realidade socioambiental.

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É possível, dessa maneira, verificar que o processo que leva a ação das atividades de

organização e participação política dos moradores de Nossa Senhora das Graças se concentra

na questão das atividades produtivas que se relacionam com o vínculo comunitário; e, para

isso, a importância de estabelecer a procura por melhores condições de vida, a igreja, a

associação de pescadores, a escola, são elementos significativos e estruturais que congregam e

produzem o direcionamento coletivo das questões relativas a seus modos de vida.

A prática das pescarias contribui na produção e significação dos sentidos,

organizando as relações humanas e sua relação com a natureza. Ocorre, portanto, o processo

de junção de várias informações sobre elementos da natureza que vão orientar as práticas

produtivas e, neste caso, colabora para o desenvolvimento das atividades sociais.

A vida social na comunidade é preservada com os cultos religiosos católicos e

evangélicos realizados aos domingos, com os batizados, casamentos e eucaristia, sem

demonstrar explicitamente uma diferenciação ou problemas relacionados com o credo

religioso local dos moradores

Figura - 12 Situação sobre a participacao religiosa dos

comunitários.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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Reuniões na sede da comunidade ainda são realizadas com frequência pelo líder da

associação, no entanto, práticas antigas como os mutirões e ajuris não são mais encontradas

com frequência na comunidade quando se fala das atividades relacionadas à agricultura,

diferente da pesca, onde este tipo de relação ainda é importante como veremos.

Figura 13 – Igreja católica da Comunidade Nossa Senhora das

Graças, onde são realizados os cultos.

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 14 – Reunião no centro social da Comunidade Nossa

Senhora das Graças para explicar sobre o que seria a pesquisa e

seu desenvolvimento.

Fonte: Pesquisa de campo, 2008.

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Embora não tenha um clube de mães na comunidade, suas moradoras costumam se

reunir para a prática de atividades artesanais, muitas costumam confeccionar cortinas, redes e

peneiras. Esta atividade costuma ser realizada apenas para o uso doméstico, não sendo

destinada à comercialização.

As atividades realizadas e organizadas entre os jovens são, na maioria das vezes,

práticas esportivas, torneios de futebol masculino e feminino além de vôlei. De acordo com a

professora da Escola Getúlio Vargas, os jovens da comunidade Nossa Senhora das Graças

estão perdendo cada vez mais o interesse em permanecer trabalhando e estudando na

comunidade, muitos estão se preparando para ingressar nas universidades, enquanto outros

possuem planos de ingressar na carreira militar ou simplesmente ir a Manaus em busca de

emprego.

Por essa razão, os tradicionais festejos realizados na comunidade estão perdendo

cada vez mais o brilho, embora ainda sejam realizadas festas religiosas como: as festas em

homenagem a Nossa Senhora das Graças e São Francisco. No entanto, estas festas não contam

mais com a participação significativa dos moradores da comunidade, muitos perderam o

interesse em participar, uma das razões é uso de bebidas alcoólicas e músicas altas, salientam

os moradores.

[...] em outros tempos, as festas possuía maior representatividade, eram

organizadas por todos os moradores, de forma que raramente havia conflitos

e discórdias. (O. M. morador da comunidade Nossa Senhora das Graças)

Sem dúvida, muitas mudanças podem ser verificadas nas comunidades amazônicas,

buscamos constatar a persistência ou não destas transformações, uma vez que estas

informações constituem instrumentos imprescindíveis para entender a complexa organização

sociocultural das comunidades amazônicas.

O interesse dos estudos relacionados à dinâmica cultural está no entendimento de

como as manifestações culturais são produzidas e não apenas quais são elas. Na comunidade

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Nossa Senhora das Graças as famílias estão perdendo cada vez mais o interesse pelos festejos

comunitários religiosos da igreja católica, embora grande parte das famílias locais seja

identificada como católica. Uma das razões está no fato de os festejos não serem organizados

com os mesmos ritos, entusiasmos e tradição de antes, a falta, pode ser justificado pela

ausência e/ou participação diminuta dos jovens nestes eventos sociais.

No entanto, outros tipos de festividades são realizados na comunidade, tendo outros

grupos participantes, as novas gerações são motivadas para a realização de novas atividades.

De acordo com um dos moradores, as festas sociais continuam sendo realizadas na

comunidade, no último sábado do mês de abril, envolvendo inúmeros elementos, os times de

futebol, a Igreja, as festas dos Santos. Estas festas costumam ser organizadas pelos jovens da

comunidade, uma vez que o futebol ou a pelada, como eles mesmos dizem, constitui um dos

passatempos preferidos dos moradores, pois eles se reúnem todos os dias para a realização

desta prática esportiva.

As manifestações sociais da comunidade, traduzidas aqui por meio de sua

organização para as atividades desempenhadas, caracterizam a reprodução social de seus

costumes e apresentam-se como habitus (BOURDIEU, 2003) enquanto principio criador, re-

criador e estruturante da organização comunitária, refletindo o nível de atuação e participação

dos moradores.

A vida social em Nossa Senhora das Graças atualmente, é reflexo do

desenvolvimento histórico que propiciou, por meio das forças internas, sociopolíticas,

culturais e econômicas, a dimensão como a comunidade se apresenta para os outros e como

ela representa a si mesma por meio do mundo vivido por seus agentes sociais, as famílias

como unidades de produção e unidades de vida compartilhada, os moradores que

desenvolvem suas atividades por meio do uso dos recursos naturais disponíveis, sem contar, é

claro, que, as representações, são atribuídas o simbólico, o imaginário, que se constituem

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como fenômenos das ações materiais do real, da vida em seu sentido mais objetivo e

subjetivo, na constituição de um mundo relacionado com o mundo moderno (por se tratar que

a própria comunidade faz parte deste mundo), enfim na construção diária da vida.

No limiar destes processos, resulta dizer hoje que a comunidade Nossa Senhora das

Graças possui um raio de abrangência significativa quando se fala da organização das

atividades pesqueiras, e, sobretudo, quando se verifica o nível de participação política dos

moradores e trabalhadores da pesca. Eles são, em sua maioria, comprometidos e atuantes

como sócios nas representações políticas organizadas, dentro e fora da comunidade, como

verificamos na pesquisa, no caso de suas participações em entidades como na Associação dos

Moradores e Trabalhadores Rurais da Comunidade, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Manacapuru, na Colônia dos Pescadores de Manacapuru que servem como interface com seus

interesses comuns e acessíveis.

Suas ações demonstram o nível de organização e legitimidade política para com as

atividades exercidas na comunidade, pois tornam-se processos contínuos que levam à procura

de melhoria e soluções na qualidade de vida dos moradores na comunidade, e também

contribuem para a sua legitimação frente ao Estado em razão das suas atividades

profissionais.

1.3 Vida e Labor: A constituição das atividades humanas na comunidade

Nossa Senhora das Graças

As atividades desempenhadas pelos habitantes das comunidades rurais na Amazônia

apresentam complexos sistemas de organização em suas técnicas produtivas, permeadas por

relações de trabalho configuradas através de vínculos sociais, geralmente comunitários. Estas

condições se devem ao fato de estas famílias constituírem uma economia de subsistência, em

razão da dificuldade de escoamento de sua produção e mercado para a sua comercialização.

Além disso, esta rede comercial está frequentemente dependente de pequenos grupos de

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pessoas, nesse caso, atravessadores, donos de frigoríficos ou barcos de pesca, pois não

possuem as condições para a venda direta de seu trabalho, os moradores raramente recebem a

quantia justa pela sua produção, tornando-se dependentes deste sistema.

No mundo da vida rural, onde o trabalho não é dissociado da própria condição de

existência humana e sim uma de suas dimensões complementares, é possível pensar numa

complementaridade em que subjaz a própria condição humana. As atividades desenvolvidas

nas várzeas do rio Solimões, como a pesca, entre outras, refletem dimensões significativas da

vida, da ação humana.

Contudo, antes de tornarem-se socializadas, as relações humanas produzem

expressões significativas de existência humana, do ser social enquanto ser vivo. Hannah

Arendt (2000), a partir dos conceitos de labor e de trabalho, delimita as manifestações sociais

do mundo humano em sociedade, afirma que o labor condiz como processo vital à própria

condição de subsistência e reprodução material, e o trabalho diz respeito à fabricação do

mundo artificial das coisas, contido na imagética constituída socialmente pela ideia humana

que reproduz um mundo de durabilidade das coisas, um mundo onde as ações humanas

ultrapassam a própria condição de viver e transformam-se para além, em um imperativo da

vida e da dimensão material e simbólica do homem.

Neste sentido, a vida enquanto labor e trabalho se traduz pela cultura e modo de vida

na várzea amazônica, das manifestações sociais, da objetividade e manutenção da existência

humana por meio dos recursos disponíveis ao seu meio envolvente, assim, antes de

reproduzirem as satisfações enquanto determinados grupos sociais, os indivíduos necessitam

reproduzir a vida enquanto reprodução biológica.

A partir destas dimensões concretas sobre as atividades desempenhadas pelos

trabalhadores da pesca e ao mesmo tempo moradores da comunidade Nossa Senhora das

Graças, são pensados aqui dimensões intercaladas entre labor e trabalho, ora complementares,

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ora divergentes, mas que fazem parte do mundo vivido do homem da várzea, e se traduzem

numa plasticidade singular ao próprio sentido de existência e em sua relação com o ambiente.

No sentido que Arendt (2000) nos apresenta as singularidades do próprio mundo

concreto, é possível pensar que estes indivíduos se utilizam das terras, florestas e águas para

sua existência física e social tanto como homo faber, o fabricante e artífice do mundo e da

durabilidade das coisas, assim como animal laborans, que se mistura com o seu mundo

quando o consome, o reproduz de uma outra forma que seja pela pura necessidade de

consumir e desgastar o mundo físico, ou seja, da disponibilidade de seus recursos.

Pensar a partir destas possibilidades nos indica que o mundo social do trabalho da

pesca condiz com duas irremediáveis e inseparáveis vertentes: a do uso das coisas e a do

consumo das coisas. Ambas requerem, para legitimar-se enquanto representantes do mundo

real, sua própria condição criadora e reprodutora da existência humana, sejam pertencentes à

dimensão das coisas onde tudo é consumido em prol da necessidade e da subsistência, seja

pela dimensão onde o fabricar e o fazer dão vida à durabilidade do mundo e da existência de

coisas que movem o mundo das atividades humanas, ambas também contribuem para as

representações do mundo vivido do homem.

Assim nos é possível apresentar aqui como estas situam-se como perspectivas

complementares no mundo do trabalho da pesca em Nossa Senhora das Graças, onde labor e

trabalho também se misturam, mas deixam evidencias profundas quanto aquilo que pode ser

encontrado de maneira distinta e não somente associadas.

Pensando na ideia de que o labor assegura a sobrevivência humana e a vida em

espécie e, como faz parte da dimensão material do mundo, ele jamais pode estar dissociado do

ambiente e da natureza do mundo real. Assim, o que quer que faça parte do mundo humano é

posto como pertencente ao seu mundo, tudo que é trazido para dentro do mundo humano é

transformado em sua condição sob sua existência (ARENDT, 2000).

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No mundo vivido das comunidades rurais da Amazônia, esta prerrogativa se torna

um imperativo do mundo real, à necessidade da subsistência não cabe a mera reprodução

biológica (como seres animais que também somos) tampouco pela utilidade das coisas que

nos possibilitam sobreviver como espécie, elas se equacionam para além das condições

primárias de o homem adquirir as condições mínimas para sua existência (MARX, 2002),

porque se incorporam ao mundo do homem, no mundo de suas representações, daquilo que é

consumido e que é posto como condição humana, “a condição humana não é o mesmo que a

natureza humana, pois tudo que corresponde às capacidades humanas não se assemelham à

natureza humana, a condição, em grande parte, ainda é produzida pelos próprios humanos e

pela natureza dada à sua condição de vida” (ARENDT, 2000, p.18).

A comunidade Nossa Senhora das Graças possui a atividade pesqueira como

atividade relevante, mas é necessário demonstrarmos que os moradores nos seus espaços de

moradia trabalham em outras atividades, plantando roças, cultivando hortaliças, fibras,

possuindo a criação de animais, voltadas diretamente para o consumo e em alguns momentos

para a comercialização, o que garante a possibilidade de subsistência local a partir de

atividades que não os caracterizam somente como pescadores, pois a importância de

complementar a unidade de produção familiar por parte de atividades polivalentes é uma

característica significante do mundo rural amazônico, embora a agricultura e a criação de

animais não estejam entre as principais fontes de renda da comunidade, elas ainda possuem

relevante expressividade devido à função que ocupam.

Na comunidade Nossa Senhora das Graças, a dimensão do Labor condiz com o fato

de que tudo o que é consumido e faz parte do mundo natural garante a reprodução da vida e

garante a reconstrução dos laços de sociabilidade. Arendt (2000) afirma que a produtividade

do labor só produz ocasionalmente objetos, sua preocupação são os meios de sua reprodução,

o labor produz vida e não outra coisa e que o resultado do labor é consumido quase tão

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depressa quanto o esforço despendido. Isto implica dizer que, neste caso, ele suplanta ou

interpõe-se à atividade da pesca enquanto atividade profissional ou que busca a garantia da

existência humana por meio de outras estratégias que não estão ligadas diretamente ao labor,

mas a pesca garante, ao mesmo tempo, a dimensão do labor, pois insere-se como parte

indissociável da reprodução humana na várzea, onde o consumo do pescado é vital e

complementar como mantedor do balanço entre proteínas e carboidratos que fazem parte da

constituição da dieta alimentar do camponês amazônico.

A pesca se insere como uma das atividades importantes que assegura a vida, e torna-

se fundamental com as outras atividades introduzidas no cotidiano da comunidade, como a

criação de animais de grande porte, por exemplo, o gado, e a criação de animais de pequeno

porte (galinhas), que servem também como uma alternativa ao consumo de carne que não seja

a do pescado, e dificilmente, como fonte de renda, a plantação de pequenas roças com uma

produção voltada para o consumo da farinha a partir da mandioca, dos canteiros que dão o

sabor e o tempero à comida na várzea, assim como as árvores frutíferas que possibilitam o

balanceio entre o que é consumido.

Figura 15 – Armazenagem do pescado para

o consumo imediato.

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 16 – Pescado levado para ser

consumido em casa.

Fonte: RAPOZO, 2008.

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Figura 17 – Atividades da pesca comercial na Costa do Pesqueiro.

Fonte: RAPOZO, 2008.

A criação de animais também pode ser acentuada como um dos elementos

constitutivos da unidade de produção familiar, nos quintais florestais das comunidades,

segundo Fraxe (2006), os agricultores familiares possuem criações de animais de pequeno

(aves), médio (suínos, caprinos e ovinos) e grande porte (gado). Na época da seca em área de

várzea, estes animais são criados de forma extensiva. Além da criação dos animais

domésticos, há também a criação de animais silvestres. Foi observado, em algumas

residências na comunidade pesquisada, que algumas espécies são criadas para alimentação e

outras são criadas como animais de estimação.

Na comunidade Nossa Senhora das Graças situada em área de várzea, as famílias que

criam somente animais de pequeno e médio porte improvisam marombas na época da cheia

ou fazem instalações suspensas para acomodar seus animais que, em época da seca, são

criados de forma extensiva. Dos animais criados na comunidade pesquisada, destacam-se as

aves e os bovinos.

A produção obtida da criação de animais nos quintais agroflorestais é destinada

exclusivamente para subsistência da família (FRAXE 2006). No entanto, os agricultores

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comercializam seus animais na própria comunidade quando há um aumento nas criações ou

em ocasiões especiais como nas festividades promovidas nas comunidades. Em área de

várzea, a redução do plantel é programada de modo a atender as limitações de local para

acomodar e de oferta de alimento para as criações durante o período da cheia. Os agricultores-

criadores constroem apenas pequenas instalações suspensas e/ou flutuante para acomodar suas

matrizes neste período.

Figura 18 – Casa de farinha, local utilizado

para a produção da farinha de mandioca como

fonte de alimentação principal

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 19 – A criação do gado é uma alternativa

para o consumo de carne na comunidade.

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 20 – A criação de aves de maneira

extensiva nos terreiros da casa também

são uma fonte de consumo indispensável

as comunidades rurais

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 21 – Nos canteiros suspensos são encontrados os

temperos da alimentação nas comunidades.

Fonte: NUSEC, 2008.

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Também é possível verificar que a complementaridade das atividades destinadas ao

consumo repercutem sobre as atividades exercidas junto com a pesca comercial. As atividades

produtivas dos moradores da comunidade revelam a racionalidade no uso dos recursos a partir

das atividades polivalentes desenvolvidas na várzea. Esta dimensão possibilita, do ponto de

vista econômico, verificarmos, por exemplo, que a renda média obtida pelos moradores na

comunidade Nossa Senhora das Graças chega a ser de R$ 207,61 mensais (dados obtido

conforme entrevistas em pesquisa de campo, 2008), resultado de uma série de atividades em

conjunto executadas conforme a finalidade objetivada em seus trabalhos ligados à

comercialização de determinados produtos.

As atividades que pertencem à constituição do real e que garantem a reprodução do

modo de vida na várzea transparecem na comunidade a partir da racionalidade do uso de seus

recursos disponíveis e pela capacidade de garantira manutenção do modo de vida através do

cálculo feito entre a capacidade de trabalho a partir da unidade de produção familiar.

Neste sentido, demonstramos que a dimensão do labor não produz interface somente

com a dimensão de mera existência, ARENDT (2000) afirma que, das coisas tangíveis as

menos duráveis são aquelas necessárias ao processo de vida, ou seja, são as relacionadas com

o labor – elas possuem como meio de vida, associar a criação de pequenos animais, a

Figura 22 - Frequência relativa ao tipo de

atividade desenvolvida junto às atividades da

pesca.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo,

2008.

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plantação de roças, a manutenção de canteiros e quintais, como processos sociais que

traduzem a interface entre cultura e o modo de vida na Amazônia, e possuem um sentido

superior à reprodução biológica, pois torna-se uma maneira de pensar o espaço como lugar de

vida, e assim racionalizar esses lugares e fazê-los pertencer à realidade de seus mundos

socialmente construídos, onde a dimensão do terreno para o roçado é singular, distinto e

nunca associado ao espaço de criação do gado ou da galinha, muito menos ao do canteiro.

Estes elementos nos possibilitam pensar que o consumo produtivo é antes condição

fisiológica do homem, onde “tudo o que labor produz destina-se a alimentar quase

imediatamente o processo de vida humana, e este consumo, regenerando o processo vital,

produz nova força de trabalho de que o corpo necessita para seu próprio sustento” (ARENDT,

2000, p.111).

Podemos refletir que é, na várzea, onde a dimensão do mundo das coisas que são

consumidas se inserem na dimensão das representações do mundo associado à domesticação

da natureza através da criação de animais e de plantas como um processo que demarca o

mundo vivido e apresenta a maneira ribeirinha de viver na várzea. São modelos estruturados e

estruturantes de perpetuação da organização social humana caminhando historicamente

paralelas à adaptação reguladora, do que um mero processo que condiz com o uso dos

recursos enquanto meio de manter-se vivo e garantir força de trabalho. Fica claro que, para

além dos fatores que indicam apenas a animalidade do homem, a vida e o modo de produzi-la

se apresentam como um diferencial na várzea e objetivamente na comunidade Nossa Senhora

das Graças, isto parece contrapor-se à afirmação de que

Os produtos do labor, produtos do metabolismo do homem com a natureza,

não duram no mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele, e a

própria atividade do labor, concentrada exclusivamente na vida e em sua

manuntencao, é tão indiferente ao mundo que é como se este não existisse

[...] O animal laborans, compelido pelas necessidades do corpo, não usa esse

corpo livremente como o homo faber utiliza as mãos, que são os seus

instrumentos primordiais (ARENDT, 2000, p. 130-131)

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A vida na comunidade Nossa Senhora das Graças parece indicar que o metabolismo

entre homem e natureza tão evidente enquanto pertencentes à capacidade de construir-se

como elementos e meios de produção indissociáveis à reprodução humana, duram o suficiente

no mundo vivido e consumido ao ponto de possibilitarem não só a manutenção da força de

trabalho e sim a racionalidade necessária à compreensão da importância e constituição de um

mundo necessário ao consumo que difere do mundo necessário ao trabalho, como fonte

estratégica de aquisição de outros recursos que também possibilitam a contribuição para a

reprodução da vida por outro viés. Existe (de fato) mais calculabilidade no mundo racional

das coisas do animal laborans do que aparentemente é possível perceber.

É claro que nossas observações sobre as formulações teóricas de Arendt (2000) sobre

a sua concepção da noção de labor e de animal laborans, são tidas como um parâmetro de

análise sociológica para pensar o mundo do trabalho e o mundo vivido – creio indissociáveis

no mundo rural – na complexidade que é a Amazônia de maneira diferenciada em nossa

pesquisa, distanciando-se das margens do pensamento arendtiano e a concepção pura de labor

e como este é discutido como um dos pontos centrais pela autora.

Se de fato o labor pode ser pensado enquanto categoria sociológica para

compreender uma das dimensões da vida rural da várzea, este só pode ser realizado

considerando os elementos constitutivos da vida na várzea e na Amazônia como um todo a

partir de um conjunto de processos que caracterizam a reprodutibilidade humana e de um

mosaico singular construído pelos grupos sociais rurais da Amazônia, pois o processo de

trabalho, de labor, e a dimensão estratégica de uso dos recursos naturais, são elementos que se

chocam frente à durabilidade do mundo e do homem.

Em Nossa Senhora das Graças, a singularidade da dimensão lógica e simbólica de

produção da vida não foge a esta regra, tanto é possível percebê-la que a dimensão do labor se

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constitui como a base para a sustentação das atividades pesqueiras em quanto trabalho, pois

garantem uma das partes indispensáveis na constituição do mundo material e simbólico.

Assim o cultivo do solo ou seu uso, assim como o uso das águas, não se dão apenas como

meios de subsistência humana, no decorrer do processo, constrói-se um mundo, um mundo do

trabalho e do labor, das atividades humanas.

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Capítulo 2 – As transformações socioeconômicas da pesca

Pensar o desenvolvimento e as transformações socioeconômicas do modo de vida

dos grupos sociais na Amazônia, sobretudo, quando relacionados às atividades da pesca

enquanto fenômeno investigativo, requer, para além de um entendimento compreensivo da

história, encontrar os mecanismos sujeitos a uma análise sobre determinados ângulos diante

das transformações político-econômicas do Estado brasileiro.

Pretendemos, neste capítulo, introduzir uma reflexão acerca da formação do Estado

brasileiro frente às políticas de modernização da sociedade, abordando quais as suas

consequências diante da tomada de decisão em adotar uma perspectiva de desenvolvimento

econômico que de fato permitiu tardiamente uma preocupação com as questões ambientais,

traduzindo-se como um momento mais recente da nossa sociedade.

Neste sentido, apresentamos uma visão de como estas ações refletiram através das

políticas de consolidação nacional dos grandes programas de valorização (econômica) da

Amazônia, delineando como estes elementos tencionaram de forma ampla a relação entre os

grupos sociais rurais e as formas de uso dos recursos pesqueiros9, as transformações

socioprodutivas da atividade regulamentada da pesca, e a consolidação/evolução de uma

legislação que regulamentaria o acesso aos recursos pesqueiros.

Os discursos políticos a partir das temáticas sobre desenvolvimento, sustentabilidade,

desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento aparecem enquanto frutos das condições

históricas engendradas a partir de determinada situação social, envolvendo as transformações

socioeconômicas do mundo, a crise racional do esgotamento não só dos recursos naturais, mas

também de uma esgotabilidade do saber técnico-científico que levaram a uma

9 A noção de recursos naturais utilizadas aqui implica na condição de pensar a pesca enquanto recurso natural

renovável. Para Vieira e Weber (2002) isto implica no fato de que sua reprodução não é forçada ou controlada

pelo homem, sendo usados, geridos, mas não produzidos, como a fauna selvagem aquática e terrestre.

considerando que recursos renováveis são recursos vivos ou em movimento, onde presença da variável implica a

adoção de enfoques centrados na noção de fluxo e variabilidade, não implicaria necessariamente em uma

interpretação biofísica, pois a condição de renovabilidade pode ser analisada também como um fenômeno social

complexo, enquanto categoria construída mediante a interação social (VIEIRA E WEBER, 2002).

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complexificação e insurgência de saberes produzidos como ausentes10

em esferas não

dominantes da ordem cultural e econômica da sociedade global.

A simplificação dos discursos economicamente dominantes cunharam, para o cenário

amazônico, dimensões estratégicas de desenvolvimento perpassando por vários setores da

economia local, digo dimensões econômicas de desenvolvimento ao afirmar que, no campo

das contradições sociais, pouco se fez ou se resolveu para solucionar os velhos dilemas

desenvolvimentistas entre economia, ambiente e sociedade ao longo da formação do Estado

brasileiro.

A relação antagônica entre economia e meio ambiente se traduz na Amazônia como

reflexos de um contraditório sistema de compreensão das dimensões de desenvolvimento da

sociedade brasileira, onde as esferas de ordem política, ao passo que externalizavam os fatores

ambientais e internalizavam por vias do desenvolvimento os fatores econômicos11

, sujeitaram

grupos sociais, determinados setores de atividades de trabalho fundamentais à economia

regional e modos de vida tradicionais.

Nesta perspectiva, compreender a formação do Estado moderno brasileiro e como se

introjetam os discursos sobre a questão ambiental nas esferas políticas e econômicas em

determinado momento histórico, é um fator crucial para pensarmos do ponto de vista macro e

micro-sociológico, as dimensões do subdesenvolvimento, neste caso, a experiência da

sociedade brasileira, e a legitimação dos discursos consolidados enquanto estratégia política

sob as transformações de determinados setores pertencentes ao modo de vida específico dos

grupos sociais da Amazônia.

10

Boaventura de Sousa Santos (2006), ao desenvolver a ideia de uma sociologia das ausências retoma uma

perspectiva de pensar criticamente as condições interpretativas dos fenômenos sociais globais para além das

epistemologias do Norte globalizado, que se legitima enquanto ciência e discurso dominante ao produzir como

ausente as experiências sociais e o conhecimento produzido nos países periferizados do sul, que hoje insurgem

como uma sociologia das emergências ao se deparar com a crise produzida por um saber racionalizado, esgotado

frente à crise social da razão nas sociedades contemporâneas. 11

Ver Leff (2000) sobre a racionalização do capital ou a reapropriação social da natureza.

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As transformações socioeconômicas da atividade pesqueira na Amazônia brasileira

são pensadas sob a perspectiva da dinâmica das relações de trabalho instituídas e resultantes

dos modelos de desenvolvimento adotadas que intensificaram ao mesmo tempo a sobre-

exploração dos recursos pesqueiros, e tornaram latentes os conflitos socioambientais na

medida em que o Estado não conseguia ver-se situado diante das contradições sociais

causadas pelo projeto de modernidade12

acreditado.

Neste sentido, apresentamos que os modelos de desenvolvimento adotados para a

Amazônia brasileira da segunda metade do século XX possibilitaram outras formas de ação e

de apropriação dos recursos naturais locais, transformando as relações sociais de produção e

as forças produtivas do setor pesqueiro.

2.1 A queda de Ícaro ou a profecia do colapso: Estado, (sub)desenvolvimento e as

políticas de uma modernização forçada

A sociedade moderna, a partir de uma perspectiva weberiana, incide sobre o conceito

de racionalidade e a maneira como atribui a esta os critérios que demarcam o surgimento do

Estado moderno frente à economia capitalista, sua organização empresarial e sua estrutura

burocrática. Sua preocupação com a institucionalização da racionalidade, em relação aos fins

de organização burocrática da ordem social moderna das sociedades, demarcará um dos

critérios de diferenciação e consolidação do Estado moderno.

Para Weber (1991), o Estado racional representa a figura moderna da formação dos

Estados nacionais, sendo a única estrutura capaz de dar suporte ao desenvolvimento do

capitalismo moderno, tendo como base a composição de uma estrutura administrativa

fundamentada na burocracia profissional e no direito racional.

12

Modernidade e Modernização são pensados aqui, inicialmente, de maneiras diferenciadas, mas que dizem

respeito ao mesmo aspecto central, as transformações sociais. Para Berman (1986) a modernidade traduz-se

enquanto um tempo histórico, como uma fase, correspondendo a transformações do pensamento das sociedades,

seus costumes, hábitos e valores; Modernização se caracterizaria enquanto processo de intensificação das

transformações marcadas pela dimensão racional do modo de vida moderno.

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O Estado moderno é a estruturação de um espaço público ampliado, com a

separação dos possuidores individuais ou grupais de seus instrumentos

privados de força, da neutralização ou erradicação da administração

particular da justiça, do cerceamento da gerência autônoma e arbitrária da

emergência da coisa pública, isto é, da desprivatização dos assuntos de

interesse geral, junto com a ampliação do seu âmbito de

abrangência.(WEBER, 1991 p. 1048)

Desta forma, a racionalidade dos fins e meios demarca a constituição característica

da modernidade para Weber, este fato se consolida pela racionalização social da vida

instituída e em processo de modificação da compreensão do mundo pelos indivíduos vivendo

em sociedade, penetrando em todas as esferas sociais com a ajuda da técnica.

No que concerne ao entendimento da categoria de Modernização e como este aspecto

delineia a compreensão das categorias de análise pretendidas aqui sob a interpretação destes

fenômenos na sociedade brasileira, Habermas (1990) a considera como um feixe de processos

cumulativos que se reforçam mutuamente “através da formação de capital e mobilização de

recursos, ao desenvolvimento de forças produtivas e ao aumento da produtividade do

trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à formação de identidades

nacionais, à expansão de direito de participação política, de formas urbanas de vida e de

formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas” (HABERMAS, 1990,

p.14)

O processo de modernização do Estado brasileiro, as experiências de transição

econômica de uma economia agrário-exportadora para uma economia industrial em ritmo

acelerado (ou desenfreado) erigiram o discurso dominante entre o início do século XX até as

últimas décadas do mesmo, sobre a priorização dos fatores econômicos como resposta aos

problemas sociais, contudo a modernização do Estado no início do século passado é reflexo

dos processos de racionalização da sociedade na tentativa de buscar a eficácia do sistema

produtivo, da administração pública das instituições políticas.

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Neste sentido, a urbanização e a industrialização forjadas, sobretudo a partir da

década de 30, apresentavam fenômenos de transformação políticas e econômicas, demarcando

segundo Ianni (1999), uma ruptura estrutural na sociedade à qual passava a crise de transição

da sociedade brasileira.

O fenômeno das mudanças sociais frente às condições do país fora marcado por uma

intervenção cada vez maior do Estado na economia, principalmente no campo das condições

estratégicas de desenvolvimento enquanto a consolidação dos ideais de nação. As teorias do

planejamento deram suporte às políticas de desenvolvimento que buscavam o crescimento

econômico.

A abordagem desta transição histórica é tomada como objeto central dos estudos de

Florestan Fernandes em Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1969), delineando os

temas correlacionados com o desenvolvimento econômico do Brasil e a estratificação social

dos indivíduos nas sociedades urbanas industriais.

A questão do subdesenvolvimento como categoria estrutural para compreender a

noção de capitalismo dependente frente à estruturação de um regime de classes na América

Latina é crucial para empreender como fenômeno investigativo os aspectos daquilo que o

autor denominou de revolução burguesa.

Na situação dos países subdesenvolvidos, com frequência a ação do Estado é

duplamente contida pela ordem legal que ele encarna. De um lado, os

modelos de ordenação e de legitimação do poder político, transplantados dos

países avançados, oferecem margem a sérias ambigüidades e até à

contradições pitorescas no ajustamento da ordem legal às condições reais de

existência social. De outro, a escassez de recursos afeta as finanças e

deteriora a capacidade de atuação do Estado, conseqüências agravadas pela

indisciplina administrativa e pela dissipação improdutiva reinante nos gastos

oficiais. (FERNANDES, 1976, p.326).

A consolidação de um projeto de Estado frente às transformações sociais, para

Fernandes (1976), resulta do fato de que o modelo de organização econômico-político,

estimulado enquanto revolução, não se concretizava em si, na medida em que não conseguiu

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servir como propulsor para a aceleração do crescimento econômico, do desenvolvimento

social e da mudança cultural com processos irreversíveis de autonomização nacional, de

negação e superação do subdesenvolvimento.

Neste sentido, a analogia com o mito grego de Ícaro13

representaria metaforicamente

as promessas nãos consolidadas dos modelos de desenvolvimento adotados na constituição do

Estado moderno frente às falências institucionais de uma modernização forçada. Para Furtado

(1996), o contexto da realidade brasileira associada a interpretação do mito implica dizer que,

sua função principal, é orientar, a partir de um plano intuitivo, a construção daquilo que a

teoria econômica de Joseph Schumpeter (1883) chamou de visão do processo social, sem o

qual o trabalho de análise jamais teria sentido.

Os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do

cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e

nada a ver de outros, ao mesmo tempo em que lhe proporciona conforto

intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem no seu

espírito como um reflexo da realidade objetiva (FURTADO, 1996, p.8)

Ao passo que o desenvolvimento tardio marcaria as políticas de valorização

econômicas e racionalização do aparelho estatal e incorporava as promessas de um voo,

guiado pela lógica do crescimento econômico dos Estados nacionais, sobretudo, no pós-guerra

com os rearranjos políticos e institucionais. Desta forma, gerando o declínio das promessas

diante dos modelos econômicos e dos programas de desenvolvimento adotados, mas também

representariam as principais consequências ao subdesenvolvimento periférico de

determinadas regiões do país, como na Amazônia.

Ainda na concepção de Furtado (1996), o mito do desenvolvimento econômico se

traduz como um destes aspectos, na medida em que aparece como fenômeno investigativo nas

13

No Mito, Dédalo fabrica dois pares de asas artificiais formada por grossas camadas de cera amarrando as

penas caídas dos pássaros que sobrevoavam o Labirinto, construindo por ele quando presos em seus exílios na

ilha de Creta. Desta forma, alçaram voo juntos, deixando o cárcere para trás, porém Ícaro, empolgado com a

possibilidade de voar, esqueceu-se da recomendação do pai em não se aproximar em demasia do sol ou do mar.

Inebriado pela sensação das alturas, da liberdade e das promessas de um voo, cada vez mais o jovem se acercava

do sol até que a cera que fixava as asas começou se derreter e Ícaro despencou dos céus ao mar morrendo

afogado.

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ciências sociais, procurando evidenciar que os padrões de desenvolvimento adotados pelos

países em estado de subdesenvolvimento não se consolidam, pois refletem uma dimensão

marginalizada e periférica da revolução industrial dos países hegemônicos de economia

capitalista.

Neste sentido, a profecia do colapso, na visão do autor, explica que a permanência

deste modelo de desenvolvimento adotado enquanto crença, sobretudo após a segunda guerra

mundial, indicaria um estilo de desenvolvimento predador onde a busca dos padrões

consumistas e a pressão sobre os recursos renováveis do planeta iriam acarretar uma exclusão

social ainda maior, colocando em risco o sistema econômico mundial.

Os obstáculos da herança colonial e suas implicações quanto ao modelo de sociedade

e de Estado demarcavam uma revolução ao modelo de sociedade, mas uma revolução dentro

da ordem. Neste sentido, as questões políticas de mudança social e cultural da sociedade

brasileira são colocadas em debate para pensar, segundo Fernandes (1969), o comportamento

irracional das camadas conservadoras da sociedade quanto às pressões revolucionárias do

processo de integração nacional, sua ligação com a expansão do capital industrial e

intensificação da dependência socioeconômica e cultural, levando, assim, à construção dos

fenômenos estudados pelo autor.

Num aspecto mais amplo da análise, para Ruy Mauro Marini (2000), a formação

econômica dependente que caracterizava as economias periféricas dos países

subdesenvolvidos seria que, ao permanecer em torno do mercado mundial e subordinados aos

centros do capitalismo, estas não teriam como constituir de forma consolidada seus mercados

internos, perpetuando um modelo colonial de desenvolvimento dependente.

Neste sentido, a América Latina ingressaria na etapa da industrialização a partir das

bases criadas pela economia de exportação, ao mesmo tempo em que aprofunda a contradição

própria de seu ciclo do capital e seus efeitos sobre a exploração do trabalho. O resultado disso

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é o não desenvolvimento de bases tecnológicas e, por consequência, o não surgimento das

indústrias mais produtivas e também a necessidade da manutenção da superexploração do

trabalho, em seus mais diversificados aspectos e formas de organização (CORREA &

CARDEAL, 2005).

Segundo Brito (2001), a sociedade brasileira se encontrava em uma condição

diferente, a industrialização tardia significou a imposição de um ordenamento produtivo sobre

a estrutura social cercada de elementos sociais tradicionais, que acabaram ativando os

elementos organizacionais do capitalismo industrial, intervindo diretamente na economia e

redimensionando parcialmente os esquemas políticos tradicionais.

No entendimento das mudanças que se processaram na sociedade brasileira a partir

da década de 30 com o rearranjo das forcas políticas e econômicas, Burity (1988) apud Brito

(2001) destaca que o papel histórico atribuído pelos teóricos da revolução democrático-

burguesa e da modernização da classe burguesa, enquanto classe portadora do voo futuro tal

qual o de Ícaro, é, na verdade mais uma construção político-ideológica do que um fato real no

caso brasileiro, pelo menos, considerando o autor que não havia um passado feudal a

ultrapassar, pois a ordem econômica brasileira já surge de um passado colonial que

corresponde à fase de acumulação primitiva do capitalismo, como modo de produção em vias

de se tornar dominante e que, a partir do século passado, se insere em uma ordem econômico-

social sob a égide do imperialismo. “A nota mais destoante é atinente ao papel central

assumido pelo Estado brasileiro na modelagem da ordem capitalista excludente, disciplinando

e tutelando a sociedade, de forma a enquadrá-la e torná-la funcional a um esquema de

acumulação privada do capital.” (BURITY, 1988 apud BRITO 2001, p. 21)

Neste bojo de transformações, o autor considera que as características mais

importantes deste processo indicam elementos importantes de compreensão dos fenômenos de

dinâmica e rearranjos político-institucionais. Primeiro, não ocorre de forma igual uma

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racionalização dos processos de modernização da sociedade. Segundo, os elementos que

demarcam a estrutura organizacional e jurídica do Estado não são absorvidos pela ordem

política instituída. Por último, este processo induz ao desenvolvimento de uma economia

industrial tendo como base um núcleo tecnocrático solidificado no interior da instância estatal.

Neste sentido, a modernização brasileira é marcada por dimensões políticas,

econômicas e técnico-burocráticas administrativas, na medida em que absorve e não absorve

elementos pertencentes aos padrões de racionalidade do modelo de Estado nacional adotado

no processo de modernização dos países desenvolvidos. Assim, no campo político, não se

absorve tais elementos, enquanto a estrutura técnico-burocrática desenvolve um modelo de

desenvolvimento econômico incontestável, autonomizando a estrutura burocrática que

conduziria o processo de voo ao desenvolvimento.

O Estado brasileiro constituído a partir da racionalização dos sistemas políticos

buscava a eficácia do sistema produtivo, da administração pública, das instituições políticas.

“o aparecimento da sociedade industrial é resultado de um desdobramento histórico que

introduziu uma visão de mundo voltada para a objetividade da técnica” (BRITO, 2001, p.17).

A configuração dessa estrutura de poder permitiu que se criassem instrumentos políticos

eficazes para acelerar o desenvolvimento da economia industrial, rompendo de forma

definitiva com a sociedade tradicional.

Com as transformações sociais decorrentes dos processos de refuncionalização

político-econômicos da estrutura estatal, insurgem novas abordagens de intervenção direta em

setores de desenvolvimento do Estado. Neste contexto, podemos chamar a atenção, segundo

Brito (2001), para o fato de que o desenvolvimento marca a separação da instância estatal

correspondente à esfera administrativa, que passa por uma reformulação na sua estrutura

burocrática e isola-se da esfera política.

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Neste sentido, para o autor, a modernização e o capitalismo industrial na sociedade

brasileira possuem sua fundamentação no autoritarismo que marca a constituição política do

Estado nacional.

A estrutura burocrático-racional-legal não se torna autônoma na medida em que sofre

um processo de insulamento, permitindo que as identidades estatais executem ações pautadas

pela formalização dos procedimentos legais. Contudo, na base dessa movimentação, estaria o

controle de grupos oligárquicos que se impõem hegemonicamente, controlando e

direcionando, por meio de uma série de relações, troca de favores, compadrios e nepotismos,

desta forma, a ação estatal, em função de seus interesses particulares, dá forma legal a uma

atitude autoritária do Estado.

Esta contextualização seria denominada por Octávio Guilherme Velho (1976) de

capitalismo autoritário. As condições dos projetos de desenvolvimento baseados nas

premissas do modelo de desenvolvimento econômico adotados pelo Brasil possuíam

elementos particulares que acabaram desenvolvendo-se em países periféricos a partir de outra

realidade, tornando real o mito do desenvolvimento (econômico), sobretudo no mundo rural

das comunidades e grupos sociais sujeitos às políticas do governo.

É necessário levar em consideração que os modelos dominantes de desenvolvimento

econômico aplicados aos países subdesenvolvidos são assimilados e forjados no âmbito do

processo de consolidação de discursos legitimadores de determinados interesses estratégicos.

