universidade federal de - ufscar

241

Upload: others

Post on 05-Oct-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar

Reitora Profordf Drordf Wanda Aparecida Machado Hoffmann

Proacute-Reitoria de PesquisaProacute-reitor de pesquisa Prof Dr Walter Libardi

Proacute-reitora de poacutes graduaccedilatildeoProfordf Drordf Audrey Borghi e Silva

Diretora do CECHProfordf Drordf Maria de Jesus Dutra dos Reis

Editor chefePaulo Roberto Licht dos Santos UFSCar

Editores de conteuacutedoCarlos Henrique dos Santos Fernandes UFSCarDavid Ferreira Camargo UFSCarFelipe Thiago dos Santos UFSCarLily Pontinta UFSCarPriscila Aragatildeo Zaninetti UFSCarRodrygo Rocha Macedo UFSCarWagner Barbosa de Barros UFSCar

Corpo editorialAlessandro Carvalho Sales UNIRIOAline Sanches FAFIJANAmeacuterico Grisotto UELAndreacute Constantino Yazbek UFLAArlenice Almeida da Silva UNIFESPBarbara Maria Lucchesi Ramacciotti UMCCarla Milani Damiatildeo UFGCarlos Alberto Ribeiro de Moura USP

Coordenador do PPGFilProf Dr Luiz Damon Santos Moutinho

ApoioUFSCar e Erasmus Mundus

Conselho editorialAna Carolina Soliva Soria UFSCarBento Prado de Almeida Ferraz Neto UFSCarDeacutebora Cristina Morato Pinto UFSCarEliane Christina de Souza UFSCarFernatildeo de Oliveira Salles dos Santos Cruz UFSCarFranklin Leopoldo e Silva USP UFSCarJean-Cristophe Goddard Erasmus Mundus Universiteacute de ToulouseJoseacute Antocircnio Damaacutesio Abib UFSCarJoseacute Eduardo Marques Baioni UFSCarJuacutelio Ceacutesar Coelho de Rose UFSCarLuiacutes Fernandes dos Santos Nascimento UFSCarLuiz Damon Santos Moutinho UFSCarLuiz Roberto Monzani UFSCarMarisa da Silva Lopes UFSCarMonica Loyola Stival UFSCarSilene Torres Marques UFSCarWolfgang Leo Maar UFSCar

Carlos Eduardo de Oliveira USPCarlota Mariacutea Ibertis UFBAChristian Iber Freie Universitaumlt Berlin AlemanhaClaudio Oliveira da Silva UFFDaniel Reis Lima Mendes da Silva IFBaianoDenise Maria Barreto Coutinho UFBADurval Muniz de Albuquerque Jr UFRNErnani Pinheiro Chaves UFPAErnesto Maria Giusti UNICENTROFabien Chareix Paris IV

Gabriele Cornelli UnBGiorgia Cecchinato UFMGGiovanni Casertano Universitagrave di NapoliGraciela Marcos Universidad de Buenos AiresGuiomar de Grammont UFOPGuumlnther Maluschke UNIFORHans Christian Klotz UFGHomero Silveira Santiago USPIngrid Cyfer UnifespIsrael Alexandria Costa UFALJeanne Marie Gagnebin PUC-SP UNICAMPJoaquim Joseacute Jacinto Escola Univer-sidade de Traacutes-os-Montes eAlto DouroJoseacute Gabriel Trindade Santos UFPBLeacutea Silveira UFLALeonardo Alves Vieira UFMGLeonel Ribeiro dos Santos Universidade de LisboaLuciano Donizetti da Silva UFJFLuigi Caranti Universitagrave di CataniaMarcelo Fernandes de Aquino UNISINOSMaacutercio Alves da Fonseca PUC-SPMarco Antonio Casanova PUC-RJMarcos Alexandre Gomes Nalli UELMarcus Sacrini Ayres Ferraz USPMaria Aparecida de Paiva Montenegro UFCMaria Joatildeo Cabrita Universidade do Minho

Martina Korelc UFGMiguel Angel de Barrenechea UNIRIOMiguel Antonio do Nascimento UFPBOsvaldo Frota Pessoa Junior USPPablo Rubeacuten Mariconda USPPatricia Maria Kauark Leite UFMGPedro Suumlssekind Viveiros de Castro UFFRafael Haddock-Lobo UFRJRicardo Nascimento Fabbrini USPRichard Theisen Simanke UFJFRoberto Bolzani Filho USPRodrigo Hayasi Pinto PUC-PRRolf Nelson Kuntz USPRomero Alves Freitas UFOPRui Antoacutenio Nobre Moreira Universidade de LisboaRuacuterion Soares Melo USPSalma Tannus Muchail PUC-SPSandro Figueiredo Reis UFRJUCAMScarlett Zerbetto Marton USPSilvio Seno Chibeni UNICAMPSimeatildeo Donizeti Sass UFUSofia Inecircs Albornoz Stein UNISINOSThana Mara de Souza UFESThelma Silveira da Mota Lessa da Fonseca UFMSThomaz Kawauche UFSUbirajara Rancan de AzevedoMarques UNESPUlysses Pinheiro UFRJVladimir Pinheiro Safatle USPZeljko Loparic UNICAMP PUC-PR

DiagramaccedilatildeoDiego Cassiano Polacchini Biason

Sumaacuterio

Editorial

EntrevistaJorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutetica e fenomenoloacutegicaDiogo Ferrer

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesGisele Candido

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisClaacuteudia Souza

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndashuma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaNuno Ribeiro

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposFabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoRubens Joseacute da Rocha

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaMaacutercio Suzuki

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoMarco Aureacutelio Werle

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmicade PiacutendaroAdriano Machado Ribeiro

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudCamila Salles Gonccedilalves

Politics without a subject David Hume on general rulesGiulia Valpione

ARTIGOS

p7

p10

p21

p41

p60

p69

p88

p98

p119

p136

p145

p163

p177

O Palco da Heteroniacutemia Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard ZenithLuiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

A melancolia diante do espelho de Jean StarobinskiFranceila de Souza Rodrigues

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y ComentaacuterioMario Caimi

ldquoCanccedilatildeo de outonordquo de Paul VerlaineRenata Cordeiro

ldquoRevoltardquo um poema antigo de PoundPaulo Licht

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e TrajanoJoatildeo Angelo Oliva Neto

RESENHAS

TRADUCcedilOtildeES

p197

p204

p207

p220

p226

p234

7

Editorial

A sexta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas eacute dedicada agrave relaccedilatildeo entre filosofia e literatura Seu nuacutecleo consiste na coletacircnea de artigos apresentados no Coloacutequio Fernando Pessoa (+ ou -) Filosofia realizado pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFSCar em 2013 A relaccedilatildeo entre filosofia e literatura na obra de Fernando Pessoa tema do evento inspirou esta sexta edi-ccedilatildeo da revista e abriu o espaccedilo para contribuiccedilotildees que tratam agraves vezes de modo mais indireto mas natildeo menos pertinente dessa relaccedilatildeo em outros campos e autores

Os entrevistados desta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas satildeo Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro pesquisadores de destaque da obra de Fernando Pessoa cujo trabalho conjunto de ediccedilatildeo e publi-caccedilatildeo de textos ineacuteditos do espoacutelio tem contribuiacutedo de maneira decisiva para a compreensatildeo da real amplitude da obra em pro-sa e poeacutetica e para uma interpretaccedilatildeo mais precisa das diferen-tes perspectivas que a animam

No primeiro artigo Diogo Ferrer analisa diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo filosoacutefica presente no poema dramaacutetico Primeiro Fausto destacando a recorrecircncia do procedimento dialeacutetico da negaccedilatildeo em passagens cruciais do drama Em seguida Gisele Candido deteacutem-se na anaacutelise do ensinamento poeacutetico atribuiacutedo a Alberto Caeiro e sua proposta de insubordinaccedilatildeo dos sentidos agraves prerrogativas do conhecimento intelectual

Munidos de evidecircncias cuidadosamente colhidas em docu-mentos ainda pouco explorados do espoacutelio Claacuteudia Souza e Nuno Ribeiro debatem sobre a dimensatildeo e o alcance da obra filosoacutefica do poeta Claudia pondera sobre o impacto da tradiccedilatildeo poeacutetico-filosoacutefica alematilde em particular do romantismo alematildeo em sua obra enquanto Nuno Ribeiro mostra como a ambiccedilatildeo filosoacutefica de Pessoa ia muito aleacutem dos ecos de leituras presen-tes nos poemas ou nas obras de ficccedilatildeo abrangendo reflexotildees mais ou menos sistemaacuteticas escritas sob a forma de diaacutelogos ensaios e fragmentos muitas vezes com a intenccedilatildeo de publicaacute--las como produccedilatildeo filosoacutefica autocircnoma agrave criaccedilatildeo heteroniacutemica

Em artigo dedicado aos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos Fabriacutecio Luacutecio mostra como para aleacutem de um simples desejo de ruptura com a tradiccedilatildeo o heterocircnimo engenheiro vislumbra um estado criativo no qual o corpo e a arte possam convergir em estreita relaccedilatildeo com o princiacutepio de forccedila assumindo-o como alternativa ao meacutetodo de medidas e proporccedilotildees da tradiccedilatildeo aristoteacutelica

Rubens Joseacute da Rocha examina no artigo ldquoFernando Pessoa e sua Filosofia da Composiccedilatildeordquo alguns aspectos da desperso-nalizaccedilatildeo do eu liacuterico no poema dramaacutetico O Marinheiro e nos heterocircnimos Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos No artigo ldquoA

8

Liberdade do Olharrdquo Maacutercio Suzuki traccedila um paralelo histoacuteri-co entre Winckelmann e Pessoa Apesar da disposiccedilatildeo uacutenica de pensamento de ambos os autores Maacutercio chama a atenccedilatildeo para a maneira como eles aspiram agrave realizaccedilatildeo de uma nova sensibilidade grega elaborando cada qual a seu modo uma teoria da arte centrada no olhar

Marco Aureacutelio Werle analisa o procedimento dialeacutetico de Peter Szondi que assim como Hegel conceitua o eacutepico como supe-rior ao dramaacutetico em sua teoria do drama moderno No artigo ldquoA Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de Piacutenda-rordquo Adriano Machado Ribeiro propotildee uma traduccedilatildeo ineacuteditaem portuguecircs da segunda Iacutestmica de Piacutendaro como ponto de par-tida para a discussatildeo sobre as caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega e o caso especiacutefico da segunda Iacutestmica em rela-ccedilatildeo aos poemas epiniacutecios

O artigo seguinte ldquoO lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agam-ben leitor de Freudrdquo de Camila Salles Gonccedilalves examina a apropriaccedilatildeo filosoacutefica que o filoacutesofo italiano faz das concepccedilotildees freudianas de fantasma e melancolia O artigo destaca que a partir dessa anaacutelise eacute possiacutevel compreender melhor como a vi-satildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo

A seccedilatildeo de artigos se encerra com uma uacutenica contribuiccedilatildeo que natildeo toca a relaccedilatildeo entre filosofia e literatura No artigo ldquoPolitics without a subject David Hume on general rulesrdquo Giulia Valpione analisa como a interpretaccedilatildeo de Hume do processo de consti-tuiccedilatildeo da subjetividade possui ganhos importantes para pensar filosoficamente a poliacutetica

Na seccedilatildeo de resenhas Luiacutes Fernandes dos Santos Nasci-mento desvenda o caraacuteter dramaacutetico do procedimento teoacuterico e criativo de Fernando Pessoa com anaacutelise da coletacircnea de tex-tos em prosa Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Ainda na seccedilatildeo de resenhas Franceila de Souza Rodrigues aborda o tema da melancolia com anaacutelise de trecircs estudos de Starobinski sobre Baudelaire livro traduzido por Samuel Titan Jr

A revista conta ainda com traduccedilotildees ineacuteditas de poemas de Rilke Verlaine e Ezra Pound e uma traduccedilatildeo das epiacutestolas de Pliacutenio e Trajano contando todas elas com uma apresentaccedilatildeo dos textos traduzidos Mario Caimi estudioso e tradutor de Kant e Espinosa traduz agora para o espanhol (como ldquoejercicios de traduccioacutenrdquo) poemas de Rainer Maria Rilke e enriquece a leitura com comentaacuterios Mario Caimi observa que a ideia de agregar comentaacuterios aos poemas se deve ao proacuteprio Rilke que pediu que seu editor intercalasse paacuteginas em branco em um exemplar das Elegias de Duiacuteno e dos Sonetos a Orfeu para que pudesse anotar suas proacuteprias explicaccedilotildees sobre os textos mais difiacuteceis Renata Cordeiro traduz o famoso poema de Verlaine ldquoCanccedilatildeo de outonordquo publicado no livro Poemas Saturninos em 1867 com atenccedilatildeo especial dedicada agrave estrutura riacutetmica do original

9

francecircs e agraves diversas possibilidades de traduzir o poema em portuguecircs de acordo com a mesma estrutura do original em francecircs Paulo Licht traduz ldquoRevoltardquo poema pouco conhecido de Ezra Pound publicado em seu livro Personae de 1909 A apresentaccedilatildeo procura situar o ldquoRevoltardquo em meio aos poemas iniciais de Pound e dar alguma pista do que seria sua teacutecnica de ldquopersonalizaccedilatildeordquo Para finalizar Joatildeo Angelo Oliva Neto traduz as ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano epiacutestolas que figuram como o mais antigo testemunho do conflito entre o Impeacuterio Romano e os primoacuterdios da era cristatilde A apresentaccedilatildeo defendendo a autenticidade das cartas em face de querela ini-ciada no seacuteculo XVII destaca o caraacuteter exemplar dos testemu-nhos que o documento encerra

Este nuacutemero da Ipseitas com textos de tal amplitude concen-traccedilatildeo e diversidade convida o leitor a escolher o que mais lhe interessar ou entatildeo a ler cada um deles Nos dois casos cabe talvez a pergunta se o simples conectivo ldquoerdquo em ldquoFilosofia e Literaturardquo antes separa do que adiciona dois termos tatildeo proacutexi-mos

Rubens Joseacute da Rocha e Paulo Licht dos Santos

10

Entrevista com Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Jeroacutenimo Pizarro eacute professor da Universidade dos Andes titular da Caacutetedra de Estudos Portugueses do Instituto Camotildees na Colocircmbia e doutor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006) em Literaturas Hispacircnicas e Linguiacutestica Portuguesa Participou de diver-sos projetos referentes ao espoacutelio de Fernando Pessoa como Obra completa de Aacutelvaro de Campos (2015) e Obra Completa de Ricardo Reis (2016) publicadas pela Tinta-da-China aleacutem de ensaios criacuteticos como A Arca de Pessoa (2007) em parceria com Steffen Dix e Pes-soa Existe (Aacutetica 2012)

Jorge Uribe eacute doutor pelo Programa em Teoria da Literatura da Uni-versidade de Lisboa com tese dedicada a biografia intelectual de Fer-nando Pessoa e os conceitos de criacutetica esteacutetica e despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica nas obras de Oscar Wilde Walter Pater e Matthew Arnold Eacute membro do projeto criacutetico e editorial Estranhar Pessoa associado ao Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lis-boa (IFL) e tem colaborado com diversas ediccedilotildees criacuteticas das obras de Fernando Pessoa dentre elas Sebastianismo e Quinto Impeacuterio (Aacutetica 2011) Prosa de Aacutelvaro de Campos (Aacutetica 2012) e Obras Completas de Ricardo Reis (Tinta-da-China 2016)

_______________________________

IPSEITAS O que despertou seu interesse pelo estudo da obra de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO PIZARRO Desculpem a tautologia mas a obra mesma o espanto que geram certos textos poeacuteticos e em pro-sa Mas o momento-revelaccedilatildeo foi o arquivo a sua materialida-de as suas formas natildeo textuais de iluminar certos textos a sua vastidatildeo o seu segredo a sua beleza a sua diversidade Toda uma literatura para passar ali imerso toda uma vida embora tenha preferido fugir

JORGE URIBE Bem acho que foi um processo de contiacutenuos acasos O interesse e a praacutetica sobre esse interesse isto eacute o estudo foram acordando e tomando posse sem que eu desse por isso e continua um pouco assim como se eu tivesse adqui-rido um haacutebito que foi encontrando formas de se desenvolver Na parte anedoacutetica posso contar que na adolescecircncia caiu nas minhas matildeos uma ediccedilatildeo ldquopiratardquo que alguns sebos em Bogotaacute

11

faziam autocircnoma e ilegalmente de livros difiacuteceis de encontrar Essa ediccedilatildeo tinha uns poucos poemas assinados por Fernando Pessoa Ricardo Reis Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos e natildeo vinham acompanhados de nenhuma nota explicativa nem creacuteditos de traduccedilatildeo Eu tive a sorte rara de ler pela primei-ra vez esses autores desconhecidos sem ter que pensar que eram um soacute eu era portanto absolutamente ignorante de qual-quer coisa acerca de Pessoa um autor que para esse momen-to ndash comeccedilos da deacutecada de 2000 ndash era conhecido nos ciacuterculos especializados de Bogotaacute mas ausente nos curriacuteculos escolares e universitaacuterios e certamente distante de adolescentes como eu que natildeo tiacutenhamos uma biblioteca em casa O resultado foi que gostei muito de Aacutelvaro de Campos enquanto Fernando Pes-soa me pareceu ter uns poucos versos contundentes lembro perfeitamente onde estava sentado a primeira vez que li ldquoAu-topsicografiardquo Por outro lado Caeiro e Reis me resultaram de-sinteressantes natildeo me disseram nada nesse momento o meu primeiro pensamento foi o de achar muito estranho que algueacutem tivesse posto esses autores todos num mesmo livro sendo que uns eram tatildeo bons e os outros natildeo Eu era um leitor muito des-norteado e demorei talvez um ano com essa ideia eram tempos sem Google Mais tarde e com acesso a melhores ediccedilotildees e traduccedilotildees o estranhamento se consolidou quando soube que o motivo pelo qual esses autores todos partilhavam um mesmo livro era ainda muito mais surpreendente do que eu tinha ima-ginado logo virou desafio Jaacute enquanto eu era aluno do progra-ma de Humanidades e Literatura da Universidad de los Andes Pessoa virou um nome resplandecente num santoral que eu ia cultivando nas conversas com os amigos ao lado de Ceacutesar Val-lejo Wilde Pizarnik Dostoieacutevsky quando chegou o momento de fazer uma monografia de final de curso eu queria que fosse sobre um desses autores que na eacutepoca eram os que mais me entusiasmavam e Pessoa era o uacutenico que nunca tinha sido par-te dos cursos da faculdade Portanto havia muita coisa para ir procurar pela minha conta escolhi-o e sendo a minha uma faculdade muito liberal no sentido claacutessico do termo concede-ram-me a oportunidade Veio tambeacutem o Eccedila de Queiroacutes espe-cificamente A Correspondecircncia de Fradique Mendes e o meu trabalho de final de curso acabou sendo uma aproximaccedilatildeo entre dois textos e dois momentos da literatura portuguesa agrave volta do problema da autoria embora eu natildeo tivesse nenhuma formaccedilatildeo escolarizada em letras portuguesas Nesse contexto foi muito importante ter como orientador um dos maiores especialistas na obra de Pessoa Jeroacutenimo Pizarro que era ex-aluno da minha faculdade ndash hoje professor ndash que morava entatildeo em Portugal e que conheci por acaso comecei a aprender portuguecircs e pouco tempo mais tarde cheguei a Portugal e agrave gigantesca surpresa que eacute o espoacutelio de Fernando Pessoa Com isso uma viagem que teria sido de 4 meses acabou sendo de 6 anos desde entatildeo a leitura estranhada da obra pessoana eacute para mim praacutetica

12

quase quotidiana e natildeo a tenho longe da vida

IPSEITAS Em 2015 juntamente com Antonio Cardiello e Felipa Freitas vocecircs participaram da ediccedilatildeo do volume Obra completa de Aacutelvaro de Campos Vocecircs acreditam que em termos edito-riais o trabalho com esse heterocircnimo esteja concluiacutedo se eacute que podemos falar em conclusotildees quando tratamos de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO Praticamente sim Mas com algumas ressalvas Essa Obra Completa teve um primeiro anuacutencio e uma primei-ra preparaccedilatildeo o livro Prosa de Aacutelvaro de Campos aparecido em junho de 2012 em que se incluiu por exemplo uma maior quantidade de material preparatoacuterio ou geneacutetico de alguns tex-tos tal como de ldquoUltimatumrdquo que tinha sido publicado em Sen-sacionismo e Outros Ismos (2009) de forma extensa Essa Obra completa foi posterior a artigos como ldquoSobre a primeira gaze-tilha de Aacutelvaro de Camposrdquo (2012 wwwpessoapluralcom) e comeccedilou haacute pouco a ser complementada por contributos tais como ldquoEditar Aacutelvaro de Campos o primeiro Arco de Triumphordquo (em Genuiacutena Fazendeira ndash os frutiacuteferos 100 anos de Cleonice Berardinelli) e outros em processo de publicaccedilatildeo Natildeo conside-ro que a Obra completa de Aacutelvaro de Campos seja uma conclu-satildeo mas o que falte nela que eacute miacutenimo seraacute apresentado e discutido em proacuteximos artigos

JORGE Acho que eacute uma questatildeo agudizada pela presenccedila do adjetivo ldquocompletardquo no tiacutetulo Poreacutem esse adjetivo possui um significado mais restrito do que seria esperado mais relacio-nado com a histoacuteria editorial da ldquoobra de Camposrdquo do que com uma descriccedilatildeo essencialista dela Explico desde os anos 1940 Campos foi apresentado pelos editores poacutestumos de Pessoa principalmente como autor de poemas embora essa imagem deixasse de fora uma parte importante daquilo que Pessoa deu a conhecer sob esse nome durante a sua vida Na verdade ldquoCampos publicourdquo vaacuterias e importantes prosas nas revistas Portugal Futurista Contemporacircnea Athena e Presenccedila Contu-do durante um tempo consideraacutevel a ideia foi como disse que a obra de Campos eram os poemas conhecidos e os que esta-vam ainda ineacuteditos Foi esse o principal interesse dos primeiros editores da Aacutetica Luiacutes de Montalvor e Joatildeo Gaspar Simotildees e foi isso que procuraram editar como o ldquoCampos definitivordquo Soacute no final dos anos oitenta Teresa Rita Lopes abriu o olhar dos leitores noutra direccedilatildeo e publicou durante a deacutecada de 1990 vaacuterios livros com a autoria ldquode Camposrdquo Vida e obra do enge-nheiro Livro de Versos e Notas para a recordaccedilatildeo do meu mes-tre Caeiro para nomear alguns que surgiram com uma ideia de complementaridade entre si mas natildeo de integraccedilatildeo Em 2012 Jeroacutenimo Antonio e eu organizamos o volume Prosa de Aacutelvaro de Campos para uma nova seacuterie da Aacutetica que infelizmente dei-

13

xou de existir pouco tempo depois O volume reivindicava com forccedila e pela primeira vez de forma abrangente essa faceta de Campos menos referida pela criacutetica mas que jaacute desde antes da morte de Pessoa era fundamental para a vida puacuteblica do heteroacutenimo e tambeacutem para a configuraccedilatildeo do chamado ldquodrama em genterdquo Portanto esse ldquocompletardquo no tiacutetulo de 2015 refere-se mais ao fato de que partes que estavam dispersas estatildeo final-mente reunidas Natildeo deveraacute entender-se por ldquocompletardquo defi-nitiva Todo os leitores pessoanos e mais incomodamente os seus editores sabemos que no caso de Pessoa estaacute-se sempre a correr riscos e a fazer apostas alguns manuscritos satildeo muito difiacuteceis de ler e certamente ainda pode haver melhorias (ateacute por motivos tecnoloacutegicos as ferramentas de ediccedilatildeo vatildeo mudando para melhor) tambeacutem pode haver papeis que estejam perdidos e venham a aparecer supomos que satildeo poucos A arrumaccedilatildeo de textos que foram deixados em estados de dispersatildeo e frag-mentaccedilatildeo por parte do autor eacute sempre uma tarefa especulativa tambeacutem o eacute a dataccedilatildeo e serializaccedilatildeo de suportes e materiais ge-neacuteticos Melhores formas de organizar algum texto podem vir a ser propostas ou ldquodescobertasrdquo por editores futuros Eles assim como noacutes teratildeo a vantagem de basear-se no trabalho jaacute feito para acataacute-lo melhoraacute-lo ou contestaacute-lo

IPSEITAS Como vocecircs avaliam o estaacutegio atual de ediccedilotildees criacute-ticas que procuram estabelecer um padratildeo editorial para os ma-nuscritos Ainda haacute uma ldquoEquipa Pessoardquo como a de 1985 aos moldes de uma forccedila-tarefa ou tem prevalecido o trabalho de investigadores isolados Como satildeo planejadas as publicaccedilotildees

JEROacuteNIMO A ediccedilatildeo criacutetica eacute um sonho que como Portugal estaacute por cumprir ldquoCumpriu-se o Mar e o Impeacuterio se desfez Se-nhor falta cumprir-se Portugalrdquo Falta cumprir-se um Pessoa plenamente editado Mas essa eacute uma tarefa monumental que nunca foi assumida como tal Haacute muitos trabalhos e esforccedilos mas os poliacuteticos ainda natildeo perceberam o valor simboacutelico da obra pessoana A ldquoEquipa Pessoardquo que houve foi pouco apoiada e passado pouco tempo esquecida por diversas instituiccedilotildees portuguesas e natildeo soacute Se Pessoa fosse reconhecido como o tesouro nacional que foi declarado (para evitar leilotildees que se tornaram vendas silenciosas) Portugal e os paiacuteses de liacutengua portuguesa seriam um sonho ainda maior

JORGE Eacute uma questatildeo muito pertinente porque estaacute desen-volvendo-se de forma inovadora enquanto respondo agrave pergunta A Equipa Pessoa tal como constituiacuteda nos anos oitenta sob a direccedilatildeo de Ivo Castro teve diversos periacuteodos alguns de alta produccedilatildeo outros de silecircncio quase absoluto Por exemplo entre 2006 e 2010 a equipa publicou uns oito tiacutetulos enquanto entre 2011 e 2015 somente dois Contudo o uacuteltimo tiacutetulo eacute talvez um dos mais importantes da seacuterie e em certo sentido estaacute na gecirc-

14

nese mesma da constituiccedilatildeo da Equipa trata-se dos poemas de Alberto Caeiro organizados por Ivo Castro Todos os tiacutetulos da coleccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para qualquer leitor que queira aprofundar o seu conhecimento da obra pessoana e satildeo tambeacutem a melhor porta de entrada ao espoacutelio antes do espoacutelio Nomes como Luiacutes Prista Joatildeo Dioniacutesio e Luiacutes Fagundes Duarte membros da Equipa Pessoa continuam sendo referecircncias im-portantes e ediccedilotildees como o da Pauly Ellen Bothe ou do Enrico Martines satildeo referecircncias de grande utilidade para qualquer es-tudo sobre Pessoa Ainda a Imprensa Nacional-Casa da Moe-da editora da Equipa Pessoa inaugurou em 2015 uma coleccedilatildeo ensaiacutestica dedicada ao Pessoa e que a comeccedilos de 2016 teraacute um segundo tiacutetulo que reuacutene algumas das listas de projetos do espoacutelio pessoano Portanto esse labor continua embora natildeo saibamos se haveraacute novas ediccedilotildees da chamada ldquoSeacuterie Maiorrdquo Paralelamente natildeo considero que nas ediccedilotildees pessoanas te-nha havido muitos pesquisadores isolados em realidade posso pensar sobretudo num caso notaacutevel e muito importante o da Teresa Sobral Cunha A maior parte das ediccedilotildees de Pessoa embora assinadas por um ou dois nomes satildeo elaboradas no marco de esforccedilos editoriais para os quais contribuem muitas pessoas Eacute o caso das ediccedilotildees da INCM e tambeacutem da Assiacuterio amp Alvim que reuacutene nomes como Manuela Parreira da Silva Ana Maria Freitas Fernando Cabral Martins e Richard Zenith es-pecialistas que partilham ideias e mantecircm comunicaccedilatildeo entre si Por outro lado ainda que os criteacuterios de apresentaccedilatildeo das ediccedilotildees da Assiacuterio difiram daqueles da ediccedilatildeo criacutetica da INCM eacute impossiacutevel ignorar que haacute um diaacutelogo no interior das ediccedilotildees e nenhum editor uma vez reconhecida uma melhoria conseguida por outro deixaraacute de consideraacute-la na sua proacutexima ediccedilatildeo Um caso paradigmaacutetico eacute o do Livro do Desassossego Claro so-brevivem poleacutemicas mas soacute temos (noacutes leitores) a ganhar com elas sempre e quando sejam levadas de maneira clara no acircm-bito acadecircmico Mais recentemente em 2013 surgiu a coleccedilatildeo pessoana da Tinta-da-China onde Jeroacutenimo Pizarro conta com coautorias e colaboraccedilotildees de um grupo significativo de pes-soas entre os quais Antonio Cardiello Patricio Ferrari e Joseacute Barreto Nesse sentido a ldquoforccedila-tarefardquo cresce e multiplica-se ao contraacuterio de tornar-se um ciacuterculo restrito como pode ter sido o primeiro plano patrocinado pelo estado portuguecircs nos anos oitenta com uma agenda bem delimitada Ainda recentemente a Tinta-da-China comeccedilou a imprimir seus livros no Brasil e eacute de esperar que isso traga novas possibilidades e novos olha-res Eacute tambeacutem importante notar que alguns dos atuais editores de Pessoa embora mantenham um viacutenculo forte com Portugal natildeo residem nesse paiacutes A tecnologia tem permitido que esse movimento descentralizador se manifeste produtivo O principal continua sendo o esforccedilo por dar a conhecer responsavelmen-te a obra de Pessoa a um puacuteblico cada vez maior Nesse sen-tido trata-se de um esforccedilo colaborativo Pessoalmente para

15

mim o mais interessante ainda estaacute por acontecer Agrave medida que Pessoa necessariamente comeccedila a migrar e a desafiar as possibilidades da ediccedilatildeo digital de acesso livre internacional as possibilidades de leitura dos seus textos e manuscritos e de penetraccedilatildeo em novas obras e novas vidas crescem Existe um importante projeto dedicado ao Livro do Desassossego se-diado na Universidade de Coimbra e em breve seraacute conhecido um projeto de publicaccedilatildeo digital de grandes dimensotildees produ-to da colaboraccedilatildeo entre universidades de Portugal Alemanha e mais recentemente da Universidade de Satildeo Paulo (USP) instituiccedilatildeo onde se consolida atualmente um Grupo de Estudos Pessoanos coordenado pelo professor Caio Gagliardi Cada vez mais esta empreitada exige grupos de trabalho por vezes de caraacuteter multidisciplinar no contexto do que hoje eacute conhecido como digital humanities Contudo o meacutetodo de planejamento dos novos esforccedilos editoriais continua sendo muito semelhante ao das ediccedilotildees criacuteticas da Equipa Pessoa revisitar o que jaacute foi feito confrontar com os originais questionar identificar lacunas ou possiacuteveis melhorias e oferecer ao puacuteblico novas portas e ja-nelas para o vasto legado que eacute a escrita de Fernando Pessoa

IPSEITAS Qual o papel de interpretaccedilotildees biograacuteficas em que pesa a anaacutelise de teor psicoloacutegico do autor como o livro Vida e obra de Fernando Pessoa de Joatildeo Gaspar Simotildees nessa tarefa de definir um padratildeo editorial para a obra

JEacuteROacuteNIMO A meu ver quase nenhum Pode levar a criar ten-tativas fantaacutesticas de textos iacutentimos ou autobiograacuteficos de um autor muito introspectivo a lermos em excesso as suas cartas de amor a falar apenas da sua sexualidade como de um fetiche mas a biografia que interessa em termos editoriais natildeo eacute uma de teor psicoloacutegico mas intelectual Pessoa pode ter tido medo da loucura por volta de 1907 mas o que estava a ler para a seguir escrever tantos escritos sobre o gecircnio e a loucura Eacute isto uacuteltimo que me interessa mais Claro quero saber da avoacute Dioniacutesio e da famiacutelia Pessoa que encontrou em Lisboa quando regressou em 1905 mas quais foram as suas investigaccedilotildees Quando descobriu os termos histeria e neurastenia Eacute isso que tentei responder em ediccedilotildees e estudos anteriores

JORGE Mais do que as interpretaccedilotildees biograacuteficas por si mes-mas o que resulta marcante para a ediccedilatildeo e leitura da obra eacute a importacircncia da questatildeo escrita-vida que natildeo escapou a Si-motildees jaacute em 1929 e particularmente no seu livro icocircnico dos anos cinquenta Esse problema estaacute no nuacutecleo duro da obra pessoana e especialmente na ideia do ldquodrama em genterdquo Se isto eacute percebido em chave confessional-biograacutefica psicanaliacuteti-ca ou como exploraccedilatildeo luacutedica das possibilidades da linguagem depende dos leitores Os conceitos de autobiografia confissatildeo e ficccedilatildeo satildeo objetivamente constitutivos da obra satildeo postos

16

em causa e instrumentalizados continuamente nos textos que a conformam Faz-se necessaacuterio que o leitor reflita acerca des-ses conceitos pois a categorizaccedilatildeo mesma depende da sua participaccedilatildeo Para isso eacute importante que conte com algumas informaccedilotildees biograacuteficas com diferentes graus de historicidade O trabalho de Joatildeo Gaspar Simotildees eacute de grande importacircncia e continua sendo fundamental embora possamos natildeo estar jaacute igualmente interessados nas conclusotildees de algumas das suas anaacutelises ldquopsicologistasrdquo e possamos corrigir (e tem sido assim) muitas das informaccedilotildees histoacuterico-biograacuteficas que ele achou ter fixado Contudo a compreensatildeo de aspectos do percurso vi-tal de Pessoa enquanto autor as instacircncias editoriais das suas publicaccedilotildees em vida e o desenvolvimento dos seus muacuteltiplos projetos como particularidades do seu processo criativo satildeo todos aspectos que interessaram a Simotildees e que continuam tendo grande importacircncia para uma leitura abrangente da obra As mais recentes ediccedilotildees estatildeo cada vez mais atentas a essas informaccedilotildees que contrastam a atividade editorial de Pessoa ndash enquanto esteve vivo ndash e o seu legadoarquivo Por outro lado as ediccedilotildees criacuteticas implicam necessariamente uma aproxima-ccedilatildeo ao processo criativo do autor a partir da sua componente material No caso de Pessoa os editores podem estar mais ou menos certos de estarem seguindo com fidelidade a ldquointenccedilatildeordquo do autor ou a pragmaacutetica materialidade do suporte documental mas sempre as suas proacuteprias convicccedilotildees e vieses criacuteticos to-mam parte no jogo interpretativo Reconhecer isso eacute importan-te natildeo haacute ediccedilatildeo sem leitura nem leitura sem interpretaccedilatildeo e pode haver diversos graus de participaccedilatildeo por parte dos edito-res nas ediccedilotildees mas eles sempre estatildeo aiacute a mediaccedilatildeo editorial natildeo eacute transparente o que natildeo quer dizer que por isso seja con-denaacutevel Como leitores e em geral como animais pensantes tendemos a achar sentido em processos causativos ou sequen-ciais por isso nos interessa por exemplo saber se um texto foi escrito antes ou depois de outro pela mesma matildeo ou por outra Entendemos nessas sequecircncias uma relaccedilatildeo que se tece entre dois ou mais elementos de maneira distinta a se a relaccedilatildeo fosse contraacuteria Uma cronologia da obra uma cronologia do desenvol-vimento dos textos embora natildeo exista para resolver de maneira irrevogaacutevel o sentido dos mesmos faz parte de aquilo que os torna para noacutes legiacuteveis e sedutores essa cronologia constitui uma visatildeo biograacutefica da obra literaacuteria como processo vital em-bora encenado nos limites e possibilidades da linguagem

IPSEITAS A famosa carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro escrita em 13 de janeiro de 1935 parece ter guiado por anos a fio parte consideraacutevel da criacutetica pessoana O que vo-cecircs pensam a respeito do uso frequente desse documento que ao lado de poemas como ldquoIstordquo e ldquoAutopsicografiardquo publicados em abril de 1933 na Presenccedila costuma servir de base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircnimos

17

JEROacuteNIMO Eacute uma carta fundamental e foi concebida como um testamento por Fernando Pessoa A meu ver natildeo serve ldquode base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircni-mosrdquo mas para discutir a ldquoverdaderdquo desse processo e a relaccedilatildeo como diria Goethe entre poesia e verdade Ora cada pormenor dessa carta abre mil e uma questotildees relevantes e eacute difiacutecil assi-nalar outro texto pessoano que gere tantas e tatildeo apaixonantes questotildees linha a linha e palavra a palavra

JORGE Pessoalmente o que mais me interessa eacute ver como a correspondecircncia de Pessoa em particular as cartas a Casais Monteiro mas tambeacutem as cartas a Joatildeo Gaspar Simotildees a Ar-mando Cocircrtes-Rodrigues entre outros podem ser lidas ao lado de poemas como ldquoAutopsicografiardquo ou entatildeo ldquoTabacariardquo ou as odes de Reis e natildeo por cima deles como se fizessem parte de um niacutevel diferente do discurso da obra A relaccedilatildeo que me interessa mais nesses textos eacute de contiguidade e natildeo de so-breposiccedilatildeo Se alguma ldquoexplicaccedilatildeordquo pode ser retirada da carta a respeito dos poemas eacute por semelhanccedila por analogia uma re-laccedilatildeo de familiaridade que existe no meio daquilo que podemos chamar a ldquoescrita de Fernando Pessoardquo Acho justo que esses textos estejam na base de algumas interpretaccedilotildees ndash satildeo textos extraordinaacuterios ndash e entendo que sejam preferidos pelos leitores em contraposiccedilatildeo a outros Poreacutem como eles a obra toda na sua incontornaacutevel dimensatildeo inconclusiva eacute relevante para ler ldquoFernando Pessoardquo o homem implicado na literatura de si proacute-prio Considero suspeita a posiccedilatildeo de um criacutetico que se conven-ccedila de que por ter lido a carta a Casais Monteiro que foi batizada de maneira espuacuteria ldquocarta sobre a geacutenese dos heteroacutenimosrdquo obteve uma imagem definitiva do processo geneacutetico ali descrito e que ache que essa imagem eacute de natureza radicalmente dis-tinta da oferecida pelas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo de Aacutelvaro de Campos Acho menos interessante ainda a posiccedilatildeo de outro criacutetico que leia essa carta e pense que se trata de uma cambada de mentiras

IPSEITAS Atualmente parece correto afirmar haver pelo me-nos trecircs modalidades de pensamento em jogo nos heterocircnimos o poeacutetico o filosoacutefico e o miacutestico Vocecircs acham possiacutevel falar de um pensamento cultural poliacutetico ou pedagoacutegico em escritos como por exemplo os de Ricardo Reis e os de Antoacutenio Mora sobre o paganismo Qual bibliografia vocecircs indicariam para o estudo dessas diferentes perspectivas

JEROacuteNIMO Natildeo sei bem o que responder Nem sempre vejo um pensamento ldquomiacutesticordquo nem sempre vejo uma vertente ldquopeda-goacutegicardquo Talvez fuja parcialmente da questatildeo citando um artigo de Antonio Cardiello ldquoO devir-pagatildeo e o regresso aos deusesrdquo publicado em Nietzsche e Pessoa Ensaios (2016) ldquoTranscen-

18

dendo todas as Igrejas todos os sistemas todas as crenccedilas na aceitaccedilatildeo superior das diversas verdades em que se possa indagar a Verdade o neopagatildeo admitiria entatildeo segundo a va-riante perspectivada pelo ortoacutenimo todos os deuses na larga capacidade do seu panteatildeo O Paganismo Superior ou paga-nismo transcendental para Fernando Pessoa seria ainda uma forma de politeiacutesmo supremo jaacute que na eterna mentira de to-dos os deuses de todas as doxas e de todas as aparecircncias as vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas mais natildeo seriam do que frutos mitoloacutegicos da Verdade perspectivas do misteacuterio a haver

JORGE Acho que haveraacute quase tantas perspectivas de aproxi-maccedilatildeo agrave obra como leitores Eacute muito difiacutecil destrinccedilar os limites de interesse dos textos pessoanos Textos exclusivamente filo-soacuteficos natildeo satildeo carateriacutesticos da obra e por traacutes dos poemas de Reis ou de Caeiro soacute para dar um exemplo existem reflexotildees filosoacuteficas de grande calado que natildeo estatildeo fora do fazer poeacutetico O mesmo pode ser dito sobre os textos assinados por Pessoa sobre Portugal ou de poemas como ldquoA memoacuteria do presidente--rei Sidoacutenio Paesrdquo neles a fronteira entre o poeacutetico e o poliacutetico eacute marcadamente difusa ndash passe-se o oxiacutemoro por ser pertinente O ldquodrama em genterdquo implica uma reflexatildeo sobre relaccedilotildees de tipo pedagoacutegico mas a perspectiva eacute complementar entre por exemplo o que afirma Campos nas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo e o que Pessoa assina na sua carta a Ca-sais Monteiro acerca do magisteacuterio de Caeiro Os textos pesso-anos tendem agrave confluecircncia embora o resultado dessa confluecircn-cia se manifeste por vezes em oposiccedilotildees Satildeo textos em certa forma pensados para resistir ao dogmatismo Sobre a noccedilatildeo de magisteacuterio na obra pessoana recomendo a leitura do mais recente livro de Antoacutenio M Feijoacute acerca de Pessoa e Teixeira de Pascoais Sobre o caso de Mora e Reis uma das maiores dificuldades para a leitura decorre de tratar-se de dois estilos de escrita que satildeo frequentemente indistinguiacuteveis inclusive para o proacuteprio Pessoa que fez que dezenas de textos oscilassem en-tre um autor e outro e em muitos casos parece ter desistido ou adiado indeterminadamente a tarefa de definir o que pertenceria a quem Recentemente comeccedilamos a conhecer melhor alguns textos Em 2013 Manuela Parreira da Silva apresentou uma vi-satildeo bastante coesa do que seriam as obras de Antoacutenio Mora numa ediccedilatildeo publicada pela Assiacuterio Em 2016 Jeroacutenimo Pizarro e eu publicamos a obra ldquocompletardquo ndash veja-se o sentido do termo numa resposta anterior ndash de Ricardo Reis da qual uma das par-tes mais relevantes satildeo as diferentes tentativas de elaborar um prefaacutecio agrave obra do mestre Caeiro tarefa que teve vigecircncia no atelier de escrita pessoano durante quase vinte anos Sem duacute-vida os textos reunidos nas ediccedilotildees mais recentes contribuem para a leitura interpretativa de alguns assuntos importantes da obra de Pessoa tais como o ldquopaganismordquo mas sobretudo essa perspectiva mais ampla ajuda a ver que natildeo haacute afirmaccedilotildees

19

completas ou cristalizadas a esse respeito Pelo contraacuterio nos textos e rascunhos faz-se reconheciacutevel um desenvolvimento da escrita que instrumentaliza os temas na configuraccedilatildeo de estilos literaacuterios e entidades autorais os temas estatildeo ao serviccedilo des-ses estilos e entidades e natildeo o contraacuterio Por outro lado haacute uma fronteira muito cinzenta entre o tipo de interesse por traacutes de fazer mapas astrais interpretar profecias e escrever centenas de versos decassiacutelabos A importacircncia que queira por exemplo ser-lhe concedida ao fato biograacutefico de Pessoa ter conhecido pessoalmente Aleister Crowley o famoso mago inglecircs venera-do por Jimmy Page e por Raul Seixas em 1930 depende de diversos fatores muitos dos quais associados agrave bagagem inter-pretativa de cada leitor e agraves suas proacuteprias crenccedilas e interesses Sobre esse assunto satildeo relevantes por exemplo os trabalhos interpretativos e historiograacuteficos de Marco Pasi e Steffen Dix Por outro lado a escrita pessoana associada agrave maccedilonaria ou o rosacrucianismo tambeacutem pode ser objeto de estudo o que natildeo necessariamente implica que se esteja a definir qual eacute o viacutenculo de Pessoa com qualquer uma dessas ordens Nesse sentido satildeo importantes e contrastantes os trabalhos de Pedro Teixeira da Mota e de Joseacute Barreto Pessoa oferece uma diversidade de assuntos de leitura notaacutevel e o leitor pode encontrar muitos temas agrave medida da sua curiosidade o difiacutecil eacute pretender que um deles possa submeter todos os outros para aleacutem de um conceito muito generoso de ldquoliteraturardquo Poderia ser pertinente poreacutem ter presente que em alguns casos os ldquotemasrdquo tratados por Pes-soa ou pelas suas criaturas lembram o suculento pedaccedilo de carne do qual falava T S Eliot ldquoThe chief use of the lsquomeaningrsquo of a poem in the ordinary sense may be () to satisfy one habit of the reader to keep his mind diverted and quiet while the poem does its work upon him much as the imaginary burglar is always provided with a nice bit of meat for the house-dogrdquo The use of poetry and the use of criticism)

IPSEITAS Jeroacutenimo no livro Pessoa existe publicado pela Aacuteti-ca em 2012 vocecirc escreveu ldquoPara aleacutem da indicaccedilatildeo de uma ordem falta-nos muitas vezes uma visatildeo de conjuntordquo Eacute possiacute-vel mensurar as consequecircncias dessa ausecircncia de uma visatildeo de conjunto nos trabalhos de criacutetica e de ediccedilatildeo

JEROacuteNIMO Entendo que sim Natildeo apenas porque jaacute existiram vaacuterios projetos de laquoObra completaraquo que falharam pela ausecircncia dessa visatildeo e porque jaacute foram escritas vaacuterias biografias com ig-noracircncia do espoacutelio pessoano mas porque para editar Pessoa embora seja laquochatoraquo (e a expressatildeo laquoque chaticeraquo eacute muito por-tuguesa) eacute preciso percorrer milhares de papeacuteis Praticamente nada estaacute em um nuacutecleo soacute e depois interessa e eacute relevante o diaacutelogo entre leitura e criaccedilatildeo entre os livros lidos e os papeacuteis escritos

20

IPSEITAS Ainda a propoacutesito do livro Pessoa existe na oca-siatildeo de seu lanccedilamento vocecirc disse ao programa Ler + Ler Me-lhor da TV RTP ldquoSinto que ultimamente estamos a falar muito a seacuterio de Fernando Pessoa que estamos a tornaacute-lo um objeto de culto () Sinto que eacute necessaacuterio descontrair mais o discurso sobre Fernando Pessoa () tem que ser mais informalrdquo Qual estrateacutegia podemos assumir na tentativa de conciliar a inves-tigaccedilatildeo criacutetica com a necessidade de um discurso mais des-contraiacutedo sobre o autor E quais implicaccedilotildees decorrem dessa tendecircncia em tornar Fernando Pessoa um ldquoobjeto de cultordquo

JEROacuteNIMO Noacutes temos que procurar a meu ver ser scholars de excelecircncia e investigadores capazes de transmitir o que des-cobrimos haacute textos ndash como a ediccedilatildeo criacutetica do Livro do Desas-sossego (2010) ndash que tem que ter um tom e uma certa dimen-satildeo e haacute outros ndash tipo Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016) ndash que devem ter outro tom e outras pretensotildees Num artigo intitulado ldquoO jogo do desassossegordquo (2014) publica-do em Central de Poesia II escrevi ldquoTalvez seja o momento de ensaiarmos uma escrita menos seacuteria ou melhor com um tipo de seriedade menos solene em relaccedilatildeo a Fernando Pessoa Porquecirc Porque acredito que Pessoa preparou uma grande ar-madilha para a posteridade e que todos noacutes caiacutemos nela Creio que haacute dias em que tambeacutem noacutes temos de nos equilibrar numa soacute perna como uma iacutebis como Pessoa como quem levitardquo Uma implicaccedilatildeo delicada de tornar Pessoa um objeto de culto eacute a paralisia fica congelado no tempo embora ainda esteja por co-nhecer e numa entrevista de 1923 ele proacuteprio tenha respondi-do em jeito de conclusatildeo que ldquoNa eterna mentira de todos os deuses soacute os deuses todos satildeo verdaderdquo

Perguntas elaboradas pelos doutorandos Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza (UNB) Mariella Augusta Pereira (UNICAMP) e Rubens Joseacute da Rocha (UFSCar)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

21

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegicaFernando Pessoa A Dialectical and Phenomenological Approach

Palavras-chave Pessoa Nada Negaccedilatildeo Fausto Heteroniacutemia Filosofia da Literatura Poeacutetica da SensaccedilatildeoKeywords Pessoa Nothingness Negation Faust Heteronymy Philosophy of Literatu-re Poetics of Sensation

RESUMO Este estudo expotildee a estrutura filosoacutefica sistemaacuteti-ca da poesia de Fernando Pessoa Esta estrutura funda-se nos conceitos de negativo natildeo-ser e nada A experiecircncia obsessi-va do nada e a explicaccedilatildeo da sua dialeacutetica estaacute exemplificada principalmente no Fausto Uma Trageacutedia Subjetiva O negativo eacute em seguida exposto como a distacircncia entre mim e eu mes-mo que eacute a chave da dialeacutetica pessoana da subjetividade entre verdade e fingimento sensaccedilatildeo e realidade pensamento e sen-timento A heteroniacutemia eacute entatildeo explicada como esta distacircncia de si proacuteprio ie a negaccedilatildeo da identidade e ldquooutrar-serdquo Satildeo apresentadas sete teses sobre a heteroniacutemia como conceito po-eacutetico e filosoacutefico procurando mostrar-se que ela natildeo deve ser considerada uma anomalia mas antes como o estado normal da criaccedilatildeo artiacutestica uma vez que o autor e a obra satildeo criados simultaneamente A posiccedilatildeo fenomenoloacutegica de Alberto Caeiro eacute em seguida apresentada como a soluccedilatildeo para os problemas dialeacuteticos da obra de Pessoa e algumas observaccedilotildees conclusi-vas acerca dos modos da diferenccedila em Pessoa encerram esta abordagem dialeacutetica e fenomenoloacutegica agrave obra de Pessoa

ABSTRACT This paper exposes the systematic philosophical structure of Fernando Pessoarsquos poetry This structure is groun-ded on the concepts of the negative not-being and nothingness The obsessive experience of nothingness and the explanation of its dialectics is best exemplified by Pessoarsquos Faust A Sub-jective Tragedy The negative is then exposed as the ldquodistance between me and myselfrdquo which is the key to Pessoarsquos dialectics of subjectivity between truth and pretending sensation and rea-lity thought and feeling His characteristic heteronymy is explai-ned as this distance to himself ie the negation of identity and self-otherness Seven thesis about the heteronymy as a poetic and philosophical concept are then presented arguing that hete-ronymy should not be considered an anomaly but rather as the

Diogo Ferrer

Professor Associado na Universidade de Coimbra

ferrerdiogogmailcom

() Este artigo corresponde a uma conferecircncia apresentada no coloacutequio Fer-nando Pessoa (+ ou -) Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos SP em 12 de Setembro de 2013 Seraacute publicado em breve tambeacutem como capiacutetu-lo de D Ferrer Transparecircncias Linguagem e Reflexatildeo de Ciacutecero a Pessoa Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra 2018

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

22

normal state of any artistic creation Indeed the author and the work are always created at the same time The phenomenolo-gical position of the heteronym Alberto Caeiro is then presented as the solution to the dialectical problems of Pessoarsquos work and some concluding remarks on the ways of difference in Pessoa completes this phenomenological and dialectical approach to his works

1 O sistema da poesia pessoana

O valor literaacuterio da obra de Fernando Pessoa eacute insisten-temente sublinhado desde a sua descoberta ainda em vida do poeta pelo grupo de Coimbra da Presenccedila Mais especifica-mente Joseacute Reacutegio jaacute em 1927 o sauacuteda pela primeira vez em Portugal como o mestre maior da poesia portuguesa contem-poracircnea1 e Pierre Hourcade (1908-1983) publica em 1930 em Paris dois artigos quase exclusivamente dedicados a Pessoa e comeccedila a traduzi-lo para o francecircs Aleacutem do aspecto literaacute-rio contudo a obra de Pessoa envolve uma conceptualizaccedilatildeo filosoacutefica de uma riqueza surpreendente que a par do aspecto mais evidente dos temas ligados agrave reflexatildeo existencial apre-sentam dois aspectos invulgares Satildeo estes (1) o facto de que a obra pessoana apresenta uma estrutura filosoacutefica que salta agrave vista Natildeo se poderia falar de uma infra-estrutura filosoacutefica uma vez que natildeo haacute uma base conceptual anterior agrave imaginaccedilatildeo po-eacutetica ou dela isolaacutevel mas deveraacute falar-se por um lado de uma estrutura interna teoacuterica que estaacute implicada de modo estranha-mente evidente em muito da criaccedilatildeo poeacutetica e por outro da permanente acccedilatildeo reciacuteproca entre vida e obra literaacuteria Procu-rarei mostrar que a construccedilatildeo poeacutetica de Pessoa assenta num travejamento filosoacutefico clariacutessimo que embora esteja entrete-cido sem hiato com a imagem a representaccedilatildeo e a linguagem poeacuteticas e lhes confira uma clara estrutura conceptual mesmo categorial natildeo pode todavia ser jamais entendido de modo es-quemaacutetico A poesia natildeo se encontra enquadrada pela estrutura conceptual mas por assim dizer respira-a Isto faz de Pessoa para aleacutem de poeta tambeacutem filoacutesofo embora do tipo especiacutefico do poeta-filoacutesofo tipo literaacuterio onde o seu estatuto natildeo me pare-ce ser inferior agrave importacircncia da sua obra da perspectiva poeacutetica (2) Um segundo aspecto que merece ser muito especialmente notado eacute que esta intra-estrutura filosoacutefica mesmo se se tomar em termos de um pensamento filosoacutefico de cariz natildeo literaacuterio ou poeacutetico eacute invulgarmente completa organizada e deveraacute di-zer-se ateacute mesmo sistemaacutetica Potenciada ndash mas sobretudo actualizada ndash principalmente pela heteroniacutemia a diversidade integraccedilatildeo e completude da intra-estrutura conceptual aproxi-

1 Cf Robert Breacutechon Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernan-do Pessoa trad M Abreu P Tamen Ciacuterculo de Leitores Lisboa 1997 p 462

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

23

ma-se bastante uma sistematizaccedilatildeo teoacuterica2 Mas isto natildeo signi-fica absolutamente que se pudesse de algum modo substituir a criaccedilatildeo literaacuteria por uma sistematizaccedilatildeo filosoacutefica sob outra for-ma literaacuteria uma vez que a integraccedilatildeo da forma com o conteuacutedo eacute no geral e no particular das diferentes esferas ou elementos da criaccedilatildeo pessoana um factor indeclinaacutevel da sua expressatildeo Eacute que natildeo haacute traccedilo de alegoria ou de roupagem literaacuteria para conceitos filosoacuteficos ateacute porque quase tudo eacute explicitamente dito ndash como disse acima estranhamente manifesto temaacutetico e discutido ndash na poesia pessoana A integraccedilatildeo forma-conteuacutedo eacute inseparaacutevel e soacute por abstraccedilatildeo ou como diria Caeiro quando se tem um membro dormente no corpo poeacutetico se pode fazer a anaacutelise filosoacutefica a que me proponho

Joseacute Gil algum Eduardo Lourenccedilo ou com bastante me-nor amplitude Joseacute Enes jaacute expuseram os principais paracircme-tros filosoacuteficos da obra pessoana Sabemos que se trata nos seus traccedilos mais gerais de uma teoria das sensaccedilotildees3 de uma abordagem do conceito do nada ou de uma ontologia radical situada para aleacutem de toda a metafiacutesica do ente Eacute conhecido que o ldquodrama em genterdquo da heteroniacutemia dramatiza o desapa-recimento da unidade do sujeito na modernidade avanccedilada ou numa poacutes-modernidade4 talvez entatildeo jaacute a prenunciar-se como consequecircncia inevitaacutevel do modernismo

2 As figuras do natildeo-ser pessoano

No que se segue irei reorganizar resumidamente estes te-mas na obra de Pessoa complementando-os com elementos de sistematizaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegica e procurando tornar claros alguns dos grandes eixos das suas relaccedilotildees e in-teracccedilotildees conceptuais

Como se viu eacute possiacutevel mostrar que a obra de Pessoa irra-dia no que toca ao seu alcance filosoacutefico ontoloacutegico ou metafiacute-sico em redor de um centro absolutamente diferencial ocupado por um conceito filosoacutefico claacutessico o do natildeo-ser que podemos fazer remontar aos alvores da metafiacutesica ocidental Platatildeo pro-jeta muito para traacutes esta concepccedilatildeo ateacute Parmeacutenides de Eleia

2 O inteacuterprete mais significativo da obra pessoana da perspectiva filo-soacutefica eacute sem duacutevida hoje Joseacute Gil Embora de uma perspectiva diferente e servindo-se de uma conceptualizaccedilatildeo com outras referecircncias tambeacutem Gil depara-se na obra pessoana com uma configuraccedilatildeo sistemaacutetica sobretudo na geacutenese dos heteroacutenimos Trata-se nomeadamente de ldquouma esteacutetica que permite o nascimento de multiplicidades e a construccedilatildeo do mito do nasci-mento dessas multiplicidades poeacuteticas (heteroniacutemicas) eis a configuraccedilatildeo geral do sistema da poesia pessoana [] Tudo isto faz sistema satildeo as mes-mas distacircncias tambeacutem que separam a poeacutetica de Caeiro de cada uma das poeacuteticas dos seus disciacutepulosrdquo (Joseacute Gil Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Reloacutegio DacuteacuteAgua Lisboa 2013 pp 65-66 [itaacutelicos meus])3 Sobre a ldquoesteacutetica do sensacionismordquo cf ib p 624 V Breacutechon op cit

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

24

No diaacutelogo com o nome deste filoacutesofo lecirc-se como vimos que ldquopara que possa ser completamente o ente possui o natildeo-ente do natildeo-ser que natildeo eacuterdquo ou numa traduccedilatildeo mais simples ldquoo ser participa da natildeo-existecircncia do natildeo-ser para que possa atingir a sua perfeita existecircnciardquo5 Independentemente da traduccedilatildeo a ideia-chave eacute que mesmo o ser perfeito da metafiacutesica parmeniacute-dea necessita do natildeo-ser do natildeo-ser ldquopara que possa ser com-pletamenterdquo Poderaacute dizer-se que a anulaccedilatildeo da mediaccedilatildeo eacute necessaacuteria como condiccedilatildeo da posiccedilatildeo da identidade Esta con-cepccedilatildeo claacutessica do ser restabelecido na sua completude pela negatividade reiterada eacute sem duacutevida um dos eixos categoriais e um problema conceptual da poesia de Pessoa A dupla nega-ccedilatildeo ou negatividade absoluta e a sua inevitaacutevel reflexatildeo satildeo a condiccedilatildeo da afirmaccedilatildeo do ente que soacute eacute ldquocompletamenterdquo ou ldquoperfeitamenterdquo na sua relaccedilatildeo negativa com o natildeo-ser

Reencontra-se com frequecircncia em Pessoa a sua oposi-ccedilatildeo e diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo e ao outro a par de um natildeo menos significativo distanciamento em relaccedilatildeo a si mes-mo A este respeito poderaacute ler-se especialmente o ortocircnimo por exemplo

Nada conduz a nada Nada serve de ser [] Nada e o nada persiste Na estrada e no veratildeo

ou

Nada sou nada posso nada sigo [] Natildeo comprendo compreender nem sei Se hei-de ser sendo nada o que serei6

Na poesia ortocircnima a negatividade estaacute presente como centro gerador de muito da criaccedilatildeo poeacutetica que se vai traduzir no que o autor denomina por vezes de ldquointervalo dolorosordquo Mas esta reiteraccedilatildeo do nada ou da negaccedilatildeo eacute tambeacutem transversal agrave he-teroniacutemia Encontram-se traccedilos dela em Aacutelvaro de Campos na prosa do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares e em Ricardo Reis Da Ode X deste uacuteltimo eacute um outro trecho claramente exemplifi-cativo

Melhor destino que o de conhecer-se Natildeo frui quem mente frui Antes sabendo Ser nada que ignorando

5 Platatildeo Parmeacutenides 162a segundo as traduccedilotildees (alteradas) de M J Figueiredo e H N Fowler respectivamente (Platatildeo Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa 2001 e Plato IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Harvard 1977)6 PE 186 e 156 Poemas de 791927 e de 611923 respectivamente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

25

Nada dentro de nada7

A negatividade tem por caracteriacutestica dialeacutetica natildeo poder ser pensada ou para o nosso caso tatildeo-pouco vivida e dita sem se negar a si mesma Parece inevitaacutevel que a negaccedilatildeo uma vez visada como categoria se intensifique e reitere As consequecircn-cias disto vatildeo em diferentes sentidos e niacuteveis de complexidade O caso categorialmente mais simples encontra-se no Fausto or-toacutenimo

E hora a hora na minha esteacuteril alma Mais fundo o abismo entre meu ser e mim se abre e nesse () abismo natildeo haacute nada8

3 O laboratoacuterio faacuteustico e a dissoluccedilatildeo do real

O Fausto em que Pessoa trabalhou episodicamente ao longo de toda a sua vida dramatiza a negaccedilatildeo no seu estado mais puro o nuacutecleo negativo tomado simplesmente com as suas conclusotildees mais rigorosas O mesmo rigor da deduccedilatildeo das consequecircncias que parecem desprezar os aspectos mais reificados do mundo com que Pessoa se deleita nos seus tex-tos poliacuteticos e esteacuteticos encontra-se dramatizada na poesia do Fausto A consequecircncia da reiteraccedilatildeo do negativo eacute aqui expos-ta sem concessotildees Fausto no seu laboratoacuterio conceptual cria a experiecircncia mais mortal da improdutividade do negativo em estado puro e definitivo

A coerecircncia feacuterrea do laboratoacuterio de Fausto eacute claramente explicitada nas suas consequecircncias que se diferenciam prin-cipalmente em duas vertentes uma a da inteligecircncia que vai ser tomada pela questatildeo impossiacutevel da origem outra a da vida que eacute sentida num contiacutenuo ldquohorrorrdquo palavra cuja presenccedila ao longo do texto eacute quase obsessiva9 A negaccedilatildeo eacute aqui simples questatildeo pelo natildeo-ser ou ser outro daquilo que eacute partindo da compreensatildeo de que

[] tudo eacute siacutembolo e analogia O vento que passa a noite que esfria Satildeo outra coisa que a noite e o vento ndash Sombras da vida e do pensamento10

O pensamento comeccedila pelo ser do natildeo-ser como criaccedilatildeo

7 RR 178 Fernando Pessoa Fausto ed Teresa Sobral Cunha Reloacutegio DrsquoAacutegua Lisboa 2013 [reediccedilatildeo] [=F] 45 Os parecircnteses no texto satildeo da editora9 Para uma anaacutelise de aspectos essenciais da dimensatildeo afectivo-on-toloacutegica da obra pessoana v o estudo de Joseacute Gil ldquoCansaccedilo Teacutedio Desas-sossegordquo in op cit pp 93-11810 F 39

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

26

de significado ndash ldquosiacutembolo e analogiardquo ndash com a contrapartida de que a categorizaccedilatildeo seja doravante inevitavelmente uma ale-gorizaccedilatildeo O ser-outro passa a categoria central do pensamen-to e toda a criaccedilatildeo de significado tem como consequecircncia o caraacutecter ilusoacuterio do ser Dialecticamente o ser eacute ser-outro natildeo como simples ser-ao-lado de outro ser mas como todo o outro do ser a negaccedilatildeo integral do seu regime de sentido O trecho conclui naturalmente alguns versos mais abaixo retomando os elementos evidentes da sombra e da impermanecircncia sob este novo regime que satildeo os derivados primeiros da negaccedilatildeo inten-sificada

A noite fria o passar do vento Satildeo sombras de matildeos cujo gestos satildeo A ilusatildeo matildee desta ilusatildeo[]11

Na concepccedilatildeo do Fausto a alteridade torna-se uma total desigualdade do ente consigo proacuteprio tiacutepico do regime da ima-gem insubsistente

Tudo transcende tudo E eacute mais real e menos do que eacute12

Pessoa trilha um percurso categorial que estaacute perfeitamente ex-pliacutecito e que eacute reforccedilado pelos elementos naturais ndash a noite o vento ndash que longe de atenuarem o isolamento ou darem corpo a uma realidade extra-categorial mostram a facilidade com que a vertigem categorial dela se apodera Por isso pode-se falar de uma quasi-sistematicidade do pensamento pessoano que se mostra como totalmente coerente com as formas claacutessicas da dialeacutetica no pensamento ocidental (e provavelmente natildeo soacute) Neste sentido dificilmente se poderia encontrar um criador poeacute-tico com uma compreensatildeo filosoacutefica mais clara e aprofundada A experiecircncia filosoacutefica sistemaacutetica parece mesmo ndash num certo sentido e dependendo do gosto ndash no Fausto relegar para se-gundo plano a experiecircncia esteacutetica que soacute pode ser fruiacuteda por-ventura no refluxo do pensamento Aqui tudo estaacute literalmente aspirado no ldquoMaumlelstromrdquo do negativo aleacutem do ser e do natildeo-ser

[] Ah deve haver Aleacutem da vida e da morte ser natildeo ser Um inominaacutevel supertranscendente [] Deus Nojo Ceacuteu Inferno Nojo nojo13

Esta eacute

11 F 3912 F 3913 F 42

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

27

Uma noite de Tudo que eacute um Nada Um abismo de Nada que eacute um Tudo14

Jaacute nada deteacutem a vertigem e natildeo haacute muito mais a dizer ldquoO abismo eacute abismo num abismordquo15 Em conclusatildeo leia-se ainda o verso ldquoEu sou o Aparte o Excluiacutedo o Negrordquo Difiacutecil seria exigir maior rigor de pensamento

Este vertiginoso e abjecto regime laboratorial do negativo eacute a origem da questatildeo A tese eacute que toda a questatildeo eacute origina-riamente ontoloacutegica porque nasce da suspensatildeo do ser e do natildeo-ser Fichte jaacute tinha procurado mostrar que o ldquoo querdquo (ldquoWasrdquo) e o ldquoporquecircrdquo (ldquoWeilrdquo) ndash como resposta agrave questatildeo ldquopor querdquo16 ndash satildeo as categorias principais em que o absoluto aparece agrave cons-ciecircncia Fausto estaacute obsidiado pela questatildeo em geral que eacute a questatildeo sobre o que e porque satildeo o ser ou o existir

Mas que haja espaccedilo tempo que haja seres Que haja um mundo () cores sons Movimentos mudanccedilas ()Que haja qualquer coisa sim que a haja17

Daiacute somos conduzidos agrave generalizaccedilatildeo

Mais que a existecircncia Eacute um misteacuterio o existir o ser o haver Um ser uma existecircncia um existir ndash [] O que eacute existir ndash natildeo noacutes ou o mundo Mas existir em si18

Ou mais simplesmente na inevitaacutevel reduplicaccedilatildeo auto-referen-te da questatildeo

ldquoO que eacute haver haver Porque eacute que o que eacute eacute isto que eacute Como eacute que o mundo eacute mundordquo19

Esta essecircncia negativa eacute obsessiva porque auto-referente e conduz natildeo soacute ao recalcar do seu outro como tambeacutem agrave sua expressa abjeccedilatildeo e aniquilaccedilatildeo Aqui o dramatismo do absoluto natildeo-outro infecta a partir do universo inteiro a relaccedilatildeo com o corpo e o outro sujeito

Acordo ao conceber quanto eu odeio

14 F 5415 F 6016 Ver Ferrer O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Coimbra 2014 pp 174-17517 F 7418 F 10419 F 57

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

28

Mais do que esta mais que a humanidade Mas o universo todo []20

Ver-se-aacute ainda que passada esta vertigem da reiteraccedilatildeo de si a negaccedilatildeo do outro eacute outrossim a razatildeo do ver Tambeacutem aqui como lemos em Sartre ldquoa apariccedilatildeo de outro algueacutem no mundo corresponde a um [] deslizamento congelado do uni-verso inteiro que mina por baixo a centralizaccedilatildeo que eu simul-taneamente operordquo21 Dramatizado este deslizamento de ordem fenomenoloacutegica lemos no Fausto como se segue

Sinto horror Agrave significaccedilatildeo que olhos humanos Contecircm22

O olhar do outro eacute a alteridade que ameaccedila de modo in-compreensiacutevel a auto-referecircncia do eu o deslocamento violen-to para a pura auto-referecircncia do significado para um outro inte-rior que natildeo eacute o meu A origem da auto-referecircncia como vimos eacute anterior ao exerciacutecio dos sentidos e sobretudo da visatildeo e reside na estrutura conceptual dialeacutectica do negativo O para-digma e origem da auto-referecircncia eacute o negativo que permite construir os fenoacutemenos de centramento de auto-centramento a pura repeticcedilatildeo (malgreacute Gil-Deleuze) que se traduz em deslo-camentos de sentido na pergunta em geral na reduccedilatildeo do ou-tro agrave imagem e com isto no ver mas tambeacutem no fenoacutemeno da repulsa O ldquoodeio a naturezardquo exclamado na Voyage au bout de la nuit de Ceacuteline grita em toda esta construccedilatildeo Antes de mais

O misteacuterio de ver e o horror de verem-me Abisma-me23

ndash porque o olhar do outro ou jaacute o seu simples rosto segundo a tradiccedilatildeo fichteana eacute a natureza amaacutevel e livre ou seja recon-ciliada com o sujeito O olhar do outro natildeo significa e natildeo eacute assim antes de mais o outro-eu simplesmente mas o eu outro Ou seja o objeto da inquietaccedilatildeo e do oacutedio natildeo eacute em primeira linha um outro sujeito idecircntico a mim em espelhamento mas a constataccedilatildeo de que a alteridade eacute tambeacutem a naturalidade do eu sujeito Fausto sente assim a repulsa perante o eu outro

Oacute horror metafiacutesico de ti Sentido pelo instinto sentido pelo instinto

[natildeo na menteVil metafiacutesica do horror da carne

20 F5421 J-P Sartre Lacuteecirctre et le neacuteant 1984 30122 F 13723 F 150

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

29

Medo do amor24

E em consequecircncia

Ouvir um riso Amarga-me a alma ndash mas porquecirc natildeo sei Sinto como um insulto esta alegria ndash Toda a

[alegria[] Aqueles corpos Tenham filhos vejam Seus filhos afogados ante os olhos As filhas violadas a seu ver25

4 As nuacutepcias da diferenccedila

Ainda antes de abandonar esta leitura do Fausto como ex-posiccedilatildeo mais direta e revoltada das sequelas da negaccedilatildeo ab-solutamente auto-referida deveraacute observar-se que a auto-refe-recircncia como repeticcedilatildeo de si eacute tambeacutem a fonte da subjetividade reencontrada sob diferentes formas em toda a obra pessoana Jaacute encontramos o ldquohaver haverrdquo ou o ldquohaver eu sou eurdquo26 a que se poderia acrescentar a figura claacutessica da ldquoalma da almardquo ou a curiosa frase ldquoCasei com a diferenccedilardquo27 Este eacute em geral o ldquoIntervalordquo28 e ldquoIntervalo dolorosordquo referido no Livro do De-sassossego ou mais especificamente ldquointervalo entre nada e nadardquo29 A proacutepria preposiccedilatildeo ldquoentrerdquo eacute tomada no mesmo livro como objecto substantivado de uma reflexatildeo numa nota acer-ca do poema ldquoRio entre sonhosrdquo Lecirc-se aiacute que ldquoa ideia de rio eacute sugerida pela ideia que ocorre em todos os versos de uma coisa que passa entre e a ideia de entre eacute vincadiacutessimardquo30 Este ldquoentrerdquo que nos faz tambeacutem pensar numa similar substantiva-ccedilatildeo em Heidegger (ldquodas Zwischenrdquo) multiplica-se em diferentes distacircncias entre si e si mesmo entre si mesmo e a realidade entre eu e o outro e tambeacutem significativamente como se vol-taraacute a referir entre mim e ver entre o ver e a coisa ou entre o pensamento e a sensaccedilatildeo Assim tomando alguns exemplos o distanciamento comeccedila por ser em relaccedilatildeo a si mesmoldquoLonge de mim em mim existordquo31 Eacute igualmente uma distacircncia que estaacute expressa no conceito da personalidade aqui trata-se do ldquoNexo inuacutetil entre o que sou e quem sourdquo32 A alma eacute pois simples dis-

24 F 6025 F 52 5326 F 5327 PE p 188 Poema de 910192728 LD 22629 LD 22630 Cit in Richard Zenith ldquoIntroduccedilatildeordquo in LD 2631 PE 24932 PE249

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

30

tacircncia ldquoDe que eacute que a minha alma distardquo33 ou eacute a distacircncia entre mim e o agora ldquoQue haacute entre mim e o momentordquo34 Mas a questatildeo do intervalo eacute projectada pelo ortoacutenimo igualmente como tese metafiacutesica

Deus eacute um grande intervalo Mas entre quecirc e quecirc35

Este toacutepico reflete com rigor a grande questatildeo do sujeito que se descobre como ldquoauto-posiccedilatildeordquo segundo a versatildeo de Fichte para se descobrir que esta mesma auto-posiccedilatildeo que o funda e constitui abre necessariamente tambeacutem o espaccedilo para um fun-damento obscuro ainda mais vasto Este ponto cego da reflexatildeo atravessa boa parte do questionamento filosoacutefico posterior que a partir de Schelling critica o sujeito com base justamente neste fundamento impensado e obscuro o qual como resultado da diferenccedila inerente agrave sua reflexatildeo proacutepria abre-se de modo mais patente justamente perante a mais pura auto-atividade do sujei-to Toda a exposiccedilatildeo pessoana que temos vindo a seguir com base nesta abertura de um intervalo entre mim e mim (o ldquohaver eu sou eurdquo) eacute o que permite apontar por um lado para o nada e o negativo como ceacutelula categorial de base da expressatildeo pesso-ana como tambeacutem por outro para o impensado sempre aleacutem do ser Bernardo Soares diz do modo mais claro esta ligaccedilatildeo da distacircncia de si mesmo e a interrogaccedilatildeo por um fundamento aleacutem do ser e do natildeo-ser ldquoEu longe dos caminhos de mim proacute-prio cego da visatildeo da vida que amo cheguei por fim tambeacutem ao extremo vazio das coisas agrave borda imponderaacutevel do limite dos entesrdquo36 Inspiraccedilatildeo semelhante encontra-se em Aacutelvaro de Campos ldquoPerante esta uacutenica realidade terriacutevel ndash a de haver uma realidaderdquo37 E leia-se tambeacutem ainda mais uma vez no Fausto

Uma vez contemplando dum outeiro A linha da colina majestosa Que azulada e em perfis desaparecia No horizonte contemplando os campos Vi de repente como que tudo Desaparecer []

e um abismo invisiacutevel uma coisa Nem parecida com a existecircncia Ocupar natildeo o espaccedilo mas o modo Com que eu pensava o visiacutevelrdquo38

33 PE 77 Poema de 1111191434 PE 81 Poema de 310191535 PE 56 Poema de Jan-Mar 191336 LD 147

37 Fernando Pessoa Poesias de Aacutelvaro de Campos Aacutetica Lisboa 1958 [=AC] 93 38 F 44

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

31

A distacircncia de si a si pressuposta pela reflexatildeo vai estar tambeacutem na base de um outro modo de estranhamento de si ldquoFalam na nossa boca laacutebios que natildeo nos pertencemrdquo39 ndash segun-do um toacutepico de que tambeacutem se poderiam multiplicar os exem-plos A lucidez absoluta da reflexatildeo integral do eu segrega um ponto cego que se manifesta para laacute da reflexatildeo como este permanente aleacutem

A principal funccedilatildeo da negaccedilatildeo em geral e muito em parti-cular na esteacutetica de Pessoa eacute a produccedilatildeo de alteridade Como se disse ao desposar o negativo ldquoCasei-me com a diferenccedilardquo A produccedilatildeo de alteridade assume diferentes formas entre as quais o estranhamento da consciecircncia em relaccedilatildeo a si mesma Mas seria excessivo prosseguir na leitura da negatividade e das suas manifestaccedilotildees conforme expostas no seu estado mais puro no Fausto onde eacute explorado ateacute agrave exaustatildeo o seu significado como uma essecircncia totalmente centrada sobre si e redutora da alte-ridade Esta essecircncia que Pessoa apoda inuacutemeras vezes em cada paacutegina do Fausto de ldquohorrorrdquo eacute o que o impede ou pare-ce impedir biograficamente a realizaccedilatildeo pessoal impondo-lhe porventura uma ldquoconsciecircncia infelizrdquo que pela intensificaccedilatildeo do seu nuacutecleo vazio natildeo pode sair de si conforme eacute exigido para agir amar ou simplesmente existir

Mas natildeo poderiacuteamos agora prosseguir na anaacutelise nem da consciecircncia infeliz nem da accedilatildeo ou inaccedilatildeo em Pessoa ndash para o que natildeo faltaria aliaacutes material no Livro do Desassossego Nem por outro lado enunciar a questatildeo biograacutefica do alegado fracas-so existencial do poeta que pelo contraacuterio a meu ver tematiza todas as condiccedilotildees desse fracasso e cultiva-as mesmo de tal modo que a sua transformaccedilatildeo em arte e pensamento eacute o modo de o objetivar e afastar de si Houve parafraseando o poeta que ldquopassar aleacutem da dorrdquo

A dialeacutetica embora centrada no natildeo-ser e no negativo co-nhece tambeacutem uma interpretaccedilatildeo mais branda pela qual este vazio absoluto na base da loucura da auto-referecircncia negativa de Fausto assume formas diversas Se prosseguirmos no ca-minho sistemaacutetico que o desdobramento heteroniacutemico da obra de Pessoa sugere observa-se que o denominado ldquooutrar-serdquo do poeta pode com inteira naturalidade ser lido a partir do negati-vo entendido dialeticamente como alteridade ou ser-outro Se a negaccedilatildeo intensificada e reiterada em si produz a estrutura cate-gorial do Fausto a negaccedilatildeo simples estaacute na base do ser-outro da heteroniacutemia ser-outro simples ou imediato cuja reiteraccedilatildeo eacute apenas repeticcedilatildeo e diferenccedila e natildeo mais a mortal reiteraccedilatildeo de si que ameaccedila o ortoacutenimo e de que este no Fausto parece fa-zer a catarse objetivando-a de modo justamente a natildeo a trazer consigo A esta repeticcedilatildeo simples da negaccedilatildeo como outro e natildeo

39 FP 85 Poema de 2741916

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

32

mais negatividade pura corresponde agora natildeo uma intensifica-ccedilatildeo voraz mas uma multiplicaccedilatildeo Jaacute no seu devaneio infantil conforme menciona na sua Carta a Casais Monteiro sobre a geacutenese dos heteroacutenimos Pessoa criou aquele que parece ser o primeiro precursor dos heteroacutenimos o Chevalier de Pas que bem poderiacuteamos traduzir pelo Cavaleiro do Natildeo

Desta perspectiva o que Hegel na sua anaacutelise da nega-ccedilatildeo denominou a negaccedilatildeo simples traduz-se bem no outrar-se pessoano Casado com a diferenccedila o eu manteacutem-na como ne-gatividade absoluta intensificando-a mas uma vez objetivada pode tambeacutem reemergir sob a forma da multiplicaccedilatildeo do ser--outro A heteroniacutemia eacute assim uma outra face da negatividade que se manteacutem temaacutetica tanto no ortoacutenimo quanto nalguns dos heteroacutenimos

5 A faacutebrica dos heteroacutenimos

Na sua informada e notaacutevel biografia de Pessoa Robert Breacutechon apresenta uma explicaccedilatildeo sem duacutevida correta em parte da heteroniacutemia Esta ldquoeacute um meacutetodo experimental para ter pensamentos e sensaccedilotildees emoccedilotildees e crenccedilas novas capazes de nos fazer sair da personalidade cristalizada moldada pelo nosso caraacutecter a nossa educaccedilatildeo a nossa heranccedila cultural [] Levei muito tempo a compreender a profunda verdade da hete-roniacutemia Pensamos que temos opiniotildees seguras crenccedilas fun-damentadas e ateacute uma feacute que julgamos ser a uacutenica verdadeira mas haacute outros que estatildeo igualmente seguros das suas opiniotildees das suas crenccedilas da sua feacute diferentes das nossas [] Caeiro Reis e Campos satildeo posturas da consciecircncia de Pessoa diferen-tes daquela que lhe eacute mais naturalrdquo40 A questatildeo seria segundo esta descriccedilatildeo ou explicaccedilatildeo a de o autor poder pela hetero-niacutemia assumir crenccedilas ou modos de ser que natildeo os preponde-rantes na sua consciecircncia colocar-se no lugar de outro Se isto natildeo eacute incorreto passa parece-me ao lado do mais importante A heteroniacutemia eacute sem duacutevida desenvolver traccedilos diferentes e ateacute contraditoacuterios de uma personalidade de modo a poder co-locar-se no lugar de um outro Ela tem eacute certo alguma relaccedilatildeo com o aprofundamento e desenvolvimento que Pessoa faz do programa expresso sobretudo em Aacutelvaro de Campos de ldquosentir tudo de todas as maneirasrdquo Esta ultrapassagem ateacute agrave anulaccedilatildeo do ponto de vista uacutenico e do isolamento do sujeito eacute parte do processo heteroniacutemico Uma das condiccedilotildees deste processo de impersonalizaccedilatildeo estaacute sem duacutevida descrito em trechos como o que se segue do Livro do Desassossego ldquoHaacute criaturas que satildeo capazes de sofrer longas horas por natildeo lhe ser possiacutevel ser uma figura dum quadro ou dum naipe de baralho de cartas Haacute almas sobre quem pesa como uma maldiccedilatildeo o natildeo lhes ser possiacutevel

40 Breacutechon op cit 216-217

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

33

ser hoje gente da idade meacutedia Aconteceu-me deste sofrimen-to em tempo [] Poder sonhar o inconcebiacutevel visibilizando-o eacute um dos grandes triunfos que natildeo eu [sic] que sou tatildeo grande senatildeo raras vezes atinjo Sim sonhar que sou por exemplo si-multaneamente separadamente inconfusamente o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher datildeo agrave beira--riordquo41 Ou teorizando este processo de sentir multiplamente em termos gerais ldquoO mais alto grau de sonho eacute quando criado um quadro com personagens vivemos todas elas ao mesmo tempo ndash somos todas essas almas conjunta e interactivamente Eacute in-criacutevel o grau de despersonalizaccedilatildeo e encinzamento [sic] do es-piacuterito a que isso leva confesso-o [] Mas o triunfo eacute talrdquo42 Mas perante isto se a razatildeo da heteroniacutemia residisse somente aqui seria insuficiente ser somente quatro ou cinco heteroacutenimos pe-rante este programa bem mais vasto de ser todas as perspecti-vas e todas as sensaccedilotildees separada e simultaneamente

A heteroniacutemia deriva por isso de diversos factores(1) Eacute provocada em primeiro lugar pelo ao processo de

ser-outro imediato que pertence ao eu que reflete sobre si que jaacute caracterizei suficientemente acima Todo o espaccedilo da refle-xatildeo eacute tambeacutem a possibilidade de ver-se de fora como objeto identificar-se consigo aleacutem e fora de si um devir-outro

(2) Em segundo lugar obedece tambeacutem ao programa sen-sacionista de natildeo se ficar encerrado na perspectiva de um eu Eacute assim um programa iroacutenico e criacutetico de afastamento relati-vamente a todas as opiniotildees e naturalidades do caraacutecter e das convicccedilotildees Se bem se pode dizer em termos pessoanos que desconhecer eacute conhecer-se segundo o autor ldquodesconhecer--se conscienciosamente eacute o emprego activo da ironiardquo43 Neste sentido bem apreendido pelo passo supracitado de Breacutechon eacute uma postura de desenraizamento e universalismo tipicamen-te modernos que Pessoa encarna acentuando-o de modo por vezes sofiacutestico A centralizaccedilatildeo de toda a atividade subjetiva na sensaccedilatildeo provoca de modo aparentemente inevitaacutevel a perda da identidade que eacute construiacuteda no ldquoeu pensordquo da inteligecircncia Sentir integralmente conduz e consiste em sentir tudo de todas as maneiras porque sentir eacute desidentificar devir-outro ou perder o ortoacutenimo despessoalizar

(3) Em terceiro lugar talvez um dos pontos filosoficamen-te mais importantes e que natildeo estaacute de modo nenhum apreen-dido no excerto de Breacutechon a heteroniacutemia eacute um processo de objetivaccedilatildeo simples que eacute uma necessidade inerente do eu O desejo do reconhecimento pode assumir diferentes formas en-tre as quais as formas redutoras agrave identidade da consciecircncia mesmo que negativa como vimos no caso do Fausto O modo mais completo do reconhecimento eacute poreacutem o que Hegel de-

41 LD 172-17342 LD 44443 LD 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

34

nomina ldquoencontrar-se a si mesmo no seu outrordquo ou seja a de que o mundo objetivo esteja impregnado ou formado pelo eu O heteroacutenimo neste contexto eacute a projeccedilatildeo objetivada do eu que pode entatildeo romper a barreira do seu isolamento e encontrar--se como eu-outro numa obra Neste sentido a heteroniacutemia em termos hegelianos encerra uma teoria da arte ou melhor eacute a proacutepria condiccedilatildeo artiacutestica Lecirc-se assim nas Liccedilotildees de Esteacutetica de Hegel ldquoa necessidade universal e absoluta de que brota a arte [] encontra a sua origem em que o homem eacute uma consci-ecircncia pensante ou seja que torna para si o que ele eacute e o que em geral existe As coisas da natureza satildeo soacute imediatamente e uma vez mas o homem como espiacuterito duplica-se [] intui-se representa-se pensa e soacute por este ser-para-si ativo eacute espiacuteritordquo44 Esta duplicaccedilatildeo do eu no seu outro contudo eacute a verdade da falsa duplicaccedilatildeo do nada que encontraacutemos no Fausto O que espanta eacute que a heteroniacutemia como instrumento oacutebvio de au-to-objectivaccedilatildeo e reconhecimento natildeo seja a norma mas uma excepccedilatildeo nos procedimentos artiacutesticos e criativos em geral Se-ria de esperar que fosse o processo natural da criaccedilatildeo artiacutestica sendo a ortoniacutemia um caso excepcional de devir-idecircntico O po-der expressivo da heteroniacutemia deriva de que eacute a descoberta de um processo comum e forccediloso que subjaz esquecido mesmo sob a superfiacutecie da autoria

(4) Por isso em quarto lugar a heteroniacutemia eacute um instru-mento poderosiacutessimo de auto-conhecimento Soacute assim se en-tendem afirmaccedilotildees como ldquoFingir eacute descobrir-serdquo45 Porque o co-nhecimento de si eacute tambeacutem a formaccedilatildeo de si a criaccedilatildeo do autor juntamente com a obra eacute um processo evidente e natural que Pessoa se limita a tornar expliacutecito o que ainda mais se confirma pelo facto de que o proacuteprio ortoacutenimo acabaraacute por se assumir tambeacutem como mais um participante do jogo heteroniacutemico Por este jogo os diferentes traccedilos e potencialidades da personali-dade satildeo cuidadosamente representados distinguidos desen-volvidos e objetivados o que conduz a um auto-conhecimento muito mais completo do que o que eacute dado na ortoniacutemia Tam-beacutem aqui soacute surpreende que um procedimento tatildeo oacutebvio de au-to-estudo natildeo tenha sido descoberto e praticado mais cedo

(5) Mas a heteroniacutemia eacute tambeacutem teoria da criaccedilatildeo artiacutestica num outro sentido Ao representar ou expor natildeo soacute o objeto ar-tiacutestico mas juntamente e ao mesmo tempo que ele o seu autor a heteroniacutemia permite representar o proacuteprio processo da cria-ccedilatildeo artiacutestica Todo o processo de representaccedilatildeo que parte do autor estaacute normalmente juntamente com o autor omisso De modo similar agraves gravuras de Escher onde o representante ou o observador estaacute representado na representaccedilatildeo ndash com tudo o que isto tem de paradoxal porque remete sempre para um ato e

44 Hegel Werke 13 50-5145 F Pessoa Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Pre-senccedila Lisboa 1990 240

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

35

realizaccedilatildeo subjetivos por princiacutepio jamais representaacuteveis como objeto46 ndash tambeacutem em Pessoa o criador eacute criado juntamente com a criaccedilatildeo Isto que eacute normalmente do domiacutenio dos fac-tos havendo na obra apenas a representaccedilatildeo de uma parte do quadro geral do processo da criaccedilatildeo surge aqui simplesmente reproduzido integralmente O sujeito representante estaacute assim literalmente representado na representaccedilatildeo e a tese eacute que ele existe tanto mais quanto mais claramente fica representado Eacute assim patente que o essencial da representaccedilatildeo artiacutestica eacute natildeo o objeto mas o ato criativo que estaacute na base de toda a repre-sentaccedilatildeo Por isso a heteroniacutemia eacute uma reflexatildeo ou teorizaccedilatildeo da criaccedilatildeo artiacutestica e da proacutepria subjetividade

(6) Mas refira-se tambeacutem na sequecircncia do ponto anterior que esta auto-criaccedilatildeo do criador que eacute afinal um elemento cen-tral da arte realiza uma auto-referecircncia objetivada de tal modo que evita a armadilha faacuteustica da subjetividade representada como buraco negro Temos na heteroniacutemia natildeo soacute um outro eu mas tambeacutem como se viu um eu-outro eu naturalizado objetivado que permite reconciliar o sujeito com o seu mundo A importacircncia da auto-objetivaccedilatildeo natildeo eacute reproduzir-se mas per-der-se como condiccedilatildeo de reconciliaccedilatildeo

(7) E finalmente por todas estas razotildees a criaccedilatildeo hete-roniacutemia eacute um vasto estudo sobre a ligaccedilatildeo e a interaccedilatildeo entre a literatura e a vida Torna-se evidente que a consciecircncia tanto mais se preenche e enriquece quanto maior a sua capacidade de operaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo E consequentemente encontra-se no ldquooutrar-serdquo pessoano uma demonstraccedilatildeo da capacidade for-mativa e auto-formativa da literatura e que se eacute verdade que o autor cria a obra natildeo o eacute menos que a obra forma e constitui o autor que toda a accedilatildeo ou criaccedilatildeo eacute reflexiva formando tanto o autor quanto a obra Nos termos de Pessoa ldquoToda a literatura consiste num esforccedilo para torna a vida realrdquo47 ou ldquoHaacute metaacutefo-ras que satildeo mais reais do que a gente que anda na ruardquo48 Em suma ldquosou em grande parte a mesma prosa que escrevordquo49

Com base nesta breve tematizaccedilatildeo dos aspectos iniciais do estudo da intra-estrutura categorial da obra de Pessoa po-demos avanccedilar para um esboccedilo breve do desenvolvimento con-ceptual sistemaacutetico que estes aspectos iniciais devem neste contexto receber

Em geral dada a ceacutelula germinal da negatividade os he-teroacutenimos desenvolvem-se como uma seacuterie diferencial de mo-dulaccedilotildees da alteridade com relaccedilatildeo agrave negatividade de onde satildeo originaacuterios Em Ricardo Reis encontra-se diferentemente do 46 Procurei mostrar que a representaccedilatildeo do processo de criaccedilatildeo artiacutes-tica eacute um objecto principal da criaccedilatildeo artiacutestica em Ferrer ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Conceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 (2012) pp 363-39047 LD 14048 LD 17249 Fernando Pessoa Livro do Desassossego I (ed Galhoz e Cunha Aacutetica Lisboa 1982 p 240) cit in Breacutechon op cit p 519

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

36

que vimos ser o caso no Fausto a negatividade transformada num mundo habitaacutevel a partir em primeiro lugar da experiecircncia do tempo Esta vivecircncia manteacutem-se negativa mas estaacute mantida sobre uma durabilidade tal que

[] agrave arte o mundo Cria que natildeo a mente Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela50

Os temas partem da temporalidade e brevidade da vida humana para a qual a arte eacute a gloacuteria breve de uma coroa de flores tatildeo breve quanto o pode ser o prazer e o instante O negativo estaacute transmutado numa natureza reconciliada mas dentro dos limites estritos da consciecircncia temporal em que a presenccedila da morte eacute incessante A aceitaccedilatildeo do destino e do prazer permite todavia tolerar essa presenccedila O estilo de Reis reflete a forma plenamente desenvolvida e apurada mas vin-cada fortemente como forma porquanto reteacutem a marca da natildeo naturalidade do domiacutenio subjetivo e intelectual da expressatildeo forma ainda separada do outro pela finitude e pela temporalida-de que tingem a reconciliaccedilatildeo com uma simultacircnea perda de si O vincar extremo da forma poeacutetica da linguagem faz compreen-der que a reconciliaccedilatildeo eacute tambeacutem somente formal que o seu conteuacutedo estaacute sempre ausente para laacute do tempo dos deuses ou do destino invocados

Jaacute o Engenheiro Aacutelvaro de Campos encontra em si um ou-tro efeito patente da negatividade entendida como alteridade ser-outro ou melhor o outro que eacute o mesmo porque reconstituiacute-do como outro do outro Assim recuperado o outro encontra-se como sensaccedilatildeo agrave superfiacutecie esfeacuterica da reflexatildeo do sujeito O real eacute entatildeo fenoacutemeno transmutado por um lado em sensa-ccedilotildees por outro em forccedilas como na proposta de Pessoa ldquoPara um Esteacutetica Natildeo Aristoteacutelicardquo onde o belo eacute substituiacutedo pela for-ccedila O real soacute eacute acessiacutevel como forccedila e sensaccedilatildeo Mas a par da sensaccedilatildeo o real soacute pode ser recuperado tambeacutem na contradi-ccedilatildeo da reflexatildeo ndash que eacute a marca proacutepria tambeacutem do ortoacutenimo Na poesia do engenheiro naval este aspecto eacute recorrente em passos como o seguinte

Agrave esquerda laacute para traacutes o casebre modesto [mais que modesto

A vida ali deve ser feliz soacute porque natildeo eacute [minhardquo51

Nesta universalidade das sensaccedilotildees Campos declara

50 RR 1351 AC 36

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

37

ldquoeu adoro todas as coisas e o meu coraccedilatildeo eacute um albergue aberto toda

[a noite Tenho pela vida um interesse aacutevido Que busca compreendecirc-la sentindo muito

[Amo tudo animo tudo empresto humanidade a tudo Aos homens e agraves pedras agraves almas e agraves

[maacutequinas Para aumentar com isso a minha

[personalidade

Pertenccedilo a tudo para pertencer cada vez [mais a mim proacutepriordquo52

A aceitaccedilatildeo de tudo jaacute natildeo eacute regida aqui como em Reis pela temporalidade a finitude e o amor fati mas pela capacida-de do eu de se exteriorizar ou de ser unicamente exterior de modo a se preencher pelos fenoacutemenos e pelas suas manifesta-ccedilotildees A negatividade estaacute mais para traacutes encontrada no sujeito jaacute transformada em impulso de perda da unidade subjetiva e de aceitaccedilatildeo da sensibilidade como redenccedilatildeo do pensamento que permanece dela sempre tanto idecircntico quanto separado para que dela possa ter consciecircncia Aqui o estilo tendencialmente histeacuterico especialmente na sua fase inicial das grandes Odes eacute dotado de uma violecircncia que responde agrave necessidade destrutiva do sujeito pensante e da negatividade para que se possa desa-possar na pura superfiacutecie das sensaccedilotildees e das forccedilas que delas se dirigem agrave expressatildeo

Completa a seacuterie principal da heteroniacutemia que procuraacute-mos entender como um quasi-sistema de resposta diferencial agrave negatividade o mestre de todos os outros heteroacutenimos Alber-to Caeiro53 Na descriccedilatildeo que nas ldquoNotas para a Recordaccedilatildeo

52 AC 9953 A propoacutesito tambeacutem da compreensatildeo de Caeiro leia-se Paulo Bor-ges ldquoContrariamente ao que escreve Leyla Perrone-Moiseacutes uma das mais interessantes inteacuterpretes de Pessoa a sua laquogranderaquo e laquouacutenicaraquo laquoquestatildeoraquo natildeo nos parece ser laquosempre a identidade almejada e falhadaraquo (F Pessoa Satildeo Paulo 1982 72) e antes um excesso de pressuposiccedilatildeo de identidade e de pretensatildeo agrave sua consciencializaccedilatildeo e totalizaccedilatildeo que lhe faz ressen-tir em termos fuacutenebres todo o pressentimento ou experiecircncia da sua real vacuidade e incognoscibilidade Rejeitando o iacutentimo laquonadaraquo como um ser jaacute laquotudoraquo o que o levaria a descentrar-se e perder-se encontrando-se na exuberante multiplicidade dos seres e fenoacutemenos do mundo sem carecer imaginaacute-los em si ou a partir de si redu-los a mero ponto de partida da so-lipsista reinvenccedilatildeo do mundo como teatro interno [] Isto num enredo onde sintomaticamente satildeo sistematicamente exorcizadas todas as emergecircncias da alteridade real como a vida e o amor [] Por tudo isto ndash e salvaguarde-se a precariedade de todos estes juiacutezos [] ndash a genialidade literaacuteria de Pessoa pode natildeo ser mais do que o verso de um reverso que seja um natildeo menos grandioso insucesso sapiencialrdquo (Paulo Borges Pensamento Atlacircntico Lis-boa 2002 331-332) O comentaacuterio de Paulo Borges parece aqui esquecer a funccedilatildeo sistemaacutetica de Caeiro sublinhada sempre pelo contraacuterio por Joseacute Gil Por outro lado Paulo Borges conclui com reservas eacute certo por um fra-casso sapiencial e vivencial de Pessoa num campo onde precisamente pelo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

38

do meu Mestre Caeirordquo Aacutelvaro de Campos faz do mestre tudo evoca uma clareza e retidatildeo transcendentes Caeiro permite al-canccedilar o extremo oposto de Fausto Nele a negatividade es-gotou-se em si mesma encontra-se inteiramente anulada ou auto-anulada de tal modo que o resultado eacute a sua pura e sim-ples elisatildeo Numa aproximaccedilatildeo dialeacutetica encontrariacuteamos aqui a mediaccedilatildeo perfeita Caeiro eacute como que o milagre da mediaccedilatildeo integralmente realizada o retorno absoluto ao imediato54 onde jaacute o modo da expressatildeo se opotildee contraditoriamente ao de Reis Ao maacuteximo artificialismo que era o traccedilo da essecircncia negativa como forma acentuando a evanescecircncia do conteuacutedo opotildee-se a total naturalidade do discurso caeiriano absolutamente claro e direto formalmente neutro nem prosa nem poesia A lingua-gem encontra aqui a plena naturalidade porventura como o seu paiacutes natal

A contradiccedilatildeo criacutetica e moderna que constitui a subjetivi-dade finita entre pensamento e sensaccedilatildeo estaacute agora definitiva-mente conciliada numa unidade de forma e conteuacutedo que natildeo eacute a da vazia identidade do sujeito O eu-outro reconciliador da na-tureza e do espiacuterito estaacute encontrado na mediaccedilatildeo auto-anulada do negativo Em termos dialeacuteticos poderia dizer-se que jaacute natildeo temos a fuacuteria destrutiva e anuladora da pura essecircncia negativa mas tatildeo-pouco a mera positividade imediata e preacute-reflexiva do ser Na verdade Caeiro soacute pode resultar do processo de atra-vessar a contradiccedilatildeo e o negativo e passar aleacutem ateacute ao seu oposto que sem o esquecer tem-nos (o negativo e o positivo) em si reconciliados

6 Conclusatildeo os modos da diferenccedila em Pessoa

Uma vez que como se viu Pessoa se casou com a dife-renccedila para prosseguir seria preciso analisar os modos que a diferenccedila assume no seu pensamento Nessa anaacutelise que por exceder os limites deste estudo natildeo poderei mais do que indi-car seraacute necessaacuterio analisar o lugar das trecircs formas principais da diferenccedila filosoacutefica na obra do autor Satildeo elas nomeadamen-te a diferenccedila reflexiva ou seja a que cria o distanciamento en-tre eu e eu cuja funccedilatildeo jaacute foi desenvolvida acima em segundo lugar a diferenccedila criacutetica ou seja a diferenccedila entre o pensar e o sentir ou a emoccedilatildeo cuja importacircncia em Pessoa eacute fulcral

contraacuterio natildeo seria possiacutevel encontrar o menor traccedilo de ignoracircncia no poeta Natildeo haacute em Pessoa justamente este saber do nada do eu como recuperaccedilatildeo do mundo Descrever o percurso que conduz ateacute esta recuperaccedilatildeo do ser e percorrecirc-lo talvez incessantemente eacute sinal antes do reconhecimento sem ilu-satildeo da condiccedilatildeo finita Quanto agrave positividade sapiencial e aspectos do ecircxito vivencial do poeta v tambeacutem ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infelizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 33 (2008) pp 203-22254 Como observa Gil a proacutepria relaccedilatildeo da alma com corpo eacute transfigu-rada Joseacute Gil op cit 30-35

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

39

como vimos A este niacutevel assiste-se na sua obra agrave criaccedilatildeo de todo um imaginaacuterio poeacutetico a partir de um jogo de eclipsamento muacutetuo entre pensamento e sensaccedilatildeo entre pensar e ver Este jogo eacute constitutivo da imagem poeacutetica E por fim em terceiro lugar poderaacute mencionar-se a diferenccedila transcendental ou seja a diferenccedila entre o objeto visto e a sua visibilidade ou entre o ente e o sentido que o permite apreender Na verdade a poesia tem por funccedilatildeo pocircr entre parecircnteses a realizaccedilatildeo entificadora do real e substituiacute-la por uma reflexatildeo transcendental sobre os meios expressivos do olhar que permite ver o real Neste sen-tido toda a poesia natildeo menos que o pensamento filosoacutefico eacute eminentemente uma atividade transcendental Tambeacutem esta diferenccedila encontra o seu lugar no pensamento de Pessoa sob a forma da ausecircncia ou perda de sentido da pergunta em que a diferenccedila entre o ente e o ser eacute claramente enunciada Mas tambeacutem o voltar-se para o proacuteprio meio expressivo ou seja para a condiccedilatildeo da mostraccedilatildeo poeacutetica dos entes eacute um modo de enunciado da diferenccedila transcendental Este eacute o sentido das passagens onde o autor defende que a criaccedilatildeo literaacuteria o saber dizer eacute a verdadeira instituiccedilatildeo de sentido ldquoDizer Saber dizer Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual Tudo isto eacute quanto a vida vale []rdquo55

Mas o desenvolvimento da anaacutelise das diferenccedilas decisi-vas seria jaacute um outro capiacutetulo da investigaccedilatildeo filosoacutefica sobre Pessoa

55 LD 141

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

40

BIBLIOGRAFIA

BORGES Paulo Pensamento Atlacircntico Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 2002

BORGES Paulo ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infe-lizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra Hegel-Studien 33 2008

BREacuteCHON Robert Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernando Pessoa trad M Abreu P Tamen Lisboa 1997

FERRER Diogo O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Imprensa da Universidade de Coimbra 2014

FERRER Diogo ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Con-ceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 2012

GIL Joseacute Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Lisboa Reloacute-gio drsquoaacutegua 2013

HEGEL Friedrich Gesammelte Werke 13 Hamburg Felix Meiner 2000

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

PLATAtildeO Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa Ins-tituto Piaget 2001

PLATO IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Londres Harvard 1977

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Presenccedila 1990

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Galhoz e Cunha Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos Lis-boa Aacutetica 1958

PESSOA Fernando Fausto ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

41

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesCaeiro a vaccine against the stupidity of intelligent people

Palavras-chave poesia filosofia sensaccedilatildeo Fernando Pessoa Alberto CaeiroKeywords Poetry philosophy sensation Fernando Pessoa Alberto Caeiro

ldquoO homem natildeo pode permanecer consciente por muito tempo agraves vezes tem de se refugiar na inconsciecircncia pois nela vive sua raizrdquo

Thomas Mann Carlota em Weimar

RESUMO Mais que um heterocircnimo Alberto Caeiro eacute reconhe-cido como um Mestre por Fernando Pessoa e pelos outros he-terocircnimos do universo deste poeta portuguecircs As experiecircncias nascidas de sua singular entrega agraves sensaccedilotildees nos conduz tanto a reflexotildees criacuteticas de pertinecircncia filosoacutefica sobre os do-miacutenios e os limites do pensamento como a uma nova forma de experienciar o mundo Aleacutem de acompanhar tal movimento e explorar os mecanismos da ldquoloacutegicardquo caeiriana considerando o caminho percorrido por Caeiro e o relato de seus disciacutepulos (Aacutel-varo de Campos Ricardo Reis Antonio Mora e Pessoa) esse ensaio buscaraacute tambeacutem refletir sobre a posiccedilatildeo ndash a de Mestre ndash ocupada por ele no universo pessoano

ABSTRACT More than a heteronym Alberto Caeiro is consi-dered a Master by Fernando Pessoa and the other heteronyms of the universe of this Portuguese poet The experiences that come from his unique dedication to sensations lead us to critical reflections of philosophical importance about the domains and limits of thought as well as to a new form of experiencing the world This essay not only tracks this movement and explores the Caeirian ldquologicrdquo considering the path taken by Caeiro and the reports from his disciples (Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antonio Mora and Pessoa) but also reflects on the position ndash that of a Master ndash that he occupies in the Pessoan universe

I

A pertinecircncia filosoacutefica da obra de Fernando Pessoa eacute tal que constantemente seus leitores mais afeitos ao cotidiano des-

Gisele Batista Candido

Doutora em Filosofia - Uni-versidade de Satildeo Paulo E-mail giselebcgmxnet

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

42

se universo encontram em seus escritos ecos e ateacute mesmo re-ferecircncias que os remetem a diversos autores da filosofia O proacute-prio poeta portuguecircs reconheceu que ldquoera um poeta inspirado pela filosofiardquo (PESSOA Escritos autobiograacuteficos p 19) Com efeito aleacutem de seu espoacutelio contar com inuacutemeros escritos criacuteti-cos sobre diferentes filoacutesofos sua poesia tambeacutem apresenta de certa forma teor filosoacutefico Entretanto o envolvimento entre poesia e filosofia na obra pessoana natildeo se configura como uma relaccedilatildeo oacutebvia como se sua poesia fosse apenas um pretexto para o desenvolvimento de palpitaccedilotildees filosoacuteficas ou mesmo uma simples tentativa de poetizar experiecircncias alheias Embora o poeta reconheccedila a influecircncia da filosofia ele imediatamente reitera que ldquonatildeo [eacute] um filoacutesofo com faculdades poeacuteticasrdquo (PES-SOA Escritos autobiograacuteficos p 19)

Nesse horizonte a poesia de Alberto Caeiro revela natildeo apenas inspiraccedilatildeo filosoacutefica mas sobretudo uma problemati-zaccedilatildeo do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico que seraacute enfaticamente questionado em algumas de suas perquiriccedilotildees mais proacuteprias a saber a orientaccedilatildeo do pensamento e a primazia atribuiacuteda ao conhecimento

Como veremos adiante natildeo podemos negar que em mui-tos momentos essa criacutetica caeiriana pode nos lembrar a filosofia de Nietzsche que por exemplo em suas Consideraccedilotildees Ex-temporacircneas enfatiza o prejuiacutezo envolvido na acumulaccedilatildeo de conhecimento num certo sentido histoacuterico

Pois noacutes modernos natildeo temos absolutamente nada que provenha de noacutes mesmos somente na medida em que nos entulhamos e apinha-mos com eacutepocas haacutebitos artes filosofias re-ligiotildees conhecimentos alheios tornamo-nos dignos de consideraccedilatildeo a saber enciclopeacute-dias ambulantes (NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva p 34)

Tal criacutetica em Caeiro no entanto constitui apenas uma etapa da experiecircncia proposta por sua poesia como uma opor-tunidade para desintoxicaccedilatildeo do acuacutemulo civilizatoacuterio Desse momento decorreraacute por exemplo uma percepccedilatildeo mais nua da natureza que bem poderia ser comparaacutevel agraves reflexotildees de Mer-leau-Ponty sobre Ceacutezanne

Percebemos coisas entendemo-nos sobre elas estamos enraizados nelas e eacute sobre essa base de ldquonaturezardquo que construiacutemos ci-ecircncias Foi esse mundo primordial que Ceacutezan-ne quis pintar e por isso seus quadros datildeo a impressatildeo da natureza em sua origem en-quanto as fotografias das mesmas paisagens

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

43

sugerem os trabalhos dos homens suas co-modidades sua presenccedila iminente (hellip) Vive-mos em um meio de objetos construiacutedos pe-los homens entre utensiacutelios em casas ruas cidades e na maior parte do tempo natildeo os vemos senatildeo atraveacutes das accedilotildees humanas das quais eles podem ser os pontos de aplicaccedilatildeo Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e eacute inabalaacutevel A pintura de Ceacutezanne suspende esses haacutebitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o ho-mem se instala (MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito p 128 131)

Apesar dessas e de tantas outras possiacuteveis convergecircn-cias o caminho aberto e percorrido por Caeiro como veremos eacute peculiar em suas transformaccedilotildees e originalmente conciliatoacuterio em sua potencial plenitude experiecircncias inseparaacuteveis de sua iacutempar existecircncia poeacutetica

II

Sobre o processo de gecircnese de Alberto Caeiro lemos em uma carta de Pessoa destinada a Casais Monteiro

Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Saacute-Carneiro mdash de inventar um poeta bucoacuteli-co de espeacutecie complicada e apresentar-lho jaacute me natildeo lembro como em qualquer espeacute-cie de realidade Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui Num dia em que finalmente desistira mdash foi em 8 de Marccedilo de 1914 mdash acerquei-me de uma coacutemoda alta e tomando um papel comecei a escrever de peacute como escrevo sempre que posso E escrevi trinta e tantos poemas a fio numa espeacutecie de ecircxtase cuja natureza natildeo conseguirei definir Foi o dia triunfal da minha vida e nunca pode-rei ter outro assim Abri com um tiacutetulo O Guar-dador de Rebanhos E o que se seguiu foi o aparecimento de algueacutem em mim a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro Descul-pe-me o absurdo da frase aparecera em mim o meu mestre Foi essa a sensaccedilatildeo imediata que tive E tanto assim que escritos que foram esses trinta e tantos poemas imediatamente peguei noutro papel e escrevi a fio tambeacutem os seis poemas que constituem a Chuva Obliacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

44

qua de Fernando Pessoa Imediatamente e totalmente Foi o regresso de Fernando Pes-soa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele soacute Ou melhor foi a reacccedilatildeo de Fernando Pessoa contra a sua inexistecircncia como Alberto Caeiro (PESSOA Alguma Prosa p 52)

Embora essa versatildeo sobre a criaccedilatildeo do ldquomestrerdquo seja em certa medida colocada em questatildeo por estudos dos manus-critos da obra pessoana1 nem por isso torna-se menos perti-nente consideraacute-la Cientes tambeacutem do apreccedilo de Pessoa pela criaccedilatildeo de mitos a escolha por tal versatildeo e a necessidade de expressaacute-la natildeo parece ser gratuita ela compotildee a histoacuteria de Caeiro (de outros heterocircnimos e do proacuteprio ortocircnimo) e pode contribuir para iluminar aspectos de sua natureza Encontramos nos escritos de Rudolf Lind observaccedilotildees que tambeacutem corrobo-ram com essa abordagem

Natildeo haacute pois na carta uma uacutenica referecircncia aos programas esteacutetico-literaacuterios que original-mente tal como no-lo mostra o espoacutelio apa-drinharam o nascimento dos heteroacutenimos Natildeo nos repugnaria concluir que o poeta manhoso se decidira em 1935 a cultivar consciente-mente a sua proacutepria lenda apresentando-se aos amigos mais jovens como o pai involuntaacute-rio de trecircs personagens poeacuteticas e ocultando propositadamente todas as consideraccedilotildees de ordem teoacuterica e programaacutetica que haviam precedido o nascimento delas (LIND Estudos sobre Fernando Pessoa p 100)

Sem cair no meacuterito de determinar se foi consciente ou natildeo a escolha pessoana por salientar que a primeira tentativa de criaccedilatildeo do mestre heterocircnimo nasceu de uma espeacutecie de brin-cadeira ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo chama-nos aten-ccedilatildeo a sintonia dessa circunstacircncia ndash o jogar remete tambeacutem agrave ingenuidade da infacircncia momento privilegiado para se envolver pela criatividade luacutedica ndash com o caraacuteter tambeacutem luacutedico ingecircnuo e porque natildeo infantil de Alberto Caeiro que insiste em com-parar seu modo de sentir ao de uma crianccedila e diz ldquoNunca fui senatildeo uma crianccedila que brincavardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 94)

1 Conforme Richard Zenith a verdadeira ordem cronoloacutegica da obra caeiriana eacute distinta da ordem estabelecida por Pessoa Assim como o tal dia triunfal em que o poeta portuguecircs diz ter escrito trinta e tantos poemas a fio natildeo existiu da maneira como foi narrada por ele A escrita desses poemas envolveu uma extensatildeo de tempo bem maior ldquoHouve se natildeo um dia um mecircs triunfal ndash marccedilo de 1914 ndash confirmado pelos dados dos manuscritosrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 221)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

45

Configurando sua recusa em crer num Deus abstrato ou carnalmente ausente o poeta ingecircnuo opta inclusive por en-carnar o seu Cristo em uma crianccedila brincalhona e afirma que esse Cristo-crianccedila ldquoA mim ensinou-me tudo Ensinou-me a olhar para as coisasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 29) Longe de qualquer idealizaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo esse deus-crianccedila-encarnado mostra-se absolutamente huma-no e particular em suas atitudes que satildeo enfaticamente infantis

Num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer agrave terra Veio pela encosta de um mon-te Tornando outra vez menino A correr e a rolar pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de lon-ge () Eacute uma crianccedila bonita de riso natural Limpa o nariz ao braccedilo direito Chapinha nas poccedilas de aacutegua Colhe as flores e gosta delas e esquece-as Atira pedras aos burros Rou-ba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos catildees E porque sabe que elas natildeo gostam E que toda gente acha graccedila Cor-re atraacutes das raparigas Que vatildeo em ranchos pelas estradas Com as bilhas agraves cabeccedilas E levanta-lhes as saias (PESSOA Poesia Com-pleta de Alberto Caeiro p 28)

Ainda que em sonho a existecircncia desse deus eacute necessa-riamente vivenciada por Caeiro e mais a relaccedilatildeo direta entre o deus e o poeta eacute estabelecida de forma luacutedica atraveacutes de uma brincadeira ldquoAo anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No de-grau da porta de casa Graves como conveacutem a um deus e a um poetardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 31)

A ingenuidade do olhar infantil livre dos viacutecios do haacutebito e do conhecimento se achega ao mundo de forma aberta sem determinaacute-lo previamente Assim ele eacute capaz de se surpreen-der uma vez que tudo se mostra como novidade diante dessa perspectiva pueril O pasmo advindo de tal olhar seraacute uma das principais caracteriacutesticas cultivadas por Caeiro sobretudo quan-do ele quer explicitar sua forma de sentir o mundo ldquoComo uma crianccedila antes de a ensinarem a ser grande Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvirdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p146) Ademais sua ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p49) ndash meacutetodo absolutamente necessaacuterio para se despir de todas as interferecircn-cias culturais e intelectuais ndash natildeo eacute nada mais que uma forma deliberada de retomar esse contato ingecircnuo e primordial com o mundo Caeiro defende que o seu modo de sentir em certa medida eacute como o de uma crianccedila que acabara de nascer ldquoSei

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

46

ter os pasmo comigo Que tem uma crianccedila se ao nascer Re-parasse que nasceu deverasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 19)

Sabemos que a noccedilatildeo de infacircncia ocupa um lugar privile-giado no universo de Pessoa Natildeo eacute de se estranhar portanto que o seu mestre ateacute nas circunstacircncias de sua gecircnese seja aquele que tem a relaccedilatildeo mais iacutentima com ela2

O projeto de ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo pode ter sido malogrado mas talvez natildeo seja exagero dizer que desse lapso nasceu uma nova partida um jogo entre Pessoa e Caeiro O surgimento deste uacuteltimo natildeo estaacute condicionado a qualquer vontade deliberada O poeta portuguecircs escreve que quando pretendia criar Caeiro apesar de todo o seu esforccedilo este natildeo surgia agrave revelia de sua vontade e como que brincando com sua autonomia o mestre heterocircnimo soacute veio ao mundo quando ele finalmente desistiu de criaacute-lo assumindo ainda personalidade e vida proacuteprias sensivelmente distintas do originalmente planeja-do por seu por assim dizer criador Nesse circuito o jogo entre criador e criatura torna-se ambiacuteguo Para Joseacute Augusto Seabra ldquoas criaturas satildeo aqui criadas por e para a criaccedilatildeordquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 90) Com efeito a pre-senccedila de Caeiro surge imperiosamente e arrebata de tal forma o seu criador que este confessa sentir-se apenas como meio e natildeo senhor dessa criaccedilatildeo Aleacutem de ser completamente tomado por essa presenccedila sem ser capaz de suspendecirc-la manipulaacute-la ou direcionaacute-la Pessoa eacute como que controlado por ela tanto que sente uma espeacutecie de apagamento de sua proacutepria perso-nalidade e a sujeiccedilatildeo de sua autonomia a uma potecircncia maior que em contrapartida o obriga a escrever ndash como ele mesmo o poeta ortocircnimo ndash para que seja possiacutevel o retorno a si

Em Poetas do Atlacircntico a propoacutesito de um possiacutevel para-lelismo entre Pessoa e Wallace Stevens Irene Ramalho Santos escreve sobre a relevacircncia e o caraacuteter da experiecircncia de des-personalizaccedilatildeo dramaacutetica vivida por Pessoa diante da presenccedila de Caeiro

Ambos os textos [a carta a Casais Monteiro sobre a gecircnese da heteroniacutemia de Pessoa e Notes Toward a Supreme Ficiton de Stevens] satildeo representaccedilotildees do modo como um poeta entende sua proacutepria identidade (ou ficccedilatildeo de identidade) enquanto criador original Ambos necessitam da dramatizaccedilatildeo de um outro po-der poeacutetico contra o qual a sua independecircncia

2 Aacutelvaro de Campos tambeacutem escreve sobre o teor infantil da obra de Caeiro ldquoO que realmente recebemos drsquoaquelles versos eacute a sensaccedilatildeo infantil da vida com toda a materialidade directa dos conceitos da infancia e toda espitirualidade vital da esperanccedila e do crescimento que satildeo dos inconscien-te da alma e corpo da infacircnciardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 105)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

47

criativa tem de ser afirmada e avaliada (SAN-TOS Poetas do Atlacircntico p 243)

Enfim mais do que ser arrebatado e submetido Pessoa eacute sobremaneira modificado ainda que tenha voltado a si ele confessa que depois dessa experiecircncia nunca mais foi o mes-mo pois foi transformado recriado pela presenccedila daquele que seraacute entatildeo reconhecido como seu mestre bem como de seus principais heterocircnimos

III

Alberto Caeiro natildeo foi a primeira personalidade a surgir no universo pessoano Entre os principais heterocircnimos ele tambeacutem natildeo eacute o de idade mais avanccedilada ou o de maior longe-vidade natildeo eacute o mais ldquoexperienterdquo nem o mais erudito nunca alcanccedilou publicamente qualquer destaque sua condiccedilatildeo social eacute limitada conheceu poucos lugares teve acesso a pouca ins-truccedilatildeo a estrutura de seus versos pode natildeo parecer muito so-fisticada ao olhar erudito e o teor deles agrave primeira vista eacute de uma simplicidade que beira o pueril Entretanto a despeito de tudo isso ele eacute reconhecido como o mestre por personalidades tatildeo distintas como Aacutelvaro de Campos engenheiro viajado que procurou vivenciar toda sorte de experiecircncias e extrapolaacute-las em sua poesia Ricardo Reis meacutedico ilustrado simpatizante da monarquia e do classicismo grego extremamente cioso da or-dem da vida e de seus versos Antonio Mora personalidade de iacutendole filosoacutefica que passou parte de sua vida em uma espeacutecie de hospiacutecio Fernando Pessoa natildeo somente o criador de Caei-ro mas tambeacutem demiurgo de todo um universo Em vista de todos os pormenores mencionados haacute pouco ndash detalhes que se natildeo fosse pela negativa das condiccedilotildees poderiam justificar a posiccedilatildeo central desse heterocircnimo ndash eacute difiacutecil natildeo se ver envolvido pela questatildeo o que faz de Caeiro o mestre

Em um dos textos de Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro ao refletir sobre as metamorfoses que a influecircn-cia caeiriana operou em Ricardo Reis em Fernando Pessoa em Antocircnio Mora e em si mesmo Aacutelvaro de Campos faz refe-recircncia a uma ldquoreacccedilatildeo agrave Grande Vaccinardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103) Segundo Campos a obra de seu mestre forneceu a Ricardo Reis a sensibilidade que lhe faltava para sua transformaccedilatildeo de um pagatildeo latente em um pagatildeo de fato Foi tambeacutem depois de ler O Guardador de Rebanhos que Reis passou a escrever poemas e ldquoa saber que era organica-mente poetardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Nas palavras do proacuteprio Ricardo Reis

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

48

Quando pela primeira vez estando entatildeo em Portugal ouvir ler O Guardador de Rebanhos tive a maior e a mais perfeita sensaccedilatildeo da mi-nha vida Rolou-se-me de sobre o coraccedilatildeo de repente todo o peso da nossa civilizaccedilatildeo posticcedila todo o peso do cristianismo ativo cuja sombra jaz sobre a nossa alma Respirei outra vez a grandeza a forccedila e a singela perfeiccedilatildeo das grandes emoccedilotildees primitivas que vinha da natureza sem datas das almas (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 65)

Antonio Mora vivia atraacutes de uma verdade sobre a qual pu-desse desdobrar suas especulaccedilotildees filosoacuteficas ldquopassava a vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido () Encontrou Caeiro e encontrou a verdaderdquo (PES-SOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Mora era como um corpo sem alma ateacute que a influecircncia de Caeiro lhe deu uma alma uma motivaccedilatildeo central desde entatildeo ele se dedicou a for-malizar isto eacute construir um sistema filosoacutefico a partir das expe-riecircncias contempladas nas palavras de seu mestre A influecircncia sobre Aacutelvaro de Campos eacute tatildeo intensa que este confessa que antes de conhecer Caeiro natildeo passava de ldquouma machina ner-vosa de natildeo fazer coisa nenhumardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Soacute depois de conhececirc-lo ele passou a ser ele mesmo ldquoE de ahi em deante por mal ou por bem tenho sido eurdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Quando considera a reaccedilatildeo de Pessoa ao seu mestre Campos pare-ce estar sensiacutevel agrave pulverizaccedilatildeo caracteriacutestica da subjetividade pessoana ldquoMais curioso eacute o caso de Fernando Pessoa que natildeo existe propriamente fallandordquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Conforme o poeta-engenheiro Pessoa soacute conseguiu alcanccedilar a proacutepria individualidade atraveacutes dos poe-mas escritos em reaccedilatildeo ao surgimento de Caeiro3 ldquoNum mo-mento num uacutenico momento conseguiu ter sua individualidade ndash a que natildeo tivera antes nem poderaacute tornar a ter porque a natildeo temrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102)

De acordo com a analogia de Campos como uma ldquoGrande Vaccinardquo Caeiro provoca reaccedilotildees transformaccedilotildees na existecircn-cia daqueles que se mostram suscetiacuteveis agrave sua influecircncia Mas qual seria o princiacutepio dessa ldquoGrande Vaccinardquo Aacutelvaro de Cam-pos eacute direto e decisivo ao falar sobre o seu teor trata-se de uma ldquovacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103)

A simplicidade de Caeiro eacute elementar ldquoEle Caeiro natildeo 3 Considerando as palavras de Aacutelvaro de Campos e o relato pesso-ano sobre o episoacutedio da gecircnese de Caeiro podemos depreender que ao anular tatildeo enfaticamente a subjetividade de Pessoa o surgimento de Caeiro mostrou de forma exemplar o que realmente compunha a individualidade do poeta portuguecircs a dispersatildeo a anulaccedilatildeo do eu em prol do outro Condiccedilatildeo nevraacutelgica para a criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da pluralidade heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

49

sabe porque vive mas sabe que o natildeo saberdquo (BERARDINELLI A poesia de Fernando Pessoa p 46) Milecircnios de acumulaccedilatildeo cultural de desenvolvimento intelectual e tecnoloacutegico natildeo ga-rantem necessariamente que o ser humano tenha evoluiacutedo ou mesmo que a evoluccedilatildeo seja algo a almejar Questotildees essenciais e existenciais continuam sem respostas definitivas nenhum ca-minho religioso filosoacutefico ou social trouxe satisfaccedilatildeo ou conhe-cimento plenos e definitivos e a tecnologia jamais foi capaz de alterar de fato o curso da vida ou o Destino do homem Fausto Trageacutedia Subjetiva de Pessoa eacute o emblema radical de todo o esforccedilo em vatildeo do conhecimento Por mais que tenha se empe-nhado em conhecer desenvolver inovar o ser humano nunca deixou de ser aquilo que ele eacute Antes ele parece ter se esque-cido desse fato primordial Filho ou imagem e semelhanccedila de deus animal racional descendente de macacos agrupamento de aacutetomos sujeito homem humano um nome enfim tudo isso na perspectiva caeiriana eacute distraccedilatildeo enfadonha e sem sentido Nenhuma dessas compreensotildees foi capaz de dizer o que de fato somos ou fazer de noacutes mais ou menos do que somos ldquoEs-sas coisas compreendidas soacute com a inteligecircncia nada satildeo e nada valemrdquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 80) Entretan-to envolvido por milecircnios de acumulaccedilatildeo supeacuterflua inteligecircncia estuacutepida facilmente o ser humano se esquiva de sua condiccedilatildeo elementar ele se distrai cogita ser tudo isso se esquece de ser aquilo que ele eacute e confunde aquilo que as coisas satildeo

A recusa de Caeiro em ldquover mais nas coisas que as proacute-prias coisasrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 211) aplica-se igual-mente agrave sua proacutepria condiccedilatildeo No decorrer de sua vida e obra ele procura se despir de toda acumulaccedilatildeo esquecer de tudo aquilo que lhe ensinaram se desvencilhar da noccedilatildeo de homem e se desfazer ateacute de seu proacuteprio nome para afirmar que ele natildeo eacute aquilo que fizeram dele mas sim aquilo que ele verdadeira-mente sente

Procuro despir-me do que aprendi Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-sinaram E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos Desencaixotar as minhas emo-ccedilotildees verdadeiras Desembrulhar-me e ser eu natildeo Alberto Caeiro Mas um animal humano que a natureza produziu E assim escrevo querendo sentir a Natureza nem sequer como um homem Mas como quem sente a Natu-reza e mais nada () Sou o Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-proacuteprio (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 72)

Tudo o que aprendemos pensamos conhecemos nasce

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

50

daquilo que sentimos e posteriormente depois da infacircncia de nossos sentidos tudo isso tambeacutem vem a compor e interferir em nossas sensaccedilotildees Todas as questotildees abstratas ndash sobre o sentido da existecircncia a evoluccedilatildeo do homem o misteacuterio do mundo e da vida ndash nascem dessas sensaccedilotildees corrompidas por pensamentos por isso essas questotildees natildeo tecircm respostas de-finitivas elas natildeo satildeo coisas verdadeiramente sentidas porque natildeo existem como coisas mas apenas como pensamentos abs-tratos das sensaccedilotildees ldquoUma vez mais eacute o pensamento e soacute o pensamento elemento patoloacutegico sempre a insinuar-se que eacute o responsaacutevel pela metafiacutesica do misteacuterio enquanto que para Caeiro o problema nem se chega a porrdquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 97) Caeiro ignora ou melhor ri dessas questotildees abstratas aceitando e por isso esquecendo o jugo do Destino e fruindo aquilo que a Natureza lhe oferece

A obra de Caeiro tem poreacutem e aleacutem drsquoisto um efeito criacutetico Estes versos da sensaccedilatildeo directa contraposta a sua alma aos nossos conceitos sem naturalidade agrave nossa sensa-ccedilatildeo mental artificiosa contabilizada em ga-vetas rasga-nos todos os trapos que temos por fato lava-nos a cara da chimica e o esto-mago dos pharmaceuticos ndash entra pela nossa casa adentro e mostra-nos que uma mesa de madeira eacute madeira madeira madeira e que mesa eacute uma allucinaccedilatildeo necessaacuteria de nossa vontade industrial (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 106)

A criacutetica do mestre heterocircnimo agrave racionalidade desenfre-ada agrave estupidez dos inteligentes agraves abstraccedilotildees desnecessaacute-rias natildeo corresponde simplesmente agrave negaccedilatildeo despropositada essa criacutetica faz parte de um propoacutesito maior a depuraccedilatildeo das sensaccedilotildees

Caeiro apresenta-se antes de mais nada como o poeta das sensaccedilotildees estremes ldquoA sensaccedilatildeo eacute tudo () e o pensamento eacute uma doenccedilardquo ndash diz ele segundo um texto de Pes-soa E este explica que ldquopor sensaccedilatildeo enten-de Caeiro a sensaccedilatildeo das coisas tais como satildeo sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal convenccedilatildeo sentimen-to ou qualquer outro lugar da almardquo Haacute nele em suma uma identificaccedilatildeo das sensaccedilotildees com o seu objeto por uma reduccedilatildeo que se poderaacute dizer fenomenoloacutegica operada atraveacutes da eliminaccedilatildeo de todos os vestiacutegios da sub-jetividade (SEABRA Fernando Pessoa ou o

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

51

poetodrama p 91)Satildeo as sensaccedilotildees verdadeiras que expurgadas de toda

abstraccedilatildeo e interferecircncias nos oferecem a realidade o mundo tal como ele eacute Com o perdatildeo da redundacircncia vir a ser o que Caeiro realmente eacute ou seja se colocar em seu devido lugar envolve sentir verdadeiramente o que ele eacute4 as coisas que ele sente Ao trazer as coisas para o seu lugar proacuteprio mais do que se colocar em seu devido lugar ele traz tambeacutem ldquoao Universo ele-proacutepriordquo Sobre esse movimento da vida e obra caeiriana Ricardo Reis escreve

Ignorante da vida e quase ignorante das letras quase sem conviacutevio nem cultura fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptiacutevel e profundo como aquele que dirige atraveacutes das consciecircncias inconscientes dos homens o de-senvolvimento loacutegico das civilizaccedilotildees Foi um progresso de sensaccedilotildees ou antes de manei-ras de as ter e uma evoluccedilatildeo iacutentima de pensa-mentos derivados de tais sensaccedilotildees progres-sivas Por uma intuiccedilatildeo sobre-humana como aquelas que fundam religiotildees para sempre poreacutem a que natildeo assenta o tiacutetulo de religiosa por isso que como o sol e a chuva repugna toda a religiatildeo e toda a metafiacutesica este ho-mem descobriu o mundo sem pensar nele e criou um conceito de universo que natildeo con-teacutem meras interpretaccedilotildees (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 46)

Provavelmente Caeiro eacute a uacutenica personalidade conscien-temente plena do universo pessoano ele natildeo eacute cindido nem se sente incompleto perdido estrangeiro ou temeroso Todos os paradoxos incoerecircncias e desvios de sua obra podem ser organicamente absorvidos pela compreensatildeo central composta por ela

Caeiro em que todas absolutamente todas as contradiccedilotildees rupturas distacircncias oposiccedilotildees se encontram resolvidas e unificadas Caeiro o mestre da doutrina neopagatilde de que Antoacutenio Mora eacute o filoacutesofo realiza a aspiraccedilatildeo uacuteltima do projecto heteroniacutemco sentir tudo de todas as maneiras atingindo a realidade das coisas sem deformar (GIL O Espaccedilo Interior p 21)

4 A certa altura em um diaacutelogo entre Campos e Caeiro nos depa-ramos com a seguinte conversa ldquo- Diga-me uma cousa O Caeiro o que eacute para si mesmo - O que sou para mim mesmo repetiu Caeiro ndash Sou uma sensaccedilatildeo minhardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 100)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

52

Talvez seja por isso tambeacutem que a duraccedilatildeo de sua vida foi tatildeo curta ele natildeo tinha necessidade de viver mais para estar re-alizado Nenhum de seus disciacutepulos consciente ou inconscien-temente assumiu integralmente as suas ideacuteias nem era essa a sua pretensatildeo ldquoCaeiro natildeo espera que os demais heterocircnimos sejam ldquonaturaisrdquo como ele mas que captando-lhe a ldquonaturali-daderdquo busquem construir a poesia que a sua visatildeo do mundo suscitardquo (MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge p 158) Mais do que sua ldquodoutrinardquo das sensaccedilotildees verdadeiras o que parece fazer dele o mestre eacute o seu exemplo de plenitude5 sua capacidade de saber reconhecer e ser exatamente aquilo que ele eacute ldquoEacute a minha descoberta de todos os dias Cada coisa eacute o que eacute E eacute difiacutecil explicar a algueacutem quanto isso me alegra E quanto isso me basta Basta existir para ser completordquo (PES-SOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 91) Sobre a maes-tria de Cairo Octavio Paz escreve

Alberto Caeiro eacute meu mestre Esta afirmaccedilatildeo eacute a pedra de toque de tocircda a sua obra E po-deria acrescentar-se que a obra de Caeiro eacute a uacutenica afirmaccedilatildeo feita por Pessoa Caeiro eacute o sol e em tocircrno decircle giram Reis Campos e o proacuteprio Pessoa Em todos ecircles haacute partiacutecu-las de negaccedilatildeo ou de irrealidade Reis acre-dita na forma Campos na sensaccedilatildeo Pessoa nos siacutembolos Caeiro natildeo acredita em nada existe () Caeiro eacute tudo o que Pessoa natildeo eacute e aleacutem disso tudo o que nenhum poeta mo-derno pode ser o homem reconciliado com a natureza Antes do cristianismo sim mas tam-beacutem antes do trabalho e da histoacuteria Caeiro nega pelo mero fato de existir natildeo somente a esteacutetica simbolista de Pessoa como tocircdas as esteacuteticas todos os valores tocircdas as ideacuteias Natildeo fica nada Fica tudo limpo todos os fan-tasmas e teias de aranha da cultura (PAZ Signos em Rotaccedilatildeo p 209)

Na obra do Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras trans-formar a forma de sentir implicaraacute necessariamente em trans-formar a forma de pensar O tiacutetulo do seu primeiro livro de poe-mas O Guardador de Rebanhos pode ser visto tambeacutem como

5 Sobre o efeito provocado por Caeiro Reis escreve ldquo[Caeiro] foi para mim como viraacute a ser para mais que muitos o revelador da Realidade ou como ele mesmo disse lsquoo Argonauta das sensaccedilotildees verdadeirarsquo ndash o grande Libertador que nos restituiu cantando ao nada luminoso que somos que nos arrancou agrave morte e agrave vida deixando-nos entre simples coisas que nada conhecem em seu decurso de viver nem de morrer que nos livrou da es-peranccedila e da desesperanccedila para que nos natildeo consolemos sem razatildeo nem nos entristeccedilamos sem causa convivas com ele sem pensar da realidade objectiva do Universordquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 74)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

53

uma referecircncia expliacutecita ao seu labor ldquoSou um guardador de rebanhosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) Entretanto curiosamente no verso inaugural desse livro Caeiro afirma ldquoEu nunca guardei rebanhos Mas eacute como se os guardasserdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 16) Ele nunca guardou de fato rebanhos pois seu rebanho eacute de uma ordem diferente do habitual rebanho animal ldquoO rebanho eacute os meus pensamentosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) escreve o poeta e eacute como se ele os guardasse pois esses pensamentos tambeacutem satildeo de uma ordem diferen-te da habitual abstraccedilatildeo intelectual e devem ser resguardados desta influecircncia Ele completa ldquoos meus pensamentos satildeo to-dos sensaccedilotildeesrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34)

Os sentidos ocupam um lugar privilegiado nos poemas de Caeiro Enquanto as experiecircncias sensoriais satildeo consideradas a forma espontacircnea e direta de contato com os fenocircmenos o pensar eacute visto como uma abstraccedilatildeo destes uma deturpaccedilatildeo das sensaccedilotildees Contudo nem por isso o pensar eacute deixado de lado6 nem essa espontaneidade sensorial eacute alcanccedilada de for-ma espontacircnea ldquoO que Caeiro tenta rejeitar repetidamente natildeo eacute o pensamento in toto mas sim o uso especulativo e transcen-dental do pensamentordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 19) Suas ldquosensaccedilotildees verdadeirasrdquo natildeo satildeo meras sensaccedilotildees Alcanccedilaacute-las exige a depuraccedilatildeo dos senti-dos tarefa que envolve a reflexatildeo criacutetica sobre o conhecimento sobre a proacutepria reflexatildeo e sobre as influecircncias que podem mar-car as sensaccedilotildees a redefiniccedilatildeo da subjetividade ou melhor do eu a reconstruccedilatildeo da relaccedilatildeo desse eu com os fenocircmenos e por fim uma nova compreensatildeo do Universo Essas transfor-maccedilotildees natildeo excluem o exerciacutecio do pensar poreacutem assim como as sensaccedilotildees natildeo satildeo meras sensaccedilotildees no horizonte caeiria-no a forma de pensar natildeo corresponde agraves formas habituais do pensamento Trata-se de um pensamento capaz de suspender--se em prol das sensaccedilotildees por isso o mestre pode dizer ldquopen-so nisto natildeo como quem pensa mas como quem natildeo pensardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 62)

Como um guardador de rebanhos nosso poeta pastor in-terveacutem no movimento de seus pensamentos para garantir que eles natildeo se percam em abstraccedilotildees seu esforccedilo consiste em conduzi-los agrave sua condiccedilatildeo primeira promover o seu enlace com o sentir ldquoSoacute atraveacutes da absorccedilatildeo do pensamento pelas

6 Ao comparar a experiecircncia Zen agrave caeiriana Leyla Perrone-Moiseacutes tambeacutem diz que o mestre heterocircnimo natildeo nega absolutamente o pensar ldquonem o Zen nem Caeiro ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial pretendem que o homem deva ser soacute instintos O proacuteprio do animal humano eacute ter essa mente-corpo capaz de um conhe-cimento que eacute ao mesmo tempo fiacutesico e ldquoespiritualrdquo O que se nega aiacute eacute o pensamento analiacutetico e o que se exalta eacute um pensamento sinteacutetico tambeacutem exclusivo do homemrdquo (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 124)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

54

sensaccedilotildees se pode realizar sua identificaccedilatildeo muacutetua exterior agraves sensaccedilotildees o pensamento eacute uma excrescecircncia se natildeo um viacuterus corruptor que chega por vezes a perturbar a sauacutede do poeta pondo em causa a sua ldquoobjetividaderdquordquo (SEABRA Fernando Pes-soa ou o poetodrama p 92) O pensamento nasce das sensa-ccedilotildees e torna-se abstrato quando se afasta ou tenta suplantaacute-las

Marcada enfaticamente pela criacutetica agraves interferecircncias das abstraccedilotildees do pensamento sobre a vida a obra de Caeiro insis-te em uma volta agraves coisas mesmas atraveacutes das sensaccedilotildees ou melhor ao cabo de todo um processo de depuraccedilatildeo dos senti-dos natildeo haveraacute diferenccedila entre o sentir e as coisas mesmas Em um movimento de pura coincidecircncia as sensaccedilotildees seratildeo as coisas mesmas Esse percurso seraacute marcado por uma espeacutecie de fenomenologia das sensaccedilotildees jogo em que o proacuteprio sentir se transforma em objeto dos sentidos Seraacute sobretudo atraveacutes desse recurso que nosso poeta poderaacute depurar o sentir dis-tinguindo-o do pensar abstrato dos conhecimentos adquiridos das interferecircncias sociais culturais e enfim do haacutebito infiltrado na experiecircncia sensiacutevel

As coisas satildeo brutalmente reais objecto puro renitentes a qualquer subjectivaccedilatildeo ou interio-rizaccedilatildeo absolutamente impenetraacuteveis porque satildeo o que parecem ser sem profundidade sem logos simples como a pura superfiacutecie De si as coisas satildeo singulares e se lhes atri-buo complexificaccedilotildees ou mistificaccedilotildees estou a transferir para elas caracteriacutesticas dos meus esquemas mentais As categorias e esquemas aprioriacutesticos da mente natildeo me datildeo a coisa mas um resultado irreal sem objectividade ou melhor se alguma objectividade tecircm eacute ape-nas enquanto ficccedilatildeo que me imponho a mim proacuteprio por me ser uacutetil e agradaacutevel na condu-ccedilatildeo da vida (COELHO A P Os fundamen-tos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa p 289)

A missatildeo envolvida na ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo consistiraacute portanto em identificar o alcance das influecircncias e dos conhecimentos adquiridos para deixaacute-los de lado desa-prendecirc-los em prol de um contato ingecircnuo com mundo Aleacutem de realccedilar as sensaccedilotildees atraveacutes da anulaccedilatildeo de seu alcance abs-trato o pensamento nesse processo de aprender a desapren-der seraacute exercido tambeacutem em sua funccedilatildeo criacutetica auxiliando na depuraccedilatildeo do sentir

O empenho em despir as coisas para experimentaacute-las tal como elas satildeo em promover um retorno agraves coisas mesmas e em arrebanhar os pensamentos que se perderam em abstra-ccedilotildees como podemos constatar envolve tambeacutem uma criacutetica agrave

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

55

filosofia sobretudo ao movimento da metafiacutesica e agrave valorizaccedilatildeo do intelecto Contudo por mais que Caeiro critique a filosofia e se recuse a ser classificado como materialista7 ou representante de qualquer outro movimento as experiecircncias promovidas por sua poesia apresentam ldquopertinecircncia ou consequumlecircncia filosoacutefi-casrdquo (MARTINS O erro da filosofia p 250) Como uma ldquogrande vacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo a obra de Caeiro nos leva a questionar de forma radical o papel ocupado pelo intelecto e o valor de suas aquisiccedilotildees Sem que essa criacutetica se esgote em uma simples negaccedilatildeo dessa faculdade como um pastor ele conduziraacute tal exerciacutecio do pensar ao lugar que lhe eacute proacuteprio

A simplicidade de Caeiro estaacute longe de ser equivalente agrave ingenuidade pueril Essa frase pode parecer desconcertante aos olhos de quem leu sobretudo no iniacutecio deste ensaio insis-tentes correlaccedilotildees entre o iacutempeto da crianccedila e o temperamento do poeta Natildeo obstante as inocecircncias infantil e a caeiriana se-rem comparaacuteveis em diversos aspectos um fator as diferen-cia radicalmente a saber a ingenuidade do mestre poeta natildeo eacute nada ingecircnua Muito pelo contraacuterio enquanto a simplicidade infantil deriva da condiccedilatildeo primaacuteria do desenvolvimento ainda latente da crianccedila a simplicidade de Caeiro eacute fruto de um pro-cesso sofisticado de maturaccedilatildeo que envolve a supressatildeo de todo acuacutemulo intelectual e uma espeacutecie de depuraccedilatildeo do sentir enfim o aprender a desaprender Atraveacutes das observaccedilotildees de um mestre Zen Leyla Perrone-Moiseacutes fala sobre esse percurso caeiriano

Um mestre Zen deixou a consignaccedilatildeo seguin-te ldquoAntes de me tornar esclarecido os rios eram rios e as montanhas eram montanhas Quando comecei a tornar-me esclarecido os rios jaacute natildeo eram rios e as montanhas jaacute natildeo eram montanhas Agora depois que me tornei esclarecido os rios voltaram a ser rios e as

7 Conforme Benedito Nunes ldquoAlberto Caeiro que desconhece o pro-blema da substacircncia estaacute longe do materialismo por ecircle reputado muito estuacutepido ndash ldquocoisa de padres sem religiatildeo e portanto sem desculpa nenhumardquo A mateacuteria eacute uma abstraccedilatildeo Soacute eacute real o que vemos Sensualismo Natildeo Se o naturalismo abstrai os secircres em proveito do conjunto do todo que eacute a Natu-reza o sensualismo natildeo menos abstrato tudo reduz a elementos sensiacuteveis a impressotildees-aacutetomos desfigurando as sensaccedilotildees cada uma das quais de-ferente das outras eacute nova se sabemos sentirrdquo (NUNES B O dorso do tigre p 220) Jaacute sobre uma possiacutevel identificaccedilatildeo de Caeiro com a fenomenologia husserliana Luiz de Oliveira e Silva escreve ldquoCaeiro no entanto e este facto divorcia-o completamente da fenomenologia contemporacircnea natildeo tem nenhum interesse em desvelar ldquoum significado imanente ao fenocircmeno e in-corporado nelerdquo Ainda que ele possa parecer ao observador desatento como um partidaacuterio veemente do slogan de Husserl ldquoZu den Sachen selbstrdquo na ver-dade o significado que ele reclama natildeo eacute senatildeo uma ausecircncia de significadordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 22)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

56

montanhas voltaram a ser montanhasrdquo Eis--nos jaacute proacuteximos das constataccedilotildees de Caei-ro (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 118)

A trajetoacuteria da simplicidade caeiriana natildeo apenas estaacute mui-to aleacutem da compreensatildeo imatura de uma crianccedila como ultra-passa tambeacutem a compreensatildeo do homem civilizado8 que ainda se encontra ancorado em camadas de conhecimentos deriva-dos de experiecircncias indiretas

8 Joseacute Gil tambeacutem escreve sobre a maturidade caeiriana ldquoA obra de Caeiro encontra-se como o olhar do primeiro homem mas apoacutes a construccedilatildeo e a destruiccedilatildeo das civilizaccedilotildees que se sucederam na Europardquo (GIL Diferen-ccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pessoa p 17)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

57

BIBLIOGRAFIA

Escritos de Fernando Pessoa

__ Alguma Prosa 5ordf ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990

__ Fausto ndash Trageacutedia Subjetiva Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991

__ F Pessoa ndash Escritos autobiograacuteficos automaacuteticos e de reflexatildeo pessoal Satildeo Paulo A Girafa 2006

__ Obras de Antoacutenio Mora vol VI Ediccedilatildeo criacutetica por Luiacutes Filipe Texeira Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2002

__ Paacuteginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Tex-tos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1966

__ Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lisboa Estampa 1990

__ Poemas Completos de Alberto Caeiro Lisboa Presen-ccedila 1994

__ Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2005

__ Poesias Fernando Pessoa Lisboa Aacutetica 1995

__ Poemas de Ricardo Reis Ediccedilatildeo Criacutetica de Luiz Fagun-des Duarte Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 1994

__ Prosa de Aacutelvaro de Campos Lisboa Aacutetica 2012

__ Ricardo Reis ndash Poesia Completa Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2000

__ Ricardo Reis Prosa Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

__ Textos filosoacuteficos 2 vols Textos estabelecidos e prefa-ciados por Antocircnio de Pina Coelho Lisboa Nova Aacutetica 2006

__ Textos Filosoacuteficos Vol II Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio de Pina Coelho Lisboa Aacutetica 1968

Escritos sobre Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

58

BERARDINELLI C HUumlHNE L PEGORARO O Fernan-do Pessoa e Martin Heidegger ndash O Poetar Pensante Rio de Janeiro UAPEcirc 1994

COELHO A Pina Os fundamentos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa 2 vols Lisboa Editorial Verbo 1971

GIL J Diferenccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pes-soa Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

__ O Espaccedilo Interior Lisboa Editora Presenccedila 1994

LIND R Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 1981

MANN T Carlota em Weimar Rio de Janeiro Editora Nova Fronteira 1984

MARTINS O erro da filosofia In Poesia completa de Al-berto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito 1ordf ed Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina Galvatildeo Gomes Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge 3ordf ed Satildeo Paulo Cultrix 2009

NUNES B O dorso do tigre Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1969

__ ldquoPoesia e filosofia na obra de Fernando Pessoardquo In 4 Revista ColoacutequioLetras Ensaio nordm 20 Jul 1974 p 22-34

NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003

PAZ O Signos em Rotaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1976

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

__ ldquoPensar eacute estar doente dos olhosrdquo In Novaes Adauto (org) O olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

SAacute-CARNEIRO M Correspondecircncia com Fernando Pes-soa Satildeo Paulo Cia das Letras 2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

59

__ Obras completas Cartas a F P edit Por Urbano Tava-res Rodrigues 2 volumes Lisboa 1958

SANTOS I R Poetas do Atlacircntico ndash Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano Belo Horizonte UFMG 2007

SEABRA J A Fernando Pessoa ou o poetodrama 2ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1991

__ O Coraccedilatildeo do Texto - Novos ensaios pessoanos Lis-boa Ediccedilotildees Cosmo 1996

__ O Heterotexto Pessoano Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1988

SILVA L O Materialismo idealista de Fernando Pessoa Lisboa Claacutessica Editora 1985

ZENITH Caeiro Triunfal In Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

60

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisFernando Pessoa Friedrich Schlegel and Novalis

Palavras-chave Fernando Pessoa ndash literatura ndash romantismo alematildeoKeywords Fernando Pessoa - literature - German Romanticism

RESUMO Pretendemos neste artigo aproximar aspectos da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana da filosofia do primeiro romantismo alematildeo Fernando Pessoa foi leitor do romantismo alematildeo Em sua biblioteca particular encontramos livros que comprovam esse fato Para aleacutem deste aspecto haacute uma consonacircncia entre a filosofia do primeiro romantismo alematildeo e o espaccedilo artiacutestico e muacuteltiplo da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana

ABSTRACT We intend in this article to approach aspects of Pessoarsquos literary creation and the philosophy of the first German Romanticism Fernando Pessoa was a reader of the German romanticism In his private library one finds books that prove this fact Furthermore there is an affinity between the philosophy of the first German Romanticism and the Pessoarsquos artistic and mul-tiple space of literary creation

ldquoO mundo eacute um indiviacuteduo potencializado assim como o indiviacuteduo natildeo passa de um

universo condensado1rdquo Maacutercio Suzuki

ldquoSecirc plural como o universordquo Fernando Pessoa

Pretendo aproximar neste artigo alguns aspectos da obra pessoana dando especial ecircnfase para o projeto do desassos-sego e ao desdobramento pessoano do pensamento filosoacutefico dos primeiros romacircnticos alematildees sobretudo dos escritos dei-xados por Friedrich Schlegel2 e Novalis

Fernando Pessoa poeta e criador de heterocircnimos foi tam-beacutem um leitor voraz a anaacutelise dos documentos do seu espoacutelio e

Financiamento da Fapesp (proc nordm 201516698-2)

1 SUZUKI 1998 p1332 Neste trabalho fazemos referecircncia ao filoacutesofo Friedrich Schlegel e em nenhum momento citamos a obra e o pensamento do seu irmatildeo August Schlegel Sendo assim a utilizaccedilatildeo do sobrenome Schlegel indica referecircncia apenas agrave obra e pensamento de Friedrich Schlegel

Claacuteudia Souza(USPFAPESP)

Doutora em Literaturas de Liacutengua Portuguesa ndash PUC--MG Poacutes-Doc em FIlosofia ndash USP

claudiasouzzzahotmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

61

da sua biblioteca particular satildeo comprovaccedilotildees deste fato Entre essas muitas leituras destacamos algumas relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho Em sua biblioteca particu-lar constam um livro de Novalis Les disciples agrave Sais et Les fragments3 curiosamente traduzido por Maeterlink4 e outro livro intitulado The literature of Germany5 onde existe um capiacutetulo sobre o romantismo alematildeo A presenccedila destes dois livros no espoacutelio pessoano nos revela que Pessoa se interessou pelo ro-mantismo alematildeo Para aleacutem destes indiacutecios encontramos re-ferecircncia a Schlegel e a Novalis em outros escritos pessoanos

Para fazer uma anaacutelise do primeiro escrito selecionado no qual haacute referecircncia ao romantismo alematildeo eacute preciso antes es-clarecer quem eacute o autor deste texto Trata-se de uma persona-lidade pessoana cujo nome eacute Antoacutenio Mora Mora aparece pela primeira vez num projeto pessoano intitulado Na casa de sauacutede de Cascaes como o proacuteprio nome indica trata-se de um livro - que natildeo chegou a ser publicado - sobre uma casa de tratamento psiquiaacutetrico Antoacutenio Mora neste projeto exerce o papel de um dos doentes como podemos constatar na seguinte passagem

O mais interessante poreacutem eacute o Antoacutenio Mora Eacute pelo menos o mais original de todos

- O mais original- Sim pessoalmente original como pessoa natildeo clinicamen-

te original Clinicamente natildeo se afasta em nada do typo de paranoico ou da marcha conhecida da paranoia Eacute verdade que natildeo eacute simplesmente um paranoico Eacute tambeacutem um hyste-rico Mas a paranoia eacute as vezes acompanhada de uma psy-chonevrose intercorrente Natildeo ha que extranhar Nada ha ahi de exquisito Natildeo eacute nisto que elle eacute original Eacute na especie do seu delirio no conteudo que estaacute todo o interesse E natildeo te digo mais nadaVeraacutesE dispotildee-te para gastares tempo com elle porque vaes ver ficas interessadiacutessimo

-Veremos- Garanto-te Natildeo seraacute preciso apontar-trsquoo Conhecel-o logo

pela toga- A toga O quecirc O typo anda de toga Mas isso tem qual-

quer cousa que vecircr com o delirio- Veraacutes meu velho veraacutesNatildeo quero te dizer nada Natildeo

quero te tirar o interesse aacute surpreza6

Mais tarde Antoacutenio Mora exerceraacute um importante papel no 3 NOVALIS Friedrich von Hardenberg Les disciples agrave Sais et Les fragments de Novalis traduits de lrsquoallemand et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction par Maurice Maeterlinck - Paris - Bruxelles Paul Lacomblez 19144 Pessoa foi muito influenciado pelo teatro simbolista de Maeterlink Em seus projetos do Teatro estaacutetico encontramos referecircncias ao dramatur-go belga (Cf PESSOA 2010)5 ROBERTSON J G The literature of Germany - London Williams and Norgate - New York Henry Holt and Company [19]6 [BNPE3-2719-B3-4]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

62

diaacutelogo entre Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos e Ricardo Reis Num primeiro momento Mora eacute personagem de um romance e depois se transforma em autor de textos Assim como Reis Campos e Caeiro ele faraacute parte da composiccedilatildeo deste drama em gente7 pessoano sendo influecircnciado por Alberto Caeiro como podemos constatar no seguinte trecho

O Antonio Mora era uma sombra de veleidades especu-lativas Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido Indeciso como todos os fortes natildeo tinha encontrado a verdade ou o que para elle fosse verdade o que para mim eacute o mesmo Encontrou Caeiro e encontrou a verdade O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que elle natildeo tinha poz dentro do Mora peripherico que elle sempre tinha sido um Mora central E o resulatdo foi a reduc-ccedilatildeo a systema e a verdade logica dos pensamentos insticti-vos de Caeiro O resultado triumphal foi esses dois tratados maravilhas de originalidade e de pensamento O Regresso dos Deuses e os Prolegomenos a uma Reformaccedilatildeo do Pa-ganismo8

Neste trecho percebemos a relaccedilatildeo entre Mora e a filosofia passava a vida a mastigar Kant Essa personalidade escreveu em prosa e formava ao lado de Pessoa Reis e Caeiro um con-traponto com Campos como podemos constatar em outro tre-cho de um projeto inacabado intitulado Notas para a recordaccedilatildeo do meu Mestre Caeiro assinado por Aacutelvaro de Campos

Maravilho-me da doutrina de Antonio Mora e discordo drsquoella com

7 Em Dezembro de 1928 no nuacutemero 17 da revista Presenccedila foi pu-blicada a taacutebua bibliograacutefica pessoana e neste texto Pessoa afirma que a elaboraccedilatildeo da obra dos seus heterocircnimos (Alberto Caeiro Ricardo Reis e Aacutelvaro de Campos) constituiu um drama em gente em vez de um drama em actos como atesta a seguinte passagem ldquoAs obras destes trecircs poetas for-mam como se disse um conjunto dramaacutetico e estaacute devidamente estudada a entreacccedilatildeo intelectual das personalidades assim como as suas proacuteprias relaccedilotildees pessoais Tudo isto constaraacute de biografias a fazer acompanhadas quando se publiquem de horoacutescopos e talvez de fotografias Eacute um drama em gente em vez de em actos (Se estas trecircs individualidades satildeo mais ou menos reais que o proacuteprio Fernando Pessoa mdash eacute problema metafiacutesico que este ausente do segredo dos Deuses e ignorando portanto o que seja reali-dade nunca poderaacute resolverrdquo) PESSOA 2000 p404 Podemos assegurar a participaccedilatildeo de Antoacutenio Mora neste drama em gente baseados na afirmaccedilatildeo do proacuteprio Pessoa no seguinte trecho que faria parte de uma obra intitulada Aspectos ldquoEsse Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador phi-losophico Os dois discipulos Ricardo Reis e Alvaro de Campos seguiram caminhos differentes tendo o primeiro intensificado e tornado orthodoxo o paganismo descoberto por Caeiro e o segundo baseando-se em outra parte da obra de Caeiro desenvolvido por um sytema inteiramente differente e baseado inteiramente nas sensaccedilotildees O continuador philosophico Antonio Moacutera (os nomes satildeo tatildeo inevitaacuteveis tatildeo impostos de foacutera como as persona-lidades) tem um ou dois livros a escrever onde provaraacute completamente a verdade metaphysica e practica do paganismo()rdquo [BNPE3-20-70 a 72]8 [BNPE3-71A-24 a 26]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

63

um gesto delicado de afastamento O mal drsquoestes homens todos ndash o do Ricardo Reis do Antonio Mora do Fernando Pessoa sim por-

que sinto outside idolatry do meu mestre Caeiro tambeacutem ndash eacute que so veem a realidade Diversamente todos a veem com clareza todos

satildeo objectivistas ateacute Fernando Pessoa Mas eu natildeo vejo a realidade ndash palpo-a Por isso elles satildeo mais ou menos declaradamente poly-

theistas e eu sou monotheista9 ()

Esse fragmento mostra como Mora participava do diaacutelogo en-tre Caeiro Campos e Reis Apesar de natildeo ter uma biografia consolidada como os demais (Caeiro Campos e Reis) cum-pria um papel importante na construccedilatildeo deste drama-em gente Num escrito sobre a questatildeo do paganismo que como vimos eacute um dos projetos do Antoacutenio Mora ele comenta sobre o roman-tismo alematildeo

Com o romantismo alematildeo propriamente dito o dos Schlegel de Tieck e de Novalis entra a literatura germacircnica uma decadecircncia

referindo-nos por comparaccedilatildeo agrave precedente literatura de Schiller e de Goethe se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na

sua utilizaccedilatildeo do que admirava no paganismo10

Neste texto Mora discorre sobre os efeitos do cristianismo e do paganismo no progresso da civilizaccedilatildeo A referecircncia ao ro-mantismo alematildeo eacute importante porque revela os efeitos da per-sona critica pessoana em sua produccedilatildeo literaacuteria Outro aspecto relevante que aproxima Pessoa dos primeiros romanticos eacute a anaacutelise que ambos fazem da obra de Goethe Reflexotildees sobre a obra de Goethe estatildeo presentes em vaacuterios fragmentos do es-poacutelio assim como em diversos fragmentos de Schlegel e Nova-lis A criacutetica de Mora ao romantismo alematildeo parece ter relaccedilatildeo com uma subjetividade excessiva presente no romantismo de acordo com essa personalidade pessoana Essa subjetividade que seria responsaacutevel pela decadecircncia da literatura germacircni-ca Mora como defensor da construccedilatildeo de um novo paganismo preza pela objetividade rejeitando uma interiorizaccedilatildeo excessiva do indiviacuteduo que consequentemente afastaria o mesmo da ex-periecircncia pagatilde

Em outro texto intitulado O Provicianismo Portuguecircs de 1928 eacute Pessoa quem faz referecircncia ao romantismo alematildeo citando uma frase de Novalis

Para o provincianismo haacute soacute uma terapecircutica eacute o saber que ele existe O provincianismo vive da inconsciecircncia de nos supormos civilizados quando natildeo o somos de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades que o natildeo somos O princiacutepio da cura estaacute na consciecircncia da doenccedila o da ver-

9 [BNPE3-71ordf-27]10 [BNPE3-121-71]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

64

dade no conhecimento do erro Quando um doido sabe que estaacute doido jaacute natildeo eacute doido Estamos perto de acordar disse Novalis quando sonhamos que sonhamos (PESSOA 2000 p373)

A referecircncia a Novalis demonstra o interesse pessoano pela obra deste autor Essa frase de Novalis foi lida e sublinhada por Pessoa no jaacute referido livro presente em sua biblioteca particular Les disciples agrave Sais et Les fragments

Nous sommes pregraves du reacuteveil quand nous recircvons que nous recircvons11

Eacute relevante tambeacutem ressaltar a afirmaccedilatildeo pessoana tambeacutem presente neste trecho do texto O provincianismo portuguecircs - eacute na incapacidade de ironia que reside o traccedilo mais fundo do pro-vincianismo mental - justamente a ironia elemento tatildeo importan-te na obra dos primeiros romacircnticos alematildees Parece que em 1928 ano da publicaccedilatildeo do texto pessoano aqui trabalhado o autor portuguecircs estava em consonacircncia com alguns aspectos da filosofia do primeiro romantismo alematildeo

Aleacutem das evidecircncias aqui demonstradas que aproximam de alguma maneira Pessoa de F Schlegel e de Novalis mostrare-mos a seguir como o projeto do desassossego pessoano dia-loga com alguns fragmentos deixados por Schlegel e Novalis

O Livro do Desassossego permaneceu como projeto durante a vida de Fernando Pessoa Antes de 1935 somente alguns trechos deste projeto foram publicados A aproximaccedilatildeo deste projeto pessoano com o pensamento de Schlegel e de Novalis pode ser realizada atraveacutes do desdobramento pessoano que faz parte da elaboraccedilatildeo deste livro

A noccedilatildeo de gecircnio como uma coletividade interior desenvolvi-da por Schlegel parece estar em consonacircncia com a tessitura da esteacutetica do Desassossego O projeto do Desassossego ao longo da sua elaboraccedilatildeo recebeu a assinatura de trecircs autores numa primeira fase Fernando Pessoa assinou os fragmentos do Livro do Desassossego como podemos averiguar nesta lis-ta escrita talvez em 1914

Biblioteca da EuropaMario de Saacute-Carneiro Ceacuteu em focircgoAntoacutenio Ponce de Leatildeo A Venda

11 NOVALIS 1914 p77 Traduccedilatildeo nossa Estamos perto de acordar quando sonhamos que sonhamos Rubens Rodrigues Torres Filho em sua ediccedilatildeo Poacutelen Novalis traduz este trecho de outra forma Estamos proacuteximos do despertar quando sonhamos que sonhamos (NOVALIS 2009 p43)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

65

Fernando Pessoa Livro do Desasocego

Theatro estatico12

Na fase seguinte Pessoa passa o livro para as matildeos de Vicen-te Guedes como podemos confirmar nesta lista

Na Casa de saude de Cascaes inclui1) Introduccedilatildeo entrevista com Antonio Mora2) Alberto Caeiro3) Ricardo Reis4) ldquoProlegoacutemenosrdquo de Antoacutenio Mora5) Fragmentos

_______________________________________________

Vida e obras do engenheiro Alvaro de Campos_______________________________________________

Livro do Desassocegoescripto por Vicente Guedes publicado por

Fernando Pessoa13

12 [BNPE3-68ordf-3]13 [BNPE3-5-83]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

66

Vicente Guedes foi uma personagem literaacuteria pessoana que natildeo chegou a se constituir como heterocircnimo Essa personalida-de assumiu diversas tarefas no laboratoacuterio literaacuterio de Pessoa foi contista tradutor e responsaacutevel pelo projeto do Desassosse-go durante a segunda fase da elaboraccedilatildeo deste Outro aspecto importante deste documento eacute a referecircncia ao nome de Antoacutenio Mora Esse fato mostra como o espoacutelio pessoano funcionou e ainda funciona como um laboratoacuterio de experimentaccedilatildeo onde as substacircncias ou seja nomes e projetos se misturam se en-contram

Na terceira e uacuteltima fase da escrita do Desassossego Fernan-do Pessoa entregou o projeto a outra personalidade Bernardo Soares o ajudante de guarda livros da cidade de Lisboa como podemos contatar neste documento

Do ldquoLivro do Desasocegocomposto por BernardoSoares ajudante de guarda-Livros na cidade de LisboardquoporFernando Pessoa

Podemos assim dizer que Pessoa se constituiu em uma pes-soa genuinamente sinteacutetica como diriam os primeiros romacircnti-cos ldquoO gecircnio diz Schlegel eacute uma coletividade interior uma co-munidade interna legalmente livre de muitos talentos ou como diz Novalis uma pessoa genuinamente sinteacutetica que eacute ao mes-mo tempo mais pessoasrdquo (SUZUKI 1998 p 235) E podemos constatar esse fato natildeo somente no projeto do Desassossego como tambeacutem na proacutepria constituiccedilatildeo da personalidade literaacuteria Antoacutenio Mora

No que diz respeito a escrita do projeto do Desassossego o problema da autoria ainda se coloca cada editor deste livro ao organizar os fragmentos para a publicaccedilatildeo torna-se de alguma forma autor participando do desdobramento pessoano

Depois da anaacutelise de todos os documentos pessoanos aqui apresentados podemos concluir que existe um forte e comple-xo diaacutelogo entre a literatura pessoana e o romantismo alematildeo O interesse de Pessoa pela filosofia do primeiro romantismo alematildeo acabou transbordando em seu espaccedilo artiacutestico dimi-nuindo de alguma forma as fronteiras entre poesia (no sentido mais amplo do termo) e filosofia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

67

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN Walter O conceito de criacutetica de arte no Romantis-mo alematildeo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Seligman-n-Silva Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1999

BORGES Paulo Teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu Estudos e ensaios pessoanos Lisboa Verbo 2011

LACOUE-LABARTHE Philippe NANCY Jean-Luc ldquoA exigecircn-cia fragmentaacuteriardquo Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Joatildeo Camillo Pen-na In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-gradua-ccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp67-94

NOVALIS Friedrich von Hardenberg Poacutelen - Fragmentos diaacute-logo monoacutelogo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Rubens Rodri-gues Torres Filho Satildeo Paulo Editora Iluminuras 2009

PESSOA Fernando Criacutetica ndash Ensaios Artigos e Entrevistas Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2000

PESSOA Fernando Livro do Desasocego Tomos I e II Edi-ccedilatildeo de Jerocircnimo Pizarro Lisboa INCM 2010 p43

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Bernardo Soares Recolha e transcriccedilatildeo dos textos Maria Aliete Galhoz Teresa Sobral Cunha prefaacutecio e organizaccedilatildeo Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Vicente Gue-des e Bernardo Soares Volume I e II Organizaccedilatildeo e notas de Teresa Sobral Cunha Lisboa Editorial Presenccedila 1990

RIBEIRO Nuno ldquoFernando Pessoa leitor de Novalis e o pro-blema da heteroniacutemiardquo Revista Scripta Belo Horizonte PU-CMG v16 pp56-68 2012

RIBEIRO Nuno (ed) Fernando Pessoa Philosophical Es-says A critical edition New York Contra Mundum Press 2012

SCHLEGEL Friedrich O dialeto dos fragmentos Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Suzuki Satildeo Paulo Editora Ilumi-nuras 1997

SELIGMANN-SILVA Maacutercio ldquoFriedrich Schlegel e Novalis poesia e filosofiardquo In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-graduaccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp95-111

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

68

SOUZA Claacuteudia ldquoA esteacutetica do desassossego Fernando Pessoa e o romantismo alematildeordquo In Osmar Oliva (Org) Litera-tura e Danaccedilatildeo Montes Claros Editora Unimontes 2013

SOUZA Claacuteudia RIBEIRO N ldquoCharles Robert Anon amp Ale-xander Search Filosofia e Psiquiatriardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 21 p 541-556 2012

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano poliacutetica e criaccedilatildeo literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais Dezembro de 2011

SOUZA Claacuteudia ldquoInconsciente e arte um ponto de encontro entre Fernando Pessoa e Freudrdquo In A Cultura Portuguesa no Divatilde Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2011 pp113-123

SOUZA Claacuteudia ldquoVicente Guedes e Bernardo Soares para aleacutem do Desasocegordquo Revista Cultura ENTRE Culturas Lis-boa 2011 pp186-191

SOUZA Claacuteudia SUZUKI Maacutercio ldquoNovalis e Pessoa lucidez poeacutetica e reflexatildeo oniacutericardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 23 p 9-26 2015

SUZUKI Maacutercio O gecircnio romacircntico ndash criacutetica e histoacuteria na filosofia de Friedrich Schlegel Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

69

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndash uma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaThe portrait of Fernando Pessoa as a philosopher ndash an incursion into Pessoarsquos philosophical booty

Palavras-chave Fernando Pessoa filosofia espoacutelioKey-words Fernando Pessoa philosophy archive

RESUMO Este artigo procura debater e problematizar o al-cance filosoacutefico da obra de Fernando Pessoa Partindo de uma anaacutelise dos documentos em grande parte ineacuteditos do espoacutelio de Pessoa pretende demonstrar-se que o alcance filosoacutefico da obra deste autor se estende muito aleacutem dos ecos de leituras filosoacuteficas presentes na sua poesia e nas suas ficccedilotildees Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos inuacutemeros projectos destinados a futuros livros ensaios pequenas produccedilotildees e di-aacutelogos filosoacuteficos Assim tendo por base a apresentaccedilatildeo do es-poacutelio filosoacutefico de Pessoa o presente artigo visa elucidar em que medida se pode falar de um Pessoa filoacutesofo para aleacutem do ldquopoeta animado pela filosofiardquo

ABSTRACT This article intends to debate and problematize the philosophical reach of Fernando Pessoarsquos work Based on an analysis of the documents in a great extent unpublished form Pessoarsquos Archive we intend to show that the philosophical reach of this authorrsquos work goes far beyond the echoes of philosophi-cal readings present in his poetry and in his fictions Indeed in Pessoarsquos Archive one finds numerous projects for future books essays short works and philosophical dialogues Thus based on the presentation of the philosophical writings from Pessoarsquos Archive this article aims to clarify to what extent one can speak of a Pessoa philosopher beyond the ldquopoet animated by philoso-phyrdquo

I ndash Os escritos filosoacuteficos do espoacutelio pessoano

Num escrito autobiograacutefico de Pessoa relativo agrave sua escrita le-mos

Nenhum dos meus escritos foi concluiacute-do sempre se interpuseram novos pensamen-tos associaccedilotildees de ideias extraordinaacuterias im-possiacuteveis de excluir com o infinito como limite Natildeo consigo evitar a aversatildeo que tem o meu

Nuno Ribeiro

Doutor em filosofia - Univer-sidade Nova de Lisboa - poacutes-doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos

nunofribeirosapopt

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

70

pensamento pelo acto de acabar seja o que for

[My writings were none of them finished new thoughts intruded ever extraordinary inexcusable associations of ideas bearing in-finity for term I cannot prevent my thoughtrsquos hatred of finish[ing] [hellip]] (PESSOA 2003 pp100-101 BNPE3 20 ndash 12rI)

Este trecho para aleacutem de se constituir como um testemu-nho de Fernando Pessoa relativo ao caraacutecter dos seus escritos eacute tambeacutem representativo do estado em que se encontram os textos presentes no espoacutelio deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos uma multiplicidade de fragmentos destinados a projectos de livros que este pensador pretendia futuramente es-crever mas que natildeo chegou a concluir De facto se excluirmos o Livro de Odes de Ricardo Reis ndash que eacute mais uma colecccedilatildeo de poemas do que um livro estruturado ndash Pessoa publicou ape-nas um livro em portuguecircs Esse livro eacute a Mensagem Fernando Pessoa publicou diversos poemas e ensaios em revistas lite-raacuterias que criou ou com as quais colaborou1 Chegou tambeacutem a publicar em formato de opuacutesculo algumas produccedilotildees como os 35 Sonnets Antinous os English Poems I-II e III e ainda o opuacutesculo Interregno ndash Defesa e Justificaccedilatildeo da Ditadura Militar em Portugal Mas nenhum destes escritos constitui por si soacute um livro e na sua maior parte satildeo apenas partes ou capiacutetulos de livros mais extensos projectados por Pessoa Assim no espoacutelio de Pessoa existe uma multiplicidade de projectos concebidos para futuros livros e ensaios Entre os livros e ensaios que este autor projectou mas que natildeo chegou a concluir encontram-se os escritos filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num documento do espoacutelio deste autor lemos

Milhares de teorias grotescas extraor-dinaacuterias profundas sobre o mundo sobre o homem sobre todos os problemas que per-tencem agrave metafiacutesica atravessaram o meu es-piacuterito Tive em mim milhares de filosofias das quais ndash como se fossem reais ndash nem mesmo duas concordariam

[Thousands of theories grotesque ex-traordinary profound on the world on man on all problems that pertain to metaphysics have passed through my mind I have had in me thousands of philosophies not any two of which mdash as if they were real mdash agreed] (LO-

1 Para efeitos de averiguaccedilatildeo de textos de Fernando Pessoa publica-dos em vida consulte-se a seguinte referecircncia bibliograacutefica BLANCO 1983

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

71

PES 1993 p 402 BNPE3 15B3sup3 ndash 12rI)

O espoacutelio de Pessoa catalogado na Biblioteca Nacional de Portugal [BNP] sob a designaccedilatildeo de ldquoE3rdquo [Espoacutelio 3] en-contra-se dividido em envelopes e compreende mais de vinte e sete mil documentos Cada envelope estaacute classificado com um nuacutemero uma designaccedilatildeo e conteacutem uma quantidade variaacute-vel de documentos Entre os diversos envelopes do espoacutelio de Pessoa encontramos quatorze envelopes filosoacuteficos com 1428 documentos Existem cinco envelopes (15sup1 15sup2 15sup3 15⁴ e 15⁵) com a designaccedilatildeo ldquoFilosofiardquo um (15A) classificado como ldquoFilo-sofia-Metafiacutesicardquo quatro (15Bsup1 15Bsup2 15Bsup3 e 15B⁴) designados como ldquoFilosofia-Psicologiardquo e finalmente quatro (22 23 24 e 25) intitulados ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo2 No entanto se eacute um facto que a divisatildeo do espoacutelio filosoacutefico em envelopes nos permite identificar nuacutecleos de textos filosoacuteficos este facto levanta um problema de iacutendole topograacutefica Por um lado nem todos os tex-tos filosoacuteficos se encontram nos envelopes de iacutendole filosoacutefica e por outro lado os envelopes filosoacuteficos contecircm documentos que natildeo satildeo filosoacuteficos Assim num envelope com a designaccedilatildeo ldquoPaacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuteriasrdquo [envelo-pe 19] encontramos por exemplo um texto sobre a filosofia de Nietzsche intitulado ldquoFriedrich Nietzscherdquo [BNP E3 19 ndash 99]3 e num envelope com a designaccedilatildeo ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo [enve-lope 23] existe um texto com o tiacutetulo ldquoDe Profundisrdquo [BNPE3 23 ndash 66] publicado por Antoacutenio de Pina Coelho na selecccedilatildeo de textos filosoacuteficos intitulada Textos Filosoacuteficos de Fernando Pes-soa4 mas que no entanto eacute uma traduccedilatildeo de um excerto de De Profundis de Oacutescar Wilde

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]5 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo Assim tendo todos estes aspectos

2 Para efeitos da elucidaccedilatildeo das problemaacuteticas relativas agrave cataloga-ccedilatildeo organizaccedilatildeo e ediccedilatildeo do conteuacutedo dos envelopes filosoacuteficos consulte-se as seguintes referecircncias RIBEIRO 2011b RIBEIRO 2011c RIBEIRO 20123 Este texto encontra-se publicado em PESSOA 1994 pp333-3344 Cf PESSOA 2006b pp 227-228 Outro flagrante exemplo do pro-blema topograacutefico no que respeita aos envelopes filosoacuteficos eacute um texto sobre o sensacionismo [BNPE3 15Bsup1-98I] que se encontra catalogado no envelo-pe 15Bsup1 (ldquoFilosofia Psicologiardquo)5 PESSOA 2006a p167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

72

em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]6 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo7 Assim tendo todos estes aspectos em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

O primeiro grupo de textos filosoacuteficos compreende os livros filosoacuteficos inacabados No espoacutelio de Pessoa existem diversos documentos com projectos destinados a livros filosoacuteficos e ela-borados pelo proacuteprio Pessoa Esses projectos encontram-se di-vididos em diversos toacutepicos correspondentes a vaacuterios capiacutetulos ou linhas de pensamento que Pessoa pretendia desenvolver em livros por si projectados Muitos desses toacutepicos correspondem a diversas paacuteginas que existem no espoacutelio de Pessoa Com efei-to a designaccedilatildeo dos toacutepicos presente em muitos dos projectos corresponde ao tiacutetulo e agraves indicaccedilotildees de uma multiplicidade de paacuteginas espalhadas ao longo do espoacutelio de Pessoa Entre os documentos com projectos de Pessoa encontramos os projec-tos de livros filosoacuteficos O seguinte texto redigido por Pessoa em inglecircs e os seus diversos toacutepicos que correspondem a um projecto destinado a um livro filosoacutefico constituem um exemplo de um projecto filosoacutefico de Pessoa

Book I ndash Theory of Categories[Book] II ndash Theory following on and depending on the Categories[Book] III ndash Theory of the Absolute

_______________

SubdivisionsBook I - 1 Category of Being Considerations 2 Category of Extension Consideration 3 Category of Relation Consideration 4 Conclusion Critique of Pure Reason 5 Conclusion

6 PESSOA 2006a p1677 Relativamente ao sentido e agrave circunscriccedilatildeo do termo ldquomicrosofiardquo re-metemos para os seguintes estudos SOUZA 2011 PIZARRO 2007

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

73

Book II - 1 Relation of Objects to Categories 2 Proofs of the Inexistence of the External World

[BNPE3 15sup3 ndash 3 fac-simile abaixo]

O segundo grupo de escritos filosoacuteficos corresponde aos ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num do-cumento presente no espoacutelio de Fernando Pessoa correspon-dente agrave tentativa de elaboraccedilatildeo de uma lista de obras a realizar e organizar encontramos a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo [BNPE3 48B ndash 152r fac-simile abaixo]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

74

Nesse documento Fernando Pessoa comeccedila por redigir uma lista com a indicaccedilatildeo de tiacutetulos e temaacuteticas a considerar sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Pessoa risca essa lista e inicia na mesma paacutegina uma segunda lista tambeacutem com a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo Tanto a primeira quanto a segunda listas satildeo bastante imprecisas pois por um lado apre-sentam-nos tiacutetulos que Pessoa viria posteriormente a considerar em listas de obras e em projectos natildeo filosoacuteficos por outro lado ambas as listas deixam de fora muitos dos ensaios filosoacuteficos que encontramos no espoacutelio de Fernando Pessoa Isto justifi-ca que Pessoa tenha abandonado essa lista deixando-a ina-cabada De facto ao longo do espoacutelio de Pessoa encontramos centenas de projectos e listas de obras muitas das quais satildeo abandonadas por Pessoa No entanto a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophi-cal Essaysrdquo presente na lista descrita constitui-se natildeo soacute como o testemunho de um conjunto de textos que Pessoa pretendia redigir e dos quais nos legou fragmentos mas tambeacutem como a evidecircncia do projecto de reunir esses textos sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Ao longo do espoacutelio de Pessoa exis-tem vaacuterios geacuteneros de ensaios com extensotildees diversas e que discutem o mais variado tipo de assuntos autores e movimen-tos filosoacuteficos8

8 No livro Fernando Pessoa Philosophical Essays a critical edition

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

75

O terceiro grupo corresponde agraves pequenas produccedilotildees filo-soacuteficas Com efeito para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos o espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem igualmente uma multipli-cidade de textos correspondentes a artigos opuacutesculos e outras produccedilotildees filosoacuteficas de menor dimensatildeo consagrados agrave dis-cussatildeo dos mais diversificados autores movimentos e concei-tos da histoacuteria da filosofia A distinccedilatildeo entre ensaios e pequenas produccedilotildees eacute explicitamente enunciada numa lista de obras de Pessoa onde se lecirc ldquoEssays and Shorter Worksrdquo [BNPE3 48B ndash 142 detalhe do fac-simile abaixo]

O quarto grupo de textos corresponde agraves notas de leitu-ra filosoacuteficas de Pessoa Pessoa tinha o haacutebito de tomar notas das suas leituras muitas das quais se encontram conservadas do espoacutelio deste autor Isto acontecia porque muitas vezes Pessoa lia livros que natildeo eram seus mas cuja referecircncia queria manter embora algumas das suas notas filosoacuteficas se reportem a livros que se encontram na sua Biblioteca Particular Estas notas satildeo de crucial importacircncia natildeo soacute para traccedilar as vaacuterias influecircncias filosoacuteficas na obra de Pessoa mas tambeacutem porque muitas dessas notas estatildeo na origem de alguns dos seus escri-tos filosoacuteficos Assim podemos distinguir dois tipos de notas primeiro as notas acriacuteticas que compreendem todas aquelas notas que tecircm meras indicaccedilotildees ou citaccedilotildees de livros filosoacutefi-cos que Pessoa leu segundo as notas criacuteticas que para aleacutem das referecircncias e citaccedilotildees de livros englobam tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Pessoa sobre aquilo que leu No envelope 22 existe um exemplo de uma nota de leitura criacutetica como se pode verificar no seguinte texto escrito por Pessoa em inglecircs sobre a definiccedilatildeo aristoteacutelica de metafiacutesica

apresentamos a compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacuteficos de Fer-nando Pessoa Para aleacutem de compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacutefi-cos a introduccedilatildeo a essa ediccedilatildeo conteacutem uma revisatildeo histoacuterica dos principais tiacutetulos relativos agraves ediccedilotildees e comentaacuterios aos textos filosoacuteficos de Pessoa com especial ecircnfase nas seguintes referecircncias 1) PESSOA 2006 ndash corres-pondente a uma reimpressatildeo de um texto originalmente publicado em 1968 2) MOTA 1988 3) LOPES 1993 4) Loacutepez 2012 Aiacute mostramos que todas essas referecircncias laboram num erro comum que consiste em natildeo considerar os diversos fragmentos de Fernando Pessoa no contexto dos projectos e tiacutetulos de obras de iacutendole filosoacutefica ainda que lhe faccedilam referecircncias esporaacute-dicas Discutimos tambeacutem na introduccedilatildeo agrave nossa ediccedilatildeo o estatuto proble-maacutetico de muitos dos tiacutetulos enumerados na lista acima apresentada com o tiacutetulo ldquoPhilosophical Essaysrdquo tendo por base a anaacutelise de outros projectos do espoacutelio de Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

76

Notes 1Aristotle defines metaphysics (1) science of first principles and of first causes and (2) science of being as being [qua being]

Also defined ldquothe science of the absoluterdquo Metaphysics contains 3 great theories 1) The-ory of knowledge 2) theory of being 3) theory of the first principle of knowledge and of being

Critique It contains great theories indeed These are 1) Theory of knowledge 2)

[BNPE3 22 -73r fac-simile abaixo]

Finalmente o quinto grupo de textos filosoacuteficos correspon-de agraves paacuteginas filosoacuteficas autoacutenomas Este tipo de textos englo-ba todos aqueles escritos que lidam com a filosofia ou com as-suntos filosoacuteficos mas que natildeo correspondem a nenhum dos outros grupos filosoacuteficos nem tecircm qualquer relaccedilatildeo material di-recta com os outros escritos filosoacuteficos O espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem inuacutemeras paacuteginas deste tipo

Para aleacutem destes cinco grupos pode ainda ser identificado um outro grupo de documentos filosoacuteficos Esse grupo de docu-mentos corresponde ao projecto de criaccedilatildeo de diaacutelogos filosoacutefi-cos No envelope 24 existe um documento precisamente intitu-lado ldquoDiaacutelogos filosoacuteficosrdquo [BNPE3 24 ndash 96a] que conteacutem um trecho de discussatildeo sobre os argumentos acerca da existecircncia de Deus No entanto os documentos relativos aos diaacutelogos filo-soacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo bastante escassos e por outro lado o conteuacutedo e o estilo do texto intitulado ldquoDiaacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

77

logos filosoacuteficosrdquo encontram-se bastante proacuteximos das ficccedilotildees e contos deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos por exemplo um documento com a indicaccedilatildeo ldquoContos Intellectuaesrdquo [BNPE3 48A ndash 48i] que poderaacute corresponder a um desenvol-vimento dos diaacutelogos filosoacuteficos Noutro documento contendo uma lista de obras encontramos tambeacutem a indicaccedilatildeo ldquoContos metaphysicosrdquo [BNPE3 48E ndash 29i] que poderaacute igualmente ser considerado como outro dos tiacutetulos correspondentes a um de-senvolvimento do projecto de diaacutelogos filosoacuteficos Isto leva-nos a concluir que muito provavelmente os diaacutelogos filosoacuteficos natildeo teratildeo passado da fase de projecto e que Pessoa teraacute reaprovei-tado o conteuacutedo destinado a esses diaacutelogos para construir os seus contos e ficccedilotildees os quais muitas vezes satildeo mais dialo-gados do que narrados

II ndash Filosofia e a pluralidade de personalidades de Pessoa

Uma das mais claras consequecircncias da criaccedilatildeo de uma pluralidade de personalidades em Fernando Pessoa eacute a pro-blematizaccedilatildeo do conceito de autoria A problematizaccedilatildeo des-te conceito tem naturalmente consequecircncias no que respeita agrave circunscriccedilatildeo do acircmbito da produccedilatildeo filosoacutefica deste autor No decurso da sua produccedilatildeo literaacuteria Pessoa cria uma multi-plicidade de personalidades entre as quais os heteroacutenimos satildeo as mais conhecidas Um heteroacutenimo eacute uma personalidade com uma biografia um nome e uma obra inteiramente autoacutenomos das demais personalidades No entanto a marca distintiva da heteroniacutemia eacute o estilo A cada heteroacutenimo corresponde a fabri-caccedilatildeo de um estilo proacuteprio A fabricaccedilatildeo de uma multiplicidade de heteroacutenimos corresponde agrave produccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos9

Contudo para aleacutem dos heteroacutenimos Pessoa cria ainda um conjunto de semi-heteroacutenimos e de outras personalidades subalternas que poderatildeo ser classificadas como sub-heteroacuteni-mos A diferenccedila entre um heteroacutenimo e um semi-heteroacutenimo consiste no facto de que enquanto o heteroacutenimo tem um esti-lo literaacuterio inteiramente autoacutenomo o semi-heteroacutenimo escreve no mesmo estilo natural do autor real da escrita Eacute isso que por exemplo lemos no texto Ficccedilotildees do Interluacutedio a respeito do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares ldquo[hellip] Bernardo Soares distinguindo-se de mim por suas ideias seus sentimentos seus modos de ver e de compreender natildeo se distingue de mim pelo estilo de expor [hellip]rdquo (PESSOA 2007 p153)

