universidade federal de viçosa universidade de Évora · apontam muito mais as circunstâncias...

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Universidade Federal de Viçosa Universidade de Évora Walkíria Maria de Freitas Martins 1 Évora:um outro olhar Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. [...] E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. [...] A rigor, épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas, também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente. Walter Benjamin 1 Aluna do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania, da Universidade Federal de Viçosa Minas Gerais - Brasil. Orientada pelo professor Drº Leonardo Civale, do Departamento de Geografia da mesma Universidade.

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Page 1: Universidade Federal de Viçosa Universidade de Évora · apontam muito mais as circunstâncias embaraçosas do presente, do que evidências do passado. Nesse sentido, percebo Évora,

Universidade Federal de Viçosa Universidade de Évora

Walkíria Maria de Freitas Martins1

Évora:um outro olhar

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado

deve agir como um homem que escava. [...] E se ilude,

privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados

e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é

conservado o velho. [...] A rigor, épica e rapsodicamente,

uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo

tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim

como um bom relatório arqueológico deve não apenas

indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas,

também, antes de tudo, aquelas outras que foram

atravessadas anteriormente.

Walter Benjamin

1 Aluna do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania, da Universidade

Federal de Viçosa – Minas Gerais - Brasil. Orientada pelo professor Drº Leonardo Civale, do Departamento de Geografia da mesma Universidade.

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Évora: Traços de diversas camadas de paisagem urbana.

Em um mundo de intensas mudanças, no qual quase tudo se torna obsoleto em

uma velocidade impressionante, e onde não há grandes perspectivas de um futuro

melhor, assistimos a eclosão de um “frenesi patrimonialista” que na maioria das vezes,

nada mais é do que a idealização do passado e uma fuga do presente que se esvai.

O patrimônio tombado é uma narrativa holística e como tal, se torna ponto de

conflitos que só serão perceptíveis através de uma leitura feita a contrapelo.

Ao vislumbrar o patrimônio, é necessário refletir sobre aspectos como o seu caráter

arbitrário, a sua monumentalização, a sua unilateralidade em termos de memória e de

identidade, o seu poder de demarcar territórios em nome de determinados interesses e o

seu apelo sentimental potencializado por um momento no qual “tudo o que é sólido se

desmancha no ar”.

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Catedral de Évora: Marco das paisagens visual e sonora da cidade

Este é o olhar que eu trouxe a Évora e é por meio dessas lentes que consigo

perceber sua realidade de cidade-patrimônio.

Ao flanar pelas ruas estreitas da cidade, meu olhar encontrou “fantasmogorias” que me

apontam muito mais as circunstâncias embaraçosas do presente, do que evidências do

passado. Nesse sentido, percebo Évora, tal como todo patrimônio cultural, não como

ponto de simples contemplação da magnitude do passado, mas, sobretudo, ponto de

reflexão sobre o tempo presente.

Nos quintais das casas, os pomares e os varais com roupas estendidas: resistência do cotidiano presente.

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Colhe o Dia, porque És Ele

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem: outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

Ricardo Reis, in Odes

(Heterónimo de Fernando Pessoa)

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A Évora que existe para além das muralhas de Évora.

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