O planejamento, como forma de racionalizar as ações do governo em longo prazo,

passou a ser o norteador das políticas econômicas, gerando no país uma modernização

paradoxal ou uma modernização da superfície (BRITO, 2001), enquanto projeto

racionalizador das instituições políticas criava ou acreditava em soluções por meio de

medidas de desenvolvimento pela ótica econômica que, no entanto, se traduziram apenas do

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ponto de vista econômico, não atingindo uma camada mais profunda da realidade brasileira,

relacionada com as contradições sociais geradas pelo seu discurso.

O termo modernização da superfície corresponde aos efeitos de racionalização

parcial do Estado14

na medida em que não se aprofunda na estrutura social, absorvendo

determinados aspectos da sociedade, sobretudo na esfera burocrático-administrativa, em

detrimentos das dimensões econômico-políticas, excluíndo grande parte dos grupos sociais

subjugados, mantendo uma estrutura arcaica e um processo secular de exclusão social frente

ao desenvolvimento de uma economia globalizada.

A estrutura social, administrativa e política que aparece no Brasil está

assentada sobre um conjunto de normas, hábitos e procedimentos visando

um estilo de mediação social em que a organização política esteja voltada

para assegurar o status quo estabelecido. E, assim, a esfera política, como

característica peculiar da cultura política brasileira, se autonomiza e tende a

isolar-se do restante da sociedade. Surge com isso uma estrutura estatal

superdimensionada, legando aos governos instrumentos de efetivo controle

dos processos sociais e econômicos (BRITO, 2001, p. 22-23).

Estes impulsos desequilibraram, de maneira desenfreada, uma tendência

desenvolvimentista no processo de modernização do Estado brasileiro. Do ponto de vista

regional, tais fenômenos ocorrem na Amazônia na medida em que elementos de ordem

sociopolíticas e culturais são arrastados para os planos do desenvolvimento econômico de

capitalismo tardio e periférico. Ocorre que, a racionalização das estruturas e aparelhos do

Estado desintegram parcialmente o modo de administração política dos Estados amazônicos,

criando um misto de administração pautada na racionalização da burocracia e na continuidade

absorvida pelo patriarcalismo e patronagens da política local.

14

Para Habermas (1987) a racionalização parcial do Estado é resultado de uma absorção desequilibrada dos

elementos racionalizadores pelas diversas esferas da vida social. Do ponto de vista da organização da sociedade

moderna, isso quer dizer que a expansão da economia capitalista impõe a outras esferas da vida social formas de

racionalidade econômica e administrativa que não são incorporadas ou são incorporadas de maneira distorcida,

forçada ou reconfigurada dada à realidade contextual.

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Os modelos de desenvolvimento adotados para a sociedade brasileira frente às

condições de transformação e reordenamento político-econômico se delineiam como

estratégias fundamentais à inserção forçada de um ordenamento social.

A racionalização parcial da estruturação política, amparada pelos elementos

modernizantes da tecnoestrutura jurídica e administrativa serviram como elementos

propulsores à constituição de uma visão econômica do desenvolvimento e crescimento

econômico, externalizando os fatores ambientais e sociais de grande parte das regiões

brasileiras dando sentido à valorização de determinados aspectos no plano econômico.

A compreensão do fenômeno de consolidação do Estado brasileiro, em se tratando de

um projeto de modernidade, é crucial para verificarmos como estas diretrizes nortearão, a

partir da metade do século XX, com as modalidades de governo em transição (ditatorial ao

democrático-representativo), os programas de desenvolvimento econômicos para a Amazônia.

A política de integração regional significou uma tentativa de dar homogeneidade às

estruturas socioeconômicas, neste sentido, o papel do Estado brasileiro foi de impor um

processo de modernização acelerada (forçada) através da crença nos programas de

desenvolvimento e valorização econômica da região.

Particularmente nos estados da Amazônia brasileira esta política de valorização tem

início a partir da década de 50, demarcando um processo de homogeneização dos espaços

econômicos nacionais como uma consequência da integração, por meio das políticas de

desenvolvimento em regiões pouco integradas ao espaço econômico nacional e global, isto, é

claro, ao custo de uma dissolução ou de uma lesão das estruturas regionalmente homogêneas

(ALTVATER, 1989 apud BRITO, 2001), sobretudo no que diz respeito aos aspectos

socioculturais que demarcam as fronteiras de organização das sociedades locais.

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Este modo de inserção da Amazônia é marcado pelo naufrágio de sucessivas tentativas

da consolidação de políticas de governo sob o interesse estratégico de potencializar o uso dos

recursos naturais e a timidez dos processos de industrialização nas capitais amazônicas.

Estas políticas, notadamente iniciadas com o Plano de Valorização

Econômica da Amazônia (PVEA) na década de 50, visava uma atenção à

economia extrativista e as dimensões de atraso ao desenvolvimento, como

justificativa ao isolamento parcial das sociedades locais constituindo-se

como um espaço vazio, economicamente improdutivo e politicamente

perigoso (SPVEA, 1954b:24 apud BRITO, 2001, p. 135).

A valorização tardia da economia local trouxe, para além de impactos a uma

modernização forçada, a procura de melhores ações aplicadas sob o objetivo de implantar um

sistema com forças para reunir e estabelecer estratégias de aplicação de uma forma

centralizada pelo governo federal (BRITO, 2001). Estas ações foram pautadas pelo

aprofundamento do conceito de valorização, através da discussão sobre o modelo político de

desenvolvimento adotado para a região da Amazônia legal.

Desta forma, segundo Brito (2001), a criação de uma Superintendência do Plano de

Valorização da Amazônia (SPVEA) daria uma conotação muito mais econômica, adotando-se

um modelo de política que recebeu a incumbência de incentivar a valorização econômica, em

detrimento de uma política de transformações sociais alcançáveis pela sociedade em geral.

As primeiras ações que demarcaram a consolidação do Plano de Valorização

Econômica da Amazônia são a instituição de medidas de estímulo ao desenvolvimento

econômico de setores considerados potencializáveis, intensificando a produção de matérias-

primas, alimentos, financiamento através de créditos capazes de capitalizar a iniciativa

privada, estimulando, sobretudo, a criação de colônias agrícolas através do estímulo

estratégico da agricultura a partir da ocupação de fronteiras e da introdução de uma

mentalidade agrícola na população local, permitindo assim, “superar hábitos e concepções de

trabalho e de organizações advindas do modo de produção local marcado pelos ciclos

extrativistas” (SPVEA, 1954b:6 apud BRITO, 2001).

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Não pretendemos ir longe para interpretarmos que as políticas governamentais, ao

passo em que se baseavam na consolidação de uma valorização econômica do

desenvolvimento regional, resultaram em grandes transformações sociais. Na realidade, em

impactos negativos nas populações locais, sobretudo nas comunidades rurais, habitantes dos

grandes rios da região, engendrados desde o legado do ciclo econômico da borracha, e das

etnias indígenas que, até então, disponibilizavam de pouco contato com a sociedade

envolvente.

Desta forma, suas atividades de extrativismo, a produção para subsistência e para o

comércio em pequena escala foram impactados, transformando as relações que demarcavam a

realidade da pesca artesanal local, os grupos sociais rurais passaram a conviver cada vez mais

com o avanço das fronteiras agrícolas através do desmatamento, contaminação e sobre-

exploração dos recursos naturais. A partir das próximas décadas iriam agravar-se cada vez

mais, tencionando as relações conflituosas por acesso aos recursos e bens naturais de

consumo, reconfigurando os processos de territorialização e reapropriação dos ambientes.

É interessante observar que a adoção destas estratégias instituía uma dimensão

conceitual daquilo que viria a ser chamado de desenvolvimento para a Amazônia, sendo a

SPVEA, segundo Brito (2001), o órgão que centralizaria e administraria os recursos

destinados ao plano de valorização econômica da Amazônia.

A partir da década de 60 com a decadência das políticas desenvolvimentistas

instituídas no pós-guerra , a falta de critérios técnicos para balizar as ações do Estado e a crise

política entre a SPVEA e a transição para um governo autoritário-militar eram visivelmente

agravadas, criando, desta forma, as condições de falência do plano de valorização econômica

da Amazônia, sobretudo diante do embate ideológico instituído no período ditatorial:

Em meados da década de 60, quando os militares implantaram um novo

regime político no país, a SPVEA e toda a estrutura organizacional montada

para coordenar a política de desenvolvimento foram julgadas incapazes de

enquadrar-se no novo esquema institucional do regime. O período

compreendido entre 1964 e 1966 foi um momento de transição para o

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modelo institucional do Plano de Valorização da Amazônia. Com os

militares no poder, foi dado inicio a „Operação Amazônia‟, um conjunto de

medidas com o objetivo de prosseguir a política de desenvolvimento, porém

dentro de um novo arcabouço institucional (BRITO, 2001, p. 144).

A “Operação Amazônia” anunciada pelo Presidente da República Marechal Humberto

Castelo Branco em setembro de 1966 impulsionava outra vertente adotada para o

desenvolvimento da Amazônia: a extinção da SPVEA e a criação da Superintendência do

Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM15

, como alternativa ao desenvolvimento de

projetos e programas de estímulo a economia regional, efetivadas através da captação de

recursos com a criação anterior do Banco da Amazônia – BASA16

, sendo diretamente o

agente financeiro das ações governamentais, administrando os recursos oriundos de repasses

do Orçamento Geral da União para a Amazônia como dos fundos de investimento Privados

(BRITO, 2001).

No entanto, ao longo das décadas que se estenderam o plano de atuação política

adotado pelo governo militar em se tratando de um quadro geral, o modelo de

desenvolvimento econômico manteve, segundo Brum (2009), a característica concentradora

porque beneficiou a grande empresa em detrimento da média e pequena, estimulando a fusão

de empresas dos setores industriais, comerciais e financeiras, desta forma, favorecendo,

segundo o autor, a concentração da propriedade da terra viabilizando a grande e a média

empresa rural em detrimento da propriedade familiar.

Acredita-se que estas ações, do ponto de vista macroeconômico, possibilitaram em seu

reflexo a expansão econômica nos estados e nas regiões mais ricas, deixando as demais

regiões, como a Amazônia, em segundo plano, ainda que, por conta das superintendências e

programas de desenvolvimento regional e valorização econômica criados, tornar-se-iam

retardatários, ainda que privilegiando a lucratividade do capital em detrimento de ganhos do

15

Através da Lei 5.173 de outubro de 1966. 16

Sancionado através da Lei 5.122 de setembro de 1966.

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trabalho e medidas paliativas de crescimento econômico em regiões periféricas dos grandes

centros urbano-industriais produtivistas, gerando desigualdades sócio-regionais históricas.

No processo histórico dos modelos políticos adotados neste período, a introdução da

noção de desenvolvimento apresentou-se na perspectiva de mudança econômica, evolução,

mudança contra a noção de atraso. Rodolfo Stavenhagen (1985) observa que o discurso

econômico enquanto remédio para o atraso “naturalmente” se afirmava a partir do

crescimento econômico em diferentes contextos, visava à aceleração e enfatizava a

necessidade de uso dos recursos naturais, sustentando como elemento chave ao Capital aliado

às tecnologias.

Nesse contexto, a proposta de desenvolvimento econômico se caracterizava pela

própria especificidade do mercado de produção capitalista, como um fenômeno global, nas

palavras de Ianni (1999), configurava-se como projeto e processo civilizatório mundial, que

nesta perspectiva incorporava novas tecnologias produtivas e a transformação das

organizações sociais tradicionais em organizações sociais modernas, marcadas por intensos

processos de burocratização.

Este período é marcado pela implementação de programas políticos e militares que

visavam estrategicamente à Amazônia a partir de um processo histórico e geopolítico

desencadeado no Pós-Guerra, tendo, como concepção de desenvolvimento, a abertura de

estradas, estimulando a colonização, ocupação e estabelecimento das fronteiras17

.

Como verificamos anteriormente, estas ações eram marcadas, segundo Loureiro

(2001), pelos inúmeros incentivos e vantagens fiscais aos empresários desejosos em investir

capital na região; pela facilitação ao acesso de grandes extensões de terra e à natureza em

geral, desconsiderando a legislação existente e ao direito de propriedade aos grupos sociais

17

Para Bertha Becker (2006), a fronteira se configura como fundamento histórico da produção do espaço

regional e no caso da Amazônia deixa de ser o eixo central e se configura como uma efetiva região, nela

coexistindo fronteiras de vários tipos

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locais; a garantia de infraestrutura para os novos projetos por conta do governo federal e, por

fim, a utilização de mão de obra barata de trabalhadores locais e de outras áreas do país.

Estas ações, que visavam ao desenvolvimento econômico através da ocupação,

instalação de infra-estrutura e um programa de incentivos fiscais que atraiu capitais nacionais

e internacionais para a região18

, foi marcada por uma abertura desenfreada para o

desenvolvimento de atividades que potencializaram penosas transformações socioambientais

para a Amazônia, do ponto de vista da sequela deixada em seus grupos sociais e no ambiente

físico.

No entanto, durante o período da ditadura, quando o governo militar

promoveu de forma autoritária o desenvolvimento do capitalismo na

Amazônia, os projetos de desenvolvimento não incluíram a Amazônia

ribeirinha entre suas prioridades, mas voltaram-se para a extensa terra do rio

Jarí. A exclusão da várzea dos grandes projetos modernizadores, na verdade,

a protegeu de conseqüências negativas do que também se conhece como o

“modelo predador”de desenvolvimento da Amazônia. Ao contrario do que

propõe hoje o modelo socioambiental, o projeto modernizador não

considerava nem os custos ambientais nem os custos sociais de suas

iniciativas, priorizando o desenvolvimento do capitalismo como um fim em

si mesmo (LIMA, 2005, p. 13).

A metáfora ao mito da queda de Ícaro representa, assim, o Estado brasileiro frente ao

projeto de modernidade levada a cabo pela racionalização da sociedade no que concerne às

transformações socioeconômicas, políticas e culturais de uma visão desenvolvimentista. Não

se concretizando na medida em que consolida, parcialmente, nas esferas da sociedade, os

elementos condizentes à racionalidade de uma economia planejada, onde aspectos

estruturantes da conjuntura econômica e política se tornaram desconexos por um lado e por

outro marcados pela incapacidade de acompanhar o ritmo de desenvolvimento planejado,

sobretudo diante das insuficiências acarretadas pelas forças produtivas e pela acumulação do

18

Sobre estes processos Beth Middlin & Celso Laffer (1970), Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1990) explicam

o como se deu o planejamento no Brasil e a criação de projetos de desenvolvimento nos setores econômicos.

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capital, marcando desta forma, o caráter de capitalismo tardio periférico e de economia

industrial restringida19

.

Estes elementos consolidarão o não desenvolvimento e as consequências de uma

modernização forçada, imposta na projeção dos grandes programas de desenvolvimento para

a Amazônia, sobretudo no período pós-guerra de regime militar-autoritário, desarticulando a

possibilidade de profundas transformações mais democráticas na estrutura social das

sociedades amazônicas.

Para Lima (2005), em termos sociais, as consequências de um projeto modernizador

excluía a Amazônia ribeirinha significava que a sociedade local não fora atingida pelas

mudanças em seu padrão tradicional. Formada basicamente por duas classes principais, a elite

mercantil e os pequenos produtores familiares das áreas de várzea, instituía-se também o

conflito20

ligados geralmente ao acesso, à apropriação e à manutenção de estoques dos

recursos naturais disponíveis, desta forma, entravam em consonância frente às propostas de

desenvolvimento e conservação iniciadas a partir da década de 80.

Ao interpretarmos as significativas transformações do Estado e das políticas de

planejamento ao desenvolvimento nacional e suas consequências, possibilitamos uma

compreensão das mudanças de reordenamento do setor pesqueiro comercial e da pesca de

subsistência na região Amazônica a partir de um debate envolvendo ao mesmo tempo Estado,

sociedade, modelos de produção relacionados com as transformações sociais do trabalho na

pesca e com a consequente crise do modelo de apropriação dos recursos naturais.

Estes aspectos mais do que nunca possibilitam o debate entre Estado,

desenvolvimento e economia sob uma perspectiva ambiental. Para considerarmos estes

19

Ver Cardoso de Melo (1982) e a discussão sobre o desenvolvimento do capitalismo tardio. 20

Para Lima (2005) as principais causas dos conflitos foram o crescimento da população, principalmente urbana,

as mudanças na economia e o surgimento de novas tecnologias, acarretando maior exploração dos recursos

naturais disponíveis, sobretudo do pescado. O aumento da pressão sob os estoques e a competição por áreas de

pesca acabou provocando a reação dos pequenos produtores rurais preocupados em manter os recursos

importantes para a reprodução de seus modos de vida.

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elementos, pretendemos um olhar verticalizado sob a dinâmica nos processos

socioeconômicos relacionados com as transformações no mundo do trabalho da pesca frente

às políticas de desenvolvimento adotadas para a região, sob um duplo aspecto: pensar em que

medida tais questões direcionam as ações de reordenação estratégica do uso e controle dos

recursos naturais e, em que medida se enquadram diante do perfil social adotado pelo Estado

quanto à dinâmica histórico-social das atividades pesqueiras no Brasil e, particularmente, na

Amazônia.

2.2 Repensando as transformações do mundo do trabalho na pesca: Estado e as políticas

econômicas legitimadoras do projeto de desenvolvimento nacional

O desenvolvimento histórico das atividades pesqueiras deve muito aos processos

sociais de intervenção e ação humana na região amazônica. De um lado, pela formação e

ocupação dos grupos sociais na região no período anterior a colonização e, de outro, a partir

das estratégias e intensificação de interesses políticos com relação à sociodiversidade – e,

nesse contexto, os recursos pesqueiros – encontrados, sempre na perspectiva de trazer o

aprimoramento do processo de subsunção do homem ao ambiente.

A contextualização histórica das atividades pesqueiras concomitantes aos modelos

econômicos de desenvolvimento incidem a partir dos elementos de regulamentação e do

incentivo crucial à produção e comercialização do pescado. Nesta perspectiva, é possível

traçarmos uma interpretação sob o processo histórico vivenciado pelas sociedades rurais

amazônicas no que se refere ao uso dos recursos pesqueiros, assim como as transformações

socioeconômicas decorrentes da racionalização e controle do acesso destes recursos mediante

a criação de legislações específicas no que tange à gestão da pesca no Brasil.

Antes das primeiras regulamentações e o estímulo à comercialização por meio dos

grandes programas de desenvolvimento econômico, a atividade pesqueira no Brasil era

predominantemente artesanal, e sua produção estava voltada basicamente para atender o

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mercado interno. Com a adoção de medidas reguladoras dos recursos pesqueiros e com a

consolidação de uma política de incentivos fiscais à pesca, desenvolveu-se de forma

cadenciada a pesca industrial em larga escala, visando sobretudo ao mercado externo.

Segundo Batista et al (2004), a importância da pesca na Amazônia remonta ao

período anterior à colonização, quando indígenas já utilizavam o pescado como parte

essencial de alimentação (VERÍSSIMO 1985) embora as necessidades primárias de proteínas

dos ameríndios que viviam ao longo do rio Amazonas fossem satisfeitas por quelônios e pelo

peixe-boi, o aumento do consumo local de animais aquáticos devido ao crescimento da

população amazônica durante o período colonial fora contraposta ao aumento do comércio

destes recursos, afetando inúmeras espécies de quelônios. Ao mesmo tempo, havia a

intensificação do consumo do pescado, em muitos rios amazônicos, reduzindo também a

fartura de algumas espécies cuja abundância tinha sido destacada por naturalistas e viajantes

(BATISTA et al 2004):

A tecnologia de pesca utilizada apresentou uma evolução desde o contato

dos indígenas com os portugueses. Redes passivas já eram utilizadas pelos

índios Carajás do rio Araguaia, Pará, durante os séculos XVII e XVIII, sendo

confeccionadas com feixes de fibra de imbaúba (cecropia spp.), estes

apetrechos eram utilizados como barreiras ao deslocamento dos peixes que

eram capturados manualmente [...] assim outras redes eram confeccionadas

com outros materiais. (p. 64).

Veríssimo (1985) apresenta uma importante coleção de informações históricas com

enfoque maior no Baixo Amazonas, onde destaca que, já, no século XV a administração do

império colonial, aproveitava o potencial pesqueiro da região para alimentação local e

comércio, utilizando-o como moeda de pagamento e troca no século XVII. Para Batista et al

(2004), tais preocupações geraram necessidades de controle da produção, o que foi

consolidado com a criação dos chamados pesqueiros reais, existindo três pesqueiros, em

1667, na Amazônia central, extintos em 1827.

O desenvolvimento pesqueiro na Amazônia e das ações do Estado pode ser

distinguido a partir dos períodos históricos relacionados com o processo de intensificação da

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pesca e das transformações socioeconômicas decorrentes deste processo histórico. Até 1912,

as leis eram promulgadas pelas municipalidades, após a criação da Inspetoria Federal de

pesca, houve a centralização do controle da atividade, aparecendo outros atos legais que

viriam a transformar as ações sobre a pesca.

Por um lado, as políticas regulamentadoras do uso dos recursos pesqueiros se

preocuparam com a racionalização e controle por meio da criação de órgãos e de uma

legislação destinada a mediar e executar as ações de controle ao acesso. Contudo, de forma

mais abrangente, o conjunto de regras e disposições que possibilitariam o uso racional dos

recursos pesqueiros é dado a partir das condições regulamentadas sob normas de usufruto, ou

seja, num conjunto de preceitos ou métodos para o tratamento e/ou exploração de

determinando recurso ou área de atuação.

Do ponto de vista histórico, a gestão dos recursos pesqueiros, através da

implementação de uma legislação somente na década de 60, estabeleceria as condutas pelas

quais a atividade sofreria um controle do acesso à predisposição comercial, ao passo que

pressupunha o incentivo dado ao desenvolvimento do setor econômico pesqueiro proposto na

Operação Amazônia no período ditatorial do governo militar. Conduto, o ordenamento e

maior controle dos recursos refletem a criação recente de legislações destinadas a combater as

conseqüências da sobrepesca e a crise dos recursos pesqueiros ao longo das últimas décadas21

.

Sabe-se que, por meio dos preceitos legais e hierárquicos contidos na constituição

federal, que versa sobre a gestão ambiental de recursos compartilhados, a consolidação destas

ações sobrevinham das políticas de legislação das bacias hidrográficas no que tange aos

21

Somente com a instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação através da lei n° 9.985 de 18 de

julho de 2000, que uma política de ordenamento dos recursos pesqueiros foi estabelecida pensando a dimensão

do estoque de pescado mediante os recursos disponíveis.

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recursos da união e seu uso compartilhado, neste caso, os recursos transformados em bens22

o peixe em pescado.

Para Veríssimo (1985), a pesca na Amazônia se caracterizava pela diversidade de

modalidades, pela prática tradicional que sempre desempenhou papel de atividade

complementar integrada às demais atividades da economia familiar, na qual sabemos que viria

intensificar-se com a pesca profissional de caráter comercial. Com relação à pesca, afirma

ainda que o uso do anzol, arpão, curral ou arco e flecha eram mais frequentes, sendo raro o

uso de redes e tarrafas num período anterior a década de 60.

Segundo Violeta Refkalefsky Loureiro (2001), as condições de vida e de trabalho do

homem na Amazônia, no momento anterior à ocupação recente23

, foram marcadas pela

acentuada taxa de população rural24

, que habitavam as comunidades rurais, e pela produção

econômica constituída pelo extrativismo.

As cidades e vilas ficavam situadas à beira dos rios e cumpriam a função de

entrepostos comerciais que recolhiam a produção vinda do interior e que

distribuíam os produtos procedentes das cidades maiores – Belém e Manaus,

principalmente – as quais importavam os produtos industrializados do sul do

país. (LOUREIRO, 2001, p.47)

A introdução do cultivo de juta, no final da década de 30, pela colonização japonesa,

aliada à borracha, tornou-se importante atividade econômica, mas que entrou em crise na

metade do século XX, dando lugar ao crescimento da atividade pesqueira como atividade

profissional prioritária e/ou permanente. As causas socioeconômicas destas transformações

foram induzidas pelo crescimento demográfico e o aumento da demanda urbana de pescado.

Até a década de 1910 verificava-se a preocupação das autoridades em

preservar os recursos pesqueiros e evitar o uso de técnicas predatórias de

pesca por intermédio de varias normas com o caráter de lei. Nesse período

que poderia ser chamado de pré-legislativo, destacam-se dispositivos que

proibiam a pesca com venenos, tapagens e currais de pesca em rios e lagos

22

Nestes casos, recursos são entendidos, do ponto de vista jurídico, como as fontes de riquezas materiais que

existem em estado natural, tais como florestas, reservas minerais, animais. E bens, do ponto de vista da

economia, entendido como mercadoria ou serviço que pode satisfazer uma necessidade humana. 23

Leia-se como recente a integração da Amazônia aos modelos de desenvolvimento econômico e ao mercado

nacional frente sua modernização às avessas. 24

Considerando que a população urbana era de apenas 37% até próximo da década de 60.

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[...] as comunidades ribeirinhas mantinham normas de controle da

exploração dos recursos aquáticos, as quais faziam parte da sua tradição.

(RUFFINO, 2005, p. 14).

Para Ruffino (2005), com a tecnificação do setor pesqueiro, a partir de 1933, a

atividade passou a ser controlada pela Inspetoria de caça e pesca através do ministério da

Agricultura subordinada ao departamento de Produção Animal culminando com as ações

desempenhadas pela Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia – SPVEA, que

buscava transformar o sistema tradicional de pesca praticado pelos grupos sociais rurais em

uma atividade de caráter nacional e de alta produtividade.

Firmavam-se convênios com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e

Alimentação – FAO e a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura

– UNESCO, onde implementaram os primeiros estudos científicos sobre a pesca e o potencial

das espécies mais capturadas. Esta preocupação estava condicionada à visão

desenvolvimentista da região e à acentuada transformação do modo de produção capitalista,

que, nas próximas décadas, marcaria as grandes mudanças decorrentes deste processo.

A política de incentivo ao desenvolvimento do setor pesqueiro não deixa de

representar uma das ações do Estado nacional25

, possibilitando uma reflexão recorrente acerca

dos modelos que possibilitassem crescimento econômico e desenvolvimento social, sob a

prerrogativa da articulação de tecnologias adequadas e modos de produção e apropriação dos

recursos naturais compatíveis para o plano de integração da Amazônia.

Segundo Loureiro (2001), os obstáculos ao desenvolvimento econômico regional e a

integração aos mercados nacionais e internacionais eram pautados pela insuficiência de

capitais produtivos e de infraestrutura capazes de pôr em marcha novos investimentos.

25

Sobretudo a partir do processo histórico iniciado no período pós-guerra, com a discussão sobre a criação e

adoção de planos de desenvolvimento econômico pelos países desenvolvidos. A ideia de desenvolvimento

acarretava para si um processo de priorização das questões econômicas que, no início, ocupou lugar central nos

objetivos dos modelos políticos vigentes, capitalista e socialista, da chamada guerra fria, ambos viabilizando

desenvolvimento pela perspectiva econômica. (STAVENHAGEN, 1985).

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Para pensarmos nesta perspectiva associada às transformações socioeconômicas

ocorridas na região amazônica que, sobretudo, afetaram a atividade pesqueira, é possível

perceber como elas foram adotadas, considerando alguns aspectos significativos para a ação

de medidas políticas que se tornaram fruto da relação estabelecida entre crescimento

econômico e sobre-exploração dos recursos naturais.

Este período se caracterizou como um momento significativo para o

desenvolvimento econômico da região – o que acarretou a expansão da atividade pesqueira, e

a transformação de suas forças produtivas (da relação Homem e Natureza), e de suas relações

sociais de produção (da relação Homem e Homem).

Para Batista et al (2004), na década de 60, três eventos são marcantes para os novos

rumos da atividade pesqueira na região. O primeiro foi a introdução e a popularização do

polietileno (ou isopor), como isolante térmico, permitindo a conservação e, portanto, a

acumulação do pescado por mais tempo, viabilizando ampliar o raio de ação da frota.

O segundo foi a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), a partir de 1967, que

causou um rápido crescimento da população urbana da cidade, via migração das populações

rurais, ocasionando, como reflexo, os problemas relativos ao desenvolvimento da expansão de

ocupações urbanas não planejadas, gerando aí, uma série de elementos problemáticos

resultantes deste processo e que caracterizaram as urbes periféricas na Amazônia26

.

Assim, ocasionou-se, particularmente, nas cidades do Estado do Amazonas, o

aumento do consumo de pescado, estabelecendo um importante mercado urbano do produto

pesca em razão da forte e densa migração do campo para a cidade. Em terceiro lugar, temos a

introdução de linhas sintéticas, as quais popularizaram as redes de arrasto e de espera

enquanto apetrechos utilizados como técnicas de captura na pesca comercial, facilitando o

26

Para Edneia Mascarenhas Dias (1999), a ilusão do Fausto se torna realidade na medida em que o

desencantamento do mundo e das situações problemáticas da vida cotidiana em expansão nas cidades configura

uma realidade não desejável para aqueles que possuíam expectativas com o modelo econômico adotado para a

região.

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aumento do esforço de pesca e, consequentemente, da produção e otimização do setor,

caracterizado pela alta-tecnificação e re-inserção do modo de produção capitalista.

Concomitante a este processo, a constituição de uma legislação especifica tornava o

cenário da pesca nacional mais consolidado quanto à gestão dos recursos disponíveis. A

promulgação do Decreto-lei 221 de 22 de fevereiro de 1967 definiria e estimularia os

parâmetros da pesca através da consolidação de uma política específica voltada para a

atenção, ainda que parcialmente, das condições de acesso aos recursos pesqueiros.

Estas ações definiam os critérios para a atividade da pesca considerada enquanto “ato

tendente a capturar ou extrair animais ou vegetais que tenham na água seu meio normal ou

mais frequente de vida” (Decreto-lei 221/67 apud RUFINO, 2005), considerados como

patrimônios da União e podendo ser utilizados pelos cidadãos brasileiros através da

regulamentação dos órgãos públicos competentes. O decreto ainda definia os conceitos e

diferenciações entre Pesca comercial, Pesca esportiva e Pesca científica considerando as ações

estipuladas no usufruto dos recursos.

Para Abdallah (1998), o Decreto-Lei 221/67 permitiu deduções tributárias para

investimentos em projetos pesqueiros, além de isenção de impostos e taxas federais para a

importação de máquinas, equipamentos e instrumentos em geral. Segundo o autor, estes

incentivos fiscais atuaram no período de 1967 a 1986 e contribuíram, significativamente, para

dinamizar a produção nacional de pescado e o parque industrial processador desse produto27

.

Neste sentido, ao longo dos anos iniciais das políticas de incentivos à pesca, segundo

Abdallah (1998), entre 1967 a 1972, do total dos recursos captados no quadro de

desenvolvimento prevista aos programas destinados ao incentivo da pesca nacional, cerca de

91% foram investidos na indústria, captura, administração e comercialização, não sendo

27

Através do decreto-lei no 1.376/74, é criado o Fundo de Investimento Setorial para a Pesca (FISET/Pesca) no

sentido de controlar a alocação de recursos dos incentivos fiscais de maneira mais centralizada e de ajustar o

desequilíbrio no mercado de incentivos fiscais, identificado no decorrer da vigência do decreto 221/67.4 O

FISET/Pesca era supervisionado pela Superintendência de Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE

(ABDALLAH, 1998).

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verificado algum tipo de investimento nas áreas de pesquisas e levantamentos de dados, o

autor ainda considera que 78% dos recursos captados ocorreram no período inicial de

incentivo à política pesqueira (de 1967 a 1974), sem, no entanto, considerar a dimensão do

estoque de pescado e uma previsão de impactos quanto à sobre-exploração dos recursos.

A implementação de um conjunto de projetos, planejados pelo governo brasileiro, a

partir de 1966, resultou em crescimento urbano acelerado, aumento demográfico e expansão

das áreas rurais utilizadas diretamente. Com a criação da zona de livre comércio de Manaus, a

Zona Franca, o Estado do Amazonas passou por importantes transformações, incluindo

ampliação do mercado para a pesca comercial. A pesca, então, deixou de ser um “problema

localizado” para ser uma questão regional com fortes implicações econômicas, sociais,

políticas, culturais e ecológicas.

O modelo de desenvolvimento pesqueiro, concebido na década de 60 e desenvolvido

até o final da década de 80 pela Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE,

buscava, principalmente, o aumento da produção pela produção – desconsiderando o tempo

de produção da própria natureza. A pesca era vista como um setor econômico, deixando de

lado as suas outras dimensões a ela intrinsecamente relacionadas – as dimensões sociais,

culturais e ambientais que interagem para o seu desenvolvimento (RUFFINO, 2005).

A SUDEPE, que institucionaliza a atividade pesqueira em todo o país, formulando,

executando e coordenando as políticas e as ações de pesquisa e ordenamento da exploração

pesqueira, ao passo que consolidou o segmento industrial pesqueiro, e ocasionou também a

sobre-exploração dos recursos pesqueiros ocasionado na década de 80, sobretudo decorrente

das praticas de pesca e de uma maior profissionalização da atividade e dos meios para o

trabalho.

A efetivação desse modelo de “desenvolvimento nacional”, que respondeu a políticas

estratégicas idealizadas para a região, baseou-se em incentivos a grandes empresas, por meio

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96

de benefícios fiscais28

, estimulando a estruturação da indústria pesqueira, cujo crescimento

estava defasado em comparação com outros setores da economia nacional. Essa nova

dinâmica acarretou o agravamento das desigualdades, com relação ao acesso e ao uso dos

recursos pesqueiros, e o estratificou em duas grandes categorias sociais.

Esta situação se caracterizava pelo aparecimento de dois sujeitos sociais, os

pescadores artesanais, segundo Maldonado (1986), pela simplicidade da tecnologia

produtiva, baixo custo de produção, relações de parentesco no âmbito do processo de

trabalho, ausência de vínculos empregatícios, destinação mercantil e de uso próprio para o

produto, autonomia de produção e dependência de terceiros para a comercialização. Por outro,

o surgimento dos pescadores industriais como uma categoria que vivencia a condição do

trabalho parcelizado na indústria, assalariado e ausente de controle sobre o processo produtivo

(altamente sofisticado e gerenciado por terceiros), e uma produção exclusiva de mercadorias

enquanto propriedade direta da empresa.

Segundo Pereira et. al (2007), a expansão do sistema rodoviário na Amazônia

também contribuiu para a revolução comercial do setor pesqueiro (grifo dos autores), na

medida em que serviu como alternativa de transporte do pescado, pois o escoamento da

produção se limitava às vias fluviais e marítimas havendo uma incrementação da produção

pesqueira por conta da demanda proveniente das capitais

A pesca se tornou, assim, uma atividade economicamente dominante no seio da

organização social e produtiva dos povos da Amazônia, haja vista que a comercialização do

pescado se tornou mais intensiva e extensiva, sendo valorizado como produto de troca.

Cresciam a quantidade de barcos de pesca industrial e surgiam as primeiras empresas

de pesca industrial, ao mesmo tempo em que se introduzem motores a diesel e as fibras de

28

A constituição brasileira de 1969 isentou de pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICM) o

pescado beneficiado e destinado ao Mercado externo (Ruffino, 2005).

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nylon para redes de malha, dando o suporte técnico que faltava para uma mudança qualitativa

no poder de pesca.

No período anterior à década de 60, a pesca na Amazônia era realizada com o uso de

embarcações de pequeno porte e propulsão de deslocamento geralmente não motorizada.

Contudo, com as políticas de incentivo ao setor pesqueiro a partir da década de 60

implementariam também o uso de embarcações motorizadas com larga escala de

deslocamento. Surge, aqui, segundo Ruffino (2005), a figura do pescador profissional

itinerante, que pesca de forma permanente em lugares distante da sua moradia e vende o seu

peixe em frigoríficos e mercados dos centros urbanos29

.

Mello (1985) observa que não havia a figura do pescador profissional ou

“especialista”, isto é, aquele dedicado exclusivamente à atividade pesqueira. Ao contrário,

havia o que o autor descreve como pescador-agricultor, isto é, o pescador não profissional,

aquele agente social que não fazia da pesca sua única base econômica, pois se tratava de uma

atividade complementar da agricultura, da caça, do extrativismo e de outras atividades que

praticava para a sobrevivência de sua família.

Mas as transformações que se sucederam no setor da pesca e na vida dos moradores

da região se formaram em decorrência das intervenções do Estado associado com os grupos

economicamente dominantes – nacionais e multinacionais – que passaram a interessar-se pela

exploração direta do setor na Amazônia. Pereira (2007) verifica que as mudanças na estrutura

produtiva do pescado estiveram associadas à divulgação de uma verdadeira ideologia do

29

A alteração do modo artesanal de produção da pesca pelo modo de produção industrial, onde a máquina passa

a ter a primazia sobre o elemento humano, representará uma espécie de golpe que dará o capital nesta „última

posse‟ do pescador – o que lhe havia restado do modo de produção tradicional. Em conseqüência, pode-se

afirmar que a dominação se torna mais completa e radical: o trabalho em si (a condução do processo de trabalho)

é agora posse real do capital, que passará a ditar a forma e maneira pelo qual ele será exercido. Para Mello

(1994), o mundo especificamente capitalista de produção representa, nesta perspectiva, não apenas uma nova

estruturação do sistema produtivo erigido a partir da aplicação em grande escala da ciência e da maquinaria no

processo imediato de trabalho aponta contemporaneamente um aprimoramento dos mecanismos de poder do

capital, que passa a comandar a classe operaria inclusive por meio do trabalho em si, impondo-lhe mais produção

m troca de salários proporcionalmente mais baixos.

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progresso pesqueiro, que irá concorrer para constituir a atual estrutura socioeconômica e

política da pesca comercial.

As categorias sociais distinguidas a partir das relações sociais e produtivas que

compõem a estrutura socioeconômica e cultural dos grupos locais construíram singularidades

sociais que nortearam a forma de uso dos recursos naturais, principalmente no que tange aos

recursos pesqueiros.

É claro que as transformações ocorridas na região em decorrência da intensificação

das atividades pesqueiras não fizeram com que os grupos sociais envolvidos na região

ficassem de fora deste processo, tampouco que se sobressaísse de maneira benéfica. Pois o

modelo de crescimento econômico adotado pelo governo militar acarretou grandes custos ao

País, em termos de agravamento dos conflitos sociais entre grupos com diferentes capacidades

de exploração (por exemplo, pescador artesanal versus pescador industrial), com o rápido

esgotamento dos recursos naturais e agravando ainda mais os conflitos e os processos sociais

que desenvolveram na região reflexos destas ações.

Para Furtado (1993), a implantação do parque industrial da pesca na Amazônia teve

como reflexo a invasão das áreas de pesca artesanal por barcos pesqueiros de grande porte,

como resultado disso, engenhos de pesca são destruídos, estoques pesqueiros e cadeias

tróficas são seriamente comprometidos em seu ciclo biológico, devido ao ritmo do esforço de

captura para fins industriais, ao mesmo tempo em que se observa o surgimento dos conflitos

no campo da pesca. O que se justifica pelo fato de que:

Dos programas oficiais para desenvolvimento regional, nascem tensões e

descrenças em suas políticas, em razão da exclusão do saber nativo como

contribuição a esses programas, e ao desconhecimento da realidade por parte

daqueles que detêm o poder de decisão. Como resultado, assiste-se, muitas

vezes, à falência de programas, desorganização e miséria de grupos sociais

[...] no conjunto, todos estes programas cravaram um rastro: a desorientação

do caboclo amazônico que vive da pesca e de atividades afins, a migração

rural-urbana com traços de irreversibilidade e tendências a anomias sociais.

(FURTADO, 1993, p. 12)

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As imperfeições dos modelos econômicos adotados levaram o País a uma situação

insustentável do ponto de vista financeiro, ocorrendo quedas significativas de alguns estoques

de peixes tradicionalmente explorados. Assim, surgem no fim desse período regulamentações

que tenderiam a monitorar a atividade pesqueira, delimitando o esforço sob a captura, os tipos

de aparelhos permitidos, malhas, áreas de pesca, épocas do defeso e tamanho mínimo de

captura e de cotas.

No cenário nacional, o relativo declínio dos estoques de pesca causado, sobretudo,

pelo impacto do modelo econômico-desenvolvimentista que estimulava a pesca industrial-

comercial, acabou determinando também os tipos insurgentes de conflitos sociais causados

pela disputa de acesso a determinados territórios de pesca fundamentados pela captura

desenfreada.

Desta forma, a criação da Lei n° 7.679 de 1988 regulamentaria a proibição da pesca

em determinados períodos de reprodução de espécies ameaçadas ou que tivessem seu ciclo

reprodutivo comprometido. Instituía-se o período do defeso penalizando, entre outras

atividades, a utilização de determinados apetrechos de pesca que causariam grandes impactos

na captura do pescado, assim como maior restrição a embarcações e pescadores sem

autorização de órgãos competentes.

O final da década de 80 e início dos anos 90 foram marcados pelas ações políticas

que caracterizaram um período de profundas transformações na Amazônia no que diz respeito

ao discurso de uso dos recursos naturais, datados sobretudo pela consolidação da ocupação

humana na região, pela intensificação do desmatamento e concentração urbana, iniciaria um

amplo debate nacional e internacional sobre o tipo de desenvolvimento que se pretendia para

a região e para os recursos naturais de uso comum.

A criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis – IBAMA representava a preocupação de ações comprometidas com estes

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100

propósitos, assim com o fato de que, para evitar o colapso dos recursos pesqueiros, seria

necessário pensar em ações que propiciassem o uso sustentado dos recursos, a economicidade

dos empreendimentos e a justiça socioambiental.