9 Para a elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a heteroniacutemia e a criaccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos veja-se RIBEIRO 2011 Neste livro apresentamos o desenvolvimento da multiplicidade estilos ligada agrave fabricaccedilatildeo dos heteroacute-nimos atraveacutes de um confronto da noccedilatildeo de heteroniacutemia com a noccedilatildeo niet-zschiana de perspectivismo Consulte-se tambeacutem a este respeito a seguinte referecircncia RIBEIRO 2010

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

78

Os sub-heteroacutenimos desempenham por outro lado um papel inteiramente diferente dos heteroacutenimos e dos semi-he-teroacutenimos Estas personalidades tecircm por funccedilatildeo dominante a traduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo das obras dos heteroacutenimos e de outros autores portugueses Thomas Crosse e I I Crosse satildeo dois exemplos deste tipo de personalidades

No entanto a produccedilatildeo de personalidades na obra de Fer-nando Pessoa natildeo se esgota na criaccedilatildeo dos heteroacutenimos semi--heteroacutenimos e sub-heteroacutenimos A primeira apariccedilatildeo puacuteblica de um heteroacutenimo de Pessoa ocorre em 1915 com a publicaccedilatildeo do ldquoOpiaacuteriordquo e da ldquoOde Triunfalrdquo de Aacutelvaro de Campos no primeiro nuacutemero da revista literaacuteria Orpheu Contudo existe todo um tra-balho de criaccedilatildeo preacute-heteroniacutemica que antecede o surgimento dos heteroacutenimos Com efeito Fernando Pessoa escreve sob o nome de dezenas de personalidades literaacuterias10 a maior parte das quais produz as suas obras ou fragmentos de obras no pe-riacuteodo preacute-heteroniacutemico

No que diz respeito aos preacute-heteroacutenimos a produccedilatildeo de textos filosoacuteficos encontra-se maioritariamente centralizada nas produccedilotildees de duas personalidades preacute-heteroniacutemicas inglesas de Fernando Pessoa Charles Robert Anon e Alexander Search A relaccedilatildeo de Anon e de Search com a filosofia encontra-se des-de logo expressa nos documentos biograacuteficos que Pessoa nos deixa relativamente a estes dois preacute-heteroacutenimos

Com efeito num caderno dataacutevel de cerca de 1906 [BNPE3 144Csup2] encontramos um fragmento em inglecircs intitulado Ex-communication [Excomunhatildeo] que se constitui como um de resumo biograacutefico de Charles Robert Anon e que nos lega inuacute-meros indiacutecios da relaccedilatildeo desta personalidade com as proble-maacuteticas ligadas agrave filosofia Aiacute lemos

Excomunhatildeo

natildeo casado excepto em momentos estranhos____________________________________

Eu Charles Robert Anon ser animal mamiacutefe-ro tetraacutepode primata com placenta macaco catarrino homem dezoito anos de idade natildeo casado (excepto em momentos estra-nhos) megalomaniacuteaco com laivos de dipso-mania degenerado superior poeta com pre-tensotildees a escritos humoriacutesticos cidadatildeo do

10 Em Pessoa por Conhecer numa secccedilatildeo intitulada ldquo11 ndash Dramatis Personaerdquo Teresa Rita Lopes conta setenta e duas personalidades de Fer-nando Pessoa (Cf LOPES 1990 pp 167-169) No entanto este nuacutemero tem vindo a ser reconsiderado quer pela autora quer por posteriores estudos so-bre a obra de Fernando Pessoa que tecircm vindo progressivamente a ampliar o nuacutemero de personalidades e que contam ndash embora em muitos casos de uma forma bastante problemaacutetica ndash mais de cem personalidades fictiacutecias cf PESSOA 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

79

mundo filoacutesofo idealista etc etc (para poupar mais dores ao leitor)Em nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSO-FIA sem sineta livro e vela mas com caneta tinta e papelPasso uma declaraccedilatildeo de excomunhatildeo a to-dos os padres e todos os sectaacuterios de todas as religiotildees do mundo

Excomungo-vosDanais-vos todosAssim sejaRazatildeo Verdade Virtude por Charles Robert Anon

[Excommunication

not married except at odd moments___________________________________I Charles Robert Anon being animal mammal tetrapod primate placental ape catarrhyna man eighteen years of age not married (except at odd moments) megaloma-niac with touches of dipsomania deacutegeacuteneacutereacute superior poet with pretensions to written hu-mour citizen of the world idealistic philoso-pher etc etc (to spare the reader further pains) In the name of TRUTH SCIENCE and PHILO-SOPHIA not with bell book and candle but with pen ink and paperPass sentence of excommunication on all priests and all sectarians of all religions in the world

Excomunicabo vosBe damnrsquod to you allAnsi-soit-ilReason Truth Virtue per C[harles] R[obert] A[non]]

[PESSOA 2009 p289 BNPE3 144Csup2 5v a 6r]

Este excerto para aleacutem de se constituir como uma auto--psicografia humoriacutestica de Anon aos dezoito anos de idade revela-nos tambeacutem muacuteltiplos aspectos da caracterizaccedilatildeo dos interesses filosoacuteficos deste preacute-heteroacutenimo Neste texto Char-les Robert Anon elabora explicitamente uma excomunhatildeo ldquoEm

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

80

nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSOFIArdquo [BNPE3 144Csup2 6r ldquoIn the name of TRUTH SCIENCE and PHILOSOPHIArdquo] denominando-se como ldquofiloacutesofo idealistardquo [BNPE3 144Csup2 5v ldquoidealistic philosopherrdquo] Com efeito no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel identificar um conjunto de testemunhos relativos a obras de filosofia assinados por Anon que abrangem os mais diversos temas como os textos intitulados Teoria da Percepccedilatildeo [BNPE3 25 ndash 58r Theory of Perception] e Sobre os Limites da Ciecircncia [BNPE3 28 ndash 99v On the Limits of Science]

A fabricaccedilatildeo da personalidade de Alexander Search eacute de igual forma conforme ao interesse pela filosofia A preocupaccedilatildeo de Search com filosofia encontra reflexo no caderno intitulado Livro da Transformaccedilatildeo ou livro das tarefas [BNPE3 48C ndash 1 a 5 Transformation Book or Book of Tasks] onde Pessoa nos apresenta uma breve descriccedilatildeo biograacutefica de Search acompa-nhada de uma lista de obras correspondentes a tarefas a serem realizadas por esta personalidade Nessa ficha biograacutefica lemos

Alexander SearchNascido a 13 de Junho 1888 em LisboaTarefa todas as que natildeo provenham dos ou-tros trecircs___________________________________1 ldquoO Regiciacutedio e a Situaccedilatildeo Poliacutetica em Por-tugalrdquo2 ldquoA Filosofia do Racionalismordquo3 ldquoA Perturbaccedilatildeo Mental de Jesusrdquo4 ldquoDeliacuteriordquo5 ldquoAgoniardquo

[Alexander SearchBorn June 13th 1888 at LisbonTask all not the province of the other three___________________________________

1 ldquoThe Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugalrdquo2 ldquoThe Philosophy of Rationalismrdquo3 ldquoThe Mental Disorder(s) of Jesusrdquo4 ldquoDeliriumrdquo5 ldquoAgonyrdquo]

[PESSOA 2014 p 4 BNPE3 48C ndash 2r]

Nesta ficha biograacutefica elaborada por Pessoa encontramos para aleacutem dos dados biograacuteficos de Search a menccedilatildeo ao tiacutetulo A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] que eacute representativo de um dos mais significativos interesses filosoacute-ficos de Pessoa Com efeito ao longo do espoacutelio de Fernando

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

81

Pessoa existe uma multiplicidade de documentos destinados a um projecto relativo ao sentido e agrave natureza do racionalismo Esse projecto passou por diversas fases e teve vaacuterios tiacutetulos A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] foi justamente um desses tiacutetulos

No entanto os tiacutetulos referidos na ficha biograacutefica de Se-arch satildeo apenas alguns dos exemplos de obras filosoacuteficas atri-buiacutedas a esta personalidade de Pessoa Ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa existe ndash com a assinatura deste preacute-heteroacute-nimo ndash uma multiplicidade de outras obras de filosofia como eacute o caso do texto A Natureza Interna das Faculdades [BNPE3 23 ndash 18 a 19 The Internal Nature of the Faculties] e do Ensaio sobre a Ideia de Causa [BNPE3 15⁴ ndash 99 a 100 Essay on the Idea of Cause]

Assim todos estes elementos que temos vindo a enunciar permitem-nos concluir que haacute uma afinidade de fundo entre as duas personalidades preacute-heteroniacutemicas apresentadas e a cria-ccedilatildeo de textos filosoacuteficos Contudo a afinidade de Anon e de Search a respeito das questotildees ligadas agrave filosofia existe desde logo numa etapa anterior agrave produccedilatildeo de textos filosoacuteficos Nas listas de leitura presentes no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel en-contrar um ponto de contacto dessas duas personalidades com o interesse pelos diversos autores e temaacuteticas dos vaacuterios periacuteo-dos da histoacuteria da filosofia

No espoacutelio de Fernando Pessoa existe um caderno intitu-lado ldquoNordm I1 Charles R Anonrdquo [BNPE3 13A 1 a 20] que para aleacutem de inuacutemeros escritos e projectos filosoacuteficos conteacutem ainda uma extensa lista de leituras que eacute antecedida pela seguinte indicaccedilatildeo

LivrosSobre Ciecircncia e sobre Filosofia

[BooksOn Science and on Philosophy]

[PESSOA 2009 p271 BNPE3 13A ndash 2r detalhe do fac-simile abaixo]

Nesta lista provavelmente contemporacircnea das leituras re-alizadas por Pessoa na Biblioteca Nacional e por conseguinte dataacutevel de 1906 encontramos justamente a evidecircncia dos in-teresses relativos agrave filosofia que Pessoa atribui a Charles Ro-bert Anon Com efeito aiacute encontramos referecircncias a livros de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

82

filoacutesofos como Aristoacuteteles Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Schopenhauer Hegel e Bergson para citar ape-nas alguns dos nomes da histoacuteria da filosofia referidos nesse caderno Todas estas referecircncias viriam a ser retomadas nas listas de leitura de Search

Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos um cader-no com a seguinte indicaccedilatildeo

Alexander SearchSetembro 1906

________

Filosofia etc[Alexander SearchSeptember 1906

________

Philosophy etc]

[BNPE3 144H ndash contracapa]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

83

Este caderno que eacute datado de Setembro de 1906 e por-tanto contemporacircneo do caderno de Anon conteacutem uma lista de livros alfabeticamente ordenada de ldquoArdquo a ldquoZrdquo na sua maioria re-lativos agrave filosofia Nele satildeo retomadas e em alguns casos am-pliadas as referecircncias presentes no caderno de Anon relativa-mente ao qual satildeo acrescentados novos tiacutetulos e novos nomes

Contudo apesar de as obras filosoacuteficas no periacuteodo preacute--heteroniacutemico estarem de um modo geral centralizadas em Charles Robert Anon e Alexander Search encontramos tambeacutem textos de cariz filosoacutefico atribuiacutedos a outros intervenientes Um exemplo disso eacute o Ensaio sobre a Intuiccedilatildeo [BNPE3 14⁶ ndash 30 a 31r Essay on Intuition] cujos fragmentos se encontram espa-lhados ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa e que embora breve esboccedila o iniacutecio de discussatildeo acerca da natureza e cons-tituiccedilatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica de intuiccedilatildeo No final de um dos frag-mentos deste ensaio encontramos as seguintes assinaturas correspondentes a nomes de duas personalidades preacute-hetero-niacutemicas ldquoA Moreira Faustino Antunesrdquo [BNPE3 14⁶ ndash 31r] Para aleacutem de todos os nomes de preacute-heteroacutenimos que temos vindo a enunciar encontramos ainda textos filosoacuteficos assina-dos por Fernando Pessoa em seu proacuteprio nome Um exemplo de um texto filosoacutefico

assinado por Pessoa no periacuteodo preacute-heteroniacutemico eacute o en-saio intitulado ldquoDa Impossibilidade de uma Sciencia do Lexiconrdquo [BNPE3 23 ndash 1-2a] que corresponde a uma ldquofalaacutecia filosoacuteficardquo escrita em 1906 como trabalho a apresentar para a disciplina de filologia na Universidade de Lisboa que Fernando Pessoa frequentou entre 1905 e 1907 Com efeito eacute isso que depreen-demos do seguinte apontamento presente num diaacuterio com a data de 11 de Maio de 1906

Preparando a minha falaacutecia filosoacutefica ndash laquoSobre a fenomenologia do Lexiconraquo para aula de Fi-lologia o tema foi laquoA Orientaccedilatildeo do Lexiconraquo

[Preparing my philosophical fallacy ndash ldquoOn the Phenomenology of the Lexiconrdquo for the Philo-logy Class the subject given us was ldquoA Orien-taccedilatildeo do Lexiconrdquo] (PESSOA 2003 pp38-39)

No que diz respeito agraves personalidades do periacuteodo hetero-niacutemico a produccedilatildeo filosoacutefica tem como principal preocupaccedilatildeo a questatildeo da definiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica De Aacutelvaro de Campos existe um texto precisamente intitulado ldquoO que eacute a me-tafiacutesicardquo publicado em 1924 no nuacutemero 2 da revista Athena que constitui uma contra-resposta ao ensaio ldquoAtenardquo publicado pelo ortoacutenimo no primeiro nuacutemero dessa revista Antoacutenio Mora uma personalidade literaacuteria que Pessoa faz dialogar com os he-teroacutenimos participa igualmente nessa discussatildeo como se pode

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

84

verificar pelo conjunto de fragmentos destinados a um opuacutesculo intitulado ldquoIntroduccedilatildeo ao Estudo da Metafiacutesicardquo (Cf PESSOA 2002 pp 321-331)

Contudo a questatildeo da circunscriccedilatildeo dos textos filosoacuteficos de Pessoa no acircmbito da problemaacutetica da autoria tem uma di-ficuldade acrescida Se eacute verdade que Pessoa cria uma mul-tiplicidade de textos assinados sob o nome das mais diversas personalidades literaacuterias tambeacutem eacute um facto que no espoacutelio de Pessoa encontramos vaacuterios textos sem qualquer atribuiccedilatildeo autoral expliacutecita ou impliacutecita Assim os textos do espoacutelio deste autor podem ser distinguidos em duas classes os textos assina-dos ou incluiacutedos em projectos destinados a determinadas per-sonalidades de Pessoa segundo os textos que natildeo se encon-tram assinados O segundo tipo de textos constitui aquilo que se pode designar de textos anoacutenimos de Pessoa Eacute no acircmbito dos textos anoacutenimos de Pessoa que encontramos a maior variedade de projectos e fragmentos de livros de pequenas produccedilotildees e de ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa discutindo os mais variados autores desde os preacute-socraacuteticos a Bergson passando por consideraccedilotildees relativas a movimentos como o materialismo o positivismo e o idealismo bem como aos conceitos filosoacuteficos de sensaccedilatildeo e de ser

III ndash Fernando Pessoa o filoacutesofo e o ldquopoeta animado pela filosofiardquo

A tematizaccedilatildeo da importacircncia da filosofia e o emprego de con-ceitos filosoacuteficos em Fernando Pessoa encontram-se tambeacutem presentes ao longo da obra poeacutetica e ficcional deste autor No poema Tabacaria encontramos por exemplo a seguinte con-fissatildeo de Aacutelvaro de Campos ldquoTenho feito filosofias em segre-do que nenhum Kant escreveurdquo (CAMPOS 2002 p322) Em O Guardador de Rebanhos Alberto Caeiro problematiza critica e discute algumas noccedilotildees filosoacuteficas como os conceitos de meta-fiacutesica de alma e de Deus11 Estes e outros exemplos presentes na obra de Fernando Pessoa satildeo suficientes para pocircr em evi-decircncia e dar a conhecer um ldquopoeta animado pela filosofiardquo [ldquopoet animated by philosophyrdquo] (PESSOA 2003 p18) que este autor afirmou ter sido e efectivamente chegou a ser mas natildeo para provar que Pessoa foi de facto um escritor filosoacutefico Com efeito a presenccedila de conceitos filosoacuteficos ao longo das diversas pro-duccedilotildees poeacuteticas e ficcionais de Fernando Pessoa constituem apenas o indiacutecio das leituras filosoacuteficas que teratildeo ocupado este autor em diferentes periacuteodos da sua vida Mas a relaccedilatildeo de Pes-soa com o pensamento filosoacutefico natildeo se circunscreve agraves men-ccedilotildees a autores movimentos ou conceitos filosoacuteficos presentes nos seus mais variados textos poeacuteticos e ficcionais Para aleacutem 11 Veja-se em especial o poema V de O Guardador de Rebanhos [CAEIRO 2001 pp29-32]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

85

do ldquopoeta animado pela filosofiardquo encontramos tambeacutem no es-poacutelio de Fernando Pessoa diversos indiacutecios que nos permitem reconstituir o retrato de Pessoa enquanto filoacutesofo Os diversos escritos filosoacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo o teste-munho da actividade filosoacutefica deste autor e por conseguinte permitem-nos concluir a existecircncia de um Pessoa-filoacutesofo O cultivo do estilo e dos diversos geacuteneros filosoacuteficos foi para Fer-nando Pessoa um dos momentos do desenvolvimento de uma multiplicidade de estilos A escrita filosoacutefica constitui para Pes-soa uma das formas de desenvolvimento literaacuterio Para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos encontramos entre as pequenas produccedilotildees filosoacuteficas de Pessoa inuacutemeros projectos de artigos opuacutesculos e de outros textos de pequena dimensatildeo Os pro-jectos de livros ensaios e pequenas produccedilotildees filosoacuteficas do espoacutelio de Pessoa correspondem agrave multiplicidade de geacuteneros filosoacuteficos que este autor pretendia e que na verdade chegou a desenvolver Deste modo o estilo filosoacutefico e os diversos geacutene-ros nele incluiacutedos foram para Pessoa a ocasiatildeo para o desen-volvimento de uma forma de literatura que este autor deixou por concluir mas cujos projectos e indicaccedilotildees presentes ao longo de todo o espoacutelio nos permitem reconstruir

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

86

BIBLIOGRAFIA

BLANCO Joseacute Fernando Pessoa Esboccedilo de uma bibliografia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

CAEIRO Alberto Poesia Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001

CAMPOS Aacutelvaro de Poesia Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lis-boa Assiacuterio amp Alvim 2002

LOPES Teresa Rita (org) Pessoa Ineacutedito Lisboa Livros Hori-zonte 1993

LOPES Teresa Rita Pessoa por Conhecer Vol I Lisboa Edi-torial Estampa 1990

LOacutePEZ Pablo Javier Peacuterez Poesiacutea Ontologiacutea y Tragedia en Fernando Pessoa Madrid Editorial Manuscritos 2012

MOTA Pedro Teixeira da Fernando Pessoa Moral Regras de Vida Condiccedilotildees de Iniciaccedilatildeo Textos estabelecidos e comenta-dos por Pedro Teixeira da Mota Lisboa Ediccedilotildees Manuel Len-castre 1988

PESSOA Fernando Cadernos Tomo I Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pi-zarro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2009

PESSOA Fernando Escritos Autobiograacuteficos Automaacuteticos e de Reflexatildeo Pessoal Ediccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

PESSOA Fernando Escritos sobre Geacutenio e Loucura Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2006a

PESSOA Fernando Eu sou uma antologia 136 autores fictiacute-cios Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro e Patricio Ferrari Lisboa Tinta da China 2013

PESSOA Fernando Obras de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Luiacutes Fi-lipe Teixeira Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

PESSOA Fernando Paacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuterias Lisboa Aacutetica 1994

PESSOA Fernando Philosophical Essays a critical edition Edition notes and introduction by Nuno Ribeiro (afterword by Paulo Borges) New York Contra Mundum Press 2012

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

87

PESSOA Fernando Prosa Iacutentima e de Autoconhecimento Edi-ccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2007

PESSOA Fernando Textos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa Vol I Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio Pina Coelho Lis-boa Aacutetica 2006b

PESSOA Fernando The Transformation Book mdash or Book of Tasks Edition Notes and Introduction by Nuno Ribeiro amp Claacuteu-dia Souza New York Contra Mundum Press 2014

PIZARRO Jeroacutenimo Fernando Pessoa entre geacutenio e loucura Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2007

RIBEIRO Nuno Fernando Pessoa e Nietzsche O pensamento da pluralidade Lisboa Verbo Editora 2011a

RIBEIRO Nuno ldquoHeteroniacutemia e Perspectivismo ldquoEspaccedilo lite-raacuteriordquo e multiplicidade de estilos nos pensamentos de Nietzsche e Pessoardquo In Cadernos Nietzsche nordm26 Satildeo Paulo Grupo de Estudos Nietzsche 2010 pp155-176

RIBEIRO Nuno ldquoOs Livros Filosoacuteficos Inacabados de Pessoa ndash Problemas e Criteacuterios para a Publicaccedilatildeo dos Escritos Filosoacutefi-cos de Pessoardquo In Philosophica nordm 38 Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2011b pp 165 ndash 174

RIBEIRO Nuno ldquoTive em mim milhares de Filosofiasrdquo - ques-totildees para a ediccedilatildeo dos escritos filosoacuteficos ineacuteditos de Pessoardquo In cultura ENTRE culturas nordm3 Lisboa ncora Editora 2011c pp 192 ndash 200

RIBEIRO Nuno Tradiccedilatildeo e Pluralismo nos Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo I ndash 214pp) Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo II ndash 382pp) Lisboa Faculdade de Ci-ecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 2012 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano Poliacutetica e Criaccedilatildeo Literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Belo Horizonte PUC ndash Minas Gerais 2011 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

88

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposrdquoNotes on ldquoRemarks for a non-Aristotelian Aesthetics in Aacutelvaro de Camposrdquo

Palavras-chave Fernando Pessoa Esteacutetica natildeo-aristoteacutelica Corpo e ArteKeywords Fernando Pessoa Aesthetics non-Aristotelian Body and Art

RESUMO Os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacuteli-ca entre outros escritos sobre arte figuram na obra pessoa-na como ponto de relevacircncia por se tratar de um esboccedilo para uma ldquoteoria esteacuteticardquo em via contraacuteria agrave Tradiccedilatildeo Nem sempre atendendo agraves expectativas de muitos criacuteticos quanto agrave aplicabi-lidade de tal pensamento agrave leitura do proacuteprio Fernando Pessoa nem demonstrando consistecircncia suficiente enquanto reflexatildeo sistecircmica do ponto de vista filosoacutefico os Apontamentos mesmo assim nos oferecem em potencial margens para uma releitu-ra que transpasse agrave discussatildeo restritiva de uma esteacutetica natildeo aristoteacutelica Em suma nosso intuito eacute mostrar que para aleacutem de uma descontinuidade da tradiccedilatildeo esteacutetica aristoteacutelica Fernan-do Pessoa atraveacutes do discurso de Aacutelvaro de Campos vislumbra um estado em que corpo e arte estabeleccedilam estreita relaccedilatildeo firmada em princiacutepios de forccedila pelo vieacutes da sensibilidade em vez do tradicional caminho da razatildeo Nesse sentido natildeo pre-tendemos emitir conclusotildees definitivas concernentes aos escri-tos em questatildeo visto que entendemos e acolhemos o termo ldquoapontamentordquo como um prospecto de um trabalho que natildeo se concretizou

ABSTRACT Pessoarsquos Remarks for a Non-Aristotelian Aesthetics as many other writings about Arts are highly relevant inasmuch as they present a sketch for non-traditional theories on Aesthetics In spite of this relevance some critics argue that Pessoarsquos Remarks are not quite useful to read Fernando Pessoa himself Their criticism turns on the point that the Remarks have no sufficient consistency to be considered a systematic thought from a philosophical point of view Diverging from this position we assume that Fernando Pessoarsquos Remarks allow us to pre-sent a ldquore-readingrdquo that can go far beyond some restrictive rea-dings based on some non-Aristotelian Aesthetics Accordingly we argue that Fernando Pessoa can be considered apart from the question about his discontinuity in relation to the Aristotelian aesthetic tradition Our main point is that Pessoa through Aacutelva-ro de Camposrsquo views envisions some state in which body and art can establish a very close relation by means of principles

Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Doutorando em Literatura ndash POacuteSLITUnBFAPDF

fabriciogabrieldesouzagmailcom

() E-mail fabriciogabrieldesouzagmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

89

of force from the perspective of sensibility However we do not here intend to reach definitive conclusions on this issue since we understand the term ldquoremarksrdquo as a mere prospectus for a not accomplished work

1

Devemos sempre ter em conta a produccedilatildeo teoacuterica de Fernando Pessoa visto que seus exerciacutecios de reflexatildeo podem ser entendidos como dobras em sua proacutepria obra De igual modo devemos tecirc-la com leve cuidado Se tais prospectos satildeo capa-zes de lanccedilar alguma luz sobre seu legado talvez nem o tempo de aacuterduo trabalho dos investigadores poderaacute trazer agrave tona o de-lineamento total e exato da produccedilatildeo pessoana Basta lembrar que quase maioria do que foi escrito pelo poeta portuguecircs ficou guardada durante sua vida numa arca vindo a puacuteblico poste-riormente graccedilas agrave dedicaccedilatildeo e a um princiacutepio de trabalho mais criterioso da Equipa Pessoa no iniacutecio dos anos de 1980

Nossas consideraccedilotildees iniciais satildeo no intuito primeiro de reafirmar que o que noacutes temos na atualidade publicado com o nome de Fernando Pessoa ou de seus autores fictiacutecios satildeo propostas editoriais Algumas com criteacuterios rigorosos outras com menos e aquelas sem criteacuterios algum com o intuito apenas mercadoloacutegico Afinal o nome de Fernando Pessoa se tornou natildeo sem motivos uma chancela em alta estima Segundo fazer lembrar que muitas publicaccedilotildees natildeo possuem uma versatildeo final pensada pelo seu autor Exemplo disso eacute o alto grau de frag-mentariedade da obra que conta com mais de trinta mil papeis entre eles diversos escritos ou notas como planos de obras ou lista de tiacutetulos para possiacuteveis obras O Livro do desassossego tem publicado cerca de dez ediccedilotildees com organizaccedilotildees diferen-tes sendo algumas delas nas visotildees de seus editores perten-centes a dois ou trecircs autores criados por Fernando Pessoa in-cluindo fases distintas Dos textos dramaacuteticos aos quais temos nos dedicado ultimamente apenas O Marinheiro foi terminado e publicado em vida no primeiro nuacutemero da Revista Orpheu em 1915 Partindo dessas observaccedilotildees optamos pela cautela na apreciaccedilatildeo dos textos considerando a obra enquanto conjunto (todo) poreacutem com elementos variaacuteveis e em sua maioria ina-cabados

Desse modo apresentamos e propomos um breve olhar sobre dois textos teoacutericos escritos pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos A influecircncia da engenharia nas armas nacionais com data de 1924 e Apontamentos para uma esteacutetica natildeo aristo-teacutelica com as datas de dezembro de 1924 e janeiro de 1925 Nosso intento primeiro eacute mostrar como as ideias do heterocircnimo pessoano aproximam (ou afastam) arte ciecircncia e cultura colo-cando-se como antagonista agrave poeacutetica claacutessica em especial a Poeacutetica de Aristoacuteteles e buscando se afirmar enquanto nova te-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

90

oria esteacutetica a qual corpo e sensaccedilotildees teratildeo maior afirmaccedilatildeo no processo criativo Ressaltamos por fim que o nosso interesse maior eacute fazer emergir o pensamento pessoano natildeo o colocando em condiccedilatildeo de mero suporte de comparaccedilatildeo para teorias de outros autores ou fazendo aplicaccedilotildees desses da teoria desses autores

2

A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aponta-mento com data de 1924 parece figurar como introduccedilatildeo ldquogecirc-neserdquo dos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica As-sinado pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos dito poeta futurista e engenheiro naval o primeiro texto supracitado lacocircnico e inaca-bado inicia-se trazendo como epiacutegrafe uma frase de Leonardo da Vinci que diz ldquoQuanto mais uma arte traz consigo a fadiga do corpo tanto mais ela eacute vilrdquo1 Tal referecircncia ao artista italiano poderia tender nossos julgamentos para a aceitaccedilatildeo da presen-ccedila marcante da esteacutetica renascentista na reflexatildeo proposta por Aacutelvaro Campos caso a posiccedilatildeo do poeta da Ode triunfal natildeo fosse contundentemente contraacuteria a continuidade de tudo o que foi preservado pela tradiccedilatildeo Logo a batalha do poeta contra a accedilatildeo da ldquopermanecircnciardquo da ldquotradiccedilatildeordquo e suas consequecircncias eclode quando ele expotildee sua ldquoteoriardquo acerca da civilizaccedilatildeo

Haacute muito sustento a teoria que a civilizaccedilatildeo eacute a cria-ccedilatildeo de estiacutemulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reaccedilatildeo a eles A civilizaccedilatildeo eacute pois a tendecircncia para a morte pelo desequiliacutebrio A coisa mais inuacutetil que a ficccedilatildeo real chamada povo pode fazer eacute resistir a civilizar-se por processos de civilizaccedilatildeo Existir eacute natildeo se dei-xar matar ser civilizado eacute inventar reaccedilotildees para os estiacutemulos que excedem jaacute a reaccedilatildeo possiacutevel Isto eacute inventar reaccedilotildees artificiais quer dizer civilizadas contra a proacutepria civilizaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445)

A civilizaccedilatildeo para Campos representa a negaccedilatildeo dos estiacutemulos naturais (vitais) logo o homem civilizado torna-se in-capaz da proacutepria criaccedilatildeo pela imposiccedilatildeo da carga de estiacutemulos civilizadores que atuam de modo incisivo sobre ele Por outro lado torna-se inuacutetil a resistecircncia agrave civilizaccedilatildeo atraveacutes do proacuteprio processo civilizador vigente ao longo do tempo porque efetiva-mente agindo assim natildeo haveria ruptura mas a continuidade do ldquomesmordquo sob um mascaramento de formas diversificadas tais como as crenccedilas e os valores Civilizar-se dessa forma tende a morte pelo desequiliacutebrio visto que meios artificiais implicam

1 ldquoQuanto piugrave umrsquoarte porta seco fatica di corpo tanto piugrave egrave vilerdquo ndash Consultoria e traduccedilatildeo em liacutengua italiana de Sylvia Gouveia doutoranda em Literatura pelo PoacutesLitUnB

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

91

anulaccedilatildeo das forccedilas vitais de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo ou seja a vida subsiste pelo equiliacutebrio entre tais forccedilas as quais satildeo igualadas ao ldquoanabolismo e o catabolismo dos fisiologistasrdquo (PESSOA 2015 p445)

Segundo o ciclo natural a forccedila que ldquoinsisterdquo cria partindo da destruiccedilatildeo uma vez que destruiccedilatildeo significa transformaccedilatildeo concomitantemente a forccedila que subsiste permite a criaccedilatildeo ao mesmo tempo em que impede a destruiccedilatildeo logo a transforma-ccedilatildeo para o outro Contudo na sociedade ordem posta acima da ordem dos organismos vivos (ordem bioacutetica) ocorre a inver-satildeo da ldquodinacircmica dos fatores agentesrdquo assim ldquoa tendecircncia para subsistir eacute que mata a tendecircncia para natildeo subsistir eacute que faz vi-ver Isto porque a sociedade eacute um corpo artificial e vive por isso segundo leis que satildeo contraacuterias agraves leis naturaisrdquo (Ibidem) Por essa artificialidade do corpo social Aacutelvaro de Campos expotildee sua problematizaccedilatildeo partindo da questatildeo da ldquosubsistecircnciardquo isto eacute da questatildeo acerca de um estado de permanecircncia que seria causa mortis dos instintos do homem nas sociedades

O que faz subsistir nas sociedades A tradiccedilatildeo a continuidade a tendecircncia para permanecer isto eacute para natildeo viver E a tradiccedilatildeo a tendecircncia para permanecer tem trecircs formas ndash o apego ao passado que eacute tradiccedilatildeo vulgar o ape-go ao presente que eacute a moda e o apego ao futuro que eacute o ideal social em que se confia O que faz viver isto eacute natildeo sub-sistir nas sociedades A antitradiccedilatildeo a tendecircncia para natildeo permanecer E a tendecircncia para natildeo permanecer tem soacute uma forma ndash o apego ao natildeo passado ao natildeo presente e ao natildeo futuro Isto quer dizer o apego ao abstrato e ao ideal em que natildeo se confia Por isso a forccedila que conserva as sociedades eacute a inteligecircncia de abstraccedilatildeo e imaginaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445-446)

A vida para nas invenccedilotildees de dispositivos ldquoabioacuteticosrdquo ou seja nos costumes embebidos da necessidade de perma-necircncia de conservaccedilatildeo Tais dispositivos tecircm-se manifestado conforme vimos sob trecircs formas poreacutem girando em torno de um eixo apenas o eixo do ldquoapegordquo volvendo-se desse modo alternadamente aos periacuteodos de tempo representados pela tra-diccedilatildeo vulgar pela moda e pela confianccedila em um ideal social porvir Todavia o antiacutedoto contra a praga que potildee por terra a vida opera no mesmo eixo do ldquoapegordquo girando em sentido con-traacuterio ao sentido da permanecircncia das crenccedilas do tradicionalis-mo do conservadorismo A trajetoacuteria defendida por Aacutelvaro de Campos quer atuar apegando-se ldquoao abstrato e ao ideal em que natildeo se confiardquo Enfim o que afirmaraacute a vida nas sociedades eacute a substituiccedilatildeo do apego ao ldquoidordquo ao ldquoestilo prevalenterdquo de cada eacutepoca o ldquoporvirrdquo pelo ldquodevirrdquo

A conservaccedilatildeo do estado de permanecircncia ou a tendecircn-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

92

cia que ldquofaz morrerrdquo nas sociedades age atraveacutes da ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo e da ldquoimaginaccedilatildeordquo Estes dois agentes por sua vez desdobram-se nas formas ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo donde

A matemaacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto da essecircncia da experiecircncia o uacutenico criteacuterio de verdadeira ob-jetividade que temos eacute o criteacuterio de matematizaccedilatildeo A criacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto de ela ser nossa o uacutenico criteacuterio verdadeiro de subjetividade que temos eacute o da confron-taccedilatildeo natildeo das nossas impressotildees com as cousas mas das cousas com nossas impressotildees (PESSOA 2015 p445)

Temos aiacute a confrontaccedilatildeo de duas formas de percepccedilatildeo e juiacutezo que reforccedilam o ciclo da permanecircncia do ldquomesmordquo o ju-iacutezo que parte do universal (abstrato) para a singularidade se atendo ao criteacuterio de objetividade pela matematizaccedilatildeo que aqui entendemos como meio de ordenaccedilatildeo das coisas e a criacutetica que parte da experiecircncia singular obedecendo a um criteacuterio que relaciona o conteuacutedo das nossas percepccedilotildees (impressotildees) vin-culando-o agraves coisas que percebemos pelas sensaccedilotildees Parece--nos estar criado por essa via mais uma delimitaccedilatildeo que nos prende a tendecircncia de ldquoordemrdquo e ldquopermanecircnciardquo dos processos civilizatoacuterios mencionados anteriormente Acerca da definiccedilatildeo de ldquocriticardquo2 Campos ressalta que

Deve-se compreender que entendo por criacutetica toda a atividade criacutetica a criacutetica no sentido em que emprego a palavra inclui toda forma de atividade que ou natildeo aceita ou quer substituir a objetividade da experiecircncia Assim a arte eacute uma forma de criacutetica porque fazer arte eacute confessar que a vida ou natildeo presta ou natildeo chega Assim por assim dizer a parte dogmaacutetica da religiatildeo (natildeo a sua parte social nem a sua parte metafiacutesica) eacute uma forma de criacutetica porque crer numa cousa sem ser com uma razatildeo embora aparente (como acontece na metafiacutesica que procura explicar) natildeo sendo essa cousa um elemento da experiecircncia (objetiva) eacute querer substituir essa experiecircncia (PESSOA 2015 p446)

Diante do exposto podemos inferir que o conjunto das ideias e praacuteticas civilizatoacuterias arraigadas na tradiccedilatildeo da perma-necircncia do ldquomesmordquo agem de modo constante a minar as forccedilas vitais Ora com civilizaccedilatildeo natildeo haacute vida mas morte pelo dese-quiliacutebrio de tais forccedilas conforme vimos Assim tanto as formas de ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo quanto de ldquoimaginaccedilatildeordquo sendo esta desdobrada em ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo atuam como ins-trumentos de evasatildeo da objetividade da experiecircncia seja arte

2 Em manuscrito o texto eacute complementado no final ldquoA criacutetica eacute em suma todo o artifiacutecio que eacute feito com inteligecircncia e sem fim social nenhum Desde que sirva um ideal em vez de uma impressatildeo [] a criacutetica eacute falsa como criacutetica natildeo eacute criacutetica em suma mas soacute opiniatildeordquo Cf PESSOA 2015 p678-688

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

93

seja religiatildeo Nesse caso a arte eacute que nos interessa e essa mesma arte como forma de criacutetica desponta-se com duas faces por um lado ldquoa vida natildeo prestardquo logo faccedilo arte para ldquosuportar a vidardquo aliviar o ldquoFadordquo em um exerciacutecio redentorista atraveacutes da obra por outro admite-se a brevidade e o pouco que a vida seja e passa-se a afirmar e utilizar das forccedilas que se dispotildee para afirmaccedilatildeo objetiva e plena da existecircncia Vale assim lem-brar de uma passagem de uma ode de Aacutelvaro de Campos ldquoTal-vez porque a alma eacute grande e a vida pequenaE todos os gestos natildeo saem do nosso corpoE soacute alcanccedilamos onde o nosso braccedilo chegaE soacute vemos ateacute onde chega o nosso olhar rdquo (PESSOA 2015 p58)

Os textos em tela podem ser entendidos como um esbo-ccedilo daquilo que Aacutelvaro de Campos denominou ldquoesteacutetica natildeo-aris-toteacutelicardquo Nosso proacuteximo intento eacute o de mostrar de forma concisa essa ldquodoutrinardquo que Campos afirma ter visto aplicada em ape-nas trecircs poetas ldquonos assombrosos poemas de Walt Whitmanrdquo ldquonos poemas mais que assombrososrdquo do mestre Caeiro e nas duas odes a Ode triunfal e a Ode mariacutetima de sua proacutepria au-toria (PESSOA 2015 p436-444)

3

Divididos em duas seccedilotildees os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica partem no primeiro momento do se-guinte pressuposto haacute as geometrias natildeo-euclidianas ou seja que se baseiam em postulados diferentes dos formulados por Euclides de Alexandria e chegam a resultados tambeacutem diferen-tes Cada uma das geometrias possui desenvolvimentos loacutegi-cos peculiares sendo ldquosistemas interpretativos independentes independentemente aplicaacuteveis agrave realidaderdquo Do mesmo modo que se formaram as geometrias que natildeo seguiam os postulados euclidianos seria uacutetil a formaccedilatildeo de uma esteacutetica que natildeo fosse pautada nos princiacutepios aristoteacutelicos Logo Aacutelvaro de Campos esclarece

Chamo de esteacutetica aristoteacutelica agrave que pretende que o fim da arte eacute (sic) a beleza ou dizendo melhor a produccedilatildeo nos outros da mesma impressatildeo que a que nasce da con-templaccedilatildeo ou sensaccedilatildeo das coisas belas Para arte claacutessica ndash e as suas derivadas a romacircntica a decadente e outras assim - a beleza eacute o fim divergem apenas os caminhos para esse fim exatamente como em matemaacutetica se podem fazer diversas demonstraccedilotildees do mesmo teorema A arte claacutessica deu-nos obras grandes e sublimes o que natildeo quer dizer que a teoria de construccedilatildeo dessas obras seja certa ou que seja a uacutenica teoria ldquocertardquo Eacute frequente aliaacutes tanto na vida teoacuterica como na pratica chegar-se a um resultado certo por proces-sos incertos ou mesmo errados Creio poder formular uma

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

94

esteacutetica natildeo na ideia de beleza mas na de forccedila ndash tomando eacute claro a palavra forccedila no seu sentido abstrato e cientiacutefico porque se fosse no vulgar tratar-se-ia de certa maneira ape-nas de uma forma disfarccedilada de beleza Esta nova esteacutetica ao mesmo tempo que admite como boas grande nuacutemero de obras claacutessicas ndash admitindo-as poreacutem por uma razatildeo diferen-te da dos aristoteacutelicos que foi naturalmente tambeacutem a dos seus autores - estabelece uma possibilidade de se constru-iacuterem novas espeacutecies de obras de arte que quem sustente a teoria aristoteacutelica natildeo poderia prever ou aceitar (PESSOA 2015 p436-437)

A arte na esteacutetica natildeo-aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos origina-se do mesmo princiacutepio vital de toda atividade humana gerada pela ldquoforccedila ou energiardquo Entatildeo sendo a arte ldquoum produto de entes vivosrdquo conforme ele disse isto eacute ldquoum produto da vidardquo as forccedilas que se manifestam na obra satildeo as mesmas formas as quais se manifestam na vida Por essa via a produccedilatildeo ar-tiacutestica tende a acontecer a partir das forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo semelhantes ao ldquoanabolismordquo e ldquocatabolismordquo orgacircnicos No entanto ldquosem a coexistecircncia e equiliacutebrio destas duas forccedilas natildeo haacute vida pois a pura integraccedilatildeo eacute a ausecircncia da vida e a pura desintegraccedilatildeo eacute a morterdquo (PESSOA 2015 p437) Ademais ldquoa vida eacute uma accedilatildeo acompanhada automaacutetica e intrinsecamente da reaccedilatildeo correspondente E eacute no automa-tismo da reaccedilatildeo que reside o fenocircmeno especiacutefico da vidardquo O ldquovalor da vidardquo ou a ldquovitalidade do organismordquo estaacute condicionado agrave ldquointensidaderdquo igual e paralela de accedilatildeo e reaccedilatildeo a fim de que se mantenha o equiliacutebrio e que se evite uma proporcionalidade inversa na accedilatildeo e reaccedilatildeo das forccedilas Nesse sentido Aacutelvaro de Campos conclui ldquoAssim o equiliacutebrio vital eacute natildeo um fato dire-to ndash como querem para a arte (natildeo esqueccedilamos o fim destes apontamentos) os aristoteacutelicos ndash mas o resultado abstrato do encontro de dois fatosrdquo

Na concepccedilatildeo de Campos ldquoa arte eacute feita por se sentir e para se sentir ndash sem o que seria ciecircncia ou propagandardquo logo ldquoa sensibilidade eacute a vida da arterdquo No interior da sensibilidade deve haver accedilatildeo e reaccedilatildeo atuando sobre a estrutura equilibra-da de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo com a finalidade de fazer existir a arte Aacutelvaro de Campos crecirc que sua teoria ldquoeacute mais loacutegi-ca ndash se eacute que haacute loacutegicardquo do que a aristoteacutelica pelo fato de que na sua teoria ldquoa arte fica o contraacuterio da ciecircncia ndash entendemos aqui ciecircncia por teacutecnica ndash o que na aristoteacutelica natildeo acontecerdquo (Ibidem p 242) Segundo Georg Rudolf Lind a diferenccedila feita por Campos entre a teoria aristoteacutelica e a natildeo-aristoteacutelica im-plicam a primeira a qual conforme afirmou o poeta tem por finalidade ldquoagradarrdquo estabelece-se em ldquo1) beleza 2) inteligecircn-cia e 3) unidaderdquo a segunda enunciada por Campos reivindica ldquo1) forccedila 2) sensibilidade e 3) unidaderdquo (LIND 1981 p 226) Das ldquoanalogias abstrusasrdquo observa Lind o poeta e engenheiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

95

daacute um salto abruptamente nas consideraccedilotildees a fim de concluir que ldquoa esteacutetica aristoteacutelica tende do individual para o geral () a natildeo-aristoteacutelica em contrapartida do geral para o particularrdquo (Ibidem p 227) Se a primeira parte dos Apontamentos eacute passiacute-vel de muitas ressalvas a segunda o eacute mais ainda Se o projeto de uma nova teoria esteacutetica eacute faliacutevel ainda escreve Lind ldquoas demonstraccedilotildees pseudoloacutegicas da 2ordf parte contecircm ainda uma quantidade maior de errosrdquo (LIND 1981 p 227) Ainda se com-parado ao Ultimatum seu manifesto de vanguarda a referida seccedilatildeo de tais apontamentos pouco foi modificada sendo dessa maneira uma repeticcedilatildeo das mesmas ideias do manifesto

A complexidade e as abstraccedilotildees dos conceitos criados por Aacutelvaro de Campos no intento de fundar uma teoria esteacutetica vigorosa contraacuteria agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica fizeram com que seu projeto com ares futuristas de unir ciecircncia e arte falhasse con-forme acreditam comentadores tais como Almeida Faria Joatildeo Gaspar Simotildees e o jaacute citado Georg Rudolf Lind Entretanto ponto consideravelmente forte desenvolvido pelo natildeo-aristote-lismo de Campos foi sem duacutevida a postura incisiva no combate aos atos civilizatoacuterios que ldquofazem morrerrdquo no homem sua forccedila natural instintiva de reaccedilatildeo e criaccedilatildeo

Nesse sentido cremos que a teoria de Campos tenha saiacutedo vitoriosa o escrito sob o tiacutetulo A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aparece conforme dissemos no iniacutecio de modo preliminar agrave ideia de negaccedilatildeo da esteacutetica de Aristoacuteteles A relaccedilatildeo desse primeiro momento das ideias de Campos com os seus Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica pode ser estabelecida quando consideramos que a aceitaccedilatildeo dos termos aristoteacutelicos correlatos harmonia e beleza tende a um princiacutepio de arranjo estruturado pela permanecircncia aniquiladora dos ins-tintos naturais natildeo harmocircnicos do homem Ora se desarmonia e feiuacutera (fealdade na lsquoterminologiarsquo pessoana) constituem tam-beacutem a natureza realmente natildeo haacute sentido em crer-se apenas na arte fundada na estreita relaccedilatildeo da harmonia das partes de um todo implicando princiacutepio de beleza Contudo haacute no pensa-mento de Campos um requerimento de equiliacutebrio entre as forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo que poderia ser entendido tal como um princiacutepio de harmonia do mesmo modo que em Aris-toacuteteles se o plano teoacuterico do poeta da Ode triunfal natildeo fosse baseado na ideia de ldquoforccedilardquo

4

Diante da possibilidade de a sensibilidade imperar no processo de fazer artiacutestico abrimos caminhos para pensar na substacircncia fiacutesica ou na estrutura do ser humano o corpo Quan-do Fernando Pessoa esboccedila a possibilidade de uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica mesmo natildeo concluiacuteda mesmo natildeo sendo para

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

96

alguns aplicaacutevel agrave proacutepria obra ou a qualquer obra que seja her-damos uma fenda larga como passagem pelo muro das repre-sentaccedilotildees cristalizadas Eacute muito evidente que o seu linguajar se aproprie da biologia e da matemaacutetica num diaacutelogo estabelecido entre arte e ciecircncia esteacutetica e epistemologia esteacutetica e eacutetica Poreacutem evidente tambeacutem eacute que o mesmo natildeo desloca os ins-tintos do gecircnero humano para fora da sociedade Ao contraacuterio observa que esse meio artificial atenta de modo frequente agraves forccedilas vitais tendendo agrave perenidade e que cabe ao ser humano criador de arte o artista atraveacutes da sensibilidade das sensa-ccedilotildees recebidas pelo seu corpo se desvencilhar das amarras da tradiccedilatildeo que faz morrer Morrer no sentido de anular-se natildeo no de transformar-se dando lugar a outra coisa agrave outra ldquovidardquo Um poeta absorve impressotildees de toda ordem das vivecircncias faz com que as mesmas ldquomorramrdquo nele transformando-as para dar agrave luz ao poema que por sua vez provocaraacute sensaccedilotildees no leitor ldquoE os que leem o que escreveNa dor lida sentem bemNatildeo as duas que ele teveMas soacute a que eles natildeo tecircmrdquo (PESSOA 2001 p164-165)

Joseacute Gil em Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sen-saccedilotildees mesmo natildeo abordando as reflexotildees sobre a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica aproximou os escritos de Campos ao conceito de ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo de Deleuze e Guattarri o relacionando ao ldquoplano de consciecircnciardquo criado pelo poeta (GIL 1998 p66-75) Em suma a anaacutelise de Gil se estabelece na poesia de Aacutelvaro de Campos colocando o heterocircnimo pessoano enquanto ldquoanali-sador de sensaccedilotildeesrdquo no espaccedilo abstrato revelado nos poemas Entatildeo considerando as observaccedilotildees do criacutetico portuguecircs seria possiacutevel uma relaccedilatildeo entre o natildeo-aristotelismo pensado pelo heterocircnimo sensacionista e o seu fazer poeacutetico Da perspectiva sobre as sensaccedilotildees e do enfrentamento dos atos civilizatoacuterios que negam a vida no plano da imanecircncia pelo alcance da bele-za por meios natildeo-tradicionais a resposta eacute sim

Por fim a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica figura natildeo apenas en-quanto pensamento oposto agraves poeacuteticas claacutessicas aristoteacutelicas mas tambeacutem se apresenta como marco natildeo-normativo natildeo--prescritivo de um modelo a ser seguido ainda que seu autor afirme que a finalidade seja a mesma o alcance da beleza se-guindo meios distintos o mesmo autor desconstroacutei a rigidez da tradiccedilatildeo apontando-nos uma via de acesso agrave arte pelo corpo Uma via de matildeo dupla na qual tanto quem faz da arte um acon-tecimento independente do suporte (palavra imagem som etc) quanto quem exerce a fruiccedilatildeo seja perpassado e afetado de alguma forma pela expressatildeo esteacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

97

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Poeacutetica 7ed Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterios e apecircndices de Eudoro de Sousa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 2003

GIL Joseacute Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sensaccedilotildees Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 1988

LIND Georg Rudolf Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1981 (Estudos Portugue-ses)

LOPES Teresa Rita Fernando Pessoa et le drame symbo-liste heacuteritage et creacuteation Paris De La Difeacuterence 2004 (Les Essais)

PESSOA Fernando Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica In___ Obra completa de Aacutelvaro de Campos Edi-ccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p436-444

___ ANEXO Geacutenese dos ldquoApontamentosrdquo In___ Obra com-pleta de Aacutelvaro de Campos Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p445-446

___ Obra poeacutetica Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001

___ Obra em prosa Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Cle-onice Berardineli 2ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

98

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoFernando Pessoa and his Philosophy of Composition

Palavras-chave Heteroniacutemia identidade natildeo-identidade autorreflexatildeo desper-sonalizaccedilatildeo personificaccedilatildeo forma sensaccedilatildeoKeywords Heteronym identity non-identity cogito self-reflexion depersonali-zation personification form sensation

RESUMO Examinarei alguns niacuteveis formais do paradoxo e da contradiccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro de Fernando Pessoa explicitando aspectos formais do processo de desper-sonalizaccedilatildeo que move sua escrita poeacutetica Mostrarei em segui-da como ao trilhar o caminho de despersonalizaccedilatildeo aberto pela certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos conden-sa estilhaccedilos de noccedilotildees reflexivas do sujeito levando agraves uacuteltimas consequecircncias a despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico tal como teori-zado por Fernando Pessoa

ABSTRACT This article aims to show some formal levels of paradox and contradiction on the dramatic poem The Sailor taking into account the subjective drama that moves its poetic writing Hope to show how Aacutelvaro de Campos treading the path of depersonalization opened by the sense-certainty of Alberto Caeiro condenses fragments of reflective notions of the subject as propelling elements of depersonalization such as it is treated by Pessoa

1 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Quando Fernando Pessoa escreve sobre os heterocircni-mos ele pensa imediatamente no ato de invenccedilatildeo literaacuteria ca-paz de unir sob uma forma superior de composiccedilatildeo os efeitos dramaacuteticos da despersonalizaccedilatildeo e as formas de expressatildeo correntes na tradiccedilatildeo literaacuteria ocidental A despersonalizaccedilatildeo figura como responsaacutevel pela reuniatildeo de diferentes graus de elaboraccedilatildeo do estilo numa forma superior de composiccedilatildeo Essa ideia encontra-se particularmente desenvolvida em dois frag-mentos em que o poeta distingue os cinco ldquograus da poesia liacuteri-cardquo entendendo-os como progressatildeo intensiva da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica

O terceiro grau da poesia liacuterica eacute aquele em que o poeta ainda mais intelectual comeccedila a despersonalizar-se a sentir natildeo jaacute porque sente mas porque pensa que sente a sentir estados de alma que realmente natildeo tem simplesmente por-

Rubens Joseacute da Rocha

Doutorando pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia da UFSCar E-mail ens_rubensyahoocombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

99

que os compreende Estamos na antecacircmara da poesia dra-maacutetica na sua essecircncia iacutentima O temperamento do poeta seja qual for estaacute dissolvido pela inteligecircncia A sua obra seraacute unificada soacute pelo estilo uacuteltimo reduto da sua unidade espiri-tual da sua coexistecircncia consigo mesmo O quarto grau da poesia liacuterica eacute aquele muito mais raro em que o poeta mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo entra em plena despersonalizaccedilatildeo Natildeo soacute sente mas vive os estados de alma que natildeo tem directamente Em grande nuacutemero de ca-sos cairaacute na poesia dramaacutetica propriamente dita como fez Shakespeare poeta substancialmente liacuterico erguido a dramaacute-tico pelo espantoso grau de despersonalizaccedilatildeo que atingiu (PESSOA 1993 pp 274-275)1

Ao lado de noccedilotildees como ldquotemperamentordquo ldquosentimentordquo ldquoemoccedilatildeordquo ldquoimaginaccedilatildeordquo e ldquointeligecircnciardquo a despersonalizaccedilatildeo aparece como um dos conceitos centrais na caracterizaccedilatildeo do eu liacuterico e das personagens dramaacuteticas O poeta compreende o conceito segundo a ideia de uma progressatildeo expressiva que se desdobra da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica e alcanccedila sua forma ideal de expressatildeo na poesia heterocircnima A poesia liacuterica eacute o gecircnero que define as duas primeiras etapas Na terceira completa-se o primeiro ciclo de despersonalizaccedilatildeo com o deslocamento da unidade expressiva do eu liacuterico para uma posiccedilatildeo coadjuvante em face agraves exigecircncias de unidade da forma dramaacutetica Nas duas etapas finais o poeta descreve a po-esia heterocircnima em comparaccedilatildeo agrave forma dramaacutetica em particu-lar nas peccedilas de Shakespeare em que o monoacutelogo se sobrepotildee ao diaacutelogo entre as personagens

No primeiro grau de despersonalizaccedilatildeo a escrita produz a unidade expressiva do eu liacuterico como forma poeacutetica ligada agrave personalidade do autor A forma poeacutetica ainda natildeo goza de au-tonomia com relaccedilatildeo agrave ldquomaneira de sentirrdquo do poeta (seu tempe-ramento) estando a unidade do eu liacuterico diretamente vinculada agrave sua atitude psicoloacutegica O segundo grau ocorre quase exclu-sivamente no interior da forma poeacutetica quando o temperamen-to do poeta e o estilo encontram-se enredados num complexo movimento de reflexatildeo na busca de uma saiacuteda possiacutevel para a

1 A esta passagem corresponde este trecho de um segundo texto so-bre os graus da poesia liacuterica ldquoUm passo mais na escala poeacutetica [terceiro grau] e temos o poeta que eacute uma criatura de sentimentos vaacuterios e fictiacutecios mais imaginativo do que sentimental e vivendo cada estado de alma antes pela inteligecircncia que pela emoccedilatildeo Este poeta exprimir-se-aacute como uma mul-tiplicidade de personagens unificadas natildeo jaacute pelo temperamento e o estilo pois que o temperamento estaacute substituiacutedo pela imaginaccedilatildeo e o sentimento pela inteligecircncia mas tatildeo-somente pelo simples estilo Outro passo na mes-ma escala de despersonalizaccedilatildeo [quarto grau] ou seja de imaginaccedilatildeo e temos o poeta que em cada um de seus estados mentais vaacuterios se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza de sorte que vivendo ana-liticamente esse estado da alma faz dele como que a expressatildeo de um ou-tro personagem e sendo assim o mesmo estilo tende a variarrdquo (PESSOA 1993 pp 274-275)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

100

oposiccedilatildeo entre sentir e pensar (emoccedilatildeo e inteligecircncia)No terceiro grau ocorre a despersonalizaccedilatildeo da ldquomanei-

ra de sentirrdquo que conferia unidade ao eu liacuterico O movimento de autorreflexatildeo forccedila a forma poeacutetica a distanciar-se ainda mais da atitude psicoloacutegica do autor cindindo o eu liacuterico em duas ou mais identidades Ocorre entatildeo a personificaccedilatildeo dessas identi-dades em personagens que dialogam e interagem segundo exi-gecircncias formais do gecircnero dramaacutetico Como veremos adiante a personificaccedilatildeo seraacute compreendida natildeo apenas como figura de estilo cuja funccedilatildeo consiste em atribuir caracteriacutesticas da per-sonalidade humana a animais objetos e ideias abstratas mas tambeacutem como composiccedilatildeo de uma identidade a qual se atribui alternadamente segundo certa dinacircmica de oposiccedilatildeo agrave natildeo-i-dentidade o estatuto ficcional de uma maacutescara uma figura ou de uma personalidade heteroniacutemica

No quarto grau inicia-se a despersonalizaccedilatildeo da forma dramaacutetica A natildeo-identidade entre as maneiras de sentir pensar e falar das personagens promove a suspensatildeo das unidades de tempo e espaccedilo observando-se no quinto grau de desper-sonalizaccedilatildeo a personificaccedilatildeo da alteridade simboacutelica do drama (o autor o puacuteblico o leitor) As personagens abandonam aos poucos a seacuterie de oposiccedilotildees entre o pensar o sentir o falar e o agir para personificar a forma poeacutetica com a atitude psicoloacutegica de personagens que falam e atuam simultaneamente como au-tor ator diretor puacuteblico e leitor de seu proacuteprio drama subjetivo

2 A despersonalizaccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro

O poema dramaacutetico O Marinheiro eacute um dos passos de-cisivos na caracterizaccedilatildeo do processo de despersonalizaccedilatildeo teorizado pelo poeta2 Escrito em 1913 e publicado no primeiro volume da revista Orpheu em 1915 o poema conjuga caracte-riacutesticas do terceiro e quarto graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico Estampada no frontispiacutecio da obra a noccedilatildeo de ldquodrama es-taacutetico em um quadrordquo3 pode ser interpretada como execuccedilatildeo de um plano de superaccedilatildeo da esteacutetica aristoteacutelica plano que se en-contra na base do drama subjetivo nos heterocircnimos4 Desde o 2 Nas palavras de Carlos Felipe Moiseacutes ldquoOs poucos estudiosos que se manifestaram a respeito poreacutem sugerem de um modo ou de outro que eacute um texto decisivo para a compreensatildeo do conjunto da poesia pessoana quando menos porque o seu lsquodrama estaacutetico em um quadrorsquo como o chamou o poeta pode ser visto como lsquoensaiorsquo preliminar em torno de algumas linhas de forccedila da obra heteroniacutemica ainda praticamente toda por criarrdquo (MOISEacuteS CF Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p163)3 Praticado e teorizado por dramaturgos simbolistas como Strindberg e Maeterlinck Cf LOPES MTR Fernando Pessoa et le Drame Symboliste4 Em sua proposta de superaccedilatildeo do pensamento aristoteacutelico Aacutelvaro de Campos opotildee ao conceito de beleza o conceito de forccedila cuja principal ca-racteriacutestica seria o embate entre os princiacutepios de integraccedilatildeo e desintegraccedilatildeo orgacircnica da vida ldquoA arte para mim eacute como toda a atividade um indiacutecio de forccedila ou energia mas como a arte eacute produzida por entes vivos sendo pois

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

101

iniacutecio do diaacutelogo eacute possiacutevel notar uma seacuterie de atitudes que faz as trecircs personagens recuar diante da exigecircncia tradicional da accedilatildeo Um recuo representado natildeo soacute pela disposiccedilatildeo espacial de cada personagem (que se encontram sentadas e portanto inertes diante de ldquouma janela alta e estreitardquo no interior de ldquoum castelo antigordquo) mas tambeacutem pela sequecircncia de enunciaccedilotildees negativas precedidas pelo adveacuterbio de negaccedilatildeo

PRIMEIRA VELADORA mdash Ainda natildeo deu hora nenhu-ma

SEGUNDA mdash Natildeo se pode ouvir Natildeo haacute reloacutegio aqui perto Dentro em pouco deve ser dia

TERCEIRA mdash Natildeo o horizonte eacute negroPRIMEIRA mdash Natildeo desejais minha irmatilde que nos en-

tretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falso

SEGUNDA mdash Natildeo natildeo falemos nisso De resto fo-mos noacutes alguma cousa

PRIMEIRA mdash Talvez Eu natildeo sei Mas ainda assim sempre eacute belo falar do passado As horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircncio Por mim tenho estado a olhar para a chama daquela vela Agraves vezes treme ou-tras torna-se mais amarela outras vezes empalidece Eu natildeo sei por que eacute que isso se daacute Mas sabemos noacutes minhas irmatildes por que se daacute qualquer cousa

(uma pausa) TERCEIRA mdash Por que natildeo haveraacute reloacutegio neste quar-

to SEGUNDA mdash Natildeo sei Mas assim sem o reloacutegio

tudo eacute mais afastado e misterioso A noite pertence mais a si proacutepria Quem sabe se noacutes poderiacuteamos falar assim se soubeacutessemos a hora que eacute

PRIMEIRA mdash Minha irmatilde em mim tudo eacute triste Passo Dezembros na alma Estou procurando natildeo olhar para a janela Sei que de laacute se vecircem ao longe montes Eu fui feliz para aleacutem de montes outrora Eu era pequeni-na Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que natildeo mas tirassem Natildeo sei o que isto tem de irre-paraacutevel que me daacute vontade de chorar Foi longe daqui que isto pocircde ser Quando viraacute o dia

TERCEIRA mdash Que importa Ele vem sempre da mes-ma maneira sempre sempre sempre

(uma pausa)5

um produto da vida as formas da forccedila que se manifestam na arte satildeo as formas da forccedila que se manifestam na vidardquo (Obra em Prosa Apontamentos para uma Esteacutetica natildeo Aristoteacutelica p241)5 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp441-442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

102

Logo no iniacutecio do poema trecircs irmatildes velam a morte de uma quarta que se encontra no centro do quarto estendida so-bre um caixatildeo O diaacutelogo comeccedila quando uma delas nota a au-secircncia de reloacutegio no quarto A ausecircncia de accedilatildeo dramaacutetica entra aos poucos em evidecircncia com a transposiccedilatildeo do tempo linear do reloacutegio para o tempo psicoloacutegico das veladoras As enunciaccedilotildees negativas impulsionam o diaacutelogo em sentido inverso ao tempo linear (o drama inicia-se ao anoitecer e termina ao romper do dia) o que leva as personagens a buscar no passado o sentido necessaacuterio para suprir a ausecircncia de accedilatildeo Na busca pelo senti-do o diaacutelogo se sobrepotildee agrave accedilatildeo ldquoNeste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar ten-do Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes delerdquo Falar do passado implica natildeo soacute interromper o ritmo da accedilatildeo dramaacute-tica mas tambeacutem sobrepor agrave pulsatildeo linear do reloacutegio (para elas inexistente) uma pulsatildeo lacunar de origem psicoloacutegica6

A transposiccedilatildeo do tempo linear para o tempo psicoloacutegico ocorre a partir da oposiccedilatildeo entre o silecircncio e a fala das velado-ras ldquoAs horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircnciordquo A opo-siccedilatildeo entre o silecircncio e a fala aparece marcada pelas reticecircncias e pausas que costumam entrecortar natildeo somente a fala das personagens como tambeacutem os momentos criacuteticos do diaacutelogo Se de iniacutecio a transposiccedilatildeo psicoloacutegica do tempo7 ldquoPasso De-zembros na almardquo representa o recuo da personagem diante da accedilatildeo ela representaraacute a seguir a ultrapassagem do tempo psicoloacutegico pela accedilatildeo estaacutetica do sonho A oposiccedilatildeo entre o recuo da accedilatildeo em direccedilatildeo ao passado e a ultrapassagem do presente pelo sonho constitui um continuum temporal represen-tado pelo quarto circular do castelo antigo Ao destacar-se da pulsatildeo linear do reloacutegio a oposiccedilatildeo entre as atitudes de recuo e ultrapassagem impulsiona a fala das personagens (o vento e a luz cambiante da vela) para fora da clausura subjetiva ldquoNatildeo desejais minha irmatilde que nos entretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falsordquo ou para o plano horizontal da escrita (ldquoNatildeo o horizonte eacute negrordquo) Um complexo movimento de reflexatildeo sobressalente ao jogo dos significantes (assonacircn-cia e aliteraccedilatildeo) interfere diretamente na orquestraccedilatildeo simboacuteli-ca do poema A ultrapassagem da accedilatildeo dramaacutetica pelo sonho personificada na figura da irmatilde morta torna-se cada vez mais evidente com a recusa da segunda veladora de levar a cabo o gesto de se levantar ou seja o gesto de projetar-se em direccedilatildeo 6 Maria Teresa Rita Lopes comenta da seguinte maneira essa ausecircn-cia temporal ldquoCe nrsquoest que coupeacutees de tout contact avec le monde quotidien en flottant dans ce lsquonulle-temps et dans de lsquonulle partrsquo du recircve que leurs paro-le srsquoeacutepanouissent en toute liberteacute jusqursquoagrave leur paraicirctre eacutetrangegraveres agrave elles-mecirc-mes (RITA LOPES MariaTeresa Fernando Pessoa et le Drame Symboliste Heritage et Creation p189)7 BACHELARD Gaston A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo pp85-103 Mais tar-de para fixar com maior precisatildeo a singularidade do parto heteroniacutemico o poeta sentiraacute ainda necessidade de sobrepor ao tempo psiacutequico dos heterocirc-nimos o tempo astroloacutegico calcado nos dados objetivos de nascimento de cada heterocircnimo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

103

ao futuro por meio de uma accedilatildeo atitude que impediria o sonho de avanccedilar para fora dos tempos linear e psicoloacutegico ldquoNatildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonhordquo A tensatildeo entre o gesto estaacutetico da fala (ou da escri-ta) e a encenaccedilatildeo progressiva do sonho resulta na duplicaccedilatildeo do impulso criativo ldquoContemos contos umas agraves outrasrdquo como promessa de saiacuteda do conflito entre as categorias temporais a imaginaccedilatildeo e a realidade

SEGUNDA mdash Contemos contos umas agraves outras Eu natildeo sei contos nenhuns mas isso natildeo faz mal Soacute vi-ver eacute que faz mal Natildeo rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes Natildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonho Neste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar tendo Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes dele

PRIMEIRA mdash Decidimos natildeo o fazer Breve raiaraacute o dia e arrepender-nos-emos Com a luz os sonhos ador-mecem O passado natildeo eacute senatildeo um sonho De resto nem sei o que natildeo eacute sonho Se olho para o presente com muita atenccedilatildeo parece-me que ele jaacute passou O que eacute qualquer cousa Como eacute que ela passa Como eacute por dentro o modo como ela passa Ah falemos minhas irmatildes falemos alto falemos todas juntas O silecircncio co-meccedila a tomar corpo comeccedila a ser cousa Sinto-o en-volver-me como uma neacutevoa Ah falai falai8

Cada sonho desliza portanto sobre uma seacuterie de opo-siccedilotildees simboacutelicas atraveacutes da qual alternam-se os gestos da fala e da escrita Gestos e atitudes que condensam ou dispersam ao longo do diaacutelogo os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do so-nho ateacute a completa suspensatildeo da aderecircncia psicoloacutegica das irmatildes ao ritmo linear do reloacutegio com a narraccedilatildeo do sonho do marinheiro pela segunda veladora nuacutecleo da tensatildeo dramaacutetica Ao percorrer os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do sonho a ati-tude psicoloacutegica das veladoras oscila (a chama da vela) entre a direccedilatildeo perpendicular do pensamento (o segredo de pedra dos montes) e as direccedilotildees obliacutequa e horizontal da fala e da escrita (ldquoporque natildeo vale nunca a pena fazer nadardquo) tornando possiacutevel alccedilar a atitude psicoloacutegica das veladoras (pelo amor agraves ondas) ao plano de um continuum temporal oniacuterico

TERCEIRA mdash As vossas frases lembram-me a minha alma

SEGUNDA mdash Eacute talvez por natildeo serem verdadeiras Mal sei que as digo Repito-as seguindo uma voz que natildeo ouccedilo que mas estaacute segredando Mas eu devo ter vivido realmente agrave beira-mar Sempre que uma cousa

8 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp 442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

104

ondeia eu amo-a Haacute ondas na minha alma Quando ando embalo-me Agora eu gostaria de andar Natildeo o faccedilo porque natildeo vale nunca a pena fazer nada sobre-tudo o que se quer fazer Dos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e gran-des Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um mo-mento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz9

A despersonalizaccedilatildeo ocorre a partir desse desniacutevel entre o ritmo linear (andar) e o ritmo lacunar (ondear) como expres-satildeo da descontinuidade entre o tempo linear da accedilatildeo e o tempo psicoloacutegico da fala ou seja como ato criativo que evidencia o desniacutevel formal entre a fala das veladoras e a ultrapassagem autorreflexiva do sonho A despersonalizaccedilatildeo das personagens e a ultrapassagem da accedilatildeo pelo sonho servem de mola pro-pulsora para a personificaccedilatildeo do marinheiro personagem que figura no drama atraveacutes da estoacuteria de um naufraacutegio narrada pela segunda veladora Ao reduplicar o processo criativo com a estoacuteria do marinheiro a segunda veladora torna-se responsaacutevel pela dobra temporal que se situa na intermitecircncia entre os dois mundos possiacuteveis no drama o mundo sonhado agrave luz da vela e o mundo sonhado agrave luz do sol

SEGUNDA mdash Para quecirc Fito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos Este ar quente eacute frio por dentro naquela parte que toca na alma Eu devia agora sentir matildeos impossiacuteveis passarem-me pelos ca-belos mdash eacute o gesto com que falam das sereias (Cru-za as matildeos sobre os joelhos Pausa) Ainda haacute pouco quando eu natildeo pensava em nada estava pensando no meu passado

PRIMEIRA mdash Eu tambeacutem devia ter estado a pen-sar no meu

TERCEIRA mdash Eu jaacute natildeo sabia em que pensava No passado dos outros talvez no passado de gente ma-ravilhosa que nunca existiu Ao peacute da casa de minha matildee corria um riacho Por que eacute que correria e por que eacute que natildeo correria mais longe ou mais perto Haacute alguma razatildeo para qualquer cousa ser o que eacute Haacute para isso qualquer razatildeo verdadeira e real como as minhas matildeos10

Ao ampliar a tensatildeo entre o plano horizontal da fala ou 9 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44310 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p443

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

105

da escrita e o plano perpendicular do sonho a despersonaliza-ccedilatildeo desestrutura os elementos de composiccedilatildeo que cumprem funccedilatildeo simboacutelica na individuaccedilatildeo das personagens ldquoAs matildeos natildeo satildeo verdadeiras nem reais Satildeo misteacuterios que habitam na nossa vida agraves vezes quando fito as minhas matildeos tenho medo de Deus Natildeo haacute vento que mova as chamas das velas e olhai elas movem-se Para onde se inclinam elas Que pena se algueacutem pudesse responderrdquo11 O impulso de desper-sonalizaccedilatildeo desliza em direccedilatildeo obliacutequa sobre o plano horizon-tal da escrita criando diversas associaccedilotildees entre significante e significado (vela vento veladora mar marinheiro onda andar alma amar) de modo a produzir um regime de significaccedilotildees instaacuteveis que no limite da tensatildeo gera um vaacutecuo de sentido responsaacutevel pela propulsatildeo do sonho em duas direccedilotildees tem-porais superpostas primeiro em direccedilatildeo ao passado rumo ao universo infantil simbolizado pelo ato de personificaccedilatildeo de flo-res ondas rochedos etc e segundo em direccedilatildeo ao futuro rumo ao nada existencial simbolizado pela presenccedila da quarta irmatilde morta A superposiccedilatildeo temporal dessas duas direccedilotildees sus-pende progressivamente qualquer apelo subjetivo agrave identidade do eu liacuterico ldquoEacute sempre longe na minha alma Talvez porque quando crianccedila corri atraacutes das ondas agrave beira-mar Levei a vida pela matildeo entre rochedos mareacute-baixa quando o mar parece ter cruzado as matildeos sobre o peito e ter adormecido como uma es-taacutetua de anjo para que nunca mais ningueacutem olhasse As vos-sas frases lembram-me a minha almardquo12

A dissoluccedilatildeo do apelo das irmatildes agrave identidade do eu liacuteri-co seraacute tambeacutem o momento da completa dissoluccedilatildeo da forma dramaacutetica tradicional13 ldquoFito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver--vosrdquo14 Mas a dissoluccedilatildeo do apelo agrave identidade (segredo de pedra do pensamento) natildeo significa dissipaccedilatildeo do sonho no pla-no horizontal da accedilatildeo Ao contraacuterio o sonho natildeo soacute continua em seu movimento reflexivo de condensaccedilatildeo e dispersatildeo simboacutelica como tambeacutem assume a funccedilatildeo de exprimir a natildeo-identidade da forma dramaacutetica em seus diferentes graus de despersonaliza-ccedilatildeo15 11 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44312 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp442 44313 A propoacutesito da dissoluccedilatildeo da forma tradicional no drama simbolista escreve Anatol Rosenfeld ldquoToda a dramaturgia serviraacute apenas para revelar os misteacuterios da proacutepria alma (de um eu central) a partir da qual se projetaraacute mdash como meros reflexos impressotildees ou visotildees mdash os outros personagens jaacute sem posiccedilatildeo autocircnoma e sim transformados em funccedilatildeo do Ego centralrdquo (ROSENFELD Anatol O Teatro Eacutepico p100)14 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44315 Carlos Felipe Moiacuteseacutes descreve do seguinte modo a relaccedilatildeo entre a dispersatildeo do sentido e a despersonalizaccedilatildeo ldquoAbaladas pelo espectro de Thaacutenatos mergulhadas no real caoacutetico gerado pelo poder persuasivo e dilui-dor das palavras as veladoras chegam ao limiar da indistinccedilatildeo entre Ser e Natildeo-ser Mas as falas prosseguem ainda mais ansiosas diante da evidente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

106

SEGUNDA mdashDos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e grandes De-vem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um momento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz

PRIMEIRA mdash Por mim amo os montes Do lado de caacute de todos os montes eacute que a vida eacute sempre feia Do lado de laacute onde mora minha matildee costumaacuteva-mos sentarmo-nos agrave sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves uma de cada lado do caminho A floresta natildeo tinha outras clareiras senatildeo os nossos pensamentos E os nossos sonhos eram de que as aacutervores projectassem no chatildeo outra calma que natildeo as suas sombras Foi decerto assim que ali vivemos eu e natildeo sei se mais algueacutem Dizei-me que isto foi verdade para que eu natildeo tenha de chorar 16

Sob efeito da despersonalizaccedilatildeo a accedilatildeo autorreflexiva do sonho17 desliza sobre o plano obliacutequo da fala suprimindo a identidade das personagens e convertendo o vaacutecuo existen-cial em polo de atraccedilatildeo do sentido A erradicaccedilatildeo da clausura subjetiva da identidade e a personificaccedilatildeo da natildeo-identidade na figura da donzela morta forccedilam a atitude psicoloacutegica das irmatildes a assumir uma forma indefinida como se elas estivessem a falar de Ningueacutem para Ningueacutem Nesse momento elas abandonam o regime de oposiccedilotildees elaborado no jogo entre os significan-tes para assumir o continuum temporal oniacuterico volteando como uma serpente entorno a oposiccedilatildeo entre fala e escuta escrita e leitura

PRIMEIRA mdash Contai sempre minha irmatilde contai sem-pre Natildeo pareis de contar nem repareis em que dias raiam O dia nunca raia para quem encosta a cabeccedila no seio das horas sonhadas Natildeo torccedilais as matildeos Isso faz um ruiacutedo como o de uma serpente furtiva Falai-nos muito mais do vosso sonho Ele eacute tatildeo verdadeiro que natildeo tem sentido nenhum Soacute pensar em ouvir-vos me toca muacutesica na almahellip

SEGUNDA ndashndash Sim falar-vos-ei mais dele Mesmo eu

dispersatildeo do Eu no contexto circundante um contexto que eacute o Eu ao mesmo tempo em que natildeo o eacute mais pois jaacute eacute concomitantemente o Outro (FELIPE MOISEacuteS Carlos Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p167)16 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44317 Em ensaios de Aacutelvaro de Campos sobre a esteacutetica sensacionista o heterocircnimo refere-se agrave reflexatildeo assim como agraves demais atitudes introspecti-vas e autoanaliacuteticas como manifestaccedilatildeo do impulso sensiacutevel compreenden-do-a como ldquosensaccedilatildeo da sensaccedilatildeordquo Cf Obra em Prosa Ideias Esteacuteticas pp 424-454

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

107

preciso de vo-lo contar Agrave medida que o vou contando eacute a mim tambeacutem que o conto Satildeo trecircs a escutar (De repente olhando para o caixatildeo e estremecendo) Trecircs natildeo Natildeo sei Natildeo sei quantas

TERCEIRA mdash Natildeo faleis assim Contai depressa contai outra vez Natildeo faleis em quantos podem ouvir Noacutes nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vecircem e escutam Voltai ao vosso sonho O marinhei-ro O que sonhava o marinheiro18

O diaacutelogo entre as trecircs veladoras ocorre no primeiro pla-no de composiccedilatildeo da peccedila no qual se consuma o terceiro grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico com a eclosatildeo do horror que a donzela morta aos poucos desperta nas trecircs personagens A presenccedila da personagem morta ocorre no segundo plano e fun-ciona como elemento psicoloacutegico que impulsiona as veladoras para fora da clausura subjetiva quando elas passam a contar e a ouvir a estoacuteria do marinheiro O terceiro plano de composiccedilatildeo corresponde ao quarto grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico no decorrer do qual cria-se a expectativa de personificaccedilatildeo do marinheiro como soluccedilatildeo para o problema da unidade dada a ausecircncia da accedilatildeo dramaacutetica Quando a segunda veladora passa a contar a estoacuteria do marinheiro referido ora como personagem sonhado ora como personagem real o contraste entre a fala das veladoras (em primeiro plano) e o silecircncio da donzela morta (no segundo plano) intensifica o processo de despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica

Naacuteufrago numa ilha deserta o marinheiro sonha viver numa paacutetria fictiacutecia capaz de apagar e substituir a lembranccedila da paacutetria natal Assim como as veladoras ele tambeacutem se des-personaliza pelo sonho de maneira a personificar um plano de composiccedilatildeo autocircnomo com relaccedilatildeo agrave estoacuteria narrada pela se-gunda veladora passando as trecircs veladoras a desejar personi-ficar o sonho do marinheiro como promessa de vida superior agrave realidade por elas mesmas vivida ldquoDizei-me istoDizei-me uma coisa ainda Por que natildeo seraacute a uacutenica coisa real nisto tudo o marinheiro e noacutes e tudo isto aqui apenas um sonho delerdquo19 O sonho do marinheiro sobrevoa de tal modo a inaccedilatildeo dramaacute-tica das veladoras que elas passam a acreditar na presenccedila fiacutesica do personagem ausente prenunciando a intervenccedilatildeo de uma ldquoquinta pessoardquo em cena ldquoQuem eacute a quinta pessoa neste quarto que estende o braccedilo e nos interrompe sempre que va-mos a sentirrdquo20

No limite da despersonalizaccedilatildeo o movimento autorre-flexivo do sonho desloca o diaacutelogo para o plano de composi-ccedilatildeo da quinta personagem operando a transposiccedilatildeo do ritmo

18 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44819 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44920 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p451

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

108

psicoloacutegico da fala para o ritmo lacunar do sonho21 O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinheiro e da quinta pes-soa seraacute o mais alto grau de despersonalizaccedilatildeo da peccedila (quarto grau da poesia liacuterica) A personificaccedilatildeo do personagem ausente ocorre ao nascer do dia com a supressatildeo do tempo linear da accedilatildeo e a transposiccedilatildeo do tempo psicoloacutegico das veladoras para o tempo-origem do sonho Esse processo de despersonalizaccedilatildeo prenuncia a entrada em cena da quinta pessoa como figura que representa a despersonalizaccedilatildeo do quinto grau da poesia liacuterica primeiro passo em direccedilatildeo agrave certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro e agrave escrita heteroniacutemica

O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinhei-ro natildeo aparece apenas durante o ato de escrita mas tambeacutem como efeito compreensivo de leitura ou seja como apreciaccedilatildeo criacutetica do processo de composiccedilatildeo dramaacutetica A quinta pessoa seraacute a figura que exprime este efeito compreensivo como um testemunho impliacutecito de que durante os momentos de pausa descanso ou interrupccedilotildees descontiacutenuas da escrita e da leitura as irmatildes natildeo poderatildeo existir senatildeo a partir de uma seacuterie de an-tagonismos que reverberam na imaginaccedilatildeo do leitor

TERCEIRA (para a SEGUNDA) mdash Minha irmatilde natildeo nos deviacuteeis ter contado essa histoacuteria Agora estranho--me viva com mais horror Contaacuteveis e eu tanto me dis-traiacutea que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente E parecia-me que voacutes e a vossa voz e o sentido do que diziacuteeis eram trecircs entes diferen-tes como trecircs criaturas que falam e andam

SEGUNDA mdash Satildeo realmente trecircs entes diferentes com vida proacutepria e real Deus talvez saiba porquecirc Ah mas por que eacute que falamos Quem eacute que nos faz conti-nuar falando Por que falo eu sem querer falar Por que eacute que jaacute natildeo reparamos que eacute dia

PRIMEIRA mdash Quem pudesse gritar para despertar-mos Estou a ouvir-me a gritar dentro de mimmas jaacute natildeo sei o caminho da minha vontade para a minha garganta Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que algueacutem possa bater agravequela porta Por que natildeo bate algueacutem agrave porta Seria impossiacutevel e eu tenho necessidade de ter medo disso de saber de que eacute que tenho medo Que estranha que me sinto Parece-me jaacute natildeo ter a minha voz Parte de mim adormeceu e ficou a ver O meu pavor cresceu mas eu jaacute natildeo sei senti-lo Jaacute natildeo sei em que parte da alma eacute que se sente Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo

21 ldquoRetire-se com efeito a dupla significaccedilatildeo do fingimento natildeo se considere nem o que se finge nem por que se finge e o que restaraacute Muita coisa resta a ordem o lugar a densidade a regularidade dos instantes em que a pessoa que finge deve forccedilar a naturezardquo (BACHELARD Gastoacuten A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo p97)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

109

Para que foi que nos contastes a vossa histoacuteria22

A progressatildeo dos graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuteri-co ocorre segundo uma seacuterie de exigecircncias expressivas da for-ma poeacutetica Ao despersonalizar os pensamentos e as emoccedilotildees que caracterizam as personagens no poema dramaacutetico O Mari-nheiro a autorreflexatildeo da forma poeacutetica permite agrave alteridade do drama (puacuteblico autor e diretor) ocupar cada vez mais o espaccedilo deixado pela dissoluccedilatildeo da unidade dramaacutetica Alternando-se na posiccedilatildeo de autores leitores e diretores as personagens natildeo apenas rompem com a unidade da accedilatildeo como passam a bus-car no contato direto com o sonho um substituto para a unidade perdida

3 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo em Alberto Caeiro

NrsquoO Guardador de Rebanhos a busca pela unidade per-dida culmina na personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica com uma espeacutecie de cogito heteroniacutemico e logo em seguida no encontro desse cogito heteroniacutemico com o mundo concreto das sensa-ccedilotildees e das formas sensiacuteveis23

Quando me sento a escrever versosOu passeando pelos caminhos ou pelos atalhosEscrevo versos num papel que estaacute no meu pensamentoSinto um cajado nas matildeosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiroOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem natildeo compreende [o que se dizE quer fingir que compreende

22 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p45023 Eacute bastante conhecida a ideia de Descartes sobre a impossibilidade de o pensamento sustentar-se na certeza de si sem antes esgotar o percur-so da duacutevida definindo seu ser pela negaccedilatildeo do mundo sensiacutevel do gecircnio maligno e do deus enganador No limite desse percurso o pensamento eacute for-ccedilado a desdobrar-se em sua completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo negado ou seja como natildeo-identidade entre a forma pura do pensamento e o conteuacutedo por ele pensado Na despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico em Fernan-do Pessoa o cogito heteroniacutemico tambeacutem adquire completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo pensado por ele A natildeo-identidade entre o ldquoeu pensordquo a ideia de Deus as sensaccedilotildees e as formas sensiacuteveis projeta a escrita poeacutetica de Alberto Caeiro sobre um plano de composiccedilatildeo que absorve o pensamento heteroniacutemico em sua natildeo-identidade ou seja ao mesmo tempo como sujeito pensante e como sujeito pensado Desse modo o cogito heteroniacutemico passa a ser refletido como momento de natildeo-identidade entre forma pensante e for-ma pensada permitindo agrave escrita percorrer a distacircncia entre a idealidade do ldquoeu pensordquo e a realidade do ldquoeu sourdquo como desdobramento interno agrave forma poeacutetica Ao produzir um mundo um cogito e um deus a natildeo-identidade en-tre forma pensada e forma pensante duplica um amplo espectro de atitudes reflexivas dando ensejo agrave individuaccedilatildeo da forma heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

110

(PESSOA 2006 p204)

A oposiccedilatildeo entre o plano horizontal da accedilatildeo (passear caminhar escrever) e o plano perpendicular do pensamento (o cajado e o cimo do outeiro) forccedila os elementos estruturais da linguagem (o som o sentido a sintaxe) a aparecer ora como negaccedilatildeo das formas sensiacuteveis ora como negaccedilatildeo da forma po-eacutetica ldquoOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideiasOu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanhordquo A oposiccedilatildeo entre a visatildeo estaacutetica das ideias e a accedilatildeo de tanger o rebanho gera um vaacutecuo de sentido (ldquoE sorrindo vagamente como quem natildeo compreende o que se dizrdquo) abrindo espaccedilo para a substituiccedilatildeo da unidade dramaacutetica pela atitude psicoloacute-gica do heterocircnimo (ldquoE quer fingir que compreenderdquo) A desper-sonalizaccedilatildeo passa entatildeo a agir sobre esse vaacutecuo de sentido substituindo a accedilatildeo das personagens dramaacuteticas pelo pensa-mento estaacutetico do heterocircnimo Desse modo a personificaccedilatildeo de Alberto Caeiro encerra na forma poeacutetica o drama existencial de um personagem agrave procura de formas sensiacuteveis capazes de doar unidade para seus pensamentos suas ideias e suas sen-saccedilotildees A personificaccedilatildeo da forma poeacutetica com as ideias es-taacuteticas de Caeiro (escrever olhar pensar sorrir falar) implica na personificaccedilatildeo das formas sensiacuteveis (o rebanho o cajado o outeiro) pelo movimento de autorreflexatildeo da forma em substi-tuiccedilatildeo agrave unidade da accedilatildeo dramaacutetica

Haacute metafiacutesica bastante em natildeo pensar em nadaO que penso eu do mundoSei laacute o que penso do mundoSe eu adoecesse pensaria nissoQue ideacuteia tenho eu das cousasQue opiniatildeo tenho sobre as causas e os efeitosQue tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criaccedilatildeo do MundoNatildeo sei Para mim pensar nisso eacute fechar os olhosE natildeo pensar Eacute correr as cortinasDa minha janela (mas ela natildeo tem cortinas)

(PESSOA 2006 pp206-207)

A autorreflexatildeo projeta o drama subjetivo do heterocircnimo para fora da forma poeacutetica como um ldquoeu penso que natildeo pen-sordquo24 que ldquoquer fingir que compreenderdquo o que a forma sensiacutevel supostamente significa tanto do lado interior como do lado ex-terior agrave forma poeacutetica A forma autorreflexiva do ldquoeu penso que

24 A despersonalizaccedilatildeo nos heterocircnimos percorre trecircs estaacutegios intensi-vos do pensamento o ldquoeu pensordquo posiccedilatildeo do eu liacuterico tradicional o ldquoeu pen-so que pensordquo comum agraves personagens dramaacuteticas ou agraves maacutescaras poeacuteticas e o ldquoeu penso que penso que pensordquo um heterocircnimo ou um personagem conceitual capaz de pensar seu proacuteprio pensamento atraveacutes de um conti-nuum temporal de reflexatildeo centrado na expressatildeo poeacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

111

pensordquo forccedila o heterocircnimo a buscar a unidade perdida em accedilotildees como caminhar passear abrir cortinas que passam a figurar a atitude psicoloacutegica do heterocircnimo A unidade da accedilatildeo cede es-paccedilo portanto agrave unidade da argumentaccedilatildeo

Mas se Deus eacute as flores e as aacutervoresE os montes e sol e o luarEntatildeo acredito neleEntatildeo acredito nele a toda a horaE a minha vida eacute toda uma oraccedilatildeo e uma missaE uma comunhatildeo com os olhos e pelos ouvidosMas se Deus eacute as aacutervores e as floresE os montes e o luar e o solPara que lhe chamo eu DeusChamo-lhe flores e aacutervores e montes e sol e luarPorque se ele se fez para eu o verSol e luar e flores e aacutervores e montesSe ele me aparece como sendo aacutervores e montesE luar e sol e floresEacute que ele quer que eu o conheccedilaComo aacutervores e montes e flores e luar e solE por isso eu obedeccedilo-lhe(Que mais sei eu de Deus que Deus de si proacuteprio)Obedeccedilo-lhe a viver espontaneamenteComo quem abre os olhos e vecircE chamo-lhe luar e sol e flores e aacutervores e montesE amo-o sem pensar neleE penso-o vendo e ouvindoE ando com ele a toda a hora

(PESSOA 2006 p207)

A completa personificaccedilatildeo do heterocircnimo ocorre quando a unidade da argumentaccedilatildeo for colocada agrave prova pela desperso-nalizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoeu penso que pensordquo25 que estrutura sua forma subjetiva opondo agrave autorreflexatildeo da forma poeacutetica um ldquoeu penso que penso que pensordquo como autorreflexatildeo da forma sensiacutevel26 A expressatildeo da natildeo-identidade entre forma poeacutetica e forma sensiacutevel inaugura um estilo de escrita capaz de conferir individuaccedilatildeo agrave personalidade do heterocircnimo A autorreflexatildeo da

25 Nas palavras de Walter Benjamin ldquoO pensar do pensar do pensar pode ser abarcado e consumado de duas maneiras Quando se parte da ex-pressatildeo ldquopensar do pensarrdquo este pode ser entatildeo no terceiro grau ou o objeto pensado o pensar (do pensar do pensar) ou entatildeo o sujeito pensante (pen-sar do pensar) do pensar A riacutegida forma originaacuteria da reflexatildeo do segundo grau eacute no terceiro abalada e acometida pela ambiguidade Esta no entanto se desdobraria em cada grau consecutivo numa ambiguidade cada vez mais muacuteltiplardquo BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Ale-matildeo p3826 Pode-se dizer assim que Alberto Caeiro aparece de um modo simi-lar e ao mesmo tempo inverso agrave definiccedilatildeo da identidade no cogito cartesia-no uma vez que de um modo muito mais complexo a personificaccedilatildeo que daacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

112

forma dramaacutetica o ldquoeu penso que penso que pensordquo conserva na escrita do heterocircnimo a natildeo-identidade entre forma poeacutetica cogito heteroniacutemico27 e forma sensiacutevel natildeo-identidade sem a qual a personalidade de Alberto Caeiro natildeo poderia se desen-volver e sem a qual natildeo seria possiacutevel atribuir a ele e aos de-mais heterocircnimos a autoria de uma obra em que eles mesmos se encontram implicados como personagens ao mesmo tempo reais e ficcionais Nesse estaacutegio de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico e do eu dramaacutetico Alberto Caeiro evidencia completo do-miacutenio sobre a atitude psicoloacutegica que o impulsiona em direccedilatildeo agraves sensaccedilotildees dando ensejo a uma leitura compreensiva que o defina como poeta dramaacutetico que aleacutem da simples invenccedilatildeo de formas e intensidades poeacuteticas eacute capaz de criar por fingimento e ironia formas e intensidades aniacutemicas e natildeo-aniacutemicas sob o efeito combinado de despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica

4 Despersonalizaccedilatildeo e sensacionismo em Aacutelvaro de Campos

A sensaccedilatildeo constitui o uacutenico meio de apreensatildeo das for-mas sensiacuteveis em Alberto Caeiro Sua existecircncia simples e ime-diata exclui qualquer prerrogativa idealista da linguagem e da representaccedilatildeo Observa-se uma concepccedilatildeo antiacutepoda em Aacutelva-ro de Campos Os elementos que melhor definem sua maneira de conceber a sensaccedilatildeo encontram-se na vanguarda esteacutetica criada pelo heterocircnimo e que se intitula sensacionismo Como observa Fernando Pessoa ortocircnimo os ideais esteacuteticos do sen-sacionismo satildeo em larga medida inspirados no objetivismo de Caeiro embora o objetivismo natildeo possa ser reduzido agrave esteacutetica sensacionista sem desvirtuar os traccedilos elementares de sua per-sonalidade

Dizem que Alberto Caeiro lamentou que o nome de ldquosensacionismordquo tivesse sido dado agrave sua atitude e agrave atitude que ele criou por um disciacutepulo seu mdash disciacutepulo um tanto quanto estranho eacute verdade mdash o Sr Aacutelvaro de Campos Se

origem ao cogito heteroniacutemico conserva a natildeo-identidade como momento de autorreflexatildeo da forma ao apresentar o cogito heteroniacutemico como natildeo-ser do pensamento atraveacutes do objetivismo absoluto do mestre heterocircnimo27 Ao assinalar a diferenccedila entre sonho noturno e devaneio Bachelard sugere a seguinte aproximaccedilatildeo entre o cogito e a experiecircncia poeacutetica do eu ldquoAo passo que o sonhador de sonho noturno eacute uma sombra que perdeu o proacuteprio eu o sonhador de devaneio se for um pouco filoacutesofo pode no centro do seu eu sonhador formular um cogitordquo (BACHELARD Gaston A Poeacutetica do devaneio p144) A noccedilatildeo de cogito heteroniacutemico mostra-se de pleno acordo com a definiccedilatildeo de filosofia proposta pelo heterocircnimo Antocircnio Mora heterocircnimo-filoacutesofo de Pessoa ldquoToda a filosofia eacute um antropomorfismo O erro fundamental eacute admitir como real a alma do indiviacuteduo o erigir a consciecircn-cia do indiviacuteduo em consciecircncia absoluta e a Realidade em individualidaderdquo (Obra em prosa Antocircnio Mora p527)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

113

Caeiro protestou contra a palavra como possivelmente pare-cendo indicar uma ldquoescolardquo a igual do Futurismo por exem-plo estava no seu direito e por duas razotildees pois a proacutepria sugestatildeo de escolas e movimentos literaacuterios soa mal quando aplicada a uma espeacutecie de poesia tatildeo incivilizada e natural E aleacutem disso embora tenha ele pelo menos dois ldquodisciacutepulosrdquo o fato eacute que exerceu sobre eles uma influecircncia igual agravequela que algum poeta mdash Cesaacuterio Verde talvez mdash exerceu sobre ele nenhum deles se lhe assemelha absolutamente embora na verdade bem mais claramente do que a influecircncia de Ce-saacuterio Verde sobre ele possa ser vista sua influecircncia em toda a obra deles (PESSOA 1993 p129)

Desse modo ao incluir Alberto Caeiro entre os poetas sensacionistas Aacutelvaro de Campos mostra-se muito mais pre-ocupado em elaborar sua proacutepria teoria do que em definir com precisatildeo o ensinamento do mestre Com efeito uma liccedilatildeo que Aacutelvaro de Campos aprendera mas que Alberto Caeiro natildeo en-sinara eacute que uma sensaccedilatildeo embora possa ser objetivamente percebida como forma sensiacutevel exterior tambeacutem encerra em si um universo desconhecido de outras sensaccedilotildees que podem ser sentidas ou percebidas internamente em toda sua amplitu-de pelo sujeito Em primeiro lugar lembremos que ldquosensaccedilatildeordquo era a palavra que o mestre heterocircnimo aplicava para designar a diferenccedila ontoloacutegica entre as formas sensiacuteveis Concebida as-sim a sensaccedilatildeo natildeo poderia ser um estado de apreensatildeo inter-na do sujeito Quando muito ela poderia significar algo como o contentamento que acompanha o ato de observar as formas sensiacuteveis ou a insatisfaccedilatildeo de natildeo poder observaacute-las com exa-tidatildeo Mesmo que se admitisse a existecircncia de caracteriacutesticas comuns que autorizasse o emprego do mesmo nome para a cor vermelha numa peacutetala de flor e a cor vermelha que tinge um vestido por exemplo as duas formas sensiacuteveis designadas pelo nome ldquovermelhordquo seriam sempre percebidas como sensa-ccedilotildees distintas cuja realidade independia do estado subjetivo de quem as via

A teoria sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste grosso modo na tentativa bem-sucedida de transpor a espon-taneidade sensiacutevel da crianccedila para o campo intelectual da refle-xatildeo conferindo realidade objetiva natildeo apenas agraves formas sen-siacuteveis mas tambeacutem agraves representaccedilotildees puramente subjetivas que as sucedem A diferenccedila sensiacutevel que caracterizava o obje-tivismo absoluto de Caeiro seraacute agora transposta para o plano da diferenccedila intelectual da representaccedilatildeo A sensaccedilatildeo natildeo seraacute somente a percepccedilatildeo imediata da forma sensiacutevel mas tambeacutem a ampliaccedilatildeo subjetiva dessa percepccedilatildeo pelo ato de sentir Ela seraacute um ldquosentir que senterdquo que corresponde aos momentos de projeccedilatildeo e espelhamento da reflexatildeo sobre si mesma a proje-ccedilatildeo subjetiva sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e a proje-ccedilatildeo das formas sensiacuteveis sobre a reflexatildeo subjetiva (realismo)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

114

A forma sensiacutevel torna-se meio de reflexatildeo do seu proacuteprio ser como reflexatildeo exterior ao sujeito e ao mesmo tempo torna--se capaz de comunicar-se por meio de representaccedilotildees para a reflexatildeo subjetiva do heterocircnimo Percorrendo o caminho de reflexatildeo que projeta o universo subjetivo do heterocircnimo sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e depois o caminho que proje-ta o universo objetivo das formas sensiacuteveis sobre as represen-taccedilotildees subjetivas (realismo) Aacutelvaro de Campos personifica o terceiro niacutevel de reflexatildeo o cogito agrave terceira potecircncia no qual o ldquoeu penso que penso que pensordquo incorpora e amplia os dois niacuteveis anteriores

O terceiro niacutevel de reflexatildeo marca o iniacutecio da autonomi-zaccedilatildeo da sensaccedilatildeo que conta agora com uma dupla forma de expressatildeo primeiro a sensaccedilatildeo se expressa como multiplica-ccedilatildeo progressiva dos modos de representar as formas sensiacuteveis (ou seja como autorreflexatildeo subjetiva da forma) e segundo ela se expressa como multiplicaccedilatildeo progressiva dos modos de ver sentir pensar e ser essa multiplicidade sensiacutevel (isto eacute como autorreflexatildeo objetiva da forma) A transposiccedilatildeo do ato de ver para o ato de representar costuma vir acompanhada de uma descarga de energia que aparece sob a forma gradual de um sentimento uma emoccedilatildeo uma paixatildeo ou uma perversatildeo se-gundo os graus de personificaccedilatildeo que acompanham os atos de pensar sentir e de ser as sensaccedilotildees A cor vermelha de um vestido por exemplo pode ser investida de uma descarga his-teacuterica que a associa agrave cor vermelha do sangue e agrave intensidade subjetiva da raiva Ou uma foacutermula puramente abstrata como o binocircmio de Newton pode associar-se a uma forma sensiacutevel como a Vecircnus de Milo por meio do sentimento do belo e produ-zir um sentimento sublime

A livre associaccedilatildeo entre ideias imagens e emoccedilotildees im-plica portanto um plano de composiccedilatildeo objetiva da diferenccedila centrada na multiplicaccedilatildeo subjetiva das sensaccedilotildees Esse o mo-tivo porque o lema central do sensacionismo ldquosentir tudo de to-das as maneirasrdquo28 tambeacutem implica uma foacutermula do tipo ldquopensar tudo de todos os modosrdquo Uma sensaccedilatildeo pode duplicar-se em inuacutemeras outras se acompanhada pela personificaccedilatildeo do ldquoeu pensordquo do ldquoeu sintordquo e do ldquoeu sourdquo tornando-se a proacutepria sen-saccedilatildeo capaz de pensar sentir e ser todas as demais A multipli-caccedilatildeo das sensaccedilotildees depende dessa capacidade heteroniacutemica de personificar o ldquoeu pensordquo o ldquoeu sintordquo e o ldquoeu sourdquo como trecircs identidades autocircnomas Quando encontram a faiacutesca produzida pelo embate entre a autorreflexatildeo a despersonalizaccedilatildeo e a per-sonificaccedilatildeo como eacute o caso das grandes odes inspiradas em Walt Whitman as sensaccedilotildees podem jorrar em alta velocidade de maneira quase irrefletida como uma combustatildeo intelectual movendo a maacutequina de escrever e preenchendo longas paacuteginas de prosa poeacutetica Contudo quando o que prepondera satildeo vagas sensaccedilotildees de melancolia os poemas assumem dimensotildees me-

28 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa Passagem das Horas p344

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

115

nores chegando mesmo em alguns casos a poemas formais como o Opiaacuterio ou sonetos em estilo moderno

Vimos que na obra-prima do mestre o ritmo da escri-ta seguia a mesma naturalidade do vilarejo Ribatejo palco da vida e da obra do heterocircnimo A coleccedilatildeo de fragmentos poeacuteti-cos compunha uma constelaccedilatildeo de ldquoagorasrdquo independente da representaccedilatildeo e pensada a partir da autorreflexatildeo das formas sensiacuteveis Toda a astuacutecia sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste em transpor a simultaneidade espacial das formas sen-siacuteveis percebidas por Caeiro para o plano da sucessatildeo tem-poral que constitui a experiecircncia subjetiva no espaccedilo urbano Nas odes de Aacutelvaro de Campos o palco subjetivo transporta-se para um porto mariacutetimo um edifiacutecio urbano uma estrada ou uma ferrovia que interliga uma cidade agrave outra de onde se segue uma viagem real ou imaginaacuteria de navio um passeio real ou imaginaacuterio a peacute de comboio de automoacutevel ou de cavalo pelas ruas e arredores de Lisboa Note-se a transposiccedilatildeo subjetiva da sensaccedilatildeo logo nos primeiros versos da Ode Mariacutetima

Sozinho no cais deserto a esta manhatilde de VeratildeoOlho pro lado da barra olho pro IndefinidoOlho e contenta-me verPequeno negro e claro um paquete entrandoVem muito longe niacutetido claacutessico agrave sua maneiraDeixa no ar distante atraacutes de si a orla vatilde do seu fumoVem entrando e a manhatilde entra com ele e no rioAqui acolaacute acorda a vida mariacutetimaErguem-se velas avanccedilam rebocadoresSurgem barcos pequenos de traacutes dos navios que estatildeo

[no portoHaacute uma vaga brisaMas a minhrsquoalma estaacute com o que vejo menosCom o paquete que entraPorque ele estaacute com a Distacircncia com a ManhatildeCom o sentido mariacutetimo desta HoraCom a doccedilura dolorosa que sobe em mim como uma

[naacuteuseaComo um comeccedilar a enjoar mas no espiacuterito

Olho de longe o paquete com uma grande [independecircncia de almaE dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamente

(PESSOA 2006 pp 314-315)

Assim como outras odes de Aacutelvaro de Campos Ode Ma-riacutetima concentra os esforccedilos de siacutentese de estados subjetivos diversos com o intuito de atualizar o universo de representa-ccedilotildees histoacutericas Siacutentese que se desdobra no poema em meio a imagens amplificadas pelo impulso de despersonalizaccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

116

internalizado nas sensaccedilotildees O que se observa nesta primei-ra estrofe eacute a transposiccedilatildeo gradual da forma sensiacutevel do navio para o universo subjetivo da representaccedilatildeo Um navio que se aproxima do cais aparecendo primeiro como forma sensiacutevel ex-terior aos poucos transporta o heterocircnimo para o plano intelec-tual da representaccedilatildeo Mais precisamente para uma represen-taccedilatildeo sinteacutetica do Absoluto que se encontra aleacutem da Distacircncia e aqueacutem do Indefinido Os versos isolados ldquoOlho e contenta-me ver Pequeno negro e claro um paquete entrandordquo poderiam figurar como versos objetivistas de Caeiro Mas em seguida a antiacutestrofe que diz ldquoOlho de longe o paquete com uma grande independecircncia de alma E dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamenterdquo sela de vez a transposiccedilatildeo do navio como for-ma sensiacutevel para dentro do universo subjetivo do heterocircnimo Como na transposiccedilatildeo da foto para o cinema a representaccedilatildeo temporal de Aacutelvaro de Campos converte em movimento a ima-gem estaacutetica das sensaccedilotildees de Caeiro A guinada subjetiva da reflexatildeo promove assim a transposiccedilatildeo do tempo natural da escrita espontacircnea de Caeiro para o tempo histoacuterico-subjetivo que tem iniacutecio na escrita ortocircnima de Fernando Pessoa e osci-la entre o subjetivismo e o objetivismo neoclaacutessico de Ricardo Reis ateacute o salto agrave multiplicidade oceacircnica das sensaccedilotildees em Aacutelvaro de Campos A escrita sensacionista percorre assim o espaccedilo da paacutegina em branco como um fluxo de sensaccedilotildees que compotildee o corpo literaacuterio do poeta-ningueacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

117

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD G A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo SP Editora Aacutetica 1994

BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Alematildeo SP Iluminuras 2002

BERARDINELLI C Fernando Pessoa Outra Vez te Revejo RJ Nova Aguilar 2004

BLANCHOT M O Espaccedilo Literaacuterio RJ Rocco 2011

COELHO AP Os Fundamentos Filosoacuteficos da Obra de Fernan-do Pessoa Lisboa Verbo 2 vols 1971

COELHO J do P Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa SP Verbo 1977

DELEUZE G GUATTARI F Diferenccedila e Repeticcedilatildeo RJ Graal 2006

_________ O que eacute a Filosofia RJ Editora 34 1997

DESCARTES R Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoOs Pensadoresrdquo SP Abril Cultural 1983

GIL J Fernando Pessoa ou a Metafiacutesica das Sensaccedilotildees Lis-boa Reloacutegio drsquoAacutegua 1987

_________ Diferenccedila e Negaccedilatildeo na Poesia de Fernando Pes-soa RJ Relume Dumaraacute 2000

HEGEL GWF Fenomenologia do Espiacuterito Petroacutepolis Vozes 1992

LOURENCcedilO E Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente Lisboa Gradiva 2003

OSAKABE H Fernando Pessoa Resposta agrave Decadecircncia SP Iluminuras 2013

PESSOA F Obra em Prosa RJ Nova Aguilar 2006

_________ Obra Poeacutetica RJ Nova Aguilar 2006

NUNES B O Dorso do Tigre RJ Editora 34 2009

PERRONE-MOISEacuteS L Fernando Pessoa Aqueacutem do Eu Aleacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

118

do Outro SP Martins Fontes 2001

SENA J Fernando Pessoa amp Companhia Heterocircnima Lisboa Ediccedilotildees 70 1982

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

119

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaThe freedom of the gaze Erotism and aesthetic autonomy from Winckelmann to Fernando Pessoa

Palavras-chave Winckelmann Kant Fernando PessoaKeywords Wilckelmann Kant Fernando Pessoa

RESUMO Pretende-se estudar aqui o caminho de uma ideia winckelmanniana sobre a autonomia do olhar esteacutetico que foi fundamental para a poeacutetica de Fernando Pessoa

ABSTRACT It is intended to study here the way of a Winckel-mannian idea about the autonomy of the aesthetic gaze which was fundamental for the poetics of Fernando Pessoa

Hoje eacute quase ponto paciacutefico aceitar que Kant foi o pri-meiro a formular de maneira inequiacutevoca a ideia de autonomia da obra de arte Quando esse consenso eacute questionado eacute por-que em geral se quer saber apenas se o autor da Criacutetica do juiacutezo teria sido influenciado por algum predecessor como Adam Smi-th ou Karl Philipp Moritz Teria Kant chegado sozinho agraves suas consideraccedilotildees sobre o juiacutezo de gosto ou satildeo elas resultado de sua leitura de outros pensadores E seriam estes meros anteci-padores ou teriam deixado ideias apenas diferentes mas igual-mente interessantes a respeito do tema

Bem interessante para a compreensatildeo desse toacutepico eacute investigar algumas evidecircncias da presenccedila do pensamento de Winckelmann no conjunto da obra kantiana

Um dos textos mais interessantes nesse aspecto eacute por certo uma reflexatildeo sobre antropologia a de nuacutemero 640 na qual se traccedila a diferenccedila importantiacutessima entre beleza e atrativo ou sem meias palavras entre o prazer provocado pela bela forma e a atraccedilatildeo oriunda do desejo sexual

Em questotildees de gosto devemos diferenciar o atrativo da beleza o primeiro se perde para este ou aquele mas a beleza permanece Quartos adornados permanecem sempre belos embora tenham o seu atrativo com a morte da amada e o amante escolhe outros objetos Tais conceitos do belo diz Winckelmann satildeo voluptuosos isto eacute natildeo se diferencia o atrativo da beleza pois de fato eles estavam tatildeo vinculados entre os antigos como entre os modernos (embora natildeo tatildeo confundidos) mas talvez diferenciados nos conceitos dos ar-

Maacutercio Suzuki

Doutor e professor de esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo

marciosuzukiuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

120

tistas que queriam exprimi-losA bela pessoa apraz por sua figura e atrai por seu

sexo Digamos ao ouvido de algueacutem que a beleza que ele admira eacute um cantor efeminado o atrativo desaparece num instante mas a beleza permanece Eacute difiacutecil separar esse atra-tivo da beleza mas basta deixarmos de lado todas as nossas necessidades particulares e nossas relaccedilotildees privadas em que nos diferenciamos dos outros para que reste o frio juiacutezo de gosto1

Segundo essa anotaccedilatildeo de Kant o ensinamento princi-pal das consideraccedilotildees sobre o belo ideal por parte de Winckel-mann estaria em ter ensinado a diferenciar aquilo que atrai se-xualmente e aquilo que satisfaz como bela forma Os exemplos que Kant traz como ilustraccedilatildeo como sempre natildeo satildeo bons o quarto da mulher permanece belo mesmo com a morte desta e o marido pode buscar outros objetos para a satisfaccedilatildeo do seu instinto o desejo manifesto por uma jovem desaparece quando fica sabendo que o cantor pelo qual se sente atraiacuteda natildeo tem interesse por pessoas do seu sexo ainda que a despeito da frustraccedilatildeo de sua propensatildeo a beleza do indiviacuteduo permaneccedila

Numa versatildeo posterior um pouco diferente as mesmas ideias satildeo assim explicadas

Com frequecircncia natildeo diferenciamos o que eacute objeto do gosto e o que eacute objeto do apetite Winckelmann diz que a verdadeira ideia da beleza estaacute entre os gregos Nossos con-ceitos da beleza satildeo muito partidaacuterios e mais juiacutezos sobre o atrativo Beleza poreacutem natildeo eacute atrativo e atrativo logo natildeo eacute beleza pois ela diz unicamente respeito agrave forma Para julgar-mos de modo universalmente vaacutelido para todos nosso juiacutezo tem de ser unacircnime por exemplo se uma moccedila eacute bela como moccedila ou se a considerariacuteamos bela tambeacutem disfarccedilada de homem Para que algo deva ser visto como belo apenas por causa do gosto esse juiacutezo partidaacuterio natildeo se volta para o gos-to Em nosso juiacutezo de gosto natildeo deve se imiscuir nenhum atrativo pois o atrativo faz parte do Juiacutezo sensiacutevel2

Essa explicaccedilatildeo dada no curso de antropologia Mens-chenkunde (inverno de 1781-1782) eacute a mesma da reflexatildeo an-terior (do ano de 1769) mas se detalha melhor a diferenccedila entre o juiacutezo de gosto e o juiacutezo sensiacutevel sendo este baseado no es-tiacutemulo ou atraccedilatildeo entre os sexos Essa identificaccedilatildeo entre estiacute-mulo sensiacutevel e atraccedilatildeo sexual (sinnlich pode remeter tanto aos oacutergatildeos do sentido como agrave sensualidade) desaparece na Criacuteti-ca do juiacutezo uma vez que nela se encontra apenas a distinccedilatildeo mais geneacuterica entre aquilo que atrai a sensibilidade e aquilo que apraz o sentimento Entretanto ela eacute fundamental do ponto de 1 I Kant Refl 640 AA 15 pp 280-2822 I Kant Antropologia Menschenkunde AA 25 p 1098-1099

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

121

vista geneacutetico isto eacute para que Kant chegue agrave diferenciaccedilatildeo do belo em relaccedilatildeo ao atrativo e agrave emoccedilatildeo tratada no paraacutegrafo 13 da criacutetica do Juiacutezo reflexionante3

Teria Kant lido diretamente as obras de Winckelmann ou seu contato com elas seria de segunda matildeo Eacute grande sem duacutevida a dificuldade de solucionar inteiramente a questatildeo Uma pista fundamental nessa direccedilatildeo eacute talvez uma anotaccedilatildeo mais antiga de Kant referindo-se agravequele que eacute considerado por mui-tos o pai da histoacuteria da arte

A sensibilidade agrave beleza dos jovens deu origem ao amor grego pela paixatildeo mais vergonhosa que jamais cons-purcou a natureza humana e seus criminosos bem mereciam ser entregues agrave vinganccedila e ao insulto das mulheres4

Desta anotaccedilatildeo de 1764-1765 agraves passagens posterio-res a posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave homossexualidade eacute diametralmen-te oposta e o ganho conceitual que essa perspectiva natildeo mo-ralizadora trouxe para a concepccedilatildeo esteacutetica kantiana tambeacutem eacute consideraacutevel Os textos como tambeacutem assinala corretamente a editora das Notas agraves ldquoObservaccedilotildees sobre o sentimento do belo e do sublimerdquo fazem referecircncia a uma passagem em que Win-ckelmann discute a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino Dois paraacutegrafos deste opuacutesculo merecem ser citados na iacutentegra por decisivos que foram para os caminhos da esteacutetica posterior

Para a juventude noviccedila essa capacidade [de sen-tir o belo] estaacute envolvida em emoccedilotildees obscuras e confusas como qualquer outra inclinaccedilatildeo e se anuncia como um forte comichatildeo na pele cujo verdadeiro lugar natildeo pode ser encon-trado ao coccedilar Deve ser procurada antes em jovens bem for-mados do que em outros porque pensamos em geral como somos feitos mas menos na formaccedilatildeo do que no ser e no modo de pensar e sentir Um coraccedilatildeo brando e sentidos doacute-ceis satildeo sinais de tal capacidade Ela se mostra mais niti-damente quando lendo algum escritor o sentimento eacute mais ternamente comovido ali onde o senso inculto passa ao largo como aconteceria diversas vezes no discurso de Glauco a Diomedes isso que eacute a comparaccedilatildeo comovente da vida hu-mana com folhas arrancadas pelo vento e que voltam a bro-tar na primavera Onde esse sentimento natildeo existe eacute como pregar o conhecimento da beleza a um cego assim como a muacutesica a um ouvido natildeo musical Em meninos que natildeo foram educados na arte nem satildeo propriamente destinados a ela

3 ldquoO juiacutezo-de-gosto puro eacute independente de atrativo e emoccedilatildeordquo I Kant Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filosoacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974 p 3184 I Kant Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Rischmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

122

um sinal mais proacuteximo dele eacute o impulso natural ao desenho que eacute inato como o impulso agrave poesia e agrave muacutesica

Aleacutem disso como para conhecer a beleza humana eacute preciso apreendecirc-la num conceito geral observei que aque-les que atentam somente para as belezas do sexo feminino e satildeo pouco ou nada tocados pelas belezas de nosso sexo natildeo possuem o sentimento do belo facilmente inato geral e vivo Neles o belo na arte dos gregos permaneceraacute defectivo jaacute que as maiores belezas dela satildeo mais do nosso sexo do que do outro Exige-se poreacutem mais sentimento para o belo na arte do que na natureza porque aquele como as laacutegrimas no teatro eacute sem dor e sem vida e precisa ser despertado e res-tituiacutedo pela imaginaccedilatildeo Mas como esta eacute muito mais fogosa na juventude do que na idade madura a capacidade de que falamos deve ser exercitada a tempo e conduzida ao belo an-tes que chegue a idade na qual estremecemos ao confessar que natildeo o sentimos5

O opuacutesculo sobre a capacidade de sentir a beleza cha-mou logo a atenccedilatildeo de Kant (a primeira ediccedilatildeo eacute de 1763) cer-tamente tanto pelo seu aspecto cognitivo (em que consistiria a faculdade para apreensatildeo do belo) como pelo seu aspecto conceitual pois o belo supotildee um ldquoconceito geralrdquo que natildeo se restringe a este ou agravequele indiviacuteduo a este ou agravequele sexo mas deve levar o apreciador de arte agrave condiccedilatildeo de algueacutem que julga universalmente Mas alcanccedilar esse sentimento da beleza ideal natildeo eacute resultado de uma ciecircncia de um saber universalmente evidente Antecipando outro ponto fundamental da esteacutetica kan-tiana Winckelmann mostraraacute que natildeo haacute uma ciecircncia do sensiacute-vel ao contraacuterio do que tentara ensinar Baumgarten

A beleza pode ser reduzida a certos princiacutepios mas natildeo definida Geralmente se diz que ela consiste no consen-so muacutetuo da criatura com os seus fins e das partes consigo mesmas e com o todo mas isso eacute confundir a beleza com a perfeiccedilatildeo a qual tampouco pode ser definida nem pode de-finir-se por isso porque a humanidade natildeo tem capacidade para tal Ora eacute adequada ao belo uma definiccedilatildeo que a con-funde com o perfeito

A impossibilidade de definir a beleza nasce de que ela eacute algo superior ao nosso intelecto e como dessa superio-ridade natildeo nos eacute possiacutevel idear algo que seja mais sublime e perfeito que a beleza resultou que o belo e o perfeito nos pareceram duas coisas idecircnticas e se natildeo fosse assim teriacute-amos a verdadeira definiccedilatildeo dele como ocorreu a qualquer outra coisa da qual se conhece toda a essecircncia6

5 J J Winckelmann Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a ca-pacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771 pp 8-9 Ediccedilatildeo encontraacutevel no site vd18de6 J J Winckelmann Monumenti antichi inediti spiegati ed illustrati da

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

123

Em virtude da dificuldade de definir os conceitos a filo-sofia passou seacuteculos confundindo a ideia de beleza com a ideia de perfeiccedilatildeo ela concebe o belo segundo um conceito de fina-lidade que eacute proacuteprio apenas aos seres orgacircnicos Ora eacute pre-cisamente essa identificaccedilatildeo do belo com o perfeito que seraacute rejeitada na Criacutetica do juiacutezo Ao mostrar que o ldquojuiacutezo-de-gosto eacute inteiramente independente do conceito de perfeiccedilatildeordquo Kant lem-bra que a finalidade objetiva eacute justamente a referecircncia de uma diversidade agrave unidade produzida por um fim determinado isto eacute por um conceito7 mas em contraposiccedilatildeo a ele a beleza natildeo pode ter conceito algum natildeo sendo portanto passiacutevel de de-finiccedilatildeo Noutros termos a vitalidade a sauacutede de um corpo tem como fim a sua conservaccedilatildeo e agrave da espeacutecie (mediante a repro-duccedilatildeo) mas a beleza natildeo precisa ou deve servir a este fim

Winckelmann antecipa assim claramente tambeacutem a criacutetica kantiana ao conceito objetivo de beleza mas suas consi-deraccedilotildees satildeo tanto mais interessantes porque chegam agrave auto-nomia esteacutetica por um vieacutes todo proacuteprio que inclui tambeacutem uma libertaccedilatildeo do preconceito em relaccedilatildeo ao homoerotismo ndash algo que como se viu desaparece dos textos publicados por Kant mas natildeo das reflexotildees e pelo menos de um curso de Antro-pologia E essa brecha que ele abre tambeacutem seraacute muito bem percebida e explorada pela esteacutetica e literatura posterior

O Renascimento

Entre as tomadas de posiccedilatildeo mais instigantes de Wal-ter Pater com respeito agrave Renascenccedila estaacute certamente sua con-cepccedilatildeo de que o espiacuterito renascentista eacute algo supra-histoacuterico e supranacional pairando como que acima das determinaccedilotildees circunstanciais e extravasando limites temporais e espaciais Entre os ldquorenascentistasrdquo devem ser incluiacutedos segundo ele no-mes que natildeo viveram na eacutepoca do Renascimento como Abe-lardo e Heloiacutesa os trovadores provenccedilais e tambeacutem Johann Joachim Winckelmann pensador setecentista alematildeo que em-bora vivendo distante de todo o contato com a civilizaccedilatildeo antiga e num momento pouco favoraacutevel aos estudos claacutessicos teve ldquoo sentimento do mundo helecircnicordquo foi irresistivelmente atraiacutedo por ele e adivinhou os canais secretos que levavam a ele8 Graccedilas a um poder divinatoacuterio que o fez perceber a permanecircncia do espiacuterito grego ao longo de toda a histoacuteria Winckelmann com-preendeu muito bem que diferentemente do que ocorre com outras forccedilas espirituais que satildeo soterradas e absorvidas por assim dizer pelos tempos posteriores

Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767 cap 4 parte I p XXX-VIII7 I Kant Criacutetica do juiacutezo sect 15 trad cit p 3218 W Pater O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014 p 190

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

124

[] o elemento helecircnico natildeo se deixa absorver assim nem se deixa contentar com essa vida subterracircnea de tem-pos em tempos ele vem agrave tona a cultura eacute levada de volta agraves suas fontes para ser clarificada e corrigida O helenismo natildeo eacute apenas um elemento em nossa vida intelectual eacute uma tradiccedilatildeo consciente no interior dela9

O historiador da arte antiga reconheceu todo um conjun-to de caracteriacutesticas do mundo helecircnico mediante a compreen-satildeo de que o nuacutecleo de sua arte estava baseado na idealidade ou generalidade (Allgemeinheit) A arte principalmente a escul-tura deve eliminar tudo o que eacute de apelo particular para se con-centrar no que eacute tiacutepico universal

Obras de arte produzidas segundo essa lei e unica-mente estas satildeo realmente caracterizadas pela generalidade e amplitude helecircnicas Esta eacute uma lei de limitaccedilatildeo em todos os sentidos Ela manteacutem a paixatildeo sempre abaixo daquele grau de intensidade no qual eacute sempre transitoacuteria sem jamais arrematar os traccedilos numa soacute nota de ira desejo ou surpre-sa10

A idealidade esteacutetica de Winckelmann eacute retomada aqui em toda a forccedila mais de um seacuteculo depois da publicaccedilatildeo de suas obras e num momento em que jaacute sofreu e continuava so-frendo ataques de todos os lados Pater natildeo tem vergonha de dizer retomando as teses winckelmannianas que essa ideali-dade estava ligada agrave serenidade (Heiterkeit) grega agrave ausecircncia do pathos desmedido o que significa propriamente uma ausecircn-cia de ldquosexualidaderdquo

A beleza das estaacutetuas gregas era uma beleza asse-xuada as estaacutetuas dos deuses quase natildeo tinham traccedilos de sexo Havia ali uma assexualidade moral uma espeacutecie de totalidade ineficaz da natureza embora dotada de verdadeira beleza e de uma significaccedilatildeo proacutepria11

A arte grega mostrava uma atitude distanciada serena para com a sexualidade e sensualidade A imersatildeo no elemen-to sensual natildeo era um problema de consciecircncia para os gre-gos natildeo causava vergonha inibiccedilatildeo ou desapontamento Sem se deixar ldquointoxicarrdquo pela sensualidade ou pela espiritualidade Winckelmann tambeacutem se tornou um grego entre os gregos

[] ele toca os dedos naqueles maacutermores pagatildeos sem se persignar sem nenhum senso de vergonha ou de per-da Isso eacute lidar com o lado sensual da arte de uma maneira

9 Idem pp 190-19110 Idem p 20411 Idem p 208

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

125

pagatilde12

O ideal esteacutetico

O livro de Pater sobre o Renascimento teve grande re-percussatildeo como se sabe na literatura inglesa mas por seu intermeacutedio a esteacutetica winckelmanniana conhece tambeacutem um desdobramento inesperado na obra de Fernando Pessoa Na importante resenha que ele escreve ao livro Canccedilotildees do poeta Antoacutenio Botto publicada no nuacutemero 3 da revista Contemporacirc-nea em julho de 1922 Pessoa redige um verdadeiro programa esteacutetico baseado nos princiacutepios da serenidade grega tirando consequecircncias fecundas das observaccedilotildees de Pater a respeito do historiador da arte grega

Segundo o poeta portuguecircs somente o paganismo gre-go eacute realmente capaz de construir um ideal esteacutetico jaacute que o espiritualismo hindu e o espiritualismo cristatildeo desprezam a im-perfeiccedilatildeo do mundo em prol de uma outra ordem que seria a verdadeira e real A civilizaccedilatildeo helecircnica ao contraacuterio aceita o mundo terreno como sendo o que eacute mera aparecircncia e a sua arte recria essa aparecircncia e a vive ndash fatalisticamente ndash como tal Soacute os gregos aceitam a imperfeiccedilatildeo e buscam transformaacute-la reconhecendo ao mesmo tempo que a perfeiccedilatildeo eacute inatingiacutevel soacute os gregos portanto construiacuteram um ideal humano traacutegico e profundo de aperfeiccediloamento subjetivo da vida13 Sem se aba-lar com as limitaccedilotildees proacuteprias da vida com a calma equiliacutebrio e harmonia que lhe satildeo proacuteprios o homem grego foi o uacutenico a conseguir pocircr a arte na trilha de um ldquoideal esteacutetico absolutordquo14

Satildeo trecircs as formas pelas quais o ideal helecircnico se mani-festa ao ver que a vida eacute imperfeita ele busca criar a perfeiccedilatildeo substituindo a arte agrave vida15 Esse ideal eacute encontrado em Homero e Virgiacutelio Dante e Milton Na segunda forma de manifestaccedilatildeo do ideal esteacutetico o grego assume a vida imperfeita e tenta transfor-maacute-la em sua proacutepria pessoa Eacute esta forma ldquoemotiva e dolorosa do ideal esteacuteticordquo que criou a trageacutedia Na terceira forma do ideal esteacutetico os gregos sem forccedila espiritual para recriar artistica-mente ou para assumir subjetivamente a imperfeiccedilatildeo a aceitam tal qual se apresenta nos gestos nas coisas nos momentos particulares etc Trata-se sem duacutevida da forma mais iacutenfima e fraacutegil do ideal porque natildeo eacute nem uma reaccedilatildeo da inteligecircncia nem da emoccedilatildeo mas ao mesmo tempo eacute em certo sentido a mais esteacutetica porque natildeo tem outro predicado moral ou emotivo

12 Idem ibidem13 F Pessoa ldquoAntoacutenio Botto e o ideal esteacutetico em Portugalrdquo In Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990 pp 350-35114 Idem ibidem15 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

126

a qualificaacute-la Ela eacute o ideal esteacutetico ldquopurordquo16

O caraacuteter distintivo do verdadeiro esteta eacute produzir uma arte em que estatildeo ausentes quaisquer elementos metafiacutesicos ou morais Entretanto essa ausecircncia de elementos metafiacutesicos ou morais natildeo significa ausecircncia de ideias metafiacutesicas ou mo-rais Pessoa tem plena consciecircncia de que combate em duas frentes tendo em vista que se a autonomia esteacutetica natildeo eacute puro formalismo mera arte pela arte por outro lado tambeacutem natildeo se pode recair no platonismo de assimilar o belo ao bem e agrave ver-dade

Haacute uma ideia que sem ser metafiacutesica nem moral faz na obra do esteta as vezes das ideias morais e metafiacutesicas O esteta substitui a ideia de beleza agrave ideia de verdade e agrave ideia de bem poreacutem daacute por isso mesmo a essa ideia de beleza um alcance metafiacutesico e moral A ceacutelebre ldquoConclusatildeordquo da Renascenccedila de Pater o maior dos estetas europeus eacute o exemplo culminante desta atitude17

O esteticismo puro seria capaz de assimilar ideias me-tafiacutesicas e morais Eis a liccedilatildeo que Winckelmann-Pater datildeo tanto aos puros formalistas quanto aos estetas impuros ou melhor aos cristatildeos ou decadentes travestidos de pagatildeos como Wilde e Baudelaire (aos quais Pessoa natildeo hesitaria em acrescentar o nome de Nietzsche)18 O verdadeiro esteta natildeo defende uma ldquocausardquo ele eacute avesso a toda forma de doutrinaccedilatildeo A forccedila de sua poesia como em Antoacutenio Botto adveacutem de duas ideias simples a ideia de beleza fiacutesica e a ideia de prazer ndash ideias estas que lhe servem de metafiacutesica e moral ainda que sejam totalmente amorais e ao mesmo tempo estejam longe de toda espeacutecie de imoralidade19 E aqui Fernando Pessoa esmiuacuteccedila e aprofunda as consideraccedilotildees de Winckelmann

16 Idem pp 351-35217 Idem ibidem18 Idem ibidem A criacutetica a Nietzsche tatildeo presente em outros textos do escritor portuguecircs talvez fique clara por essa diferenciaccedilatildeo que alias eacute explicitada em relaccedilatildeo ao filoacutesofo alematildeo na beliacutessima sequecircncia desse mesmo texto haacute nas Canccedilotildees de Antoacutenio Botto ldquoa intuiccedilatildeo do fundo traacutegico do ideal helecircnico do fundo traacutegico de todo o prazer que sabe que natildeo tem aleacutem Essa intuiccedilatildeo poreacutem se eacute do que eacute traacutegico natildeo eacute traacutegica em si Este prazer natildeo tem a cor da alegria nem a da dor lsquoA alegriarsquo disse Nietzsche lsquoquer eternidade quer profunda eternidadersquo Natildeo eacute nem nunca foi assim a alegria natildeo quer nada e eacute por isso que eacute alegria A dor essa eacute o contraacuterio da alegria como a concebia Nietzsche quer acabar quer natildeo ser O prazer poreacutem quando o concebemos fora de relaccedilatildeo essencial com a alegria ou com a dor como concebe o autor deste livro esse sim quer eternidade po-reacutem quer a eternidade num soacute momentordquo Esse revide tardio do classicismo winckelmanniano a Nietzsche natildeo deixa de ter seu interesse O sentido ver-dadeiramente traacutegico de estar aleacutem de bem e mal sem motivaccedilatildeo nenhuma eacute diferente do sentimento de estar aleacutem deles por um espiacuterito de antagonismo ou razatildeo profunda qualquer19 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

127

Das trecircs formas que podemos conceber da beleza fiacutesica ndash a graccedila a forccedila e a perfeiccedilatildeo ndash o corpo feminino soacute tem a primeira porque natildeo pode ter a beleza da forccedila sem quebra da sua feminilidade isto eacute sem perda do seu caraacuteter proacuteprio o corpo masculino pode sem quebra de sua mas-culinidade reunir a graccedila e a forccedila a perfeiccedilatildeo soacute aos cor-pos dos deuses se existem eacute dado tecirc-la Um homem se se guiar pelo instinto sexual e natildeo pelo instinto esteacutetico canta-raacute como poeta soacute o corpo feminino Essa atitude representa uma preocupaccedilatildeo exclusivamente moral O instinto sexual normalmente tendente para o sexo oposto eacute o mais rudimen-tar dos instintos morais A sexualidade eacute uma eacutetica animal a primeira e a mais instintiva das eacuteticas Como poreacutem o esteta canta a beleza sem preocupaccedilatildeo eacutetica segue que a cantaraacute onde mais a encontra e natildeo onde sugestotildees externas agrave es-teacutetica como a sugestatildeo sexual o faccedilam procuraacute-la Como se guia pois soacute pela beleza o esteta canta de preferecircncia o cor-po masculino por ser o corpo humano que mais elementos de beleza dos poucos que haacute pode acumular20

Natildeo satisfeito com retomar-lhe as ideias Pessoa cita di-retamente Winckelmann numa traduccedilatildeo que faz da traduccedilatildeo de Pater

Como eacute confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral assim tenho no-tado que aqueles que observam a beleza soacute nas mulheres e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens raras vezes tecircm instinto imparcial vital inato da beleza na arte A pessoas como essas a beleza da arte grega pareceraacute sempre falha porque a sua beleza suprema eacute antes masculina que feminina21

A nova maneira de olhar

A concepccedilatildeo de ideal esteacutetico exposta na resenha sobre Canccedilotildees de Antoacutenio Botto natildeo eacute certamente uma manifestaccedilatildeo isolada na obra pessoana Outro texto que mostra o interesse do poeta pela obra de Pater eacute a traduccedilatildeo que fez do beliacutessimo trecho dedicado agrave ldquoGiocondardquo publicado na revista Athena de Lisboa em novembro de 1924 Assim como a resenha sobre o livro de Botto a seleccedilatildeo de um excerto tatildeo curto mas escolhido agrave dedo merece atenccedilatildeo E mesmo o melhor comentaacuterio a ele ndash como o comentaacuterio da proacutepria obra de arte que descreve ndash natildeo 20 Idem p 35421 Idem p 354 Como o leitor estaacute lembrado o trecho eacute exatamente o mesmo da Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben de Winckelmann citado agrave nota 5 Pessoa cita apenas um trecho do texto citado por Pater (trad cit pp185-186)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

128

poderia dispensar a sua transcriccedilatildeo

La Gioconda eacute no mais verdadeiro dos sentidos a obra-prima de Leonardo o exemplo revelador do seu modo de pensamento e de trabalho Em sugestatildeo soacute a Melancolia de Duumlrer lhe eacute comparaacutevel e natildeo haacute simbolismo cru que per-turbe o efeito do seu misteacuterio esbatido e gracioso Conhece-mos todos o rosto e as matildeos da figura posta em sua cadeira de maacutermore naquele ciacuterculo de rochedos fantaacutesticos como em vaga luz de sob o mar Talvez de todos os quadros anti-gos seja aquele que o tempo menos desbotou Como muitas vezes acontece com obras em que dir-se-ia que a invenccedilatildeo chegou a seu limite haacute nela um elemento dado ao mestre que natildeo inventado por ele Naquele inestimaacutevel foacutelio de dese-nhos que um tempo Vasari possuiu havia certos esboccedilos de Verrocchio rostos de beleza tatildeo expressiva que Leonardo jo-vem muitas vezes os copiou Eacute difiacutecil natildeo relacionar com es-tes esboccedilos do mestre preteacuterito como com seu princiacutepio ger-minal o sorriso insondaacutevel sempre como tocado de qualquer coisa de sinistro que paira em toda a obra de Leonardo Aleacutem disso o quadro eacute um retrato Desde a infacircncia vemos esta imagem definindo-se no estofo de seus sonhos e se natildeo fora o testemunho expresso da histoacuteria pudeacuteramos pensar que natildeo era esta mais que a sua dama ideal por fim corporizada e vista Que parentesco teve uma florentina real com esta cria-tura de seu pensamento Por que estranhas afinidades assim cresceram separados o sonho e a pessoa ainda que ligados de tatildeo perto Presente desde o princiacutepio incorporeamente no ceacuterebro de Leonardo delineada vagamente nos desenhos de Verrocchio ela encontra-se por fim presente em casa drsquoIl Gio-condo Que haacute muito de simples retrato no quadro atesta-o a lenda de que por meios artificiais a presenccedila de mimos e de tocadores de flauta se prolongou no rosto aquela expressatildeo sutil E ainda seria em quatro anos e por um trabalho reno-vado nunca em verdade findo ou em quatro meses e como por um golpe de magia que a imagem assim se projetou

A presenccedila que assim tatildeo estranhamente se ergueu de ao peacute das aacuteguas eacute expressiva daquilo que os homens nos caminhos de um milhar de anos tinham chegado a desejar Aquela eacute a cabeccedila sobre a qual ldquovieram todos os fins do mun-dordquo e as paacutelpebras estatildeo um pouco cansadas Eacute uma beleza trabalhada de dentro sobre a carne o depoacutesito ceacutelula a ceacutelu-la de pensamentos estranhos e devaneios fantaacutesticos e pai-xotildees esquisitas Colocai-a um momento ao peacute de uma dessas brancas deusas da Greacutecia ou mulheres belas da antiguidade e como elas se turbariam desta beleza para onde entrou jaacute a alma com todas as suas doenccedilas Todos os pensamentos e experiecircncia do mundo ali gravaram e modelaram no que tecircm de poder de refinar e tornar expressiva a forma exterior

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

129

o animalismo da Greacutecia a luxuacuteria de Roma o misticismo da Idade Meacutedia com sua ambiccedilatildeo espiritual e seus amores ima-ginativos o regresso do mundo pagatildeo os pecados dos Bor-gias Ela eacute mais velha que os rochedos entre os quais se assenta como o vampiro morreu jaacute muitas vezes e aprendeu os segredos do tuacutemulo e mergulhou em mares profundos e guarda cercando-a ainda o seu dia morto e traficou em teci-dos estranhos com os mercadores do Oriente e como Leda foi matildee de Helena de Troia e como Santa Ana foi matildee de Maria e tudo isto natildeo foi para ela mais que um som de liras e flautas e vive apenas uma delicadeza com que lhe modelou as feiccedilotildees instaacuteveis e lhe coloriu as paacutelpebras e as matildeos A fantasia de uma vida perpeacutetua congregando dez mil experi-ecircncias eacute antiga e a filosofia moderna concebeu a ideia da humanidade como trabalhada por e resumindo em si todos os modos de pensamento e vida Por certo que a Dama Lisa poderia ficar como a encarnaccedilatildeo da fantasia antiga o siacutembo-lo da ideia moderna22

Esses dois paraacutegrafos magistrais satildeo obviamente uma ekphrasis poeacutetica da obra de Leonardo mas tambeacutem muito mais que isso23 Sem contar a admiraacutevel prosa (que levou Ye-ats a selecionar surpreendentemente um trecho dela para abrir a sua coletacircnea de ldquoversos modernosrdquo para a editora Oxford transformando-o em versos livres24) Pater concentra neles tudo aquilo que haacute de essencial em sua ldquofilosofia da histoacuteriardquo na qual se poderia notar a presenccedila de certo hegelianismo embora o fundamental seja provavelmente a sua diacutevida para com Heine de quem cita um longo trecho em Renascimento25 E de fato assim como Heine Pater natildeo vecirc a histoacuteria desconectada dos impulsos religiosos que a movem pois as religiotildees satildeo ldquomovi-mentosrdquo naturais do espiacuterito humano Uma delas aliaacutes como se viu anteriormente o paganismo grego estaria tatildeo ligada agrave histoacuteria do espiacuterito que pode ser considerada a verdadeira forccedila motora e modificadora das atitudes humanas Como os deu-

22 O autor agradece imensamente a Claacuteudia Souza pela indicaccedilatildeo e pelo acesso a este texto23 Num pequeno comentaacuterio que redige sobre essa descriccedilatildeo de Mona Lisa Fernando Pessoa escreve ldquoQuando Walter Pater descreve a Gioconda vecirc nela coisas que laacute natildeo estatildeo Mas a sua descriccedilatildeo eacute mais bela do que a Gioconda porque eacute Gioconda + muacutesica (ritmo da prosa) + ideias (as conti-das nas palavras da descriccedilatildeo) + rdquo In F Pessoa Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizarro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009 p 284 O comentaacuterio se explica pois como se sabe diferentemente de Pater para quem todas as artes tendem agrave muacutesica para Pessoa todas devem tender agrave literatura24 ldquoShe is older than the rocks among which she sitsLike the vampireShe has been dead many timesAnd learned the secrets of the graveAnd has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about her She is older than the rocks among which she sits Like the vampireShe has been dead many times And learned the secrets of the grave And has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about herrdquo25 Trad cit pp 54-55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

130

ses exilados de Heine a Madonna percorreu todas as eacutepocas da histoacuteria tendo assumido os mais diferentes papeacuteis e ofiacutecios (foi Helena Santa Ana traficou com mercadores do Oriente) e suas paacutelpebras mostram o cansaccedilo de algueacutem que como Zeus--Odin na ilha dos Coelhos eacute velho como o mundo

Os Deuses no exiacutelio satildeo efetivamente o marco decisivo para uma nova forma de ver a histoacuteria na qual esta se mostra natildeo soacute como ldquohistoacuteria do espiacuteritordquo nos moldes da filosofia he-geliana mas como uma verdadeira ldquohistoacuteria da sexualidaderdquo O paganismo eacute manancial perene de rejuvenescimento natildeo tan-to porque serviria de estimulante agrave fantasia luacutebrica de homens decadentes e sim por mostrar a possibilidade de um modo de encarar a sexualidade que nada tem que ver com a tara de sexo dos homens modernos Partindo do neoclassicismo winckel-manniano e goethiano Heine tornou patente a diferenccedila entre a visualidade natural inocente do sexo entre os antigos e o aco-bertamento dele pelo cristianismo acobertamento este sempre acompanhado de um voyeurismo doentio Kierkegaard eacute outro autor que muito provavelmente seguiu Heine neste ponto afir-maccedilatildeo que se eacute verdadeira torna ainda mais interessante sua visatildeo cristatilde de que a sensualidade eacute uma representaccedilatildeo que surge somente com o advento do cristianismo Ela existia entre os gregos mas soacute se passa a ter consciecircncia dela com o adven-to da espiritualidade cristatilde de que ela eacute o negativo

Enquanto princiacutepio enquanto forccedila enquanto siste-ma em si a sensualidade [Sandseligheden] foi primeiramente posta com o cristianismo posso acrescentar uma determina-ccedilatildeo que talvez mostre mais enfaticamente o que quero dizer a sensualidade foi primeiramente posta com o cristianismo sob a determinaccedilatildeo do espiacuterito [Aand] Isso eacute inteiramente natural pois o cristianismo eacute espiacuterito e o espiacuterito o princiacutepio positivo que ele trouxe para o mundo26

Todas essas consideraccedilotildees sobre a dialeacutetica do espiacuterito e da sensualidade do cristianismo e do paganismo ajudam cer-tamente a entender melhor o quadro no qual se constitui o es-tetismo de Pater e tambeacutem ndash a partir deste ndash a formular melhor o que seria aquela volta do paganismo anunciada por Pessoa e seus heterocircnimos ndash doutrina que eacute explicitada especialmen-te por Antoacutenio Mora Natildeo caberia certamente elencar e discutir todos os ingredientes poeacuteticos esteacutetico-morais e poliacuteticos que estatildeo em jogo na postulaccedilatildeo salviacutefica do ldquoregresso dos deusesrdquo por Fernando Pessoa27 mas valeria a pena sim destacar um deles eacute que a retomada do paganismo perde pelo menos um pouco de sua aura miacutestico-utoacutepica quando se percebe que ela significa essencialmente uma mudanccedila na forma de olhar Essa transformaccedilatildeo do modo de ver produzida por um retorno aos

26 S Kierkegaard Enten ndash Eller Copenhague Gyndendal 1994 p 6027 A citaccedilatildeo de um longo paraacutegrafo dos Deuses no exiacutelio de Heine eacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

131

gregos pode ser reconhecida por exemplo neste fragmento de O regresso dos deuses

O grego reparava essencialmente na forma Eacute carac-teriacutestico do visual e do atento notar as formas das coisas A nascenccedila da fisiognomia e correlacionadas formas de ciecircn-cia na Greacutecia aponta isto Eacute na forma que repara primeiro o homem atento ao mundo exterior O Cristianismo trouxe um adoecimento de sentimentos e de sentidos que levou a esmiuccedilar as formas e achar o sentimento das cores e das tonalidades Mas perdeu-se por aiacute caiu no erro regressivo de buscar na arte uma expressatildeo de emoccedilotildees de sensaccedilotildees de aspiraccedilotildees A arte eacute isto poreacutem apenas num seu estaacute-dio inferior depois chegada agrave Greacutecia desde a Greacutecia a arte passa a ser um fenoacutemeno de trabalho de esforccedilo de querer realizar a perfeiccedilatildeo28

Uma forma de ver pagatilde em oposiccedilatildeo agrave expressividade cristatilde sentimental simplificando muito se poderia afirmar que a poeacutetica pessoana se faz precisamente por essa remissatildeo agrave visi-bilidade pura ndash ou talvez eacute pela proximidade ou afastamento em relaccedilatildeo a essa pureza do olhar eacute por ver mais distintamente ou por estar mais ou menos ldquodoente dos olhosrdquo que se mede o grau de paganismo ou de decadentismo dos poetas que compotildeem a plecirciade heteroniacutemica Alberto Caeiro Ricardo Reis Aacutelvaro de Campos Fernando Pessoa ele mesmo Fernando Pessoa autor dos sonetos ingleses

Mas talvez nem um deles soube exprimir melhor que Bernardo Soares qual eacute o segredo dessa combinaccedilatildeo maacutegica de erotismo e autonomia do olhar Eacute o que se pode ler num frag-mento do Livro do desassossego intitulado muito precisamente ldquoO amante visualrdquo ou ldquoAnterosrdquo

Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo Sou sujeito a paixotildees visu-ais Guardo intacto o coraccedilatildeo dado a mais irreais destinos

Natildeo me lembro de ter amado senatildeo o lsquoquadrorsquo em algueacutem o puro exterior ndash em que a alma natildeo entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo ndash e assim diferente dos quadros que os pintores fazem

Amo assim fixo por bela atraente ou de outro qual-quer modo amaacutevel uma figura de mulher ou de homem ndash onde natildeo haacute desejo natildeo haacute preferencia de sexo ndash e essa fi-gura me obceca me prende se apodera de mim Poreacutem natildeo quero mais que vecirc-la nem olho nada com mais horror que a

um documento de interesse para a formulaccedilatildeo da ideia do regresso do paga-nismo em Pessoa A ediccedilatildeo que utiliza eacute da editora Macmillan publicada em Londres em 1915 O contato com Pater (e Heine) pode portanto ser bem anterior agrave traduccedilatildeo do trecho sobre a Gioconda28 F Pessoa O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013 p 55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

132

possibilidade [] de vir a conhecer e falar agrave pessoa real que essa figura aparentemente manifesta

Amo com o olhar e nem com a fantasia Porque nada fantasio dessa figura que me prende Natildeo me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decorativo nada tem de mais psicoloacutegico [] Natildeo me interessa saber quem eacute que faz que pensa a criatura que me daacute para ver o seu aspecto exterior

A imensa seacuterie de pessoas e de coisas que forma o mundo eacute para mim uma galeria inteacutermina de quadros cujo interior me natildeo interessa Natildeo me interessa porque a alma eacute monoacutetona e sempre a mesma em toda a gente diferem ape-nas as suas manifestaccedilotildees pessoais e o melhor dela eacute o que transborda para o sonho para os modos para os gestos e assim entra para o quadro que me prende e em que visiono caras constantes a essa afeiccedilatildeo

Para mim uma criatura natildeo tem alma A alma eacute soacute com ela mesma

Assim vivo em visatildeo pura o exterior animado das coisas e dos seres indiferente como um deus de outro mun-do ao conteuacutedo-espiacuterito deles Aprofundo o ser proacuteprio soacute em extensatildeo e quando anseio a profundeza eacute em mim e no meu conceito das coisas que a procuro

Que pode dar-me o conhecimento pessoal da cria-tura que assim amo em deacutecor Natildeo uma desilusatildeo porque como nela soacute amo o aspecto e nada dela fantasio a sua es-tupidez ou mediocridade nada tira porque eu natildeo esperava nada senatildeo o aspecto que natildeo tinha que esperar e o aspec-to persiste Mas o conhecimento pessoal eacute nocivo porque eacute inuacutetil e o inuacutetil material eacute nocivo sempre Saber o nome da criatura para quecirc e eacute a primeira coisa que apresentado a ela fico sabendo

O conhecimento pessoal precisa ser tambeacutem de li-berdade de contemplaccedilatildeo a que meu geacutenero de amar dese-ja Natildeo podemos fitar contemplar em liberdade quem conhe-cemos pessoalmente

O que eacute supeacuterfluo eacute a menos para o artista porque perturbando-o diminui o efeito

O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das aparecircncias e manifestaccedilatildeo das coisas ndash ob-jetivista dos sonhos amante visual das formas e dos aspec-tos da natureza

Natildeo eacute um caso do que os psiquiatras chamam ona-nismo psiacutequico nem sequer do que chamam erotomania Natildeo fantasio como no onanismo psiacutequico natildeo me figuro em sonho amante carnal ou sequer amigo de fala da criatura que fito e recordo nada fantasio dela Nem como o erotoacutema-no a idealizo e a transporto para fora da esfera da esteacutetica concreta natildeo quero dela ou penso dela mais do que o que me daacute aos olhos e agrave memoacuteria direta e pura do que os olhos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

133

viram29

Nesse fragmento Bernarndo Soares confronta seu amor agrave visualidade com a monomania eroacutetica da subjetividade moder-na procurando resgatar em meio ao mundo adverso um olhar divergente diferenciado voltado para o aspecto visual das coi-sas e das pessoas enfim para aquilo que nelas eacute tatildeo-somente forma e visualidade Esse encanto simples quase infantil com a manifestaccedilatildeo primeira das formas tem sido uma armadilha em que constantemente voltam a cair leitores que tentam des-vendar uma metafiacutesica na obra do poeta principalmente no que concerne ao heterocircnimo Alberto Caeiro Natildeo se pode certamen-te excluir que haja um fundo filosoacutefico na poeacutetica pessoana Mas seu alinhamento na tradiccedilatildeo esteacutetica aqui discutida talvez propicie uma explicaccedilatildeo mais plausiacutevel e simples para suas es-colhas e de resto ela tambeacutem ajudou o proacuteprio Pessoa a dar respostas claras aos clichecircs psicologizantes que procuravam (e continuando procurando) a todo custo rotular a sua (ausecircncia de) sexualidade

O ideal poeacutetico pessoano natildeo estaacute portanto numa recu-peraccedilatildeo ontoloacutegica do mundo mas provavelmente numa trans-formaccedilatildeo do poeta em alguma coisa que tem muito que ver com o artista visual com o artista plaacutestico no sentido que lhe foi dado por Roberto Longhi O filoacutesofo o homem adulto jaacute perdeu ldquoaquele senso tatildeo simples intenso e verdadeiro da apreensatildeo de uma realidaderdquo que caracteriza a experiecircncia perceptiva da crianccedila e do artista Soacute este eacute capaz de devolver aos olhos em-botados agravequela experiecircncia primordial de sentir a beleza de uma linha de um colorido de um volume de uma obra arquitetocircnica Como explica o criacutetico italiano

Cada estilo figurativo traz em si o dom essencial-mente esteacutetico primordialmente liacuterico de restaurar o contato do nosso espiacuterito com a realidade visual corpoacuterea jaacute que os haacutebitos cotidianos nos fizeram perder a empatia e a comu-nhatildeo que mantiacutenhamos com ela Quando por vias filosoacuteficas chegamos agrave convicccedilatildeo da existecircncia do mundo a ferrugem da vida metoacutedica jaacute nos fez perder a convicccedilatildeo original a convicccedilatildeo plaacutestica30

A busca de densidade psicoloacutegica de aprofundamento introspectivo eacute o avesso dessa convicccedilatildeo plaacutestica da realidade que eacute tambeacutem um modo poeacutetico de apreender o real assim

29 F Pessoa O livro do desassossego Composto por Bernardo Soa-res ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Organizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010 pp 479-480 Sobre a ldquovisu-alidaderdquo de Bernardo Soares ver o belo texto de Leyla Perrone-Moiseacutes ldquoIn-troduccedilatildeo ao desassossegordquo que figura na ediccedilatildeo do Livro do desassossego publicada pela editora Brasiliense (Satildeo Paulo 2a ed 1996)30 R Longhi Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Traduccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosacnaify 2005 p 19

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

134

descrito por Longhi

[] o sentir para o artista figurativo eacute o ver e o seu estilo isto eacute a sua arte se constroacutei inteiramente sobre os ele-mentos liacutericos da sua visatildeo31

A transformaccedilatildeo fundamental da liacuterica pessoana talvez possa ser pensada segundo esse ldquosenso liacuterico particular da arte figurativa essa ldquoliacuterica figurativardquo32 ou ldquoaderecircncia liacuterica agrave figurardquo33 da tradiccedilatildeo pictoacuterica escultoacuterica conforme os termos de Longhi Assim como requer um outro modo pelo qual deve ser vista a poesia pessoana tambeacutem procura instituir um modo novo de olhar Sua insistente defesa e exigecircncia desse outro modo de ver eacute o contraponto agrave miopia agrave cegueira agrave doenccedila dos olhos enfermidade que tambeacutem muitas vezes a acomete e da qual eacute certamente difiacutecil se libertar Mas o combate vale a pena Os so-netos ingleses e tantos outros estatildeo aiacute para o confirmar Se Kant disse que uma moccedila para ser bela tem de ser bela como moccedila ou mesmo disfarccedilada de homem do mesmo modo soacute quem pud L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confron-to intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012 er olhar com olhos livres uma rapariga de modos masculinos teraacute toda a li-berdade de dizer contra as convenccedilotildees sociais e as regras da gramaacutetica mas em absoluto fotograficamente ndash aquela rapaz34

31 Idem p 732 R Longhi Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 196133 L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 201234 Idem p 112

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

135

BIBLIOGRAFIA

KANT Immanuel Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodri-gues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filo-soacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974

KANT Immanuel Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Ris-chmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

KIERKEGAARD Soren Enten ndash Eller Copenhague Gynden-dal 1994 p 60

LONGHI R Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Tra-duccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosac Naify 2005

LONGHI R Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 1961

MARQUES L ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um con-fronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012

PATER Walter O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014

PESSOA F Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990

PESSOA F Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizar-ro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009

PESSOA F O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacute-nio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013

PESSOA F O livro do desassossego Composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Orga-nizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010

WINCKELMANN JJ Abhandlung von der Faumlhigkeit der Emp-findung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771

WINCKELMANN JJ Monumenti antichi inediti spiegati ed illus-trati da Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

136

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoHegel e Szondi notes on the content and form of modern drama

Palavras-chave Hegel esteacutetica drama moderno Peter SzondiKeywords Hegel aesthetics modern Drama Peter Szondi

RESUMO Pretende-se analisar como Peter Szondi a partir de um quadro teoacuterico hegeliano ressalta a contradiccedilatildeo entre a for-ma e o conteuacutedo no drama moderno o qual por sua vez con-duz ao predomiacutenio do eacutepico sobre o dramaacutetico

ABSTRACT We intended to analyze how Peter Szondi from a theoretical framework Hegelian emphasizes the contradiction between the form and the content in the modern drama wich in turn lead to the predominance of the epic over the dramatic

Em seu livro Teoria do drama moderno Peter Szondi parte de uma perspectiva que procura situar as obras dramaacute-ticas no acircmbito de uma ldquoantinomia interiorrdquo (SZONDI 1978 p 13) determinada por uma relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo A matriz teoacuterica dessa perspectiva remonta a Hegel citado pelo proacuteprio Szondi a partir da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas No sect 133 dessa obra intitulado ldquoconteuacutedo e formardquo Hegel afirma que ldquoo conteuacutedo natildeo eacute senatildeo o mudar da forma em conteuacutedo e a forma natildeo eacute senatildeo o mudar de conteuacutedo em formardquo (HEGEL 1995 p 253)

Esse trecho corresponde na chamada pequena loacutegica da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas agrave loacutegica da essecircncia da grande loacutegica ou seja agrave Ciecircncia da loacutegica Trata-se gros-so modo na loacutegica da essecircncia (situada no campo da primeira parte da loacutegica a chamada loacutegica objetiva a qual engloba ainda a loacutegica do ser) de examinar o segundo momento do elemento loacutegico [das Logische] marcado pelo princiacutepio da reflexatildeo e da aparecircncia Se na loacutegica do ser Hegel reinterpreta as categorias da quantidade e da qualidade no horizonte de uma fusatildeo entre metafiacutesica e loacutegica nesse segundo momento da primeira parte a saber na loacutegica da essecircncia estatildeo em jogo as categorias de relaccedilatildeo e modo Dito de outra forma se na loacutegica do ser as determinaccedilotildees puras de pensamento se manteacutem relativamen-te isoladas na loacutegica da essecircncia passamos para o campo da

Marco Aureacutelio Werle

Doutor e professor de Esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail mawerleuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

137

reflexatildeo As determinaccedilotildees entram numa relaccedilatildeo se dizem por sua alteridade por seu contraacuterio ldquoum-para-o-outrordquo no acircmbito de uma certa tensatildeo entre ser e essecircncia Dominam entatildeo na loacutegica da essecircncia pares de pensamento essencial e inessen-cial identidade e diferenccedila positivo e negativo realidade e apa-recircncia etc

Transpondo esse princiacutepio para o uso que Szondi faz dele pode-se dizer que as obras dramaacuteticas investigadas e jun-to com elas o respectivo pensamento dos dramaturgos satildeo mar-cadas ou se resolvem estruturalmente por uma relaccedilatildeo intriacutense-ca de contrariedade e de oposiccedilatildeo satildeo situadas no campo de um processo de reflexatildeo no qual vale mais a ldquorelaccedilatildeordquo do que os extremos isolados Szondi mesmo lida em muitos momentos com categorias que exprimem ldquorelaccedilotildeesrdquo (o ldquoentrerdquo presentepassado diaacutelogomonoacutelogo interiorexterior etc) muito mais do que com ldquoidentidadesrdquo As obras ou as peccedilas teatrais sob seu olhar acabam sempre se colocando nesse domiacutenio inter-mediaacuterio revertendo uma na outra uma vez que se encontram sob o princiacutepio da alteridade natildeo de uma identidade atomiacutestica fechada em si mesma Simplificando as obras encontram-se num processo de reflexatildeo entre o conteuacutedo e a forma Por isso mesmo natildeo se pode analisaacute-las a partir de categorias oriundas de uma poeacutetica da trageacutedia que considera cada peccedila teatral operando num mundo por assim dizer fechado em si mesmo

A partir desse princiacutepio ou leitmotiv torna-se principal-mente possiacutevel falar da ldquocrise do dramardquo denominaccedilatildeo que sig-nifica principalmente um questionamento do proacuteprio gecircnero dra-maacutetico o qual desde a antiguidade se apresentou sob o signo do absoluto ldquoO drama eacute absoluto A fim de poder estabelecer uma relaccedilatildeo pura isto eacute poder ser dramaacutetico ele necessita es-tar desconectado de tudo o que lhe eacute exterior Ele natildeo conhece nada que natildeo seja ele mesmo e fora de si mesmordquo (SZONDI 1978 p 17) Essa designaccedilatildeo do drama como sendo marcado pelo ldquoabsolutordquo jaacute se encontra impliacutecita na Teoria do romance de Lukaacutecs um dos autores que inspira o estudo de Szondi A tra-geacutedia grega segundo Lukaacutecs ldquoencontrava-se acima do dilema entre a aproximaccedilatildeo da vida ou a abstraccedilatildeo porque para ela a plenitude natildeo era uma questatildeo de aproximaccedilatildeo da vida a trans-parecircncia do diaacutelogo natildeo era uma superaccedilatildeo de sua imediatez seu sentido artiacutestico eacute conduzir a essecircncia para um aleacutem de qualquer vida de toda vitalidade e plenituderdquo (LUKAacuteCS 1994 p 33) Num outro registro essa caracterizaccedilatildeo antiga do drama remete de alguma forma agrave loacutegica do ser de Hegel (natildeo agrave loacutegi-ca da essecircncia) como se o drama se colocasse desde sempre como um ser posto ou como uma dimensatildeo ontoloacutegica quase natural de fechamento em si mesmo ou se quisermos de es-vaziamento no que tange ao particular Pois natildeo eacute o proacuteprio Hegel que afirma que devido agrave sua universalidade ldquoo puro ser e o puro nada satildeo o mesmordquo (HEGEL 2011 p 72) Entretan-to a eacutepoca moderna cada vez mais recusaraacute essa concepccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

138

de drama O ser passa para o registro da essecircncia isto eacute da reflexatildeo num campo de tensatildeo e flexibilizaccedilatildeo dos pilares de sustentaccedilatildeo tradicionais da trageacutedia

Mas como se apresenta esse quadro categorial nas pe-ccedilas mesmas Szondi percorre cinco dramaturgos do fim do seacute-culo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX Ibsen Tschechov Strindberg Maeterlinck e Hauptmann Cada um eacute examinado segundo pe-ccedilas representativas tanto a partir de um certo momento temaacute-tico que se desenvolve em sua produccedilatildeo teatral ou melhor a atravessa quanto segundo um certo percurso que os envolve e transcende como um todo No que se refere ao toacutepico geral da relaccedilatildeo ldquoforma e conteuacutedordquo temos entatildeo o seguinte desenvol-vimento

1) Em Ibsen emerge ldquoo problema formal do dramardquo (SZONDI 1978 p 29) na impossibilidade de ser exposta dra-maticamente a dimensatildeo do presente e da interioridade dos per-sonagens Nas peccedilas Rosmersholm e John Gabriel Borkman a trama eacute dominada pelo passado gerando um imobilismo Ao contraacuterio do Eacutedipo Rei de Soacutefocles observa Szondi que punha o passado para funcionar dramaticamente como revelador do presente em Ibsen o passado prende os personagens diante da accedilatildeo presente Em Rosmersholm eacute o suiciacutedio da esposa do protagonista que bloqueia os planos bem como em John Ga-briel Borkman satildeo os negoacutecios fracassados e as expectativas da cunhada e esposa em relaccedilatildeo ao filho que geram um imobi-lismo impedindo qualquer tipo de accedilatildeo

2) Tschechow por sua vez deixa de apostar na forma do diaacutelogo enquanto articulador positivo da accedilatildeo presente e assume claramente essa impossibilidade apresentando seus personagens de imediato diante de uma ldquorenuacutencia ao presenterdquo (SZONDI 1978 p 31) Em As trecircs irmatildes estatildeo entrelaccedilados o teacutedio da vida burguesa o peso de um passado tido como fe-liz e um presente tomado pelo fracasso Esse ldquoconteuacutedordquo leva Tschechow a renunciar agrave forma tradicional do diaacutelogo Muito embora os personagens falem intensamente de si essas falas natildeo possuem o propoacutesito de entabular uma conversa e propi-ciar uma mensagem intersubjetiva ou compreensatildeo reciacuteproca e comunicativa ldquoo diaacutelogo natildeo tem forccedilardquo (SZONDI 1978 p 35) No lugar disso a dimensatildeo liacuterica eacute incorporada no drama tornando-se o diaacutelogo uma espeacutecie de monoacutelogo na medida em que se compartilha a solidatildeo e a ausecircncia de sentido da vida burguesa que se aproxima de uma espeacutecie de mutismo e imobilismo

3) Como ponto de inflexatildeo das anaacutelises de Szondi colo-ca-se o proacuteximo dramaturgo Strindberg sem duacutevida autor mais decisivo com a sua ldquodramaturgia do eurdquo Natildeo se trata poreacutem de um teatro que procura afirmar a potecircncia da subjetividade tal como vemos ocorrer em Shakespeare Ao contraacuterio Strindberg parte do fato da quase impossibilidade de expressar a vida indi-vidual de cada ser humano Na peccedila O pai surge justamente a

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

139

expressatildeo ldquoconhecemos apenas uma vida a proacutepriardquo (SZON-DI 1978 p 39) e na peccedila de um ato A mais forte emerge de maneira extremamente condensada o elemento oculto e repri-mido da vida dos homens A novidade formal dessa uacuteltima peccedila consiste justamente numa espeacutecie de monoacutelogo que por sua vez eacute quase um relato pura e simples

Partindo pois da dificuldade de expressatildeo da dimensatildeo humana Strindberg avanccedila para o conceito de ldquodrama de esta-ccedilatildeordquo cujo princiacutepio formal consiste em iluminar um ldquoeurdquo a partir daqueles que o cercam configurando-se assim uma unidade do eu que se coloca no lugar da unidade da accedilatildeo A unidade de accedilatildeo eacute dissolvida e se destacam as ldquopedras isoladasrdquo do eu que progride Ou seja o ldquoeurdquo eacute de natureza essencialmente frag-mentada exposto a uma situaccedilatildeo de signos existenciais (peccedila A mais forte)

4) Maeterlinck o proacuteximo dramaturgo examinado tor-na-se o autor que decididamente lida com a impotecircncia do ser humano diante do destino Satildeo homens que jaacute renunciaram e estatildeo entregue agrave situaccedilatildeo existencial mais imediata Estatildeo agrave espera de algo que decididamente nunca chegaraacute

O termo ldquosituaccedilatildeordquo empregado por Szondi nos remete novamente para Hegel que o emprega na primeira parte dos Cursos de esteacutetica para designar uma determinidade do ideal da arte colocada entre o chamado ldquoestado de mundordquo (pensado como heroacuteico e prosaico) e a ldquocolisatildeordquo O ideal se apresenta na existecircncia fazendo um sentido para o agir universal de modo que ldquoa situaccedilatildeo em geral eacute o estaacutegio intermediaacuterio entre o estado universal do mundo em si mesmo imoacutevel e a accedilatildeo [Handlung] concreta aberta em si mesma para a accedilatildeo [Aktion] e reaccedilatildeo [Reaktion]rdquo (HEGEL 1999 p 208) E Hegel ainda ressalta que a tarefa de encontrar situaccedilotildees interessantes favoraacuteveis agrave arte foi ldquodesde sempre o aspecto mais importante da arterdquo (HEGEL 1999 p 207)

Em Maeterlinck poreacutem a situaccedilatildeo exprime-se no acircmbito dos homens no maacuteximo como uma Stimmung [disposiccedilatildeo aniacute-mica] diante da qual os diaacutelogos satildeo desprovidos de sentido e conexatildeo intersubjetiva Isso significa antes o que Hegel chama de ldquoausecircncia de situaccedilatildeordquo por exemplo o que encontrariacuteamos na rigidez de certos retratos medievais Seja como for essa re-missatildeo ao medievo natildeo deixa de ser instrutiva para o teatro de Maeterlinck um teatro marcado pela situaccedilatildeo da ausecircncia de situaccedilatildeo Poder-se-ia dizer que esse seraacute um traccedilo incorporado largamente pelo teatro em geral do seacuteculo XX Basta lembrar de Esperando Godot de Beckett

5) Por fim apresenta-se Hauptmann em cujo teatro jaacute se verifica uma autonomizaccedilatildeo total do chamado ldquodrama socialrdquo A dimensatildeo social eacute o assunto principal que se sobrepotildee sobre a dimensatildeo propriamente dramaacutetica em que faz sentido a accedilatildeo humana Szondi chama a atenccedilatildeo para o caraacutecter eacutepico dessa denominaccedilatildeo de ldquodrama socialrdquo que implica ao mesmo tempo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

140

uma contradiccedilatildeo que jaacute se coloca totalmente contra a proacutepria possibilidade do drama (SZONDI 1978 p 60)

Nesse percurso vai se desnudando aos poucos o que vem a ser em termos de significaccedilatildeo esse embate entre for-ma e conteuacutedo no drama moderno grosso modo trata-se fun-damentalmente de um embate entre o dramaacutetico e o eacutepico no interior da forma dramaacutetica O eacutepico eacute o conteuacutedo e dramaacutetica eacute a forma sendo que a segunda acaba por ser questionada e forccedilada a aceitar as mudanccedilas formais devido agrave primeira No drama moderno cada vez mais se torna decisivo o conteuacutedo eacutepico ou dito de outro modo a instacircncia da prosa que forccedila o gecircnero dramaacutetico a recuar de seus pontos de sustentaccedilatildeo basi-lares desde a antiguidade que satildeo a accedilatildeo o diaacutelogo e a cons-truccedilatildeo de um sentido intersubjetivo compartilhado Eacute como se o teatro natildeo coubesse mais nos limites que lhe foram conferidos desde a Poeacutetica de Aristoacuteteles isto eacute no espaccedilo de jogo entre a mimese e a catarse

Rompendo com uma poeacutetica da trageacutedia e pensando nos termos de uma filosofia do traacutegico Szondi orienta-se ainda segundo a esteacutetica de Hegel quando privilegia o conteuacutedo dian-te da forma Sabemos que a esteacutetica de Hegel eacute sobretudo uma esteacutetica do conteuacutedo e que no fundo o problema da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e forma somente surge quando se privilegia a instacircncia do conteuacutedo Nas esteacuteticas que punham em primeiro lugar o princiacutepio da forma por exemplo no acircmbito do pensa-mento alematildeo da eacutepoca desde Baumgarten Kant chegando ateacute Schiller esse problema natildeo tinha como surgir a forma resolvia de antematildeo a particularidade do conteuacutedo Aliaacutes a temaacutetica do particular de um universal particular eacute o que justamente marca a instacircncia do conteuacutedo e desencadeia o movimento dialeacutetico baseado nas transformaccedilotildees histoacutericas da arte que levam a uma problematizaccedilatildeo permanente da forma Natildeo significa que a forma se torna relativa Pelo contraacuterio a forma se torna de fato e pela primeira vez uma questatildeo efetiva de pensamento a ser constantemente revista e observada com intensidade

No entanto a filiaccedilatildeo de Szondi ao modo como Hegel lida com o problema da relaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo natildeo dei-xa de ser isenta de criacuteticas se lembrarmos por exemplo das objeccedilotildees que Adorno fez a isso em sua Teoria esteacutetica Para Adorno Hegel e Kant tomam a forma como sendo conteuacutedo ou seja deixam a desejar no que se refere a uma transforma-ccedilatildeo da proacutepria forma Hegel veria uma passagem tranquila do conteuacutedo social para o domiacutenio da prosa da arte quando essa ldquopassagemrdquo lida a partir do conceito de ideologia tornar-se-ia sobretudo problemaacutetica a partir do seacuteculo XIX ldquoHegel e Kant foram os uacuteltimos que dito de modo brusco puderam escrever grandes esteacuteticas sem compreender algo acerca de arte Isso foi possiacutevel porque a arte por seu lado se orientava pelas nor-mas abrangentes que natildeo eram questionadas pela obra de arte individual e sim eram diluiacutedas em sua problemaacutetica imanenterdquo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

141

(ADORNO 1973 p 495) Certamente pode-se questionar o pensamento que lida com o esquema forma e conteuacutedo a partir da situaccedilatildeo da arte no seacuteculo XIX jaacute que a relaccedilatildeo entre arte e cultura ingressou a partir de entatildeo numa tensatildeo cada vez maior Por outro lado igualmente pode-se questionar o pressuposto adorniano de que toda obra de arte autecircntica jaacute eacute por si mes-ma um questionamento das chamadas ldquonormas abrangentesrdquo e que portanto as obras de arte estariam sempre em descom-passo com o mundo social dominante Assumir essa tese signifi-ca excluir uma grande parte da produccedilatildeo artiacutestica e literaacuteria dos seacuteculos XIX e XX

Poder-se-ia lembrar aqui tambeacutem das objeccedilotildees que Hei-degger faz ao par mateacuteria e forma no ensaio A origem da obra de arte cuja origem adviria de uma ausecircncia de questionamen-to da ldquocoisidade da coisardquo Por traacutes do questionamento da coisa reside a concepccedilatildeo de coisa como instrumento de modo que o par mateacuteria e forma depende de uma certa noccedilatildeo de serventia isto eacute de uma certa teacutecnica aplicada pelo homem agrave coisa mas que seria estranha a ela mesma em seu desenvolvimento on-toloacutegico ldquoA distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma em suas mais dife-rentes combinaccedilotildees eacute o esquema conceitual puro e simples de toda teoria da arte e esteacutetica Mas esse fato incontestaacutevel natildeo comprova nem que a distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma seja sufi-cientemente fundamentada nem que pertence originariamente ao acircmbito da arte e da obra de arterdquo (HEIDEGGER 2003 p 12)

Ou seja tanto Adorno quanto Heidegger questionam a legitimidade do pensamento que opera ainda com o par ldquoforma e conteuacutedordquo Ambos podem ser mobilizados como contraponto criacutetico ao percurso indicado por Szondi uma vez que se poderia supor algo de irredutiacutevel no drama moderno e que se subtrai ao desenvolvimento dialeacutetico de forma e conteuacutedo

Voltando ao problema central de Szondi coloca-se po-reacutem a pergunta de onde proveacutem essa necessidade de emer-gecircncia do eacutepico na eacutepoca moderna Talvez possamos discutir esse ponto retomando o tema da posiccedilatildeo da prosa na eacutepoca da filosofia e da poesia alematildes claacutessicas em particular desde a filosofia kantiana e segundo o centro do romantismo e idealis-mo refletidos no classicismo de Weimar Para tanto parece-me instrutivo remeter ao romance de Goethe intitulado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister escrito entre 1794 e 1797 em particular ao modo como eacute encaminhado o tema do teatro

No capiacutetulo 7 do livro V de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister o grupo de teatro ocupado com a discussatildeo do Hamlet de Shakespeare e de sua encenaccedilatildeo se depara dian-te da seguinte questatildeo o que deve ser privilegiado o drama ou o romance A partir disso discutem algumas caracteriacutesticas do drama e do romance que parecem por assim dizer anteci-par o que ocorreraacute com o drama posterior objeto de anaacutelise de Szondi principalmente quando se diz que ldquonatildeo seria impossiacute-vel escrever um drama em forma epistolarrdquo (GOETHE 2006 p

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

142

300) Elementos eacutepicos tais como o da passividade do heroacutei da ausecircncia de destino da evoluccedilatildeo lenta do jogo do acaso satildeo confrontados com os elementos essencialmente dramaacuteti-cos tais como o predomiacutenio da accedilatildeo a pressa e a aceleraccedilatildeo o destino e a eficaacutecia do agir (cf GOETHE 2006 p 300-01) Essa comparaccedilatildeo entre o drama e o romance indica um pensamento que toma os dois gecircneros como passiacuteveis de flexibilizaccedilatildeo de seus princiacutepios de modo que permitem perceber o processo de como no drama do fim do seacuteculo XIX pocircde justamente ocorrer a emergecircncia do eacutepico A leitura feita do Hamlet nesse romance como sendo uma peccedila que extrapola os limites do teatro pre-nuncia o que viraacute depois

Ou seja a impressatildeo que se tem diante da leitura de Szondi eacute que ele como grande conhecedor da esteacutetica alematilde claacutessica toma emprestado o esquema discutido por Goethe e Schiller que possui algo de programaacutetico e visionaacuterio e o mo-biliza para compreender o teatro posterior E aqui seria preciso ainda explorar o anexo Sobre Poesia eacutepica e dramaacutetica da Cor-respondecircncia de Goethe e Schiller onde se coloca o mesmo problema Eacute como se Szondi tomasse esses apontamentos bre-ves de Goethe e Schiller como uma espeacutecie de prognoacutestico da proacutepria tendecircncia do teatro ao longo do seacuteculo XIX como se o teatro do futuro a partir da essecircncia da modernidade tivesse de se deparar inevitavelmente com essa dimensatildeo eacutepica No fundo o problema parece ser esse como eacute possiacutevel fazer teatro na eacutepoca do paradigma do romance

Com efeito cabe lembrar que o problema em si natildeo eacute la-teral ou secundaacuterio na estruturaccedilatildeo do romance de Goethe Uma das teses mais fortes desse romance consiste em indicar como o paradigma humano se desloca do campo do teatro como ins-tituiccedilatildeo essencialmente representativa (no seacuteculo XVIII) para o campo do romance como o paradigma de exposiccedilatildeo do homem poacutes Revoluccedilatildeo Francesa (seacuteculo XIX) Um certo ideal relacio-nado ao seacuteculo XVIII de que o gecircnero humano pode encontrar o seu sentido e destino no teatro sendo a noccedilatildeo de representa-ccedilatildeo o signo pelo qual o homem se reconhece enquanto tal dei-xa de ter validade com o espiacuterito de criacutetica radicalizado por Kant e as implicaccedilotildees sociais e culturais da Revoluccedilatildeo Francesa No romance de Goethe essa situaccedilatildeo eacute pela primeira e talvez uacutenica vez enfrentado de frente o ser humano passa a ser visto natildeo mais como um ideal abstrato um certo tipo universal e sim en-contra-se entregue a si mesmo no horizonte de uma tarefa de formaccedilatildeo Natildeo haacute mais ldquorepresentaccedilatildeordquo possiacutevel ou a possibili-dade de o homem elaborar pela via teatral uma imagem repre-sentativa de si mesmo Por isso temos no romance de Goethe a passagem do teatro para a vida o conflito da poesia do coraccedilatildeo com a prosa do mundo (como interpreta Hegel) Goethe equili-bra muito habilmente o teatro e a vida de modo que nenhuma das duas instacircncias prevalece sobre a outra embora cada uma reivindique o seu direito

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

143

Esse eacute justamente o desafio colocado para o ser hu-mano a partir da criacutetica kantiana e da Revoluccedilatildeo Francesa eacute preciso procurar a felicidade a amizade a dimensatildeo iacutentima e afetiva a realizaccedilatildeo individual (teatro) mas ao mesmo tempo natildeo eacute possiacutevel deixar de lado o princiacutepio da realidade (vida) a organizaccedilatildeo social com as suas exigecircncias e compromissos (ditames do capitalismo) Na concepccedilatildeo de Goethe esse seraacute o dilema que acompanharaacute o ser humano e que estaraacute no cerne do ldquonovordquo gecircnero o romance que teraacute que operar um delicado equiliacutebrio reciacuteproco Segundo a forma do romance (teorizada de modo magistral posteriormente por Lukaacutecs) a diversidade hu-mana e sua contingecircncia natildeo cabem mais no palco pelo menos natildeo mais num palco equilibrado pelas categorias aristoteacutelicas de mimese e catarse A concisatildeo representativa deve dar lugar ao amplo terreno do romance

Ora esse parece-me ser um dos motivos de surgimento da questatildeo do eacutepico nos principais dramaturgos do fim do seacutecu-lo XIX analisados por Szondi Pergunta-se poreacutem agrave guisa de conclusatildeo por que Szondi emprega preferencialmente o termo ldquoeacutepicordquo e natildeo os termos ldquoromancerdquo ou ldquoprosardquo Haacute diferenccedila em dizer que o teatro do fim do seacuteculo XIX se encaminha gra-dualmente para a dimensatildeo eacutepica ou que se encaminha cada vez mais para a ldquoprosardquo ou para o ldquonarrativordquo (enquanto proce-dimento tiacutepico do romance) Parece-me que a primeira opccedilatildeo abriga um certo desejo de retorno agrave origem uma certa nostal-gia a qual poreacutem estaacute irremediavelmente deslocada na eacutepoca moderna e principalmente eacute impossiacutevel no quadro do drama Talvez o caminho passasse antes pelo exame da teoria do ro-mance e seus impasses

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

144

BIBLIOGRAFIA

ADORNO T Aumlsthetische Theorie Frankfurt am Main Suhrkamp 1975

GOETHE J W Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trad de Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2006

HEGEL G W Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas vol I ndash A ciecircncia da loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______ Cursos de esteacutetica vo I trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Edusp 1999

______ Ciecircncia da loacutegica (excertos) trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Barcarolla 2011

HEIDEGGER M ldquoDer Ursprung des Kunstwerkesrdquo In Holzwe-ge Frankfurt am Main Klostermann 2003 (8 ediccedilatildeo)

LUKAacuteCS G Die Theorie des Romans Muumlnchen DTV 1994

SZONDI P Theorie des modernen Dramas (1880-1950) In Schriften I Frankfurt am Main Suhrkamp 1978

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de PiacutendaroThe laborious Muse and the victory ode Pindarrsquos second Isthmian

Palavras-chave Piacutendaro epiniacutecio Iacutestmica II poesia grega arcaicaKey-words Pindar epinician Isthmian II archaic Greek poetry

RESUMO Traduzo inicialmente a segunda Iacutestmica de Piacutendaro Apresento em segundo lugar certas caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega centrando-me sobretudo na liacuterica coral Busco entatildeo esboccedilar como nela se encontram determinados padrotildees que fazem emergir sem prescritiva ou regras diversos gecircneros que se modelam por uma pragmaacutetica oral e performaacute-tica Discuto a seguir a estrutura baacutesica das Odes dedicadas aos vencedores dos Jogos a fim de verificar se a segunda Iacutestmi-ca eacute ou natildeo um poema epiniacutecio

ABSTRACT First I translate Pindarrsquos second Isthmian Secon-dly I present some general characteristics of archaic Greek po-etry chiefly choral lyric poetry I try then draw up a framework on general patterns that bring to surface without prescriptions or rules diverse genres shaped by oral and performatic prag-matism Finally I discuss the fundamental structure of odes de-dicated to winners of the Games in order to determine whether Pindarrsquos second Isthmian is an epinician poem or not

TRADUCcedilAtildeO

De antano os varotildees TrasiacutebuloI que no carrodas Musas com aacuteureas fitas subiam unindo-seagrave gloriosa lira imediatamente flechavammeliacutefluos hinos em garotosqualquer um que sendo belo mantivesse a maispropiacutecia estaccedilatildeo evocadorade Afrodite em seu belo trono

Porque entatildeo a Musa ainda natildeo eraamante de ganho nem laboriosaIInem as doces canccedilotildees de voz suave argentadasna fachadaIII por TerpsiacutecoraIV de meloso

Adriano Machado Ribeiro

Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacute-culas da Faculdade de Filo-sofia Letras e Ciecircncias Hu-manas da Universidade de Satildeo Paulo

email adrianoruspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

146

acento eram vendidasMas agora ela insta observar do argivoV

a conhecida palavra que caminha muito mais perto da verdade

ldquoDinheiro dinheiro eis o homemrdquo dizia eledesamparado conjuntamente de posses e amigosVIPorque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignoradahiacutepica vitoacuteria iacutestmicaVIIdepois de a Xenoacutecrates Poseiacutedon concedecirc-laenviava-lhe para cingir agrave comauma coroa de doacuterico aipo selvagemVIII

Blaureando homem de belo carroa luz de Agrigento Em CrisaIX por ele olhoupoderoso Apolo e lhe deu esplendortambeacutem laacute e agraciado com as homenagens renomadasdos Erectidas na luzidia Atenas natildeo lamentoua matildeo preservante do carrodo varatildeo que golpeia cavalos

matildeo com que Nicocircmaco na medidacerta bem controlou todas as reacutedeasa quem ateacute os arautos das temporadasdos jogos os Eleacuteios portadores da treacuteguade Zeus Cronida reconheceramdepois decerto de provar algumato de acolhedora hospitalidade

Com uma voz suave sopro saudavam a elecaindo no colo da aacuteurea vitoacuteria sobresua proacutepria terra a que chamam de Zeus Oliacutempiosagrado bosque onde em honras imortaisos filhos de Enesidemo se misturaramDe fato Trasiacutebulo natildeo desconhecedoras satildeo vossas mansotildeesnem das amaacuteveis procissotildees cantadas nem dos meliacutefluos cantos]

CPois natildeo eacute penhasco nem se tornaescarpa o caminho se algueacutem conduzagrave casa dos homens ilustres as honras das HeliconiacuteadasX

Tendo atirado a lanccedilaque eu possa arremessar tatildeo longequanto Xenoacutecrates obteve doce tecircmpera acima dos homensEra ele venerado por consociar com seus concidadatildeos

respeitando o costumeiro cuidado dos cavalossegundo o costume de todos os helenos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

147

E abraccedilava dos deuses os banquetestodos e jamais vento soprante em torno da hospitaleiraXI

mesa o fez recolher a velaMas cruzava pelo Faacutesis no veratildeoe no inverno ia navegando ateacute a margem do NiloXII

Que agora o filho jaacute que invejosasesperanccedilas rondam suspensas as mentes dos mortaisnatildeo silencie a virtude paternanem estes hinos aqui porquenatildeo os confeccionei para permanecerem imoacuteveisIsso Nicasipo partilha quandochegares a meu hoacutespede leal

O POEMA

Αʹ Οἱ μὲν πάλαι ὦ Θρασύβουλεφῶτες οἳ χρυσαμπύκωνἐς δίφρον Μοισᾶν ἔβαι-νον κλυτᾷ φόρμιγγι συναντόμενοιῥίμφα παιδείους ἐτόξευον μελιγάρυας ὕμνουςὅστις ἐὼν καλὸς εἶχεν Ἀφˈροδίταςεὐθρόνου μνάστειραν ἁδίσταν ὀπώραν

ἁ Μοῖσα γὰρ οὐ φιλοκερδήςπω τότrsquo ἦν οὐδrsquo ἐργάτιςοὐδrsquo ἐπέρναντο γˈλυκεῖ-αι μελιφθόγγου ποτὶ (pros)Τερψιχόραςἀργυρωθεῖσαι πρόσωπα μαλθακόφωνοι ἀοιδαίνῦν δrsquo ἐφίητι ltτὸgt τὠργείου φυλάξαιῥῆμrsquo ἀλαθείας ltu ndash ἐτᾶςgt ἄγχιστα βαῖνον

rsquoχρήματα χρήματrsquo ἀνήρrsquoὃς φᾶ κτεάνων θrsquo ἅμα λειφθεὶς καὶ φίλωνἐσσὶ γὰρ ὦν σοφός οὐκ ἄγˈνωτrsquo ἀείδωἸσθμίαν ἵπποισι νίκαντὰν Ξενοκˈράτει Ποσειδάων ὀπάσαιςΔωρίων αὐτῷ στεφάνωμα κόμᾳπέμπεν ἀναδεῖσθαι σελίνων

Βʹ εὐάρματον ἄνδρα γεραίρωνἈκˈραγαντίνων φάος ἐν Κρίσᾳ δrsquo εὐρυσθενὴςεἶδrsquo Ἀπόλλων νιν πόρε τrsquo ἀγˈλαΐανκαὶ τόθι κˈλειναῖς ltτrsquogt Ἐρεχθειδᾶν χαρίτεσσιν ἀραρώςταῖς λιπαραῖς ἐν Ἀθάναις οὐκ ἐμέμφθηῥυσίδιφˈρον χεῖρα πλαξίπποιο φωτός

τὰν Νικόμαχος κατὰ καιρὸννεῖμrsquo ἁπάσαις ἁνίαις

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

148

ὅν τε καὶ κάρυκες ὡ-ρᾶν ἀνέγˈνον σπονδοφόροι ΚρονίδαΖηνὸς Ἀλεῖοι παθόντες πού τι φιλόξενον ἔργον

ἁδυπνόῳ τέ νιν ἀσπάζοντο φωνᾷχρυσέας ἐν γούνασιν πίτˈνοντα Νίκαςγαῖαν ἀνὰ σφετέραντὰν δὴ καλέοισιν Ὀλυμπίου Διόςἄλσος ἵνrsquo ἀθανάτοις Αἰνησιδάμουπαῖδες ἐν τιμαῖς ἔμιχθεν

καὶ γὰρ οὐκ ἀγνῶτες ὑμῖν ἐντὶ δόμοιοὔτε κώμων ὦ Θρασύβουλrsquo ἐρατῶνοὔτε μελικόμπων ἀοιδᾶν

Γʹοὐ γὰρ πάγος οὐδὲ προσάντηςἁ κέλευθος γίνεταιεἴ τις εὐδόξων ἐς ἀν-δρῶν ἄγοι τιμὰς Ἑλικωνιάδωνμακˈρὰ δισκήσαις ἀκοντίσσαιμι τοσοῦθrsquo ὅσον ὀργάνΞεινοκράτης ὑπὲρ ἀνθρώπων γλυκεῖανἔσχεν αἰδοῖος μὲν ἦν ἀστοῖς ὁμιλεῖν

ἱπποτˈροφίας τε νομίζωνἐν Πανελλάνων νόμῳκαὶ θεῶν δαῖτας προσέ-πτυκτο πάσας οὐδέ ποτε ξενίανοὖρος ἐμπνεύσαις ὑπέστειλrsquo ἱστίον ἀμφὶ τράπεζανἀλλrsquo ἐπέρα ποτὶ μὲν Φᾶσιν θερείαιςἐν δὲ χειμῶνι πˈλέων Νείλου πρὸς ἀκτάνή νυν ὅτι φθονεραὶθνατῶν φρένας ἀμφικρέμανται ἐλπίδεςμήτrsquo ἀρετάν ποτε σιγάτω πατρῴανμηδὲ τούσδrsquo ὕμνους ἐπεί τοιοὐκ ἐλινύσοντας αὐτοὺς ἐργασάμανταῦτα Νικάσιππrsquo ἀπόνειμον ὅτανξεῖνον ἐμὸν ἠθαῖον ἔλθῃς

_______________

Notas ao poema

i Filho de Xenoacutecrates de Agrigento Nota-se ser o uacutenico poema de Piacutendaro supeacuterstite endereccedilado a um ser humano na primeira linha Verdenius (1988

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

149

p 119) explica que embora seja uma ode para celebrar uma vitoacuteria haacute nela forte caraacuteter pessoal Para aleacutem poreacutem do sentido pessoal conveacutem talvez destacar a peculiaridade de um epiniacutecio cuja celebraccedilatildeo da vitoacuteria se confi-gura no passado tornando presente a memoacuteria do pai para firmar o futuro como confirmaccedilatildeo da arete familiar que soacute seraacute futuro se configurar o que deve se confirmar na enunciaccedilatildeo em que se apresenta que no entanto sempre eacute futuro quando se celebra a vitoacuteria ndash aqui preteacuterita ndash na proacutepria enunciaccedilatildeo do poema A presenccedila das divindades do mesmo modo molda--se por tal relaccedilatildeo de tempos

ii O texto eacute de difiacutecil traduccedilatildeo porque implica forte interpretaccedilatildeo sobre o po-ema Como nota Verdenius (1988 p 123) Wilamowitz encontra no termo que implica trabalhar por dinheiro o sentido sarcaacutestico de Arquiacuteloco (206 W) para significar prostituta Outra forte conotaccedilatildeo eacute traduzir a Musa por merce-naacuteria implicando uma criacutetica a toda poesia epiniacutecia visto ser esta calcada no pagamento Mas Piacutendaro aqui natildeo seria incluiacutedo cabendo uma criacutetica a Simocircnides ou seja a um tipo especiacutefico de viacutenculo acarretado pelo paga-mento de um serviccedilo

iii Este eacute o sentido primeiro a meu ver mais adequado do que rosto ou apa-recircncia pois Piacutendaro pensa na fachada de um preacutedio Verdenius destaca para confirmaacute-lo a VI Oliacutempica v 3 e a VI Piacutetica v 14

iv Como diz Verdenius tal nome talvez tenha sido escolhido porque Piacutendaro pensa na poesia coral destacando poreacutem que natildeo deve haver uma oposi-ccedilatildeo entre as musas mas sim entre passado e presente (1988 p123)

v Aristodemo que no entanto provavelmente era espartano A razatildeo aqui talvez seja aproximar a sonoridade argivo-argecircnteo

vi O verso 12 implica uma quebra que mostra as dificuldades de Piacutendaro com efeito a conjunccedilatildeo explicativa γάρ eacute lida por Denniston (1996) como se referisse ao que se segue Mas pode como mostra Verdenius implicar uma referecircncia ao que se disse ateacute agora ou seja como se natildeo fosse preciso dizer mais nada

vii Vitoacuteria referida na II Oliacutempica v 50

viii Como nota Verdenius ldquothis plant was sacred to the gods of the underworld and the schol may be right in referring to the fact that the Isthmia were origi-narilly funeral games in honour of Melicertesrdquo (1988 p131)

ix Local nas proximidades de Delfos

x As musas que habitam o monte Heacutelicon como aparece em Hesiacuteodo no iniacutecio da Teogonia

xi Hospitalidade em grego eacute ξενία que em Homero eacute marca maior de civilida-de jaacute que acolher o estranhoestrangeiro separa vg na Odisseia os feaacutecios

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

150

como reencontro civilizador em contraponto agraves paragens em que Odisseu natildeo fora devidamente acolhido pois na esfera selvagem de um Ciclope natildeo cabe a hospitalidade Mesmo sendo um topos fortemente presente em Piacuten-daro aqui a hospitalidade ainda eacute sonoramente destacada pela presenccedila da proacutepria palavra no nome de Ξεινοκράτη Note-se tambeacutem que no reconheci-mento dos arautos de Zeus realccedila-se ser φιλόξενον Nicocircmaco (que tambeacutem destaca no nome a vitoacuteria)

xii Faacutesis e Nilo delimitam fronteiras polar e norte respectivamente do nave-gaacutevel marcando tambeacutem o frioquente que como nota Verdenius sugeram a separaccedilao dos hemisfeacuterios pelas estaccedilotildees do ano Efetiva a imagem a extensatildeo e continuidade da hospitalidade de Xenoacutecrates ldquoThe fame of his hospitality extended to the eastern limits of the known world reaching as far as Phasis the distant river of the Euxine in the summer and as far as the Nile in the winter The Euxine was open to navigation in the summer alone and it was only to Egypt that the Greeks sailed in the winterrdquo (SANDYS 1915 p 453 n 2)

De generalizaccedilotildees e generalidades O poema de Piacutendaro configura-se pelas marcas do que entatildeo lhe efetivava como um modo ou maneira proacutepria delineando em traccedilos gerais o que ainda natildeo eacute especificamente gecircnero em seu sentido forte mas que traccedila configuraccedilotildees que no entanto especificam-no nos topoi e imagens adequados para a ocasiatildeo a que se destina1 Haacute pois como afirma Carey ldquotendecircnciasrdquo que se modelam pela expectativa da audiecircncia a que se desti-na mas que muita vez se modela tambeacutem pela quebra de tais expectaccedilotildees conforme os traccedilos gerais de tal poesia entatildeo pra-ticada na Heacutelade

Para audiecircncias do que se convenciona nomear como periacuteo-do arcaico2 grego de modo geral satildeo muitas as variaacuteveis nas apresentaccedilotildees de poemas3 Mesmo tendo em comum o fato de serem apresentados numa tradiccedilatildeo fortemente oral em perfor-mances haacute enorme diferenccedila se satildeo eles ou recitados ou can-tados Este eacute um ponto bastante controverso para se apresentar 1 ldquohowever as recent scholars have repeatedly emphasised it is unwi-se to reify literary genres to the point of envisaging a set of objective rules ndash specially for the archaic and early classical periods Though the tendency to categorise exists from the earliest period the formulation of an explicit grammar of genres postdates the performance culture of archaic and early classical Greece Equally it is a mistake to view genres as completely homo-genous and distinct The boundaries are not fixed but elastic porous nego-tiable and provisionalrdquo (CAREY 2009 pp 21-22)2 A designaccedilatildeo jaacute por si ruim embora uacutetil conflitua com a utilizada para marcar etapas historicamente distintas Sendo assim o periacuteodo arcaico que vai do seacuteculo VIII ao VI aC natildeo coincide com a liacuterica arcaica coral que embora se inicie no seacuteculo VI estaacute em pleno vigor com Piacutendaro no seacuteculo V3 Este e o paraacutegrafo seguinte seguem de perto as observaccedilotildees em-bora gerais bastante pertinentes para uma apresentaccedilatildeo da questatildeo no ca-piacutetulo inicial de Introducing Greek Lyric de Felix Budelmann do livro por ele editado The Cambridge companion to Greek Lyric (2009 p11-13)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

151

na distacircncia do tempo e ausecircncia de informaccedilotildees mais precisas sobre a parte musical e caracteriacutesticas especiacuteficas das proacuteprias performances Haacute no entanto uma oposiccedilatildeo clara contrapu-nha-se a meacutelica (de melos canto) por ser cantada agrave poesia re-citada fosse esta elegia iambo ou ateacute mesmo o epos da eacutepi-ca Aleacutem da importante separaccedilatildeo dos metros daiacute decorrentes mais regulares na poesia falada implica tal diferenccedila acompa-nhamentos diversos jaacute que a meacutelica o era por instrumentos de corda como a lira enquanto a elegia possivelmente fosse acom-panhada por um muacutesico tocando o aulos Mas tais separaccedilotildees devem tambeacutem ser nuanccediladas pois o proacuteprio Piacutendaro faz refe-recircncias ao uso do aulos em seus poemas (Pind Ol 5 19)

Nas canccedilotildees marcava-se a diferenccedila entre a apresentaccedilatildeo solo (monoacutedica) daquela que era cantada por um coro a liacuterica coral Os limites de tais distinccedilotildees no entanto tambeacutem natildeo satildeo nem um pouco claros Na praacutetica da composiccedilatildeo aleacutem de um mesmo poeta apresentar canccedilotildees nas duas modalidades (Piacuten-daro vg com os ditirambos corais ou os curtos enkomia mo-noacutedicos) podem tambeacutem ter ocorrido numa mesma apresen-taccedilatildeo formas mistas visto que uma obra poderia ser em seu iniacutecio monoacutedica e depois pudesse passar a ser um canto coral

A audiecircncia por sua vez podia se reunir para distintas oca-siotildees como casamentos funerais simpoacutesios ou cerimocircnias poliacutetico-religiosas da polis Aleacutem disso cabe tambeacutem destacar a especificidade de haver ou natildeo um contratante com as dife-rentes finalidades disso decorrentes como aqui se veraacute Tais pontos gerais implicam as possiacuteveis diferenccedilas de gecircneros que se possam distinguir na pragmaacutetica e composiccedilatildeo dos poemas desse periacuteodo

Haacute assim um aspecto peculiar agrave poesia dita arcaica que por maiores nuanccedilas que possam implicar eacute a ela peculiar e par-ticularmente a modela num gecircnero que natildeo se compunha em vista de regraacuterio escrito e programaacutetico a oralidade se destaca pois para aleacutem dos limites do uso da escrita importam os efei-tos mimeacuteticos alcanccedilados pela performance a que a canccedilatildeo se destina Mesmo que o autor se servisse da escrita para a com-posiccedilatildeo de suas obras com as possiacuteveis implicaccedilotildees de rees-crituras a partir da reaccedilatildeo preacutevia de uma performance anterior importava sobretudo o modo de apresentaccedilatildeo que se modela-va por canto ou reacutecita para a ocasiatildeo a que se destinava Tal poesia como lembra Gentili (1990 p3) tinha assim evidente funccedilatildeo pragmaacutetica conferindo-se a ela seu valor a partir da fun-ccedilatildeo proacutepria que cumpria na polis

Longe pois de um modelo subjetivista como emancipaccedilatildeo de individualidades tal pragmatismo implica as caracteriacutesticas comuns de tal poesia a se moldar particular e diversamente conforme a especificidade implicada na intricada relaccedilatildeo poliacuteti-ca presente entre vaacuterios elementos o compositor a audiecircncia para a qual ele compotildee4 a circunstacircncia para a qual se destina 4 Para uma avaliaccedilatildeo criteriosa e perspicaz sobre as interpretaccedilotildees de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

152

sua obra a ser apresentada A ocasiatildeo pois configura a espe-cificidade que se celebra a partir de um kairos (momento opor-tuno) que delineia o que eacute ou natildeo decorosamente apropriado que deve orientar o compositor para que sua trama configure adequadamente a recepccedilatildeo da audiecircncia

Natildeo havendo teorizaccedilatildeo sobre sua funccedilatildeo nem diretrizes de-marcando uma prescritiva ou seja sem nenhum traccedilo do que posteriormente se nomearaacute uma poeacutetica verifica-se no entan-to nas proacuteprias obras a perspicaacutecia do compositor sobre o que deve modelar sua proacutepria praacutetica Piacutendaro especifica no frag-mento de um treno a diversidade de possibilidades a se molda-rem diferentemente em funccedilatildeo da conformidade com a ocasiatildeo a que se destina o canto Destaca-se aqui especificamente na maior parte do que se menciona a divindade que delineia o tipo de canto pelo qual ela se direciona

Ἔντι μὲν χρυσαλακάτου τεκέων Λατοῦς ἀοιδαίὥ[ρ]ιαι παιάνιδες ἐντὶ [δὲ καί]θάλλοντος ἐκ κισσοῦ στεφάνων ἐκ Διο[νύσου[ μ]αιόμεναι τὸ δὲ κοι [] αντρεῖς [desunt ca 15ll] σώματ ἀποφθιμένωνἁ μὲν ἀχέταν Λίνον αἴλινον ὕμνειἁ δ Ὑμέναιον ltὃνgt ἐν γάμοισι χροϊζόμενον[Μοῖρα] σύμπρωτον λάβενἐσχάτοις ὕμνοισιν ἁ δ Ἰάλεμον ὠμοβόλῳνούσῳ ὅτι πεδαθέντα σθένος

Haacute peatildes canccedilotildees na oportuna hora dos nascidosde Leto de aacuteurea roca haacute tambeacutem aquelas a partirde Dioniso com guirlandas de vicejante hera[ ] desejosa trecircs [canccedilotildees] [faltando cerca de 15 versos] dos corpos mor-

tosuma cantou um hino de lamento fuacutenebre a Linooutra (cantou) o Himeneu a quem tendo sua pele tocada nas

bodaspela primeira vez a Moira arrebatoucom uacuteltimos hinos e outra (canccedilatildeo) de Ialemo cuja forccedilafoi agrilhoada por doenccedila devoradora de carne

Em que pesem as lacunas dos versos faltantes em tal frag-mento evidencia-se que o compositor sabe como seus poemas--canccedilotildees devem moldar-se diversamente conforme a ocasiatildeo podendo ser entoado pois para diversa celebraccedilatildeo na diferen-ciaccedilatildeo sempre possiacutevel de ser ou natildeo o poema destinado para determinada divindade

Importa por outro lado de maneira mais geral marcar tam-beacutem a diferenccedila de audiecircncias no tocante agrave extensatildeo de seu Piacutendaro a partir do seacuteculo XIX veja-se o artigo de Hugh Lloyd-Jones (1973 pp 109-137)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

153

caraacuteter puacuteblico Havia assim aquelas que se caracterizavam por afinidades seja de natureza poliacutetica ou de grupo mas sempre restritivas no tocante ao ciacuterculo de ouvintes outra poreacutem era a audiecircncia proacutepria da liacuterica coral Aqui a performance era em geral extensivamente mais puacuteblica muitas vezes com funccedilatildeo religiosa e celebrante de eventos

O puacuteblico proacuteprio da liacuterica coral eacute decorrente de uma seacuterie de mudanccedilas especiacuteficas ocorridas na polis a partir do seacuteculo VI A mudanccedila de audiecircncia se caracteriza por implicar uma nova relaccedilatildeo entre um patronato contratante e o poeta contratado com a decorrente consequecircncia tanto para o canto quanto para a performance que daiacute deriva

Era baseada na relaccedilatildeo direta entre patratildeo e poeta que viu seu periacuteodo de maior desenvolvimento no final do seacuteculo VI e comeccedilo do V ndash resultado do advento de uma economia monetaacuteria baseada no comeacutercio A nova riqueza favoreceu as artes em geral tanto a pintura e escultura quanto a poesia embora natildeo em razatildeo delas mesmas mas sim de um desejo por prestiacutegio e poder Para o nobre rico o aristocrata urbano e acima de todos para o tirano a obra de um artista era um meio de aumentar seu status e consolidar sua posiccedilatildeo poliacutetica O poeta se torna assim um profissional intelectual que trabalha para um patratildeo e recebe de volta algum pre-sente consideraacutevel ndash um honoraacuterio no verdadeiro sentido da palavra capaz inclusive se necessaacuterio de ser aumentado (GENTILI 1990 p115)

Gentili destaca as consequecircncias de tal relaccedilatildeo De matiz aris-tocraacutetico a funccedilatildeo celebratoacuteria da liacuterica coral seja para exalta-ccedilatildeo do divino seja do humano se serve de um repertoacuterio amplo das narrativas miacuteticas sempre com o cuidado de escolher na pluralidade de mitos as legendas e versotildees delas a que melhor conviesse para a apresentaccedilatildeo que celebrava o contratante

[hellip] escolher um mito adequado agrave ocasiatildeo significa conectar a pessoa a ser louvada com uma histoacuteria tradicional de tal modo que ela pudesse ser glorificada por meio dos feitos de um exemplar miacutetico E a audiecircncia tinha de ver a conexatildeo ndash de outro modo a significaccedilatildeo efetiva e o valor paradigmaacutetico do mito estariam perdidos (GENTILI 1990 p116)

Certos modelos satildeo assim seguidos na liacuterica coral tanto no que tange agrave celebraccedilatildeo humana quanto agrave divina No que diz respeito a esta especificamente as canccedilotildees dedicadas aos deuses dirigem-se a eles como oferendas de uma cultura calca-da na relaccedilatildeo de devoccedilatildeo com a reciacuteproca expectativa de uma recompensa As diferenccedilas apontadas acima no gecircnero que se especifica pelo culto preciso de cada divindade natildeo escondem a caracteriacutestica comum a todos eles

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

154

In general one is more stuck by the shared features than by the divergences between these types More substantial songs of worship contained a mythic narrative and it is normal for the myth to be connected with the god [hellip] Poetry compo-sed for a specific occasion incluiding worship usually has a pronounced deitic element that is it draws attention to its im-mediate context andor function Cult song also identifies its deity early often (though not inevitably) in the form of invoca-tion and gives praise A tripartite structure is normal (though not inevitably) with a central mythic section flanked by an in-troductory section dealing with the immediate context and a fi-nale which returns to the (performers) present It is commmon but not inevitable for a prayer to be made (CAREY 2009 pp 27-8)

Tal estrutura presente nos poemas dedicados aos deuses tam-beacutem se encontra nas canccedilotildees dedicadas aos humanos sejam trenos epiniacutecios himeneus ou encocircmios Como ressalta Carey ldquothough the performative occasion affects the content of these compositions it has little significance for the structure which al-most invariably follows the tripartite model we find in the cult songs (2009 p32) Haacute assim uma base sobre a qual se movem tais canccedilotildees modelando-se ora e vez diversamente em con-sonacircncia com as expectativas esperadas pela audiecircncia mas surpreendentemente remodeladas pelo compositor para refor-ccedilar pela ausecircncia o que no canto natildeo se apresenta

Do Epiniacutecio Dado que como se viu os gecircneros natildeo sejam formas fixas e

sempre existentes sua molda ocorre em consonacircncia com as peculiaridades que a fazem emergir e tambeacutem de certo modo desaparecer Em se tratando especificamente da liacuterica coral tal eacute o caso da consagraccedilatildeo que compositores dos seacuteculos VI e V perpetuaram para os vencedores dos jogos pan-helecircnicos no devir de um gecircnero cujo brilho estaacute atrelado ao que nele se celebra com glorificaccedilatildeo que como se viu dirige-se a homens e os imortaliza justamente porque soacute ocorre por completo a va-loraccedilatildeo humana pela presenccedila divina visto o proacuteprio poema o poeta e o vencedor partilharem de uma aura religiosa que os distingue

Genres come into being and pass away Thus the victory ode has its origins in the sudden explosion of interest in athle-tics in the sixth century BCE and is almost inconceivable be-fore that [hellip] Secular forms such as the victory ode inevitably have a religious content in a society where sacred and secular

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

155

always to some degree coexistrdquo (CAREY 2009 p 22)

Piacutendaro e o epiniacutecio satildeo pois paradigmas de uma tradiccedilatildeo fir-mada na valoraccedilatildeo de consagraccedilotildees pois o modelar do gecircnero se faz em vista da celebraccedilatildeo imortalizante da divina poreacutem hu-mana vitoacuteria nos jogos em que homens ndash com ou sem animais ndash competiam para consagrar uma divindade Zeus (Jogos Oliacutem-picos e as Nemeias) Apolo (Jogos Piacuteticos) e Poseiacutedon (Jogos Iacutestmicos) satildeo as principais divindades cultuadas e celebradas pelo poeta divinamente humano que consagra o vencedor tam-beacutem divinizado humanamente

A celebraccedilatildeo do vencedor via de regra ocorria em sua ci-dade nativa na de seus ancestrais ou mesmo no local da proacute-pria competiccedilatildeo Ser num ou noutro local acabava por implicar modos diversos de apresentaccedilatildeo do canto-poema pois este se modelava em consonacircncia com a expectativa do puacuteblico que poderia ali estar ou para consagrar seu governante ou para os familiares quando a performance se fazia na terra de algum parente ou mesmo como salienta Gentili quando inesperada-mente se celebra a vitoacuteria no proacuteprio local em que ela ocorreu Em tal caso como na VII Piacutetica uma parte importante do poema como o mito central pode ser omitida para marcar topicamente a improvisaccedilatildeo da qual resulta o poema

Haacute como se viu no toacutepico anterior uma estrutura tripartite baacute-sica a construir um epiniacutecio5 Nela omissotildees ou mudanccedilas satildeo sempre possiacuteveis e mesmo esperadas sem contudo que se percam todos os elementos para tal fundaccedilatildeo

A estrutura interna do epiniacutecio ndash para considerar apenas este gecircnero particular ndash era tambeacutem determinada em certo grau pela necessidade cerimonial Um epiniacutecio sem certos elementos eacute inconcebiacutevel louvar o vencedor referecircncia ndash mais ou menos expliacutecita ndash ao evento atleacutetico indicaccedilatildeo das vitoacuterias anteriores do atleta e realizaccedilotildees notaacuteveis por parte de sua famiacutelia e finalmente maacuteximas gnocircmicas que ajuda-vam a criar um elo entre a narrativa miacutetica e a realidade pre-sente O que natildeo se determina eacute como tal ligaccedilatildeo deveria ser realizada Circunstacircncias particulares na proacutepria vida do vencedor ou algo em sua famiacutelia poderiam oferecer uma via direta para o passado heroico especialmente quando o mito

5 De modo geral tal estrutura se articula pela apresentaccedilatildeo inicial do vencedor e de sua vitoacuteria parte-se num segundo momento para uma narrativa miacutetica apresentada como paradigma do que ora se celebra o que se evidencia pela maacutexima gnocircmica retorna-se num terceiro momento ao ponto inicial da celebraccedilatildeo implicando agora uma valoraccedilatildeo sobre a vitoacuteria presente numa perspectiva para o futuro Joseacute Cavalcante de Souza assim a delineia ldquopor articulaccedilatildeo temaacutetica entenda-se o agenciamento de estrutu-ras toacutepicas que historicamente constituiacuteram o gecircnero epiniacutecio uma apresen-taccedilatildeo em certa medida coloquial do vencedor e de sua vitoacuteria geralmente no proecircmio mas podendo reaparecer em pontos estrateacutegicos da sequecircncia uma intervenccedilatildeo miacutetica fundamental ou sob a forma de uma ou mais nar-rativas ou no limite de breves esboccedilos alusotildees ou imagens que avizinham

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

156

era relacionado com seus proacuteprios ancestrais[] (GENTILI 1990 p 117)

Havia pois uma grande variedade de mecanismos pelos quais o poeta poderia transitar do evento motivador da ode a vitoacuteria especificamente tratada para a variegada trama de ancestrais e relatos miacuteticos que em menor ou maior grau se relacionas-sem com a consagraccedilatildeo do vencedor O mito e o presente da enunciaccedilatildeo formam tessitura complexa e variada pelos quais o mito exemplarmente se torna paradigma do que canta o poeta Para justificar tais liames o gnocircmico adentra para avaliar de ma-neira generalizante a particularidade dos eventos e narrativas apresentadas Aforismas ou afirmaccedilotildees pessoais apresentam o propoacutesito do mito e especificam seu papel no poema dando margem assim dentro de uma poesia bastante alicerccedilada em bases convencionais agrave presenccedila de uma enunciaccedilatildeo do poeta mais incisiva

Haacute assim em Piacutendaro forte presenccedila estruturante de um coacute-digo firmado e confirmado por convenccedilotildees Estas no entanto se abrem ao ouvinte-leitor numa mescla de imagens e recursos verbais que natildeo soacute dificultam propositalmente a decodificaccedilatildeo da mensagem como tambeacutem mostram que o vigor forccedila e brilho do vencedor divinamente coroado por sua vitoacuteria soacute se eterniza pela presenccedila tambeacutem vigorosa brilhante e luminosa que o po-eta mimeticamente alcanccedila com labor e inspiraccedilatildeo na vitoriosa ode que presentifica em palavras a jaacute passada vitoacuteria para ser proclamada no futuro

Do poema O poema aqui traduzido molda-se em conformidade com suas

caracteriacutesticas performaacuteticas proacuteprias de sua apresentaccedilatildeo liacute-rica de um coro que possivelmente cantasse e danccedilasse para apresentaacute-lo Para tanto compotildee-se em trecircs grupos triaacutedicos compostos cada um por estrofe antiacutestrofe e epodo

Os dois primeiros satildeo termos orqueacutestricos de danccedila e sig-nificam respectivamente volta e contravolta Na antiga liacuterica grega os versos da estrofe e da antiacutestrofe tinham exatamente o mesmo ritmo prosoacutedico baseado na duraccedilatildeo longa ou breve das siacutelabas e ritmicamente formavam um par a que sucedia o epodo com ritmo diferente Epodo deriva-se de uma forma adjetiva que corresponde a uma forma substantiva ldquoepodeacuterdquo literalmente sobrecanto isto eacute o canto maacutegico atuando medi-cinalmente sobre o corpo (SOUZA 1999 p 194)

o mito da apresentaccedilatildeo e por assim dizer o incorporam no desenrolar da solenidade e alternando com o mito um jogo de ditos sentenciosos gnocircmai bem formulados no momento certo e bem apreciados no a propoacutesito do que comentam e ensinamrdquo (SOUZA 1999 p 195)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

157

Se do ponto de vista meacutetrico o poema segue um padratildeo ade-quado para a liacuterica coral o mesmo no entanto natildeo se pode dizer da presenccedila tiacutepica dos elementos estruturadores do epiniacutecio com efeito eacute o uacutenico poema de Piacutendaro a apresentar um mortal em seu verso inicial Ainda mais curiosamente a primeira estrofe do primeiro grupo triaacutedico natildeo determina e especifica um vence-dor mas ao contraacuterio descreve um horizonte passado estranho agrave liacuterica coral

Os versos iniciais sendo assim celebram uma atmosfera eroacute-tica proacutepria da liacuterica monoacutedica na qual o canto eacute flecha a atingir jovens garotos pelos encantos sob as graccedilas de Afrodite como fariam os poemas de Alceu e Anacreonte vg Contrapondo-se a tal canto regido pelas musas na imediatez amorosa a antiacutes-trofe delineia uma musa que trabalha por um salaacuterio Laboriosa ela deve firmar sua construccedilatildeo em prata natildeo na imediatez antes propagada mas nos novos tempos celebrar sua voz suave e meloso acento pois conforme o epodo a seguir sem dinheiro um homem natildeo possui nem amigos nem posses

A inesperada apresentaccedilatildeo do poema fez que se o visse natildeo como epiniacutecio mas como uma espeacutecie de epiacutestola puacuteblica em que Piacutendaro declara a Trasiacutebulo seja seu amor por ele seja uma espeacutecie de consolaccedilatildeo poliacutetica ao filho e sobrinho de tirano cuja polis ora democraacutetica o obrigaria a vender poemas seja uma cobranccedila por parte do proacuteprio Piacutendaro de uma diacutevida natildeo paga por Trasiacutebulo a ele6

Lecirc-se tambeacutem o poema como denuacutencia da atividade da liacuterica coral de Simocircnides aacutevida por dinheiro e pronta a se prostituir com maacutescara facial de prata por quem pagar melhor preccedilo Se natildeo meretriz a musa eacute mercenaacuteria e labora por avidez do ga-nho7 Decorreria daiacute a criacutetica de Piacutendaro ao valor do homem mensurado em dinheiro conforme propagado no poema pelo dito argivo

Tais leituras em que pese o valor de seus autores incorrem numa questatildeo complexa para a relaccedilatildeo do poema com sua proacute-pria finalidade por que Piacutendaro desqualifica sua proacutepria ativida-de Responder a tal questatildeo implica deixar de lado as leituras que desqualificam a musa como mercenaacuteria e aacutevida lendo sem a desqualificar a atividade laboriosa cujo valor e preccedilo se justi-ficam pela atividade que propaga para a eternidade seu proacuteprio valor bem como o daqueles que por ela se eternizam

Lido assim o poema justifica seu abrupto assiacutendeto que se-para a introduccedilatildeo da passagem para a glorificaccedilatildeo das vitoacuterias do pai de Trasiacutebulo ldquolsquoDinheiro dinheiro eis o homemrsquo dizia ele desamparado conjuntamente de posses e amigos Porque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignorada hiacutepica vitoacuteria iacutestmi-cardquo (vv 15-18) O dizer argivo verdade reafirmada eacute compre-

6 Para um mapeamento da questatildeo leia-se Woodbury (1968 pp 527-542)7 Cf Simpson (1969 pp 437-473)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

158

endido por Trasiacutebulo que se liga ao poeta pela xenia que natildeo descura nem da poesia nem do poeta que imortaliza os feitos do pai

A segunda triacuteade entatildeo confirma ser o poema uma canccedilatildeo de epiniacutecio rememorando topicamente natildeo soacute as vitoacuterias de Xenoacutecrates nos jogos Iacutestmicos e Piacuteticos bem como o valor do auriga que comandava seu carro em Atenas terra dos filhos do miacutetico rei Erecteu Do mesmo auriga se fala ao se descrever a vitoacuteria nos Jogos Oliacutempicos quando ele venceu como condutor do carro de Teratildeo irmatildeo de Xenoacutecrates ambos filhos de Ene-sidemo Culmina assim esta triacuteade na valoraccedilatildeo da famiacutelia de Trasiacutebulo o que se confirma com o cuidado no trato das Musas que tornam sagradas suas casas

A triacuteade final celebra e consagra topicamente a xenia que ge-nerosamente acolhe todos que a ela recorrem Natildeo mais flecha eroacutetica o poema eacute agora atleacutetica lanccedila que se distancia para no porvir alcanccedilar a incomensuraacutevel distacircncia da hospitalidade da famiacutelia que aqui se consagra Vencedores dos jogos circunda-dos de amizades e posses a famiacutelia de Trasiacutebulo encontra nele a confirmaccedilatildeo de seus valores pela riqueza e pela generosida-de Longe de desqualificar os bens que eles possuem o poema confirma o alto valor do patronato que natildeo guarda nem esconde o que deve ser amplamente partilhado e divulgado Vale assim mesmo mais longamente reafirmar as palavras de Woodbury

The public nature of excellence and the dependence upon fame explain the Muses commendation of the proverbial ma-xim of Aristodemus For it was spoken as Pindar says expli-citly when he was deprived at one stroke of possessions and friends In the Pindaric world there can be no fame without the approval of generous and approving friends and wealth is in turn necessary to entertain them in comfort and distinction whether they form a court a clan or a coterie The Muses ce-lebration of excellence therefore testifies to the openhanded and conspicuous use of wealth It now becomes intelligible why the poet goes on to say that Thrasybulus is wise and well--acquainted with his theme which is the victory of Xenocrates with the chariot at the Isthmus He is surely not performing any of the incongruous gestures that have been attributed to him such as shaking his head silently with distaste for the avarice of a rival poet winking to suggest that payment of his fee is either overdue or unnecessary ornodding in sympathy with the predicament of a poet who must earn his living He is congratulating his patron on the use of his wealth which is made evident by the performance of his ode and its reception by the company of friends The point is made even clearer a few lines later when in a second apostrophe to Thrasybulus he says that his house is well-acquainted with the songs of celebrating friends The occasion itself is proof that Thrasybu-lus knows very well the importance of the victory and of poe-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

159

try Pindar displays a characteristically Greek frankness in his praise of wealth That may be surprising to us but is without embarrassment for him because of his secure approval of the purposes for which that wealth was used It is even more surprising that he found it appropriate to enrol his Muse in the service of that same power That he did so is convincing proof if any proof is needed that for him poetry was deeply implica-ted in the values and the attitudes of the society for which he wrote (WOODBURY 1968 p 542)

A II Iacutestmica assim surpreende expectativas da audiecircncia pela ausecircncia do mito central do vencedor no iniacutecio do poema com a divindade deus ou lugar que mostra sua ligaccedilatildeo com o divi-no Mas confirma seu valor como epiniacutecio pela celebraccedilatildeo de vitoacuterias na parte central do poema que luminosamente eacute exem-plaridade para Trasiacutebulo filho a quem se destina a ode que eacute lanccedila a arremessaacute-lo juntamente com seus ancestrais para o futuro Nesse mesmo sentido consolida-se pelo largo uso de topoi que sedimentam os valores que o vencedor e seus familia-res devem honrar e que cabe ao poeta propagar O epodo final cumpre na inversatildeo a funccedilatildeo decircitica via de regra apresentada na introduccedilatildeo firmando e confirmando pelo movimento de um sugestivo Nicasipo cujo nome associa vitoacuteria a cavalos o cui-dado com a grandiosidade invejada na agoniacutestica situaccedilatildeo de disputa que canto e vitoacuterias atleacuteticas ocasionam A grandeza e generosidade de Trasiacutebulo natildeo podem ficar nem paradas nem silentes O patratildeo contratante encontra no poeta contratado natildeo uma situaccedilatildeo mercenaacuteria de partes mobilizadas pela ganacircncia mas uma espeacutecie de dom e contradom em que o dinheiro natildeo afasta amigos mas sim a ausecircncia dele

O final da ode reinscreve em seu final no cuidado admoes-tante do poeta por meio de seu intermediaacuterio a palavra ἠθαῖον aqui traduzida como leal mas para Verdenius valorada como caro a construccedilatildeo pindaacuterica proacutepria da poesia coral por ele edi-ficada

A van Groningen La composition litteacuteraire archaiumlque gre-cque (Amsterdan 1958 p 72) rightly observes that in choral poetry on constate une tendance toute naturelle agrave donner au dernier eacuteleacutement un accent particulier dintensiteacute Au deacutesir de bacirctir au deacutebut le splendide fronton correspond celui de termi-ner par une phrase agrave grand effet sentence proverbe expres-sion remarquable priegravere note personelle In the present case there is a close connection between the final note personelle and the opening of the poem by emphasizing the intimacy of their friendship Pindar strenghtens his appeal to the generosi-ty of Trasybulus [hellip] (VERDENIUS 1988 p 147)

Piacutendaro assim alicerccedila seu canto como epiniacutecio pois embora consagradora seja a vitoacuteria do pai e tio de Trasiacutebulo no passado seus feitos ainda perduram vencedores na solidez dos valores

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

160

por eles firmados e presentes no filho cuja generosa amizade sedimenta para o futuro a continuidade dos antepassados e do compositor que os canta em seu canto

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

161

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

BUDELMANN F ldquoIntroducing Greek Lyricrdquo in _______ (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cambridge Cambri-dge University Press 2009

CAREY C ldquoGenre occasion and performancerdquo in BUDEL-MANN (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cam-bridge Cambridge University Press 2009

DENNISTON J D The Greek Particles 2ordf ediccedilatildeo Indiana-polis Hackett Publishing Company 1996

COLIN F Pindare Traduction Complegravete Olympiques Pythi-ques Neacutemeacuteennes Isthmiques Fragments Strasbourg Silber-mann 1841

GENTILI B Poetry and Its Public in Ancient Greece ndash From Homer to the Fifth Century Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo Thomas Cole Baltimore The John Hopkins University Press 1990

LLOYD-JONES H ldquoModern Interpretation of Pindar The Se-cond Pythian and Seventh Nemean Odesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 93 (1973) pp 109-137

MARCHI M A Odi di Pindaro Milatildeo Presso Luigi di Giaco-mo Pirola 1835

NISETICH F J ldquoConvention and Occasion in Isthmian 2rdquo in Classical Antiquity Vol 10 (1977) pp 133-156

PRIVITERA A Pindaro Le Istmiche 5ordf ediccedilatildeo Roma Fon-dazione Lorenzo Valla 2009

ROMAGNOLI E Pindaro Le Odi e i frammenti Bologna Ni-nola Zanichelli Editore 1927 Disponiacutevel em itwikisourceorgwikiLe_Odi_e_i_frammenti_IOde_Istmica_II (uacuteltimo acesso 22112017)

SANDYS J The Odes of Pindar Londres The Macmillan co 1915

SIMPSON M ldquoThe chariot and the Bow as Metaphors for Po-etry in Pindarrsquos Odesrdquo in Transactions and Proceedings of the American Philological Association Vol 100 (1969) pp 437-473

SOMMER E Pythiques et Isthmiques Paris Hachette Eacutedi-tion 1847

SOUZA J C ldquoPiacutendaro Piacutetica III A Hiecircronrdquo in Revisa USP Satildeo Paulo nordm 43 setnov 1999 pp 188-201

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

162

SVARLIEN D A Pindar Odes 1990 Disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101623Abook3DI3Apoem3D2 (Uacuteltimo acesso 22112017)

VERDENIUS W J Commentaries on Pindar Olympian Odes 1 10 11 Nemean 11 Isthmian 2 Vol 2 Bibliotheca Classica Batava Mnemosyne Supplementum Brill 1988

WOODBURY L ldquoPindar and the Mercenary Muse Isthm 2 1-13rdquo in Transactions and Proceedings of the American Philolo-gical Association Vol 99 (1968) pp 527-542

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudThe place of the Phantasm in Philosophy ndash Agamben as a Freudrsquos reader

Palavras-chave acedia ndash melancolia ndash phantasma ndash eros ndash desejo - DuumlrerKeywords aecidia - melancholy ndash phantasmndash Eros ndash desire ndash Duumlrer

RESUMO No seacuteculo passado (1976) Giorgio Agamben escre-veu dois ensaios que expotildeem as ideias de fantasia e melancolia destacadas no artigo de Freud ldquoLuto e Melancoliardquo Este trabal-ho mostra que a interpretaccedilatildeo que Agamben faz da concepccedilatildeo psicanaliacutetica de melancolia resulta da perspectiva por ele cons-truiacuteda com base na relaccedilatildeo entre esta e as noccedilotildees correlatas de fantasia (phantasma ou fantasia) e eros O assunto eacute de interes-se na medida em que possibilita uma compreensatildeo a respeito de como a visatildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo Nossa leitura assinala que algo do desenvolvi-mento daqueles ensaios permanece na obra recente do autor

ABSTRACT In the last century (1976) Giorgio Agamben wrote two essays that expose the ideas of phantasy and melancholy in Freudrsquos article ldquoTrauer und Melancholierdquo (1917) This paper points out that the authorrsquos interpretation of the psychoanalyti-cal conception of melancholy depends upon the perspective constructed by him around the relation between this and the correlated notions of fantasy (phantasm or fantasia) and eros The theme is of interest insofar as it also provides an explana-tion about how Agambenrsquos view of critical philosophy and poetic philosophy perform an appropriation of contemporary psychoa-nalytical thinking Our reading hints that there is something in the developing of those essays that remains in the authorrsquos recent work

No seacuteculo passadofoi publicada a obra Estacircncias ndash a palavra e o fantasma na cultura ocidental (1976) conjunto de ensaios de Giorgio Agamben em que encontramos leituras suas de Freud Destaco as de ldquoLuto e Melancoliardquo nos capiacutetulos quarto e quinto da primeira parte denominada rdquoOs Fantasmas de Erosrdquo Nos anteriores encontramos primeiro sua pesquisa referente agrave concepccedilatildeo de aceacutedia sobretudo aquela adotada pe-los padres da Igreja na Idade Meacutedia para os quais haveria um mal da alma designado por nomes como acedia tristitia tae-dium vitae desidia

Camila Salles Gonccedilalves

Psicanalista membro do Departamento de Psicanaacutelise do Instituto Se-des Sapientiae Doutora em Filosofia ndash USP

camila_sallesuolcombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

164

Descriccedilotildees estendem diante de noacutes o panorama desenhado por uma praga que se propagava tida por mui-tos como pior do que a peste Tambeacutem chamada democircnio mediterracircneo esta se apoderava de membros de confrarias em conventos ou abadias e se caracterizaria por induzi-los ao desacircnimo e a uma crescente indiferenccedila em relaccedilatildeo aos estu-dos ao conhecimento e ao conviacutevio com os pares culminando na vontade de se afastar de todos

Apenas este democircnio comeccedila a deixar obcecada a mente de algum desventurado insinua-se em seu interior um horror do lugar em que se encontra um fastio da proacutepria cela e um asco pelos irmatildeos que vivem com ele que lhe parecem agora negligentes e grosseiros (AGAMBEN 2006 p25)

Do ldquocortejo infernal das filiae acediaerdquo (AGAMBEN 2006 P27) que nos eacute apresentado recorto

o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos poderia curar e finalmente evagatio mentis a fuga do acircnimo em relaccedilatildeo a si mesmo e o inquieto vagar de fantasia em fantasia1 (AGAMBEN 2006 p27)

Aos poucos a copiosa citaccedilatildeo de paraacutegrafos de vaacuterios tratados permite-nos acompanhar o modo pelo qual ao longo das definiccedilotildees descritivas a aceacutedia vai mostrando sua quase coincidecircncia com a melancolia e ambas satildeo aproximadas do temperamento saturnino que corresponde ao elemento terra sombrio avesso a qualquer entusiasmo Agamben natildeo deixa de percorrer tambeacutem os diagnoacutesticos da medicina medieval a permanecircncia nestes da classificaccedilatildeo dos humores e as teorias sobre a bile negra cuja nomeaccedilatildeo jaacute fora mantida por Aristoacuteteles Deparamo-nos com a fenomeno-logia do indiviacuteduo atrabiliaacuterio saturnino e tambeacutem aos poucos com a tendecircncia ao distanciamento por parte deste melancoacuteli-co daquilo e daqueles que se encontram agrave sua volta Na sequecircnciacontudoeacute-nos revelado ter havido um ou-tro lado uma perspectiva a partir da qual o humor melancoacutelico tenderia ao extremo oposto ao daquele caracterizado pela maacute sauacutede do corpo e por sinistras tendecircncias a sonhos sombrios agrave demecircncia etc (AGAMBEN 2016 p38) Antes de o apontar-mos cumpre ainda destacar que anterior agravequela associaccedilatildeo feita pela astrologia com Saturno teria havido uma e se man-tido com a figuraccedilatildeo de um deus com o mesmo nome o deus ldquocanibal e castradordquo(AGAMBEN 2006 p41) Apesar disto teria

1 Em nota de rodapeacute (nota 6) Agamben traz mais informaccedilotildees Trans-crevo apenas as primeiras linhas ldquoA incapacidade de controlar o incessante discurso (a co-gitatio) dos fantasmas interiores estaacute entre os traccedilos essen-ciais da caracterizaccedilatildeo patriacutestica da aceacutediardquo (AGAMBEN 2006 p27)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

165

ocorrido paralelamente uma reabilitaccedilatildeo da melancolia que ldquoia a par com um influxo de Saturno que a tradiccedilatildeo astroloacutegica associava com o temperamento melancoacutelico como o mais ma-ligno dos planetasrdquo (AGAMBEN 2006 p40)

Agamben apoia em seu farto material a afirmaccedilatildeo segun-do a qualldquouma antiga tradiccedilatildeo natildeo obstante associava o mais calami-toso dos humores com o exerciacutecio da poesia da filosofia e das artesrdquo (AGAMBEN 2006 p38)

Ele prossegue respondendo agravequeles que indagariam porque tal disposiccedilatildeo encontrar-se-ia justamente em indiviacuteduos sujeitos a sofrer segundo os antigos os efeitos moacuterbidos da bile negra Responde mencionando uma lista de melancoacutelicos citada por Aristoacuteteles que seria demasiado extensa mas que teria acompanhado o ponto de partida de um processo dialeacutetico Na concepccedilatildeo de Agamben trata-se de um processo da histoacuteria no qual o mais negativo no sentido de se opor agrave atividade de modo paradoxal eacute contraposto agrave afirmaccedilatildeo do aspecto criativo da reflexatildeo e da arte Assim no ponto de partida compreendido pela lista aristoteacutelica ter-se-ia iniciado um movimento no qual ldquoa doutrina do gecircnio enlaccedila-se indissoluvelmente com a do humor melancoacutelico na fascinaccedilatildeo de um complexo simboacutelico cujo em-blema plasmou-se ambiguamente no anjo alado da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p39) Agora eacute preciso salientar que o ensaio que estamos acompanhando eacute escrito em um estilo associativo a que preci-samos nos habituar A referecircncia a uma passagem de Aristoacutete-les eacute na mesma frase emendada com uma menccedilatildeo agrave famosa gravura de Duumlrer cujas interpretaccedilotildees por parte de autores que tambeacutem vatildeo ser citados seratildeo discutidas na sequecircncia A lista atribuiacuteda a Aristoacuteteles eacute acompanhada por exem-plos de tipos melancoacutelicos ldquohaacute alguns que se tornam torpes e estranhosrdquo outros ldquoque se tornam maniacuteacos e alegresrdquo (AGAM-BEN 2006 p39) e outros que satildeo de determinada maneira natildeo por morbidez mas por um temperamento natural Haacute o exemplo de um poeta de Siracusa que soacute era bom poeta quan-do estava fora de si e de outros indiviacuteduos que se destacavam alguns nas artes outros nas letras outros na vida puacuteblica Deixo de reproduzir as consideraccedilotildees a respeito de quantidade circu-laccedilatildeo grau de aquecimento local de depoacutesito da bile etc que diferenciariam os melancoacutelicos entre si O que pretendo apontar aqui eacute o modo pelo qual vatildeo se exemplificando as mudanccedilas de sentido da melancolia numa dialeacutetica peculiar vinda agrave tona por meio de uma arqueologia do saber praticada por Agamben que natildeo deixa de evocar (embora sem referecircncia expliacutecita) a pesqui-sa realizada por Walter Benjamin que encontramos em Origem do drama traacutegico alematildeo Esta obra conteacutem um exame ainda

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

166

mais minucioso da melancolia e em grande parte cita primeiro os mesmos autores Dentre estudos sobre alegorias que evocam a melancolia no campo das artes plaacutesticas aqueles dedicados agrave imagem cria-da por Duumlrer tem papel fundamental No ensaio de Agamben este eacute retomado contra o lugar ldquoescassordquo que Panofsky e Saxl2 autores de interpretaccedilatildeo da gravura3ldquoreservaram para a litera-tura patriacutestica sobre o lsquodemocircnio meridianorsquo em sua tentativa de reconstruir a genealogia da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p41) Adiante o autor acrescenta ldquoEacute curioso que esta conste-laccedilatildeo eroacutetica tenha escapado tatildeo tenazmente aos estudiosos que trataram de rastrear a genealogia e os significados da Me-lancolia duumlrenianardquo(AGAMBEN 2006 p49) No texto as objeccedilotildees de Agamben aos dois autores natildeo retomam nem mencionam a importacircncia que lhes deu Walter Benjamin que ao tratar da melancolia revecirc concepccedilotildees errocirc-neas que historiadores e leigos mantiveram a respeito do Re-nascimento e da Idade Meacutedia Aleacutem disto apresenta-nos mo-mentos nessas eacutepocas em que houve um enobrecimento da melancolia uma visatildeo da melancolia sublime que era preciso libertar ldquoda melancolia comum e destruidorardquo (BENJAMIN 2013 p158) Ao que tudo indica Agamben quer para aleacutem do ensaio histoacuterico benjaminiano pocircr em destaque a Patriacutestica em que en-controu a valorizaccedilatildeo do temaacuterio da aceacutedia e chamar a atenccedilatildeo para o componente eroacutetico da melancolia Com isto deixa de assinalar que o papel da astrologia eacute analisado por Benjamin e levado em consideraccedilatildeo no elogio que ele faz dos dois autores

Anuncia-se um traccedilo dialeacutetico da concepccedilatildeo de Saturno que corresponde de modo surpreendente ao conceito grego de melancolia A descoberta deste nuacutecleo vital da imagem de Saturno eacute o grande meacuterito de Panofsky e Saxl4 (BENJAMIN 2013 pp155-156)

Benjamin nos traz vaacuterios textos que precederam a obra duumlreniana ou foram seus contemporacircneos Deteacutem-se na convi-vecircncia de extremos no campo de concepccedilotildees do saber e anali-sa o quadro O quadrado maacutegico que vemos desenhado num quadro por cima da cabeccedila da lsquoMelancoliarsquo de Duumlrer eacute o selo plane-taacuterio de Juacutepiter cuja influecircncia se opotildee agraves forccedilas obscuras de

2 Os autores Panofsky e Sax satildeo citados por Walter Benjamin ( BEN-JAMIN 2013 p156)3 Erwin Panofsky (e) Fritz Sax Duumlrers ldquoMelancolie Irdquo Eine quellen- und typengechichtilich Untersuchung (A ldquoMelancolia Irdquo de Duumlrer Um estudo de fontes e tipologia histoacuterica) Berlim 1922 pp18-19 (=Studien der Bibliothek Warburg 2) (BENJAMIN 2013 P156) - Encontramos a referecircncia em Benja-min natildeo em Agamben4 Erwin Panofsky apud Walter Benjamin (BENJAMIN 2013 p156)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

167

Saturno Ao lado desse quadrado estaacute pendurada a balanccedila uma alusatildeo ao signo astroloacutegico de Juacutepiterrdquo (BENJAMIN 2013 p158) Trazendo mais autores mostra que sob inspiraccedilotildees ne-fastas e beneacuteficas Duumlrer teria posto na fisionomia do melancoacute-lico a concentraccedilatildeo espiritual e dedica vaacuterias paacuteginas aos ele-mentos que compotildeem a obra Agamben tambeacutem comenta a gravura do mestre renas-centista levando-nos de uma eacutepoca histoacuterica para outra expotildee o que garimpa nas diversas camadas arqueoloacutegicas Suas pes-quisas fundamentam a associaccedilatildeo do humor negro com Eros jaacute nas conjecturas filosoacuteficas e meacutedicas da Idade Meacutedia Assinalam um nexo entre amor e melancoliaque jaacute teria sido reconhecido por uma tradiccedilatildeo divulgada e mantida na medicina europeia me-dieval que os tomava como enfermidades afins ou idecircnticas A gravura alegoacuterica eacute por ele situada na esfera do desejo eroacutetico

Toda interpretaccedilatildeo que prescinda dessa pertenccedila fundamen-tal do humor negro agrave esfera do desejo eroacutetico por mais que possa decifrar uma a uma das figuras inscritas agrave sua volta estaacute condenada a passar ao largo do misteacuterio que se plasmou emblematicamente nessa imagem (AGAMBEN 2006 p49)

Lembremos a imagem por meio de uma miacutenima descriccedilatildeo agrave direita do espectador haacute uma figura sentada que seria a perso-nificaccedilatildeo da melencolia (a palavra estaacute gravada deste modo na obra) com a cabeccedila apoiada na matildeo esquerda segurando um compasso com a direita e rodeada por instrumentos alguns re-lacionados com a Geometria Agrave sua direita estaacute no chatildeo a seus peacutes adormecido um catildeo e acima sentada sobre a confusatildeo de objetos uma figura menor (que Lacan chamou de petit ange) tambeacutem com asas que fica mais ou menos na altura da cabeccedila da figura maior e que para noacutes evocaria a imagem popularizada de Eros5

Para Agamben

Soacute se compreende que (a gravura) se situa sob o signo de Eros eacute possiacutevel guardar e ao mesmo tempo revelar seu se-gredo cuja intenccedilatildeo alegoacuterica estaacute inteiramente subentendida no espaccedilo entre Eros e seus fantasmas (AGAMBEN 2006 p49)

Freud melancolia e fantasia

No Capiacutetulo quinto da Primeira Parte de Estancias o au-tor introduz deste modo seus comentaacuterios a respeito de Luto e Melancolia

5 A imagem pode ser obtida em vaacuterios sites na Web por exemplo em httpscommonswikimediaorgwikiFileDuumlrer_melancholia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

168

Freud aponta o eventual caraacuteter fantasmaacutetico do processo melancoacutelico observando que a rebeldia contra a perda do objeto de amor pode chegar a um ponto tal que o sujeito se esquiva agrave realidade e se aferra ao objeto perdido graccedilas a uma psicose alucinatoacuteria do desejo (AGAMBEN 2006 p57)

Em seguida ele nos remete para o ldquoComplemento me-tapsicoloacutegico da doutrina dos sonhosrdquo frisando que este texto devia fazer parte junto com o ensaio sobre a melancolia de um volume em projeto denominado Preparaccedilatildeo para uma Metapsi-cologia Assinala a importacircncia da relaccedilatildeo entre os dois escritos uma vez que eacute preciso consultar o segundo

para encontrar esboccedilada paralelamente a uma anaacutelise do mecanismo do sonho uma indagaccedilatildeo do processo atraveacutes do qual os fantasmas do desejo logram esquivar-se a essa instituiccedilatildeo fundamental do eu que eacute a prova de realidade e penetrar na consciecircncia (AGAMBEN2006 p57)

Agamben faz-nos notar que eacute fundamental a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre fantasma e prova de realidade e ressalta que ainda ecoa em Freud a descriccedilatildeo do conjunto de sintomas feita na antiguidade claacutessica e na idade meacutedia cuja causa era atri-buiacuteda agrave bile negra citando

A melancolia se caracteriza no aniacutemico por um enfado profun-damente doiacutedo um cancelamento do interesse pelo mundo exterior pela perda da capacidade de amar pela inibiccedilatildeo de toda produtividade (FREUD 1955 p242)6

Dentre os incontaacuteveis comentaacuterios existentes talvez o que possa ser destacado como peculiar no de Agamben seja uma visatildeo da relaccedilatildeo do Ego com a perda cujo foco principal natildeo estaacute nos desenvolvimentos teoacutericos que investigam modos de identificaccedilatildeo com o objeto perdido mas na perda enquanto tal Lembremo-nos noacutes leitores de que para aleacutem de exem-plos didaacuteticos ndash Freud chega a dar entre parecircnteses o exem-plo da melancolia da jovem que perdeu seu namorado ndash de hipoacuteteses sobre alteraccedilotildees no Ego que perde a si mesmo O criador da psicanaacutelise faz uma retomada metapsicoloacutegica do narcisismo mas somos levados por Agamben a nos determos no vazio que acompanha a perda Natildeo eacute o que ocorre segundo as observaccedilotildees que se fazem na esteira de Strachey Este co-mentador e primeiro organizador da obra de Freud assinala em sua introduccedilatildeo que de um determinado ponto de vista o artigo ldquoexigiu submeter a exame toda a questatildeo da identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p239) e que ldquoo mais significativo deste artigo 6 Para a traduccedilatildeo desta frase optei pela comparaccedilatildeo entre o texto em alematildeo e a traduccedilatildeo argentina ao inveacutes de passar para o portuguecircs a ci-taccedilatildeo da obra de Agamben traduzida para o espanhol que foi utilizada neste trabalho

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

169

parece ter sido para Freud sua exposiccedilatildeo do processo atraveacutes do qual o investimento (Besetzung) de objeto eacute substituiacutedo na melancolia por uma identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p240) Para Freud tanto no luto quanto na melancolia houve perda mas eacute preciso distinguir os tipos de perda que caracteri-zam um e outro estado Na leitura de Agamben natildeo satildeo ignora-das as semelhanccedilas nem desqualificados os destinos das iden-tificaccedilotildees Muito menos o abatimento do Ego na melancolia diante da perda do suposto objeto de amor expresso por aquela famosa formulaccedilatildeo freudiana ndash ldquoA sombra do objeto caiu sobre o egordquo (FREUD 1955 p246) Mas somos conduzidos a valorizar a constataccedilatildeo de que natildeo sabemos que objeto o melancoacutelico perdeu e a admitir que ele tambeacutem natildeo Eacute verdade que depois do exemplo da noiva abandonada no qual o amado natildeo morreu mas o objeto de amor idealizado foi perdido Freud escreveu

E em outras circunstacircncias cremo-nos autorizados a supor uma perda tambeacutem mas natildeo atinamos com discernir com precisatildeo o que se perdeu e com maior razatildeo podemos pensar que tampouco o enfermo pode apreender em sua consciecircncia o que perdeu (FREUD 1955 p243)

Acrescentou que nessas condiccedilotildees mesmo se a perda eacute evidente para o enfermo ele natildeo sabe o que perdeu naquela pessoa que ele perdeu concluindo

Isto nos levaria de algum modo a referir a melancolia a uma perda de objeto subtraiacuteda da consciecircncia agrave diferenccedila do luto no qual nada haacute de inconsciente no que diz respeito agrave perda (FREUD1955 p243)

Para desenvolver a questatildeo do fantasma relacionada com a me-lancolia Agamben apoia-se principalmente neste paraacutegrafo de Freud

O Ego entatildeo despedaccedila seu laccedilo com a realidade e retira do sistema consciente das percepccedilotildees seu proacuteprio investi-mento (Besetzung) Eacute atraveacutes deste esquivar-se do real que se evita a prova de realidade e os fantasmas do desejo natildeo reprimidos mas perfeitamente conscientes podem penetrar na consciecircncia e ser aceitos como realidade melhor (FREUD apud AGAMBEN 2006 p58)7

Para o autor em nenhum de seus escritos Freud desen-volveu uma teoria expliacutecita do fantasma8 e natildeo precisou qual eacute

7 Traduccedilatildeo modificada por mim8 Eacute claro que haacute teorias sobre a fantasia ao longo da obra de Freud Podemos consultar por exemplo Soliva Soria Ana Carolina rdquoInterpretaccedilatildeo sentido e jogo um estudo sobre a concepccedilatildeo de fantasia (Phantasie) em Sig-mund Freudldquondash Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo (2010)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

170

a parte deste ldquona dinacircmica da introjeccedilatildeo melancoacutelicardquo (AGAM-BEN 2006 p58) E eacute em seguida a esta afirmaccedilatildeo que ele expressa sua maneira de conceber a psicanaacutelise contemporacirc-nea e ao mesmo tempo de alertaacute-la para a importacircncia que a questatildeo tem para seu proacuteprio desenvolvimento Entende que a psicanaacutelise contemporacircnea reavaliou o papel do fantasma nos processos psiacutequicos e tende a se considerar ldquouma teoria geral do fantasmardquo (AGAMBEN 2006 p59) de modo cada vez mais expliacutecito Conveacutem observar que a escolha da palavra fantasma sinocircnimo de fantasia segue uma tendecircncia francesa datada do seacuteculo passado Para Laplanche e Pontalis ldquoEm francecircso termo fantasme voltou a ser posto em uso pela psicanaacutelise e como tal estaacute mais carregado de ressonacircncias psicanaliacuteticas do que seu homoacutelogo alematildeodesigna determinada formaccedilatildeo imaginaacuteria e natildeo o mundo de fantasias a atividade imaginativa em geralrdquo (LAPLANCHE ndash PONTALIS 1970 p238) Veremos que Agamben segue a tendecircncia francesa mas natildeo parece evi-tar referecircncias agrave atividade imaginativa em geral Tudo leva a pensar que Agamben tem uma visatildeo filo-soacutefica que se apoacuteia na psicanaacutelise lacaniana a qual como se sabe influencia certos temas e concepccedilotildees que permeiam filo-sofias contemporacircneas Natildeo exploraremos este campo mas eacute preciso reconhecer que ele eacute indissociaacutevel das abordagens que autor faz da Cultura da psicanaacutelise e de um tipo de arqueologia do saber que pratica No movimento de seu texto constatamos que ele estabelece uma funccedilatildeo na histoacuteria do saber para a associaccedilatildeo da melancolia com a fantasia (sinocircnimo de fantas-ma) que eacute esquadrinhada com o auxiacutelio de uma determinada visatildeo da psicanaacutelise e desse fazer resulta algo que eacute ofertado agrave proacutepria psicanaacutelise contemporacircnea Esta a seu ver

ldquoencontraria um uacutetil ponto de referecircncia em uma doutrina que com muitos seacuteculos de antecipaccedilatildeo tinha concebido Eros como um processo essencialmente fantasmaacutetico e tin-ha dado um grande lugar ao fantasma na vida do espiacuteritordquo (AGAMBEN 2006 p59)

A escrita investigativa de Agamben que segue a fecunda eru-diccedilatildeo de Walter Benjamin9 executa movimentos circulares que encaminham as questotildees despertadas para uma camada ar-queoloacutegica mais profunda escavando cada vez mais no passa-do os sentidos efetivos do presente Elabora uma perspectiva a partir da qual a psicanaacutelise beneficiar-se-ia com o conheci-mento e o reconhecimento daquilo que se pensou haacute centenas e ateacute haacute milhares de anosApoacutes a frase citada acima o autor prossegue

ldquoA fantasmologia medieval nascia de uma convergecircncia da

9 Encontramos pesquisas aprofundadas sobre aceacutedia e melancolia em Origem do Drama Traacutegico Alematildeo (BENJAMIN 2013)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

171

teoria da imaginaccedilatildeo de origem aristoteacutelica com a doutrina neoplatocircnica do pneuma como veiacuteculo da alma a teoria maacute-gica da fascinaccedilatildeo e a teoria meacutedica dos influxos entre espiacute-rito e corpordquo (AGAMBEN 2006 p60)

A peregrinaccedilatildeo de Agamben atraveacutes do cada vez mais arcaico tem para ele a finalidade de elucidar os feitos da fan-tasia que se liberta do princiacutepio de realidade e se potildee a serviccedilo de Eros (ainda natildeo visam a face de Tanatos como uma outra face) Expotildee passagens do que ele denomina um ldquomultiforme complexo doutrinalrdquo (AGAMBEN 2006 p59) no qual a fantasia (fantaacutestikon pneuma spiritus phantasticus) eacute concebida como

uma espeacutecie de corpo sutil da alma que situado na ponta extrema da alma sensitiva recebe as imagens dos objetos forma os fantasmas dos sonhos e em determinadas circuns-tacircncias pode separar-se do corpo para estabelecer contatos e visotildees sobrenaturais (AGAMBEN 2006 p59)

Para aleacutem do sabor desta linguagem extraiacuteda da Teologia pseudo aristoteacutelica e de alfarraacutebios eruditos Agamben integrou a figura do noacute borromeano jaacute utilizada por Lacan na proacutepria concepccedilatildeo de seu meacutetodo filosoacutefico No Prefaacutecio afirma que a perspectiva a partir da qual trata do lugar do fantasma eacute aquela na qual ldquose pode falar de uma topologia do irrealrdquo (AGAMBEN 2006 p14) e nas uacuteltimas linhas afirma que nos ensaios que compotildeem sua obra dedica-se ao topos outopos10 E assevera

Soacute uma topologia filosoacutefica anaacuteloga agrave que em matemaacutetica se define como analysis situs por oposiccedilatildeo a analysis magnitu-dinis seria adequada ao topos outopos cujo noacute borromeano tentamos aqui configurar (AGAMBEN 2006 p15)

Eacute claro que o uso da figura composta pelo entrelaccedilamen-to de trecircs ciacuterculos dos quais a soltura de um implica na sepa-raccedilatildeo de todos da qual Lacan fez uso famoso referindo-se a real ao simboacutelico e imaginaacuterio traz impliacutecita a ideia de que o fantasma vem a ser no entrelaccedilamento dos trecircs registros trecircs domiacutenios pode-se entender aqui A mesma figura eacute trazida por Agamben para colocar em foco o tema de algo que natildeo eacute e se faz com que seja e do lugar em que se estabelece que natildeo eacute espacial e sim ldquoalgo mais originaacuterio do que o espaccedilordquo (AGAM-BEN 2006 p15) Aristoacuteteles eacute citado porque teria feito menccedilatildeo a esse lugar esse topos ldquotatildeo difiacutecil de apanharrdquo e dotado de um ldquopoder maravilhoso e anterior a qualquer outrordquo(AGAMBEN 2006 p14) Agamben pretende que se trata do mesmo lugar natildeo espacial de ldquoum terceiro gecircnerordquo (AGAMBEN 2006 p14) talvez ldquouma pura diferenccedilardquo11 a que faz alusatildeo o Timeu de Pla-

10 ldquolugarnatildeolugarrdquo gt utopia11 Sugere a interpretaccedilatildeo de Derrida que entre vaacuterios comentaacuterios ressalta que chocircra natildeo eacute ldquonatildeo pertence aos gecircneros de ser conhecidos ou

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

172

tatildeo Para que acompanhemos este desenvolvimento do texto agambeano eacute preciso que recordemos a passagem No Timeu como em outros Diaacutelogos platocircnicos foi posta a diferenccedila entre o gecircnero de ser que compreende o mundo das Ideias inteligiacutevel e imutaacutevel e aquele que abrange o ser das coisas sensiacuteveis e visiacuteveis em constante mudanccedila A personagem Timeu eacute levada a conceber um terceiro gecircnero quando se chega agrave abordagem dos elementos aacutegua ar terra e fogo e eacute obrigada a reconhecer que estes tecircm sua forma em constante mudanccedila e que soacute se pode falar deles quando suas propriedades estatildeo presentes de modo perceptiacutevel Mas os elementos satildeo tatildeo necessaacuterios e es-senciais quanto as Ideias Das especulaccedilotildees surge entatildeo sua opiniatildeo provaacutevel de que eacute preciso conceber um terceiro gecircnero que eacute denominado chora Eacute o lugar daquilo que vem a ser que daacute a forma mas que permanece inalterado Eacute a natureza que recebe todos os corpos (taacute panta dechoumeacutenes socircmata phiacute-seos)12 Qual a relaccedilatildeo desse lugar tatildeo difiacutecil de apreender com o melancoacutelico que vive o vazio da perda do objeto desconhe-cido Nos ensaios de Agamben em sua leitura de ldquoLuto e Me-lancoliardquo eacute visado o vazio da perda que recebe o fantasma criaccedilatildeo do imaginaacuterio inconsciente

A perda imaginaacuteria que ocupa tatildeo obsessivamente a intenccedilatildeo melancoacutelica natildeo tem objeto real algum porque eacute agrave impossiacute-vel captaccedilatildeo do fantasma que dirige sua fuacutenebre estrateacutegia (AGAMBEN 2006 pp62-63)

Lacan tambeacutem fez referecircncia agrave gravura de Duumlrer em seu Seminaacuterio 6 no qual trata do fantasma e do desejo e diz es-tar lanccedilando questotildees sobre ldquouma articulaccedilatildeo essencialrdquo que o fantasma introduz ldquono interior dessa vaga determinaccedilatildeo da natildeo oposiccedilatildeo do sujeito e do objetordquo (LACANSTAFERLA p9) afirmando mais adiante ldquoentendo que o objeto imaginaacuterio do fantasma eacute o proacuteprio sujeitordquo (LACAN p273) Natildeo eacute possiacutevel seguir todas as pistas dos fundamentos ou das inspiraccedilotildees das conclusotildees de Agamben Mas pode-se constatar que a psicanaacutelise eacute convocada enquanto teoria do fantasma para se associar a um tipo de pensamento filosoacutefico em que ele situa o seu a que daacute o nome de criacutetica O autor men-ciona ldquouma teoria da arte apontada como operaccedilatildeo fantasmaacuteti-cardquo surgida quatro seacuteculos antes de a psicanaacutelise ser formula-da (AGAMBEN 2006 p61) teoria com frequecircncia incluiacuteda na histoacuteria do conceito de melancolia Tudo leva a entender que o fantasma que Agamben pretende recuperar estaacute na psicanaacutelise

reconhecidosrdquo (DERRIDA 1987 p270) Tratei do tema em outro lugar (SA-LLES GONCcedilALVES C 2004)

12 PLATON Timeacutee (1949 p12)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

173

enquanto ligado a Eros e eacute na sua confluecircncia com um objeto inseparaacutevel do sujeito e ao mesmo tempo indefiniacutevel que o au-tor situa o lugar sem lugar da palavra filosoacutefica Voltando-se ao iniacutecio da primeira parte de Estacircncias eacute possiacutevel constatar que o proacuteprio meacutetodo de pesquisa e investi-gaccedilatildeo desenvolvido por Agamben aproxima suas concepccedilotildees de psicanaacutelise e de filosofia Isto se daacute por meio da relaccedilatildeo que estabelece ou a seu ver restabelece entre filosofia e poesia Para ele quando se daacute o surgimento da palavra criacutetica no vo-cabulaacuterio da filosofia ocidental ela tem sobretudo o significado de uma indagaccedilatildeo sobre os limites da consciecircnciardquo (AGAMBEN 2006 p9) Para ele equivale a uma indagaccedilatildeo sobre aquilo que ldquonatildeo eacute possiacutevel nem fixar nem apreenderrdquo (AGAMBEN2006 p9) Relembra entatildeo a proposiccedilatildeo do Grupo de Iena13 e seu projeto de uma poesia universal progressiva que teria tentado abolir ldquoa distinccedilatildeo entre poesia e disciplinas criacutetico ndash filosoacuteficasrdquo (AGAMBEN 2006 pp9-10) Esta construccedilatildeo de perspectivas de pensamento passa por uma certa ideia de negatividade Em sua busca pela criacutetica capaz de apresentar um caraacuteter criativo Agamben refere-se a uma obra que seria capaz de incluir ldquoem si mesma sua proacutepria negaccedilatildeordquo (AGAMBEN 2006 p10) e declara natildeo considerar a ensaiacutestica europeia ldquodeste seacuteculordquo14 rica no gecircnero de obra de-signado e afirma que talvez soacute haja um uacutenico livro criacutetico Urs-prung des deutschen Trauerspiel15 (Origem do Drama Traacutegico Alematildeo) de Walter Benjamin Infelizmente ele natildeo esclarece aiacute os criteacuterios de seu jul-gamento e passa para a camada da antiguidade antes de reto-mar a referecircncia ao projeto que atribui aos poetas-filoacutesofos do seacuteculo XIX de abolir a distinccedilatildeo entre poesia e teorias criacutetico fi-loloacutegicas Menciona entatildeo associativamenteo poeta e filoacutelogo alexandrino Filitas ao qual se teria aplicado a foacutermula ldquopoeta e ao mesmo tempo criacuteticordquo (AGAMBEN 2006 p10) Para Agamben a criacutetica pode hoje se identificar com a

13 Grupo de Iena ndash a ironia praticada por estes poetas e filoacutesofos pos-sibilitaria rdquoseguindo ainda o projeto romacircntico redefinir um novo lugar para a filosofia Ela estaria situada no espaccedilo intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte entre o condicionado e o incondicionado a liberdade e a necessidade Eacute um lugar que se define por uma lsquo proporccedilatildeo entre ideal e realrsquo da qual a poesia romacircntica eacute a expressatildeo maior Eacute um saber diz Schlegel em lsquonova figurarsquoA ironia significa reconhecer que a harmonia experimentada entre os antigos jaacute se perdeu e que a filosofia agora antes de postular uma nova harmonia desdobra-se sobre si mesma no ato de fazer-se e se percebe em formaccedilatildeo com uma fisionomiardquo- Almeida da Silva Arlenice ldquoA evoluccedilatildeo do conceito de ironia romacircntica na obra do jovem Gyoumlrg Lukaacuteksrdquo- in Cadernos de Filosofia Alematilde no09 | pp 49-70| JANJUN2007 Cito o artigo da Profes-sora de Esteacutetica e Histoacuteria da Arte no Departamento de Filosofia da UNESP a guisa de esclarecimento devido agraves siacutenteses que realiza com clareza em seu artigo que natildeo deixa de citar livros pertinentes ao tema como eacute o caso de O Gecircnio Romacircntico de Marcio Suzuki ndash Satildeo Paulo Iluminuras199814 Lembremos que o texto de Agamben eacute do seacuteculo XX15 Cita apenas o tiacutetulo original em alematildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

174

obra de arte natildeo soacute por ser criativa mas tambeacutem por ser nega-tividade Neste ponto ele faz referecircncia a Hegel agrave sua objeccedilatildeo agrave ironia autonegante ou autonadificante praticada pelo grupo de poetas-filoacutesofos de Iena Hegel teria se oposto a Schlegel Solger Novalis e ldquoa outros teoacutericos da ironiardquo (AGAMBEN 2006 p10) e afirmado que eles haviam ldquopermanecido na infinita ne-gatividade absolutardquo (AGAMBEN 2006 p10) tomando o me-nos artiacutestico por verdadeiro princiacutepio da arte Segundo Agamben aqueles adeptos da ironiada pers-pectiva do filoacutesofo natildeo teriam podido ir adiante porque para Hegelldquoa negatividade da ironia natildeo eacute o provisional da dialeacuteticardquo (AGAMBEN 2006 p10) Ou seja ao natildeo ser ultrapassada a ironia deixaria de integrar o movimento histoacuterico da consciecircncia Vecirc-se que Agamben por sua vez eacute irocircnico (no sentido usual) em relaccedilatildeo agrave postura que atribui a Hegel ao escrever que ldquoa va-rinha maacutegica da Aufhebung estaacute sempre em ato de transformar a negatividade (da ironia) em algo positivordquo(AGAMBEN 2016 p10) Para Agamben a ironia dos poetas seria ldquouma negativi-dade absoluta e sem resgate a qual entretanto natildeo renuncia por isso ao conhecimentordquo (AGAMBEN 2016 p10) e da ironia romacircntica de um Schlegel pode brotar ldquouma atitude autentica-mente filosoacutefica e cientiacuteficardquo (AGAMBEN 2006 p11) A peculiar interpretaccedilatildeo (redutora) de posiccedilotildees de Hegel eacute expressa por meio de algumas frases sem indicaccedilatildeo dos tex-tos utilizados Mas eacute evidente que Agamben se opotildee agrave dialeacutetica de Hegel na medida em que defende uma praacutetica filosoacutefica que pretenderia preservar uma negatividade insuperaacutevel jamais subsumida pelo movimento do desenvolvimento da consciecircncia descrito na Fenomenologia do Espiacuterito16

Os artigos que vatildeo da acedia agrave melancolia percorrem as vaacuterias atribuiccedilotildees da melancolia a pensadores escritores poe-tas e o autor natildeo deixa de mencionar alguma semelhanccedila com o mal du siegravecle expresso pelos escritores do seacuteculo XIX nem de tirar partido da imagem de Kierkegaard (AGAMBEN 2006 p31) autor do Tratado do Desespero que descreve o desesperar-se consciente de si e a ambiguidade de seu eu A dor pelo que natildeo haacute a dor cultivada nesse inverno da desesperanccedila com frequecircncia estaacute associada com criacuteticas fei-tas pelo melancoacutelico ao mundo circundante Temos o pessimista o descrente o entediado pondo o dedo nas feridas da cultura Por outro lado constatamos que o vazio do perder o que se natildeo tem inseparaacutevel da concepccedilatildeo de desejo para a psicanaacutelise eacute nos desenvolvimentos da escrita de Agamben associado com a fantasia e com o lugar utoacutepico da criaccedilatildeo Depois do livro do qual comentei algumas leituras Agam-ben publicou vaacuterios outros e dentre estes tiveram repercussatildeo no meio psicanaliacutetico sobretudo os que desenvolvem o projeto

16 Muito posterior aos comentaacuterios de Hegele que Agamben natildeo cita

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

175

Homo Sacer sendo o mais recente O Uso dos Corpos em que ele abandona o proacuteprio projeto de modo expliacutecito e justificado Para Giacoia este livro marca ldquoo abandono do projeto Homo Sacer mas sob a condiccedilatildeo de compreendermos abandonar como o uacutenico gesto consequente que se segue agrave plena reali-zaccedilatildeo de uma obra de poesia ou de pensamentordquo (GIACOIA 2016 p140)17 Lembremos do que Agamben escreveu a respeito da obra que seria capaz de conter em si mesma sua proacutepria negaccedilatildeo citado acima Embora haja uma distacircncia de deacutecadas entre os artigos trabalhados aqui e seu uacuteltimo livro eacute possiacutevel consta-tar que a concepccedilatildeo de vazio lugar natildeo espacial permanece nesse pensamento poeacutetico-filosoacutefico O tiacutetulo Estacircncia tambeacutem inspirado em Walter Benjamin eacute-nos apresentado com o sig-nificado que os poetas do seacuteculo XVIII teriam dado ao nome de ldquomorada capaz e receptaacuteculordquo Receberia acolherialdquojunto a todos os elementos formais da canccedilatildeo aquela lsquofoi drsquoamourrsquo na qual eles confiavam como uacutenico objeto da poesiardquo (AGAMBEN 2006 p11) Desde a origem de nossa cultura teria havido uma cisatildeo ldquoentre poesia e filosofia entre palavra poeacutetica e palavra pen-santerdquo (AGAMBEN 2006 p12) O acesso agraves interrogaccedilotildees que mereceria estaria barrado pelo esquecimento No percurso do autor aquilo que no seacuteculo passado foi apontado como parte de um sintoma mantendo a ressonacircncia de textos medievais e anteriores tendo renascido como espiritualidade em companhia de Eros na intrigante obra de Duumlrer o vazio melancoacutelico parece convocar ainda o sem forma o lugar indefiniacutevel que recebe o pensamento que vem a ser

17 Giacoia in Percurso 2016

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

176

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AGAMBEN G Estancias - La palabra y Elfantasmaen la cultura occidental Valencia Pre-Textos 2006

BENJAMIN W Origem do drama traacutegico alematildeo ediccedilatildeo e tra-duccedilatildeo Joatildeo Barreto ndash 2ed ndash Belo Horizonte Autecircntica Editora 2013

FREUD S ldquoDuelo y Melancoliardquo in Obras completas volXIV Buenos Aires Amorrortu 1993

DERRIDAJrdquoChocircrardquoin Poikilia_Eacutetudes offertes aacute Jean-Pierre Vernant Paris EHESS1987

GIACOIA O ldquoPor uma filosofia do abandono (Lrsquouso dei corpi Homo Sacer)rdquo in Percurso ndash Revista de Psicanaacutelise no 54 ANO XXVIII JUNHO DE 2015 pp138 ndash 144

LACANJ Seminaire 6 Le Deacutesir 1958 in httpstaferlafreefr

PLATON Timeacutee texte eacutetabli par ARivaud Paris Les Belles Le-ttres 1949 p12

SALLES GONCcedilALVES C ldquoChora em Platatildeo Derrida e Feacutedi-dardquo in Percurso-Revista de Psicanaacutelise no 3132 ANO XVI 2ordm SEM20031ordm SEM2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

177

Politics without a subject David Hume on general rules

Key-words Hume politics subject freedom belief

ABSTRACT In this article after having described the role and functioning of general rules and of customs by Hume I will show that the centrality of these in his political reflection leads to a denial of the identification of man as the subject intending with this concept the union of the conceptual pair subjectum (support of personal peculiarity) and subditus Hume doubts the presence of an element that is able to impose itself on man subduing him to its own will the man himself if he tries to impose a norm on himself attains only useless sufferings

1 Introduction

Humersquos skepticism brings him to refuse to trust any norm with mathematical certainty that purports to regulate either nature or politics both fields are domains of matters of fact for which it is not possible to find rules that are always valid For Hume norms are descriptions of regular repetitions taking place they are not an account of necessary phenomena It is the constant repeti-tion that defines laws and not the other way around This counts both in the cognitive as in the political field respect for a law is not a consequence of its intrinsic necessity as the law does not derive from a government to which we necessarily must obey for a transcendent or rational necessity or for an ancient promise of submission Power understood as the probability that an ele-ment A is the cause of an element B1 cannot be perceived and its existence is for this reason doubted by Hume2 just as in the cognitive field it is the repetitiveness of nature that brings us to the formulation of scientific laws which imply a hypothetical causality that is not demonstrable so in politics it is the repeti-tive inclination of man that leads to a hypothetical authority or the power of a government and of its laws It is the custom and tendency to be obedient that mostly influences our actions not a sovereign monopoly of force

1 laquopower consists in the possibility or probability of any action as dis-coverrsquod by experience and the practice of the worldraquo David Hume A Treatise of Human Nature ed D F Norton M J Norton (Oxford Clarendon Press 2007) 2042 See David Hume An Enquiry Concerning Human Understanding in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 450ndash60

Giulia Valpione

Universitagrave degli Studi di Pa-dova Dipartimento di Filoso-fia Sociologia Pedagogia Psicologia Applicata (FISP-PA) Post-DocPoacutes-Doc em Filosofia - UFSCAR

giuliavalpionegmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

178

2 The general rules analogy and imagination

General rules are considered throughout all three books of Hu-mersquos Treatise on Human Nature as they concern the modality in which men produce reasoning and they are implied in actions and behaviors Such rules reveal human naturemdashwhich is in-clined to repetitionmdashthe construction of series that follow one another connecting similar cases3 if there is a multiplicity of si-milar cases the causes of our actions and thinking are moved to the background and they are replaced by habit which is able to originate certainties and passions even though they have not been caused

The two fundamental passions to which Hume devotes am-ple space in the Treatise (pride and humility) are originally the result of the relationship of three elements4 (two ideas and one impression) among which our pleasure or sorrow are instigating causes However due to the existence of habits of thought an instigating cause5 may not necessarily be present passions can simply arise from two ideas6 The procedure is very similar when we consider causality here from an impression A we derive an idea a belief in an object B The judgment that derives B from A is not an analytical judgment nor is it a synthetic a priori one (which can be only found in mathematics and geometry) since the knowledge of such relationship is not so much caused by the repeated experience of A rarr B as by the constant experience of the conformity of the future in comparison of the past in other words nature repeats itself and only through such repetitiveness does man infer the necessity that ldquoif A always Brdquo7 Therefore the

3 Treatise 2344 See Section II-V of Book II Part I (Treatise 182ndash190)5 We must [hellip] make a distinction betwixt the cause and the object of these passions betwixt that idea which excites them and that to which they direct their view when excited [hellip] The first idea that is presented to the mind is that of the cause or productive principle This excites the passion connected with it and that passion when excited turns our view to another idea which is that of self Here then is a passion placrsquod betwixt two ideas of which the one produces it and the other is producrsquod by it The first idea the-refore represents the cause the second the object of the passionraquoTreatise 1836 laquoWhen an idea produces an impression related to an impression which is connected with an idea related to the first idea these two impres-sions must be in a manner inseparable nor will the one in any case be unat-tended with the other lsquoTis after this manner that the particular causes of pride and humility are determinrsquod The quality which operates on the passion produces separately an impression resembling it the subject to which the quality adheres is related to self the object of the passion No wonder the whole cause consisting of a quality and of a subject does so unavoidably give rise to the passion To illustrate this hypothesis we may compare it to that by which I have already explainrsquod the belief attending the judgments which we form from causationraquo Treatise 189ndash1907 I do not linger here on the discussion that tries to establish if for Hume

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

179

causal link does not derive its necessity from reasoning or de-duction8 However it is based on the experience of the similarity between past and future that is on something that cannot be demonstrated In the case of the passions and belief in the ne-cessity of a causal link they are not the result of reasoning but they are the effect of a tendency and habit The necessity that we feel existing in the bond between two elements (for instance between fire and loose wax or between wealth and pride) is due to human nature which tries to produce a series of repetitions which bring about general rules

Habit acts on the human mind through imagination a faculty that turns impressions into ideas and whose procedure is free devoid of fixed rules9 if we observe it we see that it is possible to identify some constants and to notice that it usually gathers impressions to create bonds of resemblance bonds of contigui-ty in space and time and of cause and effect10 among similar elements The inferences of imagination are influenced by ha-bit because the ideas produced receive such a strong vivacity that they are able to provoke the belief that the inferences will be confirmed by experience Their vivacity equates these ideas with impressions granting them the faculty to influence human passions11 From the perception of an object A and an object B the mind is suited by custom to firmly believe that after the appearance of the first one the second one should follow to the point of reaching the conviction that they are indeed tied up by a necessary relationship which we believe follows a rule Howe-ver no perception corresponds to the idea that we have of such necessity therefore it is a production of our mind and not an element that our senses can perceive12 The same procedures are at play in the formation of general rules that lead humans to create habits that influence our behavior These rules are not

there is a nature outside the I or not I hold that to the goals of the present article that topic is not relevant because this article focuses on the norma-tivity that crosses the act of humans and not on the adherence of objects to the causal law For a possible close examination I refer to the following texts Brian A Chance ldquoCausal Powers Humersquos Early German Critics and Kant Response to Humerdquo Kant-Studien 104 (2013) 213ndash236 Winkler P Kenneth ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo in The Cambridge Companion to Hu-mersquos Treatise ed D C Anslie A Butler (Cambridge Cambridge University Press 2015) 135ndash1648 The deduction is possible only in a priori elaborations by imagination and by intellect elaborations that are characterized for reaching propositions whose contrary is contradictory The experience of ldquoIf A then Brdquo and ldquoIf A then C (neB)rdquo and their related propositions are not contradictory if nature changes its course if it does not repeat itself anymore it does not contradict itself9 laquonothing is more free than that faculty But we are only to regard it as a gentle force which commonly prevailsraquo Treatise 1210 Treatise 1311 Treatise 8212 laquoHere then it appears that of those three relations which depend not upon the mere ideas the only one that can be tracrsquod beyond our senses and informs us of existences and objects which we do not see or feel is causa-tionraquo Treatise 53

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

180

dictated by reason but they are the instruments through which man can extend principles and thoughts beyond the datum and present reasons by following the repetitiveness that characteri-zes nature as a whole13

This is the tool that man possesses for the use of his abilities with a goal-oriented purpose to satisfy his needs14 an inclina-tion to repeat the same intellectual operation or to reproduce the same action15 Custom is a principle of human nature16 but it does not lead us to always behave in the same way habit is not the eternal reproduction of the identical For the observer to have the impression of a causal link between two objects it is not necessary for him or her to have already experienced the same identical situation the typical necessity of the causal rela-tionship that connects an object to another does not only occur in case that the observer perceives the same object A definable as cause of object B but also in the case of a more generally similar objects and similar conditions The repetition that allows to reasoning to go beyond the datum does not develop in the terms of a narrow identity but in terms of similarity it describes a series of repetitions that follows a rhythm of analogy While traveling or considering history we realize that men and women have altered their own institutions and creations (the way they build residences and the tools that they use) to suit them to gi-ven conditions with the purpose of reaching their goals ldquoMen in different times and places frame their houses differently here we perceive the influence of reason and customrdquo17 Objectives common to all men and women such as the maintenance and the propagation of human species can be pursued well only by adapting to existing conditions general rules are not universal or necessary but variable If we perpetuate the reproduction of the identical we will be reduced to the level of simple instincts like animals whose peculiarity consists in being submitted to the power of nature which forces them to the simple repetition of behaviors and procedures18

13 laquoto the force of this argument I so far submit as to acknowledge that general rules commonly extend beyond the principles on which they are foundedraquo Treatise 35314 laquoCustom then is the great guide of human life [hellip] [Without the in-fluence of custom] We should never know how to adjust means to ends or to employ our natural powers in the production of any effect There would be an end at once of all action as well as of the chief part of speculationraquo Enquiry concerning Human Understanding 3915 Enquiry concerning Human Understanding 3716 Enquiry concerning Human Understanding 3717 Hume D An Enquiry concerning the Principles of Morals in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 419518 laquoA man who has contracted a custom of eating fruit by the use of pears or peaches will satisfy himself with melons where he cannot find his favourite fruit [hellip] From this principle I have accounted for that species of probability derivrsquod from analogy where we transfer our experience in past instances to objects which are resembling but are not exactly the same with those concerning which we have had experienceraquo Treatise 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

181

Human beings use ldquoexperimental reasoningrdquo19 and thus are able to use their own knowledge derived from experience ela-borating it and suiting their own tools for the satisfaction of their passions In turn these innovations and diversifications beco-me a habit and custom in a brief period of time the motivations that led to their creation are forgotten and we perpetuate the following of such new precepts

General rules are not determined to the least detail they le-ave space for variations and unlike instincts do not have their own cause in themselves They are the product of the faculty of imagination which elaborates tools with the goal of resolving our tendencies20 and this establishes them as norms hiding their instrumental character This is what characterizes human nature more than reason it is imagination that identifies it It is thanks to imagination alone if men develop the belief that nature repeats itself and so allow them to extend their faculties over the simple perceptions only through it do men believe in the necessity of not interrupting the present habits but of proposing them again in this way building a chain of analogous elements

3 General rules strengthening and correction

The primary role of general rules is the extension of human faculties beyond their justified limits with our passions and re-asoning21 bringing order to experience without a stable base making a systematization of experience that is not grounded on the necessity of certain mechanisms but on the probability that nature will not change its repetitive tendency Both in the moral and cognitive fields general rules are essential for the survival of human beings allowing the production of reasoning that at-tempts to foresee the immediate future and the establishment of institutions that preserve the species

In the absence of habit and repeated bonds among similar ob-jects it would not be possible to reach the conclusion that ldquothose instances of which we have no experience resemble those of which we have experiencerdquo22 there would not be a principle on which the belief in necessity is created therefore without repe-tition reasoning would be impossible23 That is the procedure through which mind goes over what is immediately present to

19 Enquiry concerning Human Understanding 8820 The ldquotendencyrdquo is a desire an impulse immediately satisfied ndash following Gilles Deleuze interpretation ndash by an instinct and in human beings satisfied through institutions see Deleuze Gilles Empirisme et subjectiviteacute (Paris PUF 2010)21 Treatise 19222 Treatise 6223 It is to note that the elevation of passed experience to criterion for future judgement namely the belief that tomorrow will resemble to yesterday it is not in itself a reasoning but it is the ground of every possible reasoning See Enquiry concerning Human Understanding 28f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

182

the senses would be inconceivable Particularly causality (the only philosophical relationship to venture beyond the senses in-forming us about the existence of objects that we do not see or feel)24 could not occur Without this ability to project and forecast it would not be possible for human beings to manage to satisfy their own passions make inferences25 or speculate or act in or-der to achieve a consequence

Fixed habits cause the formation of stable institutions and constitute that network of use and custom within which every human being already exists and that cannot be described as a system of prohibitions It is rather a tool to facilitate thanks to the ability of the imagination26 to arouse a passion lacking its own reason to be27 the actualization of principles that lead to the vi-gor28 of such habits Therefore we are quite distant from a binary scheme of prohibition and permission in which the law preser-ves human beings from their own wickedness or egoism Hume proposes the idea that a rule is an entirety of habits intended to facilitate the attainment of goals (be they egoistic or prescribed by sympathy) of human beings that work together to generate an equilibrium between the repetitive nature of men and women and the conditions in which such habits are created29

This never fixed always imperfect and to be reconstructed equilibrium implicates the second peculiarity of general rules they not only have the role of strengthening and facilitating thou-ghts and action but they also develop the mutually corrective role to create an order in human relationships and in rational reconstructions General rules being the generalization of an individual idea30 applying the peculiarities of a single experience to different cases will lead to errors and prejudices whose defect does not consist so much in their falsehood (against the truth) but rather in the contrast and contradictions that they cause be-tween other prejudices or beliefs31

The ability of the imagination to generalize is not only applied to identical cases but also to similar elements sometimes con-fusing necessary conditions of some effects with other on the contrary superfluous conditions that are only accidental32 in this 24 Treatise 5325 See note 1426 Treatise 23427 Treatise 23428 Treatise 19229 On this aspect focused Gilles Deleuze see Deleuze Gilles Empiris-me et subjectiviteacute30 laquoIf ideas be particular in their nature and at the same time finite in their number lsquotis only by custom they can become general in their represen-tation and contain an infinite number of other ideas under themraquo Treatise 2131 laquoAn Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have soli-dity for which reason thorsquo the conversation of the former in any instance be visibly very agreeable and of the latter very judicious we have entertainrsquod such a prejudice against them that they must be dunces or fops in spite of sense and reason Human nature is very subject to errors of this kindraquo Trea-tise 10032 Treatise 101

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

183

way the faculty leads to general rules that confuse the terms in play

the same custom goes beyond the instances from which it is derivrsquod and to which it perfectly corresponds and influen-ces his ideas of such objects as are in some respect resem-bling but fall not precisely under the same rule33

Only reasoning can counterbalance this excessive amplifica-tion of habit but the very same reasoning is constituted by the cause-effect relationship or by a further general rule Conflict does not occur therefore among elements of different natures but is always between probability and stronger beliefs and not between possibility and certainty Error emerges when among our thoughts we ascertain an incongruity as when two probabi-lities appear in conflict the only way to overcome this does not consist in appealing to an absolute truth but on the contrary in opting for a general rule that brings with itself a degree of greater probability and in relegating to a simple exception the weakest impression the least vivid thought34 In the field of experience (of what Hume calls ldquomatters of factrdquo) every judgment is the re-sult of relationships produced by the imagination thanks to the influence of habit and its relationship with general rules they are grounded in belief which must submit to a more or less founded probability which increases or decreases through other formu-lated judgments35 and that cannot flow in the field of certainty and truth

this gradual increase of assurance is nothing but the ad-dition of new probabilities and is derivrsquod from the constant union of causes and effects according to past experience and observation36

Certainty is a feeling provided by the senses and not by rea-soning or demonstration we live using illusions provided by the imagination without regarding the fact that ldquoall knowledge resol-ves itself into probabilityrdquo37

There are no fixed or stable laws and certainty is replaced by probability which has to be composed turning resemblance into identity or contiguity or causes because of the influence of the modality in which ideas and impressions are conceived What is given are only singular impressions and the rest is construction

The operation of the general rule that exerts itself between cor-rection and expansion does not lead us to exclude the exception from the rule itself but rather to include it in a new series of repe-

33 Treatise 10134 Treatise 10135 Treatise 12136 Treatise 12137 Treatise 122

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

184

titions and analogies In the case of rebellion against a govern-ment resistance overturns and interrupts the habit to obedience This breach is not the breakdown of a rational order that finds its own justification in logic38 as it is not the transgression of an original contractual source of political legitimacy Respecting an established order is not a necessary behavior as necessity is a characteristic that is always and only attributed by the observer it is not present in nature39 and neither is it due to the presence of a real authority established by an original transfer of power and enacted by an unbreakable promise40 The (also moral) obliga-tion of subjugation to a government is due to none of this

If we are to explain constant obedience to a magistrate we have to question and observe the opinions of men and women who would never accept the idea that the origin of government consists in an original promise or contract41 Loyalty to the magis-trate does not consist in a promise or a necessary relationship Rather it is a consequence of general rules thanks to which we extended our maxims beyond the first reason that pushed us to establish them42 and that induced us to get use to do something to repeat ourselves in a regime of analogy leading human bein-gs to consider the magistrates or sovereigns as authoritative not in respect of some legitimating promise but rather because they have achieved their powerful position by inheritance or posses-sed the throne for a long time43 In other words if it is possible to establish an analogy between the actual holders of authority and the predecessors a similitude allows the imagination of the subject to pass from one to the other without unpleasant and difficult passages

Rebellion against an established political order is not due to the breaking of some promise or the shattering of a rational regi-me that for its own logical strength should stay unchanged wi-thout being submitted to assault Rebellion is possible although it is an exception to the general rule of loyalty to authority exactly because general rules are not laws inscribed in human nature Such rules simply describe the general tendency to follow habits and customs Resistance to a sovereign consists in the introduc-tion of an unpredictable variable to a flowing series of analogies This variable does not linearly correspond to principles through

38 Treatise 101ndash10239 Enquiry concerning Human Understanding 7740 laquothe magistrates are so far from deriving their authority and the obli-gation to obedience in their subjects from the foundation of a promise or original contractraquo Treatise 350 laquophilosophers may if they please extend their reasoning to the supposrsquod state of nature provided they allow it to be a mere philosophical fiction which never had and never coursquod have any reality [hellip] But however philosophers may have been bewilderrsquod in those specula-tions poets have been guided more infallibly by a certain taste or common instinctraquo Treatise 316ndash31741 Treatise 35042 Treatise 35343 Treatise 356f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

185

which knowledge can be extended beyond the simply given44

Rebellion is a sign that theory is not a rigid system of absolute truths to which faith must be lent and that one must adopt45

in this particular the study of history confirms the reasonin-gs of true philosophy which shewing us the original qualities of human nature teaches us to regard the controversies in politics as incapable of any decision in most cases46

This does not make it a varying and unpredictable element that sometimes surges in a series of analogies that regulate the poli-tical life of human beings simply splintering them The operation of general rules is corrective not because it excludes what esca-pes from the planed repetition decreeing a narrow invariability (even if only on the plan of analogy and not of identity) however it is because in the actions of men and women the exception becomes a rule It does not rest on a binary plane of truth and untruth in which right and injustice are in originally defined and opposed knowledge moves in a field of probabilities Hume ac-cepts the inclusion of exceptions and admits equilibrium among what is more or less possible Regarding cases of political resis-tance their exceptionality is dissolved in two directions first of all human history has shown so many examples of rebellion47 that it can be considered as a general rule The exceptionality of resistance is inserted in a chain of usual obedience that this way is broken up but its exceptional nature is darkened and integrated into another canon of behavior not left to a chaos that could cast a shadow in repetitive order of humansrsquo and naturersquos procedures The occurrence of the unexpected is immediately included in a habit that explains it normalizing it (also predicting its frequent resurfacing)48 it is instantly integrated in an order of habits that collides against one another Nature repeats it-self confirming our reasoning which ismdasheven though without necessitymdashgrounded on that same repetition this leaves room for possible subversions in what we take for certain49 we un-derstand ordinary human behavior but nothing prevents it from 44 laquowe [hellip] make allowances for resistance in the more flagrant instan-ces of tyranny and oppression [hellip] Nor is it [the resistance] less infallible because men cannot distinctly explain the principles on which it is foundedraquo Treatise 353ndash35445 laquoWhoever considers the history of the several nations of the world their revolutions conquests increase and diminution the manner in whi-ch their particular governments are establishrsquod and the successive right transmitted from one person to another will soon learn to treat very lightly all disputes concerning the rights of princes and will be convincrsquod that a strict adherence to any general rules and the rigid loyalty to particular persons and families on which some people set so high value are virtues that hold less of reason than of bigotry and superstitionraquo Treatise 35946 Treatise 35947 For a detailed study of Hume as historian see Spencer K Wertz ldquoHume History and Human Naturerdquo Journal of the History of Ideas 36 (1975) 481ndash49648 Treatise 35349 Enquiry concerning Human Understanding 33

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

186

contradicting our expectations

4 General rules and freedom

The introduction of variation within general rules does not im-ply for Hume that human beings are unlike other creatures free The nature of human beings in which tendencies do not seek for their own satisfaction through blind instinctive repetition but rather through the elaboration of strategies which result from an equilibrium among new habits does not put him outside a world ordered by blind necessity in which he intervenes to start a new series of repetitions by grounding it in peculiarities that do not belong to the deterministic reality

Human beings do not impose themselves on nature within a proper moral order and with justice their constitution does not separate them completely from natural repetition In other words human beings are not free beings intervening in a reality under a narrow regime of necessity What we consider human ldquolibertyrdquo or ldquofreedomrdquo that is the capacity to enter an established order to change its repetitive series is nothing else than the result of dou-ble ignorance an error in our conception of the necessary and deterministic bond between events and the inability to recognize all the regular connections in which a human action is inserted (without interruptions or breaks) Human beings sometimes act in an apparently unpredictable way practicing a real interruption of any regular and repetitive behavior a fragmentation of any analogy with the past in reality we simply ignore all connections all general rules followed by the individual Therefore when a behavior that is consequence of a till now minor and less evident series prevails on the principal general rule when it alters the equilibrium through the more or less hidden breaking in of con-trary causes50 an observer is not able to recognize the fluidity of the mutation and he motivates his incapacity to recognize a causal bond asserting that he has been spectator of an action which is not the effect of some determining cause but which is rather free

The conviction that holds human beings to be entities endowed with liberty opposed to nature that obeys a regime of necessity is a reflex of a common error due to the consideration of the status of the bond between cause and effect Human beings and nature obey the same type of necessity the chain of natural causes and the chain of voluntary causes are not separated by the presence or absence of freedom Necessity is not internal to the cause as if it were itself bearer of such a determining element It is ra-ther the effect of the imagination of the observer This faculty is able to produce such a firm conviction that when human beings reflects on themselves and do not see in their spirits a neces-sary connection comparable to that which he believes existing 50 Enquiry concerning Human Understanding 71

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

187

among natural objects they then consider themselves detached from the natural world in possession of an exclusive characte-ristic liberty Incapable of remembering that necessity is not a quality of the agent or of the effect but rather of what we con-sider their relationship to be we build two different fields one for human beings and the other for nature the two kingdoms of liberty and determinism Eliminating the possibility of freedom implies the elimination of its opposite which is necessity these are the results of the beliefs of the human mind What we seem to know is simply a constant conjunction that we are able or not to foresee and not the necessity or its contrary in both cases Liberty (as the contrary of necessity)51 and its opposite do not exist human beings are the same as nature The fact that hu-man actions appear irregular and uncertain opposed to natural regularity does not make them exist on a different level52 The bond between motives and actions has the same regularity as natural developments53

The ability of human beings to introduce an unexpected ele-ment does not make them free beings but only marks a facul-ty of adaptation in a mutable equilibrium If human beings sim-ply followed their instincts there would be no change and they would continue to act in the same identical way independently from every condition birds build their nests without adapting to a varied situation without any assessment and forecast54 The intervention of mutation within a repetitive series is possible only if it does not deal with impulses but custom and general rules or when human minds expand beyond the given through imagi-nation and habit which reconstruct resemblance contiguity and causation55 producing such a vivacious conception of objects and consequences that we firmly believe them to be able to pro-voke specific effects despite mutable conditions56 Human bein-gs are different from animals because they are not tied to their instincts this is what we would think we can conclude However reason is not a faculty external to nature On the contrary it is a sort of instinct or mechanic power similarly to the blind impul-se that induces animals to behave in a perpetual repetition57 What characterizes the human mind is the ability to go beyond the datum and simple perceptions building series of resemblan-51 We can talk about freedom only in the sense of the absence of cons-trictions Enquiry concerning Human Understanding 7952 Treatise 25953 laquoI do not ascribe to the will that unintelligible necessity which is su-pposrsquod to lie in matter But I ascribe to matter that intelligible quality call it necessity or not which the most rigorous orthodoxy does or must allow to belong to the willraquo Treatise 26354 laquoAll birds of the same species in every age and country build their nests alike In this we see the force of instinctraquo Enquiry concerning the Prin-ciples of Morals 19555 Enquiry concerning Human Understanding 4356 See note 1457 laquothe experimental reasoning itself [hellip] is nothing but a species of ins-tinct or mechanical powerraquo Enquiry concerning Human Understanding 88

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

188

ces and causalities between them whose conception can be more or less vivacious provoking changes or simple repetitions in behavior according to a resultant emergence from the inter-section of different series of habits reconstructed causal chains and produced resemblances We are in a domain not subdued to reasoning and built by belief imagination and the general rules or by the human propensity to produce repetitions and to belie-ve in them building series whose members are based on each other and not on a cause or tendency The results of this order are the praxis and the knowledge of human being which do not originate from the imposition of pure reason external to nature but they are rather the result of probability of more or less cer-tain reconstruction and of already given conditions

The human mind is a natural element among many others it does not refer to some transcendent plan and it is not drawn by some liberty It is rather a simple reaction to human passions and a tool that facilitates their satisfaction We are then wrong if we think that reason can command passions and impose on them a moral law or a truly and right order When we think we are ac-ting reasonably our behavior in reality is due to a predominant passion which in this case is calm quiet and not expressed violently58 Even if the human mind is able to introduce an unpre-dictable variable in the development of habits and of general rules it is not able to produce a metaphysical reality The only things from which it starts are impressions in their singleness and in their mutual isolation Everything it reconstructs is only its product the harmonious order that we think we are recons-tructing in science59 is not a revealed truth nor a discovery but only a projection of our belief that allows us to direct our own tendencies

5 Identity and difference the absence of the ldquoIrdquo

Hume places the concepts of difference and becoming as prior to those of identity and being because identity is nothing more than a construction of imagination60 Moreover the source from which such falsification is produced cannot be understood as a constant ldquoselfrdquo always identical to itself among the flow of im-pressions there is no stable subject that arises as sovereign The 58 laquoMen often counter-act a violent passion in prosecution of their inte-rests and designs [hellip] What we call strength of mind implies the prevalence of the calm passions above the violentraquo Treatise 268 About the possibility to have or not a practical reason in Hume see Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non-sceptical Interpretationrdquo History of political Thought 34 (2013) 89ndash11359 Michel Malherbe La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 4960 laquoOur chief business then must be to improve that all objects to which we ascribe identity without observing their invariableness and uninter-ruptedness are such as consist of a succession of related objectsraquo Treatise 167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

189

identity that is usually attributed to the human mind is ldquofictitiousrdquo61 and what we are used to calling ldquoIrdquo is nothing else than an enti-rety of perceptions whose bond is something we have attributed ourselves62 building in this way a continuous chain of thought63 that results in being identical to itself There is no impression of the ldquoIrdquo and of its identity that is a demonstration of the fact that it is a construction Philosophy must thus be empiricist it has to be related to experience obliging it to open and destruct identity and to radically resolve it into the difference64 Personal identity is the result of an operation of imagination that reflects on itself on thinking65 thus perceiving a facility in the passage among the consideration of different perceptions and allowing the emergen-ce of the feeling of necessity taking into consideration causal bonds as the effects of the same ldquoIrdquo and its faculties66 It is at this point of the discussion that Hume introduces the comparison between the mind and a theater (deprived however of scene stage or any other structure) where the perceptions incessantly follow one another combining themselves to each other ldquoThere is properly no simplicity in it at one time nor identity in diffe-rentrdquo67 The fact that this theater has no scenes and materials is a marker that the same powers of the mind are not perpetually identical68 and therefore that imagination memory and reason are not faculties in the sense that they do not constitute a trans-cendental structure laying between the subject and his object They do not systematize knowledge and practice They are ra-ther attitudes to pursue a purpose in a determined way similar to instincts that have been born and developed in nature Therefo-re as birds mechanically build identical nests ndash even though not implying a specific faculty of their mind in this action (however only implying a tendency that is repetitively updated without va-riation) ndash human beings stir inside nature through similarly ins-tinctive procedures that may also be constant but which cannot

61 Treatise 16962 Treatise 16963 laquoour notion of personal identity proceed entirely from the smooth and uninterrupted progress of the thought along a train of connected ideasraquo Treatise 169ndash17064 Malherbe Michel La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 19365 laquoIdentity depends on the relations of ideas and these relations pro-duce identity by means of that easy transition they occasionraquo Treatise 17166 In this last passage memory plays an central role because it allows to extend the chain of causes to every moment we remember laquoIn this view therefore memory does not so much produce as discover personal identity by shewing us the relation of cause and effect among our different percep-tions lsquoTwill be incumbent on those who affirm that memory produces entirely our personal identity to give a reason why we can thus extend our identity beyond our memoryraquo Treatise 17167 Treatise 16568 laquoOur thought is still more variable than our sight and all our other senses and faculties contribute to this change nor is there any single power of the soul which remains unalterably the same perhaps for one momentraquo Treatise 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

190

be hypostatized

6 The Absence of the Subject

Man as a flow of perceptions is deprived of any reason that is able to distance him from nature and capable of imposing a proper order a human mind that results from a specific fold pro-duced by natural processes all of this makes the formulation of the self as a subject in contrast to objects impossible Percep-tion before it has been elaborated and has been transformed into an idea is pure presentation69 without any distance between the object and the subject Perceptions are singularities in which a perceiving subject and a perceived object are not distinguisha-ble both emerge in a second moment as a consequence of the attribution of continuity and coherence to different perceptions Every piece of information furnished by our senses is at mini-mum disconnected from any other perceptions that do not alrea-dy carry within themselves the sign of possible relationships with other impressions They do not have in themselves singularly a necessary bond to other perceptions even if they are represen-ted as inherent to the same object as two points contingently connected by a segment are traced in a second moment the re-lationship between impressions follows it is not necessary and it is a consequence of the attribution of a regularity they do not have70

The centrality of habit and of repetition not only involves the notion of a subject intended to be opposite to the object Hume also expressly denies other characteristics attributed to this con-cept which is reducible to a simple grammatical matter71 taking into consideration the central peculiarities that characterize it we are therefore able to distance Hume from the philosophical tradition identified by Alain de Libera which gradually identifies the subject of the act the subject of the inherence of attributes and the cognitive subject72

From the beginning the absence of the cognitive subject is de-69 With this expression I intend the precedence of the impression in respect to every representation which presupposes the distance between the thought and its object70 Treatise 13771 To this is also reduced the personal identity laquoThe whole of this doc-trine leads us to a conclusion which is of great importance in the present affair viz that all the nice and subtile questions concerning personal identity can never possibly be decided and are to be regarded rather as grammatical than as philosophical difficultiesraquo Treatise 171 Neujahr put in relation the Humean analysis on identity and the which one on time Philip J Neujahr ldquoHume on Identityrdquo Hume Studies 4 (1978) 18ndash2872 The path toward this identification is the subject matter of the re-search of Alain de Libera in particular Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet moderne Cours du Collegravege de France 2013ndash2014 (Paris Vrin 2015) More extensively Alain de Libera Archeacuteologie du sujet I Naissance du sujet (Pa-ris Vrin 2007) Alain de Libera Archeacuteologie du sujet II La Quecircte de lrsquoidentiteacute (Paris Vrin 2008)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

191

termined by the negation of an identity to which it is possible to submit rational and stable faculties The denial of the subject as a center of inherence73 excludes the possibility to think of actions and human faculties as attributes of a crucial point (be it a subs-tance or a transcendental synthetic unity) This brings Hume to a tradition that is different from the one that places being prior to becoming and that ndash following Alain de Libera ndash74 connects Aris-totle to Thomas Aquinas to Kant

The notion of accidents is an unavoidable consequence of this method of thinking with regard to substances and substan-tial forms nor can we forbear looking upon colours sounds tastes figures and other properties of bodies as existences which cannot subsist apart but require a subject of inhesion to sustain and support them For having never discoverrsquod any of these sensible qualities where for the reasons above--mentionrsquod we did not likewise fancy a substance to exist the same habit which makes us infer a connexion betwixt cause and effect makes us here infer a dependence of every quality on the unknown substance75

Imagination memory and reason are not the faculties of a subject this concept is replaced in Hume by an ldquoIrdquo that precedes the distinction between subject and object There are only two uses of the term ldquosubjectrdquo expressly accepted by Hume76 the first one concerns one of the causes of a passion The subject of a passion is not the man or woman who feels it rather it is that thing to which a quality (identified with the second cause of that passion) inheres With an example the subject of proud is not the human being proud of itself rather the cause of that feeling his propriety following an example of Hume77 The subject of passion is different from the self which is on the contrary the object of proud78 in case that it is related to the subject of that passion79

The second use ndash central for the demonstration of this arti-cle ndash of the term ldquosubjectrdquo is that of subditus a man or woman

73 This prevents in Humersquos intentions to think of the object as a subs-tance (in particular see Treatise 146ndash147) See also Jay F Rosenberg ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo Topoi 19 (2000) 137ndash14574 See Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet modern (Paris Vrin 2015) 174ndash175 See also Steven C Patten ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo Hume Studies 2 (1976) 59ndash7575 Treatise 146ndash14776 I exclude here the use of ldquosubjectrdquo in the sense of ldquoargumentrdquo ldquoobject of a discussionrdquo77 laquoit appears necessary we shoursquod make a new distinction in the cau-ses of the passion betwixt that quality which operates and the subject on which it is placrsquod A man for instance is vain of a beautiful house which be-longs to him [hellip] The quality is the beauty and the subject is the houseraquo Tre-atise 183 For examples concerning other passions Treatise 201 214ndash21578 See quote in note 679 laquothe subject to which the quality adheres is related to self the object of the passionraquo Treatise 189

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

192

subjected to an authority80 therefore Hume denies the tradition that relates the subject to the subjectum (the support of personal peculiarity) he only admits its meaning deriving from subjectus in the narrow sense of being subjugated81

Refusing to identify the subject with the self avoiding the con-ception of this as a totally subjugated entity he leaves space for the possibility of thinking of human beings as a not already and always subjected being not only subjected by the government but also by a fixed (even substantial) identity by an universal and stable description to which everybody must adhere82 Hume does not pose human beings as subjects in the sense that they are not subjugated to a universal anthropological structure to some moral or epistemological law they are not even subjuga-ted to their own consideration in which there is no impression of themselves This prevents the antinomy that derives from the desire to write an anthropology that sets man as an object fal-sifying him because of the consequent impossibility to describe his being a subject Hume admits instead a science of the hu-man being that is only restricted to the description of his (or her) absence of identity Man is a subject only if he is subjugated this however does not entail that the man is always free apart from the aspect of his or her subjection to the magistrate (as if free-dom belonged to his private and apolitical space)

The attempt to subjugate his own desire to a rational or spiritu-al norm is also criticized such effort is not only painful but also useless83 and furthermore it is not the demonstration of liberty imposed by man on his or her life Hume speaks in this case of artificial behaviors that derive from the split with the analogy and with repetition furnished by custom they are not manifestations of a strong freedom that ranges inside what is given They only concern the exasperation of some principles or inclinations that become dominant subjugating all the other desires and affec-tions84 Human beings cannot impose a norm on themselves or on others

It is particularly clear in this sense what Hume intends to warn the skeptical philosopher (with whom we may identify Hume himself) skepticism must be limited to the philosophical matters It must not lead to popular objections with the purpose of placing into question the bases of our daily behavior Radical doubt is

80 Remaining in the Treatise we can find the following recurrences of the word ldquosubjectrdquo in the sense of ldquosubmittedrdquo ldquosubjugatedrdquo ldquoa person owing allegiance to a king or queenrdquo Treatise 221 222 262 343 345 358 364 37581 See the entry ldquosujetrdquo in Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles ed B Cassin (Paris Le Seuil Le Robert 2004) 1233ndash125482 About this see Eacutetienne Balibar Citoyen sujet et autres essais drsquoan-thropologie philosophique (Paris PUF 2011) in particular the introduction (ldquoAvant-propos ndash Apregraves la querellerdquo)83 David Hume The Sceptic in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 323184 The Sceptic 214

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

193

easily swept away not due to solid reasoning but through life itself The occupations of daily life will be the agents that will wake up the skeptic from his dream full of questions the skepti-cal principles ldquovanish like smoke and leave the most determined skeptic in the same condition as other mortalsrdquo85

7 A politics without subjugation

General rules imagination and habit thought of as central fac-tors lead to a conception of politics as a continuous rebalancing between repetitions series of analogies and without reaching a firm center that would be able to bring them (also in a teleological way) to stability and establish a fixed criterion to distinguish what is right and what is wrong86 Norms that regulate relationships among human beings develop independently from any law sti-pulated by the state or a rational or divine being and they are not necessarily instituted by a constitution or by a philosophical system Thus it is possible to verify the source of obedience to norms without however implying that this obedience presuppo-ses submission or a subject It is therefore possible to think of a norm invested of a power that does not want to subdue man the power still remains in his hands87 and it cannot be ceded to a sovereign Instead of a binary order constituted by the pairs truefalse and correctwrong to which human beings should submit Hume proposes probability which totally replaces the possibility of certainty in the cognitive and practical fields Thus norms are not an instrument to include or to exclude legitimate or not but it is the result of what may be more or less probable Its purpose is to allow man to proceed over what is simply given hence streng-thening his faculties In a different way in respect to the instincts general rules include any element preventing the consideration of something as a transgression a glitch among all analogies These rules are not established to regulate the liberty of the indi-viduals or allow their independence They are rather the result of human imagination and nature Obeying them is not a matter of subjugation and breaking them is not a sign of freedom liberty is not something that should (or not) be folded to the general rules

Humersquos skeptic and empirical philosophy has dethroned the subject from its grounding position and has made it the product of the general rules themselves of the imagination and of habits Nobody can impose on nature to make possible a condition of freedom general rules are not the product of reasoning and they 85 Enquiry concerning Human Understanding 13086 For a summery about the interpretations of Hume as a conservative or as a reformer see D W Livingston ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo Hume Studies 21 (1995) 151ndash16487 laquoas Force is always on the side of the governed the governors have nothing to support them but opinionraquo David Hume Of the First Principles of Government in The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 3110

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

194

do not lead to a complete and perfect systematization of socie-ty and ethics Whether it is a matter of liberty truth and moral or cognitive order there is a continuous reconstruction and an equilibrium to be rebalanced the human mind does not possess principles that could systematize experience Originally man is nothing else than a sort of a fold inside the immanence of the pro-cesses that characterizes nature that does not leave a space for certain truths but only an eternal rebalance among probabilities Thinking politics with Hume implicates the refusal of any element already given to the relationships and to empirical differences the renouncing of any transcendent plan and the idea of human liberty previous to relationships to the (violent) interaction of strength among men Liberty is not an anthropological peculiari-ty but it is rather already held within order and equilibrium It is not even possible to think of an already given subject that enjoys liberty Even if it would seem that man originally finds himself in the pair subjectumndashsubjectus88 he precedes it identities and the elements that allow the emergence of that pair of concepts are later constituted They are only a product of the imagination which is able to hide the differences and ever-changing flows

This is the advantage offered by Humersquos philosophy having difference and probability as points of departure for a philosophi-cal reflection on politics it is possible to trace the birth of identi-ties showing their fallacy and their mutability departing from the relationships the subject appears as a simple product We are very far from the idea of a subject grasping the truth We are ins-tead in the field of mutability in which human beings stir among probability and balances in which norms do not forbid but rather strengthen their faculties

88 laquoWe naturally suppose ourselves born to submissionraquo Treatise p 355

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

195

BIBLIOGRAFIA

BALIBAR Eacutetienne Citoyen sujet et autres essais drsquoanthropo-logie philosophique Paris PUF 2011

CASSIN Barbara Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles Paris SeuilLe Robert 2004

DELEUZE Gilles Empirisme et subjectiviteacute Paris PUF 2010

HUME David A Treatise of Human Nature Ed D F Norton M J Norton Oxford Clarendon Press 2007

___________ ldquoAn Enquiry Concerning Human Understan-dingrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoAn Enquiry Concerning the Principles of Mo-ralsrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoThe Scepticrdquo In HUME David The Philoso-phical Works Ed T H Green T H Grose Aalen Scientia Ver-lag 1964

KENNETH Winkler P ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo In The Cambridge Companion to Humersquos Treatise Ed D C Anslie A Butler Cambridge Cambridge University Press 2015

KONG Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non--sceptical Interpretationrdquo In History of political Thought nordm 34 2013) pp 89ndash113

LIBERA Alain Archeacuteologie du sujet Naissance du sujet vol I Paris Vrin 2007

___________ Archeacuteologie du sujet La Quecircte de lrsquoidentiteacute vol II Paris Vrin 2008

___________ Lrsquoinvention du sujet moderne Paris Vrin 2015

LIVINGSTON D W ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo In Hume Studies nordm 21 1995 pp 151ndash164

MALHERBE Michel La Philosophie Empiriste de David Hume Paris Vrin 2001

NEUJAHR Philip J ldquoHume on Identityrdquo In Hume Studies nordm 4 1978 pp 18ndash28

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

196

PATTEN Steven C ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo In Hume Studies nordm 2 1976 pp 59ndash75

ROSENBERG Jay F ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo In Topoi nordm 19 2000 pp 137ndash145

WERTZ Spencer K ldquoHume History and Human Naturerdquo In Journal of the History of Ideas nordm 36 1975 pp 481ndash496

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

197

Resenha

Resenha do livro Teoria da heteroniacutemia de Fernando Pessoa (Org de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvin 2012)

O Palco da Heteroniacutemia

Teoria da heteroniacutemia tem como eixo central o tema que seus organizadores consideram como sendo dos mais impor-tantes para compreensatildeo da obra pessoana como um todo a questatildeo da criaccedilatildeo heteroniacutemica que aqui se apresenta em fragmentos cartas poemas ensaios e textos escritos pelo poeta portuguecircs ou por seus heterocircnimos ao longo de deacuteca-das Muitas vezes sem dataccedilatildeo precisa os documentos prati-camente cobrem toda a vida intelectual de Pessoa dando-nos testemunhos das inquietaccedilotildees que o motivaram a formular e a desenvolver sua poeacutetica No prefaacutecio que escrevem a esse volume quando buscam introduzir o leitor no universo da pro-duccedilatildeo pessoana os organizadores de Teoria da heteroniacutemia re-correm a um exemplo cuja fonte seria o psiquiatra Ronald Laing e que teria sido citado por Eduardo Prado Coelho em um estudo que dedicou a Pessoa Trata-se de uma crianccedila que brinca com certo nuacutemero de cadeiras

ldquoCada cadeira tinha por funccedilatildeo desencadear um ima-ginaacuterio especiacutefico na primeira ela [a crianccedila] tornava-se um cow-boy do Oeste americano na segunda convertia-se num gangster de Chicago na terceira era um chinecircs negociante que atravessava a Aacutesia na quarta um pirata dos mares do Sul segundo o modelo de Sandokan e na uacuteltima cadeira voltava a ser a crianccedila ajuizada que sempre havia sido e que tinha que fazer os trabalhos da escolardquo1

Como o menino e suas cadeiras o poeta portuguecircs tem uma obra muacuteltipla constituiacuteda de vaacuterias personas literaacuterias ou personagens dos quais por vezes o proacuteprio nome Fernando Pessoa poderia ser visto como sendo mais um deles mais uma das ldquocadeirasrdquo agraves quais recorre quando desenvolve sua obra Em carta a Joatildeo Caspar Simotildees de 28 de julho de 1932 o poeta ldquoexplicita sua intenccedilatildeo final toda a obra heterocircnima eacute para ser publicada sob o seu proacuteprio nome Fernando Pessoa sem ne-nhuma espeacutecie de hesitaccedilatildeordquo2 Se aqui o nome Fernando Pes-soa eacute visto como aquele que unificaria e para o qual culminaria todo o processo que eacute a proacutepria dinacircmica da criaccedilatildeo heteroniacute-1 Teoria da heteroniacutemia p16 apud COELHO EP ldquoO Viajante do In-versordquo ColoacutequioLetras 96 marccedilo-abril de 1987 p462 Teoria da heteroniacutemia p18

Luiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

Professor de filosofia pela Universidade Federal deSatildeo Carlos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

198

mica um nome que resume e abrange os demais em outros momentos ele natildeo parece ser mais que uma das assinaturas empregadas pelo poeta tais como as de Caeiro Aacutelvaro de Cam-pos Ricardo Reis Alexandre Search Antoacutenio Mora Bernardo Soares etc Assim na medida em que eacute visto como apenas mais um nome usado pelo autor Fernando Pessoa estaria submetido a mesma loacutegica que rege a produccedilatildeo e desenvolvimento dos outros nomes que aparecem na obra do poeta De certo ponto de vista ele pode mesmo ser considerado como sendo o menos real de todos os personagens do poeta Quando tomado como uma espeacutecie de veiacuteculo meio pelo qual os outros nomes sur-gem se exprimem e se reuacutenem em sua obra Fernando Pessoa poderia ser visto como o menos coeso o mais variaacutevel dos seus personagens como afirma o proacuteprio poeta ao falar de si mesmo ldquoSou poreacutem menos real que os outros menos uno menos pes-soal eminentemente influenciaacutevel por todos elesrdquo3

O que aqui estaria em jogo dizem os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ao fazer menccedilatildeo a leitura de Joseacute Gil es-tudioso da obra pessoana seria uma outra concepccedilatildeo de sub-jetividade possibilitada pelo proacuteprio movimento no qual surgem os heterocircnimos um ldquosujeito de tipo novo que consistiria no proacute-prio intervalo entre os sujeitos que a escrita heteroniacutemica potildee em cenardquo4 Desse modo a escrita heteroniacutemica pressuporia um agente produtor ou autor que tivesse sempre de guardar algo de indistinto ou despersonalizado na medida mesma em que ele deve estar sempre aqueacutem ou aleacutem dos personagens que forma ou assume Ao menos em um primeiro momento para ser aque-le que daacute ocasiatildeo para que surjam todos esses personagens o autor natildeo poderia ser nenhum deles em particular Por isso quando assim considerado a autoria e com ela a subjetivida-de do autor passaria a ocupar uma ldquosituaccedilatildeo intervalarrdquo expli-cam-nos os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ndash o autor sempre estaria no espaccedilo entre o personagem que acabou de apresentar ou assumir e aquele que estaacute prestes a expor ou a encarnar Assim a autoria passa a assemelhar-se a um espaccedilo vazio se por isso entendermos algo desprovido de forma defini-da ou mesmo amorfo termo usado pelo proacuteprio Pessoa quando descreve a ldquolinha fluida de minha personalidade amorfardquo5 Tal passagem nos parece interessante justamente por conjugar a ausecircncia de forma a um movimento que eacute o da escrita o escri-tor acaba por representar um papel no interior do processo de escrita mas a condiccedilatildeo de sua arte eacute que ele seja um tipo de personagem despersonalizado que seja antes um fluxo e que para assumir diversas personas ele mesmo natildeo possa ser ne-nhuma em especial Desse tipo de relaccedilatildeo complexa que sua poeacutetica exigiria nosso autor parece bastante consciente quan-do por exemplo afirma que ele eacute ldquoindividuado por uma suma 3 Teoria da heteroniacutemia p2314 Teoria da heteroniacutemia p13 grifo nosso5 Teoria da heteroniacutemia p 160 Texto 31 provavelmente de 1915

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

199

de natildeondasheus sintetizados num eu posticcedilordquo6 Neste processo a necessidade de formar e depois unificar os diversos natildeo-eus eacute tatildeo forte quanto a consciecircncia de que tal unificaccedilatildeo se faz no interior da divisatildeo e que aqui paradoxalmente o indiviacuteduo ape-nas poderaacute se apresentar como sendo divisiacutevel ao infinito ele formaraacute outros natildeo-eus para unificaacute-los sob um novo eu posticcedilo que em seguida daraacute continuidade ao processo e originaraacute ou-tros natildeo-eus e assim por diante Designaria o nome Fernando Pessoa esse eu posticcedilo que se unifica e se divide a cada mo-mento de sua obra Como vimos em certo sentido podemos pensar que se trata de um nome privilegiado frente aos demais (corresponderia agrave assinatura do autor distinta da de seus per-sonagens como a de Caeiro Campos ou Reis) mas por outro lado ele ainda pode ser visto como sendo apenas mais um dos personagens soacute mais uma ldquocadeirardquo entre as muitas que o poe-ta fabrica talvez a mais irreal de todas como nos dizia Pessoa em trecho acima citado Assim como o garoto do exemplo que encontra a cadeira na qual volta a ser o menino que era antes de iniciar a brincadeira Pessoa teria esse momento em que se-ria ele mesmo mas esse ele mesmo jaacute natildeo existe fora de um universo em que os seus outros eus tambeacutem existem Neste instante o eu jaacute estaacute em uma situaccedilatildeo em que ele soacute eacute na medi-da em que eacute muitos em que eacute dois para falar como Pessoa em um poema que tambeacutem se deteacutem na ideia de uma brincadeira infantil

Brincava a crianccedilaCom um carro de bois Sentiu-se brincandoE disse Eu sou dois

Haacute um a brincar E outro a saberUm vecirc-me a brincarE outro vecirc-me a ver7

Nesse sentido o eu passaria a ser mais um persona-gem uma vez que se mostra tal como um deles em que se relaciona com os demais e em que aparece no mesmo jogo ou sob a mesma loacutegica8 que rege o surgimento dos outros o eu que primeiramente poderia ser visto como o produtor do proces-so da brincadeira no caso das crianccedilas passa agora a inte-grar a proacutepria criaccedilatildeo como se o autor no processo mesmo de autoria fosse levado a criar em algum momento o seu lugar o

6 Teoria da heteroniacutemia p 150 Texto 26 provavelmente de 19157 Teoria da heteroniacutemia Poema 6 de 5121927 p3378 Vale lembrar que ldquoloacutegicardquo eacute um termo usado pelo proacuteprio Pessoa para designar uma forma de proceder ou certo modo de conduccedilatildeo no de-senvolvimento de algo de um modo de escrever ou criar por exemplo (Ver Teoria da heteroniacutemia p129 ou p142)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

200

seu espaccedilo ou o seu papel exatamente como criara para cada um de seus personagens Sob tal perspectiva toda criaccedilatildeo de personagens todo o nomear feito no interior da loacutegica da hete-roniacutemia seria tambeacutem algo como um ldquoheteronimiarrdquo com per-datildeo da expressatildeo isto eacute dar um nome pressuporia levar em conta todos os outros nomes com os quais esse primeiro se relaciona e a partir dos quais o seu proacuteprio nome ganha signifi-cado Nesse sentido a capacidade de formar um personagem seria tambeacutem aquela de formar vaacuterios isto eacute os seus vaacuterios os seus natildeo-eus os outros com os quais cada personagem se relaciona no interior dessa loacutegica criativa talvez algo que com alguma liberdade pudeacutessemos chamar de os seus natildeo-nomes proacuteprios todos aqueles nomes que natildeo satildeo o do personagem ou da persona literaacuteria mas que estatildeo a ele ligados e por isso ainda lhe seriam proacuteprios Posto assim em meio ao processo de criaccedilatildeo heteroniacutemica natildeo acabaria por receber o nome Fernan-do Pessoa algo que o aproxima da condiccedilatildeo de um heterocircnimo justamente quando o vemos como o autor de uma obra que estaacute plena de personagens que satildeo eles tambeacutem autores9 Segundo o criteacuterio adotado pelos organizadores de Teoria da heteroniacutemia antes de tudo um heterocircnimo se caracterizaria por ser um escritor por ter redigido um livro um ensaio um poema ou ter o projeto de fazecirc-lo Satildeo entatildeo personagens ativos eles mesmos criadores e sob essa perspectiva muito proacuteximos da atividade daquele que os forjou o proacuteprio Pessoa

Termo que teria sido cunhado pelo poeta portuguecircs por volta de 1928 para designar um modo de produccedilatildeo artiacutestico que o acompanhava desde os cinco anos de idade quando teria criado o Chevalier de Pas10 heterocircnimo jaacute traz em sua letra a alteridade sem a qual ele natildeo se define e natildeo se individua Eacute nesse sentido que malgrado seus traccedilos proacuteprios seu estilo ca-racteriacutestico e tudo o mais que o distingue e o torna algueacutem uacutenico e particular Caeiro (na medida em que eacute um heterocircnimo e como todo heterocircnimo) pode tambeacutem ser visto como um ser plural uma vez que o seu nome jaacute pressuporia um universo de outros nomes com os quais ele se liga ou em direccedilatildeo aos quais ele se estende Sua obra como sua assinatura iria aleacutem dela mesma e se completaria naquela de seus seguidores como Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antoacutenio Mora Tal conviacutevio ou relaccedilatildeo torna cada um desses heterocircnimos tatildeo individuais fechados e acabados em si mesmos quanto dependentes desses seus natildeo-eus ndash esses seus outros a ele aparentados ou apropriados

9 Sem aqui querer entrar nos meandros das questotildees e das distinccedilotildees que separam o que em Pessoa chama-se de ortocircnimo semi-heterocircnimo e heterocircnimo propriamente dito buscamos unicamente centrar-nos em um processo ou loacutegica de criaccedilatildeo pela qual o poeta forja seus personagens ou autores tal como sugere o volume Teoria da heteroniacutemia ao reunir variados textos sob a rubrica maior da heteroniacutemia10 Os organizadores de Teoria da heteroniacutemia o consideram como sen-do o primeiro dos heterocircnimos de uma lista de mais de cem criados por Pes-soa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

201

Prova disso seriam os textos que Ricardo Reis Aacutelvaro de Cam-pos e Thomas Crosse escreveram sobre Caeiro momentos em que se analisa a obra do mestre em que se descreve seu modo de vida e por vezes lhe datildeo a palavra e o fazem falar como o faz Aacutelvaro de Campos ao relatar diaacutelogos que teve com Caeiro11 O mesmo poderia ser notado em relaccedilatildeo agraves transformaccedilotildees modificaccedilotildees e intercacircmbios que ocorrem entre os heterocircnimos pelos quais Alexander Search talvez seja tambeacutem Ceaser Seek ou quando Vicente Guedes ldquocede lugar (e o Livro do desassos-sego) a Bernardo Soaresrdquo12 ou ainda quando pensamos no viacuten-culo que se estabelece entre o mesmo Bernardo Soares e o seu livro e a obra de outro heterocircnimo o Baratildeo de Teive Nesse mo-vimento de criaccedilatildeo que a criacutetica chamou de heteroniacutemico13 tudo leva a crer que quanto melhor e mais acabada estiver a com-posiccedilatildeo de um heterocircnimo mais ela indicaraacute ou pressuporaacute os desdobramentos em direccedilatildeo agrave alteridade que ele o heterocircnimo jaacute compreenderia em seu interior como sendo o exterior que lhe eacute proacuteprio o seu universo Ele traria entatildeo consigo uma exterio-ridade (que eacute tambeacutem o seu outro sua alteridade) que natildeo lhe seria exata e completamente estranha ou alheia mas que a ele ainda guardaria proximidade Entatildeo talvez seja por ser tatildeo bem caracterizado por ter um estilo e personalidade tatildeo marcados que Caeiro possa tambeacutem explicitar com tanta eficaacutecia a ordem do universo que o ladeia e deixar claro o que Pessoa chama de ldquonatureza dramaacutetica das minhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo14 Eacute sobretudo a partir da relaccedilatildeo entre Caeiro Campos e Reis que se poderia compreender a criaccedilatildeo heteroniacutemica como dra-maacutetica e Pessoa o criador passaria ser um poeta dramaacutetico como ele mesmo nos diz15 ldquoCriarrdquo escreve Pessoa ldquoeacute substituir a si proacuteprio () Que cada um seja muitosrdquo16 Ou entatildeo ldquoPara criar destruiacute-me Tanto me exteriorizei de mim que dentro de mim natildeo existe senatildeo exteriormente Sou a cena nua onde pas-sam vaacuterios atores representando vaacuterias peccedilasrdquo17

Toda criaccedilatildeo demandaria um sair de si que por sua vez acaba por dar origem a uma comunidade ou antes a uma cena ou espaccedilo em que atuam ou podem atuar diversos persona-

11 Teoria da heteroniacutemia Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro p31512 Teoria da heteroniacutemia p3113 Vale lembrar que Pessoa cria apenas heterocircnimo que por vezes aparece descreve o seu ato de compor por exemplo ldquominhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo em um trecho que citaremos a seguir Heteroniacutemico ou hete-roniacutemia satildeo termos cunhados pela criacutetica pessoana Ver Teoria da heteroniacute-mia p11114 Teoria da heteroniacutemia texto 69 p230 provavelmente de 192815 ldquoO ponto central da minha personalidade como artista eacute sou um poeta dramaacutetico tenho continuamente em tudo quanto escrevo a exalta-ccedilatildeo iacutentima do poeta e a despersonalizaccedilatildeo do dramaturgo Voo outro ndash eis tudordquo afirma Pessoa Teoria da heteroniacutemia Carta a Joatildeo Gaspar Simotildees 11121931 p25316 Teoria da heteroniacutemia texto 50 p19817 Teoria da heteroniacutemia texto 57 p210 grifo nosso

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

202

gens um tipo de palco no qual a individualidade surge ao se relacionar com os seus proacuteprios natildeo-eus A criaccedilatildeo em geral e a poeacutetica em particular dependeriam do estabelecimento desta cena ou teatro como nos explica Pessoa em uma passagem em que se faz menccedilatildeo a uma distinccedilatildeo aristoteacutelica

ldquoHaacute duas feiccedilotildees literaacuterias ndash a eacutepica e dramaacutetica O lirismo eacute a incapacidade comovida de ter qualquer delas O que eacute ser liacuterico Eacute cantar as emoccedilotildees que se tecircm Ora cantar as emoccedilotildees que se tecircm faz-se ateacute sem cantar O que custa eacute cantar as emoccedilotildees que se natildeo tecircm Sentir profundamente o que se natildeo sente eacute a flacircmula de almirante da inspiraccedilatildeo O poeta dramaacutetico faz isto diretamente o poeta eacutepico faacute-lo in-diretamente sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela isto eacute sentindo exatamente aquele elemento da obra de que natildeo pode haver emoccedilatildeo nenhuma pessoal porque eacute abstrato e por isso impessoal Fomos esboccediladamente eacutepicos Seremos inviolavelmente dramaacuteticos Fomos liacutericos quando natildeo fomos nadardquo18

Anos mais tarde provavelmente em 1932 Pessoa volta ao tema agora explicitando a fonte aristoteacutelica da distinccedilatildeo com a qual trabalha para ir aleacutem dela e chamar a atenccedilatildeo para o que aqui lhe surge como sendo o mais importante a destacar a saber a passagem de uma poesia liacuterica para uma poesia dra-maacutetica

ldquoDividiu Aristoacuteteles a poesia em liacuterica elegiacuteaca eacutepica e dramaacutetica Como todas as classificaccedilotildees bem pensadas eacute esta uacutetil e clara como todas as classificaccedilotildees eacute falsa Os gecirc-neros natildeo se separam com tanta facilidade iacutentima e se ana-lisarmos bem aquilo de que se compotildeem verificaremos que da poesia liacuterica agrave dramaacutetica haacute uma gradaccedilatildeo contiacutenuardquo19

Para Pessoa natildeo se trata mais de determinar com pre-cisatildeo cada um dos gecircneros literaacuterios elencados mas antes en-tender sua correspondecircncia ou continuidade Ateacute mesmo a in-dividualidade ou as caracteriacutesticas dos gecircneros parecem aqui demandar a ideia de uma multiplicidade a eles vinculada os gecircneros satildeo pensados em relaccedilatildeo aos outros gecircneros O poeta passa entatildeo a mostrar que a gradaccedilatildeo que iria da liacuterica ao dra-ma eacute feita por uma ldquoescala de despersonalizaccedilatildeordquo20 pela qual o poeta se tornaria cada vez mais um outro cada vez menos ele mesmo se por ele aqui entendermos o cantor de suas proacuteprias emoccedilotildees Assim o drama caracterizar-se-ia pela despersonali-zaccedilatildeo daquele que cria pela possibilidade de dar origem a ou-

18 Teoria da heteroniacutemia texto 61 ldquoEntrevista agrave Revista Portuguesardquo 13 de outubro de 1923 p22119 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p268 provavelmente de 193220 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 1932

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

203

tros personagens de inventar para si mesmo outros autores e sentir intensamente o que eles sentiriam O poeta dramaacutetico jaacute natildeo pode entatildeo sentir como noacutes comumente fazemos pois o sentimento que revela em sua obra eacute o do outro eacute o do persona-gem portanto um sentimento fruto da ficccedilatildeo Por esse motivo embora na forma um poema possa se parecer com aquela em que comumente se apresenta a liacuterica ele passa a ser dramaacutetico quando atinge essa niacutevel de despersonalizaccedilatildeo Se explica-nos Pessoa Shakespeare retirasse Hamlet da forma como aparece no ceacutelebre poema dramaacutetico que leva o seu nome e fizesse com esse mesmo personagem uma espeacutecie de monoacutelogo ele natildeo perderia sua carga dramaacutetica seria apenas um ldquodrama de uma soacute personagemrdquo21 A ideia de drama aqui natildeo se restringe entatildeo agrave estrutura feita por diaacutelogos e falas como estamos acostuma-dos a ver nos textos que se prestam agrave encenaccedilatildeo teatral Para Pessoa a noccedilatildeo de poesia dramaacutetica alarga-se e eacute antes de-terminada pelo distanciamento do poeta frente ao personagem ou ao discurso que apresenta O poeta aqui daacute a palavra ao personagem e nesse sentido todo personagem eacute ele mesmo o autor de sua fala possuidor de sua proacutepria assinatura Seria exatamente esse procedimento que estaria operando na com-posiccedilatildeo dos heterocircnimos como nos explica Pessoa a propoacutesito daquele que talvez seja o mais conhecido dos autores por ele inventados Caeiro

ldquoAlberto Caeiro poreacutem como eu o concebi eacute assim assim tem pois ele que escrever quer eu queira ou natildeo quer eu pense como ele ou natildeordquo22

No prefaacutecio de Teoria da heteroniacutemia os organizado-res do volume ainda nos lembram que poderiacuteamos reconhecer elementos desta dramaticidade aqui defendida por Pessoa em autores como Keats Browning Wordsworth e Novalis ldquoTudo o que se passa numa mente humana de algum modo anaacutelogo se passou jaacute em toda mente humanardquo23 reconhece o proacuteprio autor E no entanto jaacute eacute impossiacutevel natildeo admitir a dimensatildeo e o modo original com que a obra do poeta portuguecircs trata o tema rela-cionando-o com uma de suas caracteriacutesticas mais peculiares e marcantes a dinacircmica da produccedilatildeo heteroniacutemica Desta origi-nalidade os textos que compotildeem Teoria da heteroniacutemia datildeo--nos muitas provas

21 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 193222 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p270 provavelmente de 193223 Teoria da heteroniacutemia texto 65 p225 provavelmente de 1925

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

204

Resenha do livro STAROBINSKI Jean A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2014

A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire

Com uma produccedilatildeo criacutetica heterogecircnea que inclui a anaacute-lise da obra de filoacutesofos como Rousseau e Montesquieu Jean Starobinski eacute um dos mais respeitaacuteveis criacuteticos literaacuterios da atu-alidade Em A melancolia diante do espelho esse meacutedico de formaccedilatildeo analisa os desdobramentos do tema da melancolia nos poemas de Baudelaire

No primeiro capiacutetulo o leitor eacute informado de que embo-ra consciente da claacutessica interpretaccedilatildeo meacutedica que associa a melancolia ldquoa ofuscaccedilatildeo do ceacuterebro pelardquo bile negra Baudelaire se apropria do tema de forma mais proacutexima agraves significaccedilotildees do seu tempo Aleacutem disso para evitar o uso excessivo do termo o poeta de ldquoAs flores do malrdquo agraves vezes recorre agrave expressatildeo sple-en Para tanto o spleen vai assumir nos estudos de Walter Ben-jamin sobre o poeta da modernidade uma configuraccedilatildeo impor-tante junto com o conceito de ideal ele sintetizaria o cerne da vivecircncia moderna caracterizada pela impossibilidade de trans-missatildeo dos valores ligados agrave tradiccedilatildeo Segundo Starobinski a interpretaccedilatildeo benjaminiana que entrevecirc na melancolia um sin-toma da natildeo assimilaccedilatildeo da experiecircncia eacute uma perspectiva de leitura interessante

Em ldquoIronia e reflexatildeordquo segundo capiacutetulo nota-se que a representaccedilatildeo da melancolia por meio da imagem refletida no espelho mote principal dos estudos de Starobinski comeccedila a ser engendrada em ldquoO Espelhordquo A conexatildeo entre a melanco-lia e o espelho estabelecida nesse poema em prosa publica-do pela primeira vez em 1864 eacute fruto do descontentamento de Baudelaire com o Golpe poliacutetico de Napoleatildeo II que suplantou o governo revolucionaacuterio de 1848 Eacute possiacutevel observar em ldquoO Es-pelhordquo o lamento pela natildeo efetivaccedilatildeo dos ideais emancipatoacuterios da Revoluccedilatildeo de 1848

Um homme eacutepouvantable entre et se regarde dans la glacelaquoPourquoi vous regardez- vous au miroir puis que vous ne pouvez vous y voir qursquoavec deacuteplaisirraquoLrsquohomme eacutepouvantable me reacutepond laquomdashMonsieur drsquoapregraves les immortelsprincipes de 89 tous les hommes sont eacutegaux en droits donc je possegravede le droit deme mirer avec plaisir ou deacuteplaisir cela ne regarde que ma

Franceila de SouzaRodrigues

Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

205

conscienceraquoAu nom du bom sens jrsquoavais sans doute raison mais au point de vue de la loiil nrsquoavait past ort1

Outra forma de representaccedilatildeo da melancolia espelha-da pode ser observada em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo Segundo Starobinski esse poema em prosa faria parte de um epiacutelogo inconcluso para ldquoAs Flores do malrdquo A imagem do melancoacutelico diante do espelho exibida em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo evidencia uma interioridade ferida Em uma anaacutelise atenta do poema eacute possiacutevel notar a presenccedila da dualidade sadomasoquista Ela seria intriacutenseca agrave melancolia Diante dessa questatildeo Starobinski observa que a interpretaccedilatildeo corrente que associa o masoquis-mo ao gozo conquistado por meio da inflicccedilatildeo de dor estaacute dis-tante da compreensatildeo freudiana para quem o masoquismo tem uma precedecircncia saacutedica Ou seja de acordo com Freud a dor dirigida a si mesmo na verdade eacute fruto de um tormento dirigido a outrem e que recalcado retorna para o ldquoeurdquo como num espelho

Je suis la plaie et le couteauJe sui la soufflet et la joueJe suis les membres et la roueEt la victime et le bourreau2

No terceiro capiacutetulo dedicado agraves figuras inclinadas Sta-robinski analisa o poema ldquoLe Cygnerdquo exemplo mais bem acaba-do de poesia sentimental Nesse momento do texto percebe-se que apoacutes estudar a longa tradiccedilatildeo iconoloacutegica e literaacuteria sobre a melancolia o autor conclui que a exaltaccedilatildeo e o abatimento satildeo duas caracteriacutesticas inerentes ao comportamento do melancoacute-lico A figura inclinada apoiando a cabeccedila numa das matildeos eacute a representaccedilatildeo mais frequente dessa dualidade que pode dar ensejo tanto a tristeza esteacuteril quanto a plenitude do saber

A divisatildeo de ldquoLe Cygnerdquo entre duas figuras icocircnicas o Androcircmaca e o cisne produz um efeito de espelhamento que reforccedila o peso inerente agrave figura inclinada Enquanto o cisne se caracteriza pela loucura e pela posse mon grand cygne o An-drocircmaca remete ao olhar pesaroso em busca do incorpoacutereo e do efecircmero ou ainda a proacutepria imagem refletida no espelho

No entanto uma anaacutelise atenta dos poemas com me-lancolias espelhadas revela o desejo de Baudelaire curar-se do estupor melancoacutelico Na anaacutelise de Starobinski o conceito de ironia desenvolvido pelos romacircnticos eacute fundamental para esse ponto de virada que possibilita a Baudelaire substituir os traccedilos passivos e derrotados do melancoacutelico pela agressividade Sen-1 BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 892 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p108 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

206

do assim a consciecircncia reflexiva possibilita ao melancoacutelico que se encontra dissonante da muacutesica do mundo refletir sobre a perda da totalidade levando-o a um estado de humor capaz de transformar o masoquismo em potecircncia afirmativa condutora do autoconhecimento socraacutetico

Por outro lado como ressalta Starobinski a ironia natildeo oferece uma possibilidade de emancipaccedilatildeo da melancolia Pelo contraacuterio ela eacute consequecircncia dessa desordem O homem me-lancoacutelico estaria condenado ao riso eterno Fenocircmeno que pode ser notado neste excerto de ldquoLe Cygnerdquo

Paris change mais rien dans ma meacutelancolieNrsquoa bougeacutepalais neufs eacutechafaudages blocsVieux faubougs tout pour moi devient alleacutegorieEt mecircs chers souvenirs sont plus lourds que des rocs3

Em ldquoEspelhos derradeirosrdquo uacuteltimo capiacutetulo a figura me-lancoacutelica pesarosa daacute lugar agrave imagem da velha senhora que diante do espelho percebe a passagem do tempo sem perder a altivez Eacute como se estiveacutessemos diante de uma imagem refleti-da no espelho livre da imagem do peso inerente a um ldquoeurdquo que soacute pode brilhar no vazio e na natildeo existecircncia A partir da expres-satildeo da velha senhora diante do espelho eacute possiacutevel refletir sobre a vida que mesmo contraditoacuteria eacute o uacutenico lugar de realizaccedilatildeo das potencialidades humanas Eacute na contradiccedilatildeo inerente agrave rea-lidade que a vida se desdobra Eacute nela que nos realizamos como sujeito e que podemos ser felizes Talvez seja essa a principal liccedilatildeo de Baudelaire

BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 89

_______ Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles__les_fleurs_du_malpdf

STAROBINSKI J A melancolia diante do espelho Trad Samuel Titan Jr Satildeo Paulo Editora 34 2014

3 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

207

Traduccedilatildeo

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y Comentaacuterio

La idea de agregar comentarios a algunos de los poemas de esta antologiacutea se debe al propio Rilke quien le pidioacute a su editor que intercalara paacuteginas en blanco en un ejemplar de las Elegiacuteas de Duino y de los Sonetos a Orfeo para escribir en ellas sus explicaciones de los textos maacutes difiacuteciles1 Unas pocas aclara-ciones se encuentran al final de los Sonetos Los comentarios que aquiacute ofrecemos no pretenden sustituir a los que habriacutea po-dido redactar el propio autor Pero obedecen a una indicacioacuten del poeta y con eso adquieren en alguna medida legitimidad En ellos procuramos justificar tambieacuten nuestra traduccioacuten de al-gunos pasajes La seleccioacuten de los poemas aquiacute presentados se debe al azar Son meros ejercicios de traduccioacuten no esta-ban pensados para ser publicados y seguramente deberaacuten ser corregidos muchas veces Esperamos no haber dantildeado dema-siado los poemas al traducirlos Hemos tomado los textos de varias ediciones Rainer Maria Rilke Gedichte Herausgegeben von Silvia Schlenstedt Leipzig Philipp Reclam jun 1979 Rilke Werke (seleccioacuten) Tres tomos Frankfurt Insel 1991 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Gedichte aus den Jahren 1906 bis 1926 Insel Verlag 3ra ed 1978 En cada poema indicamos de manera abreviada el lugar donde puede encontraacuterselo

Archaiumlscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhoumlrtes Hauptdarin die Augenaumlpfel reiften Abersein Torso gluumlht noch wie en Kandelaberin dem sein Schauen nur zuruumlckgeschraubt

sich haumllt und glaumlnzt Sonst koumlnnte nicht der Bugder Brust dich blenden und im leisen Drehender Lenden koumlnnte nicht ein Laumlcheln gehenzu jener Mitte die die Zeugung trug

Sonst stuumlnde dieser Stein entstellt und kurzunter der Schultern durchsichtigem Sturzund flimmerte nicht so wie Raubtierfelle

1 Seguacuten J-F Angelloz ldquoIntroductionrdquo en Rilke Duineser Elegien Die Sonette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943 p 32

Mario Caimi

Professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Uni-versidade de Buenos Aires Doutor em Filosofia pela Uni-versidade de Mainz Alema-nha

mcaimi3yahoocom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

208

und braumlche nicht aus allen seinen Raumlndernaus wie ein Stern denn da ist keine Stelledie dich nicht sieht Du musst dein Leben aumlndern2

No conocimos su cabeza inimaginableen la que estaban los ojos Pero su torso arde todaviacutea como un candelabroen el que su mirada soacutelo retirada hacia adentro

se conserva y brilla Si no fuera asiacute la proadel pecho no podriacutea deslumbrarte ni podriacutea por la suave torsioacuten de la cintura llegar una sonrisahasta aquel punto medio capaz de engendrar

Si no fuera asiacute esta piedra estariacutea mutilada y seriacutea brevebajo el dintel diaacutefano de los hombrosy no brillariacutea como la piel de un animal de presa

ni escapariacutea de todos sus liacutemites la lumbrecomo una estrella pues no hay alliacute ninguacuten lugarque no te vea Debes cambiar tu vida

Muchas de las palabras que aparecen en el texto estaacuten usa-das con sentidos poco frecuentes o con sentidos que soacutelo son posibles en los maacutergenes del campo semaacutentico de cada una de ellas (esto como justificacioacuten de la traduccioacuten un poco arbitraria que sigue) El original estaacute formado por endecasiacutelabos rimados Creo que el tema general del poema es la mirada del dios La mirada que perdida la cabeza se ha refugiado en el torso Al recogerse la mirada dentro del torso todo eacutel queda incandes-cente todo eacutel se transforma en mirada (ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo)

Probablemente sea significativo tambieacuten que se trate de un torso arcaico Eso lo coloca maacutes cerca del origen y por eso maacutes cerca del dios mismo Como si fuera una copia del natural y no una copia de copia Esto le da un caraacutecter divino a todo el objeto Eso parece estar presente tambieacuten en la frase ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo

La mirada del dios tiene la propiedad de conocer cada cosa tal como es en siacute misma Por eso quien recibe esa mirada (quien la percibe cuando ella se transluce desde el interior del torso) siente que toda su vida con todos sus secretos ha quedado expuesta y con ello han quedado expuestas todas sus debi-lidades De ahiacute probablemente la frase final ldquoDebes cambiar tu vidardquo El cambio a que aquiacute se hace referencia no es segu-ramente un cambio banal cualquiera sino que debe de ser el cambio que resulta de poner toda la vida ante la mirada de un dios

2 Rainer Maria Rilke Gedichte p 95 Der neuen Gedichte anderer Teil en Rilke Werke Frankfurt 1991 tomo 1 p 313

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

209

Abschied

Wie hab ich das gefuumlhlt was Abschied heisst Wie weiss ichs noch ein dunkles unverwundnesgrausames Etwas das ein Schoumlnverbundnesnoch einmal zeigt und hinhaumllt und zerreisst

Wie war ich ohne Wehr dem zuzuschauendas da es mich mich rufend gehen liesszuruumlckblieb so als waumlrens alle Frauenund dennoch klein und weiss und nichts als dies

Ein Winken schon nicht mehr auf mich bezogenein leise Weiterwinkendes mdash schon kaumerklaumlrbar mehr vielleicht ein Pflaumenbaumvon dem ein Kuckuck hastig abgeflogen3

Cuaacutento sentiacute lo que es la despedidaQueacute bien lo seacute algo oscuro algo invulnerabley cruel que muestra otra vez lo amadoy lo ofrece otra vez y lo desgarra

Queacute inerme estaba yo mientras veiacuteaaquello que llamaacutendome me dejaba iry se quedaba Como si aquello fuera todas las mujeresY sin embargo era algo pequentildeo y blanco [y no era nada maacutes que esto

El agitarse de un pantildeuelo que ya no se referiacutea a miacuteUn suave agitarse del pantildeuelo que seguiacutea ya apenasreconocible quizaacute un ciruelodel que habiacutea salido volando de suacutebito un cuclillo

No fue posible traducir todas las palabras Se trata supon-go de formaciones expresivas que no tienen equivalente en espantildeol En especial ldquolo amadordquo del verso 3 es traduccioacuten apro-ximada de ldquoein Schoumlnverbundnesrdquo ldquolo bellamente aliadordquo ldquolo aliado en la bellezardquo El Adioacutes (la despedida) se muestra cosi-ficado aquiacute como algo (escrito con mayuacutescula en el original ldquoAlgordquo para subrayarlo) capaz de ser sujeto de acciones como mostrar ofrecer desgarrar El Adioacutes se presenta primero en el primer cuarteto de una manera general casi como si se pre-sentara una definicioacuten de eacutel De ahiacute el tiempo presente de los verbos con los que se lo describe

En el segundo cuarteto los verbos estaacuten en tiempo verbal pre-teacuterito y sirven para relatar una experiencia concreta (que fue de donde se extrajo probablemente el conocimiento que permitioacute

3 Neue Gedichte (1907) En Rilke Werke Frankfurt Insel 1991 p 273

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

210

la definicioacuten general de la estrofa primera) En los dos uacuteltimos versos el pantildeuelo que se agita en el adioacutes es ya indistinguibleYa no se sabe si es un pantildeuelo o si son flores de un aacuterbol movidas por el suacutebito vuelo de un paacutejaro Asiacute es como la memoria evoca algunas imaacutegenes que de tan remotas se han vuelto confusas El pantildeuelo y su adioacutes comienzan a perderse en el pasado

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Siehe wie klein dortsiehe die letzte Ortschaft der Worte und houmlheraber wie klein auch noch ein letztesGehoumlft von Gefuumlhl Erkennst dursquosAusgesetzt auf den Bergen des Herzens Steingrundunter den Haumlnden Hier bluumlht wohleiniges auf aus stummem Absturzbluumlht ein unwissendes Kraut singend hervorAber der Wissende Ach der zu wissen begannund schweigt nun ausgesetzt auf den Bergen des HerzensDa geht wohl heilen Bewusstseinsmanches umher manches gesicherte Bergtierwechselt und weilt Und der grosse geborgene Vogelkreist um der Gipfel reine Verweigerung mdash Aberungeborgen hier auf den Bergen des Herzens4

Expuesto sobre los montes del corazoacuten Mira queacute pequentildeo [allaacute

mira el uacuteltimo caseriacuteo de las palabras y maacutes arriba- pero queacute pequentildea tambieacuten - una uacuteltimagranja del sentimiento iquestAlcanzas a verlaExpuesto sobre los montes del corazoacuten Suelo de piedrabajo las manos Aquiacute tambieacuten brotaraacute seguramentealgo del abismo mudobrota cantando una hierba inocenteiquestPero el que sabe Ay el que comenzoacute a sabery ahora calla expuesto sobre los montes del corazoacutenPor ahiacute andaraacute quizaacute con la conciencia intactamaacutes de una cosa maacutes de un animal de la montantildea que estaacute seguro cambia y permanece Y el gran paacutejaro amparadoda vueltas en torno de la pura negacioacuten de las cumbres -

[Perodesamparado aquiacute sobre los montes del corazoacuten

Este poema parece un comentario y una prolongacioacuten de un texto de Goethe ldquoUumlber den Granitrdquo (ldquoSobre o Granitordquo)5 Alliacute Go-ethe ldquosentado en una alta y desnuda cumbrerdquo indica que el 4 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 895 Goethe J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

211

granito es el fundamento primero de la materia terrestre algo que no deriva de otra cosa ni del fuego ni del agua como las demaacutes rocas sino que sirve de principio del que las otras rocas derivan El granito es ldquoel fundamento de nuestra tierra sobre el cual se han formado todas las demaacutes montantildeasrdquo (ldquodie Grund-feste unserer Erde [] worauf sich alle uumlbrigen mannigfaltigen Gebirge hinaufgebildetrdquo) Forma dice Goethe ldquola entrantildea mis-ma de la tierrardquo (ldquoIn den innersten Eingeweiden der Erde ruht sie unerschuumlttertrdquo)

Los primeros cuatro versos son claros se dejan atraacutes las ca-sas de las palabras y uno queda como desnudo expuesto en lo que ya es puro corazoacuten sin palabras maacutes allaacute incluso de los sentimientos (quizaacute porque eacutestos todaviacutea pueden nombrarse) Este puro corazoacuten no es puro sentimentalismo sino algo que estaacute maacutes alto que los sentimientos Es algo que estaacute fundado en la roca viva (como lo dicen los versos quinto y sexto ldquoSuelo de piedra bajo las manosrdquo) Aquiacute se llega a lo que es fundamento uacuteltimo de todo lo demaacutes Es algo maacutes alto que las palabras e incluso maacutes alto que sentimiento Palabras y sentimiento des-cansan sin saberlo en esta roca viva

(Cf Goethe ldquoHier ruhst du unmittelbar auf einem Grunde der bis zu den tiefsten Orten der Erde hinreicht keine neuere Schicht keine aufgehaumlufte zusammengeschwemmte Truumlmmer haben sich zwischen dich und den festen Boden der Urwelt ge-legtrdquo Trad ldquoAquiacute descansas inmediatamente sobre un funda-mento que llega hasta los maacutes profundos lugares de la tierra ninguacuten estrato nuevo ninguna acumulacioacuten de escombros traiacute-dos por el agua se interponen entre tiacute y el firme suelo del mundo originariordquo)

Goethe niega toda vida a esta cumbre diese Gipfel haben ni-chts Lebendiges erzeugt [] sie sind vor allem Leben und uumlber alles Leben (ldquoEstas cumbres no han engendrado nada viviente [] son previas a toda vida y estaacuten por encima de toda vidardquo) En esto Rilke disiente de eacutel Aun alliacute en la roca viva y en el abismo mudo primordial brota una vida misteriosa Algo primi-tivo de una inocencia elemental Y lo primitivo lleva en siacute ale-griacutea (o al menos canto) ldquodel abismo mudo brota cantando una hierba inocenterdquo Para tener esa alegriacutea primitiva hay que ser inocente en el doble sentido de libre de pecado y de insciente o inconsciente La hierba estaacute afincada confiadamente en el abis-mo porque no es consciente de la profundidad de eacuteste ni del peligro A ella se contrapone ldquoel que saberdquo (que es lo contrario del inocente)

iquestQuieacuten o queacute es ldquoel que saberdquo Es el que tiene conciencia el que puede contemplar y ver con conciencia el poeta mismo Tal vez esteacute representado por el ldquogran paacutejarordquo mencionado a continuacioacuten Este puede sobrevolarlo todo y seguir estando se-guro Pero eacutel mismo se vuelve inseguro o desamparado cuan-hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981 paacuteg 254 y siguientes

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

212

do alcanza esa altura maacutexima la de los montes del corazoacuten Alliacute queda eacutel tambieacuten expuesto Creo que tambieacuten nos ayuda aquiacute el texto de Goethe So einsam sage ich zu mir selber [] wird es dem Menschen zumute der nur den aumlltsten ersten tiefsten Gefuumlhlen der Wahrheit seine Seele eroumlffnen will [] Ich fuumlhle die ersten festesten Anfaumlnge unsers Daseins ich uumlberschaue die Welt ihre schrofferen und gelinderen Taumller und ihre fernen fruchtbaren Weiden meine Seele wird uumlber sich selbst und uumlber alles erhaben und sehnt sich nach dem naumlhern Himmel (ldquoAsiacute de solitario me digo a miacute mismo [] se siente el ser humano que quiere abrir su alma soacutelo a los maacutes antiguos primeros maacutes pro-fundos sentimientos de la verdad [] Siento los primeros y maacutes firmes fundamentos de nuestra existencia contemplo el mundo sus valles empinados o suaves y sus lejanas praderas feacutertiles mi alma se eleva sobre siacute misma y sobre todas las cosas y anhela el cielo cercanordquo)

Lo extraordinario lo verdaderamente novedoso es la trans-mutacioacuten que opera Rilke del fundamento graniacutetico en un mon-te de corazoacuten Ya el mismo Goethe pone en relacioacuten esta piedra duriacutesima e inmutable con el corazoacuten humano vulnerable y ver-saacutetil Precisamente esa oposicioacuten parece vincularlos ldquoIch fuumlrch-te den Vorwurf nicht daszlig es ein Geist des Widerspruches sein muumlsse der mich von Betrachtung und Schilderung des mens-chlichen Herzens des juumlngsten mannigfaltigsten beweglichs-ten veraumlnderlichsten erschuumltterlichsten Teiles der Schoumlpfung zu der Beobachtung des aumlltesten festesten tiefsten unerschuumlt-terlichsten Sohnes der Natur gefuumlhrt hat Denn man wird mir gerne zugeben daszlig alle natuumlrlichen Dinge in einem genauen Zusammenhange stehenrdquo (ldquoNo temo a la objecioacuten de que sea un espiacuteritu de contradiccioacuten el que me lleva de la consideracioacuten y descripcioacuten del corazoacuten humano la parte maacutes nueva maacutes muacutelti-ple maacutes moacutevil maacutes mudable y maacutes conmovible de la Creacioacuten a la observacioacuten de la criatura maacutes antigua maacutes soacutelida maacutes profunda y maacutes inconmovible de la naturaleza Pues se me con-cederaacute faacutecilmente que todas las cosas de la naturaleza estaacuten en una correspondencia exactardquo)

Pero Rilke no establece soacutelo una relacioacuten por contraste sino que opera una transmutacioacuten Si uno fuera capaz de entender el mecanismo de esa operacioacuten entenderiacutea lo que es la poesiacutea y lo que es el don poeacutetico Alliacute donde Goethe veiacutea con razoacuten una correspondencia de los opuestos da Rilke un paso maacutes y muestra que lo que verdaderamente constituye el fundamento uacuteltimo lo que estaacute maacutes allaacute de las palabras y de los sentimien-tos lo que es el principio del que todo deriva y que no deriva a su vez de otra cosa es el corazoacuten La montantildea de granito se ha convertido en el monte del corazoacuten y las relaciones del sujeto expuesto con el suelo primigenio que lo sostiene se mantienen las mismas tanto en el caso de estar sobre una montantildea en la que aflora el fundamento graniacutetico como en el caso de estar expuesto sobre un monte en el que aflora la fuente misma de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

213

la vida y de la sensibilidad Ahora se ve queacute es lo que haciacutea que aquel fundamento de granito fuera un fundamento (y no un simple suelo) era su analogiacutea con el verdadero fundamento la fuente de la vida que es el corazoacuten Habriacutea que trabajar maacutes en la interpretacioacuten para ver queacute es exactamente ese corazoacuten Uno piensa naturalmente en Pascal y sus razones del corazoacuten Y la evocacioacuten de Pascal no es desencaminada tambieacuten en eacutel se oponen el granito cognoscible con el esprit de geometrie y el corazoacuten cuyos principios son accesibles soacutelo con el esprit de finesse

Wir sind nur Mund

Wir sind nur Mund Wer singt das ferne Herzdas heil inmitten aller Dinge weiltSein grosser Schlag ist in uns eingeteiltin kleine Schlaumlge Und sein grosser Schmerzist wie sein grosser Jubel uns zu grossSo reissen wir uns immer wieder losund sind nur Mund Aber auf einmal bricht der grosse Herzschlag heimlich in uns einso dass wir schreinmdash und sind dann Wesen Wandlung und Gesicht6

Somos soacutelo boca iquestQuieacuten canta al corazoacuten lejanoque permanece intacto en medio de todas las cosasSu gran latido estaacute repartido entre nosotrosen latidos pequentildeos Y su gran dolory su gran juacutebilo son demasiado grandes para nosotrosPor eso nos soltamos [de eacutel] una y otra vezy somos soacutelo boca Pero a veces en secreto irrumpe en nosotros el gran latidoy entonces gritamosy entonces somos esencia mutacioacuten y rostro

Parece un eco o una reminiscencia de Spinoza en el centro de todas las cosas intocado por ellas y daacutendoles vida a todas estaacute el gran corazoacuten (lo que Spinoza llamariacutea la esencia actuosa de la substancia el Ser que es activo que ejerce su potencia infinita daacutendoles ser a infinitas cosas) La esencia en la que todo es estaacute repartida se expresa en el pequentildeo y limitado esfuerzo con el que cada cosa singular trata de perseverar en el ser Nosotros en nuestra pequentildeez (es decir cuando esta-mos separados de esa Esencia cuando nos hemos soltado o arrancado de ella y nos quedamos en nuestra singularidad) la expresamos la decimos somos soacutelo bocas que la nombran

Pero a veces percibimos que aunque seamos cosas sin-6 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens 1978 p 136

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

214

gulares y limitadas somos parte de aquel Ser uacutenico y divino Y entonces somos verdaderamente lo que somos modos y afec-ciones de la Substancia uacutenica Pero entonces gritamos porque lo inmenso se apodera de nosotros y nos volcamos hacia ello

Ach nicht getrennt sein

Ach nicht getrennt seinnicht durch so wenig Wandungausgeschlossen vom Sternen-MassInnres was istsWenn nicht gesteigerter Himmeldurchworfen mit Voumlgeln und tiefvon Winden der Heimkehr7

Oh no estar separadono estar excluiacutedo por una pared tan delgadade la medida de las estrellasLo interior iquestqueacute esSi no es el cielo ahondadosurcado de paacutejaros y profundode los vientos del retorno a casa

La pared delgada viene a ser probablemente la piel las pa-redes de la caja toraacutecica lo que separa el interior humano del espacio inmenso de las estrellas Y sin embargo esa pared in-significante es lo que hace posible que haya un interior iquestQueacute es el interior iquestQueacute es lo que queda separado lo que existe con-trapuesto al mundo externo contrapuesto al mundo inmenso de las estrellas Es algo significativo justo por esa contraposicioacuten como si fuese algo capaz de igualar al universo estelar o de ser-virle de contrapeso Despueacutes leiacute en el Brockhaus que Rilke ha-biacutea empleado en otras partes el concepto de Weltinnenraum que Eduardo Garciacutea Belsunce tradujo bien por ldquoespacio coacutesmi-co interiorrdquo Aquiacute en este poema eso parece ser un espacio que se opone al infinito espacio coacutesmico pero que se le opone como un igual Lo interior es tambieacuten cielo pero cielo maacutes hondo cielo ahondado Y no es cielo soacutelo astronoacutemico no es espacio soacutelo geomeacutetrico sino viviente surcado de paacutejaros

En este espacio interior hay sobre todo algo que no estaacute en el espacio de las estrellas la casa el retorno a casa No hay casa en el espacio de las estrellas Todo es igual en ese espa-cio un lugar es igual a otro cualquiera En cambio en el espacio humano en ese espacio interior hay un centro o por lo menos hay un lugar que es diferente de todos los otros la casa Es la casa de cada cual y por tanto es diferente para cada uno Sin embargo por diferentes que sean las diversas casas en todos los humanos estaacute ese lugar privilegiado esa especie de centro de la intimidad Eso es lo que le da al espacio interior cierta 7 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 172

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

215

superioridad cualitativa ante el espacio infinito externo (ante el espantoso ldquosilencio eterno del espacio infinitordquo de Pascal)

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist alles

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist allesGeschicklichkeit und laumlsslicher Gewinn mdasherst wenn du ploumltzlich Faumlnger wirst des Ballesden eine ewige Mit-Spielerindir zuwarf deiner Mitte in genaugekonntem Schwung in einem jener Boumlgenaus Gottes grossem Bruumlcken-Bauerst dann ist Fangen-Koumlnnen ein Vermoumlgen mdashnicht deines einer Welt Und wenn du garzuruumlckzuwerfen Kraft und Mut besaumlssest nein wunderbarer Mut und Kraft vergaumlssestund schon geworfen haumlttest (wie das Jahrdie Voumlgel wirft die Wandervogelschwaumlrmedie eine aumlltre einer jungen Waumlrme hinuumlbershleudert uumlber Meere mdash) erstin diesem Wagnis spielst du guumlltig mit Erleichterst dir den Wurf nicht mehr erschwerstdir ihn nicht mehr Aus deinen Haumlnden trittdas Meteor und rast in seine Raumlume8

Mientras atrapes lo que tuacute mismo has arrojado todo eshabilidad y ganancia faacutecilSoacutelo cuando de repente eres el que atrapa una pelotaque te arrojoacute que lanzoacute al medio de tiuna jugadora eternacon impulso exactamente logrado en uno de aquellos girosde los de Dios cuando construye sus grandes puentessoacutelo entonces la habilidad de atrapar es una facultadmdashno tuya sino de un mundomdash Y si llegaras a poseerla fuerza y el coraje de devolver el tirono maacutes maravilloso auacuten si olvidaras el coraje y la fuerzay ya hubieras lanzado (como el antildeolanza los paacutejaros las bandadas de paacutejaros migrantesque un calor maacutes viejo le lanza a otro maacutes jovenpor encima de los mares) soacutelo cuando tienes ese arrojoparticipas en el juego de manera vaacutelidaYa no te haces faacutecil el tiro ya no te lo haces difiacutecilDe tus manos sale el meteoroy corre veloz por sus espacios

Creo que se trata de una reflexioacuten sobre la creacioacuten litera-ria Como si dijera ldquomientras intentes expresar lo que estaacute en ti mientras soacutelo trates de expresar las ideas que se te ocurren todo seraacute comparativamente faacutecilrdquo Esa poesiacutea que soacutelo expresa

8 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 124

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

216

a su autor estaacute al servicio de eacuteste Con respecto a ella dijo una vez un escritor colombiano Fernando Vallejo que ldquola poesiacutea es uno de los males de nuestro tiempordquo Todos tenemos algo que podriacutea ser expresado pero que difiacutecilmente les interese a los lectores porque ellos a su vez tienen tambieacuten cosas propias para expresar cosas que aunque no las expresen les intere-san maacutes Porque a cada cual le interesa en primer lugar y muy justificadamente lo suyo

Pero hay una obra que no es mera expresioacuten del autor (si en ella hay tal expresioacuten del autor es soacutelo como un momento secundario y accesorio) Esa poesiacutea es ante todo respuesta a una solicitacioacuten o a un desafiacuteo de origen divino (a un enviacuteo de la ldquojugadora eternardquo) El autor es entonces soacutelo un momento un segmento de un arco inmenso de los que traza Dios en su disentildeo del mundo Y eso es maacutes maravilloso auacuten si la respues-ta la devolucioacuten del tiro no es premeditada sino que obedece ella tambieacuten a la ciega necesidad de la esencia del autor como una respuesta inevitable e impensada La obra sale del autor (en ese caso ideal) como salen del otontildeo las bandadas de paacuteja-ros migratorios El autor entonces participa de un juego divino Participa de manera vaacutelida en el inmenso juego (que en realidad exige fuerzas muy superiores a las de un individuo singular) El poema (ese poema asiacute nacido) es entonces un cuerpo celeste que por derecho propio (como un elemento maacutes del disentildeo di-vino del mundo) ldquocorre veloz por los espaciosrdquo Lo mismo que se aplica aquiacute a la creacioacuten literaria podriacutea aplicarse al pensa-miento filosoacutefico

Jetzt waumlre es Zeit

Jetzt waumlr es Zeit dass Goumltter traumlten ausbewohnten Dingen Und dass sie jede Wand in meinem Haus umschluumlgen Neue Seite Nur der Windden solches Blatt im Wenden wuumlrfe reichte hindie Luft wie eine Scholle umzuschaufeln ein neues Atemfeld Oh Goumltter GoumltterIhr Oftgekommnen Schlaumlfer in den Dingendie heiter aufstehn die sich an den Brunnendie wir vermuten Hals und Antlitz waschenund die ihr Ausgeruhtsein leicht hinzutunzu dem was voll scheint unserm vollen LebenNoch einmal sei es euer Morgen Goumltter Wir wiederholen Ihr allein seid UrsprungDie Welt steht auf mit euch und Anfang glaumlnztan allen Bruchstelln unseres Misslingens9

Ya seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitan

9 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 173

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

217

Y de que derribaran cada pared de mi casa Nueva paacutegina Ya soacutelo el viento que esa paacutegina levantariacutea al volversealcanzariacutea para dar vuelta el airecomo el arado remueve la tierraun nuevo campo de respiracioacuten iexclOh dioses diosesVosotros visitantes frecuentes que duermen en las cosasque se levantan alegres que en fuentesque nosotros sospechamos se lavan el cuello y el rostroy que con ligereza antildeaden su descanso renovadoa aquello que pareciacutea completo a nuestra vida plenaQue otra vez sea vuestra mantildeana diosesNosotros repetimos Soacutelo vosotros sois origenEl mundo se levanta con vosotros y el comienzo relumbraen todas las roturas de nuestros fracasos

Creo que lo que figura como versos primero y segundo es en realidad un solo verso de medida mucho mayor que los demaacutes ldquoYa seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitanrdquo Ese primer verso del poema expresa con su oleada riacutetmica arrebatadora precisamente el viento gigante del que se habla en los versos siguientes Se anhela un viento de cambio que renueve todo Y esa inmensa renovacioacuten no seriacutea maacutes que una consecuencia del despertar de los dioses

Los dioses habitan en las cosas Hay en las cosas un nuacutecleo una dimensioacuten que no es de meras cosas inertes sino de algo divino Se ha dicho de muchas maneras la presencia de dioses en las cosas Ya sea que habiten verdaderamente en ellas como almas de las cosas (ldquoTodo estaacute lleno de diosesrdquo) ya sea que cada cosa sea la expresioacuten finita y limitada de la infinita potencia del ser de Dios ya sea que los dioses esteacuten presentes en cada cosa al crearla continuamente y conservarla en el ser (Spinoza Ethices pars secunda Propositio XLV Unaquaeque cuiuscum-que corporis vel rei singularis actu existentis idea Dei aeternam et infinitam essentiam necessario involvit)

Lo nuevo aquiacute el acontecimiento es el despertar de los dio-ses su salida de las cosas en las que habitan Con toda na-turalidad se produce ese despertar porque lo verdaderamente natural es la presencia de los dioses en las cosas Hay hasta detalles prosaicos los dioses se lavan ldquoel cuello y el rostrordquo No es una aparicioacuten solemne la de ellos sino que tiene ldquoligerezardquo Somos nosotros los que al medir todo por nuestro tiempo y por nuestra memoria encontramos extraordinaria esa presencia de los dioses y esa manifestacioacuten de ellos Para la verdadera ma-nera de ser de las cosas no hay nada maacutes natural que esa pre-sencia y el despertar estaacute dentro de lo normal para el tiempo de los dioses

Los dioses parecen ingenuos alegres y despreocupados No-sotros apenas sospechamos las fuentes en que ellos se lavan y se refrescan Cuando ellos aparecen descansados y alegres advertimos que faltaba algo al mundo nuestro que creiacuteamos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

218

completo Advertimos que no haciacuteamos maacutes que repetir una pauta o rutina que alguna vez nos fue dada como nueva Ahora con la renovacioacuten y el aire nuevo vuelve el origen lo origina-rio u original el inicio lo que es absolutamente nuevo Este es el verso central del poema ldquoNosotros repetimos soacutelo vosotros sois comienzordquo

Por maacutes naturalidad que expresen los dioses en su desper-tar por maacutes que ellos no se sorprendan de eacutel ni lo encuentren extraordinario no deja de ser un comienzo absoluto todo lo que ellos hacen Cada accioacuten de ellos es creacioacuten Ellos son origen En eso consisten su ingenuidad y su despreocupacioacuten Por eso tambieacuten nuestro ser gastado resulta renovado por su presencia De lo roto mana la luz de un nuevo comienzo

Bangnis

Im welken Walde ist ein Vogelrufder sinnlos scheint in diesem welken WaldeUnd dennoch ruht der runde Vogelrufin dieser Weile die ihn schufbreit wie ein Himmel auf dem welken WaldeGefuumlgig raumlumt sich alles in den SchreiDas ganze Land scheint lautlos drin zu liegender grosse Wind scheint sich hineinzuschmiegenund die Minute welche weiter willist bleich und still als ob sie Dinge wuumlsstean denen jeder sterben muumlssteaus ihm herausgestiegen10

Desasosiego

En el bosque mustio resuena el llamado de un paacutejaroun llamado que parece no tener sentido en este bosque marchitoY sin embargo el rotundo llamado del paacutejaroen este momento que lo hizo nacerdescansa amplio como un cielo sobre el bosque mustioDoacutecilmente se acomoda todo en el gritoTodo el campo parece yacer en eacutel en silencio el gran viento parece refugiarse en eacutely el minuto que quiere seguir su caminoestaacute paacutelido y silencioso como si supiera que de ese llamado bajan

[cosasque podriacutean llevar a cualquiera a la muerte

10 Rilke Das Buch der Bilder des ersten Buches zweiter Teil En Rilke Werke tomo 1 p 152

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

219

BIBLIOGRAFIA

ANGELLOZ J-F ldquoIntroductionrdquoIn Duineser Elegien Die So-nette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943

GOETHE J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden Hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981

RILKE Rainer Maria Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens In RILKE Rainer Maria Saumlmtliche Werke hg vom Rilke-Archiv in Verbindung mit Ruth Sieber-Rilke besorgt durch Ernst Zinn FrankfurtMain 1976

__________________ Das Buch der Bilder des ersten Bu-ches zweiter Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Gedichte Der neuen Gedichte ande-rer Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Neue Gedichte (1907)rdquo In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

220

Traduccedilatildeo

A Canccedilatildeo de outono de Paul Verlaine

Ineacutedito quando foi publicado em 1867 Canccedilatildeo de outono um dos poemas mais famosos1 de Paul Verlaine eacute o quinto da se-ccedilatildeo ldquoPaisagens tristesrdquo dos Poemas saturninos2 primeiro livro do autor O tiacutetulo da recolha eacute o que exprime com mais verdade concisatildeo e elegacircncia a proacutepria essecircncia do temperamento e da esteacutetica do poeta No plano iacutentimo Verlaine se julga marcado pelo selo original do infortuacutenio e da incapacidade de viver e atri-bui sua sina de eterno perdedor e de maldito agrave influecircncia do planeta Saturno considerado maleacutefico na tradiccedilatildeo esoteacuterica3 E eacute isso que a sua escritura no que ela tem de mais original tenta dizer pela recusa da eloquecircncia pela meacutetrica breve e sobretu-do pela busca constante de uma musicalidade do modo menor ldquoa muacutesica antes de tudordquo como ele diraacute na sua Arte poeacutetica4

A Canccedilatildeo de outono sugere a paisagem em vez de descre-vecirc-la esboccedila-a em vez de pintaacute-la Eacute um poema da sensaccedilatildeo do natildeo-dito do inexprimiacutevel das nuanccedilas em que o efecircmero convive com o indefinido em que os contornos se diluem na bruma das laacutegrimas e a paisagem real se apaga para dar lugar ao reflexo torturado de uma consciecircncia atormentada e indeci-sa Aqui o outono natildeo eacute a estaccedilatildeo do ano com as suas conota-ccedilotildees positivas as colheitas e o brilho das cores da natureza Eacute na verdade um fim melancoacutelico agonizante como uma morte No poema Verlaine tenta exorcizar pela muacutesica a inquietude da sua alma mas nele a tristeza eacute precisa saudade do passa-do inquietaccedilatildeo por sentir-se transportado por um ldquoar ruimrdquo sem renatamparreiracordeirogmailcom

1 Natildeo apenas pelo seu valor literaacuterio mas tambeacutem porque a Raacutedio Londres utilizou a primeira estrofe ligeiramente modificada em 5 de junho de 1944 agraves 21 horas e 15 minutos para avisar agrave rede de resistecircncia Ventri-loquista que o desembarque na Normandia iria ocorrer nas horas seguintes Parece que o exeacutercito alematildeo conseguiu decodificar a mensagem embora natildeo a tenha usado a seu favor As duas primeiras estrofes estatildeo gravadas no anverso da moeda de 2 euros comemorativa do aniversaacuterio de 70 anos do dito desembarque em 6 de junho de 19442 VERLAINE P Poegravemes saturniens suivi de Fecirctes galantes Paris LDP sd3 ldquoEacute ridiacuteculo o riso e assim decepcionanteAquela explicaccedilatildeo do misteacute-rio noturno Os que nasceram sob o signo de SATURNO Planeta fero fulvo e caro aos necromantes Segundo os manuais de bruxaria dacuteantes Tecircm um grande quinhatildeo de infortuacutenios e bilerdquo O primeiro dos Poemas saturninos (Traduccedilatildeo de Renata Cordeiro)4 VERLAINE P Jadis et naguegravere Paris LDP 2009

Renata Cordeiro

Tradutora profissional pre-miada pelo FNLIJ dos idio-mas francecircs inglecircs caste-lhano alematildeo e italiano para o portuguecircs Organizou e traduziu antologias de poe-mas franceses e de sonetos de Wiliam Shakespeare

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

221

poder reagir ldquoE eu vou-me assimrdquo natildeo significa ldquoeu partordquo mas ldquoeu me deixo irrdquo para onde o vento me leva deixo-me levar pela corrente pelo ldquoar ruimrdquo que me transporta A fatalidade eacute um tema caro a Verlaine porque Saturno o planeta mau natildeo lhe daacute treacutegua e o impede de ser feliz O ritmo do poema traduz esse sentimento complexo feito de anguacutestia e de abandono pelo jogo delicado de versos de quatro e de trecircs siacutelabas Esses metros curtos datildeo agrave rima que volta a intervalos regulares ressonacircncias particularmente sugestivas Neste caso o verso natildeo eacute soacute um conjunto de palavras providas de uma sintaxe e de um sentido mas tambeacutem o agrupamento de sons escolhidos para encantar o ouvido Verlaine revela possibilidades musicais do verso ateacute entatildeo ineacuteditas Privilegia as assonacircncias repeticcedilotildees de vogais as aliteraccedilotildees repeticcedilotildees de consoantes para repartir os ecos focircnicos dentro dos versos em relaccedilatildeo agraves rimas finais que se dividem estritamente em todas as estrofes em masculinas e femininas (AAbCCb) O ritmo 443 adotado por Verlaine eacute proacute-prio da canccedilatildeo e confere originalidade ao poema

Chanson dacuteautomne

Les sanglots longsDes violonsDe lacuteautomneBlessent mon coeurDacuteune langueurMonotone

Tout suffocantEt blecircme quandSonne lacuteheureJe me souviens Des jours anciensEt je pleure

Et je macuteen vaisAu vent mauvaisQui macuteemporteDeccedilagrave delagravePareil agrave laFeuille morte

Anaacutelise formal

O poema eacute composto de trecircs estrofes de seis versos cada qual Em cada uma os versos 1 2 4 e 5 tecircm quatro siacutelabas e os versos 3 e 6 trecircs siacutelabas meacutetricas As rimas obedecem ao

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

222

esquema AAbCCb sendo rimas masculinas (agudas) as maiuacutes-culas e femininas (graves) as minuacutesculas

O ritmo de cada estrofe eacute o seguinte

- - - (4)- - - (4)- - - (3)- - - (4)- - - (4)- - - (3)

No esquema acima as barras obliacutequas representam as siacute-labas fortes aqui cada trecircs versos formam um verso de onze siacutelabas meacutetricas integrado num ritmo maior

- - - - - - - - - (11)

- - - - - - - - - (11)

E o poema na leitura fica assim

Les sanglots longs de violons de lacuteautomneBlessent mon coeur dacuteune langueur monotoneTout suffocant et blecircme quand sonne lacuteheureJe me souviens des jours anciens et je pleureEt je macuteen vais au vent mauvais qui macuteemporteDecagrave delagrave pareil agrave la feuille morte