O desenvolvimento de diversos mecanismos gerenciais a partir da década de 90

possibilitaram pensar numa gestão integrada dos recursos ictiofaunísticos, fortalecendo o

estabelecimento de diretrizes claras sobre gestão integrada dos recursos, através de parcerias

do IBAMA com diversas agências e instituições de cooperação nacionais e internacionais.

Estas ações circulariam na esfera de um debate público sobre as possibilidades de

gestão dos recursos pesqueiros desencadeada pelas crises que, anteriormente, marcaram a

falência dos modelos de desenvolvimento econômico e de organização administrativa dos

recursos naturais, assim como o levante de debates sobre as questões ambientais e os termos

insurgentes: sustentabilidade, desenvolvimento sustentável, etnodesenvolvimento, etc.

O surgimento de uma legislação mais voltada para as questões ambientais tomava

corpo e consolidaria, através da normatização dos órgãos responsáveis, as dimensões

representativas do significado atribuído às questões ambientais e sua relação com a sociedade

e o modelo de produção vigente.

Basta tomarmos como centro de nossas análises a Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981

que dispõe sobre a política nacional do meio ambiente. Especificamente, o texto versa sobre

os mecanismos de formulação e aplicação das diretrizes dos órgãos responsáveis, contudo os

elementos constitutivos do texto-base são reflexos das mudanças de pensamento do Estado

sobre as questões ambientais.

A construção de um discurso ambiental aparece como elemento norteador das

políticas de reestruturação do Estado brasileiro pós-ditadura. A instituição dos objetivos da

política nacional do meio ambiente trata sobre duas questões fundamentais da realidade social

contemporânea as quais a sociedade brasileira vivenciou: as perspectivas de desenvolvimento

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econômico e sua relação com os modelos de gestão dos recursos naturais. A preservação,

melhoria e recuperação da qualidade ambiental assegurando as condições de

desenvolvimento socioeconômico aparecem como elementos fundamentais aos interesses da

segurança nacional nas políticas ambientais a partir da década de 80.

Os termos conceituais que norteiam estas ações são melhores exemplificados nos

parágrafos que se seguem no Art. 2º da Lei 6.938/81. Os aspectos gerais que versam sobre as

questões ambientais aparecem de acordo com um discurso que prioriza: a ação governamental

de manutenção do equilíbrio ecológico; racionalização, planejamento e fiscalização no uso

dos recursos disponíveis; proteção e preservação do patrimônio nacional; controle e

zoneamento das atividades potencialmente poluidoras; o incentivo a pesquisas e uso racional

dos recursos ambientais; acompanhamento do estado de qualidade do meio ambiente assim

como a recuperação e proteção de determinadas áreas; e por último, estímulo à educação

ambiental enquanto possibilidade de uma atuação mais ativa na sociedade.

Tais elementos compreendem um eixo discursivo sobre o planejamento e gestão dos

recursos naturais disponíveis. É claro que estas ações, incorporadas por um modelo central de

reordenamento dos bens necessários à sociedade, resultam de objetivos centrais quanto ao

modelo de política adotado pelo Estado brasileiro, sobretudo, com a tomada de decisões

políticas no cenário internacional quanto aos parâmetros de conservação do meio ambiente30

.

30

Em 1974, a Declaração de Cocoyoc no México trazia a discussão sobre ecodesenvolvimento no sentido de

incorporação de certas premissas. Em 1975, o Informe Dag Hammarskjold na Alemanha reunia a assembleia das

Nações Unidas sobre a gestão dos recursos naturais, demonstrando as possibilidades que viabilizariam um

processo de agregação dos ideais de conservação ambiental. Em 1984, é formada a Comissão Mundial sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento que, diante dos debates antecedentes , apontava para a elaboração de

propostas de avaliação dos processos de degradação ambiental e eficácia na construção de políticas ambientais, o

que culmina em 1987 com o relatório Bruntland publicado pelas Nações Unidas, conhecido como “Nosso futuro

comum”, abarcava a proposta objetiva de sustentabilidade igualitária satisfazendo as necessidades da população

sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras.

Em 1992, no Rio de Janeiro – Brasil, aconteceria a ECO 92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio

ambiente e desenvolvimento que enfocava dentro dos suscetíveis debates a vinculação da Agenda 21 como um

programa global para orientação de uma transição para o desenvolvimento sustentável que buscava discutir os

problemas ambientais e os modelos de desenvolvimento, a busca por parcerias para desenvolvimento local

sustentável, uma avaliação de necessidade de apoio externo e redução dos desperdícios potencializando a

diversidade local. Contudo, o conceito de desenvolvimento sustentável, que surge na década de 70 através do

relatório de união internacional para a conservação da natureza e se populariza no início dos anos 80, acaba

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As estratégias de ecodesenvolvimento emergiram no terreno de uma luta

política pela definição de uma nova ordem mundial apontando a possibilidade

de novos estilos de desenvolvimento, baseados no potencial ecológico de

diferentes regiões, na renovabilidade dos recursos naturais e na capacidade

própria dos povos do Terceiro Mundo. (LEFF 2000, 263);

Neste caso, a formulação de uma política ambiental brasileira incidia, ao mesmo

tempo, sob a preocupação com a exploração e desgaste dos recursos naturais disponíveis, na

medida que transpareceria em seus objetivos a compatibilização do desenvolvimento

econômico social aliado à preservação e equilíbrio do meio ambiente.

Considerando estas questões, ainda na Lei 6.938/81, podemos exemplificar, no Art.

4º dos objetivos da política nacional do meio ambiente, que o estabelecimento dos critérios,

padrões e normas relativas ao manejo de recursos ambientais são prioritários à ação

governamental dos interesses estratégicos da União, tornando-se central o desenvolvimento de

pesquisas, racionalização dos recursos disponíveis e difusão de tecnologias nacionais na

formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade

ambiental, além, é claro, de instituir os parâmetros que sancionam os mecanismos de pena e

indenização referentes a quaisquer tipos de ação considerados degradante ou poluidores do

meio ambiente.

Neste contexto, a Lei n° 9.605/98, em 12 de fevereiro de 1998, por exemplo,

representava o estabelecimento de sanções penais31

executadas pelos órgãos correspondentes

quanto aos crimes ambientais. Especificamente, o capítulo V na Seção I contemplaria os

crimes cometidos contra a fauna, assinalando no Art. 29, as penas referentes à legislação,

transparecendo como um discurso ecológico oficial e não oficial sem consenso algum enquanto significado, sem

refletir as possibilidades questionáveis de sabermos se suas propostas possuiriam algum sentido dentro do

quadro de organização institucional e econômico do capitalismo. 31

Posteriormente, o Decreto n° 3.179 de 21 de Setembro de 1999 regulamentaria a penalidades sobre o caráter

de multas às atividades causadoras de prejuízos ao meio ambiente.

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demonstrando a preocupação com a racionalização e controle contra quaisquer atos

criminosos contra recursos naturais patrimônios da União.

Estes casos são melhores exemplificados quando se estendem para o caso da pesca,

onde os Arts. 34, 35 e 36 da mesma lei, revelam aspectos sobre a proibição da pesca em

período e/ou lugar interditado; discutem sobre a normatização dos apetrechos frente às penas

e versam sobre o significado da atividade de pesca, apresentando especificamente as

penalidades às quais estão sujeitos: a detenção e reclusão para os crimes cometidos contra os

recursos pesqueiros.

A questão da pesca aparece como um dos elementos em que a regulação normativa

de acesso aos recursos assegurava, neste momento, um controle institucional mais eficaz.

Considerando as experiências passadas e, sobretudo, a pesca comercial predatória tanto na

costa marítima quanto nas águas interiores.

A racionalização do controle a partir das regras de acesso significava uma resposta,

ainda que carregada de ineficiências, pois produzia, muitas vezes, um discurso monológico e

verticatilizado quanto à relação entre Estado e Sociedade civil, geralmente representada por

conflitos sociais intracomunitários em detrimento de determinados espaços e seus recursos

disponíveis, apropriados pelos sujeitos interessados32

.

Estes aspectos contribuíram para a produção de um contra-discurso sobre as atuações

de órgãos fiscalizadores como o IBAMA, gerando uma tensão dual entre os sujeitos

envolvidos, servindo para a produção de uma visão negativa do órgão, ao mesmo tempo em

que endossava a organização ou surgimento dos movimentos sociais advindos de camadas

populares das sociedades rurais, sobretudo daqueles atingidos pela reestruturação de seus

modos de vida.

32

A relação entre a pesca comercial e a pesca de subsistência, por exemplo, representa exemplarmente as

dimensões tensionais dos atores em discurso.

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Ao longo dos últimos anos, a regularização e normatização administrativa de

controle ao acesso dos recursos pesqueiros passa por um processo mais complexo, garantindo

uma estruturação organizacional do setor bem como da execução das atividades de captura do

pescado.

A partir da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca criada através da Lei n°

10.683, de 28 de Maio 200333

, ocorrem, de forma mais centralizada, as atividades como a

regularização e a concessão de licenças para o desenvolvimento da pesca artesanal e

comercial, assim como das atividades ligadas aos acordos internacionais de pesca ultramarina

e litorânea, e, sobretudo, da manutenção administrativa dos registros, permissões e

autorizações do exercício da profissão pesqueira (RUFFINO, 2005).

Outro elemento importante consolidado ao longo daquilo que poderíamos considerar

resultado das ações das políticas públicas em debate com a sociedade civil, através das

organizações sociais e movimentos de trabalhadores da pesca, está na regulamentação da Lei

n° 10.779 de 25 de novembro de 2003, que estipularia a concessão de seguro-desemprego aos

pescadores profissionais e artesanais no período em que suas atividades estivesses paralisadas

parcialmente, em detrimento ao período do defeso, quando ocorre a reprodução de algumas

espécies de ciclo reprodutivo ameaçados.

Neste caso, o beneficio de um salário mínimo é concedido mensalmente no período

de proibição da pesca, sendo adotados alguns critérios para o recebimento, como a

comprovação dos registros profissionais, seguro social e filiação à colônia de pescadores

local.

O desenvolvimento da produção brasileira do pescado marcado pelas políticas de

governo, a partir da década de 60, representa as ações do Estado no sentido de estimular

economicamente o setor pesqueiro. Contudo as transformações decorrentes deste processo

33

Adiante veremos como este quadro vem ao longo do último ano se redimensionado a partir da criação do

Ministério da Pesca e Aquicultura - MPA no ano de 2009 sem, no entanto, nos fornecer possibilidades seguras

de uma interpretação mais coerente com suas ações recentes.

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implicaram mais aspectos contraditórios do que os previstos pelo simples condicionamento

das questões sociais à dimensão econômica.

Com o desenvolvimento do setor pesqueiro, também se intensificaram os conflitos, a

disputa territorial, a competição desigual entre a indústria pesqueira comercial – através da

modernização das embarcações, técnicas e apetrechos utilizados na captura. Contudo, a

sobrecarga da exploração dos recursos vem, ao longo das duas últimas décadas, se

intensificando na medida em que se consolidam também as normas de gestão e controle

através das leis estabelecidas pelos órgãos competentes.

No entanto, apesar de possuir os mecanismos específicos para o manejo, resolução

de conflitos por disputas e normas de pesca estabelecidas, as informações disponíveis

apresentam uma realidade diferenciada quanto à questão dos recursos disponíveis.

De acordo com as informações do Anuário Estatístico do Brasil, ao longo das

décadas em que houve maior desempenho das atividades de pesca, a produção nacional do

pescado passou de 281,5 mil toneladas em 1960 para 971,5 mil toneladas em 198534

. No

entanto, observa-se que, desde o ano de 1986, houve um declínio da produção, passando a

serem produzidos produzidas 798,6 mil toneladas de pescado em 1989, atingindo 697,6 mil

toneladas em 1994 (ABDALLAH, 1998).

Considerando ainda a dimensão de uso dos recursos, os dados do IBAMA segundo

Abdallah (1998) para o quinquênio 1996 a 2000, apontaram uma produção média nacional de

aproximadamente 650 mil toneladas, de alguma forma, confirmando a taxa decrescente da

produção do pescado no Brasil. Segundo o autor, é necessário considerarmos que, antes dos

anos 90, a produção média anual devido à pesca em águas interiores e à aquicultura era cerca

de 22%.

34

Os dados indicam a produção geral da pesca marinha e de águas interiores.

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106

Contudo, este percentual para os anos 90 aumentou para cerca de 30%,

caracterizando, por um lado a menor participação da pesca marítima35

– apenas 450 mil

toneladas em 2000 na reduzida produção pesqueira nacional. Além do efeito das políticas

públicas sobre os estoques de pescados, há que se considerar seu efeito sobre a indústria, a

renda e o emprego no setor pesqueiro que, considerando os modelos dos programas adotados,

revelam um pouco das condições para uma interpretação das novas iniciativas que marcam a

constituição das politicas atuais para a pesca no Brasil, sobretudo com a recente criação do

Ministério da Pesca e Aquicultura.

A redução do valor da produção pesqueira e do nível de emprego na captura e na

indústria do pescado revela um perfil diferenciado ao longo dos estudos analisados sobre o

estado evolutivo da pesca no Brasil. O número de estabelecimentos industriais de preparação

e fabricação do pescado, durante o período dos incentivos fiscais, aumentou

significativamente, passando de 174 em 1970 para 272 estabelecimentos em 1985, mostrando

uma taxa média de crescimento anual de 3%; enquanto essa taxa entre 1985 e 1995 (período

posterior à política de incentivos) foi de apenas 0,18% (ABDALLAH, 1998).

É possível pensar que todos os fatores que contribuíram para o processo de

incorporação das estratégias de desenvolvimento econômico aliado ao modelo de produção

capitalista da pesca comercial, elevaram o crescimento da economia e o acúmulo de capital,

transformando radicalmente a estrutura produtiva da pesca na Amazônia. Contudo não deixou

de consolidar grupos economicamente hegemônicos, consolidando relações de poder,

dominação, uso e exploração desenfreada dos recursos naturais patrocinadas pelos incentivos

e pela forma com que tratou o Estado na busca por alternativas viáveis ao desenvolvimento

econômico da Amazônia brasileira.

35

Para Paez (1993) e Giulietti & Assumpção (1995), a redução na produção pesqueira marítima se deve à

sobrepesca de algumas espécies, sobretudo à predação dos recursos naturais pesqueiros e à conseqüente

diminuição dos estoques.

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As inserções destes modelos acabaram causando a transformação dos padrões de

exploração das atividades pesqueira, de comercialização do pescado e de mudanças no quadro

de constituição de uma legislação específica voltadas para as questões ambientais e

verticalizadas sob a questão dos recursos pesqueiros.

Nas últimas três décadas, exerceu-se uma reconhecida influência na diminuição da

abundância dos principais estoques pesqueiros da Amazônia. Segundo Batista et. al (2004), o

quadro social que se observa dentre as comunidades pesqueiras da Amazônia está marcado

pelo o endividamento e exploração da força de trabalho dos grupos locais, transformações

socioculturais destes, mediante a introdução de novas técnicas e métodos na pesca, aumento

do esforço de pesca nos rios e lagos da região, bem como dos conflitos sociais, e pode ser

considerado como resultante da intensificação da pesca comercial.

O desenvolvimento histórico e socioeconômico da atividade pesqueira, como

atividade profissional e como uma dimensão da realidade do mundo do trabalho da região

amazônica, configura-se pelos processos que viabilizaram e inviabilizaram alternativas que

são hoje frutos da dimensão ambiental e do debate atual acerca do uso racional e sustentável

dos recursos pesqueiros.

É sob este contexto que as transformações socioeconômicas e políticas do Estado

brasileiro se articulam num processo histórico global que insere a Amazônia num discurso

onde a intensificação de estratégias que solucionassem a assimetria entre o desgaste dos

recursos naturais e o modo de produção vigente se tornaria uma preocupação global.

Neste sentido, o plano de ação para modelos de desenvolvimento econômico

possibilitaram a articulação de propostas que assegurassem sustentabilidade e crescimento

econômico, ao mesmo tempo em que assegurava a reacomodação estratégica do Capital

(LEFF, 2000) como modelo de produção vigente e inserido na região. Esta relação, de fato,

impõe à região Amazônica não só como objeto de preocupação geopolítica estratégica, mais

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também, reflete suas feições históricas e políticas moldadas nos surtos de

nacionalização/internacionalização dos seus lugares; estas estratégias e suas transformações

decorrentes configuram uma ruptura entre as realidades pretéritas e presentes (SILVA, 2002).

Na medida em que a sobre-exploração dos recursos naturais decorre de uma

intensiva ação comercial, do cerceamento de determinados locais de pesca, da

territorilialização simbólica dos rios e demais ambientes de pesca, as formas de controlar os

espaços traduzem-se como maneiras de aproveitar de maneira múltipla os recursos

disponíveis.

Contudo, também se traduzem como reflexo dos conflitos pelo acesso aos recursos

pesqueiros, sejam eles voltados para os interesses comerciais ou para a subsistência dos

grupos sociais rurais locais, representam uma dimensão daquilo que decorre das ações de

políticas governamentais em vistas ao desenvolvimento local.

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Capítulo 3 – Trabalhadores da Pesca

Neste capítulo, procuramos discorrer sobre as formas de organização dos pescadores

pensando a dimensão da pesca como trabalho, a partir da perspectiva diferenciada da ideia de

labor apresentada no primeiro capítulo. Desta forma, compreender o Baixo Solimões através

da comunidade Nossa Senhora das Graças da Costa do Pesqueiro, e evidenciando as relações

sociais de trabalho que constituem os modos de uso e apropriação dos recursos pesqueiros.

Neste sentido, estabelecemos um diálogo com as dimensões constitutivas da pesca local

através de aspectos como as transformações sociohistóricas e econômicas das atividades

pesqueiras na região da pesquisa, os processos de comercialização e renda proveniente do

trabalho na pesca, bem como as relações sociais de produção e organização do trabalho na

Costa do Pesqueiro.

Os aspectos apontados como fenômenos interpretativos da análise social pretendida,

decorrem do fato de pensar a pesca como um elemento fundamental na constituição das

sociedades rurais amazônicas, seja enquanto atividade profissional, seja como dimensão das

experiências sociais relacionadas à reprodução do modo de vida local. Estes elementos

demonstram um diálogo quanto à relação entre sociedade e ambiente frente às dimensões que

demarcam fronteiras de acesso aos recursos disponíveis, relações sociais de trabalho e

economia local.

Na medida em que ressaltamos os resultados da pesquisa, procuramos dar

inteligibilidade no sentido de interpretar de forma mais contextualizada a fala dos

participantes da pesquisa. Compreender as condições apresentadas frente às experiências

sociais dos pescadores possibilita um entendimento das relações de trabalho nas áreas de

várzea da Amazônia quanto a sua relação com a sociedade envolvente, o Estado e as políticas

de desenvolvimento regionais que asseguram um debate sobre as questões ambientais.

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3.1 O trabalho na pesca e suas transformações sociais na Costa do

Pesqueiro

O trabalho, como atividade humana, garante a produção e reprodução das relações

sociais de trabalho e não só o sustento da vida e da geração de renda das comunidades rurais

da Amazônia, desta forma, possibilitando adquirir outros artefatos necessários que não são

constituídos no mundo social rural por apresentarem-se como valor-de-troca.

Assim, o trabalho é entendido como um processo social mediado pela natureza que

garante não só a constituição do mundo material, mas também a cultura, o modo de vida e

manutenção das representações sociais produzidas e reproduzidas a partir do próprio trabalho.

No modo de vida da comunidade Nossa Senhora das Graças, a atividade pesqueira aparece

preponderante como fonte de renda, possibilitando-nos a percepção de sua importância para a

própria vida das famílias que lá habitam.

É necessário compreender o trabalho na pesca não a partir dele mesmo, mas da

maneira como ele constituiu e constitui os sujeitos sociais – os pescadores e as características

associadas ao mundo social da comunidade.

Para Arendt (2000), a durabilidade do trabalho humano é a marca ontológica daquilo

que denominou a prática do homo faber36

, ou seja, que fabrica a infinita variedade de coisas

cuja soma total constitui o artifício humano. Fabrica, por exemplo, na pesca, os apetrechos, o

acúmulo social dos saberes, as representações do mundo, as relações sociais de produção – o

mundo material e o imaterial. Sua durabilidade transparece pelo que fabrica e o que deixa no

mundo da reprodutibilidade da vida.

Pode-se dizer que as coisas fabricadas pelo homo faber são “objetos destinados ao

uso, dotados de durabilidade, elas não desaparecem e emprestam ao artifício a estabilidade e a

36

O homo faber que “faz” e literalmente “trabalha sobre” os materiais é a oposição ao animal laborans que

labora e “se mistura com eles” (ARENDT, 2000). Hannah Arendt explica que a palavra latina faber se relaciona

com facere (fazer alguma coisa no sentido de produção).

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solidez sem as quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e

instável que é o homem” (ARENDT, 2000, p.149). Para a autora, as coisas fabricadas são

frutos do artifício humano e servem para a durabilidade de seu uso, o que o uso desgasta é a

durabilidade da coisa em si e não seu ideal.

A constituição do trabalho, enquanto elemento do mundo vivido, pertence à

dimensão social das representações, da construção social da historia de vida e organização dos

grupos sociais. Neste sentido, compreender esta relação requer um entendimento das

instituições da ação humana diante das transformações do mundo, no intuito de possibilitar

uma interpretação dos fenômenos sociais decorrentes das mudanças. Estas interpretações

coincidem com a dimensão da memória social dos indivíduos diante daquilo que os marca e

demarca as suas condições de existência. Considerar estes elementos na constituição das

transformações do trabalho e das mudanças nas atividades pesqueiras é um fator crucial na

medida que possibilita uma abordagem inteligível das lembranças e mudanças sociais.

Para Halbwachs (1990), a memória social pode ser compreendida como uma

construção coletiva sobre as dimensões representativas do passado sobre as condições sociais

que determinado grupo vivenciou ou vivencia no presente. Assim, a lembrança do passado

informa o grupo sobre o seu presente, dando sentido ao fato de que ambos se constroem

mutuamente – pois são socialmente perceptíveis através das redes de informações que ligam

um sobre o outro. Desta forma, a função de explicar o presente partindo das constituições da

memória social, incide sobre os valores e heranças culturais vivenciadas, definindo a visão e a

interpretação lógica que determinado grupo pode adotar sobre os fatos que vivenciaram ou os

circundam.

Como um retrato do passado, a memória coletiva tem também um papel

importante na construção da identidade do grupo. Os indivíduos se

apresentam aos outros e enxergam a si mesmos tendo como referencial

básico as suas origens, desenhadas a partir de uma memória compartilhada e

transmitida através das gerações. Neste sentido em particular, a memória

coletiva expressa os valores culturais do grupo, pois se a memória é

constituída por uma seleção de feitos e marcos « memoráveis », ou seja,

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dignos de lembrança, ela demonstra os critérios que o grupo utiliza para

fazer sua seleção (LIMA & ALENCAR, 2001, p. 22)

A pesca vem se constituindo historicamente como atividade importante na

Comunidade. Tão importante que a denominação da localidade é Costa do Pesqueiro II onde

está localizada Nossa Senhora das Graças, a saber, que o trabalho na pesca se originou por

uma série de elementos que ao longo da história de formação da comunidade, se estabeleceu

enquanto fonte de renda para os moradores locais.

Tomando como análise as entrevistas realizadas por pescadores/moradores da

comunidade, é possível a interpretação de alguns fenômenos relacionados com o modo de

organização social da comunidade através da memória social dos sujeitos envolvidos e da

ocupação humana num período mais recente da vinda de famílias nordestinas que,

deslocando-se dos seringais do rio Purus, procuraram se estabelecer em locais como as

cabeceiras de rios e áreas de várzea principais.

No caso das áreas que compreendem o Baixo Solimões, as comunidades pertencentes

à Costa do Pesqueiro no município de Manacapuru – localizada nos arredores do perímetro

urbano do município – são exemplos significativos dos processos de dinâmica das populações

de várzea quanto ao modelo de distribuição demográfica e suas atividades socioeconômicas,

sendo relacionadas com as dimensões intersubjetivas da história social de vida.

[...] Porque os meus pais mesmo eles não são daqui não eles eram mais

antigos aqui, né. Porque eu já nasci aqui. E eu sou um dos mais novos. Aí

então que eu moro aqui mesmo eu tenho trinta e oito anos. Mas eles vivia no

Seringal, aí depois que nós viemos pra cá, né? A gente nascemos aqui, nós

trabalhava na agricultura. Aí depois apareceu o ramo da pesca aí nós viremo

pescador. Rapaz, eu... eu desde... na base de uns dezoito anos que eu

comecei a pescar. Dezoito anos pra cá, tenho vinte anos de pesca [...] (A. S.

43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

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Também é necessário salientar que o trabalho da pesca na comunidade se insere num

contexto situado e datado dentro do processo de desenvolvimento socioeconômico da própria

região, onde as atividades pesqueiras se tornaram relevantes, na medida em que o ciclo

econômico da juta e da malva decaíam e surgiam outras alternativas de renda, como a pesca

comercial, é importante perceber que este processo culmina com os projetos desenvolvimento

econômico voltados para a Amazônia, sobretudo para a pesca comercial. A pesca comercial é

inserida como dimensão do mundo do trabalho e da vida dos grupos sociais rurais na

Amazônia brasileira diante das próprias transformações que delineariam as sua interpretações

sobre o mundo que em vivem.

As mudanças que decorrem no processo de escolha pelo desenvolvimento de uma

atividade ou trabalho que garanta um renda para além da subsistência implicam as questões

sociais e históricas referentes à vida pessoal, às escolhas e, sobretudo, àquilo que constitui a

realidade local. As transformações decorrentes destes processos indicam que a adoção de uma

atividade considerada principal predispõe uma lógica tendencialmente voltada para um

mercado mediante as políticas de incentivos adotadas.

No caso das comunidades da Costa do Pesqueiro, onde a pesca historicamente

caracteriza as atividades locais enquanto profissão, procuramos evidenciar como acontece esta

passagem de um ciclo de economia local para outro37

, considerando a fala local, sendo

representante de uma explicação lógica para o abandono de um tipo de trabalho que resultava

uma renda sazonal. Neste caso, o trabalho na Malva e na Juta bastante comercializáveis com

sua introdução no fim da década de 20 pelos migrantes japoneses e seu declínio a partir da

década de 70, sendo paulatinamente substituída nas comunidades rurais de várzea pela prática

37

É claro que, não no sentido determinista de impor uma interpretação geral e válida, mas no sentido de

compreender as ações sociais decorrentes de uma escolha como atividade de trabalho, neste caso o relativo

abandono da malva – e não da agricultura sempre praticada de forma equivalente às outras atividades – para a

pesca.

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da pesca comercial, enquanto reflexo das condições de desenvolvimento e incentivo do

Estado.

[...] Aqui o trabalho mermo era malva, negócio da malva, da juta, mas

aconteceu porque é o seguinte. A malva, a pessoa tinha muito trabalho e o

rendimento não dava essas grande coisa. E as pessoa ficava dentro d‟água,

né? Aí começava a pegar reumatismo, fora as picada de arraia, de cobra, de

inseto, poraquê, “shami shuga” (sanguessuga). Isso aqui, ó (mostrando uma

cicatriz), isso aqui gerou de uma mordida. Aí nós visamos pro rumo da

pesca. E nós mudemos pra pesca, mas ainda ficava na pesca e na agricultura.

Aí nós criava gado também, aí nós acabamos com o gado e entramo no rumo

da pesca, mas aqui e acolá... porque afinal, a minha mãe era cearense e se

não plantasse malva pra ela, ela não criava os filhos, ela tinha uma fé muito

grande na malva. Aí antes ela nos botou todinhos pra malva. Aí isso pra ela

foi uma tristeza quando nós passamo a ser pescador. Ela ficou assim dizendo

que pra ela a pesca não ia ter lucro. Mas só que de primeiro a pesca ela tinha

uma prosperação (prosperidade) maior. Dava mais dinheiro... tinha mais

peixe. O dinheiro era quase a mesma coisa só que o peixe é que era farto

demais[...] (J. C. 59 anos, pescador e morador da comunidade Nossa

Senhora das Graças).

Podemos verificar, através dos relatos, que a pesca nem sempre foi uma atividade

predominante. Contudo, como salientamos, o desenvolvimento socioeconômico dos grupos

sociais rurais da Amazônia sempre estiveram ligados à intervenção política dos projetos

desenvolvimentistas adotados pelo Estado e, no caso da pesca, desde seu início na

comunidade não foi diferente. Como verificamos, até nos períodos mais recentes destas

intervenções, propôs-se a substituição dos “ciclos econômicos” impostos outrora através de

outros modelos de desenvolvimento econômico.

[...] antes eu não era pescador não, nem todo mundo aqui era disso, antes era

mais agricultura quando tinha umas terra aí que já se foram comida pelos

barranco nos rio, eu plantava malva...dava dinheiro, agora aqui é difícil viver

da agricultura pra vender só pra comer mesmo, aqui é difícil ter agricultor

agora, mais é pescador mesmo, mais recente a culpa foi do Amazonino (ex-

governador do Estado do Amazonas) que teve aqui e tirou a Malva pra

querer plantar soja, aí não deu certo e o pessoal se arranjou pela pesca...aí

quando o Eduardo Braga (atual governador do Estado) entrou e foi querer

dar semente de Malva pra nós plantá de novo já tava todo mundo na pesca

[...] (S. A. C. 63 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora

das Graças).

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Para Pantoja (2005), a malva e juta conheceram sua queda a partir de 1970 quando o

Brasil começa a importar a fibra, na medida em que ainda se adotavam medidas buscando a

autossuficiência dos plantios em regiões de várzea. Considerando que grande parte das

comunidades rurais de várzea trabalham sob condições de atividades polivalentes conforme o

período hidrológico de sazonalidade das águas – agricultura, extrativismo animal e vegetal.

Cabe ressaltar que a racionalidade no que tange a escolha ou mudança de uma atividade para

outra não implica necessariamente deixar de praticá-las.

Na medida em que o ciclo econômico da malva e juta decaía em decorrência da

falência de projetos específicos voltados para este setor, abriam-se outras possibilidades de

uma renda por meio do trabalho que garantisse dinheiro para a compra de bens não

produzidos no local, necessários à reprodução social do modo de vida rural.

Alguns fatores também determinam os critérios da escolha de uma atividade para

outra: a malva e a juta eram substituídas pela profissionalização do trabalho da pesca

comercial na medida em que perdiam espaço na política de planejamento e desenvolvimento

econômico regional adotado pelas secretarias e órgãos de produção38

. Enquanto isso,

observava-se um impulso ao comércio e industrialização da pesca na região.

Por outro lado, as condições de trabalho no processo produtivo da fibra, como afirma a

fala do morador local, sempre se constituíram como práticas insalubres, oferecendo perigo

sob diversas condições e situações39

já que demandavam extensivas áreas de plantio e força

de trabalho geralmente suplementar à força de trabalho familiar.

Diferente das demais situações, onde na agricultura se pratica determinados plantios

para alimentação, base da reprodução da unidade familiar, no cultivo das fibras, sua relação é

puramente comercial – já que não se come malva ou juta – estando subjugados às leis da

38

Para uma informação mais detalhada ver FERREIRA, A. da S. Trabalhadores da malva: (re) produção material

e simbólica da vida no baixo rio Solimões. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação Sociedade e

Cultura na Amazônia/UFAM. Manaus, 2009. 39

Também não significa dizermos que as condições insalubres e perigosas da pesca comercial não oferecessem

os mesmos ou piores riscos como de fato ocorrem.

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comercialização, sendo explorados pelos atravessadores locais e submetidos às condições

ambientais e climáticas que por hora também prejudicavam o plantio.

Contudo, com a crise da juta e malva e a inserção da prática comercial da pesca,

insere-se outra lógica quanto à apropriação social dos recursos naturais, delineando muito dos

problemas encontrados quanto a questão de sobre-exploração dos recursos pesqueiros.

A crise da juta trouxe também um aumento expressivo da pressão sobre a

fauna aquática, notadamente peixes. A pesca comercial conheceu grande

expansão nesse período. Geleiras e pescadores de fora das comunidades

passaram a freqüentar as águas dos rios, paranás e lagos, comprometendo os

estoques e potencializando conflitos com moradores locais com quem

disputava o acesso ao peixe (PANTOJA, 2005, p.161)

Neste caso, as abordagens na fala dos sujeitos entrevistados, quanto ao estoque de

pescado nos rios e lagos onde eram desenvolvidas as práticas pesqueiras, referenciam a

realidade da interpretação obtida quanto à questão das transformações, através das condições

sociais do trabalho entre os pescadores e quanto a dimensão de acesso aos recursos. Ressalta-

se muito nas falas dos entrevistados, a relação do acesso à fartura abundante de determinadas

espécies consideradas essenciais ao setor comercial, assim como seu declínio em determinado

momento.

[...]Naquela época ainda existia muito tambaqui... nos lagos, nós tínha um

motorzinho e nós subia aqui pra cima, e nós íamos pescar lá pra dentro do

copeá ali pra dentro do Solimões acima de Coari. Ave Maria, nós trazia

palpado só de “tambaquizão” mesmo. Tinha muito peixe. Não dava preguiça

pra você... olha nós saia por aí por esses lagos pra pescar, né? Aí nós dava

aqueles lance com esses arrastão grande de peixe miúdo aí, as vezes tinha

aquele urubuzal na beira perseguindo. Aí nós cansamo de partir quatro ou

cinco tambaqui assim miudinho e botava para os urubus, na hora que nós já

vínhamos embora. E sobrava que o motor não pegava. Que naquela época

tinha muita fartura, tinha muito peixe, né? O preço era quase a mesma coisa,

mas era fácil de pegar, num mês tu fazia duas, três viagem num era? Aí dava

muito. Dava pra garantir a vida né? Aí de uns tempos aí foi

fracassando mais, foi fracassando [...]. (S. C. 43 anos, pescador e

morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

A atividade é marcada por um processo social que inclui elementos bastantes

peculiares da região, a comercialização entre pescadores locais e os agentes de

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comercialização dentre inúmeros fatores demonstram este fato. O processo de “aviamento”40

,

por exemplo, é um destes fatores que resulta da mediação desigual travada entre possuidores

do capital comercial (compradores) e donos da força-de-trabalho que obtém através dela sua

subsistência, como é o caso do moradores e trabalhadores da pesca nas comunidades rurais.

Segundo Pereira et al. (2007), o problema nesta relação socioeconômica é que o

pescador paga geralmente a sua dívida com o “aviador” com bastante dificuldade, devido ao

fato de o preço dos produtos vendidos ser bastante elevado, ao passo que o preço pago pelo

pescado se mantém quase sempre o mesmo. Esta relação desigual faz com que o pescador não

consiga manter uma receita estável e satisfatória, pois, mesmo que possa pagar sua dívida,

sobra bem pouco para investir em outras necessidades.

As informações sobre a comunidade Nossa Senhora das Graças revelam aspectos

constitutivos das atividades de pesca na Costa do Pesqueiro, sobretudo em relação aos

primeiros moradores que iniciaram a prática, sendo observados os períodos, o contexto

histórico e as formas utilizadas num momento em que ainda se popularizavam as redes de

malha, polietileno e o nylon. De forma detalhada, percebem-se às mudanças quanto as

relações sociais de trabalho entre os pescadores e suas representações quanto aos processos de

inclusão dos apetrechos utilizados na captura do pescado.

[...] O primeiro pescador aqui foi o seu Carlito. Eu era pequeno que nem esse

menino assim, eu tinha uns oito anos, né. Aí as malhadeiras as boias eram

essas latas, num têm essas latas de leite ninho? Pois é! Era, tampada.

amarrava uma corda aí botava aquelas curtiças que a gente colocava no

arrastão, aí que ele chamava meu pai pra pescar e ele só tinha uma

malhadeira, era uma malhadeira daqui pra essa cerca aí ó...ele tinha uma

canoa maior do que essa que a gente andava hoje. Era um quarenta na popa,

uma canoazona dessas de popa. Um avuador41

que ele tinha. Vinte e cinco

litros, vinte e cinco. E sempre eu fui apegado com meu pai, aí então eu

chorava pra ir com meu pai, aí nós se atava nesse barranco aí mesmo, nós só

40

Para Mello (1985), o “aviamento” é um processo caracterizado por um sistema de crédito que se estabelece

entre o „aviador‟ e o „aviado‟, onde aquele antecipa produtos ao segundo que, nada tendo em troca a dar no ato

da transação, só lhe pagará posteriormente com o resultado de seu trabalho, geralmente aparecem na figura do

patrão, regatão, feirantes, donos de frigoríficos, despachantes e marreteiros. 41

Pequenas embarcações com motor de velocidade considerável para o deslocamento nos rios, popularmente

conhecido na região como voadeiras.

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descaía essa malhadeira só num lance, aquilo mexia nas lata tudo, a canoa só

era o bastante, essa arriada pra canoa vir até o talo de peixe. E era todo tipo

de peixe que tu imaginar, Aí o pessoal pra ter uma malhadeira era daqui pra

li... não existia linha naquela época, né [...](S. C. 43 anos, pescador e

morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

Os tipos de instrumentos utilizados apontam para um período intermediário das

transformações do modelo de pesca introduzido na Costa do Pesqueiro, já que grande parte

das atividades eram destinadas à subsistência, logo utilizavam apetrechos de baixo impacto e

relativamente artesanais como descreve Veríssimo (1985). Com o desenvolvimento intensivo

da pesca comercial no Baixo Solimões, as mudanças e introdução de novos apetrechos na

captura de espécies comercializáveis, sobretudo dos bagres42

, a partir de uma lógica mercantil

patrocinada pela grande leva de barcos de pesca, frigoríficos, e novas formas de trabalho na

captura do pescado incentivaram as comunidades locais da Costa do Pesqueiro a uma corrida

desenfreada ao trabalho comercial da pesca.

[...] As primeiras linhas que vieram depois eram aquelas linha grossa de

nylon, aqueles lombo grosso assim, hoje aqueles nylon que eles pescavam

naquele tempo é o que já entralha aqui a malhadeira. Hoje o que pesca já é

bem fininho já, mas naquela época a malhadeira era bem grossona mesmo.

Porque tinha fera que pra embarcar era uma luta, aquela ferazona monstra.

Aí aquilo era bioador. Nessa época só era de noite que a gente pescava

porque era na beira da pauzada, não pescava de dia, porque todos

trabalhavam na agricultura e tavam ocupados, o meu pai cortava seringa às

vezes saía de madrugada, aí só tinha aquele tempo pra ir só à boca da noite,

era perigoso, muita gente morria mas dava dinheiro né [..]. (S. C. 43 anos,

pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] Naquela época, tu acha que dava mais dinheiro, mas num dava quase

dinheiro era porque pegava muito. Uma época dessa se conseguisse pegar,

encher um canoa daquela de peixe que nós andava tu já ia ficar boçal de

mais porque com o dinheiro que tu ia pegar numa canoada daquela. Antes

tudo era peixe grande. Agora os peixe tudo são pequeno [...](J. C. S. 64 anos,

pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

42

Popularmente chamados de peixes lisos ou feras, ocorre uma intensificação de sua captura já que não eram

tradicionalmente consumidos por possuírem uma estética diferenciada dos peixes de escama tradicionalmente

consumidos. O termo fera parece denominar uma distinção daquilo que é animalesco e não pode ser domado

(consumido) pelo homem na medida em que circundam elementos e crenças populares à seu respeito, tais como

a reima descrito por Mariza Peirano (1975) em A reima do Peixe: Proibições Alimentares numa Comunidade de.

Pescadores.

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A pesca representa hoje boa parte da renda dos moradores da comunidade, ao mesmo

tempo em que ela se impõe como atividade importante, traz mudanças significativas do ponto

de vista das relações estabelecidas entre a comunidade e o mercado da pesca. Por se tratar de

uma atividade que possui um caráter muito singular, acabou desenvolvendo-se de maneira

crescente nas comunidades a ponto de se verificar, através dos depoimentos seguintes,

importantes transformações:

[...] quando eu comecei num era tudo isso que é hoje, num era todo mundo

que tinha material não, eu só tinha uma rede, hoje cada um tem quatro ou

mais rede de pesca (A. A. S., 42 anos, morador, pescador e proprietário de

um flutuante que comercializa a produção do pescado na comunidade).

[...] aumentou muito o número de utensílios pros pescadores, isso porque a

colônia financiou pra quem não tinha condições também ( D. C. B. 32 anos,

morador, pescador e proprietário de um flutuante que comercializa a

produção do pescado na comunidade).

Na medida em que o capital se expande e dinamiza as relações sociais de produção

torna as mudanças inexoráveis. A mobilidade dos recursos pesqueiros nos ecossistemas

marcados pela complexidade dos fenômenos naturais é, em grande parte, responsável pela

imprevisibilidade da captura com reflexos imediatos na própria organização da produção e do

mercado, as modalidades de relações sociais entre os agentes da produção parecem ser

também influenciadas pelas condições naturais em que se realiza essa atividade (DIEGUES,

1983), no entanto, denotam mais elementos constitutivos que possibilitam as transformações

necessárias para a efetividade da prática pesqueira.

As mudanças sociais decorrentes dos processos de constituição da comunidade

Nossa Senhora das Graças incidem sobre os momentos de transformação das condições de

reprodução social local e das formas de trabalho estabelecidas. Para além das mudanças

físico-espaciais que instituem o território ambiente das localidades, a dimensão do trabalho e

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dos ciclos econômicos de desenvolvimento local demonstra aspectos significativos ao

entendimento da formação das práticas de pesca.