Para conseguir formar em cada estrofe dois versos hendecas-siacutelabos resultando ao todo em seis Verlaine obedece agrave alter-nacircncia de rimas masculinas e femininas praticada pela poesia francesa desde a Idade Meacutedia e que se consolidou a partir do seacuteculo XVI Nenhuma traduccedilatildeo nesse caso especiacutefico que natildeo observe essa alternacircncia conseguiraacute produzir na liacutengua recep-tora seis versos de onze siacutelabas com tocircnicas 4-8-11 sempre5 Aleacutem disso se eacute uma canccedilatildeo deduz-se que eacute para cantar6 Por-5 ldquo a fidelidade retoacuterico-formal natildeo vale por ser uma norma externa a ser aplicada mecanicamente ao texto de poesia Ela vale sim enquanto se prende a manifestaccedilotildees externas a manifestaccedilotildees textuais da significacircncia condicionando o leitor para uma leitura inclinada em determinada direccedilatildeo em determinado sentido Ela implica fatores socioculturais e linguiacutestico-estru-turais cujo conhecimento e exame ponderado deve determinar no sujeito-tra-dutor a escolha de uma reescritura mais proacutexima do moacutedulo original ou mais condizente com os usos poeacuteticos da linguagem receptorardquo LARANJEIRA M Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp 19936 Por seu caraacuteter predominantemente musical Reynaldo Hahn jaacute no seacuteculo XIX fez uma composiccedilatildeo a partir do poema para piano e voz HAHN R VERLAINE P Chansons grises Paris Au Meacutenestrel 1891-1892 E no

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

223

tanto o ritmo resultante aqui tambeacutem dessa alternacircncia7 que confere originalidade ao poema deveraacute ser mantido e caberaacute a quem traduz em que pesem as dificuldades produzir um texto homoacutelogo ao original que provoque um impacto emocional e esteacutetico no leitor da liacutengua de chegada semelhante ao causado pelo texto original no leitor da liacutengua de partida

Propotildeem-se algumas traduccedilotildees para mostrar que esse traba-lho embora difiacutecil eacute possiacutevel

Canccedilatildeo de outono

Ferem-me os aisDos outonaisViolinosO coraccedilatildeoCom a inaccedilatildeoDos seus trinos

E quando daacuteTal hora jaacuteRememoroSem cor sem arDias sem parE entatildeo choro

E eu vou-me assimNo ar que ruimMe transportaPra caacute pra laacuteTal e qual aFolha morta

Ferem-me os ais dos outonais violinosO coraccedilatildeo com a inaccedilatildeo dos seus trinos

seacuteculo XX na deacutecada de 1940 foi a vez de Charles Trenet fazer a sua can-ccedilatildeo em que substituiu o verbo na terceira pessoa do presente do indicativo blessentferem por bercentembalam Jaacute Georges Brassens quando reto-mou a canccedilatildeo de Trenet manteve o poema no original Essa tambeacutem foi a atitude de Leacuteo Ferreacute embora no DVD ao vivo ldquoLeacuteo Ferreacute canta os poetasrdquo ele diga bercent na primeira vez mas blessent quando retoma o final Haacute vaacuterias gravaccedilotildees no Youtube de vaacuterios inteacuterpretes tanto da composiccedilatildeo de Hahn quanto da canccedilatildeo de Trenet e de outras em geral baseadas na de Trenet7 Em nenhuma das vinte traduccedilotildees do poema encontradas na Inter-net essa alternacircncia de rimas eacute obedecida Seguem os links httpformasfixasblogspotcombr201507paul-verlaine-1844-1896html (Acesso 03122017)httpmiscelaneadoorejanablogspotcombr201310chanson-d-automne-paul-verlaine-1844html (Acesso 03122017)httpculturafmcmaiscombrradiometropolislavrapaul-verlaine-cancao-deoutono (Acesso 03122017)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

224

E quando daacute tal hora jaacute rememoroSem cor sem ar dias sem par e entatildeo choroE eu vou-me assim no ar que ruim me transportaPra caacute pra laacute tal e qual a folha morta

Canccedilatildeo de outono

Cravam punhaisCom longos aisQue datildeo sonoDentro de mimOs bandolinsDesse outono

E quando jaacuteSem cor e ar daacuteO momentoDias me vecircmIdos poreacutemE eu lamento

E eu vou ao leacuteuAo ar cruelQue me enxotaDe caacute de laacuteSemelhante agraveFolha rota

Cravam punhais com longos ais que datildeo sonoDentro de mim os bandolins desse outonoE quando jaacute sem cor e ar daacute o momentoDias me vecircm idos poreacutem e eu lamentoE eu vou ao leacuteu ao ar cruel que me enxotaDe caacute de laacute semelhante agrave folha rota

Canccedilatildeo de outono

Causam-me dorCom um langorMorrediccediloOs violotildeesE os seus bordotildeesOutoniccedilos

E quando semCor sem ar vecircmTantos tantosDias natildeo mais

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

225

Do tempo atraacutesCaio aos prantos

E eu sigo a errarAo malvado arQue me arrastaPra caacute pra laacuteSemelhante agraveFolha gasta

Causam-me dor com um langor morrediccediloOs violotildees e os seus bordotildees outoniccedilosE quando sem cor sem ar vecircm tantos tantosDias natildeo mais do tempo atraacutes caio aos prantosE eu sigo a errar ao malvado ar que me arrastaPra caacute pra laacute semelhante agrave folha gasta

Traduccedilotildees de Renata Cordeiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

ldquoRevoltardquo um poema antigo de Pound

ldquoRevolta contra o espiacuterito crepuscular na poesia modernardquo faz parte de Personae terceiro livro de poemas de Pound e o pri-meiro que publica em Londres em 19091 Mais tarde em 1926 Pound tambeacutem denomina Personae uma versatildeo ampliada do li-vro de 1909 com o subtiacutetulo ldquoPoemas Reunidos de Ezra rdquo2 Por que Personae para a obra de 1909 Um comentaacuterio autobio-graacutefico de Pound no Gaudier-Brzeska de 1916 pode dar uma pista ldquoNa lsquobusca por si mesmorsquo na busca pela lsquosincera expres-satildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade Diz--se lsquoSoursquo isto aquilo ou o outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisa Comecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradas Em segundo lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realida-de objetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo () Em terceiro lugar escrevi lsquoHeatherrsquo que representa um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquo () Essas duas uacutelti-mas espeacutecies de poemas satildeo impessoais ()rdquo3

Natildeo eacute possiacutevel aqui mera apresentaccedilatildeo de um poema e de sua traduccedilatildeo analisar o que seja a constituiccedilatildeo de ldquopessoasrdquo (personae) praacutetica de Pound ldquocuja importacircncia jamais pode ser superestimadardquo4 Basta afastar alguns juiacutezos mais imediatos que poderiam impedir de saiacuteda que o poema pudesse falar por si mesmo Em latim personae (persona no singular) possui diversos significados aparentados5 Persona pode ser a perso-1 De acordo com Thomas F Grieve ldquoEmbora se costume pensar que tenha sido o primeiro livro de poesia publicado por Pound Personae foi na verdade precedido por A Lume Spento que teve 150 coacutepias impressas em Veneza custeadas pelo proacuteprio Pound e depois por Uma quinzena por este Yule de 1908 No entanto Personae de 1909 pode ser considerado lsquode fatorsquo o primeiro livro de poemas de Pound teve uma impressatildeo significativa (1000 exemplares por uma editora respeitaacutevel) e atraiu interesse de criacuteticos de importantes jornais literaacuterios britacircnicosrdquo (GRIEVE F T 2005 p 216) Para a traduccedilatildeo do poema Revolta tomamos como base o poema tal como se encontra em POUND 1982 p 96 e p 97 Agradeccedilo a Rubens Joseacute da Ro-cha Renata Cordeiro e Luiz M Garcia pelas sugestotildees a uma versatildeo preacutevia desse texto2 Nadel observa que mais adequado seria o subtiacutetulo Obras selecio-nadas pois o Personae de 1926 inclui apenas alguns dos poemas anterior-mente publicados por Pound (NADEL BI 2007 p 44)3 POUND 1916 p 984 Cf NADEL BI 2007 p 445 Sigo aqui de modo natildeo exaustivo as indicaccedilotildees de Trendelenburg sobre a histoacuteria da palavra persona (Cf TRENDELENBURG 1908) Esse artigo eacute tambeacutem mencionado por Leonel Ribeiro dos Santos que analisa ex-tensamente o conceito de pessoa na filosofia moderna particularmente em

Paulo R Licht dos Santos

Professor de Filosofia ndash UFSCarCNPq

paulolicht2gmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

227

nagem de um drama Daiacute tambeacutem a possiacutevel referecircncia do livro de Pound a Dramatis Personae obra de Robert Browning de 18646 Tambeacutem pode ser o papel que algueacutem desempenha em diversas atividades ou ofiacutecios ou entatildeo o caraacuteter que algueacutem possui ou exibe Persona tambeacutem pode ter sentido juriacutedico No direito romano pode designar cada uma das funccedilotildees exercidas em um tribunal (o acusado o acusador e o juiz) ou ainda todos os que possuem direitos e podem reclamaacute-los em diversas cir-cunstacircncias (com exclusatildeo dos escravos e das coisas) Perso-na pode designar por fim os homens em geral Esses e outros significados natildeo mencionados aqui provecircm por uma seacuterie de transposiccedilotildees do significado originaacuterio de persona as maacutesca-ras usadas no teatro pelos antigos atores romanos

Eacute nesse sentido que Pound usa o termo personae ao dizer ter extraiacutedo ldquomaacutescaras inteiras do eu em cada poemardquo De fato ldquomaacutescaras do eurdquo atravessam Personae de ponta a ponta O ldquoeurdquo para dar alguns exemplos aparece agraves vezes enfaticamen-te jaacute nos versos iniciais como em ldquoPraise of Ysoltrdquo que abre o Personae de 1909 ldquoIn vain have I strivento teach my heart to bowrdquo ou como no proacuteprio ldquoRevoltardquo ldquoI would shake off the lethargy of this our timerdquo Agraves vezes aparece mais timidamente como em ldquoXeniardquo com o uso do possessivo ldquomeurdquo (my) ldquoAndunto thine eyes my heartsendeth old dreams of the spring-timerdquo O poema ldquoOcciditrdquo tambeacutem refere-se agrave primeira pessoa mas do plural com o possessivo ldquonossordquo (ldquoourrdquo) ldquoAs in our southern lands brave tapestriesrdquo Ou por fim o poema ldquoMarvoil inicia-se com a declaraccedilatildeo de Arnaut de Marvoil sobre si mesmo pela oacutetica dos que o circundam ldquoA poor clerk I lsquoArnaut the lessrsquo they call merdquo Em ldquoNotas aos novos poemasrdquo que encerram Perso-nae Pound esclarece que as personae de ldquoMarvoilrdquo satildeo entre outros o proacuteprio Arnaut de Marvoil trovador do seacuteculo XI Se aqui a primeira pessoa eacute a de um outro natildeo seria assim com os demais poemas de Personae Ou seja o proacuteprio ldquoeurdquo ou o ldquonoacutesrdquo tambeacutem natildeo seriam maacutescaras mesmo quando Pound diz que o livro Personae faz parte de suas primeiras tentativas em busca da lsquosincera expressatildeo de sirsquo A conjectura ganha focirclego caso se lembre a proveniecircncia do nome e da categoria gramatical de pessoa Trendelenburg apresenta alguns documentos histoacutericos para mostrar que os gregos que fundaram nossa gramaacutetica tal-vez os estoicos recorreram agrave palavra grega πρόσωπον (face ou maacutescara) para designar as principais terminaccedilotildees verbais e assim as trecircs pessoas do discurso7 Portanto transposiccedilatildeo para a gramaacutetica de um termo proveniente do drama primeiro pelos gregos e depois pelos romanos

Se persona possui o significado originaacuterio de maacutescara em que o ldquoeurdquo fala e se apresenta por traccedilos de outros natildeo estaria Kant (Cf SANTOS 2011 pp 7-40) Uma possiacutevel etimologia de persona eacute per-sono ldquoo que soa ou faz soar por meio derdquo Trendelenburg contudo potildee em duacutevida essa etimologia mencionando outras possiacuteveis6 Essa eacute sugestatildeo de Nadel (NADEL BI 2007 p 44)7 Cf TRENDELENBURG 1904 p 10

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

228

em jogo na teacutecnica de Pound a dissimulaccedilatildeo de si ou do real Natildeo eacute o que se pode inferir do comentaacuterio de Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae ()rdquo Essa busca soacute faz sentido poreacutem porque o real natildeo se apresenta imediatamente definido ldquona busca pela lsquosincera expressatildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade ()rdquo Nesse caso ateacute mesmo a ldquoexpressatildeo sincera de sirdquo que talvez pudes-se evocar algum lirismo ainda pouco elaborado estaacute longe de ser a transposiccedilatildeo imediata para o poema de algum traccedilo jaacute de-finido de si Pois natildeo haacute por um lado o que eu sou realmente e por outro a linguagem que me conveacutem ou natildeo Na construccedilatildeo de uma persona a forma de expressatildeo e o real a maacutescara e o rosto satildeo concomitantes ldquolsquoEu soursquo isto aquilo ou outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisardquo Note-se que no texto original de Pound ldquoEu sourdquo vem entre aspas pois natildeo se eacute sem uma forma precisa de expressatildeo Por isso mesmo uma persona natildeo eacute a maacutescara que esconde o real ou dissimula o que sou mas o que primeiro os molda para exibi-los de certo modo Negativamente se a forma de expressatildeo eacute inadequada o real de iniacutecio apenas entrevisto (ldquoalgo que parece verdaderdquo) eacute com-pletamente perdido ldquodeixa-se de ser a coisardquo Nesse caso tam-beacutem natildeo tem cabimento tomar determinada persona ou poema como a maacutescara autecircntica por excelecircncia Cada uma delas eacute expressatildeo parcial de um processo contiacutenuo que apenas pode ganhar complexidade crescente mas nunca alcanccedilar a expres-satildeo definitiva de si e do que eacute Vale a pena retomar Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradasrdquo Eacute precisamente como bus-ca para dar forma ao opaco e concretude ao difuso que se pode ler a abertura do ldquoRevoltardquo

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

A passagem autobiograacutefica de Pound citada haacute pouco classi-fica seus primeiros poemas em trecircs fases8 Se as duas uacuteltimas satildeo de poemas impessoais seria a primeira a de Personae de menor valor poeacutetico Por buscar a ldquosincera expressatildeo de sirdquo a primeira fase ficaria aqueacutem da expressatildeo precisa que se encon-traria nas duas fases seguintes Em outras ocasiotildees Pound iraacute desqualificar seus poemas iniciais Mas aqui a transiccedilatildeo dos poemas ldquopessoaisrdquo para os ldquoimpessoaisrdquo natildeo marca uma escala de valor apenas a diferenccedila do domiacutenio do real investigado A primeira fase eacute a da busca pela apreensatildeo e expressatildeo de si mesmo ldquoDiz-se lsquoSoursquo isto aquilo ou outro ()rdquo A fase seguin-te eacute busca pela expressatildeo da realidade objetiva ldquoEm segundo

8 Cf KENNER H 1985 p121

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

229

lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realidade ob-jetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo ()rdquo Jaacute a terceira ldquorepresenta um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquordquo Trecircs modos portanto da investigaccedilatildeo contiacutenua do real por meio de uma linguagem que procura apresentaacute-lo e representaacute-lo em domiacutenios distintos expressatildeo precisa daquilo que lsquosoursquo apresentaccedilatildeo da realidade objetiva do que eacute e por fim representaccedilatildeo dos estados de consciecircncia

Essa anaacutelise ateacute certo ponto vazia por ser muito geral en-contra apoio na leitura circunstanciada que Hugh Kenner faz de alguns dos poemas mencionados por Pound nas duas fases finais Para reter apenas a conclusatildeo dessa leitura teriacuteamos na transiccedilatildeo de Pound da primeira para as duas fases seguintes natildeo a passagem da pessoalidade para a impessoalidade mas a passagem para uma persona mais ampla ou essencial Teriacute-amos ldquoum experimento despersonalizado do eurdquo reconheciacutevel em alguns dos Cantos ldquoa personalidade despida de todas as contingecircncias tornou-se extensivamente um ponto de luz que se move por mundos possiacuteveis um modo de consciecircncia capaz de ser transposto em um nuacutemero indefinido de usosrdquo9 Por nos-sa conta personae como poemas de ningueacutem

Eacute plausiacutevel pensar que eacute com base nessa proposta natildeo por seu abandono que Pound iraacute rejeitar seus poemas iniciais A ediccedilatildeo Personae de 1926 descarta o poema ldquoRevoltardquo junta-mente com noventa e oito poemas antes publicados10 A justi-ficativa de Pound ldquoEstava ofuscado pela linguagem vitoriana () a crosta do inglecircs morto o sedimento presente em meu proacuteprio vocabulaacuterio disponiacutevel () Rossetti fez sua proacutepria lin-guagem Ateacute 1910 eu natildeo fizera uma linguagem natildeo quero di-zer uma linguagem para usar mas mesmo uma para pensarrdquo11 Ao abandonar alguns poemas anteriores Pound recusa natildeo a praacutetica de personalizaccedilatildeo mas o resultado alcanccedilado insufi-ciente para constituir uma linguagem capaz de pensar o real Se for assim por que teriacuteamos de rejeitar sem mais uma maacutescara anterior de Pound com base em uma persona posterior (Pound como criacutetico de si mesmo)

Prova dos noves de que o poema tem de falar por si mesmo estaacute na recepccedilatildeo conflitante do poema ldquoRevoltardquo Os criacuteticos mais recentes consideram o poema um bem logrado malogro de Pound em tentar criar uma nova linguagem para lidar com as condiccedilotildees da vida moderna ldquoEntre os poemas que concluem Personae (1909) haacute um que defende bravamente uma lsquoRevol-tarsquo mas acaba olhando-se melhor por tornar-se igualmente um protesto crepuscular lsquocontra a letargia de nosso temporsquordquo12 Jaacute um leitor de primeira de hora de Personae vecirc em Pound uma ldquosemente novardquo que destoaria do gosto de parte do puacuteblico por 9 Idem ibidem p 12110 Essa contabilidade eacute de Louis Martz autor da introduccedilatildeo aos Collec-ted Early Poems of Ezra Pound (POUND E 1982 p vii)11 Citado por RUTHVEN K K 1983 pp 17 1812 RUTHVEN K K 1983 p 17 Opiniatildeo similar se encontra em p62

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

230

ldquonovas variedades dos antigos favoritosrdquo13 O poema ldquoRevoltardquo que o criacutetico considera ldquoirregular mas vigorosordquo seria um caso exemplar da ldquoqualidade do Sr Poundrdquo14 Mas o caraacuteter exemplar natildeo viria da singularidade do poema ou da excentricidade do poeta mas do enraizamento de ambos no passado mais remo-to e mais proacuteximo Depois de ter lembrado a filiaccedilatildeo de Pound a Browning o criacutetico o compara aos trovadores provenccedilais ldquopelo senso de beleza das coisas e das palavrasrdquo e a Walt Whitman pela ldquovigorosa individualidaderdquo15 O criacutetico assim situa Pound na tradiccedilatildeo em plena conformidade com a epiacutegrafe que abre o livro Personae de 1909 ldquoMake-strong old dreams lest this our world lose heartrdquo16

Entre os dois criacuteticos o mais recente e o antigo qual esco-lher A pergunta eacute descabida por dois motivos aparentados Primeiro que contradiccedilatildeo poderia haver entre quem enxerga de perto com exatidatildeo mas natildeo o que o ultrapassa e quem tem a visatildeo ampla mas natildeo o foco do que estaacute proacuteximo Se for assim natildeo se impotildee nenhuma escolha entre o criacutetico passado que tem presente o niacutetido contraste dos poemas de Pound com a produccedilatildeo requentada de outros autores contemporacircneos seus e o criacutetico mais recente que tem presente a amplitude da obra posterior de Pound A pergunta inicial eacute descabida em segundo lugar pela proacutepria relaccedilatildeo temporal que o poema propotildee ao lei-tor O ponto de partida eacute nosso momento presente (ldquoeste nosso tempordquo) natildeo necessariamente o ldquonosso tempordquo de Pound O ponto de chegada eacute a aposta que uma dicccedilatildeo antiga mais vigo-rosa possa abrir o futuro

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos tatildeo [raacutepidos Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e revolvam Esta terra outra vez

O poema instaura assim uma relaccedilatildeo entre passado e futuro que deve ser moldada continuamente a partir de nosso tempo presente Se for assim o poema ou todo poema exemplar ain-da que jamais possa dar a uacuteltima palavra deveraacute ter sempre a primeira Agora soacute resta a pergunta se o ldquoRevoltardquo e em algum grau sua traduccedilatildeo em portuguecircs alcanccedilam o que Pound ambi-13 Trata-se da resenha de publicada sem o nome do autor em 23 de abril de 1909 no Daily Telegraph A resenha encontra-se reproduzida em ldquoCOURTNNEY W L 2009 pp 44 e 4514 Idem ibidem p 4515 Idem ibidem p 4516 T S Eliot natildeo vecirc nada de Walt Whitman em Personae aleacutem dos provenccedilais apenas haveria dos poetas modernos marcas de Browning e de Yeats (cf Eliot p 9) Diggory por sua vez entende ser Yeats o alvo do ldquoRevoltardquo bem como a referecircncia dos versos ldquoOr tread too violent in passing themrdquo Cita como apoio o uacuteltimo verso do poema de Yeats ldquoAedh Wishes for the Cloths of Heavenrdquo ldquoTread softly because you tread on my dreamsrdquo (Cf Diggory 2016 p 40)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

231

ciona ldquodar agraves pessoas novos olhos natildeo fazecirc-las ver uma nova coisa particularrdquo17

REVOLTA Contra o Espiacuterito Crepuscular na Poesia Moderna

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

ldquoEacute melhor sonhar que agirrdquo Sim E natildeo

Sim se sonhamos grandes feitos homens de fibraQuente o coraccedilatildeo potente o pensarNatildeo se sonhamos flores sem corCortejo lento de horas que languidamenteGotejam feito fruto passado de aacutervores paacutelidasSe assim morremos e vivemos natildeo a vida mas sonhos

Grande Deus concede vida em sonhosNatildeo fuga mas vidaSejamos homens que sonhamNatildeo fracos ocos facircmulosAgrave espera que o Tempo morto acorde e mitigueInominados males

Grande Deus se a nossa sina eacute ser natildeo homens [sonhos apenasEntatildeo sejamos sonhos que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila senhores embora meros sonhosEntatildeo sejamos sombras que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila mestres embora meras sombras

Grande Deus se medrados os homens soacute espectros [enfermos sem corQue tecircm de viver apenas nestas neacutevoas e luzes teacutepidasE tremem quando batem alto horas mudasOu pisam demais brutais ao passaacute-las

17 Relato de Pound sobre um correspondente russo inicialmente per-plexo com o poema ldquoHeatherrdquo (POUND 1916 p 98)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

232

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos [tatildeo raacutepidos

Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e reviremEsta terra outra vez

REVOLT

Against the Crepuscular Spirit in Modern Poetry

I would shake off the lethargy of this our timeAnd giveFor shadows - shapes of powerFor dreams - men

ldquoIt is better to dream than do ldquoAye and No

Aye if we dream great deeds strong menHearts hot thoughts mightyNo if we dream pale flowersSlow-moving pageantry of hours that languidlyDrop as orsquoer-ripened fruit from sallow treesIf so we live and die not life but dreamsGreat God grant life in dreamsNot dalliance but life

Let us be men that dreamNot cowards dabblers waitersFor dead Time to reawaken and grant balm for ills unnamed

Great God if we be damnrsquod to be not men but only dreamsThen let us be such dreams the world shall tremble atAnd know we be its rulers though but dreamsThen let us be such shadows as the world shall tremble atAnd know we be its masters though but shadow

Great God if men are grown but pale sick phantomsThat must live only in these mists and tempered lightsAnd tremble for dim hours that knock orsquoer loudOr tread too violent in passing them

Great God if these thy sons are grown such thin ephemeraI bid thee grapple chaos and begetSome new titanic spawn to pile the hills and stirThis earth again

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

233

BIBLIOGRAFIA

COURTNNEY W L ldquoDaily Telegraphrdquo In ldquoEzra Pound The Critical Heritage Seriesrdquo Ed Eric Homberger New York-London Routledge 2009

DIGGORY T Yeats and American Poetry The Tradition of the Self Princeton University Press 2016

ELIOT TS Ezra Pound his metric and poetry New York 1917 Disponiacutevel em lthttpswwwblukcollection-itemsezra-pound-his-metric-and-poetry-by-t-s-eliotgt Acesso em 19122017)

GRIEVE F T ldquoPersonaerdquo in The Ezra Pound Encyclopedia

Ed D P Tryphonopoulos andlrm S J Adams Westport- Connec-ticut - London Greenwood 2005

KENNER H The Poetry of Ezra Pound Reprinted edition Lincoln and London University of Nebraska Press 1985

NADEL I B The Cambridge Introduction to Ezra Pound New York Cambridge University Press 2007

POUND E Collected Early Poems of Ezra Pound Ed por Mi-chael John King New York A New Directions Book 1982

POUND E Gaudier- Brzeska London John Lante Company 1916

RUTHVEN K K A Guide to Ezra Poundlsquos Personae (1926) Berkeley-Los Angeles-London University of California Press 1983

SANTOS L R ldquoDo paralogismo loacutegico da personalidade ao paradoxo moral da pessoa geacutenese e significado da antropolo-gia moral kantianardquo Studia Kantiana 11 (2011) 7-40

TRENDELENBURG A ldquoZur Geschichte des Wortes Personrdquo Kantstudien 13 (1908) pp1 -17

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

234

Traduccedilatildeo

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano

A epiacutestola X 96 de Pliacutenio o Jovem (61ndashc 113 dC) con-teacutem o testemunho mais antigo do conflito entre cristatildeos e Impeacute-rio Romano e das praacuteticas rituais do Cristianismo primitivo Ape-nas trecircs autores latinos antigos ldquopagatildeosrdquo escreveram sobre os cristatildeos o epistoloacutegrafo Pliacutenio o Jovem e os historioacutegrafos Cor-neacutelio Taacutecito (c 56ndashc 120 dC) e Suetocircnio Tranquilo (c 69ndashc 122 dC) O testemunho de Taacutecito (Anais XV 44) foi escrito por volta de 115 e 116 dC e descreve com alguma detenccedila a dura puniccedilatildeo que Nero (imperador entre 54 e 68 dC) reservou aos cristatildeos como supostos responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma do ano 64 dC Os dois testemunhos de Suetocircnio (Vida dos Doze Ceacutesares ldquoClaacuteudiordquo 25 4 e ldquoNerordquo 16 2)1 foram escritos por volta de 122 dC e brevemente informam que os cristatildeos foram expulsos de Roma por Claacuteudio (imperador entre 41 e 54 dC) e perseguidos por Nero como praticantes de perigosa supersti-ccedilatildeo

A epiacutestola X 96 foi escrita entre 18 de setembro e 3 de janeiro de 112 dC em Amaacutestris ou Amiso (atuais Amasra e Samsun na Turquia) no segundo ano do governo de Pliacutenio sobre a Bitiacutenia e o Ponto (igualmente na atual Turquia) e era endere-ccedilada ao proacuteprio imperador Trajano que a responde como se leraacute a seguir Pliacutenio para dar conta a Trajano das providecircncias tomadas quanto aos cristatildeos as quais incluiacuteam pena capital descreve como era o ritual daqueles seguidores de Cristo e quais eram no caso as accedilotildees que nessa qualidade eles con-fessavam praticar Como entre tais accedilotildees constava o juramento de natildeo roubar natildeo matar natildeo mentir e natildeo sonegar impostos mas apenas reunir-se na alvorada para rezar e cantar a Cris-to e como eacute sempre Pliacutenio que o afirma houve quem julgasse espuacuterias as epiacutestolas escritas ou interpoladas mais tarde com intuito de exibir os cristatildeos como maacutertires e assim colaborar com a narrativa triunfalista do Cristianismo como se a visatildeo Agradeccedilo ao CNPq pela bolsa de Produtividade em Pesquisa que possi-bilitou a confecccedilatildeo deste artigo integrante de trabalho maior que inclui a traduccedilatildeo comentada de todas as cartas de Pliacutenio o Jovem

1 Para eventual consulta menciono as seguintes traduccedilotildees ao portu-guecircs Taacutecito Anais Prefaacutecio de Breno Silveira traduccedilatildeo de J L Freire de Carvalho Rio Satildeo Paulo Porto Alegre W M Jackson 1952 pp 408-409 ldquoClaacutessicos Jacksonrdquo vol XXV Suetoacutenio Os Doze Ceacutesares Traduccedilatildeo e no-tas de Joatildeo Gaspar Simotildees Lisboa Editorial Presenccedila 1973 p 204 e p 223

Joatildeo Angelo Oliva Neto

Livre-docente em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas - USP

olivanetoicloudcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

235

favoraacutevel aos cristatildeos vinda aqui de insuspeitiacutessima parte que eacute um governador romano que os persegue e ateacute executa fos-se por assim dizer boa demais para ser verdade Assim longa querela teve iniacutecio no fim do seacuteculo XVIII quando J S Sember na segunda ediccedilatildeo de Novae Observationes quibus Studiosius Illustrantur Potiora Capita Historiae et Religionis Chistianae us-que ad Constantinum (ldquoNovas Observaccedilotildees pelas quais com Maior Detenccedila se Explicam Capiacutetulos Mais Importantes da Reli-giatildeo Cristatilde ateacute Constantinordquo) as considerou stolidissimae nugae fraudesque non piae sed impudentissimae (Halle vol II p 37 1788) ldquoninharias estuacutepidas e fraudes nada piedosas mas des-pudoradiacutessimasrdquo e de pronto foi contestado por A C Haver-saat (Vertheid der Plinischen Briefe uumlber die Christen gegen die Einwendungen Semlerrsquos Goumlttingen 1788)2 Hoje a epiacutestola e Pliacutenio e a de Trajano satildeo consideradas verdadeiras assim como eram na Antiguidade quando foram igualmente ceacutelebres a julgar pelos numerosos testemunhos que delas nos chega-ram3

As epiacutestolas exibem tambeacutem exemplos ainda que sem-pre anocircnimos da coragem de quem se manteacutem fiel agrave proacutepria crenccedila do humano medo de morrer de quem a renega da sor-didez que eacute a denuacutencia anocircnima Quanto a Pliacutenio ele produ-ziu ainda que sem querer efeitos retoacutericos dignos de nota a credibilidade e sobretudo o pateacutetico que adveio ironicamente de sua proacutepria impassibilidade O distanciamento que o ofiacutecio obriga a desejada impassibilidade descritiva na judicial frieza com que conduz o inqueacuterito de fato soacute fez ressaltar malgrado seu a comovente mansidatildeo daqueles reacuteus nisso os partidaacuterios da falsidade das epiacutestolas tinham razatildeo

Epiacutestolas Cristatildes 1Pliacutenio o Jovem Livro X Epiacutestola 96 (97)

2 Para etapas importantes do longo debate ver os autores arrola-dos por Anne-Marie Guillemin Pline le Jeune tome IV Lettres Livre X Panegyrique de Trajan Paris ldquoLes Belles Lettresrdquo 1947 pp 70-72 Eacute desta ediccedilatildeo o texto latino adotado3 Tert Apol II 6-10 Clem Al Strom V 12 (Patrol Gr IX 400c) Eus HE III 33 Hier Chron 220a Olimp Sulp Sev Chron II 45 Oros VII 12 3 Paul Diac Hist Misc X Traianus

Caius Plinius Traiano Imperatori

1 Sollemne est mihi domine omnia de quibus dubito ad te referre Quis enim potest melius uel cunctationem meam regere uel ignorantiam instruere

Cognitionibus de Christianis interfui numquam ideo nescio quid et quatenus aut

Caio Pliacutenio ao Imperador Trajano

1 Para mim senhor eacute nor-ma submeter-te todas as ques-totildees em que tenho duacutevida pois quem melhor pode guiar minha hesitaccedilatildeo ou educar minha igno-racircncia

Nunca tomei parte dos in-queacuteritos sobre os cristatildeos de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

236

puniri soleat aut quaeri 2 Nec mediocriter haesitaui sitne aliquod discrimen aetatum an quamlibet teneri nihil a robustioribus differant detur paenitentiae uenia an ei qui omnino Christianus fuit desisse non prosit nomen ipsum si flagitiis careat an flagitia cohaerentia nomini puniantur

Interim ltingt iis qui ad me tamquam Christiani d e f e r e b a n t u r hunc sum secutus modum 3 Interrogaui ipsos an essent Christiani Confitentes iterum ac tertio interrogaui supplicium minatus perseuerantes duci iussi Neque enim dubitabam qualecumque esset quod faterentur pertinaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri 4 Fuerunt alii similis amentiae quos quia ciues Romani erant adnotaui in urbem remittendos Mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species inciderunt

5 Propositus est libellus sine auctore multorum nomina continens Qui negabant esse se Christianos aut fuisse cum praeeunte me deos adpellarent et imagini tuae quam propter hoc iusseram cum simulacris numinum adferri ture ac uino supplicarent praeterea male dicerent Christo quorum nihil cogi posse dicuntur qui sunt re uera Christiani dimittendos putaui 6 Alii ab indice nominati esse se Christianos dixerunt et mox negauerunt fuisse quidem

modo que ignoro o quecirc e ateacute onde se deve punir ou inquirir 2 Natildeo foi pequena minha hesi-taccedilatildeo sobre se deve haver dis-criacutemen de idade ou se em nada diferem crianccedilas de qualquer ta-manho dos mais adultos se se daacute perdatildeo ao arrependimento ou se agravequele que foi cristatildeo convic-to de nada valeraacute renunciar se se pune o mero nome de cristatildeo quando natildeo houver delitos ou os delitos ligados ao nome

Entrementes quanto agraveque-les que me foram denunciados como cristatildeos procedi do se-guinte modo 3 Perguntei-lhes se eram cristatildeos aos que con-fessavam perguntei de novo e ainda uma terceira vez ame-accedilando-os de supliacutecio os que perseveravam mandei execu-tar⁴ E natildeo tive duacutevidas de que qualquer que fosse a confissatildeo ao menos a persistecircncia e a in-flexiacutevel obstinaccedilatildeo deviam ser punidas 4 Houve outros capa-zes de semelhante demecircncia os quais porque eram cidadatildeos romanos registrei para que fos-sem mandados de volta a Roma Logo como costuma ocorrer ampliando-se no proacuteprio proces-so a incriminaccedilatildeo muitos casos diferentes apareceram

5 Um cartaz sem autor⁵ foi afixado contendo o nome de muitas pessoas Se os que ne-gavam ser ou ter sido cristatildeos in-vocassem os deuses repetindo a foacutermula que eu lhes ditava e com incenso ou vinho venerassem a tua imagem que adrede eu man-dara trazer junto com estaacutetuas

4 executar duci infinitivo passivo de duco ducere ldquoser conduzidordquo subentendendo-se ad mortem Esse uso de duci implica que a execuccedilatildeo era imediata e pela espada

5 cartaz sem autor libellus sine auctore denuacutencia anocircnima a que se referiraacute Trajano na resposta Epiacutestola 97 (98) 2

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

237

sed desisse quidam ante triennium quidam ante plures annos non nemo etiam ante uiginti ltHigt quoque omnes et imaginem tuam deorumque simulacra uenerati sunt et Christo male dixerunt

7 Adfirmabant autem hanc fuisse summam uel culpae suae uel erroris quod essent soliti stato die ante lucem conuenire carmenque Christo quasi deo dicere secum inuicem seque sacramento non in scelus aliquod obstringere sed ne furta ne latrocinia ne adulteria committerent ne fidem fallerent ne depositum adpellati abnegarent Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum promiscuum tamen et innoxium quod ipsum facere desisse post edictum meum quo secundum mandata tua hetaerias esse uetueram 8 Quo magis necessarium credidi ex duabus ancillis quae ministrae dicebantur quid esset ueri et per tormenta quaerere Nihil aliud inueni quam superstitionem prauam et immodicam

9 Ideo dilata cognitione ad consulendum te decucurri Visa est enim mihi res digna consultatione maxime propter periclitantium numerum Multi enim omnis aetatis omnis ordinis utriusque sexus etiam uocantur in periculum et uocabuntur

Neque ciuitates tantum sed uicos etiam atque agros superstitionis istius contagio peruagata est quae uidetur sisti et corrigi posse 10 Certe satis constat prope iam desolata templa coepisse

dos numes e aleacutem disso amal-diccediloassem Cristo ndash atitudes a que diz-se natildeo se consegue obrigar os que satildeo verdadeira-mente cristatildeos ndash esses julguei que devia dispensar 6 Outros delatados nominalmente por informante afirmaram ser cris-tatildeos e logo disseram que natildeo que de fato haviam sido mas que tinham renunciado uns haacute mais de trecircs anos outros haacute mais tempo ainda alguns ateacute haacute mais de vinte anos Todos eles tambeacutem veneraram natildeo apenas tua imagem como as estaacutetuas dos deuses e amaldi-ccediloaram Cristo

7 Afirmavam que sua maior culpa ou erro tinha sido o costume de reunir-se num dia fixo antes do amanhecer e entre si entoar um por vez hi-nos a Cristo como a um deus e por juramento obrigar-se natildeo a algum crime mas a natildeo cometer furto nem latrociacutenio nem adulteacuterio a natildeo faltar agrave palavra dada nem intimados pela justiccedila sonegar imposto Que cumpridos esses ritos era seu costume separar-se e de novo reunir-se para receber o alimento comum poreacutem e inoacutecuo o que tambeacutem deixa-ram de realizar depois de meu edito pelo qual segundo tuas ordens eu proibira as confra-rias 8 Achei ateacute necessaacuterio mesmo por tortura arrancar a verdade de duas escravas que segundo se dizia eram ajudan-tes nada mais encontrei aleacutem de insensata e desmedida su-persticcedilatildeo

9 Por isso suspenso o inqueacuterito recorri a ti para con-sultar-te A mateacuteria pareceu-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

238

celebrari et sacra sollemnia diu intermissa repeti passimque uenire ltcarnemgt uictimarum cuius adhuc rarissimus emptor inueniebatur Ex quo facile est opinari quae turba hominum emendari possit si sit paenitentiae locus

-me digna de consulta sobre-tudo por causa do nuacutemero de acusados muitos de todas as idades de todas as ordens de ambos os sexos intimados es-tatildeo e estaratildeo em perigo⁶ Natildeo soacute as cidades mas as aldeias e os campos o contaacutegio desta su-persticcedilatildeo alcanccedilou que pode ao que parece ser detida e sa-nada 10 Consta e eacute pratica-mente certo que os templos⁷ antes quase desertos comeccedila-ram a ser frequentados e que solenidades sagradas por mui-to tempo interrompidas foram retomadas e que por toda parte se vende carne das viacutetimas de que ateacute agora se achava rariacutes-simo comprador Por isso eacute faacute-cil perceber que se pode corrigir a turba dos homens se houver lugar para arrependimento

6 estatildeo e estaratildeo em perigo uocantur in periculum et uocabuntur ldquoperigordquo em vista do supliacutecio e principalmente da pena capital

7 os templos templa Pliacutenio refere-se aos templos romanos

8 Segundo Pliacutenio chamava-se Caio Pliacutenio Ceciacutelio Segundo

Epiacutestolas Cristatildes 2Pliacutenio o Jovem Livro 10 epiacutestola 97 (98)

Traianus Plinio

1 Actum quem debuisti mi Secunde in excutiendis causis eorum qui Christiani ad te delati fuerant secutus es Neque enim in uniuersum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest Conquirendi non sunt si deferantur et arguantur puniendi sunt ita tamen ut qui negauerit se Christianum esse idque re ipsa manifestum fecerit id est supplicando dis nostris quamuis suspectus in praeteritum ueniam ex paenitentia impetret 2 Sine

Trajano a Pliacutenio

1 Tomaste as providecircn-cias que devias meu querido Segundo⁸ ao investigar as causas daqueles que te foram delatados como cristatildeos pois natildeo eacute possiacutevel constituir um princiacutepio universal que tenha por assim dizer forma precisa Natildeo haacute que ir ao encalccedilo deles se forem denunciados e incul-pados devem ser punidos res-salvando-se poreacutem que quem negar que eacute cristatildeo e tornaacute-lo manifesto pelos proacuteprios atos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

239

isto eacute venerando nossos deu-ses por mais suspeito que te-nha sido no passado consiga perdatildeo pelo arrependimento 2 Cartazes sem autor⁹ natildeo devem ter lugar em nenhuma acusaccedilatildeo pois satildeo peacutessimo exemplo que natildeo eacute proacuteprio de nosso tempo

9 cartazes sem autor libelli sine auctore Satildeo as denuacutencias anocircnimas mencionadas na epoacutestola anterior sect5 Pliacutenio parece tecirc-las levado em consi-deraccedilatildeo no processo

auctore uero propositi libelli ltingt nullo crimine locum habere debent Nam et pessimi exempli nec nostri saeculi est

Gabriele Cornelli UnBGiorgia Cecchinato UFMGGiovanni Casertano Universitagrave di NapoliGraciela Marcos Universidad de Buenos AiresGuiomar de Grammont UFOPGuumlnther Maluschke UNIFORHans Christian Klotz UFGHomero Silveira Santiago USPIngrid Cyfer UnifespIsrael Alexandria Costa UFALJeanne Marie Gagnebin PUC-SP UNICAMPJoaquim Joseacute Jacinto Escola Univer-sidade de Traacutes-os-Montes eAlto DouroJoseacute Gabriel Trindade Santos UFPBLeacutea Silveira UFLALeonardo Alves Vieira UFMGLeonel Ribeiro dos Santos Universidade de LisboaLuciano Donizetti da Silva UFJFLuigi Caranti Universitagrave di CataniaMarcelo Fernandes de Aquino UNISINOSMaacutercio Alves da Fonseca PUC-SPMarco Antonio Casanova PUC-RJMarcos Alexandre Gomes Nalli UELMarcus Sacrini Ayres Ferraz USPMaria Aparecida de Paiva Montenegro UFCMaria Joatildeo Cabrita Universidade do Minho

Martina Korelc UFGMiguel Angel de Barrenechea UNIRIOMiguel Antonio do Nascimento UFPBOsvaldo Frota Pessoa Junior USPPablo Rubeacuten Mariconda USPPatricia Maria Kauark Leite UFMGPedro Suumlssekind Viveiros de Castro UFFRafael Haddock-Lobo UFRJRicardo Nascimento Fabbrini USPRichard Theisen Simanke UFJFRoberto Bolzani Filho USPRodrigo Hayasi Pinto PUC-PRRolf Nelson Kuntz USPRomero Alves Freitas UFOPRui Antoacutenio Nobre Moreira Universidade de LisboaRuacuterion Soares Melo USPSalma Tannus Muchail PUC-SPSandro Figueiredo Reis UFRJUCAMScarlett Zerbetto Marton USPSilvio Seno Chibeni UNICAMPSimeatildeo Donizeti Sass UFUSofia Inecircs Albornoz Stein UNISINOSThana Mara de Souza UFESThelma Silveira da Mota Lessa da Fonseca UFMSThomaz Kawauche UFSUbirajara Rancan de AzevedoMarques UNESPUlysses Pinheiro UFRJVladimir Pinheiro Safatle USPZeljko Loparic UNICAMP PUC-PR

DiagramaccedilatildeoDiego Cassiano Polacchini Biason

Sumaacuterio

Editorial

EntrevistaJorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutetica e fenomenoloacutegicaDiogo Ferrer

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesGisele Candido

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisClaacuteudia Souza

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndashuma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaNuno Ribeiro

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposFabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoRubens Joseacute da Rocha

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaMaacutercio Suzuki

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoMarco Aureacutelio Werle

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmicade PiacutendaroAdriano Machado Ribeiro

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudCamila Salles Gonccedilalves

Politics without a subject David Hume on general rulesGiulia Valpione

ARTIGOS

p7

p10

p21

p41

p60

p69

p88

p98

p119

p136

p145

p163

p177

O Palco da Heteroniacutemia Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard ZenithLuiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

A melancolia diante do espelho de Jean StarobinskiFranceila de Souza Rodrigues

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y ComentaacuterioMario Caimi

ldquoCanccedilatildeo de outonordquo de Paul VerlaineRenata Cordeiro

ldquoRevoltardquo um poema antigo de PoundPaulo Licht

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e TrajanoJoatildeo Angelo Oliva Neto

RESENHAS

TRADUCcedilOtildeES

p197

p204

p207

p220

p226

p234

7

Editorial

A sexta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas eacute dedicada agrave relaccedilatildeo entre filosofia e literatura Seu nuacutecleo consiste na coletacircnea de artigos apresentados no Coloacutequio Fernando Pessoa (+ ou -) Filosofia realizado pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFSCar em 2013 A relaccedilatildeo entre filosofia e literatura na obra de Fernando Pessoa tema do evento inspirou esta sexta edi-ccedilatildeo da revista e abriu o espaccedilo para contribuiccedilotildees que tratam agraves vezes de modo mais indireto mas natildeo menos pertinente dessa relaccedilatildeo em outros campos e autores

Os entrevistados desta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas satildeo Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro pesquisadores de destaque da obra de Fernando Pessoa cujo trabalho conjunto de ediccedilatildeo e publi-caccedilatildeo de textos ineacuteditos do espoacutelio tem contribuiacutedo de maneira decisiva para a compreensatildeo da real amplitude da obra em pro-sa e poeacutetica e para uma interpretaccedilatildeo mais precisa das diferen-tes perspectivas que a animam

No primeiro artigo Diogo Ferrer analisa diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo filosoacutefica presente no poema dramaacutetico Primeiro Fausto destacando a recorrecircncia do procedimento dialeacutetico da negaccedilatildeo em passagens cruciais do drama Em seguida Gisele Candido deteacutem-se na anaacutelise do ensinamento poeacutetico atribuiacutedo a Alberto Caeiro e sua proposta de insubordinaccedilatildeo dos sentidos agraves prerrogativas do conhecimento intelectual

Munidos de evidecircncias cuidadosamente colhidas em docu-mentos ainda pouco explorados do espoacutelio Claacuteudia Souza e Nuno Ribeiro debatem sobre a dimensatildeo e o alcance da obra filosoacutefica do poeta Claudia pondera sobre o impacto da tradiccedilatildeo poeacutetico-filosoacutefica alematilde em particular do romantismo alematildeo em sua obra enquanto Nuno Ribeiro mostra como a ambiccedilatildeo filosoacutefica de Pessoa ia muito aleacutem dos ecos de leituras presen-tes nos poemas ou nas obras de ficccedilatildeo abrangendo reflexotildees mais ou menos sistemaacuteticas escritas sob a forma de diaacutelogos ensaios e fragmentos muitas vezes com a intenccedilatildeo de publicaacute--las como produccedilatildeo filosoacutefica autocircnoma agrave criaccedilatildeo heteroniacutemica

Em artigo dedicado aos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos Fabriacutecio Luacutecio mostra como para aleacutem de um simples desejo de ruptura com a tradiccedilatildeo o heterocircnimo engenheiro vislumbra um estado criativo no qual o corpo e a arte possam convergir em estreita relaccedilatildeo com o princiacutepio de forccedila assumindo-o como alternativa ao meacutetodo de medidas e proporccedilotildees da tradiccedilatildeo aristoteacutelica

Rubens Joseacute da Rocha examina no artigo ldquoFernando Pessoa e sua Filosofia da Composiccedilatildeordquo alguns aspectos da desperso-nalizaccedilatildeo do eu liacuterico no poema dramaacutetico O Marinheiro e nos heterocircnimos Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos No artigo ldquoA

8

Liberdade do Olharrdquo Maacutercio Suzuki traccedila um paralelo histoacuteri-co entre Winckelmann e Pessoa Apesar da disposiccedilatildeo uacutenica de pensamento de ambos os autores Maacutercio chama a atenccedilatildeo para a maneira como eles aspiram agrave realizaccedilatildeo de uma nova sensibilidade grega elaborando cada qual a seu modo uma teoria da arte centrada no olhar

Marco Aureacutelio Werle analisa o procedimento dialeacutetico de Peter Szondi que assim como Hegel conceitua o eacutepico como supe-rior ao dramaacutetico em sua teoria do drama moderno No artigo ldquoA Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de Piacutenda-rordquo Adriano Machado Ribeiro propotildee uma traduccedilatildeo ineacuteditaem portuguecircs da segunda Iacutestmica de Piacutendaro como ponto de par-tida para a discussatildeo sobre as caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega e o caso especiacutefico da segunda Iacutestmica em rela-ccedilatildeo aos poemas epiniacutecios

O artigo seguinte ldquoO lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agam-ben leitor de Freudrdquo de Camila Salles Gonccedilalves examina a apropriaccedilatildeo filosoacutefica que o filoacutesofo italiano faz das concepccedilotildees freudianas de fantasma e melancolia O artigo destaca que a partir dessa anaacutelise eacute possiacutevel compreender melhor como a vi-satildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo

A seccedilatildeo de artigos se encerra com uma uacutenica contribuiccedilatildeo que natildeo toca a relaccedilatildeo entre filosofia e literatura No artigo ldquoPolitics without a subject David Hume on general rulesrdquo Giulia Valpione analisa como a interpretaccedilatildeo de Hume do processo de consti-tuiccedilatildeo da subjetividade possui ganhos importantes para pensar filosoficamente a poliacutetica

Na seccedilatildeo de resenhas Luiacutes Fernandes dos Santos Nasci-mento desvenda o caraacuteter dramaacutetico do procedimento teoacuterico e criativo de Fernando Pessoa com anaacutelise da coletacircnea de tex-tos em prosa Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Ainda na seccedilatildeo de resenhas Franceila de Souza Rodrigues aborda o tema da melancolia com anaacutelise de trecircs estudos de Starobinski sobre Baudelaire livro traduzido por Samuel Titan Jr

A revista conta ainda com traduccedilotildees ineacuteditas de poemas de Rilke Verlaine e Ezra Pound e uma traduccedilatildeo das epiacutestolas de Pliacutenio e Trajano contando todas elas com uma apresentaccedilatildeo dos textos traduzidos Mario Caimi estudioso e tradutor de Kant e Espinosa traduz agora para o espanhol (como ldquoejercicios de traduccioacutenrdquo) poemas de Rainer Maria Rilke e enriquece a leitura com comentaacuterios Mario Caimi observa que a ideia de agregar comentaacuterios aos poemas se deve ao proacuteprio Rilke que pediu que seu editor intercalasse paacuteginas em branco em um exemplar das Elegias de Duiacuteno e dos Sonetos a Orfeu para que pudesse anotar suas proacuteprias explicaccedilotildees sobre os textos mais difiacuteceis Renata Cordeiro traduz o famoso poema de Verlaine ldquoCanccedilatildeo de outonordquo publicado no livro Poemas Saturninos em 1867 com atenccedilatildeo especial dedicada agrave estrutura riacutetmica do original

9

francecircs e agraves diversas possibilidades de traduzir o poema em portuguecircs de acordo com a mesma estrutura do original em francecircs Paulo Licht traduz ldquoRevoltardquo poema pouco conhecido de Ezra Pound publicado em seu livro Personae de 1909 A apresentaccedilatildeo procura situar o ldquoRevoltardquo em meio aos poemas iniciais de Pound e dar alguma pista do que seria sua teacutecnica de ldquopersonalizaccedilatildeordquo Para finalizar Joatildeo Angelo Oliva Neto traduz as ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano epiacutestolas que figuram como o mais antigo testemunho do conflito entre o Impeacuterio Romano e os primoacuterdios da era cristatilde A apresentaccedilatildeo defendendo a autenticidade das cartas em face de querela ini-ciada no seacuteculo XVII destaca o caraacuteter exemplar dos testemu-nhos que o documento encerra

Este nuacutemero da Ipseitas com textos de tal amplitude concen-traccedilatildeo e diversidade convida o leitor a escolher o que mais lhe interessar ou entatildeo a ler cada um deles Nos dois casos cabe talvez a pergunta se o simples conectivo ldquoerdquo em ldquoFilosofia e Literaturardquo antes separa do que adiciona dois termos tatildeo proacutexi-mos

Rubens Joseacute da Rocha e Paulo Licht dos Santos

10

Entrevista com Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Jeroacutenimo Pizarro eacute professor da Universidade dos Andes titular da Caacutetedra de Estudos Portugueses do Instituto Camotildees na Colocircmbia e doutor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006) em Literaturas Hispacircnicas e Linguiacutestica Portuguesa Participou de diver-sos projetos referentes ao espoacutelio de Fernando Pessoa como Obra completa de Aacutelvaro de Campos (2015) e Obra Completa de Ricardo Reis (2016) publicadas pela Tinta-da-China aleacutem de ensaios criacuteticos como A Arca de Pessoa (2007) em parceria com Steffen Dix e Pes-soa Existe (Aacutetica 2012)

Jorge Uribe eacute doutor pelo Programa em Teoria da Literatura da Uni-versidade de Lisboa com tese dedicada a biografia intelectual de Fer-nando Pessoa e os conceitos de criacutetica esteacutetica e despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica nas obras de Oscar Wilde Walter Pater e Matthew Arnold Eacute membro do projeto criacutetico e editorial Estranhar Pessoa associado ao Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lis-boa (IFL) e tem colaborado com diversas ediccedilotildees criacuteticas das obras de Fernando Pessoa dentre elas Sebastianismo e Quinto Impeacuterio (Aacutetica 2011) Prosa de Aacutelvaro de Campos (Aacutetica 2012) e Obras Completas de Ricardo Reis (Tinta-da-China 2016)

_______________________________

IPSEITAS O que despertou seu interesse pelo estudo da obra de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO PIZARRO Desculpem a tautologia mas a obra mesma o espanto que geram certos textos poeacuteticos e em pro-sa Mas o momento-revelaccedilatildeo foi o arquivo a sua materialida-de as suas formas natildeo textuais de iluminar certos textos a sua vastidatildeo o seu segredo a sua beleza a sua diversidade Toda uma literatura para passar ali imerso toda uma vida embora tenha preferido fugir

JORGE URIBE Bem acho que foi um processo de contiacutenuos acasos O interesse e a praacutetica sobre esse interesse isto eacute o estudo foram acordando e tomando posse sem que eu desse por isso e continua um pouco assim como se eu tivesse adqui-rido um haacutebito que foi encontrando formas de se desenvolver Na parte anedoacutetica posso contar que na adolescecircncia caiu nas minhas matildeos uma ediccedilatildeo ldquopiratardquo que alguns sebos em Bogotaacute

11

faziam autocircnoma e ilegalmente de livros difiacuteceis de encontrar Essa ediccedilatildeo tinha uns poucos poemas assinados por Fernando Pessoa Ricardo Reis Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos e natildeo vinham acompanhados de nenhuma nota explicativa nem creacuteditos de traduccedilatildeo Eu tive a sorte rara de ler pela primei-ra vez esses autores desconhecidos sem ter que pensar que eram um soacute eu era portanto absolutamente ignorante de qual-quer coisa acerca de Pessoa um autor que para esse momen-to ndash comeccedilos da deacutecada de 2000 ndash era conhecido nos ciacuterculos especializados de Bogotaacute mas ausente nos curriacuteculos escolares e universitaacuterios e certamente distante de adolescentes como eu que natildeo tiacutenhamos uma biblioteca em casa O resultado foi que gostei muito de Aacutelvaro de Campos enquanto Fernando Pes-soa me pareceu ter uns poucos versos contundentes lembro perfeitamente onde estava sentado a primeira vez que li ldquoAu-topsicografiardquo Por outro lado Caeiro e Reis me resultaram de-sinteressantes natildeo me disseram nada nesse momento o meu primeiro pensamento foi o de achar muito estranho que algueacutem tivesse posto esses autores todos num mesmo livro sendo que uns eram tatildeo bons e os outros natildeo Eu era um leitor muito des-norteado e demorei talvez um ano com essa ideia eram tempos sem Google Mais tarde e com acesso a melhores ediccedilotildees e traduccedilotildees o estranhamento se consolidou quando soube que o motivo pelo qual esses autores todos partilhavam um mesmo livro era ainda muito mais surpreendente do que eu tinha ima-ginado logo virou desafio Jaacute enquanto eu era aluno do progra-ma de Humanidades e Literatura da Universidad de los Andes Pessoa virou um nome resplandecente num santoral que eu ia cultivando nas conversas com os amigos ao lado de Ceacutesar Val-lejo Wilde Pizarnik Dostoieacutevsky quando chegou o momento de fazer uma monografia de final de curso eu queria que fosse sobre um desses autores que na eacutepoca eram os que mais me entusiasmavam e Pessoa era o uacutenico que nunca tinha sido par-te dos cursos da faculdade Portanto havia muita coisa para ir procurar pela minha conta escolhi-o e sendo a minha uma faculdade muito liberal no sentido claacutessico do termo concede-ram-me a oportunidade Veio tambeacutem o Eccedila de Queiroacutes espe-cificamente A Correspondecircncia de Fradique Mendes e o meu trabalho de final de curso acabou sendo uma aproximaccedilatildeo entre dois textos e dois momentos da literatura portuguesa agrave volta do problema da autoria embora eu natildeo tivesse nenhuma formaccedilatildeo escolarizada em letras portuguesas Nesse contexto foi muito importante ter como orientador um dos maiores especialistas na obra de Pessoa Jeroacutenimo Pizarro que era ex-aluno da minha faculdade ndash hoje professor ndash que morava entatildeo em Portugal e que conheci por acaso comecei a aprender portuguecircs e pouco tempo mais tarde cheguei a Portugal e agrave gigantesca surpresa que eacute o espoacutelio de Fernando Pessoa Com isso uma viagem que teria sido de 4 meses acabou sendo de 6 anos desde entatildeo a leitura estranhada da obra pessoana eacute para mim praacutetica

12

quase quotidiana e natildeo a tenho longe da vida

IPSEITAS Em 2015 juntamente com Antonio Cardiello e Felipa Freitas vocecircs participaram da ediccedilatildeo do volume Obra completa de Aacutelvaro de Campos Vocecircs acreditam que em termos edito-riais o trabalho com esse heterocircnimo esteja concluiacutedo se eacute que podemos falar em conclusotildees quando tratamos de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO Praticamente sim Mas com algumas ressalvas Essa Obra Completa teve um primeiro anuacutencio e uma primei-ra preparaccedilatildeo o livro Prosa de Aacutelvaro de Campos aparecido em junho de 2012 em que se incluiu por exemplo uma maior quantidade de material preparatoacuterio ou geneacutetico de alguns tex-tos tal como de ldquoUltimatumrdquo que tinha sido publicado em Sen-sacionismo e Outros Ismos (2009) de forma extensa Essa Obra completa foi posterior a artigos como ldquoSobre a primeira gaze-tilha de Aacutelvaro de Camposrdquo (2012 wwwpessoapluralcom) e comeccedilou haacute pouco a ser complementada por contributos tais como ldquoEditar Aacutelvaro de Campos o primeiro Arco de Triumphordquo (em Genuiacutena Fazendeira ndash os frutiacuteferos 100 anos de Cleonice Berardinelli) e outros em processo de publicaccedilatildeo Natildeo conside-ro que a Obra completa de Aacutelvaro de Campos seja uma conclu-satildeo mas o que falte nela que eacute miacutenimo seraacute apresentado e discutido em proacuteximos artigos

JORGE Acho que eacute uma questatildeo agudizada pela presenccedila do adjetivo ldquocompletardquo no tiacutetulo Poreacutem esse adjetivo possui um significado mais restrito do que seria esperado mais relacio-nado com a histoacuteria editorial da ldquoobra de Camposrdquo do que com uma descriccedilatildeo essencialista dela Explico desde os anos 1940 Campos foi apresentado pelos editores poacutestumos de Pessoa principalmente como autor de poemas embora essa imagem deixasse de fora uma parte importante daquilo que Pessoa deu a conhecer sob esse nome durante a sua vida Na verdade ldquoCampos publicourdquo vaacuterias e importantes prosas nas revistas Portugal Futurista Contemporacircnea Athena e Presenccedila Contu-do durante um tempo consideraacutevel a ideia foi como disse que a obra de Campos eram os poemas conhecidos e os que esta-vam ainda ineacuteditos Foi esse o principal interesse dos primeiros editores da Aacutetica Luiacutes de Montalvor e Joatildeo Gaspar Simotildees e foi isso que procuraram editar como o ldquoCampos definitivordquo Soacute no final dos anos oitenta Teresa Rita Lopes abriu o olhar dos leitores noutra direccedilatildeo e publicou durante a deacutecada de 1990 vaacuterios livros com a autoria ldquode Camposrdquo Vida e obra do enge-nheiro Livro de Versos e Notas para a recordaccedilatildeo do meu mes-tre Caeiro para nomear alguns que surgiram com uma ideia de complementaridade entre si mas natildeo de integraccedilatildeo Em 2012 Jeroacutenimo Antonio e eu organizamos o volume Prosa de Aacutelvaro de Campos para uma nova seacuterie da Aacutetica que infelizmente dei-

13

xou de existir pouco tempo depois O volume reivindicava com forccedila e pela primeira vez de forma abrangente essa faceta de Campos menos referida pela criacutetica mas que jaacute desde antes da morte de Pessoa era fundamental para a vida puacuteblica do heteroacutenimo e tambeacutem para a configuraccedilatildeo do chamado ldquodrama em genterdquo Portanto esse ldquocompletardquo no tiacutetulo de 2015 refere-se mais ao fato de que partes que estavam dispersas estatildeo final-mente reunidas Natildeo deveraacute entender-se por ldquocompletardquo defi-nitiva Todo os leitores pessoanos e mais incomodamente os seus editores sabemos que no caso de Pessoa estaacute-se sempre a correr riscos e a fazer apostas alguns manuscritos satildeo muito difiacuteceis de ler e certamente ainda pode haver melhorias (ateacute por motivos tecnoloacutegicos as ferramentas de ediccedilatildeo vatildeo mudando para melhor) tambeacutem pode haver papeis que estejam perdidos e venham a aparecer supomos que satildeo poucos A arrumaccedilatildeo de textos que foram deixados em estados de dispersatildeo e frag-mentaccedilatildeo por parte do autor eacute sempre uma tarefa especulativa tambeacutem o eacute a dataccedilatildeo e serializaccedilatildeo de suportes e materiais ge-neacuteticos Melhores formas de organizar algum texto podem vir a ser propostas ou ldquodescobertasrdquo por editores futuros Eles assim como noacutes teratildeo a vantagem de basear-se no trabalho jaacute feito para acataacute-lo melhoraacute-lo ou contestaacute-lo

IPSEITAS Como vocecircs avaliam o estaacutegio atual de ediccedilotildees criacute-ticas que procuram estabelecer um padratildeo editorial para os ma-nuscritos Ainda haacute uma ldquoEquipa Pessoardquo como a de 1985 aos moldes de uma forccedila-tarefa ou tem prevalecido o trabalho de investigadores isolados Como satildeo planejadas as publicaccedilotildees

JEROacuteNIMO A ediccedilatildeo criacutetica eacute um sonho que como Portugal estaacute por cumprir ldquoCumpriu-se o Mar e o Impeacuterio se desfez Se-nhor falta cumprir-se Portugalrdquo Falta cumprir-se um Pessoa plenamente editado Mas essa eacute uma tarefa monumental que nunca foi assumida como tal Haacute muitos trabalhos e esforccedilos mas os poliacuteticos ainda natildeo perceberam o valor simboacutelico da obra pessoana A ldquoEquipa Pessoardquo que houve foi pouco apoiada e passado pouco tempo esquecida por diversas instituiccedilotildees portuguesas e natildeo soacute Se Pessoa fosse reconhecido como o tesouro nacional que foi declarado (para evitar leilotildees que se tornaram vendas silenciosas) Portugal e os paiacuteses de liacutengua portuguesa seriam um sonho ainda maior

JORGE Eacute uma questatildeo muito pertinente porque estaacute desen-volvendo-se de forma inovadora enquanto respondo agrave pergunta A Equipa Pessoa tal como constituiacuteda nos anos oitenta sob a direccedilatildeo de Ivo Castro teve diversos periacuteodos alguns de alta produccedilatildeo outros de silecircncio quase absoluto Por exemplo entre 2006 e 2010 a equipa publicou uns oito tiacutetulos enquanto entre 2011 e 2015 somente dois Contudo o uacuteltimo tiacutetulo eacute talvez um dos mais importantes da seacuterie e em certo sentido estaacute na gecirc-

14

nese mesma da constituiccedilatildeo da Equipa trata-se dos poemas de Alberto Caeiro organizados por Ivo Castro Todos os tiacutetulos da coleccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para qualquer leitor que queira aprofundar o seu conhecimento da obra pessoana e satildeo tambeacutem a melhor porta de entrada ao espoacutelio antes do espoacutelio Nomes como Luiacutes Prista Joatildeo Dioniacutesio e Luiacutes Fagundes Duarte membros da Equipa Pessoa continuam sendo referecircncias im-portantes e ediccedilotildees como o da Pauly Ellen Bothe ou do Enrico Martines satildeo referecircncias de grande utilidade para qualquer es-tudo sobre Pessoa Ainda a Imprensa Nacional-Casa da Moe-da editora da Equipa Pessoa inaugurou em 2015 uma coleccedilatildeo ensaiacutestica dedicada ao Pessoa e que a comeccedilos de 2016 teraacute um segundo tiacutetulo que reuacutene algumas das listas de projetos do espoacutelio pessoano Portanto esse labor continua embora natildeo saibamos se haveraacute novas ediccedilotildees da chamada ldquoSeacuterie Maiorrdquo Paralelamente natildeo considero que nas ediccedilotildees pessoanas te-nha havido muitos pesquisadores isolados em realidade posso pensar sobretudo num caso notaacutevel e muito importante o da Teresa Sobral Cunha A maior parte das ediccedilotildees de Pessoa embora assinadas por um ou dois nomes satildeo elaboradas no marco de esforccedilos editoriais para os quais contribuem muitas pessoas Eacute o caso das ediccedilotildees da INCM e tambeacutem da Assiacuterio amp Alvim que reuacutene nomes como Manuela Parreira da Silva Ana Maria Freitas Fernando Cabral Martins e Richard Zenith es-pecialistas que partilham ideias e mantecircm comunicaccedilatildeo entre si Por outro lado ainda que os criteacuterios de apresentaccedilatildeo das ediccedilotildees da Assiacuterio difiram daqueles da ediccedilatildeo criacutetica da INCM eacute impossiacutevel ignorar que haacute um diaacutelogo no interior das ediccedilotildees e nenhum editor uma vez reconhecida uma melhoria conseguida por outro deixaraacute de consideraacute-la na sua proacutexima ediccedilatildeo Um caso paradigmaacutetico eacute o do Livro do Desassossego Claro so-brevivem poleacutemicas mas soacute temos (noacutes leitores) a ganhar com elas sempre e quando sejam levadas de maneira clara no acircm-bito acadecircmico Mais recentemente em 2013 surgiu a coleccedilatildeo pessoana da Tinta-da-China onde Jeroacutenimo Pizarro conta com coautorias e colaboraccedilotildees de um grupo significativo de pes-soas entre os quais Antonio Cardiello Patricio Ferrari e Joseacute Barreto Nesse sentido a ldquoforccedila-tarefardquo cresce e multiplica-se ao contraacuterio de tornar-se um ciacuterculo restrito como pode ter sido o primeiro plano patrocinado pelo estado portuguecircs nos anos oitenta com uma agenda bem delimitada Ainda recentemente a Tinta-da-China comeccedilou a imprimir seus livros no Brasil e eacute de esperar que isso traga novas possibilidades e novos olha-res Eacute tambeacutem importante notar que alguns dos atuais editores de Pessoa embora mantenham um viacutenculo forte com Portugal natildeo residem nesse paiacutes A tecnologia tem permitido que esse movimento descentralizador se manifeste produtivo O principal continua sendo o esforccedilo por dar a conhecer responsavelmen-te a obra de Pessoa a um puacuteblico cada vez maior Nesse sen-tido trata-se de um esforccedilo colaborativo Pessoalmente para

15

mim o mais interessante ainda estaacute por acontecer Agrave medida que Pessoa necessariamente comeccedila a migrar e a desafiar as possibilidades da ediccedilatildeo digital de acesso livre internacional as possibilidades de leitura dos seus textos e manuscritos e de penetraccedilatildeo em novas obras e novas vidas crescem Existe um importante projeto dedicado ao Livro do Desassossego se-diado na Universidade de Coimbra e em breve seraacute conhecido um projeto de publicaccedilatildeo digital de grandes dimensotildees produ-to da colaboraccedilatildeo entre universidades de Portugal Alemanha e mais recentemente da Universidade de Satildeo Paulo (USP) instituiccedilatildeo onde se consolida atualmente um Grupo de Estudos Pessoanos coordenado pelo professor Caio Gagliardi Cada vez mais esta empreitada exige grupos de trabalho por vezes de caraacuteter multidisciplinar no contexto do que hoje eacute conhecido como digital humanities Contudo o meacutetodo de planejamento dos novos esforccedilos editoriais continua sendo muito semelhante ao das ediccedilotildees criacuteticas da Equipa Pessoa revisitar o que jaacute foi feito confrontar com os originais questionar identificar lacunas ou possiacuteveis melhorias e oferecer ao puacuteblico novas portas e ja-nelas para o vasto legado que eacute a escrita de Fernando Pessoa

IPSEITAS Qual o papel de interpretaccedilotildees biograacuteficas em que pesa a anaacutelise de teor psicoloacutegico do autor como o livro Vida e obra de Fernando Pessoa de Joatildeo Gaspar Simotildees nessa tarefa de definir um padratildeo editorial para a obra

JEacuteROacuteNIMO A meu ver quase nenhum Pode levar a criar ten-tativas fantaacutesticas de textos iacutentimos ou autobiograacuteficos de um autor muito introspectivo a lermos em excesso as suas cartas de amor a falar apenas da sua sexualidade como de um fetiche mas a biografia que interessa em termos editoriais natildeo eacute uma de teor psicoloacutegico mas intelectual Pessoa pode ter tido medo da loucura por volta de 1907 mas o que estava a ler para a seguir escrever tantos escritos sobre o gecircnio e a loucura Eacute isto uacuteltimo que me interessa mais Claro quero saber da avoacute Dioniacutesio e da famiacutelia Pessoa que encontrou em Lisboa quando regressou em 1905 mas quais foram as suas investigaccedilotildees Quando descobriu os termos histeria e neurastenia Eacute isso que tentei responder em ediccedilotildees e estudos anteriores

JORGE Mais do que as interpretaccedilotildees biograacuteficas por si mes-mas o que resulta marcante para a ediccedilatildeo e leitura da obra eacute a importacircncia da questatildeo escrita-vida que natildeo escapou a Si-motildees jaacute em 1929 e particularmente no seu livro icocircnico dos anos cinquenta Esse problema estaacute no nuacutecleo duro da obra pessoana e especialmente na ideia do ldquodrama em genterdquo Se isto eacute percebido em chave confessional-biograacutefica psicanaliacuteti-ca ou como exploraccedilatildeo luacutedica das possibilidades da linguagem depende dos leitores Os conceitos de autobiografia confissatildeo e ficccedilatildeo satildeo objetivamente constitutivos da obra satildeo postos

16

em causa e instrumentalizados continuamente nos textos que a conformam Faz-se necessaacuterio que o leitor reflita acerca des-ses conceitos pois a categorizaccedilatildeo mesma depende da sua participaccedilatildeo Para isso eacute importante que conte com algumas informaccedilotildees biograacuteficas com diferentes graus de historicidade O trabalho de Joatildeo Gaspar Simotildees eacute de grande importacircncia e continua sendo fundamental embora possamos natildeo estar jaacute igualmente interessados nas conclusotildees de algumas das suas anaacutelises ldquopsicologistasrdquo e possamos corrigir (e tem sido assim) muitas das informaccedilotildees histoacuterico-biograacuteficas que ele achou ter fixado Contudo a compreensatildeo de aspectos do percurso vi-tal de Pessoa enquanto autor as instacircncias editoriais das suas publicaccedilotildees em vida e o desenvolvimento dos seus muacuteltiplos projetos como particularidades do seu processo criativo satildeo todos aspectos que interessaram a Simotildees e que continuam tendo grande importacircncia para uma leitura abrangente da obra As mais recentes ediccedilotildees estatildeo cada vez mais atentas a essas informaccedilotildees que contrastam a atividade editorial de Pessoa ndash enquanto esteve vivo ndash e o seu legadoarquivo Por outro lado as ediccedilotildees criacuteticas implicam necessariamente uma aproxima-ccedilatildeo ao processo criativo do autor a partir da sua componente material No caso de Pessoa os editores podem estar mais ou menos certos de estarem seguindo com fidelidade a ldquointenccedilatildeordquo do autor ou a pragmaacutetica materialidade do suporte documental mas sempre as suas proacuteprias convicccedilotildees e vieses criacuteticos to-mam parte no jogo interpretativo Reconhecer isso eacute importan-te natildeo haacute ediccedilatildeo sem leitura nem leitura sem interpretaccedilatildeo e pode haver diversos graus de participaccedilatildeo por parte dos edito-res nas ediccedilotildees mas eles sempre estatildeo aiacute a mediaccedilatildeo editorial natildeo eacute transparente o que natildeo quer dizer que por isso seja con-denaacutevel Como leitores e em geral como animais pensantes tendemos a achar sentido em processos causativos ou sequen-ciais por isso nos interessa por exemplo saber se um texto foi escrito antes ou depois de outro pela mesma matildeo ou por outra Entendemos nessas sequecircncias uma relaccedilatildeo que se tece entre dois ou mais elementos de maneira distinta a se a relaccedilatildeo fosse contraacuteria Uma cronologia da obra uma cronologia do desenvol-vimento dos textos embora natildeo exista para resolver de maneira irrevogaacutevel o sentido dos mesmos faz parte de aquilo que os torna para noacutes legiacuteveis e sedutores essa cronologia constitui uma visatildeo biograacutefica da obra literaacuteria como processo vital em-bora encenado nos limites e possibilidades da linguagem

IPSEITAS A famosa carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro escrita em 13 de janeiro de 1935 parece ter guiado por anos a fio parte consideraacutevel da criacutetica pessoana O que vo-cecircs pensam a respeito do uso frequente desse documento que ao lado de poemas como ldquoIstordquo e ldquoAutopsicografiardquo publicados em abril de 1933 na Presenccedila costuma servir de base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircnimos

17

JEROacuteNIMO Eacute uma carta fundamental e foi concebida como um testamento por Fernando Pessoa A meu ver natildeo serve ldquode base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircni-mosrdquo mas para discutir a ldquoverdaderdquo desse processo e a relaccedilatildeo como diria Goethe entre poesia e verdade Ora cada pormenor dessa carta abre mil e uma questotildees relevantes e eacute difiacutecil assi-nalar outro texto pessoano que gere tantas e tatildeo apaixonantes questotildees linha a linha e palavra a palavra

JORGE Pessoalmente o que mais me interessa eacute ver como a correspondecircncia de Pessoa em particular as cartas a Casais Monteiro mas tambeacutem as cartas a Joatildeo Gaspar Simotildees a Ar-mando Cocircrtes-Rodrigues entre outros podem ser lidas ao lado de poemas como ldquoAutopsicografiardquo ou entatildeo ldquoTabacariardquo ou as odes de Reis e natildeo por cima deles como se fizessem parte de um niacutevel diferente do discurso da obra A relaccedilatildeo que me interessa mais nesses textos eacute de contiguidade e natildeo de so-breposiccedilatildeo Se alguma ldquoexplicaccedilatildeordquo pode ser retirada da carta a respeito dos poemas eacute por semelhanccedila por analogia uma re-laccedilatildeo de familiaridade que existe no meio daquilo que podemos chamar a ldquoescrita de Fernando Pessoardquo Acho justo que esses textos estejam na base de algumas interpretaccedilotildees ndash satildeo textos extraordinaacuterios ndash e entendo que sejam preferidos pelos leitores em contraposiccedilatildeo a outros Poreacutem como eles a obra toda na sua incontornaacutevel dimensatildeo inconclusiva eacute relevante para ler ldquoFernando Pessoardquo o homem implicado na literatura de si proacute-prio Considero suspeita a posiccedilatildeo de um criacutetico que se conven-ccedila de que por ter lido a carta a Casais Monteiro que foi batizada de maneira espuacuteria ldquocarta sobre a geacutenese dos heteroacutenimosrdquo obteve uma imagem definitiva do processo geneacutetico ali descrito e que ache que essa imagem eacute de natureza radicalmente dis-tinta da oferecida pelas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo de Aacutelvaro de Campos Acho menos interessante ainda a posiccedilatildeo de outro criacutetico que leia essa carta e pense que se trata de uma cambada de mentiras

IPSEITAS Atualmente parece correto afirmar haver pelo me-nos trecircs modalidades de pensamento em jogo nos heterocircnimos o poeacutetico o filosoacutefico e o miacutestico Vocecircs acham possiacutevel falar de um pensamento cultural poliacutetico ou pedagoacutegico em escritos como por exemplo os de Ricardo Reis e os de Antoacutenio Mora sobre o paganismo Qual bibliografia vocecircs indicariam para o estudo dessas diferentes perspectivas

JEROacuteNIMO Natildeo sei bem o que responder Nem sempre vejo um pensamento ldquomiacutesticordquo nem sempre vejo uma vertente ldquopeda-goacutegicardquo Talvez fuja parcialmente da questatildeo citando um artigo de Antonio Cardiello ldquoO devir-pagatildeo e o regresso aos deusesrdquo publicado em Nietzsche e Pessoa Ensaios (2016) ldquoTranscen-

18

dendo todas as Igrejas todos os sistemas todas as crenccedilas na aceitaccedilatildeo superior das diversas verdades em que se possa indagar a Verdade o neopagatildeo admitiria entatildeo segundo a va-riante perspectivada pelo ortoacutenimo todos os deuses na larga capacidade do seu panteatildeo O Paganismo Superior ou paga-nismo transcendental para Fernando Pessoa seria ainda uma forma de politeiacutesmo supremo jaacute que na eterna mentira de to-dos os deuses de todas as doxas e de todas as aparecircncias as vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas mais natildeo seriam do que frutos mitoloacutegicos da Verdade perspectivas do misteacuterio a haver

JORGE Acho que haveraacute quase tantas perspectivas de aproxi-maccedilatildeo agrave obra como leitores Eacute muito difiacutecil destrinccedilar os limites de interesse dos textos pessoanos Textos exclusivamente filo-soacuteficos natildeo satildeo carateriacutesticos da obra e por traacutes dos poemas de Reis ou de Caeiro soacute para dar um exemplo existem reflexotildees filosoacuteficas de grande calado que natildeo estatildeo fora do fazer poeacutetico O mesmo pode ser dito sobre os textos assinados por Pessoa sobre Portugal ou de poemas como ldquoA memoacuteria do presidente--rei Sidoacutenio Paesrdquo neles a fronteira entre o poeacutetico e o poliacutetico eacute marcadamente difusa ndash passe-se o oxiacutemoro por ser pertinente O ldquodrama em genterdquo implica uma reflexatildeo sobre relaccedilotildees de tipo pedagoacutegico mas a perspectiva eacute complementar entre por exemplo o que afirma Campos nas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo e o que Pessoa assina na sua carta a Ca-sais Monteiro acerca do magisteacuterio de Caeiro Os textos pesso-anos tendem agrave confluecircncia embora o resultado dessa confluecircn-cia se manifeste por vezes em oposiccedilotildees Satildeo textos em certa forma pensados para resistir ao dogmatismo Sobre a noccedilatildeo de magisteacuterio na obra pessoana recomendo a leitura do mais recente livro de Antoacutenio M Feijoacute acerca de Pessoa e Teixeira de Pascoais Sobre o caso de Mora e Reis uma das maiores dificuldades para a leitura decorre de tratar-se de dois estilos de escrita que satildeo frequentemente indistinguiacuteveis inclusive para o proacuteprio Pessoa que fez que dezenas de textos oscilassem en-tre um autor e outro e em muitos casos parece ter desistido ou adiado indeterminadamente a tarefa de definir o que pertenceria a quem Recentemente comeccedilamos a conhecer melhor alguns textos Em 2013 Manuela Parreira da Silva apresentou uma vi-satildeo bastante coesa do que seriam as obras de Antoacutenio Mora numa ediccedilatildeo publicada pela Assiacuterio Em 2016 Jeroacutenimo Pizarro e eu publicamos a obra ldquocompletardquo ndash veja-se o sentido do termo numa resposta anterior ndash de Ricardo Reis da qual uma das par-tes mais relevantes satildeo as diferentes tentativas de elaborar um prefaacutecio agrave obra do mestre Caeiro tarefa que teve vigecircncia no atelier de escrita pessoano durante quase vinte anos Sem duacute-vida os textos reunidos nas ediccedilotildees mais recentes contribuem para a leitura interpretativa de alguns assuntos importantes da obra de Pessoa tais como o ldquopaganismordquo mas sobretudo essa perspectiva mais ampla ajuda a ver que natildeo haacute afirmaccedilotildees

19

completas ou cristalizadas a esse respeito Pelo contraacuterio nos textos e rascunhos faz-se reconheciacutevel um desenvolvimento da escrita que instrumentaliza os temas na configuraccedilatildeo de estilos literaacuterios e entidades autorais os temas estatildeo ao serviccedilo des-ses estilos e entidades e natildeo o contraacuterio Por outro lado haacute uma fronteira muito cinzenta entre o tipo de interesse por traacutes de fazer mapas astrais interpretar profecias e escrever centenas de versos decassiacutelabos A importacircncia que queira por exemplo ser-lhe concedida ao fato biograacutefico de Pessoa ter conhecido pessoalmente Aleister Crowley o famoso mago inglecircs venera-do por Jimmy Page e por Raul Seixas em 1930 depende de diversos fatores muitos dos quais associados agrave bagagem inter-pretativa de cada leitor e agraves suas proacuteprias crenccedilas e interesses Sobre esse assunto satildeo relevantes por exemplo os trabalhos interpretativos e historiograacuteficos de Marco Pasi e Steffen Dix Por outro lado a escrita pessoana associada agrave maccedilonaria ou o rosacrucianismo tambeacutem pode ser objeto de estudo o que natildeo necessariamente implica que se esteja a definir qual eacute o viacutenculo de Pessoa com qualquer uma dessas ordens Nesse sentido satildeo importantes e contrastantes os trabalhos de Pedro Teixeira da Mota e de Joseacute Barreto Pessoa oferece uma diversidade de assuntos de leitura notaacutevel e o leitor pode encontrar muitos temas agrave medida da sua curiosidade o difiacutecil eacute pretender que um deles possa submeter todos os outros para aleacutem de um conceito muito generoso de ldquoliteraturardquo Poderia ser pertinente poreacutem ter presente que em alguns casos os ldquotemasrdquo tratados por Pes-soa ou pelas suas criaturas lembram o suculento pedaccedilo de carne do qual falava T S Eliot ldquoThe chief use of the lsquomeaningrsquo of a poem in the ordinary sense may be () to satisfy one habit of the reader to keep his mind diverted and quiet while the poem does its work upon him much as the imaginary burglar is always provided with a nice bit of meat for the house-dogrdquo The use of poetry and the use of criticism)

IPSEITAS Jeroacutenimo no livro Pessoa existe publicado pela Aacuteti-ca em 2012 vocecirc escreveu ldquoPara aleacutem da indicaccedilatildeo de uma ordem falta-nos muitas vezes uma visatildeo de conjuntordquo Eacute possiacute-vel mensurar as consequecircncias dessa ausecircncia de uma visatildeo de conjunto nos trabalhos de criacutetica e de ediccedilatildeo

JEROacuteNIMO Entendo que sim Natildeo apenas porque jaacute existiram vaacuterios projetos de laquoObra completaraquo que falharam pela ausecircncia dessa visatildeo e porque jaacute foram escritas vaacuterias biografias com ig-noracircncia do espoacutelio pessoano mas porque para editar Pessoa embora seja laquochatoraquo (e a expressatildeo laquoque chaticeraquo eacute muito por-tuguesa) eacute preciso percorrer milhares de papeacuteis Praticamente nada estaacute em um nuacutecleo soacute e depois interessa e eacute relevante o diaacutelogo entre leitura e criaccedilatildeo entre os livros lidos e os papeacuteis escritos

20

IPSEITAS Ainda a propoacutesito do livro Pessoa existe na oca-siatildeo de seu lanccedilamento vocecirc disse ao programa Ler + Ler Me-lhor da TV RTP ldquoSinto que ultimamente estamos a falar muito a seacuterio de Fernando Pessoa que estamos a tornaacute-lo um objeto de culto () Sinto que eacute necessaacuterio descontrair mais o discurso sobre Fernando Pessoa () tem que ser mais informalrdquo Qual estrateacutegia podemos assumir na tentativa de conciliar a inves-tigaccedilatildeo criacutetica com a necessidade de um discurso mais des-contraiacutedo sobre o autor E quais implicaccedilotildees decorrem dessa tendecircncia em tornar Fernando Pessoa um ldquoobjeto de cultordquo

JEROacuteNIMO Noacutes temos que procurar a meu ver ser scholars de excelecircncia e investigadores capazes de transmitir o que des-cobrimos haacute textos ndash como a ediccedilatildeo criacutetica do Livro do Desas-sossego (2010) ndash que tem que ter um tom e uma certa dimen-satildeo e haacute outros ndash tipo Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016) ndash que devem ter outro tom e outras pretensotildees Num artigo intitulado ldquoO jogo do desassossegordquo (2014) publica-do em Central de Poesia II escrevi ldquoTalvez seja o momento de ensaiarmos uma escrita menos seacuteria ou melhor com um tipo de seriedade menos solene em relaccedilatildeo a Fernando Pessoa Porquecirc Porque acredito que Pessoa preparou uma grande ar-madilha para a posteridade e que todos noacutes caiacutemos nela Creio que haacute dias em que tambeacutem noacutes temos de nos equilibrar numa soacute perna como uma iacutebis como Pessoa como quem levitardquo Uma implicaccedilatildeo delicada de tornar Pessoa um objeto de culto eacute a paralisia fica congelado no tempo embora ainda esteja por co-nhecer e numa entrevista de 1923 ele proacuteprio tenha respondi-do em jeito de conclusatildeo que ldquoNa eterna mentira de todos os deuses soacute os deuses todos satildeo verdaderdquo

Perguntas elaboradas pelos doutorandos Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza (UNB) Mariella Augusta Pereira (UNICAMP) e Rubens Joseacute da Rocha (UFSCar)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

21

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegicaFernando Pessoa A Dialectical and Phenomenological Approach

Palavras-chave Pessoa Nada Negaccedilatildeo Fausto Heteroniacutemia Filosofia da Literatura Poeacutetica da SensaccedilatildeoKeywords Pessoa Nothingness Negation Faust Heteronymy Philosophy of Literatu-re Poetics of Sensation

RESUMO Este estudo expotildee a estrutura filosoacutefica sistemaacuteti-ca da poesia de Fernando Pessoa Esta estrutura funda-se nos conceitos de negativo natildeo-ser e nada A experiecircncia obsessi-va do nada e a explicaccedilatildeo da sua dialeacutetica estaacute exemplificada principalmente no Fausto Uma Trageacutedia Subjetiva O negativo eacute em seguida exposto como a distacircncia entre mim e eu mes-mo que eacute a chave da dialeacutetica pessoana da subjetividade entre verdade e fingimento sensaccedilatildeo e realidade pensamento e sen-timento A heteroniacutemia eacute entatildeo explicada como esta distacircncia de si proacuteprio ie a negaccedilatildeo da identidade e ldquooutrar-serdquo Satildeo apresentadas sete teses sobre a heteroniacutemia como conceito po-eacutetico e filosoacutefico procurando mostrar-se que ela natildeo deve ser considerada uma anomalia mas antes como o estado normal da criaccedilatildeo artiacutestica uma vez que o autor e a obra satildeo criados simultaneamente A posiccedilatildeo fenomenoloacutegica de Alberto Caeiro eacute em seguida apresentada como a soluccedilatildeo para os problemas dialeacuteticos da obra de Pessoa e algumas observaccedilotildees conclusi-vas acerca dos modos da diferenccedila em Pessoa encerram esta abordagem dialeacutetica e fenomenoloacutegica agrave obra de Pessoa

ABSTRACT This paper exposes the systematic philosophical structure of Fernando Pessoarsquos poetry This structure is groun-ded on the concepts of the negative not-being and nothingness The obsessive experience of nothingness and the explanation of its dialectics is best exemplified by Pessoarsquos Faust A Sub-jective Tragedy The negative is then exposed as the ldquodistance between me and myselfrdquo which is the key to Pessoarsquos dialectics of subjectivity between truth and pretending sensation and rea-lity thought and feeling His characteristic heteronymy is explai-ned as this distance to himself ie the negation of identity and self-otherness Seven thesis about the heteronymy as a poetic and philosophical concept are then presented arguing that hete-ronymy should not be considered an anomaly but rather as the

Diogo Ferrer

Professor Associado na Universidade de Coimbra

ferrerdiogogmailcom

() Este artigo corresponde a uma conferecircncia apresentada no coloacutequio Fer-nando Pessoa (+ ou -) Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos SP em 12 de Setembro de 2013 Seraacute publicado em breve tambeacutem como capiacutetu-lo de D Ferrer Transparecircncias Linguagem e Reflexatildeo de Ciacutecero a Pessoa Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra 2018

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

22

normal state of any artistic creation Indeed the author and the work are always created at the same time The phenomenolo-gical position of the heteronym Alberto Caeiro is then presented as the solution to the dialectical problems of Pessoarsquos work and some concluding remarks on the ways of difference in Pessoa completes this phenomenological and dialectical approach to his works

1 O sistema da poesia pessoana

O valor literaacuterio da obra de Fernando Pessoa eacute insisten-temente sublinhado desde a sua descoberta ainda em vida do poeta pelo grupo de Coimbra da Presenccedila Mais especifica-mente Joseacute Reacutegio jaacute em 1927 o sauacuteda pela primeira vez em Portugal como o mestre maior da poesia portuguesa contem-poracircnea1 e Pierre Hourcade (1908-1983) publica em 1930 em Paris dois artigos quase exclusivamente dedicados a Pessoa e comeccedila a traduzi-lo para o francecircs Aleacutem do aspecto literaacute-rio contudo a obra de Pessoa envolve uma conceptualizaccedilatildeo filosoacutefica de uma riqueza surpreendente que a par do aspecto mais evidente dos temas ligados agrave reflexatildeo existencial apre-sentam dois aspectos invulgares Satildeo estes (1) o facto de que a obra pessoana apresenta uma estrutura filosoacutefica que salta agrave vista Natildeo se poderia falar de uma infra-estrutura filosoacutefica uma vez que natildeo haacute uma base conceptual anterior agrave imaginaccedilatildeo po-eacutetica ou dela isolaacutevel mas deveraacute falar-se por um lado de uma estrutura interna teoacuterica que estaacute implicada de modo estranha-mente evidente em muito da criaccedilatildeo poeacutetica e por outro da permanente acccedilatildeo reciacuteproca entre vida e obra literaacuteria Procu-rarei mostrar que a construccedilatildeo poeacutetica de Pessoa assenta num travejamento filosoacutefico clariacutessimo que embora esteja entrete-cido sem hiato com a imagem a representaccedilatildeo e a linguagem poeacuteticas e lhes confira uma clara estrutura conceptual mesmo categorial natildeo pode todavia ser jamais entendido de modo es-quemaacutetico A poesia natildeo se encontra enquadrada pela estrutura conceptual mas por assim dizer respira-a Isto faz de Pessoa para aleacutem de poeta tambeacutem filoacutesofo embora do tipo especiacutefico do poeta-filoacutesofo tipo literaacuterio onde o seu estatuto natildeo me pare-ce ser inferior agrave importacircncia da sua obra da perspectiva poeacutetica (2) Um segundo aspecto que merece ser muito especialmente notado eacute que esta intra-estrutura filosoacutefica mesmo se se tomar em termos de um pensamento filosoacutefico de cariz natildeo literaacuterio ou poeacutetico eacute invulgarmente completa organizada e deveraacute di-zer-se ateacute mesmo sistemaacutetica Potenciada ndash mas sobretudo actualizada ndash principalmente pela heteroniacutemia a diversidade integraccedilatildeo e completude da intra-estrutura conceptual aproxi-

1 Cf Robert Breacutechon Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernan-do Pessoa trad M Abreu P Tamen Ciacuterculo de Leitores Lisboa 1997 p 462

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

23

ma-se bastante uma sistematizaccedilatildeo teoacuterica2 Mas isto natildeo signi-fica absolutamente que se pudesse de algum modo substituir a criaccedilatildeo literaacuteria por uma sistematizaccedilatildeo filosoacutefica sob outra for-ma literaacuteria uma vez que a integraccedilatildeo da forma com o conteuacutedo eacute no geral e no particular das diferentes esferas ou elementos da criaccedilatildeo pessoana um factor indeclinaacutevel da sua expressatildeo Eacute que natildeo haacute traccedilo de alegoria ou de roupagem literaacuteria para conceitos filosoacuteficos ateacute porque quase tudo eacute explicitamente dito ndash como disse acima estranhamente manifesto temaacutetico e discutido ndash na poesia pessoana A integraccedilatildeo forma-conteuacutedo eacute inseparaacutevel e soacute por abstraccedilatildeo ou como diria Caeiro quando se tem um membro dormente no corpo poeacutetico se pode fazer a anaacutelise filosoacutefica a que me proponho

Joseacute Gil algum Eduardo Lourenccedilo ou com bastante me-nor amplitude Joseacute Enes jaacute expuseram os principais paracircme-tros filosoacuteficos da obra pessoana Sabemos que se trata nos seus traccedilos mais gerais de uma teoria das sensaccedilotildees3 de uma abordagem do conceito do nada ou de uma ontologia radical situada para aleacutem de toda a metafiacutesica do ente Eacute conhecido que o ldquodrama em genterdquo da heteroniacutemia dramatiza o desapa-recimento da unidade do sujeito na modernidade avanccedilada ou numa poacutes-modernidade4 talvez entatildeo jaacute a prenunciar-se como consequecircncia inevitaacutevel do modernismo

2 As figuras do natildeo-ser pessoano

No que se segue irei reorganizar resumidamente estes te-mas na obra de Pessoa complementando-os com elementos de sistematizaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegica e procurando tornar claros alguns dos grandes eixos das suas relaccedilotildees e in-teracccedilotildees conceptuais

Como se viu eacute possiacutevel mostrar que a obra de Pessoa irra-dia no que toca ao seu alcance filosoacutefico ontoloacutegico ou metafiacute-sico em redor de um centro absolutamente diferencial ocupado por um conceito filosoacutefico claacutessico o do natildeo-ser que podemos fazer remontar aos alvores da metafiacutesica ocidental Platatildeo pro-jeta muito para traacutes esta concepccedilatildeo ateacute Parmeacutenides de Eleia

2 O inteacuterprete mais significativo da obra pessoana da perspectiva filo-soacutefica eacute sem duacutevida hoje Joseacute Gil Embora de uma perspectiva diferente e servindo-se de uma conceptualizaccedilatildeo com outras referecircncias tambeacutem Gil depara-se na obra pessoana com uma configuraccedilatildeo sistemaacutetica sobretudo na geacutenese dos heteroacutenimos Trata-se nomeadamente de ldquouma esteacutetica que permite o nascimento de multiplicidades e a construccedilatildeo do mito do nasci-mento dessas multiplicidades poeacuteticas (heteroniacutemicas) eis a configuraccedilatildeo geral do sistema da poesia pessoana [] Tudo isto faz sistema satildeo as mes-mas distacircncias tambeacutem que separam a poeacutetica de Caeiro de cada uma das poeacuteticas dos seus disciacutepulosrdquo (Joseacute Gil Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Reloacutegio DacuteacuteAgua Lisboa 2013 pp 65-66 [itaacutelicos meus])3 Sobre a ldquoesteacutetica do sensacionismordquo cf ib p 624 V Breacutechon op cit

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

24

No diaacutelogo com o nome deste filoacutesofo lecirc-se como vimos que ldquopara que possa ser completamente o ente possui o natildeo-ente do natildeo-ser que natildeo eacuterdquo ou numa traduccedilatildeo mais simples ldquoo ser participa da natildeo-existecircncia do natildeo-ser para que possa atingir a sua perfeita existecircnciardquo5 Independentemente da traduccedilatildeo a ideia-chave eacute que mesmo o ser perfeito da metafiacutesica parmeniacute-dea necessita do natildeo-ser do natildeo-ser ldquopara que possa ser com-pletamenterdquo Poderaacute dizer-se que a anulaccedilatildeo da mediaccedilatildeo eacute necessaacuteria como condiccedilatildeo da posiccedilatildeo da identidade Esta con-cepccedilatildeo claacutessica do ser restabelecido na sua completude pela negatividade reiterada eacute sem duacutevida um dos eixos categoriais e um problema conceptual da poesia de Pessoa A dupla nega-ccedilatildeo ou negatividade absoluta e a sua inevitaacutevel reflexatildeo satildeo a condiccedilatildeo da afirmaccedilatildeo do ente que soacute eacute ldquocompletamenterdquo ou ldquoperfeitamenterdquo na sua relaccedilatildeo negativa com o natildeo-ser

Reencontra-se com frequecircncia em Pessoa a sua oposi-ccedilatildeo e diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo e ao outro a par de um natildeo menos significativo distanciamento em relaccedilatildeo a si mes-mo A este respeito poderaacute ler-se especialmente o ortocircnimo por exemplo

Nada conduz a nada Nada serve de ser [] Nada e o nada persiste Na estrada e no veratildeo

ou

Nada sou nada posso nada sigo [] Natildeo comprendo compreender nem sei Se hei-de ser sendo nada o que serei6

Na poesia ortocircnima a negatividade estaacute presente como centro gerador de muito da criaccedilatildeo poeacutetica que se vai traduzir no que o autor denomina por vezes de ldquointervalo dolorosordquo Mas esta reiteraccedilatildeo do nada ou da negaccedilatildeo eacute tambeacutem transversal agrave he-teroniacutemia Encontram-se traccedilos dela em Aacutelvaro de Campos na prosa do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares e em Ricardo Reis Da Ode X deste uacuteltimo eacute um outro trecho claramente exemplifi-cativo

Melhor destino que o de conhecer-se Natildeo frui quem mente frui Antes sabendo Ser nada que ignorando

5 Platatildeo Parmeacutenides 162a segundo as traduccedilotildees (alteradas) de M J Figueiredo e H N Fowler respectivamente (Platatildeo Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa 2001 e Plato IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Harvard 1977)6 PE 186 e 156 Poemas de 791927 e de 611923 respectivamente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

25

Nada dentro de nada7

A negatividade tem por caracteriacutestica dialeacutetica natildeo poder ser pensada ou para o nosso caso tatildeo-pouco vivida e dita sem se negar a si mesma Parece inevitaacutevel que a negaccedilatildeo uma vez visada como categoria se intensifique e reitere As consequecircn-cias disto vatildeo em diferentes sentidos e niacuteveis de complexidade O caso categorialmente mais simples encontra-se no Fausto or-toacutenimo

E hora a hora na minha esteacuteril alma Mais fundo o abismo entre meu ser e mim se abre e nesse () abismo natildeo haacute nada8

3 O laboratoacuterio faacuteustico e a dissoluccedilatildeo do real

O Fausto em que Pessoa trabalhou episodicamente ao longo de toda a sua vida dramatiza a negaccedilatildeo no seu estado mais puro o nuacutecleo negativo tomado simplesmente com as suas conclusotildees mais rigorosas O mesmo rigor da deduccedilatildeo das consequecircncias que parecem desprezar os aspectos mais reificados do mundo com que Pessoa se deleita nos seus tex-tos poliacuteticos e esteacuteticos encontra-se dramatizada na poesia do Fausto A consequecircncia da reiteraccedilatildeo do negativo eacute aqui expos-ta sem concessotildees Fausto no seu laboratoacuterio conceptual cria a experiecircncia mais mortal da improdutividade do negativo em estado puro e definitivo

A coerecircncia feacuterrea do laboratoacuterio de Fausto eacute claramente explicitada nas suas consequecircncias que se diferenciam prin-cipalmente em duas vertentes uma a da inteligecircncia que vai ser tomada pela questatildeo impossiacutevel da origem outra a da vida que eacute sentida num contiacutenuo ldquohorrorrdquo palavra cuja presenccedila ao longo do texto eacute quase obsessiva9 A negaccedilatildeo eacute aqui simples questatildeo pelo natildeo-ser ou ser outro daquilo que eacute partindo da compreensatildeo de que

[] tudo eacute siacutembolo e analogia O vento que passa a noite que esfria Satildeo outra coisa que a noite e o vento ndash Sombras da vida e do pensamento10

O pensamento comeccedila pelo ser do natildeo-ser como criaccedilatildeo

7 RR 178 Fernando Pessoa Fausto ed Teresa Sobral Cunha Reloacutegio DrsquoAacutegua Lisboa 2013 [reediccedilatildeo] [=F] 45 Os parecircnteses no texto satildeo da editora9 Para uma anaacutelise de aspectos essenciais da dimensatildeo afectivo-on-toloacutegica da obra pessoana v o estudo de Joseacute Gil ldquoCansaccedilo Teacutedio Desas-sossegordquo in op cit pp 93-11810 F 39

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

26

de significado ndash ldquosiacutembolo e analogiardquo ndash com a contrapartida de que a categorizaccedilatildeo seja doravante inevitavelmente uma ale-gorizaccedilatildeo O ser-outro passa a categoria central do pensamen-to e toda a criaccedilatildeo de significado tem como consequecircncia o caraacutecter ilusoacuterio do ser Dialecticamente o ser eacute ser-outro natildeo como simples ser-ao-lado de outro ser mas como todo o outro do ser a negaccedilatildeo integral do seu regime de sentido O trecho conclui naturalmente alguns versos mais abaixo retomando os elementos evidentes da sombra e da impermanecircncia sob este novo regime que satildeo os derivados primeiros da negaccedilatildeo inten-sificada

A noite fria o passar do vento Satildeo sombras de matildeos cujo gestos satildeo A ilusatildeo matildee desta ilusatildeo[]11

Na concepccedilatildeo do Fausto a alteridade torna-se uma total desigualdade do ente consigo proacuteprio tiacutepico do regime da ima-gem insubsistente

Tudo transcende tudo E eacute mais real e menos do que eacute12

Pessoa trilha um percurso categorial que estaacute perfeitamente ex-pliacutecito e que eacute reforccedilado pelos elementos naturais ndash a noite o vento ndash que longe de atenuarem o isolamento ou darem corpo a uma realidade extra-categorial mostram a facilidade com que a vertigem categorial dela se apodera Por isso pode-se falar de uma quasi-sistematicidade do pensamento pessoano que se mostra como totalmente coerente com as formas claacutessicas da dialeacutetica no pensamento ocidental (e provavelmente natildeo soacute) Neste sentido dificilmente se poderia encontrar um criador poeacute-tico com uma compreensatildeo filosoacutefica mais clara e aprofundada A experiecircncia filosoacutefica sistemaacutetica parece mesmo ndash num certo sentido e dependendo do gosto ndash no Fausto relegar para se-gundo plano a experiecircncia esteacutetica que soacute pode ser fruiacuteda por-ventura no refluxo do pensamento Aqui tudo estaacute literalmente aspirado no ldquoMaumlelstromrdquo do negativo aleacutem do ser e do natildeo-ser

[] Ah deve haver Aleacutem da vida e da morte ser natildeo ser Um inominaacutevel supertranscendente [] Deus Nojo Ceacuteu Inferno Nojo nojo13

Esta eacute

11 F 3912 F 3913 F 42

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

27

Uma noite de Tudo que eacute um Nada Um abismo de Nada que eacute um Tudo14

Jaacute nada deteacutem a vertigem e natildeo haacute muito mais a dizer ldquoO abismo eacute abismo num abismordquo15 Em conclusatildeo leia-se ainda o verso ldquoEu sou o Aparte o Excluiacutedo o Negrordquo Difiacutecil seria exigir maior rigor de pensamento

Este vertiginoso e abjecto regime laboratorial do negativo eacute a origem da questatildeo A tese eacute que toda a questatildeo eacute origina-riamente ontoloacutegica porque nasce da suspensatildeo do ser e do natildeo-ser Fichte jaacute tinha procurado mostrar que o ldquoo querdquo (ldquoWasrdquo) e o ldquoporquecircrdquo (ldquoWeilrdquo) ndash como resposta agrave questatildeo ldquopor querdquo16 ndash satildeo as categorias principais em que o absoluto aparece agrave cons-ciecircncia Fausto estaacute obsidiado pela questatildeo em geral que eacute a questatildeo sobre o que e porque satildeo o ser ou o existir

Mas que haja espaccedilo tempo que haja seres Que haja um mundo () cores sons Movimentos mudanccedilas ()Que haja qualquer coisa sim que a haja17

Daiacute somos conduzidos agrave generalizaccedilatildeo

Mais que a existecircncia Eacute um misteacuterio o existir o ser o haver Um ser uma existecircncia um existir ndash [] O que eacute existir ndash natildeo noacutes ou o mundo Mas existir em si18

Ou mais simplesmente na inevitaacutevel reduplicaccedilatildeo auto-referen-te da questatildeo

ldquoO que eacute haver haver Porque eacute que o que eacute eacute isto que eacute Como eacute que o mundo eacute mundordquo19

Esta essecircncia negativa eacute obsessiva porque auto-referente e conduz natildeo soacute ao recalcar do seu outro como tambeacutem agrave sua expressa abjeccedilatildeo e aniquilaccedilatildeo Aqui o dramatismo do absoluto natildeo-outro infecta a partir do universo inteiro a relaccedilatildeo com o corpo e o outro sujeito

Acordo ao conceber quanto eu odeio

14 F 5415 F 6016 Ver Ferrer O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Coimbra 2014 pp 174-17517 F 7418 F 10419 F 57

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

28

Mais do que esta mais que a humanidade Mas o universo todo []20

Ver-se-aacute ainda que passada esta vertigem da reiteraccedilatildeo de si a negaccedilatildeo do outro eacute outrossim a razatildeo do ver Tambeacutem aqui como lemos em Sartre ldquoa apariccedilatildeo de outro algueacutem no mundo corresponde a um [] deslizamento congelado do uni-verso inteiro que mina por baixo a centralizaccedilatildeo que eu simul-taneamente operordquo21 Dramatizado este deslizamento de ordem fenomenoloacutegica lemos no Fausto como se segue

Sinto horror Agrave significaccedilatildeo que olhos humanos Contecircm22

O olhar do outro eacute a alteridade que ameaccedila de modo in-compreensiacutevel a auto-referecircncia do eu o deslocamento violen-to para a pura auto-referecircncia do significado para um outro inte-rior que natildeo eacute o meu A origem da auto-referecircncia como vimos eacute anterior ao exerciacutecio dos sentidos e sobretudo da visatildeo e reside na estrutura conceptual dialeacutectica do negativo O para-digma e origem da auto-referecircncia eacute o negativo que permite construir os fenoacutemenos de centramento de auto-centramento a pura repeticcedilatildeo (malgreacute Gil-Deleuze) que se traduz em deslo-camentos de sentido na pergunta em geral na reduccedilatildeo do ou-tro agrave imagem e com isto no ver mas tambeacutem no fenoacutemeno da repulsa O ldquoodeio a naturezardquo exclamado na Voyage au bout de la nuit de Ceacuteline grita em toda esta construccedilatildeo Antes de mais

O misteacuterio de ver e o horror de verem-me Abisma-me23

ndash porque o olhar do outro ou jaacute o seu simples rosto segundo a tradiccedilatildeo fichteana eacute a natureza amaacutevel e livre ou seja recon-ciliada com o sujeito O olhar do outro natildeo significa e natildeo eacute assim antes de mais o outro-eu simplesmente mas o eu outro Ou seja o objeto da inquietaccedilatildeo e do oacutedio natildeo eacute em primeira linha um outro sujeito idecircntico a mim em espelhamento mas a constataccedilatildeo de que a alteridade eacute tambeacutem a naturalidade do eu sujeito Fausto sente assim a repulsa perante o eu outro

Oacute horror metafiacutesico de ti Sentido pelo instinto sentido pelo instinto

[natildeo na menteVil metafiacutesica do horror da carne

20 F5421 J-P Sartre Lacuteecirctre et le neacuteant 1984 30122 F 13723 F 150

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

29

Medo do amor24

E em consequecircncia

Ouvir um riso Amarga-me a alma ndash mas porquecirc natildeo sei Sinto como um insulto esta alegria ndash Toda a

[alegria[] Aqueles corpos Tenham filhos vejam Seus filhos afogados ante os olhos As filhas violadas a seu ver25

4 As nuacutepcias da diferenccedila

Ainda antes de abandonar esta leitura do Fausto como ex-posiccedilatildeo mais direta e revoltada das sequelas da negaccedilatildeo ab-solutamente auto-referida deveraacute observar-se que a auto-refe-recircncia como repeticcedilatildeo de si eacute tambeacutem a fonte da subjetividade reencontrada sob diferentes formas em toda a obra pessoana Jaacute encontramos o ldquohaver haverrdquo ou o ldquohaver eu sou eurdquo26 a que se poderia acrescentar a figura claacutessica da ldquoalma da almardquo ou a curiosa frase ldquoCasei com a diferenccedilardquo27 Este eacute em geral o ldquoIntervalordquo28 e ldquoIntervalo dolorosordquo referido no Livro do De-sassossego ou mais especificamente ldquointervalo entre nada e nadardquo29 A proacutepria preposiccedilatildeo ldquoentrerdquo eacute tomada no mesmo livro como objecto substantivado de uma reflexatildeo numa nota acer-ca do poema ldquoRio entre sonhosrdquo Lecirc-se aiacute que ldquoa ideia de rio eacute sugerida pela ideia que ocorre em todos os versos de uma coisa que passa entre e a ideia de entre eacute vincadiacutessimardquo30 Este ldquoentrerdquo que nos faz tambeacutem pensar numa similar substantiva-ccedilatildeo em Heidegger (ldquodas Zwischenrdquo) multiplica-se em diferentes distacircncias entre si e si mesmo entre si mesmo e a realidade entre eu e o outro e tambeacutem significativamente como se vol-taraacute a referir entre mim e ver entre o ver e a coisa ou entre o pensamento e a sensaccedilatildeo Assim tomando alguns exemplos o distanciamento comeccedila por ser em relaccedilatildeo a si mesmoldquoLonge de mim em mim existordquo31 Eacute igualmente uma distacircncia que estaacute expressa no conceito da personalidade aqui trata-se do ldquoNexo inuacutetil entre o que sou e quem sourdquo32 A alma eacute pois simples dis-

24 F 6025 F 52 5326 F 5327 PE p 188 Poema de 910192728 LD 22629 LD 22630 Cit in Richard Zenith ldquoIntroduccedilatildeordquo in LD 2631 PE 24932 PE249

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

30

tacircncia ldquoDe que eacute que a minha alma distardquo33 ou eacute a distacircncia entre mim e o agora ldquoQue haacute entre mim e o momentordquo34 Mas a questatildeo do intervalo eacute projectada pelo ortoacutenimo igualmente como tese metafiacutesica

Deus eacute um grande intervalo Mas entre quecirc e quecirc35

Este toacutepico reflete com rigor a grande questatildeo do sujeito que se descobre como ldquoauto-posiccedilatildeordquo segundo a versatildeo de Fichte para se descobrir que esta mesma auto-posiccedilatildeo que o funda e constitui abre necessariamente tambeacutem o espaccedilo para um fun-damento obscuro ainda mais vasto Este ponto cego da reflexatildeo atravessa boa parte do questionamento filosoacutefico posterior que a partir de Schelling critica o sujeito com base justamente neste fundamento impensado e obscuro o qual como resultado da diferenccedila inerente agrave sua reflexatildeo proacutepria abre-se de modo mais patente justamente perante a mais pura auto-atividade do sujei-to Toda a exposiccedilatildeo pessoana que temos vindo a seguir com base nesta abertura de um intervalo entre mim e mim (o ldquohaver eu sou eurdquo) eacute o que permite apontar por um lado para o nada e o negativo como ceacutelula categorial de base da expressatildeo pesso-ana como tambeacutem por outro para o impensado sempre aleacutem do ser Bernardo Soares diz do modo mais claro esta ligaccedilatildeo da distacircncia de si mesmo e a interrogaccedilatildeo por um fundamento aleacutem do ser e do natildeo-ser ldquoEu longe dos caminhos de mim proacute-prio cego da visatildeo da vida que amo cheguei por fim tambeacutem ao extremo vazio das coisas agrave borda imponderaacutevel do limite dos entesrdquo36 Inspiraccedilatildeo semelhante encontra-se em Aacutelvaro de Campos ldquoPerante esta uacutenica realidade terriacutevel ndash a de haver uma realidaderdquo37 E leia-se tambeacutem ainda mais uma vez no Fausto

Uma vez contemplando dum outeiro A linha da colina majestosa Que azulada e em perfis desaparecia No horizonte contemplando os campos Vi de repente como que tudo Desaparecer []

e um abismo invisiacutevel uma coisa Nem parecida com a existecircncia Ocupar natildeo o espaccedilo mas o modo Com que eu pensava o visiacutevelrdquo38

33 PE 77 Poema de 1111191434 PE 81 Poema de 310191535 PE 56 Poema de Jan-Mar 191336 LD 147

37 Fernando Pessoa Poesias de Aacutelvaro de Campos Aacutetica Lisboa 1958 [=AC] 93 38 F 44

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

31

A distacircncia de si a si pressuposta pela reflexatildeo vai estar tambeacutem na base de um outro modo de estranhamento de si ldquoFalam na nossa boca laacutebios que natildeo nos pertencemrdquo39 ndash segun-do um toacutepico de que tambeacutem se poderiam multiplicar os exem-plos A lucidez absoluta da reflexatildeo integral do eu segrega um ponto cego que se manifesta para laacute da reflexatildeo como este permanente aleacutem

A principal funccedilatildeo da negaccedilatildeo em geral e muito em parti-cular na esteacutetica de Pessoa eacute a produccedilatildeo de alteridade Como se disse ao desposar o negativo ldquoCasei-me com a diferenccedilardquo A produccedilatildeo de alteridade assume diferentes formas entre as quais o estranhamento da consciecircncia em relaccedilatildeo a si mesma Mas seria excessivo prosseguir na leitura da negatividade e das suas manifestaccedilotildees conforme expostas no seu estado mais puro no Fausto onde eacute explorado ateacute agrave exaustatildeo o seu significado como uma essecircncia totalmente centrada sobre si e redutora da alte-ridade Esta essecircncia que Pessoa apoda inuacutemeras vezes em cada paacutegina do Fausto de ldquohorrorrdquo eacute o que o impede ou pare-ce impedir biograficamente a realizaccedilatildeo pessoal impondo-lhe porventura uma ldquoconsciecircncia infelizrdquo que pela intensificaccedilatildeo do seu nuacutecleo vazio natildeo pode sair de si conforme eacute exigido para agir amar ou simplesmente existir

Mas natildeo poderiacuteamos agora prosseguir na anaacutelise nem da consciecircncia infeliz nem da accedilatildeo ou inaccedilatildeo em Pessoa ndash para o que natildeo faltaria aliaacutes material no Livro do Desassossego Nem por outro lado enunciar a questatildeo biograacutefica do alegado fracas-so existencial do poeta que pelo contraacuterio a meu ver tematiza todas as condiccedilotildees desse fracasso e cultiva-as mesmo de tal modo que a sua transformaccedilatildeo em arte e pensamento eacute o modo de o objetivar e afastar de si Houve parafraseando o poeta que ldquopassar aleacutem da dorrdquo

A dialeacutetica embora centrada no natildeo-ser e no negativo co-nhece tambeacutem uma interpretaccedilatildeo mais branda pela qual este vazio absoluto na base da loucura da auto-referecircncia negativa de Fausto assume formas diversas Se prosseguirmos no ca-minho sistemaacutetico que o desdobramento heteroniacutemico da obra de Pessoa sugere observa-se que o denominado ldquooutrar-serdquo do poeta pode com inteira naturalidade ser lido a partir do negati-vo entendido dialeticamente como alteridade ou ser-outro Se a negaccedilatildeo intensificada e reiterada em si produz a estrutura cate-gorial do Fausto a negaccedilatildeo simples estaacute na base do ser-outro da heteroniacutemia ser-outro simples ou imediato cuja reiteraccedilatildeo eacute apenas repeticcedilatildeo e diferenccedila e natildeo mais a mortal reiteraccedilatildeo de si que ameaccedila o ortoacutenimo e de que este no Fausto parece fa-zer a catarse objetivando-a de modo justamente a natildeo a trazer consigo A esta repeticcedilatildeo simples da negaccedilatildeo como outro e natildeo

39 FP 85 Poema de 2741916

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

32

mais negatividade pura corresponde agora natildeo uma intensifica-ccedilatildeo voraz mas uma multiplicaccedilatildeo Jaacute no seu devaneio infantil conforme menciona na sua Carta a Casais Monteiro sobre a geacutenese dos heteroacutenimos Pessoa criou aquele que parece ser o primeiro precursor dos heteroacutenimos o Chevalier de Pas que bem poderiacuteamos traduzir pelo Cavaleiro do Natildeo

Desta perspectiva o que Hegel na sua anaacutelise da nega-ccedilatildeo denominou a negaccedilatildeo simples traduz-se bem no outrar-se pessoano Casado com a diferenccedila o eu manteacutem-na como ne-gatividade absoluta intensificando-a mas uma vez objetivada pode tambeacutem reemergir sob a forma da multiplicaccedilatildeo do ser--outro A heteroniacutemia eacute assim uma outra face da negatividade que se manteacutem temaacutetica tanto no ortoacutenimo quanto nalguns dos heteroacutenimos

5 A faacutebrica dos heteroacutenimos

Na sua informada e notaacutevel biografia de Pessoa Robert Breacutechon apresenta uma explicaccedilatildeo sem duacutevida correta em parte da heteroniacutemia Esta ldquoeacute um meacutetodo experimental para ter pensamentos e sensaccedilotildees emoccedilotildees e crenccedilas novas capazes de nos fazer sair da personalidade cristalizada moldada pelo nosso caraacutecter a nossa educaccedilatildeo a nossa heranccedila cultural [] Levei muito tempo a compreender a profunda verdade da hete-roniacutemia Pensamos que temos opiniotildees seguras crenccedilas fun-damentadas e ateacute uma feacute que julgamos ser a uacutenica verdadeira mas haacute outros que estatildeo igualmente seguros das suas opiniotildees das suas crenccedilas da sua feacute diferentes das nossas [] Caeiro Reis e Campos satildeo posturas da consciecircncia de Pessoa diferen-tes daquela que lhe eacute mais naturalrdquo40 A questatildeo seria segundo esta descriccedilatildeo ou explicaccedilatildeo a de o autor poder pela hetero-niacutemia assumir crenccedilas ou modos de ser que natildeo os preponde-rantes na sua consciecircncia colocar-se no lugar de outro Se isto natildeo eacute incorreto passa parece-me ao lado do mais importante A heteroniacutemia eacute sem duacutevida desenvolver traccedilos diferentes e ateacute contraditoacuterios de uma personalidade de modo a poder co-locar-se no lugar de um outro Ela tem eacute certo alguma relaccedilatildeo com o aprofundamento e desenvolvimento que Pessoa faz do programa expresso sobretudo em Aacutelvaro de Campos de ldquosentir tudo de todas as maneirasrdquo Esta ultrapassagem ateacute agrave anulaccedilatildeo do ponto de vista uacutenico e do isolamento do sujeito eacute parte do processo heteroniacutemico Uma das condiccedilotildees deste processo de impersonalizaccedilatildeo estaacute sem duacutevida descrito em trechos como o que se segue do Livro do Desassossego ldquoHaacute criaturas que satildeo capazes de sofrer longas horas por natildeo lhe ser possiacutevel ser uma figura dum quadro ou dum naipe de baralho de cartas Haacute almas sobre quem pesa como uma maldiccedilatildeo o natildeo lhes ser possiacutevel

40 Breacutechon op cit 216-217

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

33

ser hoje gente da idade meacutedia Aconteceu-me deste sofrimen-to em tempo [] Poder sonhar o inconcebiacutevel visibilizando-o eacute um dos grandes triunfos que natildeo eu [sic] que sou tatildeo grande senatildeo raras vezes atinjo Sim sonhar que sou por exemplo si-multaneamente separadamente inconfusamente o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher datildeo agrave beira--riordquo41 Ou teorizando este processo de sentir multiplamente em termos gerais ldquoO mais alto grau de sonho eacute quando criado um quadro com personagens vivemos todas elas ao mesmo tempo ndash somos todas essas almas conjunta e interactivamente Eacute in-criacutevel o grau de despersonalizaccedilatildeo e encinzamento [sic] do es-piacuterito a que isso leva confesso-o [] Mas o triunfo eacute talrdquo42 Mas perante isto se a razatildeo da heteroniacutemia residisse somente aqui seria insuficiente ser somente quatro ou cinco heteroacutenimos pe-rante este programa bem mais vasto de ser todas as perspecti-vas e todas as sensaccedilotildees separada e simultaneamente

A heteroniacutemia deriva por isso de diversos factores(1) Eacute provocada em primeiro lugar pelo ao processo de

ser-outro imediato que pertence ao eu que reflete sobre si que jaacute caracterizei suficientemente acima Todo o espaccedilo da refle-xatildeo eacute tambeacutem a possibilidade de ver-se de fora como objeto identificar-se consigo aleacutem e fora de si um devir-outro

(2) Em segundo lugar obedece tambeacutem ao programa sen-sacionista de natildeo se ficar encerrado na perspectiva de um eu Eacute assim um programa iroacutenico e criacutetico de afastamento relati-vamente a todas as opiniotildees e naturalidades do caraacutecter e das convicccedilotildees Se bem se pode dizer em termos pessoanos que desconhecer eacute conhecer-se segundo o autor ldquodesconhecer--se conscienciosamente eacute o emprego activo da ironiardquo43 Neste sentido bem apreendido pelo passo supracitado de Breacutechon eacute uma postura de desenraizamento e universalismo tipicamen-te modernos que Pessoa encarna acentuando-o de modo por vezes sofiacutestico A centralizaccedilatildeo de toda a atividade subjetiva na sensaccedilatildeo provoca de modo aparentemente inevitaacutevel a perda da identidade que eacute construiacuteda no ldquoeu pensordquo da inteligecircncia Sentir integralmente conduz e consiste em sentir tudo de todas as maneiras porque sentir eacute desidentificar devir-outro ou perder o ortoacutenimo despessoalizar

(3) Em terceiro lugar talvez um dos pontos filosoficamen-te mais importantes e que natildeo estaacute de modo nenhum apreen-dido no excerto de Breacutechon a heteroniacutemia eacute um processo de objetivaccedilatildeo simples que eacute uma necessidade inerente do eu O desejo do reconhecimento pode assumir diferentes formas en-tre as quais as formas redutoras agrave identidade da consciecircncia mesmo que negativa como vimos no caso do Fausto O modo mais completo do reconhecimento eacute poreacutem o que Hegel de-

41 LD 172-17342 LD 44443 LD 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

34

nomina ldquoencontrar-se a si mesmo no seu outrordquo ou seja a de que o mundo objetivo esteja impregnado ou formado pelo eu O heteroacutenimo neste contexto eacute a projeccedilatildeo objetivada do eu que pode entatildeo romper a barreira do seu isolamento e encontrar--se como eu-outro numa obra Neste sentido a heteroniacutemia em termos hegelianos encerra uma teoria da arte ou melhor eacute a proacutepria condiccedilatildeo artiacutestica Lecirc-se assim nas Liccedilotildees de Esteacutetica de Hegel ldquoa necessidade universal e absoluta de que brota a arte [] encontra a sua origem em que o homem eacute uma consci-ecircncia pensante ou seja que torna para si o que ele eacute e o que em geral existe As coisas da natureza satildeo soacute imediatamente e uma vez mas o homem como espiacuterito duplica-se [] intui-se representa-se pensa e soacute por este ser-para-si ativo eacute espiacuteritordquo44 Esta duplicaccedilatildeo do eu no seu outro contudo eacute a verdade da falsa duplicaccedilatildeo do nada que encontraacutemos no Fausto O que espanta eacute que a heteroniacutemia como instrumento oacutebvio de au-to-objectivaccedilatildeo e reconhecimento natildeo seja a norma mas uma excepccedilatildeo nos procedimentos artiacutesticos e criativos em geral Se-ria de esperar que fosse o processo natural da criaccedilatildeo artiacutestica sendo a ortoniacutemia um caso excepcional de devir-idecircntico O po-der expressivo da heteroniacutemia deriva de que eacute a descoberta de um processo comum e forccediloso que subjaz esquecido mesmo sob a superfiacutecie da autoria

(4) Por isso em quarto lugar a heteroniacutemia eacute um instru-mento poderosiacutessimo de auto-conhecimento Soacute assim se en-tendem afirmaccedilotildees como ldquoFingir eacute descobrir-serdquo45 Porque o co-nhecimento de si eacute tambeacutem a formaccedilatildeo de si a criaccedilatildeo do autor juntamente com a obra eacute um processo evidente e natural que Pessoa se limita a tornar expliacutecito o que ainda mais se confirma pelo facto de que o proacuteprio ortoacutenimo acabaraacute por se assumir tambeacutem como mais um participante do jogo heteroniacutemico Por este jogo os diferentes traccedilos e potencialidades da personali-dade satildeo cuidadosamente representados distinguidos desen-volvidos e objetivados o que conduz a um auto-conhecimento muito mais completo do que o que eacute dado na ortoniacutemia Tam-beacutem aqui soacute surpreende que um procedimento tatildeo oacutebvio de au-to-estudo natildeo tenha sido descoberto e praticado mais cedo

(5) Mas a heteroniacutemia eacute tambeacutem teoria da criaccedilatildeo artiacutestica num outro sentido Ao representar ou expor natildeo soacute o objeto ar-tiacutestico mas juntamente e ao mesmo tempo que ele o seu autor a heteroniacutemia permite representar o proacuteprio processo da cria-ccedilatildeo artiacutestica Todo o processo de representaccedilatildeo que parte do autor estaacute normalmente juntamente com o autor omisso De modo similar agraves gravuras de Escher onde o representante ou o observador estaacute representado na representaccedilatildeo ndash com tudo o que isto tem de paradoxal porque remete sempre para um ato e

44 Hegel Werke 13 50-5145 F Pessoa Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Pre-senccedila Lisboa 1990 240

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

35

realizaccedilatildeo subjetivos por princiacutepio jamais representaacuteveis como objeto46 ndash tambeacutem em Pessoa o criador eacute criado juntamente com a criaccedilatildeo Isto que eacute normalmente do domiacutenio dos fac-tos havendo na obra apenas a representaccedilatildeo de uma parte do quadro geral do processo da criaccedilatildeo surge aqui simplesmente reproduzido integralmente O sujeito representante estaacute assim literalmente representado na representaccedilatildeo e a tese eacute que ele existe tanto mais quanto mais claramente fica representado Eacute assim patente que o essencial da representaccedilatildeo artiacutestica eacute natildeo o objeto mas o ato criativo que estaacute na base de toda a repre-sentaccedilatildeo Por isso a heteroniacutemia eacute uma reflexatildeo ou teorizaccedilatildeo da criaccedilatildeo artiacutestica e da proacutepria subjetividade

(6) Mas refira-se tambeacutem na sequecircncia do ponto anterior que esta auto-criaccedilatildeo do criador que eacute afinal um elemento cen-tral da arte realiza uma auto-referecircncia objetivada de tal modo que evita a armadilha faacuteustica da subjetividade representada como buraco negro Temos na heteroniacutemia natildeo soacute um outro eu mas tambeacutem como se viu um eu-outro eu naturalizado objetivado que permite reconciliar o sujeito com o seu mundo A importacircncia da auto-objetivaccedilatildeo natildeo eacute reproduzir-se mas per-der-se como condiccedilatildeo de reconciliaccedilatildeo

(7) E finalmente por todas estas razotildees a criaccedilatildeo hete-roniacutemia eacute um vasto estudo sobre a ligaccedilatildeo e a interaccedilatildeo entre a literatura e a vida Torna-se evidente que a consciecircncia tanto mais se preenche e enriquece quanto maior a sua capacidade de operaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo E consequentemente encontra-se no ldquooutrar-serdquo pessoano uma demonstraccedilatildeo da capacidade for-mativa e auto-formativa da literatura e que se eacute verdade que o autor cria a obra natildeo o eacute menos que a obra forma e constitui o autor que toda a accedilatildeo ou criaccedilatildeo eacute reflexiva formando tanto o autor quanto a obra Nos termos de Pessoa ldquoToda a literatura consiste num esforccedilo para torna a vida realrdquo47 ou ldquoHaacute metaacutefo-ras que satildeo mais reais do que a gente que anda na ruardquo48 Em suma ldquosou em grande parte a mesma prosa que escrevordquo49

Com base nesta breve tematizaccedilatildeo dos aspectos iniciais do estudo da intra-estrutura categorial da obra de Pessoa po-demos avanccedilar para um esboccedilo breve do desenvolvimento con-ceptual sistemaacutetico que estes aspectos iniciais devem neste contexto receber

Em geral dada a ceacutelula germinal da negatividade os he-teroacutenimos desenvolvem-se como uma seacuterie diferencial de mo-dulaccedilotildees da alteridade com relaccedilatildeo agrave negatividade de onde satildeo originaacuterios Em Ricardo Reis encontra-se diferentemente do 46 Procurei mostrar que a representaccedilatildeo do processo de criaccedilatildeo artiacutes-tica eacute um objecto principal da criaccedilatildeo artiacutestica em Ferrer ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Conceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 (2012) pp 363-39047 LD 14048 LD 17249 Fernando Pessoa Livro do Desassossego I (ed Galhoz e Cunha Aacutetica Lisboa 1982 p 240) cit in Breacutechon op cit p 519

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

36

que vimos ser o caso no Fausto a negatividade transformada num mundo habitaacutevel a partir em primeiro lugar da experiecircncia do tempo Esta vivecircncia manteacutem-se negativa mas estaacute mantida sobre uma durabilidade tal que

[] agrave arte o mundo Cria que natildeo a mente Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela50

Os temas partem da temporalidade e brevidade da vida humana para a qual a arte eacute a gloacuteria breve de uma coroa de flores tatildeo breve quanto o pode ser o prazer e o instante O negativo estaacute transmutado numa natureza reconciliada mas dentro dos limites estritos da consciecircncia temporal em que a presenccedila da morte eacute incessante A aceitaccedilatildeo do destino e do prazer permite todavia tolerar essa presenccedila O estilo de Reis reflete a forma plenamente desenvolvida e apurada mas vin-cada fortemente como forma porquanto reteacutem a marca da natildeo naturalidade do domiacutenio subjetivo e intelectual da expressatildeo forma ainda separada do outro pela finitude e pela temporalida-de que tingem a reconciliaccedilatildeo com uma simultacircnea perda de si O vincar extremo da forma poeacutetica da linguagem faz compreen-der que a reconciliaccedilatildeo eacute tambeacutem somente formal que o seu conteuacutedo estaacute sempre ausente para laacute do tempo dos deuses ou do destino invocados

Jaacute o Engenheiro Aacutelvaro de Campos encontra em si um ou-tro efeito patente da negatividade entendida como alteridade ser-outro ou melhor o outro que eacute o mesmo porque reconstituiacute-do como outro do outro Assim recuperado o outro encontra-se como sensaccedilatildeo agrave superfiacutecie esfeacuterica da reflexatildeo do sujeito O real eacute entatildeo fenoacutemeno transmutado por um lado em sensa-ccedilotildees por outro em forccedilas como na proposta de Pessoa ldquoPara um Esteacutetica Natildeo Aristoteacutelicardquo onde o belo eacute substituiacutedo pela for-ccedila O real soacute eacute acessiacutevel como forccedila e sensaccedilatildeo Mas a par da sensaccedilatildeo o real soacute pode ser recuperado tambeacutem na contradi-ccedilatildeo da reflexatildeo ndash que eacute a marca proacutepria tambeacutem do ortoacutenimo Na poesia do engenheiro naval este aspecto eacute recorrente em passos como o seguinte

Agrave esquerda laacute para traacutes o casebre modesto [mais que modesto

A vida ali deve ser feliz soacute porque natildeo eacute [minhardquo51

Nesta universalidade das sensaccedilotildees Campos declara

50 RR 1351 AC 36

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

37

ldquoeu adoro todas as coisas e o meu coraccedilatildeo eacute um albergue aberto toda

[a noite Tenho pela vida um interesse aacutevido Que busca compreendecirc-la sentindo muito

[Amo tudo animo tudo empresto humanidade a tudo Aos homens e agraves pedras agraves almas e agraves

[maacutequinas Para aumentar com isso a minha

[personalidade

Pertenccedilo a tudo para pertencer cada vez [mais a mim proacutepriordquo52

A aceitaccedilatildeo de tudo jaacute natildeo eacute regida aqui como em Reis pela temporalidade a finitude e o amor fati mas pela capacida-de do eu de se exteriorizar ou de ser unicamente exterior de modo a se preencher pelos fenoacutemenos e pelas suas manifesta-ccedilotildees A negatividade estaacute mais para traacutes encontrada no sujeito jaacute transformada em impulso de perda da unidade subjetiva e de aceitaccedilatildeo da sensibilidade como redenccedilatildeo do pensamento que permanece dela sempre tanto idecircntico quanto separado para que dela possa ter consciecircncia Aqui o estilo tendencialmente histeacuterico especialmente na sua fase inicial das grandes Odes eacute dotado de uma violecircncia que responde agrave necessidade destrutiva do sujeito pensante e da negatividade para que se possa desa-possar na pura superfiacutecie das sensaccedilotildees e das forccedilas que delas se dirigem agrave expressatildeo

Completa a seacuterie principal da heteroniacutemia que procuraacute-mos entender como um quasi-sistema de resposta diferencial agrave negatividade o mestre de todos os outros heteroacutenimos Alber-to Caeiro53 Na descriccedilatildeo que nas ldquoNotas para a Recordaccedilatildeo

52 AC 9953 A propoacutesito tambeacutem da compreensatildeo de Caeiro leia-se Paulo Bor-ges ldquoContrariamente ao que escreve Leyla Perrone-Moiseacutes uma das mais interessantes inteacuterpretes de Pessoa a sua laquogranderaquo e laquouacutenicaraquo laquoquestatildeoraquo natildeo nos parece ser laquosempre a identidade almejada e falhadaraquo (F Pessoa Satildeo Paulo 1982 72) e antes um excesso de pressuposiccedilatildeo de identidade e de pretensatildeo agrave sua consciencializaccedilatildeo e totalizaccedilatildeo que lhe faz ressen-tir em termos fuacutenebres todo o pressentimento ou experiecircncia da sua real vacuidade e incognoscibilidade Rejeitando o iacutentimo laquonadaraquo como um ser jaacute laquotudoraquo o que o levaria a descentrar-se e perder-se encontrando-se na exuberante multiplicidade dos seres e fenoacutemenos do mundo sem carecer imaginaacute-los em si ou a partir de si redu-los a mero ponto de partida da so-lipsista reinvenccedilatildeo do mundo como teatro interno [] Isto num enredo onde sintomaticamente satildeo sistematicamente exorcizadas todas as emergecircncias da alteridade real como a vida e o amor [] Por tudo isto ndash e salvaguarde-se a precariedade de todos estes juiacutezos [] ndash a genialidade literaacuteria de Pessoa pode natildeo ser mais do que o verso de um reverso que seja um natildeo menos grandioso insucesso sapiencialrdquo (Paulo Borges Pensamento Atlacircntico Lis-boa 2002 331-332) O comentaacuterio de Paulo Borges parece aqui esquecer a funccedilatildeo sistemaacutetica de Caeiro sublinhada sempre pelo contraacuterio por Joseacute Gil Por outro lado Paulo Borges conclui com reservas eacute certo por um fra-casso sapiencial e vivencial de Pessoa num campo onde precisamente pelo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

38

do meu Mestre Caeirordquo Aacutelvaro de Campos faz do mestre tudo evoca uma clareza e retidatildeo transcendentes Caeiro permite al-canccedilar o extremo oposto de Fausto Nele a negatividade es-gotou-se em si mesma encontra-se inteiramente anulada ou auto-anulada de tal modo que o resultado eacute a sua pura e sim-ples elisatildeo Numa aproximaccedilatildeo dialeacutetica encontrariacuteamos aqui a mediaccedilatildeo perfeita Caeiro eacute como que o milagre da mediaccedilatildeo integralmente realizada o retorno absoluto ao imediato54 onde jaacute o modo da expressatildeo se opotildee contraditoriamente ao de Reis Ao maacuteximo artificialismo que era o traccedilo da essecircncia negativa como forma acentuando a evanescecircncia do conteuacutedo opotildee-se a total naturalidade do discurso caeiriano absolutamente claro e direto formalmente neutro nem prosa nem poesia A lingua-gem encontra aqui a plena naturalidade porventura como o seu paiacutes natal

A contradiccedilatildeo criacutetica e moderna que constitui a subjetivi-dade finita entre pensamento e sensaccedilatildeo estaacute agora definitiva-mente conciliada numa unidade de forma e conteuacutedo que natildeo eacute a da vazia identidade do sujeito O eu-outro reconciliador da na-tureza e do espiacuterito estaacute encontrado na mediaccedilatildeo auto-anulada do negativo Em termos dialeacuteticos poderia dizer-se que jaacute natildeo temos a fuacuteria destrutiva e anuladora da pura essecircncia negativa mas tatildeo-pouco a mera positividade imediata e preacute-reflexiva do ser Na verdade Caeiro soacute pode resultar do processo de atra-vessar a contradiccedilatildeo e o negativo e passar aleacutem ateacute ao seu oposto que sem o esquecer tem-nos (o negativo e o positivo) em si reconciliados

6 Conclusatildeo os modos da diferenccedila em Pessoa

Uma vez que como se viu Pessoa se casou com a dife-renccedila para prosseguir seria preciso analisar os modos que a diferenccedila assume no seu pensamento Nessa anaacutelise que por exceder os limites deste estudo natildeo poderei mais do que indi-car seraacute necessaacuterio analisar o lugar das trecircs formas principais da diferenccedila filosoacutefica na obra do autor Satildeo elas nomeadamen-te a diferenccedila reflexiva ou seja a que cria o distanciamento en-tre eu e eu cuja funccedilatildeo jaacute foi desenvolvida acima em segundo lugar a diferenccedila criacutetica ou seja a diferenccedila entre o pensar e o sentir ou a emoccedilatildeo cuja importacircncia em Pessoa eacute fulcral

contraacuterio natildeo seria possiacutevel encontrar o menor traccedilo de ignoracircncia no poeta Natildeo haacute em Pessoa justamente este saber do nada do eu como recuperaccedilatildeo do mundo Descrever o percurso que conduz ateacute esta recuperaccedilatildeo do ser e percorrecirc-lo talvez incessantemente eacute sinal antes do reconhecimento sem ilu-satildeo da condiccedilatildeo finita Quanto agrave positividade sapiencial e aspectos do ecircxito vivencial do poeta v tambeacutem ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infelizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 33 (2008) pp 203-22254 Como observa Gil a proacutepria relaccedilatildeo da alma com corpo eacute transfigu-rada Joseacute Gil op cit 30-35

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

39

como vimos A este niacutevel assiste-se na sua obra agrave criaccedilatildeo de todo um imaginaacuterio poeacutetico a partir de um jogo de eclipsamento muacutetuo entre pensamento e sensaccedilatildeo entre pensar e ver Este jogo eacute constitutivo da imagem poeacutetica E por fim em terceiro lugar poderaacute mencionar-se a diferenccedila transcendental ou seja a diferenccedila entre o objeto visto e a sua visibilidade ou entre o ente e o sentido que o permite apreender Na verdade a poesia tem por funccedilatildeo pocircr entre parecircnteses a realizaccedilatildeo entificadora do real e substituiacute-la por uma reflexatildeo transcendental sobre os meios expressivos do olhar que permite ver o real Neste sen-tido toda a poesia natildeo menos que o pensamento filosoacutefico eacute eminentemente uma atividade transcendental Tambeacutem esta diferenccedila encontra o seu lugar no pensamento de Pessoa sob a forma da ausecircncia ou perda de sentido da pergunta em que a diferenccedila entre o ente e o ser eacute claramente enunciada Mas tambeacutem o voltar-se para o proacuteprio meio expressivo ou seja para a condiccedilatildeo da mostraccedilatildeo poeacutetica dos entes eacute um modo de enunciado da diferenccedila transcendental Este eacute o sentido das passagens onde o autor defende que a criaccedilatildeo literaacuteria o saber dizer eacute a verdadeira instituiccedilatildeo de sentido ldquoDizer Saber dizer Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual Tudo isto eacute quanto a vida vale []rdquo55

Mas o desenvolvimento da anaacutelise das diferenccedilas decisi-vas seria jaacute um outro capiacutetulo da investigaccedilatildeo filosoacutefica sobre Pessoa

55 LD 141

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

40

BIBLIOGRAFIA

BORGES Paulo Pensamento Atlacircntico Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 2002

BORGES Paulo ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infe-lizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra Hegel-Studien 33 2008

BREacuteCHON Robert Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernando Pessoa trad M Abreu P Tamen Lisboa 1997

FERRER Diogo O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Imprensa da Universidade de Coimbra 2014

FERRER Diogo ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Con-ceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 2012

GIL Joseacute Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Lisboa Reloacute-gio drsquoaacutegua 2013

HEGEL Friedrich Gesammelte Werke 13 Hamburg Felix Meiner 2000

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

PLATAtildeO Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa Ins-tituto Piaget 2001

PLATO IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Londres Harvard 1977

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Presenccedila 1990

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Galhoz e Cunha Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos Lis-boa Aacutetica 1958

PESSOA Fernando Fausto ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

41

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesCaeiro a vaccine against the stupidity of intelligent people

Palavras-chave poesia filosofia sensaccedilatildeo Fernando Pessoa Alberto CaeiroKeywords Poetry philosophy sensation Fernando Pessoa Alberto Caeiro

ldquoO homem natildeo pode permanecer consciente por muito tempo agraves vezes tem de se refugiar na inconsciecircncia pois nela vive sua raizrdquo

Thomas Mann Carlota em Weimar

RESUMO Mais que um heterocircnimo Alberto Caeiro eacute reconhe-cido como um Mestre por Fernando Pessoa e pelos outros he-terocircnimos do universo deste poeta portuguecircs As experiecircncias nascidas de sua singular entrega agraves sensaccedilotildees nos conduz tanto a reflexotildees criacuteticas de pertinecircncia filosoacutefica sobre os do-miacutenios e os limites do pensamento como a uma nova forma de experienciar o mundo Aleacutem de acompanhar tal movimento e explorar os mecanismos da ldquoloacutegicardquo caeiriana considerando o caminho percorrido por Caeiro e o relato de seus disciacutepulos (Aacutel-varo de Campos Ricardo Reis Antonio Mora e Pessoa) esse ensaio buscaraacute tambeacutem refletir sobre a posiccedilatildeo ndash a de Mestre ndash ocupada por ele no universo pessoano

ABSTRACT More than a heteronym Alberto Caeiro is consi-dered a Master by Fernando Pessoa and the other heteronyms of the universe of this Portuguese poet The experiences that come from his unique dedication to sensations lead us to critical reflections of philosophical importance about the domains and limits of thought as well as to a new form of experiencing the world This essay not only tracks this movement and explores the Caeirian ldquologicrdquo considering the path taken by Caeiro and the reports from his disciples (Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antonio Mora and Pessoa) but also reflects on the position ndash that of a Master ndash that he occupies in the Pessoan universe

I

A pertinecircncia filosoacutefica da obra de Fernando Pessoa eacute tal que constantemente seus leitores mais afeitos ao cotidiano des-

Gisele Batista Candido

Doutora em Filosofia - Uni-versidade de Satildeo Paulo E-mail giselebcgmxnet

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

42

se universo encontram em seus escritos ecos e ateacute mesmo re-ferecircncias que os remetem a diversos autores da filosofia O proacute-prio poeta portuguecircs reconheceu que ldquoera um poeta inspirado pela filosofiardquo (PESSOA Escritos autobiograacuteficos p 19) Com efeito aleacutem de seu espoacutelio contar com inuacutemeros escritos criacuteti-cos sobre diferentes filoacutesofos sua poesia tambeacutem apresenta de certa forma teor filosoacutefico Entretanto o envolvimento entre poesia e filosofia na obra pessoana natildeo se configura como uma relaccedilatildeo oacutebvia como se sua poesia fosse apenas um pretexto para o desenvolvimento de palpitaccedilotildees filosoacuteficas ou mesmo uma simples tentativa de poetizar experiecircncias alheias Embora o poeta reconheccedila a influecircncia da filosofia ele imediatamente reitera que ldquonatildeo [eacute] um filoacutesofo com faculdades poeacuteticasrdquo (PES-SOA Escritos autobiograacuteficos p 19)

Nesse horizonte a poesia de Alberto Caeiro revela natildeo apenas inspiraccedilatildeo filosoacutefica mas sobretudo uma problemati-zaccedilatildeo do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico que seraacute enfaticamente questionado em algumas de suas perquiriccedilotildees mais proacuteprias a saber a orientaccedilatildeo do pensamento e a primazia atribuiacuteda ao conhecimento

Como veremos adiante natildeo podemos negar que em mui-tos momentos essa criacutetica caeiriana pode nos lembrar a filosofia de Nietzsche que por exemplo em suas Consideraccedilotildees Ex-temporacircneas enfatiza o prejuiacutezo envolvido na acumulaccedilatildeo de conhecimento num certo sentido histoacuterico

Pois noacutes modernos natildeo temos absolutamente nada que provenha de noacutes mesmos somente na medida em que nos entulhamos e apinha-mos com eacutepocas haacutebitos artes filosofias re-ligiotildees conhecimentos alheios tornamo-nos dignos de consideraccedilatildeo a saber enciclopeacute-dias ambulantes (NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva p 34)

Tal criacutetica em Caeiro no entanto constitui apenas uma etapa da experiecircncia proposta por sua poesia como uma opor-tunidade para desintoxicaccedilatildeo do acuacutemulo civilizatoacuterio Desse momento decorreraacute por exemplo uma percepccedilatildeo mais nua da natureza que bem poderia ser comparaacutevel agraves reflexotildees de Mer-leau-Ponty sobre Ceacutezanne

Percebemos coisas entendemo-nos sobre elas estamos enraizados nelas e eacute sobre essa base de ldquonaturezardquo que construiacutemos ci-ecircncias Foi esse mundo primordial que Ceacutezan-ne quis pintar e por isso seus quadros datildeo a impressatildeo da natureza em sua origem en-quanto as fotografias das mesmas paisagens

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

43

sugerem os trabalhos dos homens suas co-modidades sua presenccedila iminente (hellip) Vive-mos em um meio de objetos construiacutedos pe-los homens entre utensiacutelios em casas ruas cidades e na maior parte do tempo natildeo os vemos senatildeo atraveacutes das accedilotildees humanas das quais eles podem ser os pontos de aplicaccedilatildeo Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e eacute inabalaacutevel A pintura de Ceacutezanne suspende esses haacutebitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o ho-mem se instala (MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito p 128 131)

Apesar dessas e de tantas outras possiacuteveis convergecircn-cias o caminho aberto e percorrido por Caeiro como veremos eacute peculiar em suas transformaccedilotildees e originalmente conciliatoacuterio em sua potencial plenitude experiecircncias inseparaacuteveis de sua iacutempar existecircncia poeacutetica

II

Sobre o processo de gecircnese de Alberto Caeiro lemos em uma carta de Pessoa destinada a Casais Monteiro

Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Saacute-Carneiro mdash de inventar um poeta bucoacuteli-co de espeacutecie complicada e apresentar-lho jaacute me natildeo lembro como em qualquer espeacute-cie de realidade Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui Num dia em que finalmente desistira mdash foi em 8 de Marccedilo de 1914 mdash acerquei-me de uma coacutemoda alta e tomando um papel comecei a escrever de peacute como escrevo sempre que posso E escrevi trinta e tantos poemas a fio numa espeacutecie de ecircxtase cuja natureza natildeo conseguirei definir Foi o dia triunfal da minha vida e nunca pode-rei ter outro assim Abri com um tiacutetulo O Guar-dador de Rebanhos E o que se seguiu foi o aparecimento de algueacutem em mim a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro Descul-pe-me o absurdo da frase aparecera em mim o meu mestre Foi essa a sensaccedilatildeo imediata que tive E tanto assim que escritos que foram esses trinta e tantos poemas imediatamente peguei noutro papel e escrevi a fio tambeacutem os seis poemas que constituem a Chuva Obliacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

44

qua de Fernando Pessoa Imediatamente e totalmente Foi o regresso de Fernando Pes-soa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele soacute Ou melhor foi a reacccedilatildeo de Fernando Pessoa contra a sua inexistecircncia como Alberto Caeiro (PESSOA Alguma Prosa p 52)

Embora essa versatildeo sobre a criaccedilatildeo do ldquomestrerdquo seja em certa medida colocada em questatildeo por estudos dos manus-critos da obra pessoana1 nem por isso torna-se menos perti-nente consideraacute-la Cientes tambeacutem do apreccedilo de Pessoa pela criaccedilatildeo de mitos a escolha por tal versatildeo e a necessidade de expressaacute-la natildeo parece ser gratuita ela compotildee a histoacuteria de Caeiro (de outros heterocircnimos e do proacuteprio ortocircnimo) e pode contribuir para iluminar aspectos de sua natureza Encontramos nos escritos de Rudolf Lind observaccedilotildees que tambeacutem corrobo-ram com essa abordagem

Natildeo haacute pois na carta uma uacutenica referecircncia aos programas esteacutetico-literaacuterios que original-mente tal como no-lo mostra o espoacutelio apa-drinharam o nascimento dos heteroacutenimos Natildeo nos repugnaria concluir que o poeta manhoso se decidira em 1935 a cultivar consciente-mente a sua proacutepria lenda apresentando-se aos amigos mais jovens como o pai involuntaacute-rio de trecircs personagens poeacuteticas e ocultando propositadamente todas as consideraccedilotildees de ordem teoacuterica e programaacutetica que haviam precedido o nascimento delas (LIND Estudos sobre Fernando Pessoa p 100)

Sem cair no meacuterito de determinar se foi consciente ou natildeo a escolha pessoana por salientar que a primeira tentativa de criaccedilatildeo do mestre heterocircnimo nasceu de uma espeacutecie de brin-cadeira ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo chama-nos aten-ccedilatildeo a sintonia dessa circunstacircncia ndash o jogar remete tambeacutem agrave ingenuidade da infacircncia momento privilegiado para se envolver pela criatividade luacutedica ndash com o caraacuteter tambeacutem luacutedico ingecircnuo e porque natildeo infantil de Alberto Caeiro que insiste em com-parar seu modo de sentir ao de uma crianccedila e diz ldquoNunca fui senatildeo uma crianccedila que brincavardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 94)

1 Conforme Richard Zenith a verdadeira ordem cronoloacutegica da obra caeiriana eacute distinta da ordem estabelecida por Pessoa Assim como o tal dia triunfal em que o poeta portuguecircs diz ter escrito trinta e tantos poemas a fio natildeo existiu da maneira como foi narrada por ele A escrita desses poemas envolveu uma extensatildeo de tempo bem maior ldquoHouve se natildeo um dia um mecircs triunfal ndash marccedilo de 1914 ndash confirmado pelos dados dos manuscritosrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 221)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

45

Configurando sua recusa em crer num Deus abstrato ou carnalmente ausente o poeta ingecircnuo opta inclusive por en-carnar o seu Cristo em uma crianccedila brincalhona e afirma que esse Cristo-crianccedila ldquoA mim ensinou-me tudo Ensinou-me a olhar para as coisasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 29) Longe de qualquer idealizaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo esse deus-crianccedila-encarnado mostra-se absolutamente huma-no e particular em suas atitudes que satildeo enfaticamente infantis

Num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer agrave terra Veio pela encosta de um mon-te Tornando outra vez menino A correr e a rolar pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de lon-ge () Eacute uma crianccedila bonita de riso natural Limpa o nariz ao braccedilo direito Chapinha nas poccedilas de aacutegua Colhe as flores e gosta delas e esquece-as Atira pedras aos burros Rou-ba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos catildees E porque sabe que elas natildeo gostam E que toda gente acha graccedila Cor-re atraacutes das raparigas Que vatildeo em ranchos pelas estradas Com as bilhas agraves cabeccedilas E levanta-lhes as saias (PESSOA Poesia Com-pleta de Alberto Caeiro p 28)

Ainda que em sonho a existecircncia desse deus eacute necessa-riamente vivenciada por Caeiro e mais a relaccedilatildeo direta entre o deus e o poeta eacute estabelecida de forma luacutedica atraveacutes de uma brincadeira ldquoAo anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No de-grau da porta de casa Graves como conveacutem a um deus e a um poetardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 31)

A ingenuidade do olhar infantil livre dos viacutecios do haacutebito e do conhecimento se achega ao mundo de forma aberta sem determinaacute-lo previamente Assim ele eacute capaz de se surpreen-der uma vez que tudo se mostra como novidade diante dessa perspectiva pueril O pasmo advindo de tal olhar seraacute uma das principais caracteriacutesticas cultivadas por Caeiro sobretudo quan-do ele quer explicitar sua forma de sentir o mundo ldquoComo uma crianccedila antes de a ensinarem a ser grande Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvirdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p146) Ademais sua ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p49) ndash meacutetodo absolutamente necessaacuterio para se despir de todas as interferecircn-cias culturais e intelectuais ndash natildeo eacute nada mais que uma forma deliberada de retomar esse contato ingecircnuo e primordial com o mundo Caeiro defende que o seu modo de sentir em certa medida eacute como o de uma crianccedila que acabara de nascer ldquoSei

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

46

ter os pasmo comigo Que tem uma crianccedila se ao nascer Re-parasse que nasceu deverasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 19)

Sabemos que a noccedilatildeo de infacircncia ocupa um lugar privile-giado no universo de Pessoa Natildeo eacute de se estranhar portanto que o seu mestre ateacute nas circunstacircncias de sua gecircnese seja aquele que tem a relaccedilatildeo mais iacutentima com ela2

O projeto de ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo pode ter sido malogrado mas talvez natildeo seja exagero dizer que desse lapso nasceu uma nova partida um jogo entre Pessoa e Caeiro O surgimento deste uacuteltimo natildeo estaacute condicionado a qualquer vontade deliberada O poeta portuguecircs escreve que quando pretendia criar Caeiro apesar de todo o seu esforccedilo este natildeo surgia agrave revelia de sua vontade e como que brincando com sua autonomia o mestre heterocircnimo soacute veio ao mundo quando ele finalmente desistiu de criaacute-lo assumindo ainda personalidade e vida proacuteprias sensivelmente distintas do originalmente planeja-do por seu por assim dizer criador Nesse circuito o jogo entre criador e criatura torna-se ambiacuteguo Para Joseacute Augusto Seabra ldquoas criaturas satildeo aqui criadas por e para a criaccedilatildeordquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 90) Com efeito a pre-senccedila de Caeiro surge imperiosamente e arrebata de tal forma o seu criador que este confessa sentir-se apenas como meio e natildeo senhor dessa criaccedilatildeo Aleacutem de ser completamente tomado por essa presenccedila sem ser capaz de suspendecirc-la manipulaacute-la ou direcionaacute-la Pessoa eacute como que controlado por ela tanto que sente uma espeacutecie de apagamento de sua proacutepria perso-nalidade e a sujeiccedilatildeo de sua autonomia a uma potecircncia maior que em contrapartida o obriga a escrever ndash como ele mesmo o poeta ortocircnimo ndash para que seja possiacutevel o retorno a si

Em Poetas do Atlacircntico a propoacutesito de um possiacutevel para-lelismo entre Pessoa e Wallace Stevens Irene Ramalho Santos escreve sobre a relevacircncia e o caraacuteter da experiecircncia de des-personalizaccedilatildeo dramaacutetica vivida por Pessoa diante da presenccedila de Caeiro

Ambos os textos [a carta a Casais Monteiro sobre a gecircnese da heteroniacutemia de Pessoa e Notes Toward a Supreme Ficiton de Stevens] satildeo representaccedilotildees do modo como um poeta entende sua proacutepria identidade (ou ficccedilatildeo de identidade) enquanto criador original Ambos necessitam da dramatizaccedilatildeo de um outro po-der poeacutetico contra o qual a sua independecircncia

2 Aacutelvaro de Campos tambeacutem escreve sobre o teor infantil da obra de Caeiro ldquoO que realmente recebemos drsquoaquelles versos eacute a sensaccedilatildeo infantil da vida com toda a materialidade directa dos conceitos da infancia e toda espitirualidade vital da esperanccedila e do crescimento que satildeo dos inconscien-te da alma e corpo da infacircnciardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 105)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

47

criativa tem de ser afirmada e avaliada (SAN-TOS Poetas do Atlacircntico p 243)

Enfim mais do que ser arrebatado e submetido Pessoa eacute sobremaneira modificado ainda que tenha voltado a si ele confessa que depois dessa experiecircncia nunca mais foi o mes-mo pois foi transformado recriado pela presenccedila daquele que seraacute entatildeo reconhecido como seu mestre bem como de seus principais heterocircnimos

III

Alberto Caeiro natildeo foi a primeira personalidade a surgir no universo pessoano Entre os principais heterocircnimos ele tambeacutem natildeo eacute o de idade mais avanccedilada ou o de maior longe-vidade natildeo eacute o mais ldquoexperienterdquo nem o mais erudito nunca alcanccedilou publicamente qualquer destaque sua condiccedilatildeo social eacute limitada conheceu poucos lugares teve acesso a pouca ins-truccedilatildeo a estrutura de seus versos pode natildeo parecer muito so-fisticada ao olhar erudito e o teor deles agrave primeira vista eacute de uma simplicidade que beira o pueril Entretanto a despeito de tudo isso ele eacute reconhecido como o mestre por personalidades tatildeo distintas como Aacutelvaro de Campos engenheiro viajado que procurou vivenciar toda sorte de experiecircncias e extrapolaacute-las em sua poesia Ricardo Reis meacutedico ilustrado simpatizante da monarquia e do classicismo grego extremamente cioso da or-dem da vida e de seus versos Antonio Mora personalidade de iacutendole filosoacutefica que passou parte de sua vida em uma espeacutecie de hospiacutecio Fernando Pessoa natildeo somente o criador de Caei-ro mas tambeacutem demiurgo de todo um universo Em vista de todos os pormenores mencionados haacute pouco ndash detalhes que se natildeo fosse pela negativa das condiccedilotildees poderiam justificar a posiccedilatildeo central desse heterocircnimo ndash eacute difiacutecil natildeo se ver envolvido pela questatildeo o que faz de Caeiro o mestre

Em um dos textos de Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro ao refletir sobre as metamorfoses que a influecircn-cia caeiriana operou em Ricardo Reis em Fernando Pessoa em Antocircnio Mora e em si mesmo Aacutelvaro de Campos faz refe-recircncia a uma ldquoreacccedilatildeo agrave Grande Vaccinardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103) Segundo Campos a obra de seu mestre forneceu a Ricardo Reis a sensibilidade que lhe faltava para sua transformaccedilatildeo de um pagatildeo latente em um pagatildeo de fato Foi tambeacutem depois de ler O Guardador de Rebanhos que Reis passou a escrever poemas e ldquoa saber que era organica-mente poetardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Nas palavras do proacuteprio Ricardo Reis

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

48

Quando pela primeira vez estando entatildeo em Portugal ouvir ler O Guardador de Rebanhos tive a maior e a mais perfeita sensaccedilatildeo da mi-nha vida Rolou-se-me de sobre o coraccedilatildeo de repente todo o peso da nossa civilizaccedilatildeo posticcedila todo o peso do cristianismo ativo cuja sombra jaz sobre a nossa alma Respirei outra vez a grandeza a forccedila e a singela perfeiccedilatildeo das grandes emoccedilotildees primitivas que vinha da natureza sem datas das almas (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 65)

Antonio Mora vivia atraacutes de uma verdade sobre a qual pu-desse desdobrar suas especulaccedilotildees filosoacuteficas ldquopassava a vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido () Encontrou Caeiro e encontrou a verdaderdquo (PES-SOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Mora era como um corpo sem alma ateacute que a influecircncia de Caeiro lhe deu uma alma uma motivaccedilatildeo central desde entatildeo ele se dedicou a for-malizar isto eacute construir um sistema filosoacutefico a partir das expe-riecircncias contempladas nas palavras de seu mestre A influecircncia sobre Aacutelvaro de Campos eacute tatildeo intensa que este confessa que antes de conhecer Caeiro natildeo passava de ldquouma machina ner-vosa de natildeo fazer coisa nenhumardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Soacute depois de conhececirc-lo ele passou a ser ele mesmo ldquoE de ahi em deante por mal ou por bem tenho sido eurdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Quando considera a reaccedilatildeo de Pessoa ao seu mestre Campos pare-ce estar sensiacutevel agrave pulverizaccedilatildeo caracteriacutestica da subjetividade pessoana ldquoMais curioso eacute o caso de Fernando Pessoa que natildeo existe propriamente fallandordquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Conforme o poeta-engenheiro Pessoa soacute conseguiu alcanccedilar a proacutepria individualidade atraveacutes dos poe-mas escritos em reaccedilatildeo ao surgimento de Caeiro3 ldquoNum mo-mento num uacutenico momento conseguiu ter sua individualidade ndash a que natildeo tivera antes nem poderaacute tornar a ter porque a natildeo temrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102)

De acordo com a analogia de Campos como uma ldquoGrande Vaccinardquo Caeiro provoca reaccedilotildees transformaccedilotildees na existecircn-cia daqueles que se mostram suscetiacuteveis agrave sua influecircncia Mas qual seria o princiacutepio dessa ldquoGrande Vaccinardquo Aacutelvaro de Cam-pos eacute direto e decisivo ao falar sobre o seu teor trata-se de uma ldquovacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103)

A simplicidade de Caeiro eacute elementar ldquoEle Caeiro natildeo 3 Considerando as palavras de Aacutelvaro de Campos e o relato pesso-ano sobre o episoacutedio da gecircnese de Caeiro podemos depreender que ao anular tatildeo enfaticamente a subjetividade de Pessoa o surgimento de Caeiro mostrou de forma exemplar o que realmente compunha a individualidade do poeta portuguecircs a dispersatildeo a anulaccedilatildeo do eu em prol do outro Condiccedilatildeo nevraacutelgica para a criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da pluralidade heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

49

sabe porque vive mas sabe que o natildeo saberdquo (BERARDINELLI A poesia de Fernando Pessoa p 46) Milecircnios de acumulaccedilatildeo cultural de desenvolvimento intelectual e tecnoloacutegico natildeo ga-rantem necessariamente que o ser humano tenha evoluiacutedo ou mesmo que a evoluccedilatildeo seja algo a almejar Questotildees essenciais e existenciais continuam sem respostas definitivas nenhum ca-minho religioso filosoacutefico ou social trouxe satisfaccedilatildeo ou conhe-cimento plenos e definitivos e a tecnologia jamais foi capaz de alterar de fato o curso da vida ou o Destino do homem Fausto Trageacutedia Subjetiva de Pessoa eacute o emblema radical de todo o esforccedilo em vatildeo do conhecimento Por mais que tenha se empe-nhado em conhecer desenvolver inovar o ser humano nunca deixou de ser aquilo que ele eacute Antes ele parece ter se esque-cido desse fato primordial Filho ou imagem e semelhanccedila de deus animal racional descendente de macacos agrupamento de aacutetomos sujeito homem humano um nome enfim tudo isso na perspectiva caeiriana eacute distraccedilatildeo enfadonha e sem sentido Nenhuma dessas compreensotildees foi capaz de dizer o que de fato somos ou fazer de noacutes mais ou menos do que somos ldquoEs-sas coisas compreendidas soacute com a inteligecircncia nada satildeo e nada valemrdquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 80) Entretan-to envolvido por milecircnios de acumulaccedilatildeo supeacuterflua inteligecircncia estuacutepida facilmente o ser humano se esquiva de sua condiccedilatildeo elementar ele se distrai cogita ser tudo isso se esquece de ser aquilo que ele eacute e confunde aquilo que as coisas satildeo

A recusa de Caeiro em ldquover mais nas coisas que as proacute-prias coisasrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 211) aplica-se igual-mente agrave sua proacutepria condiccedilatildeo No decorrer de sua vida e obra ele procura se despir de toda acumulaccedilatildeo esquecer de tudo aquilo que lhe ensinaram se desvencilhar da noccedilatildeo de homem e se desfazer ateacute de seu proacuteprio nome para afirmar que ele natildeo eacute aquilo que fizeram dele mas sim aquilo que ele verdadeira-mente sente

Procuro despir-me do que aprendi Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-sinaram E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos Desencaixotar as minhas emo-ccedilotildees verdadeiras Desembrulhar-me e ser eu natildeo Alberto Caeiro Mas um animal humano que a natureza produziu E assim escrevo querendo sentir a Natureza nem sequer como um homem Mas como quem sente a Natu-reza e mais nada () Sou o Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-proacuteprio (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 72)

Tudo o que aprendemos pensamos conhecemos nasce

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

50

daquilo que sentimos e posteriormente depois da infacircncia de nossos sentidos tudo isso tambeacutem vem a compor e interferir em nossas sensaccedilotildees Todas as questotildees abstratas ndash sobre o sentido da existecircncia a evoluccedilatildeo do homem o misteacuterio do mundo e da vida ndash nascem dessas sensaccedilotildees corrompidas por pensamentos por isso essas questotildees natildeo tecircm respostas de-finitivas elas natildeo satildeo coisas verdadeiramente sentidas porque natildeo existem como coisas mas apenas como pensamentos abs-tratos das sensaccedilotildees ldquoUma vez mais eacute o pensamento e soacute o pensamento elemento patoloacutegico sempre a insinuar-se que eacute o responsaacutevel pela metafiacutesica do misteacuterio enquanto que para Caeiro o problema nem se chega a porrdquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 97) Caeiro ignora ou melhor ri dessas questotildees abstratas aceitando e por isso esquecendo o jugo do Destino e fruindo aquilo que a Natureza lhe oferece

A obra de Caeiro tem poreacutem e aleacutem drsquoisto um efeito criacutetico Estes versos da sensaccedilatildeo directa contraposta a sua alma aos nossos conceitos sem naturalidade agrave nossa sensa-ccedilatildeo mental artificiosa contabilizada em ga-vetas rasga-nos todos os trapos que temos por fato lava-nos a cara da chimica e o esto-mago dos pharmaceuticos ndash entra pela nossa casa adentro e mostra-nos que uma mesa de madeira eacute madeira madeira madeira e que mesa eacute uma allucinaccedilatildeo necessaacuteria de nossa vontade industrial (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 106)

A criacutetica do mestre heterocircnimo agrave racionalidade desenfre-ada agrave estupidez dos inteligentes agraves abstraccedilotildees desnecessaacute-rias natildeo corresponde simplesmente agrave negaccedilatildeo despropositada essa criacutetica faz parte de um propoacutesito maior a depuraccedilatildeo das sensaccedilotildees

Caeiro apresenta-se antes de mais nada como o poeta das sensaccedilotildees estremes ldquoA sensaccedilatildeo eacute tudo () e o pensamento eacute uma doenccedilardquo ndash diz ele segundo um texto de Pes-soa E este explica que ldquopor sensaccedilatildeo enten-de Caeiro a sensaccedilatildeo das coisas tais como satildeo sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal convenccedilatildeo sentimen-to ou qualquer outro lugar da almardquo Haacute nele em suma uma identificaccedilatildeo das sensaccedilotildees com o seu objeto por uma reduccedilatildeo que se poderaacute dizer fenomenoloacutegica operada atraveacutes da eliminaccedilatildeo de todos os vestiacutegios da sub-jetividade (SEABRA Fernando Pessoa ou o

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

51

poetodrama p 91)Satildeo as sensaccedilotildees verdadeiras que expurgadas de toda

abstraccedilatildeo e interferecircncias nos oferecem a realidade o mundo tal como ele eacute Com o perdatildeo da redundacircncia vir a ser o que Caeiro realmente eacute ou seja se colocar em seu devido lugar envolve sentir verdadeiramente o que ele eacute4 as coisas que ele sente Ao trazer as coisas para o seu lugar proacuteprio mais do que se colocar em seu devido lugar ele traz tambeacutem ldquoao Universo ele-proacutepriordquo Sobre esse movimento da vida e obra caeiriana Ricardo Reis escreve

Ignorante da vida e quase ignorante das letras quase sem conviacutevio nem cultura fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptiacutevel e profundo como aquele que dirige atraveacutes das consciecircncias inconscientes dos homens o de-senvolvimento loacutegico das civilizaccedilotildees Foi um progresso de sensaccedilotildees ou antes de manei-ras de as ter e uma evoluccedilatildeo iacutentima de pensa-mentos derivados de tais sensaccedilotildees progres-sivas Por uma intuiccedilatildeo sobre-humana como aquelas que fundam religiotildees para sempre poreacutem a que natildeo assenta o tiacutetulo de religiosa por isso que como o sol e a chuva repugna toda a religiatildeo e toda a metafiacutesica este ho-mem descobriu o mundo sem pensar nele e criou um conceito de universo que natildeo con-teacutem meras interpretaccedilotildees (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 46)

Provavelmente Caeiro eacute a uacutenica personalidade conscien-temente plena do universo pessoano ele natildeo eacute cindido nem se sente incompleto perdido estrangeiro ou temeroso Todos os paradoxos incoerecircncias e desvios de sua obra podem ser organicamente absorvidos pela compreensatildeo central composta por ela

Caeiro em que todas absolutamente todas as contradiccedilotildees rupturas distacircncias oposiccedilotildees se encontram resolvidas e unificadas Caeiro o mestre da doutrina neopagatilde de que Antoacutenio Mora eacute o filoacutesofo realiza a aspiraccedilatildeo uacuteltima do projecto heteroniacutemco sentir tudo de todas as maneiras atingindo a realidade das coisas sem deformar (GIL O Espaccedilo Interior p 21)

4 A certa altura em um diaacutelogo entre Campos e Caeiro nos depa-ramos com a seguinte conversa ldquo- Diga-me uma cousa O Caeiro o que eacute para si mesmo - O que sou para mim mesmo repetiu Caeiro ndash Sou uma sensaccedilatildeo minhardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 100)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

52

Talvez seja por isso tambeacutem que a duraccedilatildeo de sua vida foi tatildeo curta ele natildeo tinha necessidade de viver mais para estar re-alizado Nenhum de seus disciacutepulos consciente ou inconscien-temente assumiu integralmente as suas ideacuteias nem era essa a sua pretensatildeo ldquoCaeiro natildeo espera que os demais heterocircnimos sejam ldquonaturaisrdquo como ele mas que captando-lhe a ldquonaturali-daderdquo busquem construir a poesia que a sua visatildeo do mundo suscitardquo (MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge p 158) Mais do que sua ldquodoutrinardquo das sensaccedilotildees verdadeiras o que parece fazer dele o mestre eacute o seu exemplo de plenitude5 sua capacidade de saber reconhecer e ser exatamente aquilo que ele eacute ldquoEacute a minha descoberta de todos os dias Cada coisa eacute o que eacute E eacute difiacutecil explicar a algueacutem quanto isso me alegra E quanto isso me basta Basta existir para ser completordquo (PES-SOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 91) Sobre a maes-tria de Cairo Octavio Paz escreve

Alberto Caeiro eacute meu mestre Esta afirmaccedilatildeo eacute a pedra de toque de tocircda a sua obra E po-deria acrescentar-se que a obra de Caeiro eacute a uacutenica afirmaccedilatildeo feita por Pessoa Caeiro eacute o sol e em tocircrno decircle giram Reis Campos e o proacuteprio Pessoa Em todos ecircles haacute partiacutecu-las de negaccedilatildeo ou de irrealidade Reis acre-dita na forma Campos na sensaccedilatildeo Pessoa nos siacutembolos Caeiro natildeo acredita em nada existe () Caeiro eacute tudo o que Pessoa natildeo eacute e aleacutem disso tudo o que nenhum poeta mo-derno pode ser o homem reconciliado com a natureza Antes do cristianismo sim mas tam-beacutem antes do trabalho e da histoacuteria Caeiro nega pelo mero fato de existir natildeo somente a esteacutetica simbolista de Pessoa como tocircdas as esteacuteticas todos os valores tocircdas as ideacuteias Natildeo fica nada Fica tudo limpo todos os fan-tasmas e teias de aranha da cultura (PAZ Signos em Rotaccedilatildeo p 209)

Na obra do Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras trans-formar a forma de sentir implicaraacute necessariamente em trans-formar a forma de pensar O tiacutetulo do seu primeiro livro de poe-mas O Guardador de Rebanhos pode ser visto tambeacutem como

5 Sobre o efeito provocado por Caeiro Reis escreve ldquo[Caeiro] foi para mim como viraacute a ser para mais que muitos o revelador da Realidade ou como ele mesmo disse lsquoo Argonauta das sensaccedilotildees verdadeirarsquo ndash o grande Libertador que nos restituiu cantando ao nada luminoso que somos que nos arrancou agrave morte e agrave vida deixando-nos entre simples coisas que nada conhecem em seu decurso de viver nem de morrer que nos livrou da es-peranccedila e da desesperanccedila para que nos natildeo consolemos sem razatildeo nem nos entristeccedilamos sem causa convivas com ele sem pensar da realidade objectiva do Universordquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 74)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

53

uma referecircncia expliacutecita ao seu labor ldquoSou um guardador de rebanhosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) Entretanto curiosamente no verso inaugural desse livro Caeiro afirma ldquoEu nunca guardei rebanhos Mas eacute como se os guardasserdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 16) Ele nunca guardou de fato rebanhos pois seu rebanho eacute de uma ordem diferente do habitual rebanho animal ldquoO rebanho eacute os meus pensamentosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) escreve o poeta e eacute como se ele os guardasse pois esses pensamentos tambeacutem satildeo de uma ordem diferen-te da habitual abstraccedilatildeo intelectual e devem ser resguardados desta influecircncia Ele completa ldquoos meus pensamentos satildeo to-dos sensaccedilotildeesrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34)

Os sentidos ocupam um lugar privilegiado nos poemas de Caeiro Enquanto as experiecircncias sensoriais satildeo consideradas a forma espontacircnea e direta de contato com os fenocircmenos o pensar eacute visto como uma abstraccedilatildeo destes uma deturpaccedilatildeo das sensaccedilotildees Contudo nem por isso o pensar eacute deixado de lado6 nem essa espontaneidade sensorial eacute alcanccedilada de for-ma espontacircnea ldquoO que Caeiro tenta rejeitar repetidamente natildeo eacute o pensamento in toto mas sim o uso especulativo e transcen-dental do pensamentordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 19) Suas ldquosensaccedilotildees verdadeirasrdquo natildeo satildeo meras sensaccedilotildees Alcanccedilaacute-las exige a depuraccedilatildeo dos senti-dos tarefa que envolve a reflexatildeo criacutetica sobre o conhecimento sobre a proacutepria reflexatildeo e sobre as influecircncias que podem mar-car as sensaccedilotildees a redefiniccedilatildeo da subjetividade ou melhor do eu a reconstruccedilatildeo da relaccedilatildeo desse eu com os fenocircmenos e por fim uma nova compreensatildeo do Universo Essas transfor-maccedilotildees natildeo excluem o exerciacutecio do pensar poreacutem assim como as sensaccedilotildees natildeo satildeo meras sensaccedilotildees no horizonte caeiria-no a forma de pensar natildeo corresponde agraves formas habituais do pensamento Trata-se de um pensamento capaz de suspender--se em prol das sensaccedilotildees por isso o mestre pode dizer ldquopen-so nisto natildeo como quem pensa mas como quem natildeo pensardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 62)

Como um guardador de rebanhos nosso poeta pastor in-terveacutem no movimento de seus pensamentos para garantir que eles natildeo se percam em abstraccedilotildees seu esforccedilo consiste em conduzi-los agrave sua condiccedilatildeo primeira promover o seu enlace com o sentir ldquoSoacute atraveacutes da absorccedilatildeo do pensamento pelas

6 Ao comparar a experiecircncia Zen agrave caeiriana Leyla Perrone-Moiseacutes tambeacutem diz que o mestre heterocircnimo natildeo nega absolutamente o pensar ldquonem o Zen nem Caeiro ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial pretendem que o homem deva ser soacute instintos O proacuteprio do animal humano eacute ter essa mente-corpo capaz de um conhe-cimento que eacute ao mesmo tempo fiacutesico e ldquoespiritualrdquo O que se nega aiacute eacute o pensamento analiacutetico e o que se exalta eacute um pensamento sinteacutetico tambeacutem exclusivo do homemrdquo (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 124)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

54

sensaccedilotildees se pode realizar sua identificaccedilatildeo muacutetua exterior agraves sensaccedilotildees o pensamento eacute uma excrescecircncia se natildeo um viacuterus corruptor que chega por vezes a perturbar a sauacutede do poeta pondo em causa a sua ldquoobjetividaderdquordquo (SEABRA Fernando Pes-soa ou o poetodrama p 92) O pensamento nasce das sensa-ccedilotildees e torna-se abstrato quando se afasta ou tenta suplantaacute-las

Marcada enfaticamente pela criacutetica agraves interferecircncias das abstraccedilotildees do pensamento sobre a vida a obra de Caeiro insis-te em uma volta agraves coisas mesmas atraveacutes das sensaccedilotildees ou melhor ao cabo de todo um processo de depuraccedilatildeo dos senti-dos natildeo haveraacute diferenccedila entre o sentir e as coisas mesmas Em um movimento de pura coincidecircncia as sensaccedilotildees seratildeo as coisas mesmas Esse percurso seraacute marcado por uma espeacutecie de fenomenologia das sensaccedilotildees jogo em que o proacuteprio sentir se transforma em objeto dos sentidos Seraacute sobretudo atraveacutes desse recurso que nosso poeta poderaacute depurar o sentir dis-tinguindo-o do pensar abstrato dos conhecimentos adquiridos das interferecircncias sociais culturais e enfim do haacutebito infiltrado na experiecircncia sensiacutevel

As coisas satildeo brutalmente reais objecto puro renitentes a qualquer subjectivaccedilatildeo ou interio-rizaccedilatildeo absolutamente impenetraacuteveis porque satildeo o que parecem ser sem profundidade sem logos simples como a pura superfiacutecie De si as coisas satildeo singulares e se lhes atri-buo complexificaccedilotildees ou mistificaccedilotildees estou a transferir para elas caracteriacutesticas dos meus esquemas mentais As categorias e esquemas aprioriacutesticos da mente natildeo me datildeo a coisa mas um resultado irreal sem objectividade ou melhor se alguma objectividade tecircm eacute ape-nas enquanto ficccedilatildeo que me imponho a mim proacuteprio por me ser uacutetil e agradaacutevel na condu-ccedilatildeo da vida (COELHO A P Os fundamen-tos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa p 289)

A missatildeo envolvida na ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo consistiraacute portanto em identificar o alcance das influecircncias e dos conhecimentos adquiridos para deixaacute-los de lado desa-prendecirc-los em prol de um contato ingecircnuo com mundo Aleacutem de realccedilar as sensaccedilotildees atraveacutes da anulaccedilatildeo de seu alcance abs-trato o pensamento nesse processo de aprender a desapren-der seraacute exercido tambeacutem em sua funccedilatildeo criacutetica auxiliando na depuraccedilatildeo do sentir

O empenho em despir as coisas para experimentaacute-las tal como elas satildeo em promover um retorno agraves coisas mesmas e em arrebanhar os pensamentos que se perderam em abstra-ccedilotildees como podemos constatar envolve tambeacutem uma criacutetica agrave

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

55

filosofia sobretudo ao movimento da metafiacutesica e agrave valorizaccedilatildeo do intelecto Contudo por mais que Caeiro critique a filosofia e se recuse a ser classificado como materialista7 ou representante de qualquer outro movimento as experiecircncias promovidas por sua poesia apresentam ldquopertinecircncia ou consequumlecircncia filosoacutefi-casrdquo (MARTINS O erro da filosofia p 250) Como uma ldquogrande vacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo a obra de Caeiro nos leva a questionar de forma radical o papel ocupado pelo intelecto e o valor de suas aquisiccedilotildees Sem que essa criacutetica se esgote em uma simples negaccedilatildeo dessa faculdade como um pastor ele conduziraacute tal exerciacutecio do pensar ao lugar que lhe eacute proacuteprio

A simplicidade de Caeiro estaacute longe de ser equivalente agrave ingenuidade pueril Essa frase pode parecer desconcertante aos olhos de quem leu sobretudo no iniacutecio deste ensaio insis-tentes correlaccedilotildees entre o iacutempeto da crianccedila e o temperamento do poeta Natildeo obstante as inocecircncias infantil e a caeiriana se-rem comparaacuteveis em diversos aspectos um fator as diferen-cia radicalmente a saber a ingenuidade do mestre poeta natildeo eacute nada ingecircnua Muito pelo contraacuterio enquanto a simplicidade infantil deriva da condiccedilatildeo primaacuteria do desenvolvimento ainda latente da crianccedila a simplicidade de Caeiro eacute fruto de um pro-cesso sofisticado de maturaccedilatildeo que envolve a supressatildeo de todo acuacutemulo intelectual e uma espeacutecie de depuraccedilatildeo do sentir enfim o aprender a desaprender Atraveacutes das observaccedilotildees de um mestre Zen Leyla Perrone-Moiseacutes fala sobre esse percurso caeiriano

Um mestre Zen deixou a consignaccedilatildeo seguin-te ldquoAntes de me tornar esclarecido os rios eram rios e as montanhas eram montanhas Quando comecei a tornar-me esclarecido os rios jaacute natildeo eram rios e as montanhas jaacute natildeo eram montanhas Agora depois que me tornei esclarecido os rios voltaram a ser rios e as

7 Conforme Benedito Nunes ldquoAlberto Caeiro que desconhece o pro-blema da substacircncia estaacute longe do materialismo por ecircle reputado muito estuacutepido ndash ldquocoisa de padres sem religiatildeo e portanto sem desculpa nenhumardquo A mateacuteria eacute uma abstraccedilatildeo Soacute eacute real o que vemos Sensualismo Natildeo Se o naturalismo abstrai os secircres em proveito do conjunto do todo que eacute a Natu-reza o sensualismo natildeo menos abstrato tudo reduz a elementos sensiacuteveis a impressotildees-aacutetomos desfigurando as sensaccedilotildees cada uma das quais de-ferente das outras eacute nova se sabemos sentirrdquo (NUNES B O dorso do tigre p 220) Jaacute sobre uma possiacutevel identificaccedilatildeo de Caeiro com a fenomenologia husserliana Luiz de Oliveira e Silva escreve ldquoCaeiro no entanto e este facto divorcia-o completamente da fenomenologia contemporacircnea natildeo tem nenhum interesse em desvelar ldquoum significado imanente ao fenocircmeno e in-corporado nelerdquo Ainda que ele possa parecer ao observador desatento como um partidaacuterio veemente do slogan de Husserl ldquoZu den Sachen selbstrdquo na ver-dade o significado que ele reclama natildeo eacute senatildeo uma ausecircncia de significadordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 22)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

56

montanhas voltaram a ser montanhasrdquo Eis--nos jaacute proacuteximos das constataccedilotildees de Caei-ro (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 118)

A trajetoacuteria da simplicidade caeiriana natildeo apenas estaacute mui-to aleacutem da compreensatildeo imatura de uma crianccedila como ultra-passa tambeacutem a compreensatildeo do homem civilizado8 que ainda se encontra ancorado em camadas de conhecimentos deriva-dos de experiecircncias indiretas

8 Joseacute Gil tambeacutem escreve sobre a maturidade caeiriana ldquoA obra de Caeiro encontra-se como o olhar do primeiro homem mas apoacutes a construccedilatildeo e a destruiccedilatildeo das civilizaccedilotildees que se sucederam na Europardquo (GIL Diferen-ccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pessoa p 17)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

57

BIBLIOGRAFIA

Escritos de Fernando Pessoa

__ Alguma Prosa 5ordf ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990

__ Fausto ndash Trageacutedia Subjetiva Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991

__ F Pessoa ndash Escritos autobiograacuteficos automaacuteticos e de reflexatildeo pessoal Satildeo Paulo A Girafa 2006

__ Obras de Antoacutenio Mora vol VI Ediccedilatildeo criacutetica por Luiacutes Filipe Texeira Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2002

__ Paacuteginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Tex-tos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1966

__ Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lisboa Estampa 1990

__ Poemas Completos de Alberto Caeiro Lisboa Presen-ccedila 1994

__ Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2005

__ Poesias Fernando Pessoa Lisboa Aacutetica 1995

__ Poemas de Ricardo Reis Ediccedilatildeo Criacutetica de Luiz Fagun-des Duarte Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 1994

__ Prosa de Aacutelvaro de Campos Lisboa Aacutetica 2012

__ Ricardo Reis ndash Poesia Completa Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2000

__ Ricardo Reis Prosa Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

__ Textos filosoacuteficos 2 vols Textos estabelecidos e prefa-ciados por Antocircnio de Pina Coelho Lisboa Nova Aacutetica 2006

__ Textos Filosoacuteficos Vol II Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio de Pina Coelho Lisboa Aacutetica 1968

Escritos sobre Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

58

BERARDINELLI C HUumlHNE L PEGORARO O Fernan-do Pessoa e Martin Heidegger ndash O Poetar Pensante Rio de Janeiro UAPEcirc 1994

COELHO A Pina Os fundamentos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa 2 vols Lisboa Editorial Verbo 1971

GIL J Diferenccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pes-soa Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

__ O Espaccedilo Interior Lisboa Editora Presenccedila 1994

LIND R Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 1981

MANN T Carlota em Weimar Rio de Janeiro Editora Nova Fronteira 1984

MARTINS O erro da filosofia In Poesia completa de Al-berto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito 1ordf ed Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina Galvatildeo Gomes Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge 3ordf ed Satildeo Paulo Cultrix 2009

NUNES B O dorso do tigre Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1969

__ ldquoPoesia e filosofia na obra de Fernando Pessoardquo In 4 Revista ColoacutequioLetras Ensaio nordm 20 Jul 1974 p 22-34

NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003

PAZ O Signos em Rotaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1976

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

__ ldquoPensar eacute estar doente dos olhosrdquo In Novaes Adauto (org) O olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

SAacute-CARNEIRO M Correspondecircncia com Fernando Pes-soa Satildeo Paulo Cia das Letras 2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

59

__ Obras completas Cartas a F P edit Por Urbano Tava-res Rodrigues 2 volumes Lisboa 1958

SANTOS I R Poetas do Atlacircntico ndash Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano Belo Horizonte UFMG 2007

SEABRA J A Fernando Pessoa ou o poetodrama 2ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1991

__ O Coraccedilatildeo do Texto - Novos ensaios pessoanos Lis-boa Ediccedilotildees Cosmo 1996

__ O Heterotexto Pessoano Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1988

SILVA L O Materialismo idealista de Fernando Pessoa Lisboa Claacutessica Editora 1985