A instrumentalização da racionalidade comercial na pesca, incentivada por um boom

do modo de produção capitalista na Amazônia, pode ser pensada na medida em que

contextualizamos a dimensão empresarial das grandes indústrias de beneficiamento do

pescado na região. Particularmente em Manacapuru, este processo fora incentivado pela

chegada dos frigoríficos43

, proliferando o tipo de pesca embarcada, incentivando os

moradores locais à profissionalização da prática pesqueira sem, no entanto, fomentar as

condições legais para estas ações.

Isto implica dizer que a parte significativa de todo o processo de produção/captura do

pescado era realizada de forma autônoma pelos pescadores, já que o investimento da pesca se

voltava para as grandes empresas e para a aquisição de materiais e apetrechos, armando os

pescadores moradores das comunidades e incentivando a lógica do comércio do pescado,

assim, vendia-se o peixe convertendo em dinheiro e este convertido em bens necessários ao

modo de vida rural local dos pescadores.

Para Cruz (2009), estes fatores decorrentes da mudança social da vida ribeirinha na

Costa do Pesqueiro ocasionariam a ânsia de se conseguir uma boa pescaria entre os

comunitários e uma boa venda, lançando-se na captura de espécies até então não pescadas,

abrindo a concorrência pela captura dos peixes lisos e ocasionando o controle do acesso a

determinados locais de pesca, demandando territorialidades e mecanismos de uso dos recursos

interpretados sob leis consuetudinárias locais enquanto expressões da organização dos

pescadores.

Esse tipo de relação impôs uma lógica de exploração da mão de bra autônoma e sem

custos para as grandes empresas frigoríficas, além de incentivar à subordinação à captura

43

Ver Smith (1979) e Parente et. Al. (2005) sobre o desenvolvimento da pesca e sua relação com os modelos de

inserção industrial do capitalismo na pesca dos peixes lisos.

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desenfreada e uso extensivo e intensivo de apetrechos mais eficazes, tensionando os estoques

de pesca nos lagos e rios de livre acesso. Na medida em que se instigavam os conflitos e

disputas territoriais demarcando-se espaços, incentiva-se a pesca nas noites e madrugadas a

bordo de pequenas canoas nos grandes rio da região e nos lugares onde tradicionalmente se

pescava para fins de subsistência.

Para pensar a atividade pesqueira, a partir deste contexto, é necessário salientarmos a

sua importância na medida em que resulta numa alternativa de subsistência e renda. Alguns

aspectos representativos que se tornam importantes nas comunidades rurais, onde a pesca se

insere como atividade profissional, é a predominância da pesca como atividade monovalente.

Tal como compreende Furtado (1993), a pesca monovalente se ocupa prioritariamente

enquanto elemento único ou principal de atividade remunerada, reservando pouco tempo para

outras atividades de subsistência. Contrário a isso, na categoria social da pequena pesca

comercial, destaca-se a figura do pescador polivalente, pescador não especialista, que, devido

a diversos fatores, como o hidrológico, costuma exercer uma multiplicidade de atividades de

subsistência.

No caso da comunidade Nossa Senhora das Graças, os princípios encontrados que

caracterizam os moradores como pescadores profissionais monovalentes estão em sua

singularidade e na maneira como lidam com esta atividade. Na medida em que há uma

extensão do mercado consumidor e a disponibilidade de recursos pesqueiros próximos às

comunidades, é possível que um maior número de sujeitos sociais passe a se dedicar à pesca

como principal meio de vida. Para viabilizar a produção pesqueira, os sujeitos sociais tendem

a se (re)organizar socialmente, inclusive no âmbito de suas forças produtivas, objetivando

garantir a sua sustentação material e social.

A reorganização das unidades de produção, isto é, dos grupos de pescadores

e de suas forças produtivas ou meios de produção se distingue quanto à

intensidade da pesca comercial praticada em nível local. A quantidade e

diversidade de apetrechos, o tempo gasto na atividade da pesca, o número de

pescadores atuando coletivamente na captura do pescado varia conforme o

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interesse e as condições dos grupos sociais.As famílias destas comunidades

dispõem de diversos ambientes de pesca e de uma infinidade de espécies de

peixes potencialmente comercializáveis, sobre as quais atuam diferentes

categorias sociais de pescadores (PEREIRA et al. 2007).

As atividades da pesca no Amazonas possibilitaram, nos dias de hoje, o crescimento

de um mercado que também inseriu a comunidade Nossa Senhora das Graças, pois possibilita

um acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento desta atividade, na medida em

que os pescadores possuem compreensão da demanda e comercialização do pescado nesta

região. A expansão do capital, a articulação de formas diferentes de organização da produção,

a dominância de uma forma de produção sobre as outras, sua realização histórica diferenciada

em nível nacional e regional são elementos que, segundo Diegues (1983), são as bases na

interpretação das chamadas diferenças regionais existentes na pesca.

Estas também se caracterizam pela apropriação final do produto pelo modo

tipicamente capitalista das relações sociais de produção, que é realizado pelo intermédio das

pequenas unidades de produção familiares, em regime de produção mercantil simples, como

no caso das comunidades rurais que trabalham com a pesca, mas a comercialização do

produto é realizada por empresas capitalistas de fora da área.

3.2 Trabalho, Renda da água e as redes de comercialização.

Trabalhar com a dimensão da renda da água significa uma interpretação sobre as

atividades desenvolvidas no trabalho da pesca considerando a constituição dos fatores

socioeconômicos e ambientais, já que a teoria da renda se refere a uma capitalização dos

recursos disponíveis, sejam eles a força de trabalho e as condições de acesso ou

transformações dos bens e recursos. Em todo caso, o objetivo maior é compreender os

sentidos dados aos rios, lagos e demais ecótipos sobre sua capacidade produtiva diante da

atividade da pesca, sobretudo comercial, criando a possibilidade de transformarem-se em

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renda para grande parte dos moradores das comunidades que possuem na pesca esta

viabilidade.

Na tentativa de compreender a relação entre o trabalho da pesca e o uso dos recursos

pesqueiros, procuramos delinear algumas características que constituem o marco referencial

da análise pretendida. As dimensões do trabalho e sua relação com a renda obtida através da

água – de seus recursos – permite-nos interpretar o processo de comercialização e as relações

sociais de produção. Porém, acreditamos ser essencial uma reconstituição, ainda que grosso

modo, das categorias de entendimento sobre a teoria da renda da terra nos estudos da

economia clássica para que, desta maneira, possamos viabilizar uma interpretação mais

fundamentada a respeito da realidade amazônica44

.

Nas teorias do pensamento econômico clássico, a teoria da Renda da terra aparece

como elemento constitutivo do modo de produção capitalista e possue lugar considerável nas

estruturas de organização da sociedade e seus modelos de produção.

Geralmente, atribui-se a teoria da renda da terra a partir das análises de David

Ricardo sobre as taxas de lucro da acumulação capitalista e sua relação com as questões

fundiárias e os antagonismos das classes sociais. Contudo, a questão ganha um profundo

debate a partir de outros teóricos da economia inglesa, sobretudo Thomas Malthus, Adam

Smith e, mais adiante por Karl Marx.

É claro que, no processo de compreensão dos fenômenos econômicos decorrentes da

sociedade européia, as transformações que demarcam a constituição do mercado e da

consolidação do modo de produção capitalista não poderiam se deslocar do centro do debate

sobre produção e riqueza a questão da terra. Com a valorização dos recursos naturais, a terra é

vislumbrada enquanto dimensão representativa de todos os recursos naturais (o solo fértil, as

árvores, os rios) passíveis de se transformarem em bens para a necessidade humana, tornando

44

Para outra interpretação sobre o processo de trabalho nas várzeas e sua relação com a questão da Renda

consultar Fraxe (2000): Elementos constitutivos da produção camponesa: A renda da “terra molhada” e a

Renda da água.

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sua relação com o homem crucial, frente à produção de riquezas enquanto sua necessidade de

valor de troca.

A teoria Malthusiana sobre a análise do crescimento populacional e sua relação com

a produção de alimentos mostrava, para além de uma análise fisiocrata, que a tendência de

progressão aritmética do crescimento da população acarretaria uma demanda pela terra. Logo,

o preço e os custos da produção e uso da terra tenderiam a crescer, explicando que a renda

obtida desta relação poderia ser interpretada através de elementos como a qualidade e

fertilidade do solo, as características singulares do produto como uma demanda do mercado e

a escassez de terras mais férteis para o processo de produção. Para Lenz (1981), destes três

elementos, Malthus afirma que o primeiro é mais importante do que o fator de monopólio que

foi reconhecido anteriormente. Pois ele afirma que a qualidade da terra é um presente da

natureza ao homem e é essencial na formação da renda.

Utilizando as teorias de Malthus, David Ricardo assinala que as questões

relacionadas à renda da terra indicam uma constituição onde os diferentes graus de

produtividade da terra exigiriam uma maior quantidade de trabalho para a sua produção,

ocasionando sua teoria do valor sobre o preço de determinado produto e gerando, desta forma,

a renda. Neste sentido, propõe, como hipótese, que a renda da terra poderia ser pensada pelo

grau de fertilidade dos recursos naturais que ela dispõe para a produção, assim outros fatores

como a concorrência igualariam a taxa de lucro dos trabalhadores de terra que arrendassem

terras dos proprietários capitalistas.

Ricardo denomina de a Lei da Renda Fundiária, a relação em que os produtos das

terras mais férteis são produzidos a custo menor, porém vendidos ao mesmo preço das

propriedade menos férteis, possibilitando aos seus proprietários uma renda fundiária igual à

diferença de produção, pois se acreditava que o preço da terra era dado em função das piores

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condições de produção, o que significa as piores terras, desta forma, a melhor terra tinha o

maior preço, Ricardo denomina esta diferença de renda da terra.

Sua definição, segundo Lenz (1981), corresponde ao fato de que a renda se configura

como parte do valor do produto total que resta ao proprietário após o pagamento de todas as

despesas de qualquer espécie correspondente ao cultivo; nestas, incluindo todas as despesas e

os lucros do capital empregado, fazendo o calculo da taxa usual e comum dos lucros do

capital agrícola no período de tempo considerado.

A renda da terra, para Adam Smith, corresponde ao preço pago pela existência da

propriedade privada da terra. Neste sentido, deve-se ressaltar o fato de ter sido o primeiro

autor a identificar a renda da terra como uma categoria econômica e ter empreendido o estudo

mais exaustivo e mais longo existente na história do pensamento econômico (LENZ, 1981).

Para Smith, sua análise econômica decorre sobre os aspectos que marcam o fenômeno de

relação entre a renda da terra e a questão da determinação dos valores e preços atribuídos ao

processo produtivo e, sobretudo, sua distribuição a partir de classes sociais diferenciadas

economicamente, traçando, assim, um perfil sobre o processo de desenvolvimento econômico

e da riqueza dos países capitalistas. Para Lenz (1981), a análise de Adam Smith significa um

marco, um divisor de águas, em relação à abordagem dada à análise da renda da terra, pois é

só a partir de seu estudo que fica estabelecida a base analítica da qual todos os autores que o

sucederam se utilizaram necessariamente.

Em Karl Marx, a teoria da renda da terra ganha as contribuições teórica de David

Ricardo no sentido de formular suas observações acerca da concentração fundiária do capital

através do processo de especulação e acumulação. Ampliando o domínio das interpretações

econômicas do modo de produção capitalista, Marx (1971) diferencia os tipos de renda a

partir da categorização de alguns aspectos cruciais ao entendimento do fenômeno. Neste

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sentido, apresenta quatro tipos de renda: A Renda Absoluta, a Renda de Monopólio e as

Rendas Diferenciais I e II.

Para Marx (1971), esta diferenciação resultava em elementos de compreensão

ordenados de acordo com as ações no processo produtivo. A Renda Absoluta era obtida pelo

próprio solo, ou seja, suas características físicas (relevo, área, etc.), já a Renda do Monopólio

era determinada pela condição única do solo em relação ao mercado (Valor). Contudo, em

ambos os casos, o proprietário obtinha a renda.

Aprofundando estes aspectos, Marx (1971) delineia outros os elementos constitutivos

da teoria da renda da terra, através da Renda diferencial I e II. Assim, a Renda Diferencial I

seria determinada pelas condições naturais do solo explorado no processo de produção de

riqueza no capitalismo, neste sentido, destacam-se, por exemplo, a fertilidade e a localização

da terra, pois permitiriam menores gastos para produzir pelo mesmo equivalente de espaço a

quantidade de produtos que em outros lugares com piores condições de produção. Na Renda

Diferencial II, os termos da taxa de lucro se ajustam pela determinação da quantidade de

capital investido na terra por meio da utilização de equipamentos favoráveis a um melhor

resultado na produção, por exemplo, o uso da irrigação, drenagem, insumos e fertilizantes,

possibilitando maior volume de produção de forma intensiva em quantidades de terra menos

favoráveis.

A partir de uma análise sobre o uso dos recursos pesqueiros e sua relação com o

trabalho desenvolvido e a renda obtida pelos pescadores, procuramos apontar alguns

elementos que constituem a realidade social da pesca na Costa do Pesqueiro através dos

resultados obtidos em campo de pesquisa, para que possamos pensar na constituição daquilo

que denominamos de renda da água.

O fato de Manacapuru ser um dos municípios responsáveis pela grande quantidade

de pescado comercializável no Médio e Baixo Solimões, comporta a dimensão de município

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dotado de grande quantidade de profissionais da pesca no abastecimento de mercados

regionais e nacionais. A racionalidade econômica da pesca perpassa pelas ações dos

pescadores em voltar seus interesses para a captura e comercialização do pescado em espaços

socialmente diferenciado e territorialmente demarcados.

Contudo, tornar a pesca uma atividade de trabalho que necessariamente possibilita

uma renda em dinheiro, decorre dos pescadores uma compreensão de que existe uma

demanda estabelecida sobre o acesso e comercialização, estrategicamente desenvolvida no

campo econômico regional, antes pouco pretendido na região e agora estabelecida pelo

advento da pesca comercial na região e de seus incentivos à tecnificação do setor pesqueiro

(Figura 23).

Entendido como fonte de valor-de-troca na obtenção de outros bens de consumo não

produzidos no mundo rural, a pesca comercial possibilita no Baixo Solimões e demais

regiões, uma reconfiguração das relações de trabalho, apropriação dos recursos naturais

disponíveis e, conseguinte, maior intensificação das relações comerciais entre pescadores

(indiferente de seus métodos artesanais ou não de captura) e o comércio estabelecido entre os

Figura 23 – Percentual de origem do desembarque de

pesca do Estado.

Fonte: CARDOSO, 2004.

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agentes interessados em se apropriar do pescado, sobretudo os flutuantes nas comunidades e

frigoríficos em Manacapuru, formando, assim, as redes de comercialização da pesca.

Os ribeirinhos vendem os produtos dos diversos ecótipos em que trabalham e

compram, através do mercado em rede, produtos que nem eles, nem seus

vizinhos produzem. Os agentes de comercialização, por isso, assumem um

papel fundamental, adquirindo, em outros setores da sociedade global, esses

produtos (vestuário, óleo, remédios, café, açúcar, querosene etc.), cada um

desses produtos pode, inclusive, ter sido originário (matéria prima) de mãos

camponesas de outras regiões, Estados ou nações (FRAXE, 2000, p.159).

Para Wolf (1970) a definição de mercado em rede agrega elementos distintos entre a

predisposição comercial das sociedades rurais e o fruto de seu trabalho manterem um diálogo

com extensões comerciais de troca de bens socialmente diferenciados, pressupondo um valor-

de-troca, neste caso, a relação entre a renda proveniente da pesca. Ainda que haja uma

distinção entre grupos socialmente diferenciados, enquanto membros de comunidades ou de

pescadores em determinados espaços, o mercado se encarregaria, por um lado, de agregar

indistintamente estes sujeitos, mediando seus objetivos e agindo como elemento regulador das

relações de interesse e troca comercial.

Essa cadeia de troca envolve não somente um número crescente de

intermediários, mas também, adicionam ao movimento horizontal bens e

serviços aos membros de uma população camponesa. Através deles, os bens

passam, do campo às vilas, das vilas às cidades do interior, das cidades aos

portos, dos portos aos mercados da capital (Manaus), ou até mesmo a outros

países. Nesta perspectiva, as trocas em um mercado local, dos bens

produzidos também localmente, formam apenas um pequeno setor de trocas,

no mercado regional. As permutas regionais são, apenas, uma pequena

amostra da rede nacional de troca, que é uma pequena parcela dos mercados

internacionais (FRAXE, 2000, p.160).

Evidentemente, não podemos reduzir as redes de comercialização da pesca a partir

de uma perspectiva que considere somente a dimensão econômica já que, em se tratando da

vida rural dos grupos sociais amazônicos, outros elementos sociais também constituem sua

relação com o mercado e as redes de comercialização da pesca, aspectos fundados nas

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relações tradicionais que agregam fatores como parentesco, religião e organização político-

comunitárias.

Ainda que a intensificação das atividades pesqueiras proporcione uma relação

diferenciada entre o uso dos ambientes, os sujeitos envolvidos e as relações comerciais

predispostas numa rede de comercialização e a constituição de aspectos do mundo

tradicionalmente vivido em comunidade delineiam as trocas, o trabalho e até mesmo a relação

de conflito na disputa territorial de acesso ao pescado.

Por outro lado, não devemos desconsiderar que todos estes fatores não interessam ou

interessam parcialmente ao mercado pesqueiro, já que são parcialmente invisíveis em

detrimento das condições impostas sobre o trabalho executado e o valor do produto obtido,

possibilitando não muito além de laços econômicos45

entre detentores do capital comercial –

os grandes frigoríficos, flutuantes e barcos de compra do pescado (atravessadores) – e os

pescadores que trabalham de forma autônoma ou embarcados.

Em Nossa Senhora das Graças, a pesca é realizada em ambientes diferenciados entre

espaços abertos e fechados, dentre os quais, os lagos, furos e os rios Solimões e Purus,

principais ambientes de pesca local, apresentam atividades consideráveis para as quais se

deslocam alguns pescadores com barcos motorizados, e os diferentes lagos e igapós sempre

muito piscosos.

As informações obtidas demonstram a relevância das atividades pesqueiras no

município de Manacapuru, assim como na comunidade Nossa Senhora das Graças, onde a

presença do mercado comercial da pesca transparece nas relações entre os pescadores locais e

os flutuantes existentes na comunidade, que funcionam como um entreposto do pescado até a

45

É claro que não deixamos de considerar que, para além das condições econômicas, existe uma esfera da vida

política bastante atuante que regulamenta os direcionamentos das políticas pesqueiras, sua relação com a

economia e com o ambiente e recursos disponíveis. Atualmente esta relação ganha mais sentido e

reconhecimento quando consideramos a importância da participação política dos pescadores através de

sindicatos, associações e colônias de pescadores mediando o dialogo tenso entre Sociedade civil e Estado.

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comercialização final nos grandes frigoríficos na sede do município em Manacapuru, e de lá

para outras regiões do país.

Os frigoríficos, por sua vez, mantêm relações com os trabalhadores da pesca nas

comunidades através da compra dos seus produtos e também pelos vínculos de parentesco e

de convivência com os pescadores já que também são moradores da comunidade.

A comercialização da pesca na comunidade é mediada na maioria das vezes pelos

flutuantes e pelos barcos de pesca que funcionam como atravessadores e levam o pescado

para os frigoríficos em Manacapuru, já que poucos pescadores se dirigem diretamente aos

frigoríficos localizados na sede do município; nos flutuantes, o produto da pesca é pesado e

armazenado, seu equivalente é pago aos pescadores conforme a tabela que designa o preço do

pescado, seu tamanho e qualidade de acordo com o período hidrológico do momento.

Figura 25 – Terminal pesqueiro de Manacapuru, um

dos locais que recebe diariamente o pescado

capturado pelos trabalhadores das comunidades rurais

do município.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 24 – Flutuante localizado na comunidade

servindo como entreposto da comercialização do

pescado até seu destino final em Manacapuru.

Fonte: RAPOZO, 2008.

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Como afirmamos, poucos são os pescadores que se deslocam ao mercado de venda

do pescado em Manacapuru, além dos custos de deslocamento, existem outras relações que

demarcam a renda final obtida na captura do pescado, muitas vezes, condicionadas a uma

Figura 26 – Desembarque da captura do pescado em

um dos flutuantes na Comunidade.

Fonte: RAPOZO, 2008.

Figura 28 – Destino de comercialização da pesca na Comunidade

Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

Figura 27 – Barco atravessador que medeia a

comercialização do pescado

Fonte: RAPOZO, 2009.

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relação de controle dos flutuantes, através da subsunção dos apetrechos utilizados na captura

ou do pagamento adiantado do produto aos pescadores.

Este processo induz a pesca em pequena escala e de forma autônoma na comunidade,

pois, nas condições atuais, o custo para os pescadores seria mais alto se ocorresse diretamente

a entrega do pescado direto aos frigoríficos na sede do município, por isso os pescadores

optam em manter relações comerciais com os patrões donos dos flutuantes, na comunidade,

estando sujeitos à variação dos preços do pescado, como afirmamos, dependendo do período

(ciclo hidrológico dos ambientes aquáticos), da oferta e da demanda do pescado.

Figura 29 – Apetrechos utilizados na captura do pescado.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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A partir destes elementos é possível demonstrar como ocorrem os processos que

desencadeiam as redes locais de comercialização do pescado e a renda da água como

resultado da força de trabalho e enquanto valor-de-troca dos pescadores da comunidade Nossa

Senhora das Graças.

Figura 30 – Processo de recepção do pescado

no flutuante onde são separados por espécies.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 31 – O pescado é separado por tamanho

e, em seguida, pesado.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 32 – Armazenamento do pescado para em seguida ser levado ao

barco.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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Em se tratando das condições apresentadas sobre o tipo de renda proveniente do

trabalho na pesca, podemos considerar alguns aspectos para o entendimento de nossa

interpretação. O valor da renda absoluta, ou seja, obtida sob as condições ambientalmente

dispostas é o elemento estrutural das atividades desenvolvidas, já que na renda da água não

há uma apropriação física do cerceamento dos rios e lagos (no sentido de delimitação de

propriedade territorial individual amparada por legitimidade jurídica), posto que os recursos

pertencem ao patrimônio da União. Logo, há uma apropriação social dos recursos pesqueiros

disponíveis nestes ambientes de livre acesso com fins puramente comerciais. Contudo, a

existência de áreas de uso fisicamente definidas – sobretudo, das comunidades rurais,

demonstra o surgimento de uma renda através da captura do pescado em determinados locais

e da apropriação comum a determinadas áreas.

Se todos os ambientes de pesca (lagos, rios, furos e paranás) possuíssem as mesmas

condições de estoque dos recursos pesqueiros sendo ilimitados e predisposto à apropriação

comum, sua utilização não arrecadaria custos nem a formação de uma renda do ponto de vista

estritamente econômico. Somente porque os recursos pesqueiros encontrados nos ambientes

apropriados pelos pescadores possuem seu caráter limitado, pressupondo uma disputa pelo

acesso e controle, é que se tenderia a gerar uma valorização do uso dos ambientes aquáticos,

levando posteriormente à renda.

Segundo os princípios da oferta e da demanda, nenhuma renda seria paga em troca

do uso do ar e da água, ou de quaisquer outros bens da natureza existentes em quantidade

ilimitada. Considerando que os recursos pesqueiros são finitos, a renda referente à pesca

pressupõe uma demanda do mercado e conseguinte valor atribuído ao trabalho.

Dessa forma, somente porque os recursos pesqueiros não são ilimitados em

quantidade nem uniforme na qualidade, e porque a crescente demanda do mercado impõe as

condições comerciais, o trabalho na pesca tende a propiciar aos pescadores as desvantagens

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no processo de obtenção da renda, já que as condições de demanda e comercialização do

pescado não acompanham os custos relativos ao processo de trabalho e a sobrecarga da

exploração de determinadas áreas que, ao longo dos últimos anos, se tornaram escassas e

altamente controladas pela pressão interna de comunidades e grupos sociais, resultado da

intensificação da pesca comercial.

Como afirma Marx (1971), a Renda Diferencial I é determinada por meio das

condições naturais do solo explorado no processo de produção de riqueza no capitalismo. Nas

águas dos ambientes de pesca, os recursos disponíveis se apresentam de forma distinta, não é

o ambiente físico do espaço que determina a renda, mas a força de trabalho empregada na

captura do pescado nas áreas propícias, naturalmente ao encontro de determinados tipos de

peixes ou cardumes que possuam valor de troca no mercado dos grandes frigoríficos em

Manacapuru.

Marx vai além quando destaca que o valor da renda obtida em determinada local é

resultado de sua boa localização e fertilidade. Neste caso, o saber dos pescadores em

determinar áreas de pesca já conhecidas indica, geralmente, a riqueza ictiofaunística em áreas

de livre acesso, como nos rios e em lagos altamente piscosos, férteis de pescado.

Considerando, desta forma, que estes elementos permitam menores gastos para a captura –

pois o fator do tempo é estruturante na pesca – facilitando as melhores condições de captura e

comércio enquanto elementos importantes do processo de aquisição na renda da água.

Os estudos disponíveis sobre a comercialização do pescado na região dos rios e lagos

do Estado do Amazonas geralmente apontam para categorias de trabalho sobre a pesca

relacionadas aos aspectos como o caráter artesanal, a identificação das embarcações e do

desembarque comercial a partir de condições ou fatores relacionados com o processo de

comercialização (Falabella, 1994; Parente, 1996), contudo, apontam para uma dimensão

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econômica daquilo que representaria a renda obtida no trabalho da pesca, além de possibilitar

um diálogo sociológico sobre as questões discutidas46

.

Nos ambientes de pesca local, como os lagos e, principalmente, o rio Solimões, a

captura do pescado requer, além do conhecimento local sobre determinados pontos e

pesqueiros, a composição dos custos relativos à atividade. Estes custos, considerados como

um investimento sobre a captura do pescado vão desde o tipo de embarcação, e motor

propulsor, geralmente utilizado em pescarias de rio, o combustível para o deslocamento, o

período de dias viajando quando nas pescarias embarcadas, a confecção ou compra de

apetrechos específicos para o tipo de pescaria e de espécies pretendidas, o gelo para conservar

o pescado e até a força de trabalho complementar paga em adiantamentos aos parceiros da

pesca47

.

46

Cardoso et al (2004) ressalta que a escassez de pesquisas com enfoque socioeconômico na região acabou

gerando apenas abordagens bio-ecológicas que não viabilizariam uma avaliação de instrumentos efetivos para o

manejo da atividade pesqueira. 47

Elemento das relações de trabalho analisado mais adiante.

Figura 33 – Material custeado para a captura do pescado em larga escala,

utilizando apetrechos específicos.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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Nas pescas embarcadas48

, Cardoso et al. (2004) afirma que os custos de

comercialização são aqueles decorrentes das taxas pagas pelo desembarque e a comissão do

despachante no momento da comercialização da produção. Estes custos são ressarcidos após a

venda do pescado e o lucro eventual é dividido em parcelas denominadas de cotas-parte, entre

o armador e os participantes da pesca, de acordo com a função exercida (Parente, 1996)49

.

Na Renda Diferencial II, segundo Marx (1971), os termos da taxa de lucro obtida

no trabalho se refere ao ajustamento da determinação da quantidade de capital investido no

trabalho por meio da utilização de equipamentos favoráveis a um melhor resultado na

produção.

Desta forma, entendemos que a realidade da composição dos custos contidos na

renda da pesca refletem não só aquilo que objetivamente é gasto, mas também se pressupõe

que os custos relativos ao trabalho sejam ressarcidos com o resultado final da renda para o

trabalhador. A composição da renda resultante da pesca é fruto do trabalho exercido entre os

moradores da comunidade, geralmente efetuada com a ajuda de parceiros ou parentes,

contudo, em grande parte, a composição da renda familiar tem origem no trabalho do pai e de

seus filhos ou da própria mulher, sendo crucial para a manutenção da unidade econômica,

(Figura 34).

48

A pesca embarcada é entendida aqui como uma atividade profissional da pesca mediada pelo relação

assalariada ou não dos pescadores mas que dispunham de condições contratuais com empresas de pesca ou

frigoríficos destinados à comercialização, efetuando um tipo de pesca marcado geralmente por longos períodos

embarcados nos rios e lagos à procura da captura do pescado, utilizando-se duma divisão social do trabalho

através da racionalização da mão de obra e uso diferenciado de apetrechos de pesca mais sofisticados quanto ao

processo de captura. 49

Para o autor, com exceção dos adiantamentos (encargo do armador), os itens de maior dispêndio para o custeio

das expedições de pesca embarcada (combustíveis, gelo e rancho) são frequentemente financiados por seus

frigoríficos e seus prepostos, por despachantes ou pelos fornecedores (comércio em geral e balsas fornecedoras

de combustíveis, os pontões, para grandes embarcações).

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Contudo, sabemos que as dificuldades em obter melhores resultados nas pescarias é

um fator de risco na atividade, pois entram em jogo outras questões, a disputa pela

apropriação e controle dos territórios, a escassez do pescado em determinados períodos, as

normas de controle e as formas de trabalho vide relação com os flutuantes e frigoríficos que

normatizam o preço da comercialização. Todos são elementos cruciais que refletem de

alguma forma no resultado final da renda obtida pelo trabalho na pesca.

A quantidade de embarcações no Baixo Solimões e de pescadores das comunidades

que trabalham de forma autônoma (no sentido de não manter algum vínculo empregatício

profissional com os grandes frigoríficos, diferente do tipo de pesca embarcada financiada por

estes) demonstra uma importância quanto à função social da renda obtida através da pesca,

pois significa a manutenção do modo de vida da economia familiar local e da economia do

município de Manacapuru.

Figura 34 – Composicão da renda familiar obtida através da pesca.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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[...] antigamente nós pescava só numa época agora a gente pesca todo tempo,

nós fazemo isso porque agora tem comprador direto de todos os estados,

vem tudo comprá fera aqui em Manacapuru. ( A. P. M. 51 anos, pescador e

morador da comunidade).

Contudo, a concorrência elevada entre os pescadores barateia a mão de obra

pertencente à força de trabalho empregada nas atividades pesqueiras, já que a oferta de

pescado tende a crescer quanto maior for a quantidade de pescadores envolvidos na captura e

apropriação territorial dos rios e lagos.

Este elemento indica outro fator, a redução do preço do pescado em determinados

períodos de fartura na captura, o que induz ao monopólio dos frigoríficos mediados pelos

flutuantes que compram o pescado nas comunidades, por um preço abaixo do cobrado em

outros períodos sazonais, reduzindo consequentemente a renda per capita do pescador em

certos períodos que a atividade possibilita maiores ganhos.

Independente dos ambientes onde a pesca é exercida, verificamos que a taxa de

comercialização e preço do pescado é o mesmo, indiferente do fato de que o trabalho nas

pescarias possa demandar maiores custos aos pescadores - deslocando-se para lugares mais

distantes (sendo necessário combustível), com a depreciação de seus apetrechos de pesca e de

sua embarcação, a comercialização mediada pelas redes de comércio dos agentes locais

estipulará o preço, independente dos custos adicionais da pescaria, o que lança o pescador a

correr riscos materiais, quando, por exemplo, não obtém sucesso na captura do pescado.

A pesquisa implica que a relação preço/kg/captura do pescado varia de acordo com o

período do ciclo das águas. Exemplo disso é o fato de observamos que, no período de vazante

e seca, período em que a pesca é mais produtiva, o preço/kg do pescado tende a cair devido à

grande quantidade de pescado capturado; já no período da enchente e cheia, momento em que

encontra dificuldade na captura do pescado, o preço/kg tende a subir (Quadro 1).

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Período

hidrológico

Preço pago por pescado conforme a classe/qualidade em kg

1ª classe 2ª classe 3ª classe

Enchente R$ 4,00 R$ 3,00 R$ 1,40

Cheia R$ 4, 50 R$ 3,00 R$ 1,70

Vazante R$ 3,50 R$ 2,80 R$ 1,00

Seca R$ 3,00 R$ 2,50 R$ 0,80

As variações no valor obtido da comercialização se apresentam de forma condicionada

aos períodos de alta e baixa oferta de demanda do pescado, considerando a qualidade do peixe

ou seu alto ou baixo valor no mercado (entre 1ª , 2ª e 3ª classe). Nos períodos onde a oferta do

pescado é maior – entre a vazante e na seca dos rios e lagos –, o preço comercial do peixe

estipulado pelos frigoríficos e flutuantes nas comunidades tende a ser menor. Contudo, nos

periodos de escassez do pescado – entre a enchente e cheia dos rios e lagos –, o valor tende a

subir de acordo com as demandas do mercado e com a especulação dos frigorífico, (Figura

35).

Quadro 1 - Preço do pescado pago/kg e relação com o período hidrológico entre os entrepostos

comerciais de pescado na comunidade Nossa Senhora das Graças – Manacapuru (Am).

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2008-2010.

Figura 35 – Análise do valor pago aos pescadores obtido na

comercialização do pescado de acordo com o período hidrológico e a

qualidade do peixe.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de Campo, 2009.

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É possível também verificarmos, a partir dos pescadores entrevistados, os melhores e

os piores períodos para pesca entre os moradores da comunidade segundo a dimensão

comercial e de subsistência (Figura 36). Verificamos que os períodos correspondentes à

vazante e à seca se apresentam, segundo os moradores, como épocas onde a captura do

pescado é facilitada por conta da diminuição das áreas alagadiças. Segundo os moradores, este

diferencial se explica porque, na vazante e na seca, “os peixes estão juntos”, o que facilita sua

captura, revelando a diminuição do canal dos rios, lagos e paranás e a concentração do

pescado.

Diferente dos períodos correspondentes à enchente e à cheia, onde, para os moradores,

os peixes “se espalham” nos lagos e em outros ambientes, o que nos possibilita pensar na

diversidade de ambientes alagados que dificulta a concentração dos cardumes tidos como

preferenciais na comercialização e revela também a dificuldade encontrada no uso dos

apetrechos e na captura do pescado.

Figura 36 – Frequência relativa ao período de sazonalidade das águas revela a escolha dos

melhores e piores períodos de captura do pescado.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de Campo, 2009.

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Alguns elementos são importantes para explicar a pesca na comunidade Nossa

Senhora das Graças: a facilitação do desembarque do pescado nos flutuantes; os barcos de

grande porte que facilitam a pesca; o uso de utensílios que facilitaram, ao longo do

desenvolvimento histórico, a atividade pesqueira – tais como o uso das caixas de isopor e do

gelo que conserva o pescado nos grandes barcos.

Figura 37 – Barco utilizado para o armazenamento do pescado que é levado aos

frigoríficos em Manacapuru.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 38 – O porão do barco é utilizado para

o armazenamento do pescado.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 39 – O gelo é utilizado para a

conservação do pescado até os frigoríficos.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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Para compreendermos este processo, também, podemos demonstrar como a

comercialização poder ser entendida se considerarmos um fluxograma que identifique os

processos que delineiam as etapas que vão desde os trabalhadores da pesca até os

consumidores (Figura 40).

No sentido de complementar o quadro de informações sobre a pesca local, Pereira et

al. (2007) demonstraram a partir de variáveis quantitativas uma caracterização dos elementos

que fazem parte do processo que desencadeia na comercialização do pescado na comunidade

Nossa Senhora das Graças (Figura 41).

Para a realização do quadro da atividade pesqueira, o autor adota as seguintes

variáveis: número de ambiente disponível para a pesca nas proximidades da comunidade

(AMB); número de famílias que comercializam o pescado (NfamCmr); número de espécies

comercializadas (spCmr); número de famílias que utilizam gelo para conservação do peixe

(gelo); número de famílias que mantêm relações de troca com agentes de comercialização do

pescado (AgtCmr); número de famílias que destinam o peixe comercializado para várias

localidades (DstCmr) e o número de espécies capturadas por comunidade (spCpt), seja para

consumo próprio, seja para venda.

Os resultados demonstram o uso de apetrechos e a relação com os ambientes de

pesca de uma maneira que os possibilita relacioná-los com a dimensão do modo de vida da

comunidade aliado ao trabalho da pesca enquanto atividade profissional.

PPeessccaaddoorreess

FFlluuttuuaanntteess

AAttrraavveessssaaddoorr

FFrriiggoorrííffiiccooss

CCoommeerrcciiaannttee

CCoonnssuummiiddoorr

Figura 40 – Fluxograma que identifica as etapas no processo de comercialização do pescado.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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O uso de gelo pelas unidades de produção pesqueira das comunidades, isto é, pelos

grupos de pescadores, é algo recorrente na pesca, uma vez que os sujeitos locais, por não

disporem de energia elétrica, precisam conservar o peixe em caixas de isopor até o término da

pescaria ou até adquirir uma quantidade razoável de gelo para, posteriormente, vender todo o

produto da pesca aos agentes compradores – atravessadores, regatões, feirantes, donos de

frigoríficos, despachantes, patrões, marreteiros – que compõem a cadeia produtiva da pesca.

Figura 41 - Índices relacionados às variáveis da pesca comercial

intensiva nas comunidade Nossa Senhora das Graças.

Fonte: PEREIRA et al. 2007

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O resultado desta relação decorre, geralmente, de um processo de exploração e

monopólio das relações de trabalho, pois o gelo nas comunidades rurais pode significar

relações de poder e de domínio sob o outro, já que também se constitui como um dos

elementos pertencentes aos custos efetuados na relação de obtenção da renda da água. Muitas

vezes, o gelo é utilizado como forma de pagamento ou de empréstimo dos flutuantes locais

para os pescadores, sendo descontado do resultado financeiro com a pesca.

Figura 42 - Índices de acesso ao gelo utilizado nas pescarias

da comunidade Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.

Figura 43 - Pontos de venda ou empréstimo do gelo na comunidade Nossa

Senhora das Graças.

Fonte: RAPOZO, 2010

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Pereira et al. (2007) apontam, com relação a estas variáveis, que há forte tendência ao

uso do gelo na comunidade. Com relação à comercialização e aos agentes compradores do

pescado (AgtCmr), verifica-se que as famílias vendem o seu pescado para nove diferentes

agentes de comercialização – agentes situados e não situados na comunidade.

A última variável acima (Figura 41) trata do número de famílias e dos locais para

onde é destinado o produto de suas pescarias (DstCmr). Sobre este aspecto, em Nossa

Senhora das Graças, por exemplo, observou-se que 34 famílias destinam o seu pescado para

diversos lugares, distribuídos entre a sede do município de Manacapuru, para municípios

próximos, para a capital Manaus, para outros estados e outros países.

Pereira et al. (2007) ressaltam que uma mesma família possivelmente comercializa o

seu pescado com mais de um comprador, destinando-o para locais distintos. Em Nossa

Senhora das Graças a comercialização do pescado está localizada numa área geograficamente

estratégica, nas margens do rio Solimões, e em frente do município de Manacapuru, um dos

principais mercados consumidores do estado do Amazonas.

Do outro lado, a comercialização do pescado induz à especulação e acúmulo do

produto que, quando congelado durante meses, passar a valer um preço mais alto que o pago

na aquisição, gerando, desta forma, um lucro (no sentido da mais-valia marxiana) para os

flutuantes e frigoríficos que comercializam o peixe em nível regional e nacional como

resultado do capital investido na compra do pescado resultado do trabalho socialmente

necessário para a obtenção da manutenção da vida dos pescadores/moradores das

comunidades da Costa do Pesqueiro que se aventuram neste tipo de atividade no sentido de

obter uma renda financeira advinda deste tipo de trabalho.

Estes agravantes refletem não só o modelo de incentivo ao monodesenvolvimento da

atividade pesqueira na região, pois os frigoríficos estimulam indiretamente os pescadores a

largar outras atividades pertencentes ao seu mundo rural, como a agricultura. Para Cardoso et

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147

al (2004), esta inflexibilidade de mão de obra é comum no setor pesqueiro, devendo ser

estudada a priori para permitir a melhor alocação deste, de modo que viabilize a melhora da

economicidade do setor.

Isto significa dizer que, apesar do trabalho da pesca regulado ou não enquanto

atividade exercida de forma autônoma ou profissional (no sentido do contrato de trabalho para

empresas e barcos de pesca), pelos moradores da costa do Pesqueiro (o que se evidenciou em

geral fora a pesca autônoma de relações contratuais com as empresas), revela que a relação

entre os custos, o mercado do pescado, a demanda e a oferta do produto nem sempre

interagem em beneficio do sujeito que pesca, já que trazer o produto para a venda contratual

ou não para os flutuantes e frigoríficos que mantêm uma relação direta, não significa um

retorno financeiramente considerável daquilo que fora gasto, permitindo, em muitas das

vezes, a reprodução do sustento familiar em detrimento de uma atividade que viabilize em

curto prazo uma renda proveniente da pesca.

A renda da água pode ser pensada como o resultado da principal atividade de

trabalho para grande parte das famílias rurais da Costa do Pesqueiro e, em particular, para a

comunidade Nossa Senhora das Graças, onde, praticamente, inexiste a comercialização de

demais recursos naturais disponíveis, já que a agricultura, a criação de pequenos animais e a

caça representam valor de uso relacionados a subsistência do modo de vida local. Desta

forma, a pesca passa a ser praticada como atividade comercial, criando uma dependência

maior enquanto, geralmente, única fonte de renda da unidade familiar, na qual resulta do

resultado final do esforço de trabalho, subtraindo-se os ganhos financeiros (mais-valia) dos

agentes de comercialização e dos recursos empregados na pescaria.

É claro que, no outro lado da questão, a renda da água produz mais-valia ao outro

que não é o pescador autônomo morador da comunidade: os donos dos flutuantes e

frigoríficos em Manacapuru, que se apropriam do pescado da forma mais barata e com os

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menores custos possíveis, especulando através do congelamento do pescado, segurando o

produto para sua revenda nos períodos de escassez, logo, sendo beneficiados pelo melhor

preço e comercialização no processo de demanda e oferta.

3.3 As formas de organização do trabalho na pesca

3.3.1 Os parceiros do rio Solimões

A pesca na comunidade também revela fatores resultantes dos processos internos das

relações sociais de produção. Além de demonstrarmos o caráter constitutivo e real das

condições materiais necessárias à reprodução da pesca como trabalho, falta-nos outro

elemento importante neste processo – a dimensão das relações estabelecidas entre os homens.

A pesca também revela o delineamento das relações sociais, os laços de solidariedade e a (re)

afirmação da sociabilidade comunitária, da identidade do pescador, os valores e os códigos

internos de compreensão entre aqueles que pertencem ao mundo especifico da pesca local e o

entendem como sujeitos agentes.

Em Nossa Senhora das Graças, por meio das relações de parentesco, as parcerias na

pesca ou prática da meia, são fatores cruciais para compreender como o mundo vivido

estruturado pelo habitus comunitário e a dimensão do trabalho são indissociáveis.

O estatuto social que assume as relações da pesca, no momento em que

predomina o mundo das águas, implica conservar relações sociais

consolidadas, mas também, diante do imperativo das novas condições da

vida, se for necessário, engendrar novas formas de convivência.

(WITKOSKI, 2007, p. 328)

As parcerias revelam a maneira como os moradores da comunidade interagem na

atividade pesqueira, pode ser considerada como um dos elementos mais importantes de

integração social da vida rural na várzea amazônica, integração social intracomunitária e

intercomunitária (WITKOSKI, 2007). Elas acontecem nas comunidades rurais como

alternativa na busca da subsistência utilizada para a comercialização, onde os pescadores em

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número de dois ou mais se unem em canoa buscando um melhor resultado na pesca,

geralmente um na direção com o remo enquanto o outro prepara o lanço (a rede que é

estirada).

A parceria entre os pescadores na comunidade Nossa Senhora das Graças acaba

sendo essencial à medida que é mantida e reafirmada pelos pescadores como estratégia de

obtenção do pescado seja para comercialização ou para subsistência. As parcerias, por

acontecer em um espaço natural/social extremamente plástico (WITKOSKI, 2007), a as águas

parecem unir os homens e potencializar, assim, a interação social entre os moradores da

comunidade a partir das unidades de produção familiar distintas e interconectadas através das

relações de parentesco.

Os resultados indicam, também, a frequência e as relações de parentesco exercidas

na parceria (Figura 45). A maioria dos pescadores estabelecem uma relação muito rígida no

exercício da atividade pesqueira quando se fala na escolha do parceiro, estes, por sua vez,

geralmente, são filhos, primos, cunhados ou ainda vizinhos, que são pertencentes ao

cotidiano, a construção de suas biografias como homens da várzea e como pescadores, ou

seja, compartilhando muitas vezes do mesmo capital cultural, das mesmas dimensões de

representação do mundo.

Figura 44 - A pesca realizada através da meia une funções

importantes, o condutor da embarcação e o recolhedor do lanço.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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Quando não há força de trabalho que satisfaça as condições efetivas de determinada

atividade, como no caso da pesca, seu complemento acaba sendo quase que inerentemente

praticável resultando consequentemente na divisão final do produto estabelecido de forma

igualitária ou não, observando, neste contexto, o caráter da reciprocidade explícita sobre as

condições materiais instituídas pelos agentes no processo de trabalho.

[...] aqui cada um tem seus parceiros e ninguém larga porque se largar fica

ruim pra arranjá [...] (R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da

comunidade).

[...] meus filho tudo pesca e estuda junto, pesca com os primo deles e tudo,

tem uns que num querem continuá nem a estudá, alguns se arrependeram

num aprenderam nada, mas querem mesmo é pesca, e é pescá com o outro

da família também, porque num pode ser com qualquer um não. (R.S. 53

anos, pescador e morador da comunidade)

As parcerias revelam não só a dimensão comercial das práticas de pesca, mas

também dão sentido aos momentos de sociabilidade e de solidariedade em grupo,

ressignificando a dimensão de cooperação, o que condiz com a seguridade da própria

reprodução física e social da existência em comunidade, calcadas sobre a sociabilidade

Figura 45 - Frequência das atividades de parceria na

pesca realizado entre os moradores da Comunidade

Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.

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marcada por distinções próprias, de relações onde se identifica que as parcerias acabam

surgindo da necessidade de mão de obra complementar para o trabalho.

[...] Tenho quatro filhos, 3 meninas e esse menino, mas ele num pesca

comigo mais não, ele já pesca na outra canoa. Porque eu tenho duas canoa, aí

ele pescava comigo, né, só que ele estuda à noite e ele chega onze horas, dez

e meia aí a minha faixa de sair é duas horas da madrugada pra sair pra pesca,

porque o peixe ali ele dá mais no amanhecer do dia, o peixe sempre se move

mais assim de quatro horas em diante, aí a pessoa tem que pegar aquele

horário que ele esteja andando que é pra melhor ele cair no arrastão. Aí ele

ficou pra sair nessa outra canoa porque ele já sai mais de manhã porque ele

estuda, né? Ele sai com um meu sobrinho aí que já sai pra ir com ele. (S. C.

43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] Não dá pra pescar só, e eu só faço isso, porque é através de uma parceria

porque aí eu pesco com ele, né. Antes eu pescava com o meu menino,

quando eu pescava com o meu menino tudo era nosso, o quê que nós tinha?

Só as despesas e vinha tudo pra mim, pra família, né? Agora tem outros

gastos quando é com os outros[...] (L. S. 32 anos, pescador e morador da

comunidade Nossa Senhora das Graças).

Não descartamos que existam, no âmago dessas relações de trabalho, contradições

que resultem numa não realização destas atividades. O sentido dado à reciprocidade material

da força de trabalho reflete também as disputa entre famílias ou espaços de pesca, sejam

Figura 46 - Percentual das relações de parceria entre os

pescadores na Comunidade Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2010.

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voltados para a subsistência ou, na maioria das vezes, para a comercialização (o que para o

capital se revela como algo tão comum, a disputa).

O que ressaltamos é o fato de que as parcerias se configuram a partir de distintas

especificidades encontradas no campo simbólico da relação entre os indivíduos, mediadas

pelas condições ambientais disponíveis, considerando ainda que sugerem a complementação

da força de trabalho para além do círculo familiar, insurgindo em contratos informais pré-

estabelecidos que diretamente nada tem a ver com o processo ao qual estão inserido – os das

relações de produção tipicamente capitalista.

A divisão social do trabalho realizado na pesca de parceria considera ainda a maneira

como resultado do produto da pesca é repartido. Existe uma racionalidade subjacente ao

processo de divisão do produto da pesca. O resultado compreendido sobre o que é

denominado de meia, implica as questões de repartição do resultado final da pesca obtido

através das condições do custo gasto no trabalho através dos materiais utilizados. Neste

Figura 47 - As parcerias denotam como função social a reconstituição

dos laços de sociabilidade entre os indivíduos de mesmo parentesco, na

medida que se constituem como trabalho pela obtenção de renda na

pesca comercial.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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sentido, força de trabalho, divisão social do trabalho e os apetrechos usados na captura,

embarque e transporte dão o significado para o modo de divisão da renda obtida.

[...] a meia na pesca é assim, é diferente da meia do roçado, se pesca dois ou

mais, mas é repartido por três, por exemplo você tem uma rede e uma rabeta

e eu tenho minha vontade, aí quando nós voltá da pesca eu tiro a minha

parte, e você tira a sua parte e mais a parte da rabeta e da rede, então reparte

em três né, porque você tem o que eu num tenho e ainda gasta a gasolina

né.” (A. S. 33 anos, morador e pescador da comunidade Nossa Senhora das

Graças)

[...] A pesca de meia pode ser assim, eu tenho a canoa, o arrastão, e a rede aí

eu pego o vizinho pra pescar lá ele não tem nada ele vem só com a força de

trabalho e a comida, aí quando é na semana, eu tenho até a nota ali do que

nós fabriquemos essa semana (daquilo que foi pescado). Aí, vamos supor, aí

analisa, ele vai comigo, se nós pegar bem ele ganha bem porque aqui nós

tiramos as despesas e divide em três partes, uma parte é dele, aí então se eu

tenho uma canoa, uma Honda, uma rede e entro que nem ele, eu fico com

duas parte. (S. C. 43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa

Senhora das Graças).

As relações se complexificam na medida que, ao expressar a informação sobre o fato

de a divisão do produto na pesca compreender além da força de trabalho, os elementos

pertencentes aos meios de produção. O barco, as redes de pesca, o motor e o gasto do

combustível são fatores muito importantes neste processo chegando a ser considerados como

uma força de trabalho complementar que se incorpora ao trabalho humano, já que é

introduzida a racionalidade do tempo de depreciação das máquinas e instrumentos utilizados

na captura, superando até a vontade do outro que possui somente a força de trabalho e não os

meios de produção necessários para a pesca, geralmente comercial.

[...] De primeiro nós dividíamos em quatro partes, porque tirava uma da

rede, e uma da Honda e comigo eu tinha que ganhar três. Aí tinha que ser

uma pra cada um, aí se tu for tirar uma pra cada um não tem quem vai querer

pescar contigo. Tu não acha nenhum, tu... depois tu diz, rapaz ele não ta

mentindo não, se eu for repartir em quatro parte eu vou sozinho pescar

porque não tem quem queira ir comigo porque o lucro dá, mas dá pouco.Aí

não tinha quem quisesse mais pescar. (L. S. 32 anos, pescador e morador da

comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] Hoje eu tiro duas parte, uma parte da Honda, e outra da rede juntos, aí

uma parte pra mim, porque é o direito mesmo... porque acaba a rede e acaba

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154

o motor, né? É. o gasto da Honda e o gasto da rede, esse é que é o negócio.

Aí, mas analisa bem. Aí depois tu analisa bem, aí olha, essa minha rede ela

tá nova, essa minha Honda ele tá com oito anos que eu comprei ela, mas só

que essa Honda aí é uma Honda daquelas de oito, essas Honda de oito de

antigamente são muito boa, potente, ela tá com oito anos e eu nunca abri

nem sequer um parafuso, né. Agora pra dizer, é na minha mão. Com zelo,

entendeu? Assim até que dá pra juntar. Mas de primeiro a pessoa compraria

assim ganhando meia parte compraria uma Honda e um arrastão agora não

dá mais. Se tu ganhar que nem ali, eu ganho uma parte dali eu tenho certeza

que se a colônia não financiasse isso daí eu não conseguia comprar mais uma

rede e uma Honda com aquele que eu tiro dali que não dá [...] (S. C. 43 anos,

pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

Outras maneiras também garantem a atividade da meia na pesca. As relações entre os

patrões ou donos dos flutuantes com os pescadores também estabelecem um modo especifico

de atividade onde, por exemplo, um indivíduo (patrões e donos dos flutuantes nas

comunidades) que possui os meios de captura do pescado (barco, apetrechos, motor, etc.)

empresta a outros pescadores (que formam uma parceria e possuem somente sua força de

trabalho para realizar a pesca comercial no rio) os apetrechos destinados a captura. O

resultado final obtido na pesca é repartido entre os 3 sujeitos, o indivíduo que possui os

elementos indispensáveis para a captura do pescado e não executa a tarefa de ir à pescaria, e

os pescadores que recebem sua parte obtida de uma divisão equivalente em decorrência do

resultado final.

Verifica-se que estas atividades marcam profundamente as relações de exploração de

reprodução das relações de poder entre patrões e pescadores autônomos em um sistema de

aviamento dos meios necessários à reprodução da atividade pesqueira que é descontada ao seu

final.

[...] eu, por exemplo, tenho um flutuante, e não pesco muito porque tem que

cuidá da pesca dos outro, então eu dou o meu material, as rede e a rabeta,

pra dois irem pescá, aí quando eles volta nós divide em três, uma parte de

um, outra parte de outro e a minha parte por causa do meu material. (A. A.

D. S. 42 anos, morador, pescador e proprietário de um flutuante que

comercializa a produção do pescado na comunidade Nossa Senhora das

Graças).

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[...] aí então os flutuante daqui desse lado compra do pessoal que pesca por

aí, né?Só que bota pra trabalharem também, no caso de um aqui, ele tem

oitenta arrastão, viu? Então se ele faz assim, arrenda a canoa e bota a gente

pra pescar lá, ele nem pesca, nem o filho dele, ninguém. Ele só fica pra dar o

material pra tu pescar, aí ele só ganha uma parte boa, aí ele compra o peixe,

né? Rouba muito na balança. Paga do preço que ele quer que o arrastão é

dele, só que agora ele tá caindo muito, né que o pessoal com esse

financiamento cada qual tá fazendo o seu arrastão, o flutuante dele chega ta

chato n‟água com os arrastão dele tudo em terra que não tem ninguém pra

pescar mais com ele. (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade

Nossa Senhora das Graças).

A pesca é (re)construída na comunidade sob condições específicas. As características

descritas variam de comunidade para comunidade na Costa do Pesqueiro, dependendo da

relação estabelecida entre a organização dos grupos sociais e, sobretudo, da maneira como

estes são motivados socialmente a agir a partir de determinados objetivos.

A pesca comercial – por se tratar de uma das dimensões do mundo vivido e das

relações de trabalho rural que tem a ver com a própria constituição deste mundo, seja como

garantia para reprodução dos laços sociais, ou da existência humana – impõe pelo trabalho a

possibilidade de garantir os meios materiais para o consumo, pois é valor de troca e se insere

na esfera das mercadorias comercializáveis como um fator característico da comunidade

Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro.

É claro que não podemos subtrair a dimensão que situa a pesca como atividade de

subsistência (labor), pois seu resultado é consumido e redimensiona-se como força de

trabalho. Contudo, para além disso, ela produz a durabilidade necessária para a construção

artificial da mundaneidade, como trabalho e pelo trabalho cria e recria percepções, códigos,

apetrechos, une o material e o ideal de uma maneira em que somente é recriado e recriado

pelas mãos humanas e pela artificialidade da imaginação e criatividade do homem que habita

a várzea e compreende as relações de trabalho estabelecidas em seu mundo vivido.

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3.3.2 O uso de apetrechos na captura do pescado

Com as transformações decorrentes da dinâmica do setor pesqueiro não só as

relações de trabalho mudaram, recriando outras formas para além das parcerias, contudo, o

modo como se pesca hoje é resultado das mudanças sociais decorrentes das revoluções

técnicas no processo de captura do pescado. Mesmo assim, as parcerias ainda decorrem da

relação predisposta entre indivíduos interessados sob o mesmo fim, daí a importância de

interpretar as mudanças do tipo de trabalho executado na pesca a partir da contextualização

histórica anteriormente apresentada no lugar de pesquisa.

As pescarias decorrem da forma como os indivíduos organizam sua força de trabalho

para efetuar a captura do pescado. Os usos e introdução de novos apetrechos, como

afirmamos, fora essencial para a consolidação das práticas de pesca, pois demonstram o

sentido e as funções sociais decorrentes da organização para o trabalho conforme a

dinamização do uso de determinados utensílios, principalmente na pesca de rio.

Para Cruz (2009), estas transformações decorrem, sobretudo a partir da década de 90

do século passado, com as mudanças do setor pesqueiro, delineando uma abertura comercial

mais intensiva, sobretudo com o estabelecimento dos frigoríficos em Manacapuru. O autor

aponta para alguns aspectos interessantes quanto às mudanças decorrentes da prática de pesca

comercial nas comunidades do Pesqueiro em Manacapuru, como por exemplo, a substituição

do uso de canoas movidas a remo para as canoas movidas a motores, as denominadas rabetas

ou os Hondinhas50

. Desta forma, a pesca, antes executada através de duas canoas e 4 pessoas

movidas a remo, passa ser feita por uma canoa e duas pessoas.

50

Devido à popular introdução dos motores de marca Honda financiado pelos governos locais, permitindo

maior acesso à aquisição dos moradores locais, para deslocamento e utilizado na pesca.

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A predominância do uso de apenas uma canoa se deu em função da

introdução do motor e principalmente da introdução da boia. Isso

possibilitou uma liberação de mais camponeses-ribeirinhos para essa

atividade, pois na pesca em canoas movidas a remo geralmente usava-se a

parceria entre duas famílias. O advento do motor na embarcação

impulsionou cada família a adquirir o seu e tornar-se “independente”

(CRUZ, 2009, p. 256).

Estas transformações foram decorrendo na medida que o setor comercial da pesca se

estruturava, possibilitando uma abrangência maior e “livre comércio” entre os agentes de

comercialização, incentivando cada vez mais as comunidades locais trabalharem na pesca

mediante outras condições, surge por exemplo a pesca noturna, possibilitando maiores perigos

pela corrida ao pescado.

Antigamente naquela época não existia malhadeira, não tinha bóia, é porque

ali naquela época só era o anzol e o arpão, a gente arpoava muito, tinha tanto

que a pessoa arpoava na beira assim. E aquele que já teve aquela primeira

ideia de fazer a primeira malhadeira... mas era muito difícil ter uma

malhadeira e aquele que tinha os outros roubavam. Tinha que pegar aquela

malhadeira e colocar num canto bem escondido porque tinha aquele outro

que queria roubar aquela malhadeira [...] (L. S. 32 anos, pescador e morador

da comunidade Nossa Senhora das Graças).

Outros elementos como a introdução das boias no lanço, facilitaram a captura que

agora obedecia outras leis, as do tempo do mercado e a possibilidade que grandes quantidades

e cardumes de pescado fossem vendidos entre os pescadores, mudando o tempo de pesca

antes executado somente no período de águas baixas (agosto e dezembro) e agora realizado

também no período de águas altas (janeiro a julho), tornando-se um trabalho diário (CRUZ,

2009).

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Desenho: Ma rcos Castro/2007

Org.: Ma nuel de Jesus Ma sulo da Cruz/2007

Fonte: tra balho de ca mpo/2006

Figura 48 - As mudanças no processo de trabalho da pesca associada ao uso dos apetrechos e

relações de trabalho estabelecidas.

Fonte: Desenho de Marcos Castro (2007) in: Cruz (2009).

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Estas grandes transformações como afirma Polanyi (1980)51

, decorrem não só da

maneira como se ocasionaram as revoluções técnicas do modo de captura na pesca, sendo

bastante impulsionadas pelo mercado de comercialização local, mas também pelas condições

da relação social de trabalho efetuada pelos pescadores sob a forma de uso dos apetrechos.

[...] Ah, agora a pesca ela ficou mais fácil porque... você... de primeiro a

pesca, ali onde você viu aquelas boias ali, eram duas canoas botavam uma

canoa remando uma pra lá e outra pra cá. Aí tu ficava remando. Assim que

as redes... as malhadeiras eram tudo pequenas, né? Aí se encolhesse muito aí

não pegava quase peixe. Aí tu ficava remando pra cá e o outro pra lá. Eram

duas canoas. Agora já tiveram essa ideia de botar essas duas boias[...] (S. C.

43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] Hoje em dia na pesca aqui no rio é uma boia de um lado e uma do outro,

aí a correnteza atrás. Mas de primeiro era assim duas canoas uma remando

pra cá e outra pra lá. Aí vamos supor tu ficava no meio do sol quente, ai

agora vamos supor se o sol tá quente e se tá chovendo se tu não quiser pegar

o sol aí tu bota lá e tu vem praí pra sombra aí ela vai passar aí se ela não

engatar ela vai ter que passar aí. Aí só faz sair pra puxar. Que nem naquela

hora que nós vinha ali ela já vinha n‟água. Aí naquela hora nós já tinha que

sair pra puxar[...] (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade Nossa

Senhora das Graças).

Neste sentido, um dos elementos que possibilita pensar o trabalho na pesca e suas

formas de organização em Nossa Senhora das Graças é o uso de apetrechos enquanto

essenciais para esta atividade. O trabalho da pesca é tido como um elemento que associa a

dimensão de apropriação dos recursos pesqueiros com vistas à manutenção da subsistência

familiar e em grande parte, como demonstramos, para a comercialização. Contudo, esta ação

só é possível pela conduta que regula os artifícios essenciais para a obtenção do pescado.

Neste sentido, a importância histórica do desenvolvimento e aparecimento dos apetrechos

destinados à pesca é crucial para uma interpretação sobre as ações que constituem a prática da

pesca como trabalho.

51

Para Karl Polanyi (1980) em A Grande Transformação - as origens de nossa época, os processos sociais e

econômicos vividos pela constituição da sociedade moderna são ocasionados pelas mudanças decorrentes dos

rearranjos político-institucionais que reordenaram o modo de produção capitalista enquanto sistema de produção

difundido e consolidado em nossa sociedade, permitindo desta forma uma compreensão das relações de troca, de

trabalho e de mercado até então não vividas em sociedade, propiciando para além destes aspectos, profundas

modificações nos grupos sociais e suas organizações.

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O uso dos apetrechos de pesca, por um lado, é mediado por um acesso que permite a

compra através de financiamentos pela colônia de pescadores de Manacapuru, atualmente

possibilitando e incentivando o empréstimo de recursos, aumentando o tempo e tornando mais

eficiente as atividades de captura do pescado, popularizando ainda mais o uso das grandes

redes de arrasto confeccionadas para a captura em larga escala, especialmente de bagres.

Figura 49 - Pescador confeccionando a tramalha que será utilizada

na captura do pescado.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 50 – Rede de Arrasto tecida pelo pescador da comunidade.

Fonte: RAPOZO, 2008.

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Por outro lado, a confecção dos apetrechos aparece como um elemento importante

das atividades pesqueiras, pois dele resulta o trabalho e o resultado da pesca enquanto força

de trabalho, na medida em que o próprio pescador constrói suas possibilidades de obtenção de

renda. Em Nossa Senhora das Graças, onde a pesca é uma atividade representativa, os

apetrechos produzidos e utilizados são de diversos tipos, voltados geralmente para a captura

em escala comercial, o uso do material para a confecção das redes de arrasto é obtido por

meio da compra dos tipos específicos de linhas de tecer destinadas ao tipo de apetrecho

pretendido (Figura 47).

Em geral, a pesca realizada tanto para fins comerciais – sobretudo no rio Solimões,

quanto para fins de subsistência nos lagos, são reguladas por apetrechos que garantam maior

eficiência na captura do pescado como as redes de diversas modalidades, sendo pouco

utilizados os tipos de pescaria mais artesanais, como o uso do arco e flecha, zagaia e arpão.

Figura 51 - Frequência relativa de respostas com relação

à fabricação dos apetrechos de pesca.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2008.

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162

Desta forma, o processo de fabricação e uso dos apetrechos possui uma dimensão

muito particular. Como afirmamos, geralmente os apetrechos são feitos ou, quando

comprados, sua manutenção é realizada para não inviabilizar a captura do pescado.

Os apetrechos aparecem como resultado da efetiva concreticidade do mundo do

trabalho, sua fabricação depende muito da racionalidade alcançada com a percepção de uso da

força de trabalho que será gasta, do etnoconhecimento dos recursos ictiofaunísticos, dos

territórios de pesca, enfim, de uma relação mais abrangente com o próprio mundo enquanto

associado com a predisposição de seus recursos.

Os apetrechos encontrados na comunidade, a partir da fabricação própria, remetem a

duas dimensões: a primeira é o conhecimento das técnicas que viabilizam a fabricação, tendo

a ver com a durabilidade do mundo e da atividade humana. A segunda possibilita demonstrar

a dimensão comercial da pesca através dos apetrechos que possuem a maior frequência

relativa a sua fabricação ou compra, considerando que representam parte significativa dos

Figura 52 - Manutenção das redes de arrasto.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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163

custos relacionados à pesca e do resultado obtido transformado em dinheiro para o

proprietário do apetrecho (Figura 53).

O arrastão e o tresmalho (ou tramalha) aparecem como apetrechos que facilitam a

captura do pescado voltado para o comércio, diferenciando-se da malhadeira e dos demais

apetrechos que são utilizados pelos moradores tanto para o consumo quanto para a venda,

possuindo menor relevância quanto sua capacidade de captura que é infinitamente menor do

que a do arrastão e da tramalha. Ainda no caso da comercialização, quando a comercialização

do pescado se torna atividade profissional tem-se a necessidade de pensar na própria

capacidade de produção e de super-exploração dos recursos, assim como na combinação e

produção de utensílios destinados a sua captura.

Por associarem-se enquanto peça fundamental das atividades da pesca visando à

comercialização, os apetrechos e os materiais utilizados emprestam às coisas do mundo sua

relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a objetividade que as faz

resistir e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus

Figura 53 - Análise descritiva dos apetrechos que são feitos na localidade.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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fabricantes e usuários (ARENDT, 2000, p.150). Sua confecção ou compra revelam, por trás

de seus objetivos comerciais, a importância de sua relação com a manutenção da vida, já que,

em grande parte, refletem o modelo de apetrecho utilizado e voltado para a dimensão de

intensificação da captura e disputa comercial.

A fabricação dos instrumentos que nos permite pensar, resultado do trabalho do

homo faber (ARENDT, 200), no caso específico dos trabalhadores da pesca na comunidade

Nossa Senhora das Graças, consiste na concretude do ideal materializado nos apetrechos.

Significa dizer que, no caso da confecção dos materiais e dos apetrechos para a

pesca, está incluso o quanto será gasto, a dimensão de uso, a racionalidade direcionada para

cada parte detalhada na confecção de determinado apetrecho, o conhecimento advindo do

processo de saber-fazer empírico o qual se constitui como representação do real, sem contar é

claro, com a objetividade da ação, a captura da pesca.

No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando

algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no

mundo como unidade independente, é acrescentado ao artifício humano [...].

O processo de fabricação, ao contrário da ação, não é irreversível, tudo o que

é produzido por mãos humanas pode ser destruído por elas, e nenhum objeto

de uso é tão urgentemente necessário ao processo vital que o seu não lhe

possa sobreviver e permitir-se destruí-lo. (ARENDT, 2000, P.157)

Disto resulta que a solidez das coisas do mundo durável é um produto do homem, e

ele a condiciona da maneira de como necessita e interpreta, que age e como conhece. A pesca

traduz a singularidade das ações que, mesmo voltadas como trabalho e para a comercialização

revelam que “a solidez inerente das coisas, até mesmo as mais frágeis, resulta do material que

foi trabalhado; mas essa mesma matéria não é dada ou disponível, o material já é um produto

das mãos humanas, ou no caso de qualquer outro objeto passível de ação humana”

(ARENDT, 2000, P.152). Assim, a qualidade da permanência do modelo ou imagem, o fato

de existir antes que a fabricação comece e de permanecer depois que ela termina,

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sobrevivendo a todos os possíveis objetos de uso que continuam ajudando a criar o mundo faz

parte da ação humana e do trabalho na pesca.

Isto nos possibilita demonstrar quais e como são utilizados os apetrechos pelos

pescadores de Nossa Senhora das Graças, o que inicialmente representa uma dimensão

objetiva de uso, uma dimensão definida a partir de estratégias adotadas na captura do pescado.

Também é, ao mesmo tempo, uma representação das ações das incursões do modo de

produção capitalista associado à pesca comercial que é introduzida por meio dos apetrechos e

como são relacionados com os ambientes de pesca.

Toda ação humana resulta em um fim objetivado, no caso da pesca e no uso dos

utensílios apresentados não se difere muito, pois o fim produz e organiza os meios, os meios

pelos quais inserem a atividade pesqueira comercial da comunidade no mercado capitalista da

pesca. Assim, os fins tendem a ser de curta duração e transformar-se em meios para outros

fins (ARENDT, 2000).

No caso da pesca, o fim está associado tanto ao valor de uso quanto ao valor de troca,

na medida em que se transfere da posição condutora para manutenção da vida pelo consumo,

ao nível de mediação estratégica para objetivar-se como valor de troca no mercado, dos bens

materiais necessários à produção/reprodução material e simbólica dos trabalhadores da pesca

na comunidade Nossa Senhora das Graças. Assim, do comércio resulta a aquisição de novos

bens de consumo duráveis (ou não) que se distinguem do consumo puramente material

inserido no labor por meio dos instrumentos de trabalho.

A pesca se apresenta como recurso indispensável a uma alternativa de renda extra, é

o ideal de serventia concebido como algo de que se necessita para que se obtenha outra coisa,

e segundo Arendt (2000), sua serventia não admite discussão, pois a utilidade e o valor de

algo – como no caso do produto do trabalho da pesca – quando promovida a significância

gera a ausência de significado.

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166

Capítulo 4 - Tempo, Lugar e Espaço: a constituição política das

territorialidades da Pesca

No quarto capítulo, estabelecemos uma conexão com o exercício de pensar os

territórios da pesca a partir da territorialidade enquanto veículo para compreender o uso e a

apropriação comum dos recursos pesqueiros, considerando o debate sobre as áreas de livre

acesso, interpretando as formas de apropriação dos lagos e do rio Solimões nas atividades da

pesca de subsistência e, sobretudo, comercial.

Neste sentido, o interesse perpassa pela compreensão das representações dos

pescadores, identificando os ambientes onde é exercida a pesca pelos comunitários e os

principais aspectos que constituem a organização destes ambientes em territórios de pesca.

Assim, compreender a relação entre a apropriação dos recursos, a formação das

territorialidades e a dimensão social dos conflitos estabelecidos pela posse, se torna elemento

crucial.

Para uma melhor interpretação do tema em análise, procuramos estabelecer um

diálogo com referenciais que nos possibilitem pensar a realidade da constituição das

territorialidades construídas na atividade pesqueira. As inferências teóricas perpassam sobre

os temas de regimes de propriedade comum, territorialidades e espaços sociais na disputa e

conflito pela apropriação dos recursos pesqueiros, estando assim inerentes à constituição da

abordagem pretendida.

4.1 Regimes de propriedade comum e livre acesso: aspectos sobre a constituição das

territorialidades da pesca no Baixo Solimões

Os conceitos apresentados como diretrizes para a compreensão dos processos de

territorialidade na pesca neste estudo perpassam sobre uma questão crucial já debatida, a

relação entre o trabalho humano e a apropriação social dos recursos naturais disponíveis, este

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167

aspecto pode ser entendido por meio de um determinado conjunto de mecanismos reguladores

do acesso ao controle dos recursos pesqueiros.

Na tentativa de compreender como estes fenômenos se apresentam na realidade da

pesca comercial e de subsistência na Costa do Pesqueiro no baixo Solimões em Manacapuru,

procuramos uma interpretação a partir dos modelos de uso e apropriação dos recursos

pesqueiros através das áreas de pesca que se configuram ora pela dimensão do livre acesso,

ora enquanto espaços onde recursos naturais de uso comum são regulados por meio de

elementos que demarcam os fatores constitutivos de suas territorialidades.

O debate quanto à racionalização do uso dos recursos naturais vem sendo

amplamente discutida nas últimas décadas, sobretudo quando se fala nos limites de sobre-

exploração do ambiente pelo homem. No processo de consolidação deste debate, incluem-se

os termos e as categorias de análise que se constituem como parâmetros fundamentais à

compreensão dos fenômenos reais observados em sociedades. No meio desta discussão,

trabalhos acadêmicos representativos de correntes intelectuais que versam sobre a questão

ambiental surgem como elementos ou categorias possibilitando uma melhor interpretação e a

viabilidade de uma contribuição prática.

Dentre estes estudos, a “Tragédia dos Comuns” publicado por Garrett Hardin em

1968 se configura como uma discussão pertinente sobre o manejo de recursos de propriedade

comum. Na medida em que estabelecia um diálogo com as ciências sociais e econômicas

junto às ciências da natureza52

, Hardin (1968) propunha que os recursos comuns deveriam ser

privatizados ou definidos como propriedades públicas para as quais direitos de acesso e uso

deveriam ser concedidos (FEENY et alii, 2001).

Neste sentido, o autor parte do pressuposto de que as condições estabelecidas pela

apropriação comum e em sociedade dos recursos disponíveis é um fator condicional à

52

É claro que análise proferida por Hardin (1968) subjaz a um debate por ele popularizado, mas contido em

estudos anteriores encontrados em Gordon (1954) e Scott (1955) acerca dos debates teóricos quanto às questões

relacionadas com o uso comum dos recursos naturais.

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competitividade, maximização dos lucros ou renda obtida, levando a um desgaste

incomensurável do ambiente e seus recursos, neste caso, devendo ser mediado por

mecanismos que permitam a coerção e controle, elementos que só poderiam ser destacados na

fundamentação de que a propriedade privada dos recursos e a gestão administrativa do Estado

nacional seriam os fatores que possibilitariam a conservação.

A tragédia dos comuns se desenvolve da seguinte maneira. Considere

uma pastagem à qual todos têm acesso...como seres racionais, cada

criador procura maximizar seus ganhos...ele concluiu que o único

caminho sensato a ser seguido é adicionar outro animal ao seu

rebanho...e outro, e outro... Então advém a tragédia. Cada indivíduo é

preso a um sistema que o compele a indefinidamente aumentar seu

rebanho – em um mundo limitado. A ruína é o destino a qual todos se

dirigem, cada um perseguindo seus próprios interesses em uma

sociedade que acredita na liberdade dos comuns. A liberdade em

relação aos comuns a todos arruína. (HARDIN, 1968, p. 1244 apud

GOLDMAN, 2001, p. 48)

O debate acerca das teorias elaboradas sobre este contexto estimularam uma

compreensão de seu processo, já que o próprio Hardin (1968) fora obrigado a admitir

posteriormente53

que suas considerações iniciais necessitariam de uma revisão acerca daquilo

que indicava como as soluções para uma gestão dos recursos naturais de uso comum.

Para Goldman (2001), a interpretação acerca das condições de uso comum dos

recursos naturais estava no fato de que a perspectiva da tragédia contida nos escritos de

Hardin (1968) e demais intelectuais da época se contextualizava num período que florescia

dentro do feudo intelectual da elite dos cientistas naturais participantes dos movimentos

ambientalistas nos Estados Unidos entre as décadas de 60 e 70.

Segundo o autor, o campo politicamente conservador dos representantes das ciências

naturais, sobretudo dos biólogos conservacionistas, defendia uma crítica veemente à

destruição ambiental causada como fator da Segunda Guerra mundial nos países

desenvolvidos e em desenvolvimento, atribuindo a culpa à irracionalidade das sociedades.

53

Para uma compreensão mais aprofundada dos argumentos gerados pelo artigo publicado pelo autor, ver Hardin

(1978). Political requirements for preserving our common heritage. In: BROKAW, H.P. (Ed.) Wildlife and

America.Washington, D.C. Council on Environmental Quality, PP. 310-317.

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169

Neste sentido, a substituição das instituições comunais e da forma de uso dos recursos de

maneira descompromissada, para uma passagem à propriedade privada e por maiores

imposições governamentais, reverteria as ações de depredação dos recursos, sendo crucial no

que tange sua conservação.

A visão conservacionista, segundo Goldman (2001), possuía suas raízes no discurso

político anglo-americano de que as comunidades e propriedades de uso comum – advindas da

dimensão feudal do século XIV – constituíam-se como os maiores obstáculos à produtividade

agrícola, consolidando uma visão antiprogressista onde, a crença na propriedade privada e a

permissão individual de uso das terras convertidas de bens comum se tornariam fator

comercialmente relevante. Para isso se acreditava no direito pela posse individual e na

desestruturação das instituições tradicionais que regulamentavam o uso comum a fim de se

obter a privatização das áreas de uso dos recursos.

Para Diegues (2001), a teoria de Hardin (1968) sobre a tragédia dos comuns induzia

a um apelo cada vez maior da necessidade de intervenção do Estado, impondo regras rígidas

de exploração dos recursos ou induzindo à propriedade privada como forma mais adequada de

proteção dos recursos e garantias de rentabilidade.Contudo, a elaboração dos termos de

análise sobre a temática em questão contribuiu para inúmeras reflexões sobre a gestão dos

recursos de uso comuns e a dimensão da propriedade e apropriação.

A visão determinista hoje é substituída pela diversidade de trabalhos que

contestaram a pressuposição teórica de Hardin (1968), demonstrando que a possibilidade do

manejo, diálogo e da racionalização dos recursos em regime de propriedade comum podem se

configurar como sucesso em algumas situações54

, considerando a realidade em questão, já

que, em inúmeros casos, o próprio Estado criou políticas e mecanismos de incentivos fiscais

54

Segundo Diegues (2001), a literatura recente tem registrado e analisado um número considerável, no mundo

inteiro, de formas comunitárias de acesso a espaços e recursos que têm assegurado um uso adequado e

sustentável dos recursos naturais, desta forma conservando o ecossistema e gerando modos de vida socialmente

mais equitativos, mesmo que não sejam necessariamente difundidos e amplamente bem sucedidos.

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170

que colaboraram para a devastação ambiental, como no caso da Amazônia e a ocorrência de

desterritorialização de comunidades tradicionais por meio da expansão da grande propriedade

privada, da propriedade pública e dos grandes projetos de desenvolvimento (DIEGUES,

2001).

No entanto, é consensual que suas contribuições possibilitaram um amplo debate e

que venham sendo utilizadas na formulação de políticas de manejo de recursos, na medida em

que configuraram o desenvolvimento de conceitos aplicáveis em determinadas realidades

quanto ao uso social e às formas de apropriação comum ou privada dos recursos. Neste

sentido, Feeny et alii (2001) apresentam quatro categorias de direito de propriedade

fundamentados enquanto regimes de acesso ao uso comum e a forma como são manejados os

recursos naturais.

As concepções desenvolvidas, segundo o autor, compartilham características

importantes em suas formas de uso, geralmente sendo demarcado pela exclusividade ou

controle de acesso e pela subtração, ou seja, a capacidade que cada usuário possui de subtrair

parte da prosperidade do outro, gerando, por vezes, a rivalidade e divergências no que tange à

racionalização individual ou coletiva da apropriação dos recursos.

Para Feeny et alii (2001), a distinção entre os quatro regimes básicos de direitos de

propriedade permanece enquanto modelos típico-ideais (sob uma concepção weberiana de

construção da realidade analisada), sendo que, na prática, em muitos casos, há uma

combinação conflitante e não harmoniosa destas categorias e de suas variações. Estes regimes

são: o livre acesso, a propriedade privada, a propriedade comunal e, por fim a propriedade

estatal.

O livre acesso para Feeny et alii (2001) corresponde à ausência de direitos de

propriedade bem definidos, neste caso, o acesso aos recursos não é regulado, estando livre ou

aberto a qualquer indivíduo ou grupo social.

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171

A propriedade privada enquanto um dos regimes de apropriação é caracterizada pelo

direito de exclusão de terceiros sob a exploração e na regulação da exploração dos recursos,

delegando aos indivíduos ou grupos de indivíduos, o direito de uso.

A propriedade comunal, ou propriedade comum, é marcada pelo manejo dos recursos

aplicados por uma ou mais comunidades entre usuários interdependentes, neste caso, os seus

usuários criam mecanismos de inclusão e exclusão sob direitos de fato (geralmente

consuetudinários) de apropriação, regulando a participação de seus membros, equilibrando o

acesso e o uso dos recursos.

A propriedade estatal consolida a situação onde os direitos aos recursos são alocados

pelo governo vigente que toma decisões em relação aos recursos e ao nível e natureza da

exploração. Para Feeny et alii (2001), a categoria de propriedade estatal pode ser aplicada em

relação ao uso dos recursos onde seu acesso pode ser público respeitando os direitos

igualitários, como as rodovias e parques, ou de acordo com sua natureza, podem ser

destinados a outros fins, já que o Estado regula a imposição coercitiva dos modelos de

apropriação, como no caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentáveis e Unidades de

Conservação.

Em todo caso, a análise pretendida aqui se interessa por dois dos aspectos

apresentados: a constituição das formas de territorialização da pesca demarcadas pelas

condições do livre acesso aos ambientes geralmente constituídos em espaços no rio Solimões,

e na propriedade comum dos ambientes onde a pesca é regulada de forma a possuir

mecanismos de controle ao acesso dos recursos pesqueiros, como em determinados pontos de

pesca e nos lagos.

É necessário compreender que estas dimensões configuram um dos lados relevantes

do debate sobre a questão de produção das territorialidades na pesca, pois demarcam as

fronteiras políticas das relações de apropriação social dos recursos pesqueiros a partir dos

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172

modelos adotados. Ambos os regimes incidem de acordo com a mesma perspectiva, possuem

como objetivo utilizar os ambientes aquáticos para uma das dimensões da reprodução do

modo de vida local, através da pesca para a subsistência ou para a comercialização.

O contexto em debate subjaz ao fato de que as formas sociais de apropriação comum

dos lagos e do rio Solimões na Costa do Pesqueiro em Manacapuru, constituem-se sobre os

mecanismos de manutenção das atividades pesqueiras de subsistência e principalmente da

pesca comercial, sejam elas mantidas através de conteúdos jurídico-formais ou

tradicionalmente impostos de fato, como acontece na maioria dos casos.

Os ambientes possuem singularidades diferenciadas, logo, existem formas distintas

de uso de acordo com sua finalidade, estas interpretações são possíveis pela atribuição à

dimensão simbólica que constituem as representações sociais dos indivíduos, ou seja, a

maneira como reconhecem, delimitam e utilizam os ambientes, sendo elementos sociais

fundamentais para a consolidação de territórios de pesca em ambientes polivalentes.

Por um lado, o livre acesso na apropriação dos recursos pesqueiros se apresenta

como a possibilidade de uso das áreas informais do rio, onde a pesca é realizada de forma

aberta aos indivíduos em geral sob o manuseio de apetrechos de pesca diferenciados e

altamente eficazes em seu processo de captura, diferenciada das áreas onde ocorrem regimes

de organização comum da pesca, como nas áreas da pesca de vez, nos lagos ou pontos de

pesca em geral, permitindo somente aos usuários estabelecidos o seu acesso.