ZENITH Caeiro Triunfal In Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

60

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisFernando Pessoa Friedrich Schlegel and Novalis

Palavras-chave Fernando Pessoa ndash literatura ndash romantismo alematildeoKeywords Fernando Pessoa - literature - German Romanticism

RESUMO Pretendemos neste artigo aproximar aspectos da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana da filosofia do primeiro romantismo alematildeo Fernando Pessoa foi leitor do romantismo alematildeo Em sua biblioteca particular encontramos livros que comprovam esse fato Para aleacutem deste aspecto haacute uma consonacircncia entre a filosofia do primeiro romantismo alematildeo e o espaccedilo artiacutestico e muacuteltiplo da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana

ABSTRACT We intend in this article to approach aspects of Pessoarsquos literary creation and the philosophy of the first German Romanticism Fernando Pessoa was a reader of the German romanticism In his private library one finds books that prove this fact Furthermore there is an affinity between the philosophy of the first German Romanticism and the Pessoarsquos artistic and mul-tiple space of literary creation

ldquoO mundo eacute um indiviacuteduo potencializado assim como o indiviacuteduo natildeo passa de um

universo condensado1rdquo Maacutercio Suzuki

ldquoSecirc plural como o universordquo Fernando Pessoa

Pretendo aproximar neste artigo alguns aspectos da obra pessoana dando especial ecircnfase para o projeto do desassos-sego e ao desdobramento pessoano do pensamento filosoacutefico dos primeiros romacircnticos alematildees sobretudo dos escritos dei-xados por Friedrich Schlegel2 e Novalis

Fernando Pessoa poeta e criador de heterocircnimos foi tam-beacutem um leitor voraz a anaacutelise dos documentos do seu espoacutelio e

Financiamento da Fapesp (proc nordm 201516698-2)

1 SUZUKI 1998 p1332 Neste trabalho fazemos referecircncia ao filoacutesofo Friedrich Schlegel e em nenhum momento citamos a obra e o pensamento do seu irmatildeo August Schlegel Sendo assim a utilizaccedilatildeo do sobrenome Schlegel indica referecircncia apenas agrave obra e pensamento de Friedrich Schlegel

Claacuteudia Souza(USPFAPESP)

Doutora em Literaturas de Liacutengua Portuguesa ndash PUC--MG Poacutes-Doc em FIlosofia ndash USP

claudiasouzzzahotmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

61

da sua biblioteca particular satildeo comprovaccedilotildees deste fato Entre essas muitas leituras destacamos algumas relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho Em sua biblioteca particu-lar constam um livro de Novalis Les disciples agrave Sais et Les fragments3 curiosamente traduzido por Maeterlink4 e outro livro intitulado The literature of Germany5 onde existe um capiacutetulo sobre o romantismo alematildeo A presenccedila destes dois livros no espoacutelio pessoano nos revela que Pessoa se interessou pelo ro-mantismo alematildeo Para aleacutem destes indiacutecios encontramos re-ferecircncia a Schlegel e a Novalis em outros escritos pessoanos

Para fazer uma anaacutelise do primeiro escrito selecionado no qual haacute referecircncia ao romantismo alematildeo eacute preciso antes es-clarecer quem eacute o autor deste texto Trata-se de uma persona-lidade pessoana cujo nome eacute Antoacutenio Mora Mora aparece pela primeira vez num projeto pessoano intitulado Na casa de sauacutede de Cascaes como o proacuteprio nome indica trata-se de um livro - que natildeo chegou a ser publicado - sobre uma casa de tratamento psiquiaacutetrico Antoacutenio Mora neste projeto exerce o papel de um dos doentes como podemos constatar na seguinte passagem

O mais interessante poreacutem eacute o Antoacutenio Mora Eacute pelo menos o mais original de todos

- O mais original- Sim pessoalmente original como pessoa natildeo clinicamen-

te original Clinicamente natildeo se afasta em nada do typo de paranoico ou da marcha conhecida da paranoia Eacute verdade que natildeo eacute simplesmente um paranoico Eacute tambeacutem um hyste-rico Mas a paranoia eacute as vezes acompanhada de uma psy-chonevrose intercorrente Natildeo ha que extranhar Nada ha ahi de exquisito Natildeo eacute nisto que elle eacute original Eacute na especie do seu delirio no conteudo que estaacute todo o interesse E natildeo te digo mais nadaVeraacutesE dispotildee-te para gastares tempo com elle porque vaes ver ficas interessadiacutessimo

-Veremos- Garanto-te Natildeo seraacute preciso apontar-trsquoo Conhecel-o logo

pela toga- A toga O quecirc O typo anda de toga Mas isso tem qual-

quer cousa que vecircr com o delirio- Veraacutes meu velho veraacutesNatildeo quero te dizer nada Natildeo

quero te tirar o interesse aacute surpreza6

Mais tarde Antoacutenio Mora exerceraacute um importante papel no 3 NOVALIS Friedrich von Hardenberg Les disciples agrave Sais et Les fragments de Novalis traduits de lrsquoallemand et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction par Maurice Maeterlinck - Paris - Bruxelles Paul Lacomblez 19144 Pessoa foi muito influenciado pelo teatro simbolista de Maeterlink Em seus projetos do Teatro estaacutetico encontramos referecircncias ao dramatur-go belga (Cf PESSOA 2010)5 ROBERTSON J G The literature of Germany - London Williams and Norgate - New York Henry Holt and Company [19]6 [BNPE3-2719-B3-4]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

62

diaacutelogo entre Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos e Ricardo Reis Num primeiro momento Mora eacute personagem de um romance e depois se transforma em autor de textos Assim como Reis Campos e Caeiro ele faraacute parte da composiccedilatildeo deste drama em gente7 pessoano sendo influecircnciado por Alberto Caeiro como podemos constatar no seguinte trecho

O Antonio Mora era uma sombra de veleidades especu-lativas Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido Indeciso como todos os fortes natildeo tinha encontrado a verdade ou o que para elle fosse verdade o que para mim eacute o mesmo Encontrou Caeiro e encontrou a verdade O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que elle natildeo tinha poz dentro do Mora peripherico que elle sempre tinha sido um Mora central E o resulatdo foi a reduc-ccedilatildeo a systema e a verdade logica dos pensamentos insticti-vos de Caeiro O resultado triumphal foi esses dois tratados maravilhas de originalidade e de pensamento O Regresso dos Deuses e os Prolegomenos a uma Reformaccedilatildeo do Pa-ganismo8

Neste trecho percebemos a relaccedilatildeo entre Mora e a filosofia passava a vida a mastigar Kant Essa personalidade escreveu em prosa e formava ao lado de Pessoa Reis e Caeiro um con-traponto com Campos como podemos constatar em outro tre-cho de um projeto inacabado intitulado Notas para a recordaccedilatildeo do meu Mestre Caeiro assinado por Aacutelvaro de Campos

Maravilho-me da doutrina de Antonio Mora e discordo drsquoella com

7 Em Dezembro de 1928 no nuacutemero 17 da revista Presenccedila foi pu-blicada a taacutebua bibliograacutefica pessoana e neste texto Pessoa afirma que a elaboraccedilatildeo da obra dos seus heterocircnimos (Alberto Caeiro Ricardo Reis e Aacutelvaro de Campos) constituiu um drama em gente em vez de um drama em actos como atesta a seguinte passagem ldquoAs obras destes trecircs poetas for-mam como se disse um conjunto dramaacutetico e estaacute devidamente estudada a entreacccedilatildeo intelectual das personalidades assim como as suas proacuteprias relaccedilotildees pessoais Tudo isto constaraacute de biografias a fazer acompanhadas quando se publiquem de horoacutescopos e talvez de fotografias Eacute um drama em gente em vez de em actos (Se estas trecircs individualidades satildeo mais ou menos reais que o proacuteprio Fernando Pessoa mdash eacute problema metafiacutesico que este ausente do segredo dos Deuses e ignorando portanto o que seja reali-dade nunca poderaacute resolverrdquo) PESSOA 2000 p404 Podemos assegurar a participaccedilatildeo de Antoacutenio Mora neste drama em gente baseados na afirmaccedilatildeo do proacuteprio Pessoa no seguinte trecho que faria parte de uma obra intitulada Aspectos ldquoEsse Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador phi-losophico Os dois discipulos Ricardo Reis e Alvaro de Campos seguiram caminhos differentes tendo o primeiro intensificado e tornado orthodoxo o paganismo descoberto por Caeiro e o segundo baseando-se em outra parte da obra de Caeiro desenvolvido por um sytema inteiramente differente e baseado inteiramente nas sensaccedilotildees O continuador philosophico Antonio Moacutera (os nomes satildeo tatildeo inevitaacuteveis tatildeo impostos de foacutera como as persona-lidades) tem um ou dois livros a escrever onde provaraacute completamente a verdade metaphysica e practica do paganismo()rdquo [BNPE3-20-70 a 72]8 [BNPE3-71A-24 a 26]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

63

um gesto delicado de afastamento O mal drsquoestes homens todos ndash o do Ricardo Reis do Antonio Mora do Fernando Pessoa sim por-

que sinto outside idolatry do meu mestre Caeiro tambeacutem ndash eacute que so veem a realidade Diversamente todos a veem com clareza todos

satildeo objectivistas ateacute Fernando Pessoa Mas eu natildeo vejo a realidade ndash palpo-a Por isso elles satildeo mais ou menos declaradamente poly-

theistas e eu sou monotheista9 ()

Esse fragmento mostra como Mora participava do diaacutelogo en-tre Caeiro Campos e Reis Apesar de natildeo ter uma biografia consolidada como os demais (Caeiro Campos e Reis) cum-pria um papel importante na construccedilatildeo deste drama-em gente Num escrito sobre a questatildeo do paganismo que como vimos eacute um dos projetos do Antoacutenio Mora ele comenta sobre o roman-tismo alematildeo

Com o romantismo alematildeo propriamente dito o dos Schlegel de Tieck e de Novalis entra a literatura germacircnica uma decadecircncia

referindo-nos por comparaccedilatildeo agrave precedente literatura de Schiller e de Goethe se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na

sua utilizaccedilatildeo do que admirava no paganismo10

Neste texto Mora discorre sobre os efeitos do cristianismo e do paganismo no progresso da civilizaccedilatildeo A referecircncia ao ro-mantismo alematildeo eacute importante porque revela os efeitos da per-sona critica pessoana em sua produccedilatildeo literaacuteria Outro aspecto relevante que aproxima Pessoa dos primeiros romanticos eacute a anaacutelise que ambos fazem da obra de Goethe Reflexotildees sobre a obra de Goethe estatildeo presentes em vaacuterios fragmentos do es-poacutelio assim como em diversos fragmentos de Schlegel e Nova-lis A criacutetica de Mora ao romantismo alematildeo parece ter relaccedilatildeo com uma subjetividade excessiva presente no romantismo de acordo com essa personalidade pessoana Essa subjetividade que seria responsaacutevel pela decadecircncia da literatura germacircni-ca Mora como defensor da construccedilatildeo de um novo paganismo preza pela objetividade rejeitando uma interiorizaccedilatildeo excessiva do indiviacuteduo que consequentemente afastaria o mesmo da ex-periecircncia pagatilde

Em outro texto intitulado O Provicianismo Portuguecircs de 1928 eacute Pessoa quem faz referecircncia ao romantismo alematildeo citando uma frase de Novalis

Para o provincianismo haacute soacute uma terapecircutica eacute o saber que ele existe O provincianismo vive da inconsciecircncia de nos supormos civilizados quando natildeo o somos de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades que o natildeo somos O princiacutepio da cura estaacute na consciecircncia da doenccedila o da ver-

9 [BNPE3-71ordf-27]10 [BNPE3-121-71]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

64

dade no conhecimento do erro Quando um doido sabe que estaacute doido jaacute natildeo eacute doido Estamos perto de acordar disse Novalis quando sonhamos que sonhamos (PESSOA 2000 p373)

A referecircncia a Novalis demonstra o interesse pessoano pela obra deste autor Essa frase de Novalis foi lida e sublinhada por Pessoa no jaacute referido livro presente em sua biblioteca particular Les disciples agrave Sais et Les fragments

Nous sommes pregraves du reacuteveil quand nous recircvons que nous recircvons11

Eacute relevante tambeacutem ressaltar a afirmaccedilatildeo pessoana tambeacutem presente neste trecho do texto O provincianismo portuguecircs - eacute na incapacidade de ironia que reside o traccedilo mais fundo do pro-vincianismo mental - justamente a ironia elemento tatildeo importan-te na obra dos primeiros romacircnticos alematildees Parece que em 1928 ano da publicaccedilatildeo do texto pessoano aqui trabalhado o autor portuguecircs estava em consonacircncia com alguns aspectos da filosofia do primeiro romantismo alematildeo

Aleacutem das evidecircncias aqui demonstradas que aproximam de alguma maneira Pessoa de F Schlegel e de Novalis mostrare-mos a seguir como o projeto do desassossego pessoano dia-loga com alguns fragmentos deixados por Schlegel e Novalis

O Livro do Desassossego permaneceu como projeto durante a vida de Fernando Pessoa Antes de 1935 somente alguns trechos deste projeto foram publicados A aproximaccedilatildeo deste projeto pessoano com o pensamento de Schlegel e de Novalis pode ser realizada atraveacutes do desdobramento pessoano que faz parte da elaboraccedilatildeo deste livro

A noccedilatildeo de gecircnio como uma coletividade interior desenvolvi-da por Schlegel parece estar em consonacircncia com a tessitura da esteacutetica do Desassossego O projeto do Desassossego ao longo da sua elaboraccedilatildeo recebeu a assinatura de trecircs autores numa primeira fase Fernando Pessoa assinou os fragmentos do Livro do Desassossego como podemos averiguar nesta lis-ta escrita talvez em 1914

Biblioteca da EuropaMario de Saacute-Carneiro Ceacuteu em focircgoAntoacutenio Ponce de Leatildeo A Venda

11 NOVALIS 1914 p77 Traduccedilatildeo nossa Estamos perto de acordar quando sonhamos que sonhamos Rubens Rodrigues Torres Filho em sua ediccedilatildeo Poacutelen Novalis traduz este trecho de outra forma Estamos proacuteximos do despertar quando sonhamos que sonhamos (NOVALIS 2009 p43)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

65

Fernando Pessoa Livro do Desasocego

Theatro estatico12

Na fase seguinte Pessoa passa o livro para as matildeos de Vicen-te Guedes como podemos confirmar nesta lista

Na Casa de saude de Cascaes inclui1) Introduccedilatildeo entrevista com Antonio Mora2) Alberto Caeiro3) Ricardo Reis4) ldquoProlegoacutemenosrdquo de Antoacutenio Mora5) Fragmentos

_______________________________________________

Vida e obras do engenheiro Alvaro de Campos_______________________________________________

Livro do Desassocegoescripto por Vicente Guedes publicado por

Fernando Pessoa13

12 [BNPE3-68ordf-3]13 [BNPE3-5-83]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

66

Vicente Guedes foi uma personagem literaacuteria pessoana que natildeo chegou a se constituir como heterocircnimo Essa personalida-de assumiu diversas tarefas no laboratoacuterio literaacuterio de Pessoa foi contista tradutor e responsaacutevel pelo projeto do Desassosse-go durante a segunda fase da elaboraccedilatildeo deste Outro aspecto importante deste documento eacute a referecircncia ao nome de Antoacutenio Mora Esse fato mostra como o espoacutelio pessoano funcionou e ainda funciona como um laboratoacuterio de experimentaccedilatildeo onde as substacircncias ou seja nomes e projetos se misturam se en-contram

Na terceira e uacuteltima fase da escrita do Desassossego Fernan-do Pessoa entregou o projeto a outra personalidade Bernardo Soares o ajudante de guarda livros da cidade de Lisboa como podemos contatar neste documento

Do ldquoLivro do Desasocegocomposto por BernardoSoares ajudante de guarda-Livros na cidade de LisboardquoporFernando Pessoa

Podemos assim dizer que Pessoa se constituiu em uma pes-soa genuinamente sinteacutetica como diriam os primeiros romacircnti-cos ldquoO gecircnio diz Schlegel eacute uma coletividade interior uma co-munidade interna legalmente livre de muitos talentos ou como diz Novalis uma pessoa genuinamente sinteacutetica que eacute ao mes-mo tempo mais pessoasrdquo (SUZUKI 1998 p 235) E podemos constatar esse fato natildeo somente no projeto do Desassossego como tambeacutem na proacutepria constituiccedilatildeo da personalidade literaacuteria Antoacutenio Mora

No que diz respeito a escrita do projeto do Desassossego o problema da autoria ainda se coloca cada editor deste livro ao organizar os fragmentos para a publicaccedilatildeo torna-se de alguma forma autor participando do desdobramento pessoano

Depois da anaacutelise de todos os documentos pessoanos aqui apresentados podemos concluir que existe um forte e comple-xo diaacutelogo entre a literatura pessoana e o romantismo alematildeo O interesse de Pessoa pela filosofia do primeiro romantismo alematildeo acabou transbordando em seu espaccedilo artiacutestico dimi-nuindo de alguma forma as fronteiras entre poesia (no sentido mais amplo do termo) e filosofia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

67

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN Walter O conceito de criacutetica de arte no Romantis-mo alematildeo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Seligman-n-Silva Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1999

BORGES Paulo Teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu Estudos e ensaios pessoanos Lisboa Verbo 2011

LACOUE-LABARTHE Philippe NANCY Jean-Luc ldquoA exigecircn-cia fragmentaacuteriardquo Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Joatildeo Camillo Pen-na In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-gradua-ccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp67-94

NOVALIS Friedrich von Hardenberg Poacutelen - Fragmentos diaacute-logo monoacutelogo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Rubens Rodri-gues Torres Filho Satildeo Paulo Editora Iluminuras 2009

PESSOA Fernando Criacutetica ndash Ensaios Artigos e Entrevistas Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2000

PESSOA Fernando Livro do Desasocego Tomos I e II Edi-ccedilatildeo de Jerocircnimo Pizarro Lisboa INCM 2010 p43

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Bernardo Soares Recolha e transcriccedilatildeo dos textos Maria Aliete Galhoz Teresa Sobral Cunha prefaacutecio e organizaccedilatildeo Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Vicente Gue-des e Bernardo Soares Volume I e II Organizaccedilatildeo e notas de Teresa Sobral Cunha Lisboa Editorial Presenccedila 1990

RIBEIRO Nuno ldquoFernando Pessoa leitor de Novalis e o pro-blema da heteroniacutemiardquo Revista Scripta Belo Horizonte PU-CMG v16 pp56-68 2012

RIBEIRO Nuno (ed) Fernando Pessoa Philosophical Es-says A critical edition New York Contra Mundum Press 2012

SCHLEGEL Friedrich O dialeto dos fragmentos Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Suzuki Satildeo Paulo Editora Ilumi-nuras 1997

SELIGMANN-SILVA Maacutercio ldquoFriedrich Schlegel e Novalis poesia e filosofiardquo In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-graduaccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp95-111

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

68

SOUZA Claacuteudia ldquoA esteacutetica do desassossego Fernando Pessoa e o romantismo alematildeordquo In Osmar Oliva (Org) Litera-tura e Danaccedilatildeo Montes Claros Editora Unimontes 2013

SOUZA Claacuteudia RIBEIRO N ldquoCharles Robert Anon amp Ale-xander Search Filosofia e Psiquiatriardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 21 p 541-556 2012

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano poliacutetica e criaccedilatildeo literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais Dezembro de 2011

SOUZA Claacuteudia ldquoInconsciente e arte um ponto de encontro entre Fernando Pessoa e Freudrdquo In A Cultura Portuguesa no Divatilde Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2011 pp113-123

SOUZA Claacuteudia ldquoVicente Guedes e Bernardo Soares para aleacutem do Desasocegordquo Revista Cultura ENTRE Culturas Lis-boa 2011 pp186-191

SOUZA Claacuteudia SUZUKI Maacutercio ldquoNovalis e Pessoa lucidez poeacutetica e reflexatildeo oniacutericardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 23 p 9-26 2015

SUZUKI Maacutercio O gecircnio romacircntico ndash criacutetica e histoacuteria na filosofia de Friedrich Schlegel Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

69

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndash uma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaThe portrait of Fernando Pessoa as a philosopher ndash an incursion into Pessoarsquos philosophical booty

Palavras-chave Fernando Pessoa filosofia espoacutelioKey-words Fernando Pessoa philosophy archive

RESUMO Este artigo procura debater e problematizar o al-cance filosoacutefico da obra de Fernando Pessoa Partindo de uma anaacutelise dos documentos em grande parte ineacuteditos do espoacutelio de Pessoa pretende demonstrar-se que o alcance filosoacutefico da obra deste autor se estende muito aleacutem dos ecos de leituras filosoacuteficas presentes na sua poesia e nas suas ficccedilotildees Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos inuacutemeros projectos destinados a futuros livros ensaios pequenas produccedilotildees e di-aacutelogos filosoacuteficos Assim tendo por base a apresentaccedilatildeo do es-poacutelio filosoacutefico de Pessoa o presente artigo visa elucidar em que medida se pode falar de um Pessoa filoacutesofo para aleacutem do ldquopoeta animado pela filosofiardquo

ABSTRACT This article intends to debate and problematize the philosophical reach of Fernando Pessoarsquos work Based on an analysis of the documents in a great extent unpublished form Pessoarsquos Archive we intend to show that the philosophical reach of this authorrsquos work goes far beyond the echoes of philosophi-cal readings present in his poetry and in his fictions Indeed in Pessoarsquos Archive one finds numerous projects for future books essays short works and philosophical dialogues Thus based on the presentation of the philosophical writings from Pessoarsquos Archive this article aims to clarify to what extent one can speak of a Pessoa philosopher beyond the ldquopoet animated by philoso-phyrdquo

I ndash Os escritos filosoacuteficos do espoacutelio pessoano

Num escrito autobiograacutefico de Pessoa relativo agrave sua escrita le-mos

Nenhum dos meus escritos foi concluiacute-do sempre se interpuseram novos pensamen-tos associaccedilotildees de ideias extraordinaacuterias im-possiacuteveis de excluir com o infinito como limite Natildeo consigo evitar a aversatildeo que tem o meu

Nuno Ribeiro

Doutor em filosofia - Univer-sidade Nova de Lisboa - poacutes-doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos

nunofribeirosapopt

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

70

pensamento pelo acto de acabar seja o que for

[My writings were none of them finished new thoughts intruded ever extraordinary inexcusable associations of ideas bearing in-finity for term I cannot prevent my thoughtrsquos hatred of finish[ing] [hellip]] (PESSOA 2003 pp100-101 BNPE3 20 ndash 12rI)

Este trecho para aleacutem de se constituir como um testemu-nho de Fernando Pessoa relativo ao caraacutecter dos seus escritos eacute tambeacutem representativo do estado em que se encontram os textos presentes no espoacutelio deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos uma multiplicidade de fragmentos destinados a projectos de livros que este pensador pretendia futuramente es-crever mas que natildeo chegou a concluir De facto se excluirmos o Livro de Odes de Ricardo Reis ndash que eacute mais uma colecccedilatildeo de poemas do que um livro estruturado ndash Pessoa publicou ape-nas um livro em portuguecircs Esse livro eacute a Mensagem Fernando Pessoa publicou diversos poemas e ensaios em revistas lite-raacuterias que criou ou com as quais colaborou1 Chegou tambeacutem a publicar em formato de opuacutesculo algumas produccedilotildees como os 35 Sonnets Antinous os English Poems I-II e III e ainda o opuacutesculo Interregno ndash Defesa e Justificaccedilatildeo da Ditadura Militar em Portugal Mas nenhum destes escritos constitui por si soacute um livro e na sua maior parte satildeo apenas partes ou capiacutetulos de livros mais extensos projectados por Pessoa Assim no espoacutelio de Pessoa existe uma multiplicidade de projectos concebidos para futuros livros e ensaios Entre os livros e ensaios que este autor projectou mas que natildeo chegou a concluir encontram-se os escritos filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num documento do espoacutelio deste autor lemos

Milhares de teorias grotescas extraor-dinaacuterias profundas sobre o mundo sobre o homem sobre todos os problemas que per-tencem agrave metafiacutesica atravessaram o meu es-piacuterito Tive em mim milhares de filosofias das quais ndash como se fossem reais ndash nem mesmo duas concordariam

[Thousands of theories grotesque ex-traordinary profound on the world on man on all problems that pertain to metaphysics have passed through my mind I have had in me thousands of philosophies not any two of which mdash as if they were real mdash agreed] (LO-

1 Para efeitos de averiguaccedilatildeo de textos de Fernando Pessoa publica-dos em vida consulte-se a seguinte referecircncia bibliograacutefica BLANCO 1983

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

71

PES 1993 p 402 BNPE3 15B3sup3 ndash 12rI)

O espoacutelio de Pessoa catalogado na Biblioteca Nacional de Portugal [BNP] sob a designaccedilatildeo de ldquoE3rdquo [Espoacutelio 3] en-contra-se dividido em envelopes e compreende mais de vinte e sete mil documentos Cada envelope estaacute classificado com um nuacutemero uma designaccedilatildeo e conteacutem uma quantidade variaacute-vel de documentos Entre os diversos envelopes do espoacutelio de Pessoa encontramos quatorze envelopes filosoacuteficos com 1428 documentos Existem cinco envelopes (15sup1 15sup2 15sup3 15⁴ e 15⁵) com a designaccedilatildeo ldquoFilosofiardquo um (15A) classificado como ldquoFilo-sofia-Metafiacutesicardquo quatro (15Bsup1 15Bsup2 15Bsup3 e 15B⁴) designados como ldquoFilosofia-Psicologiardquo e finalmente quatro (22 23 24 e 25) intitulados ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo2 No entanto se eacute um facto que a divisatildeo do espoacutelio filosoacutefico em envelopes nos permite identificar nuacutecleos de textos filosoacuteficos este facto levanta um problema de iacutendole topograacutefica Por um lado nem todos os tex-tos filosoacuteficos se encontram nos envelopes de iacutendole filosoacutefica e por outro lado os envelopes filosoacuteficos contecircm documentos que natildeo satildeo filosoacuteficos Assim num envelope com a designaccedilatildeo ldquoPaacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuteriasrdquo [envelo-pe 19] encontramos por exemplo um texto sobre a filosofia de Nietzsche intitulado ldquoFriedrich Nietzscherdquo [BNP E3 19 ndash 99]3 e num envelope com a designaccedilatildeo ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo [enve-lope 23] existe um texto com o tiacutetulo ldquoDe Profundisrdquo [BNPE3 23 ndash 66] publicado por Antoacutenio de Pina Coelho na selecccedilatildeo de textos filosoacuteficos intitulada Textos Filosoacuteficos de Fernando Pes-soa4 mas que no entanto eacute uma traduccedilatildeo de um excerto de De Profundis de Oacutescar Wilde

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]5 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo Assim tendo todos estes aspectos

2 Para efeitos da elucidaccedilatildeo das problemaacuteticas relativas agrave cataloga-ccedilatildeo organizaccedilatildeo e ediccedilatildeo do conteuacutedo dos envelopes filosoacuteficos consulte-se as seguintes referecircncias RIBEIRO 2011b RIBEIRO 2011c RIBEIRO 20123 Este texto encontra-se publicado em PESSOA 1994 pp333-3344 Cf PESSOA 2006b pp 227-228 Outro flagrante exemplo do pro-blema topograacutefico no que respeita aos envelopes filosoacuteficos eacute um texto sobre o sensacionismo [BNPE3 15Bsup1-98I] que se encontra catalogado no envelo-pe 15Bsup1 (ldquoFilosofia Psicologiardquo)5 PESSOA 2006a p167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

72

em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]6 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo7 Assim tendo todos estes aspectos em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

O primeiro grupo de textos filosoacuteficos compreende os livros filosoacuteficos inacabados No espoacutelio de Pessoa existem diversos documentos com projectos destinados a livros filosoacuteficos e ela-borados pelo proacuteprio Pessoa Esses projectos encontram-se di-vididos em diversos toacutepicos correspondentes a vaacuterios capiacutetulos ou linhas de pensamento que Pessoa pretendia desenvolver em livros por si projectados Muitos desses toacutepicos correspondem a diversas paacuteginas que existem no espoacutelio de Pessoa Com efei-to a designaccedilatildeo dos toacutepicos presente em muitos dos projectos corresponde ao tiacutetulo e agraves indicaccedilotildees de uma multiplicidade de paacuteginas espalhadas ao longo do espoacutelio de Pessoa Entre os documentos com projectos de Pessoa encontramos os projec-tos de livros filosoacuteficos O seguinte texto redigido por Pessoa em inglecircs e os seus diversos toacutepicos que correspondem a um projecto destinado a um livro filosoacutefico constituem um exemplo de um projecto filosoacutefico de Pessoa

Book I ndash Theory of Categories[Book] II ndash Theory following on and depending on the Categories[Book] III ndash Theory of the Absolute

_______________

SubdivisionsBook I - 1 Category of Being Considerations 2 Category of Extension Consideration 3 Category of Relation Consideration 4 Conclusion Critique of Pure Reason 5 Conclusion

6 PESSOA 2006a p1677 Relativamente ao sentido e agrave circunscriccedilatildeo do termo ldquomicrosofiardquo re-metemos para os seguintes estudos SOUZA 2011 PIZARRO 2007

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

73

Book II - 1 Relation of Objects to Categories 2 Proofs of the Inexistence of the External World

[BNPE3 15sup3 ndash 3 fac-simile abaixo]

O segundo grupo de escritos filosoacuteficos corresponde aos ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num do-cumento presente no espoacutelio de Fernando Pessoa correspon-dente agrave tentativa de elaboraccedilatildeo de uma lista de obras a realizar e organizar encontramos a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo [BNPE3 48B ndash 152r fac-simile abaixo]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

74

Nesse documento Fernando Pessoa comeccedila por redigir uma lista com a indicaccedilatildeo de tiacutetulos e temaacuteticas a considerar sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Pessoa risca essa lista e inicia na mesma paacutegina uma segunda lista tambeacutem com a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo Tanto a primeira quanto a segunda listas satildeo bastante imprecisas pois por um lado apre-sentam-nos tiacutetulos que Pessoa viria posteriormente a considerar em listas de obras e em projectos natildeo filosoacuteficos por outro lado ambas as listas deixam de fora muitos dos ensaios filosoacuteficos que encontramos no espoacutelio de Fernando Pessoa Isto justifi-ca que Pessoa tenha abandonado essa lista deixando-a ina-cabada De facto ao longo do espoacutelio de Pessoa encontramos centenas de projectos e listas de obras muitas das quais satildeo abandonadas por Pessoa No entanto a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophi-cal Essaysrdquo presente na lista descrita constitui-se natildeo soacute como o testemunho de um conjunto de textos que Pessoa pretendia redigir e dos quais nos legou fragmentos mas tambeacutem como a evidecircncia do projecto de reunir esses textos sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Ao longo do espoacutelio de Pessoa exis-tem vaacuterios geacuteneros de ensaios com extensotildees diversas e que discutem o mais variado tipo de assuntos autores e movimen-tos filosoacuteficos8

8 No livro Fernando Pessoa Philosophical Essays a critical edition

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

75

O terceiro grupo corresponde agraves pequenas produccedilotildees filo-soacuteficas Com efeito para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos o espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem igualmente uma multipli-cidade de textos correspondentes a artigos opuacutesculos e outras produccedilotildees filosoacuteficas de menor dimensatildeo consagrados agrave dis-cussatildeo dos mais diversificados autores movimentos e concei-tos da histoacuteria da filosofia A distinccedilatildeo entre ensaios e pequenas produccedilotildees eacute explicitamente enunciada numa lista de obras de Pessoa onde se lecirc ldquoEssays and Shorter Worksrdquo [BNPE3 48B ndash 142 detalhe do fac-simile abaixo]

O quarto grupo de textos corresponde agraves notas de leitu-ra filosoacuteficas de Pessoa Pessoa tinha o haacutebito de tomar notas das suas leituras muitas das quais se encontram conservadas do espoacutelio deste autor Isto acontecia porque muitas vezes Pessoa lia livros que natildeo eram seus mas cuja referecircncia queria manter embora algumas das suas notas filosoacuteficas se reportem a livros que se encontram na sua Biblioteca Particular Estas notas satildeo de crucial importacircncia natildeo soacute para traccedilar as vaacuterias influecircncias filosoacuteficas na obra de Pessoa mas tambeacutem porque muitas dessas notas estatildeo na origem de alguns dos seus escri-tos filosoacuteficos Assim podemos distinguir dois tipos de notas primeiro as notas acriacuteticas que compreendem todas aquelas notas que tecircm meras indicaccedilotildees ou citaccedilotildees de livros filosoacutefi-cos que Pessoa leu segundo as notas criacuteticas que para aleacutem das referecircncias e citaccedilotildees de livros englobam tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Pessoa sobre aquilo que leu No envelope 22 existe um exemplo de uma nota de leitura criacutetica como se pode verificar no seguinte texto escrito por Pessoa em inglecircs sobre a definiccedilatildeo aristoteacutelica de metafiacutesica

apresentamos a compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacuteficos de Fer-nando Pessoa Para aleacutem de compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacutefi-cos a introduccedilatildeo a essa ediccedilatildeo conteacutem uma revisatildeo histoacuterica dos principais tiacutetulos relativos agraves ediccedilotildees e comentaacuterios aos textos filosoacuteficos de Pessoa com especial ecircnfase nas seguintes referecircncias 1) PESSOA 2006 ndash corres-pondente a uma reimpressatildeo de um texto originalmente publicado em 1968 2) MOTA 1988 3) LOPES 1993 4) Loacutepez 2012 Aiacute mostramos que todas essas referecircncias laboram num erro comum que consiste em natildeo considerar os diversos fragmentos de Fernando Pessoa no contexto dos projectos e tiacutetulos de obras de iacutendole filosoacutefica ainda que lhe faccedilam referecircncias esporaacute-dicas Discutimos tambeacutem na introduccedilatildeo agrave nossa ediccedilatildeo o estatuto proble-maacutetico de muitos dos tiacutetulos enumerados na lista acima apresentada com o tiacutetulo ldquoPhilosophical Essaysrdquo tendo por base a anaacutelise de outros projectos do espoacutelio de Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

76

Notes 1Aristotle defines metaphysics (1) science of first principles and of first causes and (2) science of being as being [qua being]

Also defined ldquothe science of the absoluterdquo Metaphysics contains 3 great theories 1) The-ory of knowledge 2) theory of being 3) theory of the first principle of knowledge and of being

Critique It contains great theories indeed These are 1) Theory of knowledge 2)

[BNPE3 22 -73r fac-simile abaixo]

Finalmente o quinto grupo de textos filosoacuteficos correspon-de agraves paacuteginas filosoacuteficas autoacutenomas Este tipo de textos englo-ba todos aqueles escritos que lidam com a filosofia ou com as-suntos filosoacuteficos mas que natildeo correspondem a nenhum dos outros grupos filosoacuteficos nem tecircm qualquer relaccedilatildeo material di-recta com os outros escritos filosoacuteficos O espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem inuacutemeras paacuteginas deste tipo

Para aleacutem destes cinco grupos pode ainda ser identificado um outro grupo de documentos filosoacuteficos Esse grupo de docu-mentos corresponde ao projecto de criaccedilatildeo de diaacutelogos filosoacutefi-cos No envelope 24 existe um documento precisamente intitu-lado ldquoDiaacutelogos filosoacuteficosrdquo [BNPE3 24 ndash 96a] que conteacutem um trecho de discussatildeo sobre os argumentos acerca da existecircncia de Deus No entanto os documentos relativos aos diaacutelogos filo-soacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo bastante escassos e por outro lado o conteuacutedo e o estilo do texto intitulado ldquoDiaacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

77

logos filosoacuteficosrdquo encontram-se bastante proacuteximos das ficccedilotildees e contos deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos por exemplo um documento com a indicaccedilatildeo ldquoContos Intellectuaesrdquo [BNPE3 48A ndash 48i] que poderaacute corresponder a um desenvol-vimento dos diaacutelogos filosoacuteficos Noutro documento contendo uma lista de obras encontramos tambeacutem a indicaccedilatildeo ldquoContos metaphysicosrdquo [BNPE3 48E ndash 29i] que poderaacute igualmente ser considerado como outro dos tiacutetulos correspondentes a um de-senvolvimento do projecto de diaacutelogos filosoacuteficos Isto leva-nos a concluir que muito provavelmente os diaacutelogos filosoacuteficos natildeo teratildeo passado da fase de projecto e que Pessoa teraacute reaprovei-tado o conteuacutedo destinado a esses diaacutelogos para construir os seus contos e ficccedilotildees os quais muitas vezes satildeo mais dialo-gados do que narrados

II ndash Filosofia e a pluralidade de personalidades de Pessoa

Uma das mais claras consequecircncias da criaccedilatildeo de uma pluralidade de personalidades em Fernando Pessoa eacute a pro-blematizaccedilatildeo do conceito de autoria A problematizaccedilatildeo des-te conceito tem naturalmente consequecircncias no que respeita agrave circunscriccedilatildeo do acircmbito da produccedilatildeo filosoacutefica deste autor No decurso da sua produccedilatildeo literaacuteria Pessoa cria uma multi-plicidade de personalidades entre as quais os heteroacutenimos satildeo as mais conhecidas Um heteroacutenimo eacute uma personalidade com uma biografia um nome e uma obra inteiramente autoacutenomos das demais personalidades No entanto a marca distintiva da heteroniacutemia eacute o estilo A cada heteroacutenimo corresponde a fabri-caccedilatildeo de um estilo proacuteprio A fabricaccedilatildeo de uma multiplicidade de heteroacutenimos corresponde agrave produccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos9

Contudo para aleacutem dos heteroacutenimos Pessoa cria ainda um conjunto de semi-heteroacutenimos e de outras personalidades subalternas que poderatildeo ser classificadas como sub-heteroacuteni-mos A diferenccedila entre um heteroacutenimo e um semi-heteroacutenimo consiste no facto de que enquanto o heteroacutenimo tem um esti-lo literaacuterio inteiramente autoacutenomo o semi-heteroacutenimo escreve no mesmo estilo natural do autor real da escrita Eacute isso que por exemplo lemos no texto Ficccedilotildees do Interluacutedio a respeito do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares ldquo[hellip] Bernardo Soares distinguindo-se de mim por suas ideias seus sentimentos seus modos de ver e de compreender natildeo se distingue de mim pelo estilo de expor [hellip]rdquo (PESSOA 2007 p153)

9 Para a elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a heteroniacutemia e a criaccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos veja-se RIBEIRO 2011 Neste livro apresentamos o desenvolvimento da multiplicidade estilos ligada agrave fabricaccedilatildeo dos heteroacute-nimos atraveacutes de um confronto da noccedilatildeo de heteroniacutemia com a noccedilatildeo niet-zschiana de perspectivismo Consulte-se tambeacutem a este respeito a seguinte referecircncia RIBEIRO 2010

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

78

Os sub-heteroacutenimos desempenham por outro lado um papel inteiramente diferente dos heteroacutenimos e dos semi-he-teroacutenimos Estas personalidades tecircm por funccedilatildeo dominante a traduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo das obras dos heteroacutenimos e de outros autores portugueses Thomas Crosse e I I Crosse satildeo dois exemplos deste tipo de personalidades

No entanto a produccedilatildeo de personalidades na obra de Fer-nando Pessoa natildeo se esgota na criaccedilatildeo dos heteroacutenimos semi--heteroacutenimos e sub-heteroacutenimos A primeira apariccedilatildeo puacuteblica de um heteroacutenimo de Pessoa ocorre em 1915 com a publicaccedilatildeo do ldquoOpiaacuteriordquo e da ldquoOde Triunfalrdquo de Aacutelvaro de Campos no primeiro nuacutemero da revista literaacuteria Orpheu Contudo existe todo um tra-balho de criaccedilatildeo preacute-heteroniacutemica que antecede o surgimento dos heteroacutenimos Com efeito Fernando Pessoa escreve sob o nome de dezenas de personalidades literaacuterias10 a maior parte das quais produz as suas obras ou fragmentos de obras no pe-riacuteodo preacute-heteroniacutemico

No que diz respeito aos preacute-heteroacutenimos a produccedilatildeo de textos filosoacuteficos encontra-se maioritariamente centralizada nas produccedilotildees de duas personalidades preacute-heteroniacutemicas inglesas de Fernando Pessoa Charles Robert Anon e Alexander Search A relaccedilatildeo de Anon e de Search com a filosofia encontra-se des-de logo expressa nos documentos biograacuteficos que Pessoa nos deixa relativamente a estes dois preacute-heteroacutenimos

Com efeito num caderno dataacutevel de cerca de 1906 [BNPE3 144Csup2] encontramos um fragmento em inglecircs intitulado Ex-communication [Excomunhatildeo] que se constitui como um de resumo biograacutefico de Charles Robert Anon e que nos lega inuacute-meros indiacutecios da relaccedilatildeo desta personalidade com as proble-maacuteticas ligadas agrave filosofia Aiacute lemos

Excomunhatildeo

natildeo casado excepto em momentos estranhos____________________________________

Eu Charles Robert Anon ser animal mamiacutefe-ro tetraacutepode primata com placenta macaco catarrino homem dezoito anos de idade natildeo casado (excepto em momentos estra-nhos) megalomaniacuteaco com laivos de dipso-mania degenerado superior poeta com pre-tensotildees a escritos humoriacutesticos cidadatildeo do

10 Em Pessoa por Conhecer numa secccedilatildeo intitulada ldquo11 ndash Dramatis Personaerdquo Teresa Rita Lopes conta setenta e duas personalidades de Fer-nando Pessoa (Cf LOPES 1990 pp 167-169) No entanto este nuacutemero tem vindo a ser reconsiderado quer pela autora quer por posteriores estudos so-bre a obra de Fernando Pessoa que tecircm vindo progressivamente a ampliar o nuacutemero de personalidades e que contam ndash embora em muitos casos de uma forma bastante problemaacutetica ndash mais de cem personalidades fictiacutecias cf PESSOA 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

79

mundo filoacutesofo idealista etc etc (para poupar mais dores ao leitor)Em nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSO-FIA sem sineta livro e vela mas com caneta tinta e papelPasso uma declaraccedilatildeo de excomunhatildeo a to-dos os padres e todos os sectaacuterios de todas as religiotildees do mundo

Excomungo-vosDanais-vos todosAssim sejaRazatildeo Verdade Virtude por Charles Robert Anon

[Excommunication

not married except at odd moments___________________________________I Charles Robert Anon being animal mammal tetrapod primate placental ape catarrhyna man eighteen years of age not married (except at odd moments) megaloma-niac with touches of dipsomania deacutegeacuteneacutereacute superior poet with pretensions to written hu-mour citizen of the world idealistic philoso-pher etc etc (to spare the reader further pains) In the name of TRUTH SCIENCE and PHILO-SOPHIA not with bell book and candle but with pen ink and paperPass sentence of excommunication on all priests and all sectarians of all religions in the world

Excomunicabo vosBe damnrsquod to you allAnsi-soit-ilReason Truth Virtue per C[harles] R[obert] A[non]]

[PESSOA 2009 p289 BNPE3 144Csup2 5v a 6r]

Este excerto para aleacutem de se constituir como uma auto--psicografia humoriacutestica de Anon aos dezoito anos de idade revela-nos tambeacutem muacuteltiplos aspectos da caracterizaccedilatildeo dos interesses filosoacuteficos deste preacute-heteroacutenimo Neste texto Char-les Robert Anon elabora explicitamente uma excomunhatildeo ldquoEm

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

80

nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSOFIArdquo [BNPE3 144Csup2 6r ldquoIn the name of TRUTH SCIENCE and PHILOSOPHIArdquo] denominando-se como ldquofiloacutesofo idealistardquo [BNPE3 144Csup2 5v ldquoidealistic philosopherrdquo] Com efeito no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel identificar um conjunto de testemunhos relativos a obras de filosofia assinados por Anon que abrangem os mais diversos temas como os textos intitulados Teoria da Percepccedilatildeo [BNPE3 25 ndash 58r Theory of Perception] e Sobre os Limites da Ciecircncia [BNPE3 28 ndash 99v On the Limits of Science]

A fabricaccedilatildeo da personalidade de Alexander Search eacute de igual forma conforme ao interesse pela filosofia A preocupaccedilatildeo de Search com filosofia encontra reflexo no caderno intitulado Livro da Transformaccedilatildeo ou livro das tarefas [BNPE3 48C ndash 1 a 5 Transformation Book or Book of Tasks] onde Pessoa nos apresenta uma breve descriccedilatildeo biograacutefica de Search acompa-nhada de uma lista de obras correspondentes a tarefas a serem realizadas por esta personalidade Nessa ficha biograacutefica lemos

Alexander SearchNascido a 13 de Junho 1888 em LisboaTarefa todas as que natildeo provenham dos ou-tros trecircs___________________________________1 ldquoO Regiciacutedio e a Situaccedilatildeo Poliacutetica em Por-tugalrdquo2 ldquoA Filosofia do Racionalismordquo3 ldquoA Perturbaccedilatildeo Mental de Jesusrdquo4 ldquoDeliacuteriordquo5 ldquoAgoniardquo

[Alexander SearchBorn June 13th 1888 at LisbonTask all not the province of the other three___________________________________

1 ldquoThe Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugalrdquo2 ldquoThe Philosophy of Rationalismrdquo3 ldquoThe Mental Disorder(s) of Jesusrdquo4 ldquoDeliriumrdquo5 ldquoAgonyrdquo]

[PESSOA 2014 p 4 BNPE3 48C ndash 2r]

Nesta ficha biograacutefica elaborada por Pessoa encontramos para aleacutem dos dados biograacuteficos de Search a menccedilatildeo ao tiacutetulo A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] que eacute representativo de um dos mais significativos interesses filosoacute-ficos de Pessoa Com efeito ao longo do espoacutelio de Fernando

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

81

Pessoa existe uma multiplicidade de documentos destinados a um projecto relativo ao sentido e agrave natureza do racionalismo Esse projecto passou por diversas fases e teve vaacuterios tiacutetulos A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] foi justamente um desses tiacutetulos

No entanto os tiacutetulos referidos na ficha biograacutefica de Se-arch satildeo apenas alguns dos exemplos de obras filosoacuteficas atri-buiacutedas a esta personalidade de Pessoa Ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa existe ndash com a assinatura deste preacute-heteroacute-nimo ndash uma multiplicidade de outras obras de filosofia como eacute o caso do texto A Natureza Interna das Faculdades [BNPE3 23 ndash 18 a 19 The Internal Nature of the Faculties] e do Ensaio sobre a Ideia de Causa [BNPE3 15⁴ ndash 99 a 100 Essay on the Idea of Cause]

Assim todos estes elementos que temos vindo a enunciar permitem-nos concluir que haacute uma afinidade de fundo entre as duas personalidades preacute-heteroniacutemicas apresentadas e a cria-ccedilatildeo de textos filosoacuteficos Contudo a afinidade de Anon e de Search a respeito das questotildees ligadas agrave filosofia existe desde logo numa etapa anterior agrave produccedilatildeo de textos filosoacuteficos Nas listas de leitura presentes no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel en-contrar um ponto de contacto dessas duas personalidades com o interesse pelos diversos autores e temaacuteticas dos vaacuterios periacuteo-dos da histoacuteria da filosofia

No espoacutelio de Fernando Pessoa existe um caderno intitu-lado ldquoNordm I1 Charles R Anonrdquo [BNPE3 13A 1 a 20] que para aleacutem de inuacutemeros escritos e projectos filosoacuteficos conteacutem ainda uma extensa lista de leituras que eacute antecedida pela seguinte indicaccedilatildeo

LivrosSobre Ciecircncia e sobre Filosofia

[BooksOn Science and on Philosophy]

[PESSOA 2009 p271 BNPE3 13A ndash 2r detalhe do fac-simile abaixo]

Nesta lista provavelmente contemporacircnea das leituras re-alizadas por Pessoa na Biblioteca Nacional e por conseguinte dataacutevel de 1906 encontramos justamente a evidecircncia dos in-teresses relativos agrave filosofia que Pessoa atribui a Charles Ro-bert Anon Com efeito aiacute encontramos referecircncias a livros de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

82

filoacutesofos como Aristoacuteteles Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Schopenhauer Hegel e Bergson para citar ape-nas alguns dos nomes da histoacuteria da filosofia referidos nesse caderno Todas estas referecircncias viriam a ser retomadas nas listas de leitura de Search

Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos um cader-no com a seguinte indicaccedilatildeo

Alexander SearchSetembro 1906

________

Filosofia etc[Alexander SearchSeptember 1906

________

Philosophy etc]

[BNPE3 144H ndash contracapa]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

83

Este caderno que eacute datado de Setembro de 1906 e por-tanto contemporacircneo do caderno de Anon conteacutem uma lista de livros alfabeticamente ordenada de ldquoArdquo a ldquoZrdquo na sua maioria re-lativos agrave filosofia Nele satildeo retomadas e em alguns casos am-pliadas as referecircncias presentes no caderno de Anon relativa-mente ao qual satildeo acrescentados novos tiacutetulos e novos nomes

Contudo apesar de as obras filosoacuteficas no periacuteodo preacute--heteroniacutemico estarem de um modo geral centralizadas em Charles Robert Anon e Alexander Search encontramos tambeacutem textos de cariz filosoacutefico atribuiacutedos a outros intervenientes Um exemplo disso eacute o Ensaio sobre a Intuiccedilatildeo [BNPE3 14⁶ ndash 30 a 31r Essay on Intuition] cujos fragmentos se encontram espa-lhados ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa e que embora breve esboccedila o iniacutecio de discussatildeo acerca da natureza e cons-tituiccedilatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica de intuiccedilatildeo No final de um dos frag-mentos deste ensaio encontramos as seguintes assinaturas correspondentes a nomes de duas personalidades preacute-hetero-niacutemicas ldquoA Moreira Faustino Antunesrdquo [BNPE3 14⁶ ndash 31r] Para aleacutem de todos os nomes de preacute-heteroacutenimos que temos vindo a enunciar encontramos ainda textos filosoacuteficos assina-dos por Fernando Pessoa em seu proacuteprio nome Um exemplo de um texto filosoacutefico

assinado por Pessoa no periacuteodo preacute-heteroniacutemico eacute o en-saio intitulado ldquoDa Impossibilidade de uma Sciencia do Lexiconrdquo [BNPE3 23 ndash 1-2a] que corresponde a uma ldquofalaacutecia filosoacuteficardquo escrita em 1906 como trabalho a apresentar para a disciplina de filologia na Universidade de Lisboa que Fernando Pessoa frequentou entre 1905 e 1907 Com efeito eacute isso que depreen-demos do seguinte apontamento presente num diaacuterio com a data de 11 de Maio de 1906

Preparando a minha falaacutecia filosoacutefica ndash laquoSobre a fenomenologia do Lexiconraquo para aula de Fi-lologia o tema foi laquoA Orientaccedilatildeo do Lexiconraquo

[Preparing my philosophical fallacy ndash ldquoOn the Phenomenology of the Lexiconrdquo for the Philo-logy Class the subject given us was ldquoA Orien-taccedilatildeo do Lexiconrdquo] (PESSOA 2003 pp38-39)

No que diz respeito agraves personalidades do periacuteodo hetero-niacutemico a produccedilatildeo filosoacutefica tem como principal preocupaccedilatildeo a questatildeo da definiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica De Aacutelvaro de Campos existe um texto precisamente intitulado ldquoO que eacute a me-tafiacutesicardquo publicado em 1924 no nuacutemero 2 da revista Athena que constitui uma contra-resposta ao ensaio ldquoAtenardquo publicado pelo ortoacutenimo no primeiro nuacutemero dessa revista Antoacutenio Mora uma personalidade literaacuteria que Pessoa faz dialogar com os he-teroacutenimos participa igualmente nessa discussatildeo como se pode

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

84

verificar pelo conjunto de fragmentos destinados a um opuacutesculo intitulado ldquoIntroduccedilatildeo ao Estudo da Metafiacutesicardquo (Cf PESSOA 2002 pp 321-331)

Contudo a questatildeo da circunscriccedilatildeo dos textos filosoacuteficos de Pessoa no acircmbito da problemaacutetica da autoria tem uma di-ficuldade acrescida Se eacute verdade que Pessoa cria uma mul-tiplicidade de textos assinados sob o nome das mais diversas personalidades literaacuterias tambeacutem eacute um facto que no espoacutelio de Pessoa encontramos vaacuterios textos sem qualquer atribuiccedilatildeo autoral expliacutecita ou impliacutecita Assim os textos do espoacutelio deste autor podem ser distinguidos em duas classes os textos assina-dos ou incluiacutedos em projectos destinados a determinadas per-sonalidades de Pessoa segundo os textos que natildeo se encon-tram assinados O segundo tipo de textos constitui aquilo que se pode designar de textos anoacutenimos de Pessoa Eacute no acircmbito dos textos anoacutenimos de Pessoa que encontramos a maior variedade de projectos e fragmentos de livros de pequenas produccedilotildees e de ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa discutindo os mais variados autores desde os preacute-socraacuteticos a Bergson passando por consideraccedilotildees relativas a movimentos como o materialismo o positivismo e o idealismo bem como aos conceitos filosoacuteficos de sensaccedilatildeo e de ser

III ndash Fernando Pessoa o filoacutesofo e o ldquopoeta animado pela filosofiardquo

A tematizaccedilatildeo da importacircncia da filosofia e o emprego de con-ceitos filosoacuteficos em Fernando Pessoa encontram-se tambeacutem presentes ao longo da obra poeacutetica e ficcional deste autor No poema Tabacaria encontramos por exemplo a seguinte con-fissatildeo de Aacutelvaro de Campos ldquoTenho feito filosofias em segre-do que nenhum Kant escreveurdquo (CAMPOS 2002 p322) Em O Guardador de Rebanhos Alberto Caeiro problematiza critica e discute algumas noccedilotildees filosoacuteficas como os conceitos de meta-fiacutesica de alma e de Deus11 Estes e outros exemplos presentes na obra de Fernando Pessoa satildeo suficientes para pocircr em evi-decircncia e dar a conhecer um ldquopoeta animado pela filosofiardquo [ldquopoet animated by philosophyrdquo] (PESSOA 2003 p18) que este autor afirmou ter sido e efectivamente chegou a ser mas natildeo para provar que Pessoa foi de facto um escritor filosoacutefico Com efeito a presenccedila de conceitos filosoacuteficos ao longo das diversas pro-duccedilotildees poeacuteticas e ficcionais de Fernando Pessoa constituem apenas o indiacutecio das leituras filosoacuteficas que teratildeo ocupado este autor em diferentes periacuteodos da sua vida Mas a relaccedilatildeo de Pes-soa com o pensamento filosoacutefico natildeo se circunscreve agraves men-ccedilotildees a autores movimentos ou conceitos filosoacuteficos presentes nos seus mais variados textos poeacuteticos e ficcionais Para aleacutem 11 Veja-se em especial o poema V de O Guardador de Rebanhos [CAEIRO 2001 pp29-32]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

85

do ldquopoeta animado pela filosofiardquo encontramos tambeacutem no es-poacutelio de Fernando Pessoa diversos indiacutecios que nos permitem reconstituir o retrato de Pessoa enquanto filoacutesofo Os diversos escritos filosoacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo o teste-munho da actividade filosoacutefica deste autor e por conseguinte permitem-nos concluir a existecircncia de um Pessoa-filoacutesofo O cultivo do estilo e dos diversos geacuteneros filosoacuteficos foi para Fer-nando Pessoa um dos momentos do desenvolvimento de uma multiplicidade de estilos A escrita filosoacutefica constitui para Pes-soa uma das formas de desenvolvimento literaacuterio Para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos encontramos entre as pequenas produccedilotildees filosoacuteficas de Pessoa inuacutemeros projectos de artigos opuacutesculos e de outros textos de pequena dimensatildeo Os pro-jectos de livros ensaios e pequenas produccedilotildees filosoacuteficas do espoacutelio de Pessoa correspondem agrave multiplicidade de geacuteneros filosoacuteficos que este autor pretendia e que na verdade chegou a desenvolver Deste modo o estilo filosoacutefico e os diversos geacutene-ros nele incluiacutedos foram para Pessoa a ocasiatildeo para o desen-volvimento de uma forma de literatura que este autor deixou por concluir mas cujos projectos e indicaccedilotildees presentes ao longo de todo o espoacutelio nos permitem reconstruir

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

86

BIBLIOGRAFIA

BLANCO Joseacute Fernando Pessoa Esboccedilo de uma bibliografia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

CAEIRO Alberto Poesia Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001

CAMPOS Aacutelvaro de Poesia Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lis-boa Assiacuterio amp Alvim 2002

LOPES Teresa Rita (org) Pessoa Ineacutedito Lisboa Livros Hori-zonte 1993

LOPES Teresa Rita Pessoa por Conhecer Vol I Lisboa Edi-torial Estampa 1990

LOacutePEZ Pablo Javier Peacuterez Poesiacutea Ontologiacutea y Tragedia en Fernando Pessoa Madrid Editorial Manuscritos 2012

MOTA Pedro Teixeira da Fernando Pessoa Moral Regras de Vida Condiccedilotildees de Iniciaccedilatildeo Textos estabelecidos e comenta-dos por Pedro Teixeira da Mota Lisboa Ediccedilotildees Manuel Len-castre 1988

PESSOA Fernando Cadernos Tomo I Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pi-zarro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2009

PESSOA Fernando Escritos Autobiograacuteficos Automaacuteticos e de Reflexatildeo Pessoal Ediccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

PESSOA Fernando Escritos sobre Geacutenio e Loucura Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2006a

PESSOA Fernando Eu sou uma antologia 136 autores fictiacute-cios Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro e Patricio Ferrari Lisboa Tinta da China 2013

PESSOA Fernando Obras de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Luiacutes Fi-lipe Teixeira Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

PESSOA Fernando Paacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuterias Lisboa Aacutetica 1994

PESSOA Fernando Philosophical Essays a critical edition Edition notes and introduction by Nuno Ribeiro (afterword by Paulo Borges) New York Contra Mundum Press 2012

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

87

PESSOA Fernando Prosa Iacutentima e de Autoconhecimento Edi-ccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2007

PESSOA Fernando Textos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa Vol I Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio Pina Coelho Lis-boa Aacutetica 2006b

PESSOA Fernando The Transformation Book mdash or Book of Tasks Edition Notes and Introduction by Nuno Ribeiro amp Claacuteu-dia Souza New York Contra Mundum Press 2014

PIZARRO Jeroacutenimo Fernando Pessoa entre geacutenio e loucura Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2007

RIBEIRO Nuno Fernando Pessoa e Nietzsche O pensamento da pluralidade Lisboa Verbo Editora 2011a

RIBEIRO Nuno ldquoHeteroniacutemia e Perspectivismo ldquoEspaccedilo lite-raacuteriordquo e multiplicidade de estilos nos pensamentos de Nietzsche e Pessoardquo In Cadernos Nietzsche nordm26 Satildeo Paulo Grupo de Estudos Nietzsche 2010 pp155-176

RIBEIRO Nuno ldquoOs Livros Filosoacuteficos Inacabados de Pessoa ndash Problemas e Criteacuterios para a Publicaccedilatildeo dos Escritos Filosoacutefi-cos de Pessoardquo In Philosophica nordm 38 Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2011b pp 165 ndash 174

RIBEIRO Nuno ldquoTive em mim milhares de Filosofiasrdquo - ques-totildees para a ediccedilatildeo dos escritos filosoacuteficos ineacuteditos de Pessoardquo In cultura ENTRE culturas nordm3 Lisboa ncora Editora 2011c pp 192 ndash 200

RIBEIRO Nuno Tradiccedilatildeo e Pluralismo nos Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo I ndash 214pp) Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo II ndash 382pp) Lisboa Faculdade de Ci-ecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 2012 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano Poliacutetica e Criaccedilatildeo Literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Belo Horizonte PUC ndash Minas Gerais 2011 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

88

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposrdquoNotes on ldquoRemarks for a non-Aristotelian Aesthetics in Aacutelvaro de Camposrdquo

Palavras-chave Fernando Pessoa Esteacutetica natildeo-aristoteacutelica Corpo e ArteKeywords Fernando Pessoa Aesthetics non-Aristotelian Body and Art

RESUMO Os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacuteli-ca entre outros escritos sobre arte figuram na obra pessoa-na como ponto de relevacircncia por se tratar de um esboccedilo para uma ldquoteoria esteacuteticardquo em via contraacuteria agrave Tradiccedilatildeo Nem sempre atendendo agraves expectativas de muitos criacuteticos quanto agrave aplicabi-lidade de tal pensamento agrave leitura do proacuteprio Fernando Pessoa nem demonstrando consistecircncia suficiente enquanto reflexatildeo sistecircmica do ponto de vista filosoacutefico os Apontamentos mesmo assim nos oferecem em potencial margens para uma releitu-ra que transpasse agrave discussatildeo restritiva de uma esteacutetica natildeo aristoteacutelica Em suma nosso intuito eacute mostrar que para aleacutem de uma descontinuidade da tradiccedilatildeo esteacutetica aristoteacutelica Fernan-do Pessoa atraveacutes do discurso de Aacutelvaro de Campos vislumbra um estado em que corpo e arte estabeleccedilam estreita relaccedilatildeo firmada em princiacutepios de forccedila pelo vieacutes da sensibilidade em vez do tradicional caminho da razatildeo Nesse sentido natildeo pre-tendemos emitir conclusotildees definitivas concernentes aos escri-tos em questatildeo visto que entendemos e acolhemos o termo ldquoapontamentordquo como um prospecto de um trabalho que natildeo se concretizou

ABSTRACT Pessoarsquos Remarks for a Non-Aristotelian Aesthetics as many other writings about Arts are highly relevant inasmuch as they present a sketch for non-traditional theories on Aesthetics In spite of this relevance some critics argue that Pessoarsquos Remarks are not quite useful to read Fernando Pessoa himself Their criticism turns on the point that the Remarks have no sufficient consistency to be considered a systematic thought from a philosophical point of view Diverging from this position we assume that Fernando Pessoarsquos Remarks allow us to pre-sent a ldquore-readingrdquo that can go far beyond some restrictive rea-dings based on some non-Aristotelian Aesthetics Accordingly we argue that Fernando Pessoa can be considered apart from the question about his discontinuity in relation to the Aristotelian aesthetic tradition Our main point is that Pessoa through Aacutelva-ro de Camposrsquo views envisions some state in which body and art can establish a very close relation by means of principles

Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Doutorando em Literatura ndash POacuteSLITUnBFAPDF

fabriciogabrieldesouzagmailcom

() E-mail fabriciogabrieldesouzagmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

89

of force from the perspective of sensibility However we do not here intend to reach definitive conclusions on this issue since we understand the term ldquoremarksrdquo as a mere prospectus for a not accomplished work

1

Devemos sempre ter em conta a produccedilatildeo teoacuterica de Fernando Pessoa visto que seus exerciacutecios de reflexatildeo podem ser entendidos como dobras em sua proacutepria obra De igual modo devemos tecirc-la com leve cuidado Se tais prospectos satildeo capa-zes de lanccedilar alguma luz sobre seu legado talvez nem o tempo de aacuterduo trabalho dos investigadores poderaacute trazer agrave tona o de-lineamento total e exato da produccedilatildeo pessoana Basta lembrar que quase maioria do que foi escrito pelo poeta portuguecircs ficou guardada durante sua vida numa arca vindo a puacuteblico poste-riormente graccedilas agrave dedicaccedilatildeo e a um princiacutepio de trabalho mais criterioso da Equipa Pessoa no iniacutecio dos anos de 1980

Nossas consideraccedilotildees iniciais satildeo no intuito primeiro de reafirmar que o que noacutes temos na atualidade publicado com o nome de Fernando Pessoa ou de seus autores fictiacutecios satildeo propostas editoriais Algumas com criteacuterios rigorosos outras com menos e aquelas sem criteacuterios algum com o intuito apenas mercadoloacutegico Afinal o nome de Fernando Pessoa se tornou natildeo sem motivos uma chancela em alta estima Segundo fazer lembrar que muitas publicaccedilotildees natildeo possuem uma versatildeo final pensada pelo seu autor Exemplo disso eacute o alto grau de frag-mentariedade da obra que conta com mais de trinta mil papeis entre eles diversos escritos ou notas como planos de obras ou lista de tiacutetulos para possiacuteveis obras O Livro do desassossego tem publicado cerca de dez ediccedilotildees com organizaccedilotildees diferen-tes sendo algumas delas nas visotildees de seus editores perten-centes a dois ou trecircs autores criados por Fernando Pessoa in-cluindo fases distintas Dos textos dramaacuteticos aos quais temos nos dedicado ultimamente apenas O Marinheiro foi terminado e publicado em vida no primeiro nuacutemero da Revista Orpheu em 1915 Partindo dessas observaccedilotildees optamos pela cautela na apreciaccedilatildeo dos textos considerando a obra enquanto conjunto (todo) poreacutem com elementos variaacuteveis e em sua maioria ina-cabados

Desse modo apresentamos e propomos um breve olhar sobre dois textos teoacutericos escritos pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos A influecircncia da engenharia nas armas nacionais com data de 1924 e Apontamentos para uma esteacutetica natildeo aristo-teacutelica com as datas de dezembro de 1924 e janeiro de 1925 Nosso intento primeiro eacute mostrar como as ideias do heterocircnimo pessoano aproximam (ou afastam) arte ciecircncia e cultura colo-cando-se como antagonista agrave poeacutetica claacutessica em especial a Poeacutetica de Aristoacuteteles e buscando se afirmar enquanto nova te-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

90

oria esteacutetica a qual corpo e sensaccedilotildees teratildeo maior afirmaccedilatildeo no processo criativo Ressaltamos por fim que o nosso interesse maior eacute fazer emergir o pensamento pessoano natildeo o colocando em condiccedilatildeo de mero suporte de comparaccedilatildeo para teorias de outros autores ou fazendo aplicaccedilotildees desses da teoria desses autores

2

A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aponta-mento com data de 1924 parece figurar como introduccedilatildeo ldquogecirc-neserdquo dos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica As-sinado pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos dito poeta futurista e engenheiro naval o primeiro texto supracitado lacocircnico e inaca-bado inicia-se trazendo como epiacutegrafe uma frase de Leonardo da Vinci que diz ldquoQuanto mais uma arte traz consigo a fadiga do corpo tanto mais ela eacute vilrdquo1 Tal referecircncia ao artista italiano poderia tender nossos julgamentos para a aceitaccedilatildeo da presen-ccedila marcante da esteacutetica renascentista na reflexatildeo proposta por Aacutelvaro Campos caso a posiccedilatildeo do poeta da Ode triunfal natildeo fosse contundentemente contraacuteria a continuidade de tudo o que foi preservado pela tradiccedilatildeo Logo a batalha do poeta contra a accedilatildeo da ldquopermanecircnciardquo da ldquotradiccedilatildeordquo e suas consequecircncias eclode quando ele expotildee sua ldquoteoriardquo acerca da civilizaccedilatildeo

Haacute muito sustento a teoria que a civilizaccedilatildeo eacute a cria-ccedilatildeo de estiacutemulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reaccedilatildeo a eles A civilizaccedilatildeo eacute pois a tendecircncia para a morte pelo desequiliacutebrio A coisa mais inuacutetil que a ficccedilatildeo real chamada povo pode fazer eacute resistir a civilizar-se por processos de civilizaccedilatildeo Existir eacute natildeo se dei-xar matar ser civilizado eacute inventar reaccedilotildees para os estiacutemulos que excedem jaacute a reaccedilatildeo possiacutevel Isto eacute inventar reaccedilotildees artificiais quer dizer civilizadas contra a proacutepria civilizaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445)

A civilizaccedilatildeo para Campos representa a negaccedilatildeo dos estiacutemulos naturais (vitais) logo o homem civilizado torna-se in-capaz da proacutepria criaccedilatildeo pela imposiccedilatildeo da carga de estiacutemulos civilizadores que atuam de modo incisivo sobre ele Por outro lado torna-se inuacutetil a resistecircncia agrave civilizaccedilatildeo atraveacutes do proacuteprio processo civilizador vigente ao longo do tempo porque efetiva-mente agindo assim natildeo haveria ruptura mas a continuidade do ldquomesmordquo sob um mascaramento de formas diversificadas tais como as crenccedilas e os valores Civilizar-se dessa forma tende a morte pelo desequiliacutebrio visto que meios artificiais implicam

1 ldquoQuanto piugrave umrsquoarte porta seco fatica di corpo tanto piugrave egrave vilerdquo ndash Consultoria e traduccedilatildeo em liacutengua italiana de Sylvia Gouveia doutoranda em Literatura pelo PoacutesLitUnB

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

91

anulaccedilatildeo das forccedilas vitais de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo ou seja a vida subsiste pelo equiliacutebrio entre tais forccedilas as quais satildeo igualadas ao ldquoanabolismo e o catabolismo dos fisiologistasrdquo (PESSOA 2015 p445)

Segundo o ciclo natural a forccedila que ldquoinsisterdquo cria partindo da destruiccedilatildeo uma vez que destruiccedilatildeo significa transformaccedilatildeo concomitantemente a forccedila que subsiste permite a criaccedilatildeo ao mesmo tempo em que impede a destruiccedilatildeo logo a transforma-ccedilatildeo para o outro Contudo na sociedade ordem posta acima da ordem dos organismos vivos (ordem bioacutetica) ocorre a inver-satildeo da ldquodinacircmica dos fatores agentesrdquo assim ldquoa tendecircncia para subsistir eacute que mata a tendecircncia para natildeo subsistir eacute que faz vi-ver Isto porque a sociedade eacute um corpo artificial e vive por isso segundo leis que satildeo contraacuterias agraves leis naturaisrdquo (Ibidem) Por essa artificialidade do corpo social Aacutelvaro de Campos expotildee sua problematizaccedilatildeo partindo da questatildeo da ldquosubsistecircnciardquo isto eacute da questatildeo acerca de um estado de permanecircncia que seria causa mortis dos instintos do homem nas sociedades

O que faz subsistir nas sociedades A tradiccedilatildeo a continuidade a tendecircncia para permanecer isto eacute para natildeo viver E a tradiccedilatildeo a tendecircncia para permanecer tem trecircs formas ndash o apego ao passado que eacute tradiccedilatildeo vulgar o ape-go ao presente que eacute a moda e o apego ao futuro que eacute o ideal social em que se confia O que faz viver isto eacute natildeo sub-sistir nas sociedades A antitradiccedilatildeo a tendecircncia para natildeo permanecer E a tendecircncia para natildeo permanecer tem soacute uma forma ndash o apego ao natildeo passado ao natildeo presente e ao natildeo futuro Isto quer dizer o apego ao abstrato e ao ideal em que natildeo se confia Por isso a forccedila que conserva as sociedades eacute a inteligecircncia de abstraccedilatildeo e imaginaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445-446)

A vida para nas invenccedilotildees de dispositivos ldquoabioacuteticosrdquo ou seja nos costumes embebidos da necessidade de perma-necircncia de conservaccedilatildeo Tais dispositivos tecircm-se manifestado conforme vimos sob trecircs formas poreacutem girando em torno de um eixo apenas o eixo do ldquoapegordquo volvendo-se desse modo alternadamente aos periacuteodos de tempo representados pela tra-diccedilatildeo vulgar pela moda e pela confianccedila em um ideal social porvir Todavia o antiacutedoto contra a praga que potildee por terra a vida opera no mesmo eixo do ldquoapegordquo girando em sentido con-traacuterio ao sentido da permanecircncia das crenccedilas do tradicionalis-mo do conservadorismo A trajetoacuteria defendida por Aacutelvaro de Campos quer atuar apegando-se ldquoao abstrato e ao ideal em que natildeo se confiardquo Enfim o que afirmaraacute a vida nas sociedades eacute a substituiccedilatildeo do apego ao ldquoidordquo ao ldquoestilo prevalenterdquo de cada eacutepoca o ldquoporvirrdquo pelo ldquodevirrdquo

A conservaccedilatildeo do estado de permanecircncia ou a tendecircn-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

92

cia que ldquofaz morrerrdquo nas sociedades age atraveacutes da ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo e da ldquoimaginaccedilatildeordquo Estes dois agentes por sua vez desdobram-se nas formas ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo donde

A matemaacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto da essecircncia da experiecircncia o uacutenico criteacuterio de verdadeira ob-jetividade que temos eacute o criteacuterio de matematizaccedilatildeo A criacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto de ela ser nossa o uacutenico criteacuterio verdadeiro de subjetividade que temos eacute o da confron-taccedilatildeo natildeo das nossas impressotildees com as cousas mas das cousas com nossas impressotildees (PESSOA 2015 p445)

Temos aiacute a confrontaccedilatildeo de duas formas de percepccedilatildeo e juiacutezo que reforccedilam o ciclo da permanecircncia do ldquomesmordquo o ju-iacutezo que parte do universal (abstrato) para a singularidade se atendo ao criteacuterio de objetividade pela matematizaccedilatildeo que aqui entendemos como meio de ordenaccedilatildeo das coisas e a criacutetica que parte da experiecircncia singular obedecendo a um criteacuterio que relaciona o conteuacutedo das nossas percepccedilotildees (impressotildees) vin-culando-o agraves coisas que percebemos pelas sensaccedilotildees Parece--nos estar criado por essa via mais uma delimitaccedilatildeo que nos prende a tendecircncia de ldquoordemrdquo e ldquopermanecircnciardquo dos processos civilizatoacuterios mencionados anteriormente Acerca da definiccedilatildeo de ldquocriticardquo2 Campos ressalta que

Deve-se compreender que entendo por criacutetica toda a atividade criacutetica a criacutetica no sentido em que emprego a palavra inclui toda forma de atividade que ou natildeo aceita ou quer substituir a objetividade da experiecircncia Assim a arte eacute uma forma de criacutetica porque fazer arte eacute confessar que a vida ou natildeo presta ou natildeo chega Assim por assim dizer a parte dogmaacutetica da religiatildeo (natildeo a sua parte social nem a sua parte metafiacutesica) eacute uma forma de criacutetica porque crer numa cousa sem ser com uma razatildeo embora aparente (como acontece na metafiacutesica que procura explicar) natildeo sendo essa cousa um elemento da experiecircncia (objetiva) eacute querer substituir essa experiecircncia (PESSOA 2015 p446)

Diante do exposto podemos inferir que o conjunto das ideias e praacuteticas civilizatoacuterias arraigadas na tradiccedilatildeo da perma-necircncia do ldquomesmordquo agem de modo constante a minar as forccedilas vitais Ora com civilizaccedilatildeo natildeo haacute vida mas morte pelo dese-quiliacutebrio de tais forccedilas conforme vimos Assim tanto as formas de ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo quanto de ldquoimaginaccedilatildeordquo sendo esta desdobrada em ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo atuam como ins-trumentos de evasatildeo da objetividade da experiecircncia seja arte

2 Em manuscrito o texto eacute complementado no final ldquoA criacutetica eacute em suma todo o artifiacutecio que eacute feito com inteligecircncia e sem fim social nenhum Desde que sirva um ideal em vez de uma impressatildeo [] a criacutetica eacute falsa como criacutetica natildeo eacute criacutetica em suma mas soacute opiniatildeordquo Cf PESSOA 2015 p678-688

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

93

seja religiatildeo Nesse caso a arte eacute que nos interessa e essa mesma arte como forma de criacutetica desponta-se com duas faces por um lado ldquoa vida natildeo prestardquo logo faccedilo arte para ldquosuportar a vidardquo aliviar o ldquoFadordquo em um exerciacutecio redentorista atraveacutes da obra por outro admite-se a brevidade e o pouco que a vida seja e passa-se a afirmar e utilizar das forccedilas que se dispotildee para afirmaccedilatildeo objetiva e plena da existecircncia Vale assim lem-brar de uma passagem de uma ode de Aacutelvaro de Campos ldquoTal-vez porque a alma eacute grande e a vida pequenaE todos os gestos natildeo saem do nosso corpoE soacute alcanccedilamos onde o nosso braccedilo chegaE soacute vemos ateacute onde chega o nosso olhar rdquo (PESSOA 2015 p58)

Os textos em tela podem ser entendidos como um esbo-ccedilo daquilo que Aacutelvaro de Campos denominou ldquoesteacutetica natildeo-aris-toteacutelicardquo Nosso proacuteximo intento eacute o de mostrar de forma concisa essa ldquodoutrinardquo que Campos afirma ter visto aplicada em ape-nas trecircs poetas ldquonos assombrosos poemas de Walt Whitmanrdquo ldquonos poemas mais que assombrososrdquo do mestre Caeiro e nas duas odes a Ode triunfal e a Ode mariacutetima de sua proacutepria au-toria (PESSOA 2015 p436-444)

3

Divididos em duas seccedilotildees os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica partem no primeiro momento do se-guinte pressuposto haacute as geometrias natildeo-euclidianas ou seja que se baseiam em postulados diferentes dos formulados por Euclides de Alexandria e chegam a resultados tambeacutem diferen-tes Cada uma das geometrias possui desenvolvimentos loacutegi-cos peculiares sendo ldquosistemas interpretativos independentes independentemente aplicaacuteveis agrave realidaderdquo Do mesmo modo que se formaram as geometrias que natildeo seguiam os postulados euclidianos seria uacutetil a formaccedilatildeo de uma esteacutetica que natildeo fosse pautada nos princiacutepios aristoteacutelicos Logo Aacutelvaro de Campos esclarece

Chamo de esteacutetica aristoteacutelica agrave que pretende que o fim da arte eacute (sic) a beleza ou dizendo melhor a produccedilatildeo nos outros da mesma impressatildeo que a que nasce da con-templaccedilatildeo ou sensaccedilatildeo das coisas belas Para arte claacutessica ndash e as suas derivadas a romacircntica a decadente e outras assim - a beleza eacute o fim divergem apenas os caminhos para esse fim exatamente como em matemaacutetica se podem fazer diversas demonstraccedilotildees do mesmo teorema A arte claacutessica deu-nos obras grandes e sublimes o que natildeo quer dizer que a teoria de construccedilatildeo dessas obras seja certa ou que seja a uacutenica teoria ldquocertardquo Eacute frequente aliaacutes tanto na vida teoacuterica como na pratica chegar-se a um resultado certo por proces-sos incertos ou mesmo errados Creio poder formular uma

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

94

esteacutetica natildeo na ideia de beleza mas na de forccedila ndash tomando eacute claro a palavra forccedila no seu sentido abstrato e cientiacutefico porque se fosse no vulgar tratar-se-ia de certa maneira ape-nas de uma forma disfarccedilada de beleza Esta nova esteacutetica ao mesmo tempo que admite como boas grande nuacutemero de obras claacutessicas ndash admitindo-as poreacutem por uma razatildeo diferen-te da dos aristoteacutelicos que foi naturalmente tambeacutem a dos seus autores - estabelece uma possibilidade de se constru-iacuterem novas espeacutecies de obras de arte que quem sustente a teoria aristoteacutelica natildeo poderia prever ou aceitar (PESSOA 2015 p436-437)

A arte na esteacutetica natildeo-aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos origina-se do mesmo princiacutepio vital de toda atividade humana gerada pela ldquoforccedila ou energiardquo Entatildeo sendo a arte ldquoum produto de entes vivosrdquo conforme ele disse isto eacute ldquoum produto da vidardquo as forccedilas que se manifestam na obra satildeo as mesmas formas as quais se manifestam na vida Por essa via a produccedilatildeo ar-tiacutestica tende a acontecer a partir das forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo semelhantes ao ldquoanabolismordquo e ldquocatabolismordquo orgacircnicos No entanto ldquosem a coexistecircncia e equiliacutebrio destas duas forccedilas natildeo haacute vida pois a pura integraccedilatildeo eacute a ausecircncia da vida e a pura desintegraccedilatildeo eacute a morterdquo (PESSOA 2015 p437) Ademais ldquoa vida eacute uma accedilatildeo acompanhada automaacutetica e intrinsecamente da reaccedilatildeo correspondente E eacute no automa-tismo da reaccedilatildeo que reside o fenocircmeno especiacutefico da vidardquo O ldquovalor da vidardquo ou a ldquovitalidade do organismordquo estaacute condicionado agrave ldquointensidaderdquo igual e paralela de accedilatildeo e reaccedilatildeo a fim de que se mantenha o equiliacutebrio e que se evite uma proporcionalidade inversa na accedilatildeo e reaccedilatildeo das forccedilas Nesse sentido Aacutelvaro de Campos conclui ldquoAssim o equiliacutebrio vital eacute natildeo um fato dire-to ndash como querem para a arte (natildeo esqueccedilamos o fim destes apontamentos) os aristoteacutelicos ndash mas o resultado abstrato do encontro de dois fatosrdquo

Na concepccedilatildeo de Campos ldquoa arte eacute feita por se sentir e para se sentir ndash sem o que seria ciecircncia ou propagandardquo logo ldquoa sensibilidade eacute a vida da arterdquo No interior da sensibilidade deve haver accedilatildeo e reaccedilatildeo atuando sobre a estrutura equilibra-da de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo com a finalidade de fazer existir a arte Aacutelvaro de Campos crecirc que sua teoria ldquoeacute mais loacutegi-ca ndash se eacute que haacute loacutegicardquo do que a aristoteacutelica pelo fato de que na sua teoria ldquoa arte fica o contraacuterio da ciecircncia ndash entendemos aqui ciecircncia por teacutecnica ndash o que na aristoteacutelica natildeo acontecerdquo (Ibidem p 242) Segundo Georg Rudolf Lind a diferenccedila feita por Campos entre a teoria aristoteacutelica e a natildeo-aristoteacutelica im-plicam a primeira a qual conforme afirmou o poeta tem por finalidade ldquoagradarrdquo estabelece-se em ldquo1) beleza 2) inteligecircn-cia e 3) unidaderdquo a segunda enunciada por Campos reivindica ldquo1) forccedila 2) sensibilidade e 3) unidaderdquo (LIND 1981 p 226) Das ldquoanalogias abstrusasrdquo observa Lind o poeta e engenheiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

95

daacute um salto abruptamente nas consideraccedilotildees a fim de concluir que ldquoa esteacutetica aristoteacutelica tende do individual para o geral () a natildeo-aristoteacutelica em contrapartida do geral para o particularrdquo (Ibidem p 227) Se a primeira parte dos Apontamentos eacute passiacute-vel de muitas ressalvas a segunda o eacute mais ainda Se o projeto de uma nova teoria esteacutetica eacute faliacutevel ainda escreve Lind ldquoas demonstraccedilotildees pseudoloacutegicas da 2ordf parte contecircm ainda uma quantidade maior de errosrdquo (LIND 1981 p 227) Ainda se com-parado ao Ultimatum seu manifesto de vanguarda a referida seccedilatildeo de tais apontamentos pouco foi modificada sendo dessa maneira uma repeticcedilatildeo das mesmas ideias do manifesto

A complexidade e as abstraccedilotildees dos conceitos criados por Aacutelvaro de Campos no intento de fundar uma teoria esteacutetica vigorosa contraacuteria agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica fizeram com que seu projeto com ares futuristas de unir ciecircncia e arte falhasse con-forme acreditam comentadores tais como Almeida Faria Joatildeo Gaspar Simotildees e o jaacute citado Georg Rudolf Lind Entretanto ponto consideravelmente forte desenvolvido pelo natildeo-aristote-lismo de Campos foi sem duacutevida a postura incisiva no combate aos atos civilizatoacuterios que ldquofazem morrerrdquo no homem sua forccedila natural instintiva de reaccedilatildeo e criaccedilatildeo

Nesse sentido cremos que a teoria de Campos tenha saiacutedo vitoriosa o escrito sob o tiacutetulo A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aparece conforme dissemos no iniacutecio de modo preliminar agrave ideia de negaccedilatildeo da esteacutetica de Aristoacuteteles A relaccedilatildeo desse primeiro momento das ideias de Campos com os seus Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica pode ser estabelecida quando consideramos que a aceitaccedilatildeo dos termos aristoteacutelicos correlatos harmonia e beleza tende a um princiacutepio de arranjo estruturado pela permanecircncia aniquiladora dos ins-tintos naturais natildeo harmocircnicos do homem Ora se desarmonia e feiuacutera (fealdade na lsquoterminologiarsquo pessoana) constituem tam-beacutem a natureza realmente natildeo haacute sentido em crer-se apenas na arte fundada na estreita relaccedilatildeo da harmonia das partes de um todo implicando princiacutepio de beleza Contudo haacute no pensa-mento de Campos um requerimento de equiliacutebrio entre as forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo que poderia ser entendido tal como um princiacutepio de harmonia do mesmo modo que em Aris-toacuteteles se o plano teoacuterico do poeta da Ode triunfal natildeo fosse baseado na ideia de ldquoforccedilardquo

4

Diante da possibilidade de a sensibilidade imperar no processo de fazer artiacutestico abrimos caminhos para pensar na substacircncia fiacutesica ou na estrutura do ser humano o corpo Quan-do Fernando Pessoa esboccedila a possibilidade de uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica mesmo natildeo concluiacuteda mesmo natildeo sendo para

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

96

alguns aplicaacutevel agrave proacutepria obra ou a qualquer obra que seja her-damos uma fenda larga como passagem pelo muro das repre-sentaccedilotildees cristalizadas Eacute muito evidente que o seu linguajar se aproprie da biologia e da matemaacutetica num diaacutelogo estabelecido entre arte e ciecircncia esteacutetica e epistemologia esteacutetica e eacutetica Poreacutem evidente tambeacutem eacute que o mesmo natildeo desloca os ins-tintos do gecircnero humano para fora da sociedade Ao contraacuterio observa que esse meio artificial atenta de modo frequente agraves forccedilas vitais tendendo agrave perenidade e que cabe ao ser humano criador de arte o artista atraveacutes da sensibilidade das sensa-ccedilotildees recebidas pelo seu corpo se desvencilhar das amarras da tradiccedilatildeo que faz morrer Morrer no sentido de anular-se natildeo no de transformar-se dando lugar a outra coisa agrave outra ldquovidardquo Um poeta absorve impressotildees de toda ordem das vivecircncias faz com que as mesmas ldquomorramrdquo nele transformando-as para dar agrave luz ao poema que por sua vez provocaraacute sensaccedilotildees no leitor ldquoE os que leem o que escreveNa dor lida sentem bemNatildeo as duas que ele teveMas soacute a que eles natildeo tecircmrdquo (PESSOA 2001 p164-165)

Joseacute Gil em Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sen-saccedilotildees mesmo natildeo abordando as reflexotildees sobre a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica aproximou os escritos de Campos ao conceito de ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo de Deleuze e Guattarri o relacionando ao ldquoplano de consciecircnciardquo criado pelo poeta (GIL 1998 p66-75) Em suma a anaacutelise de Gil se estabelece na poesia de Aacutelvaro de Campos colocando o heterocircnimo pessoano enquanto ldquoanali-sador de sensaccedilotildeesrdquo no espaccedilo abstrato revelado nos poemas Entatildeo considerando as observaccedilotildees do criacutetico portuguecircs seria possiacutevel uma relaccedilatildeo entre o natildeo-aristotelismo pensado pelo heterocircnimo sensacionista e o seu fazer poeacutetico Da perspectiva sobre as sensaccedilotildees e do enfrentamento dos atos civilizatoacuterios que negam a vida no plano da imanecircncia pelo alcance da bele-za por meios natildeo-tradicionais a resposta eacute sim

Por fim a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica figura natildeo apenas en-quanto pensamento oposto agraves poeacuteticas claacutessicas aristoteacutelicas mas tambeacutem se apresenta como marco natildeo-normativo natildeo--prescritivo de um modelo a ser seguido ainda que seu autor afirme que a finalidade seja a mesma o alcance da beleza se-guindo meios distintos o mesmo autor desconstroacutei a rigidez da tradiccedilatildeo apontando-nos uma via de acesso agrave arte pelo corpo Uma via de matildeo dupla na qual tanto quem faz da arte um acon-tecimento independente do suporte (palavra imagem som etc) quanto quem exerce a fruiccedilatildeo seja perpassado e afetado de alguma forma pela expressatildeo esteacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

97

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Poeacutetica 7ed Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterios e apecircndices de Eudoro de Sousa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 2003

GIL Joseacute Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sensaccedilotildees Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 1988

LIND Georg Rudolf Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1981 (Estudos Portugue-ses)

LOPES Teresa Rita Fernando Pessoa et le drame symbo-liste heacuteritage et creacuteation Paris De La Difeacuterence 2004 (Les Essais)

PESSOA Fernando Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica In___ Obra completa de Aacutelvaro de Campos Edi-ccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p436-444

___ ANEXO Geacutenese dos ldquoApontamentosrdquo In___ Obra com-pleta de Aacutelvaro de Campos Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p445-446

___ Obra poeacutetica Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001

___ Obra em prosa Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Cle-onice Berardineli 2ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

98

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoFernando Pessoa and his Philosophy of Composition

Palavras-chave Heteroniacutemia identidade natildeo-identidade autorreflexatildeo desper-sonalizaccedilatildeo personificaccedilatildeo forma sensaccedilatildeoKeywords Heteronym identity non-identity cogito self-reflexion depersonali-zation personification form sensation

RESUMO Examinarei alguns niacuteveis formais do paradoxo e da contradiccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro de Fernando Pessoa explicitando aspectos formais do processo de desper-sonalizaccedilatildeo que move sua escrita poeacutetica Mostrarei em segui-da como ao trilhar o caminho de despersonalizaccedilatildeo aberto pela certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos conden-sa estilhaccedilos de noccedilotildees reflexivas do sujeito levando agraves uacuteltimas consequecircncias a despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico tal como teori-zado por Fernando Pessoa

ABSTRACT This article aims to show some formal levels of paradox and contradiction on the dramatic poem The Sailor taking into account the subjective drama that moves its poetic writing Hope to show how Aacutelvaro de Campos treading the path of depersonalization opened by the sense-certainty of Alberto Caeiro condenses fragments of reflective notions of the subject as propelling elements of depersonalization such as it is treated by Pessoa

1 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Quando Fernando Pessoa escreve sobre os heterocircni-mos ele pensa imediatamente no ato de invenccedilatildeo literaacuteria ca-paz de unir sob uma forma superior de composiccedilatildeo os efeitos dramaacuteticos da despersonalizaccedilatildeo e as formas de expressatildeo correntes na tradiccedilatildeo literaacuteria ocidental A despersonalizaccedilatildeo figura como responsaacutevel pela reuniatildeo de diferentes graus de elaboraccedilatildeo do estilo numa forma superior de composiccedilatildeo Essa ideia encontra-se particularmente desenvolvida em dois frag-mentos em que o poeta distingue os cinco ldquograus da poesia liacuteri-cardquo entendendo-os como progressatildeo intensiva da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica

O terceiro grau da poesia liacuterica eacute aquele em que o poeta ainda mais intelectual comeccedila a despersonalizar-se a sentir natildeo jaacute porque sente mas porque pensa que sente a sentir estados de alma que realmente natildeo tem simplesmente por-

Rubens Joseacute da Rocha

Doutorando pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia da UFSCar E-mail ens_rubensyahoocombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

99

que os compreende Estamos na antecacircmara da poesia dra-maacutetica na sua essecircncia iacutentima O temperamento do poeta seja qual for estaacute dissolvido pela inteligecircncia A sua obra seraacute unificada soacute pelo estilo uacuteltimo reduto da sua unidade espiri-tual da sua coexistecircncia consigo mesmo O quarto grau da poesia liacuterica eacute aquele muito mais raro em que o poeta mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo entra em plena despersonalizaccedilatildeo Natildeo soacute sente mas vive os estados de alma que natildeo tem directamente Em grande nuacutemero de ca-sos cairaacute na poesia dramaacutetica propriamente dita como fez Shakespeare poeta substancialmente liacuterico erguido a dramaacute-tico pelo espantoso grau de despersonalizaccedilatildeo que atingiu (PESSOA 1993 pp 274-275)1

Ao lado de noccedilotildees como ldquotemperamentordquo ldquosentimentordquo ldquoemoccedilatildeordquo ldquoimaginaccedilatildeordquo e ldquointeligecircnciardquo a despersonalizaccedilatildeo aparece como um dos conceitos centrais na caracterizaccedilatildeo do eu liacuterico e das personagens dramaacuteticas O poeta compreende o conceito segundo a ideia de uma progressatildeo expressiva que se desdobra da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica e alcanccedila sua forma ideal de expressatildeo na poesia heterocircnima A poesia liacuterica eacute o gecircnero que define as duas primeiras etapas Na terceira completa-se o primeiro ciclo de despersonalizaccedilatildeo com o deslocamento da unidade expressiva do eu liacuterico para uma posiccedilatildeo coadjuvante em face agraves exigecircncias de unidade da forma dramaacutetica Nas duas etapas finais o poeta descreve a po-esia heterocircnima em comparaccedilatildeo agrave forma dramaacutetica em particu-lar nas peccedilas de Shakespeare em que o monoacutelogo se sobrepotildee ao diaacutelogo entre as personagens

No primeiro grau de despersonalizaccedilatildeo a escrita produz a unidade expressiva do eu liacuterico como forma poeacutetica ligada agrave personalidade do autor A forma poeacutetica ainda natildeo goza de au-tonomia com relaccedilatildeo agrave ldquomaneira de sentirrdquo do poeta (seu tempe-ramento) estando a unidade do eu liacuterico diretamente vinculada agrave sua atitude psicoloacutegica O segundo grau ocorre quase exclu-sivamente no interior da forma poeacutetica quando o temperamen-to do poeta e o estilo encontram-se enredados num complexo movimento de reflexatildeo na busca de uma saiacuteda possiacutevel para a

1 A esta passagem corresponde este trecho de um segundo texto so-bre os graus da poesia liacuterica ldquoUm passo mais na escala poeacutetica [terceiro grau] e temos o poeta que eacute uma criatura de sentimentos vaacuterios e fictiacutecios mais imaginativo do que sentimental e vivendo cada estado de alma antes pela inteligecircncia que pela emoccedilatildeo Este poeta exprimir-se-aacute como uma mul-tiplicidade de personagens unificadas natildeo jaacute pelo temperamento e o estilo pois que o temperamento estaacute substituiacutedo pela imaginaccedilatildeo e o sentimento pela inteligecircncia mas tatildeo-somente pelo simples estilo Outro passo na mes-ma escala de despersonalizaccedilatildeo [quarto grau] ou seja de imaginaccedilatildeo e temos o poeta que em cada um de seus estados mentais vaacuterios se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza de sorte que vivendo ana-liticamente esse estado da alma faz dele como que a expressatildeo de um ou-tro personagem e sendo assim o mesmo estilo tende a variarrdquo (PESSOA 1993 pp 274-275)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

100

oposiccedilatildeo entre sentir e pensar (emoccedilatildeo e inteligecircncia)No terceiro grau ocorre a despersonalizaccedilatildeo da ldquomanei-

ra de sentirrdquo que conferia unidade ao eu liacuterico O movimento de autorreflexatildeo forccedila a forma poeacutetica a distanciar-se ainda mais da atitude psicoloacutegica do autor cindindo o eu liacuterico em duas ou mais identidades Ocorre entatildeo a personificaccedilatildeo dessas identi-dades em personagens que dialogam e interagem segundo exi-gecircncias formais do gecircnero dramaacutetico Como veremos adiante a personificaccedilatildeo seraacute compreendida natildeo apenas como figura de estilo cuja funccedilatildeo consiste em atribuir caracteriacutesticas da per-sonalidade humana a animais objetos e ideias abstratas mas tambeacutem como composiccedilatildeo de uma identidade a qual se atribui alternadamente segundo certa dinacircmica de oposiccedilatildeo agrave natildeo-i-dentidade o estatuto ficcional de uma maacutescara uma figura ou de uma personalidade heteroniacutemica

No quarto grau inicia-se a despersonalizaccedilatildeo da forma dramaacutetica A natildeo-identidade entre as maneiras de sentir pensar e falar das personagens promove a suspensatildeo das unidades de tempo e espaccedilo observando-se no quinto grau de desper-sonalizaccedilatildeo a personificaccedilatildeo da alteridade simboacutelica do drama (o autor o puacuteblico o leitor) As personagens abandonam aos poucos a seacuterie de oposiccedilotildees entre o pensar o sentir o falar e o agir para personificar a forma poeacutetica com a atitude psicoloacutegica de personagens que falam e atuam simultaneamente como au-tor ator diretor puacuteblico e leitor de seu proacuteprio drama subjetivo

2 A despersonalizaccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro

O poema dramaacutetico O Marinheiro eacute um dos passos de-cisivos na caracterizaccedilatildeo do processo de despersonalizaccedilatildeo teorizado pelo poeta2 Escrito em 1913 e publicado no primeiro volume da revista Orpheu em 1915 o poema conjuga caracte-riacutesticas do terceiro e quarto graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico Estampada no frontispiacutecio da obra a noccedilatildeo de ldquodrama es-taacutetico em um quadrordquo3 pode ser interpretada como execuccedilatildeo de um plano de superaccedilatildeo da esteacutetica aristoteacutelica plano que se en-contra na base do drama subjetivo nos heterocircnimos4 Desde o 2 Nas palavras de Carlos Felipe Moiseacutes ldquoOs poucos estudiosos que se manifestaram a respeito poreacutem sugerem de um modo ou de outro que eacute um texto decisivo para a compreensatildeo do conjunto da poesia pessoana quando menos porque o seu lsquodrama estaacutetico em um quadrorsquo como o chamou o poeta pode ser visto como lsquoensaiorsquo preliminar em torno de algumas linhas de forccedila da obra heteroniacutemica ainda praticamente toda por criarrdquo (MOISEacuteS CF Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p163)3 Praticado e teorizado por dramaturgos simbolistas como Strindberg e Maeterlinck Cf LOPES MTR Fernando Pessoa et le Drame Symboliste4 Em sua proposta de superaccedilatildeo do pensamento aristoteacutelico Aacutelvaro de Campos opotildee ao conceito de beleza o conceito de forccedila cuja principal ca-racteriacutestica seria o embate entre os princiacutepios de integraccedilatildeo e desintegraccedilatildeo orgacircnica da vida ldquoA arte para mim eacute como toda a atividade um indiacutecio de forccedila ou energia mas como a arte eacute produzida por entes vivos sendo pois

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

101

iniacutecio do diaacutelogo eacute possiacutevel notar uma seacuterie de atitudes que faz as trecircs personagens recuar diante da exigecircncia tradicional da accedilatildeo Um recuo representado natildeo soacute pela disposiccedilatildeo espacial de cada personagem (que se encontram sentadas e portanto inertes diante de ldquouma janela alta e estreitardquo no interior de ldquoum castelo antigordquo) mas tambeacutem pela sequecircncia de enunciaccedilotildees negativas precedidas pelo adveacuterbio de negaccedilatildeo

PRIMEIRA VELADORA mdash Ainda natildeo deu hora nenhu-ma

SEGUNDA mdash Natildeo se pode ouvir Natildeo haacute reloacutegio aqui perto Dentro em pouco deve ser dia

TERCEIRA mdash Natildeo o horizonte eacute negroPRIMEIRA mdash Natildeo desejais minha irmatilde que nos en-

tretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falso

SEGUNDA mdash Natildeo natildeo falemos nisso De resto fo-mos noacutes alguma cousa

PRIMEIRA mdash Talvez Eu natildeo sei Mas ainda assim sempre eacute belo falar do passado As horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircncio Por mim tenho estado a olhar para a chama daquela vela Agraves vezes treme ou-tras torna-se mais amarela outras vezes empalidece Eu natildeo sei por que eacute que isso se daacute Mas sabemos noacutes minhas irmatildes por que se daacute qualquer cousa

(uma pausa) TERCEIRA mdash Por que natildeo haveraacute reloacutegio neste quar-

to SEGUNDA mdash Natildeo sei Mas assim sem o reloacutegio

tudo eacute mais afastado e misterioso A noite pertence mais a si proacutepria Quem sabe se noacutes poderiacuteamos falar assim se soubeacutessemos a hora que eacute

PRIMEIRA mdash Minha irmatilde em mim tudo eacute triste Passo Dezembros na alma Estou procurando natildeo olhar para a janela Sei que de laacute se vecircem ao longe montes Eu fui feliz para aleacutem de montes outrora Eu era pequeni-na Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que natildeo mas tirassem Natildeo sei o que isto tem de irre-paraacutevel que me daacute vontade de chorar Foi longe daqui que isto pocircde ser Quando viraacute o dia

TERCEIRA mdash Que importa Ele vem sempre da mes-ma maneira sempre sempre sempre

(uma pausa)5

um produto da vida as formas da forccedila que se manifestam na arte satildeo as formas da forccedila que se manifestam na vidardquo (Obra em Prosa Apontamentos para uma Esteacutetica natildeo Aristoteacutelica p241)5 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp441-442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

102

Logo no iniacutecio do poema trecircs irmatildes velam a morte de uma quarta que se encontra no centro do quarto estendida so-bre um caixatildeo O diaacutelogo comeccedila quando uma delas nota a au-secircncia de reloacutegio no quarto A ausecircncia de accedilatildeo dramaacutetica entra aos poucos em evidecircncia com a transposiccedilatildeo do tempo linear do reloacutegio para o tempo psicoloacutegico das veladoras As enunciaccedilotildees negativas impulsionam o diaacutelogo em sentido inverso ao tempo linear (o drama inicia-se ao anoitecer e termina ao romper do dia) o que leva as personagens a buscar no passado o sentido necessaacuterio para suprir a ausecircncia de accedilatildeo Na busca pelo senti-do o diaacutelogo se sobrepotildee agrave accedilatildeo ldquoNeste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar ten-do Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes delerdquo Falar do passado implica natildeo soacute interromper o ritmo da accedilatildeo dramaacute-tica mas tambeacutem sobrepor agrave pulsatildeo linear do reloacutegio (para elas inexistente) uma pulsatildeo lacunar de origem psicoloacutegica6

A transposiccedilatildeo do tempo linear para o tempo psicoloacutegico ocorre a partir da oposiccedilatildeo entre o silecircncio e a fala das velado-ras ldquoAs horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircnciordquo A opo-siccedilatildeo entre o silecircncio e a fala aparece marcada pelas reticecircncias e pausas que costumam entrecortar natildeo somente a fala das personagens como tambeacutem os momentos criacuteticos do diaacutelogo Se de iniacutecio a transposiccedilatildeo psicoloacutegica do tempo7 ldquoPasso De-zembros na almardquo representa o recuo da personagem diante da accedilatildeo ela representaraacute a seguir a ultrapassagem do tempo psicoloacutegico pela accedilatildeo estaacutetica do sonho A oposiccedilatildeo entre o recuo da accedilatildeo em direccedilatildeo ao passado e a ultrapassagem do presente pelo sonho constitui um continuum temporal represen-tado pelo quarto circular do castelo antigo Ao destacar-se da pulsatildeo linear do reloacutegio a oposiccedilatildeo entre as atitudes de recuo e ultrapassagem impulsiona a fala das personagens (o vento e a luz cambiante da vela) para fora da clausura subjetiva ldquoNatildeo desejais minha irmatilde que nos entretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falsordquo ou para o plano horizontal da escrita (ldquoNatildeo o horizonte eacute negrordquo) Um complexo movimento de reflexatildeo sobressalente ao jogo dos significantes (assonacircn-cia e aliteraccedilatildeo) interfere diretamente na orquestraccedilatildeo simboacuteli-ca do poema A ultrapassagem da accedilatildeo dramaacutetica pelo sonho personificada na figura da irmatilde morta torna-se cada vez mais evidente com a recusa da segunda veladora de levar a cabo o gesto de se levantar ou seja o gesto de projetar-se em direccedilatildeo 6 Maria Teresa Rita Lopes comenta da seguinte maneira essa ausecircn-cia temporal ldquoCe nrsquoest que coupeacutees de tout contact avec le monde quotidien en flottant dans ce lsquonulle-temps et dans de lsquonulle partrsquo du recircve que leurs paro-le srsquoeacutepanouissent en toute liberteacute jusqursquoagrave leur paraicirctre eacutetrangegraveres agrave elles-mecirc-mes (RITA LOPES MariaTeresa Fernando Pessoa et le Drame Symboliste Heritage et Creation p189)7 BACHELARD Gaston A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo pp85-103 Mais tar-de para fixar com maior precisatildeo a singularidade do parto heteroniacutemico o poeta sentiraacute ainda necessidade de sobrepor ao tempo psiacutequico dos heterocirc-nimos o tempo astroloacutegico calcado nos dados objetivos de nascimento de cada heterocircnimo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

103

ao futuro por meio de uma accedilatildeo atitude que impediria o sonho de avanccedilar para fora dos tempos linear e psicoloacutegico ldquoNatildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonhordquo A tensatildeo entre o gesto estaacutetico da fala (ou da escri-ta) e a encenaccedilatildeo progressiva do sonho resulta na duplicaccedilatildeo do impulso criativo ldquoContemos contos umas agraves outrasrdquo como promessa de saiacuteda do conflito entre as categorias temporais a imaginaccedilatildeo e a realidade

SEGUNDA mdash Contemos contos umas agraves outras Eu natildeo sei contos nenhuns mas isso natildeo faz mal Soacute vi-ver eacute que faz mal Natildeo rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes Natildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonho Neste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar tendo Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes dele

PRIMEIRA mdash Decidimos natildeo o fazer Breve raiaraacute o dia e arrepender-nos-emos Com a luz os sonhos ador-mecem O passado natildeo eacute senatildeo um sonho De resto nem sei o que natildeo eacute sonho Se olho para o presente com muita atenccedilatildeo parece-me que ele jaacute passou O que eacute qualquer cousa Como eacute que ela passa Como eacute por dentro o modo como ela passa Ah falemos minhas irmatildes falemos alto falemos todas juntas O silecircncio co-meccedila a tomar corpo comeccedila a ser cousa Sinto-o en-volver-me como uma neacutevoa Ah falai falai8

Cada sonho desliza portanto sobre uma seacuterie de opo-siccedilotildees simboacutelicas atraveacutes da qual alternam-se os gestos da fala e da escrita Gestos e atitudes que condensam ou dispersam ao longo do diaacutelogo os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do so-nho ateacute a completa suspensatildeo da aderecircncia psicoloacutegica das irmatildes ao ritmo linear do reloacutegio com a narraccedilatildeo do sonho do marinheiro pela segunda veladora nuacutecleo da tensatildeo dramaacutetica Ao percorrer os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do sonho a ati-tude psicoloacutegica das veladoras oscila (a chama da vela) entre a direccedilatildeo perpendicular do pensamento (o segredo de pedra dos montes) e as direccedilotildees obliacutequa e horizontal da fala e da escrita (ldquoporque natildeo vale nunca a pena fazer nadardquo) tornando possiacutevel alccedilar a atitude psicoloacutegica das veladoras (pelo amor agraves ondas) ao plano de um continuum temporal oniacuterico

TERCEIRA mdash As vossas frases lembram-me a minha alma

SEGUNDA mdash Eacute talvez por natildeo serem verdadeiras Mal sei que as digo Repito-as seguindo uma voz que natildeo ouccedilo que mas estaacute segredando Mas eu devo ter vivido realmente agrave beira-mar Sempre que uma cousa

8 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp 442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

104

ondeia eu amo-a Haacute ondas na minha alma Quando ando embalo-me Agora eu gostaria de andar Natildeo o faccedilo porque natildeo vale nunca a pena fazer nada sobre-tudo o que se quer fazer Dos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e gran-des Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um mo-mento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz9

A despersonalizaccedilatildeo ocorre a partir desse desniacutevel entre o ritmo linear (andar) e o ritmo lacunar (ondear) como expres-satildeo da descontinuidade entre o tempo linear da accedilatildeo e o tempo psicoloacutegico da fala ou seja como ato criativo que evidencia o desniacutevel formal entre a fala das veladoras e a ultrapassagem autorreflexiva do sonho A despersonalizaccedilatildeo das personagens e a ultrapassagem da accedilatildeo pelo sonho servem de mola pro-pulsora para a personificaccedilatildeo do marinheiro personagem que figura no drama atraveacutes da estoacuteria de um naufraacutegio narrada pela segunda veladora Ao reduplicar o processo criativo com a estoacuteria do marinheiro a segunda veladora torna-se responsaacutevel pela dobra temporal que se situa na intermitecircncia entre os dois mundos possiacuteveis no drama o mundo sonhado agrave luz da vela e o mundo sonhado agrave luz do sol

SEGUNDA mdash Para quecirc Fito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos Este ar quente eacute frio por dentro naquela parte que toca na alma Eu devia agora sentir matildeos impossiacuteveis passarem-me pelos ca-belos mdash eacute o gesto com que falam das sereias (Cru-za as matildeos sobre os joelhos Pausa) Ainda haacute pouco quando eu natildeo pensava em nada estava pensando no meu passado

PRIMEIRA mdash Eu tambeacutem devia ter estado a pen-sar no meu

TERCEIRA mdash Eu jaacute natildeo sabia em que pensava No passado dos outros talvez no passado de gente ma-ravilhosa que nunca existiu Ao peacute da casa de minha matildee corria um riacho Por que eacute que correria e por que eacute que natildeo correria mais longe ou mais perto Haacute alguma razatildeo para qualquer cousa ser o que eacute Haacute para isso qualquer razatildeo verdadeira e real como as minhas matildeos10

Ao ampliar a tensatildeo entre o plano horizontal da fala ou 9 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44310 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p443

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

105

da escrita e o plano perpendicular do sonho a despersonaliza-ccedilatildeo desestrutura os elementos de composiccedilatildeo que cumprem funccedilatildeo simboacutelica na individuaccedilatildeo das personagens ldquoAs matildeos natildeo satildeo verdadeiras nem reais Satildeo misteacuterios que habitam na nossa vida agraves vezes quando fito as minhas matildeos tenho medo de Deus Natildeo haacute vento que mova as chamas das velas e olhai elas movem-se Para onde se inclinam elas Que pena se algueacutem pudesse responderrdquo11 O impulso de desper-sonalizaccedilatildeo desliza em direccedilatildeo obliacutequa sobre o plano horizon-tal da escrita criando diversas associaccedilotildees entre significante e significado (vela vento veladora mar marinheiro onda andar alma amar) de modo a produzir um regime de significaccedilotildees instaacuteveis que no limite da tensatildeo gera um vaacutecuo de sentido responsaacutevel pela propulsatildeo do sonho em duas direccedilotildees tem-porais superpostas primeiro em direccedilatildeo ao passado rumo ao universo infantil simbolizado pelo ato de personificaccedilatildeo de flo-res ondas rochedos etc e segundo em direccedilatildeo ao futuro rumo ao nada existencial simbolizado pela presenccedila da quarta irmatilde morta A superposiccedilatildeo temporal dessas duas direccedilotildees sus-pende progressivamente qualquer apelo subjetivo agrave identidade do eu liacuterico ldquoEacute sempre longe na minha alma Talvez porque quando crianccedila corri atraacutes das ondas agrave beira-mar Levei a vida pela matildeo entre rochedos mareacute-baixa quando o mar parece ter cruzado as matildeos sobre o peito e ter adormecido como uma es-taacutetua de anjo para que nunca mais ningueacutem olhasse As vos-sas frases lembram-me a minha almardquo12

A dissoluccedilatildeo do apelo das irmatildes agrave identidade do eu liacuteri-co seraacute tambeacutem o momento da completa dissoluccedilatildeo da forma dramaacutetica tradicional13 ldquoFito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver--vosrdquo14 Mas a dissoluccedilatildeo do apelo agrave identidade (segredo de pedra do pensamento) natildeo significa dissipaccedilatildeo do sonho no pla-no horizontal da accedilatildeo Ao contraacuterio o sonho natildeo soacute continua em seu movimento reflexivo de condensaccedilatildeo e dispersatildeo simboacutelica como tambeacutem assume a funccedilatildeo de exprimir a natildeo-identidade da forma dramaacutetica em seus diferentes graus de despersonaliza-ccedilatildeo15 11 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44312 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp442 44313 A propoacutesito da dissoluccedilatildeo da forma tradicional no drama simbolista escreve Anatol Rosenfeld ldquoToda a dramaturgia serviraacute apenas para revelar os misteacuterios da proacutepria alma (de um eu central) a partir da qual se projetaraacute mdash como meros reflexos impressotildees ou visotildees mdash os outros personagens jaacute sem posiccedilatildeo autocircnoma e sim transformados em funccedilatildeo do Ego centralrdquo (ROSENFELD Anatol O Teatro Eacutepico p100)14 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44315 Carlos Felipe Moiacuteseacutes descreve do seguinte modo a relaccedilatildeo entre a dispersatildeo do sentido e a despersonalizaccedilatildeo ldquoAbaladas pelo espectro de Thaacutenatos mergulhadas no real caoacutetico gerado pelo poder persuasivo e dilui-dor das palavras as veladoras chegam ao limiar da indistinccedilatildeo entre Ser e Natildeo-ser Mas as falas prosseguem ainda mais ansiosas diante da evidente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

106

SEGUNDA mdashDos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e grandes De-vem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um momento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz

PRIMEIRA mdash Por mim amo os montes Do lado de caacute de todos os montes eacute que a vida eacute sempre feia Do lado de laacute onde mora minha matildee costumaacuteva-mos sentarmo-nos agrave sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves uma de cada lado do caminho A floresta natildeo tinha outras clareiras senatildeo os nossos pensamentos E os nossos sonhos eram de que as aacutervores projectassem no chatildeo outra calma que natildeo as suas sombras Foi decerto assim que ali vivemos eu e natildeo sei se mais algueacutem Dizei-me que isto foi verdade para que eu natildeo tenha de chorar 16

Sob efeito da despersonalizaccedilatildeo a accedilatildeo autorreflexiva do sonho17 desliza sobre o plano obliacutequo da fala suprimindo a identidade das personagens e convertendo o vaacutecuo existen-cial em polo de atraccedilatildeo do sentido A erradicaccedilatildeo da clausura subjetiva da identidade e a personificaccedilatildeo da natildeo-identidade na figura da donzela morta forccedilam a atitude psicoloacutegica das irmatildes a assumir uma forma indefinida como se elas estivessem a falar de Ningueacutem para Ningueacutem Nesse momento elas abandonam o regime de oposiccedilotildees elaborado no jogo entre os significan-tes para assumir o continuum temporal oniacuterico volteando como uma serpente entorno a oposiccedilatildeo entre fala e escuta escrita e leitura

PRIMEIRA mdash Contai sempre minha irmatilde contai sem-pre Natildeo pareis de contar nem repareis em que dias raiam O dia nunca raia para quem encosta a cabeccedila no seio das horas sonhadas Natildeo torccedilais as matildeos Isso faz um ruiacutedo como o de uma serpente furtiva Falai-nos muito mais do vosso sonho Ele eacute tatildeo verdadeiro que natildeo tem sentido nenhum Soacute pensar em ouvir-vos me toca muacutesica na almahellip

SEGUNDA ndashndash Sim falar-vos-ei mais dele Mesmo eu

dispersatildeo do Eu no contexto circundante um contexto que eacute o Eu ao mesmo tempo em que natildeo o eacute mais pois jaacute eacute concomitantemente o Outro (FELIPE MOISEacuteS Carlos Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p167)16 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44317 Em ensaios de Aacutelvaro de Campos sobre a esteacutetica sensacionista o heterocircnimo refere-se agrave reflexatildeo assim como agraves demais atitudes introspecti-vas e autoanaliacuteticas como manifestaccedilatildeo do impulso sensiacutevel compreenden-do-a como ldquosensaccedilatildeo da sensaccedilatildeordquo Cf Obra em Prosa Ideias Esteacuteticas pp 424-454

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

107

preciso de vo-lo contar Agrave medida que o vou contando eacute a mim tambeacutem que o conto Satildeo trecircs a escutar (De repente olhando para o caixatildeo e estremecendo) Trecircs natildeo Natildeo sei Natildeo sei quantas

TERCEIRA mdash Natildeo faleis assim Contai depressa contai outra vez Natildeo faleis em quantos podem ouvir Noacutes nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vecircem e escutam Voltai ao vosso sonho O marinhei-ro O que sonhava o marinheiro18

O diaacutelogo entre as trecircs veladoras ocorre no primeiro pla-no de composiccedilatildeo da peccedila no qual se consuma o terceiro grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico com a eclosatildeo do horror que a donzela morta aos poucos desperta nas trecircs personagens A presenccedila da personagem morta ocorre no segundo plano e fun-ciona como elemento psicoloacutegico que impulsiona as veladoras para fora da clausura subjetiva quando elas passam a contar e a ouvir a estoacuteria do marinheiro O terceiro plano de composiccedilatildeo corresponde ao quarto grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico no decorrer do qual cria-se a expectativa de personificaccedilatildeo do marinheiro como soluccedilatildeo para o problema da unidade dada a ausecircncia da accedilatildeo dramaacutetica Quando a segunda veladora passa a contar a estoacuteria do marinheiro referido ora como personagem sonhado ora como personagem real o contraste entre a fala das veladoras (em primeiro plano) e o silecircncio da donzela morta (no segundo plano) intensifica o processo de despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica

Naacuteufrago numa ilha deserta o marinheiro sonha viver numa paacutetria fictiacutecia capaz de apagar e substituir a lembranccedila da paacutetria natal Assim como as veladoras ele tambeacutem se des-personaliza pelo sonho de maneira a personificar um plano de composiccedilatildeo autocircnomo com relaccedilatildeo agrave estoacuteria narrada pela se-gunda veladora passando as trecircs veladoras a desejar personi-ficar o sonho do marinheiro como promessa de vida superior agrave realidade por elas mesmas vivida ldquoDizei-me istoDizei-me uma coisa ainda Por que natildeo seraacute a uacutenica coisa real nisto tudo o marinheiro e noacutes e tudo isto aqui apenas um sonho delerdquo19 O sonho do marinheiro sobrevoa de tal modo a inaccedilatildeo dramaacute-tica das veladoras que elas passam a acreditar na presenccedila fiacutesica do personagem ausente prenunciando a intervenccedilatildeo de uma ldquoquinta pessoardquo em cena ldquoQuem eacute a quinta pessoa neste quarto que estende o braccedilo e nos interrompe sempre que va-mos a sentirrdquo20

No limite da despersonalizaccedilatildeo o movimento autorre-flexivo do sonho desloca o diaacutelogo para o plano de composi-ccedilatildeo da quinta personagem operando a transposiccedilatildeo do ritmo

18 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44819 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44920 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p451

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

108

psicoloacutegico da fala para o ritmo lacunar do sonho21 O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinheiro e da quinta pes-soa seraacute o mais alto grau de despersonalizaccedilatildeo da peccedila (quarto grau da poesia liacuterica) A personificaccedilatildeo do personagem ausente ocorre ao nascer do dia com a supressatildeo do tempo linear da accedilatildeo e a transposiccedilatildeo do tempo psicoloacutegico das veladoras para o tempo-origem do sonho Esse processo de despersonalizaccedilatildeo prenuncia a entrada em cena da quinta pessoa como figura que representa a despersonalizaccedilatildeo do quinto grau da poesia liacuterica primeiro passo em direccedilatildeo agrave certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro e agrave escrita heteroniacutemica

O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinhei-ro natildeo aparece apenas durante o ato de escrita mas tambeacutem como efeito compreensivo de leitura ou seja como apreciaccedilatildeo criacutetica do processo de composiccedilatildeo dramaacutetica A quinta pessoa seraacute a figura que exprime este efeito compreensivo como um testemunho impliacutecito de que durante os momentos de pausa descanso ou interrupccedilotildees descontiacutenuas da escrita e da leitura as irmatildes natildeo poderatildeo existir senatildeo a partir de uma seacuterie de an-tagonismos que reverberam na imaginaccedilatildeo do leitor

TERCEIRA (para a SEGUNDA) mdash Minha irmatilde natildeo nos deviacuteeis ter contado essa histoacuteria Agora estranho--me viva com mais horror Contaacuteveis e eu tanto me dis-traiacutea que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente E parecia-me que voacutes e a vossa voz e o sentido do que diziacuteeis eram trecircs entes diferen-tes como trecircs criaturas que falam e andam

SEGUNDA mdash Satildeo realmente trecircs entes diferentes com vida proacutepria e real Deus talvez saiba porquecirc Ah mas por que eacute que falamos Quem eacute que nos faz conti-nuar falando Por que falo eu sem querer falar Por que eacute que jaacute natildeo reparamos que eacute dia

PRIMEIRA mdash Quem pudesse gritar para despertar-mos Estou a ouvir-me a gritar dentro de mimmas jaacute natildeo sei o caminho da minha vontade para a minha garganta Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que algueacutem possa bater agravequela porta Por que natildeo bate algueacutem agrave porta Seria impossiacutevel e eu tenho necessidade de ter medo disso de saber de que eacute que tenho medo Que estranha que me sinto Parece-me jaacute natildeo ter a minha voz Parte de mim adormeceu e ficou a ver O meu pavor cresceu mas eu jaacute natildeo sei senti-lo Jaacute natildeo sei em que parte da alma eacute que se sente Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo

21 ldquoRetire-se com efeito a dupla significaccedilatildeo do fingimento natildeo se considere nem o que se finge nem por que se finge e o que restaraacute Muita coisa resta a ordem o lugar a densidade a regularidade dos instantes em que a pessoa que finge deve forccedilar a naturezardquo (BACHELARD Gastoacuten A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo p97)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

109

Para que foi que nos contastes a vossa histoacuteria22

A progressatildeo dos graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuteri-co ocorre segundo uma seacuterie de exigecircncias expressivas da for-ma poeacutetica Ao despersonalizar os pensamentos e as emoccedilotildees que caracterizam as personagens no poema dramaacutetico O Mari-nheiro a autorreflexatildeo da forma poeacutetica permite agrave alteridade do drama (puacuteblico autor e diretor) ocupar cada vez mais o espaccedilo deixado pela dissoluccedilatildeo da unidade dramaacutetica Alternando-se na posiccedilatildeo de autores leitores e diretores as personagens natildeo apenas rompem com a unidade da accedilatildeo como passam a bus-car no contato direto com o sonho um substituto para a unidade perdida

3 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo em Alberto Caeiro

NrsquoO Guardador de Rebanhos a busca pela unidade per-dida culmina na personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica com uma espeacutecie de cogito heteroniacutemico e logo em seguida no encontro desse cogito heteroniacutemico com o mundo concreto das sensa-ccedilotildees e das formas sensiacuteveis23

Quando me sento a escrever versosOu passeando pelos caminhos ou pelos atalhosEscrevo versos num papel que estaacute no meu pensamentoSinto um cajado nas matildeosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiroOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem natildeo compreende [o que se dizE quer fingir que compreende

22 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p45023 Eacute bastante conhecida a ideia de Descartes sobre a impossibilidade de o pensamento sustentar-se na certeza de si sem antes esgotar o percur-so da duacutevida definindo seu ser pela negaccedilatildeo do mundo sensiacutevel do gecircnio maligno e do deus enganador No limite desse percurso o pensamento eacute for-ccedilado a desdobrar-se em sua completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo negado ou seja como natildeo-identidade entre a forma pura do pensamento e o conteuacutedo por ele pensado Na despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico em Fernan-do Pessoa o cogito heteroniacutemico tambeacutem adquire completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo pensado por ele A natildeo-identidade entre o ldquoeu pensordquo a ideia de Deus as sensaccedilotildees e as formas sensiacuteveis projeta a escrita poeacutetica de Alberto Caeiro sobre um plano de composiccedilatildeo que absorve o pensamento heteroniacutemico em sua natildeo-identidade ou seja ao mesmo tempo como sujeito pensante e como sujeito pensado Desse modo o cogito heteroniacutemico passa a ser refletido como momento de natildeo-identidade entre forma pensante e for-ma pensada permitindo agrave escrita percorrer a distacircncia entre a idealidade do ldquoeu pensordquo e a realidade do ldquoeu sourdquo como desdobramento interno agrave forma poeacutetica Ao produzir um mundo um cogito e um deus a natildeo-identidade en-tre forma pensada e forma pensante duplica um amplo espectro de atitudes reflexivas dando ensejo agrave individuaccedilatildeo da forma heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

110

(PESSOA 2006 p204)

A oposiccedilatildeo entre o plano horizontal da accedilatildeo (passear caminhar escrever) e o plano perpendicular do pensamento (o cajado e o cimo do outeiro) forccedila os elementos estruturais da linguagem (o som o sentido a sintaxe) a aparecer ora como negaccedilatildeo das formas sensiacuteveis ora como negaccedilatildeo da forma po-eacutetica ldquoOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideiasOu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanhordquo A oposiccedilatildeo entre a visatildeo estaacutetica das ideias e a accedilatildeo de tanger o rebanho gera um vaacutecuo de sentido (ldquoE sorrindo vagamente como quem natildeo compreende o que se dizrdquo) abrindo espaccedilo para a substituiccedilatildeo da unidade dramaacutetica pela atitude psicoloacute-gica do heterocircnimo (ldquoE quer fingir que compreenderdquo) A desper-sonalizaccedilatildeo passa entatildeo a agir sobre esse vaacutecuo de sentido substituindo a accedilatildeo das personagens dramaacuteticas pelo pensa-mento estaacutetico do heterocircnimo Desse modo a personificaccedilatildeo de Alberto Caeiro encerra na forma poeacutetica o drama existencial de um personagem agrave procura de formas sensiacuteveis capazes de doar unidade para seus pensamentos suas ideias e suas sen-saccedilotildees A personificaccedilatildeo da forma poeacutetica com as ideias es-taacuteticas de Caeiro (escrever olhar pensar sorrir falar) implica na personificaccedilatildeo das formas sensiacuteveis (o rebanho o cajado o outeiro) pelo movimento de autorreflexatildeo da forma em substi-tuiccedilatildeo agrave unidade da accedilatildeo dramaacutetica

Haacute metafiacutesica bastante em natildeo pensar em nadaO que penso eu do mundoSei laacute o que penso do mundoSe eu adoecesse pensaria nissoQue ideacuteia tenho eu das cousasQue opiniatildeo tenho sobre as causas e os efeitosQue tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criaccedilatildeo do MundoNatildeo sei Para mim pensar nisso eacute fechar os olhosE natildeo pensar Eacute correr as cortinasDa minha janela (mas ela natildeo tem cortinas)

(PESSOA 2006 pp206-207)

A autorreflexatildeo projeta o drama subjetivo do heterocircnimo para fora da forma poeacutetica como um ldquoeu penso que natildeo pen-sordquo24 que ldquoquer fingir que compreenderdquo o que a forma sensiacutevel supostamente significa tanto do lado interior como do lado ex-terior agrave forma poeacutetica A forma autorreflexiva do ldquoeu penso que

24 A despersonalizaccedilatildeo nos heterocircnimos percorre trecircs estaacutegios intensi-vos do pensamento o ldquoeu pensordquo posiccedilatildeo do eu liacuterico tradicional o ldquoeu pen-so que pensordquo comum agraves personagens dramaacuteticas ou agraves maacutescaras poeacuteticas e o ldquoeu penso que penso que pensordquo um heterocircnimo ou um personagem conceitual capaz de pensar seu proacuteprio pensamento atraveacutes de um conti-nuum temporal de reflexatildeo centrado na expressatildeo poeacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

111

pensordquo forccedila o heterocircnimo a buscar a unidade perdida em accedilotildees como caminhar passear abrir cortinas que passam a figurar a atitude psicoloacutegica do heterocircnimo A unidade da accedilatildeo cede es-paccedilo portanto agrave unidade da argumentaccedilatildeo

Mas se Deus eacute as flores e as aacutervoresE os montes e sol e o luarEntatildeo acredito neleEntatildeo acredito nele a toda a horaE a minha vida eacute toda uma oraccedilatildeo e uma missaE uma comunhatildeo com os olhos e pelos ouvidosMas se Deus eacute as aacutervores e as floresE os montes e o luar e o solPara que lhe chamo eu DeusChamo-lhe flores e aacutervores e montes e sol e luarPorque se ele se fez para eu o verSol e luar e flores e aacutervores e montesSe ele me aparece como sendo aacutervores e montesE luar e sol e floresEacute que ele quer que eu o conheccedilaComo aacutervores e montes e flores e luar e solE por isso eu obedeccedilo-lhe(Que mais sei eu de Deus que Deus de si proacuteprio)Obedeccedilo-lhe a viver espontaneamenteComo quem abre os olhos e vecircE chamo-lhe luar e sol e flores e aacutervores e montesE amo-o sem pensar neleE penso-o vendo e ouvindoE ando com ele a toda a hora

(PESSOA 2006 p207)

A completa personificaccedilatildeo do heterocircnimo ocorre quando a unidade da argumentaccedilatildeo for colocada agrave prova pela desperso-nalizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoeu penso que pensordquo25 que estrutura sua forma subjetiva opondo agrave autorreflexatildeo da forma poeacutetica um ldquoeu penso que penso que pensordquo como autorreflexatildeo da forma sensiacutevel26 A expressatildeo da natildeo-identidade entre forma poeacutetica e forma sensiacutevel inaugura um estilo de escrita capaz de conferir individuaccedilatildeo agrave personalidade do heterocircnimo A autorreflexatildeo da

25 Nas palavras de Walter Benjamin ldquoO pensar do pensar do pensar pode ser abarcado e consumado de duas maneiras Quando se parte da ex-pressatildeo ldquopensar do pensarrdquo este pode ser entatildeo no terceiro grau ou o objeto pensado o pensar (do pensar do pensar) ou entatildeo o sujeito pensante (pen-sar do pensar) do pensar A riacutegida forma originaacuteria da reflexatildeo do segundo grau eacute no terceiro abalada e acometida pela ambiguidade Esta no entanto se desdobraria em cada grau consecutivo numa ambiguidade cada vez mais muacuteltiplardquo BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Ale-matildeo p3826 Pode-se dizer assim que Alberto Caeiro aparece de um modo simi-lar e ao mesmo tempo inverso agrave definiccedilatildeo da identidade no cogito cartesia-no uma vez que de um modo muito mais complexo a personificaccedilatildeo que daacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

112

forma dramaacutetica o ldquoeu penso que penso que pensordquo conserva na escrita do heterocircnimo a natildeo-identidade entre forma poeacutetica cogito heteroniacutemico27 e forma sensiacutevel natildeo-identidade sem a qual a personalidade de Alberto Caeiro natildeo poderia se desen-volver e sem a qual natildeo seria possiacutevel atribuir a ele e aos de-mais heterocircnimos a autoria de uma obra em que eles mesmos se encontram implicados como personagens ao mesmo tempo reais e ficcionais Nesse estaacutegio de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico e do eu dramaacutetico Alberto Caeiro evidencia completo do-miacutenio sobre a atitude psicoloacutegica que o impulsiona em direccedilatildeo agraves sensaccedilotildees dando ensejo a uma leitura compreensiva que o defina como poeta dramaacutetico que aleacutem da simples invenccedilatildeo de formas e intensidades poeacuteticas eacute capaz de criar por fingimento e ironia formas e intensidades aniacutemicas e natildeo-aniacutemicas sob o efeito combinado de despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica

4 Despersonalizaccedilatildeo e sensacionismo em Aacutelvaro de Campos

A sensaccedilatildeo constitui o uacutenico meio de apreensatildeo das for-mas sensiacuteveis em Alberto Caeiro Sua existecircncia simples e ime-diata exclui qualquer prerrogativa idealista da linguagem e da representaccedilatildeo Observa-se uma concepccedilatildeo antiacutepoda em Aacutelva-ro de Campos Os elementos que melhor definem sua maneira de conceber a sensaccedilatildeo encontram-se na vanguarda esteacutetica criada pelo heterocircnimo e que se intitula sensacionismo Como observa Fernando Pessoa ortocircnimo os ideais esteacuteticos do sen-sacionismo satildeo em larga medida inspirados no objetivismo de Caeiro embora o objetivismo natildeo possa ser reduzido agrave esteacutetica sensacionista sem desvirtuar os traccedilos elementares de sua per-sonalidade

Dizem que Alberto Caeiro lamentou que o nome de ldquosensacionismordquo tivesse sido dado agrave sua atitude e agrave atitude que ele criou por um disciacutepulo seu mdash disciacutepulo um tanto quanto estranho eacute verdade mdash o Sr Aacutelvaro de Campos Se

origem ao cogito heteroniacutemico conserva a natildeo-identidade como momento de autorreflexatildeo da forma ao apresentar o cogito heteroniacutemico como natildeo-ser do pensamento atraveacutes do objetivismo absoluto do mestre heterocircnimo27 Ao assinalar a diferenccedila entre sonho noturno e devaneio Bachelard sugere a seguinte aproximaccedilatildeo entre o cogito e a experiecircncia poeacutetica do eu ldquoAo passo que o sonhador de sonho noturno eacute uma sombra que perdeu o proacuteprio eu o sonhador de devaneio se for um pouco filoacutesofo pode no centro do seu eu sonhador formular um cogitordquo (BACHELARD Gaston A Poeacutetica do devaneio p144) A noccedilatildeo de cogito heteroniacutemico mostra-se de pleno acordo com a definiccedilatildeo de filosofia proposta pelo heterocircnimo Antocircnio Mora heterocircnimo-filoacutesofo de Pessoa ldquoToda a filosofia eacute um antropomorfismo O erro fundamental eacute admitir como real a alma do indiviacuteduo o erigir a consciecircn-cia do indiviacuteduo em consciecircncia absoluta e a Realidade em individualidaderdquo (Obra em prosa Antocircnio Mora p527)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

113

Caeiro protestou contra a palavra como possivelmente pare-cendo indicar uma ldquoescolardquo a igual do Futurismo por exem-plo estava no seu direito e por duas razotildees pois a proacutepria sugestatildeo de escolas e movimentos literaacuterios soa mal quando aplicada a uma espeacutecie de poesia tatildeo incivilizada e natural E aleacutem disso embora tenha ele pelo menos dois ldquodisciacutepulosrdquo o fato eacute que exerceu sobre eles uma influecircncia igual agravequela que algum poeta mdash Cesaacuterio Verde talvez mdash exerceu sobre ele nenhum deles se lhe assemelha absolutamente embora na verdade bem mais claramente do que a influecircncia de Ce-saacuterio Verde sobre ele possa ser vista sua influecircncia em toda a obra deles (PESSOA 1993 p129)

Desse modo ao incluir Alberto Caeiro entre os poetas sensacionistas Aacutelvaro de Campos mostra-se muito mais pre-ocupado em elaborar sua proacutepria teoria do que em definir com precisatildeo o ensinamento do mestre Com efeito uma liccedilatildeo que Aacutelvaro de Campos aprendera mas que Alberto Caeiro natildeo en-sinara eacute que uma sensaccedilatildeo embora possa ser objetivamente percebida como forma sensiacutevel exterior tambeacutem encerra em si um universo desconhecido de outras sensaccedilotildees que podem ser sentidas ou percebidas internamente em toda sua amplitu-de pelo sujeito Em primeiro lugar lembremos que ldquosensaccedilatildeordquo era a palavra que o mestre heterocircnimo aplicava para designar a diferenccedila ontoloacutegica entre as formas sensiacuteveis Concebida as-sim a sensaccedilatildeo natildeo poderia ser um estado de apreensatildeo inter-na do sujeito Quando muito ela poderia significar algo como o contentamento que acompanha o ato de observar as formas sensiacuteveis ou a insatisfaccedilatildeo de natildeo poder observaacute-las com exa-tidatildeo Mesmo que se admitisse a existecircncia de caracteriacutesticas comuns que autorizasse o emprego do mesmo nome para a cor vermelha numa peacutetala de flor e a cor vermelha que tinge um vestido por exemplo as duas formas sensiacuteveis designadas pelo nome ldquovermelhordquo seriam sempre percebidas como sensa-ccedilotildees distintas cuja realidade independia do estado subjetivo de quem as via

A teoria sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste grosso modo na tentativa bem-sucedida de transpor a espon-taneidade sensiacutevel da crianccedila para o campo intelectual da refle-xatildeo conferindo realidade objetiva natildeo apenas agraves formas sen-siacuteveis mas tambeacutem agraves representaccedilotildees puramente subjetivas que as sucedem A diferenccedila sensiacutevel que caracterizava o obje-tivismo absoluto de Caeiro seraacute agora transposta para o plano da diferenccedila intelectual da representaccedilatildeo A sensaccedilatildeo natildeo seraacute somente a percepccedilatildeo imediata da forma sensiacutevel mas tambeacutem a ampliaccedilatildeo subjetiva dessa percepccedilatildeo pelo ato de sentir Ela seraacute um ldquosentir que senterdquo que corresponde aos momentos de projeccedilatildeo e espelhamento da reflexatildeo sobre si mesma a proje-ccedilatildeo subjetiva sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e a proje-ccedilatildeo das formas sensiacuteveis sobre a reflexatildeo subjetiva (realismo)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

114

A forma sensiacutevel torna-se meio de reflexatildeo do seu proacuteprio ser como reflexatildeo exterior ao sujeito e ao mesmo tempo torna--se capaz de comunicar-se por meio de representaccedilotildees para a reflexatildeo subjetiva do heterocircnimo Percorrendo o caminho de reflexatildeo que projeta o universo subjetivo do heterocircnimo sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e depois o caminho que proje-ta o universo objetivo das formas sensiacuteveis sobre as represen-taccedilotildees subjetivas (realismo) Aacutelvaro de Campos personifica o terceiro niacutevel de reflexatildeo o cogito agrave terceira potecircncia no qual o ldquoeu penso que penso que pensordquo incorpora e amplia os dois niacuteveis anteriores

O terceiro niacutevel de reflexatildeo marca o iniacutecio da autonomi-zaccedilatildeo da sensaccedilatildeo que conta agora com uma dupla forma de expressatildeo primeiro a sensaccedilatildeo se expressa como multiplica-ccedilatildeo progressiva dos modos de representar as formas sensiacuteveis (ou seja como autorreflexatildeo subjetiva da forma) e segundo ela se expressa como multiplicaccedilatildeo progressiva dos modos de ver sentir pensar e ser essa multiplicidade sensiacutevel (isto eacute como autorreflexatildeo objetiva da forma) A transposiccedilatildeo do ato de ver para o ato de representar costuma vir acompanhada de uma descarga de energia que aparece sob a forma gradual de um sentimento uma emoccedilatildeo uma paixatildeo ou uma perversatildeo se-gundo os graus de personificaccedilatildeo que acompanham os atos de pensar sentir e de ser as sensaccedilotildees A cor vermelha de um vestido por exemplo pode ser investida de uma descarga his-teacuterica que a associa agrave cor vermelha do sangue e agrave intensidade subjetiva da raiva Ou uma foacutermula puramente abstrata como o binocircmio de Newton pode associar-se a uma forma sensiacutevel como a Vecircnus de Milo por meio do sentimento do belo e produ-zir um sentimento sublime

A livre associaccedilatildeo entre ideias imagens e emoccedilotildees im-plica portanto um plano de composiccedilatildeo objetiva da diferenccedila centrada na multiplicaccedilatildeo subjetiva das sensaccedilotildees Esse o mo-tivo porque o lema central do sensacionismo ldquosentir tudo de to-das as maneirasrdquo28 tambeacutem implica uma foacutermula do tipo ldquopensar tudo de todos os modosrdquo Uma sensaccedilatildeo pode duplicar-se em inuacutemeras outras se acompanhada pela personificaccedilatildeo do ldquoeu pensordquo do ldquoeu sintordquo e do ldquoeu sourdquo tornando-se a proacutepria sen-saccedilatildeo capaz de pensar sentir e ser todas as demais A multipli-caccedilatildeo das sensaccedilotildees depende dessa capacidade heteroniacutemica de personificar o ldquoeu pensordquo o ldquoeu sintordquo e o ldquoeu sourdquo como trecircs identidades autocircnomas Quando encontram a faiacutesca produzida pelo embate entre a autorreflexatildeo a despersonalizaccedilatildeo e a per-sonificaccedilatildeo como eacute o caso das grandes odes inspiradas em Walt Whitman as sensaccedilotildees podem jorrar em alta velocidade de maneira quase irrefletida como uma combustatildeo intelectual movendo a maacutequina de escrever e preenchendo longas paacuteginas de prosa poeacutetica Contudo quando o que prepondera satildeo vagas sensaccedilotildees de melancolia os poemas assumem dimensotildees me-

28 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa Passagem das Horas p344

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

115

nores chegando mesmo em alguns casos a poemas formais como o Opiaacuterio ou sonetos em estilo moderno

Vimos que na obra-prima do mestre o ritmo da escri-ta seguia a mesma naturalidade do vilarejo Ribatejo palco da vida e da obra do heterocircnimo A coleccedilatildeo de fragmentos poeacuteti-cos compunha uma constelaccedilatildeo de ldquoagorasrdquo independente da representaccedilatildeo e pensada a partir da autorreflexatildeo das formas sensiacuteveis Toda a astuacutecia sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste em transpor a simultaneidade espacial das formas sen-siacuteveis percebidas por Caeiro para o plano da sucessatildeo tem-poral que constitui a experiecircncia subjetiva no espaccedilo urbano Nas odes de Aacutelvaro de Campos o palco subjetivo transporta-se para um porto mariacutetimo um edifiacutecio urbano uma estrada ou uma ferrovia que interliga uma cidade agrave outra de onde se segue uma viagem real ou imaginaacuteria de navio um passeio real ou imaginaacuterio a peacute de comboio de automoacutevel ou de cavalo pelas ruas e arredores de Lisboa Note-se a transposiccedilatildeo subjetiva da sensaccedilatildeo logo nos primeiros versos da Ode Mariacutetima

Sozinho no cais deserto a esta manhatilde de VeratildeoOlho pro lado da barra olho pro IndefinidoOlho e contenta-me verPequeno negro e claro um paquete entrandoVem muito longe niacutetido claacutessico agrave sua maneiraDeixa no ar distante atraacutes de si a orla vatilde do seu fumoVem entrando e a manhatilde entra com ele e no rioAqui acolaacute acorda a vida mariacutetimaErguem-se velas avanccedilam rebocadoresSurgem barcos pequenos de traacutes dos navios que estatildeo

[no portoHaacute uma vaga brisaMas a minhrsquoalma estaacute com o que vejo menosCom o paquete que entraPorque ele estaacute com a Distacircncia com a ManhatildeCom o sentido mariacutetimo desta HoraCom a doccedilura dolorosa que sobe em mim como uma

[naacuteuseaComo um comeccedilar a enjoar mas no espiacuterito

Olho de longe o paquete com uma grande [independecircncia de almaE dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamente

(PESSOA 2006 pp 314-315)

Assim como outras odes de Aacutelvaro de Campos Ode Ma-riacutetima concentra os esforccedilos de siacutentese de estados subjetivos diversos com o intuito de atualizar o universo de representa-ccedilotildees histoacutericas Siacutentese que se desdobra no poema em meio a imagens amplificadas pelo impulso de despersonalizaccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

116

internalizado nas sensaccedilotildees O que se observa nesta primei-ra estrofe eacute a transposiccedilatildeo gradual da forma sensiacutevel do navio para o universo subjetivo da representaccedilatildeo Um navio que se aproxima do cais aparecendo primeiro como forma sensiacutevel ex-terior aos poucos transporta o heterocircnimo para o plano intelec-tual da representaccedilatildeo Mais precisamente para uma represen-taccedilatildeo sinteacutetica do Absoluto que se encontra aleacutem da Distacircncia e aqueacutem do Indefinido Os versos isolados ldquoOlho e contenta-me ver Pequeno negro e claro um paquete entrandordquo poderiam figurar como versos objetivistas de Caeiro Mas em seguida a antiacutestrofe que diz ldquoOlho de longe o paquete com uma grande independecircncia de alma E dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamenterdquo sela de vez a transposiccedilatildeo do navio como for-ma sensiacutevel para dentro do universo subjetivo do heterocircnimo Como na transposiccedilatildeo da foto para o cinema a representaccedilatildeo temporal de Aacutelvaro de Campos converte em movimento a ima-gem estaacutetica das sensaccedilotildees de Caeiro A guinada subjetiva da reflexatildeo promove assim a transposiccedilatildeo do tempo natural da escrita espontacircnea de Caeiro para o tempo histoacuterico-subjetivo que tem iniacutecio na escrita ortocircnima de Fernando Pessoa e osci-la entre o subjetivismo e o objetivismo neoclaacutessico de Ricardo Reis ateacute o salto agrave multiplicidade oceacircnica das sensaccedilotildees em Aacutelvaro de Campos A escrita sensacionista percorre assim o espaccedilo da paacutegina em branco como um fluxo de sensaccedilotildees que compotildee o corpo literaacuterio do poeta-ningueacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

117

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD G A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo SP Editora Aacutetica 1994

BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Alematildeo SP Iluminuras 2002

BERARDINELLI C Fernando Pessoa Outra Vez te Revejo RJ Nova Aguilar 2004

BLANCHOT M O Espaccedilo Literaacuterio RJ Rocco 2011

COELHO AP Os Fundamentos Filosoacuteficos da Obra de Fernan-do Pessoa Lisboa Verbo 2 vols 1971

COELHO J do P Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa SP Verbo 1977

DELEUZE G GUATTARI F Diferenccedila e Repeticcedilatildeo RJ Graal 2006

_________ O que eacute a Filosofia RJ Editora 34 1997

DESCARTES R Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoOs Pensadoresrdquo SP Abril Cultural 1983

GIL J Fernando Pessoa ou a Metafiacutesica das Sensaccedilotildees Lis-boa Reloacutegio drsquoAacutegua 1987

_________ Diferenccedila e Negaccedilatildeo na Poesia de Fernando Pes-soa RJ Relume Dumaraacute 2000

HEGEL GWF Fenomenologia do Espiacuterito Petroacutepolis Vozes 1992

LOURENCcedilO E Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente Lisboa Gradiva 2003

OSAKABE H Fernando Pessoa Resposta agrave Decadecircncia SP Iluminuras 2013

PESSOA F Obra em Prosa RJ Nova Aguilar 2006

_________ Obra Poeacutetica RJ Nova Aguilar 2006

NUNES B O Dorso do Tigre RJ Editora 34 2009

PERRONE-MOISEacuteS L Fernando Pessoa Aqueacutem do Eu Aleacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

118

do Outro SP Martins Fontes 2001

SENA J Fernando Pessoa amp Companhia Heterocircnima Lisboa Ediccedilotildees 70 1982

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

119

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaThe freedom of the gaze Erotism and aesthetic autonomy from Winckelmann to Fernando Pessoa

Palavras-chave Winckelmann Kant Fernando PessoaKeywords Wilckelmann Kant Fernando Pessoa

RESUMO Pretende-se estudar aqui o caminho de uma ideia winckelmanniana sobre a autonomia do olhar esteacutetico que foi fundamental para a poeacutetica de Fernando Pessoa

ABSTRACT It is intended to study here the way of a Winckel-mannian idea about the autonomy of the aesthetic gaze which was fundamental for the poetics of Fernando Pessoa

Hoje eacute quase ponto paciacutefico aceitar que Kant foi o pri-meiro a formular de maneira inequiacutevoca a ideia de autonomia da obra de arte Quando esse consenso eacute questionado eacute por-que em geral se quer saber apenas se o autor da Criacutetica do juiacutezo teria sido influenciado por algum predecessor como Adam Smi-th ou Karl Philipp Moritz Teria Kant chegado sozinho agraves suas consideraccedilotildees sobre o juiacutezo de gosto ou satildeo elas resultado de sua leitura de outros pensadores E seriam estes meros anteci-padores ou teriam deixado ideias apenas diferentes mas igual-mente interessantes a respeito do tema

Bem interessante para a compreensatildeo desse toacutepico eacute investigar algumas evidecircncias da presenccedila do pensamento de Winckelmann no conjunto da obra kantiana

Um dos textos mais interessantes nesse aspecto eacute por certo uma reflexatildeo sobre antropologia a de nuacutemero 640 na qual se traccedila a diferenccedila importantiacutessima entre beleza e atrativo ou sem meias palavras entre o prazer provocado pela bela forma e a atraccedilatildeo oriunda do desejo sexual

Em questotildees de gosto devemos diferenciar o atrativo da beleza o primeiro se perde para este ou aquele mas a beleza permanece Quartos adornados permanecem sempre belos embora tenham o seu atrativo com a morte da amada e o amante escolhe outros objetos Tais conceitos do belo diz Winckelmann satildeo voluptuosos isto eacute natildeo se diferencia o atrativo da beleza pois de fato eles estavam tatildeo vinculados entre os antigos como entre os modernos (embora natildeo tatildeo confundidos) mas talvez diferenciados nos conceitos dos ar-

Maacutercio Suzuki

Doutor e professor de esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo

marciosuzukiuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

120

tistas que queriam exprimi-losA bela pessoa apraz por sua figura e atrai por seu

sexo Digamos ao ouvido de algueacutem que a beleza que ele admira eacute um cantor efeminado o atrativo desaparece num instante mas a beleza permanece Eacute difiacutecil separar esse atra-tivo da beleza mas basta deixarmos de lado todas as nossas necessidades particulares e nossas relaccedilotildees privadas em que nos diferenciamos dos outros para que reste o frio juiacutezo de gosto1

Segundo essa anotaccedilatildeo de Kant o ensinamento princi-pal das consideraccedilotildees sobre o belo ideal por parte de Winckel-mann estaria em ter ensinado a diferenciar aquilo que atrai se-xualmente e aquilo que satisfaz como bela forma Os exemplos que Kant traz como ilustraccedilatildeo como sempre natildeo satildeo bons o quarto da mulher permanece belo mesmo com a morte desta e o marido pode buscar outros objetos para a satisfaccedilatildeo do seu instinto o desejo manifesto por uma jovem desaparece quando fica sabendo que o cantor pelo qual se sente atraiacuteda natildeo tem interesse por pessoas do seu sexo ainda que a despeito da frustraccedilatildeo de sua propensatildeo a beleza do indiviacuteduo permaneccedila

Numa versatildeo posterior um pouco diferente as mesmas ideias satildeo assim explicadas

Com frequecircncia natildeo diferenciamos o que eacute objeto do gosto e o que eacute objeto do apetite Winckelmann diz que a verdadeira ideia da beleza estaacute entre os gregos Nossos con-ceitos da beleza satildeo muito partidaacuterios e mais juiacutezos sobre o atrativo Beleza poreacutem natildeo eacute atrativo e atrativo logo natildeo eacute beleza pois ela diz unicamente respeito agrave forma Para julgar-mos de modo universalmente vaacutelido para todos nosso juiacutezo tem de ser unacircnime por exemplo se uma moccedila eacute bela como moccedila ou se a considerariacuteamos bela tambeacutem disfarccedilada de homem Para que algo deva ser visto como belo apenas por causa do gosto esse juiacutezo partidaacuterio natildeo se volta para o gos-to Em nosso juiacutezo de gosto natildeo deve se imiscuir nenhum atrativo pois o atrativo faz parte do Juiacutezo sensiacutevel2

Essa explicaccedilatildeo dada no curso de antropologia Mens-chenkunde (inverno de 1781-1782) eacute a mesma da reflexatildeo an-terior (do ano de 1769) mas se detalha melhor a diferenccedila entre o juiacutezo de gosto e o juiacutezo sensiacutevel sendo este baseado no es-tiacutemulo ou atraccedilatildeo entre os sexos Essa identificaccedilatildeo entre estiacute-mulo sensiacutevel e atraccedilatildeo sexual (sinnlich pode remeter tanto aos oacutergatildeos do sentido como agrave sensualidade) desaparece na Criacuteti-ca do juiacutezo uma vez que nela se encontra apenas a distinccedilatildeo mais geneacuterica entre aquilo que atrai a sensibilidade e aquilo que apraz o sentimento Entretanto ela eacute fundamental do ponto de 1 I Kant Refl 640 AA 15 pp 280-2822 I Kant Antropologia Menschenkunde AA 25 p 1098-1099

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

121

vista geneacutetico isto eacute para que Kant chegue agrave diferenciaccedilatildeo do belo em relaccedilatildeo ao atrativo e agrave emoccedilatildeo tratada no paraacutegrafo 13 da criacutetica do Juiacutezo reflexionante3

Teria Kant lido diretamente as obras de Winckelmann ou seu contato com elas seria de segunda matildeo Eacute grande sem duacutevida a dificuldade de solucionar inteiramente a questatildeo Uma pista fundamental nessa direccedilatildeo eacute talvez uma anotaccedilatildeo mais antiga de Kant referindo-se agravequele que eacute considerado por mui-tos o pai da histoacuteria da arte

A sensibilidade agrave beleza dos jovens deu origem ao amor grego pela paixatildeo mais vergonhosa que jamais cons-purcou a natureza humana e seus criminosos bem mereciam ser entregues agrave vinganccedila e ao insulto das mulheres4

Desta anotaccedilatildeo de 1764-1765 agraves passagens posterio-res a posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave homossexualidade eacute diametralmen-te oposta e o ganho conceitual que essa perspectiva natildeo mo-ralizadora trouxe para a concepccedilatildeo esteacutetica kantiana tambeacutem eacute consideraacutevel Os textos como tambeacutem assinala corretamente a editora das Notas agraves ldquoObservaccedilotildees sobre o sentimento do belo e do sublimerdquo fazem referecircncia a uma passagem em que Win-ckelmann discute a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino Dois paraacutegrafos deste opuacutesculo merecem ser citados na iacutentegra por decisivos que foram para os caminhos da esteacutetica posterior

Para a juventude noviccedila essa capacidade [de sen-tir o belo] estaacute envolvida em emoccedilotildees obscuras e confusas como qualquer outra inclinaccedilatildeo e se anuncia como um forte comichatildeo na pele cujo verdadeiro lugar natildeo pode ser encon-trado ao coccedilar Deve ser procurada antes em jovens bem for-mados do que em outros porque pensamos em geral como somos feitos mas menos na formaccedilatildeo do que no ser e no modo de pensar e sentir Um coraccedilatildeo brando e sentidos doacute-ceis satildeo sinais de tal capacidade Ela se mostra mais niti-damente quando lendo algum escritor o sentimento eacute mais ternamente comovido ali onde o senso inculto passa ao largo como aconteceria diversas vezes no discurso de Glauco a Diomedes isso que eacute a comparaccedilatildeo comovente da vida hu-mana com folhas arrancadas pelo vento e que voltam a bro-tar na primavera Onde esse sentimento natildeo existe eacute como pregar o conhecimento da beleza a um cego assim como a muacutesica a um ouvido natildeo musical Em meninos que natildeo foram educados na arte nem satildeo propriamente destinados a ela

3 ldquoO juiacutezo-de-gosto puro eacute independente de atrativo e emoccedilatildeordquo I Kant Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filosoacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974 p 3184 I Kant Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Rischmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

122

um sinal mais proacuteximo dele eacute o impulso natural ao desenho que eacute inato como o impulso agrave poesia e agrave muacutesica

Aleacutem disso como para conhecer a beleza humana eacute preciso apreendecirc-la num conceito geral observei que aque-les que atentam somente para as belezas do sexo feminino e satildeo pouco ou nada tocados pelas belezas de nosso sexo natildeo possuem o sentimento do belo facilmente inato geral e vivo Neles o belo na arte dos gregos permaneceraacute defectivo jaacute que as maiores belezas dela satildeo mais do nosso sexo do que do outro Exige-se poreacutem mais sentimento para o belo na arte do que na natureza porque aquele como as laacutegrimas no teatro eacute sem dor e sem vida e precisa ser despertado e res-tituiacutedo pela imaginaccedilatildeo Mas como esta eacute muito mais fogosa na juventude do que na idade madura a capacidade de que falamos deve ser exercitada a tempo e conduzida ao belo an-tes que chegue a idade na qual estremecemos ao confessar que natildeo o sentimos5

O opuacutesculo sobre a capacidade de sentir a beleza cha-mou logo a atenccedilatildeo de Kant (a primeira ediccedilatildeo eacute de 1763) cer-tamente tanto pelo seu aspecto cognitivo (em que consistiria a faculdade para apreensatildeo do belo) como pelo seu aspecto conceitual pois o belo supotildee um ldquoconceito geralrdquo que natildeo se restringe a este ou agravequele indiviacuteduo a este ou agravequele sexo mas deve levar o apreciador de arte agrave condiccedilatildeo de algueacutem que julga universalmente Mas alcanccedilar esse sentimento da beleza ideal natildeo eacute resultado de uma ciecircncia de um saber universalmente evidente Antecipando outro ponto fundamental da esteacutetica kan-tiana Winckelmann mostraraacute que natildeo haacute uma ciecircncia do sensiacute-vel ao contraacuterio do que tentara ensinar Baumgarten

A beleza pode ser reduzida a certos princiacutepios mas natildeo definida Geralmente se diz que ela consiste no consen-so muacutetuo da criatura com os seus fins e das partes consigo mesmas e com o todo mas isso eacute confundir a beleza com a perfeiccedilatildeo a qual tampouco pode ser definida nem pode de-finir-se por isso porque a humanidade natildeo tem capacidade para tal Ora eacute adequada ao belo uma definiccedilatildeo que a con-funde com o perfeito

A impossibilidade de definir a beleza nasce de que ela eacute algo superior ao nosso intelecto e como dessa superio-ridade natildeo nos eacute possiacutevel idear algo que seja mais sublime e perfeito que a beleza resultou que o belo e o perfeito nos pareceram duas coisas idecircnticas e se natildeo fosse assim teriacute-amos a verdadeira definiccedilatildeo dele como ocorreu a qualquer outra coisa da qual se conhece toda a essecircncia6

5 J J Winckelmann Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a ca-pacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771 pp 8-9 Ediccedilatildeo encontraacutevel no site vd18de6 J J Winckelmann Monumenti antichi inediti spiegati ed illustrati da

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

123

Em virtude da dificuldade de definir os conceitos a filo-sofia passou seacuteculos confundindo a ideia de beleza com a ideia de perfeiccedilatildeo ela concebe o belo segundo um conceito de fina-lidade que eacute proacuteprio apenas aos seres orgacircnicos Ora eacute pre-cisamente essa identificaccedilatildeo do belo com o perfeito que seraacute rejeitada na Criacutetica do juiacutezo Ao mostrar que o ldquojuiacutezo-de-gosto eacute inteiramente independente do conceito de perfeiccedilatildeordquo Kant lem-bra que a finalidade objetiva eacute justamente a referecircncia de uma diversidade agrave unidade produzida por um fim determinado isto eacute por um conceito7 mas em contraposiccedilatildeo a ele a beleza natildeo pode ter conceito algum natildeo sendo portanto passiacutevel de de-finiccedilatildeo Noutros termos a vitalidade a sauacutede de um corpo tem como fim a sua conservaccedilatildeo e agrave da espeacutecie (mediante a repro-duccedilatildeo) mas a beleza natildeo precisa ou deve servir a este fim

Winckelmann antecipa assim claramente tambeacutem a criacutetica kantiana ao conceito objetivo de beleza mas suas consi-deraccedilotildees satildeo tanto mais interessantes porque chegam agrave auto-nomia esteacutetica por um vieacutes todo proacuteprio que inclui tambeacutem uma libertaccedilatildeo do preconceito em relaccedilatildeo ao homoerotismo ndash algo que como se viu desaparece dos textos publicados por Kant mas natildeo das reflexotildees e pelo menos de um curso de Antro-pologia E essa brecha que ele abre tambeacutem seraacute muito bem percebida e explorada pela esteacutetica e literatura posterior

O Renascimento

Entre as tomadas de posiccedilatildeo mais instigantes de Wal-ter Pater com respeito agrave Renascenccedila estaacute certamente sua con-cepccedilatildeo de que o espiacuterito renascentista eacute algo supra-histoacuterico e supranacional pairando como que acima das determinaccedilotildees circunstanciais e extravasando limites temporais e espaciais Entre os ldquorenascentistasrdquo devem ser incluiacutedos segundo ele no-mes que natildeo viveram na eacutepoca do Renascimento como Abe-lardo e Heloiacutesa os trovadores provenccedilais e tambeacutem Johann Joachim Winckelmann pensador setecentista alematildeo que em-bora vivendo distante de todo o contato com a civilizaccedilatildeo antiga e num momento pouco favoraacutevel aos estudos claacutessicos teve ldquoo sentimento do mundo helecircnicordquo foi irresistivelmente atraiacutedo por ele e adivinhou os canais secretos que levavam a ele8 Graccedilas a um poder divinatoacuterio que o fez perceber a permanecircncia do espiacuterito grego ao longo de toda a histoacuteria Winckelmann com-preendeu muito bem que diferentemente do que ocorre com outras forccedilas espirituais que satildeo soterradas e absorvidas por assim dizer pelos tempos posteriores

Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767 cap 4 parte I p XXX-VIII7 I Kant Criacutetica do juiacutezo sect 15 trad cit p 3218 W Pater O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014 p 190

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

124

[] o elemento helecircnico natildeo se deixa absorver assim nem se deixa contentar com essa vida subterracircnea de tem-pos em tempos ele vem agrave tona a cultura eacute levada de volta agraves suas fontes para ser clarificada e corrigida O helenismo natildeo eacute apenas um elemento em nossa vida intelectual eacute uma tradiccedilatildeo consciente no interior dela9

O historiador da arte antiga reconheceu todo um conjun-to de caracteriacutesticas do mundo helecircnico mediante a compreen-satildeo de que o nuacutecleo de sua arte estava baseado na idealidade ou generalidade (Allgemeinheit) A arte principalmente a escul-tura deve eliminar tudo o que eacute de apelo particular para se con-centrar no que eacute tiacutepico universal

Obras de arte produzidas segundo essa lei e unica-mente estas satildeo realmente caracterizadas pela generalidade e amplitude helecircnicas Esta eacute uma lei de limitaccedilatildeo em todos os sentidos Ela manteacutem a paixatildeo sempre abaixo daquele grau de intensidade no qual eacute sempre transitoacuteria sem jamais arrematar os traccedilos numa soacute nota de ira desejo ou surpre-sa10

A idealidade esteacutetica de Winckelmann eacute retomada aqui em toda a forccedila mais de um seacuteculo depois da publicaccedilatildeo de suas obras e num momento em que jaacute sofreu e continuava so-frendo ataques de todos os lados Pater natildeo tem vergonha de dizer retomando as teses winckelmannianas que essa ideali-dade estava ligada agrave serenidade (Heiterkeit) grega agrave ausecircncia do pathos desmedido o que significa propriamente uma ausecircn-cia de ldquosexualidaderdquo

A beleza das estaacutetuas gregas era uma beleza asse-xuada as estaacutetuas dos deuses quase natildeo tinham traccedilos de sexo Havia ali uma assexualidade moral uma espeacutecie de totalidade ineficaz da natureza embora dotada de verdadeira beleza e de uma significaccedilatildeo proacutepria11

A arte grega mostrava uma atitude distanciada serena para com a sexualidade e sensualidade A imersatildeo no elemen-to sensual natildeo era um problema de consciecircncia para os gre-gos natildeo causava vergonha inibiccedilatildeo ou desapontamento Sem se deixar ldquointoxicarrdquo pela sensualidade ou pela espiritualidade Winckelmann tambeacutem se tornou um grego entre os gregos

[] ele toca os dedos naqueles maacutermores pagatildeos sem se persignar sem nenhum senso de vergonha ou de per-da Isso eacute lidar com o lado sensual da arte de uma maneira

9 Idem pp 190-19110 Idem p 20411 Idem p 208

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

125

pagatilde12

O ideal esteacutetico

O livro de Pater sobre o Renascimento teve grande re-percussatildeo como se sabe na literatura inglesa mas por seu intermeacutedio a esteacutetica winckelmanniana conhece tambeacutem um desdobramento inesperado na obra de Fernando Pessoa Na importante resenha que ele escreve ao livro Canccedilotildees do poeta Antoacutenio Botto publicada no nuacutemero 3 da revista Contemporacirc-nea em julho de 1922 Pessoa redige um verdadeiro programa esteacutetico baseado nos princiacutepios da serenidade grega tirando consequecircncias fecundas das observaccedilotildees de Pater a respeito do historiador da arte grega

Segundo o poeta portuguecircs somente o paganismo gre-go eacute realmente capaz de construir um ideal esteacutetico jaacute que o espiritualismo hindu e o espiritualismo cristatildeo desprezam a im-perfeiccedilatildeo do mundo em prol de uma outra ordem que seria a verdadeira e real A civilizaccedilatildeo helecircnica ao contraacuterio aceita o mundo terreno como sendo o que eacute mera aparecircncia e a sua arte recria essa aparecircncia e a vive ndash fatalisticamente ndash como tal Soacute os gregos aceitam a imperfeiccedilatildeo e buscam transformaacute-la reconhecendo ao mesmo tempo que a perfeiccedilatildeo eacute inatingiacutevel soacute os gregos portanto construiacuteram um ideal humano traacutegico e profundo de aperfeiccediloamento subjetivo da vida13 Sem se aba-lar com as limitaccedilotildees proacuteprias da vida com a calma equiliacutebrio e harmonia que lhe satildeo proacuteprios o homem grego foi o uacutenico a conseguir pocircr a arte na trilha de um ldquoideal esteacutetico absolutordquo14

Satildeo trecircs as formas pelas quais o ideal helecircnico se mani-festa ao ver que a vida eacute imperfeita ele busca criar a perfeiccedilatildeo substituindo a arte agrave vida15 Esse ideal eacute encontrado em Homero e Virgiacutelio Dante e Milton Na segunda forma de manifestaccedilatildeo do ideal esteacutetico o grego assume a vida imperfeita e tenta transfor-maacute-la em sua proacutepria pessoa Eacute esta forma ldquoemotiva e dolorosa do ideal esteacuteticordquo que criou a trageacutedia Na terceira forma do ideal esteacutetico os gregos sem forccedila espiritual para recriar artistica-mente ou para assumir subjetivamente a imperfeiccedilatildeo a aceitam tal qual se apresenta nos gestos nas coisas nos momentos particulares etc Trata-se sem duacutevida da forma mais iacutenfima e fraacutegil do ideal porque natildeo eacute nem uma reaccedilatildeo da inteligecircncia nem da emoccedilatildeo mas ao mesmo tempo eacute em certo sentido a mais esteacutetica porque natildeo tem outro predicado moral ou emotivo

12 Idem ibidem13 F Pessoa ldquoAntoacutenio Botto e o ideal esteacutetico em Portugalrdquo In Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990 pp 350-35114 Idem ibidem15 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

126

a qualificaacute-la Ela eacute o ideal esteacutetico ldquopurordquo16

O caraacuteter distintivo do verdadeiro esteta eacute produzir uma arte em que estatildeo ausentes quaisquer elementos metafiacutesicos ou morais Entretanto essa ausecircncia de elementos metafiacutesicos ou morais natildeo significa ausecircncia de ideias metafiacutesicas ou mo-rais Pessoa tem plena consciecircncia de que combate em duas frentes tendo em vista que se a autonomia esteacutetica natildeo eacute puro formalismo mera arte pela arte por outro lado tambeacutem natildeo se pode recair no platonismo de assimilar o belo ao bem e agrave ver-dade

Haacute uma ideia que sem ser metafiacutesica nem moral faz na obra do esteta as vezes das ideias morais e metafiacutesicas O esteta substitui a ideia de beleza agrave ideia de verdade e agrave ideia de bem poreacutem daacute por isso mesmo a essa ideia de beleza um alcance metafiacutesico e moral A ceacutelebre ldquoConclusatildeordquo da Renascenccedila de Pater o maior dos estetas europeus eacute o exemplo culminante desta atitude17

O esteticismo puro seria capaz de assimilar ideias me-tafiacutesicas e morais Eis a liccedilatildeo que Winckelmann-Pater datildeo tanto aos puros formalistas quanto aos estetas impuros ou melhor aos cristatildeos ou decadentes travestidos de pagatildeos como Wilde e Baudelaire (aos quais Pessoa natildeo hesitaria em acrescentar o nome de Nietzsche)18 O verdadeiro esteta natildeo defende uma ldquocausardquo ele eacute avesso a toda forma de doutrinaccedilatildeo A forccedila de sua poesia como em Antoacutenio Botto adveacutem de duas ideias simples a ideia de beleza fiacutesica e a ideia de prazer ndash ideias estas que lhe servem de metafiacutesica e moral ainda que sejam totalmente amorais e ao mesmo tempo estejam longe de toda espeacutecie de imoralidade19 E aqui Fernando Pessoa esmiuacuteccedila e aprofunda as consideraccedilotildees de Winckelmann

16 Idem pp 351-35217 Idem ibidem18 Idem ibidem A criacutetica a Nietzsche tatildeo presente em outros textos do escritor portuguecircs talvez fique clara por essa diferenciaccedilatildeo que alias eacute explicitada em relaccedilatildeo ao filoacutesofo alematildeo na beliacutessima sequecircncia desse mesmo texto haacute nas Canccedilotildees de Antoacutenio Botto ldquoa intuiccedilatildeo do fundo traacutegico do ideal helecircnico do fundo traacutegico de todo o prazer que sabe que natildeo tem aleacutem Essa intuiccedilatildeo poreacutem se eacute do que eacute traacutegico natildeo eacute traacutegica em si Este prazer natildeo tem a cor da alegria nem a da dor lsquoA alegriarsquo disse Nietzsche lsquoquer eternidade quer profunda eternidadersquo Natildeo eacute nem nunca foi assim a alegria natildeo quer nada e eacute por isso que eacute alegria A dor essa eacute o contraacuterio da alegria como a concebia Nietzsche quer acabar quer natildeo ser O prazer poreacutem quando o concebemos fora de relaccedilatildeo essencial com a alegria ou com a dor como concebe o autor deste livro esse sim quer eternidade po-reacutem quer a eternidade num soacute momentordquo Esse revide tardio do classicismo winckelmanniano a Nietzsche natildeo deixa de ter seu interesse O sentido ver-dadeiramente traacutegico de estar aleacutem de bem e mal sem motivaccedilatildeo nenhuma eacute diferente do sentimento de estar aleacutem deles por um espiacuterito de antagonismo ou razatildeo profunda qualquer19 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

127

Das trecircs formas que podemos conceber da beleza fiacutesica ndash a graccedila a forccedila e a perfeiccedilatildeo ndash o corpo feminino soacute tem a primeira porque natildeo pode ter a beleza da forccedila sem quebra da sua feminilidade isto eacute sem perda do seu caraacuteter proacuteprio o corpo masculino pode sem quebra de sua mas-culinidade reunir a graccedila e a forccedila a perfeiccedilatildeo soacute aos cor-pos dos deuses se existem eacute dado tecirc-la Um homem se se guiar pelo instinto sexual e natildeo pelo instinto esteacutetico canta-raacute como poeta soacute o corpo feminino Essa atitude representa uma preocupaccedilatildeo exclusivamente moral O instinto sexual normalmente tendente para o sexo oposto eacute o mais rudimen-tar dos instintos morais A sexualidade eacute uma eacutetica animal a primeira e a mais instintiva das eacuteticas Como poreacutem o esteta canta a beleza sem preocupaccedilatildeo eacutetica segue que a cantaraacute onde mais a encontra e natildeo onde sugestotildees externas agrave es-teacutetica como a sugestatildeo sexual o faccedilam procuraacute-la Como se guia pois soacute pela beleza o esteta canta de preferecircncia o cor-po masculino por ser o corpo humano que mais elementos de beleza dos poucos que haacute pode acumular20

Natildeo satisfeito com retomar-lhe as ideias Pessoa cita di-retamente Winckelmann numa traduccedilatildeo que faz da traduccedilatildeo de Pater

Como eacute confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral assim tenho no-tado que aqueles que observam a beleza soacute nas mulheres e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens raras vezes tecircm instinto imparcial vital inato da beleza na arte A pessoas como essas a beleza da arte grega pareceraacute sempre falha porque a sua beleza suprema eacute antes masculina que feminina21

A nova maneira de olhar

A concepccedilatildeo de ideal esteacutetico exposta na resenha sobre Canccedilotildees de Antoacutenio Botto natildeo eacute certamente uma manifestaccedilatildeo isolada na obra pessoana Outro texto que mostra o interesse do poeta pela obra de Pater eacute a traduccedilatildeo que fez do beliacutessimo trecho dedicado agrave ldquoGiocondardquo publicado na revista Athena de Lisboa em novembro de 1924 Assim como a resenha sobre o livro de Botto a seleccedilatildeo de um excerto tatildeo curto mas escolhido agrave dedo merece atenccedilatildeo E mesmo o melhor comentaacuterio a ele ndash como o comentaacuterio da proacutepria obra de arte que descreve ndash natildeo 20 Idem p 35421 Idem p 354 Como o leitor estaacute lembrado o trecho eacute exatamente o mesmo da Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben de Winckelmann citado agrave nota 5 Pessoa cita apenas um trecho do texto citado por Pater (trad cit pp185-186)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

128

poderia dispensar a sua transcriccedilatildeo

La Gioconda eacute no mais verdadeiro dos sentidos a obra-prima de Leonardo o exemplo revelador do seu modo de pensamento e de trabalho Em sugestatildeo soacute a Melancolia de Duumlrer lhe eacute comparaacutevel e natildeo haacute simbolismo cru que per-turbe o efeito do seu misteacuterio esbatido e gracioso Conhece-mos todos o rosto e as matildeos da figura posta em sua cadeira de maacutermore naquele ciacuterculo de rochedos fantaacutesticos como em vaga luz de sob o mar Talvez de todos os quadros anti-gos seja aquele que o tempo menos desbotou Como muitas vezes acontece com obras em que dir-se-ia que a invenccedilatildeo chegou a seu limite haacute nela um elemento dado ao mestre que natildeo inventado por ele Naquele inestimaacutevel foacutelio de dese-nhos que um tempo Vasari possuiu havia certos esboccedilos de Verrocchio rostos de beleza tatildeo expressiva que Leonardo jo-vem muitas vezes os copiou Eacute difiacutecil natildeo relacionar com es-tes esboccedilos do mestre preteacuterito como com seu princiacutepio ger-minal o sorriso insondaacutevel sempre como tocado de qualquer coisa de sinistro que paira em toda a obra de Leonardo Aleacutem disso o quadro eacute um retrato Desde a infacircncia vemos esta imagem definindo-se no estofo de seus sonhos e se natildeo fora o testemunho expresso da histoacuteria pudeacuteramos pensar que natildeo era esta mais que a sua dama ideal por fim corporizada e vista Que parentesco teve uma florentina real com esta cria-tura de seu pensamento Por que estranhas afinidades assim cresceram separados o sonho e a pessoa ainda que ligados de tatildeo perto Presente desde o princiacutepio incorporeamente no ceacuterebro de Leonardo delineada vagamente nos desenhos de Verrocchio ela encontra-se por fim presente em casa drsquoIl Gio-condo Que haacute muito de simples retrato no quadro atesta-o a lenda de que por meios artificiais a presenccedila de mimos e de tocadores de flauta se prolongou no rosto aquela expressatildeo sutil E ainda seria em quatro anos e por um trabalho reno-vado nunca em verdade findo ou em quatro meses e como por um golpe de magia que a imagem assim se projetou

A presenccedila que assim tatildeo estranhamente se ergueu de ao peacute das aacuteguas eacute expressiva daquilo que os homens nos caminhos de um milhar de anos tinham chegado a desejar Aquela eacute a cabeccedila sobre a qual ldquovieram todos os fins do mun-dordquo e as paacutelpebras estatildeo um pouco cansadas Eacute uma beleza trabalhada de dentro sobre a carne o depoacutesito ceacutelula a ceacutelu-la de pensamentos estranhos e devaneios fantaacutesticos e pai-xotildees esquisitas Colocai-a um momento ao peacute de uma dessas brancas deusas da Greacutecia ou mulheres belas da antiguidade e como elas se turbariam desta beleza para onde entrou jaacute a alma com todas as suas doenccedilas Todos os pensamentos e experiecircncia do mundo ali gravaram e modelaram no que tecircm de poder de refinar e tornar expressiva a forma exterior

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

129

o animalismo da Greacutecia a luxuacuteria de Roma o misticismo da Idade Meacutedia com sua ambiccedilatildeo espiritual e seus amores ima-ginativos o regresso do mundo pagatildeo os pecados dos Bor-gias Ela eacute mais velha que os rochedos entre os quais se assenta como o vampiro morreu jaacute muitas vezes e aprendeu os segredos do tuacutemulo e mergulhou em mares profundos e guarda cercando-a ainda o seu dia morto e traficou em teci-dos estranhos com os mercadores do Oriente e como Leda foi matildee de Helena de Troia e como Santa Ana foi matildee de Maria e tudo isto natildeo foi para ela mais que um som de liras e flautas e vive apenas uma delicadeza com que lhe modelou as feiccedilotildees instaacuteveis e lhe coloriu as paacutelpebras e as matildeos A fantasia de uma vida perpeacutetua congregando dez mil experi-ecircncias eacute antiga e a filosofia moderna concebeu a ideia da humanidade como trabalhada por e resumindo em si todos os modos de pensamento e vida Por certo que a Dama Lisa poderia ficar como a encarnaccedilatildeo da fantasia antiga o siacutembo-lo da ideia moderna22

Esses dois paraacutegrafos magistrais satildeo obviamente uma ekphrasis poeacutetica da obra de Leonardo mas tambeacutem muito mais que isso23 Sem contar a admiraacutevel prosa (que levou Ye-ats a selecionar surpreendentemente um trecho dela para abrir a sua coletacircnea de ldquoversos modernosrdquo para a editora Oxford transformando-o em versos livres24) Pater concentra neles tudo aquilo que haacute de essencial em sua ldquofilosofia da histoacuteriardquo na qual se poderia notar a presenccedila de certo hegelianismo embora o fundamental seja provavelmente a sua diacutevida para com Heine de quem cita um longo trecho em Renascimento25 E de fato assim como Heine Pater natildeo vecirc a histoacuteria desconectada dos impulsos religiosos que a movem pois as religiotildees satildeo ldquomovi-mentosrdquo naturais do espiacuterito humano Uma delas aliaacutes como se viu anteriormente o paganismo grego estaria tatildeo ligada agrave histoacuteria do espiacuterito que pode ser considerada a verdadeira forccedila motora e modificadora das atitudes humanas Como os deu-

22 O autor agradece imensamente a Claacuteudia Souza pela indicaccedilatildeo e pelo acesso a este texto23 Num pequeno comentaacuterio que redige sobre essa descriccedilatildeo de Mona Lisa Fernando Pessoa escreve ldquoQuando Walter Pater descreve a Gioconda vecirc nela coisas que laacute natildeo estatildeo Mas a sua descriccedilatildeo eacute mais bela do que a Gioconda porque eacute Gioconda + muacutesica (ritmo da prosa) + ideias (as conti-das nas palavras da descriccedilatildeo) + rdquo In F Pessoa Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizarro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009 p 284 O comentaacuterio se explica pois como se sabe diferentemente de Pater para quem todas as artes tendem agrave muacutesica para Pessoa todas devem tender agrave literatura24 ldquoShe is older than the rocks among which she sitsLike the vampireShe has been dead many timesAnd learned the secrets of the graveAnd has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about her She is older than the rocks among which she sits Like the vampireShe has been dead many times And learned the secrets of the grave And has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about herrdquo25 Trad cit pp 54-55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

130

ses exilados de Heine a Madonna percorreu todas as eacutepocas da histoacuteria tendo assumido os mais diferentes papeacuteis e ofiacutecios (foi Helena Santa Ana traficou com mercadores do Oriente) e suas paacutelpebras mostram o cansaccedilo de algueacutem que como Zeus--Odin na ilha dos Coelhos eacute velho como o mundo

Os Deuses no exiacutelio satildeo efetivamente o marco decisivo para uma nova forma de ver a histoacuteria na qual esta se mostra natildeo soacute como ldquohistoacuteria do espiacuteritordquo nos moldes da filosofia he-geliana mas como uma verdadeira ldquohistoacuteria da sexualidaderdquo O paganismo eacute manancial perene de rejuvenescimento natildeo tan-to porque serviria de estimulante agrave fantasia luacutebrica de homens decadentes e sim por mostrar a possibilidade de um modo de encarar a sexualidade que nada tem que ver com a tara de sexo dos homens modernos Partindo do neoclassicismo winckel-manniano e goethiano Heine tornou patente a diferenccedila entre a visualidade natural inocente do sexo entre os antigos e o aco-bertamento dele pelo cristianismo acobertamento este sempre acompanhado de um voyeurismo doentio Kierkegaard eacute outro autor que muito provavelmente seguiu Heine neste ponto afir-maccedilatildeo que se eacute verdadeira torna ainda mais interessante sua visatildeo cristatilde de que a sensualidade eacute uma representaccedilatildeo que surge somente com o advento do cristianismo Ela existia entre os gregos mas soacute se passa a ter consciecircncia dela com o adven-to da espiritualidade cristatilde de que ela eacute o negativo

Enquanto princiacutepio enquanto forccedila enquanto siste-ma em si a sensualidade [Sandseligheden] foi primeiramente posta com o cristianismo posso acrescentar uma determina-ccedilatildeo que talvez mostre mais enfaticamente o que quero dizer a sensualidade foi primeiramente posta com o cristianismo sob a determinaccedilatildeo do espiacuterito [Aand] Isso eacute inteiramente natural pois o cristianismo eacute espiacuterito e o espiacuterito o princiacutepio positivo que ele trouxe para o mundo26

Todas essas consideraccedilotildees sobre a dialeacutetica do espiacuterito e da sensualidade do cristianismo e do paganismo ajudam cer-tamente a entender melhor o quadro no qual se constitui o es-tetismo de Pater e tambeacutem ndash a partir deste ndash a formular melhor o que seria aquela volta do paganismo anunciada por Pessoa e seus heterocircnimos ndash doutrina que eacute explicitada especialmen-te por Antoacutenio Mora Natildeo caberia certamente elencar e discutir todos os ingredientes poeacuteticos esteacutetico-morais e poliacuteticos que estatildeo em jogo na postulaccedilatildeo salviacutefica do ldquoregresso dos deusesrdquo por Fernando Pessoa27 mas valeria a pena sim destacar um deles eacute que a retomada do paganismo perde pelo menos um pouco de sua aura miacutestico-utoacutepica quando se percebe que ela significa essencialmente uma mudanccedila na forma de olhar Essa transformaccedilatildeo do modo de ver produzida por um retorno aos

26 S Kierkegaard Enten ndash Eller Copenhague Gyndendal 1994 p 6027 A citaccedilatildeo de um longo paraacutegrafo dos Deuses no exiacutelio de Heine eacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

131

gregos pode ser reconhecida por exemplo neste fragmento de O regresso dos deuses

O grego reparava essencialmente na forma Eacute carac-teriacutestico do visual e do atento notar as formas das coisas A nascenccedila da fisiognomia e correlacionadas formas de ciecircn-cia na Greacutecia aponta isto Eacute na forma que repara primeiro o homem atento ao mundo exterior O Cristianismo trouxe um adoecimento de sentimentos e de sentidos que levou a esmiuccedilar as formas e achar o sentimento das cores e das tonalidades Mas perdeu-se por aiacute caiu no erro regressivo de buscar na arte uma expressatildeo de emoccedilotildees de sensaccedilotildees de aspiraccedilotildees A arte eacute isto poreacutem apenas num seu estaacute-dio inferior depois chegada agrave Greacutecia desde a Greacutecia a arte passa a ser um fenoacutemeno de trabalho de esforccedilo de querer realizar a perfeiccedilatildeo28

Uma forma de ver pagatilde em oposiccedilatildeo agrave expressividade cristatilde sentimental simplificando muito se poderia afirmar que a poeacutetica pessoana se faz precisamente por essa remissatildeo agrave visi-bilidade pura ndash ou talvez eacute pela proximidade ou afastamento em relaccedilatildeo a essa pureza do olhar eacute por ver mais distintamente ou por estar mais ou menos ldquodoente dos olhosrdquo que se mede o grau de paganismo ou de decadentismo dos poetas que compotildeem a plecirciade heteroniacutemica Alberto Caeiro Ricardo Reis Aacutelvaro de Campos Fernando Pessoa ele mesmo Fernando Pessoa autor dos sonetos ingleses

Mas talvez nem um deles soube exprimir melhor que Bernardo Soares qual eacute o segredo dessa combinaccedilatildeo maacutegica de erotismo e autonomia do olhar Eacute o que se pode ler num frag-mento do Livro do desassossego intitulado muito precisamente ldquoO amante visualrdquo ou ldquoAnterosrdquo

Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo Sou sujeito a paixotildees visu-ais Guardo intacto o coraccedilatildeo dado a mais irreais destinos

Natildeo me lembro de ter amado senatildeo o lsquoquadrorsquo em algueacutem o puro exterior ndash em que a alma natildeo entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo ndash e assim diferente dos quadros que os pintores fazem

Amo assim fixo por bela atraente ou de outro qual-quer modo amaacutevel uma figura de mulher ou de homem ndash onde natildeo haacute desejo natildeo haacute preferencia de sexo ndash e essa fi-gura me obceca me prende se apodera de mim Poreacutem natildeo quero mais que vecirc-la nem olho nada com mais horror que a

um documento de interesse para a formulaccedilatildeo da ideia do regresso do paga-nismo em Pessoa A ediccedilatildeo que utiliza eacute da editora Macmillan publicada em Londres em 1915 O contato com Pater (e Heine) pode portanto ser bem anterior agrave traduccedilatildeo do trecho sobre a Gioconda28 F Pessoa O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013 p 55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

132

possibilidade [] de vir a conhecer e falar agrave pessoa real que essa figura aparentemente manifesta

Amo com o olhar e nem com a fantasia Porque nada fantasio dessa figura que me prende Natildeo me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decorativo nada tem de mais psicoloacutegico [] Natildeo me interessa saber quem eacute que faz que pensa a criatura que me daacute para ver o seu aspecto exterior

A imensa seacuterie de pessoas e de coisas que forma o mundo eacute para mim uma galeria inteacutermina de quadros cujo interior me natildeo interessa Natildeo me interessa porque a alma eacute monoacutetona e sempre a mesma em toda a gente diferem ape-nas as suas manifestaccedilotildees pessoais e o melhor dela eacute o que transborda para o sonho para os modos para os gestos e assim entra para o quadro que me prende e em que visiono caras constantes a essa afeiccedilatildeo

Para mim uma criatura natildeo tem alma A alma eacute soacute com ela mesma

Assim vivo em visatildeo pura o exterior animado das coisas e dos seres indiferente como um deus de outro mun-do ao conteuacutedo-espiacuterito deles Aprofundo o ser proacuteprio soacute em extensatildeo e quando anseio a profundeza eacute em mim e no meu conceito das coisas que a procuro

Que pode dar-me o conhecimento pessoal da cria-tura que assim amo em deacutecor Natildeo uma desilusatildeo porque como nela soacute amo o aspecto e nada dela fantasio a sua es-tupidez ou mediocridade nada tira porque eu natildeo esperava nada senatildeo o aspecto que natildeo tinha que esperar e o aspec-to persiste Mas o conhecimento pessoal eacute nocivo porque eacute inuacutetil e o inuacutetil material eacute nocivo sempre Saber o nome da criatura para quecirc e eacute a primeira coisa que apresentado a ela fico sabendo

O conhecimento pessoal precisa ser tambeacutem de li-berdade de contemplaccedilatildeo a que meu geacutenero de amar dese-ja Natildeo podemos fitar contemplar em liberdade quem conhe-cemos pessoalmente

O que eacute supeacuterfluo eacute a menos para o artista porque perturbando-o diminui o efeito