Para Mackean & Ostrom (2001) os regimes de propriedade comum se referem à

correlação dos arranjos de direito de propriedade sob os quais grupos de usuários dividem

direitos e responsabilidade sobre o uso dos recursos apropriados. Partir do ponto de vista do

termo propriedade é ligá-lo às dimensões institucionais da sociedade e não às qualidades

naturais geralmente atribuídas aos fenômenos naturais que advêm sob a base comum55

dos

55

Base comum de recursos é compreendido de forma diferente do regime de apropriação comum, pois associado

suas qualidades físicas e biológicas, possui duas importantes características que as distinguem: a dificuldade do

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173

recursos. A saber, que, para os autores, os regimes de propriedade historicamente surgem em

situações onde as demandas por recursos são muito elevadas para possibilitar o livre acesso,

tornando-se necessária a criação de direitos de propriedade, na mesma medida que os fatores

adicionais a divisão dos recursos acabam se tornando indesejáveis.

Afirmar que os recursos naturais são disponíveis ao uso social ou ao livre acesso dos

indivíduos em geral significa compreender que o processo de apropriação perpassa por uma

inter-relação dos usos do mesmo ambiente de base comum por determinados grupos sociais.

Contudo, o fato de se estabelecerem de forma comunal não significa que sejam livres ao

acesso de todos, mas limitados a um grupo específico de usuários, pressupondo mecanismos

de controle e regulação da apropriação.

Para Ostrom (1990), os regimes que regulamentam o sentido de propriedade comum

permeiam sobre alguns princípios, tais como a demarcação de fronteiras socialmente

delimitadas; os mecanismos que regulam a ordem social interna; a gestão e controle

monitorado do uso dos recursos pelos comunitários; as sanções aplicadas à desobediência de

normas reguladoras; a resolução dos possíveis conflitos através dos mecanismos de mediação;

e o reconhecimento socialmente estabelecido dos direitos de organização em comum acordo.

“Em regime de propriedade comum, um grupo particular de

indivíduos divide os direitos de acesso aos recursos, assim

caracterizando uma forma de propriedade – ao invés de sua ausência.

Em outras palavras, existem direitos, e estes são comuns a um

determinado grupo de usuários e não a todos (MACKEAN &

OSTROM, p. 81, 2001)”.

A noção do termo propriedade comum requer uma diferenciação das demais

categorias referentes ao termo propriedade, pois, tratando-se de uma dimensão dos direitos de

acesso, posse e formas diferenciadas de uso entre sujeitos coletivos, requer consequentemente

desenvolvimento de instrumentos de exclusão dos potenciais indivíduos beneficiários, a solução para as

dificuldades encontradas demandam custos, logo abre possibilidades para o uso predatório dos bens comuns caso

não exista mecanismos de conservação e manejo consolidados. Por outro lado, as unidades de recursos utilizadas

antes por indivíduos comuns, deixam de estar disponíveis (MACKEAN & OSTROM, 2001).

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uma interpretação multifacetada dos aspectos que as constituem de forma distinta da

propriedade privada individual ou do livre acesso.

Por outro lado, a noção dos direitos sobre a propriedade privada de determinado

espaço ou recursos estão relacionadas aos elementos subjacentes às questões sociais

estabelecidas entre os indivíduos que as constituem e não à concepção de natureza regida

pelos ambientes de uso. Neste caso, as formas de apropriação são reguladas pela

racionalização do uso social comum a grupos e indivíduos sob determinados locais,

institucionalizando o tipo de apropriação e os mecanismos que permitem o acesso aos

recursos.

Desta forma, entende-se que propriedade comum, na verdade, é propriedade privada

compartilhada (MACKEAN & OSTROM,2001), pois seus regimes de direito ao acesso se

caracterizam pelos elementos e mecanismos cruciais à sua manutenção compartilhados entre

os membros usuários. É claro que, no processo de estruturação e dinâmica dos recursos

socialmente apropriados, podem existir ineficiências quanto ao discurso produzido, como no

caso dos regimes de territorialidades apresentados na pesca, possuindo fraquezas e, em muitas

vezes, levando ao conflito como última relação de possibilidade de mudanças drásticas

mediadas pelos mecanismos de controle que nem sempre se apresentam de forma eficaz.

As territorialidades da pesca comercial e de subsistência revelam que os lagos e rios,

enquanto propriedades comuns de acesso a determinados grupos na realidade, são formas de

privatização por meio do direito sobre os recursos socialmente utilizados. No entanto, sem

dividi-los em pedaços ou fragmentos espacialmente separadas – apesar de ocorrer formas de

divisão representativas ao mundo em comunidade – acabam oferecendo a viabilidade de

obtenção de renda ou lucro de acordo com o trabalho socialmente necessário para a

reprodução da vida local.

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4.2 Cosmografias, Territorialidades e Espacialidades: dimensões simbólicas sobre o

conhecimento da pesca local

A atividade da pesca produz iniciativas que incidem sobre o mundo concreto do

homem da Amazônia. No entanto, a pesca, ou melhor, os homens que exercem a pesca dentro

de suas ações motivadas pelo objetivo da captura para comércio ou subsistência, criam e

interpretam as percepções do mundo e do ambiente que os rodeia. Somente a nós que, pela

ação humana, erigimos a objetividade de um mundo que nos é próprio, a partir do que a

natureza nos oferece, o construímo-lo dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele,

podemos ver a natureza como algo objetivo e sob circunstâncias singulares e diferenciadas.

(ARENDT, 2000).

O uso dos espaços destinados à pesca se configura pela apropriação social dos

recursos comuns ou não de determinados grupos humanos, o estabelecimento deste processo

envolve a dimensão das representações, do imaginário, e, sobretudo, das condições materiais

que constroem os usos desses espaços.

Para Santos (2002) o espaço é um sistema de valores que se transforma

permanentemente pela ação humana, assim a natureza do espaço é resultado material

acumulado das ações humanas através do tempo, e, de outro lado, animado pelas ações atuais

que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade. Também podemos compreender

que o espaço é anterior ao território (RAFFESTIN, 1993), e que ele é condicionado pela

racionalidade de quem dele usufrui.

A atividade da pesca não é feita por acaso, pois nela está implícito todo o

conhecimento dos recursos naturais, os locais específicos, as representações simbólicas, e

também que o homem não age sobre um objeto de trabalho estático, mas sobre um complexo

biológico regido por leis e processos alheios à vontade humana, sobre os quais o homem pode

interferir, introduzir novas formas até então exteriores ao ambiente considerado (DIEGUES,

1983).

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A saber, que os organismo vivos, os peixes não estão distribuídos de maneira

uniforme, eles distribuem-se em manchas. Segundo Begossi (2004), essas manchas são

constituídas por recursos agregados que ocorrem em uma determinada área. Transferindo este

raciocínio para a pesca, poderemos supor que o pescado é, em geral, encontrado agregado, em

manchas, nos rios, lagos, paranás, ou seja, “o que os pescadores denominam como pesqueiros

são na realidade manchas de pescado, ou locais onde determinadas espécies são encontradas”

(p.223).

Alguns desses pesqueiros são constituídos por áreas que incluem lajes de pedra,

praias, pontas de ilhas, costas, etc., servindo também como pontos de demarcação no uso

desses recursos pelos pecadores, colocando em movimento suas percepções. Para Maldonado

(2000), a pesca é uma das formas sociais em que a percepção específica do meio físico é da

maior relevância, não só para a ordenação dos homens nos espaços sociais mas também para a

organização da própria produção e para a reprodução da tradição pesqueira, tanto em termos

técnicos quanto em termos simbólicos.

Desse modo, os pescadores conhecem pontos no rio onde determinadas espécies são

encontradas, e em função do aspecto seletivo da pesca, diferentes técnicas são usadas, assim

como os pontos de pesca são em geral direcionados à captura de determinadas espécies. Esses

pontos são reconhecidos pelos pescadores por meio de referências aquáticas ou terrestres

(BEGOSSI, 2004).

Procuramos destacar aqui os aspectos que fazem parte da dimensão da pesca na

comunidade Nossa Senhora das Graças, estes aspectos se apresentam a partir de um estudo

que buscou a caracterização dos espaços destinados à pesca pelos moradores da comunidade

usados como territórios, e como áreas de pesca (BEGOSSI, 2004).

Para Begossi (2004), as atividades como a pesca apresentam algumas definições que

nos fornecem uma compreensão diferenciada destes espaços: as áreas de pesca são os espaços

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177

aquáticos usados na pesca por diversos indivíduos ou por uma comunidade; pontos de pesca

são os locais específicos, ou micro-áreas onde é realizada a pescaria; pesqueiros são os pontos

de pesca onde há alguma forma de apropriação, regra de uso ou conflito, sendo então

território em seu sentido ecológico.

A dimensão da apropriação social dos recursos naturais, de maneira muito singular,

é datada por um ritmo movimentado pelas forças de reprodução social dos grupos humanos.

Esta dimensão social nos apresenta a maneira como os pescadores/moradores das

comunidades percebem as áreas de pesca, a maneira como são criados os territórios sociais da

pesca, a maneira como preexiste o processo de des-territorialização ou re-territorialização

dos espaços de pesca na medida em que consideramos os conflitos em ambientes fechados

como os lagos e igapós, e sobretudo os conflitos em espaços abertos, a forma como estes

lugares são interpretados, assim, como os apetrechos e a forma destinada ao uso dos recursos.

A territorialidade, diferente do conceito de território, possui um papel importante na

constituição de grupos sociais. A noção atribuída ao território aqui, possui uma abordagem

que considera a conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos.

Para Little (2002), a territorialidade se define como o esforço coletivo de um grupo

social em usar, ocupar, controlar e se identificar com a parcela específica de seu ambiente

biofísico, convertendo-a, assim, em seu “território”. Neste sentido, as territorialidades da

pesca são pensadas como elementos formados pela apropriação e permanência do uso social

dos recursos aquáticos em locais específicos.

Mas, como é possível pensar em territórios pesqueiros em áreas especificas como

rios, por exemplo, que, diferente dos lagos e de outros ambientes mais privados do ponto de

vista de seu uso por comunidades locais, não se restringem por fazerem parte do domínio

público, e, portanto, pertencentes do ponto de vista legal à União?

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Para Begossi (2004), território é um espaço que foi, ou está sendo apropriado por

algum individuo, grupo, ou comunidade sob formas de defesa ou de regras de uso, ou sob

conflito de uso, e territorialidade é uma forma de controlar espaços e recursos. “Um território

é um forma de controlar espaços e recursos, como uma área defendida, ou uma área de uso

exclusivo” (p.227).

No caso da pesca, quando, além da marcação do espaço pesqueiro, há alguma forma

de apropriação desse espaço, há também o aparecimento de outras relações entre os

pescadores, que podem envolver conflitos territoriais, regras de uso, divisão de informação ou

segregação de informação, estas regras e o conceito, neste sentido, aplicm-se a aos lagos e

rios de uso comunitário assim como outros ambientes mais endógenos (como

demonstraremos no caso especifico na comunidade estudada).

Os processos de territorialização comportam elementos que fogem das instâncias

legais e muito menos jurídicas quando se tratam de espaços ditos de uso comum, pois tornam-

se uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências

históricas (LITTLE,2002).

O fato de um território surgir diretamente das condutas da territorialidade de um

grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e

políticos, ao passo que podem se constituir como territórios e também podem se reconfigurar

em não territórios de uma ou mais comunidades, tornando-se espaços, no nosso caso, em

pontos de pesca que carregam dentro de si a conduta de territórios por abarcar interesses

comuns de grupos diferenciados com o mesmo objetivo.

Como no caso dos rios e dos denominados pesqueiros que são partes das áreas de

uso, ou do espaço aquático usados por pescadores, entretanto nem sempre os pesqueiros

localizados nas áreas de uso de uma comunidade de pescadores estão divididos de maneira

uniforme, ou de forma eqüitativa, entre todos os pescadores da comunidade (BEGOSSI,

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2004). Por mais que não existam delimitações específicas de uso ou amparadas por leis, não

significa que inexistam códigos de controle e conduta no uso dos recursos através de um

grupo específico de comunidades que estabelecem relações (conflituosas ou não) entre si.

Assim, podemos refletir a partir da ideia de que os territórios também são flexíveis

dada a sua apropriação, o que significa dizer que esta flexibilidade fornece argumentos para a

(re)configuração de espaços de uso comunitário onde existam áreas consideradas de livre

acesso, como no caso dos rios.

Neste sentido, os rios, ou melhor, os pontos específicos de pesca, são pensados

também como territórios abertos, pois se situam entre o privado e o público a partir do uso de

seus recursos e da maneira que não um agrupamento humano mas diversos grupos sociais

com o mesmo interesse podem estabelecer regras ou leis internas de conduta que garantam, ao

mesmo tempo, o uso e o controle dos recursos, apesar de verificarmos também o contrário

disto em casos mais específicos. Contudo, em seu aspecto mais fundamental, a territorialidade

humana produz um leque de expressões sociais muito amplas de tipos de territórios, cada um

com suas particularidades socioculturais.

Buscamos pensar, a partir da comunidade Nossa Senhora das Graças, a percepção de

uma territorialidade definida enquanto comunidade, possuindo de forma compartilhada outros

territórios, como os da pesca que ora se apresentam abertas – os rios e os denominados

pesqueiros – ora fechadas – os lagos e outros recursos de uso da própria comunidade.

Os espaços constituídos como territorialidades, que compreendem o uso dos recursos

naturais pertencentes à comunidade Nossa Senhora das Graças, refletem os elementos que

delineiam a vida local, sobretudo os sentidos, a percepção e as representações, como

elementos expressos do cotidiano, aquilo que Tuan (1980) denominou de topofilia, o apego e

o sentimento ao lugar de vida.

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Compreender a racionalidade dos processos de territorialização através das relações

sociais engendradas no mundo vivido da comunidade nos permite refletir sobre as dimensões

de uso dos recursos pesqueiros. No sentido de adotarmos uma sistematicidade a respeito da

percepção territorial dos pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças, devemos

compreender suas representações sobre território e como se apresentam através da

multiplicidade de expressões, produzindo um leque muito amplo de tipos de territorialidades,

com suas particularidades socioculturais.

Para Little (2002), podemos compreender este processo se considerarmos a

cosmografia de um determinado grupo social. A cosmografia é entendida como os saberes

ambientais, ideologias e identidades – coletivamente criadas e historicamente situadas – que

um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território.

A cosmografia de um grupo considera seu regime de propriedade, os

vínculos afetivos que mantém com seu território especifico, a história de

sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao

território e as formas de defesa dele (LITTLE,2002, p.4)

Como descrevemos em capítulo anterior, a comunidade Nossa Senhora das Graças

possui, assim como a maioria das comunidades rurais, um território bem definido do ponto de

vista de suas relações sociais. Este espaço, quando surge como um território que é palco das

relações humanas, acaba estabelecendo, moldando e transformando os em lugares de vida,

tornando-os mais complexos. Em principio, pode-se notar como ele é formado do ponto de

vista físico, e a partir daí, compreendermos como se delineiam as relações sociais, a saber,

que o território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações

de poder56

.

56

Marcelo José Lopes de Souza (2006) demonstra a partir de concepções bastante objetivas como as de Claude

Raffestin (1993) em Por uma Geografia do poder, como é possível pensarmos nesta relação, entre território e

poder, a partir de dimensões configurativas que expressam a vontade humana de não só delimitar, mas de manter

em uso o território.

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Figura 54 – Croqui georeferenciado da localidade Costa do Pesqueiro II onde apresenta a dimensão de organização espacial do território da comunidade

Nossa Senhora das Graças a partir das habitações dos moradores.

Fonte: Centro de Excelência Ambiental da Petrobrás, CEAP/PIATAM, 2007.

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O sentido de pertença que surge por meio das representações da territorialidade

perfaz o mundo construído da cosmografia camponesa da várzea, abarca um apanhado

complexo de imagens, sentimentos, sensações e interpretações. A estes fatores também

inserimos a dimensão material da vida, compreendendo que a comunidade Nossa Senhora das

Graças só pode ser considerada como tal a partir das manifestações do ambiente envolvente e

como ele se apresenta e, sobretudo, como este é (re)significado e colocado em uso.

De maneira concreta, a comunidade também é formada pelas manifestações e

percepções do lugar enquanto espaço físico, um lago, uma praia, uma restinga, um igapó são

elementos constitutivos que contribuem para este processo. Nos mapas mentais desenhados

pelos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças na Costa do Pesqueiro está

expressa a visão adulta e infantil de indivíduos da comunidade sobre seu mundo. Estas

representações indicam a percepção do ambiente e do uso dos recursos disponíveis, fatores

que demarcam a dimensão de territorialidade coletiva.

O ambiente é reconhecido pela percepção do indivíduo, mas somente parte

dessa percepção entra na cognição devido às estruturas ecológicas que

derivam da linguagem e às rotinas passadas do indivíduo na sociedade. Tais

estruturas também servem para avaliar o que entrou no consciente. A partir

daí se segue um processo de decisão no qual interagem avaliação com

rotinas culturais baseadas em experiências anteriores. Daí surge à decisão de

fazer ou não fazer alguma coisa que, por sua vez, será influenciada pelas

condições externas que possam restringir a ação. (MORAN, 1989 apud

PEREIRA 2007, p. 2)

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Figura 55 – Mapa mental da comunidade elaborado por um morador, explica a dimensão da localidade a partir do território delimitado e dos recursos utilizados, onde

podemos ver o rio principal, a disposição das casas, das instituições presentes na comunidade que formam a centralidade, as roças, o lago de uso comunitário, a floresta

primária, etc. tidos como elementos que pertencem ao mundo da comunidade.

Fonte: Pesquisa de campo, 2008.

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Figura 56 – Mapa mental elaborado por uma das crianças moradores da comunidade, apresenta a dimensão das instituições e do ambiente que compreende a

comunidade.

Fonte: Pesquisa de campo, 2008.

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Figura 57 – Desenho elaborado por morador local apresentando as dimensões constitutivas do território que compreende a comunidade Nossa Senhora das Graças, as

espacialidades das propriedades e sua relação com o uso dos recursos naturais disponíveis, as plantações nas áreas de várzea à beira do rio Solimões, as florestas e os

lagos utilizados para a pesca de subsistência atrás da comunidade, e áreas destinadas a outras atividades como criação de pequenos animais.

Fonte: NUSEC, 2008.

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Os elementos físicos que constituem as imagens, ainda que descritos por diferentes

olhares e de maneiras muito singulares, revelam alguns pontos em comum caracterizando a

comunidade como ela é, a partir de suas instituições (igreja, escola, centro social) ou de seus

ambientes (rio, lago, ilha, as áreas de plantio e de roçado, a floresta). Estes mesmos elementos

congregam a comunidade e as apresentam para os outros que não fazem parte de seu mundo

relacional, daqueles que não estabelecem nenhum tipo de uso direto de sua territorialidade e

de seus recursos naturais, e não estabelecem – ou ainda que de maneira mínima – se inserem

na reprodução de uma sociabilidade básica existente que coloca em movimento a própria

comunidade.

[..] olhe só! de tudo aqui eu sei um pouco, e se eu sei é porque eu

conheço..por isso que eu sei da pesca, do rio, pra mim minha terra é a minha

água, e eu num tenho medo porque é dela que nós vive também. (A. S. 33

anos, morador e pescador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

O sentido de autoafirmação do morador com o território é de suma importância, pois

contém fatores bastante singulares e pertencentes ao lugar onde se estabelecem as relações

sociais necessárias para a produção da vida. A percepção, a ação, o discurso e o pensamento,

em primeiro lugar, devem ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida transformados,

coisificados, em algum tipo de registro, seja ele simbólico ou documental. Para Arendt

(2000), todo o mundo factual dos negócios humanos depende em primeiro lugar da presença

de outros que tenham vistos e ouvidos e que se lembrarão, e em segundo lugar, da

transformação do intangível na tangibilidade das coisas:

A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no

fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade

pela qual formam produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que

a vida de seus autores. A vida humana, na medida em que é a criadora do

mundo, está empenhada e consiste em um processo de reificação, e o grau de

mundaneidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício

humano, depende de sua maior ou menor permanência neste mundo”

(ARENDT, 2000, p.107).

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As representações territoriais enquanto relação entre sistema social (das relações

humanas) e sistema natural(do ambiente físico), transparecem em muitos elementos contidos

no mundo da comunidade Nossa Senhora das Graças. A placa de identificação da comunidade

pode ser pensada como um bom exemplo de síntese das representações do mundo vivido, pois

quando identifica a comunidade, na realidade estar-se falando em seu sentido mais direto, o

de construção de uma identidade a partir do território social delimitado e os territórios em uso

pertencentes à comunidade mas são abarcados por sua representação na dimensão do trabalho

e do uso de seus recursos, como no caso dos territorios de pesca localizados fora dos

domínios comunitários dos pescadores em Nossa Senhora das Graças.

Figura 58 – Placa que identifica a comunidade Nossa Senhora das Graças se situa no centro da

comunidade e apresenta elementos importantes. As instituições presentes, a relação com o lado

religioso da comunidade, o time de futebol como dimensão de sociabilidade, a localidade e a relação

com o mundo da pesca.

Fonte: RAPOZO, 2008.

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As denominações do lugar, as instituições presentes na afirmação da localidade

enquanto comunidade demonstram uma apresentação daquilo que possui autossignificado

para os moradores. O time de futebol, a escola municipal, a relação religiosa com a santa

católica e o nome da comunidade, a dimensão do trabalho na pesca que é considerado como

atividade principal, a localidade que situa-se historicamente marcada pelo uso de seus

recursos pesqueiros, são relações estabelecidas que Godelier (1981) denominaria de a parte

ideal do real (social), ou seja, uma parte material – o homem e seu ambiente – e sua dimensão

simbólica que são as representações do lugar como enquanto processo de territorialidade e

explica que o ideal é o que faz o pensamento e sua diversidade e complexidade

correspondentes em funções do pensamento:

As ideias não aparecem como uma instancia separada das relações sociais,

re-apresentando-as como demasiadamente tarde na consciência e ao

pensamento. O ideal está presente e atuante em todas as atividades do

homem, que só existe em sociedade, só existe como sociedade. O ideal não

se opõe ao material, já que pensar é por em movimento a matéria, o cérebro.

A idéia é uma realidade não-sensível, uma realidade que não é

imediatamente evidente. (GODELIER, 1981, p. 187)

Para a legitimidade do mundo, podemos pensar nas funções do pensamento e das

realidades ideais que o pensamento produz, segundo Godelier (1981), compreendidas por

quatro fatores que se demonstram a partir de uma reflexão clara e coerente da dimensão de

compreensão e representação do mundo material a partir do ideal. As representações para o

autor tornam presentes ao pensamento realidades exteriores ou interiores ao homem, inclusive

o próprio pensamento, sendo estas realidades, materiais e/ou intelectuais, visíveis e/ou

invisíveis, concretas e/ou imaginárias.

A reprodução do mundo e das representações, as funções de produção e reprodução

do pensamento e das interpretações e, em nosso caso específico, os territórios e a maneira

como são reconstruídos de forma comunitária, devem: apresentar ao pensamento qualquer

realidade, inclusive o pensamento; interpretar o que está presente e o que define sua natureza,

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origem e funcionamento; organizar, em consequência desta interpretação, as relações dos

homens entre si e com a natureza e por fim, legitimar ou ilegitimar a ordem social e/ou

cósmica existente. Para Godelier (1981) estas são as formas de ordenações do mundo, o que

nos faz perceber como o mundo em sua realidade e em sua representação são produzidos e

reproduzidos.

Na comunidade Nossa Senhora das Graças estas funções também estão presente sob

graus diferentes em todas as atividades sociais que compõem as relações estabelecidas entre

os moradores. As representações do mundo, a maneira como são interpretadas e organizadas

legitimam uma ordem estabelecida pautada no convívio e nos códigos de compreensão da

sociabilidade existentes e nas regras que delineiam o uso dos recursos naturais. Daí podemos

também refletir como se estabelecem, a partir da dimensão do trabalho, as representações do

real na constituição dos territórios de pesca.

Quanto à representação dos espaços de pesca, estes são apresentados de modo a

observarmos a percepção dos pescadores locais quanto ao uso de mapas e desenhos que

explicitam as formas de compreensão dos locais utilizados para a captura, sobretudo

comercial na região que se estende entre a comunidades e demais áreas onde a pesca é

exercida de forma intensiva, concentrado-se principalmente no rio Solimões.

Os pontos de pesca e as denominações das localidades funcionam como demarcações

dos territórios pesqueiros. As demarcações são reproduzidas pelo mundo do trabalho e pelo

uso social dos recursos, o que possibilita de maneira concreta a constituição do mundo pelo

espaço repleto de significados pertencentes a cosmografia da várzea e da pesca dos moradores

da comunidade. Através dos mapas mentais elaborados pelos pescadores da comunidade,

verificarmos como estes fenômenos são representados articulando a lógica e a simbólica no

mundo da pesca.

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Figura 59 – Mapa mental elaborado por morador da comunidade Nossa Senhora das Graças apresentando o núcleo central da comunidade constituída pelos espaços de

pesca, na figura aparece o rio Solimões em frente à comunidade e o lago Tamanduá, ao fundo, como territórios que pertencem à comunidade como espaços pertencentes ao

modo de vida e destinados a atividade pesqueira.

Fonte: Pesquisa de campo , 2009.

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Figura 60 – Mapa mental elaborado por pescador da comunidade Nossa Senhora das Graças apresenta uma dimensão mais abrangente que relaciona a localidade e os pontos de

demarcação da pesca a partir do conhecimento de ambientes próximos como a Costa do pesqueiro II e com outros ambientes naturais, os furos, paranás e lagos, que são descritos

da maneira como são reconhecidos, a Boca do calado e a Boca do lago do Paru.

Fonte: Pesquisa de campo, 2008.

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Figura 61 – Os pontos de pesca demarcados no mapa mental elaborado pelo pescador da comunidade apresentam uma percepção muito abrangente do ambiente físico que

constitui e delimita a localidade onde se encontra a comunidade Nossa Senhora das Graças (acima do lago do Pesqueiro) e os outros locais representados. Na figura, a

Costa do Laranjal aparece como um referencial importante da pesca, as embarcações, os lanços com as redes de arrasto significam a concepção da atividade pesqueira

voltado para a comercialização, mas, sobretudo, demarcam os territórios de pesca dos barcos no rio Solimões.

Fonte: Pesquisa de campo, 2009.

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O significado do mundo que constitui as representações dos espaços destinados ao

uso dos recursos pesqueiros é tão complexo quanto sua delimitação física. A demarcação dos

lugares, o sentido dado de maneira diferenciada pelos elaboradores dos mapas mentais, os

próprios pescadores da comunidade, o simbolismo da paisagem natural reconvertido em

território pelo saber cartográfico construído na prática, no ato de pescar diariamente, é dotado

de uma complexidade que só pode ser compreendida por aqueles que possuem o domínio do

conhecimento empírico que delineia o mundo da pesca, o mundo vivido na comunidade

Nossa Senhora das Graças.

Esta realidade e a confiabilidade de representação do mundo humano, segundo

Arendt (2000), repousam no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a

atividade pela qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que a vida de

seus autores. “A vida humana, na medida em que é a criadora do mundo, está empenhada e

consiste no processo de reificação, e o grau de mundaneidade das coisas produzidas, cuja

soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência neste

mundo” (p. 107).

A indivisão do mundo vivido no trabalho da pesca é o fundamento essencial para o

equilíbrio econômico e moral do mundo rural da várzea, cuja relação com o meio é

inicialmente de usufruto e não de posse, onde os rios e lagos são pensados como patrimônio

comuns, seja de uma ou de várias comunidades, pois sabem que deles dependem para seu

sustento.

Contudo, as transformações decorrentes da apropriação privada dos lagos e demais

espaços abertos no rio Solimões demonstram uma outra lógica de interpretação dos bens

utilizados. Esta lógica é definida pela dimensão comercial das relações estabelecidas,

pressupondo os esquemas de rearranjos relacionais que impedem ou deliberam pelo acesso

coletivo dos recursos pesqueiros.

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Segundo Maldonado (2000), as formas especificas e predominantemente simbólicas

na sua expressão de apropriação dos ambientes de pesca, suas formas de percepção, de uso e

de divisão, arrastam consigo outras noções e comportamentos sem os quais a produção

pesqueira e a reprodução dos pescadores estariam inviabilizadas. O aprofundamento da

análise sobre o espaço que antecede e precede o mundo constitutivo dos pescadores considera

outros traços sociais fundamentais que também são específicos à pesca, como a divisão do

trabalho, a tradição, a família, a modernização e a mudança (MALDONADO, 2000).

A territorialidade destes grupos em termos de domínio prático e de espaço

prático, noções como habilidade especificas surgidas da familiaridade do

homem com o espaço, estão intrinsecamente ligadas às atividades,

percepções e atitudes adquiridas na socialização e na relação com o meio,

gerando hábito e capacidade de orientação e de exploração do espaço.

Assim, a náutica e a arte de pescar são constructos sociais que surgem e se

desenvolvem num espaço prático, onde se expressam outras noções que

informam a visão de mundo e a organização produtiva dos pescadores.

(MALDONADO, 2000, p.62)

Assim, o cálculo e a organização produtiva dos pescadores, no que diz respeito ao

espaço, se fazem sobre pontos que permanecem, enquanto outros se re-situam, de modo que

os “pesqueiros” estão sempre sendo reafirmados como pontos de pesca. Desta maneira, é

compreensível a percepção individual sobre o mesmo olhar que constrói formas bastantes

características de apreender o lugar em uma imagem mental.

4.3 As relações sociais no uso das territorialidades

Segundo Diegues (2001), a pesca enquanto apropriação material e social de recursos

renováveis e móveis coloca problemas relevantes na análise entre homem e natureza. Neste

sentido, procuramos estabelecer a relação da dimensão de uso dos recursos proporcionados

pela pesca com a racionalidade de apropriação dos ambientes, considerando a noção de

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territorialidade estabelecida em espaços diversificados, delineando a existência das formas de

organização captadas através dos sistemas de pesca comercial no rio Solimões.

Denominado localmente como pesca de vez, sua relação com a disposição territorial

dos pontos de pesca estabelecidos no deslocamento e uso do rio e lagos apropriados de forma

privada por determinados grupos revela a possibilidade de uma interpretação acerca da

relação conflituosa ou não do uso de determinados ambientes, suas regras e mecanismos de

controle que definem os padrões constitutivos das territorialidades.

Para tanto, quanto à relação de disponibilidade dos territórios da pesca, Begossi

(2004), compreende que é possível pensar na articulação entre territórios e a racionalidade no

uso dos recursos a partir de três hipóteses que consideram a dimensão de administração destes

recursos.

A primeira hipótese indica que, quanto mais escasso o recurso, ou quanto maior for o

número de pescadores numa área, maior será a probabilidade de encontrar pesqueiros

(territórios) ou a presença de regras. A segunda diz que, quanto menos móvel for uma

tecnologia de pesca, maior a probabilidade de encontrar territórios ou regras de uso, ex:

tecnologias que necessitam de espaços delimitados de uso, como redes ou espinhéis, tendem a

induzir comportamentos territoriais entre pescadores. A terceira afirma que, quanto mais

móvel uma presa, menor a probabilidade de haver delimitação de territórios.

Estes apontamentos contribuem para pensarmos nas possibilidades de rever o

processo que compreende a percepção dos pescadores de Nossa Senhora das Graças em

relação aos recursos e o estabelecimento das regras de uso dos territórios compartilhados. O

espaço está imbricado na organização dos grupos humanos, expressando-se aqui e ali na vida

social, informando ordenações de mundo e viabilizando acordos entre as inteligências,

sobretudo no que diz respeito à territorialidade (MALDONADO, 2000).

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4.3.1 A pesca de vez: elemento constitutivo de acesso e controle dos territórios pesqueiros

A consolidação de territorialidades da pesca em lagos e no rio Solimões ao longo da

Costa do Pesqueiro (compreendendo a comunidade Nossa Senhora das Graças e demais

comunidades) revela a necessidade do estabelecimento de regras, contendo a invasão de

forasteiros frente à proteção das áreas onde se pesca de forma controlada.

Apesar de os pescadores moradores das comunidades possuírem de forma delimitada

a sua representação sobre os espaços constituídos em territórios comunais de uso, as regras

estabelecidas de aceso aos recursos disponíveis apontam para uma racionalidade qual à

apropriação social, deliberando formas de organização, visando eliminar a concorrência

desleal de barcos comerciais de pesca, impondo normas aos agentes internos ao processo local

de captura.

Na medida em que ocorre um significativo aumento da pesca em larga escala,

reconfigurando as relações estabelecidas, sobretudo pela dimensão comercial de captura e

incentivo do capital a partir dos grandes frigoríficos e empresas em Manacapuru e Manaus,

intensifica-se a procura pelo estabelecimento de locais apropriados onde a captura é exercida

intensamente e para determinados objetivos, quais sejam comerciais.

A reordenação do setor da pesca comercial estimula também uma reconfiguração das

relações de trabalho e apropriação social dos recursos pesqueiros, visando à internalização de

regras de captura que viabilizassem um controle maior, prevendo uma sobrecarga dos

recursos disponíveis. Da preocupação com o número crescente de embarcações e do número

cada vez maior de redes de arrasto nos lanços ocorrendo nas proximidades das comunidades,

configura-se uma espécie de pesca que iria delimitar, pelo valor do tempo, o uso de

determinados apetrechos na captura comercial dos bagres vendidos ao mercado em

Manacapuru, a pesca de vez.

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A pesca de vez é estruturada em lugares delimitados, geralmente espacializados entre

uma comunidade e outra, considerando as margens do rio, sem que haja a invasão de

pescadores não estabelecidos no perímetro determinado. Este relação induzida de apropriação

contratual dos recursos pesqueiros em áreas definidas pelos pescadores decorre, sobretudo, a

partir do início dos anos 90 (CRUZ,2009) com a intensificação comercial do setor em

Manacapuru, estabelecendo regras gerais quanto à forma de uso dos espaços aquáticos.

Para Cruz (2009), a ordem que dá sentido ao modo de apropriação através da pesca

de vez possui como mecanismo evitar conflitos pelo uso dessa porção de água.

Desta forma, a vez funciona como um sistema de organização mediado por códigos

internos de compreensão do grupo de pescadores, sendo introduzida na prática do lanço a

partir de duas preocupações fundamentais: racionalizar os espaços delimitados na pesca

comercial, diminuindo ou minimizando os conflitos e controlando a pressão sob os estoques

de peixes lisos disponíveis no rio Solimões, internalizado como regra aos pescadores locais.

Em Nossa Senhora das Graças, a pesca de vez ocorre numa ação que consiste sob as normas

estabelecidas.

Figura 62 – parceria entre crianças da comunidade chegando ao lugar onde é

praticada a pesca de vez.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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Os pescadores, geralmente em parcerias, se deslocam em suas canoas motorizadas

até determinado local que, provavelmente, será a fronteira de sua comunidade com a outra,

delimitando as fronteiras de territorialidades; a vez de pescar é mediada pelo tempo de

chegada e de espera entre uma canoa e outra.

Desta forma, os pescadores vão se aglomerando em fileiras de canoas esperando sua

vez para dar o lanço, este consistindo na largada da rede (geralmente com 150 a 300 metros

de comprimento da margem a quase o meio do rio) no local delimitado pelos pescadores,

colocado contra a correnteza do rio e sustentada por uma boia de cada lado (utilizando-se na

maioria das vezes, grandes baldes ou tambores fechados que flutuam e suportam o peso da

rede com o peixe) para que a rede seja levada abaixo e ao encontro aos cardumes dos bagres

que sobem o rio Solimões.

Figura 63 – A espera da vez demonstra o sentido de organização e

cumprimento das regras entre os pescadores da comunidade.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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A rede de arrasto, ou arrastão é levada ao rio pela correnteza abaixo até as

imediações da comunidade, o papel fundamental de soltura da rede cabe a um dos pescadores

na parceria que escolhe o melhor lugar de iniciar o despejo da rede e, ao final, das boias de

sustentação que asseguram o equilíbrio do arrastão, possuindo força equivalente ao peso do

peixes capturados.

Figura 64 – O lanço é dado quando ocorre a pesca de vez, a rede de

arrasto é jogada no rio presa às boias flutuantes, enquanto o outro

parceiro da pesca conduz a canoa motorizada das margens até o meio do

rio.

Fonte: RAPOZO, 2009.

Figura 65 – A boia é largada após a finalização do lanço, servindo

como sustentação da rede de arrasto que será levada correnteza abaixo

até os limites da comunidade.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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200

Assim, a rede é recolhida quando chega ao ponto máximo do limite estabelecido

entre uma comunidade e outra, ou entre uma porção delimitada de rio e outro grupo de

pescadores. O período total da pesca de vez dura entre 40 minutos a 1 hora, desta forma,

quando a rede é recolhida imediatamente inicia-se a vez de outros pescadores que aguardam

na fila.

Os pescadores que possuíram a vez de executar o lanço e que gostariam de retornar

para a mesma prática, devem se dirigir ao final da fila e novamente aguardar pela ordem de

chegada sua vez, respeitando a ordem para que seja reproduzido o tipo de delimitação das

regras consensuais da constituição deste tipo de territorialidade na prática da pesca.

Geralmente, quando a pesca não foi bem sucedida, este ato tende a se reproduzir por inúmeras

vezes a fim de proporcionar um lucro na captura em grande quantidade, considerando o

despendido de força executada no trabalho e dos custos do material empregado.

Figura 66 – Após o período de captura, a rede é recolhida em outro

ponto mais abaixo do rio, os peixes são retirados e a rede armazenada

na canoa.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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201

Os fatores de organização não excluem as possibilidades de conflitos internos, pois a

disputa é simbolicamente mediada pelas regras, mas o ato material da captura revela os riscos

quanto ao tipo de relação social estabelecida e o caráter circunstancial da pesca, já que não se

pode contar com a possibilidade real de uma boa pesca, desta forma, presumem-se os

períodos e horários melhores para a obtenção de melhor resultado, a escolha do tipo de

apetrecho, os períodos de sazonalidade das águas que propiciam melhor aproveitamento e

lucro, surgindo assim, como elementos de tensão entre os próprios pescadores.

Os elementos que estruturam e dão sentido à pesca de vez revelam as formas de uso e

apropriação comum pressupondo o estabelecimento de regras. Fatores como a ordem de

chegada, a organização das canoas, a espera, o momento de lançar a rede delimitada pelo

período estipulado e a recolha da rede com os peixes capturados, exercem uma

sistematicidade regular ao grupo de pescadores.

Nesta regularidade naturalizada, tais fatores são explicados pela intensificação da

pesca comercial, onde criam-se os mecanismos favoráveis à mediação de conflitos pelo

Figura 67 – Quando a vez não predispõe uma boa pescaria é necessário

voltar para o lugar de partida e esperar novamente, estes aspectos claramente

são evidenciados quando ocorre uma pesca mal sucedida.

Fonte: RAPOZO, 2009.

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202

território de pesca, a disputa individualizada pela captura e venda para os flutuantes locais é

normatizada pelo conjunto simbólico de regras, pelos fatores de organização que proíbem, por

exemplo, o estabelecimento de outsiders na pesca – pescadores de outras comunidades ou

lugares que não mantenham relação social ou comunitária com os demais pescadores, ou

ainda, a proibição de mais de um tipo de apetrecho utilizado na vez estipulada para a captura.

4.3.2 Os pontos de pesca: formas de apropriação e territorialização dos ambientes de

pesca

Os ambientes de pesca apresentam indiretamente as informações que demarcam as

forma de uso dos pescadores mediante a sazonalidade dos períodos hidrológicos, os

apetrechos direcionados para a finalidade da pesca – consumo e/ou comercialização, a relação

estabelecida entre os sujeitos e apontam a perspectiva da exploração dos recursos pesqueiros

através da produção de territorialidades locais.

De acordo com Begon et al (1996), no caso da pesca, o processo de territorialidade

ou de dominar um território/ambiente envolve custos. Desse modo, o recurso a ser defendido

deve compensar os custos de manutenção de um território. Para a autora. podemos pensar nas

áreas de pesca a partir de três elementos: Em pesqueiros que não são territórios de pesca

(denominados pontos de pesca); em pesqueiros onde há conflitos de pesca e por ultimo, em

pesqueiros onde há regras de uso.

Na comunidade Nossa Senhora das Graças, encontramos as três dimensões

correlacionadas de maneiras muito singulares. A primeira está ligada ao uso dos ambientes ou

pontos de pesca aos quais denominamos abertos, no caso dos rios e outras localidades que

estão situadas nas imediações e distantes das comunidades da Costa do Pesqueiro, fazendo

indiretamente parte do uso comum de territórios da comunidade. A segunda compreende as

áreas onde repercutem os conflitos, geralmente marcados pela proximidade das áreas de uso

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comum às quais denominamos espaços fechados, no caso da comunidade, estão ligadas ao

lago pertencente ao seu limite de territorialidade e aos pontos de pesca mais utilizados e

próximos. O terceiro elemento está ligado às regras que constituem, de maneira muito sutil, os

ambientes destinados à captura do pescado.

O perfil dos pescadores e da relação estabelecida com os ambientes de pesca em

Nossa Senhora das Graças revela a configuração de uso dos espaços aos fatores como

deslocamentos e destino da pesca.

Neste caso, a maioria dos pescadores (71%) entrevistados deslocam-se para

ambientes situados nas imediações e em lugares distantes do território da comunidade

(Figura 68). Este dado revela uma dimensão bem compreensível, o fato de deslocar-se para

pontos de pesca distantes implica a adoção de uma racionalidade objetiva com respeito a fins

específicos, neste caso, a comercialização do pescado, lançando-se aos riscos deste tipo de

pesca.

Os pescadores que não se deslocam para locais considerados distantes ou fora da

comunidade (21%) formam um conjunto importante de elementos para pensarmos o tipo de

pesca executado. Estes fatores geralmente estão associados à pesca de subsistência através do

uso do lago comunitário em períodos favoráveis. No entanto, não significa dizermos que

preexista uma diferenciação entre pescadores comerciais e pescadores de subsistência

apontados separadamente nas informações obtidas, e sim que é possível associar a finalidade

do deslocamento aos ambientes usados e à finalidade da pesca estabelecida, pois o

deslocamento – como apontamos anteriormente – requer custos associados à força de trabalho

empregada e aos materiais disponíveis para a pescaria, que, nem sempre, estão acessíveis aos

pescadores em geral.

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204

Os locais para onde se deslocam os pescadores da comunidade também revelam que

a perspectiva da distância indica o tipo de pescaria, estas informações apontam para o fato de

que, nestes ambientes, são encontrados pontos de pesca específicos quanto às regras de seu

uso. Estes pontos de pesca estão distribuídos em lugares localizados nos rios Solimões e

Purus e em seus lagos (Figura 69).

Figura 68 - Informação referente aos pescadores que se

deslocam para locais fora da comunidade, em localidades

distantes ou nas imediações.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

Figura 69 - Localidades distantes onde foi evidenciada a prática pesqueira

demonstram os pontos de pesca visitados pelos pescadores da comunidade

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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205

Figura 70 - Principais localidades e ambientes relacionados com o desenvolvimento da atividade pesqueira no

lugar da pesquisa.

Fonte: Elaborado por Suzy C. P. Silva a partir dos dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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206

Nos ambientes encontrados, a localidade Costa do Laranjal – localizada numa parte

do rio Solimões – aparece como o ponto de pesca que possui a maior frequência das

informações obtidas, sendo o lugar com que os pescadores possuem uma relação bastante

assimétrica referente ao seu uso diferenciado dos demais locais apresentados. A costa do

Laranjal aparece nos mapas mentais desenhados através dos pescadores, pois compreende

uma área de pesca aberta e de livre acesso aos comunitários locais, situando-se como um dos

principais pontos comerciais de captura do pescado localizados nas imediações não tão

distantes da Costa do Pesqueiro onde está a comunidade Nossa Senhora das Graças, sendo de

apropriação comum aos pescadores que estabelecem as regras de uso locais.

Em alguns momento mais longo, a gente pesca lá no Laranjal, tem que ser lá

a pescaria porque aqui fica tudo em terra, aqui tem tempo que não tem como

pescar, aí o ramo é esse tem que pescar lá. É, porque lá é mais fundo e dá

mais peixe, porque vamos supor, aqui nessa área aqui nós pesca...nós

atingimos se botar de beira a beira nós era campeão no peixe também aqui,

só que nós só bota do meio do rio pra cá pra lá não vai que é pedral, e lá não,

lá visa da beira a outra o Laranjal, entendeu? lá visa da beira, a outra tapa o

rio todinho aí o peixe tá ribando, né? (R. N. N. R. 41 anos, pescador e

morador da comunidade).

Sempre nós pesca lá no Laranjal porque é bom pegar lá. Ainda tem gente

daqui pescando lá, mas pra quem tem rede fina que nem essa minha não faz

vantagem ir sempre pra lá, o rio tá mais fundo lá e é mais graúdo os peixe

que passa lá, né? Aí eles fura a rede, não pega bem. Às vezes não pega o

peixe. Porque essa linha esse meu arrastão a linha é vinte e quatro, lá a linha

uma época dessas (enchente) a linha tem que ser trinta e seis pra cima, trinta

e seis que é pra segurar o peixe, porque tá mais fundo lá. A fundura. Eu acho

que lá no Laranjal, aqui nós tava vendo aí cinco metros sete metros, lá o

mínimo no mundo tá dando de vinte e cinco metros pra lá, se não tiver

dando mais. (A. S. 33 anos, morador e pescador da comunidade Nossa

Senhora das Graças)

Nos outros lugares citados, também verificamos as intenções e as particularidades da

pesca exercida. O arrendamento de lagos em comunidades situadas nas proximidades da

reserva do Abufari no rio Purus em determinados períodos, por exemplo, indica as práticas

estritamente comerciais das quais surgem os objetivos do deslocamento, sobretudo, causados

pela pesca em lugares disputados comercialmente.

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207

Desta forma, os conflitos não fogem à prática da pesca exercida em lugares

inicialmente proibidos, tais como reservas naturais, possibilitando uma interpretação de que o

intuito desta prática e os custos subjacentes ao exercício de deslocamento por um número

considerável de dias para obtenção de um bom resultado final, ainda possibilitam uma

apropriação dos recursos disponíveis sob estes mecanismos – o arrendamento de lagos, por

exemplo – garantindo um lucro.

Contudo, grande parte dos pescadores de Nossa Senhora das Graças optam ou apenas

possuem condições para a pesca em suas imediações, o tipo de finalidade indica o percentual

mais expressivo quanto ao fato do deslocamento. A pesca, em lugares distantes, envolve

custos investidos no trabalho logo, pressupondo a obtenção de um lucro, assim o

deslocamento em si indica o tipo de pesca subjacente, a pesca comercial, diferente do tipo de

pesca executada nas proximidades da comunidade, geralmente nos lagos, onde a finalidade é

o consumo (Figura 71).

A identificação dos ambientes relaciona o tipo de atividade pesqueira em Nossa

Senhora das Graças, demonstrando a articulação entre a finalidade comercial da pesca através

Figura 71 - Finalidade da pesca nas localidades distantes da

comunidade.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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das espécies capturadas (Figura 72), na medida em que a dimensão de uso dos recursos

pesqueiros quanto aos modelos de apropriação se diferenciam pelo lugar.

A pesca realizada nos locais apontados possui um diferencial relacionado com o

período de sazonalidade dos períodos hidrológicos em que acontece a atividade, assim como o

período hidrológico influencia o preço no mercado do pescado, também influencia a

finalidade, os apetrechos utilizados, o significado dado aos territórios da pesca, assim como os

elementos pertencentes à constituição do mundo da pesca como umas das representações do

mundo vivido entre os pescadores.

As informações dos ambientes onde são desenvolvidas as atividades pesqueiras entre

os moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças apresentam as formas de

territorialidades construídas a partir dos lugares e sob determinadas normas de acesso. Dentre

estas, destacamos as mais expressivas a partir da divisão decorrente dos períodos hidrológicos

(enchente, cheia, vazante e seca) como fatores condicionantes à atividade pesqueira e o modo

de apropriação dos ambientes.

Figura 72 – perfil total da denominação popular das espécies mais

capturadas para fins comerciais na região de pesca da pesquisa.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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209

Nos dados obtidos, destacamos a Costa do Laranjal situada no rio Solimões e

localizada próxima à Costa do Pesqueiro, às margens do rio Solimões onde se localiza a

própria comunidade – lugar onde é exercida a pesca de vez, e o Lago do Tamanduá, utilizado

em períodos de acesso fácil, localizado atrás da comunidade e tido como um lago

especificamente para a pesca de subsistência de peixes de escama (diferente dos peixes lisos

comercializados em grande escala nos rios), apresentando também uma dimensão comercial

em determinadas situações. Os demais ambientes citados constituem espaços apropriados de

forma comum entre os pescadores de Nossa Senhora das Graças e demais comunidades,

demonstrando a frequência de uso.

Os lagos e paranás, assim como a Reserva Abufari, aparecem predominantemente

como lugares em que se pressupõe a finalidade comercial, considerados ora espaços abertos,

ora fechados de acordo com o grupo que o define como território e pressupõe o seu uso

comum. A prevalência do rio Solimões também é indicada como local abrangente, que não se

delimita em seus ambientes particulares como os furos, costas e lagos, revelando sua

utilização de maneira heterogênea entre os pescadores, ou seja, enquanto ambiente maior que

não se limita a localidades específicas, sendo para os pescadores qualquer lugar que seja

conhecido por suas capacidades de estoque pesqueiro, respeitando suas regras, geralmente

pautadas pelo convívio e pelas relações sociais estabelecidas entre as comunidades mais

próximas.

Figura 73 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de

acordo com os ambientes no período da enchente

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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210

Nos meses correspondentes ao período sazonal da enchente, observa-se que o uso

dos rios se torna predominante na medida em que a intensificação da pesca comercial

prevalece como atividade principal, pois é visada a captura dos peixes lisos. Ocorre, ainda,

que a espacialização da pesca neste período resulta, também, na intensificação de outras áreas,

como os lagos e paranás ao entorno e distantes da comunidade. Os ambientes revelam uma

apropriação muito variada conforme os períodos, o que nos leva a refletir sobre condições de

uso diferenciado das territorialidades.

O uso dos recursos pesqueiros nas localidades citadas no período de enchente

revelam uma dimensão muito singular. Os pontos de pesca encontrados com a finalidade

comercial e para consumo são rios, lagos e paranás, no entanto, destaca-se a atividade

pesqueira desenvolvida na localidade Costa do Laranjal, também aparecem os pontos de pesca

em frente à comunidade, assim como inúmeros trechos do rio Solimões, revelando que, em

Figura 74 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da enchente

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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211

determinados momentos, não preexiste uma localidade especifica e adota-se o rio como um

todo.

Sempre alternados sob a possibilidade das variações apresentadas (venda/consumo),

a maioria dos locais citados no período de enchente possuem como finalidade o comércio. As

atividades de pesca cuja finalidade é o consumo, somente ocorrerão no lago Tamanduá e com

frequência bastante acentuada, esta afirmação revela a relação da comunidade com o lago, a

noção de trato com o ambiente representando como um lago-despensa, o que significa que a

pesca de subsistência neste período possui uma dimensão muito importante.

Na cheia, a dificuldade de captura do pescado cria obstáculos ao desenvolvimento

das atividades comerciais e, neste caso, o local torna-se parte da dimensão de consumo e de

reprodução da força-de-trabalho, contudo ainda apresenta a mesma dinâmica quanto as

formas de uso, prevalecendo em grande parte o uso dos rios para a atividade comercial e,

neste caso apresentando algumas alterações quanto sua finalidade, passando a ser utilizado

para o consumo.

Figura 75 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de

acordo com os ambientes no período da cheia.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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212

No período correspondente à cheia, a apropriação dos pontos de pesca revela, na

Costa do Laranjal, assim como em todo o trecho correspondente ao rio Solimões, a dimensão

de subsistência e comércio como fatores muito relacionais.

Nos outros ambientes, as mesmas finalidades aparecem num quadro de manutenção

que segue revelando a permanência do lago Tamanduá como ambiente destinado ao consumo,

mas que apresenta a diminuição de seu uso em relação ao período de enchente, em detrimento

do uso do rio Solimões como um ambiente disperso.

No período de descida das águas, denominado de vazante, a pesca em Nossa Senhora

das Graças se apresenta de forma diferenciada quanto à maneira de obtenção do pescado,

assim como suas formas de reordenamento das áreas consideradas pontos de pesca. Esta

singularidade revela a apropriação de quatro locais específicos, desaparecendo os pontos mais

distantes de pesca – fator que se deve primeiro à dificuldade de deslocamento no período da

vazante, ao alto custo do deslocamento considerando o produto final da pescaria.

Figura 76 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais apontados

no período da cheia.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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213

Contudo, as territorialidades da pesca, sobretudo nos rios como o Solimões a partir

da vazante, vai reconfigurando as formas de uso dos espaços considerados comuns, pois os

rios se tornam cada vez espaços propícios à captura dos peixes com características comerciais,

sendo utilizados de forma mais intensiva que os lagos e demais espaços.

Esta tendência se manifesta, sobretudo, com o fenômeno denominado pelos

pescadores de repiquete, período marcado pela estabilização das águas da cheia e posterior

descida das mesmas, manifestando o período de vazante até a seca, melhor período de pesca

para os moradores das comunidades da Costa do Pesqueiro.

Como o período da vazante é reconhecido pelo início da melhor época de captura ou

fartura do pescado, a comercialização aparece relacionada ao consumo. Segundo as

informações obtidas, o excedente da pesca é mais acentuado, permitindo, por exemplo, a

pesca para a venda e para o consumo em frente à comunidade ou em menor grau no lago

Tamanduá, utilizado pelos moradores locais para o consumo, apresentando-se de maneira

Figura 77 – formas de apropriação dos recursos pesqueiros de

acordo com os ambientes no período da vazante.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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214

muito diferenciada da pesca voltada unicamente para a dimensão comercial realizada em

outros pontos de pesca reconhecidos, como na Costa do Laranjal (Figura 78).

Com a facilidade da captura do pescado iniciada com a vazante dos rios, a divisão de

locais específicos voltada para a venda e para o consumo se demonstra de forma mais

explícita, pois direciona o uso do local escolhido e as ações desenvolvidas na pescaria, como

o uso de apetrechos específicos. A demarcação de áreas de acesso comum, sobretudo no rio

Solimões, torna-se mais latente quanto maior forem os processos de intensificação da captura,

gerando, por vezes, tensões entre os pescadores e as formas de uso dos locais.

Assim, como na vazante, o período correspondente ao período de águas baixas ou de

seca também é visto pelos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças como uma

boa época para a pesca. A facilidade na captura do pescado se deve à diminuição no nível de

água dos rios e lagos e na concentração dos cardumes propícios à dimensão comercial e

também ao consumo.

A pesca comercial se torna mais acentuada no período de seca, (Figura 79), logo, a

apropriação comum, contudo de forma privada entre os pescadores locais, se torna mais

Figura 78 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais

apontados no período da vazante.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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215

expressiva. O uso do rio Solimões sofre grande pressão da pesca comercial quando

comparado aos demais ambientes, neste caso, a sobrecarga induz à competição da pesca

comercial, representando grande percentual das áreas demarcadas pelos pescadores através

dos mecanismos de controle, já que os pontos de pesca demarcados neste período representam

uma boa obtenção de lucro com o pescado.

Neste período, o aproveitamento dos pontos de pesca é tamanho que revela a

diversidade da apropriação dos espaços de forma a direcionar as finalidades da pesca (Figura

80). Para além da localidade Costa do Laranjal que, neste período, aparece com uma

frequência bastante acima das demais épocas, o uso acentuado da pesca no lago Tamanduá,

pela primeira vez, revela sua dimensão comercial em relação aos outros locais citados e aos

outros períodos correspondentes.

Figura 79 – formas de apropriação dos recursos

pesqueiros de acordo com os ambientes no período da

seca.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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216

A pesca no período de seca é vista como a melhor época para os moradores de Nossa

Senhora das Graças, porque, também, apresenta um excedente comercializável relacionando-

se, também, com a dimensão do consumo. Por mais que seja um período em que a dificuldade

no abastecimento de água, por exemplo, é tido como um problema infraestrutural entre os

moradores, por outro lado, expõe a facilidade na pesca que contribui para a reprodução dos

meios de manutenção física e social da comunidade.

A comercialização e posterior obtenção da renda possuem mais visibilidade com a

captura em grande quantidade do peixe liso. Contudo, o processo de comercialização, como

apresentado anteriormente, se reconfigura conforme a oferta do pescado, transformando,

também, as disputas e o acesso a determinadas porções de território demarcado nos rios e

lagos.

A diversidade de apropriação dos locais mediante a racionalização no uso dos

ambientes diante nos períodos hidrológicos correspondentes indica a existência de melhores e

piores momentos em que a pesca é executada. A escolha dos melhores horários e dos

Figura 80 - Finalidade destinada ao uso dos recursos pesqueiros nos locais apontados no

período da seca.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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217

apetrechos utilizados na captura demonstra a finalidade da pescaria, evidenciando o

conhecimento acerca dos ambientes, esta dimensão subjaz à representação dos lugares

considerados enquanto territorialidades e que estruturam as atividades de captura do pescado.

O período da manhã é ressaltado como o melhor horário para efetuar a pesca

comercial e de subsistência, por isso aparece como o horário mais frequente. Diferente do

horário da manhã, a pesca realizada à noite e na madrugada representa boa parte da finalidade

comercial e onde a captura, principalmente dos bagres, é tida como atividade principal quanto

à renda obtida entre os pescadores profissionais.

A estratificação dos horários revela, na esfera do trabalho, o modo de inserção da

produção capitalista na pesca. Indiferente aos períodos e horários cuja atividade comercial é

executada, gera disputas entre os pescadores, a apropriação dos recursos pesqueiros em

horários incomuns, revelando aspectos fundamentais à compreensão dos riscos desta

Figura 81 - Melhores horários para a captura do pescado

nos ambientes citados, segundo os moradores da

comunidade Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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218

atividade, como as pescarias executadas à noite e em demais horários visando à

comercialização.

Sabe-se que a dimensão comercial da pesca profissional na comunidade Nossa

Senhora das Graças revela um número expressivo de indivíduos envolvidos nesta atividade,

onde grande parte dos pescadores (56%) afirma não deixar de pescar comercialmente durante

o ano, não significando, é claro, que aqueles que não comercializam o pescado durante o

período anual não estejam envolvidos diariamente com a pesca.

O período hidrológico revela uma das possibilidades de compreensão das formas de

organização do trabalho na pesca comercial, pois indica aos momentos onde se deixa de

pescar em detrimento de outras práticas que ditam o regime do modo de vida local (Figura

83).

Figura 82 - Percentual de ocorrência sobre a prática da

pesca comercial comunidade.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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219

As dificuldades encontradas, sobretudo no período da enchente, revelam informações

sobre os aspectos constituintes da pesca comercial. Nestes períodos ocorre a subida repentina

das águas, reconfigurando os espaços de pesca, dando maior locomoção aos cardumes antes

concentrados, dificultando a pescaria no rio, envolvendo maiores custos e tempo desperdiçado

no processo de captura, logo sendo um dos fatores que resultam na diminuição da atividade

comercial.

Contudo, a pesca continua fazendo parte do modo de vida local, pois se configura

como atividade de subsistência, exercida, neste momento, principalmente, nos lagos que

recebem grandes quantidades de cardumes bastante apreciados pelos moradores locais,

sobretudo dos peixes de escama.

A enchente e a cheia são também períodos que requerem uma organização

antecipada dos espaços de uso familiar entres os moradores da comunidade Nossa Senhora

das Graças, pois, com a subida das águas na várzea, as porções de terra diminuem, limitando,

também, os espaços destinados à criação dos animais, às plantações e demais áreas de cultivo.

Logo, é necessário concentrar forças em atividades que antecedem as enchentes (a colheita do

Figura 83 - Períodos em que não se exerce a pesca

comercial por ano na comunidade Nossa Senhora das

Graças.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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roçado de mandioca, a modificação dos canteiros e jirais, a mudança de lugar dos animais

criados), para que não ocorram imprevistos no período de cheia, desta forma, a pesca

comercial também sofre uma diminuição em decorrência do tempo de atividades no preparo

para a espera da subida das águas.

A atividade da pesca comercial nos leva a pensar sobre a capacidade de exploração

dos recursos pesqueiros e compreender sua dinâmica quando relacionados ao uso definido de

pontos de pesca territorialmente demarcados e socialmente diferenciados nos períodos

hidrológicos. Nas localidades citadas pelos pescadores destinadas à pesca comercial, a Costa

do Laranjal se revela como o lugar de maior importância, diferenciando-se do lago Tamanduá,

na medida em que este, na maioria do ano, é entendido como território de uso comum à pesca

de subsistência dos moradores da comunidade Nossa Senhora das Graças. A noção do lago

como despensa, ou como depósito vivo de alimentação para os moradores revela a

importância deste espaço como território de uso comum entre os moradores, no entanto,

também, esconde o conflito.

A apropriação territorial de determinados espaços de pesca pelos moradores de

Nossa Senhora das Graças está relacionada com a dinâmica de seu uso. Isto significa que a

capacidade de captura do pescado, através da diferenciação dos períodos hidrológicos, do

conhecimento local e da pré-disponibilidade de seus recursos, direcionará a finalidade da

pesca. A realidade de uso do Lago do Tamanduá se demonstra como exemplo válido, onde a

finalidade de comercialização só aparece quando a captura, ou o produto final do trabalho

objetivado na pesca, produz um excedente comercializável, já que este lugar é reconhecido

como ambiente destinado à pesca para consumo entre os moradores.

Diferente dos outros locais, sobretudo no rio Solimões, onde a finalidade da pesca é

ditada pelo ritmo de comercialização e da capacidade de exploração dos recursos pesqueiros,

os ambientes fundamentais ao exercício desta atividade se configuram, em sua maioria,

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localizados em territórios onde há uma diferenciação simbólica e material dos espaços

comunitariamente endógenos, logo, configurando-se enquanto sua delimitação e demarcação

legitimada pela relação de oposição ente territórios abertos – de acesso comum aos grupos de

pescadores locais – e territórios fechados – ambientes cuja apropriação envolve regras e

mecanismos de controle sob a pressão dos recursos de forma mais acentuada entre os

moradores do mesmo lugar, legitimando a conduta da pesca exercida nos locais apresentados.

A atividade da pesca comercial de forma intensiva nestes ambientes vem

possibilitando uma interpretação não só da constituição das dimensões territoriais da pesca,

pois, na medida em que consideramos os espaços demarcados, estamos lidando com outra

situação, bem mais real aos objetivos dos pescadores, sendo a disposição dos recursos

pesqueiros disponíveis nestas áreas.

Neste sentido, a capacidade de exploração dos recursos é determinada pela dinâmica

de apropriação dos ambientes, pois a territorialidade surge exatamente daquilo que o território

demarcado pode propiciar aos indivíduos, ou seja, dos recursos pesqueiros, e, neste caso, de

forma mais acentuada para fins comerciais.

A intensificação da captura para fins comerciais, principalmente nas áreas onde

ocorre territorialização do rio Solimões, vem ao longo das últimas décadas se revelando como

um dos principais problemas relacionados com a pesca comercial local, resultando da

quantidade de peixe capturado, não aproveitado ou descartado na captura, gerando diminuição

considerável das espécies comercialmente importantes, assim como aquelas necessárias ao

consumo local das comunidades.

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Em Nossa Senhora das Graças, a diminuição das espécies consideradas importantes

para a comercialização apresenta resultados expressivos na visão dos pescadores locais. Pois,

na medida em que ocorre, sobrecarga os estoques, a tendência é um controle mais rígido das

áreas através da normatização dos espaços comuns de pesca regidas por acordos locais e

mediados ou pela interlocução dos representantes do setor pesqueiro, por alguma instituição

ou pelas próprias comunidades envolvidas por meio de seus pescadores, visando, desta forma,

solucionar o problema do desgaste e diminuição.

Figura 84 - Pergunta referente à existência de descarte de

pescado entre os pescadores da comunidade.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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Por outro lado, a intensificação da pesca comercial representada pela diminuição dos

estoques de determinadas espécies, sobretudo dos peixes lisos bastante visados

comercialmente, traduz outras questões que envolvem o processo de delimitação dos

territórios da pesca comercial e de subsistência e as relações de trabalho que possibilitam uma

rede de comunicação entre os agentes envolvidos.

4.4 Dimensões representativas do conflito: a pesca entre os de dentro e os de fora

Os conflitos são inerentes às relações instituídas entre os indivíduos em grupo.

Contudo, eles se apresentam de acordo com o modelo de desenvolvimento da sociedade e

capacidade de gestão sobre determinadas formas e aspectos. Na teoria social os conflitos

aparecem ora como aspectos que denotam a luta pela relação de poder entre os indivíduos de

determinadas classes, enquanto o motor da história (MARX, 2004), ora como formas

emergentes nas relações das sociedades urbano-industriais (DURKHEIM, 2004) e ainda

Figura 85 - Análise descritiva das espécies de peixes que diminuíram na localidade.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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224

sendo a expressão máxima da relação circunscrita sob as bases da sociedade moderna

enquanto elemento de luta, sendo uma relação social intencionada (WEBER, 1991).

Para Simmel (1973) apud Theodoro (2005), conflito é uma das formas mais vivas de

interação, sendo constituído pelo processo de associação, considerando que os fatores

responsáveis pela dissociação são o ódio, a inveja, a necessidade e o desejo. Neste caso, para

o autor, o conflito tenderia à missão de resolver dualismos divergentes enquanto maneira de

reconstruir uma unidade perdida, ainda que pelo meio de destruição de uma das partes

envolvidas.

Com o desenvolvimento dos modos de produção e dos modelos político-econômicos

adotados na contemporaneidade, os conflitos, segundo Theodoro (2005), assumem cada vez

mais seu espaço de importância, sendo que, nas sociedades atuais, suas particularidades são

encontradas em uma modalidade especifica, aquela que se dá em torno da relação entre

homem e natureza quanto aos dilemas de apropriação dos recursos naturais.

Os conflitos socioambientais podem ser comparados a outros tipos de

conflito existentes em nossa sociedade, com a diferença de que normalmente

eles englobam coletividades em torno de bens difusos, com base em uma

legislação que, por vezes, ainda é incipiente. Isto não quer dizer que as

outras formas de conflito tenham desaparecido, mas apenas que se

acrescentou uma nova forma, desta feita envolvendo os recursos naturais.

(THEODORO, 2005, p. 54)

Para Little (2004), os conflitos socioambientais podem ser pensados a partir de

grandes tipologias que os caracterizem, a) sua relação em torno do controle sobre os recursos

naturais disponíveis; b) em torno dos impactos gerados pela ação humana, sendo estes sociais

ou ambientais, e c) a partir de valores e modos de vida divergentes ou ainda de ideologias não

consensuais. Para o autor, é interessante refletir sobre o que está em jogo nos processos de

mediação, considerando uma identificação e análise dos atores sociais e dos interesses que

denotam a disputa.

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225

Quando um ou mais indivíduos se utilizam dos mesmos ambientes, predispondo que

o uso dos recursos naturais disponíveis é dado à apropriação comum significa que há regras

no processo de uso que estão ou não internalizadas entre os agentes. Contudo, a questão

também implica que, no contexto sobre a utilização de áreas bem definidas, está em jogo

representações sobre o ambiente, sobre o espaço físico e a maneira como este é constituído.

Neste sentido, as relações sociais estabelecidas em determinado espaço físico, como

a constituição de territorialidades da pesca, possibilitam a compreensão de como são

construídos os espaços sociais no processo de interação entre indivíduos.

Para Bourdieu (2003), os espaços sociais são produzidos a partir da posição relativa

que determinados agentes ocupam na relação com outros lugares, desta forma é definido pela

exclusão mútua (ou a distinção) das posições que o constituem, isto é, como estrutura de

justaposição de posições sociais. Para o autor, a estrutura do espaço social se manifesta,

assim, nos contextos mais diversos, sob a forma de oposições, o espaço habitado (ou

apropriado) funcionando como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social.

A compreensão das condições de reconfiguração dos espaços físicos onde são

produzidas as territorialidades da pesca se traduz pela relação entre aquilo que é socialmente

construído pelos indivíduos quanto à questão da apropriação dos recursos. Isto significa que

os conflitos sociais pela utilização coletiva dos mesmos ambientes e recursos estão dispostos

na interação entre o espaço social e a maneira como este se estabelece no espaço físico.

Neste caso, a apropriação se daria na relação entre a estrutura espacial da distribuição

dos agentes (pescadores) e nas estruturas da distribuição dos bens a serem alcançados, como

no caso dos recursos pesqueiros. Assim, as divergências quanto à apropriação e uso dos

ambientes levariam, por este lado, ao conflito pela disputa e acesso aos recursos comuns.

Desta forma, Bourdieu (2003) afirma que, como o espaço social subjaz inscrito ao mesmo

tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais que constituem as representações

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locais dos indivíduos que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, o

espaço se apresentaria como um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, sobretudo a

partir de sua forma mais sutil, a da violência simbólica como violência despercebida.

Na produção social de territorialidades da pesca comercial e de subsistência nos

lagos e no rio Solimões, a convergência ou divergência no uso dos recursos possibilita em

muitos casos, os conflitos, sobretudo quando os mecanismos de controle e regulamentação

das pescarias não são internalizados, estando os indivíduos sujeitos às sanções do grupo em

comum.

Em situações recorrentes como a frequente diminuição de espécies que possuem um

bom preço no mercado da pesca, possibilita também as contradições no processo de captura

do pescado e de uso comum das áreas territorialmente definidas, tencionando a relação entre

os pescadores por meio da disputa ao acesso das áreas e do uso dos apetrechos. Os conflitos

pelo acesso às áreas consideradas principais ao desenvolvimento da pesca tanto comercial

quanto de subsistência, demonstram-se enquanto reflexo das relações sociais de trabalho que

envolve a pesca e a disputa/controle sob determinados ambientes na medida em que se

observa a configuração de um cenário dinâmico da pesca na região.

Algumas dimensões do conflito podem ser expressas por meio dos relatos obtidos

entre os pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças, tomando, como enfoque, os

principais pontos de pesca considerados entre os moradores locais. A disputa pelo acesso aos

recursos pesqueiros evidencia as formas de organização dos espaços em disputa pela

apropriação para fins comerciais, a territorialidade produzida pela pesca comercial demonstra

aspectos variantes, ordenados pela compreensão dos grupos locais a respeito dos sistemas

abertos e fechados de acesso aos ambientes predispostos.

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Isto significa dizer que os espaços delimitados, além de possuírem regras de acesso

comum aos agentes envolvidos, reproduzem suas representações quanto à forma de controle

e acesso de acordo com a maneira que os ambientes são apropriados.

Um lago, por exemplo, tende a ser considerado um ambiente de apropriação

endógena de uma ou algumas comunidades de acordo com sua dimensão espacial, logo

define-se a capacidade de obtenção dos recursos nele disponíveis e sua finalidade, geralmente

para subsistência, representado desta forma, um ambiente fechado do ponto de vista mais

geral de seu acesso, estando mais restrito ao uso comum dos sujeitos envolvidos.

No caso dos rios, costas e paranás, a apropriação é resultante da composição

organizacional dos recursos disponíveis de forma a apresentarem-se tendencialmente como

ambientes abertos entre os sujeitos envolvidos, contudo, prevalecendo os códigos que

normatizam o seu acesso, dando sentido a uma apropriação comum na medida em que seus

mecanismos de controle são internalizados pelos agentes envolvidos. Desta forma, acredita-se

que a pesca exercida nos rios é diferente do tipo de pescaria exercida nos lagos, considerando

que o acesso ao primeiro seria mais diversificado e de forma menos problemática do que em

relação ao segundo.

Porém, ambos os espaços revelam a apropriação comum e privada a determinados

grupos sociais, envolvendo lugares naturalmente vistos como harmônicos, contudo uma das

dimensões da territorialidade na pesca é expressa pela insurgência dos conflitos nos ambientes

disputados, visto que o território é produto social e político dos grupos envolvidos. Logo, a

latência dos conflitos só se expressa na medida em que os elementos estruturantes da ordem

social imposta pelos mecanismos de controle do acesso aos recursos são desrespeitados, neste

caso a intensificação da pesca comercial nos rios e nos lagos é um fator agravante que resulta

deste processo.

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É sabido que os conflitos pela disputa dos recursos pesqueiros nos rios e lagos da

Amazônia brasileira tem se constituído como um fenômeno historicamente recorrente,

inúmeros relatos são passíveis de uma interpretação quanto aos tipos de ocorrência e em que

se fundamentavam, tomando, como um destes exemplos, um dos conflitos mais marcantes no

Estado ocorrido em 1973 entre os municípios de Careiro e Manaquiri, especificamente no

lago do Janauacá, este conflito denominado de “a guerra do peixe”, foi ocasionado pela

intensificação da pesca comercial na área, resultando na morte de vários moradores locais e de

muitos pescadores profissionais embarcados.

O resultado da intensificação da pesca comercial, associada à implementação de

apetrechos de alto poder de captura neste período – como as malhadeiras e arrastões –

deflagrariam maior disputa pelos recursos pesqueiros e pela sobreposição de áreas

tradicionalmente ocupadas em lagos e no próprio rio.

A Costa do Laranjal e o Lago do Tamanduá são exemplos de contrastes que revelam

o uso dos recursos pesqueiro e as relações estabelecidas entre os agentes envolventes nos

ambientes diferenciados nas áreas de pesca aberta e fechada. Nos discursos encontramos a

preocupação com os problemas que envolvem a pesca e a dimensão de importância desta

atividade para os moradores.

A preocupação com as relações estabelecidas no uso do Lago Tamanduá demonstra

um pouco da história dos conflitos, muitas vezes através de agressão física, e ao mesmo

tempo a descrença da opinião dos moradores em relação à possibilidade de mudanças,

considerando a crise do desgaste dos recursos pesqueiros.

[...] há um estrago nos lago hoje, e por causa disso houve até ameaça de

morte (ocorrida em 2005, segundo o entrevistado)...nós reivindicava por

causa desse lago aí (Lago do Tamanduá)..por causa da documentação

dele...eu juntei a turma e levei lá num dia que teve um problema, só que o

cara lá tava com uma espingarda e queria atirar em nós... desde desse dia

pararam a intervenção do lago...acho que os lago tudo vão se acabar! O lago

é importante demais porque é dele que a gente sobrevive na época de seca,

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229

mas o pessoal faz baderna lá (S. S. 54 anos, pescador e morador da

comunidade).

Muitas vezes, o conflito apresenta agentes externos que acirram a disputa no uso dos

recursos. Em Nossa Senhora das Graças, a pesca no Lago Tamanduá em determinados

períodos do ano se torna conflituosa por indicar uma particularidade muito característica, a

comunidade utiliza o lago para a obtenção de alimento na maioria dos períodos sazonais.

[...] o pessoal de lá do Manaquiri queria puxar pra eles a pesca dessa área

daqui, Ave Maria! isso foi um conflito horrível aí, só que não conseguiram

puxar porque o certo mesmo por uma parte isso aqui tinha que ser município

de Manaquiri que é do outro lado do rio, né? Aí passa a ser município de

Manacapuru, mas se o Manaquiri não conseguiu não que era mais pequeno.

Aí a maioria também do pessoal viu a dificuldade, né? Que quando seca o

Manaquiri fica todo seco, aí fica dificultoso pra pescar, mas o pessoal do

Manaquiri ainda tenta várias vezes vim pra essa costa aqui do lago, já

levaram até porrada (R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da

comunidade).

.

[...] tem muito conflito aí pra dentro do lago com o pessoal do Manaquiri,

tem parte pro senhor saber que o lago tudo vira pesca deles lá do Manaquiri,

muito na seca também, Aí pra trás, só é essa costa aqui daí pra cá que é

nossa daqui da comunidade. O lago aí do Tamanduá faz parte daqui, né, Mas

eles ainda entram em conflito puxando querendo ser Manaquiri, bem aí o

lago que vocês sempre vão lá, né? Aí eles por isso que eles faz isso, só

porque é grudado no lago do Manaquiri aí. (L. S. 32 anos, pescador e

morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

Mas o lago também possibilita, indiretamente, que outros grupos possam ter acesso,

neste caso, pescadores de outras comunidades que entram no lago sem a autorização dos

moradores da comunidade e realizam arrastões com grandes redes para pesca comercial, esta

prática revela, na fala dos moradores, uma preocupação latente com a própria legitimidade de

uso do território do lago ao mesmo tempo em que caracteriza os de fora como agentes de

conflito no processo de apropriação dos recursos.

[...] o lago (referindo-se ao Lago do Tamanduá) tá faltando preservar,

porque tem as criança né, elas precisam comer, tá faltando uma união muito

grande, tem gente daqui que levava os outros pescadores de outras

comunidades, do Manaquiri (município vizinho) pra pegá peixe

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aqui...existem muito problema de comida. E às vezes num tem peixe, e a

gente não se une, nos lutava de primeiro mas hoje não, tem mais de 8 ano

atrás, antes era bom...você pegava todo tipo de peixe agora você vai lá no

lago e só pega aqueles bodó magro... deveria haver uma fiscalização

melhor pra preservar os peixes pequeno, porque todo ano estraga (R.

A. P. S. 50 anos, pescador e morador da comunidade).

[...] lá no lago é um problema, os pessoal do Manaquiri (município vizinho

a Manacapuru) entram no Tamanduá pra pescar e o lago é pra despensa, tem

problema, eles acham que num pode proibir mas a gente qué porque é bom

pra nós...nós tem filho né? Eles precisa comer” (A.P. A. 39 anos, pescador e

morador da comunidade).

Sobretudo, a fala dos moradores locais expressa a particularidade do uso do lago,

mas explicita a relação com o território pertencente ao modo de vida em Nossa Senhora das

graças. O lago pode ter uma dimensão comercial para os agentes externos à comunidade, mas

para os moradores, pode representar a delimitação da comunidade, a história de vida

associada à apropriação e transformação do espaço em comunidade, à associação com a

reprodução material da vida, levando a elementos muito além da comercialização e trazendo

para si a representação do lugar.

Em contraposição ao lago, o caso da Costa do Laranjal, somando o fato da pesca ser

exercida no rio e sem delimitação, visivelmente a priori – considerando é claro, a existência

das comunidades próximas que se identificam com o lugar – o conflito se dá pelas regras de

uso e pelo maior número de pescadores quanto ao acesso da área como um importante ponto

de pesca.

[...] olha, lá (na Costa do Laranjal) onde nós pesca tem muito conflito.

Quando tá na época da seca todo mundo abate lá, e tem muito pescador que

dá conflito demais porque eles querem mandar lá na área né? Mas vamos

supor, tem conflito assim se tu caçar conflito porque tu botar o arrastão na

frente do outro aí lá vai aquela confusão, mas eu tô com todo esse tempo de

pesca comigo nunca aconteceu lá. É porque eu sou uma pessoa assim que,

vamos supor, chega uma pessoa ambiciosa e tenta botar na minha frente, aí

eu fico com a minha rede na minha canoa e deixo ele botar aí depois se tiver

tempo de eu botar a minha eu boto senão eu fico na minha. Porque o que é

meu ele não pega, aí eles criam aquele olhão querendo expulsar nós, mas aí

eles também de primeiro quando nós começamos lá eles quiseram embargar

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pra lá. (L. S. 32 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das

Graças).

[...] a pesca aqui na frente da comunidade num é muito boa não, mas pra

outras áreas como lá no Laranjal é bom... lá é bom de fera. (A. M. S. 23

anos, pescador e morador da comunidade).

Nas afirmações dos pescadores que se deslocam para a Costa do Laranjal

verificamos os elementos que apontam para o desgaste dos recursos pesqueiros associados ao

conflito e à identificação dos pescadores de outras comunidades. A mediação institucional dos

órgãos competentes reflete a possibilidade de mediação dos conflitos na medida em que os

agentes se delimitam no campo de disputa.

[...] os pessoal falam pra gente acabar com isso de pescar lá, só que é gente

que não pertence nem de lá, é já no lado de longe do Laranjal. Mas eles se

sentem dono dessa área, eles querem botar moral, nas primeiras vezes eles

queriam barrar, né? Aí foi aquele furdunço monstro, levaram IBAMA lá e

tudo e aí eu ainda naquela época eu ainda via uma hora do IBAMA cancelar

tudinho, né?eles pode porque eles têm o poder pra ninguém pescar. Depois

de novo o IBAMA teve por lá pra querer embargar de pescar aqueles que

têm mais dinheiro lá, aí aqueles que se metem a ter mais dinheiro querem

embargar a compra também, né? Se o pescador não fosse documentado

mesmo eles tinham embargado, né? Só que aí todo pescador eles têm

documento, né? aí o IBAMA não pode porque nós têm cadastro, têm

carteira. Se é um pescador mesmo, aí o IBAMA não pode impedir de

pescarem, em todo canto do rio nós pode pescar. (R. N. N. R. 41 anos,

pescador e morador da comunidade).

Neste caso, a relação entre aqueles que possuem o acesso e os pescadores de fora ou

aqueles que rompem com os mecanismos de controle, sobretudo da organização da pesca

comercial, impõe as sanções, entrando em litígio com os demais pescadores estabelecidos.

[...] lá no Laranjal eu já vi mais de 100 lanço, lá tinha conflito uns três anos

atrás porque o pessoal do IBAMA foi lá com eles” (A. P. M. 51 anos,

pescador e morador da comunidade).

[...] onde nós pesca sempre tem conflito com o pessoal da Comunidade do

Pesqueiro aqui de perto, eles sempre querem impedir nós de pescar lá no

Laranjal(R. N. N. R. 41 anos, pescador e morador da comunidade).

A dimensão do conflito revela a apropriação dos recursos pesqueiros e a

competição comercial que se apresenta, muitas vezes, de maneira nem um pouco amistosa, e

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sim tolerável segundo os pescadores da comunidade Nossa Senhora das Graças. A

compreensão deste fenômeno apresenta também os interesses pessoais das comunidades no

aproveitamento dos recursos, principalmente nos períodos de maior relevância na captura do

pescado, na vazante e na seca.

[...] rapaz, aqui não saia essas praias antes, depois que saiu essas praias é

que nós fomos pra lá (para a Costa do Laranjal) por causo que a praia

dificulta a gente de pescar, mas nós não íamos pra lá não, todo tempo era

aqui. Isso foi pra uma base do ano de noventa e pouco pro ano dois mil, de

dois mil pra cá, foi quando essas praias baixaram, né? Que não tinha essas

praia, mas de primeiro só era aqui a pescaria e nos lugares mais longe que

tinha de passar dia como lá pro (rio) Purus. Aí aqui depois que fica tudo em

terra não tem como a gente pescar, então às vezes quando nós vamos pescar

lá eles ainda dizem assim: aqui não é lugar de vocês, vão pescar em cima da

praia de vocês lá, aí como é que o cara vai pescar em cima de praia? (A. C.