O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das aparecircncias e manifestaccedilatildeo das coisas ndash ob-jetivista dos sonhos amante visual das formas e dos aspec-tos da natureza

Natildeo eacute um caso do que os psiquiatras chamam ona-nismo psiacutequico nem sequer do que chamam erotomania Natildeo fantasio como no onanismo psiacutequico natildeo me figuro em sonho amante carnal ou sequer amigo de fala da criatura que fito e recordo nada fantasio dela Nem como o erotoacutema-no a idealizo e a transporto para fora da esfera da esteacutetica concreta natildeo quero dela ou penso dela mais do que o que me daacute aos olhos e agrave memoacuteria direta e pura do que os olhos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

133

viram29

Nesse fragmento Bernarndo Soares confronta seu amor agrave visualidade com a monomania eroacutetica da subjetividade moder-na procurando resgatar em meio ao mundo adverso um olhar divergente diferenciado voltado para o aspecto visual das coi-sas e das pessoas enfim para aquilo que nelas eacute tatildeo-somente forma e visualidade Esse encanto simples quase infantil com a manifestaccedilatildeo primeira das formas tem sido uma armadilha em que constantemente voltam a cair leitores que tentam des-vendar uma metafiacutesica na obra do poeta principalmente no que concerne ao heterocircnimo Alberto Caeiro Natildeo se pode certamen-te excluir que haja um fundo filosoacutefico na poeacutetica pessoana Mas seu alinhamento na tradiccedilatildeo esteacutetica aqui discutida talvez propicie uma explicaccedilatildeo mais plausiacutevel e simples para suas es-colhas e de resto ela tambeacutem ajudou o proacuteprio Pessoa a dar respostas claras aos clichecircs psicologizantes que procuravam (e continuando procurando) a todo custo rotular a sua (ausecircncia de) sexualidade

O ideal poeacutetico pessoano natildeo estaacute portanto numa recu-peraccedilatildeo ontoloacutegica do mundo mas provavelmente numa trans-formaccedilatildeo do poeta em alguma coisa que tem muito que ver com o artista visual com o artista plaacutestico no sentido que lhe foi dado por Roberto Longhi O filoacutesofo o homem adulto jaacute perdeu ldquoaquele senso tatildeo simples intenso e verdadeiro da apreensatildeo de uma realidaderdquo que caracteriza a experiecircncia perceptiva da crianccedila e do artista Soacute este eacute capaz de devolver aos olhos em-botados agravequela experiecircncia primordial de sentir a beleza de uma linha de um colorido de um volume de uma obra arquitetocircnica Como explica o criacutetico italiano

Cada estilo figurativo traz em si o dom essencial-mente esteacutetico primordialmente liacuterico de restaurar o contato do nosso espiacuterito com a realidade visual corpoacuterea jaacute que os haacutebitos cotidianos nos fizeram perder a empatia e a comu-nhatildeo que mantiacutenhamos com ela Quando por vias filosoacuteficas chegamos agrave convicccedilatildeo da existecircncia do mundo a ferrugem da vida metoacutedica jaacute nos fez perder a convicccedilatildeo original a convicccedilatildeo plaacutestica30

A busca de densidade psicoloacutegica de aprofundamento introspectivo eacute o avesso dessa convicccedilatildeo plaacutestica da realidade que eacute tambeacutem um modo poeacutetico de apreender o real assim

29 F Pessoa O livro do desassossego Composto por Bernardo Soa-res ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Organizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010 pp 479-480 Sobre a ldquovisu-alidaderdquo de Bernardo Soares ver o belo texto de Leyla Perrone-Moiseacutes ldquoIn-troduccedilatildeo ao desassossegordquo que figura na ediccedilatildeo do Livro do desassossego publicada pela editora Brasiliense (Satildeo Paulo 2a ed 1996)30 R Longhi Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Traduccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosacnaify 2005 p 19

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

134

descrito por Longhi

[] o sentir para o artista figurativo eacute o ver e o seu estilo isto eacute a sua arte se constroacutei inteiramente sobre os ele-mentos liacutericos da sua visatildeo31

A transformaccedilatildeo fundamental da liacuterica pessoana talvez possa ser pensada segundo esse ldquosenso liacuterico particular da arte figurativa essa ldquoliacuterica figurativardquo32 ou ldquoaderecircncia liacuterica agrave figurardquo33 da tradiccedilatildeo pictoacuterica escultoacuterica conforme os termos de Longhi Assim como requer um outro modo pelo qual deve ser vista a poesia pessoana tambeacutem procura instituir um modo novo de olhar Sua insistente defesa e exigecircncia desse outro modo de ver eacute o contraponto agrave miopia agrave cegueira agrave doenccedila dos olhos enfermidade que tambeacutem muitas vezes a acomete e da qual eacute certamente difiacutecil se libertar Mas o combate vale a pena Os so-netos ingleses e tantos outros estatildeo aiacute para o confirmar Se Kant disse que uma moccedila para ser bela tem de ser bela como moccedila ou mesmo disfarccedilada de homem do mesmo modo soacute quem pud L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confron-to intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012 er olhar com olhos livres uma rapariga de modos masculinos teraacute toda a li-berdade de dizer contra as convenccedilotildees sociais e as regras da gramaacutetica mas em absoluto fotograficamente ndash aquela rapaz34

31 Idem p 732 R Longhi Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 196133 L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 201234 Idem p 112

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

135

BIBLIOGRAFIA

KANT Immanuel Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodri-gues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filo-soacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974

KANT Immanuel Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Ris-chmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

KIERKEGAARD Soren Enten ndash Eller Copenhague Gynden-dal 1994 p 60

LONGHI R Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Tra-duccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosac Naify 2005

LONGHI R Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 1961

MARQUES L ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um con-fronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012

PATER Walter O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014

PESSOA F Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990

PESSOA F Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizar-ro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009

PESSOA F O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacute-nio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013

PESSOA F O livro do desassossego Composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Orga-nizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010

WINCKELMANN JJ Abhandlung von der Faumlhigkeit der Emp-findung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771

WINCKELMANN JJ Monumenti antichi inediti spiegati ed illus-trati da Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

136

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoHegel e Szondi notes on the content and form of modern drama

Palavras-chave Hegel esteacutetica drama moderno Peter SzondiKeywords Hegel aesthetics modern Drama Peter Szondi

RESUMO Pretende-se analisar como Peter Szondi a partir de um quadro teoacuterico hegeliano ressalta a contradiccedilatildeo entre a for-ma e o conteuacutedo no drama moderno o qual por sua vez con-duz ao predomiacutenio do eacutepico sobre o dramaacutetico

ABSTRACT We intended to analyze how Peter Szondi from a theoretical framework Hegelian emphasizes the contradiction between the form and the content in the modern drama wich in turn lead to the predominance of the epic over the dramatic

Em seu livro Teoria do drama moderno Peter Szondi parte de uma perspectiva que procura situar as obras dramaacute-ticas no acircmbito de uma ldquoantinomia interiorrdquo (SZONDI 1978 p 13) determinada por uma relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo A matriz teoacuterica dessa perspectiva remonta a Hegel citado pelo proacuteprio Szondi a partir da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas No sect 133 dessa obra intitulado ldquoconteuacutedo e formardquo Hegel afirma que ldquoo conteuacutedo natildeo eacute senatildeo o mudar da forma em conteuacutedo e a forma natildeo eacute senatildeo o mudar de conteuacutedo em formardquo (HEGEL 1995 p 253)

Esse trecho corresponde na chamada pequena loacutegica da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas agrave loacutegica da essecircncia da grande loacutegica ou seja agrave Ciecircncia da loacutegica Trata-se gros-so modo na loacutegica da essecircncia (situada no campo da primeira parte da loacutegica a chamada loacutegica objetiva a qual engloba ainda a loacutegica do ser) de examinar o segundo momento do elemento loacutegico [das Logische] marcado pelo princiacutepio da reflexatildeo e da aparecircncia Se na loacutegica do ser Hegel reinterpreta as categorias da quantidade e da qualidade no horizonte de uma fusatildeo entre metafiacutesica e loacutegica nesse segundo momento da primeira parte a saber na loacutegica da essecircncia estatildeo em jogo as categorias de relaccedilatildeo e modo Dito de outra forma se na loacutegica do ser as determinaccedilotildees puras de pensamento se manteacutem relativamen-te isoladas na loacutegica da essecircncia passamos para o campo da

Marco Aureacutelio Werle

Doutor e professor de Esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail mawerleuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

137

reflexatildeo As determinaccedilotildees entram numa relaccedilatildeo se dizem por sua alteridade por seu contraacuterio ldquoum-para-o-outrordquo no acircmbito de uma certa tensatildeo entre ser e essecircncia Dominam entatildeo na loacutegica da essecircncia pares de pensamento essencial e inessen-cial identidade e diferenccedila positivo e negativo realidade e apa-recircncia etc

Transpondo esse princiacutepio para o uso que Szondi faz dele pode-se dizer que as obras dramaacuteticas investigadas e jun-to com elas o respectivo pensamento dos dramaturgos satildeo mar-cadas ou se resolvem estruturalmente por uma relaccedilatildeo intriacutense-ca de contrariedade e de oposiccedilatildeo satildeo situadas no campo de um processo de reflexatildeo no qual vale mais a ldquorelaccedilatildeordquo do que os extremos isolados Szondi mesmo lida em muitos momentos com categorias que exprimem ldquorelaccedilotildeesrdquo (o ldquoentrerdquo presentepassado diaacutelogomonoacutelogo interiorexterior etc) muito mais do que com ldquoidentidadesrdquo As obras ou as peccedilas teatrais sob seu olhar acabam sempre se colocando nesse domiacutenio inter-mediaacuterio revertendo uma na outra uma vez que se encontram sob o princiacutepio da alteridade natildeo de uma identidade atomiacutestica fechada em si mesma Simplificando as obras encontram-se num processo de reflexatildeo entre o conteuacutedo e a forma Por isso mesmo natildeo se pode analisaacute-las a partir de categorias oriundas de uma poeacutetica da trageacutedia que considera cada peccedila teatral operando num mundo por assim dizer fechado em si mesmo

A partir desse princiacutepio ou leitmotiv torna-se principal-mente possiacutevel falar da ldquocrise do dramardquo denominaccedilatildeo que sig-nifica principalmente um questionamento do proacuteprio gecircnero dra-maacutetico o qual desde a antiguidade se apresentou sob o signo do absoluto ldquoO drama eacute absoluto A fim de poder estabelecer uma relaccedilatildeo pura isto eacute poder ser dramaacutetico ele necessita es-tar desconectado de tudo o que lhe eacute exterior Ele natildeo conhece nada que natildeo seja ele mesmo e fora de si mesmordquo (SZONDI 1978 p 17) Essa designaccedilatildeo do drama como sendo marcado pelo ldquoabsolutordquo jaacute se encontra impliacutecita na Teoria do romance de Lukaacutecs um dos autores que inspira o estudo de Szondi A tra-geacutedia grega segundo Lukaacutecs ldquoencontrava-se acima do dilema entre a aproximaccedilatildeo da vida ou a abstraccedilatildeo porque para ela a plenitude natildeo era uma questatildeo de aproximaccedilatildeo da vida a trans-parecircncia do diaacutelogo natildeo era uma superaccedilatildeo de sua imediatez seu sentido artiacutestico eacute conduzir a essecircncia para um aleacutem de qualquer vida de toda vitalidade e plenituderdquo (LUKAacuteCS 1994 p 33) Num outro registro essa caracterizaccedilatildeo antiga do drama remete de alguma forma agrave loacutegica do ser de Hegel (natildeo agrave loacutegi-ca da essecircncia) como se o drama se colocasse desde sempre como um ser posto ou como uma dimensatildeo ontoloacutegica quase natural de fechamento em si mesmo ou se quisermos de es-vaziamento no que tange ao particular Pois natildeo eacute o proacuteprio Hegel que afirma que devido agrave sua universalidade ldquoo puro ser e o puro nada satildeo o mesmordquo (HEGEL 2011 p 72) Entretan-to a eacutepoca moderna cada vez mais recusaraacute essa concepccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

138

de drama O ser passa para o registro da essecircncia isto eacute da reflexatildeo num campo de tensatildeo e flexibilizaccedilatildeo dos pilares de sustentaccedilatildeo tradicionais da trageacutedia

Mas como se apresenta esse quadro categorial nas pe-ccedilas mesmas Szondi percorre cinco dramaturgos do fim do seacute-culo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX Ibsen Tschechov Strindberg Maeterlinck e Hauptmann Cada um eacute examinado segundo pe-ccedilas representativas tanto a partir de um certo momento temaacute-tico que se desenvolve em sua produccedilatildeo teatral ou melhor a atravessa quanto segundo um certo percurso que os envolve e transcende como um todo No que se refere ao toacutepico geral da relaccedilatildeo ldquoforma e conteuacutedordquo temos entatildeo o seguinte desenvol-vimento

1) Em Ibsen emerge ldquoo problema formal do dramardquo (SZONDI 1978 p 29) na impossibilidade de ser exposta dra-maticamente a dimensatildeo do presente e da interioridade dos per-sonagens Nas peccedilas Rosmersholm e John Gabriel Borkman a trama eacute dominada pelo passado gerando um imobilismo Ao contraacuterio do Eacutedipo Rei de Soacutefocles observa Szondi que punha o passado para funcionar dramaticamente como revelador do presente em Ibsen o passado prende os personagens diante da accedilatildeo presente Em Rosmersholm eacute o suiciacutedio da esposa do protagonista que bloqueia os planos bem como em John Ga-briel Borkman satildeo os negoacutecios fracassados e as expectativas da cunhada e esposa em relaccedilatildeo ao filho que geram um imobi-lismo impedindo qualquer tipo de accedilatildeo

2) Tschechow por sua vez deixa de apostar na forma do diaacutelogo enquanto articulador positivo da accedilatildeo presente e assume claramente essa impossibilidade apresentando seus personagens de imediato diante de uma ldquorenuacutencia ao presenterdquo (SZONDI 1978 p 31) Em As trecircs irmatildes estatildeo entrelaccedilados o teacutedio da vida burguesa o peso de um passado tido como fe-liz e um presente tomado pelo fracasso Esse ldquoconteuacutedordquo leva Tschechow a renunciar agrave forma tradicional do diaacutelogo Muito embora os personagens falem intensamente de si essas falas natildeo possuem o propoacutesito de entabular uma conversa e propi-ciar uma mensagem intersubjetiva ou compreensatildeo reciacuteproca e comunicativa ldquoo diaacutelogo natildeo tem forccedilardquo (SZONDI 1978 p 35) No lugar disso a dimensatildeo liacuterica eacute incorporada no drama tornando-se o diaacutelogo uma espeacutecie de monoacutelogo na medida em que se compartilha a solidatildeo e a ausecircncia de sentido da vida burguesa que se aproxima de uma espeacutecie de mutismo e imobilismo

3) Como ponto de inflexatildeo das anaacutelises de Szondi colo-ca-se o proacuteximo dramaturgo Strindberg sem duacutevida autor mais decisivo com a sua ldquodramaturgia do eurdquo Natildeo se trata poreacutem de um teatro que procura afirmar a potecircncia da subjetividade tal como vemos ocorrer em Shakespeare Ao contraacuterio Strindberg parte do fato da quase impossibilidade de expressar a vida indi-vidual de cada ser humano Na peccedila O pai surge justamente a

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

139

expressatildeo ldquoconhecemos apenas uma vida a proacutepriardquo (SZON-DI 1978 p 39) e na peccedila de um ato A mais forte emerge de maneira extremamente condensada o elemento oculto e repri-mido da vida dos homens A novidade formal dessa uacuteltima peccedila consiste justamente numa espeacutecie de monoacutelogo que por sua vez eacute quase um relato pura e simples

Partindo pois da dificuldade de expressatildeo da dimensatildeo humana Strindberg avanccedila para o conceito de ldquodrama de esta-ccedilatildeordquo cujo princiacutepio formal consiste em iluminar um ldquoeurdquo a partir daqueles que o cercam configurando-se assim uma unidade do eu que se coloca no lugar da unidade da accedilatildeo A unidade de accedilatildeo eacute dissolvida e se destacam as ldquopedras isoladasrdquo do eu que progride Ou seja o ldquoeurdquo eacute de natureza essencialmente frag-mentada exposto a uma situaccedilatildeo de signos existenciais (peccedila A mais forte)

4) Maeterlinck o proacuteximo dramaturgo examinado tor-na-se o autor que decididamente lida com a impotecircncia do ser humano diante do destino Satildeo homens que jaacute renunciaram e estatildeo entregue agrave situaccedilatildeo existencial mais imediata Estatildeo agrave espera de algo que decididamente nunca chegaraacute

O termo ldquosituaccedilatildeordquo empregado por Szondi nos remete novamente para Hegel que o emprega na primeira parte dos Cursos de esteacutetica para designar uma determinidade do ideal da arte colocada entre o chamado ldquoestado de mundordquo (pensado como heroacuteico e prosaico) e a ldquocolisatildeordquo O ideal se apresenta na existecircncia fazendo um sentido para o agir universal de modo que ldquoa situaccedilatildeo em geral eacute o estaacutegio intermediaacuterio entre o estado universal do mundo em si mesmo imoacutevel e a accedilatildeo [Handlung] concreta aberta em si mesma para a accedilatildeo [Aktion] e reaccedilatildeo [Reaktion]rdquo (HEGEL 1999 p 208) E Hegel ainda ressalta que a tarefa de encontrar situaccedilotildees interessantes favoraacuteveis agrave arte foi ldquodesde sempre o aspecto mais importante da arterdquo (HEGEL 1999 p 207)

Em Maeterlinck poreacutem a situaccedilatildeo exprime-se no acircmbito dos homens no maacuteximo como uma Stimmung [disposiccedilatildeo aniacute-mica] diante da qual os diaacutelogos satildeo desprovidos de sentido e conexatildeo intersubjetiva Isso significa antes o que Hegel chama de ldquoausecircncia de situaccedilatildeordquo por exemplo o que encontrariacuteamos na rigidez de certos retratos medievais Seja como for essa re-missatildeo ao medievo natildeo deixa de ser instrutiva para o teatro de Maeterlinck um teatro marcado pela situaccedilatildeo da ausecircncia de situaccedilatildeo Poder-se-ia dizer que esse seraacute um traccedilo incorporado largamente pelo teatro em geral do seacuteculo XX Basta lembrar de Esperando Godot de Beckett

5) Por fim apresenta-se Hauptmann em cujo teatro jaacute se verifica uma autonomizaccedilatildeo total do chamado ldquodrama socialrdquo A dimensatildeo social eacute o assunto principal que se sobrepotildee sobre a dimensatildeo propriamente dramaacutetica em que faz sentido a accedilatildeo humana Szondi chama a atenccedilatildeo para o caraacutecter eacutepico dessa denominaccedilatildeo de ldquodrama socialrdquo que implica ao mesmo tempo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

140

uma contradiccedilatildeo que jaacute se coloca totalmente contra a proacutepria possibilidade do drama (SZONDI 1978 p 60)

Nesse percurso vai se desnudando aos poucos o que vem a ser em termos de significaccedilatildeo esse embate entre for-ma e conteuacutedo no drama moderno grosso modo trata-se fun-damentalmente de um embate entre o dramaacutetico e o eacutepico no interior da forma dramaacutetica O eacutepico eacute o conteuacutedo e dramaacutetica eacute a forma sendo que a segunda acaba por ser questionada e forccedilada a aceitar as mudanccedilas formais devido agrave primeira No drama moderno cada vez mais se torna decisivo o conteuacutedo eacutepico ou dito de outro modo a instacircncia da prosa que forccedila o gecircnero dramaacutetico a recuar de seus pontos de sustentaccedilatildeo basi-lares desde a antiguidade que satildeo a accedilatildeo o diaacutelogo e a cons-truccedilatildeo de um sentido intersubjetivo compartilhado Eacute como se o teatro natildeo coubesse mais nos limites que lhe foram conferidos desde a Poeacutetica de Aristoacuteteles isto eacute no espaccedilo de jogo entre a mimese e a catarse

Rompendo com uma poeacutetica da trageacutedia e pensando nos termos de uma filosofia do traacutegico Szondi orienta-se ainda segundo a esteacutetica de Hegel quando privilegia o conteuacutedo dian-te da forma Sabemos que a esteacutetica de Hegel eacute sobretudo uma esteacutetica do conteuacutedo e que no fundo o problema da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e forma somente surge quando se privilegia a instacircncia do conteuacutedo Nas esteacuteticas que punham em primeiro lugar o princiacutepio da forma por exemplo no acircmbito do pensa-mento alematildeo da eacutepoca desde Baumgarten Kant chegando ateacute Schiller esse problema natildeo tinha como surgir a forma resolvia de antematildeo a particularidade do conteuacutedo Aliaacutes a temaacutetica do particular de um universal particular eacute o que justamente marca a instacircncia do conteuacutedo e desencadeia o movimento dialeacutetico baseado nas transformaccedilotildees histoacutericas da arte que levam a uma problematizaccedilatildeo permanente da forma Natildeo significa que a forma se torna relativa Pelo contraacuterio a forma se torna de fato e pela primeira vez uma questatildeo efetiva de pensamento a ser constantemente revista e observada com intensidade

No entanto a filiaccedilatildeo de Szondi ao modo como Hegel lida com o problema da relaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo natildeo dei-xa de ser isenta de criacuteticas se lembrarmos por exemplo das objeccedilotildees que Adorno fez a isso em sua Teoria esteacutetica Para Adorno Hegel e Kant tomam a forma como sendo conteuacutedo ou seja deixam a desejar no que se refere a uma transforma-ccedilatildeo da proacutepria forma Hegel veria uma passagem tranquila do conteuacutedo social para o domiacutenio da prosa da arte quando essa ldquopassagemrdquo lida a partir do conceito de ideologia tornar-se-ia sobretudo problemaacutetica a partir do seacuteculo XIX ldquoHegel e Kant foram os uacuteltimos que dito de modo brusco puderam escrever grandes esteacuteticas sem compreender algo acerca de arte Isso foi possiacutevel porque a arte por seu lado se orientava pelas nor-mas abrangentes que natildeo eram questionadas pela obra de arte individual e sim eram diluiacutedas em sua problemaacutetica imanenterdquo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

141

(ADORNO 1973 p 495) Certamente pode-se questionar o pensamento que lida com o esquema forma e conteuacutedo a partir da situaccedilatildeo da arte no seacuteculo XIX jaacute que a relaccedilatildeo entre arte e cultura ingressou a partir de entatildeo numa tensatildeo cada vez maior Por outro lado igualmente pode-se questionar o pressuposto adorniano de que toda obra de arte autecircntica jaacute eacute por si mes-ma um questionamento das chamadas ldquonormas abrangentesrdquo e que portanto as obras de arte estariam sempre em descom-passo com o mundo social dominante Assumir essa tese signifi-ca excluir uma grande parte da produccedilatildeo artiacutestica e literaacuteria dos seacuteculos XIX e XX

Poder-se-ia lembrar aqui tambeacutem das objeccedilotildees que Hei-degger faz ao par mateacuteria e forma no ensaio A origem da obra de arte cuja origem adviria de uma ausecircncia de questionamen-to da ldquocoisidade da coisardquo Por traacutes do questionamento da coisa reside a concepccedilatildeo de coisa como instrumento de modo que o par mateacuteria e forma depende de uma certa noccedilatildeo de serventia isto eacute de uma certa teacutecnica aplicada pelo homem agrave coisa mas que seria estranha a ela mesma em seu desenvolvimento on-toloacutegico ldquoA distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma em suas mais dife-rentes combinaccedilotildees eacute o esquema conceitual puro e simples de toda teoria da arte e esteacutetica Mas esse fato incontestaacutevel natildeo comprova nem que a distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma seja sufi-cientemente fundamentada nem que pertence originariamente ao acircmbito da arte e da obra de arterdquo (HEIDEGGER 2003 p 12)

Ou seja tanto Adorno quanto Heidegger questionam a legitimidade do pensamento que opera ainda com o par ldquoforma e conteuacutedordquo Ambos podem ser mobilizados como contraponto criacutetico ao percurso indicado por Szondi uma vez que se poderia supor algo de irredutiacutevel no drama moderno e que se subtrai ao desenvolvimento dialeacutetico de forma e conteuacutedo

Voltando ao problema central de Szondi coloca-se po-reacutem a pergunta de onde proveacutem essa necessidade de emer-gecircncia do eacutepico na eacutepoca moderna Talvez possamos discutir esse ponto retomando o tema da posiccedilatildeo da prosa na eacutepoca da filosofia e da poesia alematildes claacutessicas em particular desde a filosofia kantiana e segundo o centro do romantismo e idealis-mo refletidos no classicismo de Weimar Para tanto parece-me instrutivo remeter ao romance de Goethe intitulado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister escrito entre 1794 e 1797 em particular ao modo como eacute encaminhado o tema do teatro

No capiacutetulo 7 do livro V de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister o grupo de teatro ocupado com a discussatildeo do Hamlet de Shakespeare e de sua encenaccedilatildeo se depara dian-te da seguinte questatildeo o que deve ser privilegiado o drama ou o romance A partir disso discutem algumas caracteriacutesticas do drama e do romance que parecem por assim dizer anteci-par o que ocorreraacute com o drama posterior objeto de anaacutelise de Szondi principalmente quando se diz que ldquonatildeo seria impossiacute-vel escrever um drama em forma epistolarrdquo (GOETHE 2006 p

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

142

300) Elementos eacutepicos tais como o da passividade do heroacutei da ausecircncia de destino da evoluccedilatildeo lenta do jogo do acaso satildeo confrontados com os elementos essencialmente dramaacuteti-cos tais como o predomiacutenio da accedilatildeo a pressa e a aceleraccedilatildeo o destino e a eficaacutecia do agir (cf GOETHE 2006 p 300-01) Essa comparaccedilatildeo entre o drama e o romance indica um pensamento que toma os dois gecircneros como passiacuteveis de flexibilizaccedilatildeo de seus princiacutepios de modo que permitem perceber o processo de como no drama do fim do seacuteculo XIX pocircde justamente ocorrer a emergecircncia do eacutepico A leitura feita do Hamlet nesse romance como sendo uma peccedila que extrapola os limites do teatro pre-nuncia o que viraacute depois

Ou seja a impressatildeo que se tem diante da leitura de Szondi eacute que ele como grande conhecedor da esteacutetica alematilde claacutessica toma emprestado o esquema discutido por Goethe e Schiller que possui algo de programaacutetico e visionaacuterio e o mo-biliza para compreender o teatro posterior E aqui seria preciso ainda explorar o anexo Sobre Poesia eacutepica e dramaacutetica da Cor-respondecircncia de Goethe e Schiller onde se coloca o mesmo problema Eacute como se Szondi tomasse esses apontamentos bre-ves de Goethe e Schiller como uma espeacutecie de prognoacutestico da proacutepria tendecircncia do teatro ao longo do seacuteculo XIX como se o teatro do futuro a partir da essecircncia da modernidade tivesse de se deparar inevitavelmente com essa dimensatildeo eacutepica No fundo o problema parece ser esse como eacute possiacutevel fazer teatro na eacutepoca do paradigma do romance

Com efeito cabe lembrar que o problema em si natildeo eacute la-teral ou secundaacuterio na estruturaccedilatildeo do romance de Goethe Uma das teses mais fortes desse romance consiste em indicar como o paradigma humano se desloca do campo do teatro como ins-tituiccedilatildeo essencialmente representativa (no seacuteculo XVIII) para o campo do romance como o paradigma de exposiccedilatildeo do homem poacutes Revoluccedilatildeo Francesa (seacuteculo XIX) Um certo ideal relacio-nado ao seacuteculo XVIII de que o gecircnero humano pode encontrar o seu sentido e destino no teatro sendo a noccedilatildeo de representa-ccedilatildeo o signo pelo qual o homem se reconhece enquanto tal dei-xa de ter validade com o espiacuterito de criacutetica radicalizado por Kant e as implicaccedilotildees sociais e culturais da Revoluccedilatildeo Francesa No romance de Goethe essa situaccedilatildeo eacute pela primeira e talvez uacutenica vez enfrentado de frente o ser humano passa a ser visto natildeo mais como um ideal abstrato um certo tipo universal e sim en-contra-se entregue a si mesmo no horizonte de uma tarefa de formaccedilatildeo Natildeo haacute mais ldquorepresentaccedilatildeordquo possiacutevel ou a possibili-dade de o homem elaborar pela via teatral uma imagem repre-sentativa de si mesmo Por isso temos no romance de Goethe a passagem do teatro para a vida o conflito da poesia do coraccedilatildeo com a prosa do mundo (como interpreta Hegel) Goethe equili-bra muito habilmente o teatro e a vida de modo que nenhuma das duas instacircncias prevalece sobre a outra embora cada uma reivindique o seu direito

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

143

Esse eacute justamente o desafio colocado para o ser hu-mano a partir da criacutetica kantiana e da Revoluccedilatildeo Francesa eacute preciso procurar a felicidade a amizade a dimensatildeo iacutentima e afetiva a realizaccedilatildeo individual (teatro) mas ao mesmo tempo natildeo eacute possiacutevel deixar de lado o princiacutepio da realidade (vida) a organizaccedilatildeo social com as suas exigecircncias e compromissos (ditames do capitalismo) Na concepccedilatildeo de Goethe esse seraacute o dilema que acompanharaacute o ser humano e que estaraacute no cerne do ldquonovordquo gecircnero o romance que teraacute que operar um delicado equiliacutebrio reciacuteproco Segundo a forma do romance (teorizada de modo magistral posteriormente por Lukaacutecs) a diversidade hu-mana e sua contingecircncia natildeo cabem mais no palco pelo menos natildeo mais num palco equilibrado pelas categorias aristoteacutelicas de mimese e catarse A concisatildeo representativa deve dar lugar ao amplo terreno do romance

Ora esse parece-me ser um dos motivos de surgimento da questatildeo do eacutepico nos principais dramaturgos do fim do seacutecu-lo XIX analisados por Szondi Pergunta-se poreacutem agrave guisa de conclusatildeo por que Szondi emprega preferencialmente o termo ldquoeacutepicordquo e natildeo os termos ldquoromancerdquo ou ldquoprosardquo Haacute diferenccedila em dizer que o teatro do fim do seacuteculo XIX se encaminha gra-dualmente para a dimensatildeo eacutepica ou que se encaminha cada vez mais para a ldquoprosardquo ou para o ldquonarrativordquo (enquanto proce-dimento tiacutepico do romance) Parece-me que a primeira opccedilatildeo abriga um certo desejo de retorno agrave origem uma certa nostal-gia a qual poreacutem estaacute irremediavelmente deslocada na eacutepoca moderna e principalmente eacute impossiacutevel no quadro do drama Talvez o caminho passasse antes pelo exame da teoria do ro-mance e seus impasses

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

144

BIBLIOGRAFIA

ADORNO T Aumlsthetische Theorie Frankfurt am Main Suhrkamp 1975

GOETHE J W Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trad de Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2006

HEGEL G W Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas vol I ndash A ciecircncia da loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______ Cursos de esteacutetica vo I trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Edusp 1999

______ Ciecircncia da loacutegica (excertos) trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Barcarolla 2011

HEIDEGGER M ldquoDer Ursprung des Kunstwerkesrdquo In Holzwe-ge Frankfurt am Main Klostermann 2003 (8 ediccedilatildeo)

LUKAacuteCS G Die Theorie des Romans Muumlnchen DTV 1994

SZONDI P Theorie des modernen Dramas (1880-1950) In Schriften I Frankfurt am Main Suhrkamp 1978

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de PiacutendaroThe laborious Muse and the victory ode Pindarrsquos second Isthmian

Palavras-chave Piacutendaro epiniacutecio Iacutestmica II poesia grega arcaicaKey-words Pindar epinician Isthmian II archaic Greek poetry

RESUMO Traduzo inicialmente a segunda Iacutestmica de Piacutendaro Apresento em segundo lugar certas caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega centrando-me sobretudo na liacuterica coral Busco entatildeo esboccedilar como nela se encontram determinados padrotildees que fazem emergir sem prescritiva ou regras diversos gecircneros que se modelam por uma pragmaacutetica oral e performaacute-tica Discuto a seguir a estrutura baacutesica das Odes dedicadas aos vencedores dos Jogos a fim de verificar se a segunda Iacutestmi-ca eacute ou natildeo um poema epiniacutecio

ABSTRACT First I translate Pindarrsquos second Isthmian Secon-dly I present some general characteristics of archaic Greek po-etry chiefly choral lyric poetry I try then draw up a framework on general patterns that bring to surface without prescriptions or rules diverse genres shaped by oral and performatic prag-matism Finally I discuss the fundamental structure of odes de-dicated to winners of the Games in order to determine whether Pindarrsquos second Isthmian is an epinician poem or not

TRADUCcedilAtildeO

De antano os varotildees TrasiacutebuloI que no carrodas Musas com aacuteureas fitas subiam unindo-seagrave gloriosa lira imediatamente flechavammeliacutefluos hinos em garotosqualquer um que sendo belo mantivesse a maispropiacutecia estaccedilatildeo evocadorade Afrodite em seu belo trono

Porque entatildeo a Musa ainda natildeo eraamante de ganho nem laboriosaIInem as doces canccedilotildees de voz suave argentadasna fachadaIII por TerpsiacutecoraIV de meloso

Adriano Machado Ribeiro

Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacute-culas da Faculdade de Filo-sofia Letras e Ciecircncias Hu-manas da Universidade de Satildeo Paulo

email adrianoruspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

146

acento eram vendidasMas agora ela insta observar do argivoV

a conhecida palavra que caminha muito mais perto da verdade

ldquoDinheiro dinheiro eis o homemrdquo dizia eledesamparado conjuntamente de posses e amigosVIPorque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignoradahiacutepica vitoacuteria iacutestmicaVIIdepois de a Xenoacutecrates Poseiacutedon concedecirc-laenviava-lhe para cingir agrave comauma coroa de doacuterico aipo selvagemVIII

Blaureando homem de belo carroa luz de Agrigento Em CrisaIX por ele olhoupoderoso Apolo e lhe deu esplendortambeacutem laacute e agraciado com as homenagens renomadasdos Erectidas na luzidia Atenas natildeo lamentoua matildeo preservante do carrodo varatildeo que golpeia cavalos

matildeo com que Nicocircmaco na medidacerta bem controlou todas as reacutedeasa quem ateacute os arautos das temporadasdos jogos os Eleacuteios portadores da treacuteguade Zeus Cronida reconheceramdepois decerto de provar algumato de acolhedora hospitalidade

Com uma voz suave sopro saudavam a elecaindo no colo da aacuteurea vitoacuteria sobresua proacutepria terra a que chamam de Zeus Oliacutempiosagrado bosque onde em honras imortaisos filhos de Enesidemo se misturaramDe fato Trasiacutebulo natildeo desconhecedoras satildeo vossas mansotildeesnem das amaacuteveis procissotildees cantadas nem dos meliacutefluos cantos]

CPois natildeo eacute penhasco nem se tornaescarpa o caminho se algueacutem conduzagrave casa dos homens ilustres as honras das HeliconiacuteadasX

Tendo atirado a lanccedilaque eu possa arremessar tatildeo longequanto Xenoacutecrates obteve doce tecircmpera acima dos homensEra ele venerado por consociar com seus concidadatildeos

respeitando o costumeiro cuidado dos cavalossegundo o costume de todos os helenos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

147

E abraccedilava dos deuses os banquetestodos e jamais vento soprante em torno da hospitaleiraXI

mesa o fez recolher a velaMas cruzava pelo Faacutesis no veratildeoe no inverno ia navegando ateacute a margem do NiloXII

Que agora o filho jaacute que invejosasesperanccedilas rondam suspensas as mentes dos mortaisnatildeo silencie a virtude paternanem estes hinos aqui porquenatildeo os confeccionei para permanecerem imoacuteveisIsso Nicasipo partilha quandochegares a meu hoacutespede leal

O POEMA

Αʹ Οἱ μὲν πάλαι ὦ Θρασύβουλεφῶτες οἳ χρυσαμπύκωνἐς δίφρον Μοισᾶν ἔβαι-νον κλυτᾷ φόρμιγγι συναντόμενοιῥίμφα παιδείους ἐτόξευον μελιγάρυας ὕμνουςὅστις ἐὼν καλὸς εἶχεν Ἀφˈροδίταςεὐθρόνου μνάστειραν ἁδίσταν ὀπώραν

ἁ Μοῖσα γὰρ οὐ φιλοκερδήςπω τότrsquo ἦν οὐδrsquo ἐργάτιςοὐδrsquo ἐπέρναντο γˈλυκεῖ-αι μελιφθόγγου ποτὶ (pros)Τερψιχόραςἀργυρωθεῖσαι πρόσωπα μαλθακόφωνοι ἀοιδαίνῦν δrsquo ἐφίητι ltτὸgt τὠργείου φυλάξαιῥῆμrsquo ἀλαθείας ltu ndash ἐτᾶςgt ἄγχιστα βαῖνον

rsquoχρήματα χρήματrsquo ἀνήρrsquoὃς φᾶ κτεάνων θrsquo ἅμα λειφθεὶς καὶ φίλωνἐσσὶ γὰρ ὦν σοφός οὐκ ἄγˈνωτrsquo ἀείδωἸσθμίαν ἵπποισι νίκαντὰν Ξενοκˈράτει Ποσειδάων ὀπάσαιςΔωρίων αὐτῷ στεφάνωμα κόμᾳπέμπεν ἀναδεῖσθαι σελίνων

Βʹ εὐάρματον ἄνδρα γεραίρωνἈκˈραγαντίνων φάος ἐν Κρίσᾳ δrsquo εὐρυσθενὴςεἶδrsquo Ἀπόλλων νιν πόρε τrsquo ἀγˈλαΐανκαὶ τόθι κˈλειναῖς ltτrsquogt Ἐρεχθειδᾶν χαρίτεσσιν ἀραρώςταῖς λιπαραῖς ἐν Ἀθάναις οὐκ ἐμέμφθηῥυσίδιφˈρον χεῖρα πλαξίπποιο φωτός

τὰν Νικόμαχος κατὰ καιρὸννεῖμrsquo ἁπάσαις ἁνίαις

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

148

ὅν τε καὶ κάρυκες ὡ-ρᾶν ἀνέγˈνον σπονδοφόροι ΚρονίδαΖηνὸς Ἀλεῖοι παθόντες πού τι φιλόξενον ἔργον

ἁδυπνόῳ τέ νιν ἀσπάζοντο φωνᾷχρυσέας ἐν γούνασιν πίτˈνοντα Νίκαςγαῖαν ἀνὰ σφετέραντὰν δὴ καλέοισιν Ὀλυμπίου Διόςἄλσος ἵνrsquo ἀθανάτοις Αἰνησιδάμουπαῖδες ἐν τιμαῖς ἔμιχθεν

καὶ γὰρ οὐκ ἀγνῶτες ὑμῖν ἐντὶ δόμοιοὔτε κώμων ὦ Θρασύβουλrsquo ἐρατῶνοὔτε μελικόμπων ἀοιδᾶν

Γʹοὐ γὰρ πάγος οὐδὲ προσάντηςἁ κέλευθος γίνεταιεἴ τις εὐδόξων ἐς ἀν-δρῶν ἄγοι τιμὰς Ἑλικωνιάδωνμακˈρὰ δισκήσαις ἀκοντίσσαιμι τοσοῦθrsquo ὅσον ὀργάνΞεινοκράτης ὑπὲρ ἀνθρώπων γλυκεῖανἔσχεν αἰδοῖος μὲν ἦν ἀστοῖς ὁμιλεῖν

ἱπποτˈροφίας τε νομίζωνἐν Πανελλάνων νόμῳκαὶ θεῶν δαῖτας προσέ-πτυκτο πάσας οὐδέ ποτε ξενίανοὖρος ἐμπνεύσαις ὑπέστειλrsquo ἱστίον ἀμφὶ τράπεζανἀλλrsquo ἐπέρα ποτὶ μὲν Φᾶσιν θερείαιςἐν δὲ χειμῶνι πˈλέων Νείλου πρὸς ἀκτάνή νυν ὅτι φθονεραὶθνατῶν φρένας ἀμφικρέμανται ἐλπίδεςμήτrsquo ἀρετάν ποτε σιγάτω πατρῴανμηδὲ τούσδrsquo ὕμνους ἐπεί τοιοὐκ ἐλινύσοντας αὐτοὺς ἐργασάμανταῦτα Νικάσιππrsquo ἀπόνειμον ὅτανξεῖνον ἐμὸν ἠθαῖον ἔλθῃς

_______________

Notas ao poema

i Filho de Xenoacutecrates de Agrigento Nota-se ser o uacutenico poema de Piacutendaro supeacuterstite endereccedilado a um ser humano na primeira linha Verdenius (1988

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

149

p 119) explica que embora seja uma ode para celebrar uma vitoacuteria haacute nela forte caraacuteter pessoal Para aleacutem poreacutem do sentido pessoal conveacutem talvez destacar a peculiaridade de um epiniacutecio cuja celebraccedilatildeo da vitoacuteria se confi-gura no passado tornando presente a memoacuteria do pai para firmar o futuro como confirmaccedilatildeo da arete familiar que soacute seraacute futuro se configurar o que deve se confirmar na enunciaccedilatildeo em que se apresenta que no entanto sempre eacute futuro quando se celebra a vitoacuteria ndash aqui preteacuterita ndash na proacutepria enunciaccedilatildeo do poema A presenccedila das divindades do mesmo modo molda--se por tal relaccedilatildeo de tempos

ii O texto eacute de difiacutecil traduccedilatildeo porque implica forte interpretaccedilatildeo sobre o po-ema Como nota Verdenius (1988 p 123) Wilamowitz encontra no termo que implica trabalhar por dinheiro o sentido sarcaacutestico de Arquiacuteloco (206 W) para significar prostituta Outra forte conotaccedilatildeo eacute traduzir a Musa por merce-naacuteria implicando uma criacutetica a toda poesia epiniacutecia visto ser esta calcada no pagamento Mas Piacutendaro aqui natildeo seria incluiacutedo cabendo uma criacutetica a Simocircnides ou seja a um tipo especiacutefico de viacutenculo acarretado pelo paga-mento de um serviccedilo

iii Este eacute o sentido primeiro a meu ver mais adequado do que rosto ou apa-recircncia pois Piacutendaro pensa na fachada de um preacutedio Verdenius destaca para confirmaacute-lo a VI Oliacutempica v 3 e a VI Piacutetica v 14

iv Como diz Verdenius tal nome talvez tenha sido escolhido porque Piacutendaro pensa na poesia coral destacando poreacutem que natildeo deve haver uma oposi-ccedilatildeo entre as musas mas sim entre passado e presente (1988 p123)

v Aristodemo que no entanto provavelmente era espartano A razatildeo aqui talvez seja aproximar a sonoridade argivo-argecircnteo

vi O verso 12 implica uma quebra que mostra as dificuldades de Piacutendaro com efeito a conjunccedilatildeo explicativa γάρ eacute lida por Denniston (1996) como se referisse ao que se segue Mas pode como mostra Verdenius implicar uma referecircncia ao que se disse ateacute agora ou seja como se natildeo fosse preciso dizer mais nada

vii Vitoacuteria referida na II Oliacutempica v 50

viii Como nota Verdenius ldquothis plant was sacred to the gods of the underworld and the schol may be right in referring to the fact that the Isthmia were origi-narilly funeral games in honour of Melicertesrdquo (1988 p131)

ix Local nas proximidades de Delfos

x As musas que habitam o monte Heacutelicon como aparece em Hesiacuteodo no iniacutecio da Teogonia

xi Hospitalidade em grego eacute ξενία que em Homero eacute marca maior de civilida-de jaacute que acolher o estranhoestrangeiro separa vg na Odisseia os feaacutecios

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

150

como reencontro civilizador em contraponto agraves paragens em que Odisseu natildeo fora devidamente acolhido pois na esfera selvagem de um Ciclope natildeo cabe a hospitalidade Mesmo sendo um topos fortemente presente em Piacuten-daro aqui a hospitalidade ainda eacute sonoramente destacada pela presenccedila da proacutepria palavra no nome de Ξεινοκράτη Note-se tambeacutem que no reconheci-mento dos arautos de Zeus realccedila-se ser φιλόξενον Nicocircmaco (que tambeacutem destaca no nome a vitoacuteria)

xii Faacutesis e Nilo delimitam fronteiras polar e norte respectivamente do nave-gaacutevel marcando tambeacutem o frioquente que como nota Verdenius sugeram a separaccedilao dos hemisfeacuterios pelas estaccedilotildees do ano Efetiva a imagem a extensatildeo e continuidade da hospitalidade de Xenoacutecrates ldquoThe fame of his hospitality extended to the eastern limits of the known world reaching as far as Phasis the distant river of the Euxine in the summer and as far as the Nile in the winter The Euxine was open to navigation in the summer alone and it was only to Egypt that the Greeks sailed in the winterrdquo (SANDYS 1915 p 453 n 2)

De generalizaccedilotildees e generalidades O poema de Piacutendaro configura-se pelas marcas do que entatildeo lhe efetivava como um modo ou maneira proacutepria delineando em traccedilos gerais o que ainda natildeo eacute especificamente gecircnero em seu sentido forte mas que traccedila configuraccedilotildees que no entanto especificam-no nos topoi e imagens adequados para a ocasiatildeo a que se destina1 Haacute pois como afirma Carey ldquotendecircnciasrdquo que se modelam pela expectativa da audiecircncia a que se desti-na mas que muita vez se modela tambeacutem pela quebra de tais expectaccedilotildees conforme os traccedilos gerais de tal poesia entatildeo pra-ticada na Heacutelade

Para audiecircncias do que se convenciona nomear como periacuteo-do arcaico2 grego de modo geral satildeo muitas as variaacuteveis nas apresentaccedilotildees de poemas3 Mesmo tendo em comum o fato de serem apresentados numa tradiccedilatildeo fortemente oral em perfor-mances haacute enorme diferenccedila se satildeo eles ou recitados ou can-tados Este eacute um ponto bastante controverso para se apresentar 1 ldquohowever as recent scholars have repeatedly emphasised it is unwi-se to reify literary genres to the point of envisaging a set of objective rules ndash specially for the archaic and early classical periods Though the tendency to categorise exists from the earliest period the formulation of an explicit grammar of genres postdates the performance culture of archaic and early classical Greece Equally it is a mistake to view genres as completely homo-genous and distinct The boundaries are not fixed but elastic porous nego-tiable and provisionalrdquo (CAREY 2009 pp 21-22)2 A designaccedilatildeo jaacute por si ruim embora uacutetil conflitua com a utilizada para marcar etapas historicamente distintas Sendo assim o periacuteodo arcaico que vai do seacuteculo VIII ao VI aC natildeo coincide com a liacuterica arcaica coral que embora se inicie no seacuteculo VI estaacute em pleno vigor com Piacutendaro no seacuteculo V3 Este e o paraacutegrafo seguinte seguem de perto as observaccedilotildees em-bora gerais bastante pertinentes para uma apresentaccedilatildeo da questatildeo no ca-piacutetulo inicial de Introducing Greek Lyric de Felix Budelmann do livro por ele editado The Cambridge companion to Greek Lyric (2009 p11-13)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

151

na distacircncia do tempo e ausecircncia de informaccedilotildees mais precisas sobre a parte musical e caracteriacutesticas especiacuteficas das proacuteprias performances Haacute no entanto uma oposiccedilatildeo clara contrapu-nha-se a meacutelica (de melos canto) por ser cantada agrave poesia re-citada fosse esta elegia iambo ou ateacute mesmo o epos da eacutepi-ca Aleacutem da importante separaccedilatildeo dos metros daiacute decorrentes mais regulares na poesia falada implica tal diferenccedila acompa-nhamentos diversos jaacute que a meacutelica o era por instrumentos de corda como a lira enquanto a elegia possivelmente fosse acom-panhada por um muacutesico tocando o aulos Mas tais separaccedilotildees devem tambeacutem ser nuanccediladas pois o proacuteprio Piacutendaro faz refe-recircncias ao uso do aulos em seus poemas (Pind Ol 5 19)

Nas canccedilotildees marcava-se a diferenccedila entre a apresentaccedilatildeo solo (monoacutedica) daquela que era cantada por um coro a liacuterica coral Os limites de tais distinccedilotildees no entanto tambeacutem natildeo satildeo nem um pouco claros Na praacutetica da composiccedilatildeo aleacutem de um mesmo poeta apresentar canccedilotildees nas duas modalidades (Piacuten-daro vg com os ditirambos corais ou os curtos enkomia mo-noacutedicos) podem tambeacutem ter ocorrido numa mesma apresen-taccedilatildeo formas mistas visto que uma obra poderia ser em seu iniacutecio monoacutedica e depois pudesse passar a ser um canto coral

A audiecircncia por sua vez podia se reunir para distintas oca-siotildees como casamentos funerais simpoacutesios ou cerimocircnias poliacutetico-religiosas da polis Aleacutem disso cabe tambeacutem destacar a especificidade de haver ou natildeo um contratante com as dife-rentes finalidades disso decorrentes como aqui se veraacute Tais pontos gerais implicam as possiacuteveis diferenccedilas de gecircneros que se possam distinguir na pragmaacutetica e composiccedilatildeo dos poemas desse periacuteodo

Haacute assim um aspecto peculiar agrave poesia dita arcaica que por maiores nuanccedilas que possam implicar eacute a ela peculiar e par-ticularmente a modela num gecircnero que natildeo se compunha em vista de regraacuterio escrito e programaacutetico a oralidade se destaca pois para aleacutem dos limites do uso da escrita importam os efei-tos mimeacuteticos alcanccedilados pela performance a que a canccedilatildeo se destina Mesmo que o autor se servisse da escrita para a com-posiccedilatildeo de suas obras com as possiacuteveis implicaccedilotildees de rees-crituras a partir da reaccedilatildeo preacutevia de uma performance anterior importava sobretudo o modo de apresentaccedilatildeo que se modela-va por canto ou reacutecita para a ocasiatildeo a que se destinava Tal poesia como lembra Gentili (1990 p3) tinha assim evidente funccedilatildeo pragmaacutetica conferindo-se a ela seu valor a partir da fun-ccedilatildeo proacutepria que cumpria na polis

Longe pois de um modelo subjetivista como emancipaccedilatildeo de individualidades tal pragmatismo implica as caracteriacutesticas comuns de tal poesia a se moldar particular e diversamente conforme a especificidade implicada na intricada relaccedilatildeo poliacuteti-ca presente entre vaacuterios elementos o compositor a audiecircncia para a qual ele compotildee4 a circunstacircncia para a qual se destina 4 Para uma avaliaccedilatildeo criteriosa e perspicaz sobre as interpretaccedilotildees de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

152

sua obra a ser apresentada A ocasiatildeo pois configura a espe-cificidade que se celebra a partir de um kairos (momento opor-tuno) que delineia o que eacute ou natildeo decorosamente apropriado que deve orientar o compositor para que sua trama configure adequadamente a recepccedilatildeo da audiecircncia

Natildeo havendo teorizaccedilatildeo sobre sua funccedilatildeo nem diretrizes de-marcando uma prescritiva ou seja sem nenhum traccedilo do que posteriormente se nomearaacute uma poeacutetica verifica-se no entan-to nas proacuteprias obras a perspicaacutecia do compositor sobre o que deve modelar sua proacutepria praacutetica Piacutendaro especifica no frag-mento de um treno a diversidade de possibilidades a se molda-rem diferentemente em funccedilatildeo da conformidade com a ocasiatildeo a que se destina o canto Destaca-se aqui especificamente na maior parte do que se menciona a divindade que delineia o tipo de canto pelo qual ela se direciona

Ἔντι μὲν χρυσαλακάτου τεκέων Λατοῦς ἀοιδαίὥ[ρ]ιαι παιάνιδες ἐντὶ [δὲ καί]θάλλοντος ἐκ κισσοῦ στεφάνων ἐκ Διο[νύσου[ μ]αιόμεναι τὸ δὲ κοι [] αντρεῖς [desunt ca 15ll] σώματ ἀποφθιμένωνἁ μὲν ἀχέταν Λίνον αἴλινον ὕμνειἁ δ Ὑμέναιον ltὃνgt ἐν γάμοισι χροϊζόμενον[Μοῖρα] σύμπρωτον λάβενἐσχάτοις ὕμνοισιν ἁ δ Ἰάλεμον ὠμοβόλῳνούσῳ ὅτι πεδαθέντα σθένος

Haacute peatildes canccedilotildees na oportuna hora dos nascidosde Leto de aacuteurea roca haacute tambeacutem aquelas a partirde Dioniso com guirlandas de vicejante hera[ ] desejosa trecircs [canccedilotildees] [faltando cerca de 15 versos] dos corpos mor-

tosuma cantou um hino de lamento fuacutenebre a Linooutra (cantou) o Himeneu a quem tendo sua pele tocada nas

bodaspela primeira vez a Moira arrebatoucom uacuteltimos hinos e outra (canccedilatildeo) de Ialemo cuja forccedilafoi agrilhoada por doenccedila devoradora de carne

Em que pesem as lacunas dos versos faltantes em tal frag-mento evidencia-se que o compositor sabe como seus poemas--canccedilotildees devem moldar-se diversamente conforme a ocasiatildeo podendo ser entoado pois para diversa celebraccedilatildeo na diferen-ciaccedilatildeo sempre possiacutevel de ser ou natildeo o poema destinado para determinada divindade

Importa por outro lado de maneira mais geral marcar tam-beacutem a diferenccedila de audiecircncias no tocante agrave extensatildeo de seu Piacutendaro a partir do seacuteculo XIX veja-se o artigo de Hugh Lloyd-Jones (1973 pp 109-137)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

153

caraacuteter puacuteblico Havia assim aquelas que se caracterizavam por afinidades seja de natureza poliacutetica ou de grupo mas sempre restritivas no tocante ao ciacuterculo de ouvintes outra poreacutem era a audiecircncia proacutepria da liacuterica coral Aqui a performance era em geral extensivamente mais puacuteblica muitas vezes com funccedilatildeo religiosa e celebrante de eventos

O puacuteblico proacuteprio da liacuterica coral eacute decorrente de uma seacuterie de mudanccedilas especiacuteficas ocorridas na polis a partir do seacuteculo VI A mudanccedila de audiecircncia se caracteriza por implicar uma nova relaccedilatildeo entre um patronato contratante e o poeta contratado com a decorrente consequecircncia tanto para o canto quanto para a performance que daiacute deriva

Era baseada na relaccedilatildeo direta entre patratildeo e poeta que viu seu periacuteodo de maior desenvolvimento no final do seacuteculo VI e comeccedilo do V ndash resultado do advento de uma economia monetaacuteria baseada no comeacutercio A nova riqueza favoreceu as artes em geral tanto a pintura e escultura quanto a poesia embora natildeo em razatildeo delas mesmas mas sim de um desejo por prestiacutegio e poder Para o nobre rico o aristocrata urbano e acima de todos para o tirano a obra de um artista era um meio de aumentar seu status e consolidar sua posiccedilatildeo poliacutetica O poeta se torna assim um profissional intelectual que trabalha para um patratildeo e recebe de volta algum pre-sente consideraacutevel ndash um honoraacuterio no verdadeiro sentido da palavra capaz inclusive se necessaacuterio de ser aumentado (GENTILI 1990 p115)

Gentili destaca as consequecircncias de tal relaccedilatildeo De matiz aris-tocraacutetico a funccedilatildeo celebratoacuteria da liacuterica coral seja para exalta-ccedilatildeo do divino seja do humano se serve de um repertoacuterio amplo das narrativas miacuteticas sempre com o cuidado de escolher na pluralidade de mitos as legendas e versotildees delas a que melhor conviesse para a apresentaccedilatildeo que celebrava o contratante

[hellip] escolher um mito adequado agrave ocasiatildeo significa conectar a pessoa a ser louvada com uma histoacuteria tradicional de tal modo que ela pudesse ser glorificada por meio dos feitos de um exemplar miacutetico E a audiecircncia tinha de ver a conexatildeo ndash de outro modo a significaccedilatildeo efetiva e o valor paradigmaacutetico do mito estariam perdidos (GENTILI 1990 p116)

Certos modelos satildeo assim seguidos na liacuterica coral tanto no que tange agrave celebraccedilatildeo humana quanto agrave divina No que diz respeito a esta especificamente as canccedilotildees dedicadas aos deuses dirigem-se a eles como oferendas de uma cultura calca-da na relaccedilatildeo de devoccedilatildeo com a reciacuteproca expectativa de uma recompensa As diferenccedilas apontadas acima no gecircnero que se especifica pelo culto preciso de cada divindade natildeo escondem a caracteriacutestica comum a todos eles

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

154

In general one is more stuck by the shared features than by the divergences between these types More substantial songs of worship contained a mythic narrative and it is normal for the myth to be connected with the god [hellip] Poetry compo-sed for a specific occasion incluiding worship usually has a pronounced deitic element that is it draws attention to its im-mediate context andor function Cult song also identifies its deity early often (though not inevitably) in the form of invoca-tion and gives praise A tripartite structure is normal (though not inevitably) with a central mythic section flanked by an in-troductory section dealing with the immediate context and a fi-nale which returns to the (performers) present It is commmon but not inevitable for a prayer to be made (CAREY 2009 pp 27-8)

Tal estrutura presente nos poemas dedicados aos deuses tam-beacutem se encontra nas canccedilotildees dedicadas aos humanos sejam trenos epiniacutecios himeneus ou encocircmios Como ressalta Carey ldquothough the performative occasion affects the content of these compositions it has little significance for the structure which al-most invariably follows the tripartite model we find in the cult songs (2009 p32) Haacute assim uma base sobre a qual se movem tais canccedilotildees modelando-se ora e vez diversamente em con-sonacircncia com as expectativas esperadas pela audiecircncia mas surpreendentemente remodeladas pelo compositor para refor-ccedilar pela ausecircncia o que no canto natildeo se apresenta

Do Epiniacutecio Dado que como se viu os gecircneros natildeo sejam formas fixas e

sempre existentes sua molda ocorre em consonacircncia com as peculiaridades que a fazem emergir e tambeacutem de certo modo desaparecer Em se tratando especificamente da liacuterica coral tal eacute o caso da consagraccedilatildeo que compositores dos seacuteculos VI e V perpetuaram para os vencedores dos jogos pan-helecircnicos no devir de um gecircnero cujo brilho estaacute atrelado ao que nele se celebra com glorificaccedilatildeo que como se viu dirige-se a homens e os imortaliza justamente porque soacute ocorre por completo a va-loraccedilatildeo humana pela presenccedila divina visto o proacuteprio poema o poeta e o vencedor partilharem de uma aura religiosa que os distingue

Genres come into being and pass away Thus the victory ode has its origins in the sudden explosion of interest in athle-tics in the sixth century BCE and is almost inconceivable be-fore that [hellip] Secular forms such as the victory ode inevitably have a religious content in a society where sacred and secular

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

155

always to some degree coexistrdquo (CAREY 2009 p 22)

Piacutendaro e o epiniacutecio satildeo pois paradigmas de uma tradiccedilatildeo fir-mada na valoraccedilatildeo de consagraccedilotildees pois o modelar do gecircnero se faz em vista da celebraccedilatildeo imortalizante da divina poreacutem hu-mana vitoacuteria nos jogos em que homens ndash com ou sem animais ndash competiam para consagrar uma divindade Zeus (Jogos Oliacutem-picos e as Nemeias) Apolo (Jogos Piacuteticos) e Poseiacutedon (Jogos Iacutestmicos) satildeo as principais divindades cultuadas e celebradas pelo poeta divinamente humano que consagra o vencedor tam-beacutem divinizado humanamente

A celebraccedilatildeo do vencedor via de regra ocorria em sua ci-dade nativa na de seus ancestrais ou mesmo no local da proacute-pria competiccedilatildeo Ser num ou noutro local acabava por implicar modos diversos de apresentaccedilatildeo do canto-poema pois este se modelava em consonacircncia com a expectativa do puacuteblico que poderia ali estar ou para consagrar seu governante ou para os familiares quando a performance se fazia na terra de algum parente ou mesmo como salienta Gentili quando inesperada-mente se celebra a vitoacuteria no proacuteprio local em que ela ocorreu Em tal caso como na VII Piacutetica uma parte importante do poema como o mito central pode ser omitida para marcar topicamente a improvisaccedilatildeo da qual resulta o poema

Haacute como se viu no toacutepico anterior uma estrutura tripartite baacute-sica a construir um epiniacutecio5 Nela omissotildees ou mudanccedilas satildeo sempre possiacuteveis e mesmo esperadas sem contudo que se percam todos os elementos para tal fundaccedilatildeo

A estrutura interna do epiniacutecio ndash para considerar apenas este gecircnero particular ndash era tambeacutem determinada em certo grau pela necessidade cerimonial Um epiniacutecio sem certos elementos eacute inconcebiacutevel louvar o vencedor referecircncia ndash mais ou menos expliacutecita ndash ao evento atleacutetico indicaccedilatildeo das vitoacuterias anteriores do atleta e realizaccedilotildees notaacuteveis por parte de sua famiacutelia e finalmente maacuteximas gnocircmicas que ajuda-vam a criar um elo entre a narrativa miacutetica e a realidade pre-sente O que natildeo se determina eacute como tal ligaccedilatildeo deveria ser realizada Circunstacircncias particulares na proacutepria vida do vencedor ou algo em sua famiacutelia poderiam oferecer uma via direta para o passado heroico especialmente quando o mito

5 De modo geral tal estrutura se articula pela apresentaccedilatildeo inicial do vencedor e de sua vitoacuteria parte-se num segundo momento para uma narrativa miacutetica apresentada como paradigma do que ora se celebra o que se evidencia pela maacutexima gnocircmica retorna-se num terceiro momento ao ponto inicial da celebraccedilatildeo implicando agora uma valoraccedilatildeo sobre a vitoacuteria presente numa perspectiva para o futuro Joseacute Cavalcante de Souza assim a delineia ldquopor articulaccedilatildeo temaacutetica entenda-se o agenciamento de estrutu-ras toacutepicas que historicamente constituiacuteram o gecircnero epiniacutecio uma apresen-taccedilatildeo em certa medida coloquial do vencedor e de sua vitoacuteria geralmente no proecircmio mas podendo reaparecer em pontos estrateacutegicos da sequecircncia uma intervenccedilatildeo miacutetica fundamental ou sob a forma de uma ou mais nar-rativas ou no limite de breves esboccedilos alusotildees ou imagens que avizinham

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

156

era relacionado com seus proacuteprios ancestrais[] (GENTILI 1990 p 117)

Havia pois uma grande variedade de mecanismos pelos quais o poeta poderia transitar do evento motivador da ode a vitoacuteria especificamente tratada para a variegada trama de ancestrais e relatos miacuteticos que em menor ou maior grau se relacionas-sem com a consagraccedilatildeo do vencedor O mito e o presente da enunciaccedilatildeo formam tessitura complexa e variada pelos quais o mito exemplarmente se torna paradigma do que canta o poeta Para justificar tais liames o gnocircmico adentra para avaliar de ma-neira generalizante a particularidade dos eventos e narrativas apresentadas Aforismas ou afirmaccedilotildees pessoais apresentam o propoacutesito do mito e especificam seu papel no poema dando margem assim dentro de uma poesia bastante alicerccedilada em bases convencionais agrave presenccedila de uma enunciaccedilatildeo do poeta mais incisiva

Haacute assim em Piacutendaro forte presenccedila estruturante de um coacute-digo firmado e confirmado por convenccedilotildees Estas no entanto se abrem ao ouvinte-leitor numa mescla de imagens e recursos verbais que natildeo soacute dificultam propositalmente a decodificaccedilatildeo da mensagem como tambeacutem mostram que o vigor forccedila e brilho do vencedor divinamente coroado por sua vitoacuteria soacute se eterniza pela presenccedila tambeacutem vigorosa brilhante e luminosa que o po-eta mimeticamente alcanccedila com labor e inspiraccedilatildeo na vitoriosa ode que presentifica em palavras a jaacute passada vitoacuteria para ser proclamada no futuro

Do poema O poema aqui traduzido molda-se em conformidade com suas

caracteriacutesticas performaacuteticas proacuteprias de sua apresentaccedilatildeo liacute-rica de um coro que possivelmente cantasse e danccedilasse para apresentaacute-lo Para tanto compotildee-se em trecircs grupos triaacutedicos compostos cada um por estrofe antiacutestrofe e epodo

Os dois primeiros satildeo termos orqueacutestricos de danccedila e sig-nificam respectivamente volta e contravolta Na antiga liacuterica grega os versos da estrofe e da antiacutestrofe tinham exatamente o mesmo ritmo prosoacutedico baseado na duraccedilatildeo longa ou breve das siacutelabas e ritmicamente formavam um par a que sucedia o epodo com ritmo diferente Epodo deriva-se de uma forma adjetiva que corresponde a uma forma substantiva ldquoepodeacuterdquo literalmente sobrecanto isto eacute o canto maacutegico atuando medi-cinalmente sobre o corpo (SOUZA 1999 p 194)

o mito da apresentaccedilatildeo e por assim dizer o incorporam no desenrolar da solenidade e alternando com o mito um jogo de ditos sentenciosos gnocircmai bem formulados no momento certo e bem apreciados no a propoacutesito do que comentam e ensinamrdquo (SOUZA 1999 p 195)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

157

Se do ponto de vista meacutetrico o poema segue um padratildeo ade-quado para a liacuterica coral o mesmo no entanto natildeo se pode dizer da presenccedila tiacutepica dos elementos estruturadores do epiniacutecio com efeito eacute o uacutenico poema de Piacutendaro a apresentar um mortal em seu verso inicial Ainda mais curiosamente a primeira estrofe do primeiro grupo triaacutedico natildeo determina e especifica um vence-dor mas ao contraacuterio descreve um horizonte passado estranho agrave liacuterica coral

Os versos iniciais sendo assim celebram uma atmosfera eroacute-tica proacutepria da liacuterica monoacutedica na qual o canto eacute flecha a atingir jovens garotos pelos encantos sob as graccedilas de Afrodite como fariam os poemas de Alceu e Anacreonte vg Contrapondo-se a tal canto regido pelas musas na imediatez amorosa a antiacutes-trofe delineia uma musa que trabalha por um salaacuterio Laboriosa ela deve firmar sua construccedilatildeo em prata natildeo na imediatez antes propagada mas nos novos tempos celebrar sua voz suave e meloso acento pois conforme o epodo a seguir sem dinheiro um homem natildeo possui nem amigos nem posses

A inesperada apresentaccedilatildeo do poema fez que se o visse natildeo como epiniacutecio mas como uma espeacutecie de epiacutestola puacuteblica em que Piacutendaro declara a Trasiacutebulo seja seu amor por ele seja uma espeacutecie de consolaccedilatildeo poliacutetica ao filho e sobrinho de tirano cuja polis ora democraacutetica o obrigaria a vender poemas seja uma cobranccedila por parte do proacuteprio Piacutendaro de uma diacutevida natildeo paga por Trasiacutebulo a ele6

Lecirc-se tambeacutem o poema como denuacutencia da atividade da liacuterica coral de Simocircnides aacutevida por dinheiro e pronta a se prostituir com maacutescara facial de prata por quem pagar melhor preccedilo Se natildeo meretriz a musa eacute mercenaacuteria e labora por avidez do ga-nho7 Decorreria daiacute a criacutetica de Piacutendaro ao valor do homem mensurado em dinheiro conforme propagado no poema pelo dito argivo

Tais leituras em que pese o valor de seus autores incorrem numa questatildeo complexa para a relaccedilatildeo do poema com sua proacute-pria finalidade por que Piacutendaro desqualifica sua proacutepria ativida-de Responder a tal questatildeo implica deixar de lado as leituras que desqualificam a musa como mercenaacuteria e aacutevida lendo sem a desqualificar a atividade laboriosa cujo valor e preccedilo se justi-ficam pela atividade que propaga para a eternidade seu proacuteprio valor bem como o daqueles que por ela se eternizam

Lido assim o poema justifica seu abrupto assiacutendeto que se-para a introduccedilatildeo da passagem para a glorificaccedilatildeo das vitoacuterias do pai de Trasiacutebulo ldquolsquoDinheiro dinheiro eis o homemrsquo dizia ele desamparado conjuntamente de posses e amigos Porque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignorada hiacutepica vitoacuteria iacutestmi-cardquo (vv 15-18) O dizer argivo verdade reafirmada eacute compre-

6 Para um mapeamento da questatildeo leia-se Woodbury (1968 pp 527-542)7 Cf Simpson (1969 pp 437-473)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

158

endido por Trasiacutebulo que se liga ao poeta pela xenia que natildeo descura nem da poesia nem do poeta que imortaliza os feitos do pai

A segunda triacuteade entatildeo confirma ser o poema uma canccedilatildeo de epiniacutecio rememorando topicamente natildeo soacute as vitoacuterias de Xenoacutecrates nos jogos Iacutestmicos e Piacuteticos bem como o valor do auriga que comandava seu carro em Atenas terra dos filhos do miacutetico rei Erecteu Do mesmo auriga se fala ao se descrever a vitoacuteria nos Jogos Oliacutempicos quando ele venceu como condutor do carro de Teratildeo irmatildeo de Xenoacutecrates ambos filhos de Ene-sidemo Culmina assim esta triacuteade na valoraccedilatildeo da famiacutelia de Trasiacutebulo o que se confirma com o cuidado no trato das Musas que tornam sagradas suas casas

A triacuteade final celebra e consagra topicamente a xenia que ge-nerosamente acolhe todos que a ela recorrem Natildeo mais flecha eroacutetica o poema eacute agora atleacutetica lanccedila que se distancia para no porvir alcanccedilar a incomensuraacutevel distacircncia da hospitalidade da famiacutelia que aqui se consagra Vencedores dos jogos circunda-dos de amizades e posses a famiacutelia de Trasiacutebulo encontra nele a confirmaccedilatildeo de seus valores pela riqueza e pela generosida-de Longe de desqualificar os bens que eles possuem o poema confirma o alto valor do patronato que natildeo guarda nem esconde o que deve ser amplamente partilhado e divulgado Vale assim mesmo mais longamente reafirmar as palavras de Woodbury

The public nature of excellence and the dependence upon fame explain the Muses commendation of the proverbial ma-xim of Aristodemus For it was spoken as Pindar says expli-citly when he was deprived at one stroke of possessions and friends In the Pindaric world there can be no fame without the approval of generous and approving friends and wealth is in turn necessary to entertain them in comfort and distinction whether they form a court a clan or a coterie The Muses ce-lebration of excellence therefore testifies to the openhanded and conspicuous use of wealth It now becomes intelligible why the poet goes on to say that Thrasybulus is wise and well--acquainted with his theme which is the victory of Xenocrates with the chariot at the Isthmus He is surely not performing any of the incongruous gestures that have been attributed to him such as shaking his head silently with distaste for the avarice of a rival poet winking to suggest that payment of his fee is either overdue or unnecessary ornodding in sympathy with the predicament of a poet who must earn his living He is congratulating his patron on the use of his wealth which is made evident by the performance of his ode and its reception by the company of friends The point is made even clearer a few lines later when in a second apostrophe to Thrasybulus he says that his house is well-acquainted with the songs of celebrating friends The occasion itself is proof that Thrasybu-lus knows very well the importance of the victory and of poe-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

159

try Pindar displays a characteristically Greek frankness in his praise of wealth That may be surprising to us but is without embarrassment for him because of his secure approval of the purposes for which that wealth was used It is even more surprising that he found it appropriate to enrol his Muse in the service of that same power That he did so is convincing proof if any proof is needed that for him poetry was deeply implica-ted in the values and the attitudes of the society for which he wrote (WOODBURY 1968 p 542)

A II Iacutestmica assim surpreende expectativas da audiecircncia pela ausecircncia do mito central do vencedor no iniacutecio do poema com a divindade deus ou lugar que mostra sua ligaccedilatildeo com o divi-no Mas confirma seu valor como epiniacutecio pela celebraccedilatildeo de vitoacuterias na parte central do poema que luminosamente eacute exem-plaridade para Trasiacutebulo filho a quem se destina a ode que eacute lanccedila a arremessaacute-lo juntamente com seus ancestrais para o futuro Nesse mesmo sentido consolida-se pelo largo uso de topoi que sedimentam os valores que o vencedor e seus familia-res devem honrar e que cabe ao poeta propagar O epodo final cumpre na inversatildeo a funccedilatildeo decircitica via de regra apresentada na introduccedilatildeo firmando e confirmando pelo movimento de um sugestivo Nicasipo cujo nome associa vitoacuteria a cavalos o cui-dado com a grandiosidade invejada na agoniacutestica situaccedilatildeo de disputa que canto e vitoacuterias atleacuteticas ocasionam A grandeza e generosidade de Trasiacutebulo natildeo podem ficar nem paradas nem silentes O patratildeo contratante encontra no poeta contratado natildeo uma situaccedilatildeo mercenaacuteria de partes mobilizadas pela ganacircncia mas uma espeacutecie de dom e contradom em que o dinheiro natildeo afasta amigos mas sim a ausecircncia dele

O final da ode reinscreve em seu final no cuidado admoes-tante do poeta por meio de seu intermediaacuterio a palavra ἠθαῖον aqui traduzida como leal mas para Verdenius valorada como caro a construccedilatildeo pindaacuterica proacutepria da poesia coral por ele edi-ficada

A van Groningen La composition litteacuteraire archaiumlque gre-cque (Amsterdan 1958 p 72) rightly observes that in choral poetry on constate une tendance toute naturelle agrave donner au dernier eacuteleacutement un accent particulier dintensiteacute Au deacutesir de bacirctir au deacutebut le splendide fronton correspond celui de termi-ner par une phrase agrave grand effet sentence proverbe expres-sion remarquable priegravere note personelle In the present case there is a close connection between the final note personelle and the opening of the poem by emphasizing the intimacy of their friendship Pindar strenghtens his appeal to the generosi-ty of Trasybulus [hellip] (VERDENIUS 1988 p 147)

Piacutendaro assim alicerccedila seu canto como epiniacutecio pois embora consagradora seja a vitoacuteria do pai e tio de Trasiacutebulo no passado seus feitos ainda perduram vencedores na solidez dos valores

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

160

por eles firmados e presentes no filho cuja generosa amizade sedimenta para o futuro a continuidade dos antepassados e do compositor que os canta em seu canto

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

161

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

BUDELMANN F ldquoIntroducing Greek Lyricrdquo in _______ (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cambridge Cambri-dge University Press 2009

CAREY C ldquoGenre occasion and performancerdquo in BUDEL-MANN (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cam-bridge Cambridge University Press 2009

DENNISTON J D The Greek Particles 2ordf ediccedilatildeo Indiana-polis Hackett Publishing Company 1996

COLIN F Pindare Traduction Complegravete Olympiques Pythi-ques Neacutemeacuteennes Isthmiques Fragments Strasbourg Silber-mann 1841

GENTILI B Poetry and Its Public in Ancient Greece ndash From Homer to the Fifth Century Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo Thomas Cole Baltimore The John Hopkins University Press 1990

LLOYD-JONES H ldquoModern Interpretation of Pindar The Se-cond Pythian and Seventh Nemean Odesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 93 (1973) pp 109-137

MARCHI M A Odi di Pindaro Milatildeo Presso Luigi di Giaco-mo Pirola 1835

NISETICH F J ldquoConvention and Occasion in Isthmian 2rdquo in Classical Antiquity Vol 10 (1977) pp 133-156

PRIVITERA A Pindaro Le Istmiche 5ordf ediccedilatildeo Roma Fon-dazione Lorenzo Valla 2009

ROMAGNOLI E Pindaro Le Odi e i frammenti Bologna Ni-nola Zanichelli Editore 1927 Disponiacutevel em itwikisourceorgwikiLe_Odi_e_i_frammenti_IOde_Istmica_II (uacuteltimo acesso 22112017)

SANDYS J The Odes of Pindar Londres The Macmillan co 1915

SIMPSON M ldquoThe chariot and the Bow as Metaphors for Po-etry in Pindarrsquos Odesrdquo in Transactions and Proceedings of the American Philological Association Vol 100 (1969) pp 437-473

SOMMER E Pythiques et Isthmiques Paris Hachette Eacutedi-tion 1847

SOUZA J C ldquoPiacutendaro Piacutetica III A Hiecircronrdquo in Revisa USP Satildeo Paulo nordm 43 setnov 1999 pp 188-201

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

162

SVARLIEN D A Pindar Odes 1990 Disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101623Abook3DI3Apoem3D2 (Uacuteltimo acesso 22112017)

VERDENIUS W J Commentaries on Pindar Olympian Odes 1 10 11 Nemean 11 Isthmian 2 Vol 2 Bibliotheca Classica Batava Mnemosyne Supplementum Brill 1988

WOODBURY L ldquoPindar and the Mercenary Muse Isthm 2 1-13rdquo in Transactions and Proceedings of the American Philolo-gical Association Vol 99 (1968) pp 527-542

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudThe place of the Phantasm in Philosophy ndash Agamben as a Freudrsquos reader

Palavras-chave acedia ndash melancolia ndash phantasma ndash eros ndash desejo - DuumlrerKeywords aecidia - melancholy ndash phantasmndash Eros ndash desire ndash Duumlrer

RESUMO No seacuteculo passado (1976) Giorgio Agamben escre-veu dois ensaios que expotildeem as ideias de fantasia e melancolia destacadas no artigo de Freud ldquoLuto e Melancoliardquo Este trabal-ho mostra que a interpretaccedilatildeo que Agamben faz da concepccedilatildeo psicanaliacutetica de melancolia resulta da perspectiva por ele cons-truiacuteda com base na relaccedilatildeo entre esta e as noccedilotildees correlatas de fantasia (phantasma ou fantasia) e eros O assunto eacute de interes-se na medida em que possibilita uma compreensatildeo a respeito de como a visatildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo Nossa leitura assinala que algo do desenvolvi-mento daqueles ensaios permanece na obra recente do autor

ABSTRACT In the last century (1976) Giorgio Agamben wrote two essays that expose the ideas of phantasy and melancholy in Freudrsquos article ldquoTrauer und Melancholierdquo (1917) This paper points out that the authorrsquos interpretation of the psychoanalyti-cal conception of melancholy depends upon the perspective constructed by him around the relation between this and the correlated notions of fantasy (phantasm or fantasia) and eros The theme is of interest insofar as it also provides an explana-tion about how Agambenrsquos view of critical philosophy and poetic philosophy perform an appropriation of contemporary psychoa-nalytical thinking Our reading hints that there is something in the developing of those essays that remains in the authorrsquos recent work

No seacuteculo passadofoi publicada a obra Estacircncias ndash a palavra e o fantasma na cultura ocidental (1976) conjunto de ensaios de Giorgio Agamben em que encontramos leituras suas de Freud Destaco as de ldquoLuto e Melancoliardquo nos capiacutetulos quarto e quinto da primeira parte denominada rdquoOs Fantasmas de Erosrdquo Nos anteriores encontramos primeiro sua pesquisa referente agrave concepccedilatildeo de aceacutedia sobretudo aquela adotada pe-los padres da Igreja na Idade Meacutedia para os quais haveria um mal da alma designado por nomes como acedia tristitia tae-dium vitae desidia

Camila Salles Gonccedilalves

Psicanalista membro do Departamento de Psicanaacutelise do Instituto Se-des Sapientiae Doutora em Filosofia ndash USP

camila_sallesuolcombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

164

Descriccedilotildees estendem diante de noacutes o panorama desenhado por uma praga que se propagava tida por mui-tos como pior do que a peste Tambeacutem chamada democircnio mediterracircneo esta se apoderava de membros de confrarias em conventos ou abadias e se caracterizaria por induzi-los ao desacircnimo e a uma crescente indiferenccedila em relaccedilatildeo aos estu-dos ao conhecimento e ao conviacutevio com os pares culminando na vontade de se afastar de todos

Apenas este democircnio comeccedila a deixar obcecada a mente de algum desventurado insinua-se em seu interior um horror do lugar em que se encontra um fastio da proacutepria cela e um asco pelos irmatildeos que vivem com ele que lhe parecem agora negligentes e grosseiros (AGAMBEN 2006 p25)

Do ldquocortejo infernal das filiae acediaerdquo (AGAMBEN 2006 P27) que nos eacute apresentado recorto

o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos poderia curar e finalmente evagatio mentis a fuga do acircnimo em relaccedilatildeo a si mesmo e o inquieto vagar de fantasia em fantasia1 (AGAMBEN 2006 p27)

Aos poucos a copiosa citaccedilatildeo de paraacutegrafos de vaacuterios tratados permite-nos acompanhar o modo pelo qual ao longo das definiccedilotildees descritivas a aceacutedia vai mostrando sua quase coincidecircncia com a melancolia e ambas satildeo aproximadas do temperamento saturnino que corresponde ao elemento terra sombrio avesso a qualquer entusiasmo Agamben natildeo deixa de percorrer tambeacutem os diagnoacutesticos da medicina medieval a permanecircncia nestes da classificaccedilatildeo dos humores e as teorias sobre a bile negra cuja nomeaccedilatildeo jaacute fora mantida por Aristoacuteteles Deparamo-nos com a fenomeno-logia do indiviacuteduo atrabiliaacuterio saturnino e tambeacutem aos poucos com a tendecircncia ao distanciamento por parte deste melancoacuteli-co daquilo e daqueles que se encontram agrave sua volta Na sequecircnciacontudoeacute-nos revelado ter havido um ou-tro lado uma perspectiva a partir da qual o humor melancoacutelico tenderia ao extremo oposto ao daquele caracterizado pela maacute sauacutede do corpo e por sinistras tendecircncias a sonhos sombrios agrave demecircncia etc (AGAMBEN 2016 p38) Antes de o apontar-mos cumpre ainda destacar que anterior agravequela associaccedilatildeo feita pela astrologia com Saturno teria havido uma e se man-tido com a figuraccedilatildeo de um deus com o mesmo nome o deus ldquocanibal e castradordquo(AGAMBEN 2006 p41) Apesar disto teria

1 Em nota de rodapeacute (nota 6) Agamben traz mais informaccedilotildees Trans-crevo apenas as primeiras linhas ldquoA incapacidade de controlar o incessante discurso (a co-gitatio) dos fantasmas interiores estaacute entre os traccedilos essen-ciais da caracterizaccedilatildeo patriacutestica da aceacutediardquo (AGAMBEN 2006 p27)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

165

ocorrido paralelamente uma reabilitaccedilatildeo da melancolia que ldquoia a par com um influxo de Saturno que a tradiccedilatildeo astroloacutegica associava com o temperamento melancoacutelico como o mais ma-ligno dos planetasrdquo (AGAMBEN 2006 p40)

Agamben apoia em seu farto material a afirmaccedilatildeo segun-do a qualldquouma antiga tradiccedilatildeo natildeo obstante associava o mais calami-toso dos humores com o exerciacutecio da poesia da filosofia e das artesrdquo (AGAMBEN 2006 p38)

Ele prossegue respondendo agravequeles que indagariam porque tal disposiccedilatildeo encontrar-se-ia justamente em indiviacuteduos sujeitos a sofrer segundo os antigos os efeitos moacuterbidos da bile negra Responde mencionando uma lista de melancoacutelicos citada por Aristoacuteteles que seria demasiado extensa mas que teria acompanhado o ponto de partida de um processo dialeacutetico Na concepccedilatildeo de Agamben trata-se de um processo da histoacuteria no qual o mais negativo no sentido de se opor agrave atividade de modo paradoxal eacute contraposto agrave afirmaccedilatildeo do aspecto criativo da reflexatildeo e da arte Assim no ponto de partida compreendido pela lista aristoteacutelica ter-se-ia iniciado um movimento no qual ldquoa doutrina do gecircnio enlaccedila-se indissoluvelmente com a do humor melancoacutelico na fascinaccedilatildeo de um complexo simboacutelico cujo em-blema plasmou-se ambiguamente no anjo alado da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p39) Agora eacute preciso salientar que o ensaio que estamos acompanhando eacute escrito em um estilo associativo a que preci-samos nos habituar A referecircncia a uma passagem de Aristoacutete-les eacute na mesma frase emendada com uma menccedilatildeo agrave famosa gravura de Duumlrer cujas interpretaccedilotildees por parte de autores que tambeacutem vatildeo ser citados seratildeo discutidas na sequecircncia A lista atribuiacuteda a Aristoacuteteles eacute acompanhada por exem-plos de tipos melancoacutelicos ldquohaacute alguns que se tornam torpes e estranhosrdquo outros ldquoque se tornam maniacuteacos e alegresrdquo (AGAM-BEN 2006 p39) e outros que satildeo de determinada maneira natildeo por morbidez mas por um temperamento natural Haacute o exemplo de um poeta de Siracusa que soacute era bom poeta quan-do estava fora de si e de outros indiviacuteduos que se destacavam alguns nas artes outros nas letras outros na vida puacuteblica Deixo de reproduzir as consideraccedilotildees a respeito de quantidade circu-laccedilatildeo grau de aquecimento local de depoacutesito da bile etc que diferenciariam os melancoacutelicos entre si O que pretendo apontar aqui eacute o modo pelo qual vatildeo se exemplificando as mudanccedilas de sentido da melancolia numa dialeacutetica peculiar vinda agrave tona por meio de uma arqueologia do saber praticada por Agamben que natildeo deixa de evocar (embora sem referecircncia expliacutecita) a pesqui-sa realizada por Walter Benjamin que encontramos em Origem do drama traacutegico alematildeo Esta obra conteacutem um exame ainda

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

166

mais minucioso da melancolia e em grande parte cita primeiro os mesmos autores Dentre estudos sobre alegorias que evocam a melancolia no campo das artes plaacutesticas aqueles dedicados agrave imagem cria-da por Duumlrer tem papel fundamental No ensaio de Agamben este eacute retomado contra o lugar ldquoescassordquo que Panofsky e Saxl2 autores de interpretaccedilatildeo da gravura3ldquoreservaram para a litera-tura patriacutestica sobre o lsquodemocircnio meridianorsquo em sua tentativa de reconstruir a genealogia da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p41) Adiante o autor acrescenta ldquoEacute curioso que esta conste-laccedilatildeo eroacutetica tenha escapado tatildeo tenazmente aos estudiosos que trataram de rastrear a genealogia e os significados da Me-lancolia duumlrenianardquo(AGAMBEN 2006 p49) No texto as objeccedilotildees de Agamben aos dois autores natildeo retomam nem mencionam a importacircncia que lhes deu Walter Benjamin que ao tratar da melancolia revecirc concepccedilotildees errocirc-neas que historiadores e leigos mantiveram a respeito do Re-nascimento e da Idade Meacutedia Aleacutem disto apresenta-nos mo-mentos nessas eacutepocas em que houve um enobrecimento da melancolia uma visatildeo da melancolia sublime que era preciso libertar ldquoda melancolia comum e destruidorardquo (BENJAMIN 2013 p158) Ao que tudo indica Agamben quer para aleacutem do ensaio histoacuterico benjaminiano pocircr em destaque a Patriacutestica em que en-controu a valorizaccedilatildeo do temaacuterio da aceacutedia e chamar a atenccedilatildeo para o componente eroacutetico da melancolia Com isto deixa de assinalar que o papel da astrologia eacute analisado por Benjamin e levado em consideraccedilatildeo no elogio que ele faz dos dois autores

Anuncia-se um traccedilo dialeacutetico da concepccedilatildeo de Saturno que corresponde de modo surpreendente ao conceito grego de melancolia A descoberta deste nuacutecleo vital da imagem de Saturno eacute o grande meacuterito de Panofsky e Saxl4 (BENJAMIN 2013 pp155-156)

Benjamin nos traz vaacuterios textos que precederam a obra duumlreniana ou foram seus contemporacircneos Deteacutem-se na convi-vecircncia de extremos no campo de concepccedilotildees do saber e anali-sa o quadro O quadrado maacutegico que vemos desenhado num quadro por cima da cabeccedila da lsquoMelancoliarsquo de Duumlrer eacute o selo plane-taacuterio de Juacutepiter cuja influecircncia se opotildee agraves forccedilas obscuras de

2 Os autores Panofsky e Sax satildeo citados por Walter Benjamin ( BEN-JAMIN 2013 p156)3 Erwin Panofsky (e) Fritz Sax Duumlrers ldquoMelancolie Irdquo Eine quellen- und typengechichtilich Untersuchung (A ldquoMelancolia Irdquo de Duumlrer Um estudo de fontes e tipologia histoacuterica) Berlim 1922 pp18-19 (=Studien der Bibliothek Warburg 2) (BENJAMIN 2013 P156) - Encontramos a referecircncia em Benja-min natildeo em Agamben4 Erwin Panofsky apud Walter Benjamin (BENJAMIN 2013 p156)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

167

Saturno Ao lado desse quadrado estaacute pendurada a balanccedila uma alusatildeo ao signo astroloacutegico de Juacutepiterrdquo (BENJAMIN 2013 p158) Trazendo mais autores mostra que sob inspiraccedilotildees ne-fastas e beneacuteficas Duumlrer teria posto na fisionomia do melancoacute-lico a concentraccedilatildeo espiritual e dedica vaacuterias paacuteginas aos ele-mentos que compotildeem a obra Agamben tambeacutem comenta a gravura do mestre renas-centista levando-nos de uma eacutepoca histoacuterica para outra expotildee o que garimpa nas diversas camadas arqueoloacutegicas Suas pes-quisas fundamentam a associaccedilatildeo do humor negro com Eros jaacute nas conjecturas filosoacuteficas e meacutedicas da Idade Meacutedia Assinalam um nexo entre amor e melancoliaque jaacute teria sido reconhecido por uma tradiccedilatildeo divulgada e mantida na medicina europeia me-dieval que os tomava como enfermidades afins ou idecircnticas A gravura alegoacuterica eacute por ele situada na esfera do desejo eroacutetico

Toda interpretaccedilatildeo que prescinda dessa pertenccedila fundamen-tal do humor negro agrave esfera do desejo eroacutetico por mais que possa decifrar uma a uma das figuras inscritas agrave sua volta estaacute condenada a passar ao largo do misteacuterio que se plasmou emblematicamente nessa imagem (AGAMBEN 2006 p49)

Lembremos a imagem por meio de uma miacutenima descriccedilatildeo agrave direita do espectador haacute uma figura sentada que seria a perso-nificaccedilatildeo da melencolia (a palavra estaacute gravada deste modo na obra) com a cabeccedila apoiada na matildeo esquerda segurando um compasso com a direita e rodeada por instrumentos alguns re-lacionados com a Geometria Agrave sua direita estaacute no chatildeo a seus peacutes adormecido um catildeo e acima sentada sobre a confusatildeo de objetos uma figura menor (que Lacan chamou de petit ange) tambeacutem com asas que fica mais ou menos na altura da cabeccedila da figura maior e que para noacutes evocaria a imagem popularizada de Eros5

Para Agamben

Soacute se compreende que (a gravura) se situa sob o signo de Eros eacute possiacutevel guardar e ao mesmo tempo revelar seu se-gredo cuja intenccedilatildeo alegoacuterica estaacute inteiramente subentendida no espaccedilo entre Eros e seus fantasmas (AGAMBEN 2006 p49)

Freud melancolia e fantasia

No Capiacutetulo quinto da Primeira Parte de Estancias o au-tor introduz deste modo seus comentaacuterios a respeito de Luto e Melancolia

5 A imagem pode ser obtida em vaacuterios sites na Web por exemplo em httpscommonswikimediaorgwikiFileDuumlrer_melancholia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

168

Freud aponta o eventual caraacuteter fantasmaacutetico do processo melancoacutelico observando que a rebeldia contra a perda do objeto de amor pode chegar a um ponto tal que o sujeito se esquiva agrave realidade e se aferra ao objeto perdido graccedilas a uma psicose alucinatoacuteria do desejo (AGAMBEN 2006 p57)

Em seguida ele nos remete para o ldquoComplemento me-tapsicoloacutegico da doutrina dos sonhosrdquo frisando que este texto devia fazer parte junto com o ensaio sobre a melancolia de um volume em projeto denominado Preparaccedilatildeo para uma Metapsi-cologia Assinala a importacircncia da relaccedilatildeo entre os dois escritos uma vez que eacute preciso consultar o segundo

para encontrar esboccedilada paralelamente a uma anaacutelise do mecanismo do sonho uma indagaccedilatildeo do processo atraveacutes do qual os fantasmas do desejo logram esquivar-se a essa instituiccedilatildeo fundamental do eu que eacute a prova de realidade e penetrar na consciecircncia (AGAMBEN2006 p57)

Agamben faz-nos notar que eacute fundamental a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre fantasma e prova de realidade e ressalta que ainda ecoa em Freud a descriccedilatildeo do conjunto de sintomas feita na antiguidade claacutessica e na idade meacutedia cuja causa era atri-buiacuteda agrave bile negra citando

A melancolia se caracteriza no aniacutemico por um enfado profun-damente doiacutedo um cancelamento do interesse pelo mundo exterior pela perda da capacidade de amar pela inibiccedilatildeo de toda produtividade (FREUD 1955 p242)6

Dentre os incontaacuteveis comentaacuterios existentes talvez o que possa ser destacado como peculiar no de Agamben seja uma visatildeo da relaccedilatildeo do Ego com a perda cujo foco principal natildeo estaacute nos desenvolvimentos teoacutericos que investigam modos de identificaccedilatildeo com o objeto perdido mas na perda enquanto tal Lembremo-nos noacutes leitores de que para aleacutem de exem-plos didaacuteticos ndash Freud chega a dar entre parecircnteses o exem-plo da melancolia da jovem que perdeu seu namorado ndash de hipoacuteteses sobre alteraccedilotildees no Ego que perde a si mesmo O criador da psicanaacutelise faz uma retomada metapsicoloacutegica do narcisismo mas somos levados por Agamben a nos determos no vazio que acompanha a perda Natildeo eacute o que ocorre segundo as observaccedilotildees que se fazem na esteira de Strachey Este co-mentador e primeiro organizador da obra de Freud assinala em sua introduccedilatildeo que de um determinado ponto de vista o artigo ldquoexigiu submeter a exame toda a questatildeo da identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p239) e que ldquoo mais significativo deste artigo 6 Para a traduccedilatildeo desta frase optei pela comparaccedilatildeo entre o texto em alematildeo e a traduccedilatildeo argentina ao inveacutes de passar para o portuguecircs a ci-taccedilatildeo da obra de Agamben traduzida para o espanhol que foi utilizada neste trabalho

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

169

parece ter sido para Freud sua exposiccedilatildeo do processo atraveacutes do qual o investimento (Besetzung) de objeto eacute substituiacutedo na melancolia por uma identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p240) Para Freud tanto no luto quanto na melancolia houve perda mas eacute preciso distinguir os tipos de perda que caracteri-zam um e outro estado Na leitura de Agamben natildeo satildeo ignora-das as semelhanccedilas nem desqualificados os destinos das iden-tificaccedilotildees Muito menos o abatimento do Ego na melancolia diante da perda do suposto objeto de amor expresso por aquela famosa formulaccedilatildeo freudiana ndash ldquoA sombra do objeto caiu sobre o egordquo (FREUD 1955 p246) Mas somos conduzidos a valorizar a constataccedilatildeo de que natildeo sabemos que objeto o melancoacutelico perdeu e a admitir que ele tambeacutem natildeo Eacute verdade que depois do exemplo da noiva abandonada no qual o amado natildeo morreu mas o objeto de amor idealizado foi perdido Freud escreveu

E em outras circunstacircncias cremo-nos autorizados a supor uma perda tambeacutem mas natildeo atinamos com discernir com precisatildeo o que se perdeu e com maior razatildeo podemos pensar que tampouco o enfermo pode apreender em sua consciecircncia o que perdeu (FREUD 1955 p243)

Acrescentou que nessas condiccedilotildees mesmo se a perda eacute evidente para o enfermo ele natildeo sabe o que perdeu naquela pessoa que ele perdeu concluindo

Isto nos levaria de algum modo a referir a melancolia a uma perda de objeto subtraiacuteda da consciecircncia agrave diferenccedila do luto no qual nada haacute de inconsciente no que diz respeito agrave perda (FREUD1955 p243)

Para desenvolver a questatildeo do fantasma relacionada com a me-lancolia Agamben apoia-se principalmente neste paraacutegrafo de Freud

O Ego entatildeo despedaccedila seu laccedilo com a realidade e retira do sistema consciente das percepccedilotildees seu proacuteprio investi-mento (Besetzung) Eacute atraveacutes deste esquivar-se do real que se evita a prova de realidade e os fantasmas do desejo natildeo reprimidos mas perfeitamente conscientes podem penetrar na consciecircncia e ser aceitos como realidade melhor (FREUD apud AGAMBEN 2006 p58)7

Para o autor em nenhum de seus escritos Freud desen-volveu uma teoria expliacutecita do fantasma8 e natildeo precisou qual eacute

7 Traduccedilatildeo modificada por mim8 Eacute claro que haacute teorias sobre a fantasia ao longo da obra de Freud Podemos consultar por exemplo Soliva Soria Ana Carolina rdquoInterpretaccedilatildeo sentido e jogo um estudo sobre a concepccedilatildeo de fantasia (Phantasie) em Sig-mund Freudldquondash Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo (2010)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

170

a parte deste ldquona dinacircmica da introjeccedilatildeo melancoacutelicardquo (AGAM-BEN 2006 p58) E eacute em seguida a esta afirmaccedilatildeo que ele expressa sua maneira de conceber a psicanaacutelise contemporacirc-nea e ao mesmo tempo de alertaacute-la para a importacircncia que a questatildeo tem para seu proacuteprio desenvolvimento Entende que a psicanaacutelise contemporacircnea reavaliou o papel do fantasma nos processos psiacutequicos e tende a se considerar ldquouma teoria geral do fantasmardquo (AGAMBEN 2006 p59) de modo cada vez mais expliacutecito Conveacutem observar que a escolha da palavra fantasma sinocircnimo de fantasia segue uma tendecircncia francesa datada do seacuteculo passado Para Laplanche e Pontalis ldquoEm francecircso termo fantasme voltou a ser posto em uso pela psicanaacutelise e como tal estaacute mais carregado de ressonacircncias psicanaliacuteticas do que seu homoacutelogo alematildeodesigna determinada formaccedilatildeo imaginaacuteria e natildeo o mundo de fantasias a atividade imaginativa em geralrdquo (LAPLANCHE ndash PONTALIS 1970 p238) Veremos que Agamben segue a tendecircncia francesa mas natildeo parece evi-tar referecircncias agrave atividade imaginativa em geral Tudo leva a pensar que Agamben tem uma visatildeo filo-soacutefica que se apoacuteia na psicanaacutelise lacaniana a qual como se sabe influencia certos temas e concepccedilotildees que permeiam filo-sofias contemporacircneas Natildeo exploraremos este campo mas eacute preciso reconhecer que ele eacute indissociaacutevel das abordagens que autor faz da Cultura da psicanaacutelise e de um tipo de arqueologia do saber que pratica No movimento de seu texto constatamos que ele estabelece uma funccedilatildeo na histoacuteria do saber para a associaccedilatildeo da melancolia com a fantasia (sinocircnimo de fantas-ma) que eacute esquadrinhada com o auxiacutelio de uma determinada visatildeo da psicanaacutelise e desse fazer resulta algo que eacute ofertado agrave proacutepria psicanaacutelise contemporacircnea Esta a seu ver

ldquoencontraria um uacutetil ponto de referecircncia em uma doutrina que com muitos seacuteculos de antecipaccedilatildeo tinha concebido Eros como um processo essencialmente fantasmaacutetico e tin-ha dado um grande lugar ao fantasma na vida do espiacuteritordquo (AGAMBEN 2006 p59)

A escrita investigativa de Agamben que segue a fecunda eru-diccedilatildeo de Walter Benjamin9 executa movimentos circulares que encaminham as questotildees despertadas para uma camada ar-queoloacutegica mais profunda escavando cada vez mais no passa-do os sentidos efetivos do presente Elabora uma perspectiva a partir da qual a psicanaacutelise beneficiar-se-ia com o conheci-mento e o reconhecimento daquilo que se pensou haacute centenas e ateacute haacute milhares de anosApoacutes a frase citada acima o autor prossegue

ldquoA fantasmologia medieval nascia de uma convergecircncia da

9 Encontramos pesquisas aprofundadas sobre aceacutedia e melancolia em Origem do Drama Traacutegico Alematildeo (BENJAMIN 2013)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

171

teoria da imaginaccedilatildeo de origem aristoteacutelica com a doutrina neoplatocircnica do pneuma como veiacuteculo da alma a teoria maacute-gica da fascinaccedilatildeo e a teoria meacutedica dos influxos entre espiacute-rito e corpordquo (AGAMBEN 2006 p60)

A peregrinaccedilatildeo de Agamben atraveacutes do cada vez mais arcaico tem para ele a finalidade de elucidar os feitos da fan-tasia que se liberta do princiacutepio de realidade e se potildee a serviccedilo de Eros (ainda natildeo visam a face de Tanatos como uma outra face) Expotildee passagens do que ele denomina um ldquomultiforme complexo doutrinalrdquo (AGAMBEN 2006 p59) no qual a fantasia (fantaacutestikon pneuma spiritus phantasticus) eacute concebida como

uma espeacutecie de corpo sutil da alma que situado na ponta extrema da alma sensitiva recebe as imagens dos objetos forma os fantasmas dos sonhos e em determinadas circuns-tacircncias pode separar-se do corpo para estabelecer contatos e visotildees sobrenaturais (AGAMBEN 2006 p59)

Para aleacutem do sabor desta linguagem extraiacuteda da Teologia pseudo aristoteacutelica e de alfarraacutebios eruditos Agamben integrou a figura do noacute borromeano jaacute utilizada por Lacan na proacutepria concepccedilatildeo de seu meacutetodo filosoacutefico No Prefaacutecio afirma que a perspectiva a partir da qual trata do lugar do fantasma eacute aquela na qual ldquose pode falar de uma topologia do irrealrdquo (AGAMBEN 2006 p14) e nas uacuteltimas linhas afirma que nos ensaios que compotildeem sua obra dedica-se ao topos outopos10 E assevera

Soacute uma topologia filosoacutefica anaacuteloga agrave que em matemaacutetica se define como analysis situs por oposiccedilatildeo a analysis magnitu-dinis seria adequada ao topos outopos cujo noacute borromeano tentamos aqui configurar (AGAMBEN 2006 p15)

Eacute claro que o uso da figura composta pelo entrelaccedilamen-to de trecircs ciacuterculos dos quais a soltura de um implica na sepa-raccedilatildeo de todos da qual Lacan fez uso famoso referindo-se a real ao simboacutelico e imaginaacuterio traz impliacutecita a ideia de que o fantasma vem a ser no entrelaccedilamento dos trecircs registros trecircs domiacutenios pode-se entender aqui A mesma figura eacute trazida por Agamben para colocar em foco o tema de algo que natildeo eacute e se faz com que seja e do lugar em que se estabelece que natildeo eacute espacial e sim ldquoalgo mais originaacuterio do que o espaccedilordquo (AGAM-BEN 2006 p15) Aristoacuteteles eacute citado porque teria feito menccedilatildeo a esse lugar esse topos ldquotatildeo difiacutecil de apanharrdquo e dotado de um ldquopoder maravilhoso e anterior a qualquer outrordquo(AGAMBEN 2006 p14) Agamben pretende que se trata do mesmo lugar natildeo espacial de ldquoum terceiro gecircnerordquo (AGAMBEN 2006 p14) talvez ldquouma pura diferenccedilardquo11 a que faz alusatildeo o Timeu de Pla-

10 ldquolugarnatildeolugarrdquo gt utopia11 Sugere a interpretaccedilatildeo de Derrida que entre vaacuterios comentaacuterios ressalta que chocircra natildeo eacute ldquonatildeo pertence aos gecircneros de ser conhecidos ou

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

172

tatildeo Para que acompanhemos este desenvolvimento do texto agambeano eacute preciso que recordemos a passagem No Timeu como em outros Diaacutelogos platocircnicos foi posta a diferenccedila entre o gecircnero de ser que compreende o mundo das Ideias inteligiacutevel e imutaacutevel e aquele que abrange o ser das coisas sensiacuteveis e visiacuteveis em constante mudanccedila A personagem Timeu eacute levada a conceber um terceiro gecircnero quando se chega agrave abordagem dos elementos aacutegua ar terra e fogo e eacute obrigada a reconhecer que estes tecircm sua forma em constante mudanccedila e que soacute se pode falar deles quando suas propriedades estatildeo presentes de modo perceptiacutevel Mas os elementos satildeo tatildeo necessaacuterios e es-senciais quanto as Ideias Das especulaccedilotildees surge entatildeo sua opiniatildeo provaacutevel de que eacute preciso conceber um terceiro gecircnero que eacute denominado chora Eacute o lugar daquilo que vem a ser que daacute a forma mas que permanece inalterado Eacute a natureza que recebe todos os corpos (taacute panta dechoumeacutenes socircmata phiacute-seos)12 Qual a relaccedilatildeo desse lugar tatildeo difiacutecil de apreender com o melancoacutelico que vive o vazio da perda do objeto desconhe-cido Nos ensaios de Agamben em sua leitura de ldquoLuto e Me-lancoliardquo eacute visado o vazio da perda que recebe o fantasma criaccedilatildeo do imaginaacuterio inconsciente

A perda imaginaacuteria que ocupa tatildeo obsessivamente a intenccedilatildeo melancoacutelica natildeo tem objeto real algum porque eacute agrave impossiacute-vel captaccedilatildeo do fantasma que dirige sua fuacutenebre estrateacutegia (AGAMBEN 2006 pp62-63)

Lacan tambeacutem fez referecircncia agrave gravura de Duumlrer em seu Seminaacuterio 6 no qual trata do fantasma e do desejo e diz es-tar lanccedilando questotildees sobre ldquouma articulaccedilatildeo essencialrdquo que o fantasma introduz ldquono interior dessa vaga determinaccedilatildeo da natildeo oposiccedilatildeo do sujeito e do objetordquo (LACANSTAFERLA p9) afirmando mais adiante ldquoentendo que o objeto imaginaacuterio do fantasma eacute o proacuteprio sujeitordquo (LACAN p273) Natildeo eacute possiacutevel seguir todas as pistas dos fundamentos ou das inspiraccedilotildees das conclusotildees de Agamben Mas pode-se constatar que a psicanaacutelise eacute convocada enquanto teoria do fantasma para se associar a um tipo de pensamento filosoacutefico em que ele situa o seu a que daacute o nome de criacutetica O autor men-ciona ldquouma teoria da arte apontada como operaccedilatildeo fantasmaacuteti-cardquo surgida quatro seacuteculos antes de a psicanaacutelise ser formula-da (AGAMBEN 2006 p61) teoria com frequecircncia incluiacuteda na histoacuteria do conceito de melancolia Tudo leva a entender que o fantasma que Agamben pretende recuperar estaacute na psicanaacutelise

reconhecidosrdquo (DERRIDA 1987 p270) Tratei do tema em outro lugar (SA-LLES GONCcedilALVES C 2004)

12 PLATON Timeacutee (1949 p12)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

173

enquanto ligado a Eros e eacute na sua confluecircncia com um objeto inseparaacutevel do sujeito e ao mesmo tempo indefiniacutevel que o au-tor situa o lugar sem lugar da palavra filosoacutefica Voltando-se ao iniacutecio da primeira parte de Estacircncias eacute possiacutevel constatar que o proacuteprio meacutetodo de pesquisa e investi-gaccedilatildeo desenvolvido por Agamben aproxima suas concepccedilotildees de psicanaacutelise e de filosofia Isto se daacute por meio da relaccedilatildeo que estabelece ou a seu ver restabelece entre filosofia e poesia Para ele quando se daacute o surgimento da palavra criacutetica no vo-cabulaacuterio da filosofia ocidental ela tem sobretudo o significado de uma indagaccedilatildeo sobre os limites da consciecircnciardquo (AGAMBEN 2006 p9) Para ele equivale a uma indagaccedilatildeo sobre aquilo que ldquonatildeo eacute possiacutevel nem fixar nem apreenderrdquo (AGAMBEN2006 p9) Relembra entatildeo a proposiccedilatildeo do Grupo de Iena13 e seu projeto de uma poesia universal progressiva que teria tentado abolir ldquoa distinccedilatildeo entre poesia e disciplinas criacutetico ndash filosoacuteficasrdquo (AGAMBEN 2006 pp9-10) Esta construccedilatildeo de perspectivas de pensamento passa por uma certa ideia de negatividade Em sua busca pela criacutetica capaz de apresentar um caraacuteter criativo Agamben refere-se a uma obra que seria capaz de incluir ldquoem si mesma sua proacutepria negaccedilatildeordquo (AGAMBEN 2006 p10) e declara natildeo considerar a ensaiacutestica europeia ldquodeste seacuteculordquo14 rica no gecircnero de obra de-signado e afirma que talvez soacute haja um uacutenico livro criacutetico Urs-prung des deutschen Trauerspiel15 (Origem do Drama Traacutegico Alematildeo) de Walter Benjamin Infelizmente ele natildeo esclarece aiacute os criteacuterios de seu jul-gamento e passa para a camada da antiguidade antes de reto-mar a referecircncia ao projeto que atribui aos poetas-filoacutesofos do seacuteculo XIX de abolir a distinccedilatildeo entre poesia e teorias criacutetico fi-loloacutegicas Menciona entatildeo associativamenteo poeta e filoacutelogo alexandrino Filitas ao qual se teria aplicado a foacutermula ldquopoeta e ao mesmo tempo criacuteticordquo (AGAMBEN 2006 p10) Para Agamben a criacutetica pode hoje se identificar com a

13 Grupo de Iena ndash a ironia praticada por estes poetas e filoacutesofos pos-sibilitaria rdquoseguindo ainda o projeto romacircntico redefinir um novo lugar para a filosofia Ela estaria situada no espaccedilo intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte entre o condicionado e o incondicionado a liberdade e a necessidade Eacute um lugar que se define por uma lsquo proporccedilatildeo entre ideal e realrsquo da qual a poesia romacircntica eacute a expressatildeo maior Eacute um saber diz Schlegel em lsquonova figurarsquoA ironia significa reconhecer que a harmonia experimentada entre os antigos jaacute se perdeu e que a filosofia agora antes de postular uma nova harmonia desdobra-se sobre si mesma no ato de fazer-se e se percebe em formaccedilatildeo com uma fisionomiardquo- Almeida da Silva Arlenice ldquoA evoluccedilatildeo do conceito de ironia romacircntica na obra do jovem Gyoumlrg Lukaacuteksrdquo- in Cadernos de Filosofia Alematilde no09 | pp 49-70| JANJUN2007 Cito o artigo da Profes-sora de Esteacutetica e Histoacuteria da Arte no Departamento de Filosofia da UNESP a guisa de esclarecimento devido agraves siacutenteses que realiza com clareza em seu artigo que natildeo deixa de citar livros pertinentes ao tema como eacute o caso de O Gecircnio Romacircntico de Marcio Suzuki ndash Satildeo Paulo Iluminuras199814 Lembremos que o texto de Agamben eacute do seacuteculo XX15 Cita apenas o tiacutetulo original em alematildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

174

obra de arte natildeo soacute por ser criativa mas tambeacutem por ser nega-tividade Neste ponto ele faz referecircncia a Hegel agrave sua objeccedilatildeo agrave ironia autonegante ou autonadificante praticada pelo grupo de poetas-filoacutesofos de Iena Hegel teria se oposto a Schlegel Solger Novalis e ldquoa outros teoacutericos da ironiardquo (AGAMBEN 2006 p10) e afirmado que eles haviam ldquopermanecido na infinita ne-gatividade absolutardquo (AGAMBEN 2006 p10) tomando o me-nos artiacutestico por verdadeiro princiacutepio da arte Segundo Agamben aqueles adeptos da ironiada pers-pectiva do filoacutesofo natildeo teriam podido ir adiante porque para Hegelldquoa negatividade da ironia natildeo eacute o provisional da dialeacuteticardquo (AGAMBEN 2006 p10) Ou seja ao natildeo ser ultrapassada a ironia deixaria de integrar o movimento histoacuterico da consciecircncia Vecirc-se que Agamben por sua vez eacute irocircnico (no sentido usual) em relaccedilatildeo agrave postura que atribui a Hegel ao escrever que ldquoa va-rinha maacutegica da Aufhebung estaacute sempre em ato de transformar a negatividade (da ironia) em algo positivordquo(AGAMBEN 2016 p10) Para Agamben a ironia dos poetas seria ldquouma negativi-dade absoluta e sem resgate a qual entretanto natildeo renuncia por isso ao conhecimentordquo (AGAMBEN 2016 p10) e da ironia romacircntica de um Schlegel pode brotar ldquouma atitude autentica-mente filosoacutefica e cientiacuteficardquo (AGAMBEN 2006 p11) A peculiar interpretaccedilatildeo (redutora) de posiccedilotildees de Hegel eacute expressa por meio de algumas frases sem indicaccedilatildeo dos tex-tos utilizados Mas eacute evidente que Agamben se opotildee agrave dialeacutetica de Hegel na medida em que defende uma praacutetica filosoacutefica que pretenderia preservar uma negatividade insuperaacutevel jamais subsumida pelo movimento do desenvolvimento da consciecircncia descrito na Fenomenologia do Espiacuterito16

Os artigos que vatildeo da acedia agrave melancolia percorrem as vaacuterias atribuiccedilotildees da melancolia a pensadores escritores poe-tas e o autor natildeo deixa de mencionar alguma semelhanccedila com o mal du siegravecle expresso pelos escritores do seacuteculo XIX nem de tirar partido da imagem de Kierkegaard (AGAMBEN 2006 p31) autor do Tratado do Desespero que descreve o desesperar-se consciente de si e a ambiguidade de seu eu A dor pelo que natildeo haacute a dor cultivada nesse inverno da desesperanccedila com frequecircncia estaacute associada com criacuteticas fei-tas pelo melancoacutelico ao mundo circundante Temos o pessimista o descrente o entediado pondo o dedo nas feridas da cultura Por outro lado constatamos que o vazio do perder o que se natildeo tem inseparaacutevel da concepccedilatildeo de desejo para a psicanaacutelise eacute nos desenvolvimentos da escrita de Agamben associado com a fantasia e com o lugar utoacutepico da criaccedilatildeo Depois do livro do qual comentei algumas leituras Agam-ben publicou vaacuterios outros e dentre estes tiveram repercussatildeo no meio psicanaliacutetico sobretudo os que desenvolvem o projeto

16 Muito posterior aos comentaacuterios de Hegele que Agamben natildeo cita

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

175

Homo Sacer sendo o mais recente O Uso dos Corpos em que ele abandona o proacuteprio projeto de modo expliacutecito e justificado Para Giacoia este livro marca ldquoo abandono do projeto Homo Sacer mas sob a condiccedilatildeo de compreendermos abandonar como o uacutenico gesto consequente que se segue agrave plena reali-zaccedilatildeo de uma obra de poesia ou de pensamentordquo (GIACOIA 2016 p140)17 Lembremos do que Agamben escreveu a respeito da obra que seria capaz de conter em si mesma sua proacutepria negaccedilatildeo citado acima Embora haja uma distacircncia de deacutecadas entre os artigos trabalhados aqui e seu uacuteltimo livro eacute possiacutevel consta-tar que a concepccedilatildeo de vazio lugar natildeo espacial permanece nesse pensamento poeacutetico-filosoacutefico O tiacutetulo Estacircncia tambeacutem inspirado em Walter Benjamin eacute-nos apresentado com o sig-nificado que os poetas do seacuteculo XVIII teriam dado ao nome de ldquomorada capaz e receptaacuteculordquo Receberia acolherialdquojunto a todos os elementos formais da canccedilatildeo aquela lsquofoi drsquoamourrsquo na qual eles confiavam como uacutenico objeto da poesiardquo (AGAMBEN 2006 p11) Desde a origem de nossa cultura teria havido uma cisatildeo ldquoentre poesia e filosofia entre palavra poeacutetica e palavra pen-santerdquo (AGAMBEN 2006 p12) O acesso agraves interrogaccedilotildees que mereceria estaria barrado pelo esquecimento No percurso do autor aquilo que no seacuteculo passado foi apontado como parte de um sintoma mantendo a ressonacircncia de textos medievais e anteriores tendo renascido como espiritualidade em companhia de Eros na intrigante obra de Duumlrer o vazio melancoacutelico parece convocar ainda o sem forma o lugar indefiniacutevel que recebe o pensamento que vem a ser

17 Giacoia in Percurso 2016

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

176

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AGAMBEN G Estancias - La palabra y Elfantasmaen la cultura occidental Valencia Pre-Textos 2006

BENJAMIN W Origem do drama traacutegico alematildeo ediccedilatildeo e tra-duccedilatildeo Joatildeo Barreto ndash 2ed ndash Belo Horizonte Autecircntica Editora 2013

FREUD S ldquoDuelo y Melancoliardquo in Obras completas volXIV Buenos Aires Amorrortu 1993

DERRIDAJrdquoChocircrardquoin Poikilia_Eacutetudes offertes aacute Jean-Pierre Vernant Paris EHESS1987

GIACOIA O ldquoPor uma filosofia do abandono (Lrsquouso dei corpi Homo Sacer)rdquo in Percurso ndash Revista de Psicanaacutelise no 54 ANO XXVIII JUNHO DE 2015 pp138 ndash 144

LACANJ Seminaire 6 Le Deacutesir 1958 in httpstaferlafreefr

PLATON Timeacutee texte eacutetabli par ARivaud Paris Les Belles Le-ttres 1949 p12

SALLES GONCcedilALVES C ldquoChora em Platatildeo Derrida e Feacutedi-dardquo in Percurso-Revista de Psicanaacutelise no 3132 ANO XVI 2ordm SEM20031ordm SEM2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

177

Politics without a subject David Hume on general rules

Key-words Hume politics subject freedom belief

ABSTRACT In this article after having described the role and functioning of general rules and of customs by Hume I will show that the centrality of these in his political reflection leads to a denial of the identification of man as the subject intending with this concept the union of the conceptual pair subjectum (support of personal peculiarity) and subditus Hume doubts the presence of an element that is able to impose itself on man subduing him to its own will the man himself if he tries to impose a norm on himself attains only useless sufferings

1 Introduction

Humersquos skepticism brings him to refuse to trust any norm with mathematical certainty that purports to regulate either nature or politics both fields are domains of matters of fact for which it is not possible to find rules that are always valid For Hume norms are descriptions of regular repetitions taking place they are not an account of necessary phenomena It is the constant repeti-tion that defines laws and not the other way around This counts both in the cognitive as in the political field respect for a law is not a consequence of its intrinsic necessity as the law does not derive from a government to which we necessarily must obey for a transcendent or rational necessity or for an ancient promise of submission Power understood as the probability that an ele-ment A is the cause of an element B1 cannot be perceived and its existence is for this reason doubted by Hume2 just as in the cognitive field it is the repetitiveness of nature that brings us to the formulation of scientific laws which imply a hypothetical causality that is not demonstrable so in politics it is the repeti-tive inclination of man that leads to a hypothetical authority or the power of a government and of its laws It is the custom and tendency to be obedient that mostly influences our actions not a sovereign monopoly of force

1 laquopower consists in the possibility or probability of any action as dis-coverrsquod by experience and the practice of the worldraquo David Hume A Treatise of Human Nature ed D F Norton M J Norton (Oxford Clarendon Press 2007) 2042 See David Hume An Enquiry Concerning Human Understanding in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 450ndash60

Giulia Valpione

Universitagrave degli Studi di Pa-dova Dipartimento di Filoso-fia Sociologia Pedagogia Psicologia Applicata (FISP-PA) Post-DocPoacutes-Doc em Filosofia - UFSCAR

giuliavalpionegmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

178

2 The general rules analogy and imagination

General rules are considered throughout all three books of Hu-mersquos Treatise on Human Nature as they concern the modality in which men produce reasoning and they are implied in actions and behaviors Such rules reveal human naturemdashwhich is in-clined to repetitionmdashthe construction of series that follow one another connecting similar cases3 if there is a multiplicity of si-milar cases the causes of our actions and thinking are moved to the background and they are replaced by habit which is able to originate certainties and passions even though they have not been caused

The two fundamental passions to which Hume devotes am-ple space in the Treatise (pride and humility) are originally the result of the relationship of three elements4 (two ideas and one impression) among which our pleasure or sorrow are instigating causes However due to the existence of habits of thought an instigating cause5 may not necessarily be present passions can simply arise from two ideas6 The procedure is very similar when we consider causality here from an impression A we derive an idea a belief in an object B The judgment that derives B from A is not an analytical judgment nor is it a synthetic a priori one (which can be only found in mathematics and geometry) since the knowledge of such relationship is not so much caused by the repeated experience of A rarr B as by the constant experience of the conformity of the future in comparison of the past in other words nature repeats itself and only through such repetitiveness does man infer the necessity that ldquoif A always Brdquo7 Therefore the

3 Treatise 2344 See Section II-V of Book II Part I (Treatise 182ndash190)5 We must [hellip] make a distinction betwixt the cause and the object of these passions betwixt that idea which excites them and that to which they direct their view when excited [hellip] The first idea that is presented to the mind is that of the cause or productive principle This excites the passion connected with it and that passion when excited turns our view to another idea which is that of self Here then is a passion placrsquod betwixt two ideas of which the one produces it and the other is producrsquod by it The first idea the-refore represents the cause the second the object of the passionraquoTreatise 1836 laquoWhen an idea produces an impression related to an impression which is connected with an idea related to the first idea these two impres-sions must be in a manner inseparable nor will the one in any case be unat-tended with the other lsquoTis after this manner that the particular causes of pride and humility are determinrsquod The quality which operates on the passion produces separately an impression resembling it the subject to which the quality adheres is related to self the object of the passion No wonder the whole cause consisting of a quality and of a subject does so unavoidably give rise to the passion To illustrate this hypothesis we may compare it to that by which I have already explainrsquod the belief attending the judgments which we form from causationraquo Treatise 189ndash1907 I do not linger here on the discussion that tries to establish if for Hume

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

179

causal link does not derive its necessity from reasoning or de-duction8 However it is based on the experience of the similarity between past and future that is on something that cannot be demonstrated In the case of the passions and belief in the ne-cessity of a causal link they are not the result of reasoning but they are the effect of a tendency and habit The necessity that we feel existing in the bond between two elements (for instance between fire and loose wax or between wealth and pride) is due to human nature which tries to produce a series of repetitions which bring about general rules

Habit acts on the human mind through imagination a faculty that turns impressions into ideas and whose procedure is free devoid of fixed rules9 if we observe it we see that it is possible to identify some constants and to notice that it usually gathers impressions to create bonds of resemblance bonds of contigui-ty in space and time and of cause and effect10 among similar elements The inferences of imagination are influenced by ha-bit because the ideas produced receive such a strong vivacity that they are able to provoke the belief that the inferences will be confirmed by experience Their vivacity equates these ideas with impressions granting them the faculty to influence human passions11 From the perception of an object A and an object B the mind is suited by custom to firmly believe that after the appearance of the first one the second one should follow to the point of reaching the conviction that they are indeed tied up by a necessary relationship which we believe follows a rule Howe-ver no perception corresponds to the idea that we have of such necessity therefore it is a production of our mind and not an element that our senses can perceive12 The same procedures are at play in the formation of general rules that lead humans to create habits that influence our behavior These rules are not

there is a nature outside the I or not I hold that to the goals of the present article that topic is not relevant because this article focuses on the norma-tivity that crosses the act of humans and not on the adherence of objects to the causal law For a possible close examination I refer to the following texts Brian A Chance ldquoCausal Powers Humersquos Early German Critics and Kant Response to Humerdquo Kant-Studien 104 (2013) 213ndash236 Winkler P Kenneth ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo in The Cambridge Companion to Hu-mersquos Treatise ed D C Anslie A Butler (Cambridge Cambridge University Press 2015) 135ndash1648 The deduction is possible only in a priori elaborations by imagination and by intellect elaborations that are characterized for reaching propositions whose contrary is contradictory The experience of ldquoIf A then Brdquo and ldquoIf A then C (neB)rdquo and their related propositions are not contradictory if nature changes its course if it does not repeat itself anymore it does not contradict itself9 laquonothing is more free than that faculty But we are only to regard it as a gentle force which commonly prevailsraquo Treatise 1210 Treatise 1311 Treatise 8212 laquoHere then it appears that of those three relations which depend not upon the mere ideas the only one that can be tracrsquod beyond our senses and informs us of existences and objects which we do not see or feel is causa-tionraquo Treatise 53

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

180

dictated by reason but they are the instruments through which man can extend principles and thoughts beyond the datum and present reasons by following the repetitiveness that characteri-zes nature as a whole13

This is the tool that man possesses for the use of his abilities with a goal-oriented purpose to satisfy his needs14 an inclina-tion to repeat the same intellectual operation or to reproduce the same action15 Custom is a principle of human nature16 but it does not lead us to always behave in the same way habit is not the eternal reproduction of the identical For the observer to have the impression of a causal link between two objects it is not necessary for him or her to have already experienced the same identical situation the typical necessity of the causal rela-tionship that connects an object to another does not only occur in case that the observer perceives the same object A definable as cause of object B but also in the case of a more generally similar objects and similar conditions The repetition that allows to reasoning to go beyond the datum does not develop in the terms of a narrow identity but in terms of similarity it describes a series of repetitions that follows a rhythm of analogy While traveling or considering history we realize that men and women have altered their own institutions and creations (the way they build residences and the tools that they use) to suit them to gi-ven conditions with the purpose of reaching their goals ldquoMen in different times and places frame their houses differently here we perceive the influence of reason and customrdquo17 Objectives common to all men and women such as the maintenance and the propagation of human species can be pursued well only by adapting to existing conditions general rules are not universal or necessary but variable If we perpetuate the reproduction of the identical we will be reduced to the level of simple instincts like animals whose peculiarity consists in being submitted to the power of nature which forces them to the simple repetition of behaviors and procedures18

13 laquoto the force of this argument I so far submit as to acknowledge that general rules commonly extend beyond the principles on which they are foundedraquo Treatise 35314 laquoCustom then is the great guide of human life [hellip] [Without the in-fluence of custom] We should never know how to adjust means to ends or to employ our natural powers in the production of any effect There would be an end at once of all action as well as of the chief part of speculationraquo Enquiry concerning Human Understanding 3915 Enquiry concerning Human Understanding 3716 Enquiry concerning Human Understanding 3717 Hume D An Enquiry concerning the Principles of Morals in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 419518 laquoA man who has contracted a custom of eating fruit by the use of pears or peaches will satisfy himself with melons where he cannot find his favourite fruit [hellip] From this principle I have accounted for that species of probability derivrsquod from analogy where we transfer our experience in past instances to objects which are resembling but are not exactly the same with those concerning which we have had experienceraquo Treatise 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

181

Human beings use ldquoexperimental reasoningrdquo19 and thus are able to use their own knowledge derived from experience ela-borating it and suiting their own tools for the satisfaction of their passions In turn these innovations and diversifications beco-me a habit and custom in a brief period of time the motivations that led to their creation are forgotten and we perpetuate the following of such new precepts

General rules are not determined to the least detail they le-ave space for variations and unlike instincts do not have their own cause in themselves They are the product of the faculty of imagination which elaborates tools with the goal of resolving our tendencies20 and this establishes them as norms hiding their instrumental character This is what characterizes human nature more than reason it is imagination that identifies it It is thanks to imagination alone if men develop the belief that nature repeats itself and so allow them to extend their faculties over the simple perceptions only through it do men believe in the necessity of not interrupting the present habits but of proposing them again in this way building a chain of analogous elements

3 General rules strengthening and correction

The primary role of general rules is the extension of human faculties beyond their justified limits with our passions and re-asoning21 bringing order to experience without a stable base making a systematization of experience that is not grounded on the necessity of certain mechanisms but on the probability that nature will not change its repetitive tendency Both in the moral and cognitive fields general rules are essential for the survival of human beings allowing the production of reasoning that at-tempts to foresee the immediate future and the establishment of institutions that preserve the species

In the absence of habit and repeated bonds among similar ob-jects it would not be possible to reach the conclusion that ldquothose instances of which we have no experience resemble those of which we have experiencerdquo22 there would not be a principle on which the belief in necessity is created therefore without repe-tition reasoning would be impossible23 That is the procedure through which mind goes over what is immediately present to

19 Enquiry concerning Human Understanding 8820 The ldquotendencyrdquo is a desire an impulse immediately satisfied ndash following Gilles Deleuze interpretation ndash by an instinct and in human beings satisfied through institutions see Deleuze Gilles Empirisme et subjectiviteacute (Paris PUF 2010)21 Treatise 19222 Treatise 6223 It is to note that the elevation of passed experience to criterion for future judgement namely the belief that tomorrow will resemble to yesterday it is not in itself a reasoning but it is the ground of every possible reasoning See Enquiry concerning Human Understanding 28f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

182

the senses would be inconceivable Particularly causality (the only philosophical relationship to venture beyond the senses in-forming us about the existence of objects that we do not see or feel)24 could not occur Without this ability to project and forecast it would not be possible for human beings to manage to satisfy their own passions make inferences25 or speculate or act in or-der to achieve a consequence

Fixed habits cause the formation of stable institutions and constitute that network of use and custom within which every human being already exists and that cannot be described as a system of prohibitions It is rather a tool to facilitate thanks to the ability of the imagination26 to arouse a passion lacking its own reason to be27 the actualization of principles that lead to the vi-gor28 of such habits Therefore we are quite distant from a binary scheme of prohibition and permission in which the law preser-ves human beings from their own wickedness or egoism Hume proposes the idea that a rule is an entirety of habits intended to facilitate the attainment of goals (be they egoistic or prescribed by sympathy) of human beings that work together to generate an equilibrium between the repetitive nature of men and women and the conditions in which such habits are created29

This never fixed always imperfect and to be reconstructed equilibrium implicates the second peculiarity of general rules they not only have the role of strengthening and facilitating thou-ghts and action but they also develop the mutually corrective role to create an order in human relationships and in rational reconstructions General rules being the generalization of an individual idea30 applying the peculiarities of a single experience to different cases will lead to errors and prejudices whose defect does not consist so much in their falsehood (against the truth) but rather in the contrast and contradictions that they cause be-tween other prejudices or beliefs31

The ability of the imagination to generalize is not only applied to identical cases but also to similar elements sometimes con-fusing necessary conditions of some effects with other on the contrary superfluous conditions that are only accidental32 in this 24 Treatise 5325 See note 1426 Treatise 23427 Treatise 23428 Treatise 19229 On this aspect focused Gilles Deleuze see Deleuze Gilles Empiris-me et subjectiviteacute30 laquoIf ideas be particular in their nature and at the same time finite in their number lsquotis only by custom they can become general in their represen-tation and contain an infinite number of other ideas under themraquo Treatise 2131 laquoAn Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have soli-dity for which reason thorsquo the conversation of the former in any instance be visibly very agreeable and of the latter very judicious we have entertainrsquod such a prejudice against them that they must be dunces or fops in spite of sense and reason Human nature is very subject to errors of this kindraquo Trea-tise 10032 Treatise 101

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

183

way the faculty leads to general rules that confuse the terms in play

the same custom goes beyond the instances from which it is derivrsquod and to which it perfectly corresponds and influen-ces his ideas of such objects as are in some respect resem-bling but fall not precisely under the same rule33

Only reasoning can counterbalance this excessive amplifica-tion of habit but the very same reasoning is constituted by the cause-effect relationship or by a further general rule Conflict does not occur therefore among elements of different natures but is always between probability and stronger beliefs and not between possibility and certainty Error emerges when among our thoughts we ascertain an incongruity as when two probabi-lities appear in conflict the only way to overcome this does not consist in appealing to an absolute truth but on the contrary in opting for a general rule that brings with itself a degree of greater probability and in relegating to a simple exception the weakest impression the least vivid thought34 In the field of experience (of what Hume calls ldquomatters of factrdquo) every judgment is the re-sult of relationships produced by the imagination thanks to the influence of habit and its relationship with general rules they are grounded in belief which must submit to a more or less founded probability which increases or decreases through other formu-lated judgments35 and that cannot flow in the field of certainty and truth

this gradual increase of assurance is nothing but the ad-dition of new probabilities and is derivrsquod from the constant union of causes and effects according to past experience and observation36

Certainty is a feeling provided by the senses and not by rea-soning or demonstration we live using illusions provided by the imagination without regarding the fact that ldquoall knowledge resol-ves itself into probabilityrdquo37

There are no fixed or stable laws and certainty is replaced by probability which has to be composed turning resemblance into identity or contiguity or causes because of the influence of the modality in which ideas and impressions are conceived What is given are only singular impressions and the rest is construction

The operation of the general rule that exerts itself between cor-rection and expansion does not lead us to exclude the exception from the rule itself but rather to include it in a new series of repe-

33 Treatise 10134 Treatise 10135 Treatise 12136 Treatise 12137 Treatise 122

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

184

titions and analogies In the case of rebellion against a govern-ment resistance overturns and interrupts the habit to obedience This breach is not the breakdown of a rational order that finds its own justification in logic38 as it is not the transgression of an original contractual source of political legitimacy Respecting an established order is not a necessary behavior as necessity is a characteristic that is always and only attributed by the observer it is not present in nature39 and neither is it due to the presence of a real authority established by an original transfer of power and enacted by an unbreakable promise40 The (also moral) obliga-tion of subjugation to a government is due to none of this

If we are to explain constant obedience to a magistrate we have to question and observe the opinions of men and women who would never accept the idea that the origin of government consists in an original promise or contract41 Loyalty to the magis-trate does not consist in a promise or a necessary relationship Rather it is a consequence of general rules thanks to which we extended our maxims beyond the first reason that pushed us to establish them42 and that induced us to get use to do something to repeat ourselves in a regime of analogy leading human bein-gs to consider the magistrates or sovereigns as authoritative not in respect of some legitimating promise but rather because they have achieved their powerful position by inheritance or posses-sed the throne for a long time43 In other words if it is possible to establish an analogy between the actual holders of authority and the predecessors a similitude allows the imagination of the subject to pass from one to the other without unpleasant and difficult passages

Rebellion against an established political order is not due to the breaking of some promise or the shattering of a rational regi-me that for its own logical strength should stay unchanged wi-thout being submitted to assault Rebellion is possible although it is an exception to the general rule of loyalty to authority exactly because general rules are not laws inscribed in human nature Such rules simply describe the general tendency to follow habits and customs Resistance to a sovereign consists in the introduc-tion of an unpredictable variable to a flowing series of analogies This variable does not linearly correspond to principles through

38 Treatise 101ndash10239 Enquiry concerning Human Understanding 7740 laquothe magistrates are so far from deriving their authority and the obli-gation to obedience in their subjects from the foundation of a promise or original contractraquo Treatise 350 laquophilosophers may if they please extend their reasoning to the supposrsquod state of nature provided they allow it to be a mere philosophical fiction which never had and never coursquod have any reality [hellip] But however philosophers may have been bewilderrsquod in those specula-tions poets have been guided more infallibly by a certain taste or common instinctraquo Treatise 316ndash31741 Treatise 35042 Treatise 35343 Treatise 356f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

185

which knowledge can be extended beyond the simply given44

Rebellion is a sign that theory is not a rigid system of absolute truths to which faith must be lent and that one must adopt45

in this particular the study of history confirms the reasonin-gs of true philosophy which shewing us the original qualities of human nature teaches us to regard the controversies in politics as incapable of any decision in most cases46

This does not make it a varying and unpredictable element that sometimes surges in a series of analogies that regulate the poli-tical life of human beings simply splintering them The operation of general rules is corrective not because it excludes what esca-pes from the planed repetition decreeing a narrow invariability (even if only on the plan of analogy and not of identity) however it is because in the actions of men and women the exception becomes a rule It does not rest on a binary plane of truth and untruth in which right and injustice are in originally defined and opposed knowledge moves in a field of probabilities Hume ac-cepts the inclusion of exceptions and admits equilibrium among what is more or less possible Regarding cases of political resis-tance their exceptionality is dissolved in two directions first of all human history has shown so many examples of rebellion47 that it can be considered as a general rule The exceptionality of resistance is inserted in a chain of usual obedience that this way is broken up but its exceptional nature is darkened and integrated into another canon of behavior not left to a chaos that could cast a shadow in repetitive order of humansrsquo and naturersquos procedures The occurrence of the unexpected is immediately included in a habit that explains it normalizing it (also predicting its frequent resurfacing)48 it is instantly integrated in an order of habits that collides against one another Nature repeats it-self confirming our reasoning which ismdasheven though without necessitymdashgrounded on that same repetition this leaves room for possible subversions in what we take for certain49 we un-derstand ordinary human behavior but nothing prevents it from 44 laquowe [hellip] make allowances for resistance in the more flagrant instan-ces of tyranny and oppression [hellip] Nor is it [the resistance] less infallible because men cannot distinctly explain the principles on which it is foundedraquo Treatise 353ndash35445 laquoWhoever considers the history of the several nations of the world their revolutions conquests increase and diminution the manner in whi-ch their particular governments are establishrsquod and the successive right transmitted from one person to another will soon learn to treat very lightly all disputes concerning the rights of princes and will be convincrsquod that a strict adherence to any general rules and the rigid loyalty to particular persons and families on which some people set so high value are virtues that hold less of reason than of bigotry and superstitionraquo Treatise 35946 Treatise 35947 For a detailed study of Hume as historian see Spencer K Wertz ldquoHume History and Human Naturerdquo Journal of the History of Ideas 36 (1975) 481ndash49648 Treatise 35349 Enquiry concerning Human Understanding 33

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

186

contradicting our expectations

4 General rules and freedom

The introduction of variation within general rules does not im-ply for Hume that human beings are unlike other creatures free The nature of human beings in which tendencies do not seek for their own satisfaction through blind instinctive repetition but rather through the elaboration of strategies which result from an equilibrium among new habits does not put him outside a world ordered by blind necessity in which he intervenes to start a new series of repetitions by grounding it in peculiarities that do not belong to the deterministic reality

Human beings do not impose themselves on nature within a proper moral order and with justice their constitution does not separate them completely from natural repetition In other words human beings are not free beings intervening in a reality under a narrow regime of necessity What we consider human ldquolibertyrdquo or ldquofreedomrdquo that is the capacity to enter an established order to change its repetitive series is nothing else than the result of dou-ble ignorance an error in our conception of the necessary and deterministic bond between events and the inability to recognize all the regular connections in which a human action is inserted (without interruptions or breaks) Human beings sometimes act in an apparently unpredictable way practicing a real interruption of any regular and repetitive behavior a fragmentation of any analogy with the past in reality we simply ignore all connections all general rules followed by the individual Therefore when a behavior that is consequence of a till now minor and less evident series prevails on the principal general rule when it alters the equilibrium through the more or less hidden breaking in of con-trary causes50 an observer is not able to recognize the fluidity of the mutation and he motivates his incapacity to recognize a causal bond asserting that he has been spectator of an action which is not the effect of some determining cause but which is rather free

The conviction that holds human beings to be entities endowed with liberty opposed to nature that obeys a regime of necessity is a reflex of a common error due to the consideration of the status of the bond between cause and effect Human beings and nature obey the same type of necessity the chain of natural causes and the chain of voluntary causes are not separated by the presence or absence of freedom Necessity is not internal to the cause as if it were itself bearer of such a determining element It is ra-ther the effect of the imagination of the observer This faculty is able to produce such a firm conviction that when human beings reflects on themselves and do not see in their spirits a neces-sary connection comparable to that which he believes existing 50 Enquiry concerning Human Understanding 71

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

187

among natural objects they then consider themselves detached from the natural world in possession of an exclusive characte-ristic liberty Incapable of remembering that necessity is not a quality of the agent or of the effect but rather of what we con-sider their relationship to be we build two different fields one for human beings and the other for nature the two kingdoms of liberty and determinism Eliminating the possibility of freedom implies the elimination of its opposite which is necessity these are the results of the beliefs of the human mind What we seem to know is simply a constant conjunction that we are able or not to foresee and not the necessity or its contrary in both cases Liberty (as the contrary of necessity)51 and its opposite do not exist human beings are the same as nature The fact that hu-man actions appear irregular and uncertain opposed to natural regularity does not make them exist on a different level52 The bond between motives and actions has the same regularity as natural developments53

The ability of human beings to introduce an unexpected ele-ment does not make them free beings but only marks a facul-ty of adaptation in a mutable equilibrium If human beings sim-ply followed their instincts there would be no change and they would continue to act in the same identical way independently from every condition birds build their nests without adapting to a varied situation without any assessment and forecast54 The intervention of mutation within a repetitive series is possible only if it does not deal with impulses but custom and general rules or when human minds expand beyond the given through imagi-nation and habit which reconstruct resemblance contiguity and causation55 producing such a vivacious conception of objects and consequences that we firmly believe them to be able to pro-voke specific effects despite mutable conditions56 Human bein-gs are different from animals because they are not tied to their instincts this is what we would think we can conclude However reason is not a faculty external to nature On the contrary it is a sort of instinct or mechanic power similarly to the blind impul-se that induces animals to behave in a perpetual repetition57 What characterizes the human mind is the ability to go beyond the datum and simple perceptions building series of resemblan-51 We can talk about freedom only in the sense of the absence of cons-trictions Enquiry concerning Human Understanding 7952 Treatise 25953 laquoI do not ascribe to the will that unintelligible necessity which is su-pposrsquod to lie in matter But I ascribe to matter that intelligible quality call it necessity or not which the most rigorous orthodoxy does or must allow to belong to the willraquo Treatise 26354 laquoAll birds of the same species in every age and country build their nests alike In this we see the force of instinctraquo Enquiry concerning the Prin-ciples of Morals 19555 Enquiry concerning Human Understanding 4356 See note 1457 laquothe experimental reasoning itself [hellip] is nothing but a species of ins-tinct or mechanical powerraquo Enquiry concerning Human Understanding 88

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

188

ces and causalities between them whose conception can be more or less vivacious provoking changes or simple repetitions in behavior according to a resultant emergence from the inter-section of different series of habits reconstructed causal chains and produced resemblances We are in a domain not subdued to reasoning and built by belief imagination and the general rules or by the human propensity to produce repetitions and to belie-ve in them building series whose members are based on each other and not on a cause or tendency The results of this order are the praxis and the knowledge of human being which do not originate from the imposition of pure reason external to nature but they are rather the result of probability of more or less cer-tain reconstruction and of already given conditions

The human mind is a natural element among many others it does not refer to some transcendent plan and it is not drawn by some liberty It is rather a simple reaction to human passions and a tool that facilitates their satisfaction We are then wrong if we think that reason can command passions and impose on them a moral law or a truly and right order When we think we are ac-ting reasonably our behavior in reality is due to a predominant passion which in this case is calm quiet and not expressed violently58 Even if the human mind is able to introduce an unpre-dictable variable in the development of habits and of general rules it is not able to produce a metaphysical reality The only things from which it starts are impressions in their singleness and in their mutual isolation Everything it reconstructs is only its product the harmonious order that we think we are recons-tructing in science59 is not a revealed truth nor a discovery but only a projection of our belief that allows us to direct our own tendencies

5 Identity and difference the absence of the ldquoIrdquo

Hume places the concepts of difference and becoming as prior to those of identity and being because identity is nothing more than a construction of imagination60 Moreover the source from which such falsification is produced cannot be understood as a constant ldquoselfrdquo always identical to itself among the flow of im-pressions there is no stable subject that arises as sovereign The 58 laquoMen often counter-act a violent passion in prosecution of their inte-rests and designs [hellip] What we call strength of mind implies the prevalence of the calm passions above the violentraquo Treatise 268 About the possibility to have or not a practical reason in Hume see Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non-sceptical Interpretationrdquo History of political Thought 34 (2013) 89ndash11359 Michel Malherbe La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 4960 laquoOur chief business then must be to improve that all objects to which we ascribe identity without observing their invariableness and uninter-ruptedness are such as consist of a succession of related objectsraquo Treatise 167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

189

identity that is usually attributed to the human mind is ldquofictitiousrdquo61 and what we are used to calling ldquoIrdquo is nothing else than an enti-rety of perceptions whose bond is something we have attributed ourselves62 building in this way a continuous chain of thought63 that results in being identical to itself There is no impression of the ldquoIrdquo and of its identity that is a demonstration of the fact that it is a construction Philosophy must thus be empiricist it has to be related to experience obliging it to open and destruct identity and to radically resolve it into the difference64 Personal identity is the result of an operation of imagination that reflects on itself on thinking65 thus perceiving a facility in the passage among the consideration of different perceptions and allowing the emergen-ce of the feeling of necessity taking into consideration causal bonds as the effects of the same ldquoIrdquo and its faculties66 It is at this point of the discussion that Hume introduces the comparison between the mind and a theater (deprived however of scene stage or any other structure) where the perceptions incessantly follow one another combining themselves to each other ldquoThere is properly no simplicity in it at one time nor identity in diffe-rentrdquo67 The fact that this theater has no scenes and materials is a marker that the same powers of the mind are not perpetually identical68 and therefore that imagination memory and reason are not faculties in the sense that they do not constitute a trans-cendental structure laying between the subject and his object They do not systematize knowledge and practice They are ra-ther attitudes to pursue a purpose in a determined way similar to instincts that have been born and developed in nature Therefo-re as birds mechanically build identical nests ndash even though not implying a specific faculty of their mind in this action (however only implying a tendency that is repetitively updated without va-riation) ndash human beings stir inside nature through similarly ins-tinctive procedures that may also be constant but which cannot

61 Treatise 16962 Treatise 16963 laquoour notion of personal identity proceed entirely from the smooth and uninterrupted progress of the thought along a train of connected ideasraquo Treatise 169ndash17064 Malherbe Michel La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 19365 laquoIdentity depends on the relations of ideas and these relations pro-duce identity by means of that easy transition they occasionraquo Treatise 17166 In this last passage memory plays an central role because it allows to extend the chain of causes to every moment we remember laquoIn this view therefore memory does not so much produce as discover personal identity by shewing us the relation of cause and effect among our different percep-tions lsquoTwill be incumbent on those who affirm that memory produces entirely our personal identity to give a reason why we can thus extend our identity beyond our memoryraquo Treatise 17167 Treatise 16568 laquoOur thought is still more variable than our sight and all our other senses and faculties contribute to this change nor is there any single power of the soul which remains unalterably the same perhaps for one momentraquo Treatise 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

190

be hypostatized

6 The Absence of the Subject

Man as a flow of perceptions is deprived of any reason that is able to distance him from nature and capable of imposing a proper order a human mind that results from a specific fold pro-duced by natural processes all of this makes the formulation of the self as a subject in contrast to objects impossible Percep-tion before it has been elaborated and has been transformed into an idea is pure presentation69 without any distance between the object and the subject Perceptions are singularities in which a perceiving subject and a perceived object are not distinguisha-ble both emerge in a second moment as a consequence of the attribution of continuity and coherence to different perceptions Every piece of information furnished by our senses is at mini-mum disconnected from any other perceptions that do not alrea-dy carry within themselves the sign of possible relationships with other impressions They do not have in themselves singularly a necessary bond to other perceptions even if they are represen-ted as inherent to the same object as two points contingently connected by a segment are traced in a second moment the re-lationship between impressions follows it is not necessary and it is a consequence of the attribution of a regularity they do not have70

The centrality of habit and of repetition not only involves the notion of a subject intended to be opposite to the object Hume also expressly denies other characteristics attributed to this con-cept which is reducible to a simple grammatical matter71 taking into consideration the central peculiarities that characterize it we are therefore able to distance Hume from the philosophical tradition identified by Alain de Libera which gradually identifies the subject of the act the subject of the inherence of attributes and the cognitive subject72

From the beginning the absence of the cognitive subject is de-69 With this expression I intend the precedence of the impression in respect to every representation which presupposes the distance between the thought and its object70 Treatise 13771 To this is also reduced the personal identity laquoThe whole of this doc-trine leads us to a conclusion which is of great importance in the present affair viz that all the nice and subtile questions concerning personal identity can never possibly be decided and are to be regarded rather as grammatical than as philosophical difficultiesraquo Treatise 171 Neujahr put in relation the Humean analysis on identity and the which one on time Philip J Neujahr ldquoHume on Identityrdquo Hume Studies 4 (1978) 18ndash2872 The path toward this identification is the subject matter of the re-search of Alain de Libera in particular Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet moderne Cours du Collegravege de France 2013ndash2014 (Paris Vrin 2015) More extensively Alain de Libera Archeacuteologie du sujet I Naissance du sujet (Pa-ris Vrin 2007) Alain de Libera Archeacuteologie du sujet II La Quecircte de lrsquoidentiteacute (Paris Vrin 2008)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

191

termined by the negation of an identity to which it is possible to submit rational and stable faculties The denial of the subject as a center of inherence73 excludes the possibility to think of actions and human faculties as attributes of a crucial point (be it a subs-tance or a transcendental synthetic unity) This brings Hume to a tradition that is different from the one that places being prior to becoming and that ndash following Alain de Libera ndash74 connects Aris-totle to Thomas Aquinas to Kant

The notion of accidents is an unavoidable consequence of this method of thinking with regard to substances and substan-tial forms nor can we forbear looking upon colours sounds tastes figures and other properties of bodies as existences which cannot subsist apart but require a subject of inhesion to sustain and support them For having never discoverrsquod any of these sensible qualities where for the reasons above--mentionrsquod we did not likewise fancy a substance to exist the same habit which makes us infer a connexion betwixt cause and effect makes us here infer a dependence of every quality on the unknown substance75

Imagination memory and reason are not the faculties of a subject this concept is replaced in Hume by an ldquoIrdquo that precedes the distinction between subject and object There are only two uses of the term ldquosubjectrdquo expressly accepted by Hume76 the first one concerns one of the causes of a passion The subject of a passion is not the man or woman who feels it rather it is that thing to which a quality (identified with the second cause of that passion) inheres With an example the subject of proud is not the human being proud of itself rather the cause of that feeling his propriety following an example of Hume77 The subject of passion is different from the self which is on the contrary the object of proud78 in case that it is related to the subject of that passion79

The second use ndash central for the demonstration of this arti-cle ndash of the term ldquosubjectrdquo is that of subditus a man or woman

73 This prevents in Humersquos intentions to think of the object as a subs-tance (in particular see Treatise 146ndash147) See also Jay F Rosenberg ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo Topoi 19 (2000) 137ndash14574 See Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet modern (Paris Vrin 2015) 174ndash175 See also Steven C Patten ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo Hume Studies 2 (1976) 59ndash7575 Treatise 146ndash14776 I exclude here the use of ldquosubjectrdquo in the sense of ldquoargumentrdquo ldquoobject of a discussionrdquo77 laquoit appears necessary we shoursquod make a new distinction in the cau-ses of the passion betwixt that quality which operates and the subject on which it is placrsquod A man for instance is vain of a beautiful house which be-longs to him [hellip] The quality is the beauty and the subject is the houseraquo Tre-atise 183 For examples concerning other passions Treatise 201 214ndash21578 See quote in note 679 laquothe subject to which the quality adheres is related to self the object of the passionraquo Treatise 189

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

192

subjected to an authority80 therefore Hume denies the tradition that relates the subject to the subjectum (the support of personal peculiarity) he only admits its meaning deriving from subjectus in the narrow sense of being subjugated81

Refusing to identify the subject with the self avoiding the con-ception of this as a totally subjugated entity he leaves space for the possibility of thinking of human beings as a not already and always subjected being not only subjected by the government but also by a fixed (even substantial) identity by an universal and stable description to which everybody must adhere82 Hume does not pose human beings as subjects in the sense that they are not subjugated to a universal anthropological structure to some moral or epistemological law they are not even subjuga-ted to their own consideration in which there is no impression of themselves This prevents the antinomy that derives from the desire to write an anthropology that sets man as an object fal-sifying him because of the consequent impossibility to describe his being a subject Hume admits instead a science of the hu-man being that is only restricted to the description of his (or her) absence of identity Man is a subject only if he is subjugated this however does not entail that the man is always free apart from the aspect of his or her subjection to the magistrate (as if free-dom belonged to his private and apolitical space)

The attempt to subjugate his own desire to a rational or spiritu-al norm is also criticized such effort is not only painful but also useless83 and furthermore it is not the demonstration of liberty imposed by man on his or her life Hume speaks in this case of artificial behaviors that derive from the split with the analogy and with repetition furnished by custom they are not manifestations of a strong freedom that ranges inside what is given They only concern the exasperation of some principles or inclinations that become dominant subjugating all the other desires and affec-tions84 Human beings cannot impose a norm on themselves or on others

It is particularly clear in this sense what Hume intends to warn the skeptical philosopher (with whom we may identify Hume himself) skepticism must be limited to the philosophical matters It must not lead to popular objections with the purpose of placing into question the bases of our daily behavior Radical doubt is

80 Remaining in the Treatise we can find the following recurrences of the word ldquosubjectrdquo in the sense of ldquosubmittedrdquo ldquosubjugatedrdquo ldquoa person owing allegiance to a king or queenrdquo Treatise 221 222 262 343 345 358 364 37581 See the entry ldquosujetrdquo in Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles ed B Cassin (Paris Le Seuil Le Robert 2004) 1233ndash125482 About this see Eacutetienne Balibar Citoyen sujet et autres essais drsquoan-thropologie philosophique (Paris PUF 2011) in particular the introduction (ldquoAvant-propos ndash Apregraves la querellerdquo)83 David Hume The Sceptic in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 323184 The Sceptic 214

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

193

easily swept away not due to solid reasoning but through life itself The occupations of daily life will be the agents that will wake up the skeptic from his dream full of questions the skepti-cal principles ldquovanish like smoke and leave the most determined skeptic in the same condition as other mortalsrdquo85

7 A politics without subjugation

General rules imagination and habit thought of as central fac-tors lead to a conception of politics as a continuous rebalancing between repetitions series of analogies and without reaching a firm center that would be able to bring them (also in a teleological way) to stability and establish a fixed criterion to distinguish what is right and what is wrong86 Norms that regulate relationships among human beings develop independently from any law sti-pulated by the state or a rational or divine being and they are not necessarily instituted by a constitution or by a philosophical system Thus it is possible to verify the source of obedience to norms without however implying that this obedience presuppo-ses submission or a subject It is therefore possible to think of a norm invested of a power that does not want to subdue man the power still remains in his hands87 and it cannot be ceded to a sovereign Instead of a binary order constituted by the pairs truefalse and correctwrong to which human beings should submit Hume proposes probability which totally replaces the possibility of certainty in the cognitive and practical fields Thus norms are not an instrument to include or to exclude legitimate or not but it is the result of what may be more or less probable Its purpose is to allow man to proceed over what is simply given hence streng-thening his faculties In a different way in respect to the instincts general rules include any element preventing the consideration of something as a transgression a glitch among all analogies These rules are not established to regulate the liberty of the indi-viduals or allow their independence They are rather the result of human imagination and nature Obeying them is not a matter of subjugation and breaking them is not a sign of freedom liberty is not something that should (or not) be folded to the general rules

Humersquos skeptic and empirical philosophy has dethroned the subject from its grounding position and has made it the product of the general rules themselves of the imagination and of habits Nobody can impose on nature to make possible a condition of freedom general rules are not the product of reasoning and they 85 Enquiry concerning Human Understanding 13086 For a summery about the interpretations of Hume as a conservative or as a reformer see D W Livingston ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo Hume Studies 21 (1995) 151ndash16487 laquoas Force is always on the side of the governed the governors have nothing to support them but opinionraquo David Hume Of the First Principles of Government in The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 3110

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

194

do not lead to a complete and perfect systematization of socie-ty and ethics Whether it is a matter of liberty truth and moral or cognitive order there is a continuous reconstruction and an equilibrium to be rebalanced the human mind does not possess principles that could systematize experience Originally man is nothing else than a sort of a fold inside the immanence of the pro-cesses that characterizes nature that does not leave a space for certain truths but only an eternal rebalance among probabilities Thinking politics with Hume implicates the refusal of any element already given to the relationships and to empirical differences the renouncing of any transcendent plan and the idea of human liberty previous to relationships to the (violent) interaction of strength among men Liberty is not an anthropological peculiari-ty but it is rather already held within order and equilibrium It is not even possible to think of an already given subject that enjoys liberty Even if it would seem that man originally finds himself in the pair subjectumndashsubjectus88 he precedes it identities and the elements that allow the emergence of that pair of concepts are later constituted They are only a product of the imagination which is able to hide the differences and ever-changing flows

This is the advantage offered by Humersquos philosophy having difference and probability as points of departure for a philosophi-cal reflection on politics it is possible to trace the birth of identi-ties showing their fallacy and their mutability departing from the relationships the subject appears as a simple product We are very far from the idea of a subject grasping the truth We are ins-tead in the field of mutability in which human beings stir among probability and balances in which norms do not forbid but rather strengthen their faculties

88 laquoWe naturally suppose ourselves born to submissionraquo Treatise p 355

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

195

BIBLIOGRAFIA

BALIBAR Eacutetienne Citoyen sujet et autres essais drsquoanthropo-logie philosophique Paris PUF 2011

CASSIN Barbara Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles Paris SeuilLe Robert 2004

DELEUZE Gilles Empirisme et subjectiviteacute Paris PUF 2010

HUME David A Treatise of Human Nature Ed D F Norton M J Norton Oxford Clarendon Press 2007

___________ ldquoAn Enquiry Concerning Human Understan-dingrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoAn Enquiry Concerning the Principles of Mo-ralsrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoThe Scepticrdquo In HUME David The Philoso-phical Works Ed T H Green T H Grose Aalen Scientia Ver-lag 1964

KENNETH Winkler P ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo In The Cambridge Companion to Humersquos Treatise Ed D C Anslie A Butler Cambridge Cambridge University Press 2015

KONG Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non--sceptical Interpretationrdquo In History of political Thought nordm 34 2013) pp 89ndash113

LIBERA Alain Archeacuteologie du sujet Naissance du sujet vol I Paris Vrin 2007

___________ Archeacuteologie du sujet La Quecircte de lrsquoidentiteacute vol II Paris Vrin 2008

___________ Lrsquoinvention du sujet moderne Paris Vrin 2015

LIVINGSTON D W ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo In Hume Studies nordm 21 1995 pp 151ndash164

MALHERBE Michel La Philosophie Empiriste de David Hume Paris Vrin 2001

NEUJAHR Philip J ldquoHume on Identityrdquo In Hume Studies nordm 4 1978 pp 18ndash28

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

196

PATTEN Steven C ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo In Hume Studies nordm 2 1976 pp 59ndash75

ROSENBERG Jay F ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo In Topoi nordm 19 2000 pp 137ndash145

WERTZ Spencer K ldquoHume History and Human Naturerdquo In Journal of the History of Ideas nordm 36 1975 pp 481ndash496

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

197

Resenha

Resenha do livro Teoria da heteroniacutemia de Fernando Pessoa (Org de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvin 2012)

O Palco da Heteroniacutemia

Teoria da heteroniacutemia tem como eixo central o tema que seus organizadores consideram como sendo dos mais impor-tantes para compreensatildeo da obra pessoana como um todo a questatildeo da criaccedilatildeo heteroniacutemica que aqui se apresenta em fragmentos cartas poemas ensaios e textos escritos pelo poeta portuguecircs ou por seus heterocircnimos ao longo de deacuteca-das Muitas vezes sem dataccedilatildeo precisa os documentos prati-camente cobrem toda a vida intelectual de Pessoa dando-nos testemunhos das inquietaccedilotildees que o motivaram a formular e a desenvolver sua poeacutetica No prefaacutecio que escrevem a esse volume quando buscam introduzir o leitor no universo da pro-duccedilatildeo pessoana os organizadores de Teoria da heteroniacutemia re-correm a um exemplo cuja fonte seria o psiquiatra Ronald Laing e que teria sido citado por Eduardo Prado Coelho em um estudo que dedicou a Pessoa Trata-se de uma crianccedila que brinca com certo nuacutemero de cadeiras

ldquoCada cadeira tinha por funccedilatildeo desencadear um ima-ginaacuterio especiacutefico na primeira ela [a crianccedila] tornava-se um cow-boy do Oeste americano na segunda convertia-se num gangster de Chicago na terceira era um chinecircs negociante que atravessava a Aacutesia na quarta um pirata dos mares do Sul segundo o modelo de Sandokan e na uacuteltima cadeira voltava a ser a crianccedila ajuizada que sempre havia sido e que tinha que fazer os trabalhos da escolardquo1

Como o menino e suas cadeiras o poeta portuguecircs tem uma obra muacuteltipla constituiacuteda de vaacuterias personas literaacuterias ou personagens dos quais por vezes o proacuteprio nome Fernando Pessoa poderia ser visto como sendo mais um deles mais uma das ldquocadeirasrdquo agraves quais recorre quando desenvolve sua obra Em carta a Joatildeo Caspar Simotildees de 28 de julho de 1932 o poeta ldquoexplicita sua intenccedilatildeo final toda a obra heterocircnima eacute para ser publicada sob o seu proacuteprio nome Fernando Pessoa sem ne-nhuma espeacutecie de hesitaccedilatildeordquo2 Se aqui o nome Fernando Pes-soa eacute visto como aquele que unificaria e para o qual culminaria todo o processo que eacute a proacutepria dinacircmica da criaccedilatildeo heteroniacute-1 Teoria da heteroniacutemia p16 apud COELHO EP ldquoO Viajante do In-versordquo ColoacutequioLetras 96 marccedilo-abril de 1987 p462 Teoria da heteroniacutemia p18

Luiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

Professor de filosofia pela Universidade Federal deSatildeo Carlos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

198

mica um nome que resume e abrange os demais em outros momentos ele natildeo parece ser mais que uma das assinaturas empregadas pelo poeta tais como as de Caeiro Aacutelvaro de Cam-pos Ricardo Reis Alexandre Search Antoacutenio Mora Bernardo Soares etc Assim na medida em que eacute visto como apenas mais um nome usado pelo autor Fernando Pessoa estaria submetido a mesma loacutegica que rege a produccedilatildeo e desenvolvimento dos outros nomes que aparecem na obra do poeta De certo ponto de vista ele pode mesmo ser considerado como sendo o menos real de todos os personagens do poeta Quando tomado como uma espeacutecie de veiacuteculo meio pelo qual os outros nomes sur-gem se exprimem e se reuacutenem em sua obra Fernando Pessoa poderia ser visto como o menos coeso o mais variaacutevel dos seus personagens como afirma o proacuteprio poeta ao falar de si mesmo ldquoSou poreacutem menos real que os outros menos uno menos pes-soal eminentemente influenciaacutevel por todos elesrdquo3

O que aqui estaria em jogo dizem os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ao fazer menccedilatildeo a leitura de Joseacute Gil es-tudioso da obra pessoana seria uma outra concepccedilatildeo de sub-jetividade possibilitada pelo proacuteprio movimento no qual surgem os heterocircnimos um ldquosujeito de tipo novo que consistiria no proacute-prio intervalo entre os sujeitos que a escrita heteroniacutemica potildee em cenardquo4 Desse modo a escrita heteroniacutemica pressuporia um agente produtor ou autor que tivesse sempre de guardar algo de indistinto ou despersonalizado na medida mesma em que ele deve estar sempre aqueacutem ou aleacutem dos personagens que forma ou assume Ao menos em um primeiro momento para ser aque-le que daacute ocasiatildeo para que surjam todos esses personagens o autor natildeo poderia ser nenhum deles em particular Por isso quando assim considerado a autoria e com ela a subjetivida-de do autor passaria a ocupar uma ldquosituaccedilatildeo intervalarrdquo expli-cam-nos os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ndash o autor sempre estaria no espaccedilo entre o personagem que acabou de apresentar ou assumir e aquele que estaacute prestes a expor ou a encarnar Assim a autoria passa a assemelhar-se a um espaccedilo vazio se por isso entendermos algo desprovido de forma defini-da ou mesmo amorfo termo usado pelo proacuteprio Pessoa quando descreve a ldquolinha fluida de minha personalidade amorfardquo5 Tal passagem nos parece interessante justamente por conjugar a ausecircncia de forma a um movimento que eacute o da escrita o escri-tor acaba por representar um papel no interior do processo de escrita mas a condiccedilatildeo de sua arte eacute que ele seja um tipo de personagem despersonalizado que seja antes um fluxo e que para assumir diversas personas ele mesmo natildeo possa ser ne-nhuma em especial Desse tipo de relaccedilatildeo complexa que sua poeacutetica exigiria nosso autor parece bastante consciente quan-do por exemplo afirma que ele eacute ldquoindividuado por uma suma 3 Teoria da heteroniacutemia p2314 Teoria da heteroniacutemia p13 grifo nosso5 Teoria da heteroniacutemia p 160 Texto 31 provavelmente de 1915

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

199

de natildeondasheus sintetizados num eu posticcedilordquo6 Neste processo a necessidade de formar e depois unificar os diversos natildeo-eus eacute tatildeo forte quanto a consciecircncia de que tal unificaccedilatildeo se faz no interior da divisatildeo e que aqui paradoxalmente o indiviacuteduo ape-nas poderaacute se apresentar como sendo divisiacutevel ao infinito ele formaraacute outros natildeo-eus para unificaacute-los sob um novo eu posticcedilo que em seguida daraacute continuidade ao processo e originaraacute ou-tros natildeo-eus e assim por diante Designaria o nome Fernando Pessoa esse eu posticcedilo que se unifica e se divide a cada mo-mento de sua obra Como vimos em certo sentido podemos pensar que se trata de um nome privilegiado frente aos demais (corresponderia agrave assinatura do autor distinta da de seus per-sonagens como a de Caeiro Campos ou Reis) mas por outro lado ele ainda pode ser visto como sendo apenas mais um dos personagens soacute mais uma ldquocadeirardquo entre as muitas que o poe-ta fabrica talvez a mais irreal de todas como nos dizia Pessoa em trecho acima citado Assim como o garoto do exemplo que encontra a cadeira na qual volta a ser o menino que era antes de iniciar a brincadeira Pessoa teria esse momento em que se-ria ele mesmo mas esse ele mesmo jaacute natildeo existe fora de um universo em que os seus outros eus tambeacutem existem Neste instante o eu jaacute estaacute em uma situaccedilatildeo em que ele soacute eacute na medi-da em que eacute muitos em que eacute dois para falar como Pessoa em um poema que tambeacutem se deteacutem na ideia de uma brincadeira infantil

Brincava a crianccedilaCom um carro de bois Sentiu-se brincandoE disse Eu sou dois

Haacute um a brincar E outro a saberUm vecirc-me a brincarE outro vecirc-me a ver7

Nesse sentido o eu passaria a ser mais um persona-gem uma vez que se mostra tal como um deles em que se relaciona com os demais e em que aparece no mesmo jogo ou sob a mesma loacutegica8 que rege o surgimento dos outros o eu que primeiramente poderia ser visto como o produtor do proces-so da brincadeira no caso das crianccedilas passa agora a inte-grar a proacutepria criaccedilatildeo como se o autor no processo mesmo de autoria fosse levado a criar em algum momento o seu lugar o

6 Teoria da heteroniacutemia p 150 Texto 26 provavelmente de 19157 Teoria da heteroniacutemia Poema 6 de 5121927 p3378 Vale lembrar que ldquoloacutegicardquo eacute um termo usado pelo proacuteprio Pessoa para designar uma forma de proceder ou certo modo de conduccedilatildeo no de-senvolvimento de algo de um modo de escrever ou criar por exemplo (Ver Teoria da heteroniacutemia p129 ou p142)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

200

seu espaccedilo ou o seu papel exatamente como criara para cada um de seus personagens Sob tal perspectiva toda criaccedilatildeo de personagens todo o nomear feito no interior da loacutegica da hete-roniacutemia seria tambeacutem algo como um ldquoheteronimiarrdquo com per-datildeo da expressatildeo isto eacute dar um nome pressuporia levar em conta todos os outros nomes com os quais esse primeiro se relaciona e a partir dos quais o seu proacuteprio nome ganha signifi-cado Nesse sentido a capacidade de formar um personagem seria tambeacutem aquela de formar vaacuterios isto eacute os seus vaacuterios os seus natildeo-eus os outros com os quais cada personagem se relaciona no interior dessa loacutegica criativa talvez algo que com alguma liberdade pudeacutessemos chamar de os seus natildeo-nomes proacuteprios todos aqueles nomes que natildeo satildeo o do personagem ou da persona literaacuteria mas que estatildeo a ele ligados e por isso ainda lhe seriam proacuteprios Posto assim em meio ao processo de criaccedilatildeo heteroniacutemica natildeo acabaria por receber o nome Fernan-do Pessoa algo que o aproxima da condiccedilatildeo de um heterocircnimo justamente quando o vemos como o autor de uma obra que estaacute plena de personagens que satildeo eles tambeacutem autores9 Segundo o criteacuterio adotado pelos organizadores de Teoria da heteroniacutemia antes de tudo um heterocircnimo se caracterizaria por ser um escritor por ter redigido um livro um ensaio um poema ou ter o projeto de fazecirc-lo Satildeo entatildeo personagens ativos eles mesmos criadores e sob essa perspectiva muito proacuteximos da atividade daquele que os forjou o proacuteprio Pessoa

Termo que teria sido cunhado pelo poeta portuguecircs por volta de 1928 para designar um modo de produccedilatildeo artiacutestico que o acompanhava desde os cinco anos de idade quando teria criado o Chevalier de Pas10 heterocircnimo jaacute traz em sua letra a alteridade sem a qual ele natildeo se define e natildeo se individua Eacute nesse sentido que malgrado seus traccedilos proacuteprios seu estilo ca-racteriacutestico e tudo o mais que o distingue e o torna algueacutem uacutenico e particular Caeiro (na medida em que eacute um heterocircnimo e como todo heterocircnimo) pode tambeacutem ser visto como um ser plural uma vez que o seu nome jaacute pressuporia um universo de outros nomes com os quais ele se liga ou em direccedilatildeo aos quais ele se estende Sua obra como sua assinatura iria aleacutem dela mesma e se completaria naquela de seus seguidores como Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antoacutenio Mora Tal conviacutevio ou relaccedilatildeo torna cada um desses heterocircnimos tatildeo individuais fechados e acabados em si mesmos quanto dependentes desses seus natildeo-eus ndash esses seus outros a ele aparentados ou apropriados

9 Sem aqui querer entrar nos meandros das questotildees e das distinccedilotildees que separam o que em Pessoa chama-se de ortocircnimo semi-heterocircnimo e heterocircnimo propriamente dito buscamos unicamente centrar-nos em um processo ou loacutegica de criaccedilatildeo pela qual o poeta forja seus personagens ou autores tal como sugere o volume Teoria da heteroniacutemia ao reunir variados textos sob a rubrica maior da heteroniacutemia10 Os organizadores de Teoria da heteroniacutemia o consideram como sen-do o primeiro dos heterocircnimos de uma lista de mais de cem criados por Pes-soa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

201

Prova disso seriam os textos que Ricardo Reis Aacutelvaro de Cam-pos e Thomas Crosse escreveram sobre Caeiro momentos em que se analisa a obra do mestre em que se descreve seu modo de vida e por vezes lhe datildeo a palavra e o fazem falar como o faz Aacutelvaro de Campos ao relatar diaacutelogos que teve com Caeiro11 O mesmo poderia ser notado em relaccedilatildeo agraves transformaccedilotildees modificaccedilotildees e intercacircmbios que ocorrem entre os heterocircnimos pelos quais Alexander Search talvez seja tambeacutem Ceaser Seek ou quando Vicente Guedes ldquocede lugar (e o Livro do desassos-sego) a Bernardo Soaresrdquo12 ou ainda quando pensamos no viacuten-culo que se estabelece entre o mesmo Bernardo Soares e o seu livro e a obra de outro heterocircnimo o Baratildeo de Teive Nesse mo-vimento de criaccedilatildeo que a criacutetica chamou de heteroniacutemico13 tudo leva a crer que quanto melhor e mais acabada estiver a com-posiccedilatildeo de um heterocircnimo mais ela indicaraacute ou pressuporaacute os desdobramentos em direccedilatildeo agrave alteridade que ele o heterocircnimo jaacute compreenderia em seu interior como sendo o exterior que lhe eacute proacuteprio o seu universo Ele traria entatildeo consigo uma exterio-ridade (que eacute tambeacutem o seu outro sua alteridade) que natildeo lhe seria exata e completamente estranha ou alheia mas que a ele ainda guardaria proximidade Entatildeo talvez seja por ser tatildeo bem caracterizado por ter um estilo e personalidade tatildeo marcados que Caeiro possa tambeacutem explicitar com tanta eficaacutecia a ordem do universo que o ladeia e deixar claro o que Pessoa chama de ldquonatureza dramaacutetica das minhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo14 Eacute sobretudo a partir da relaccedilatildeo entre Caeiro Campos e Reis que se poderia compreender a criaccedilatildeo heteroniacutemica como dra-maacutetica e Pessoa o criador passaria ser um poeta dramaacutetico como ele mesmo nos diz15 ldquoCriarrdquo escreve Pessoa ldquoeacute substituir a si proacuteprio () Que cada um seja muitosrdquo16 Ou entatildeo ldquoPara criar destruiacute-me Tanto me exteriorizei de mim que dentro de mim natildeo existe senatildeo exteriormente Sou a cena nua onde pas-sam vaacuterios atores representando vaacuterias peccedilasrdquo17

Toda criaccedilatildeo demandaria um sair de si que por sua vez acaba por dar origem a uma comunidade ou antes a uma cena ou espaccedilo em que atuam ou podem atuar diversos persona-

11 Teoria da heteroniacutemia Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro p31512 Teoria da heteroniacutemia p3113 Vale lembrar que Pessoa cria apenas heterocircnimo que por vezes aparece descreve o seu ato de compor por exemplo ldquominhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo em um trecho que citaremos a seguir Heteroniacutemico ou hete-roniacutemia satildeo termos cunhados pela criacutetica pessoana Ver Teoria da heteroniacute-mia p11114 Teoria da heteroniacutemia texto 69 p230 provavelmente de 192815 ldquoO ponto central da minha personalidade como artista eacute sou um poeta dramaacutetico tenho continuamente em tudo quanto escrevo a exalta-ccedilatildeo iacutentima do poeta e a despersonalizaccedilatildeo do dramaturgo Voo outro ndash eis tudordquo afirma Pessoa Teoria da heteroniacutemia Carta a Joatildeo Gaspar Simotildees 11121931 p25316 Teoria da heteroniacutemia texto 50 p19817 Teoria da heteroniacutemia texto 57 p210 grifo nosso

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

202

gens um tipo de palco no qual a individualidade surge ao se relacionar com os seus proacuteprios natildeo-eus A criaccedilatildeo em geral e a poeacutetica em particular dependeriam do estabelecimento desta cena ou teatro como nos explica Pessoa em uma passagem em que se faz menccedilatildeo a uma distinccedilatildeo aristoteacutelica

ldquoHaacute duas feiccedilotildees literaacuterias ndash a eacutepica e dramaacutetica O lirismo eacute a incapacidade comovida de ter qualquer delas O que eacute ser liacuterico Eacute cantar as emoccedilotildees que se tecircm Ora cantar as emoccedilotildees que se tecircm faz-se ateacute sem cantar O que custa eacute cantar as emoccedilotildees que se natildeo tecircm Sentir profundamente o que se natildeo sente eacute a flacircmula de almirante da inspiraccedilatildeo O poeta dramaacutetico faz isto diretamente o poeta eacutepico faacute-lo in-diretamente sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela isto eacute sentindo exatamente aquele elemento da obra de que natildeo pode haver emoccedilatildeo nenhuma pessoal porque eacute abstrato e por isso impessoal Fomos esboccediladamente eacutepicos Seremos inviolavelmente dramaacuteticos Fomos liacutericos quando natildeo fomos nadardquo18

Anos mais tarde provavelmente em 1932 Pessoa volta ao tema agora explicitando a fonte aristoteacutelica da distinccedilatildeo com a qual trabalha para ir aleacutem dela e chamar a atenccedilatildeo para o que aqui lhe surge como sendo o mais importante a destacar a saber a passagem de uma poesia liacuterica para uma poesia dra-maacutetica

ldquoDividiu Aristoacuteteles a poesia em liacuterica elegiacuteaca eacutepica e dramaacutetica Como todas as classificaccedilotildees bem pensadas eacute esta uacutetil e clara como todas as classificaccedilotildees eacute falsa Os gecirc-neros natildeo se separam com tanta facilidade iacutentima e se ana-lisarmos bem aquilo de que se compotildeem verificaremos que da poesia liacuterica agrave dramaacutetica haacute uma gradaccedilatildeo contiacutenuardquo19

Para Pessoa natildeo se trata mais de determinar com pre-cisatildeo cada um dos gecircneros literaacuterios elencados mas antes en-tender sua correspondecircncia ou continuidade Ateacute mesmo a in-dividualidade ou as caracteriacutesticas dos gecircneros parecem aqui demandar a ideia de uma multiplicidade a eles vinculada os gecircneros satildeo pensados em relaccedilatildeo aos outros gecircneros O poeta passa entatildeo a mostrar que a gradaccedilatildeo que iria da liacuterica ao dra-ma eacute feita por uma ldquoescala de despersonalizaccedilatildeordquo20 pela qual o poeta se tornaria cada vez mais um outro cada vez menos ele mesmo se por ele aqui entendermos o cantor de suas proacuteprias emoccedilotildees Assim o drama caracterizar-se-ia pela despersonali-zaccedilatildeo daquele que cria pela possibilidade de dar origem a ou-

18 Teoria da heteroniacutemia texto 61 ldquoEntrevista agrave Revista Portuguesardquo 13 de outubro de 1923 p22119 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p268 provavelmente de 193220 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 1932

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

203

tros personagens de inventar para si mesmo outros autores e sentir intensamente o que eles sentiriam O poeta dramaacutetico jaacute natildeo pode entatildeo sentir como noacutes comumente fazemos pois o sentimento que revela em sua obra eacute o do outro eacute o do persona-gem portanto um sentimento fruto da ficccedilatildeo Por esse motivo embora na forma um poema possa se parecer com aquela em que comumente se apresenta a liacuterica ele passa a ser dramaacutetico quando atinge essa niacutevel de despersonalizaccedilatildeo Se explica-nos Pessoa Shakespeare retirasse Hamlet da forma como aparece no ceacutelebre poema dramaacutetico que leva o seu nome e fizesse com esse mesmo personagem uma espeacutecie de monoacutelogo ele natildeo perderia sua carga dramaacutetica seria apenas um ldquodrama de uma soacute personagemrdquo21 A ideia de drama aqui natildeo se restringe entatildeo agrave estrutura feita por diaacutelogos e falas como estamos acostuma-dos a ver nos textos que se prestam agrave encenaccedilatildeo teatral Para Pessoa a noccedilatildeo de poesia dramaacutetica alarga-se e eacute antes de-terminada pelo distanciamento do poeta frente ao personagem ou ao discurso que apresenta O poeta aqui daacute a palavra ao personagem e nesse sentido todo personagem eacute ele mesmo o autor de sua fala possuidor de sua proacutepria assinatura Seria exatamente esse procedimento que estaria operando na com-posiccedilatildeo dos heterocircnimos como nos explica Pessoa a propoacutesito daquele que talvez seja o mais conhecido dos autores por ele inventados Caeiro

ldquoAlberto Caeiro poreacutem como eu o concebi eacute assim assim tem pois ele que escrever quer eu queira ou natildeo quer eu pense como ele ou natildeordquo22

No prefaacutecio de Teoria da heteroniacutemia os organizado-res do volume ainda nos lembram que poderiacuteamos reconhecer elementos desta dramaticidade aqui defendida por Pessoa em autores como Keats Browning Wordsworth e Novalis ldquoTudo o que se passa numa mente humana de algum modo anaacutelogo se passou jaacute em toda mente humanardquo23 reconhece o proacuteprio autor E no entanto jaacute eacute impossiacutevel natildeo admitir a dimensatildeo e o modo original com que a obra do poeta portuguecircs trata o tema rela-cionando-o com uma de suas caracteriacutesticas mais peculiares e marcantes a dinacircmica da produccedilatildeo heteroniacutemica Desta origi-nalidade os textos que compotildeem Teoria da heteroniacutemia datildeo--nos muitas provas

21 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 193222 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p270 provavelmente de 193223 Teoria da heteroniacutemia texto 65 p225 provavelmente de 1925

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

204

Resenha do livro STAROBINSKI Jean A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2014

A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire

Com uma produccedilatildeo criacutetica heterogecircnea que inclui a anaacute-lise da obra de filoacutesofos como Rousseau e Montesquieu Jean Starobinski eacute um dos mais respeitaacuteveis criacuteticos literaacuterios da atu-alidade Em A melancolia diante do espelho esse meacutedico de formaccedilatildeo analisa os desdobramentos do tema da melancolia nos poemas de Baudelaire

No primeiro capiacutetulo o leitor eacute informado de que embo-ra consciente da claacutessica interpretaccedilatildeo meacutedica que associa a melancolia ldquoa ofuscaccedilatildeo do ceacuterebro pelardquo bile negra Baudelaire se apropria do tema de forma mais proacutexima agraves significaccedilotildees do seu tempo Aleacutem disso para evitar o uso excessivo do termo o poeta de ldquoAs flores do malrdquo agraves vezes recorre agrave expressatildeo sple-en Para tanto o spleen vai assumir nos estudos de Walter Ben-jamin sobre o poeta da modernidade uma configuraccedilatildeo impor-tante junto com o conceito de ideal ele sintetizaria o cerne da vivecircncia moderna caracterizada pela impossibilidade de trans-missatildeo dos valores ligados agrave tradiccedilatildeo Segundo Starobinski a interpretaccedilatildeo benjaminiana que entrevecirc na melancolia um sin-toma da natildeo assimilaccedilatildeo da experiecircncia eacute uma perspectiva de leitura interessante

Em ldquoIronia e reflexatildeordquo segundo capiacutetulo nota-se que a representaccedilatildeo da melancolia por meio da imagem refletida no espelho mote principal dos estudos de Starobinski comeccedila a ser engendrada em ldquoO Espelhordquo A conexatildeo entre a melanco-lia e o espelho estabelecida nesse poema em prosa publica-do pela primeira vez em 1864 eacute fruto do descontentamento de Baudelaire com o Golpe poliacutetico de Napoleatildeo II que suplantou o governo revolucionaacuterio de 1848 Eacute possiacutevel observar em ldquoO Es-pelhordquo o lamento pela natildeo efetivaccedilatildeo dos ideais emancipatoacuterios da Revoluccedilatildeo de 1848

Um homme eacutepouvantable entre et se regarde dans la glacelaquoPourquoi vous regardez- vous au miroir puis que vous ne pouvez vous y voir qursquoavec deacuteplaisirraquoLrsquohomme eacutepouvantable me reacutepond laquomdashMonsieur drsquoapregraves les immortelsprincipes de 89 tous les hommes sont eacutegaux en droits donc je possegravede le droit deme mirer avec plaisir ou deacuteplaisir cela ne regarde que ma

Franceila de SouzaRodrigues

Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

205

conscienceraquoAu nom du bom sens jrsquoavais sans doute raison mais au point de vue de la loiil nrsquoavait past ort1

Outra forma de representaccedilatildeo da melancolia espelha-da pode ser observada em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo Segundo Starobinski esse poema em prosa faria parte de um epiacutelogo inconcluso para ldquoAs Flores do malrdquo A imagem do melancoacutelico diante do espelho exibida em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo evidencia uma interioridade ferida Em uma anaacutelise atenta do poema eacute possiacutevel notar a presenccedila da dualidade sadomasoquista Ela seria intriacutenseca agrave melancolia Diante dessa questatildeo Starobinski observa que a interpretaccedilatildeo corrente que associa o masoquis-mo ao gozo conquistado por meio da inflicccedilatildeo de dor estaacute dis-tante da compreensatildeo freudiana para quem o masoquismo tem uma precedecircncia saacutedica Ou seja de acordo com Freud a dor dirigida a si mesmo na verdade eacute fruto de um tormento dirigido a outrem e que recalcado retorna para o ldquoeurdquo como num espelho

Je suis la plaie et le couteauJe sui la soufflet et la joueJe suis les membres et la roueEt la victime et le bourreau2

No terceiro capiacutetulo dedicado agraves figuras inclinadas Sta-robinski analisa o poema ldquoLe Cygnerdquo exemplo mais bem acaba-do de poesia sentimental Nesse momento do texto percebe-se que apoacutes estudar a longa tradiccedilatildeo iconoloacutegica e literaacuteria sobre a melancolia o autor conclui que a exaltaccedilatildeo e o abatimento satildeo duas caracteriacutesticas inerentes ao comportamento do melancoacute-lico A figura inclinada apoiando a cabeccedila numa das matildeos eacute a representaccedilatildeo mais frequente dessa dualidade que pode dar ensejo tanto a tristeza esteacuteril quanto a plenitude do saber

A divisatildeo de ldquoLe Cygnerdquo entre duas figuras icocircnicas o Androcircmaca e o cisne produz um efeito de espelhamento que reforccedila o peso inerente agrave figura inclinada Enquanto o cisne se caracteriza pela loucura e pela posse mon grand cygne o An-drocircmaca remete ao olhar pesaroso em busca do incorpoacutereo e do efecircmero ou ainda a proacutepria imagem refletida no espelho

No entanto uma anaacutelise atenta dos poemas com me-lancolias espelhadas revela o desejo de Baudelaire curar-se do estupor melancoacutelico Na anaacutelise de Starobinski o conceito de ironia desenvolvido pelos romacircnticos eacute fundamental para esse ponto de virada que possibilita a Baudelaire substituir os traccedilos passivos e derrotados do melancoacutelico pela agressividade Sen-1 BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 892 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p108 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

206

do assim a consciecircncia reflexiva possibilita ao melancoacutelico que se encontra dissonante da muacutesica do mundo refletir sobre a perda da totalidade levando-o a um estado de humor capaz de transformar o masoquismo em potecircncia afirmativa condutora do autoconhecimento socraacutetico

Por outro lado como ressalta Starobinski a ironia natildeo oferece uma possibilidade de emancipaccedilatildeo da melancolia Pelo contraacuterio ela eacute consequecircncia dessa desordem O homem me-lancoacutelico estaria condenado ao riso eterno Fenocircmeno que pode ser notado neste excerto de ldquoLe Cygnerdquo

Paris change mais rien dans ma meacutelancolieNrsquoa bougeacutepalais neufs eacutechafaudages blocsVieux faubougs tout pour moi devient alleacutegorieEt mecircs chers souvenirs sont plus lourds que des rocs3

Em ldquoEspelhos derradeirosrdquo uacuteltimo capiacutetulo a figura me-lancoacutelica pesarosa daacute lugar agrave imagem da velha senhora que diante do espelho percebe a passagem do tempo sem perder a altivez Eacute como se estiveacutessemos diante de uma imagem refleti-da no espelho livre da imagem do peso inerente a um ldquoeurdquo que soacute pode brilhar no vazio e na natildeo existecircncia A partir da expres-satildeo da velha senhora diante do espelho eacute possiacutevel refletir sobre a vida que mesmo contraditoacuteria eacute o uacutenico lugar de realizaccedilatildeo das potencialidades humanas Eacute na contradiccedilatildeo inerente agrave rea-lidade que a vida se desdobra Eacute nela que nos realizamos como sujeito e que podemos ser felizes Talvez seja essa a principal liccedilatildeo de Baudelaire

BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 89

_______ Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles__les_fleurs_du_malpdf

STAROBINSKI J A melancolia diante do espelho Trad Samuel Titan Jr Satildeo Paulo Editora 34 2014

3 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

207

Traduccedilatildeo

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y Comentaacuterio

La idea de agregar comentarios a algunos de los poemas de esta antologiacutea se debe al propio Rilke quien le pidioacute a su editor que intercalara paacuteginas en blanco en un ejemplar de las Elegiacuteas de Duino y de los Sonetos a Orfeo para escribir en ellas sus explicaciones de los textos maacutes difiacuteciles1 Unas pocas aclara-ciones se encuentran al final de los Sonetos Los comentarios que aquiacute ofrecemos no pretenden sustituir a los que habriacutea po-dido redactar el propio autor Pero obedecen a una indicacioacuten del poeta y con eso adquieren en alguna medida legitimidad En ellos procuramos justificar tambieacuten nuestra traduccioacuten de al-gunos pasajes La seleccioacuten de los poemas aquiacute presentados se debe al azar Son meros ejercicios de traduccioacuten no esta-ban pensados para ser publicados y seguramente deberaacuten ser corregidos muchas veces Esperamos no haber dantildeado dema-siado los poemas al traducirlos Hemos tomado los textos de varias ediciones Rainer Maria Rilke Gedichte Herausgegeben von Silvia Schlenstedt Leipzig Philipp Reclam jun 1979 Rilke Werke (seleccioacuten) Tres tomos Frankfurt Insel 1991 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Gedichte aus den Jahren 1906 bis 1926 Insel Verlag 3ra ed 1978 En cada poema indicamos de manera abreviada el lugar donde puede encontraacuterselo

Archaiumlscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhoumlrtes Hauptdarin die Augenaumlpfel reiften Abersein Torso gluumlht noch wie en Kandelaberin dem sein Schauen nur zuruumlckgeschraubt

sich haumllt und glaumlnzt Sonst koumlnnte nicht der Bugder Brust dich blenden und im leisen Drehender Lenden koumlnnte nicht ein Laumlcheln gehenzu jener Mitte die die Zeugung trug

Sonst stuumlnde dieser Stein entstellt und kurzunter der Schultern durchsichtigem Sturzund flimmerte nicht so wie Raubtierfelle

1 Seguacuten J-F Angelloz ldquoIntroductionrdquo en Rilke Duineser Elegien Die Sonette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943 p 32

Mario Caimi

Professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Uni-versidade de Buenos Aires Doutor em Filosofia pela Uni-versidade de Mainz Alema-nha

mcaimi3yahoocom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

208

und braumlche nicht aus allen seinen Raumlndernaus wie ein Stern denn da ist keine Stelledie dich nicht sieht Du musst dein Leben aumlndern2

No conocimos su cabeza inimaginableen la que estaban los ojos Pero su torso arde todaviacutea como un candelabroen el que su mirada soacutelo retirada hacia adentro

se conserva y brilla Si no fuera asiacute la proadel pecho no podriacutea deslumbrarte ni podriacutea por la suave torsioacuten de la cintura llegar una sonrisahasta aquel punto medio capaz de engendrar

Si no fuera asiacute esta piedra estariacutea mutilada y seriacutea brevebajo el dintel diaacutefano de los hombrosy no brillariacutea como la piel de un animal de presa

ni escapariacutea de todos sus liacutemites la lumbrecomo una estrella pues no hay alliacute ninguacuten lugarque no te vea Debes cambiar tu vida

Muchas de las palabras que aparecen en el texto estaacuten usa-das con sentidos poco frecuentes o con sentidos que soacutelo son posibles en los maacutergenes del campo semaacutentico de cada una de ellas (esto como justificacioacuten de la traduccioacuten un poco arbitraria que sigue) El original estaacute formado por endecasiacutelabos rimados Creo que el tema general del poema es la mirada del dios La mirada que perdida la cabeza se ha refugiado en el torso Al recogerse la mirada dentro del torso todo eacutel queda incandes-cente todo eacutel se transforma en mirada (ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo)

Probablemente sea significativo tambieacuten que se trate de un torso arcaico Eso lo coloca maacutes cerca del origen y por eso maacutes cerca del dios mismo Como si fuera una copia del natural y no una copia de copia Esto le da un caraacutecter divino a todo el objeto Eso parece estar presente tambieacuten en la frase ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo

La mirada del dios tiene la propiedad de conocer cada cosa tal como es en siacute misma Por eso quien recibe esa mirada (quien la percibe cuando ella se transluce desde el interior del torso) siente que toda su vida con todos sus secretos ha quedado expuesta y con ello han quedado expuestas todas sus debi-lidades De ahiacute probablemente la frase final ldquoDebes cambiar tu vidardquo El cambio a que aquiacute se hace referencia no es segu-ramente un cambio banal cualquiera sino que debe de ser el cambio que resulta de poner toda la vida ante la mirada de un dios

2 Rainer Maria Rilke Gedichte p 95 Der neuen Gedichte anderer Teil en Rilke Werke Frankfurt 1991 tomo 1 p 313

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

209

Abschied

Wie hab ich das gefuumlhlt was Abschied heisst Wie weiss ichs noch ein dunkles unverwundnesgrausames Etwas das ein Schoumlnverbundnesnoch einmal zeigt und hinhaumllt und zerreisst

Wie war ich ohne Wehr dem zuzuschauendas da es mich mich rufend gehen liesszuruumlckblieb so als waumlrens alle Frauenund dennoch klein und weiss und nichts als dies

Ein Winken schon nicht mehr auf mich bezogenein leise Weiterwinkendes mdash schon kaumerklaumlrbar mehr vielleicht ein Pflaumenbaumvon dem ein Kuckuck hastig abgeflogen3

Cuaacutento sentiacute lo que es la despedidaQueacute bien lo seacute algo oscuro algo invulnerabley cruel que muestra otra vez lo amadoy lo ofrece otra vez y lo desgarra

Queacute inerme estaba yo mientras veiacuteaaquello que llamaacutendome me dejaba iry se quedaba Como si aquello fuera todas las mujeresY sin embargo era algo pequentildeo y blanco [y no era nada maacutes que esto

El agitarse de un pantildeuelo que ya no se referiacutea a miacuteUn suave agitarse del pantildeuelo que seguiacutea ya apenasreconocible quizaacute un ciruelodel que habiacutea salido volando de suacutebito un cuclillo

No fue posible traducir todas las palabras Se trata supon-go de formaciones expresivas que no tienen equivalente en espantildeol En especial ldquolo amadordquo del verso 3 es traduccioacuten apro-ximada de ldquoein Schoumlnverbundnesrdquo ldquolo bellamente aliadordquo ldquolo aliado en la bellezardquo El Adioacutes (la despedida) se muestra cosi-ficado aquiacute como algo (escrito con mayuacutescula en el original ldquoAlgordquo para subrayarlo) capaz de ser sujeto de acciones como mostrar ofrecer desgarrar El Adioacutes se presenta primero en el primer cuarteto de una manera general casi como si se pre-sentara una definicioacuten de eacutel De ahiacute el tiempo presente de los verbos con los que se lo describe

En el segundo cuarteto los verbos estaacuten en tiempo verbal pre-teacuterito y sirven para relatar una experiencia concreta (que fue de donde se extrajo probablemente el conocimiento que permitioacute

3 Neue Gedichte (1907) En Rilke Werke Frankfurt Insel 1991 p 273

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

210

la definicioacuten general de la estrofa primera) En los dos uacuteltimos versos el pantildeuelo que se agita en el adioacutes es ya indistinguibleYa no se sabe si es un pantildeuelo o si son flores de un aacuterbol movidas por el suacutebito vuelo de un paacutejaro Asiacute es como la memoria evoca algunas imaacutegenes que de tan remotas se han vuelto confusas El pantildeuelo y su adioacutes comienzan a perderse en el pasado

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Siehe wie klein dortsiehe die letzte Ortschaft der Worte und houmlheraber wie klein auch noch ein letztesGehoumlft von Gefuumlhl Erkennst dursquosAusgesetzt auf den Bergen des Herzens Steingrundunter den Haumlnden Hier bluumlht wohleiniges auf aus stummem Absturzbluumlht ein unwissendes Kraut singend hervorAber der Wissende Ach der zu wissen begannund schweigt nun ausgesetzt auf den Bergen des HerzensDa geht wohl heilen Bewusstseinsmanches umher manches gesicherte Bergtierwechselt und weilt Und der grosse geborgene Vogelkreist um der Gipfel reine Verweigerung mdash Aberungeborgen hier auf den Bergen des Herzens4

Expuesto sobre los montes del corazoacuten Mira queacute pequentildeo [allaacute

mira el uacuteltimo caseriacuteo de las palabras y maacutes arriba- pero queacute pequentildea tambieacuten - una uacuteltimagranja del sentimiento iquestAlcanzas a verlaExpuesto sobre los montes del corazoacuten Suelo de piedrabajo las manos Aquiacute tambieacuten brotaraacute seguramentealgo del abismo mudobrota cantando una hierba inocenteiquestPero el que sabe Ay el que comenzoacute a sabery ahora calla expuesto sobre los montes del corazoacutenPor ahiacute andaraacute quizaacute con la conciencia intactamaacutes de una cosa maacutes de un animal de la montantildea que estaacute seguro cambia y permanece Y el gran paacutejaro amparadoda vueltas en torno de la pura negacioacuten de las cumbres -

[Perodesamparado aquiacute sobre los montes del corazoacuten

Este poema parece un comentario y una prolongacioacuten de un texto de Goethe ldquoUumlber den Granitrdquo (ldquoSobre o Granitordquo)5 Alliacute Go-ethe ldquosentado en una alta y desnuda cumbrerdquo indica que el 4 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 895 Goethe J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

211

granito es el fundamento primero de la materia terrestre algo que no deriva de otra cosa ni del fuego ni del agua como las demaacutes rocas sino que sirve de principio del que las otras rocas derivan El granito es ldquoel fundamento de nuestra tierra sobre el cual se han formado todas las demaacutes montantildeasrdquo (ldquodie Grund-feste unserer Erde [] worauf sich alle uumlbrigen mannigfaltigen Gebirge hinaufgebildetrdquo) Forma dice Goethe ldquola entrantildea mis-ma de la tierrardquo (ldquoIn den innersten Eingeweiden der Erde ruht sie unerschuumlttertrdquo)

Los primeros cuatro versos son claros se dejan atraacutes las ca-sas de las palabras y uno queda como desnudo expuesto en lo que ya es puro corazoacuten sin palabras maacutes allaacute incluso de los sentimientos (quizaacute porque eacutestos todaviacutea pueden nombrarse) Este puro corazoacuten no es puro sentimentalismo sino algo que estaacute maacutes alto que los sentimientos Es algo que estaacute fundado en la roca viva (como lo dicen los versos quinto y sexto ldquoSuelo de piedra bajo las manosrdquo) Aquiacute se llega a lo que es fundamento uacuteltimo de todo lo demaacutes Es algo maacutes alto que las palabras e incluso maacutes alto que sentimiento Palabras y sentimiento des-cansan sin saberlo en esta roca viva

(Cf Goethe ldquoHier ruhst du unmittelbar auf einem Grunde der bis zu den tiefsten Orten der Erde hinreicht keine neuere Schicht keine aufgehaumlufte zusammengeschwemmte Truumlmmer haben sich zwischen dich und den festen Boden der Urwelt ge-legtrdquo Trad ldquoAquiacute descansas inmediatamente sobre un funda-mento que llega hasta los maacutes profundos lugares de la tierra ninguacuten estrato nuevo ninguna acumulacioacuten de escombros traiacute-dos por el agua se interponen entre tiacute y el firme suelo del mundo originariordquo)

Goethe niega toda vida a esta cumbre diese Gipfel haben ni-chts Lebendiges erzeugt [] sie sind vor allem Leben und uumlber alles Leben (ldquoEstas cumbres no han engendrado nada viviente [] son previas a toda vida y estaacuten por encima de toda vidardquo) En esto Rilke disiente de eacutel Aun alliacute en la roca viva y en el abismo mudo primordial brota una vida misteriosa Algo primi-tivo de una inocencia elemental Y lo primitivo lleva en siacute ale-griacutea (o al menos canto) ldquodel abismo mudo brota cantando una hierba inocenterdquo Para tener esa alegriacutea primitiva hay que ser inocente en el doble sentido de libre de pecado y de insciente o inconsciente La hierba estaacute afincada confiadamente en el abis-mo porque no es consciente de la profundidad de eacuteste ni del peligro A ella se contrapone ldquoel que saberdquo (que es lo contrario del inocente)

iquestQuieacuten o queacute es ldquoel que saberdquo Es el que tiene conciencia el que puede contemplar y ver con conciencia el poeta mismo Tal vez esteacute representado por el ldquogran paacutejarordquo mencionado a continuacioacuten Este puede sobrevolarlo todo y seguir estando se-guro Pero eacutel mismo se vuelve inseguro o desamparado cuan-hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981 paacuteg 254 y siguientes

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

212

do alcanza esa altura maacutexima la de los montes del corazoacuten Alliacute queda eacutel tambieacuten expuesto Creo que tambieacuten nos ayuda aquiacute el texto de Goethe So einsam sage ich zu mir selber [] wird es dem Menschen zumute der nur den aumlltsten ersten tiefsten Gefuumlhlen der Wahrheit seine Seele eroumlffnen will [] Ich fuumlhle die ersten festesten Anfaumlnge unsers Daseins ich uumlberschaue die Welt ihre schrofferen und gelinderen Taumller und ihre fernen fruchtbaren Weiden meine Seele wird uumlber sich selbst und uumlber alles erhaben und sehnt sich nach dem naumlhern Himmel (ldquoAsiacute de solitario me digo a miacute mismo [] se siente el ser humano que quiere abrir su alma soacutelo a los maacutes antiguos primeros maacutes pro-fundos sentimientos de la verdad [] Siento los primeros y maacutes firmes fundamentos de nuestra existencia contemplo el mundo sus valles empinados o suaves y sus lejanas praderas feacutertiles mi alma se eleva sobre siacute misma y sobre todas las cosas y anhela el cielo cercanordquo)

Lo extraordinario lo verdaderamente novedoso es la trans-mutacioacuten que opera Rilke del fundamento graniacutetico en un mon-te de corazoacuten Ya el mismo Goethe pone en relacioacuten esta piedra duriacutesima e inmutable con el corazoacuten humano vulnerable y ver-saacutetil Precisamente esa oposicioacuten parece vincularlos ldquoIch fuumlrch-te den Vorwurf nicht daszlig es ein Geist des Widerspruches sein muumlsse der mich von Betrachtung und Schilderung des mens-chlichen Herzens des juumlngsten mannigfaltigsten beweglichs-ten veraumlnderlichsten erschuumltterlichsten Teiles der Schoumlpfung zu der Beobachtung des aumlltesten festesten tiefsten unerschuumlt-terlichsten Sohnes der Natur gefuumlhrt hat Denn man wird mir gerne zugeben daszlig alle natuumlrlichen Dinge in einem genauen Zusammenhange stehenrdquo (ldquoNo temo a la objecioacuten de que sea un espiacuteritu de contradiccioacuten el que me lleva de la consideracioacuten y descripcioacuten del corazoacuten humano la parte maacutes nueva maacutes muacutelti-ple maacutes moacutevil maacutes mudable y maacutes conmovible de la Creacioacuten a la observacioacuten de la criatura maacutes antigua maacutes soacutelida maacutes profunda y maacutes inconmovible de la naturaleza Pues se me con-cederaacute faacutecilmente que todas las cosas de la naturaleza estaacuten en una correspondencia exactardquo)

Pero Rilke no establece soacutelo una relacioacuten por contraste sino que opera una transmutacioacuten Si uno fuera capaz de entender el mecanismo de esa operacioacuten entenderiacutea lo que es la poesiacutea y lo que es el don poeacutetico Alliacute donde Goethe veiacutea con razoacuten una correspondencia de los opuestos da Rilke un paso maacutes y muestra que lo que verdaderamente constituye el fundamento uacuteltimo lo que estaacute maacutes allaacute de las palabras y de los sentimien-tos lo que es el principio del que todo deriva y que no deriva a su vez de otra cosa es el corazoacuten La montantildea de granito se ha convertido en el monte del corazoacuten y las relaciones del sujeto expuesto con el suelo primigenio que lo sostiene se mantienen las mismas tanto en el caso de estar sobre una montantildea en la que aflora el fundamento graniacutetico como en el caso de estar expuesto sobre un monte en el que aflora la fuente misma de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

213

la vida y de la sensibilidad Ahora se ve queacute es lo que haciacutea que aquel fundamento de granito fuera un fundamento (y no un simple suelo) era su analogiacutea con el verdadero fundamento la fuente de la vida que es el corazoacuten Habriacutea que trabajar maacutes en la interpretacioacuten para ver queacute es exactamente ese corazoacuten Uno piensa naturalmente en Pascal y sus razones del corazoacuten Y la evocacioacuten de Pascal no es desencaminada tambieacuten en eacutel se oponen el granito cognoscible con el esprit de geometrie y el corazoacuten cuyos principios son accesibles soacutelo con el esprit de finesse

Wir sind nur Mund

Wir sind nur Mund Wer singt das ferne Herzdas heil inmitten aller Dinge weiltSein grosser Schlag ist in uns eingeteiltin kleine Schlaumlge Und sein grosser Schmerzist wie sein grosser Jubel uns zu grossSo reissen wir uns immer wieder losund sind nur Mund Aber auf einmal bricht der grosse Herzschlag heimlich in uns einso dass wir schreinmdash und sind dann Wesen Wandlung und Gesicht6

Somos soacutelo boca iquestQuieacuten canta al corazoacuten lejanoque permanece intacto en medio de todas las cosasSu gran latido estaacute repartido entre nosotrosen latidos pequentildeos Y su gran dolory su gran juacutebilo son demasiado grandes para nosotrosPor eso nos soltamos [de eacutel] una y otra vezy somos soacutelo boca Pero a veces en secreto irrumpe en nosotros el gran latidoy entonces gritamosy entonces somos esencia mutacioacuten y rostro

Parece un eco o una reminiscencia de Spinoza en el centro de todas las cosas intocado por ellas y daacutendoles vida a todas estaacute el gran corazoacuten (lo que Spinoza llamariacutea la esencia actuosa de la substancia el Ser que es activo que ejerce su potencia infinita daacutendoles ser a infinitas cosas) La esencia en la que todo es estaacute repartida se expresa en el pequentildeo y limitado esfuerzo con el que cada cosa singular trata de perseverar en el ser Nosotros en nuestra pequentildeez (es decir cuando esta-mos separados de esa Esencia cuando nos hemos soltado o arrancado de ella y nos quedamos en nuestra singularidad) la expresamos la decimos somos soacutelo bocas que la nombran

Pero a veces percibimos que aunque seamos cosas sin-6 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens 1978 p 136

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

214

gulares y limitadas somos parte de aquel Ser uacutenico y divino Y entonces somos verdaderamente lo que somos modos y afec-ciones de la Substancia uacutenica Pero entonces gritamos porque lo inmenso se apodera de nosotros y nos volcamos hacia ello

Ach nicht getrennt sein

Ach nicht getrennt seinnicht durch so wenig Wandungausgeschlossen vom Sternen-MassInnres was istsWenn nicht gesteigerter Himmeldurchworfen mit Voumlgeln und tiefvon Winden der Heimkehr7

Oh no estar separadono estar excluiacutedo por una pared tan delgadade la medida de las estrellasLo interior iquestqueacute esSi no es el cielo ahondadosurcado de paacutejaros y profundode los vientos del retorno a casa

La pared delgada viene a ser probablemente la piel las pa-redes de la caja toraacutecica lo que separa el interior humano del espacio inmenso de las estrellas Y sin embargo esa pared in-significante es lo que hace posible que haya un interior iquestQueacute es el interior iquestQueacute es lo que queda separado lo que existe con-trapuesto al mundo externo contrapuesto al mundo inmenso de las estrellas Es algo significativo justo por esa contraposicioacuten como si fuese algo capaz de igualar al universo estelar o de ser-virle de contrapeso Despueacutes leiacute en el Brockhaus que Rilke ha-biacutea empleado en otras partes el concepto de Weltinnenraum que Eduardo Garciacutea Belsunce tradujo bien por ldquoespacio coacutesmi-co interiorrdquo Aquiacute en este poema eso parece ser un espacio que se opone al infinito espacio coacutesmico pero que se le opone como un igual Lo interior es tambieacuten cielo pero cielo maacutes hondo cielo ahondado Y no es cielo soacutelo astronoacutemico no es espacio soacutelo geomeacutetrico sino viviente surcado de paacutejaros

En este espacio interior hay sobre todo algo que no estaacute en el espacio de las estrellas la casa el retorno a casa No hay casa en el espacio de las estrellas Todo es igual en ese espa-cio un lugar es igual a otro cualquiera En cambio en el espacio humano en ese espacio interior hay un centro o por lo menos hay un lugar que es diferente de todos los otros la casa Es la casa de cada cual y por tanto es diferente para cada uno Sin embargo por diferentes que sean las diversas casas en todos los humanos estaacute ese lugar privilegiado esa especie de centro de la intimidad Eso es lo que le da al espacio interior cierta 7 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 172

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

215

superioridad cualitativa ante el espacio infinito externo (ante el espantoso ldquosilencio eterno del espacio infinitordquo de Pascal)

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist alles

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist allesGeschicklichkeit und laumlsslicher Gewinn mdasherst wenn du ploumltzlich Faumlnger wirst des Ballesden eine ewige Mit-Spielerindir zuwarf deiner Mitte in genaugekonntem Schwung in einem jener Boumlgenaus Gottes grossem Bruumlcken-Bauerst dann ist Fangen-Koumlnnen ein Vermoumlgen mdashnicht deines einer Welt Und wenn du garzuruumlckzuwerfen Kraft und Mut besaumlssest nein wunderbarer Mut und Kraft vergaumlssestund schon geworfen haumlttest (wie das Jahrdie Voumlgel wirft die Wandervogelschwaumlrmedie eine aumlltre einer jungen Waumlrme hinuumlbershleudert uumlber Meere mdash) erstin diesem Wagnis spielst du guumlltig mit Erleichterst dir den Wurf nicht mehr erschwerstdir ihn nicht mehr Aus deinen Haumlnden trittdas Meteor und rast in seine Raumlume8

Mientras atrapes lo que tuacute mismo has arrojado todo eshabilidad y ganancia faacutecilSoacutelo cuando de repente eres el que atrapa una pelotaque te arrojoacute que lanzoacute al medio de tiuna jugadora eternacon impulso exactamente logrado en uno de aquellos girosde los de Dios cuando construye sus grandes puentessoacutelo entonces la habilidad de atrapar es una facultadmdashno tuya sino de un mundomdash Y si llegaras a poseerla fuerza y el coraje de devolver el tirono maacutes maravilloso auacuten si olvidaras el coraje y la fuerzay ya hubieras lanzado (como el antildeolanza los paacutejaros las bandadas de paacutejaros migrantesque un calor maacutes viejo le lanza a otro maacutes jovenpor encima de los mares) soacutelo cuando tienes ese arrojoparticipas en el juego de manera vaacutelidaYa no te haces faacutecil el tiro ya no te lo haces difiacutecilDe tus manos sale el meteoroy corre veloz por sus espacios

Creo que se trata de una reflexioacuten sobre la creacioacuten litera-ria Como si dijera ldquomientras intentes expresar lo que estaacute en ti mientras soacutelo trates de expresar las ideas que se te ocurren todo seraacute comparativamente faacutecilrdquo Esa poesiacutea que soacutelo expresa

8 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 124

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

216

a su autor estaacute al servicio de eacuteste Con respecto a ella dijo una vez un escritor colombiano Fernando Vallejo que ldquola poesiacutea es uno de los males de nuestro tiempordquo Todos tenemos algo que podriacutea ser expresado pero que difiacutecilmente les interese a los lectores porque ellos a su vez tienen tambieacuten cosas propias para expresar cosas que aunque no las expresen les intere-san maacutes Porque a cada cual le interesa en primer lugar y muy justificadamente lo suyo

Pero hay una obra que no es mera expresioacuten del autor (si en ella hay tal expresioacuten del autor es soacutelo como un momento secundario y accesorio) Esa poesiacutea es ante todo respuesta a una solicitacioacuten o a un desafiacuteo de origen divino (a un enviacuteo de la ldquojugadora eternardquo) El autor es entonces soacutelo un momento un segmento de un arco inmenso de los que traza Dios en su disentildeo del mundo Y eso es maacutes maravilloso auacuten si la respues-ta la devolucioacuten del tiro no es premeditada sino que obedece ella tambieacuten a la ciega necesidad de la esencia del autor como una respuesta inevitable e impensada La obra sale del autor (en ese caso ideal) como salen del otontildeo las bandadas de paacuteja-ros migratorios El autor entonces participa de un juego divino Participa de manera vaacutelida en el inmenso juego (que en realidad exige fuerzas muy superiores a las de un individuo singular) El poema (ese poema asiacute nacido) es entonces un cuerpo celeste que por derecho propio (como un elemento maacutes del disentildeo di-vino del mundo) ldquocorre veloz por los espaciosrdquo Lo mismo que se aplica aquiacute a la creacioacuten literaria podriacutea aplicarse al pensa-miento filosoacutefico

Jetzt waumlre es Zeit

Jetzt waumlr es Zeit dass Goumltter traumlten ausbewohnten Dingen Und dass sie jede Wand in meinem Haus umschluumlgen Neue Seite Nur der Windden solches Blatt im Wenden wuumlrfe reichte hindie Luft wie eine Scholle umzuschaufeln ein neues Atemfeld Oh Goumltter GoumltterIhr Oftgekommnen Schlaumlfer in den Dingendie heiter aufstehn die sich an den Brunnendie wir vermuten Hals und Antlitz waschenund die ihr Ausgeruhtsein leicht hinzutunzu dem was voll scheint unserm vollen LebenNoch einmal sei es euer Morgen Goumltter Wir wiederholen Ihr allein seid UrsprungDie Welt steht auf mit euch und Anfang glaumlnztan allen Bruchstelln unseres Misslingens9

Ya seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitan

9 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 173

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

217

Y de que derribaran cada pared de mi casa Nueva paacutegina Ya soacutelo el viento que esa paacutegina levantariacutea al volversealcanzariacutea para dar vuelta el airecomo el arado remueve la tierraun nuevo campo de respiracioacuten iexclOh dioses diosesVosotros visitantes frecuentes que duermen en las cosasque se levantan alegres que en fuentesque nosotros sospechamos se lavan el cuello y el rostroy que con ligereza antildeaden su descanso renovadoa aquello que pareciacutea completo a nuestra vida plenaQue otra vez sea vuestra mantildeana diosesNosotros repetimos Soacutelo vosotros sois origenEl mundo se levanta con vosotros y el comienzo relumbraen todas las roturas de nuestros fracasos

Creo que lo que figura como versos primero y segundo es en realidad un solo verso de medida mucho mayor que los demaacutes ldquoYa seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitanrdquo Ese primer verso del poema expresa con su oleada riacutetmica arrebatadora precisamente el viento gigante del que se habla en los versos siguientes Se anhela un viento de cambio que renueve todo Y esa inmensa renovacioacuten no seriacutea maacutes que una consecuencia del despertar de los dioses

Los dioses habitan en las cosas Hay en las cosas un nuacutecleo una dimensioacuten que no es de meras cosas inertes sino de algo divino Se ha dicho de muchas maneras la presencia de dioses en las cosas Ya sea que habiten verdaderamente en ellas como almas de las cosas (ldquoTodo estaacute lleno de diosesrdquo) ya sea que cada cosa sea la expresioacuten finita y limitada de la infinita potencia del ser de Dios ya sea que los dioses esteacuten presentes en cada cosa al crearla continuamente y conservarla en el ser (Spinoza Ethices pars secunda Propositio XLV Unaquaeque cuiuscum-que corporis vel rei singularis actu existentis idea Dei aeternam et infinitam essentiam necessario involvit)

Lo nuevo aquiacute el acontecimiento es el despertar de los dio-ses su salida de las cosas en las que habitan Con toda na-turalidad se produce ese despertar porque lo verdaderamente natural es la presencia de los dioses en las cosas Hay hasta detalles prosaicos los dioses se lavan ldquoel cuello y el rostrordquo No es una aparicioacuten solemne la de ellos sino que tiene ldquoligerezardquo Somos nosotros los que al medir todo por nuestro tiempo y por nuestra memoria encontramos extraordinaria esa presencia de los dioses y esa manifestacioacuten de ellos Para la verdadera ma-nera de ser de las cosas no hay nada maacutes natural que esa pre-sencia y el despertar estaacute dentro de lo normal para el tiempo de los dioses

Los dioses parecen ingenuos alegres y despreocupados No-sotros apenas sospechamos las fuentes en que ellos se lavan y se refrescan Cuando ellos aparecen descansados y alegres advertimos que faltaba algo al mundo nuestro que creiacuteamos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

218

completo Advertimos que no haciacuteamos maacutes que repetir una pauta o rutina que alguna vez nos fue dada como nueva Ahora con la renovacioacuten y el aire nuevo vuelve el origen lo origina-rio u original el inicio lo que es absolutamente nuevo Este es el verso central del poema ldquoNosotros repetimos soacutelo vosotros sois comienzordquo

Por maacutes naturalidad que expresen los dioses en su desper-tar por maacutes que ellos no se sorprendan de eacutel ni lo encuentren extraordinario no deja de ser un comienzo absoluto todo lo que ellos hacen Cada accioacuten de ellos es creacioacuten Ellos son origen En eso consisten su ingenuidad y su despreocupacioacuten Por eso tambieacuten nuestro ser gastado resulta renovado por su presencia De lo roto mana la luz de un nuevo comienzo

Bangnis

Im welken Walde ist ein Vogelrufder sinnlos scheint in diesem welken WaldeUnd dennoch ruht der runde Vogelrufin dieser Weile die ihn schufbreit wie ein Himmel auf dem welken WaldeGefuumlgig raumlumt sich alles in den SchreiDas ganze Land scheint lautlos drin zu liegender grosse Wind scheint sich hineinzuschmiegenund die Minute welche weiter willist bleich und still als ob sie Dinge wuumlsstean denen jeder sterben muumlssteaus ihm herausgestiegen10

Desasosiego

En el bosque mustio resuena el llamado de un paacutejaroun llamado que parece no tener sentido en este bosque marchitoY sin embargo el rotundo llamado del paacutejaroen este momento que lo hizo nacerdescansa amplio como un cielo sobre el bosque mustioDoacutecilmente se acomoda todo en el gritoTodo el campo parece yacer en eacutel en silencio el gran viento parece refugiarse en eacutely el minuto que quiere seguir su caminoestaacute paacutelido y silencioso como si supiera que de ese llamado bajan

[cosasque podriacutean llevar a cualquiera a la muerte

10 Rilke Das Buch der Bilder des ersten Buches zweiter Teil En Rilke Werke tomo 1 p 152

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

219

BIBLIOGRAFIA

ANGELLOZ J-F ldquoIntroductionrdquoIn Duineser Elegien Die So-nette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943

GOETHE J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden Hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981

RILKE Rainer Maria Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens In RILKE Rainer Maria Saumlmtliche Werke hg vom Rilke-Archiv in Verbindung mit Ruth Sieber-Rilke besorgt durch Ernst Zinn FrankfurtMain 1976

__________________ Das Buch der Bilder des ersten Bu-ches zweiter Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Gedichte Der neuen Gedichte ande-rer Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Neue Gedichte (1907)rdquo In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

220

Traduccedilatildeo

A Canccedilatildeo de outono de Paul Verlaine

Ineacutedito quando foi publicado em 1867 Canccedilatildeo de outono um dos poemas mais famosos1 de Paul Verlaine eacute o quinto da se-ccedilatildeo ldquoPaisagens tristesrdquo dos Poemas saturninos2 primeiro livro do autor O tiacutetulo da recolha eacute o que exprime com mais verdade concisatildeo e elegacircncia a proacutepria essecircncia do temperamento e da esteacutetica do poeta No plano iacutentimo Verlaine se julga marcado pelo selo original do infortuacutenio e da incapacidade de viver e atri-bui sua sina de eterno perdedor e de maldito agrave influecircncia do planeta Saturno considerado maleacutefico na tradiccedilatildeo esoteacuterica3 E eacute isso que a sua escritura no que ela tem de mais original tenta dizer pela recusa da eloquecircncia pela meacutetrica breve e sobretu-do pela busca constante de uma musicalidade do modo menor ldquoa muacutesica antes de tudordquo como ele diraacute na sua Arte poeacutetica4

A Canccedilatildeo de outono sugere a paisagem em vez de descre-vecirc-la esboccedila-a em vez de pintaacute-la Eacute um poema da sensaccedilatildeo do natildeo-dito do inexprimiacutevel das nuanccedilas em que o efecircmero convive com o indefinido em que os contornos se diluem na bruma das laacutegrimas e a paisagem real se apaga para dar lugar ao reflexo torturado de uma consciecircncia atormentada e indeci-sa Aqui o outono natildeo eacute a estaccedilatildeo do ano com as suas conota-ccedilotildees positivas as colheitas e o brilho das cores da natureza Eacute na verdade um fim melancoacutelico agonizante como uma morte No poema Verlaine tenta exorcizar pela muacutesica a inquietude da sua alma mas nele a tristeza eacute precisa saudade do passa-do inquietaccedilatildeo por sentir-se transportado por um ldquoar ruimrdquo sem renatamparreiracordeirogmailcom

1 Natildeo apenas pelo seu valor literaacuterio mas tambeacutem porque a Raacutedio Londres utilizou a primeira estrofe ligeiramente modificada em 5 de junho de 1944 agraves 21 horas e 15 minutos para avisar agrave rede de resistecircncia Ventri-loquista que o desembarque na Normandia iria ocorrer nas horas seguintes Parece que o exeacutercito alematildeo conseguiu decodificar a mensagem embora natildeo a tenha usado a seu favor As duas primeiras estrofes estatildeo gravadas no anverso da moeda de 2 euros comemorativa do aniversaacuterio de 70 anos do dito desembarque em 6 de junho de 19442 VERLAINE P Poegravemes saturniens suivi de Fecirctes galantes Paris LDP sd3 ldquoEacute ridiacuteculo o riso e assim decepcionanteAquela explicaccedilatildeo do misteacute-rio noturno Os que nasceram sob o signo de SATURNO Planeta fero fulvo e caro aos necromantes Segundo os manuais de bruxaria dacuteantes Tecircm um grande quinhatildeo de infortuacutenios e bilerdquo O primeiro dos Poemas saturninos (Traduccedilatildeo de Renata Cordeiro)4 VERLAINE P Jadis et naguegravere Paris LDP 2009

Renata Cordeiro

Tradutora profissional pre-miada pelo FNLIJ dos idio-mas francecircs inglecircs caste-lhano alematildeo e italiano para o portuguecircs Organizou e traduziu antologias de poe-mas franceses e de sonetos de Wiliam Shakespeare

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

221

poder reagir ldquoE eu vou-me assimrdquo natildeo significa ldquoeu partordquo mas ldquoeu me deixo irrdquo para onde o vento me leva deixo-me levar pela corrente pelo ldquoar ruimrdquo que me transporta A fatalidade eacute um tema caro a Verlaine porque Saturno o planeta mau natildeo lhe daacute treacutegua e o impede de ser feliz O ritmo do poema traduz esse sentimento complexo feito de anguacutestia e de abandono pelo jogo delicado de versos de quatro e de trecircs siacutelabas Esses metros curtos datildeo agrave rima que volta a intervalos regulares ressonacircncias particularmente sugestivas Neste caso o verso natildeo eacute soacute um conjunto de palavras providas de uma sintaxe e de um sentido mas tambeacutem o agrupamento de sons escolhidos para encantar o ouvido Verlaine revela possibilidades musicais do verso ateacute entatildeo ineacuteditas Privilegia as assonacircncias repeticcedilotildees de vogais as aliteraccedilotildees repeticcedilotildees de consoantes para repartir os ecos focircnicos dentro dos versos em relaccedilatildeo agraves rimas finais que se dividem estritamente em todas as estrofes em masculinas e femininas (AAbCCb) O ritmo 443 adotado por Verlaine eacute proacute-prio da canccedilatildeo e confere originalidade ao poema

Chanson dacuteautomne

Les sanglots longsDes violonsDe lacuteautomneBlessent mon coeurDacuteune langueurMonotone

Tout suffocantEt blecircme quandSonne lacuteheureJe me souviens Des jours anciensEt je pleure

Et je macuteen vaisAu vent mauvaisQui macuteemporteDeccedilagrave delagravePareil agrave laFeuille morte

Anaacutelise formal

O poema eacute composto de trecircs estrofes de seis versos cada qual Em cada uma os versos 1 2 4 e 5 tecircm quatro siacutelabas e os versos 3 e 6 trecircs siacutelabas meacutetricas As rimas obedecem ao

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

222

esquema AAbCCb sendo rimas masculinas (agudas) as maiuacutes-culas e femininas (graves) as minuacutesculas

O ritmo de cada estrofe eacute o seguinte

- - - (4)- - - (4)- - - (3)- - - (4)- - - (4)- - - (3)

No esquema acima as barras obliacutequas representam as siacute-labas fortes aqui cada trecircs versos formam um verso de onze siacutelabas meacutetricas integrado num ritmo maior

- - - - - - - - - (11)

- - - - - - - - - (11)

E o poema na leitura fica assim

Les sanglots longs de violons de lacuteautomneBlessent mon coeur dacuteune langueur monotoneTout suffocant et blecircme quand sonne lacuteheureJe me souviens des jours anciens et je pleureEt je macuteen vais au vent mauvais qui macuteemporteDecagrave delagrave pareil agrave la feuille morte

Para conseguir formar em cada estrofe dois versos hendecas-siacutelabos resultando ao todo em seis Verlaine obedece agrave alter-nacircncia de rimas masculinas e femininas praticada pela poesia francesa desde a Idade Meacutedia e que se consolidou a partir do seacuteculo XVI Nenhuma traduccedilatildeo nesse caso especiacutefico que natildeo observe essa alternacircncia conseguiraacute produzir na liacutengua recep-tora seis versos de onze siacutelabas com tocircnicas 4-8-11 sempre5 Aleacutem disso se eacute uma canccedilatildeo deduz-se que eacute para cantar6 Por-5 ldquo a fidelidade retoacuterico-formal natildeo vale por ser uma norma externa a ser aplicada mecanicamente ao texto de poesia Ela vale sim enquanto se prende a manifestaccedilotildees externas a manifestaccedilotildees textuais da significacircncia condicionando o leitor para uma leitura inclinada em determinada direccedilatildeo em determinado sentido Ela implica fatores socioculturais e linguiacutestico-estru-turais cujo conhecimento e exame ponderado deve determinar no sujeito-tra-dutor a escolha de uma reescritura mais proacutexima do moacutedulo original ou mais condizente com os usos poeacuteticos da linguagem receptorardquo LARANJEIRA M Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp 19936 Por seu caraacuteter predominantemente musical Reynaldo Hahn jaacute no seacuteculo XIX fez uma composiccedilatildeo a partir do poema para piano e voz HAHN R VERLAINE P Chansons grises Paris Au Meacutenestrel 1891-1892 E no

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

223

tanto o ritmo resultante aqui tambeacutem dessa alternacircncia7 que confere originalidade ao poema deveraacute ser mantido e caberaacute a quem traduz em que pesem as dificuldades produzir um texto homoacutelogo ao original que provoque um impacto emocional e esteacutetico no leitor da liacutengua de chegada semelhante ao causado pelo texto original no leitor da liacutengua de partida

Propotildeem-se algumas traduccedilotildees para mostrar que esse traba-lho embora difiacutecil eacute possiacutevel

Canccedilatildeo de outono

Ferem-me os aisDos outonaisViolinosO coraccedilatildeoCom a inaccedilatildeoDos seus trinos

E quando daacuteTal hora jaacuteRememoroSem cor sem arDias sem parE entatildeo choro

E eu vou-me assimNo ar que ruimMe transportaPra caacute pra laacuteTal e qual aFolha morta

Ferem-me os ais dos outonais violinosO coraccedilatildeo com a inaccedilatildeo dos seus trinos

seacuteculo XX na deacutecada de 1940 foi a vez de Charles Trenet fazer a sua can-ccedilatildeo em que substituiu o verbo na terceira pessoa do presente do indicativo blessentferem por bercentembalam Jaacute Georges Brassens quando reto-mou a canccedilatildeo de Trenet manteve o poema no original Essa tambeacutem foi a atitude de Leacuteo Ferreacute embora no DVD ao vivo ldquoLeacuteo Ferreacute canta os poetasrdquo ele diga bercent na primeira vez mas blessent quando retoma o final Haacute vaacuterias gravaccedilotildees no Youtube de vaacuterios inteacuterpretes tanto da composiccedilatildeo de Hahn quanto da canccedilatildeo de Trenet e de outras em geral baseadas na de Trenet7 Em nenhuma das vinte traduccedilotildees do poema encontradas na Inter-net essa alternacircncia de rimas eacute obedecida Seguem os links httpformasfixasblogspotcombr201507paul-verlaine-1844-1896html (Acesso 03122017)httpmiscelaneadoorejanablogspotcombr201310chanson-d-automne-paul-verlaine-1844html (Acesso 03122017)httpculturafmcmaiscombrradiometropolislavrapaul-verlaine-cancao-deoutono (Acesso 03122017)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

224

E quando daacute tal hora jaacute rememoroSem cor sem ar dias sem par e entatildeo choroE eu vou-me assim no ar que ruim me transportaPra caacute pra laacute tal e qual a folha morta

Canccedilatildeo de outono

Cravam punhaisCom longos aisQue datildeo sonoDentro de mimOs bandolinsDesse outono

E quando jaacuteSem cor e ar daacuteO momentoDias me vecircmIdos poreacutemE eu lamento

E eu vou ao leacuteuAo ar cruelQue me enxotaDe caacute de laacuteSemelhante agraveFolha rota

Cravam punhais com longos ais que datildeo sonoDentro de mim os bandolins desse outonoE quando jaacute sem cor e ar daacute o momentoDias me vecircm idos poreacutem e eu lamentoE eu vou ao leacuteu ao ar cruel que me enxotaDe caacute de laacute semelhante agrave folha rota

Canccedilatildeo de outono

Causam-me dorCom um langorMorrediccediloOs violotildeesE os seus bordotildeesOutoniccedilos

E quando semCor sem ar vecircmTantos tantosDias natildeo mais

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

225

Do tempo atraacutesCaio aos prantos

E eu sigo a errarAo malvado arQue me arrastaPra caacute pra laacuteSemelhante agraveFolha gasta

Causam-me dor com um langor morrediccediloOs violotildees e os seus bordotildees outoniccedilosE quando sem cor sem ar vecircm tantos tantosDias natildeo mais do tempo atraacutes caio aos prantosE eu sigo a errar ao malvado ar que me arrastaPra caacute pra laacute semelhante agrave folha gasta

Traduccedilotildees de Renata Cordeiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

ldquoRevoltardquo um poema antigo de Pound

ldquoRevolta contra o espiacuterito crepuscular na poesia modernardquo faz parte de Personae terceiro livro de poemas de Pound e o pri-meiro que publica em Londres em 19091 Mais tarde em 1926 Pound tambeacutem denomina Personae uma versatildeo ampliada do li-vro de 1909 com o subtiacutetulo ldquoPoemas Reunidos de Ezra rdquo2 Por que Personae para a obra de 1909 Um comentaacuterio autobio-graacutefico de Pound no Gaudier-Brzeska de 1916 pode dar uma pista ldquoNa lsquobusca por si mesmorsquo na busca pela lsquosincera expres-satildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade Diz--se lsquoSoursquo isto aquilo ou o outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisa Comecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradas Em segundo lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realida-de objetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo () Em terceiro lugar escrevi lsquoHeatherrsquo que representa um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquo () Essas duas uacutelti-mas espeacutecies de poemas satildeo impessoais ()rdquo3

Natildeo eacute possiacutevel aqui mera apresentaccedilatildeo de um poema e de sua traduccedilatildeo analisar o que seja a constituiccedilatildeo de ldquopessoasrdquo (personae) praacutetica de Pound ldquocuja importacircncia jamais pode ser superestimadardquo4 Basta afastar alguns juiacutezos mais imediatos que poderiam impedir de saiacuteda que o poema pudesse falar por si mesmo Em latim personae (persona no singular) possui diversos significados aparentados5 Persona pode ser a perso-1 De acordo com Thomas F Grieve ldquoEmbora se costume pensar que tenha sido o primeiro livro de poesia publicado por Pound Personae foi na verdade precedido por A Lume Spento que teve 150 coacutepias impressas em Veneza custeadas pelo proacuteprio Pound e depois por Uma quinzena por este Yule de 1908 No entanto Personae de 1909 pode ser considerado lsquode fatorsquo o primeiro livro de poemas de Pound teve uma impressatildeo significativa (1000 exemplares por uma editora respeitaacutevel) e atraiu interesse de criacuteticos de importantes jornais literaacuterios britacircnicosrdquo (GRIEVE F T 2005 p 216) Para a traduccedilatildeo do poema Revolta tomamos como base o poema tal como se encontra em POUND 1982 p 96 e p 97 Agradeccedilo a Rubens Joseacute da Ro-cha Renata Cordeiro e Luiz M Garcia pelas sugestotildees a uma versatildeo preacutevia desse texto2 Nadel observa que mais adequado seria o subtiacutetulo Obras selecio-nadas pois o Personae de 1926 inclui apenas alguns dos poemas anterior-mente publicados por Pound (NADEL BI 2007 p 44)3 POUND 1916 p 984 Cf NADEL BI 2007 p 445 Sigo aqui de modo natildeo exaustivo as indicaccedilotildees de Trendelenburg sobre a histoacuteria da palavra persona (Cf TRENDELENBURG 1908) Esse artigo eacute tambeacutem mencionado por Leonel Ribeiro dos Santos que analisa ex-tensamente o conceito de pessoa na filosofia moderna particularmente em

Paulo R Licht dos Santos

Professor de Filosofia ndash UFSCarCNPq

paulolicht2gmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

227

nagem de um drama Daiacute tambeacutem a possiacutevel referecircncia do livro de Pound a Dramatis Personae obra de Robert Browning de 18646 Tambeacutem pode ser o papel que algueacutem desempenha em diversas atividades ou ofiacutecios ou entatildeo o caraacuteter que algueacutem possui ou exibe Persona tambeacutem pode ter sentido juriacutedico No direito romano pode designar cada uma das funccedilotildees exercidas em um tribunal (o acusado o acusador e o juiz) ou ainda todos os que possuem direitos e podem reclamaacute-los em diversas cir-cunstacircncias (com exclusatildeo dos escravos e das coisas) Perso-na pode designar por fim os homens em geral Esses e outros significados natildeo mencionados aqui provecircm por uma seacuterie de transposiccedilotildees do significado originaacuterio de persona as maacutesca-ras usadas no teatro pelos antigos atores romanos

Eacute nesse sentido que Pound usa o termo personae ao dizer ter extraiacutedo ldquomaacutescaras inteiras do eu em cada poemardquo De fato ldquomaacutescaras do eurdquo atravessam Personae de ponta a ponta O ldquoeurdquo para dar alguns exemplos aparece agraves vezes enfaticamen-te jaacute nos versos iniciais como em ldquoPraise of Ysoltrdquo que abre o Personae de 1909 ldquoIn vain have I strivento teach my heart to bowrdquo ou como no proacuteprio ldquoRevoltardquo ldquoI would shake off the lethargy of this our timerdquo Agraves vezes aparece mais timidamente como em ldquoXeniardquo com o uso do possessivo ldquomeurdquo (my) ldquoAndunto thine eyes my heartsendeth old dreams of the spring-timerdquo O poema ldquoOcciditrdquo tambeacutem refere-se agrave primeira pessoa mas do plural com o possessivo ldquonossordquo (ldquoourrdquo) ldquoAs in our southern lands brave tapestriesrdquo Ou por fim o poema ldquoMarvoil inicia-se com a declaraccedilatildeo de Arnaut de Marvoil sobre si mesmo pela oacutetica dos que o circundam ldquoA poor clerk I lsquoArnaut the lessrsquo they call merdquo Em ldquoNotas aos novos poemasrdquo que encerram Perso-nae Pound esclarece que as personae de ldquoMarvoilrdquo satildeo entre outros o proacuteprio Arnaut de Marvoil trovador do seacuteculo XI Se aqui a primeira pessoa eacute a de um outro natildeo seria assim com os demais poemas de Personae Ou seja o proacuteprio ldquoeurdquo ou o ldquonoacutesrdquo tambeacutem natildeo seriam maacutescaras mesmo quando Pound diz que o livro Personae faz parte de suas primeiras tentativas em busca da lsquosincera expressatildeo de sirsquo A conjectura ganha focirclego caso se lembre a proveniecircncia do nome e da categoria gramatical de pessoa Trendelenburg apresenta alguns documentos histoacutericos para mostrar que os gregos que fundaram nossa gramaacutetica tal-vez os estoicos recorreram agrave palavra grega πρόσωπον (face ou maacutescara) para designar as principais terminaccedilotildees verbais e assim as trecircs pessoas do discurso7 Portanto transposiccedilatildeo para a gramaacutetica de um termo proveniente do drama primeiro pelos gregos e depois pelos romanos

Se persona possui o significado originaacuterio de maacutescara em que o ldquoeurdquo fala e se apresenta por traccedilos de outros natildeo estaria Kant (Cf SANTOS 2011 pp 7-40) Uma possiacutevel etimologia de persona eacute per-sono ldquoo que soa ou faz soar por meio derdquo Trendelenburg contudo potildee em duacutevida essa etimologia mencionando outras possiacuteveis6 Essa eacute sugestatildeo de Nadel (NADEL BI 2007 p 44)7 Cf TRENDELENBURG 1904 p 10

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

228

em jogo na teacutecnica de Pound a dissimulaccedilatildeo de si ou do real Natildeo eacute o que se pode inferir do comentaacuterio de Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae ()rdquo Essa busca soacute faz sentido poreacutem porque o real natildeo se apresenta imediatamente definido ldquona busca pela lsquosincera expressatildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade ()rdquo Nesse caso ateacute mesmo a ldquoexpressatildeo sincera de sirdquo que talvez pudes-se evocar algum lirismo ainda pouco elaborado estaacute longe de ser a transposiccedilatildeo imediata para o poema de algum traccedilo jaacute de-finido de si Pois natildeo haacute por um lado o que eu sou realmente e por outro a linguagem que me conveacutem ou natildeo Na construccedilatildeo de uma persona a forma de expressatildeo e o real a maacutescara e o rosto satildeo concomitantes ldquolsquoEu soursquo isto aquilo ou outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisardquo Note-se que no texto original de Pound ldquoEu sourdquo vem entre aspas pois natildeo se eacute sem uma forma precisa de expressatildeo Por isso mesmo uma persona natildeo eacute a maacutescara que esconde o real ou dissimula o que sou mas o que primeiro os molda para exibi-los de certo modo Negativamente se a forma de expressatildeo eacute inadequada o real de iniacutecio apenas entrevisto (ldquoalgo que parece verdaderdquo) eacute com-pletamente perdido ldquodeixa-se de ser a coisardquo Nesse caso tam-beacutem natildeo tem cabimento tomar determinada persona ou poema como a maacutescara autecircntica por excelecircncia Cada uma delas eacute expressatildeo parcial de um processo contiacutenuo que apenas pode ganhar complexidade crescente mas nunca alcanccedilar a expres-satildeo definitiva de si e do que eacute Vale a pena retomar Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradasrdquo Eacute precisamente como bus-ca para dar forma ao opaco e concretude ao difuso que se pode ler a abertura do ldquoRevoltardquo

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

A passagem autobiograacutefica de Pound citada haacute pouco classi-fica seus primeiros poemas em trecircs fases8 Se as duas uacuteltimas satildeo de poemas impessoais seria a primeira a de Personae de menor valor poeacutetico Por buscar a ldquosincera expressatildeo de sirdquo a primeira fase ficaria aqueacutem da expressatildeo precisa que se encon-traria nas duas fases seguintes Em outras ocasiotildees Pound iraacute desqualificar seus poemas iniciais Mas aqui a transiccedilatildeo dos poemas ldquopessoaisrdquo para os ldquoimpessoaisrdquo natildeo marca uma escala de valor apenas a diferenccedila do domiacutenio do real investigado A primeira fase eacute a da busca pela apreensatildeo e expressatildeo de si mesmo ldquoDiz-se lsquoSoursquo isto aquilo ou outro ()rdquo A fase seguin-te eacute busca pela expressatildeo da realidade objetiva ldquoEm segundo

8 Cf KENNER H 1985 p121

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

229

lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realidade ob-jetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo ()rdquo Jaacute a terceira ldquorepresenta um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquordquo Trecircs modos portanto da investigaccedilatildeo contiacutenua do real por meio de uma linguagem que procura apresentaacute-lo e representaacute-lo em domiacutenios distintos expressatildeo precisa daquilo que lsquosoursquo apresentaccedilatildeo da realidade objetiva do que eacute e por fim representaccedilatildeo dos estados de consciecircncia

Essa anaacutelise ateacute certo ponto vazia por ser muito geral en-contra apoio na leitura circunstanciada que Hugh Kenner faz de alguns dos poemas mencionados por Pound nas duas fases finais Para reter apenas a conclusatildeo dessa leitura teriacuteamos na transiccedilatildeo de Pound da primeira para as duas fases seguintes natildeo a passagem da pessoalidade para a impessoalidade mas a passagem para uma persona mais ampla ou essencial Teriacute-amos ldquoum experimento despersonalizado do eurdquo reconheciacutevel em alguns dos Cantos ldquoa personalidade despida de todas as contingecircncias tornou-se extensivamente um ponto de luz que se move por mundos possiacuteveis um modo de consciecircncia capaz de ser transposto em um nuacutemero indefinido de usosrdquo9 Por nos-sa conta personae como poemas de ningueacutem

Eacute plausiacutevel pensar que eacute com base nessa proposta natildeo por seu abandono que Pound iraacute rejeitar seus poemas iniciais A ediccedilatildeo Personae de 1926 descarta o poema ldquoRevoltardquo junta-mente com noventa e oito poemas antes publicados10 A justi-ficativa de Pound ldquoEstava ofuscado pela linguagem vitoriana () a crosta do inglecircs morto o sedimento presente em meu proacuteprio vocabulaacuterio disponiacutevel () Rossetti fez sua proacutepria lin-guagem Ateacute 1910 eu natildeo fizera uma linguagem natildeo quero di-zer uma linguagem para usar mas mesmo uma para pensarrdquo11 Ao abandonar alguns poemas anteriores Pound recusa natildeo a praacutetica de personalizaccedilatildeo mas o resultado alcanccedilado insufi-ciente para constituir uma linguagem capaz de pensar o real Se for assim por que teriacuteamos de rejeitar sem mais uma maacutescara anterior de Pound com base em uma persona posterior (Pound como criacutetico de si mesmo)

Prova dos noves de que o poema tem de falar por si mesmo estaacute na recepccedilatildeo conflitante do poema ldquoRevoltardquo Os criacuteticos mais recentes consideram o poema um bem logrado malogro de Pound em tentar criar uma nova linguagem para lidar com as condiccedilotildees da vida moderna ldquoEntre os poemas que concluem Personae (1909) haacute um que defende bravamente uma lsquoRevol-tarsquo mas acaba olhando-se melhor por tornar-se igualmente um protesto crepuscular lsquocontra a letargia de nosso temporsquordquo12 Jaacute um leitor de primeira de hora de Personae vecirc em Pound uma ldquosemente novardquo que destoaria do gosto de parte do puacuteblico por 9 Idem ibidem p 12110 Essa contabilidade eacute de Louis Martz autor da introduccedilatildeo aos Collec-ted Early Poems of Ezra Pound (POUND E 1982 p vii)11 Citado por RUTHVEN K K 1983 pp 17 1812 RUTHVEN K K 1983 p 17 Opiniatildeo similar se encontra em p62

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

230

ldquonovas variedades dos antigos favoritosrdquo13 O poema ldquoRevoltardquo que o criacutetico considera ldquoirregular mas vigorosordquo seria um caso exemplar da ldquoqualidade do Sr Poundrdquo14 Mas o caraacuteter exemplar natildeo viria da singularidade do poema ou da excentricidade do poeta mas do enraizamento de ambos no passado mais remo-to e mais proacuteximo Depois de ter lembrado a filiaccedilatildeo de Pound a Browning o criacutetico o compara aos trovadores provenccedilais ldquopelo senso de beleza das coisas e das palavrasrdquo e a Walt Whitman pela ldquovigorosa individualidaderdquo15 O criacutetico assim situa Pound na tradiccedilatildeo em plena conformidade com a epiacutegrafe que abre o livro Personae de 1909 ldquoMake-strong old dreams lest this our world lose heartrdquo16

Entre os dois criacuteticos o mais recente e o antigo qual esco-lher A pergunta eacute descabida por dois motivos aparentados Primeiro que contradiccedilatildeo poderia haver entre quem enxerga de perto com exatidatildeo mas natildeo o que o ultrapassa e quem tem a visatildeo ampla mas natildeo o foco do que estaacute proacuteximo Se for assim natildeo se impotildee nenhuma escolha entre o criacutetico passado que tem presente o niacutetido contraste dos poemas de Pound com a produccedilatildeo requentada de outros autores contemporacircneos seus e o criacutetico mais recente que tem presente a amplitude da obra posterior de Pound A pergunta inicial eacute descabida em segundo lugar pela proacutepria relaccedilatildeo temporal que o poema propotildee ao lei-tor O ponto de partida eacute nosso momento presente (ldquoeste nosso tempordquo) natildeo necessariamente o ldquonosso tempordquo de Pound O ponto de chegada eacute a aposta que uma dicccedilatildeo antiga mais vigo-rosa possa abrir o futuro

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos tatildeo [raacutepidos Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e revolvam Esta terra outra vez

O poema instaura assim uma relaccedilatildeo entre passado e futuro que deve ser moldada continuamente a partir de nosso tempo presente Se for assim o poema ou todo poema exemplar ain-da que jamais possa dar a uacuteltima palavra deveraacute ter sempre a primeira Agora soacute resta a pergunta se o ldquoRevoltardquo e em algum grau sua traduccedilatildeo em portuguecircs alcanccedilam o que Pound ambi-13 Trata-se da resenha de publicada sem o nome do autor em 23 de abril de 1909 no Daily Telegraph A resenha encontra-se reproduzida em ldquoCOURTNNEY W L 2009 pp 44 e 4514 Idem ibidem p 4515 Idem ibidem p 4516 T S Eliot natildeo vecirc nada de Walt Whitman em Personae aleacutem dos provenccedilais apenas haveria dos poetas modernos marcas de Browning e de Yeats (cf Eliot p 9) Diggory por sua vez entende ser Yeats o alvo do ldquoRevoltardquo bem como a referecircncia dos versos ldquoOr tread too violent in passing themrdquo Cita como apoio o uacuteltimo verso do poema de Yeats ldquoAedh Wishes for the Cloths of Heavenrdquo ldquoTread softly because you tread on my dreamsrdquo (Cf Diggory 2016 p 40)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

231

ciona ldquodar agraves pessoas novos olhos natildeo fazecirc-las ver uma nova coisa particularrdquo17

REVOLTA Contra o Espiacuterito Crepuscular na Poesia Moderna

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

ldquoEacute melhor sonhar que agirrdquo Sim E natildeo

Sim se sonhamos grandes feitos homens de fibraQuente o coraccedilatildeo potente o pensarNatildeo se sonhamos flores sem corCortejo lento de horas que languidamenteGotejam feito fruto passado de aacutervores paacutelidasSe assim morremos e vivemos natildeo a vida mas sonhos

Grande Deus concede vida em sonhosNatildeo fuga mas vidaSejamos homens que sonhamNatildeo fracos ocos facircmulosAgrave espera que o Tempo morto acorde e mitigueInominados males

Grande Deus se a nossa sina eacute ser natildeo homens [sonhos apenasEntatildeo sejamos sonhos que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila senhores embora meros sonhosEntatildeo sejamos sombras que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila mestres embora meras sombras

Grande Deus se medrados os homens soacute espectros [enfermos sem corQue tecircm de viver apenas nestas neacutevoas e luzes teacutepidasE tremem quando batem alto horas mudasOu pisam demais brutais ao passaacute-las

17 Relato de Pound sobre um correspondente russo inicialmente per-plexo com o poema ldquoHeatherrdquo (POUND 1916 p 98)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

232

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos [tatildeo raacutepidos

Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e reviremEsta terra outra vez

REVOLT

Against the Crepuscular Spirit in Modern Poetry

I would shake off the lethargy of this our timeAnd giveFor shadows - shapes of powerFor dreams - men

ldquoIt is better to dream than do ldquoAye and No

Aye if we dream great deeds strong menHearts hot thoughts mightyNo if we dream pale flowersSlow-moving pageantry of hours that languidlyDrop as orsquoer-ripened fruit from sallow treesIf so we live and die not life but dreamsGreat God grant life in dreamsNot dalliance but life

Let us be men that dreamNot cowards dabblers waitersFor dead Time to reawaken and grant balm for ills unnamed

Great God if we be damnrsquod to be not men but only dreamsThen let us be such dreams the world shall tremble atAnd know we be its rulers though but dreamsThen let us be such shadows as the world shall tremble atAnd know we be its masters though but shadow

Great God if men are grown but pale sick phantomsThat must live only in these mists and tempered lightsAnd tremble for dim hours that knock orsquoer loudOr tread too violent in passing them

Great God if these thy sons are grown such thin ephemeraI bid thee grapple chaos and begetSome new titanic spawn to pile the hills and stirThis earth again

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

233

BIBLIOGRAFIA

COURTNNEY W L ldquoDaily Telegraphrdquo In ldquoEzra Pound The Critical Heritage Seriesrdquo Ed Eric Homberger New York-London Routledge 2009

DIGGORY T Yeats and American Poetry The Tradition of the Self Princeton University Press 2016

ELIOT TS Ezra Pound his metric and poetry New York 1917 Disponiacutevel em lthttpswwwblukcollection-itemsezra-pound-his-metric-and-poetry-by-t-s-eliotgt Acesso em 19122017)

GRIEVE F T ldquoPersonaerdquo in The Ezra Pound Encyclopedia

Ed D P Tryphonopoulos andlrm S J Adams Westport- Connec-ticut - London Greenwood 2005

KENNER H The Poetry of Ezra Pound Reprinted edition Lincoln and London University of Nebraska Press 1985

NADEL I B The Cambridge Introduction to Ezra Pound New York Cambridge University Press 2007

POUND E Collected Early Poems of Ezra Pound Ed por Mi-chael John King New York A New Directions Book 1982

POUND E Gaudier- Brzeska London John Lante Company 1916

RUTHVEN K K A Guide to Ezra Poundlsquos Personae (1926) Berkeley-Los Angeles-London University of California Press 1983

SANTOS L R ldquoDo paralogismo loacutegico da personalidade ao paradoxo moral da pessoa geacutenese e significado da antropolo-gia moral kantianardquo Studia Kantiana 11 (2011) 7-40

TRENDELENBURG A ldquoZur Geschichte des Wortes Personrdquo Kantstudien 13 (1908) pp1 -17

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

234

Traduccedilatildeo

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano

A epiacutestola X 96 de Pliacutenio o Jovem (61ndashc 113 dC) con-teacutem o testemunho mais antigo do conflito entre cristatildeos e Impeacute-rio Romano e das praacuteticas rituais do Cristianismo primitivo Ape-nas trecircs autores latinos antigos ldquopagatildeosrdquo escreveram sobre os cristatildeos o epistoloacutegrafo Pliacutenio o Jovem e os historioacutegrafos Cor-neacutelio Taacutecito (c 56ndashc 120 dC) e Suetocircnio Tranquilo (c 69ndashc 122 dC) O testemunho de Taacutecito (Anais XV 44) foi escrito por volta de 115 e 116 dC e descreve com alguma detenccedila a dura puniccedilatildeo que Nero (imperador entre 54 e 68 dC) reservou aos cristatildeos como supostos responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma do ano 64 dC Os dois testemunhos de Suetocircnio (Vida dos Doze Ceacutesares ldquoClaacuteudiordquo 25 4 e ldquoNerordquo 16 2)1 foram escritos por volta de 122 dC e brevemente informam que os cristatildeos foram expulsos de Roma por Claacuteudio (imperador entre 41 e 54 dC) e perseguidos por Nero como praticantes de perigosa supersti-ccedilatildeo

A epiacutestola X 96 foi escrita entre 18 de setembro e 3 de janeiro de 112 dC em Amaacutestris ou Amiso (atuais Amasra e Samsun na Turquia) no segundo ano do governo de Pliacutenio sobre a Bitiacutenia e o Ponto (igualmente na atual Turquia) e era endere-ccedilada ao proacuteprio imperador Trajano que a responde como se leraacute a seguir Pliacutenio para dar conta a Trajano das providecircncias tomadas quanto aos cristatildeos as quais incluiacuteam pena capital descreve como era o ritual daqueles seguidores de Cristo e quais eram no caso as accedilotildees que nessa qualidade eles con-fessavam praticar Como entre tais accedilotildees constava o juramento de natildeo roubar natildeo matar natildeo mentir e natildeo sonegar impostos mas apenas reunir-se na alvorada para rezar e cantar a Cris-to e como eacute sempre Pliacutenio que o afirma houve quem julgasse espuacuterias as epiacutestolas escritas ou interpoladas mais tarde com intuito de exibir os cristatildeos como maacutertires e assim colaborar com a narrativa triunfalista do Cristianismo como se a visatildeo Agradeccedilo ao CNPq pela bolsa de Produtividade em Pesquisa que possi-bilitou a confecccedilatildeo deste artigo integrante de trabalho maior que inclui a traduccedilatildeo comentada de todas as cartas de Pliacutenio o Jovem

1 Para eventual consulta menciono as seguintes traduccedilotildees ao portu-guecircs Taacutecito Anais Prefaacutecio de Breno Silveira traduccedilatildeo de J L Freire de Carvalho Rio Satildeo Paulo Porto Alegre W M Jackson 1952 pp 408-409 ldquoClaacutessicos Jacksonrdquo vol XXV Suetoacutenio Os Doze Ceacutesares Traduccedilatildeo e no-tas de Joatildeo Gaspar Simotildees Lisboa Editorial Presenccedila 1973 p 204 e p 223

Joatildeo Angelo Oliva Neto

Livre-docente em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas - USP

olivanetoicloudcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

235

favoraacutevel aos cristatildeos vinda aqui de insuspeitiacutessima parte que eacute um governador romano que os persegue e ateacute executa fos-se por assim dizer boa demais para ser verdade Assim longa querela teve iniacutecio no fim do seacuteculo XVIII quando J S Sember na segunda ediccedilatildeo de Novae Observationes quibus Studiosius Illustrantur Potiora Capita Historiae et Religionis Chistianae us-que ad Constantinum (ldquoNovas Observaccedilotildees pelas quais com Maior Detenccedila se Explicam Capiacutetulos Mais Importantes da Reli-giatildeo Cristatilde ateacute Constantinordquo) as considerou stolidissimae nugae fraudesque non piae sed impudentissimae (Halle vol II p 37 1788) ldquoninharias estuacutepidas e fraudes nada piedosas mas des-pudoradiacutessimasrdquo e de pronto foi contestado por A C Haver-saat (Vertheid der Plinischen Briefe uumlber die Christen gegen die Einwendungen Semlerrsquos Goumlttingen 1788)2 Hoje a epiacutestola e Pliacutenio e a de Trajano satildeo consideradas verdadeiras assim como eram na Antiguidade quando foram igualmente ceacutelebres a julgar pelos numerosos testemunhos que delas nos chega-ram3

As epiacutestolas exibem tambeacutem exemplos ainda que sem-pre anocircnimos da coragem de quem se manteacutem fiel agrave proacutepria crenccedila do humano medo de morrer de quem a renega da sor-didez que eacute a denuacutencia anocircnima Quanto a Pliacutenio ele produ-ziu ainda que sem querer efeitos retoacutericos dignos de nota a credibilidade e sobretudo o pateacutetico que adveio ironicamente de sua proacutepria impassibilidade O distanciamento que o ofiacutecio obriga a desejada impassibilidade descritiva na judicial frieza com que conduz o inqueacuterito de fato soacute fez ressaltar malgrado seu a comovente mansidatildeo daqueles reacuteus nisso os partidaacuterios da falsidade das epiacutestolas tinham razatildeo

Epiacutestolas Cristatildes 1Pliacutenio o Jovem Livro X Epiacutestola 96 (97)

2 Para etapas importantes do longo debate ver os autores arrola-dos por Anne-Marie Guillemin Pline le Jeune tome IV Lettres Livre X Panegyrique de Trajan Paris ldquoLes Belles Lettresrdquo 1947 pp 70-72 Eacute desta ediccedilatildeo o texto latino adotado3 Tert Apol II 6-10 Clem Al Strom V 12 (Patrol Gr IX 400c) Eus HE III 33 Hier Chron 220a Olimp Sulp Sev Chron II 45 Oros VII 12 3 Paul Diac Hist Misc X Traianus

Caius Plinius Traiano Imperatori

1 Sollemne est mihi domine omnia de quibus dubito ad te referre Quis enim potest melius uel cunctationem meam regere uel ignorantiam instruere

Cognitionibus de Christianis interfui numquam ideo nescio quid et quatenus aut

Caio Pliacutenio ao Imperador Trajano

1 Para mim senhor eacute nor-ma submeter-te todas as ques-totildees em que tenho duacutevida pois quem melhor pode guiar minha hesitaccedilatildeo ou educar minha igno-racircncia

Nunca tomei parte dos in-queacuteritos sobre os cristatildeos de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

236

puniri soleat aut quaeri 2 Nec mediocriter haesitaui sitne aliquod discrimen aetatum an quamlibet teneri nihil a robustioribus differant detur paenitentiae uenia an ei qui omnino Christianus fuit desisse non prosit nomen ipsum si flagitiis careat an flagitia cohaerentia nomini puniantur

Interim ltingt iis qui ad me tamquam Christiani d e f e r e b a n t u r hunc sum secutus modum 3 Interrogaui ipsos an essent Christiani Confitentes iterum ac tertio interrogaui supplicium minatus perseuerantes duci iussi Neque enim dubitabam qualecumque esset quod faterentur pertinaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri 4 Fuerunt alii similis amentiae quos quia ciues Romani erant adnotaui in urbem remittendos Mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species inciderunt

5 Propositus est libellus sine auctore multorum nomina continens Qui negabant esse se Christianos aut fuisse cum praeeunte me deos adpellarent et imagini tuae quam propter hoc iusseram cum simulacris numinum adferri ture ac uino supplicarent praeterea male dicerent Christo quorum nihil cogi posse dicuntur qui sunt re uera Christiani dimittendos putaui 6 Alii ab indice nominati esse se Christianos dixerunt et mox negauerunt fuisse quidem

modo que ignoro o quecirc e ateacute onde se deve punir ou inquirir 2 Natildeo foi pequena minha hesi-taccedilatildeo sobre se deve haver dis-criacutemen de idade ou se em nada diferem crianccedilas de qualquer ta-manho dos mais adultos se se daacute perdatildeo ao arrependimento ou se agravequele que foi cristatildeo convic-to de nada valeraacute renunciar se se pune o mero nome de cristatildeo quando natildeo houver delitos ou os delitos ligados ao nome

Entrementes quanto agraveque-les que me foram denunciados como cristatildeos procedi do se-guinte modo 3 Perguntei-lhes se eram cristatildeos aos que con-fessavam perguntei de novo e ainda uma terceira vez ame-accedilando-os de supliacutecio os que perseveravam mandei execu-tar⁴ E natildeo tive duacutevidas de que qualquer que fosse a confissatildeo ao menos a persistecircncia e a in-flexiacutevel obstinaccedilatildeo deviam ser punidas 4 Houve outros capa-zes de semelhante demecircncia os quais porque eram cidadatildeos romanos registrei para que fos-sem mandados de volta a Roma Logo como costuma ocorrer ampliando-se no proacuteprio proces-so a incriminaccedilatildeo muitos casos diferentes apareceram

5 Um cartaz sem autor⁵ foi afixado contendo o nome de muitas pessoas Se os que ne-gavam ser ou ter sido cristatildeos in-vocassem os deuses repetindo a foacutermula que eu lhes ditava e com incenso ou vinho venerassem a tua imagem que adrede eu man-dara trazer junto com estaacutetuas

4 executar duci infinitivo passivo de duco ducere ldquoser conduzidordquo subentendendo-se ad mortem Esse uso de duci implica que a execuccedilatildeo era imediata e pela espada

5 cartaz sem autor libellus sine auctore denuacutencia anocircnima a que se referiraacute Trajano na resposta Epiacutestola 97 (98) 2

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

237

sed desisse quidam ante triennium quidam ante plures annos non nemo etiam ante uiginti ltHigt quoque omnes et imaginem tuam deorumque simulacra uenerati sunt et Christo male dixerunt

7 Adfirmabant autem hanc fuisse summam uel culpae suae uel erroris quod essent soliti stato die ante lucem conuenire carmenque Christo quasi deo dicere secum inuicem seque sacramento non in scelus aliquod obstringere sed ne furta ne latrocinia ne adulteria committerent ne fidem fallerent ne depositum adpellati abnegarent Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum promiscuum tamen et innoxium quod ipsum facere desisse post edictum meum quo secundum mandata tua hetaerias esse uetueram 8 Quo magis necessarium credidi ex duabus ancillis quae ministrae dicebantur quid esset ueri et per tormenta quaerere Nihil aliud inueni quam superstitionem prauam et immodicam

9 Ideo dilata cognitione ad consulendum te decucurri Visa est enim mihi res digna consultatione maxime propter periclitantium numerum Multi enim omnis aetatis omnis ordinis utriusque sexus etiam uocantur in periculum et uocabuntur

Neque ciuitates tantum sed uicos etiam atque agros superstitionis istius contagio peruagata est quae uidetur sisti et corrigi posse 10 Certe satis constat prope iam desolata templa coepisse

dos numes e aleacutem disso amal-diccediloassem Cristo ndash atitudes a que diz-se natildeo se consegue obrigar os que satildeo verdadeira-mente cristatildeos ndash esses julguei que devia dispensar 6 Outros delatados nominalmente por informante afirmaram ser cris-tatildeos e logo disseram que natildeo que de fato haviam sido mas que tinham renunciado uns haacute mais de trecircs anos outros haacute mais tempo ainda alguns ateacute haacute mais de vinte anos Todos eles tambeacutem veneraram natildeo apenas tua imagem como as estaacutetuas dos deuses e amaldi-ccediloaram Cristo

7 Afirmavam que sua maior culpa ou erro tinha sido o costume de reunir-se num dia fixo antes do amanhecer e entre si entoar um por vez hi-nos a Cristo como a um deus e por juramento obrigar-se natildeo a algum crime mas a natildeo cometer furto nem latrociacutenio nem adulteacuterio a natildeo faltar agrave palavra dada nem intimados pela justiccedila sonegar imposto Que cumpridos esses ritos era seu costume separar-se e de novo reunir-se para receber o alimento comum poreacutem e inoacutecuo o que tambeacutem deixa-ram de realizar depois de meu edito pelo qual segundo tuas ordens eu proibira as confra-rias 8 Achei ateacute necessaacuterio mesmo por tortura arrancar a verdade de duas escravas que segundo se dizia eram ajudan-tes nada mais encontrei aleacutem de insensata e desmedida su-persticcedilatildeo

9 Por isso suspenso o inqueacuterito recorri a ti para con-sultar-te A mateacuteria pareceu-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

238

celebrari et sacra sollemnia diu intermissa repeti passimque uenire ltcarnemgt uictimarum cuius adhuc rarissimus emptor inueniebatur Ex quo facile est opinari quae turba hominum emendari possit si sit paenitentiae locus

-me digna de consulta sobre-tudo por causa do nuacutemero de acusados muitos de todas as idades de todas as ordens de ambos os sexos intimados es-tatildeo e estaratildeo em perigo⁶ Natildeo soacute as cidades mas as aldeias e os campos o contaacutegio desta su-persticcedilatildeo alcanccedilou que pode ao que parece ser detida e sa-nada 10 Consta e eacute pratica-mente certo que os templos⁷ antes quase desertos comeccedila-ram a ser frequentados e que solenidades sagradas por mui-to tempo interrompidas foram retomadas e que por toda parte se vende carne das viacutetimas de que ateacute agora se achava rariacutes-simo comprador Por isso eacute faacute-cil perceber que se pode corrigir a turba dos homens se houver lugar para arrependimento

6 estatildeo e estaratildeo em perigo uocantur in periculum et uocabuntur ldquoperigordquo em vista do supliacutecio e principalmente da pena capital

7 os templos templa Pliacutenio refere-se aos templos romanos

8 Segundo Pliacutenio chamava-se Caio Pliacutenio Ceciacutelio Segundo

Epiacutestolas Cristatildes 2Pliacutenio o Jovem Livro 10 epiacutestola 97 (98)

Traianus Plinio

1 Actum quem debuisti mi Secunde in excutiendis causis eorum qui Christiani ad te delati fuerant secutus es Neque enim in uniuersum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest Conquirendi non sunt si deferantur et arguantur puniendi sunt ita tamen ut qui negauerit se Christianum esse idque re ipsa manifestum fecerit id est supplicando dis nostris quamuis suspectus in praeteritum ueniam ex paenitentia impetret 2 Sine

Trajano a Pliacutenio

1 Tomaste as providecircn-cias que devias meu querido Segundo⁸ ao investigar as causas daqueles que te foram delatados como cristatildeos pois natildeo eacute possiacutevel constituir um princiacutepio universal que tenha por assim dizer forma precisa Natildeo haacute que ir ao encalccedilo deles se forem denunciados e incul-pados devem ser punidos res-salvando-se poreacutem que quem negar que eacute cristatildeo e tornaacute-lo manifesto pelos proacuteprios atos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

239

isto eacute venerando nossos deu-ses por mais suspeito que te-nha sido no passado consiga perdatildeo pelo arrependimento 2 Cartazes sem autor⁹ natildeo devem ter lugar em nenhuma acusaccedilatildeo pois satildeo peacutessimo exemplo que natildeo eacute proacuteprio de nosso tempo

9 cartazes sem autor libelli sine auctore Satildeo as denuacutencias anocircnimas mencionadas na epoacutestola anterior sect5 Pliacutenio parece tecirc-las levado em consi-deraccedilatildeo no processo

auctore uero propositi libelli ltingt nullo crimine locum habere debent Nam et pessimi exempli nec nostri saeculi est

Sumaacuterio

Editorial

EntrevistaJorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutetica e fenomenoloacutegicaDiogo Ferrer

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesGisele Candido

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisClaacuteudia Souza

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndashuma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaNuno Ribeiro

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposFabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoRubens Joseacute da Rocha

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaMaacutercio Suzuki

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoMarco Aureacutelio Werle

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmicade PiacutendaroAdriano Machado Ribeiro

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudCamila Salles Gonccedilalves

Politics without a subject David Hume on general rulesGiulia Valpione

ARTIGOS

p7

p10

p21

p41

p60

p69

p88

p98

p119

p136

p145

p163

p177

O Palco da Heteroniacutemia Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard ZenithLuiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

A melancolia diante do espelho de Jean StarobinskiFranceila de Souza Rodrigues

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y ComentaacuterioMario Caimi

ldquoCanccedilatildeo de outonordquo de Paul VerlaineRenata Cordeiro

ldquoRevoltardquo um poema antigo de PoundPaulo Licht

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e TrajanoJoatildeo Angelo Oliva Neto

RESENHAS

TRADUCcedilOtildeES

p197

p204

p207

p220

p226

p234

7

Editorial

A sexta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas eacute dedicada agrave relaccedilatildeo entre filosofia e literatura Seu nuacutecleo consiste na coletacircnea de artigos apresentados no Coloacutequio Fernando Pessoa (+ ou -) Filosofia realizado pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFSCar em 2013 A relaccedilatildeo entre filosofia e literatura na obra de Fernando Pessoa tema do evento inspirou esta sexta edi-ccedilatildeo da revista e abriu o espaccedilo para contribuiccedilotildees que tratam agraves vezes de modo mais indireto mas natildeo menos pertinente dessa relaccedilatildeo em outros campos e autores

Os entrevistados desta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas satildeo Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro pesquisadores de destaque da obra de Fernando Pessoa cujo trabalho conjunto de ediccedilatildeo e publi-caccedilatildeo de textos ineacuteditos do espoacutelio tem contribuiacutedo de maneira decisiva para a compreensatildeo da real amplitude da obra em pro-sa e poeacutetica e para uma interpretaccedilatildeo mais precisa das diferen-tes perspectivas que a animam

No primeiro artigo Diogo Ferrer analisa diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo filosoacutefica presente no poema dramaacutetico Primeiro Fausto destacando a recorrecircncia do procedimento dialeacutetico da negaccedilatildeo em passagens cruciais do drama Em seguida Gisele Candido deteacutem-se na anaacutelise do ensinamento poeacutetico atribuiacutedo a Alberto Caeiro e sua proposta de insubordinaccedilatildeo dos sentidos agraves prerrogativas do conhecimento intelectual

Munidos de evidecircncias cuidadosamente colhidas em docu-mentos ainda pouco explorados do espoacutelio Claacuteudia Souza e Nuno Ribeiro debatem sobre a dimensatildeo e o alcance da obra filosoacutefica do poeta Claudia pondera sobre o impacto da tradiccedilatildeo poeacutetico-filosoacutefica alematilde em particular do romantismo alematildeo em sua obra enquanto Nuno Ribeiro mostra como a ambiccedilatildeo filosoacutefica de Pessoa ia muito aleacutem dos ecos de leituras presen-tes nos poemas ou nas obras de ficccedilatildeo abrangendo reflexotildees mais ou menos sistemaacuteticas escritas sob a forma de diaacutelogos ensaios e fragmentos muitas vezes com a intenccedilatildeo de publicaacute--las como produccedilatildeo filosoacutefica autocircnoma agrave criaccedilatildeo heteroniacutemica

Em artigo dedicado aos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos Fabriacutecio Luacutecio mostra como para aleacutem de um simples desejo de ruptura com a tradiccedilatildeo o heterocircnimo engenheiro vislumbra um estado criativo no qual o corpo e a arte possam convergir em estreita relaccedilatildeo com o princiacutepio de forccedila assumindo-o como alternativa ao meacutetodo de medidas e proporccedilotildees da tradiccedilatildeo aristoteacutelica

Rubens Joseacute da Rocha examina no artigo ldquoFernando Pessoa e sua Filosofia da Composiccedilatildeordquo alguns aspectos da desperso-nalizaccedilatildeo do eu liacuterico no poema dramaacutetico O Marinheiro e nos heterocircnimos Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos No artigo ldquoA

8

Liberdade do Olharrdquo Maacutercio Suzuki traccedila um paralelo histoacuteri-co entre Winckelmann e Pessoa Apesar da disposiccedilatildeo uacutenica de pensamento de ambos os autores Maacutercio chama a atenccedilatildeo para a maneira como eles aspiram agrave realizaccedilatildeo de uma nova sensibilidade grega elaborando cada qual a seu modo uma teoria da arte centrada no olhar

Marco Aureacutelio Werle analisa o procedimento dialeacutetico de Peter Szondi que assim como Hegel conceitua o eacutepico como supe-rior ao dramaacutetico em sua teoria do drama moderno No artigo ldquoA Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de Piacutenda-rordquo Adriano Machado Ribeiro propotildee uma traduccedilatildeo ineacuteditaem portuguecircs da segunda Iacutestmica de Piacutendaro como ponto de par-tida para a discussatildeo sobre as caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega e o caso especiacutefico da segunda Iacutestmica em rela-ccedilatildeo aos poemas epiniacutecios

O artigo seguinte ldquoO lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agam-ben leitor de Freudrdquo de Camila Salles Gonccedilalves examina a apropriaccedilatildeo filosoacutefica que o filoacutesofo italiano faz das concepccedilotildees freudianas de fantasma e melancolia O artigo destaca que a partir dessa anaacutelise eacute possiacutevel compreender melhor como a vi-satildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo

A seccedilatildeo de artigos se encerra com uma uacutenica contribuiccedilatildeo que natildeo toca a relaccedilatildeo entre filosofia e literatura No artigo ldquoPolitics without a subject David Hume on general rulesrdquo Giulia Valpione analisa como a interpretaccedilatildeo de Hume do processo de consti-tuiccedilatildeo da subjetividade possui ganhos importantes para pensar filosoficamente a poliacutetica

Na seccedilatildeo de resenhas Luiacutes Fernandes dos Santos Nasci-mento desvenda o caraacuteter dramaacutetico do procedimento teoacuterico e criativo de Fernando Pessoa com anaacutelise da coletacircnea de tex-tos em prosa Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Ainda na seccedilatildeo de resenhas Franceila de Souza Rodrigues aborda o tema da melancolia com anaacutelise de trecircs estudos de Starobinski sobre Baudelaire livro traduzido por Samuel Titan Jr

A revista conta ainda com traduccedilotildees ineacuteditas de poemas de Rilke Verlaine e Ezra Pound e uma traduccedilatildeo das epiacutestolas de Pliacutenio e Trajano contando todas elas com uma apresentaccedilatildeo dos textos traduzidos Mario Caimi estudioso e tradutor de Kant e Espinosa traduz agora para o espanhol (como ldquoejercicios de traduccioacutenrdquo) poemas de Rainer Maria Rilke e enriquece a leitura com comentaacuterios Mario Caimi observa que a ideia de agregar comentaacuterios aos poemas se deve ao proacuteprio Rilke que pediu que seu editor intercalasse paacuteginas em branco em um exemplar das Elegias de Duiacuteno e dos Sonetos a Orfeu para que pudesse anotar suas proacuteprias explicaccedilotildees sobre os textos mais difiacuteceis Renata Cordeiro traduz o famoso poema de Verlaine ldquoCanccedilatildeo de outonordquo publicado no livro Poemas Saturninos em 1867 com atenccedilatildeo especial dedicada agrave estrutura riacutetmica do original

9

francecircs e agraves diversas possibilidades de traduzir o poema em portuguecircs de acordo com a mesma estrutura do original em francecircs Paulo Licht traduz ldquoRevoltardquo poema pouco conhecido de Ezra Pound publicado em seu livro Personae de 1909 A apresentaccedilatildeo procura situar o ldquoRevoltardquo em meio aos poemas iniciais de Pound e dar alguma pista do que seria sua teacutecnica de ldquopersonalizaccedilatildeordquo Para finalizar Joatildeo Angelo Oliva Neto traduz as ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano epiacutestolas que figuram como o mais antigo testemunho do conflito entre o Impeacuterio Romano e os primoacuterdios da era cristatilde A apresentaccedilatildeo defendendo a autenticidade das cartas em face de querela ini-ciada no seacuteculo XVII destaca o caraacuteter exemplar dos testemu-nhos que o documento encerra

Este nuacutemero da Ipseitas com textos de tal amplitude concen-traccedilatildeo e diversidade convida o leitor a escolher o que mais lhe interessar ou entatildeo a ler cada um deles Nos dois casos cabe talvez a pergunta se o simples conectivo ldquoerdquo em ldquoFilosofia e Literaturardquo antes separa do que adiciona dois termos tatildeo proacutexi-mos

Rubens Joseacute da Rocha e Paulo Licht dos Santos

10

Entrevista com Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Jeroacutenimo Pizarro eacute professor da Universidade dos Andes titular da Caacutetedra de Estudos Portugueses do Instituto Camotildees na Colocircmbia e doutor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006) em Literaturas Hispacircnicas e Linguiacutestica Portuguesa Participou de diver-sos projetos referentes ao espoacutelio de Fernando Pessoa como Obra completa de Aacutelvaro de Campos (2015) e Obra Completa de Ricardo Reis (2016) publicadas pela Tinta-da-China aleacutem de ensaios criacuteticos como A Arca de Pessoa (2007) em parceria com Steffen Dix e Pes-soa Existe (Aacutetica 2012)

Jorge Uribe eacute doutor pelo Programa em Teoria da Literatura da Uni-versidade de Lisboa com tese dedicada a biografia intelectual de Fer-nando Pessoa e os conceitos de criacutetica esteacutetica e despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica nas obras de Oscar Wilde Walter Pater e Matthew Arnold Eacute membro do projeto criacutetico e editorial Estranhar Pessoa associado ao Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lis-boa (IFL) e tem colaborado com diversas ediccedilotildees criacuteticas das obras de Fernando Pessoa dentre elas Sebastianismo e Quinto Impeacuterio (Aacutetica 2011) Prosa de Aacutelvaro de Campos (Aacutetica 2012) e Obras Completas de Ricardo Reis (Tinta-da-China 2016)

_______________________________

IPSEITAS O que despertou seu interesse pelo estudo da obra de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO PIZARRO Desculpem a tautologia mas a obra mesma o espanto que geram certos textos poeacuteticos e em pro-sa Mas o momento-revelaccedilatildeo foi o arquivo a sua materialida-de as suas formas natildeo textuais de iluminar certos textos a sua vastidatildeo o seu segredo a sua beleza a sua diversidade Toda uma literatura para passar ali imerso toda uma vida embora tenha preferido fugir

JORGE URIBE Bem acho que foi um processo de contiacutenuos acasos O interesse e a praacutetica sobre esse interesse isto eacute o estudo foram acordando e tomando posse sem que eu desse por isso e continua um pouco assim como se eu tivesse adqui-rido um haacutebito que foi encontrando formas de se desenvolver Na parte anedoacutetica posso contar que na adolescecircncia caiu nas minhas matildeos uma ediccedilatildeo ldquopiratardquo que alguns sebos em Bogotaacute

11

faziam autocircnoma e ilegalmente de livros difiacuteceis de encontrar Essa ediccedilatildeo tinha uns poucos poemas assinados por Fernando Pessoa Ricardo Reis Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos e natildeo vinham acompanhados de nenhuma nota explicativa nem creacuteditos de traduccedilatildeo Eu tive a sorte rara de ler pela primei-ra vez esses autores desconhecidos sem ter que pensar que eram um soacute eu era portanto absolutamente ignorante de qual-quer coisa acerca de Pessoa um autor que para esse momen-to ndash comeccedilos da deacutecada de 2000 ndash era conhecido nos ciacuterculos especializados de Bogotaacute mas ausente nos curriacuteculos escolares e universitaacuterios e certamente distante de adolescentes como eu que natildeo tiacutenhamos uma biblioteca em casa O resultado foi que gostei muito de Aacutelvaro de Campos enquanto Fernando Pes-soa me pareceu ter uns poucos versos contundentes lembro perfeitamente onde estava sentado a primeira vez que li ldquoAu-topsicografiardquo Por outro lado Caeiro e Reis me resultaram de-sinteressantes natildeo me disseram nada nesse momento o meu primeiro pensamento foi o de achar muito estranho que algueacutem tivesse posto esses autores todos num mesmo livro sendo que uns eram tatildeo bons e os outros natildeo Eu era um leitor muito des-norteado e demorei talvez um ano com essa ideia eram tempos sem Google Mais tarde e com acesso a melhores ediccedilotildees e traduccedilotildees o estranhamento se consolidou quando soube que o motivo pelo qual esses autores todos partilhavam um mesmo livro era ainda muito mais surpreendente do que eu tinha ima-ginado logo virou desafio Jaacute enquanto eu era aluno do progra-ma de Humanidades e Literatura da Universidad de los Andes Pessoa virou um nome resplandecente num santoral que eu ia cultivando nas conversas com os amigos ao lado de Ceacutesar Val-lejo Wilde Pizarnik Dostoieacutevsky quando chegou o momento de fazer uma monografia de final de curso eu queria que fosse sobre um desses autores que na eacutepoca eram os que mais me entusiasmavam e Pessoa era o uacutenico que nunca tinha sido par-te dos cursos da faculdade Portanto havia muita coisa para ir procurar pela minha conta escolhi-o e sendo a minha uma faculdade muito liberal no sentido claacutessico do termo concede-ram-me a oportunidade Veio tambeacutem o Eccedila de Queiroacutes espe-cificamente A Correspondecircncia de Fradique Mendes e o meu trabalho de final de curso acabou sendo uma aproximaccedilatildeo entre dois textos e dois momentos da literatura portuguesa agrave volta do problema da autoria embora eu natildeo tivesse nenhuma formaccedilatildeo escolarizada em letras portuguesas Nesse contexto foi muito importante ter como orientador um dos maiores especialistas na obra de Pessoa Jeroacutenimo Pizarro que era ex-aluno da minha faculdade ndash hoje professor ndash que morava entatildeo em Portugal e que conheci por acaso comecei a aprender portuguecircs e pouco tempo mais tarde cheguei a Portugal e agrave gigantesca surpresa que eacute o espoacutelio de Fernando Pessoa Com isso uma viagem que teria sido de 4 meses acabou sendo de 6 anos desde entatildeo a leitura estranhada da obra pessoana eacute para mim praacutetica

12

quase quotidiana e natildeo a tenho longe da vida

IPSEITAS Em 2015 juntamente com Antonio Cardiello e Felipa Freitas vocecircs participaram da ediccedilatildeo do volume Obra completa de Aacutelvaro de Campos Vocecircs acreditam que em termos edito-riais o trabalho com esse heterocircnimo esteja concluiacutedo se eacute que podemos falar em conclusotildees quando tratamos de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO Praticamente sim Mas com algumas ressalvas Essa Obra Completa teve um primeiro anuacutencio e uma primei-ra preparaccedilatildeo o livro Prosa de Aacutelvaro de Campos aparecido em junho de 2012 em que se incluiu por exemplo uma maior quantidade de material preparatoacuterio ou geneacutetico de alguns tex-tos tal como de ldquoUltimatumrdquo que tinha sido publicado em Sen-sacionismo e Outros Ismos (2009) de forma extensa Essa Obra completa foi posterior a artigos como ldquoSobre a primeira gaze-tilha de Aacutelvaro de Camposrdquo (2012 wwwpessoapluralcom) e comeccedilou haacute pouco a ser complementada por contributos tais como ldquoEditar Aacutelvaro de Campos o primeiro Arco de Triumphordquo (em Genuiacutena Fazendeira ndash os frutiacuteferos 100 anos de Cleonice Berardinelli) e outros em processo de publicaccedilatildeo Natildeo conside-ro que a Obra completa de Aacutelvaro de Campos seja uma conclu-satildeo mas o que falte nela que eacute miacutenimo seraacute apresentado e discutido em proacuteximos artigos

JORGE Acho que eacute uma questatildeo agudizada pela presenccedila do adjetivo ldquocompletardquo no tiacutetulo Poreacutem esse adjetivo possui um significado mais restrito do que seria esperado mais relacio-nado com a histoacuteria editorial da ldquoobra de Camposrdquo do que com uma descriccedilatildeo essencialista dela Explico desde os anos 1940 Campos foi apresentado pelos editores poacutestumos de Pessoa principalmente como autor de poemas embora essa imagem deixasse de fora uma parte importante daquilo que Pessoa deu a conhecer sob esse nome durante a sua vida Na verdade ldquoCampos publicourdquo vaacuterias e importantes prosas nas revistas Portugal Futurista Contemporacircnea Athena e Presenccedila Contu-do durante um tempo consideraacutevel a ideia foi como disse que a obra de Campos eram os poemas conhecidos e os que esta-vam ainda ineacuteditos Foi esse o principal interesse dos primeiros editores da Aacutetica Luiacutes de Montalvor e Joatildeo Gaspar Simotildees e foi isso que procuraram editar como o ldquoCampos definitivordquo Soacute no final dos anos oitenta Teresa Rita Lopes abriu o olhar dos leitores noutra direccedilatildeo e publicou durante a deacutecada de 1990 vaacuterios livros com a autoria ldquode Camposrdquo Vida e obra do enge-nheiro Livro de Versos e Notas para a recordaccedilatildeo do meu mes-tre Caeiro para nomear alguns que surgiram com uma ideia de complementaridade entre si mas natildeo de integraccedilatildeo Em 2012 Jeroacutenimo Antonio e eu organizamos o volume Prosa de Aacutelvaro de Campos para uma nova seacuterie da Aacutetica que infelizmente dei-

13

xou de existir pouco tempo depois O volume reivindicava com forccedila e pela primeira vez de forma abrangente essa faceta de Campos menos referida pela criacutetica mas que jaacute desde antes da morte de Pessoa era fundamental para a vida puacuteblica do heteroacutenimo e tambeacutem para a configuraccedilatildeo do chamado ldquodrama em genterdquo Portanto esse ldquocompletardquo no tiacutetulo de 2015 refere-se mais ao fato de que partes que estavam dispersas estatildeo final-mente reunidas Natildeo deveraacute entender-se por ldquocompletardquo defi-nitiva Todo os leitores pessoanos e mais incomodamente os seus editores sabemos que no caso de Pessoa estaacute-se sempre a correr riscos e a fazer apostas alguns manuscritos satildeo muito difiacuteceis de ler e certamente ainda pode haver melhorias (ateacute por motivos tecnoloacutegicos as ferramentas de ediccedilatildeo vatildeo mudando para melhor) tambeacutem pode haver papeis que estejam perdidos e venham a aparecer supomos que satildeo poucos A arrumaccedilatildeo de textos que foram deixados em estados de dispersatildeo e frag-mentaccedilatildeo por parte do autor eacute sempre uma tarefa especulativa tambeacutem o eacute a dataccedilatildeo e serializaccedilatildeo de suportes e materiais ge-neacuteticos Melhores formas de organizar algum texto podem vir a ser propostas ou ldquodescobertasrdquo por editores futuros Eles assim como noacutes teratildeo a vantagem de basear-se no trabalho jaacute feito para acataacute-lo melhoraacute-lo ou contestaacute-lo

IPSEITAS Como vocecircs avaliam o estaacutegio atual de ediccedilotildees criacute-ticas que procuram estabelecer um padratildeo editorial para os ma-nuscritos Ainda haacute uma ldquoEquipa Pessoardquo como a de 1985 aos moldes de uma forccedila-tarefa ou tem prevalecido o trabalho de investigadores isolados Como satildeo planejadas as publicaccedilotildees

JEROacuteNIMO A ediccedilatildeo criacutetica eacute um sonho que como Portugal estaacute por cumprir ldquoCumpriu-se o Mar e o Impeacuterio se desfez Se-nhor falta cumprir-se Portugalrdquo Falta cumprir-se um Pessoa plenamente editado Mas essa eacute uma tarefa monumental que nunca foi assumida como tal Haacute muitos trabalhos e esforccedilos mas os poliacuteticos ainda natildeo perceberam o valor simboacutelico da obra pessoana A ldquoEquipa Pessoardquo que houve foi pouco apoiada e passado pouco tempo esquecida por diversas instituiccedilotildees portuguesas e natildeo soacute Se Pessoa fosse reconhecido como o tesouro nacional que foi declarado (para evitar leilotildees que se tornaram vendas silenciosas) Portugal e os paiacuteses de liacutengua portuguesa seriam um sonho ainda maior

JORGE Eacute uma questatildeo muito pertinente porque estaacute desen-volvendo-se de forma inovadora enquanto respondo agrave pergunta A Equipa Pessoa tal como constituiacuteda nos anos oitenta sob a direccedilatildeo de Ivo Castro teve diversos periacuteodos alguns de alta produccedilatildeo outros de silecircncio quase absoluto Por exemplo entre 2006 e 2010 a equipa publicou uns oito tiacutetulos enquanto entre 2011 e 2015 somente dois Contudo o uacuteltimo tiacutetulo eacute talvez um dos mais importantes da seacuterie e em certo sentido estaacute na gecirc-

14

nese mesma da constituiccedilatildeo da Equipa trata-se dos poemas de Alberto Caeiro organizados por Ivo Castro Todos os tiacutetulos da coleccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para qualquer leitor que queira aprofundar o seu conhecimento da obra pessoana e satildeo tambeacutem a melhor porta de entrada ao espoacutelio antes do espoacutelio Nomes como Luiacutes Prista Joatildeo Dioniacutesio e Luiacutes Fagundes Duarte membros da Equipa Pessoa continuam sendo referecircncias im-portantes e ediccedilotildees como o da Pauly Ellen Bothe ou do Enrico Martines satildeo referecircncias de grande utilidade para qualquer es-tudo sobre Pessoa Ainda a Imprensa Nacional-Casa da Moe-da editora da Equipa Pessoa inaugurou em 2015 uma coleccedilatildeo ensaiacutestica dedicada ao Pessoa e que a comeccedilos de 2016 teraacute um segundo tiacutetulo que reuacutene algumas das listas de projetos do espoacutelio pessoano Portanto esse labor continua embora natildeo saibamos se haveraacute novas ediccedilotildees da chamada ldquoSeacuterie Maiorrdquo Paralelamente natildeo considero que nas ediccedilotildees pessoanas te-nha havido muitos pesquisadores isolados em realidade posso pensar sobretudo num caso notaacutevel e muito importante o da Teresa Sobral Cunha A maior parte das ediccedilotildees de Pessoa embora assinadas por um ou dois nomes satildeo elaboradas no marco de esforccedilos editoriais para os quais contribuem muitas pessoas Eacute o caso das ediccedilotildees da INCM e tambeacutem da Assiacuterio amp Alvim que reuacutene nomes como Manuela Parreira da Silva Ana Maria Freitas Fernando Cabral Martins e Richard Zenith es-pecialistas que partilham ideias e mantecircm comunicaccedilatildeo entre si Por outro lado ainda que os criteacuterios de apresentaccedilatildeo das ediccedilotildees da Assiacuterio difiram daqueles da ediccedilatildeo criacutetica da INCM eacute impossiacutevel ignorar que haacute um diaacutelogo no interior das ediccedilotildees e nenhum editor uma vez reconhecida uma melhoria conseguida por outro deixaraacute de consideraacute-la na sua proacutexima ediccedilatildeo Um caso paradigmaacutetico eacute o do Livro do Desassossego Claro so-brevivem poleacutemicas mas soacute temos (noacutes leitores) a ganhar com elas sempre e quando sejam levadas de maneira clara no acircm-bito acadecircmico Mais recentemente em 2013 surgiu a coleccedilatildeo pessoana da Tinta-da-China onde Jeroacutenimo Pizarro conta com coautorias e colaboraccedilotildees de um grupo significativo de pes-soas entre os quais Antonio Cardiello Patricio Ferrari e Joseacute Barreto Nesse sentido a ldquoforccedila-tarefardquo cresce e multiplica-se ao contraacuterio de tornar-se um ciacuterculo restrito como pode ter sido o primeiro plano patrocinado pelo estado portuguecircs nos anos oitenta com uma agenda bem delimitada Ainda recentemente a Tinta-da-China comeccedilou a imprimir seus livros no Brasil e eacute de esperar que isso traga novas possibilidades e novos olha-res Eacute tambeacutem importante notar que alguns dos atuais editores de Pessoa embora mantenham um viacutenculo forte com Portugal natildeo residem nesse paiacutes A tecnologia tem permitido que esse movimento descentralizador se manifeste produtivo O principal continua sendo o esforccedilo por dar a conhecer responsavelmen-te a obra de Pessoa a um puacuteblico cada vez maior Nesse sen-tido trata-se de um esforccedilo colaborativo Pessoalmente para

15

mim o mais interessante ainda estaacute por acontecer Agrave medida que Pessoa necessariamente comeccedila a migrar e a desafiar as possibilidades da ediccedilatildeo digital de acesso livre internacional as possibilidades de leitura dos seus textos e manuscritos e de penetraccedilatildeo em novas obras e novas vidas crescem Existe um importante projeto dedicado ao Livro do Desassossego se-diado na Universidade de Coimbra e em breve seraacute conhecido um projeto de publicaccedilatildeo digital de grandes dimensotildees produ-to da colaboraccedilatildeo entre universidades de Portugal Alemanha e mais recentemente da Universidade de Satildeo Paulo (USP) instituiccedilatildeo onde se consolida atualmente um Grupo de Estudos Pessoanos coordenado pelo professor Caio Gagliardi Cada vez mais esta empreitada exige grupos de trabalho por vezes de caraacuteter multidisciplinar no contexto do que hoje eacute conhecido como digital humanities Contudo o meacutetodo de planejamento dos novos esforccedilos editoriais continua sendo muito semelhante ao das ediccedilotildees criacuteticas da Equipa Pessoa revisitar o que jaacute foi feito confrontar com os originais questionar identificar lacunas ou possiacuteveis melhorias e oferecer ao puacuteblico novas portas e ja-nelas para o vasto legado que eacute a escrita de Fernando Pessoa

IPSEITAS Qual o papel de interpretaccedilotildees biograacuteficas em que pesa a anaacutelise de teor psicoloacutegico do autor como o livro Vida e obra de Fernando Pessoa de Joatildeo Gaspar Simotildees nessa tarefa de definir um padratildeo editorial para a obra

JEacuteROacuteNIMO A meu ver quase nenhum Pode levar a criar ten-tativas fantaacutesticas de textos iacutentimos ou autobiograacuteficos de um autor muito introspectivo a lermos em excesso as suas cartas de amor a falar apenas da sua sexualidade como de um fetiche mas a biografia que interessa em termos editoriais natildeo eacute uma de teor psicoloacutegico mas intelectual Pessoa pode ter tido medo da loucura por volta de 1907 mas o que estava a ler para a seguir escrever tantos escritos sobre o gecircnio e a loucura Eacute isto uacuteltimo que me interessa mais Claro quero saber da avoacute Dioniacutesio e da famiacutelia Pessoa que encontrou em Lisboa quando regressou em 1905 mas quais foram as suas investigaccedilotildees Quando descobriu os termos histeria e neurastenia Eacute isso que tentei responder em ediccedilotildees e estudos anteriores

JORGE Mais do que as interpretaccedilotildees biograacuteficas por si mes-mas o que resulta marcante para a ediccedilatildeo e leitura da obra eacute a importacircncia da questatildeo escrita-vida que natildeo escapou a Si-motildees jaacute em 1929 e particularmente no seu livro icocircnico dos anos cinquenta Esse problema estaacute no nuacutecleo duro da obra pessoana e especialmente na ideia do ldquodrama em genterdquo Se isto eacute percebido em chave confessional-biograacutefica psicanaliacuteti-ca ou como exploraccedilatildeo luacutedica das possibilidades da linguagem depende dos leitores Os conceitos de autobiografia confissatildeo e ficccedilatildeo satildeo objetivamente constitutivos da obra satildeo postos

16

em causa e instrumentalizados continuamente nos textos que a conformam Faz-se necessaacuterio que o leitor reflita acerca des-ses conceitos pois a categorizaccedilatildeo mesma depende da sua participaccedilatildeo Para isso eacute importante que conte com algumas informaccedilotildees biograacuteficas com diferentes graus de historicidade O trabalho de Joatildeo Gaspar Simotildees eacute de grande importacircncia e continua sendo fundamental embora possamos natildeo estar jaacute igualmente interessados nas conclusotildees de algumas das suas anaacutelises ldquopsicologistasrdquo e possamos corrigir (e tem sido assim) muitas das informaccedilotildees histoacuterico-biograacuteficas que ele achou ter fixado Contudo a compreensatildeo de aspectos do percurso vi-tal de Pessoa enquanto autor as instacircncias editoriais das suas publicaccedilotildees em vida e o desenvolvimento dos seus muacuteltiplos projetos como particularidades do seu processo criativo satildeo todos aspectos que interessaram a Simotildees e que continuam tendo grande importacircncia para uma leitura abrangente da obra As mais recentes ediccedilotildees estatildeo cada vez mais atentas a essas informaccedilotildees que contrastam a atividade editorial de Pessoa ndash enquanto esteve vivo ndash e o seu legadoarquivo Por outro lado as ediccedilotildees criacuteticas implicam necessariamente uma aproxima-ccedilatildeo ao processo criativo do autor a partir da sua componente material No caso de Pessoa os editores podem estar mais ou menos certos de estarem seguindo com fidelidade a ldquointenccedilatildeordquo do autor ou a pragmaacutetica materialidade do suporte documental mas sempre as suas proacuteprias convicccedilotildees e vieses criacuteticos to-mam parte no jogo interpretativo Reconhecer isso eacute importan-te natildeo haacute ediccedilatildeo sem leitura nem leitura sem interpretaccedilatildeo e pode haver diversos graus de participaccedilatildeo por parte dos edito-res nas ediccedilotildees mas eles sempre estatildeo aiacute a mediaccedilatildeo editorial natildeo eacute transparente o que natildeo quer dizer que por isso seja con-denaacutevel Como leitores e em geral como animais pensantes tendemos a achar sentido em processos causativos ou sequen-ciais por isso nos interessa por exemplo saber se um texto foi escrito antes ou depois de outro pela mesma matildeo ou por outra Entendemos nessas sequecircncias uma relaccedilatildeo que se tece entre dois ou mais elementos de maneira distinta a se a relaccedilatildeo fosse contraacuteria Uma cronologia da obra uma cronologia do desenvol-vimento dos textos embora natildeo exista para resolver de maneira irrevogaacutevel o sentido dos mesmos faz parte de aquilo que os torna para noacutes legiacuteveis e sedutores essa cronologia constitui uma visatildeo biograacutefica da obra literaacuteria como processo vital em-bora encenado nos limites e possibilidades da linguagem

IPSEITAS A famosa carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro escrita em 13 de janeiro de 1935 parece ter guiado por anos a fio parte consideraacutevel da criacutetica pessoana O que vo-cecircs pensam a respeito do uso frequente desse documento que ao lado de poemas como ldquoIstordquo e ldquoAutopsicografiardquo publicados em abril de 1933 na Presenccedila costuma servir de base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircnimos

17

JEROacuteNIMO Eacute uma carta fundamental e foi concebida como um testamento por Fernando Pessoa A meu ver natildeo serve ldquode base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircni-mosrdquo mas para discutir a ldquoverdaderdquo desse processo e a relaccedilatildeo como diria Goethe entre poesia e verdade Ora cada pormenor dessa carta abre mil e uma questotildees relevantes e eacute difiacutecil assi-nalar outro texto pessoano que gere tantas e tatildeo apaixonantes questotildees linha a linha e palavra a palavra

JORGE Pessoalmente o que mais me interessa eacute ver como a correspondecircncia de Pessoa em particular as cartas a Casais Monteiro mas tambeacutem as cartas a Joatildeo Gaspar Simotildees a Ar-mando Cocircrtes-Rodrigues entre outros podem ser lidas ao lado de poemas como ldquoAutopsicografiardquo ou entatildeo ldquoTabacariardquo ou as odes de Reis e natildeo por cima deles como se fizessem parte de um niacutevel diferente do discurso da obra A relaccedilatildeo que me interessa mais nesses textos eacute de contiguidade e natildeo de so-breposiccedilatildeo Se alguma ldquoexplicaccedilatildeordquo pode ser retirada da carta a respeito dos poemas eacute por semelhanccedila por analogia uma re-laccedilatildeo de familiaridade que existe no meio daquilo que podemos chamar a ldquoescrita de Fernando Pessoardquo Acho justo que esses textos estejam na base de algumas interpretaccedilotildees ndash satildeo textos extraordinaacuterios ndash e entendo que sejam preferidos pelos leitores em contraposiccedilatildeo a outros Poreacutem como eles a obra toda na sua incontornaacutevel dimensatildeo inconclusiva eacute relevante para ler ldquoFernando Pessoardquo o homem implicado na literatura de si proacute-prio Considero suspeita a posiccedilatildeo de um criacutetico que se conven-ccedila de que por ter lido a carta a Casais Monteiro que foi batizada de maneira espuacuteria ldquocarta sobre a geacutenese dos heteroacutenimosrdquo obteve uma imagem definitiva do processo geneacutetico ali descrito e que ache que essa imagem eacute de natureza radicalmente dis-tinta da oferecida pelas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo de Aacutelvaro de Campos Acho menos interessante ainda a posiccedilatildeo de outro criacutetico que leia essa carta e pense que se trata de uma cambada de mentiras

IPSEITAS Atualmente parece correto afirmar haver pelo me-nos trecircs modalidades de pensamento em jogo nos heterocircnimos o poeacutetico o filosoacutefico e o miacutestico Vocecircs acham possiacutevel falar de um pensamento cultural poliacutetico ou pedagoacutegico em escritos como por exemplo os de Ricardo Reis e os de Antoacutenio Mora sobre o paganismo Qual bibliografia vocecircs indicariam para o estudo dessas diferentes perspectivas

JEROacuteNIMO Natildeo sei bem o que responder Nem sempre vejo um pensamento ldquomiacutesticordquo nem sempre vejo uma vertente ldquopeda-goacutegicardquo Talvez fuja parcialmente da questatildeo citando um artigo de Antonio Cardiello ldquoO devir-pagatildeo e o regresso aos deusesrdquo publicado em Nietzsche e Pessoa Ensaios (2016) ldquoTranscen-

18

dendo todas as Igrejas todos os sistemas todas as crenccedilas na aceitaccedilatildeo superior das diversas verdades em que se possa indagar a Verdade o neopagatildeo admitiria entatildeo segundo a va-riante perspectivada pelo ortoacutenimo todos os deuses na larga capacidade do seu panteatildeo O Paganismo Superior ou paga-nismo transcendental para Fernando Pessoa seria ainda uma forma de politeiacutesmo supremo jaacute que na eterna mentira de to-dos os deuses de todas as doxas e de todas as aparecircncias as vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas mais natildeo seriam do que frutos mitoloacutegicos da Verdade perspectivas do misteacuterio a haver

JORGE Acho que haveraacute quase tantas perspectivas de aproxi-maccedilatildeo agrave obra como leitores Eacute muito difiacutecil destrinccedilar os limites de interesse dos textos pessoanos Textos exclusivamente filo-soacuteficos natildeo satildeo carateriacutesticos da obra e por traacutes dos poemas de Reis ou de Caeiro soacute para dar um exemplo existem reflexotildees filosoacuteficas de grande calado que natildeo estatildeo fora do fazer poeacutetico O mesmo pode ser dito sobre os textos assinados por Pessoa sobre Portugal ou de poemas como ldquoA memoacuteria do presidente--rei Sidoacutenio Paesrdquo neles a fronteira entre o poeacutetico e o poliacutetico eacute marcadamente difusa ndash passe-se o oxiacutemoro por ser pertinente O ldquodrama em genterdquo implica uma reflexatildeo sobre relaccedilotildees de tipo pedagoacutegico mas a perspectiva eacute complementar entre por exemplo o que afirma Campos nas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo e o que Pessoa assina na sua carta a Ca-sais Monteiro acerca do magisteacuterio de Caeiro Os textos pesso-anos tendem agrave confluecircncia embora o resultado dessa confluecircn-cia se manifeste por vezes em oposiccedilotildees Satildeo textos em certa forma pensados para resistir ao dogmatismo Sobre a noccedilatildeo de magisteacuterio na obra pessoana recomendo a leitura do mais recente livro de Antoacutenio M Feijoacute acerca de Pessoa e Teixeira de Pascoais Sobre o caso de Mora e Reis uma das maiores dificuldades para a leitura decorre de tratar-se de dois estilos de escrita que satildeo frequentemente indistinguiacuteveis inclusive para o proacuteprio Pessoa que fez que dezenas de textos oscilassem en-tre um autor e outro e em muitos casos parece ter desistido ou adiado indeterminadamente a tarefa de definir o que pertenceria a quem Recentemente comeccedilamos a conhecer melhor alguns textos Em 2013 Manuela Parreira da Silva apresentou uma vi-satildeo bastante coesa do que seriam as obras de Antoacutenio Mora numa ediccedilatildeo publicada pela Assiacuterio Em 2016 Jeroacutenimo Pizarro e eu publicamos a obra ldquocompletardquo ndash veja-se o sentido do termo numa resposta anterior ndash de Ricardo Reis da qual uma das par-tes mais relevantes satildeo as diferentes tentativas de elaborar um prefaacutecio agrave obra do mestre Caeiro tarefa que teve vigecircncia no atelier de escrita pessoano durante quase vinte anos Sem duacute-vida os textos reunidos nas ediccedilotildees mais recentes contribuem para a leitura interpretativa de alguns assuntos importantes da obra de Pessoa tais como o ldquopaganismordquo mas sobretudo essa perspectiva mais ampla ajuda a ver que natildeo haacute afirmaccedilotildees

19

completas ou cristalizadas a esse respeito Pelo contraacuterio nos textos e rascunhos faz-se reconheciacutevel um desenvolvimento da escrita que instrumentaliza os temas na configuraccedilatildeo de estilos literaacuterios e entidades autorais os temas estatildeo ao serviccedilo des-ses estilos e entidades e natildeo o contraacuterio Por outro lado haacute uma fronteira muito cinzenta entre o tipo de interesse por traacutes de fazer mapas astrais interpretar profecias e escrever centenas de versos decassiacutelabos A importacircncia que queira por exemplo ser-lhe concedida ao fato biograacutefico de Pessoa ter conhecido pessoalmente Aleister Crowley o famoso mago inglecircs venera-do por Jimmy Page e por Raul Seixas em 1930 depende de diversos fatores muitos dos quais associados agrave bagagem inter-pretativa de cada leitor e agraves suas proacuteprias crenccedilas e interesses Sobre esse assunto satildeo relevantes por exemplo os trabalhos interpretativos e historiograacuteficos de Marco Pasi e Steffen Dix Por outro lado a escrita pessoana associada agrave maccedilonaria ou o rosacrucianismo tambeacutem pode ser objeto de estudo o que natildeo necessariamente implica que se esteja a definir qual eacute o viacutenculo de Pessoa com qualquer uma dessas ordens Nesse sentido satildeo importantes e contrastantes os trabalhos de Pedro Teixeira da Mota e de Joseacute Barreto Pessoa oferece uma diversidade de assuntos de leitura notaacutevel e o leitor pode encontrar muitos temas agrave medida da sua curiosidade o difiacutecil eacute pretender que um deles possa submeter todos os outros para aleacutem de um conceito muito generoso de ldquoliteraturardquo Poderia ser pertinente poreacutem ter presente que em alguns casos os ldquotemasrdquo tratados por Pes-soa ou pelas suas criaturas lembram o suculento pedaccedilo de carne do qual falava T S Eliot ldquoThe chief use of the lsquomeaningrsquo of a poem in the ordinary sense may be () to satisfy one habit of the reader to keep his mind diverted and quiet while the poem does its work upon him much as the imaginary burglar is always provided with a nice bit of meat for the house-dogrdquo The use of poetry and the use of criticism)

IPSEITAS Jeroacutenimo no livro Pessoa existe publicado pela Aacuteti-ca em 2012 vocecirc escreveu ldquoPara aleacutem da indicaccedilatildeo de uma ordem falta-nos muitas vezes uma visatildeo de conjuntordquo Eacute possiacute-vel mensurar as consequecircncias dessa ausecircncia de uma visatildeo de conjunto nos trabalhos de criacutetica e de ediccedilatildeo

JEROacuteNIMO Entendo que sim Natildeo apenas porque jaacute existiram vaacuterios projetos de laquoObra completaraquo que falharam pela ausecircncia dessa visatildeo e porque jaacute foram escritas vaacuterias biografias com ig-noracircncia do espoacutelio pessoano mas porque para editar Pessoa embora seja laquochatoraquo (e a expressatildeo laquoque chaticeraquo eacute muito por-tuguesa) eacute preciso percorrer milhares de papeacuteis Praticamente nada estaacute em um nuacutecleo soacute e depois interessa e eacute relevante o diaacutelogo entre leitura e criaccedilatildeo entre os livros lidos e os papeacuteis escritos

20

IPSEITAS Ainda a propoacutesito do livro Pessoa existe na oca-siatildeo de seu lanccedilamento vocecirc disse ao programa Ler + Ler Me-lhor da TV RTP ldquoSinto que ultimamente estamos a falar muito a seacuterio de Fernando Pessoa que estamos a tornaacute-lo um objeto de culto () Sinto que eacute necessaacuterio descontrair mais o discurso sobre Fernando Pessoa () tem que ser mais informalrdquo Qual estrateacutegia podemos assumir na tentativa de conciliar a inves-tigaccedilatildeo criacutetica com a necessidade de um discurso mais des-contraiacutedo sobre o autor E quais implicaccedilotildees decorrem dessa tendecircncia em tornar Fernando Pessoa um ldquoobjeto de cultordquo

JEROacuteNIMO Noacutes temos que procurar a meu ver ser scholars de excelecircncia e investigadores capazes de transmitir o que des-cobrimos haacute textos ndash como a ediccedilatildeo criacutetica do Livro do Desas-sossego (2010) ndash que tem que ter um tom e uma certa dimen-satildeo e haacute outros ndash tipo Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016) ndash que devem ter outro tom e outras pretensotildees Num artigo intitulado ldquoO jogo do desassossegordquo (2014) publica-do em Central de Poesia II escrevi ldquoTalvez seja o momento de ensaiarmos uma escrita menos seacuteria ou melhor com um tipo de seriedade menos solene em relaccedilatildeo a Fernando Pessoa Porquecirc Porque acredito que Pessoa preparou uma grande ar-madilha para a posteridade e que todos noacutes caiacutemos nela Creio que haacute dias em que tambeacutem noacutes temos de nos equilibrar numa soacute perna como uma iacutebis como Pessoa como quem levitardquo Uma implicaccedilatildeo delicada de tornar Pessoa um objeto de culto eacute a paralisia fica congelado no tempo embora ainda esteja por co-nhecer e numa entrevista de 1923 ele proacuteprio tenha respondi-do em jeito de conclusatildeo que ldquoNa eterna mentira de todos os deuses soacute os deuses todos satildeo verdaderdquo

Perguntas elaboradas pelos doutorandos Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza (UNB) Mariella Augusta Pereira (UNICAMP) e Rubens Joseacute da Rocha (UFSCar)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

21

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegicaFernando Pessoa A Dialectical and Phenomenological Approach

Palavras-chave Pessoa Nada Negaccedilatildeo Fausto Heteroniacutemia Filosofia da Literatura Poeacutetica da SensaccedilatildeoKeywords Pessoa Nothingness Negation Faust Heteronymy Philosophy of Literatu-re Poetics of Sensation

RESUMO Este estudo expotildee a estrutura filosoacutefica sistemaacuteti-ca da poesia de Fernando Pessoa Esta estrutura funda-se nos conceitos de negativo natildeo-ser e nada A experiecircncia obsessi-va do nada e a explicaccedilatildeo da sua dialeacutetica estaacute exemplificada principalmente no Fausto Uma Trageacutedia Subjetiva O negativo eacute em seguida exposto como a distacircncia entre mim e eu mes-mo que eacute a chave da dialeacutetica pessoana da subjetividade entre verdade e fingimento sensaccedilatildeo e realidade pensamento e sen-timento A heteroniacutemia eacute entatildeo explicada como esta distacircncia de si proacuteprio ie a negaccedilatildeo da identidade e ldquooutrar-serdquo Satildeo apresentadas sete teses sobre a heteroniacutemia como conceito po-eacutetico e filosoacutefico procurando mostrar-se que ela natildeo deve ser considerada uma anomalia mas antes como o estado normal da criaccedilatildeo artiacutestica uma vez que o autor e a obra satildeo criados simultaneamente A posiccedilatildeo fenomenoloacutegica de Alberto Caeiro eacute em seguida apresentada como a soluccedilatildeo para os problemas dialeacuteticos da obra de Pessoa e algumas observaccedilotildees conclusi-vas acerca dos modos da diferenccedila em Pessoa encerram esta abordagem dialeacutetica e fenomenoloacutegica agrave obra de Pessoa

ABSTRACT This paper exposes the systematic philosophical structure of Fernando Pessoarsquos poetry This structure is groun-ded on the concepts of the negative not-being and nothingness The obsessive experience of nothingness and the explanation of its dialectics is best exemplified by Pessoarsquos Faust A Sub-jective Tragedy The negative is then exposed as the ldquodistance between me and myselfrdquo which is the key to Pessoarsquos dialectics of subjectivity between truth and pretending sensation and rea-lity thought and feeling His characteristic heteronymy is explai-ned as this distance to himself ie the negation of identity and self-otherness Seven thesis about the heteronymy as a poetic and philosophical concept are then presented arguing that hete-ronymy should not be considered an anomaly but rather as the

Diogo Ferrer

Professor Associado na Universidade de Coimbra

ferrerdiogogmailcom

() Este artigo corresponde a uma conferecircncia apresentada no coloacutequio Fer-nando Pessoa (+ ou -) Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos SP em 12 de Setembro de 2013 Seraacute publicado em breve tambeacutem como capiacutetu-lo de D Ferrer Transparecircncias Linguagem e Reflexatildeo de Ciacutecero a Pessoa Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra 2018

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

22

normal state of any artistic creation Indeed the author and the work are always created at the same time The phenomenolo-gical position of the heteronym Alberto Caeiro is then presented as the solution to the dialectical problems of Pessoarsquos work and some concluding remarks on the ways of difference in Pessoa completes this phenomenological and dialectical approach to his works

1 O sistema da poesia pessoana

O valor literaacuterio da obra de Fernando Pessoa eacute insisten-temente sublinhado desde a sua descoberta ainda em vida do poeta pelo grupo de Coimbra da Presenccedila Mais especifica-mente Joseacute Reacutegio jaacute em 1927 o sauacuteda pela primeira vez em Portugal como o mestre maior da poesia portuguesa contem-poracircnea1 e Pierre Hourcade (1908-1983) publica em 1930 em Paris dois artigos quase exclusivamente dedicados a Pessoa e comeccedila a traduzi-lo para o francecircs Aleacutem do aspecto literaacute-rio contudo a obra de Pessoa envolve uma conceptualizaccedilatildeo filosoacutefica de uma riqueza surpreendente que a par do aspecto mais evidente dos temas ligados agrave reflexatildeo existencial apre-sentam dois aspectos invulgares Satildeo estes (1) o facto de que a obra pessoana apresenta uma estrutura filosoacutefica que salta agrave vista Natildeo se poderia falar de uma infra-estrutura filosoacutefica uma vez que natildeo haacute uma base conceptual anterior agrave imaginaccedilatildeo po-eacutetica ou dela isolaacutevel mas deveraacute falar-se por um lado de uma estrutura interna teoacuterica que estaacute implicada de modo estranha-mente evidente em muito da criaccedilatildeo poeacutetica e por outro da permanente acccedilatildeo reciacuteproca entre vida e obra literaacuteria Procu-rarei mostrar que a construccedilatildeo poeacutetica de Pessoa assenta num travejamento filosoacutefico clariacutessimo que embora esteja entrete-cido sem hiato com a imagem a representaccedilatildeo e a linguagem poeacuteticas e lhes confira uma clara estrutura conceptual mesmo categorial natildeo pode todavia ser jamais entendido de modo es-quemaacutetico A poesia natildeo se encontra enquadrada pela estrutura conceptual mas por assim dizer respira-a Isto faz de Pessoa para aleacutem de poeta tambeacutem filoacutesofo embora do tipo especiacutefico do poeta-filoacutesofo tipo literaacuterio onde o seu estatuto natildeo me pare-ce ser inferior agrave importacircncia da sua obra da perspectiva poeacutetica (2) Um segundo aspecto que merece ser muito especialmente notado eacute que esta intra-estrutura filosoacutefica mesmo se se tomar em termos de um pensamento filosoacutefico de cariz natildeo literaacuterio ou poeacutetico eacute invulgarmente completa organizada e deveraacute di-zer-se ateacute mesmo sistemaacutetica Potenciada ndash mas sobretudo actualizada ndash principalmente pela heteroniacutemia a diversidade integraccedilatildeo e completude da intra-estrutura conceptual aproxi-

1 Cf Robert Breacutechon Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernan-do Pessoa trad M Abreu P Tamen Ciacuterculo de Leitores Lisboa 1997 p 462

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

23

ma-se bastante uma sistematizaccedilatildeo teoacuterica2 Mas isto natildeo signi-fica absolutamente que se pudesse de algum modo substituir a criaccedilatildeo literaacuteria por uma sistematizaccedilatildeo filosoacutefica sob outra for-ma literaacuteria uma vez que a integraccedilatildeo da forma com o conteuacutedo eacute no geral e no particular das diferentes esferas ou elementos da criaccedilatildeo pessoana um factor indeclinaacutevel da sua expressatildeo Eacute que natildeo haacute traccedilo de alegoria ou de roupagem literaacuteria para conceitos filosoacuteficos ateacute porque quase tudo eacute explicitamente dito ndash como disse acima estranhamente manifesto temaacutetico e discutido ndash na poesia pessoana A integraccedilatildeo forma-conteuacutedo eacute inseparaacutevel e soacute por abstraccedilatildeo ou como diria Caeiro quando se tem um membro dormente no corpo poeacutetico se pode fazer a anaacutelise filosoacutefica a que me proponho

Joseacute Gil algum Eduardo Lourenccedilo ou com bastante me-nor amplitude Joseacute Enes jaacute expuseram os principais paracircme-tros filosoacuteficos da obra pessoana Sabemos que se trata nos seus traccedilos mais gerais de uma teoria das sensaccedilotildees3 de uma abordagem do conceito do nada ou de uma ontologia radical situada para aleacutem de toda a metafiacutesica do ente Eacute conhecido que o ldquodrama em genterdquo da heteroniacutemia dramatiza o desapa-recimento da unidade do sujeito na modernidade avanccedilada ou numa poacutes-modernidade4 talvez entatildeo jaacute a prenunciar-se como consequecircncia inevitaacutevel do modernismo

2 As figuras do natildeo-ser pessoano

No que se segue irei reorganizar resumidamente estes te-mas na obra de Pessoa complementando-os com elementos de sistematizaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegica e procurando tornar claros alguns dos grandes eixos das suas relaccedilotildees e in-teracccedilotildees conceptuais

Como se viu eacute possiacutevel mostrar que a obra de Pessoa irra-dia no que toca ao seu alcance filosoacutefico ontoloacutegico ou metafiacute-sico em redor de um centro absolutamente diferencial ocupado por um conceito filosoacutefico claacutessico o do natildeo-ser que podemos fazer remontar aos alvores da metafiacutesica ocidental Platatildeo pro-jeta muito para traacutes esta concepccedilatildeo ateacute Parmeacutenides de Eleia

2 O inteacuterprete mais significativo da obra pessoana da perspectiva filo-soacutefica eacute sem duacutevida hoje Joseacute Gil Embora de uma perspectiva diferente e servindo-se de uma conceptualizaccedilatildeo com outras referecircncias tambeacutem Gil depara-se na obra pessoana com uma configuraccedilatildeo sistemaacutetica sobretudo na geacutenese dos heteroacutenimos Trata-se nomeadamente de ldquouma esteacutetica que permite o nascimento de multiplicidades e a construccedilatildeo do mito do nasci-mento dessas multiplicidades poeacuteticas (heteroniacutemicas) eis a configuraccedilatildeo geral do sistema da poesia pessoana [] Tudo isto faz sistema satildeo as mes-mas distacircncias tambeacutem que separam a poeacutetica de Caeiro de cada uma das poeacuteticas dos seus disciacutepulosrdquo (Joseacute Gil Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Reloacutegio DacuteacuteAgua Lisboa 2013 pp 65-66 [itaacutelicos meus])3 Sobre a ldquoesteacutetica do sensacionismordquo cf ib p 624 V Breacutechon op cit

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

24

No diaacutelogo com o nome deste filoacutesofo lecirc-se como vimos que ldquopara que possa ser completamente o ente possui o natildeo-ente do natildeo-ser que natildeo eacuterdquo ou numa traduccedilatildeo mais simples ldquoo ser participa da natildeo-existecircncia do natildeo-ser para que possa atingir a sua perfeita existecircnciardquo5 Independentemente da traduccedilatildeo a ideia-chave eacute que mesmo o ser perfeito da metafiacutesica parmeniacute-dea necessita do natildeo-ser do natildeo-ser ldquopara que possa ser com-pletamenterdquo Poderaacute dizer-se que a anulaccedilatildeo da mediaccedilatildeo eacute necessaacuteria como condiccedilatildeo da posiccedilatildeo da identidade Esta con-cepccedilatildeo claacutessica do ser restabelecido na sua completude pela negatividade reiterada eacute sem duacutevida um dos eixos categoriais e um problema conceptual da poesia de Pessoa A dupla nega-ccedilatildeo ou negatividade absoluta e a sua inevitaacutevel reflexatildeo satildeo a condiccedilatildeo da afirmaccedilatildeo do ente que soacute eacute ldquocompletamenterdquo ou ldquoperfeitamenterdquo na sua relaccedilatildeo negativa com o natildeo-ser

Reencontra-se com frequecircncia em Pessoa a sua oposi-ccedilatildeo e diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo e ao outro a par de um natildeo menos significativo distanciamento em relaccedilatildeo a si mes-mo A este respeito poderaacute ler-se especialmente o ortocircnimo por exemplo

Nada conduz a nada Nada serve de ser [] Nada e o nada persiste Na estrada e no veratildeo

ou

Nada sou nada posso nada sigo [] Natildeo comprendo compreender nem sei Se hei-de ser sendo nada o que serei6

Na poesia ortocircnima a negatividade estaacute presente como centro gerador de muito da criaccedilatildeo poeacutetica que se vai traduzir no que o autor denomina por vezes de ldquointervalo dolorosordquo Mas esta reiteraccedilatildeo do nada ou da negaccedilatildeo eacute tambeacutem transversal agrave he-teroniacutemia Encontram-se traccedilos dela em Aacutelvaro de Campos na prosa do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares e em Ricardo Reis Da Ode X deste uacuteltimo eacute um outro trecho claramente exemplifi-cativo

Melhor destino que o de conhecer-se Natildeo frui quem mente frui Antes sabendo Ser nada que ignorando

5 Platatildeo Parmeacutenides 162a segundo as traduccedilotildees (alteradas) de M J Figueiredo e H N Fowler respectivamente (Platatildeo Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa 2001 e Plato IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Harvard 1977)6 PE 186 e 156 Poemas de 791927 e de 611923 respectivamente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

25

Nada dentro de nada7

A negatividade tem por caracteriacutestica dialeacutetica natildeo poder ser pensada ou para o nosso caso tatildeo-pouco vivida e dita sem se negar a si mesma Parece inevitaacutevel que a negaccedilatildeo uma vez visada como categoria se intensifique e reitere As consequecircn-cias disto vatildeo em diferentes sentidos e niacuteveis de complexidade O caso categorialmente mais simples encontra-se no Fausto or-toacutenimo

E hora a hora na minha esteacuteril alma Mais fundo o abismo entre meu ser e mim se abre e nesse () abismo natildeo haacute nada8

3 O laboratoacuterio faacuteustico e a dissoluccedilatildeo do real

O Fausto em que Pessoa trabalhou episodicamente ao longo de toda a sua vida dramatiza a negaccedilatildeo no seu estado mais puro o nuacutecleo negativo tomado simplesmente com as suas conclusotildees mais rigorosas O mesmo rigor da deduccedilatildeo das consequecircncias que parecem desprezar os aspectos mais reificados do mundo com que Pessoa se deleita nos seus tex-tos poliacuteticos e esteacuteticos encontra-se dramatizada na poesia do Fausto A consequecircncia da reiteraccedilatildeo do negativo eacute aqui expos-ta sem concessotildees Fausto no seu laboratoacuterio conceptual cria a experiecircncia mais mortal da improdutividade do negativo em estado puro e definitivo

A coerecircncia feacuterrea do laboratoacuterio de Fausto eacute claramente explicitada nas suas consequecircncias que se diferenciam prin-cipalmente em duas vertentes uma a da inteligecircncia que vai ser tomada pela questatildeo impossiacutevel da origem outra a da vida que eacute sentida num contiacutenuo ldquohorrorrdquo palavra cuja presenccedila ao longo do texto eacute quase obsessiva9 A negaccedilatildeo eacute aqui simples questatildeo pelo natildeo-ser ou ser outro daquilo que eacute partindo da compreensatildeo de que

[] tudo eacute siacutembolo e analogia O vento que passa a noite que esfria Satildeo outra coisa que a noite e o vento ndash Sombras da vida e do pensamento10

O pensamento comeccedila pelo ser do natildeo-ser como criaccedilatildeo

7 RR 178 Fernando Pessoa Fausto ed Teresa Sobral Cunha Reloacutegio DrsquoAacutegua Lisboa 2013 [reediccedilatildeo] [=F] 45 Os parecircnteses no texto satildeo da editora9 Para uma anaacutelise de aspectos essenciais da dimensatildeo afectivo-on-toloacutegica da obra pessoana v o estudo de Joseacute Gil ldquoCansaccedilo Teacutedio Desas-sossegordquo in op cit pp 93-11810 F 39

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

26

de significado ndash ldquosiacutembolo e analogiardquo ndash com a contrapartida de que a categorizaccedilatildeo seja doravante inevitavelmente uma ale-gorizaccedilatildeo O ser-outro passa a categoria central do pensamen-to e toda a criaccedilatildeo de significado tem como consequecircncia o caraacutecter ilusoacuterio do ser Dialecticamente o ser eacute ser-outro natildeo como simples ser-ao-lado de outro ser mas como todo o outro do ser a negaccedilatildeo integral do seu regime de sentido O trecho conclui naturalmente alguns versos mais abaixo retomando os elementos evidentes da sombra e da impermanecircncia sob este novo regime que satildeo os derivados primeiros da negaccedilatildeo inten-sificada

A noite fria o passar do vento Satildeo sombras de matildeos cujo gestos satildeo A ilusatildeo matildee desta ilusatildeo[]11

Na concepccedilatildeo do Fausto a alteridade torna-se uma total desigualdade do ente consigo proacuteprio tiacutepico do regime da ima-gem insubsistente

Tudo transcende tudo E eacute mais real e menos do que eacute12

Pessoa trilha um percurso categorial que estaacute perfeitamente ex-pliacutecito e que eacute reforccedilado pelos elementos naturais ndash a noite o vento ndash que longe de atenuarem o isolamento ou darem corpo a uma realidade extra-categorial mostram a facilidade com que a vertigem categorial dela se apodera Por isso pode-se falar de uma quasi-sistematicidade do pensamento pessoano que se mostra como totalmente coerente com as formas claacutessicas da dialeacutetica no pensamento ocidental (e provavelmente natildeo soacute) Neste sentido dificilmente se poderia encontrar um criador poeacute-tico com uma compreensatildeo filosoacutefica mais clara e aprofundada A experiecircncia filosoacutefica sistemaacutetica parece mesmo ndash num certo sentido e dependendo do gosto ndash no Fausto relegar para se-gundo plano a experiecircncia esteacutetica que soacute pode ser fruiacuteda por-ventura no refluxo do pensamento Aqui tudo estaacute literalmente aspirado no ldquoMaumlelstromrdquo do negativo aleacutem do ser e do natildeo-ser

[] Ah deve haver Aleacutem da vida e da morte ser natildeo ser Um inominaacutevel supertranscendente [] Deus Nojo Ceacuteu Inferno Nojo nojo13

Esta eacute

11 F 3912 F 3913 F 42

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

27

Uma noite de Tudo que eacute um Nada Um abismo de Nada que eacute um Tudo14

Jaacute nada deteacutem a vertigem e natildeo haacute muito mais a dizer ldquoO abismo eacute abismo num abismordquo15 Em conclusatildeo leia-se ainda o verso ldquoEu sou o Aparte o Excluiacutedo o Negrordquo Difiacutecil seria exigir maior rigor de pensamento

Este vertiginoso e abjecto regime laboratorial do negativo eacute a origem da questatildeo A tese eacute que toda a questatildeo eacute origina-riamente ontoloacutegica porque nasce da suspensatildeo do ser e do natildeo-ser Fichte jaacute tinha procurado mostrar que o ldquoo querdquo (ldquoWasrdquo) e o ldquoporquecircrdquo (ldquoWeilrdquo) ndash como resposta agrave questatildeo ldquopor querdquo16 ndash satildeo as categorias principais em que o absoluto aparece agrave cons-ciecircncia Fausto estaacute obsidiado pela questatildeo em geral que eacute a questatildeo sobre o que e porque satildeo o ser ou o existir

Mas que haja espaccedilo tempo que haja seres Que haja um mundo () cores sons Movimentos mudanccedilas ()Que haja qualquer coisa sim que a haja17

Daiacute somos conduzidos agrave generalizaccedilatildeo

Mais que a existecircncia Eacute um misteacuterio o existir o ser o haver Um ser uma existecircncia um existir ndash [] O que eacute existir ndash natildeo noacutes ou o mundo Mas existir em si18

Ou mais simplesmente na inevitaacutevel reduplicaccedilatildeo auto-referen-te da questatildeo

ldquoO que eacute haver haver Porque eacute que o que eacute eacute isto que eacute Como eacute que o mundo eacute mundordquo19

Esta essecircncia negativa eacute obsessiva porque auto-referente e conduz natildeo soacute ao recalcar do seu outro como tambeacutem agrave sua expressa abjeccedilatildeo e aniquilaccedilatildeo Aqui o dramatismo do absoluto natildeo-outro infecta a partir do universo inteiro a relaccedilatildeo com o corpo e o outro sujeito

Acordo ao conceber quanto eu odeio

14 F 5415 F 6016 Ver Ferrer O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Coimbra 2014 pp 174-17517 F 7418 F 10419 F 57

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

28

Mais do que esta mais que a humanidade Mas o universo todo []20

Ver-se-aacute ainda que passada esta vertigem da reiteraccedilatildeo de si a negaccedilatildeo do outro eacute outrossim a razatildeo do ver Tambeacutem aqui como lemos em Sartre ldquoa apariccedilatildeo de outro algueacutem no mundo corresponde a um [] deslizamento congelado do uni-verso inteiro que mina por baixo a centralizaccedilatildeo que eu simul-taneamente operordquo21 Dramatizado este deslizamento de ordem fenomenoloacutegica lemos no Fausto como se segue

Sinto horror Agrave significaccedilatildeo que olhos humanos Contecircm22

O olhar do outro eacute a alteridade que ameaccedila de modo in-compreensiacutevel a auto-referecircncia do eu o deslocamento violen-to para a pura auto-referecircncia do significado para um outro inte-rior que natildeo eacute o meu A origem da auto-referecircncia como vimos eacute anterior ao exerciacutecio dos sentidos e sobretudo da visatildeo e reside na estrutura conceptual dialeacutectica do negativo O para-digma e origem da auto-referecircncia eacute o negativo que permite construir os fenoacutemenos de centramento de auto-centramento a pura repeticcedilatildeo (malgreacute Gil-Deleuze) que se traduz em deslo-camentos de sentido na pergunta em geral na reduccedilatildeo do ou-tro agrave imagem e com isto no ver mas tambeacutem no fenoacutemeno da repulsa O ldquoodeio a naturezardquo exclamado na Voyage au bout de la nuit de Ceacuteline grita em toda esta construccedilatildeo Antes de mais

O misteacuterio de ver e o horror de verem-me Abisma-me23

ndash porque o olhar do outro ou jaacute o seu simples rosto segundo a tradiccedilatildeo fichteana eacute a natureza amaacutevel e livre ou seja recon-ciliada com o sujeito O olhar do outro natildeo significa e natildeo eacute assim antes de mais o outro-eu simplesmente mas o eu outro Ou seja o objeto da inquietaccedilatildeo e do oacutedio natildeo eacute em primeira linha um outro sujeito idecircntico a mim em espelhamento mas a constataccedilatildeo de que a alteridade eacute tambeacutem a naturalidade do eu sujeito Fausto sente assim a repulsa perante o eu outro

Oacute horror metafiacutesico de ti Sentido pelo instinto sentido pelo instinto

[natildeo na menteVil metafiacutesica do horror da carne

20 F5421 J-P Sartre Lacuteecirctre et le neacuteant 1984 30122 F 13723 F 150

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

29

Medo do amor24

E em consequecircncia

Ouvir um riso Amarga-me a alma ndash mas porquecirc natildeo sei Sinto como um insulto esta alegria ndash Toda a

[alegria[] Aqueles corpos Tenham filhos vejam Seus filhos afogados ante os olhos As filhas violadas a seu ver25

4 As nuacutepcias da diferenccedila

Ainda antes de abandonar esta leitura do Fausto como ex-posiccedilatildeo mais direta e revoltada das sequelas da negaccedilatildeo ab-solutamente auto-referida deveraacute observar-se que a auto-refe-recircncia como repeticcedilatildeo de si eacute tambeacutem a fonte da subjetividade reencontrada sob diferentes formas em toda a obra pessoana Jaacute encontramos o ldquohaver haverrdquo ou o ldquohaver eu sou eurdquo26 a que se poderia acrescentar a figura claacutessica da ldquoalma da almardquo ou a curiosa frase ldquoCasei com a diferenccedilardquo27 Este eacute em geral o ldquoIntervalordquo28 e ldquoIntervalo dolorosordquo referido no Livro do De-sassossego ou mais especificamente ldquointervalo entre nada e nadardquo29 A proacutepria preposiccedilatildeo ldquoentrerdquo eacute tomada no mesmo livro como objecto substantivado de uma reflexatildeo numa nota acer-ca do poema ldquoRio entre sonhosrdquo Lecirc-se aiacute que ldquoa ideia de rio eacute sugerida pela ideia que ocorre em todos os versos de uma coisa que passa entre e a ideia de entre eacute vincadiacutessimardquo30 Este ldquoentrerdquo que nos faz tambeacutem pensar numa similar substantiva-ccedilatildeo em Heidegger (ldquodas Zwischenrdquo) multiplica-se em diferentes distacircncias entre si e si mesmo entre si mesmo e a realidade entre eu e o outro e tambeacutem significativamente como se vol-taraacute a referir entre mim e ver entre o ver e a coisa ou entre o pensamento e a sensaccedilatildeo Assim tomando alguns exemplos o distanciamento comeccedila por ser em relaccedilatildeo a si mesmoldquoLonge de mim em mim existordquo31 Eacute igualmente uma distacircncia que estaacute expressa no conceito da personalidade aqui trata-se do ldquoNexo inuacutetil entre o que sou e quem sourdquo32 A alma eacute pois simples dis-

24 F 6025 F 52 5326 F 5327 PE p 188 Poema de 910192728 LD 22629 LD 22630 Cit in Richard Zenith ldquoIntroduccedilatildeordquo in LD 2631 PE 24932 PE249

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

30

tacircncia ldquoDe que eacute que a minha alma distardquo33 ou eacute a distacircncia entre mim e o agora ldquoQue haacute entre mim e o momentordquo34 Mas a questatildeo do intervalo eacute projectada pelo ortoacutenimo igualmente como tese metafiacutesica

Deus eacute um grande intervalo Mas entre quecirc e quecirc35

Este toacutepico reflete com rigor a grande questatildeo do sujeito que se descobre como ldquoauto-posiccedilatildeordquo segundo a versatildeo de Fichte para se descobrir que esta mesma auto-posiccedilatildeo que o funda e constitui abre necessariamente tambeacutem o espaccedilo para um fun-damento obscuro ainda mais vasto Este ponto cego da reflexatildeo atravessa boa parte do questionamento filosoacutefico posterior que a partir de Schelling critica o sujeito com base justamente neste fundamento impensado e obscuro o qual como resultado da diferenccedila inerente agrave sua reflexatildeo proacutepria abre-se de modo mais patente justamente perante a mais pura auto-atividade do sujei-to Toda a exposiccedilatildeo pessoana que temos vindo a seguir com base nesta abertura de um intervalo entre mim e mim (o ldquohaver eu sou eurdquo) eacute o que permite apontar por um lado para o nada e o negativo como ceacutelula categorial de base da expressatildeo pesso-ana como tambeacutem por outro para o impensado sempre aleacutem do ser Bernardo Soares diz do modo mais claro esta ligaccedilatildeo da distacircncia de si mesmo e a interrogaccedilatildeo por um fundamento aleacutem do ser e do natildeo-ser ldquoEu longe dos caminhos de mim proacute-prio cego da visatildeo da vida que amo cheguei por fim tambeacutem ao extremo vazio das coisas agrave borda imponderaacutevel do limite dos entesrdquo36 Inspiraccedilatildeo semelhante encontra-se em Aacutelvaro de Campos ldquoPerante esta uacutenica realidade terriacutevel ndash a de haver uma realidaderdquo37 E leia-se tambeacutem ainda mais uma vez no Fausto

Uma vez contemplando dum outeiro A linha da colina majestosa Que azulada e em perfis desaparecia No horizonte contemplando os campos Vi de repente como que tudo Desaparecer []

e um abismo invisiacutevel uma coisa Nem parecida com a existecircncia Ocupar natildeo o espaccedilo mas o modo Com que eu pensava o visiacutevelrdquo38

33 PE 77 Poema de 1111191434 PE 81 Poema de 310191535 PE 56 Poema de Jan-Mar 191336 LD 147

37 Fernando Pessoa Poesias de Aacutelvaro de Campos Aacutetica Lisboa 1958 [=AC] 93 38 F 44

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

31

A distacircncia de si a si pressuposta pela reflexatildeo vai estar tambeacutem na base de um outro modo de estranhamento de si ldquoFalam na nossa boca laacutebios que natildeo nos pertencemrdquo39 ndash segun-do um toacutepico de que tambeacutem se poderiam multiplicar os exem-plos A lucidez absoluta da reflexatildeo integral do eu segrega um ponto cego que se manifesta para laacute da reflexatildeo como este permanente aleacutem

A principal funccedilatildeo da negaccedilatildeo em geral e muito em parti-cular na esteacutetica de Pessoa eacute a produccedilatildeo de alteridade Como se disse ao desposar o negativo ldquoCasei-me com a diferenccedilardquo A produccedilatildeo de alteridade assume diferentes formas entre as quais o estranhamento da consciecircncia em relaccedilatildeo a si mesma Mas seria excessivo prosseguir na leitura da negatividade e das suas manifestaccedilotildees conforme expostas no seu estado mais puro no Fausto onde eacute explorado ateacute agrave exaustatildeo o seu significado como uma essecircncia totalmente centrada sobre si e redutora da alte-ridade Esta essecircncia que Pessoa apoda inuacutemeras vezes em cada paacutegina do Fausto de ldquohorrorrdquo eacute o que o impede ou pare-ce impedir biograficamente a realizaccedilatildeo pessoal impondo-lhe porventura uma ldquoconsciecircncia infelizrdquo que pela intensificaccedilatildeo do seu nuacutecleo vazio natildeo pode sair de si conforme eacute exigido para agir amar ou simplesmente existir

Mas natildeo poderiacuteamos agora prosseguir na anaacutelise nem da consciecircncia infeliz nem da accedilatildeo ou inaccedilatildeo em Pessoa ndash para o que natildeo faltaria aliaacutes material no Livro do Desassossego Nem por outro lado enunciar a questatildeo biograacutefica do alegado fracas-so existencial do poeta que pelo contraacuterio a meu ver tematiza todas as condiccedilotildees desse fracasso e cultiva-as mesmo de tal modo que a sua transformaccedilatildeo em arte e pensamento eacute o modo de o objetivar e afastar de si Houve parafraseando o poeta que ldquopassar aleacutem da dorrdquo

A dialeacutetica embora centrada no natildeo-ser e no negativo co-nhece tambeacutem uma interpretaccedilatildeo mais branda pela qual este vazio absoluto na base da loucura da auto-referecircncia negativa de Fausto assume formas diversas Se prosseguirmos no ca-minho sistemaacutetico que o desdobramento heteroniacutemico da obra de Pessoa sugere observa-se que o denominado ldquooutrar-serdquo do poeta pode com inteira naturalidade ser lido a partir do negati-vo entendido dialeticamente como alteridade ou ser-outro Se a negaccedilatildeo intensificada e reiterada em si produz a estrutura cate-gorial do Fausto a negaccedilatildeo simples estaacute na base do ser-outro da heteroniacutemia ser-outro simples ou imediato cuja reiteraccedilatildeo eacute apenas repeticcedilatildeo e diferenccedila e natildeo mais a mortal reiteraccedilatildeo de si que ameaccedila o ortoacutenimo e de que este no Fausto parece fa-zer a catarse objetivando-a de modo justamente a natildeo a trazer consigo A esta repeticcedilatildeo simples da negaccedilatildeo como outro e natildeo

39 FP 85 Poema de 2741916

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

32

mais negatividade pura corresponde agora natildeo uma intensifica-ccedilatildeo voraz mas uma multiplicaccedilatildeo Jaacute no seu devaneio infantil conforme menciona na sua Carta a Casais Monteiro sobre a geacutenese dos heteroacutenimos Pessoa criou aquele que parece ser o primeiro precursor dos heteroacutenimos o Chevalier de Pas que bem poderiacuteamos traduzir pelo Cavaleiro do Natildeo

Desta perspectiva o que Hegel na sua anaacutelise da nega-ccedilatildeo denominou a negaccedilatildeo simples traduz-se bem no outrar-se pessoano Casado com a diferenccedila o eu manteacutem-na como ne-gatividade absoluta intensificando-a mas uma vez objetivada pode tambeacutem reemergir sob a forma da multiplicaccedilatildeo do ser--outro A heteroniacutemia eacute assim uma outra face da negatividade que se manteacutem temaacutetica tanto no ortoacutenimo quanto nalguns dos heteroacutenimos

5 A faacutebrica dos heteroacutenimos

Na sua informada e notaacutevel biografia de Pessoa Robert Breacutechon apresenta uma explicaccedilatildeo sem duacutevida correta em parte da heteroniacutemia Esta ldquoeacute um meacutetodo experimental para ter pensamentos e sensaccedilotildees emoccedilotildees e crenccedilas novas capazes de nos fazer sair da personalidade cristalizada moldada pelo nosso caraacutecter a nossa educaccedilatildeo a nossa heranccedila cultural [] Levei muito tempo a compreender a profunda verdade da hete-roniacutemia Pensamos que temos opiniotildees seguras crenccedilas fun-damentadas e ateacute uma feacute que julgamos ser a uacutenica verdadeira mas haacute outros que estatildeo igualmente seguros das suas opiniotildees das suas crenccedilas da sua feacute diferentes das nossas [] Caeiro Reis e Campos satildeo posturas da consciecircncia de Pessoa diferen-tes daquela que lhe eacute mais naturalrdquo40 A questatildeo seria segundo esta descriccedilatildeo ou explicaccedilatildeo a de o autor poder pela hetero-niacutemia assumir crenccedilas ou modos de ser que natildeo os preponde-rantes na sua consciecircncia colocar-se no lugar de outro Se isto natildeo eacute incorreto passa parece-me ao lado do mais importante A heteroniacutemia eacute sem duacutevida desenvolver traccedilos diferentes e ateacute contraditoacuterios de uma personalidade de modo a poder co-locar-se no lugar de um outro Ela tem eacute certo alguma relaccedilatildeo com o aprofundamento e desenvolvimento que Pessoa faz do programa expresso sobretudo em Aacutelvaro de Campos de ldquosentir tudo de todas as maneirasrdquo Esta ultrapassagem ateacute agrave anulaccedilatildeo do ponto de vista uacutenico e do isolamento do sujeito eacute parte do processo heteroniacutemico Uma das condiccedilotildees deste processo de impersonalizaccedilatildeo estaacute sem duacutevida descrito em trechos como o que se segue do Livro do Desassossego ldquoHaacute criaturas que satildeo capazes de sofrer longas horas por natildeo lhe ser possiacutevel ser uma figura dum quadro ou dum naipe de baralho de cartas Haacute almas sobre quem pesa como uma maldiccedilatildeo o natildeo lhes ser possiacutevel

40 Breacutechon op cit 216-217

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

33

ser hoje gente da idade meacutedia Aconteceu-me deste sofrimen-to em tempo [] Poder sonhar o inconcebiacutevel visibilizando-o eacute um dos grandes triunfos que natildeo eu [sic] que sou tatildeo grande senatildeo raras vezes atinjo Sim sonhar que sou por exemplo si-multaneamente separadamente inconfusamente o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher datildeo agrave beira--riordquo41 Ou teorizando este processo de sentir multiplamente em termos gerais ldquoO mais alto grau de sonho eacute quando criado um quadro com personagens vivemos todas elas ao mesmo tempo ndash somos todas essas almas conjunta e interactivamente Eacute in-criacutevel o grau de despersonalizaccedilatildeo e encinzamento [sic] do es-piacuterito a que isso leva confesso-o [] Mas o triunfo eacute talrdquo42 Mas perante isto se a razatildeo da heteroniacutemia residisse somente aqui seria insuficiente ser somente quatro ou cinco heteroacutenimos pe-rante este programa bem mais vasto de ser todas as perspecti-vas e todas as sensaccedilotildees separada e simultaneamente

A heteroniacutemia deriva por isso de diversos factores(1) Eacute provocada em primeiro lugar pelo ao processo de

ser-outro imediato que pertence ao eu que reflete sobre si que jaacute caracterizei suficientemente acima Todo o espaccedilo da refle-xatildeo eacute tambeacutem a possibilidade de ver-se de fora como objeto identificar-se consigo aleacutem e fora de si um devir-outro

(2) Em segundo lugar obedece tambeacutem ao programa sen-sacionista de natildeo se ficar encerrado na perspectiva de um eu Eacute assim um programa iroacutenico e criacutetico de afastamento relati-vamente a todas as opiniotildees e naturalidades do caraacutecter e das convicccedilotildees Se bem se pode dizer em termos pessoanos que desconhecer eacute conhecer-se segundo o autor ldquodesconhecer--se conscienciosamente eacute o emprego activo da ironiardquo43 Neste sentido bem apreendido pelo passo supracitado de Breacutechon eacute uma postura de desenraizamento e universalismo tipicamen-te modernos que Pessoa encarna acentuando-o de modo por vezes sofiacutestico A centralizaccedilatildeo de toda a atividade subjetiva na sensaccedilatildeo provoca de modo aparentemente inevitaacutevel a perda da identidade que eacute construiacuteda no ldquoeu pensordquo da inteligecircncia Sentir integralmente conduz e consiste em sentir tudo de todas as maneiras porque sentir eacute desidentificar devir-outro ou perder o ortoacutenimo despessoalizar

(3) Em terceiro lugar talvez um dos pontos filosoficamen-te mais importantes e que natildeo estaacute de modo nenhum apreen-dido no excerto de Breacutechon a heteroniacutemia eacute um processo de objetivaccedilatildeo simples que eacute uma necessidade inerente do eu O desejo do reconhecimento pode assumir diferentes formas en-tre as quais as formas redutoras agrave identidade da consciecircncia mesmo que negativa como vimos no caso do Fausto O modo mais completo do reconhecimento eacute poreacutem o que Hegel de-

41 LD 172-17342 LD 44443 LD 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

34

nomina ldquoencontrar-se a si mesmo no seu outrordquo ou seja a de que o mundo objetivo esteja impregnado ou formado pelo eu O heteroacutenimo neste contexto eacute a projeccedilatildeo objetivada do eu que pode entatildeo romper a barreira do seu isolamento e encontrar--se como eu-outro numa obra Neste sentido a heteroniacutemia em termos hegelianos encerra uma teoria da arte ou melhor eacute a proacutepria condiccedilatildeo artiacutestica Lecirc-se assim nas Liccedilotildees de Esteacutetica de Hegel ldquoa necessidade universal e absoluta de que brota a arte [] encontra a sua origem em que o homem eacute uma consci-ecircncia pensante ou seja que torna para si o que ele eacute e o que em geral existe As coisas da natureza satildeo soacute imediatamente e uma vez mas o homem como espiacuterito duplica-se [] intui-se representa-se pensa e soacute por este ser-para-si ativo eacute espiacuteritordquo44 Esta duplicaccedilatildeo do eu no seu outro contudo eacute a verdade da falsa duplicaccedilatildeo do nada que encontraacutemos no Fausto O que espanta eacute que a heteroniacutemia como instrumento oacutebvio de au-to-objectivaccedilatildeo e reconhecimento natildeo seja a norma mas uma excepccedilatildeo nos procedimentos artiacutesticos e criativos em geral Se-ria de esperar que fosse o processo natural da criaccedilatildeo artiacutestica sendo a ortoniacutemia um caso excepcional de devir-idecircntico O po-der expressivo da heteroniacutemia deriva de que eacute a descoberta de um processo comum e forccediloso que subjaz esquecido mesmo sob a superfiacutecie da autoria

(4) Por isso em quarto lugar a heteroniacutemia eacute um instru-mento poderosiacutessimo de auto-conhecimento Soacute assim se en-tendem afirmaccedilotildees como ldquoFingir eacute descobrir-serdquo45 Porque o co-nhecimento de si eacute tambeacutem a formaccedilatildeo de si a criaccedilatildeo do autor juntamente com a obra eacute um processo evidente e natural que Pessoa se limita a tornar expliacutecito o que ainda mais se confirma pelo facto de que o proacuteprio ortoacutenimo acabaraacute por se assumir tambeacutem como mais um participante do jogo heteroniacutemico Por este jogo os diferentes traccedilos e potencialidades da personali-dade satildeo cuidadosamente representados distinguidos desen-volvidos e objetivados o que conduz a um auto-conhecimento muito mais completo do que o que eacute dado na ortoniacutemia Tam-beacutem aqui soacute surpreende que um procedimento tatildeo oacutebvio de au-to-estudo natildeo tenha sido descoberto e praticado mais cedo

(5) Mas a heteroniacutemia eacute tambeacutem teoria da criaccedilatildeo artiacutestica num outro sentido Ao representar ou expor natildeo soacute o objeto ar-tiacutestico mas juntamente e ao mesmo tempo que ele o seu autor a heteroniacutemia permite representar o proacuteprio processo da cria-ccedilatildeo artiacutestica Todo o processo de representaccedilatildeo que parte do autor estaacute normalmente juntamente com o autor omisso De modo similar agraves gravuras de Escher onde o representante ou o observador estaacute representado na representaccedilatildeo ndash com tudo o que isto tem de paradoxal porque remete sempre para um ato e

44 Hegel Werke 13 50-5145 F Pessoa Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Pre-senccedila Lisboa 1990 240

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

35

realizaccedilatildeo subjetivos por princiacutepio jamais representaacuteveis como objeto46 ndash tambeacutem em Pessoa o criador eacute criado juntamente com a criaccedilatildeo Isto que eacute normalmente do domiacutenio dos fac-tos havendo na obra apenas a representaccedilatildeo de uma parte do quadro geral do processo da criaccedilatildeo surge aqui simplesmente reproduzido integralmente O sujeito representante estaacute assim literalmente representado na representaccedilatildeo e a tese eacute que ele existe tanto mais quanto mais claramente fica representado Eacute assim patente que o essencial da representaccedilatildeo artiacutestica eacute natildeo o objeto mas o ato criativo que estaacute na base de toda a repre-sentaccedilatildeo Por isso a heteroniacutemia eacute uma reflexatildeo ou teorizaccedilatildeo da criaccedilatildeo artiacutestica e da proacutepria subjetividade

(6) Mas refira-se tambeacutem na sequecircncia do ponto anterior que esta auto-criaccedilatildeo do criador que eacute afinal um elemento cen-tral da arte realiza uma auto-referecircncia objetivada de tal modo que evita a armadilha faacuteustica da subjetividade representada como buraco negro Temos na heteroniacutemia natildeo soacute um outro eu mas tambeacutem como se viu um eu-outro eu naturalizado objetivado que permite reconciliar o sujeito com o seu mundo A importacircncia da auto-objetivaccedilatildeo natildeo eacute reproduzir-se mas per-der-se como condiccedilatildeo de reconciliaccedilatildeo

(7) E finalmente por todas estas razotildees a criaccedilatildeo hete-roniacutemia eacute um vasto estudo sobre a ligaccedilatildeo e a interaccedilatildeo entre a literatura e a vida Torna-se evidente que a consciecircncia tanto mais se preenche e enriquece quanto maior a sua capacidade de operaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo E consequentemente encontra-se no ldquooutrar-serdquo pessoano uma demonstraccedilatildeo da capacidade for-mativa e auto-formativa da literatura e que se eacute verdade que o autor cria a obra natildeo o eacute menos que a obra forma e constitui o autor que toda a accedilatildeo ou criaccedilatildeo eacute reflexiva formando tanto o autor quanto a obra Nos termos de Pessoa ldquoToda a literatura consiste num esforccedilo para torna a vida realrdquo47 ou ldquoHaacute metaacutefo-ras que satildeo mais reais do que a gente que anda na ruardquo48 Em suma ldquosou em grande parte a mesma prosa que escrevordquo49

Com base nesta breve tematizaccedilatildeo dos aspectos iniciais do estudo da intra-estrutura categorial da obra de Pessoa po-demos avanccedilar para um esboccedilo breve do desenvolvimento con-ceptual sistemaacutetico que estes aspectos iniciais devem neste contexto receber

Em geral dada a ceacutelula germinal da negatividade os he-teroacutenimos desenvolvem-se como uma seacuterie diferencial de mo-dulaccedilotildees da alteridade com relaccedilatildeo agrave negatividade de onde satildeo originaacuterios Em Ricardo Reis encontra-se diferentemente do 46 Procurei mostrar que a representaccedilatildeo do processo de criaccedilatildeo artiacutes-tica eacute um objecto principal da criaccedilatildeo artiacutestica em Ferrer ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Conceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 (2012) pp 363-39047 LD 14048 LD 17249 Fernando Pessoa Livro do Desassossego I (ed Galhoz e Cunha Aacutetica Lisboa 1982 p 240) cit in Breacutechon op cit p 519

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

36

que vimos ser o caso no Fausto a negatividade transformada num mundo habitaacutevel a partir em primeiro lugar da experiecircncia do tempo Esta vivecircncia manteacutem-se negativa mas estaacute mantida sobre uma durabilidade tal que

[] agrave arte o mundo Cria que natildeo a mente Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela50

Os temas partem da temporalidade e brevidade da vida humana para a qual a arte eacute a gloacuteria breve de uma coroa de flores tatildeo breve quanto o pode ser o prazer e o instante O negativo estaacute transmutado numa natureza reconciliada mas dentro dos limites estritos da consciecircncia temporal em que a presenccedila da morte eacute incessante A aceitaccedilatildeo do destino e do prazer permite todavia tolerar essa presenccedila O estilo de Reis reflete a forma plenamente desenvolvida e apurada mas vin-cada fortemente como forma porquanto reteacutem a marca da natildeo naturalidade do domiacutenio subjetivo e intelectual da expressatildeo forma ainda separada do outro pela finitude e pela temporalida-de que tingem a reconciliaccedilatildeo com uma simultacircnea perda de si O vincar extremo da forma poeacutetica da linguagem faz compreen-der que a reconciliaccedilatildeo eacute tambeacutem somente formal que o seu conteuacutedo estaacute sempre ausente para laacute do tempo dos deuses ou do destino invocados

Jaacute o Engenheiro Aacutelvaro de Campos encontra em si um ou-tro efeito patente da negatividade entendida como alteridade ser-outro ou melhor o outro que eacute o mesmo porque reconstituiacute-do como outro do outro Assim recuperado o outro encontra-se como sensaccedilatildeo agrave superfiacutecie esfeacuterica da reflexatildeo do sujeito O real eacute entatildeo fenoacutemeno transmutado por um lado em sensa-ccedilotildees por outro em forccedilas como na proposta de Pessoa ldquoPara um Esteacutetica Natildeo Aristoteacutelicardquo onde o belo eacute substituiacutedo pela for-ccedila O real soacute eacute acessiacutevel como forccedila e sensaccedilatildeo Mas a par da sensaccedilatildeo o real soacute pode ser recuperado tambeacutem na contradi-ccedilatildeo da reflexatildeo ndash que eacute a marca proacutepria tambeacutem do ortoacutenimo Na poesia do engenheiro naval este aspecto eacute recorrente em passos como o seguinte

Agrave esquerda laacute para traacutes o casebre modesto [mais que modesto

A vida ali deve ser feliz soacute porque natildeo eacute [minhardquo51

Nesta universalidade das sensaccedilotildees Campos declara

50 RR 1351 AC 36

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

37

ldquoeu adoro todas as coisas e o meu coraccedilatildeo eacute um albergue aberto toda

[a noite Tenho pela vida um interesse aacutevido Que busca compreendecirc-la sentindo muito

[Amo tudo animo tudo empresto humanidade a tudo Aos homens e agraves pedras agraves almas e agraves

[maacutequinas Para aumentar com isso a minha

[personalidade

Pertenccedilo a tudo para pertencer cada vez [mais a mim proacutepriordquo52

A aceitaccedilatildeo de tudo jaacute natildeo eacute regida aqui como em Reis pela temporalidade a finitude e o amor fati mas pela capacida-de do eu de se exteriorizar ou de ser unicamente exterior de modo a se preencher pelos fenoacutemenos e pelas suas manifesta-ccedilotildees A negatividade estaacute mais para traacutes encontrada no sujeito jaacute transformada em impulso de perda da unidade subjetiva e de aceitaccedilatildeo da sensibilidade como redenccedilatildeo do pensamento que permanece dela sempre tanto idecircntico quanto separado para que dela possa ter consciecircncia Aqui o estilo tendencialmente histeacuterico especialmente na sua fase inicial das grandes Odes eacute dotado de uma violecircncia que responde agrave necessidade destrutiva do sujeito pensante e da negatividade para que se possa desa-possar na pura superfiacutecie das sensaccedilotildees e das forccedilas que delas se dirigem agrave expressatildeo

Completa a seacuterie principal da heteroniacutemia que procuraacute-mos entender como um quasi-sistema de resposta diferencial agrave negatividade o mestre de todos os outros heteroacutenimos Alber-to Caeiro53 Na descriccedilatildeo que nas ldquoNotas para a Recordaccedilatildeo

52 AC 9953 A propoacutesito tambeacutem da compreensatildeo de Caeiro leia-se Paulo Bor-ges ldquoContrariamente ao que escreve Leyla Perrone-Moiseacutes uma das mais interessantes inteacuterpretes de Pessoa a sua laquogranderaquo e laquouacutenicaraquo laquoquestatildeoraquo natildeo nos parece ser laquosempre a identidade almejada e falhadaraquo (F Pessoa Satildeo Paulo 1982 72) e antes um excesso de pressuposiccedilatildeo de identidade e de pretensatildeo agrave sua consciencializaccedilatildeo e totalizaccedilatildeo que lhe faz ressen-tir em termos fuacutenebres todo o pressentimento ou experiecircncia da sua real vacuidade e incognoscibilidade Rejeitando o iacutentimo laquonadaraquo como um ser jaacute laquotudoraquo o que o levaria a descentrar-se e perder-se encontrando-se na exuberante multiplicidade dos seres e fenoacutemenos do mundo sem carecer imaginaacute-los em si ou a partir de si redu-los a mero ponto de partida da so-lipsista reinvenccedilatildeo do mundo como teatro interno [] Isto num enredo onde sintomaticamente satildeo sistematicamente exorcizadas todas as emergecircncias da alteridade real como a vida e o amor [] Por tudo isto ndash e salvaguarde-se a precariedade de todos estes juiacutezos [] ndash a genialidade literaacuteria de Pessoa pode natildeo ser mais do que o verso de um reverso que seja um natildeo menos grandioso insucesso sapiencialrdquo (Paulo Borges Pensamento Atlacircntico Lis-boa 2002 331-332) O comentaacuterio de Paulo Borges parece aqui esquecer a funccedilatildeo sistemaacutetica de Caeiro sublinhada sempre pelo contraacuterio por Joseacute Gil Por outro lado Paulo Borges conclui com reservas eacute certo por um fra-casso sapiencial e vivencial de Pessoa num campo onde precisamente pelo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

38

do meu Mestre Caeirordquo Aacutelvaro de Campos faz do mestre tudo evoca uma clareza e retidatildeo transcendentes Caeiro permite al-canccedilar o extremo oposto de Fausto Nele a negatividade es-gotou-se em si mesma encontra-se inteiramente anulada ou auto-anulada de tal modo que o resultado eacute a sua pura e sim-ples elisatildeo Numa aproximaccedilatildeo dialeacutetica encontrariacuteamos aqui a mediaccedilatildeo perfeita Caeiro eacute como que o milagre da mediaccedilatildeo integralmente realizada o retorno absoluto ao imediato54 onde jaacute o modo da expressatildeo se opotildee contraditoriamente ao de Reis Ao maacuteximo artificialismo que era o traccedilo da essecircncia negativa como forma acentuando a evanescecircncia do conteuacutedo opotildee-se a total naturalidade do discurso caeiriano absolutamente claro e direto formalmente neutro nem prosa nem poesia A lingua-gem encontra aqui a plena naturalidade porventura como o seu paiacutes natal

A contradiccedilatildeo criacutetica e moderna que constitui a subjetivi-dade finita entre pensamento e sensaccedilatildeo estaacute agora definitiva-mente conciliada numa unidade de forma e conteuacutedo que natildeo eacute a da vazia identidade do sujeito O eu-outro reconciliador da na-tureza e do espiacuterito estaacute encontrado na mediaccedilatildeo auto-anulada do negativo Em termos dialeacuteticos poderia dizer-se que jaacute natildeo temos a fuacuteria destrutiva e anuladora da pura essecircncia negativa mas tatildeo-pouco a mera positividade imediata e preacute-reflexiva do ser Na verdade Caeiro soacute pode resultar do processo de atra-vessar a contradiccedilatildeo e o negativo e passar aleacutem ateacute ao seu oposto que sem o esquecer tem-nos (o negativo e o positivo) em si reconciliados

6 Conclusatildeo os modos da diferenccedila em Pessoa

Uma vez que como se viu Pessoa se casou com a dife-renccedila para prosseguir seria preciso analisar os modos que a diferenccedila assume no seu pensamento Nessa anaacutelise que por exceder os limites deste estudo natildeo poderei mais do que indi-car seraacute necessaacuterio analisar o lugar das trecircs formas principais da diferenccedila filosoacutefica na obra do autor Satildeo elas nomeadamen-te a diferenccedila reflexiva ou seja a que cria o distanciamento en-tre eu e eu cuja funccedilatildeo jaacute foi desenvolvida acima em segundo lugar a diferenccedila criacutetica ou seja a diferenccedila entre o pensar e o sentir ou a emoccedilatildeo cuja importacircncia em Pessoa eacute fulcral

contraacuterio natildeo seria possiacutevel encontrar o menor traccedilo de ignoracircncia no poeta Natildeo haacute em Pessoa justamente este saber do nada do eu como recuperaccedilatildeo do mundo Descrever o percurso que conduz ateacute esta recuperaccedilatildeo do ser e percorrecirc-lo talvez incessantemente eacute sinal antes do reconhecimento sem ilu-satildeo da condiccedilatildeo finita Quanto agrave positividade sapiencial e aspectos do ecircxito vivencial do poeta v tambeacutem ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infelizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 33 (2008) pp 203-22254 Como observa Gil a proacutepria relaccedilatildeo da alma com corpo eacute transfigu-rada Joseacute Gil op cit 30-35

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

39

como vimos A este niacutevel assiste-se na sua obra agrave criaccedilatildeo de todo um imaginaacuterio poeacutetico a partir de um jogo de eclipsamento muacutetuo entre pensamento e sensaccedilatildeo entre pensar e ver Este jogo eacute constitutivo da imagem poeacutetica E por fim em terceiro lugar poderaacute mencionar-se a diferenccedila transcendental ou seja a diferenccedila entre o objeto visto e a sua visibilidade ou entre o ente e o sentido que o permite apreender Na verdade a poesia tem por funccedilatildeo pocircr entre parecircnteses a realizaccedilatildeo entificadora do real e substituiacute-la por uma reflexatildeo transcendental sobre os meios expressivos do olhar que permite ver o real Neste sen-tido toda a poesia natildeo menos que o pensamento filosoacutefico eacute eminentemente uma atividade transcendental Tambeacutem esta diferenccedila encontra o seu lugar no pensamento de Pessoa sob a forma da ausecircncia ou perda de sentido da pergunta em que a diferenccedila entre o ente e o ser eacute claramente enunciada Mas tambeacutem o voltar-se para o proacuteprio meio expressivo ou seja para a condiccedilatildeo da mostraccedilatildeo poeacutetica dos entes eacute um modo de enunciado da diferenccedila transcendental Este eacute o sentido das passagens onde o autor defende que a criaccedilatildeo literaacuteria o saber dizer eacute a verdadeira instituiccedilatildeo de sentido ldquoDizer Saber dizer Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual Tudo isto eacute quanto a vida vale []rdquo55

Mas o desenvolvimento da anaacutelise das diferenccedilas decisi-vas seria jaacute um outro capiacutetulo da investigaccedilatildeo filosoacutefica sobre Pessoa

55 LD 141

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

40

BIBLIOGRAFIA

BORGES Paulo Pensamento Atlacircntico Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 2002

BORGES Paulo ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infe-lizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra Hegel-Studien 33 2008

BREacuteCHON Robert Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernando Pessoa trad M Abreu P Tamen Lisboa 1997

FERRER Diogo O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Imprensa da Universidade de Coimbra 2014

FERRER Diogo ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Con-ceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 2012

GIL Joseacute Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Lisboa Reloacute-gio drsquoaacutegua 2013

HEGEL Friedrich Gesammelte Werke 13 Hamburg Felix Meiner 2000

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

PLATAtildeO Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa Ins-tituto Piaget 2001

PLATO IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Londres Harvard 1977

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Presenccedila 1990

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Galhoz e Cunha Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos Lis-boa Aacutetica 1958

PESSOA Fernando Fausto ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

41

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesCaeiro a vaccine against the stupidity of intelligent people

Palavras-chave poesia filosofia sensaccedilatildeo Fernando Pessoa Alberto CaeiroKeywords Poetry philosophy sensation Fernando Pessoa Alberto Caeiro

ldquoO homem natildeo pode permanecer consciente por muito tempo agraves vezes tem de se refugiar na inconsciecircncia pois nela vive sua raizrdquo

Thomas Mann Carlota em Weimar

RESUMO Mais que um heterocircnimo Alberto Caeiro eacute reconhe-cido como um Mestre por Fernando Pessoa e pelos outros he-terocircnimos do universo deste poeta portuguecircs As experiecircncias nascidas de sua singular entrega agraves sensaccedilotildees nos conduz tanto a reflexotildees criacuteticas de pertinecircncia filosoacutefica sobre os do-miacutenios e os limites do pensamento como a uma nova forma de experienciar o mundo Aleacutem de acompanhar tal movimento e explorar os mecanismos da ldquoloacutegicardquo caeiriana considerando o caminho percorrido por Caeiro e o relato de seus disciacutepulos (Aacutel-varo de Campos Ricardo Reis Antonio Mora e Pessoa) esse ensaio buscaraacute tambeacutem refletir sobre a posiccedilatildeo ndash a de Mestre ndash ocupada por ele no universo pessoano

ABSTRACT More than a heteronym Alberto Caeiro is consi-dered a Master by Fernando Pessoa and the other heteronyms of the universe of this Portuguese poet The experiences that come from his unique dedication to sensations lead us to critical reflections of philosophical importance about the domains and limits of thought as well as to a new form of experiencing the world This essay not only tracks this movement and explores the Caeirian ldquologicrdquo considering the path taken by Caeiro and the reports from his disciples (Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antonio Mora and Pessoa) but also reflects on the position ndash that of a Master ndash that he occupies in the Pessoan universe

I

A pertinecircncia filosoacutefica da obra de Fernando Pessoa eacute tal que constantemente seus leitores mais afeitos ao cotidiano des-

Gisele Batista Candido

Doutora em Filosofia - Uni-versidade de Satildeo Paulo E-mail giselebcgmxnet

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

42

se universo encontram em seus escritos ecos e ateacute mesmo re-ferecircncias que os remetem a diversos autores da filosofia O proacute-prio poeta portuguecircs reconheceu que ldquoera um poeta inspirado pela filosofiardquo (PESSOA Escritos autobiograacuteficos p 19) Com efeito aleacutem de seu espoacutelio contar com inuacutemeros escritos criacuteti-cos sobre diferentes filoacutesofos sua poesia tambeacutem apresenta de certa forma teor filosoacutefico Entretanto o envolvimento entre poesia e filosofia na obra pessoana natildeo se configura como uma relaccedilatildeo oacutebvia como se sua poesia fosse apenas um pretexto para o desenvolvimento de palpitaccedilotildees filosoacuteficas ou mesmo uma simples tentativa de poetizar experiecircncias alheias Embora o poeta reconheccedila a influecircncia da filosofia ele imediatamente reitera que ldquonatildeo [eacute] um filoacutesofo com faculdades poeacuteticasrdquo (PES-SOA Escritos autobiograacuteficos p 19)

Nesse horizonte a poesia de Alberto Caeiro revela natildeo apenas inspiraccedilatildeo filosoacutefica mas sobretudo uma problemati-zaccedilatildeo do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico que seraacute enfaticamente questionado em algumas de suas perquiriccedilotildees mais proacuteprias a saber a orientaccedilatildeo do pensamento e a primazia atribuiacuteda ao conhecimento

Como veremos adiante natildeo podemos negar que em mui-tos momentos essa criacutetica caeiriana pode nos lembrar a filosofia de Nietzsche que por exemplo em suas Consideraccedilotildees Ex-temporacircneas enfatiza o prejuiacutezo envolvido na acumulaccedilatildeo de conhecimento num certo sentido histoacuterico

Pois noacutes modernos natildeo temos absolutamente nada que provenha de noacutes mesmos somente na medida em que nos entulhamos e apinha-mos com eacutepocas haacutebitos artes filosofias re-ligiotildees conhecimentos alheios tornamo-nos dignos de consideraccedilatildeo a saber enciclopeacute-dias ambulantes (NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva p 34)

Tal criacutetica em Caeiro no entanto constitui apenas uma etapa da experiecircncia proposta por sua poesia como uma opor-tunidade para desintoxicaccedilatildeo do acuacutemulo civilizatoacuterio Desse momento decorreraacute por exemplo uma percepccedilatildeo mais nua da natureza que bem poderia ser comparaacutevel agraves reflexotildees de Mer-leau-Ponty sobre Ceacutezanne

Percebemos coisas entendemo-nos sobre elas estamos enraizados nelas e eacute sobre essa base de ldquonaturezardquo que construiacutemos ci-ecircncias Foi esse mundo primordial que Ceacutezan-ne quis pintar e por isso seus quadros datildeo a impressatildeo da natureza em sua origem en-quanto as fotografias das mesmas paisagens

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

43

sugerem os trabalhos dos homens suas co-modidades sua presenccedila iminente (hellip) Vive-mos em um meio de objetos construiacutedos pe-los homens entre utensiacutelios em casas ruas cidades e na maior parte do tempo natildeo os vemos senatildeo atraveacutes das accedilotildees humanas das quais eles podem ser os pontos de aplicaccedilatildeo Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e eacute inabalaacutevel A pintura de Ceacutezanne suspende esses haacutebitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o ho-mem se instala (MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito p 128 131)

Apesar dessas e de tantas outras possiacuteveis convergecircn-cias o caminho aberto e percorrido por Caeiro como veremos eacute peculiar em suas transformaccedilotildees e originalmente conciliatoacuterio em sua potencial plenitude experiecircncias inseparaacuteveis de sua iacutempar existecircncia poeacutetica

II

Sobre o processo de gecircnese de Alberto Caeiro lemos em uma carta de Pessoa destinada a Casais Monteiro

Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Saacute-Carneiro mdash de inventar um poeta bucoacuteli-co de espeacutecie complicada e apresentar-lho jaacute me natildeo lembro como em qualquer espeacute-cie de realidade Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui Num dia em que finalmente desistira mdash foi em 8 de Marccedilo de 1914 mdash acerquei-me de uma coacutemoda alta e tomando um papel comecei a escrever de peacute como escrevo sempre que posso E escrevi trinta e tantos poemas a fio numa espeacutecie de ecircxtase cuja natureza natildeo conseguirei definir Foi o dia triunfal da minha vida e nunca pode-rei ter outro assim Abri com um tiacutetulo O Guar-dador de Rebanhos E o que se seguiu foi o aparecimento de algueacutem em mim a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro Descul-pe-me o absurdo da frase aparecera em mim o meu mestre Foi essa a sensaccedilatildeo imediata que tive E tanto assim que escritos que foram esses trinta e tantos poemas imediatamente peguei noutro papel e escrevi a fio tambeacutem os seis poemas que constituem a Chuva Obliacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

44

qua de Fernando Pessoa Imediatamente e totalmente Foi o regresso de Fernando Pes-soa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele soacute Ou melhor foi a reacccedilatildeo de Fernando Pessoa contra a sua inexistecircncia como Alberto Caeiro (PESSOA Alguma Prosa p 52)

Embora essa versatildeo sobre a criaccedilatildeo do ldquomestrerdquo seja em certa medida colocada em questatildeo por estudos dos manus-critos da obra pessoana1 nem por isso torna-se menos perti-nente consideraacute-la Cientes tambeacutem do apreccedilo de Pessoa pela criaccedilatildeo de mitos a escolha por tal versatildeo e a necessidade de expressaacute-la natildeo parece ser gratuita ela compotildee a histoacuteria de Caeiro (de outros heterocircnimos e do proacuteprio ortocircnimo) e pode contribuir para iluminar aspectos de sua natureza Encontramos nos escritos de Rudolf Lind observaccedilotildees que tambeacutem corrobo-ram com essa abordagem

Natildeo haacute pois na carta uma uacutenica referecircncia aos programas esteacutetico-literaacuterios que original-mente tal como no-lo mostra o espoacutelio apa-drinharam o nascimento dos heteroacutenimos Natildeo nos repugnaria concluir que o poeta manhoso se decidira em 1935 a cultivar consciente-mente a sua proacutepria lenda apresentando-se aos amigos mais jovens como o pai involuntaacute-rio de trecircs personagens poeacuteticas e ocultando propositadamente todas as consideraccedilotildees de ordem teoacuterica e programaacutetica que haviam precedido o nascimento delas (LIND Estudos sobre Fernando Pessoa p 100)

Sem cair no meacuterito de determinar se foi consciente ou natildeo a escolha pessoana por salientar que a primeira tentativa de criaccedilatildeo do mestre heterocircnimo nasceu de uma espeacutecie de brin-cadeira ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo chama-nos aten-ccedilatildeo a sintonia dessa circunstacircncia ndash o jogar remete tambeacutem agrave ingenuidade da infacircncia momento privilegiado para se envolver pela criatividade luacutedica ndash com o caraacuteter tambeacutem luacutedico ingecircnuo e porque natildeo infantil de Alberto Caeiro que insiste em com-parar seu modo de sentir ao de uma crianccedila e diz ldquoNunca fui senatildeo uma crianccedila que brincavardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 94)

1 Conforme Richard Zenith a verdadeira ordem cronoloacutegica da obra caeiriana eacute distinta da ordem estabelecida por Pessoa Assim como o tal dia triunfal em que o poeta portuguecircs diz ter escrito trinta e tantos poemas a fio natildeo existiu da maneira como foi narrada por ele A escrita desses poemas envolveu uma extensatildeo de tempo bem maior ldquoHouve se natildeo um dia um mecircs triunfal ndash marccedilo de 1914 ndash confirmado pelos dados dos manuscritosrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 221)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