43 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças).

[...] na época da seca, tem muita ambição, todos querem manda, é que na

seca num dá pra pescá aí na frente (da comunidade) e tem que ir pra lá

(Costa do Laranjal) e eles (os moradores e pescadores do local) ficam com

raiva (S. C. S. 36 anos, pescador e morador da comunidade).

O uso dos recursos pesqueiros apresenta uma diversidade de informações que sobre

as formas de apropriação no mundo do trabalho da pesca considerando a percepção e o saber

constituído na prática da atividade pesqueira. Os recursos compartilhados nos espaços de uso

comum indicam os mecanismos de controle, e possibilitam a produção e a reprodução da vida

material e simbólica das comunidades locais, como a comunidade Nossa Senhora das Graças,

a representação dos territórios da pesca como elementos constitutivos do mundo ordinário são

mantidos e (re)construídos através da estruturação do habitus comunitário, dando sentido ao

modo de vida que impulsiona a ação social coletiva.

A construção social dos territórios de uso enquanto áreas ou pontos pesqueiros estão

relacionados não só com as condições biológicas, mas sobretudo com as condições sócio-

históricas que instituíram uma política de acesso e intensificação das relações comerciais de

pesca local.

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Para que os pescadores tenham acesso aos recursos disponíveis nos ambientes

aquáticos, é preciso considerar a organização social do trabalho, as implicações nas relações

sociais internas dos grupos de trabalhadores da pesca, a apropriação racional e social dos

recursos naturais, a dimensão cultural do imaginário que constitui a pesca, a relação entre a

pesca e o mercado da pesca inserido no modo de produção capitalista desenvolvido na

Amazônia, os apetrechos que otimizam a captura para a comercialização e os projetos de

desenvolvimento econômicos e políticos adotados em condições históricas situadas e datadas

que repercutem no modo de vida amazônico.

Os conflitos se destinam à compreensão de um mundo entre aqueles que possuem

seus domínios, a relação com os pontos de pesca são marcados pela relação de sociabilidade

entre os pescadores sejam harmoniosas ou conflituosas, indicando um domínio de

territorialidades da pesca.

Para além da dimensão daquilo que possam representar, os conflitos demarcam a

consolidação de espaços sociais, logo a disputa considera que o que está em jogo são os

ganhos, ou seja, os benefícios proporcionados pelo resultado das lutas dentro do campo de

conflito.

Para Bourdieu (2003) os ganhos do espaço, ou seja, do território ocupado e usado

podem tomar a forma de benefícios que consideram ganhos de localização, associados ao fato

de estarem situadas perto de agentes e de bens raros cobiçados – como pela disputa de

determinadas áreas em lagos e no rio; os ganhos de posição ou de classe, estando

relacionados aos ganhos simbólicos de distinção que estão ligados à posse monopolística de

uma propriedade distintiva – tal como na apropriação comum de espaços como os lugares da

pesca de vez; e os ganhos de ocupação (ou de acumulação), sendo relacionados com a posse

de um espaço físico, podendo ser uma forma de manter a distância ou de excluir toda espécie

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de intrusão indesejável – tal como no conflito gerado pela intensificação comercial no local e

referente a uma relação não tão harmônica com os outsiders da pesca.

Os mecanismos de apropriação comuns destes ambientes são dispostos de acordo

com a dimensão do reconhecimento entre os sujeitos que os legitimam, reconhecer os de fora

ou os de dentro entre aqueles que se utilizam dos recursos pesqueiros, requer o sentimento de

pertença, estando diretamente articulado à indivisão do mundo material e simbólico. A pesca

representa mais do que uma atividade que garante a reprodução da vida, ela se apresenta

como uma das representações da própria vida, da realidade cotidiana de seus trabalhadores na

comunidade Nossa Senhora das Graças e na Costa do Pesqueiro em geral.

4.5 Repensando territorialidades: dimensões interpretativas sobre o controle ao acesso

dos recursos pesqueiros

A constituição dos mecanismos de reprodução social dos territórios incide sobre a

capacidade de manter o uso comum dos recursos pesqueiros de acordo com as possibilidades

encontradas quanto à gestão das áreas ocupadas. Contudo, a diferenciação entre as áreas de

livre acesso particularmente encontradas em determinadas porções do rio onde não se

pressupõe a apropriação das comunidades locais, e as áreas de propriedade comum onde

acontecem uma acentuada demarcação dos lagos e pontos de pesca restritos aos sujeitos de

um mesmo grupo, são evidentes e demonstram aspectos diferenciados sobre o controle ao

acesso dos recursos disponíveis.

A atividade da pesca se configura não só pela captura do pescado, mas também pela

apropriação e formas de uso onde é realizada, permitindo uma reconfiguração social do

ambiente envolvente quanto à sua finalidade. Desta forma, implica sobre alguns parâmetros

de compreensão e de acordo com a maneira que é realizada e, sobretudo, daquilo que ela

reflete, como a organização do trabalho, a demarcação social das áreas, as representações

sobre o ambiente apropriado, as formas de uso através do manuseio de apetrechos específicos

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e os conflitos destinados à interpretação das práticas de pesca comercial enquanto decorrência

da intensificação da competitividade nos rios e lagos comunitários.

No sentido de estabelecer uma correlação a partir dos elementos evidenciados, e,

considerando os aspectos que constituem a dimensão das territorialidades e formas de

apropriação dos recursos pesqueiros, buscamos traçar um quadro de análise por meio de

alguns parâmetros comparativos de acordo com as observações de Mackean & Ostrom,

(2001) sobre os fatores que permitem uma interpretação dos usos e apropriação dos regimes

de propriedade comum nas áreas evidenciadas, sendo estes diferentes das áreas de livre

acesso e da concepção Hardiana sobre o esgotamento dos recursos.

Desta forma, pretendemos demonstrar que, a capacidade de gestão das

territorialidades nas áreas de pesca, correspondem a determinados fatores, tais como a

comercialização, e se estruturam por meio de normas locais comunitárias que medeiam e

demarcam o acesso a espaços circunscritos à indivíduos específicos, ocorrendo geralmente em

casos onde a participação das instituições governamentais é menos acentuada, estas

geralmente tendem a aparecer conforme se estabelecem latências quanto às relações indicadas

pelos conflitos e, sobretudo, em lugares muito particulares, como nos lagos onde ocorrem

manejos comunitários, diferente das áreas apropriadas nos rios.

Parâmetros comparativos sobre alguns fatores de uso dos recursos pesqueiros e de

seus ambientes a partir dos regimes de propriedade comum.

Sobre os fatores em prol da integridade dos

recursos (MACKEAN & OSTROM, 2001)

Elementos constitutivos das atividades de pesca

na comunidade Nossa Senhora das Graças da

Costa do Pesqueiro de acordo com o uso dos

recursos

Indivisibilidade

O recurso pode possuir características físicas que o

tornem inacessíveis a divisões ou demarcações

físicas, seja pelo fato de o sistema não poder se

delimitado, seja pelo fato de os recursos em

questão movimentarem-se por amplos territórios,

como os peixes, sendo necessário o manejo em

A apropriação dos recursos pesqueiros realizada

pelos moradores da comunidade Nossa Senhora

das Graças possibilita o uso de determinados

espaços transformados em territórios de pesca

onde o uso deste ambientes não se constitui numa

delimitação puramente física, mas numa

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236

grandes unidades a fim de que, para além da

obtenção dos produtos retirados, haja a

manutenção do valor ambiental das áreas

utilizadas.

demarcação social dos lugares, onde a captura

revela a ocorrência da concentração de pescado,

estando envolto por sistemas de apropriação dos

recursos mediados por mecanismos de acesso ao

controle da pesca, visando garantir a manutenção

dos estoques e da própria atividade.

Incerteza na localização de zonas produtivas

Em ambientes frágeis, a natureza pode impor

elevadas incertezas na produtividade de

determinadas zonas e na identificação anual de

zonas improdutivas de um sistema mesmo que sua

produtividade seja estável. Nesta situação, o

sistema de recursos é fixo e pode, inclusive, ter

fronteiras óbvias, mas as zonas produtivas são

variáveis. Os usuários podem preferir o

compartilhamento de toda a área e coletivamente,

decidir onde concentrar a exploração em um

período particular – dividindo riscos e benefícios –

ao invés de dividirem a área em parcelas

individuais, situação em que todo o risco incorreria

sobre alguns de seus membros.

A demarcação social das áreas de pesca incide sob

as condições variáveis de captura nas zonas

territorialmente definidas ou fixas. Contudo, as

fronteiras que delimitam o acesso aos recursos

pesqueiros entre um lago ou rio, ou ainda entre

vários espaços no mesmo rio ou lago, condizem

com a definição física dos ambientes comuns

apropriados, estando a pescaria sujeita às

inconstâncias de seu processo produtivo, ou seja,

da captura do pescado, haja vista a movimentação

dos cardumes e as condições de uso que ora

restringem os sujeitos envolvidos, ora permitem

maior possibilidade de sucesso de acordo com a

localização destes agentes.

Eficiência produtiva através da internalização das externalidades

Em vários sistemas de recursos, o uso em uma

determinada zona imediatamente afeta opções e

níveis de produtividade em outra. Neste caso,

regimes de propriedade comum se tornam opções

desejáveis quando usos mais intensivos

multiplicam a externalidade entre parcelas,

promovendo acordos coletivos com regras de uso

fortemente restritivas, e quando a coação coletiva a

essas regras se torna mais fácil em relação a

eternos acordos individuais.

Nos ambientes evidenciados, onde a pesca possui

maior intensidade quanto a sua captura, sobretudo

para fins comerciais, a tendência ao zoneamento

ou territorialização é mais abrangente e

consolidada pelos sujeitos locais, ocorrendo maior

controle e eficácia nas áreas de pesca do que em

áreas onde o livre acesso da pesca comercial–

mesmo em se tratando dos mesmos ambientes,

como o rio Solimões – é muitas vezes significado

de conflitos e de disputas demarcadas pela

competitividade.

Eficiência administrativa

Mesmo em situações em que recursos sejam

facilmente divisíveis em parcelas, instrumentos

administrativos que imponham direitos de

propriedade individual sobre as mesmas podem

não estar disponíveis. A criação de regimes de

propriedade comum pode ser uma maneira de

institucionalizar regras coletivas de manejo – que

atuem como cercas imaginárias e júris informais e

internos aos grupos de usuários.

A organização do sistema de territorialização da

pesca, por exemplo, através da criação de pontos

de pesca, ou da regulamentação da divisão em

áreas definidas como ocorre na pesca de vez nas

águas do rio Solimões e nos lagos apropriados

pelas comunidades local, evidencia mecanismos

que possibilitam a mediação social dos conflitos

entre os agentes internos a este processo. Contudo,

só se demonstram pela existência da atividade

comercial loca. Desta forma, criando maneiras

especificas de uso – para além da existência de

acordos firmados no campo jurídico-representativo

do Estado e das instituições competentes, como o

IBAMA – sendo racionalizados os recursos para

determinados fins sob o ambiente apropriado,

pressupondo uma gestão local geralmente marcada

por acordos verbais ou consuetudinários,

demonstrando, neste caso, preocupação com a

atividade desenvolvida e com os recursos

pesqueiros.

Quadro 2 – Perspectiva comparativa entre os fatores de uso dos recursos pesqueiros e de seus ambientes a

partir dos regimes de propriedade comum.

Fonte: Dados obtidos em pesquisa de campo, 2009.

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237

A discussão sobre os regimes de propriedade comum e de uso social dos recursos

disponíveis de forma “livre” implicam aspectos que circundam a constituição da noção de

territorialidades da pesca, pois se configuram enquanto elementos cruciais no debate quanto

às formas de apropriação dos recursos pesqueiros, já que apresentam dimensões bastante

específicas quanto ao modo de uso dos recursos em áreas geralmente consideradas livres de

qualquer controle e regulação, logo, existindo mecanismos que delineiam de forma prática os

tipos de pescaria existentes em cada lugar, sejam rios ou lagos, estando os indivíduos

sujeitados às sanções aplicáveis.

Não significa dizermos que inexistem áreas de livre acesso nas pescarias,

principalmente porque sua ocorrência em grandes áreas abertas dos rios é evidente, contudo

apresentando pouca expressividade já que as melhores áreas consideradas perfeitas para a

prática da pesca comercial estão em regime de territorialização, sendo apropriadas por

comunidades ou grupos de pescadores em determinados locais.

Os regimes de propriedade definidos pela territorialização da pesca comercial e de

subsistência contrariam os argumentos de Hardin (1968) em torno da pressuposição de que

todos os recursos explorados na forma de regimes de propriedade comum necessariamente

implicariam sob as condições de livre acesso, e que este processo induziria ao passar do

tempo na extinção ou sobreexploração dos recursos. Um número maior de estudos indica que

a natureza coletiva da propriedade não implica necessariamente a condição de livre acesso,

ainda que os ambientes e seus recursos em questão sejam considerados como patrimônios da

União. Porém, não invalidamos a existência de que, recursos em ambientes onde não haja

mecanismos de controle e que ocorra sobre-exploração em um local específico, possam

indicar as condições analíticas da tese apresentada por Hardin (1968).

Para Vieira e Weber (2002), as modalidades de acesso e controle do acesso aos

recursos pressupõem, na maioria dos casos, a regulação múltipla das formas de uso do

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238

ambiente, sendo exemplos a criação de regras e instituições baseadas em costumes, o cultivo

de mitos ou representações, a instauração de direitos coletivos ou de direitos históricos pela

posse e uso do ambiente.

Estes aspectos refletem os modelos de apropriação dos recursos pesqueiros, a forma

como são representados indica maior ou menor grau de controle sobre as áreas transformadas

pela pesca comercial no rio, e pelo uso comunitário dos lagos na pesca de subsistência.

Contudo, compreender as condições diferenciadas da formação dos territórios de pesca e sua

condição de territorialização frente à apropriação comum de seus recursos por determinados

grupos, torna-se fator fundamental na constituição dos mecanismos de controle ao acesso das

áreas, e do desenvolvimento da atividade nos ambientes disponíveis.

Sua constituição requer o entendimento das formas de interpretação do uso dos

recursos e a maneira como são representados material e simbolicamente pelos indivíduos que

deles compartilham. Esta relação, entre sociedade e ambiente, indica o importante papel do

comportamento humano na tomada de decisões e escolhas sobre o processo de apropriação

social dos recursos.

Esta dinâmica pode ser interpretada se considerarmos, como um dos elementos

gerais, a instituição do processo organizacional destes grupos sociais, permitindo uma

abordagem sobre os aspectos socioeconômicos subjacentes às transformações decorrentes das

dinâmicas naturais e sociais, como aponta Vieira e Weber (2002), delimitando os fatores de

escolha e de apropriação dos recursos mediante a internalização dos sistemas de valores e

representações quanto ao ambiente envolvente.

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239

Os modelos de apropriação, como uma das dimensões válidas de interpretação sobre

o uso dos recursos, indicam a correlação dos fatores estruturantes do meio de vida das

sociedades, sobretudo o modo de vida em comunidades rurais, já que transparecem os acordos

e as normas de classificação do mundo, das coisas, dos homens e das relações sociais. A

instituição destes sistemas de valores e de representações compartilhadas pelos membros de

determinadas sociedades demonstram o gradiente de importância e interdependência do

ambiente envolvente e socialmente reconfigurado.

Figura 86 - dinâmica dos modos de apropriação e gestão dos recursos.

Fonte: Organizados por Vieira e Weber (2002).

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240

O fato de determinadas espécies ou objetos naturais chegarem a ser

percebidos e explorados pelo homem em termos de recursos decorreria,

portanto, não somente das pressões induzidas pela busca de satisfação de

necessidades imediatas de sobrevivência, mas fundamentalmente daquelas

oriundas do universo simbólico que permeia todo o tecido da vida social

(FRIEDBERG, 1992 apud VIEIRA E WEBER,2002, p. 26)

Contudo, a permanência das atividades desenvolvidas e dos modelos de apropriação

dos recursos pesqueiros requerem uma compreensão dos valores ambientais e

socioeconômicos estipulados para a prática da pesca, considerando as possibilidades de

manejos e acordos intercomunitários e interinstitucionais dos lagos e até mesmo das áreas

interpretadas como de livre acesso, constituída pelos rios, neste caso o rio Solimões.

Os territórios, socialmente construídos para a prática pesqueira, possibilitam não só

a constituição das identidades comunitárias e as relações de sociabilidade, mas também

indicam o quão necessário se tornam os diálogos entre os agentes locais em relação ao uso e

conservação dos recursos apropriados de forma comum, compartilhando responsabilidades e

regularizando normas coletivas de acesso e uso conforme as regras estabelecidas localmente.

A participação da sociedade civil no que tange à mediação do uso dos recursos

pesqueiros, e do incentivo às políticas públicas e de Estado para a pesca, é fundamental na

medida em que ocorre maior abertura para o diálogo nos espaços institucionais. A mediação

representativa das colônias, cooperativas e associação de pescadores se torna inerente à

execução deste processo, já que possuem acentuada visibilidade e cada vez mais cruciais à

consolidação de uma política nacional para a pesca em águas interiores do país.

Não podemos invalidar o fato de que as contradições sociopolíticas no ambiente

deste debate incitam oposições tendencialmente favoráveis a uma ou a outra estratégia de

correlação de forças entre os agentes deste processo, já que está em jogo no campo a disputa,

a mediação dos recursos apropriados e os custos e incentivos comerciais dados ao setor

pesqueiro nas últimas décadas. Desta forma, é necessário considerar as externalidades

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241

ambientais e socioculturais que constituem a base da economia familiar da pesca comercial e

de subsistência das sociedades rurais em geral, nas dimensões do setor econômico nacional e

no plano de desenvolvimento pretendido para a atividade pesqueira.

Estas mudanças tendem a ser debatidas na medida em que, com a criação do

Ministério da Pesca e Aqüicultura em junho de 2009, ocorram rearranjos institucionais

previsto para as transformações possíveis do cenário da pesca nacional. Com estas mudanças,

os elementos discutidos tendem a se configurar na medida em que ocorram as mudanças

necessárias diante do cenário de debate nacional sobre a questão pesqueira. Na esfera pública,

esta discussão tende a ganhar um cenário mais amplo na medida em que ocorrem maiores

participações dos sujeitos envolvidos neste processo.

Contudo, sabe-se que, com sua criação, de acordo com lei nº 11.958, de 26 de junho

de 2009, o Ministério passa a ter exclusividade sobre a autorização de operação e

arrendamento de embarcações estrangeiras de pesca, operando, também, sob a concessão da

subvenção econômica ao preço do óleo diesel ao setor comercial da pesca.

Entre outras execuções, o órgão ganha agora a competência para decidir sobre o

zoneamento econômico-ecológico (ZEE) e mediação dos conflitos e manejos das áreas

nacionais antes realizadas pelo IBAMA, definindo também a política nacional pesqueira e

aquícola, considerando, é claro, todos os fatores que envolvem a produção, transporte,

beneficiamento, transformação e comercialização até o abastecimento e armazenagem do

pescado.

O Ministério da Pesca e Aquicultura também decidirá sobre fomento da produção,

infraestrutura de apoio, beneficiamento e comercialização do pescado, além da organização

do Registro Geral da Pesca, estando sob sua guarda a concessão de licenças, permissões e

autorizações para aquicultura e pesca comercial (industrial e artesanal), ornamental,

subsistência, amadora ou desportiva.

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242

As mudanças decorrentes do cenário atual da pesca, considerando, como foco de

análise, a questão das territorializações dos recursos pesqueiros em áreas de apropriação

comum, podem indicar futuramente maior ou menor comprometimento a partir de uma

refuncionalização das instituições públicas quanto à gestão dos recursos em voga.

No entanto é crucial delimitar este debate a partir do cenário que inclua os agentes

sociais interdependentes neste processo – pescadores artesanais e comerciais, representações

populares do setor pesqueiro, agentes de comercialização e setores institucionais do governo -

considerando maior e acentuada participação da sociedade civil e, organizando, na esfera

pública, uma ampla discussão – como vem acontecendo com os fóruns e congressos regionais

e nacionais para o futuro da pesca nacional - sobre as viabilidades de gestão e das formas de

apropriação comum dos recursos pesqueiros.

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243

Considerações finais

Os eventos sociohistóricos associados demarcam o surgimento e transformações dos

setores pesqueiros, assim como a dinâmica sociocultural das sociedades rurais amazônicas

quanto a questão de apropriação dos recursos. As transições econômicas e a maior inserção do

modo de produção capitalista na região reconfiguram as dimensões relacionais do trabalho no

mundo rural, intensificam os padrões de uso dos recursos e, consequentemente, tornaram

iminente e consolidado as disputas territoriais e os conflitos na pesca e em demais atividades

extrativistas, sendo exemplos claros daquilo que se concretizava enquanto resultado da crença

no projeto de modernidade da sociedade brasileira, resultando muito mais em face do

desenvolvimentismo tardio e periférico de economia capitalista dependente, na medida em

que internalizava os aspectos econômicos em detrimento dos elementos socioambientais que

se discutem somente hoje.

Os processos de territorialização da pesca comercial e de subsistência no baixo

Solimões revelam uma pequena dimensão daquilo que constitui o debate acerca do uso e

propriedade comum dos recursos pesqueiros em regime de controle e acesso a determinados

ambientes. Os elementos apresentados como foco da investigação revelam muito mais do que

as condições obtidas nas pesquisas de campo realizada – entre aquilo que se pretendia e aquilo

que se alcançou – quanto à situação dos trabalhadores da pesca na Costa do Pesqueiro e,

particularmente, em Nossa Senhora das Graças. Pois demonstram que a pesca permite uma

interpretação sociológica dos modelos de desenvolvimento socioeconômico instituído pelas

políticas nacionais nas últimas décadas.

A pesca se torna importante atividade local na obtenção de renda no processo de

aquisição de bens de consumo não produzidos no mundo rural. Esta relevância expressa

aquilo que evidentemente se traduz como um trabalho, onde os recursos naturais são tidos

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244

como mercadoria e denotam, enquanto mercadoria, a sujeição às condições de

comercialização e de preço estipuladas pelo mercado regional do pescado.

Logo, o trabalho na pesca requer uma interpretação complexa dos fatores que o

constituem enquanto atividade de subsistência – e que historicamente estão associados à

reprodução social do modo de vida dos grupos sociais rurais habitantes das várzeas na

Amazônia brasileira – e como atividade comercial que surge enquanto fenômeno decorrente

dos processos socioeconômicos engendrados pelo padrão de desenvolvimento econômico

pretendido pelos modelos estatais adotados.

Os elementos do trabalho, do modo de vida e da produção de territorialidades nos

ambientes onde a pesca é realizada, sobretudo em áreas comumente consideradas como livre

acesso, permitem uma interpretação mais aprofundada de seu conteúdo investigativo, pois

denotam a constituição política e organizacional dos grupos sociais locais em delimitar,

utilizar e defender espaços físicos enquanto espaços sociais apropriados em regime de uso

comum, porém comum em se tratando de fatores exclusivos a determinados grupos de

indivíduos.

Desta forma se evidenciam os mecanismos de controle social ao uso dos recursos

pesqueiros, sendo relacionados de acordo com as representações simbólicas de constituição

do tempo e do espaço no mundo vivido nas várzeas do rio Solimões, estando permeadas pelos

meandros das transformações socioeconômicas que demarcam o advento da pesca comercial

local e sua intensificação.

As cosmografias das territorialidades apresentada indicam, como que pelo uso dos

mapas mentais, o aporte simbólico daquilo que representa a constituição dos ambientes

vivenciados cotidianamente no mundo real. O fato de recorrerem ao sentimento de pertença a

determinados lugares, como os lagos, porções do rio e das várzeas na comunidade, demonstra

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245

a capacidade de articulação entre a realidade socialmente construída e os ambientes

fisicamente consolidados.

No entanto, os ambientes socialmente apropriados enquanto territorialidades, como

indicam os pontos de pesca e o sistema da pesca de vez apresentados aqui, ainda que

permitam uma interpretação acerca da intensificação da pesca comercial local, revelam a

organização territorial dos sistemas de uso e regime comum dos recursos naturais. O debate

apresentado resulta como discussão a partir daquilo que erroneamente vem sendo tratado

como áreas de livre acesso, sobretudo na pesca realizada em espaços onde os recursos são

reconhecidamente públicos, como os rios.

Os conflitos socioambientais pela disputa e demarcação das áreas definidas e

apropriadas por determinados grupos de indivíduos expressam claramente que os mecanismos

sociais de regulação e controle dos recursos pesqueiros possuem uma racionalidade quanto à

sua utilização e conservação, já que denotam não só a condição em manter a pesca como

atividade de renda local, mas também a garantia que por meio das constituições de espaços

socialmente demarcados a partir de concepções de territórios de uso, a atividade da pesca

pode continuar e garantir a mediação social dos recursos disponíveis.

A gestão dos recursos pesqueiros nos rios, assim como ocorre nos lagos, também

deve ser considerado na medida em que compreendem fatores de suma importância à

reprodução do modo de vida local das comunidades pesqueiras em áreas de várzea e da

conservação dos ambientes e recursos utilizados neste locais. Pouco ou recentemente se

incluem como discussões pertinentes os debates na esfera pública quanto aos processos de

territorialização, porém são resultantes de um processo que nas últimas décadas vem

ganhando força, na medida em que a comercialização dos peixes lisos, como os bagres

migradores da bacia amazônica, tornaram-se alvos do setor comercial de exportação.

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246

Os mecanismos de gestão legal dos ambientes e recursos geralmente são efetuados

pela legislação pertinente por meio das instituições responsáveis que, ao longo das ultimas

décadas, vêm demonstrando profunda preocupação com a mediação dos recursos naturais

disponíveis e apropriados. A proibição da pesca para determinadas espécies em período de

reprodução e o manejo em áreas conflituosas expressam uma dimensão da realidade

recorrente. Contudo, a resolução de conflitos e o manejo dos recursos pesqueiros ainda se

demonstram de certa forma, incipientes quando relacionados à demanda de ocorrências,

sobretudo nas áreas que, geralmente, possuem pouca visibilidade, como os ambientes de

pesca nos rios, ainda mais se considerarmos a pressão de sobrepesca gerada pela

intensificação da captura estimulada pelos grandes comerciantes.

Os regimes de propriedade comum das áreas definidas como atividade de uso para

fins de subsistência e comercialização, em pequena e media escala, devem assegurar o

respeito pelo conhecimento tradicional dos regimes de propriedade já estabelecidos pelas

localidades. Para Mckean e Ostrom (2001), estes aspectos devem considerar algumas

recomendações, estas, por sua vez, compreendem as formas que asseguram a respeitabilidade

socioambiental pelos fatores associados ao uso dos recursos.

Desta forma, as autoras apontam que: a) grupos de usuários devem ter o direito de

organizar suas atividades, ou, ao menos, a garantia de não interferência; b) as fronteiras no

uso dos recursos devem ser claras; c) os critérios para o ingresso a grupo de usuários devem

estar claros; d) os usuários devem ter o direito de modificar suas regras de uso ao longo do

tempo; e) as regras de uso devem corresponder ao que o sistema pode tolerar e devem ser

ambientalmente conservadoras para impossibilitar margens de erro; f) regras de uso devem

ser claras e facilmente impostas; g) infrações das regras de uso devem ser monitoradas e

punidas; h) métodos baratos e rápidos para a solução de conflitos menores devem ser

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concebidos e; i) instituições para o manejo de sistemas muito amplos devem ser estabelecidas,

devotando considerável autoridade a pequenos componentes.

Contudo, ainda é necessário reconhecer que determinados regimes de uso comum

dos recursos são falhos e, geralmente, induzidos por pressões externas, como através da

intensificação da pesca comercial, estando sujeitos a reconfigurações e rearranjos alternativos

a fim de se consolidarem os meios que induzam à apropriação consensual dos recursos

disponíveis.

A circularidade social do debate quanto às políticas de Estado para a pesca devem

garantir, na esfera pública, a participação política dos indivíduos, considerando essencial

pensar os impactos causados quanto às mudanças decorrentes do regime de intensificação no

uso dos recursos pesqueiros, os aspectos que definem a territorialização das áreas de pesca e a

viabilidade de resolução dos conflitos expressos nos mecanismos de regulação do acesso e

controle comum em determinadas áreas.

Estes aspectos denotariam um movimento de ressignificação da questão ambiental,

resultante da apropriação do discurso sobre a temática do meio ambiente e das dinâmicas

sociopolíticas, tal como define Acselrad (2010) a partir da noção de justiça ambiental, onde

esse processo de ressignificação estaria associado a uma reconstituição das arenas onde se dão

os embates sociais pela construção dos futuros possíveis. Para o autor, nessas arenas, a

questão ambiental se mostra cada vez mais central e vista crescentemente como entrelaçada às

tradicionais questões sociais do emprego e da renda.

A justiça ambiental combina a defesa dos direitos a ambientes culturalmente

específicos – comunidades tradicionais situadas na fronteira da expansão das atividades

capitalistas e de mercado; a defesa dos direitos a uma proteção ambiental equânime contra a

segregação socioterritorial e a desigualdade ambiental promovidas pelo mercado; a defesa dos

direitos de acesso equânime aos recursos ambientais, contra a concentração das terras férteis,

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das águas e do solo seguro nas mãos dos interesses econômicos fortes no mercado

(ACSELRAD, 2010)

As políticas de Estado permeadas pelo campo da correlação de forças instituídas

pelos movimentos representativos da pesca e de outros setores da sociedade civil organizada,

devem compreender que a perspectiva de participação é fundamental na contextualização da

dinâmica sociopolítica futura, sobretudo quando voltadas para o cenário da pesca nacional.

Por outro lado, é necessário também um esforço contínuo no que tange à socialização

dos conhecimentos produzidos sobre o campo de estudo das questões socioambientais. A sua

correlação prática enquanto alternativa de análise e possível contribuição, não pode ser

dissociada da esfera política do debate pretendido, já que resulta em complexa interpretação

dos fenômenos sociais decorrentes, viabilizando, a partir de experiências sociais investigadas,

as alternativas viáveis ao diálogo em sociedade sobre os recursos naturais disponíveis e à

constituição de suas formas de uso.

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257

Anexos

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

QUESTIONÁRIO INDIVIDUAL N.º _______

COLETOR: ________________________________________ DATA: ___/___/____ HORA:

___________

LOCALIDADE: _________________________ COMUNIDADE:

__________________________________

MUNICÍPIO: ___________________________________________________________

UF: _______

COORDENADAS: Latitude ______________________ Longitude

______________________

PERIODO DO QUESTIONÁRIO APLICADO: Enchente ( ) Cheia ( ) Vazante ( ) Seca ( )

1 IDENTIFICAÇÃO NOME: _____________________________________________ IDADE: ________ SEXO:

M ( ) F ( )

Local de Nasc. (Localidade): _____________________________ Município: ____________

UF: ______

Local da última moradia (localidade/município):

_____________________________________________

Estado Civil: solteiro ( ) casado ( ) união consensual ( ) viúvo ( )

separado ( )

Grau de escolaridade: Nunca estudou ( ) não lê e não assina o nome ( ) só assina o

nome ( ) 1a a 4a série ( ) 5a a 8a série ( ) Ensino Médio completo ( ) Ensino

Médio incompleto ( )

Outros:________________________________________________________________________

_________

Qual a sua religião?

_______________________________________________________________________

Qual a sua denominação?

__________________________________________________________________

Existem divergências de religião na comunidade? SIM ( ) NÃO ( )

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258

2 FAMÍLIA

Você tem filhos? ( ) SIM ( ) NÃO QUANTOS: ________ Quantas pessoas moram na casa?

___________

Identificação dos membros da família

Nome Parentesco Idade Sexo Pesca? Ocupação

Pai

Mãe

3 ATIVIDADES PESQUEIRAS Existem associações na comunidade: SIM ( ) NÃO ( )

Especificar:

_____________________________________________________________________________

Há quanto tempo existe a associação dos moradores? _______________ O Sr. participa da

associação? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )

O Sr. Ou alguém da sua família participa de associação/colônia de pescadores, sindicato,

ou cooperativa?

1 SIM ( ) 2 NÃO ( ), caso SIM, Quais?

_______________________________________________________

Quem participa?

Nomes ________________________________________________

Há quanto tempo? ________________

Além da Pesca com quais dessas atividades você se identifica? Agricultor ( ) Caçador ( )

Criador de animais ( ) Outros ( ) ___________________________________________

O Sr. Pesca Há quanto tempo? _______________________

O Sr. Pesca para: ( ) Subsistência ( )Comercial ( )Sub./Com.

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259

Quais os apetrechos que o senhor mais utiliza para pescar? [hierarquizar]

Malhadeira ( ) Linha de mão (linha e anzol) ( ) Tramalha ( )

Zagaia ( ) Arrastadeira ou rede ( ) Tarrafa ( )

Caniço ( ) Arrastão ou redinha ( ) Arpão ( )

Estiradeira (espinhel) ( ) Currico ( ) Arco e flecha ( )

Outros ( ) _____________________________________

O senhor faz algum apetrecho de pesca? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( ) Quais?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

O senhor compra apetrechos de pesca? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( ) Quais são:

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Como o senhor conserva o pescado para comer? [hierarquizar]

No gelo ( ) salga ( ) Outros ( ):

____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Como o senhor conserva o pescado para vender?

No gelo ( ) salga ( ) Outros ( ):

___________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

O senhor costuma pescar com seus familiares? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )

Quais ?

__________________________________________________________________________

Você costuma manter alguma relação de ajuda( meia, parceria, etc.) com outros

pescadores? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )

Caso SIM especifique:

_____________________________________________________________

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260

Com quem ?

_____________________________________________________________________

O senhor ou alguém da sua família ganha algum tipo de benefício?

Quem? Qual benefício?

(aposentadoria, salário pesca, bolsa escola, bolsa família e outros)

Valor mensal (R$)

O senhor possui :

TRANSPORTE QUANTIDADE

BARCO

CANOA

RABETA

Outros:

Total de embarcação por família

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261

4 CARACTERIZAÇÃO DA PESCA LOCAL - QUAIS OS LOCAIS DE PESCA EM QUE O SENHOR COSTUMA IR?

Período Local de pesca (ambientes e

nomes)

Tipo de

Transporte

Tempo de deslocamento (ir ao local)

Dias / Horas

Horário (melhor horário

para pescar)

Tempo de

pesca

Dias/Horas

Apetrecho Espécies

capturadas

Finalidade

C V C/V

ENCHENTE

CHEIA

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262

Período Local de pesca (ambientes e

nomes)

Tipo de

Transporte

Tempo de deslocamento (ir ao local)

Dias / Horas

Horário (melhor horário

para pescar)

Tempo de

pesca

Dias/Horas

Apetrecho Espécies

capturadas

Finalidade

C V C/V

VAZANTE

SECA

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263

5 MODALIDADES DE PESCA

5.1 O Sr. pesca mais para? venda ( ) consumo ( )

Porquê? ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

5.2 A maioria dos moradores pesca para vender? SIM ( ) NÃO ( )

O Sr. usa caixa de isopor na pescaria? SIM ( ) NÃO ( )

E o gelo, onde o Sr. consegue (identificar os fornecedores)?

LOCAL FORNECEDOR PREÇO

Quantas pessoas da casa pescam diariamente para vender? __________________

Existe algum tipo de peixe considerado venda certa [mais fácil de vender]?

Sim ( ) Não ( )

Quais? Por que?

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264

6. DADOS DE COMERCIALIZAÇÃO DO ÚLTIMO PERÍODO COMPLETO DE PESCA

Quem compra:

1 – Flutuante/Patrão

2 – Marreteiro

3 – Barco recreio

4 - Frigorífico

5 - Outros

Espécies

Categ

oria

(1, 2

ou 3)

Ambientes

Embarcação

Apetre

chos

Quantidade

Kg/und

Valor ($)

Kg/und

Quem

compr

a?

Destino Sec

a

Chei

a

Ambientes Apetrechos

1 – Lago 1 – Malhadeira 8 – Arrastão

2 – Rio 2 – Zagaia 9 – Currico

3 – Ressaca 3 – Caniço 10 – Tresmalha

4 – Paraná 4 – Espinhel 11 – Tarrafa

5 – Poço 5 – Redinha 12 – Arpão

6 – Igapó 6 – Linha de mão 13 – Arco e flecha

7 – outros__________________________ 7 - Rede 14 – outros___________________________

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265

7 CONFLITOS E GESTAO DOS RECURSOS PESQUEIROS

O senhor pesca em locais muito distantes? ( ) SIM ( ) NÃO

Quais?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Por quê?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Qual a sua relação com esses lugares e com os seus moradores ? BOA ( ) REGULAR ( ) PÉSSIMA ( ) Por que?

______________________________________________________________________________

Existe aqui hoje, ou existiu algum conflito por causa do uso dos recursos naturais?

1. Sim (mês/ano):__________________________________; 2. Não

Quais foram os motivos do conflito (pesca, caça, recurso madeireiro e não/madeireiro,

água etc.)?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Quem eram as pessoas (ou agentes/instituições) envolvidas no conflito?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Houve soluções?

1. Sim

Quais?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

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266

2. Não

Por quê?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Na sua comunidade existe algum acordo para cuidar ou guardar os peixes? Sim ( ) não ( )

Há quanto tempo existe este acordo?

___________________________________________________________________________

O senhor teve conhecimento da discussão e criação de algum acordo de pesca? Sim ( ) não ()

Se, SIM, Por quê a comunidade criou este acordo?

______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 8 ETNOCONHECIMENTO E GESTÃO DOS RECURSOS PESQUEIROS Tem alguma época em que o senhor deixa de pescar para vender? SIM ( ) NÃO ( )

Qual? _________________________

Porquê?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

O senhor sabe quando os peixes estão desovando? Colocar X e nome do local.

Espécies Época Lugar onde desova

Enchente Cheia

Piramutaba

Dourada

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267

Há estrago de pescado? 1 SIM ( ) 2 NÃO ( )

Por que?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Houve uma diminuição da quantidade de peixes nos locais de pesca?

SIM ( ) NÃO ( )

Por que?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Quais os locais que diminuíram?

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Quais foram os peixes que mais diminuíram na Comunidade? [hierarquizar]

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Quais são os peixes que o senhor e sua família não gostam de comer?

Por que?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Qual o melhor período do ano para pescar? Enchente ( ) cheia ( ) vazante ( )

seca ( )

Por que?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

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268

Qual o pior período do ano para pescar? Enchente ( ) cheia ( ) vazante ( ) seca

( )

Por que?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

Qual o tipo de isca que o senhor usa para pescar?

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

______________________________________________________________________________

Quais são os melhores horários para pescar? Manhã ( ) Tarde ( ) Noite ( ) Madrugada ( )

Quais são os piores horários para pescar? Manhã ( ) Tarde ( ) Noite ( ) Madrugada ( )

No caso destes peixes:

Piramutaba

Quais os melhores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )

Quais os piores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )

Dourada

Quais os melhores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )

Quais os piores períodos para pescar? Manhã ( ) tarde ( ) noite ( ) Madrugada ( )

O que os peixes costumam comer? Colocar o nome do alimento.

Espécies Tipo de alimentos

Enchente Cheia Vazante Seca

Piramutaba

Dourada

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OBSERVAÇÕES GERAIS

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

________________________________________________________________________

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Roteiro de entrevista semi-estruturada

1 Descrição da história de vida

2 O Sr. se considera que tipo de trabalhador?

3 Que tipo de pescador o Sr. se considera?

4 O que é um pescador de subsistência?

5 O que é um pescador profissional?

6 Como era a pesca antigamente?

7 Que tipo de utensílio era mais usado?

8 Quais as espécies mais capturadas?

9 Qual a época que os peixes começam a entrar e sair dos locais de pesca (lagos)?

10 O que é preparo?

11 Como o Sr. aprendeu a pescar?

12 Como o Sr. repassa esse conhecimento sobre a pesca para os filhos?

13 Como eram feitos os utensílios de pesca antigamente (tipo de material)?

14 Que tipo de utensílio o Sr. usa para pescar para vender? (explorar as estratégias de pesca,

locais, quantidade de utensílios)

15 Que tipo de utensílio o Sr. usa para pesca para comer? (explorar as estratégias de pesca,

locais, quantidade de utensílios)

16 O Sr conhece áreas de cerrado (de dificil acesso) onde existe pesca?

17 O Sr. pesca no cerrado? Por quê?

18 As pessoas costumam pescar no cerrado?

19Existe alguma área que o Sr. Tenha preferência?

20 Em que época os peixes começam a entrar no igapó?

21 Em que época os peixes começam a deixar o igapó?

22 Como o Sr. faz para pescar no igapó?

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23 Como o Sr. faz para pescar na época em que os peixes estão entrando e saindo dos lagos?

24 Qual a época que os peixes estão migrando? (rota, tipos de cardumes, estratégias de pesca)

25 Por que eles fazem essa migração?

26 Como o Sr. vê o pescador que só pesca pra vender?

27 Vêm pescadores de outras localidades pescarem na comunidade?

28 existem conflitos de pesca na localidade?

29 os moradores da comunidade se reúnem para fiscalizar a pesca?

30 Existe acordo de pesca na comunidade?

31 O Sr. acha que o desmatamento causa algum problema para a pesca?

32 E a criação de gado?

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