45

Configurando sua recusa em crer num Deus abstrato ou carnalmente ausente o poeta ingecircnuo opta inclusive por en-carnar o seu Cristo em uma crianccedila brincalhona e afirma que esse Cristo-crianccedila ldquoA mim ensinou-me tudo Ensinou-me a olhar para as coisasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 29) Longe de qualquer idealizaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo esse deus-crianccedila-encarnado mostra-se absolutamente huma-no e particular em suas atitudes que satildeo enfaticamente infantis

Num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer agrave terra Veio pela encosta de um mon-te Tornando outra vez menino A correr e a rolar pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de lon-ge () Eacute uma crianccedila bonita de riso natural Limpa o nariz ao braccedilo direito Chapinha nas poccedilas de aacutegua Colhe as flores e gosta delas e esquece-as Atira pedras aos burros Rou-ba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos catildees E porque sabe que elas natildeo gostam E que toda gente acha graccedila Cor-re atraacutes das raparigas Que vatildeo em ranchos pelas estradas Com as bilhas agraves cabeccedilas E levanta-lhes as saias (PESSOA Poesia Com-pleta de Alberto Caeiro p 28)

Ainda que em sonho a existecircncia desse deus eacute necessa-riamente vivenciada por Caeiro e mais a relaccedilatildeo direta entre o deus e o poeta eacute estabelecida de forma luacutedica atraveacutes de uma brincadeira ldquoAo anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No de-grau da porta de casa Graves como conveacutem a um deus e a um poetardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 31)

A ingenuidade do olhar infantil livre dos viacutecios do haacutebito e do conhecimento se achega ao mundo de forma aberta sem determinaacute-lo previamente Assim ele eacute capaz de se surpreen-der uma vez que tudo se mostra como novidade diante dessa perspectiva pueril O pasmo advindo de tal olhar seraacute uma das principais caracteriacutesticas cultivadas por Caeiro sobretudo quan-do ele quer explicitar sua forma de sentir o mundo ldquoComo uma crianccedila antes de a ensinarem a ser grande Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvirdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p146) Ademais sua ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p49) ndash meacutetodo absolutamente necessaacuterio para se despir de todas as interferecircn-cias culturais e intelectuais ndash natildeo eacute nada mais que uma forma deliberada de retomar esse contato ingecircnuo e primordial com o mundo Caeiro defende que o seu modo de sentir em certa medida eacute como o de uma crianccedila que acabara de nascer ldquoSei

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

46

ter os pasmo comigo Que tem uma crianccedila se ao nascer Re-parasse que nasceu deverasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 19)

Sabemos que a noccedilatildeo de infacircncia ocupa um lugar privile-giado no universo de Pessoa Natildeo eacute de se estranhar portanto que o seu mestre ateacute nas circunstacircncias de sua gecircnese seja aquele que tem a relaccedilatildeo mais iacutentima com ela2

O projeto de ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo pode ter sido malogrado mas talvez natildeo seja exagero dizer que desse lapso nasceu uma nova partida um jogo entre Pessoa e Caeiro O surgimento deste uacuteltimo natildeo estaacute condicionado a qualquer vontade deliberada O poeta portuguecircs escreve que quando pretendia criar Caeiro apesar de todo o seu esforccedilo este natildeo surgia agrave revelia de sua vontade e como que brincando com sua autonomia o mestre heterocircnimo soacute veio ao mundo quando ele finalmente desistiu de criaacute-lo assumindo ainda personalidade e vida proacuteprias sensivelmente distintas do originalmente planeja-do por seu por assim dizer criador Nesse circuito o jogo entre criador e criatura torna-se ambiacuteguo Para Joseacute Augusto Seabra ldquoas criaturas satildeo aqui criadas por e para a criaccedilatildeordquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 90) Com efeito a pre-senccedila de Caeiro surge imperiosamente e arrebata de tal forma o seu criador que este confessa sentir-se apenas como meio e natildeo senhor dessa criaccedilatildeo Aleacutem de ser completamente tomado por essa presenccedila sem ser capaz de suspendecirc-la manipulaacute-la ou direcionaacute-la Pessoa eacute como que controlado por ela tanto que sente uma espeacutecie de apagamento de sua proacutepria perso-nalidade e a sujeiccedilatildeo de sua autonomia a uma potecircncia maior que em contrapartida o obriga a escrever ndash como ele mesmo o poeta ortocircnimo ndash para que seja possiacutevel o retorno a si

Em Poetas do Atlacircntico a propoacutesito de um possiacutevel para-lelismo entre Pessoa e Wallace Stevens Irene Ramalho Santos escreve sobre a relevacircncia e o caraacuteter da experiecircncia de des-personalizaccedilatildeo dramaacutetica vivida por Pessoa diante da presenccedila de Caeiro

Ambos os textos [a carta a Casais Monteiro sobre a gecircnese da heteroniacutemia de Pessoa e Notes Toward a Supreme Ficiton de Stevens] satildeo representaccedilotildees do modo como um poeta entende sua proacutepria identidade (ou ficccedilatildeo de identidade) enquanto criador original Ambos necessitam da dramatizaccedilatildeo de um outro po-der poeacutetico contra o qual a sua independecircncia

2 Aacutelvaro de Campos tambeacutem escreve sobre o teor infantil da obra de Caeiro ldquoO que realmente recebemos drsquoaquelles versos eacute a sensaccedilatildeo infantil da vida com toda a materialidade directa dos conceitos da infancia e toda espitirualidade vital da esperanccedila e do crescimento que satildeo dos inconscien-te da alma e corpo da infacircnciardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 105)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

47

criativa tem de ser afirmada e avaliada (SAN-TOS Poetas do Atlacircntico p 243)

Enfim mais do que ser arrebatado e submetido Pessoa eacute sobremaneira modificado ainda que tenha voltado a si ele confessa que depois dessa experiecircncia nunca mais foi o mes-mo pois foi transformado recriado pela presenccedila daquele que seraacute entatildeo reconhecido como seu mestre bem como de seus principais heterocircnimos

III

Alberto Caeiro natildeo foi a primeira personalidade a surgir no universo pessoano Entre os principais heterocircnimos ele tambeacutem natildeo eacute o de idade mais avanccedilada ou o de maior longe-vidade natildeo eacute o mais ldquoexperienterdquo nem o mais erudito nunca alcanccedilou publicamente qualquer destaque sua condiccedilatildeo social eacute limitada conheceu poucos lugares teve acesso a pouca ins-truccedilatildeo a estrutura de seus versos pode natildeo parecer muito so-fisticada ao olhar erudito e o teor deles agrave primeira vista eacute de uma simplicidade que beira o pueril Entretanto a despeito de tudo isso ele eacute reconhecido como o mestre por personalidades tatildeo distintas como Aacutelvaro de Campos engenheiro viajado que procurou vivenciar toda sorte de experiecircncias e extrapolaacute-las em sua poesia Ricardo Reis meacutedico ilustrado simpatizante da monarquia e do classicismo grego extremamente cioso da or-dem da vida e de seus versos Antonio Mora personalidade de iacutendole filosoacutefica que passou parte de sua vida em uma espeacutecie de hospiacutecio Fernando Pessoa natildeo somente o criador de Caei-ro mas tambeacutem demiurgo de todo um universo Em vista de todos os pormenores mencionados haacute pouco ndash detalhes que se natildeo fosse pela negativa das condiccedilotildees poderiam justificar a posiccedilatildeo central desse heterocircnimo ndash eacute difiacutecil natildeo se ver envolvido pela questatildeo o que faz de Caeiro o mestre

Em um dos textos de Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro ao refletir sobre as metamorfoses que a influecircn-cia caeiriana operou em Ricardo Reis em Fernando Pessoa em Antocircnio Mora e em si mesmo Aacutelvaro de Campos faz refe-recircncia a uma ldquoreacccedilatildeo agrave Grande Vaccinardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103) Segundo Campos a obra de seu mestre forneceu a Ricardo Reis a sensibilidade que lhe faltava para sua transformaccedilatildeo de um pagatildeo latente em um pagatildeo de fato Foi tambeacutem depois de ler O Guardador de Rebanhos que Reis passou a escrever poemas e ldquoa saber que era organica-mente poetardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Nas palavras do proacuteprio Ricardo Reis

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

48

Quando pela primeira vez estando entatildeo em Portugal ouvir ler O Guardador de Rebanhos tive a maior e a mais perfeita sensaccedilatildeo da mi-nha vida Rolou-se-me de sobre o coraccedilatildeo de repente todo o peso da nossa civilizaccedilatildeo posticcedila todo o peso do cristianismo ativo cuja sombra jaz sobre a nossa alma Respirei outra vez a grandeza a forccedila e a singela perfeiccedilatildeo das grandes emoccedilotildees primitivas que vinha da natureza sem datas das almas (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 65)

Antonio Mora vivia atraacutes de uma verdade sobre a qual pu-desse desdobrar suas especulaccedilotildees filosoacuteficas ldquopassava a vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido () Encontrou Caeiro e encontrou a verdaderdquo (PES-SOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Mora era como um corpo sem alma ateacute que a influecircncia de Caeiro lhe deu uma alma uma motivaccedilatildeo central desde entatildeo ele se dedicou a for-malizar isto eacute construir um sistema filosoacutefico a partir das expe-riecircncias contempladas nas palavras de seu mestre A influecircncia sobre Aacutelvaro de Campos eacute tatildeo intensa que este confessa que antes de conhecer Caeiro natildeo passava de ldquouma machina ner-vosa de natildeo fazer coisa nenhumardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Soacute depois de conhececirc-lo ele passou a ser ele mesmo ldquoE de ahi em deante por mal ou por bem tenho sido eurdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Quando considera a reaccedilatildeo de Pessoa ao seu mestre Campos pare-ce estar sensiacutevel agrave pulverizaccedilatildeo caracteriacutestica da subjetividade pessoana ldquoMais curioso eacute o caso de Fernando Pessoa que natildeo existe propriamente fallandordquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Conforme o poeta-engenheiro Pessoa soacute conseguiu alcanccedilar a proacutepria individualidade atraveacutes dos poe-mas escritos em reaccedilatildeo ao surgimento de Caeiro3 ldquoNum mo-mento num uacutenico momento conseguiu ter sua individualidade ndash a que natildeo tivera antes nem poderaacute tornar a ter porque a natildeo temrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102)

De acordo com a analogia de Campos como uma ldquoGrande Vaccinardquo Caeiro provoca reaccedilotildees transformaccedilotildees na existecircn-cia daqueles que se mostram suscetiacuteveis agrave sua influecircncia Mas qual seria o princiacutepio dessa ldquoGrande Vaccinardquo Aacutelvaro de Cam-pos eacute direto e decisivo ao falar sobre o seu teor trata-se de uma ldquovacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103)

A simplicidade de Caeiro eacute elementar ldquoEle Caeiro natildeo 3 Considerando as palavras de Aacutelvaro de Campos e o relato pesso-ano sobre o episoacutedio da gecircnese de Caeiro podemos depreender que ao anular tatildeo enfaticamente a subjetividade de Pessoa o surgimento de Caeiro mostrou de forma exemplar o que realmente compunha a individualidade do poeta portuguecircs a dispersatildeo a anulaccedilatildeo do eu em prol do outro Condiccedilatildeo nevraacutelgica para a criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da pluralidade heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

49

sabe porque vive mas sabe que o natildeo saberdquo (BERARDINELLI A poesia de Fernando Pessoa p 46) Milecircnios de acumulaccedilatildeo cultural de desenvolvimento intelectual e tecnoloacutegico natildeo ga-rantem necessariamente que o ser humano tenha evoluiacutedo ou mesmo que a evoluccedilatildeo seja algo a almejar Questotildees essenciais e existenciais continuam sem respostas definitivas nenhum ca-minho religioso filosoacutefico ou social trouxe satisfaccedilatildeo ou conhe-cimento plenos e definitivos e a tecnologia jamais foi capaz de alterar de fato o curso da vida ou o Destino do homem Fausto Trageacutedia Subjetiva de Pessoa eacute o emblema radical de todo o esforccedilo em vatildeo do conhecimento Por mais que tenha se empe-nhado em conhecer desenvolver inovar o ser humano nunca deixou de ser aquilo que ele eacute Antes ele parece ter se esque-cido desse fato primordial Filho ou imagem e semelhanccedila de deus animal racional descendente de macacos agrupamento de aacutetomos sujeito homem humano um nome enfim tudo isso na perspectiva caeiriana eacute distraccedilatildeo enfadonha e sem sentido Nenhuma dessas compreensotildees foi capaz de dizer o que de fato somos ou fazer de noacutes mais ou menos do que somos ldquoEs-sas coisas compreendidas soacute com a inteligecircncia nada satildeo e nada valemrdquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 80) Entretan-to envolvido por milecircnios de acumulaccedilatildeo supeacuterflua inteligecircncia estuacutepida facilmente o ser humano se esquiva de sua condiccedilatildeo elementar ele se distrai cogita ser tudo isso se esquece de ser aquilo que ele eacute e confunde aquilo que as coisas satildeo

A recusa de Caeiro em ldquover mais nas coisas que as proacute-prias coisasrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 211) aplica-se igual-mente agrave sua proacutepria condiccedilatildeo No decorrer de sua vida e obra ele procura se despir de toda acumulaccedilatildeo esquecer de tudo aquilo que lhe ensinaram se desvencilhar da noccedilatildeo de homem e se desfazer ateacute de seu proacuteprio nome para afirmar que ele natildeo eacute aquilo que fizeram dele mas sim aquilo que ele verdadeira-mente sente

Procuro despir-me do que aprendi Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-sinaram E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos Desencaixotar as minhas emo-ccedilotildees verdadeiras Desembrulhar-me e ser eu natildeo Alberto Caeiro Mas um animal humano que a natureza produziu E assim escrevo querendo sentir a Natureza nem sequer como um homem Mas como quem sente a Natu-reza e mais nada () Sou o Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-proacuteprio (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 72)

Tudo o que aprendemos pensamos conhecemos nasce

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

50

daquilo que sentimos e posteriormente depois da infacircncia de nossos sentidos tudo isso tambeacutem vem a compor e interferir em nossas sensaccedilotildees Todas as questotildees abstratas ndash sobre o sentido da existecircncia a evoluccedilatildeo do homem o misteacuterio do mundo e da vida ndash nascem dessas sensaccedilotildees corrompidas por pensamentos por isso essas questotildees natildeo tecircm respostas de-finitivas elas natildeo satildeo coisas verdadeiramente sentidas porque natildeo existem como coisas mas apenas como pensamentos abs-tratos das sensaccedilotildees ldquoUma vez mais eacute o pensamento e soacute o pensamento elemento patoloacutegico sempre a insinuar-se que eacute o responsaacutevel pela metafiacutesica do misteacuterio enquanto que para Caeiro o problema nem se chega a porrdquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 97) Caeiro ignora ou melhor ri dessas questotildees abstratas aceitando e por isso esquecendo o jugo do Destino e fruindo aquilo que a Natureza lhe oferece

A obra de Caeiro tem poreacutem e aleacutem drsquoisto um efeito criacutetico Estes versos da sensaccedilatildeo directa contraposta a sua alma aos nossos conceitos sem naturalidade agrave nossa sensa-ccedilatildeo mental artificiosa contabilizada em ga-vetas rasga-nos todos os trapos que temos por fato lava-nos a cara da chimica e o esto-mago dos pharmaceuticos ndash entra pela nossa casa adentro e mostra-nos que uma mesa de madeira eacute madeira madeira madeira e que mesa eacute uma allucinaccedilatildeo necessaacuteria de nossa vontade industrial (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 106)

A criacutetica do mestre heterocircnimo agrave racionalidade desenfre-ada agrave estupidez dos inteligentes agraves abstraccedilotildees desnecessaacute-rias natildeo corresponde simplesmente agrave negaccedilatildeo despropositada essa criacutetica faz parte de um propoacutesito maior a depuraccedilatildeo das sensaccedilotildees

Caeiro apresenta-se antes de mais nada como o poeta das sensaccedilotildees estremes ldquoA sensaccedilatildeo eacute tudo () e o pensamento eacute uma doenccedilardquo ndash diz ele segundo um texto de Pes-soa E este explica que ldquopor sensaccedilatildeo enten-de Caeiro a sensaccedilatildeo das coisas tais como satildeo sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal convenccedilatildeo sentimen-to ou qualquer outro lugar da almardquo Haacute nele em suma uma identificaccedilatildeo das sensaccedilotildees com o seu objeto por uma reduccedilatildeo que se poderaacute dizer fenomenoloacutegica operada atraveacutes da eliminaccedilatildeo de todos os vestiacutegios da sub-jetividade (SEABRA Fernando Pessoa ou o

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

51

poetodrama p 91)Satildeo as sensaccedilotildees verdadeiras que expurgadas de toda

abstraccedilatildeo e interferecircncias nos oferecem a realidade o mundo tal como ele eacute Com o perdatildeo da redundacircncia vir a ser o que Caeiro realmente eacute ou seja se colocar em seu devido lugar envolve sentir verdadeiramente o que ele eacute4 as coisas que ele sente Ao trazer as coisas para o seu lugar proacuteprio mais do que se colocar em seu devido lugar ele traz tambeacutem ldquoao Universo ele-proacutepriordquo Sobre esse movimento da vida e obra caeiriana Ricardo Reis escreve

Ignorante da vida e quase ignorante das letras quase sem conviacutevio nem cultura fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptiacutevel e profundo como aquele que dirige atraveacutes das consciecircncias inconscientes dos homens o de-senvolvimento loacutegico das civilizaccedilotildees Foi um progresso de sensaccedilotildees ou antes de manei-ras de as ter e uma evoluccedilatildeo iacutentima de pensa-mentos derivados de tais sensaccedilotildees progres-sivas Por uma intuiccedilatildeo sobre-humana como aquelas que fundam religiotildees para sempre poreacutem a que natildeo assenta o tiacutetulo de religiosa por isso que como o sol e a chuva repugna toda a religiatildeo e toda a metafiacutesica este ho-mem descobriu o mundo sem pensar nele e criou um conceito de universo que natildeo con-teacutem meras interpretaccedilotildees (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 46)

Provavelmente Caeiro eacute a uacutenica personalidade conscien-temente plena do universo pessoano ele natildeo eacute cindido nem se sente incompleto perdido estrangeiro ou temeroso Todos os paradoxos incoerecircncias e desvios de sua obra podem ser organicamente absorvidos pela compreensatildeo central composta por ela

Caeiro em que todas absolutamente todas as contradiccedilotildees rupturas distacircncias oposiccedilotildees se encontram resolvidas e unificadas Caeiro o mestre da doutrina neopagatilde de que Antoacutenio Mora eacute o filoacutesofo realiza a aspiraccedilatildeo uacuteltima do projecto heteroniacutemco sentir tudo de todas as maneiras atingindo a realidade das coisas sem deformar (GIL O Espaccedilo Interior p 21)

4 A certa altura em um diaacutelogo entre Campos e Caeiro nos depa-ramos com a seguinte conversa ldquo- Diga-me uma cousa O Caeiro o que eacute para si mesmo - O que sou para mim mesmo repetiu Caeiro ndash Sou uma sensaccedilatildeo minhardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 100)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

52

Talvez seja por isso tambeacutem que a duraccedilatildeo de sua vida foi tatildeo curta ele natildeo tinha necessidade de viver mais para estar re-alizado Nenhum de seus disciacutepulos consciente ou inconscien-temente assumiu integralmente as suas ideacuteias nem era essa a sua pretensatildeo ldquoCaeiro natildeo espera que os demais heterocircnimos sejam ldquonaturaisrdquo como ele mas que captando-lhe a ldquonaturali-daderdquo busquem construir a poesia que a sua visatildeo do mundo suscitardquo (MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge p 158) Mais do que sua ldquodoutrinardquo das sensaccedilotildees verdadeiras o que parece fazer dele o mestre eacute o seu exemplo de plenitude5 sua capacidade de saber reconhecer e ser exatamente aquilo que ele eacute ldquoEacute a minha descoberta de todos os dias Cada coisa eacute o que eacute E eacute difiacutecil explicar a algueacutem quanto isso me alegra E quanto isso me basta Basta existir para ser completordquo (PES-SOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 91) Sobre a maes-tria de Cairo Octavio Paz escreve

Alberto Caeiro eacute meu mestre Esta afirmaccedilatildeo eacute a pedra de toque de tocircda a sua obra E po-deria acrescentar-se que a obra de Caeiro eacute a uacutenica afirmaccedilatildeo feita por Pessoa Caeiro eacute o sol e em tocircrno decircle giram Reis Campos e o proacuteprio Pessoa Em todos ecircles haacute partiacutecu-las de negaccedilatildeo ou de irrealidade Reis acre-dita na forma Campos na sensaccedilatildeo Pessoa nos siacutembolos Caeiro natildeo acredita em nada existe () Caeiro eacute tudo o que Pessoa natildeo eacute e aleacutem disso tudo o que nenhum poeta mo-derno pode ser o homem reconciliado com a natureza Antes do cristianismo sim mas tam-beacutem antes do trabalho e da histoacuteria Caeiro nega pelo mero fato de existir natildeo somente a esteacutetica simbolista de Pessoa como tocircdas as esteacuteticas todos os valores tocircdas as ideacuteias Natildeo fica nada Fica tudo limpo todos os fan-tasmas e teias de aranha da cultura (PAZ Signos em Rotaccedilatildeo p 209)

Na obra do Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras trans-formar a forma de sentir implicaraacute necessariamente em trans-formar a forma de pensar O tiacutetulo do seu primeiro livro de poe-mas O Guardador de Rebanhos pode ser visto tambeacutem como

5 Sobre o efeito provocado por Caeiro Reis escreve ldquo[Caeiro] foi para mim como viraacute a ser para mais que muitos o revelador da Realidade ou como ele mesmo disse lsquoo Argonauta das sensaccedilotildees verdadeirarsquo ndash o grande Libertador que nos restituiu cantando ao nada luminoso que somos que nos arrancou agrave morte e agrave vida deixando-nos entre simples coisas que nada conhecem em seu decurso de viver nem de morrer que nos livrou da es-peranccedila e da desesperanccedila para que nos natildeo consolemos sem razatildeo nem nos entristeccedilamos sem causa convivas com ele sem pensar da realidade objectiva do Universordquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 74)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

53

uma referecircncia expliacutecita ao seu labor ldquoSou um guardador de rebanhosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) Entretanto curiosamente no verso inaugural desse livro Caeiro afirma ldquoEu nunca guardei rebanhos Mas eacute como se os guardasserdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 16) Ele nunca guardou de fato rebanhos pois seu rebanho eacute de uma ordem diferente do habitual rebanho animal ldquoO rebanho eacute os meus pensamentosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) escreve o poeta e eacute como se ele os guardasse pois esses pensamentos tambeacutem satildeo de uma ordem diferen-te da habitual abstraccedilatildeo intelectual e devem ser resguardados desta influecircncia Ele completa ldquoos meus pensamentos satildeo to-dos sensaccedilotildeesrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34)

Os sentidos ocupam um lugar privilegiado nos poemas de Caeiro Enquanto as experiecircncias sensoriais satildeo consideradas a forma espontacircnea e direta de contato com os fenocircmenos o pensar eacute visto como uma abstraccedilatildeo destes uma deturpaccedilatildeo das sensaccedilotildees Contudo nem por isso o pensar eacute deixado de lado6 nem essa espontaneidade sensorial eacute alcanccedilada de for-ma espontacircnea ldquoO que Caeiro tenta rejeitar repetidamente natildeo eacute o pensamento in toto mas sim o uso especulativo e transcen-dental do pensamentordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 19) Suas ldquosensaccedilotildees verdadeirasrdquo natildeo satildeo meras sensaccedilotildees Alcanccedilaacute-las exige a depuraccedilatildeo dos senti-dos tarefa que envolve a reflexatildeo criacutetica sobre o conhecimento sobre a proacutepria reflexatildeo e sobre as influecircncias que podem mar-car as sensaccedilotildees a redefiniccedilatildeo da subjetividade ou melhor do eu a reconstruccedilatildeo da relaccedilatildeo desse eu com os fenocircmenos e por fim uma nova compreensatildeo do Universo Essas transfor-maccedilotildees natildeo excluem o exerciacutecio do pensar poreacutem assim como as sensaccedilotildees natildeo satildeo meras sensaccedilotildees no horizonte caeiria-no a forma de pensar natildeo corresponde agraves formas habituais do pensamento Trata-se de um pensamento capaz de suspender--se em prol das sensaccedilotildees por isso o mestre pode dizer ldquopen-so nisto natildeo como quem pensa mas como quem natildeo pensardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 62)

Como um guardador de rebanhos nosso poeta pastor in-terveacutem no movimento de seus pensamentos para garantir que eles natildeo se percam em abstraccedilotildees seu esforccedilo consiste em conduzi-los agrave sua condiccedilatildeo primeira promover o seu enlace com o sentir ldquoSoacute atraveacutes da absorccedilatildeo do pensamento pelas

6 Ao comparar a experiecircncia Zen agrave caeiriana Leyla Perrone-Moiseacutes tambeacutem diz que o mestre heterocircnimo natildeo nega absolutamente o pensar ldquonem o Zen nem Caeiro ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial pretendem que o homem deva ser soacute instintos O proacuteprio do animal humano eacute ter essa mente-corpo capaz de um conhe-cimento que eacute ao mesmo tempo fiacutesico e ldquoespiritualrdquo O que se nega aiacute eacute o pensamento analiacutetico e o que se exalta eacute um pensamento sinteacutetico tambeacutem exclusivo do homemrdquo (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 124)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

54

sensaccedilotildees se pode realizar sua identificaccedilatildeo muacutetua exterior agraves sensaccedilotildees o pensamento eacute uma excrescecircncia se natildeo um viacuterus corruptor que chega por vezes a perturbar a sauacutede do poeta pondo em causa a sua ldquoobjetividaderdquordquo (SEABRA Fernando Pes-soa ou o poetodrama p 92) O pensamento nasce das sensa-ccedilotildees e torna-se abstrato quando se afasta ou tenta suplantaacute-las

Marcada enfaticamente pela criacutetica agraves interferecircncias das abstraccedilotildees do pensamento sobre a vida a obra de Caeiro insis-te em uma volta agraves coisas mesmas atraveacutes das sensaccedilotildees ou melhor ao cabo de todo um processo de depuraccedilatildeo dos senti-dos natildeo haveraacute diferenccedila entre o sentir e as coisas mesmas Em um movimento de pura coincidecircncia as sensaccedilotildees seratildeo as coisas mesmas Esse percurso seraacute marcado por uma espeacutecie de fenomenologia das sensaccedilotildees jogo em que o proacuteprio sentir se transforma em objeto dos sentidos Seraacute sobretudo atraveacutes desse recurso que nosso poeta poderaacute depurar o sentir dis-tinguindo-o do pensar abstrato dos conhecimentos adquiridos das interferecircncias sociais culturais e enfim do haacutebito infiltrado na experiecircncia sensiacutevel

As coisas satildeo brutalmente reais objecto puro renitentes a qualquer subjectivaccedilatildeo ou interio-rizaccedilatildeo absolutamente impenetraacuteveis porque satildeo o que parecem ser sem profundidade sem logos simples como a pura superfiacutecie De si as coisas satildeo singulares e se lhes atri-buo complexificaccedilotildees ou mistificaccedilotildees estou a transferir para elas caracteriacutesticas dos meus esquemas mentais As categorias e esquemas aprioriacutesticos da mente natildeo me datildeo a coisa mas um resultado irreal sem objectividade ou melhor se alguma objectividade tecircm eacute ape-nas enquanto ficccedilatildeo que me imponho a mim proacuteprio por me ser uacutetil e agradaacutevel na condu-ccedilatildeo da vida (COELHO A P Os fundamen-tos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa p 289)

A missatildeo envolvida na ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo consistiraacute portanto em identificar o alcance das influecircncias e dos conhecimentos adquiridos para deixaacute-los de lado desa-prendecirc-los em prol de um contato ingecircnuo com mundo Aleacutem de realccedilar as sensaccedilotildees atraveacutes da anulaccedilatildeo de seu alcance abs-trato o pensamento nesse processo de aprender a desapren-der seraacute exercido tambeacutem em sua funccedilatildeo criacutetica auxiliando na depuraccedilatildeo do sentir

O empenho em despir as coisas para experimentaacute-las tal como elas satildeo em promover um retorno agraves coisas mesmas e em arrebanhar os pensamentos que se perderam em abstra-ccedilotildees como podemos constatar envolve tambeacutem uma criacutetica agrave

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

55

filosofia sobretudo ao movimento da metafiacutesica e agrave valorizaccedilatildeo do intelecto Contudo por mais que Caeiro critique a filosofia e se recuse a ser classificado como materialista7 ou representante de qualquer outro movimento as experiecircncias promovidas por sua poesia apresentam ldquopertinecircncia ou consequumlecircncia filosoacutefi-casrdquo (MARTINS O erro da filosofia p 250) Como uma ldquogrande vacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo a obra de Caeiro nos leva a questionar de forma radical o papel ocupado pelo intelecto e o valor de suas aquisiccedilotildees Sem que essa criacutetica se esgote em uma simples negaccedilatildeo dessa faculdade como um pastor ele conduziraacute tal exerciacutecio do pensar ao lugar que lhe eacute proacuteprio

A simplicidade de Caeiro estaacute longe de ser equivalente agrave ingenuidade pueril Essa frase pode parecer desconcertante aos olhos de quem leu sobretudo no iniacutecio deste ensaio insis-tentes correlaccedilotildees entre o iacutempeto da crianccedila e o temperamento do poeta Natildeo obstante as inocecircncias infantil e a caeiriana se-rem comparaacuteveis em diversos aspectos um fator as diferen-cia radicalmente a saber a ingenuidade do mestre poeta natildeo eacute nada ingecircnua Muito pelo contraacuterio enquanto a simplicidade infantil deriva da condiccedilatildeo primaacuteria do desenvolvimento ainda latente da crianccedila a simplicidade de Caeiro eacute fruto de um pro-cesso sofisticado de maturaccedilatildeo que envolve a supressatildeo de todo acuacutemulo intelectual e uma espeacutecie de depuraccedilatildeo do sentir enfim o aprender a desaprender Atraveacutes das observaccedilotildees de um mestre Zen Leyla Perrone-Moiseacutes fala sobre esse percurso caeiriano

Um mestre Zen deixou a consignaccedilatildeo seguin-te ldquoAntes de me tornar esclarecido os rios eram rios e as montanhas eram montanhas Quando comecei a tornar-me esclarecido os rios jaacute natildeo eram rios e as montanhas jaacute natildeo eram montanhas Agora depois que me tornei esclarecido os rios voltaram a ser rios e as

7 Conforme Benedito Nunes ldquoAlberto Caeiro que desconhece o pro-blema da substacircncia estaacute longe do materialismo por ecircle reputado muito estuacutepido ndash ldquocoisa de padres sem religiatildeo e portanto sem desculpa nenhumardquo A mateacuteria eacute uma abstraccedilatildeo Soacute eacute real o que vemos Sensualismo Natildeo Se o naturalismo abstrai os secircres em proveito do conjunto do todo que eacute a Natu-reza o sensualismo natildeo menos abstrato tudo reduz a elementos sensiacuteveis a impressotildees-aacutetomos desfigurando as sensaccedilotildees cada uma das quais de-ferente das outras eacute nova se sabemos sentirrdquo (NUNES B O dorso do tigre p 220) Jaacute sobre uma possiacutevel identificaccedilatildeo de Caeiro com a fenomenologia husserliana Luiz de Oliveira e Silva escreve ldquoCaeiro no entanto e este facto divorcia-o completamente da fenomenologia contemporacircnea natildeo tem nenhum interesse em desvelar ldquoum significado imanente ao fenocircmeno e in-corporado nelerdquo Ainda que ele possa parecer ao observador desatento como um partidaacuterio veemente do slogan de Husserl ldquoZu den Sachen selbstrdquo na ver-dade o significado que ele reclama natildeo eacute senatildeo uma ausecircncia de significadordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 22)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

56

montanhas voltaram a ser montanhasrdquo Eis--nos jaacute proacuteximos das constataccedilotildees de Caei-ro (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 118)

A trajetoacuteria da simplicidade caeiriana natildeo apenas estaacute mui-to aleacutem da compreensatildeo imatura de uma crianccedila como ultra-passa tambeacutem a compreensatildeo do homem civilizado8 que ainda se encontra ancorado em camadas de conhecimentos deriva-dos de experiecircncias indiretas

8 Joseacute Gil tambeacutem escreve sobre a maturidade caeiriana ldquoA obra de Caeiro encontra-se como o olhar do primeiro homem mas apoacutes a construccedilatildeo e a destruiccedilatildeo das civilizaccedilotildees que se sucederam na Europardquo (GIL Diferen-ccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pessoa p 17)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

57

BIBLIOGRAFIA

Escritos de Fernando Pessoa

__ Alguma Prosa 5ordf ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990

__ Fausto ndash Trageacutedia Subjetiva Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991

__ F Pessoa ndash Escritos autobiograacuteficos automaacuteticos e de reflexatildeo pessoal Satildeo Paulo A Girafa 2006

__ Obras de Antoacutenio Mora vol VI Ediccedilatildeo criacutetica por Luiacutes Filipe Texeira Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2002

__ Paacuteginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Tex-tos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1966

__ Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lisboa Estampa 1990

__ Poemas Completos de Alberto Caeiro Lisboa Presen-ccedila 1994

__ Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2005

__ Poesias Fernando Pessoa Lisboa Aacutetica 1995

__ Poemas de Ricardo Reis Ediccedilatildeo Criacutetica de Luiz Fagun-des Duarte Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 1994

__ Prosa de Aacutelvaro de Campos Lisboa Aacutetica 2012

__ Ricardo Reis ndash Poesia Completa Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2000

__ Ricardo Reis Prosa Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

__ Textos filosoacuteficos 2 vols Textos estabelecidos e prefa-ciados por Antocircnio de Pina Coelho Lisboa Nova Aacutetica 2006

__ Textos Filosoacuteficos Vol II Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio de Pina Coelho Lisboa Aacutetica 1968

Escritos sobre Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

58

BERARDINELLI C HUumlHNE L PEGORARO O Fernan-do Pessoa e Martin Heidegger ndash O Poetar Pensante Rio de Janeiro UAPEcirc 1994

COELHO A Pina Os fundamentos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa 2 vols Lisboa Editorial Verbo 1971

GIL J Diferenccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pes-soa Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

__ O Espaccedilo Interior Lisboa Editora Presenccedila 1994

LIND R Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 1981

MANN T Carlota em Weimar Rio de Janeiro Editora Nova Fronteira 1984

MARTINS O erro da filosofia In Poesia completa de Al-berto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito 1ordf ed Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina Galvatildeo Gomes Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge 3ordf ed Satildeo Paulo Cultrix 2009

NUNES B O dorso do tigre Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1969

__ ldquoPoesia e filosofia na obra de Fernando Pessoardquo In 4 Revista ColoacutequioLetras Ensaio nordm 20 Jul 1974 p 22-34

NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003

PAZ O Signos em Rotaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1976

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

__ ldquoPensar eacute estar doente dos olhosrdquo In Novaes Adauto (org) O olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

SAacute-CARNEIRO M Correspondecircncia com Fernando Pes-soa Satildeo Paulo Cia das Letras 2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

59

__ Obras completas Cartas a F P edit Por Urbano Tava-res Rodrigues 2 volumes Lisboa 1958

SANTOS I R Poetas do Atlacircntico ndash Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano Belo Horizonte UFMG 2007

SEABRA J A Fernando Pessoa ou o poetodrama 2ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1991

__ O Coraccedilatildeo do Texto - Novos ensaios pessoanos Lis-boa Ediccedilotildees Cosmo 1996

__ O Heterotexto Pessoano Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1988

SILVA L O Materialismo idealista de Fernando Pessoa Lisboa Claacutessica Editora 1985

ZENITH Caeiro Triunfal In Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

60

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisFernando Pessoa Friedrich Schlegel and Novalis

Palavras-chave Fernando Pessoa ndash literatura ndash romantismo alematildeoKeywords Fernando Pessoa - literature - German Romanticism

RESUMO Pretendemos neste artigo aproximar aspectos da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana da filosofia do primeiro romantismo alematildeo Fernando Pessoa foi leitor do romantismo alematildeo Em sua biblioteca particular encontramos livros que comprovam esse fato Para aleacutem deste aspecto haacute uma consonacircncia entre a filosofia do primeiro romantismo alematildeo e o espaccedilo artiacutestico e muacuteltiplo da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana

ABSTRACT We intend in this article to approach aspects of Pessoarsquos literary creation and the philosophy of the first German Romanticism Fernando Pessoa was a reader of the German romanticism In his private library one finds books that prove this fact Furthermore there is an affinity between the philosophy of the first German Romanticism and the Pessoarsquos artistic and mul-tiple space of literary creation

ldquoO mundo eacute um indiviacuteduo potencializado assim como o indiviacuteduo natildeo passa de um

universo condensado1rdquo Maacutercio Suzuki

ldquoSecirc plural como o universordquo Fernando Pessoa

Pretendo aproximar neste artigo alguns aspectos da obra pessoana dando especial ecircnfase para o projeto do desassos-sego e ao desdobramento pessoano do pensamento filosoacutefico dos primeiros romacircnticos alematildees sobretudo dos escritos dei-xados por Friedrich Schlegel2 e Novalis

Fernando Pessoa poeta e criador de heterocircnimos foi tam-beacutem um leitor voraz a anaacutelise dos documentos do seu espoacutelio e

Financiamento da Fapesp (proc nordm 201516698-2)

1 SUZUKI 1998 p1332 Neste trabalho fazemos referecircncia ao filoacutesofo Friedrich Schlegel e em nenhum momento citamos a obra e o pensamento do seu irmatildeo August Schlegel Sendo assim a utilizaccedilatildeo do sobrenome Schlegel indica referecircncia apenas agrave obra e pensamento de Friedrich Schlegel

Claacuteudia Souza(USPFAPESP)

Doutora em Literaturas de Liacutengua Portuguesa ndash PUC--MG Poacutes-Doc em FIlosofia ndash USP

claudiasouzzzahotmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

61

da sua biblioteca particular satildeo comprovaccedilotildees deste fato Entre essas muitas leituras destacamos algumas relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho Em sua biblioteca particu-lar constam um livro de Novalis Les disciples agrave Sais et Les fragments3 curiosamente traduzido por Maeterlink4 e outro livro intitulado The literature of Germany5 onde existe um capiacutetulo sobre o romantismo alematildeo A presenccedila destes dois livros no espoacutelio pessoano nos revela que Pessoa se interessou pelo ro-mantismo alematildeo Para aleacutem destes indiacutecios encontramos re-ferecircncia a Schlegel e a Novalis em outros escritos pessoanos

Para fazer uma anaacutelise do primeiro escrito selecionado no qual haacute referecircncia ao romantismo alematildeo eacute preciso antes es-clarecer quem eacute o autor deste texto Trata-se de uma persona-lidade pessoana cujo nome eacute Antoacutenio Mora Mora aparece pela primeira vez num projeto pessoano intitulado Na casa de sauacutede de Cascaes como o proacuteprio nome indica trata-se de um livro - que natildeo chegou a ser publicado - sobre uma casa de tratamento psiquiaacutetrico Antoacutenio Mora neste projeto exerce o papel de um dos doentes como podemos constatar na seguinte passagem

O mais interessante poreacutem eacute o Antoacutenio Mora Eacute pelo menos o mais original de todos

- O mais original- Sim pessoalmente original como pessoa natildeo clinicamen-

te original Clinicamente natildeo se afasta em nada do typo de paranoico ou da marcha conhecida da paranoia Eacute verdade que natildeo eacute simplesmente um paranoico Eacute tambeacutem um hyste-rico Mas a paranoia eacute as vezes acompanhada de uma psy-chonevrose intercorrente Natildeo ha que extranhar Nada ha ahi de exquisito Natildeo eacute nisto que elle eacute original Eacute na especie do seu delirio no conteudo que estaacute todo o interesse E natildeo te digo mais nadaVeraacutesE dispotildee-te para gastares tempo com elle porque vaes ver ficas interessadiacutessimo

-Veremos- Garanto-te Natildeo seraacute preciso apontar-trsquoo Conhecel-o logo

pela toga- A toga O quecirc O typo anda de toga Mas isso tem qual-

quer cousa que vecircr com o delirio- Veraacutes meu velho veraacutesNatildeo quero te dizer nada Natildeo

quero te tirar o interesse aacute surpreza6

Mais tarde Antoacutenio Mora exerceraacute um importante papel no 3 NOVALIS Friedrich von Hardenberg Les disciples agrave Sais et Les fragments de Novalis traduits de lrsquoallemand et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction par Maurice Maeterlinck - Paris - Bruxelles Paul Lacomblez 19144 Pessoa foi muito influenciado pelo teatro simbolista de Maeterlink Em seus projetos do Teatro estaacutetico encontramos referecircncias ao dramatur-go belga (Cf PESSOA 2010)5 ROBERTSON J G The literature of Germany - London Williams and Norgate - New York Henry Holt and Company [19]6 [BNPE3-2719-B3-4]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

62

diaacutelogo entre Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos e Ricardo Reis Num primeiro momento Mora eacute personagem de um romance e depois se transforma em autor de textos Assim como Reis Campos e Caeiro ele faraacute parte da composiccedilatildeo deste drama em gente7 pessoano sendo influecircnciado por Alberto Caeiro como podemos constatar no seguinte trecho

O Antonio Mora era uma sombra de veleidades especu-lativas Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido Indeciso como todos os fortes natildeo tinha encontrado a verdade ou o que para elle fosse verdade o que para mim eacute o mesmo Encontrou Caeiro e encontrou a verdade O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que elle natildeo tinha poz dentro do Mora peripherico que elle sempre tinha sido um Mora central E o resulatdo foi a reduc-ccedilatildeo a systema e a verdade logica dos pensamentos insticti-vos de Caeiro O resultado triumphal foi esses dois tratados maravilhas de originalidade e de pensamento O Regresso dos Deuses e os Prolegomenos a uma Reformaccedilatildeo do Pa-ganismo8

Neste trecho percebemos a relaccedilatildeo entre Mora e a filosofia passava a vida a mastigar Kant Essa personalidade escreveu em prosa e formava ao lado de Pessoa Reis e Caeiro um con-traponto com Campos como podemos constatar em outro tre-cho de um projeto inacabado intitulado Notas para a recordaccedilatildeo do meu Mestre Caeiro assinado por Aacutelvaro de Campos

Maravilho-me da doutrina de Antonio Mora e discordo drsquoella com

7 Em Dezembro de 1928 no nuacutemero 17 da revista Presenccedila foi pu-blicada a taacutebua bibliograacutefica pessoana e neste texto Pessoa afirma que a elaboraccedilatildeo da obra dos seus heterocircnimos (Alberto Caeiro Ricardo Reis e Aacutelvaro de Campos) constituiu um drama em gente em vez de um drama em actos como atesta a seguinte passagem ldquoAs obras destes trecircs poetas for-mam como se disse um conjunto dramaacutetico e estaacute devidamente estudada a entreacccedilatildeo intelectual das personalidades assim como as suas proacuteprias relaccedilotildees pessoais Tudo isto constaraacute de biografias a fazer acompanhadas quando se publiquem de horoacutescopos e talvez de fotografias Eacute um drama em gente em vez de em actos (Se estas trecircs individualidades satildeo mais ou menos reais que o proacuteprio Fernando Pessoa mdash eacute problema metafiacutesico que este ausente do segredo dos Deuses e ignorando portanto o que seja reali-dade nunca poderaacute resolverrdquo) PESSOA 2000 p404 Podemos assegurar a participaccedilatildeo de Antoacutenio Mora neste drama em gente baseados na afirmaccedilatildeo do proacuteprio Pessoa no seguinte trecho que faria parte de uma obra intitulada Aspectos ldquoEsse Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador phi-losophico Os dois discipulos Ricardo Reis e Alvaro de Campos seguiram caminhos differentes tendo o primeiro intensificado e tornado orthodoxo o paganismo descoberto por Caeiro e o segundo baseando-se em outra parte da obra de Caeiro desenvolvido por um sytema inteiramente differente e baseado inteiramente nas sensaccedilotildees O continuador philosophico Antonio Moacutera (os nomes satildeo tatildeo inevitaacuteveis tatildeo impostos de foacutera como as persona-lidades) tem um ou dois livros a escrever onde provaraacute completamente a verdade metaphysica e practica do paganismo()rdquo [BNPE3-20-70 a 72]8 [BNPE3-71A-24 a 26]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

63

um gesto delicado de afastamento O mal drsquoestes homens todos ndash o do Ricardo Reis do Antonio Mora do Fernando Pessoa sim por-

que sinto outside idolatry do meu mestre Caeiro tambeacutem ndash eacute que so veem a realidade Diversamente todos a veem com clareza todos

satildeo objectivistas ateacute Fernando Pessoa Mas eu natildeo vejo a realidade ndash palpo-a Por isso elles satildeo mais ou menos declaradamente poly-

theistas e eu sou monotheista9 ()

Esse fragmento mostra como Mora participava do diaacutelogo en-tre Caeiro Campos e Reis Apesar de natildeo ter uma biografia consolidada como os demais (Caeiro Campos e Reis) cum-pria um papel importante na construccedilatildeo deste drama-em gente Num escrito sobre a questatildeo do paganismo que como vimos eacute um dos projetos do Antoacutenio Mora ele comenta sobre o roman-tismo alematildeo

Com o romantismo alematildeo propriamente dito o dos Schlegel de Tieck e de Novalis entra a literatura germacircnica uma decadecircncia

referindo-nos por comparaccedilatildeo agrave precedente literatura de Schiller e de Goethe se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na

sua utilizaccedilatildeo do que admirava no paganismo10

Neste texto Mora discorre sobre os efeitos do cristianismo e do paganismo no progresso da civilizaccedilatildeo A referecircncia ao ro-mantismo alematildeo eacute importante porque revela os efeitos da per-sona critica pessoana em sua produccedilatildeo literaacuteria Outro aspecto relevante que aproxima Pessoa dos primeiros romanticos eacute a anaacutelise que ambos fazem da obra de Goethe Reflexotildees sobre a obra de Goethe estatildeo presentes em vaacuterios fragmentos do es-poacutelio assim como em diversos fragmentos de Schlegel e Nova-lis A criacutetica de Mora ao romantismo alematildeo parece ter relaccedilatildeo com uma subjetividade excessiva presente no romantismo de acordo com essa personalidade pessoana Essa subjetividade que seria responsaacutevel pela decadecircncia da literatura germacircni-ca Mora como defensor da construccedilatildeo de um novo paganismo preza pela objetividade rejeitando uma interiorizaccedilatildeo excessiva do indiviacuteduo que consequentemente afastaria o mesmo da ex-periecircncia pagatilde

Em outro texto intitulado O Provicianismo Portuguecircs de 1928 eacute Pessoa quem faz referecircncia ao romantismo alematildeo citando uma frase de Novalis

Para o provincianismo haacute soacute uma terapecircutica eacute o saber que ele existe O provincianismo vive da inconsciecircncia de nos supormos civilizados quando natildeo o somos de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades que o natildeo somos O princiacutepio da cura estaacute na consciecircncia da doenccedila o da ver-

9 [BNPE3-71ordf-27]10 [BNPE3-121-71]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

64

dade no conhecimento do erro Quando um doido sabe que estaacute doido jaacute natildeo eacute doido Estamos perto de acordar disse Novalis quando sonhamos que sonhamos (PESSOA 2000 p373)

A referecircncia a Novalis demonstra o interesse pessoano pela obra deste autor Essa frase de Novalis foi lida e sublinhada por Pessoa no jaacute referido livro presente em sua biblioteca particular Les disciples agrave Sais et Les fragments

Nous sommes pregraves du reacuteveil quand nous recircvons que nous recircvons11

Eacute relevante tambeacutem ressaltar a afirmaccedilatildeo pessoana tambeacutem presente neste trecho do texto O provincianismo portuguecircs - eacute na incapacidade de ironia que reside o traccedilo mais fundo do pro-vincianismo mental - justamente a ironia elemento tatildeo importan-te na obra dos primeiros romacircnticos alematildees Parece que em 1928 ano da publicaccedilatildeo do texto pessoano aqui trabalhado o autor portuguecircs estava em consonacircncia com alguns aspectos da filosofia do primeiro romantismo alematildeo

Aleacutem das evidecircncias aqui demonstradas que aproximam de alguma maneira Pessoa de F Schlegel e de Novalis mostrare-mos a seguir como o projeto do desassossego pessoano dia-loga com alguns fragmentos deixados por Schlegel e Novalis

O Livro do Desassossego permaneceu como projeto durante a vida de Fernando Pessoa Antes de 1935 somente alguns trechos deste projeto foram publicados A aproximaccedilatildeo deste projeto pessoano com o pensamento de Schlegel e de Novalis pode ser realizada atraveacutes do desdobramento pessoano que faz parte da elaboraccedilatildeo deste livro

A noccedilatildeo de gecircnio como uma coletividade interior desenvolvi-da por Schlegel parece estar em consonacircncia com a tessitura da esteacutetica do Desassossego O projeto do Desassossego ao longo da sua elaboraccedilatildeo recebeu a assinatura de trecircs autores numa primeira fase Fernando Pessoa assinou os fragmentos do Livro do Desassossego como podemos averiguar nesta lis-ta escrita talvez em 1914

Biblioteca da EuropaMario de Saacute-Carneiro Ceacuteu em focircgoAntoacutenio Ponce de Leatildeo A Venda

11 NOVALIS 1914 p77 Traduccedilatildeo nossa Estamos perto de acordar quando sonhamos que sonhamos Rubens Rodrigues Torres Filho em sua ediccedilatildeo Poacutelen Novalis traduz este trecho de outra forma Estamos proacuteximos do despertar quando sonhamos que sonhamos (NOVALIS 2009 p43)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

65

Fernando Pessoa Livro do Desasocego

Theatro estatico12

Na fase seguinte Pessoa passa o livro para as matildeos de Vicen-te Guedes como podemos confirmar nesta lista

Na Casa de saude de Cascaes inclui1) Introduccedilatildeo entrevista com Antonio Mora2) Alberto Caeiro3) Ricardo Reis4) ldquoProlegoacutemenosrdquo de Antoacutenio Mora5) Fragmentos

_______________________________________________

Vida e obras do engenheiro Alvaro de Campos_______________________________________________

Livro do Desassocegoescripto por Vicente Guedes publicado por

Fernando Pessoa13

12 [BNPE3-68ordf-3]13 [BNPE3-5-83]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

66

Vicente Guedes foi uma personagem literaacuteria pessoana que natildeo chegou a se constituir como heterocircnimo Essa personalida-de assumiu diversas tarefas no laboratoacuterio literaacuterio de Pessoa foi contista tradutor e responsaacutevel pelo projeto do Desassosse-go durante a segunda fase da elaboraccedilatildeo deste Outro aspecto importante deste documento eacute a referecircncia ao nome de Antoacutenio Mora Esse fato mostra como o espoacutelio pessoano funcionou e ainda funciona como um laboratoacuterio de experimentaccedilatildeo onde as substacircncias ou seja nomes e projetos se misturam se en-contram

Na terceira e uacuteltima fase da escrita do Desassossego Fernan-do Pessoa entregou o projeto a outra personalidade Bernardo Soares o ajudante de guarda livros da cidade de Lisboa como podemos contatar neste documento

Do ldquoLivro do Desasocegocomposto por BernardoSoares ajudante de guarda-Livros na cidade de LisboardquoporFernando Pessoa

Podemos assim dizer que Pessoa se constituiu em uma pes-soa genuinamente sinteacutetica como diriam os primeiros romacircnti-cos ldquoO gecircnio diz Schlegel eacute uma coletividade interior uma co-munidade interna legalmente livre de muitos talentos ou como diz Novalis uma pessoa genuinamente sinteacutetica que eacute ao mes-mo tempo mais pessoasrdquo (SUZUKI 1998 p 235) E podemos constatar esse fato natildeo somente no projeto do Desassossego como tambeacutem na proacutepria constituiccedilatildeo da personalidade literaacuteria Antoacutenio Mora

No que diz respeito a escrita do projeto do Desassossego o problema da autoria ainda se coloca cada editor deste livro ao organizar os fragmentos para a publicaccedilatildeo torna-se de alguma forma autor participando do desdobramento pessoano

Depois da anaacutelise de todos os documentos pessoanos aqui apresentados podemos concluir que existe um forte e comple-xo diaacutelogo entre a literatura pessoana e o romantismo alematildeo O interesse de Pessoa pela filosofia do primeiro romantismo alematildeo acabou transbordando em seu espaccedilo artiacutestico dimi-nuindo de alguma forma as fronteiras entre poesia (no sentido mais amplo do termo) e filosofia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

67

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN Walter O conceito de criacutetica de arte no Romantis-mo alematildeo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Seligman-n-Silva Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1999

BORGES Paulo Teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu Estudos e ensaios pessoanos Lisboa Verbo 2011

LACOUE-LABARTHE Philippe NANCY Jean-Luc ldquoA exigecircn-cia fragmentaacuteriardquo Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Joatildeo Camillo Pen-na In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-gradua-ccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp67-94

NOVALIS Friedrich von Hardenberg Poacutelen - Fragmentos diaacute-logo monoacutelogo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Rubens Rodri-gues Torres Filho Satildeo Paulo Editora Iluminuras 2009

PESSOA Fernando Criacutetica ndash Ensaios Artigos e Entrevistas Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2000

PESSOA Fernando Livro do Desasocego Tomos I e II Edi-ccedilatildeo de Jerocircnimo Pizarro Lisboa INCM 2010 p43

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Bernardo Soares Recolha e transcriccedilatildeo dos textos Maria Aliete Galhoz Teresa Sobral Cunha prefaacutecio e organizaccedilatildeo Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Vicente Gue-des e Bernardo Soares Volume I e II Organizaccedilatildeo e notas de Teresa Sobral Cunha Lisboa Editorial Presenccedila 1990

RIBEIRO Nuno ldquoFernando Pessoa leitor de Novalis e o pro-blema da heteroniacutemiardquo Revista Scripta Belo Horizonte PU-CMG v16 pp56-68 2012

RIBEIRO Nuno (ed) Fernando Pessoa Philosophical Es-says A critical edition New York Contra Mundum Press 2012

SCHLEGEL Friedrich O dialeto dos fragmentos Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Suzuki Satildeo Paulo Editora Ilumi-nuras 1997

SELIGMANN-SILVA Maacutercio ldquoFriedrich Schlegel e Novalis poesia e filosofiardquo In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-graduaccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp95-111

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

68

SOUZA Claacuteudia ldquoA esteacutetica do desassossego Fernando Pessoa e o romantismo alematildeordquo In Osmar Oliva (Org) Litera-tura e Danaccedilatildeo Montes Claros Editora Unimontes 2013

SOUZA Claacuteudia RIBEIRO N ldquoCharles Robert Anon amp Ale-xander Search Filosofia e Psiquiatriardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 21 p 541-556 2012

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano poliacutetica e criaccedilatildeo literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais Dezembro de 2011

SOUZA Claacuteudia ldquoInconsciente e arte um ponto de encontro entre Fernando Pessoa e Freudrdquo In A Cultura Portuguesa no Divatilde Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2011 pp113-123

SOUZA Claacuteudia ldquoVicente Guedes e Bernardo Soares para aleacutem do Desasocegordquo Revista Cultura ENTRE Culturas Lis-boa 2011 pp186-191

SOUZA Claacuteudia SUZUKI Maacutercio ldquoNovalis e Pessoa lucidez poeacutetica e reflexatildeo oniacutericardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 23 p 9-26 2015

SUZUKI Maacutercio O gecircnio romacircntico ndash criacutetica e histoacuteria na filosofia de Friedrich Schlegel Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

69

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndash uma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaThe portrait of Fernando Pessoa as a philosopher ndash an incursion into Pessoarsquos philosophical booty

Palavras-chave Fernando Pessoa filosofia espoacutelioKey-words Fernando Pessoa philosophy archive

RESUMO Este artigo procura debater e problematizar o al-cance filosoacutefico da obra de Fernando Pessoa Partindo de uma anaacutelise dos documentos em grande parte ineacuteditos do espoacutelio de Pessoa pretende demonstrar-se que o alcance filosoacutefico da obra deste autor se estende muito aleacutem dos ecos de leituras filosoacuteficas presentes na sua poesia e nas suas ficccedilotildees Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos inuacutemeros projectos destinados a futuros livros ensaios pequenas produccedilotildees e di-aacutelogos filosoacuteficos Assim tendo por base a apresentaccedilatildeo do es-poacutelio filosoacutefico de Pessoa o presente artigo visa elucidar em que medida se pode falar de um Pessoa filoacutesofo para aleacutem do ldquopoeta animado pela filosofiardquo

ABSTRACT This article intends to debate and problematize the philosophical reach of Fernando Pessoarsquos work Based on an analysis of the documents in a great extent unpublished form Pessoarsquos Archive we intend to show that the philosophical reach of this authorrsquos work goes far beyond the echoes of philosophi-cal readings present in his poetry and in his fictions Indeed in Pessoarsquos Archive one finds numerous projects for future books essays short works and philosophical dialogues Thus based on the presentation of the philosophical writings from Pessoarsquos Archive this article aims to clarify to what extent one can speak of a Pessoa philosopher beyond the ldquopoet animated by philoso-phyrdquo

I ndash Os escritos filosoacuteficos do espoacutelio pessoano

Num escrito autobiograacutefico de Pessoa relativo agrave sua escrita le-mos

Nenhum dos meus escritos foi concluiacute-do sempre se interpuseram novos pensamen-tos associaccedilotildees de ideias extraordinaacuterias im-possiacuteveis de excluir com o infinito como limite Natildeo consigo evitar a aversatildeo que tem o meu

Nuno Ribeiro

Doutor em filosofia - Univer-sidade Nova de Lisboa - poacutes-doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos

nunofribeirosapopt

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

70

pensamento pelo acto de acabar seja o que for

[My writings were none of them finished new thoughts intruded ever extraordinary inexcusable associations of ideas bearing in-finity for term I cannot prevent my thoughtrsquos hatred of finish[ing] [hellip]] (PESSOA 2003 pp100-101 BNPE3 20 ndash 12rI)

Este trecho para aleacutem de se constituir como um testemu-nho de Fernando Pessoa relativo ao caraacutecter dos seus escritos eacute tambeacutem representativo do estado em que se encontram os textos presentes no espoacutelio deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos uma multiplicidade de fragmentos destinados a projectos de livros que este pensador pretendia futuramente es-crever mas que natildeo chegou a concluir De facto se excluirmos o Livro de Odes de Ricardo Reis ndash que eacute mais uma colecccedilatildeo de poemas do que um livro estruturado ndash Pessoa publicou ape-nas um livro em portuguecircs Esse livro eacute a Mensagem Fernando Pessoa publicou diversos poemas e ensaios em revistas lite-raacuterias que criou ou com as quais colaborou1 Chegou tambeacutem a publicar em formato de opuacutesculo algumas produccedilotildees como os 35 Sonnets Antinous os English Poems I-II e III e ainda o opuacutesculo Interregno ndash Defesa e Justificaccedilatildeo da Ditadura Militar em Portugal Mas nenhum destes escritos constitui por si soacute um livro e na sua maior parte satildeo apenas partes ou capiacutetulos de livros mais extensos projectados por Pessoa Assim no espoacutelio de Pessoa existe uma multiplicidade de projectos concebidos para futuros livros e ensaios Entre os livros e ensaios que este autor projectou mas que natildeo chegou a concluir encontram-se os escritos filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num documento do espoacutelio deste autor lemos

Milhares de teorias grotescas extraor-dinaacuterias profundas sobre o mundo sobre o homem sobre todos os problemas que per-tencem agrave metafiacutesica atravessaram o meu es-piacuterito Tive em mim milhares de filosofias das quais ndash como se fossem reais ndash nem mesmo duas concordariam

[Thousands of theories grotesque ex-traordinary profound on the world on man on all problems that pertain to metaphysics have passed through my mind I have had in me thousands of philosophies not any two of which mdash as if they were real mdash agreed] (LO-

1 Para efeitos de averiguaccedilatildeo de textos de Fernando Pessoa publica-dos em vida consulte-se a seguinte referecircncia bibliograacutefica BLANCO 1983

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

71

PES 1993 p 402 BNPE3 15B3sup3 ndash 12rI)

O espoacutelio de Pessoa catalogado na Biblioteca Nacional de Portugal [BNP] sob a designaccedilatildeo de ldquoE3rdquo [Espoacutelio 3] en-contra-se dividido em envelopes e compreende mais de vinte e sete mil documentos Cada envelope estaacute classificado com um nuacutemero uma designaccedilatildeo e conteacutem uma quantidade variaacute-vel de documentos Entre os diversos envelopes do espoacutelio de Pessoa encontramos quatorze envelopes filosoacuteficos com 1428 documentos Existem cinco envelopes (15sup1 15sup2 15sup3 15⁴ e 15⁵) com a designaccedilatildeo ldquoFilosofiardquo um (15A) classificado como ldquoFilo-sofia-Metafiacutesicardquo quatro (15Bsup1 15Bsup2 15Bsup3 e 15B⁴) designados como ldquoFilosofia-Psicologiardquo e finalmente quatro (22 23 24 e 25) intitulados ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo2 No entanto se eacute um facto que a divisatildeo do espoacutelio filosoacutefico em envelopes nos permite identificar nuacutecleos de textos filosoacuteficos este facto levanta um problema de iacutendole topograacutefica Por um lado nem todos os tex-tos filosoacuteficos se encontram nos envelopes de iacutendole filosoacutefica e por outro lado os envelopes filosoacuteficos contecircm documentos que natildeo satildeo filosoacuteficos Assim num envelope com a designaccedilatildeo ldquoPaacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuteriasrdquo [envelo-pe 19] encontramos por exemplo um texto sobre a filosofia de Nietzsche intitulado ldquoFriedrich Nietzscherdquo [BNP E3 19 ndash 99]3 e num envelope com a designaccedilatildeo ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo [enve-lope 23] existe um texto com o tiacutetulo ldquoDe Profundisrdquo [BNPE3 23 ndash 66] publicado por Antoacutenio de Pina Coelho na selecccedilatildeo de textos filosoacuteficos intitulada Textos Filosoacuteficos de Fernando Pes-soa4 mas que no entanto eacute uma traduccedilatildeo de um excerto de De Profundis de Oacutescar Wilde

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]5 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo Assim tendo todos estes aspectos

2 Para efeitos da elucidaccedilatildeo das problemaacuteticas relativas agrave cataloga-ccedilatildeo organizaccedilatildeo e ediccedilatildeo do conteuacutedo dos envelopes filosoacuteficos consulte-se as seguintes referecircncias RIBEIRO 2011b RIBEIRO 2011c RIBEIRO 20123 Este texto encontra-se publicado em PESSOA 1994 pp333-3344 Cf PESSOA 2006b pp 227-228 Outro flagrante exemplo do pro-blema topograacutefico no que respeita aos envelopes filosoacuteficos eacute um texto sobre o sensacionismo [BNPE3 15Bsup1-98I] que se encontra catalogado no envelo-pe 15Bsup1 (ldquoFilosofia Psicologiardquo)5 PESSOA 2006a p167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

72

em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]6 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo7 Assim tendo todos estes aspectos em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

O primeiro grupo de textos filosoacuteficos compreende os livros filosoacuteficos inacabados No espoacutelio de Pessoa existem diversos documentos com projectos destinados a livros filosoacuteficos e ela-borados pelo proacuteprio Pessoa Esses projectos encontram-se di-vididos em diversos toacutepicos correspondentes a vaacuterios capiacutetulos ou linhas de pensamento que Pessoa pretendia desenvolver em livros por si projectados Muitos desses toacutepicos correspondem a diversas paacuteginas que existem no espoacutelio de Pessoa Com efei-to a designaccedilatildeo dos toacutepicos presente em muitos dos projectos corresponde ao tiacutetulo e agraves indicaccedilotildees de uma multiplicidade de paacuteginas espalhadas ao longo do espoacutelio de Pessoa Entre os documentos com projectos de Pessoa encontramos os projec-tos de livros filosoacuteficos O seguinte texto redigido por Pessoa em inglecircs e os seus diversos toacutepicos que correspondem a um projecto destinado a um livro filosoacutefico constituem um exemplo de um projecto filosoacutefico de Pessoa

Book I ndash Theory of Categories[Book] II ndash Theory following on and depending on the Categories[Book] III ndash Theory of the Absolute

_______________

SubdivisionsBook I - 1 Category of Being Considerations 2 Category of Extension Consideration 3 Category of Relation Consideration 4 Conclusion Critique of Pure Reason 5 Conclusion

6 PESSOA 2006a p1677 Relativamente ao sentido e agrave circunscriccedilatildeo do termo ldquomicrosofiardquo re-metemos para os seguintes estudos SOUZA 2011 PIZARRO 2007

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

73

Book II - 1 Relation of Objects to Categories 2 Proofs of the Inexistence of the External World

[BNPE3 15sup3 ndash 3 fac-simile abaixo]

O segundo grupo de escritos filosoacuteficos corresponde aos ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num do-cumento presente no espoacutelio de Fernando Pessoa correspon-dente agrave tentativa de elaboraccedilatildeo de uma lista de obras a realizar e organizar encontramos a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo [BNPE3 48B ndash 152r fac-simile abaixo]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

74

Nesse documento Fernando Pessoa comeccedila por redigir uma lista com a indicaccedilatildeo de tiacutetulos e temaacuteticas a considerar sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Pessoa risca essa lista e inicia na mesma paacutegina uma segunda lista tambeacutem com a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo Tanto a primeira quanto a segunda listas satildeo bastante imprecisas pois por um lado apre-sentam-nos tiacutetulos que Pessoa viria posteriormente a considerar em listas de obras e em projectos natildeo filosoacuteficos por outro lado ambas as listas deixam de fora muitos dos ensaios filosoacuteficos que encontramos no espoacutelio de Fernando Pessoa Isto justifi-ca que Pessoa tenha abandonado essa lista deixando-a ina-cabada De facto ao longo do espoacutelio de Pessoa encontramos centenas de projectos e listas de obras muitas das quais satildeo abandonadas por Pessoa No entanto a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophi-cal Essaysrdquo presente na lista descrita constitui-se natildeo soacute como o testemunho de um conjunto de textos que Pessoa pretendia redigir e dos quais nos legou fragmentos mas tambeacutem como a evidecircncia do projecto de reunir esses textos sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Ao longo do espoacutelio de Pessoa exis-tem vaacuterios geacuteneros de ensaios com extensotildees diversas e que discutem o mais variado tipo de assuntos autores e movimen-tos filosoacuteficos8

8 No livro Fernando Pessoa Philosophical Essays a critical edition

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

75

O terceiro grupo corresponde agraves pequenas produccedilotildees filo-soacuteficas Com efeito para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos o espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem igualmente uma multipli-cidade de textos correspondentes a artigos opuacutesculos e outras produccedilotildees filosoacuteficas de menor dimensatildeo consagrados agrave dis-cussatildeo dos mais diversificados autores movimentos e concei-tos da histoacuteria da filosofia A distinccedilatildeo entre ensaios e pequenas produccedilotildees eacute explicitamente enunciada numa lista de obras de Pessoa onde se lecirc ldquoEssays and Shorter Worksrdquo [BNPE3 48B ndash 142 detalhe do fac-simile abaixo]

O quarto grupo de textos corresponde agraves notas de leitu-ra filosoacuteficas de Pessoa Pessoa tinha o haacutebito de tomar notas das suas leituras muitas das quais se encontram conservadas do espoacutelio deste autor Isto acontecia porque muitas vezes Pessoa lia livros que natildeo eram seus mas cuja referecircncia queria manter embora algumas das suas notas filosoacuteficas se reportem a livros que se encontram na sua Biblioteca Particular Estas notas satildeo de crucial importacircncia natildeo soacute para traccedilar as vaacuterias influecircncias filosoacuteficas na obra de Pessoa mas tambeacutem porque muitas dessas notas estatildeo na origem de alguns dos seus escri-tos filosoacuteficos Assim podemos distinguir dois tipos de notas primeiro as notas acriacuteticas que compreendem todas aquelas notas que tecircm meras indicaccedilotildees ou citaccedilotildees de livros filosoacutefi-cos que Pessoa leu segundo as notas criacuteticas que para aleacutem das referecircncias e citaccedilotildees de livros englobam tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Pessoa sobre aquilo que leu No envelope 22 existe um exemplo de uma nota de leitura criacutetica como se pode verificar no seguinte texto escrito por Pessoa em inglecircs sobre a definiccedilatildeo aristoteacutelica de metafiacutesica

apresentamos a compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacuteficos de Fer-nando Pessoa Para aleacutem de compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacutefi-cos a introduccedilatildeo a essa ediccedilatildeo conteacutem uma revisatildeo histoacuterica dos principais tiacutetulos relativos agraves ediccedilotildees e comentaacuterios aos textos filosoacuteficos de Pessoa com especial ecircnfase nas seguintes referecircncias 1) PESSOA 2006 ndash corres-pondente a uma reimpressatildeo de um texto originalmente publicado em 1968 2) MOTA 1988 3) LOPES 1993 4) Loacutepez 2012 Aiacute mostramos que todas essas referecircncias laboram num erro comum que consiste em natildeo considerar os diversos fragmentos de Fernando Pessoa no contexto dos projectos e tiacutetulos de obras de iacutendole filosoacutefica ainda que lhe faccedilam referecircncias esporaacute-dicas Discutimos tambeacutem na introduccedilatildeo agrave nossa ediccedilatildeo o estatuto proble-maacutetico de muitos dos tiacutetulos enumerados na lista acima apresentada com o tiacutetulo ldquoPhilosophical Essaysrdquo tendo por base a anaacutelise de outros projectos do espoacutelio de Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

76

Notes 1Aristotle defines metaphysics (1) science of first principles and of first causes and (2) science of being as being [qua being]

Also defined ldquothe science of the absoluterdquo Metaphysics contains 3 great theories 1) The-ory of knowledge 2) theory of being 3) theory of the first principle of knowledge and of being

Critique It contains great theories indeed These are 1) Theory of knowledge 2)

[BNPE3 22 -73r fac-simile abaixo]

Finalmente o quinto grupo de textos filosoacuteficos correspon-de agraves paacuteginas filosoacuteficas autoacutenomas Este tipo de textos englo-ba todos aqueles escritos que lidam com a filosofia ou com as-suntos filosoacuteficos mas que natildeo correspondem a nenhum dos outros grupos filosoacuteficos nem tecircm qualquer relaccedilatildeo material di-recta com os outros escritos filosoacuteficos O espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem inuacutemeras paacuteginas deste tipo

Para aleacutem destes cinco grupos pode ainda ser identificado um outro grupo de documentos filosoacuteficos Esse grupo de docu-mentos corresponde ao projecto de criaccedilatildeo de diaacutelogos filosoacutefi-cos No envelope 24 existe um documento precisamente intitu-lado ldquoDiaacutelogos filosoacuteficosrdquo [BNPE3 24 ndash 96a] que conteacutem um trecho de discussatildeo sobre os argumentos acerca da existecircncia de Deus No entanto os documentos relativos aos diaacutelogos filo-soacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo bastante escassos e por outro lado o conteuacutedo e o estilo do texto intitulado ldquoDiaacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

77

logos filosoacuteficosrdquo encontram-se bastante proacuteximos das ficccedilotildees e contos deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos por exemplo um documento com a indicaccedilatildeo ldquoContos Intellectuaesrdquo [BNPE3 48A ndash 48i] que poderaacute corresponder a um desenvol-vimento dos diaacutelogos filosoacuteficos Noutro documento contendo uma lista de obras encontramos tambeacutem a indicaccedilatildeo ldquoContos metaphysicosrdquo [BNPE3 48E ndash 29i] que poderaacute igualmente ser considerado como outro dos tiacutetulos correspondentes a um de-senvolvimento do projecto de diaacutelogos filosoacuteficos Isto leva-nos a concluir que muito provavelmente os diaacutelogos filosoacuteficos natildeo teratildeo passado da fase de projecto e que Pessoa teraacute reaprovei-tado o conteuacutedo destinado a esses diaacutelogos para construir os seus contos e ficccedilotildees os quais muitas vezes satildeo mais dialo-gados do que narrados

II ndash Filosofia e a pluralidade de personalidades de Pessoa

Uma das mais claras consequecircncias da criaccedilatildeo de uma pluralidade de personalidades em Fernando Pessoa eacute a pro-blematizaccedilatildeo do conceito de autoria A problematizaccedilatildeo des-te conceito tem naturalmente consequecircncias no que respeita agrave circunscriccedilatildeo do acircmbito da produccedilatildeo filosoacutefica deste autor No decurso da sua produccedilatildeo literaacuteria Pessoa cria uma multi-plicidade de personalidades entre as quais os heteroacutenimos satildeo as mais conhecidas Um heteroacutenimo eacute uma personalidade com uma biografia um nome e uma obra inteiramente autoacutenomos das demais personalidades No entanto a marca distintiva da heteroniacutemia eacute o estilo A cada heteroacutenimo corresponde a fabri-caccedilatildeo de um estilo proacuteprio A fabricaccedilatildeo de uma multiplicidade de heteroacutenimos corresponde agrave produccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos9

Contudo para aleacutem dos heteroacutenimos Pessoa cria ainda um conjunto de semi-heteroacutenimos e de outras personalidades subalternas que poderatildeo ser classificadas como sub-heteroacuteni-mos A diferenccedila entre um heteroacutenimo e um semi-heteroacutenimo consiste no facto de que enquanto o heteroacutenimo tem um esti-lo literaacuterio inteiramente autoacutenomo o semi-heteroacutenimo escreve no mesmo estilo natural do autor real da escrita Eacute isso que por exemplo lemos no texto Ficccedilotildees do Interluacutedio a respeito do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares ldquo[hellip] Bernardo Soares distinguindo-se de mim por suas ideias seus sentimentos seus modos de ver e de compreender natildeo se distingue de mim pelo estilo de expor [hellip]rdquo (PESSOA 2007 p153)

9 Para a elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a heteroniacutemia e a criaccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos veja-se RIBEIRO 2011 Neste livro apresentamos o desenvolvimento da multiplicidade estilos ligada agrave fabricaccedilatildeo dos heteroacute-nimos atraveacutes de um confronto da noccedilatildeo de heteroniacutemia com a noccedilatildeo niet-zschiana de perspectivismo Consulte-se tambeacutem a este respeito a seguinte referecircncia RIBEIRO 2010

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

78

Os sub-heteroacutenimos desempenham por outro lado um papel inteiramente diferente dos heteroacutenimos e dos semi-he-teroacutenimos Estas personalidades tecircm por funccedilatildeo dominante a traduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo das obras dos heteroacutenimos e de outros autores portugueses Thomas Crosse e I I Crosse satildeo dois exemplos deste tipo de personalidades

No entanto a produccedilatildeo de personalidades na obra de Fer-nando Pessoa natildeo se esgota na criaccedilatildeo dos heteroacutenimos semi--heteroacutenimos e sub-heteroacutenimos A primeira apariccedilatildeo puacuteblica de um heteroacutenimo de Pessoa ocorre em 1915 com a publicaccedilatildeo do ldquoOpiaacuteriordquo e da ldquoOde Triunfalrdquo de Aacutelvaro de Campos no primeiro nuacutemero da revista literaacuteria Orpheu Contudo existe todo um tra-balho de criaccedilatildeo preacute-heteroniacutemica que antecede o surgimento dos heteroacutenimos Com efeito Fernando Pessoa escreve sob o nome de dezenas de personalidades literaacuterias10 a maior parte das quais produz as suas obras ou fragmentos de obras no pe-riacuteodo preacute-heteroniacutemico

No que diz respeito aos preacute-heteroacutenimos a produccedilatildeo de textos filosoacuteficos encontra-se maioritariamente centralizada nas produccedilotildees de duas personalidades preacute-heteroniacutemicas inglesas de Fernando Pessoa Charles Robert Anon e Alexander Search A relaccedilatildeo de Anon e de Search com a filosofia encontra-se des-de logo expressa nos documentos biograacuteficos que Pessoa nos deixa relativamente a estes dois preacute-heteroacutenimos

Com efeito num caderno dataacutevel de cerca de 1906 [BNPE3 144Csup2] encontramos um fragmento em inglecircs intitulado Ex-communication [Excomunhatildeo] que se constitui como um de resumo biograacutefico de Charles Robert Anon e que nos lega inuacute-meros indiacutecios da relaccedilatildeo desta personalidade com as proble-maacuteticas ligadas agrave filosofia Aiacute lemos

Excomunhatildeo

natildeo casado excepto em momentos estranhos____________________________________

Eu Charles Robert Anon ser animal mamiacutefe-ro tetraacutepode primata com placenta macaco catarrino homem dezoito anos de idade natildeo casado (excepto em momentos estra-nhos) megalomaniacuteaco com laivos de dipso-mania degenerado superior poeta com pre-tensotildees a escritos humoriacutesticos cidadatildeo do

10 Em Pessoa por Conhecer numa secccedilatildeo intitulada ldquo11 ndash Dramatis Personaerdquo Teresa Rita Lopes conta setenta e duas personalidades de Fer-nando Pessoa (Cf LOPES 1990 pp 167-169) No entanto este nuacutemero tem vindo a ser reconsiderado quer pela autora quer por posteriores estudos so-bre a obra de Fernando Pessoa que tecircm vindo progressivamente a ampliar o nuacutemero de personalidades e que contam ndash embora em muitos casos de uma forma bastante problemaacutetica ndash mais de cem personalidades fictiacutecias cf PESSOA 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

79

mundo filoacutesofo idealista etc etc (para poupar mais dores ao leitor)Em nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSO-FIA sem sineta livro e vela mas com caneta tinta e papelPasso uma declaraccedilatildeo de excomunhatildeo a to-dos os padres e todos os sectaacuterios de todas as religiotildees do mundo

Excomungo-vosDanais-vos todosAssim sejaRazatildeo Verdade Virtude por Charles Robert Anon

[Excommunication

not married except at odd moments___________________________________I Charles Robert Anon being animal mammal tetrapod primate placental ape catarrhyna man eighteen years of age not married (except at odd moments) megaloma-niac with touches of dipsomania deacutegeacuteneacutereacute superior poet with pretensions to written hu-mour citizen of the world idealistic philoso-pher etc etc (to spare the reader further pains) In the name of TRUTH SCIENCE and PHILO-SOPHIA not with bell book and candle but with pen ink and paperPass sentence of excommunication on all priests and all sectarians of all religions in the world

Excomunicabo vosBe damnrsquod to you allAnsi-soit-ilReason Truth Virtue per C[harles] R[obert] A[non]]

[PESSOA 2009 p289 BNPE3 144Csup2 5v a 6r]

Este excerto para aleacutem de se constituir como uma auto--psicografia humoriacutestica de Anon aos dezoito anos de idade revela-nos tambeacutem muacuteltiplos aspectos da caracterizaccedilatildeo dos interesses filosoacuteficos deste preacute-heteroacutenimo Neste texto Char-les Robert Anon elabora explicitamente uma excomunhatildeo ldquoEm

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

80

nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSOFIArdquo [BNPE3 144Csup2 6r ldquoIn the name of TRUTH SCIENCE and PHILOSOPHIArdquo] denominando-se como ldquofiloacutesofo idealistardquo [BNPE3 144Csup2 5v ldquoidealistic philosopherrdquo] Com efeito no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel identificar um conjunto de testemunhos relativos a obras de filosofia assinados por Anon que abrangem os mais diversos temas como os textos intitulados Teoria da Percepccedilatildeo [BNPE3 25 ndash 58r Theory of Perception] e Sobre os Limites da Ciecircncia [BNPE3 28 ndash 99v On the Limits of Science]

A fabricaccedilatildeo da personalidade de Alexander Search eacute de igual forma conforme ao interesse pela filosofia A preocupaccedilatildeo de Search com filosofia encontra reflexo no caderno intitulado Livro da Transformaccedilatildeo ou livro das tarefas [BNPE3 48C ndash 1 a 5 Transformation Book or Book of Tasks] onde Pessoa nos apresenta uma breve descriccedilatildeo biograacutefica de Search acompa-nhada de uma lista de obras correspondentes a tarefas a serem realizadas por esta personalidade Nessa ficha biograacutefica lemos

Alexander SearchNascido a 13 de Junho 1888 em LisboaTarefa todas as que natildeo provenham dos ou-tros trecircs___________________________________1 ldquoO Regiciacutedio e a Situaccedilatildeo Poliacutetica em Por-tugalrdquo2 ldquoA Filosofia do Racionalismordquo3 ldquoA Perturbaccedilatildeo Mental de Jesusrdquo4 ldquoDeliacuteriordquo5 ldquoAgoniardquo

[Alexander SearchBorn June 13th 1888 at LisbonTask all not the province of the other three___________________________________

1 ldquoThe Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugalrdquo2 ldquoThe Philosophy of Rationalismrdquo3 ldquoThe Mental Disorder(s) of Jesusrdquo4 ldquoDeliriumrdquo5 ldquoAgonyrdquo]

[PESSOA 2014 p 4 BNPE3 48C ndash 2r]

Nesta ficha biograacutefica elaborada por Pessoa encontramos para aleacutem dos dados biograacuteficos de Search a menccedilatildeo ao tiacutetulo A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] que eacute representativo de um dos mais significativos interesses filosoacute-ficos de Pessoa Com efeito ao longo do espoacutelio de Fernando

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

81

Pessoa existe uma multiplicidade de documentos destinados a um projecto relativo ao sentido e agrave natureza do racionalismo Esse projecto passou por diversas fases e teve vaacuterios tiacutetulos A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] foi justamente um desses tiacutetulos

No entanto os tiacutetulos referidos na ficha biograacutefica de Se-arch satildeo apenas alguns dos exemplos de obras filosoacuteficas atri-buiacutedas a esta personalidade de Pessoa Ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa existe ndash com a assinatura deste preacute-heteroacute-nimo ndash uma multiplicidade de outras obras de filosofia como eacute o caso do texto A Natureza Interna das Faculdades [BNPE3 23 ndash 18 a 19 The Internal Nature of the Faculties] e do Ensaio sobre a Ideia de Causa [BNPE3 15⁴ ndash 99 a 100 Essay on the Idea of Cause]

Assim todos estes elementos que temos vindo a enunciar permitem-nos concluir que haacute uma afinidade de fundo entre as duas personalidades preacute-heteroniacutemicas apresentadas e a cria-ccedilatildeo de textos filosoacuteficos Contudo a afinidade de Anon e de Search a respeito das questotildees ligadas agrave filosofia existe desde logo numa etapa anterior agrave produccedilatildeo de textos filosoacuteficos Nas listas de leitura presentes no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel en-contrar um ponto de contacto dessas duas personalidades com o interesse pelos diversos autores e temaacuteticas dos vaacuterios periacuteo-dos da histoacuteria da filosofia

No espoacutelio de Fernando Pessoa existe um caderno intitu-lado ldquoNordm I1 Charles R Anonrdquo [BNPE3 13A 1 a 20] que para aleacutem de inuacutemeros escritos e projectos filosoacuteficos conteacutem ainda uma extensa lista de leituras que eacute antecedida pela seguinte indicaccedilatildeo

LivrosSobre Ciecircncia e sobre Filosofia

[BooksOn Science and on Philosophy]

[PESSOA 2009 p271 BNPE3 13A ndash 2r detalhe do fac-simile abaixo]

Nesta lista provavelmente contemporacircnea das leituras re-alizadas por Pessoa na Biblioteca Nacional e por conseguinte dataacutevel de 1906 encontramos justamente a evidecircncia dos in-teresses relativos agrave filosofia que Pessoa atribui a Charles Ro-bert Anon Com efeito aiacute encontramos referecircncias a livros de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

82

filoacutesofos como Aristoacuteteles Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Schopenhauer Hegel e Bergson para citar ape-nas alguns dos nomes da histoacuteria da filosofia referidos nesse caderno Todas estas referecircncias viriam a ser retomadas nas listas de leitura de Search

Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos um cader-no com a seguinte indicaccedilatildeo

Alexander SearchSetembro 1906

________

Filosofia etc[Alexander SearchSeptember 1906

________

Philosophy etc]

[BNPE3 144H ndash contracapa]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

83

Este caderno que eacute datado de Setembro de 1906 e por-tanto contemporacircneo do caderno de Anon conteacutem uma lista de livros alfabeticamente ordenada de ldquoArdquo a ldquoZrdquo na sua maioria re-lativos agrave filosofia Nele satildeo retomadas e em alguns casos am-pliadas as referecircncias presentes no caderno de Anon relativa-mente ao qual satildeo acrescentados novos tiacutetulos e novos nomes

Contudo apesar de as obras filosoacuteficas no periacuteodo preacute--heteroniacutemico estarem de um modo geral centralizadas em Charles Robert Anon e Alexander Search encontramos tambeacutem textos de cariz filosoacutefico atribuiacutedos a outros intervenientes Um exemplo disso eacute o Ensaio sobre a Intuiccedilatildeo [BNPE3 14⁶ ndash 30 a 31r Essay on Intuition] cujos fragmentos se encontram espa-lhados ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa e que embora breve esboccedila o iniacutecio de discussatildeo acerca da natureza e cons-tituiccedilatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica de intuiccedilatildeo No final de um dos frag-mentos deste ensaio encontramos as seguintes assinaturas correspondentes a nomes de duas personalidades preacute-hetero-niacutemicas ldquoA Moreira Faustino Antunesrdquo [BNPE3 14⁶ ndash 31r] Para aleacutem de todos os nomes de preacute-heteroacutenimos que temos vindo a enunciar encontramos ainda textos filosoacuteficos assina-dos por Fernando Pessoa em seu proacuteprio nome Um exemplo de um texto filosoacutefico

assinado por Pessoa no periacuteodo preacute-heteroniacutemico eacute o en-saio intitulado ldquoDa Impossibilidade de uma Sciencia do Lexiconrdquo [BNPE3 23 ndash 1-2a] que corresponde a uma ldquofalaacutecia filosoacuteficardquo escrita em 1906 como trabalho a apresentar para a disciplina de filologia na Universidade de Lisboa que Fernando Pessoa frequentou entre 1905 e 1907 Com efeito eacute isso que depreen-demos do seguinte apontamento presente num diaacuterio com a data de 11 de Maio de 1906

Preparando a minha falaacutecia filosoacutefica ndash laquoSobre a fenomenologia do Lexiconraquo para aula de Fi-lologia o tema foi laquoA Orientaccedilatildeo do Lexiconraquo

[Preparing my philosophical fallacy ndash ldquoOn the Phenomenology of the Lexiconrdquo for the Philo-logy Class the subject given us was ldquoA Orien-taccedilatildeo do Lexiconrdquo] (PESSOA 2003 pp38-39)

No que diz respeito agraves personalidades do periacuteodo hetero-niacutemico a produccedilatildeo filosoacutefica tem como principal preocupaccedilatildeo a questatildeo da definiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica De Aacutelvaro de Campos existe um texto precisamente intitulado ldquoO que eacute a me-tafiacutesicardquo publicado em 1924 no nuacutemero 2 da revista Athena que constitui uma contra-resposta ao ensaio ldquoAtenardquo publicado pelo ortoacutenimo no primeiro nuacutemero dessa revista Antoacutenio Mora uma personalidade literaacuteria que Pessoa faz dialogar com os he-teroacutenimos participa igualmente nessa discussatildeo como se pode

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

84

verificar pelo conjunto de fragmentos destinados a um opuacutesculo intitulado ldquoIntroduccedilatildeo ao Estudo da Metafiacutesicardquo (Cf PESSOA 2002 pp 321-331)

Contudo a questatildeo da circunscriccedilatildeo dos textos filosoacuteficos de Pessoa no acircmbito da problemaacutetica da autoria tem uma di-ficuldade acrescida Se eacute verdade que Pessoa cria uma mul-tiplicidade de textos assinados sob o nome das mais diversas personalidades literaacuterias tambeacutem eacute um facto que no espoacutelio de Pessoa encontramos vaacuterios textos sem qualquer atribuiccedilatildeo autoral expliacutecita ou impliacutecita Assim os textos do espoacutelio deste autor podem ser distinguidos em duas classes os textos assina-dos ou incluiacutedos em projectos destinados a determinadas per-sonalidades de Pessoa segundo os textos que natildeo se encon-tram assinados O segundo tipo de textos constitui aquilo que se pode designar de textos anoacutenimos de Pessoa Eacute no acircmbito dos textos anoacutenimos de Pessoa que encontramos a maior variedade de projectos e fragmentos de livros de pequenas produccedilotildees e de ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa discutindo os mais variados autores desde os preacute-socraacuteticos a Bergson passando por consideraccedilotildees relativas a movimentos como o materialismo o positivismo e o idealismo bem como aos conceitos filosoacuteficos de sensaccedilatildeo e de ser

III ndash Fernando Pessoa o filoacutesofo e o ldquopoeta animado pela filosofiardquo

A tematizaccedilatildeo da importacircncia da filosofia e o emprego de con-ceitos filosoacuteficos em Fernando Pessoa encontram-se tambeacutem presentes ao longo da obra poeacutetica e ficcional deste autor No poema Tabacaria encontramos por exemplo a seguinte con-fissatildeo de Aacutelvaro de Campos ldquoTenho feito filosofias em segre-do que nenhum Kant escreveurdquo (CAMPOS 2002 p322) Em O Guardador de Rebanhos Alberto Caeiro problematiza critica e discute algumas noccedilotildees filosoacuteficas como os conceitos de meta-fiacutesica de alma e de Deus11 Estes e outros exemplos presentes na obra de Fernando Pessoa satildeo suficientes para pocircr em evi-decircncia e dar a conhecer um ldquopoeta animado pela filosofiardquo [ldquopoet animated by philosophyrdquo] (PESSOA 2003 p18) que este autor afirmou ter sido e efectivamente chegou a ser mas natildeo para provar que Pessoa foi de facto um escritor filosoacutefico Com efeito a presenccedila de conceitos filosoacuteficos ao longo das diversas pro-duccedilotildees poeacuteticas e ficcionais de Fernando Pessoa constituem apenas o indiacutecio das leituras filosoacuteficas que teratildeo ocupado este autor em diferentes periacuteodos da sua vida Mas a relaccedilatildeo de Pes-soa com o pensamento filosoacutefico natildeo se circunscreve agraves men-ccedilotildees a autores movimentos ou conceitos filosoacuteficos presentes nos seus mais variados textos poeacuteticos e ficcionais Para aleacutem 11 Veja-se em especial o poema V de O Guardador de Rebanhos [CAEIRO 2001 pp29-32]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

85

do ldquopoeta animado pela filosofiardquo encontramos tambeacutem no es-poacutelio de Fernando Pessoa diversos indiacutecios que nos permitem reconstituir o retrato de Pessoa enquanto filoacutesofo Os diversos escritos filosoacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo o teste-munho da actividade filosoacutefica deste autor e por conseguinte permitem-nos concluir a existecircncia de um Pessoa-filoacutesofo O cultivo do estilo e dos diversos geacuteneros filosoacuteficos foi para Fer-nando Pessoa um dos momentos do desenvolvimento de uma multiplicidade de estilos A escrita filosoacutefica constitui para Pes-soa uma das formas de desenvolvimento literaacuterio Para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos encontramos entre as pequenas produccedilotildees filosoacuteficas de Pessoa inuacutemeros projectos de artigos opuacutesculos e de outros textos de pequena dimensatildeo Os pro-jectos de livros ensaios e pequenas produccedilotildees filosoacuteficas do espoacutelio de Pessoa correspondem agrave multiplicidade de geacuteneros filosoacuteficos que este autor pretendia e que na verdade chegou a desenvolver Deste modo o estilo filosoacutefico e os diversos geacutene-ros nele incluiacutedos foram para Pessoa a ocasiatildeo para o desen-volvimento de uma forma de literatura que este autor deixou por concluir mas cujos projectos e indicaccedilotildees presentes ao longo de todo o espoacutelio nos permitem reconstruir

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

86

BIBLIOGRAFIA

BLANCO Joseacute Fernando Pessoa Esboccedilo de uma bibliografia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

CAEIRO Alberto Poesia Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001

CAMPOS Aacutelvaro de Poesia Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lis-boa Assiacuterio amp Alvim 2002

LOPES Teresa Rita (org) Pessoa Ineacutedito Lisboa Livros Hori-zonte 1993

LOPES Teresa Rita Pessoa por Conhecer Vol I Lisboa Edi-torial Estampa 1990

LOacutePEZ Pablo Javier Peacuterez Poesiacutea Ontologiacutea y Tragedia en Fernando Pessoa Madrid Editorial Manuscritos 2012

MOTA Pedro Teixeira da Fernando Pessoa Moral Regras de Vida Condiccedilotildees de Iniciaccedilatildeo Textos estabelecidos e comenta-dos por Pedro Teixeira da Mota Lisboa Ediccedilotildees Manuel Len-castre 1988

PESSOA Fernando Cadernos Tomo I Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pi-zarro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2009

PESSOA Fernando Escritos Autobiograacuteficos Automaacuteticos e de Reflexatildeo Pessoal Ediccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

PESSOA Fernando Escritos sobre Geacutenio e Loucura Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2006a

PESSOA Fernando Eu sou uma antologia 136 autores fictiacute-cios Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro e Patricio Ferrari Lisboa Tinta da China 2013

PESSOA Fernando Obras de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Luiacutes Fi-lipe Teixeira Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

PESSOA Fernando Paacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuterias Lisboa Aacutetica 1994

PESSOA Fernando Philosophical Essays a critical edition Edition notes and introduction by Nuno Ribeiro (afterword by Paulo Borges) New York Contra Mundum Press 2012

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

87

PESSOA Fernando Prosa Iacutentima e de Autoconhecimento Edi-ccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2007

PESSOA Fernando Textos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa Vol I Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio Pina Coelho Lis-boa Aacutetica 2006b

PESSOA Fernando The Transformation Book mdash or Book of Tasks Edition Notes and Introduction by Nuno Ribeiro amp Claacuteu-dia Souza New York Contra Mundum Press 2014

PIZARRO Jeroacutenimo Fernando Pessoa entre geacutenio e loucura Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2007

RIBEIRO Nuno Fernando Pessoa e Nietzsche O pensamento da pluralidade Lisboa Verbo Editora 2011a

RIBEIRO Nuno ldquoHeteroniacutemia e Perspectivismo ldquoEspaccedilo lite-raacuteriordquo e multiplicidade de estilos nos pensamentos de Nietzsche e Pessoardquo In Cadernos Nietzsche nordm26 Satildeo Paulo Grupo de Estudos Nietzsche 2010 pp155-176

RIBEIRO Nuno ldquoOs Livros Filosoacuteficos Inacabados de Pessoa ndash Problemas e Criteacuterios para a Publicaccedilatildeo dos Escritos Filosoacutefi-cos de Pessoardquo In Philosophica nordm 38 Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2011b pp 165 ndash 174

RIBEIRO Nuno ldquoTive em mim milhares de Filosofiasrdquo - ques-totildees para a ediccedilatildeo dos escritos filosoacuteficos ineacuteditos de Pessoardquo In cultura ENTRE culturas nordm3 Lisboa ncora Editora 2011c pp 192 ndash 200

RIBEIRO Nuno Tradiccedilatildeo e Pluralismo nos Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo I ndash 214pp) Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo II ndash 382pp) Lisboa Faculdade de Ci-ecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 2012 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano Poliacutetica e Criaccedilatildeo Literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Belo Horizonte PUC ndash Minas Gerais 2011 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

88

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposrdquoNotes on ldquoRemarks for a non-Aristotelian Aesthetics in Aacutelvaro de Camposrdquo

Palavras-chave Fernando Pessoa Esteacutetica natildeo-aristoteacutelica Corpo e ArteKeywords Fernando Pessoa Aesthetics non-Aristotelian Body and Art

RESUMO Os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacuteli-ca entre outros escritos sobre arte figuram na obra pessoa-na como ponto de relevacircncia por se tratar de um esboccedilo para uma ldquoteoria esteacuteticardquo em via contraacuteria agrave Tradiccedilatildeo Nem sempre atendendo agraves expectativas de muitos criacuteticos quanto agrave aplicabi-lidade de tal pensamento agrave leitura do proacuteprio Fernando Pessoa nem demonstrando consistecircncia suficiente enquanto reflexatildeo sistecircmica do ponto de vista filosoacutefico os Apontamentos mesmo assim nos oferecem em potencial margens para uma releitu-ra que transpasse agrave discussatildeo restritiva de uma esteacutetica natildeo aristoteacutelica Em suma nosso intuito eacute mostrar que para aleacutem de uma descontinuidade da tradiccedilatildeo esteacutetica aristoteacutelica Fernan-do Pessoa atraveacutes do discurso de Aacutelvaro de Campos vislumbra um estado em que corpo e arte estabeleccedilam estreita relaccedilatildeo firmada em princiacutepios de forccedila pelo vieacutes da sensibilidade em vez do tradicional caminho da razatildeo Nesse sentido natildeo pre-tendemos emitir conclusotildees definitivas concernentes aos escri-tos em questatildeo visto que entendemos e acolhemos o termo ldquoapontamentordquo como um prospecto de um trabalho que natildeo se concretizou

ABSTRACT Pessoarsquos Remarks for a Non-Aristotelian Aesthetics as many other writings about Arts are highly relevant inasmuch as they present a sketch for non-traditional theories on Aesthetics In spite of this relevance some critics argue that Pessoarsquos Remarks are not quite useful to read Fernando Pessoa himself Their criticism turns on the point that the Remarks have no sufficient consistency to be considered a systematic thought from a philosophical point of view Diverging from this position we assume that Fernando Pessoarsquos Remarks allow us to pre-sent a ldquore-readingrdquo that can go far beyond some restrictive rea-dings based on some non-Aristotelian Aesthetics Accordingly we argue that Fernando Pessoa can be considered apart from the question about his discontinuity in relation to the Aristotelian aesthetic tradition Our main point is that Pessoa through Aacutelva-ro de Camposrsquo views envisions some state in which body and art can establish a very close relation by means of principles

Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Doutorando em Literatura ndash POacuteSLITUnBFAPDF

fabriciogabrieldesouzagmailcom

() E-mail fabriciogabrieldesouzagmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

89

of force from the perspective of sensibility However we do not here intend to reach definitive conclusions on this issue since we understand the term ldquoremarksrdquo as a mere prospectus for a not accomplished work

1

Devemos sempre ter em conta a produccedilatildeo teoacuterica de Fernando Pessoa visto que seus exerciacutecios de reflexatildeo podem ser entendidos como dobras em sua proacutepria obra De igual modo devemos tecirc-la com leve cuidado Se tais prospectos satildeo capa-zes de lanccedilar alguma luz sobre seu legado talvez nem o tempo de aacuterduo trabalho dos investigadores poderaacute trazer agrave tona o de-lineamento total e exato da produccedilatildeo pessoana Basta lembrar que quase maioria do que foi escrito pelo poeta portuguecircs ficou guardada durante sua vida numa arca vindo a puacuteblico poste-riormente graccedilas agrave dedicaccedilatildeo e a um princiacutepio de trabalho mais criterioso da Equipa Pessoa no iniacutecio dos anos de 1980

Nossas consideraccedilotildees iniciais satildeo no intuito primeiro de reafirmar que o que noacutes temos na atualidade publicado com o nome de Fernando Pessoa ou de seus autores fictiacutecios satildeo propostas editoriais Algumas com criteacuterios rigorosos outras com menos e aquelas sem criteacuterios algum com o intuito apenas mercadoloacutegico Afinal o nome de Fernando Pessoa se tornou natildeo sem motivos uma chancela em alta estima Segundo fazer lembrar que muitas publicaccedilotildees natildeo possuem uma versatildeo final pensada pelo seu autor Exemplo disso eacute o alto grau de frag-mentariedade da obra que conta com mais de trinta mil papeis entre eles diversos escritos ou notas como planos de obras ou lista de tiacutetulos para possiacuteveis obras O Livro do desassossego tem publicado cerca de dez ediccedilotildees com organizaccedilotildees diferen-tes sendo algumas delas nas visotildees de seus editores perten-centes a dois ou trecircs autores criados por Fernando Pessoa in-cluindo fases distintas Dos textos dramaacuteticos aos quais temos nos dedicado ultimamente apenas O Marinheiro foi terminado e publicado em vida no primeiro nuacutemero da Revista Orpheu em 1915 Partindo dessas observaccedilotildees optamos pela cautela na apreciaccedilatildeo dos textos considerando a obra enquanto conjunto (todo) poreacutem com elementos variaacuteveis e em sua maioria ina-cabados

Desse modo apresentamos e propomos um breve olhar sobre dois textos teoacutericos escritos pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos A influecircncia da engenharia nas armas nacionais com data de 1924 e Apontamentos para uma esteacutetica natildeo aristo-teacutelica com as datas de dezembro de 1924 e janeiro de 1925 Nosso intento primeiro eacute mostrar como as ideias do heterocircnimo pessoano aproximam (ou afastam) arte ciecircncia e cultura colo-cando-se como antagonista agrave poeacutetica claacutessica em especial a Poeacutetica de Aristoacuteteles e buscando se afirmar enquanto nova te-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

90

oria esteacutetica a qual corpo e sensaccedilotildees teratildeo maior afirmaccedilatildeo no processo criativo Ressaltamos por fim que o nosso interesse maior eacute fazer emergir o pensamento pessoano natildeo o colocando em condiccedilatildeo de mero suporte de comparaccedilatildeo para teorias de outros autores ou fazendo aplicaccedilotildees desses da teoria desses autores

2

A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aponta-mento com data de 1924 parece figurar como introduccedilatildeo ldquogecirc-neserdquo dos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica As-sinado pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos dito poeta futurista e engenheiro naval o primeiro texto supracitado lacocircnico e inaca-bado inicia-se trazendo como epiacutegrafe uma frase de Leonardo da Vinci que diz ldquoQuanto mais uma arte traz consigo a fadiga do corpo tanto mais ela eacute vilrdquo1 Tal referecircncia ao artista italiano poderia tender nossos julgamentos para a aceitaccedilatildeo da presen-ccedila marcante da esteacutetica renascentista na reflexatildeo proposta por Aacutelvaro Campos caso a posiccedilatildeo do poeta da Ode triunfal natildeo fosse contundentemente contraacuteria a continuidade de tudo o que foi preservado pela tradiccedilatildeo Logo a batalha do poeta contra a accedilatildeo da ldquopermanecircnciardquo da ldquotradiccedilatildeordquo e suas consequecircncias eclode quando ele expotildee sua ldquoteoriardquo acerca da civilizaccedilatildeo

Haacute muito sustento a teoria que a civilizaccedilatildeo eacute a cria-ccedilatildeo de estiacutemulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reaccedilatildeo a eles A civilizaccedilatildeo eacute pois a tendecircncia para a morte pelo desequiliacutebrio A coisa mais inuacutetil que a ficccedilatildeo real chamada povo pode fazer eacute resistir a civilizar-se por processos de civilizaccedilatildeo Existir eacute natildeo se dei-xar matar ser civilizado eacute inventar reaccedilotildees para os estiacutemulos que excedem jaacute a reaccedilatildeo possiacutevel Isto eacute inventar reaccedilotildees artificiais quer dizer civilizadas contra a proacutepria civilizaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445)

A civilizaccedilatildeo para Campos representa a negaccedilatildeo dos estiacutemulos naturais (vitais) logo o homem civilizado torna-se in-capaz da proacutepria criaccedilatildeo pela imposiccedilatildeo da carga de estiacutemulos civilizadores que atuam de modo incisivo sobre ele Por outro lado torna-se inuacutetil a resistecircncia agrave civilizaccedilatildeo atraveacutes do proacuteprio processo civilizador vigente ao longo do tempo porque efetiva-mente agindo assim natildeo haveria ruptura mas a continuidade do ldquomesmordquo sob um mascaramento de formas diversificadas tais como as crenccedilas e os valores Civilizar-se dessa forma tende a morte pelo desequiliacutebrio visto que meios artificiais implicam

1 ldquoQuanto piugrave umrsquoarte porta seco fatica di corpo tanto piugrave egrave vilerdquo ndash Consultoria e traduccedilatildeo em liacutengua italiana de Sylvia Gouveia doutoranda em Literatura pelo PoacutesLitUnB

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

91

anulaccedilatildeo das forccedilas vitais de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo ou seja a vida subsiste pelo equiliacutebrio entre tais forccedilas as quais satildeo igualadas ao ldquoanabolismo e o catabolismo dos fisiologistasrdquo (PESSOA 2015 p445)

Segundo o ciclo natural a forccedila que ldquoinsisterdquo cria partindo da destruiccedilatildeo uma vez que destruiccedilatildeo significa transformaccedilatildeo concomitantemente a forccedila que subsiste permite a criaccedilatildeo ao mesmo tempo em que impede a destruiccedilatildeo logo a transforma-ccedilatildeo para o outro Contudo na sociedade ordem posta acima da ordem dos organismos vivos (ordem bioacutetica) ocorre a inver-satildeo da ldquodinacircmica dos fatores agentesrdquo assim ldquoa tendecircncia para subsistir eacute que mata a tendecircncia para natildeo subsistir eacute que faz vi-ver Isto porque a sociedade eacute um corpo artificial e vive por isso segundo leis que satildeo contraacuterias agraves leis naturaisrdquo (Ibidem) Por essa artificialidade do corpo social Aacutelvaro de Campos expotildee sua problematizaccedilatildeo partindo da questatildeo da ldquosubsistecircnciardquo isto eacute da questatildeo acerca de um estado de permanecircncia que seria causa mortis dos instintos do homem nas sociedades

O que faz subsistir nas sociedades A tradiccedilatildeo a continuidade a tendecircncia para permanecer isto eacute para natildeo viver E a tradiccedilatildeo a tendecircncia para permanecer tem trecircs formas ndash o apego ao passado que eacute tradiccedilatildeo vulgar o ape-go ao presente que eacute a moda e o apego ao futuro que eacute o ideal social em que se confia O que faz viver isto eacute natildeo sub-sistir nas sociedades A antitradiccedilatildeo a tendecircncia para natildeo permanecer E a tendecircncia para natildeo permanecer tem soacute uma forma ndash o apego ao natildeo passado ao natildeo presente e ao natildeo futuro Isto quer dizer o apego ao abstrato e ao ideal em que natildeo se confia Por isso a forccedila que conserva as sociedades eacute a inteligecircncia de abstraccedilatildeo e imaginaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445-446)

A vida para nas invenccedilotildees de dispositivos ldquoabioacuteticosrdquo ou seja nos costumes embebidos da necessidade de perma-necircncia de conservaccedilatildeo Tais dispositivos tecircm-se manifestado conforme vimos sob trecircs formas poreacutem girando em torno de um eixo apenas o eixo do ldquoapegordquo volvendo-se desse modo alternadamente aos periacuteodos de tempo representados pela tra-diccedilatildeo vulgar pela moda e pela confianccedila em um ideal social porvir Todavia o antiacutedoto contra a praga que potildee por terra a vida opera no mesmo eixo do ldquoapegordquo girando em sentido con-traacuterio ao sentido da permanecircncia das crenccedilas do tradicionalis-mo do conservadorismo A trajetoacuteria defendida por Aacutelvaro de Campos quer atuar apegando-se ldquoao abstrato e ao ideal em que natildeo se confiardquo Enfim o que afirmaraacute a vida nas sociedades eacute a substituiccedilatildeo do apego ao ldquoidordquo ao ldquoestilo prevalenterdquo de cada eacutepoca o ldquoporvirrdquo pelo ldquodevirrdquo

A conservaccedilatildeo do estado de permanecircncia ou a tendecircn-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

92

cia que ldquofaz morrerrdquo nas sociedades age atraveacutes da ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo e da ldquoimaginaccedilatildeordquo Estes dois agentes por sua vez desdobram-se nas formas ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo donde

A matemaacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto da essecircncia da experiecircncia o uacutenico criteacuterio de verdadeira ob-jetividade que temos eacute o criteacuterio de matematizaccedilatildeo A criacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto de ela ser nossa o uacutenico criteacuterio verdadeiro de subjetividade que temos eacute o da confron-taccedilatildeo natildeo das nossas impressotildees com as cousas mas das cousas com nossas impressotildees (PESSOA 2015 p445)

Temos aiacute a confrontaccedilatildeo de duas formas de percepccedilatildeo e juiacutezo que reforccedilam o ciclo da permanecircncia do ldquomesmordquo o ju-iacutezo que parte do universal (abstrato) para a singularidade se atendo ao criteacuterio de objetividade pela matematizaccedilatildeo que aqui entendemos como meio de ordenaccedilatildeo das coisas e a criacutetica que parte da experiecircncia singular obedecendo a um criteacuterio que relaciona o conteuacutedo das nossas percepccedilotildees (impressotildees) vin-culando-o agraves coisas que percebemos pelas sensaccedilotildees Parece--nos estar criado por essa via mais uma delimitaccedilatildeo que nos prende a tendecircncia de ldquoordemrdquo e ldquopermanecircnciardquo dos processos civilizatoacuterios mencionados anteriormente Acerca da definiccedilatildeo de ldquocriticardquo2 Campos ressalta que

Deve-se compreender que entendo por criacutetica toda a atividade criacutetica a criacutetica no sentido em que emprego a palavra inclui toda forma de atividade que ou natildeo aceita ou quer substituir a objetividade da experiecircncia Assim a arte eacute uma forma de criacutetica porque fazer arte eacute confessar que a vida ou natildeo presta ou natildeo chega Assim por assim dizer a parte dogmaacutetica da religiatildeo (natildeo a sua parte social nem a sua parte metafiacutesica) eacute uma forma de criacutetica porque crer numa cousa sem ser com uma razatildeo embora aparente (como acontece na metafiacutesica que procura explicar) natildeo sendo essa cousa um elemento da experiecircncia (objetiva) eacute querer substituir essa experiecircncia (PESSOA 2015 p446)

Diante do exposto podemos inferir que o conjunto das ideias e praacuteticas civilizatoacuterias arraigadas na tradiccedilatildeo da perma-necircncia do ldquomesmordquo agem de modo constante a minar as forccedilas vitais Ora com civilizaccedilatildeo natildeo haacute vida mas morte pelo dese-quiliacutebrio de tais forccedilas conforme vimos Assim tanto as formas de ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo quanto de ldquoimaginaccedilatildeordquo sendo esta desdobrada em ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo atuam como ins-trumentos de evasatildeo da objetividade da experiecircncia seja arte

2 Em manuscrito o texto eacute complementado no final ldquoA criacutetica eacute em suma todo o artifiacutecio que eacute feito com inteligecircncia e sem fim social nenhum Desde que sirva um ideal em vez de uma impressatildeo [] a criacutetica eacute falsa como criacutetica natildeo eacute criacutetica em suma mas soacute opiniatildeordquo Cf PESSOA 2015 p678-688

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

93

seja religiatildeo Nesse caso a arte eacute que nos interessa e essa mesma arte como forma de criacutetica desponta-se com duas faces por um lado ldquoa vida natildeo prestardquo logo faccedilo arte para ldquosuportar a vidardquo aliviar o ldquoFadordquo em um exerciacutecio redentorista atraveacutes da obra por outro admite-se a brevidade e o pouco que a vida seja e passa-se a afirmar e utilizar das forccedilas que se dispotildee para afirmaccedilatildeo objetiva e plena da existecircncia Vale assim lem-brar de uma passagem de uma ode de Aacutelvaro de Campos ldquoTal-vez porque a alma eacute grande e a vida pequenaE todos os gestos natildeo saem do nosso corpoE soacute alcanccedilamos onde o nosso braccedilo chegaE soacute vemos ateacute onde chega o nosso olhar rdquo (PESSOA 2015 p58)

Os textos em tela podem ser entendidos como um esbo-ccedilo daquilo que Aacutelvaro de Campos denominou ldquoesteacutetica natildeo-aris-toteacutelicardquo Nosso proacuteximo intento eacute o de mostrar de forma concisa essa ldquodoutrinardquo que Campos afirma ter visto aplicada em ape-nas trecircs poetas ldquonos assombrosos poemas de Walt Whitmanrdquo ldquonos poemas mais que assombrososrdquo do mestre Caeiro e nas duas odes a Ode triunfal e a Ode mariacutetima de sua proacutepria au-toria (PESSOA 2015 p436-444)

3

Divididos em duas seccedilotildees os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica partem no primeiro momento do se-guinte pressuposto haacute as geometrias natildeo-euclidianas ou seja que se baseiam em postulados diferentes dos formulados por Euclides de Alexandria e chegam a resultados tambeacutem diferen-tes Cada uma das geometrias possui desenvolvimentos loacutegi-cos peculiares sendo ldquosistemas interpretativos independentes independentemente aplicaacuteveis agrave realidaderdquo Do mesmo modo que se formaram as geometrias que natildeo seguiam os postulados euclidianos seria uacutetil a formaccedilatildeo de uma esteacutetica que natildeo fosse pautada nos princiacutepios aristoteacutelicos Logo Aacutelvaro de Campos esclarece

Chamo de esteacutetica aristoteacutelica agrave que pretende que o fim da arte eacute (sic) a beleza ou dizendo melhor a produccedilatildeo nos outros da mesma impressatildeo que a que nasce da con-templaccedilatildeo ou sensaccedilatildeo das coisas belas Para arte claacutessica ndash e as suas derivadas a romacircntica a decadente e outras assim - a beleza eacute o fim divergem apenas os caminhos para esse fim exatamente como em matemaacutetica se podem fazer diversas demonstraccedilotildees do mesmo teorema A arte claacutessica deu-nos obras grandes e sublimes o que natildeo quer dizer que a teoria de construccedilatildeo dessas obras seja certa ou que seja a uacutenica teoria ldquocertardquo Eacute frequente aliaacutes tanto na vida teoacuterica como na pratica chegar-se a um resultado certo por proces-sos incertos ou mesmo errados Creio poder formular uma

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

94

esteacutetica natildeo na ideia de beleza mas na de forccedila ndash tomando eacute claro a palavra forccedila no seu sentido abstrato e cientiacutefico porque se fosse no vulgar tratar-se-ia de certa maneira ape-nas de uma forma disfarccedilada de beleza Esta nova esteacutetica ao mesmo tempo que admite como boas grande nuacutemero de obras claacutessicas ndash admitindo-as poreacutem por uma razatildeo diferen-te da dos aristoteacutelicos que foi naturalmente tambeacutem a dos seus autores - estabelece uma possibilidade de se constru-iacuterem novas espeacutecies de obras de arte que quem sustente a teoria aristoteacutelica natildeo poderia prever ou aceitar (PESSOA 2015 p436-437)

A arte na esteacutetica natildeo-aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos origina-se do mesmo princiacutepio vital de toda atividade humana gerada pela ldquoforccedila ou energiardquo Entatildeo sendo a arte ldquoum produto de entes vivosrdquo conforme ele disse isto eacute ldquoum produto da vidardquo as forccedilas que se manifestam na obra satildeo as mesmas formas as quais se manifestam na vida Por essa via a produccedilatildeo ar-tiacutestica tende a acontecer a partir das forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo semelhantes ao ldquoanabolismordquo e ldquocatabolismordquo orgacircnicos No entanto ldquosem a coexistecircncia e equiliacutebrio destas duas forccedilas natildeo haacute vida pois a pura integraccedilatildeo eacute a ausecircncia da vida e a pura desintegraccedilatildeo eacute a morterdquo (PESSOA 2015 p437) Ademais ldquoa vida eacute uma accedilatildeo acompanhada automaacutetica e intrinsecamente da reaccedilatildeo correspondente E eacute no automa-tismo da reaccedilatildeo que reside o fenocircmeno especiacutefico da vidardquo O ldquovalor da vidardquo ou a ldquovitalidade do organismordquo estaacute condicionado agrave ldquointensidaderdquo igual e paralela de accedilatildeo e reaccedilatildeo a fim de que se mantenha o equiliacutebrio e que se evite uma proporcionalidade inversa na accedilatildeo e reaccedilatildeo das forccedilas Nesse sentido Aacutelvaro de Campos conclui ldquoAssim o equiliacutebrio vital eacute natildeo um fato dire-to ndash como querem para a arte (natildeo esqueccedilamos o fim destes apontamentos) os aristoteacutelicos ndash mas o resultado abstrato do encontro de dois fatosrdquo

Na concepccedilatildeo de Campos ldquoa arte eacute feita por se sentir e para se sentir ndash sem o que seria ciecircncia ou propagandardquo logo ldquoa sensibilidade eacute a vida da arterdquo No interior da sensibilidade deve haver accedilatildeo e reaccedilatildeo atuando sobre a estrutura equilibra-da de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo com a finalidade de fazer existir a arte Aacutelvaro de Campos crecirc que sua teoria ldquoeacute mais loacutegi-ca ndash se eacute que haacute loacutegicardquo do que a aristoteacutelica pelo fato de que na sua teoria ldquoa arte fica o contraacuterio da ciecircncia ndash entendemos aqui ciecircncia por teacutecnica ndash o que na aristoteacutelica natildeo acontecerdquo (Ibidem p 242) Segundo Georg Rudolf Lind a diferenccedila feita por Campos entre a teoria aristoteacutelica e a natildeo-aristoteacutelica im-plicam a primeira a qual conforme afirmou o poeta tem por finalidade ldquoagradarrdquo estabelece-se em ldquo1) beleza 2) inteligecircn-cia e 3) unidaderdquo a segunda enunciada por Campos reivindica ldquo1) forccedila 2) sensibilidade e 3) unidaderdquo (LIND 1981 p 226) Das ldquoanalogias abstrusasrdquo observa Lind o poeta e engenheiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

95

daacute um salto abruptamente nas consideraccedilotildees a fim de concluir que ldquoa esteacutetica aristoteacutelica tende do individual para o geral () a natildeo-aristoteacutelica em contrapartida do geral para o particularrdquo (Ibidem p 227) Se a primeira parte dos Apontamentos eacute passiacute-vel de muitas ressalvas a segunda o eacute mais ainda Se o projeto de uma nova teoria esteacutetica eacute faliacutevel ainda escreve Lind ldquoas demonstraccedilotildees pseudoloacutegicas da 2ordf parte contecircm ainda uma quantidade maior de errosrdquo (LIND 1981 p 227) Ainda se com-parado ao Ultimatum seu manifesto de vanguarda a referida seccedilatildeo de tais apontamentos pouco foi modificada sendo dessa maneira uma repeticcedilatildeo das mesmas ideias do manifesto

A complexidade e as abstraccedilotildees dos conceitos criados por Aacutelvaro de Campos no intento de fundar uma teoria esteacutetica vigorosa contraacuteria agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica fizeram com que seu projeto com ares futuristas de unir ciecircncia e arte falhasse con-forme acreditam comentadores tais como Almeida Faria Joatildeo Gaspar Simotildees e o jaacute citado Georg Rudolf Lind Entretanto ponto consideravelmente forte desenvolvido pelo natildeo-aristote-lismo de Campos foi sem duacutevida a postura incisiva no combate aos atos civilizatoacuterios que ldquofazem morrerrdquo no homem sua forccedila natural instintiva de reaccedilatildeo e criaccedilatildeo

Nesse sentido cremos que a teoria de Campos tenha saiacutedo vitoriosa o escrito sob o tiacutetulo A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aparece conforme dissemos no iniacutecio de modo preliminar agrave ideia de negaccedilatildeo da esteacutetica de Aristoacuteteles A relaccedilatildeo desse primeiro momento das ideias de Campos com os seus Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica pode ser estabelecida quando consideramos que a aceitaccedilatildeo dos termos aristoteacutelicos correlatos harmonia e beleza tende a um princiacutepio de arranjo estruturado pela permanecircncia aniquiladora dos ins-tintos naturais natildeo harmocircnicos do homem Ora se desarmonia e feiuacutera (fealdade na lsquoterminologiarsquo pessoana) constituem tam-beacutem a natureza realmente natildeo haacute sentido em crer-se apenas na arte fundada na estreita relaccedilatildeo da harmonia das partes de um todo implicando princiacutepio de beleza Contudo haacute no pensa-mento de Campos um requerimento de equiliacutebrio entre as forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo que poderia ser entendido tal como um princiacutepio de harmonia do mesmo modo que em Aris-toacuteteles se o plano teoacuterico do poeta da Ode triunfal natildeo fosse baseado na ideia de ldquoforccedilardquo

4

Diante da possibilidade de a sensibilidade imperar no processo de fazer artiacutestico abrimos caminhos para pensar na substacircncia fiacutesica ou na estrutura do ser humano o corpo Quan-do Fernando Pessoa esboccedila a possibilidade de uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica mesmo natildeo concluiacuteda mesmo natildeo sendo para

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

96

alguns aplicaacutevel agrave proacutepria obra ou a qualquer obra que seja her-damos uma fenda larga como passagem pelo muro das repre-sentaccedilotildees cristalizadas Eacute muito evidente que o seu linguajar se aproprie da biologia e da matemaacutetica num diaacutelogo estabelecido entre arte e ciecircncia esteacutetica e epistemologia esteacutetica e eacutetica Poreacutem evidente tambeacutem eacute que o mesmo natildeo desloca os ins-tintos do gecircnero humano para fora da sociedade Ao contraacuterio observa que esse meio artificial atenta de modo frequente agraves forccedilas vitais tendendo agrave perenidade e que cabe ao ser humano criador de arte o artista atraveacutes da sensibilidade das sensa-ccedilotildees recebidas pelo seu corpo se desvencilhar das amarras da tradiccedilatildeo que faz morrer Morrer no sentido de anular-se natildeo no de transformar-se dando lugar a outra coisa agrave outra ldquovidardquo Um poeta absorve impressotildees de toda ordem das vivecircncias faz com que as mesmas ldquomorramrdquo nele transformando-as para dar agrave luz ao poema que por sua vez provocaraacute sensaccedilotildees no leitor ldquoE os que leem o que escreveNa dor lida sentem bemNatildeo as duas que ele teveMas soacute a que eles natildeo tecircmrdquo (PESSOA 2001 p164-165)

Joseacute Gil em Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sen-saccedilotildees mesmo natildeo abordando as reflexotildees sobre a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica aproximou os escritos de Campos ao conceito de ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo de Deleuze e Guattarri o relacionando ao ldquoplano de consciecircnciardquo criado pelo poeta (GIL 1998 p66-75) Em suma a anaacutelise de Gil se estabelece na poesia de Aacutelvaro de Campos colocando o heterocircnimo pessoano enquanto ldquoanali-sador de sensaccedilotildeesrdquo no espaccedilo abstrato revelado nos poemas Entatildeo considerando as observaccedilotildees do criacutetico portuguecircs seria possiacutevel uma relaccedilatildeo entre o natildeo-aristotelismo pensado pelo heterocircnimo sensacionista e o seu fazer poeacutetico Da perspectiva sobre as sensaccedilotildees e do enfrentamento dos atos civilizatoacuterios que negam a vida no plano da imanecircncia pelo alcance da bele-za por meios natildeo-tradicionais a resposta eacute sim

Por fim a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica figura natildeo apenas en-quanto pensamento oposto agraves poeacuteticas claacutessicas aristoteacutelicas mas tambeacutem se apresenta como marco natildeo-normativo natildeo--prescritivo de um modelo a ser seguido ainda que seu autor afirme que a finalidade seja a mesma o alcance da beleza se-guindo meios distintos o mesmo autor desconstroacutei a rigidez da tradiccedilatildeo apontando-nos uma via de acesso agrave arte pelo corpo Uma via de matildeo dupla na qual tanto quem faz da arte um acon-tecimento independente do suporte (palavra imagem som etc) quanto quem exerce a fruiccedilatildeo seja perpassado e afetado de alguma forma pela expressatildeo esteacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

97

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Poeacutetica 7ed Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterios e apecircndices de Eudoro de Sousa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 2003

GIL Joseacute Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sensaccedilotildees Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 1988

LIND Georg Rudolf Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1981 (Estudos Portugue-ses)

LOPES Teresa Rita Fernando Pessoa et le drame symbo-liste heacuteritage et creacuteation Paris De La Difeacuterence 2004 (Les Essais)

PESSOA Fernando Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica In___ Obra completa de Aacutelvaro de Campos Edi-ccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p436-444

___ ANEXO Geacutenese dos ldquoApontamentosrdquo In___ Obra com-pleta de Aacutelvaro de Campos Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p445-446

___ Obra poeacutetica Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001

___ Obra em prosa Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Cle-onice Berardineli 2ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

98

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoFernando Pessoa and his Philosophy of Composition

Palavras-chave Heteroniacutemia identidade natildeo-identidade autorreflexatildeo desper-sonalizaccedilatildeo personificaccedilatildeo forma sensaccedilatildeoKeywords Heteronym identity non-identity cogito self-reflexion depersonali-zation personification form sensation

RESUMO Examinarei alguns niacuteveis formais do paradoxo e da contradiccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro de Fernando Pessoa explicitando aspectos formais do processo de desper-sonalizaccedilatildeo que move sua escrita poeacutetica Mostrarei em segui-da como ao trilhar o caminho de despersonalizaccedilatildeo aberto pela certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos conden-sa estilhaccedilos de noccedilotildees reflexivas do sujeito levando agraves uacuteltimas consequecircncias a despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico tal como teori-zado por Fernando Pessoa

ABSTRACT This article aims to show some formal levels of paradox and contradiction on the dramatic poem The Sailor taking into account the subjective drama that moves its poetic writing Hope to show how Aacutelvaro de Campos treading the path of depersonalization opened by the sense-certainty of Alberto Caeiro condenses fragments of reflective notions of the subject as propelling elements of depersonalization such as it is treated by Pessoa

1 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Quando Fernando Pessoa escreve sobre os heterocircni-mos ele pensa imediatamente no ato de invenccedilatildeo literaacuteria ca-paz de unir sob uma forma superior de composiccedilatildeo os efeitos dramaacuteticos da despersonalizaccedilatildeo e as formas de expressatildeo correntes na tradiccedilatildeo literaacuteria ocidental A despersonalizaccedilatildeo figura como responsaacutevel pela reuniatildeo de diferentes graus de elaboraccedilatildeo do estilo numa forma superior de composiccedilatildeo Essa ideia encontra-se particularmente desenvolvida em dois frag-mentos em que o poeta distingue os cinco ldquograus da poesia liacuteri-cardquo entendendo-os como progressatildeo intensiva da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica

O terceiro grau da poesia liacuterica eacute aquele em que o poeta ainda mais intelectual comeccedila a despersonalizar-se a sentir natildeo jaacute porque sente mas porque pensa que sente a sentir estados de alma que realmente natildeo tem simplesmente por-

Rubens Joseacute da Rocha

Doutorando pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia da UFSCar E-mail ens_rubensyahoocombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

99

que os compreende Estamos na antecacircmara da poesia dra-maacutetica na sua essecircncia iacutentima O temperamento do poeta seja qual for estaacute dissolvido pela inteligecircncia A sua obra seraacute unificada soacute pelo estilo uacuteltimo reduto da sua unidade espiri-tual da sua coexistecircncia consigo mesmo O quarto grau da poesia liacuterica eacute aquele muito mais raro em que o poeta mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo entra em plena despersonalizaccedilatildeo Natildeo soacute sente mas vive os estados de alma que natildeo tem directamente Em grande nuacutemero de ca-sos cairaacute na poesia dramaacutetica propriamente dita como fez Shakespeare poeta substancialmente liacuterico erguido a dramaacute-tico pelo espantoso grau de despersonalizaccedilatildeo que atingiu (PESSOA 1993 pp 274-275)1

Ao lado de noccedilotildees como ldquotemperamentordquo ldquosentimentordquo ldquoemoccedilatildeordquo ldquoimaginaccedilatildeordquo e ldquointeligecircnciardquo a despersonalizaccedilatildeo aparece como um dos conceitos centrais na caracterizaccedilatildeo do eu liacuterico e das personagens dramaacuteticas O poeta compreende o conceito segundo a ideia de uma progressatildeo expressiva que se desdobra da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica e alcanccedila sua forma ideal de expressatildeo na poesia heterocircnima A poesia liacuterica eacute o gecircnero que define as duas primeiras etapas Na terceira completa-se o primeiro ciclo de despersonalizaccedilatildeo com o deslocamento da unidade expressiva do eu liacuterico para uma posiccedilatildeo coadjuvante em face agraves exigecircncias de unidade da forma dramaacutetica Nas duas etapas finais o poeta descreve a po-esia heterocircnima em comparaccedilatildeo agrave forma dramaacutetica em particu-lar nas peccedilas de Shakespeare em que o monoacutelogo se sobrepotildee ao diaacutelogo entre as personagens

No primeiro grau de despersonalizaccedilatildeo a escrita produz a unidade expressiva do eu liacuterico como forma poeacutetica ligada agrave personalidade do autor A forma poeacutetica ainda natildeo goza de au-tonomia com relaccedilatildeo agrave ldquomaneira de sentirrdquo do poeta (seu tempe-ramento) estando a unidade do eu liacuterico diretamente vinculada agrave sua atitude psicoloacutegica O segundo grau ocorre quase exclu-sivamente no interior da forma poeacutetica quando o temperamen-to do poeta e o estilo encontram-se enredados num complexo movimento de reflexatildeo na busca de uma saiacuteda possiacutevel para a

1 A esta passagem corresponde este trecho de um segundo texto so-bre os graus da poesia liacuterica ldquoUm passo mais na escala poeacutetica [terceiro grau] e temos o poeta que eacute uma criatura de sentimentos vaacuterios e fictiacutecios mais imaginativo do que sentimental e vivendo cada estado de alma antes pela inteligecircncia que pela emoccedilatildeo Este poeta exprimir-se-aacute como uma mul-tiplicidade de personagens unificadas natildeo jaacute pelo temperamento e o estilo pois que o temperamento estaacute substituiacutedo pela imaginaccedilatildeo e o sentimento pela inteligecircncia mas tatildeo-somente pelo simples estilo Outro passo na mes-ma escala de despersonalizaccedilatildeo [quarto grau] ou seja de imaginaccedilatildeo e temos o poeta que em cada um de seus estados mentais vaacuterios se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza de sorte que vivendo ana-liticamente esse estado da alma faz dele como que a expressatildeo de um ou-tro personagem e sendo assim o mesmo estilo tende a variarrdquo (PESSOA 1993 pp 274-275)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

100

oposiccedilatildeo entre sentir e pensar (emoccedilatildeo e inteligecircncia)No terceiro grau ocorre a despersonalizaccedilatildeo da ldquomanei-

ra de sentirrdquo que conferia unidade ao eu liacuterico O movimento de autorreflexatildeo forccedila a forma poeacutetica a distanciar-se ainda mais da atitude psicoloacutegica do autor cindindo o eu liacuterico em duas ou mais identidades Ocorre entatildeo a personificaccedilatildeo dessas identi-dades em personagens que dialogam e interagem segundo exi-gecircncias formais do gecircnero dramaacutetico Como veremos adiante a personificaccedilatildeo seraacute compreendida natildeo apenas como figura de estilo cuja funccedilatildeo consiste em atribuir caracteriacutesticas da per-sonalidade humana a animais objetos e ideias abstratas mas tambeacutem como composiccedilatildeo de uma identidade a qual se atribui alternadamente segundo certa dinacircmica de oposiccedilatildeo agrave natildeo-i-dentidade o estatuto ficcional de uma maacutescara uma figura ou de uma personalidade heteroniacutemica

No quarto grau inicia-se a despersonalizaccedilatildeo da forma dramaacutetica A natildeo-identidade entre as maneiras de sentir pensar e falar das personagens promove a suspensatildeo das unidades de tempo e espaccedilo observando-se no quinto grau de desper-sonalizaccedilatildeo a personificaccedilatildeo da alteridade simboacutelica do drama (o autor o puacuteblico o leitor) As personagens abandonam aos poucos a seacuterie de oposiccedilotildees entre o pensar o sentir o falar e o agir para personificar a forma poeacutetica com a atitude psicoloacutegica de personagens que falam e atuam simultaneamente como au-tor ator diretor puacuteblico e leitor de seu proacuteprio drama subjetivo

2 A despersonalizaccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro

O poema dramaacutetico O Marinheiro eacute um dos passos de-cisivos na caracterizaccedilatildeo do processo de despersonalizaccedilatildeo teorizado pelo poeta2 Escrito em 1913 e publicado no primeiro volume da revista Orpheu em 1915 o poema conjuga caracte-riacutesticas do terceiro e quarto graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico Estampada no frontispiacutecio da obra a noccedilatildeo de ldquodrama es-taacutetico em um quadrordquo3 pode ser interpretada como execuccedilatildeo de um plano de superaccedilatildeo da esteacutetica aristoteacutelica plano que se en-contra na base do drama subjetivo nos heterocircnimos4 Desde o 2 Nas palavras de Carlos Felipe Moiseacutes ldquoOs poucos estudiosos que se manifestaram a respeito poreacutem sugerem de um modo ou de outro que eacute um texto decisivo para a compreensatildeo do conjunto da poesia pessoana quando menos porque o seu lsquodrama estaacutetico em um quadrorsquo como o chamou o poeta pode ser visto como lsquoensaiorsquo preliminar em torno de algumas linhas de forccedila da obra heteroniacutemica ainda praticamente toda por criarrdquo (MOISEacuteS CF Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p163)3 Praticado e teorizado por dramaturgos simbolistas como Strindberg e Maeterlinck Cf LOPES MTR Fernando Pessoa et le Drame Symboliste4 Em sua proposta de superaccedilatildeo do pensamento aristoteacutelico Aacutelvaro de Campos opotildee ao conceito de beleza o conceito de forccedila cuja principal ca-racteriacutestica seria o embate entre os princiacutepios de integraccedilatildeo e desintegraccedilatildeo orgacircnica da vida ldquoA arte para mim eacute como toda a atividade um indiacutecio de forccedila ou energia mas como a arte eacute produzida por entes vivos sendo pois

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

101

iniacutecio do diaacutelogo eacute possiacutevel notar uma seacuterie de atitudes que faz as trecircs personagens recuar diante da exigecircncia tradicional da accedilatildeo Um recuo representado natildeo soacute pela disposiccedilatildeo espacial de cada personagem (que se encontram sentadas e portanto inertes diante de ldquouma janela alta e estreitardquo no interior de ldquoum castelo antigordquo) mas tambeacutem pela sequecircncia de enunciaccedilotildees negativas precedidas pelo adveacuterbio de negaccedilatildeo

PRIMEIRA VELADORA mdash Ainda natildeo deu hora nenhu-ma

SEGUNDA mdash Natildeo se pode ouvir Natildeo haacute reloacutegio aqui perto Dentro em pouco deve ser dia

TERCEIRA mdash Natildeo o horizonte eacute negroPRIMEIRA mdash Natildeo desejais minha irmatilde que nos en-

tretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falso

SEGUNDA mdash Natildeo natildeo falemos nisso De resto fo-mos noacutes alguma cousa

PRIMEIRA mdash Talvez Eu natildeo sei Mas ainda assim sempre eacute belo falar do passado As horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircncio Por mim tenho estado a olhar para a chama daquela vela Agraves vezes treme ou-tras torna-se mais amarela outras vezes empalidece Eu natildeo sei por que eacute que isso se daacute Mas sabemos noacutes minhas irmatildes por que se daacute qualquer cousa

(uma pausa) TERCEIRA mdash Por que natildeo haveraacute reloacutegio neste quar-

to SEGUNDA mdash Natildeo sei Mas assim sem o reloacutegio

tudo eacute mais afastado e misterioso A noite pertence mais a si proacutepria Quem sabe se noacutes poderiacuteamos falar assim se soubeacutessemos a hora que eacute

PRIMEIRA mdash Minha irmatilde em mim tudo eacute triste Passo Dezembros na alma Estou procurando natildeo olhar para a janela Sei que de laacute se vecircem ao longe montes Eu fui feliz para aleacutem de montes outrora Eu era pequeni-na Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que natildeo mas tirassem Natildeo sei o que isto tem de irre-paraacutevel que me daacute vontade de chorar Foi longe daqui que isto pocircde ser Quando viraacute o dia

TERCEIRA mdash Que importa Ele vem sempre da mes-ma maneira sempre sempre sempre

(uma pausa)5

um produto da vida as formas da forccedila que se manifestam na arte satildeo as formas da forccedila que se manifestam na vidardquo (Obra em Prosa Apontamentos para uma Esteacutetica natildeo Aristoteacutelica p241)5 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp441-442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

102

Logo no iniacutecio do poema trecircs irmatildes velam a morte de uma quarta que se encontra no centro do quarto estendida so-bre um caixatildeo O diaacutelogo comeccedila quando uma delas nota a au-secircncia de reloacutegio no quarto A ausecircncia de accedilatildeo dramaacutetica entra aos poucos em evidecircncia com a transposiccedilatildeo do tempo linear do reloacutegio para o tempo psicoloacutegico das veladoras As enunciaccedilotildees negativas impulsionam o diaacutelogo em sentido inverso ao tempo linear (o drama inicia-se ao anoitecer e termina ao romper do dia) o que leva as personagens a buscar no passado o sentido necessaacuterio para suprir a ausecircncia de accedilatildeo Na busca pelo senti-do o diaacutelogo se sobrepotildee agrave accedilatildeo ldquoNeste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar ten-do Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes delerdquo Falar do passado implica natildeo soacute interromper o ritmo da accedilatildeo dramaacute-tica mas tambeacutem sobrepor agrave pulsatildeo linear do reloacutegio (para elas inexistente) uma pulsatildeo lacunar de origem psicoloacutegica6

A transposiccedilatildeo do tempo linear para o tempo psicoloacutegico ocorre a partir da oposiccedilatildeo entre o silecircncio e a fala das velado-ras ldquoAs horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircnciordquo A opo-siccedilatildeo entre o silecircncio e a fala aparece marcada pelas reticecircncias e pausas que costumam entrecortar natildeo somente a fala das personagens como tambeacutem os momentos criacuteticos do diaacutelogo Se de iniacutecio a transposiccedilatildeo psicoloacutegica do tempo7 ldquoPasso De-zembros na almardquo representa o recuo da personagem diante da accedilatildeo ela representaraacute a seguir a ultrapassagem do tempo psicoloacutegico pela accedilatildeo estaacutetica do sonho A oposiccedilatildeo entre o recuo da accedilatildeo em direccedilatildeo ao passado e a ultrapassagem do presente pelo sonho constitui um continuum temporal represen-tado pelo quarto circular do castelo antigo Ao destacar-se da pulsatildeo linear do reloacutegio a oposiccedilatildeo entre as atitudes de recuo e ultrapassagem impulsiona a fala das personagens (o vento e a luz cambiante da vela) para fora da clausura subjetiva ldquoNatildeo desejais minha irmatilde que nos entretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falsordquo ou para o plano horizontal da escrita (ldquoNatildeo o horizonte eacute negrordquo) Um complexo movimento de reflexatildeo sobressalente ao jogo dos significantes (assonacircn-cia e aliteraccedilatildeo) interfere diretamente na orquestraccedilatildeo simboacuteli-ca do poema A ultrapassagem da accedilatildeo dramaacutetica pelo sonho personificada na figura da irmatilde morta torna-se cada vez mais evidente com a recusa da segunda veladora de levar a cabo o gesto de se levantar ou seja o gesto de projetar-se em direccedilatildeo 6 Maria Teresa Rita Lopes comenta da seguinte maneira essa ausecircn-cia temporal ldquoCe nrsquoest que coupeacutees de tout contact avec le monde quotidien en flottant dans ce lsquonulle-temps et dans de lsquonulle partrsquo du recircve que leurs paro-le srsquoeacutepanouissent en toute liberteacute jusqursquoagrave leur paraicirctre eacutetrangegraveres agrave elles-mecirc-mes (RITA LOPES MariaTeresa Fernando Pessoa et le Drame Symboliste Heritage et Creation p189)7 BACHELARD Gaston A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo pp85-103 Mais tar-de para fixar com maior precisatildeo a singularidade do parto heteroniacutemico o poeta sentiraacute ainda necessidade de sobrepor ao tempo psiacutequico dos heterocirc-nimos o tempo astroloacutegico calcado nos dados objetivos de nascimento de cada heterocircnimo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

103

ao futuro por meio de uma accedilatildeo atitude que impediria o sonho de avanccedilar para fora dos tempos linear e psicoloacutegico ldquoNatildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonhordquo A tensatildeo entre o gesto estaacutetico da fala (ou da escri-ta) e a encenaccedilatildeo progressiva do sonho resulta na duplicaccedilatildeo do impulso criativo ldquoContemos contos umas agraves outrasrdquo como promessa de saiacuteda do conflito entre as categorias temporais a imaginaccedilatildeo e a realidade

SEGUNDA mdash Contemos contos umas agraves outras Eu natildeo sei contos nenhuns mas isso natildeo faz mal Soacute vi-ver eacute que faz mal Natildeo rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes Natildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonho Neste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar tendo Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes dele

PRIMEIRA mdash Decidimos natildeo o fazer Breve raiaraacute o dia e arrepender-nos-emos Com a luz os sonhos ador-mecem O passado natildeo eacute senatildeo um sonho De resto nem sei o que natildeo eacute sonho Se olho para o presente com muita atenccedilatildeo parece-me que ele jaacute passou O que eacute qualquer cousa Como eacute que ela passa Como eacute por dentro o modo como ela passa Ah falemos minhas irmatildes falemos alto falemos todas juntas O silecircncio co-meccedila a tomar corpo comeccedila a ser cousa Sinto-o en-volver-me como uma neacutevoa Ah falai falai8

Cada sonho desliza portanto sobre uma seacuterie de opo-siccedilotildees simboacutelicas atraveacutes da qual alternam-se os gestos da fala e da escrita Gestos e atitudes que condensam ou dispersam ao longo do diaacutelogo os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do so-nho ateacute a completa suspensatildeo da aderecircncia psicoloacutegica das irmatildes ao ritmo linear do reloacutegio com a narraccedilatildeo do sonho do marinheiro pela segunda veladora nuacutecleo da tensatildeo dramaacutetica Ao percorrer os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do sonho a ati-tude psicoloacutegica das veladoras oscila (a chama da vela) entre a direccedilatildeo perpendicular do pensamento (o segredo de pedra dos montes) e as direccedilotildees obliacutequa e horizontal da fala e da escrita (ldquoporque natildeo vale nunca a pena fazer nadardquo) tornando possiacutevel alccedilar a atitude psicoloacutegica das veladoras (pelo amor agraves ondas) ao plano de um continuum temporal oniacuterico

TERCEIRA mdash As vossas frases lembram-me a minha alma

SEGUNDA mdash Eacute talvez por natildeo serem verdadeiras Mal sei que as digo Repito-as seguindo uma voz que natildeo ouccedilo que mas estaacute segredando Mas eu devo ter vivido realmente agrave beira-mar Sempre que uma cousa

8 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp 442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

104

ondeia eu amo-a Haacute ondas na minha alma Quando ando embalo-me Agora eu gostaria de andar Natildeo o faccedilo porque natildeo vale nunca a pena fazer nada sobre-tudo o que se quer fazer Dos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e gran-des Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um mo-mento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz9

A despersonalizaccedilatildeo ocorre a partir desse desniacutevel entre o ritmo linear (andar) e o ritmo lacunar (ondear) como expres-satildeo da descontinuidade entre o tempo linear da accedilatildeo e o tempo psicoloacutegico da fala ou seja como ato criativo que evidencia o desniacutevel formal entre a fala das veladoras e a ultrapassagem autorreflexiva do sonho A despersonalizaccedilatildeo das personagens e a ultrapassagem da accedilatildeo pelo sonho servem de mola pro-pulsora para a personificaccedilatildeo do marinheiro personagem que figura no drama atraveacutes da estoacuteria de um naufraacutegio narrada pela segunda veladora Ao reduplicar o processo criativo com a estoacuteria do marinheiro a segunda veladora torna-se responsaacutevel pela dobra temporal que se situa na intermitecircncia entre os dois mundos possiacuteveis no drama o mundo sonhado agrave luz da vela e o mundo sonhado agrave luz do sol

SEGUNDA mdash Para quecirc Fito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos Este ar quente eacute frio por dentro naquela parte que toca na alma Eu devia agora sentir matildeos impossiacuteveis passarem-me pelos ca-belos mdash eacute o gesto com que falam das sereias (Cru-za as matildeos sobre os joelhos Pausa) Ainda haacute pouco quando eu natildeo pensava em nada estava pensando no meu passado

PRIMEIRA mdash Eu tambeacutem devia ter estado a pen-sar no meu

TERCEIRA mdash Eu jaacute natildeo sabia em que pensava No passado dos outros talvez no passado de gente ma-ravilhosa que nunca existiu Ao peacute da casa de minha matildee corria um riacho Por que eacute que correria e por que eacute que natildeo correria mais longe ou mais perto Haacute alguma razatildeo para qualquer cousa ser o que eacute Haacute para isso qualquer razatildeo verdadeira e real como as minhas matildeos10

Ao ampliar a tensatildeo entre o plano horizontal da fala ou 9 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44310 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p443

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

105

da escrita e o plano perpendicular do sonho a despersonaliza-ccedilatildeo desestrutura os elementos de composiccedilatildeo que cumprem funccedilatildeo simboacutelica na individuaccedilatildeo das personagens ldquoAs matildeos natildeo satildeo verdadeiras nem reais Satildeo misteacuterios que habitam na nossa vida agraves vezes quando fito as minhas matildeos tenho medo de Deus Natildeo haacute vento que mova as chamas das velas e olhai elas movem-se Para onde se inclinam elas Que pena se algueacutem pudesse responderrdquo11 O impulso de desper-sonalizaccedilatildeo desliza em direccedilatildeo obliacutequa sobre o plano horizon-tal da escrita criando diversas associaccedilotildees entre significante e significado (vela vento veladora mar marinheiro onda andar alma amar) de modo a produzir um regime de significaccedilotildees instaacuteveis que no limite da tensatildeo gera um vaacutecuo de sentido responsaacutevel pela propulsatildeo do sonho em duas direccedilotildees tem-porais superpostas primeiro em direccedilatildeo ao passado rumo ao universo infantil simbolizado pelo ato de personificaccedilatildeo de flo-res ondas rochedos etc e segundo em direccedilatildeo ao futuro rumo ao nada existencial simbolizado pela presenccedila da quarta irmatilde morta A superposiccedilatildeo temporal dessas duas direccedilotildees sus-pende progressivamente qualquer apelo subjetivo agrave identidade do eu liacuterico ldquoEacute sempre longe na minha alma Talvez porque quando crianccedila corri atraacutes das ondas agrave beira-mar Levei a vida pela matildeo entre rochedos mareacute-baixa quando o mar parece ter cruzado as matildeos sobre o peito e ter adormecido como uma es-taacutetua de anjo para que nunca mais ningueacutem olhasse As vos-sas frases lembram-me a minha almardquo12

A dissoluccedilatildeo do apelo das irmatildes agrave identidade do eu liacuteri-co seraacute tambeacutem o momento da completa dissoluccedilatildeo da forma dramaacutetica tradicional13 ldquoFito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver--vosrdquo14 Mas a dissoluccedilatildeo do apelo agrave identidade (segredo de pedra do pensamento) natildeo significa dissipaccedilatildeo do sonho no pla-no horizontal da accedilatildeo Ao contraacuterio o sonho natildeo soacute continua em seu movimento reflexivo de condensaccedilatildeo e dispersatildeo simboacutelica como tambeacutem assume a funccedilatildeo de exprimir a natildeo-identidade da forma dramaacutetica em seus diferentes graus de despersonaliza-ccedilatildeo15 11 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44312 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp442 44313 A propoacutesito da dissoluccedilatildeo da forma tradicional no drama simbolista escreve Anatol Rosenfeld ldquoToda a dramaturgia serviraacute apenas para revelar os misteacuterios da proacutepria alma (de um eu central) a partir da qual se projetaraacute mdash como meros reflexos impressotildees ou visotildees mdash os outros personagens jaacute sem posiccedilatildeo autocircnoma e sim transformados em funccedilatildeo do Ego centralrdquo (ROSENFELD Anatol O Teatro Eacutepico p100)14 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44315 Carlos Felipe Moiacuteseacutes descreve do seguinte modo a relaccedilatildeo entre a dispersatildeo do sentido e a despersonalizaccedilatildeo ldquoAbaladas pelo espectro de Thaacutenatos mergulhadas no real caoacutetico gerado pelo poder persuasivo e dilui-dor das palavras as veladoras chegam ao limiar da indistinccedilatildeo entre Ser e Natildeo-ser Mas as falas prosseguem ainda mais ansiosas diante da evidente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

106

SEGUNDA mdashDos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e grandes De-vem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um momento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz

PRIMEIRA mdash Por mim amo os montes Do lado de caacute de todos os montes eacute que a vida eacute sempre feia Do lado de laacute onde mora minha matildee costumaacuteva-mos sentarmo-nos agrave sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves uma de cada lado do caminho A floresta natildeo tinha outras clareiras senatildeo os nossos pensamentos E os nossos sonhos eram de que as aacutervores projectassem no chatildeo outra calma que natildeo as suas sombras Foi decerto assim que ali vivemos eu e natildeo sei se mais algueacutem Dizei-me que isto foi verdade para que eu natildeo tenha de chorar 16

Sob efeito da despersonalizaccedilatildeo a accedilatildeo autorreflexiva do sonho17 desliza sobre o plano obliacutequo da fala suprimindo a identidade das personagens e convertendo o vaacutecuo existen-cial em polo de atraccedilatildeo do sentido A erradicaccedilatildeo da clausura subjetiva da identidade e a personificaccedilatildeo da natildeo-identidade na figura da donzela morta forccedilam a atitude psicoloacutegica das irmatildes a assumir uma forma indefinida como se elas estivessem a falar de Ningueacutem para Ningueacutem Nesse momento elas abandonam o regime de oposiccedilotildees elaborado no jogo entre os significan-tes para assumir o continuum temporal oniacuterico volteando como uma serpente entorno a oposiccedilatildeo entre fala e escuta escrita e leitura

PRIMEIRA mdash Contai sempre minha irmatilde contai sem-pre Natildeo pareis de contar nem repareis em que dias raiam O dia nunca raia para quem encosta a cabeccedila no seio das horas sonhadas Natildeo torccedilais as matildeos Isso faz um ruiacutedo como o de uma serpente furtiva Falai-nos muito mais do vosso sonho Ele eacute tatildeo verdadeiro que natildeo tem sentido nenhum Soacute pensar em ouvir-vos me toca muacutesica na almahellip

SEGUNDA ndashndash Sim falar-vos-ei mais dele Mesmo eu

dispersatildeo do Eu no contexto circundante um contexto que eacute o Eu ao mesmo tempo em que natildeo o eacute mais pois jaacute eacute concomitantemente o Outro (FELIPE MOISEacuteS Carlos Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p167)16 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44317 Em ensaios de Aacutelvaro de Campos sobre a esteacutetica sensacionista o heterocircnimo refere-se agrave reflexatildeo assim como agraves demais atitudes introspecti-vas e autoanaliacuteticas como manifestaccedilatildeo do impulso sensiacutevel compreenden-do-a como ldquosensaccedilatildeo da sensaccedilatildeordquo Cf Obra em Prosa Ideias Esteacuteticas pp 424-454

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

107

preciso de vo-lo contar Agrave medida que o vou contando eacute a mim tambeacutem que o conto Satildeo trecircs a escutar (De repente olhando para o caixatildeo e estremecendo) Trecircs natildeo Natildeo sei Natildeo sei quantas

TERCEIRA mdash Natildeo faleis assim Contai depressa contai outra vez Natildeo faleis em quantos podem ouvir Noacutes nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vecircem e escutam Voltai ao vosso sonho O marinhei-ro O que sonhava o marinheiro18

O diaacutelogo entre as trecircs veladoras ocorre no primeiro pla-no de composiccedilatildeo da peccedila no qual se consuma o terceiro grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico com a eclosatildeo do horror que a donzela morta aos poucos desperta nas trecircs personagens A presenccedila da personagem morta ocorre no segundo plano e fun-ciona como elemento psicoloacutegico que impulsiona as veladoras para fora da clausura subjetiva quando elas passam a contar e a ouvir a estoacuteria do marinheiro O terceiro plano de composiccedilatildeo corresponde ao quarto grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico no decorrer do qual cria-se a expectativa de personificaccedilatildeo do marinheiro como soluccedilatildeo para o problema da unidade dada a ausecircncia da accedilatildeo dramaacutetica Quando a segunda veladora passa a contar a estoacuteria do marinheiro referido ora como personagem sonhado ora como personagem real o contraste entre a fala das veladoras (em primeiro plano) e o silecircncio da donzela morta (no segundo plano) intensifica o processo de despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica

Naacuteufrago numa ilha deserta o marinheiro sonha viver numa paacutetria fictiacutecia capaz de apagar e substituir a lembranccedila da paacutetria natal Assim como as veladoras ele tambeacutem se des-personaliza pelo sonho de maneira a personificar um plano de composiccedilatildeo autocircnomo com relaccedilatildeo agrave estoacuteria narrada pela se-gunda veladora passando as trecircs veladoras a desejar personi-ficar o sonho do marinheiro como promessa de vida superior agrave realidade por elas mesmas vivida ldquoDizei-me istoDizei-me uma coisa ainda Por que natildeo seraacute a uacutenica coisa real nisto tudo o marinheiro e noacutes e tudo isto aqui apenas um sonho delerdquo19 O sonho do marinheiro sobrevoa de tal modo a inaccedilatildeo dramaacute-tica das veladoras que elas passam a acreditar na presenccedila fiacutesica do personagem ausente prenunciando a intervenccedilatildeo de uma ldquoquinta pessoardquo em cena ldquoQuem eacute a quinta pessoa neste quarto que estende o braccedilo e nos interrompe sempre que va-mos a sentirrdquo20

No limite da despersonalizaccedilatildeo o movimento autorre-flexivo do sonho desloca o diaacutelogo para o plano de composi-ccedilatildeo da quinta personagem operando a transposiccedilatildeo do ritmo

18 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44819 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44920 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p451

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

108

psicoloacutegico da fala para o ritmo lacunar do sonho21 O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinheiro e da quinta pes-soa seraacute o mais alto grau de despersonalizaccedilatildeo da peccedila (quarto grau da poesia liacuterica) A personificaccedilatildeo do personagem ausente ocorre ao nascer do dia com a supressatildeo do tempo linear da accedilatildeo e a transposiccedilatildeo do tempo psicoloacutegico das veladoras para o tempo-origem do sonho Esse processo de despersonalizaccedilatildeo prenuncia a entrada em cena da quinta pessoa como figura que representa a despersonalizaccedilatildeo do quinto grau da poesia liacuterica primeiro passo em direccedilatildeo agrave certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro e agrave escrita heteroniacutemica

O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinhei-ro natildeo aparece apenas durante o ato de escrita mas tambeacutem como efeito compreensivo de leitura ou seja como apreciaccedilatildeo criacutetica do processo de composiccedilatildeo dramaacutetica A quinta pessoa seraacute a figura que exprime este efeito compreensivo como um testemunho impliacutecito de que durante os momentos de pausa descanso ou interrupccedilotildees descontiacutenuas da escrita e da leitura as irmatildes natildeo poderatildeo existir senatildeo a partir de uma seacuterie de an-tagonismos que reverberam na imaginaccedilatildeo do leitor

TERCEIRA (para a SEGUNDA) mdash Minha irmatilde natildeo nos deviacuteeis ter contado essa histoacuteria Agora estranho--me viva com mais horror Contaacuteveis e eu tanto me dis-traiacutea que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente E parecia-me que voacutes e a vossa voz e o sentido do que diziacuteeis eram trecircs entes diferen-tes como trecircs criaturas que falam e andam

SEGUNDA mdash Satildeo realmente trecircs entes diferentes com vida proacutepria e real Deus talvez saiba porquecirc Ah mas por que eacute que falamos Quem eacute que nos faz conti-nuar falando Por que falo eu sem querer falar Por que eacute que jaacute natildeo reparamos que eacute dia

PRIMEIRA mdash Quem pudesse gritar para despertar-mos Estou a ouvir-me a gritar dentro de mimmas jaacute natildeo sei o caminho da minha vontade para a minha garganta Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que algueacutem possa bater agravequela porta Por que natildeo bate algueacutem agrave porta Seria impossiacutevel e eu tenho necessidade de ter medo disso de saber de que eacute que tenho medo Que estranha que me sinto Parece-me jaacute natildeo ter a minha voz Parte de mim adormeceu e ficou a ver O meu pavor cresceu mas eu jaacute natildeo sei senti-lo Jaacute natildeo sei em que parte da alma eacute que se sente Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo

21 ldquoRetire-se com efeito a dupla significaccedilatildeo do fingimento natildeo se considere nem o que se finge nem por que se finge e o que restaraacute Muita coisa resta a ordem o lugar a densidade a regularidade dos instantes em que a pessoa que finge deve forccedilar a naturezardquo (BACHELARD Gastoacuten A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo p97)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

109

Para que foi que nos contastes a vossa histoacuteria22

A progressatildeo dos graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuteri-co ocorre segundo uma seacuterie de exigecircncias expressivas da for-ma poeacutetica Ao despersonalizar os pensamentos e as emoccedilotildees que caracterizam as personagens no poema dramaacutetico O Mari-nheiro a autorreflexatildeo da forma poeacutetica permite agrave alteridade do drama (puacuteblico autor e diretor) ocupar cada vez mais o espaccedilo deixado pela dissoluccedilatildeo da unidade dramaacutetica Alternando-se na posiccedilatildeo de autores leitores e diretores as personagens natildeo apenas rompem com a unidade da accedilatildeo como passam a bus-car no contato direto com o sonho um substituto para a unidade perdida

3 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo em Alberto Caeiro

NrsquoO Guardador de Rebanhos a busca pela unidade per-dida culmina na personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica com uma espeacutecie de cogito heteroniacutemico e logo em seguida no encontro desse cogito heteroniacutemico com o mundo concreto das sensa-ccedilotildees e das formas sensiacuteveis23

Quando me sento a escrever versosOu passeando pelos caminhos ou pelos atalhosEscrevo versos num papel que estaacute no meu pensamentoSinto um cajado nas matildeosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiroOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem natildeo compreende [o que se dizE quer fingir que compreende

22 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p45023 Eacute bastante conhecida a ideia de Descartes sobre a impossibilidade de o pensamento sustentar-se na certeza de si sem antes esgotar o percur-so da duacutevida definindo seu ser pela negaccedilatildeo do mundo sensiacutevel do gecircnio maligno e do deus enganador No limite desse percurso o pensamento eacute for-ccedilado a desdobrar-se em sua completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo negado ou seja como natildeo-identidade entre a forma pura do pensamento e o conteuacutedo por ele pensado Na despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico em Fernan-do Pessoa o cogito heteroniacutemico tambeacutem adquire completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo pensado por ele A natildeo-identidade entre o ldquoeu pensordquo a ideia de Deus as sensaccedilotildees e as formas sensiacuteveis projeta a escrita poeacutetica de Alberto Caeiro sobre um plano de composiccedilatildeo que absorve o pensamento heteroniacutemico em sua natildeo-identidade ou seja ao mesmo tempo como sujeito pensante e como sujeito pensado Desse modo o cogito heteroniacutemico passa a ser refletido como momento de natildeo-identidade entre forma pensante e for-ma pensada permitindo agrave escrita percorrer a distacircncia entre a idealidade do ldquoeu pensordquo e a realidade do ldquoeu sourdquo como desdobramento interno agrave forma poeacutetica Ao produzir um mundo um cogito e um deus a natildeo-identidade en-tre forma pensada e forma pensante duplica um amplo espectro de atitudes reflexivas dando ensejo agrave individuaccedilatildeo da forma heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

110

(PESSOA 2006 p204)

A oposiccedilatildeo entre o plano horizontal da accedilatildeo (passear caminhar escrever) e o plano perpendicular do pensamento (o cajado e o cimo do outeiro) forccedila os elementos estruturais da linguagem (o som o sentido a sintaxe) a aparecer ora como negaccedilatildeo das formas sensiacuteveis ora como negaccedilatildeo da forma po-eacutetica ldquoOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideiasOu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanhordquo A oposiccedilatildeo entre a visatildeo estaacutetica das ideias e a accedilatildeo de tanger o rebanho gera um vaacutecuo de sentido (ldquoE sorrindo vagamente como quem natildeo compreende o que se dizrdquo) abrindo espaccedilo para a substituiccedilatildeo da unidade dramaacutetica pela atitude psicoloacute-gica do heterocircnimo (ldquoE quer fingir que compreenderdquo) A desper-sonalizaccedilatildeo passa entatildeo a agir sobre esse vaacutecuo de sentido substituindo a accedilatildeo das personagens dramaacuteticas pelo pensa-mento estaacutetico do heterocircnimo Desse modo a personificaccedilatildeo de Alberto Caeiro encerra na forma poeacutetica o drama existencial de um personagem agrave procura de formas sensiacuteveis capazes de doar unidade para seus pensamentos suas ideias e suas sen-saccedilotildees A personificaccedilatildeo da forma poeacutetica com as ideias es-taacuteticas de Caeiro (escrever olhar pensar sorrir falar) implica na personificaccedilatildeo das formas sensiacuteveis (o rebanho o cajado o outeiro) pelo movimento de autorreflexatildeo da forma em substi-tuiccedilatildeo agrave unidade da accedilatildeo dramaacutetica

Haacute metafiacutesica bastante em natildeo pensar em nadaO que penso eu do mundoSei laacute o que penso do mundoSe eu adoecesse pensaria nissoQue ideacuteia tenho eu das cousasQue opiniatildeo tenho sobre as causas e os efeitosQue tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criaccedilatildeo do MundoNatildeo sei Para mim pensar nisso eacute fechar os olhosE natildeo pensar Eacute correr as cortinasDa minha janela (mas ela natildeo tem cortinas)

(PESSOA 2006 pp206-207)

A autorreflexatildeo projeta o drama subjetivo do heterocircnimo para fora da forma poeacutetica como um ldquoeu penso que natildeo pen-sordquo24 que ldquoquer fingir que compreenderdquo o que a forma sensiacutevel supostamente significa tanto do lado interior como do lado ex-terior agrave forma poeacutetica A forma autorreflexiva do ldquoeu penso que

24 A despersonalizaccedilatildeo nos heterocircnimos percorre trecircs estaacutegios intensi-vos do pensamento o ldquoeu pensordquo posiccedilatildeo do eu liacuterico tradicional o ldquoeu pen-so que pensordquo comum agraves personagens dramaacuteticas ou agraves maacutescaras poeacuteticas e o ldquoeu penso que penso que pensordquo um heterocircnimo ou um personagem conceitual capaz de pensar seu proacuteprio pensamento atraveacutes de um conti-nuum temporal de reflexatildeo centrado na expressatildeo poeacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

111

pensordquo forccedila o heterocircnimo a buscar a unidade perdida em accedilotildees como caminhar passear abrir cortinas que passam a figurar a atitude psicoloacutegica do heterocircnimo A unidade da accedilatildeo cede es-paccedilo portanto agrave unidade da argumentaccedilatildeo

Mas se Deus eacute as flores e as aacutervoresE os montes e sol e o luarEntatildeo acredito neleEntatildeo acredito nele a toda a horaE a minha vida eacute toda uma oraccedilatildeo e uma missaE uma comunhatildeo com os olhos e pelos ouvidosMas se Deus eacute as aacutervores e as floresE os montes e o luar e o solPara que lhe chamo eu DeusChamo-lhe flores e aacutervores e montes e sol e luarPorque se ele se fez para eu o verSol e luar e flores e aacutervores e montesSe ele me aparece como sendo aacutervores e montesE luar e sol e floresEacute que ele quer que eu o conheccedilaComo aacutervores e montes e flores e luar e solE por isso eu obedeccedilo-lhe(Que mais sei eu de Deus que Deus de si proacuteprio)Obedeccedilo-lhe a viver espontaneamenteComo quem abre os olhos e vecircE chamo-lhe luar e sol e flores e aacutervores e montesE amo-o sem pensar neleE penso-o vendo e ouvindoE ando com ele a toda a hora

(PESSOA 2006 p207)

A completa personificaccedilatildeo do heterocircnimo ocorre quando a unidade da argumentaccedilatildeo for colocada agrave prova pela desperso-nalizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoeu penso que pensordquo25 que estrutura sua forma subjetiva opondo agrave autorreflexatildeo da forma poeacutetica um ldquoeu penso que penso que pensordquo como autorreflexatildeo da forma sensiacutevel26 A expressatildeo da natildeo-identidade entre forma poeacutetica e forma sensiacutevel inaugura um estilo de escrita capaz de conferir individuaccedilatildeo agrave personalidade do heterocircnimo A autorreflexatildeo da

25 Nas palavras de Walter Benjamin ldquoO pensar do pensar do pensar pode ser abarcado e consumado de duas maneiras Quando se parte da ex-pressatildeo ldquopensar do pensarrdquo este pode ser entatildeo no terceiro grau ou o objeto pensado o pensar (do pensar do pensar) ou entatildeo o sujeito pensante (pen-sar do pensar) do pensar A riacutegida forma originaacuteria da reflexatildeo do segundo grau eacute no terceiro abalada e acometida pela ambiguidade Esta no entanto se desdobraria em cada grau consecutivo numa ambiguidade cada vez mais muacuteltiplardquo BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Ale-matildeo p3826 Pode-se dizer assim que Alberto Caeiro aparece de um modo simi-lar e ao mesmo tempo inverso agrave definiccedilatildeo da identidade no cogito cartesia-no uma vez que de um modo muito mais complexo a personificaccedilatildeo que daacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

112

forma dramaacutetica o ldquoeu penso que penso que pensordquo conserva na escrita do heterocircnimo a natildeo-identidade entre forma poeacutetica cogito heteroniacutemico27 e forma sensiacutevel natildeo-identidade sem a qual a personalidade de Alberto Caeiro natildeo poderia se desen-volver e sem a qual natildeo seria possiacutevel atribuir a ele e aos de-mais heterocircnimos a autoria de uma obra em que eles mesmos se encontram implicados como personagens ao mesmo tempo reais e ficcionais Nesse estaacutegio de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico e do eu dramaacutetico Alberto Caeiro evidencia completo do-miacutenio sobre a atitude psicoloacutegica que o impulsiona em direccedilatildeo agraves sensaccedilotildees dando ensejo a uma leitura compreensiva que o defina como poeta dramaacutetico que aleacutem da simples invenccedilatildeo de formas e intensidades poeacuteticas eacute capaz de criar por fingimento e ironia formas e intensidades aniacutemicas e natildeo-aniacutemicas sob o efeito combinado de despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica

4 Despersonalizaccedilatildeo e sensacionismo em Aacutelvaro de Campos

A sensaccedilatildeo constitui o uacutenico meio de apreensatildeo das for-mas sensiacuteveis em Alberto Caeiro Sua existecircncia simples e ime-diata exclui qualquer prerrogativa idealista da linguagem e da representaccedilatildeo Observa-se uma concepccedilatildeo antiacutepoda em Aacutelva-ro de Campos Os elementos que melhor definem sua maneira de conceber a sensaccedilatildeo encontram-se na vanguarda esteacutetica criada pelo heterocircnimo e que se intitula sensacionismo Como observa Fernando Pessoa ortocircnimo os ideais esteacuteticos do sen-sacionismo satildeo em larga medida inspirados no objetivismo de Caeiro embora o objetivismo natildeo possa ser reduzido agrave esteacutetica sensacionista sem desvirtuar os traccedilos elementares de sua per-sonalidade

Dizem que Alberto Caeiro lamentou que o nome de ldquosensacionismordquo tivesse sido dado agrave sua atitude e agrave atitude que ele criou por um disciacutepulo seu mdash disciacutepulo um tanto quanto estranho eacute verdade mdash o Sr Aacutelvaro de Campos Se

origem ao cogito heteroniacutemico conserva a natildeo-identidade como momento de autorreflexatildeo da forma ao apresentar o cogito heteroniacutemico como natildeo-ser do pensamento atraveacutes do objetivismo absoluto do mestre heterocircnimo27 Ao assinalar a diferenccedila entre sonho noturno e devaneio Bachelard sugere a seguinte aproximaccedilatildeo entre o cogito e a experiecircncia poeacutetica do eu ldquoAo passo que o sonhador de sonho noturno eacute uma sombra que perdeu o proacuteprio eu o sonhador de devaneio se for um pouco filoacutesofo pode no centro do seu eu sonhador formular um cogitordquo (BACHELARD Gaston A Poeacutetica do devaneio p144) A noccedilatildeo de cogito heteroniacutemico mostra-se de pleno acordo com a definiccedilatildeo de filosofia proposta pelo heterocircnimo Antocircnio Mora heterocircnimo-filoacutesofo de Pessoa ldquoToda a filosofia eacute um antropomorfismo O erro fundamental eacute admitir como real a alma do indiviacuteduo o erigir a consciecircn-cia do indiviacuteduo em consciecircncia absoluta e a Realidade em individualidaderdquo (Obra em prosa Antocircnio Mora p527)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

113

Caeiro protestou contra a palavra como possivelmente pare-cendo indicar uma ldquoescolardquo a igual do Futurismo por exem-plo estava no seu direito e por duas razotildees pois a proacutepria sugestatildeo de escolas e movimentos literaacuterios soa mal quando aplicada a uma espeacutecie de poesia tatildeo incivilizada e natural E aleacutem disso embora tenha ele pelo menos dois ldquodisciacutepulosrdquo o fato eacute que exerceu sobre eles uma influecircncia igual agravequela que algum poeta mdash Cesaacuterio Verde talvez mdash exerceu sobre ele nenhum deles se lhe assemelha absolutamente embora na verdade bem mais claramente do que a influecircncia de Ce-saacuterio Verde sobre ele possa ser vista sua influecircncia em toda a obra deles (PESSOA 1993 p129)

Desse modo ao incluir Alberto Caeiro entre os poetas sensacionistas Aacutelvaro de Campos mostra-se muito mais pre-ocupado em elaborar sua proacutepria teoria do que em definir com precisatildeo o ensinamento do mestre Com efeito uma liccedilatildeo que Aacutelvaro de Campos aprendera mas que Alberto Caeiro natildeo en-sinara eacute que uma sensaccedilatildeo embora possa ser objetivamente percebida como forma sensiacutevel exterior tambeacutem encerra em si um universo desconhecido de outras sensaccedilotildees que podem ser sentidas ou percebidas internamente em toda sua amplitu-de pelo sujeito Em primeiro lugar lembremos que ldquosensaccedilatildeordquo era a palavra que o mestre heterocircnimo aplicava para designar a diferenccedila ontoloacutegica entre as formas sensiacuteveis Concebida as-sim a sensaccedilatildeo natildeo poderia ser um estado de apreensatildeo inter-na do sujeito Quando muito ela poderia significar algo como o contentamento que acompanha o ato de observar as formas sensiacuteveis ou a insatisfaccedilatildeo de natildeo poder observaacute-las com exa-tidatildeo Mesmo que se admitisse a existecircncia de caracteriacutesticas comuns que autorizasse o emprego do mesmo nome para a cor vermelha numa peacutetala de flor e a cor vermelha que tinge um vestido por exemplo as duas formas sensiacuteveis designadas pelo nome ldquovermelhordquo seriam sempre percebidas como sensa-ccedilotildees distintas cuja realidade independia do estado subjetivo de quem as via

A teoria sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste grosso modo na tentativa bem-sucedida de transpor a espon-taneidade sensiacutevel da crianccedila para o campo intelectual da refle-xatildeo conferindo realidade objetiva natildeo apenas agraves formas sen-siacuteveis mas tambeacutem agraves representaccedilotildees puramente subjetivas que as sucedem A diferenccedila sensiacutevel que caracterizava o obje-tivismo absoluto de Caeiro seraacute agora transposta para o plano da diferenccedila intelectual da representaccedilatildeo A sensaccedilatildeo natildeo seraacute somente a percepccedilatildeo imediata da forma sensiacutevel mas tambeacutem a ampliaccedilatildeo subjetiva dessa percepccedilatildeo pelo ato de sentir Ela seraacute um ldquosentir que senterdquo que corresponde aos momentos de projeccedilatildeo e espelhamento da reflexatildeo sobre si mesma a proje-ccedilatildeo subjetiva sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e a proje-ccedilatildeo das formas sensiacuteveis sobre a reflexatildeo subjetiva (realismo)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

114

A forma sensiacutevel torna-se meio de reflexatildeo do seu proacuteprio ser como reflexatildeo exterior ao sujeito e ao mesmo tempo torna--se capaz de comunicar-se por meio de representaccedilotildees para a reflexatildeo subjetiva do heterocircnimo Percorrendo o caminho de reflexatildeo que projeta o universo subjetivo do heterocircnimo sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e depois o caminho que proje-ta o universo objetivo das formas sensiacuteveis sobre as represen-taccedilotildees subjetivas (realismo) Aacutelvaro de Campos personifica o terceiro niacutevel de reflexatildeo o cogito agrave terceira potecircncia no qual o ldquoeu penso que penso que pensordquo incorpora e amplia os dois niacuteveis anteriores

O terceiro niacutevel de reflexatildeo marca o iniacutecio da autonomi-zaccedilatildeo da sensaccedilatildeo que conta agora com uma dupla forma de expressatildeo primeiro a sensaccedilatildeo se expressa como multiplica-ccedilatildeo progressiva dos modos de representar as formas sensiacuteveis (ou seja como autorreflexatildeo subjetiva da forma) e segundo ela se expressa como multiplicaccedilatildeo progressiva dos modos de ver sentir pensar e ser essa multiplicidade sensiacutevel (isto eacute como autorreflexatildeo objetiva da forma) A transposiccedilatildeo do ato de ver para o ato de representar costuma vir acompanhada de uma descarga de energia que aparece sob a forma gradual de um sentimento uma emoccedilatildeo uma paixatildeo ou uma perversatildeo se-gundo os graus de personificaccedilatildeo que acompanham os atos de pensar sentir e de ser as sensaccedilotildees A cor vermelha de um vestido por exemplo pode ser investida de uma descarga his-teacuterica que a associa agrave cor vermelha do sangue e agrave intensidade subjetiva da raiva Ou uma foacutermula puramente abstrata como o binocircmio de Newton pode associar-se a uma forma sensiacutevel como a Vecircnus de Milo por meio do sentimento do belo e produ-zir um sentimento sublime

A livre associaccedilatildeo entre ideias imagens e emoccedilotildees im-plica portanto um plano de composiccedilatildeo objetiva da diferenccedila centrada na multiplicaccedilatildeo subjetiva das sensaccedilotildees Esse o mo-tivo porque o lema central do sensacionismo ldquosentir tudo de to-das as maneirasrdquo28 tambeacutem implica uma foacutermula do tipo ldquopensar tudo de todos os modosrdquo Uma sensaccedilatildeo pode duplicar-se em inuacutemeras outras se acompanhada pela personificaccedilatildeo do ldquoeu pensordquo do ldquoeu sintordquo e do ldquoeu sourdquo tornando-se a proacutepria sen-saccedilatildeo capaz de pensar sentir e ser todas as demais A multipli-caccedilatildeo das sensaccedilotildees depende dessa capacidade heteroniacutemica de personificar o ldquoeu pensordquo o ldquoeu sintordquo e o ldquoeu sourdquo como trecircs identidades autocircnomas Quando encontram a faiacutesca produzida pelo embate entre a autorreflexatildeo a despersonalizaccedilatildeo e a per-sonificaccedilatildeo como eacute o caso das grandes odes inspiradas em Walt Whitman as sensaccedilotildees podem jorrar em alta velocidade de maneira quase irrefletida como uma combustatildeo intelectual movendo a maacutequina de escrever e preenchendo longas paacuteginas de prosa poeacutetica Contudo quando o que prepondera satildeo vagas sensaccedilotildees de melancolia os poemas assumem dimensotildees me-

28 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa Passagem das Horas p344

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

115

nores chegando mesmo em alguns casos a poemas formais como o Opiaacuterio ou sonetos em estilo moderno

Vimos que na obra-prima do mestre o ritmo da escri-ta seguia a mesma naturalidade do vilarejo Ribatejo palco da vida e da obra do heterocircnimo A coleccedilatildeo de fragmentos poeacuteti-cos compunha uma constelaccedilatildeo de ldquoagorasrdquo independente da representaccedilatildeo e pensada a partir da autorreflexatildeo das formas sensiacuteveis Toda a astuacutecia sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste em transpor a simultaneidade espacial das formas sen-siacuteveis percebidas por Caeiro para o plano da sucessatildeo tem-poral que constitui a experiecircncia subjetiva no espaccedilo urbano Nas odes de Aacutelvaro de Campos o palco subjetivo transporta-se para um porto mariacutetimo um edifiacutecio urbano uma estrada ou uma ferrovia que interliga uma cidade agrave outra de onde se segue uma viagem real ou imaginaacuteria de navio um passeio real ou imaginaacuterio a peacute de comboio de automoacutevel ou de cavalo pelas ruas e arredores de Lisboa Note-se a transposiccedilatildeo subjetiva da sensaccedilatildeo logo nos primeiros versos da Ode Mariacutetima

Sozinho no cais deserto a esta manhatilde de VeratildeoOlho pro lado da barra olho pro IndefinidoOlho e contenta-me verPequeno negro e claro um paquete entrandoVem muito longe niacutetido claacutessico agrave sua maneiraDeixa no ar distante atraacutes de si a orla vatilde do seu fumoVem entrando e a manhatilde entra com ele e no rioAqui acolaacute acorda a vida mariacutetimaErguem-se velas avanccedilam rebocadoresSurgem barcos pequenos de traacutes dos navios que estatildeo

[no portoHaacute uma vaga brisaMas a minhrsquoalma estaacute com o que vejo menosCom o paquete que entraPorque ele estaacute com a Distacircncia com a ManhatildeCom o sentido mariacutetimo desta HoraCom a doccedilura dolorosa que sobe em mim como uma

[naacuteuseaComo um comeccedilar a enjoar mas no espiacuterito

Olho de longe o paquete com uma grande [independecircncia de almaE dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamente

(PESSOA 2006 pp 314-315)

Assim como outras odes de Aacutelvaro de Campos Ode Ma-riacutetima concentra os esforccedilos de siacutentese de estados subjetivos diversos com o intuito de atualizar o universo de representa-ccedilotildees histoacutericas Siacutentese que se desdobra no poema em meio a imagens amplificadas pelo impulso de despersonalizaccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

116

internalizado nas sensaccedilotildees O que se observa nesta primei-ra estrofe eacute a transposiccedilatildeo gradual da forma sensiacutevel do navio para o universo subjetivo da representaccedilatildeo Um navio que se aproxima do cais aparecendo primeiro como forma sensiacutevel ex-terior aos poucos transporta o heterocircnimo para o plano intelec-tual da representaccedilatildeo Mais precisamente para uma represen-taccedilatildeo sinteacutetica do Absoluto que se encontra aleacutem da Distacircncia e aqueacutem do Indefinido Os versos isolados ldquoOlho e contenta-me ver Pequeno negro e claro um paquete entrandordquo poderiam figurar como versos objetivistas de Caeiro Mas em seguida a antiacutestrofe que diz ldquoOlho de longe o paquete com uma grande independecircncia de alma E dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamenterdquo sela de vez a transposiccedilatildeo do navio como for-ma sensiacutevel para dentro do universo subjetivo do heterocircnimo Como na transposiccedilatildeo da foto para o cinema a representaccedilatildeo temporal de Aacutelvaro de Campos converte em movimento a ima-gem estaacutetica das sensaccedilotildees de Caeiro A guinada subjetiva da reflexatildeo promove assim a transposiccedilatildeo do tempo natural da escrita espontacircnea de Caeiro para o tempo histoacuterico-subjetivo que tem iniacutecio na escrita ortocircnima de Fernando Pessoa e osci-la entre o subjetivismo e o objetivismo neoclaacutessico de Ricardo Reis ateacute o salto agrave multiplicidade oceacircnica das sensaccedilotildees em Aacutelvaro de Campos A escrita sensacionista percorre assim o espaccedilo da paacutegina em branco como um fluxo de sensaccedilotildees que compotildee o corpo literaacuterio do poeta-ningueacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

117

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD G A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo SP Editora Aacutetica 1994

BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Alematildeo SP Iluminuras 2002

BERARDINELLI C Fernando Pessoa Outra Vez te Revejo RJ Nova Aguilar 2004

BLANCHOT M O Espaccedilo Literaacuterio RJ Rocco 2011

COELHO AP Os Fundamentos Filosoacuteficos da Obra de Fernan-do Pessoa Lisboa Verbo 2 vols 1971

COELHO J do P Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa SP Verbo 1977

DELEUZE G GUATTARI F Diferenccedila e Repeticcedilatildeo RJ Graal 2006

_________ O que eacute a Filosofia RJ Editora 34 1997

DESCARTES R Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoOs Pensadoresrdquo SP Abril Cultural 1983

GIL J Fernando Pessoa ou a Metafiacutesica das Sensaccedilotildees Lis-boa Reloacutegio drsquoAacutegua 1987

_________ Diferenccedila e Negaccedilatildeo na Poesia de Fernando Pes-soa RJ Relume Dumaraacute 2000

HEGEL GWF Fenomenologia do Espiacuterito Petroacutepolis Vozes 1992

LOURENCcedilO E Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente Lisboa Gradiva 2003

OSAKABE H Fernando Pessoa Resposta agrave Decadecircncia SP Iluminuras 2013

PESSOA F Obra em Prosa RJ Nova Aguilar 2006

_________ Obra Poeacutetica RJ Nova Aguilar 2006

NUNES B O Dorso do Tigre RJ Editora 34 2009

PERRONE-MOISEacuteS L Fernando Pessoa Aqueacutem do Eu Aleacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

118

do Outro SP Martins Fontes 2001

SENA J Fernando Pessoa amp Companhia Heterocircnima Lisboa Ediccedilotildees 70 1982

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

119

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaThe freedom of the gaze Erotism and aesthetic autonomy from Winckelmann to Fernando Pessoa

Palavras-chave Winckelmann Kant Fernando PessoaKeywords Wilckelmann Kant Fernando Pessoa

RESUMO Pretende-se estudar aqui o caminho de uma ideia winckelmanniana sobre a autonomia do olhar esteacutetico que foi fundamental para a poeacutetica de Fernando Pessoa

ABSTRACT It is intended to study here the way of a Winckel-mannian idea about the autonomy of the aesthetic gaze which was fundamental for the poetics of Fernando Pessoa

Hoje eacute quase ponto paciacutefico aceitar que Kant foi o pri-meiro a formular de maneira inequiacutevoca a ideia de autonomia da obra de arte Quando esse consenso eacute questionado eacute por-que em geral se quer saber apenas se o autor da Criacutetica do juiacutezo teria sido influenciado por algum predecessor como Adam Smi-th ou Karl Philipp Moritz Teria Kant chegado sozinho agraves suas consideraccedilotildees sobre o juiacutezo de gosto ou satildeo elas resultado de sua leitura de outros pensadores E seriam estes meros anteci-padores ou teriam deixado ideias apenas diferentes mas igual-mente interessantes a respeito do tema

Bem interessante para a compreensatildeo desse toacutepico eacute investigar algumas evidecircncias da presenccedila do pensamento de Winckelmann no conjunto da obra kantiana

Um dos textos mais interessantes nesse aspecto eacute por certo uma reflexatildeo sobre antropologia a de nuacutemero 640 na qual se traccedila a diferenccedila importantiacutessima entre beleza e atrativo ou sem meias palavras entre o prazer provocado pela bela forma e a atraccedilatildeo oriunda do desejo sexual

Em questotildees de gosto devemos diferenciar o atrativo da beleza o primeiro se perde para este ou aquele mas a beleza permanece Quartos adornados permanecem sempre belos embora tenham o seu atrativo com a morte da amada e o amante escolhe outros objetos Tais conceitos do belo diz Winckelmann satildeo voluptuosos isto eacute natildeo se diferencia o atrativo da beleza pois de fato eles estavam tatildeo vinculados entre os antigos como entre os modernos (embora natildeo tatildeo confundidos) mas talvez diferenciados nos conceitos dos ar-

Maacutercio Suzuki

Doutor e professor de esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo

marciosuzukiuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

120

tistas que queriam exprimi-losA bela pessoa apraz por sua figura e atrai por seu

sexo Digamos ao ouvido de algueacutem que a beleza que ele admira eacute um cantor efeminado o atrativo desaparece num instante mas a beleza permanece Eacute difiacutecil separar esse atra-tivo da beleza mas basta deixarmos de lado todas as nossas necessidades particulares e nossas relaccedilotildees privadas em que nos diferenciamos dos outros para que reste o frio juiacutezo de gosto1

Segundo essa anotaccedilatildeo de Kant o ensinamento princi-pal das consideraccedilotildees sobre o belo ideal por parte de Winckel-mann estaria em ter ensinado a diferenciar aquilo que atrai se-xualmente e aquilo que satisfaz como bela forma Os exemplos que Kant traz como ilustraccedilatildeo como sempre natildeo satildeo bons o quarto da mulher permanece belo mesmo com a morte desta e o marido pode buscar outros objetos para a satisfaccedilatildeo do seu instinto o desejo manifesto por uma jovem desaparece quando fica sabendo que o cantor pelo qual se sente atraiacuteda natildeo tem interesse por pessoas do seu sexo ainda que a despeito da frustraccedilatildeo de sua propensatildeo a beleza do indiviacuteduo permaneccedila

Numa versatildeo posterior um pouco diferente as mesmas ideias satildeo assim explicadas

Com frequecircncia natildeo diferenciamos o que eacute objeto do gosto e o que eacute objeto do apetite Winckelmann diz que a verdadeira ideia da beleza estaacute entre os gregos Nossos con-ceitos da beleza satildeo muito partidaacuterios e mais juiacutezos sobre o atrativo Beleza poreacutem natildeo eacute atrativo e atrativo logo natildeo eacute beleza pois ela diz unicamente respeito agrave forma Para julgar-mos de modo universalmente vaacutelido para todos nosso juiacutezo tem de ser unacircnime por exemplo se uma moccedila eacute bela como moccedila ou se a considerariacuteamos bela tambeacutem disfarccedilada de homem Para que algo deva ser visto como belo apenas por causa do gosto esse juiacutezo partidaacuterio natildeo se volta para o gos-to Em nosso juiacutezo de gosto natildeo deve se imiscuir nenhum atrativo pois o atrativo faz parte do Juiacutezo sensiacutevel2

Essa explicaccedilatildeo dada no curso de antropologia Mens-chenkunde (inverno de 1781-1782) eacute a mesma da reflexatildeo an-terior (do ano de 1769) mas se detalha melhor a diferenccedila entre o juiacutezo de gosto e o juiacutezo sensiacutevel sendo este baseado no es-tiacutemulo ou atraccedilatildeo entre os sexos Essa identificaccedilatildeo entre estiacute-mulo sensiacutevel e atraccedilatildeo sexual (sinnlich pode remeter tanto aos oacutergatildeos do sentido como agrave sensualidade) desaparece na Criacuteti-ca do juiacutezo uma vez que nela se encontra apenas a distinccedilatildeo mais geneacuterica entre aquilo que atrai a sensibilidade e aquilo que apraz o sentimento Entretanto ela eacute fundamental do ponto de 1 I Kant Refl 640 AA 15 pp 280-2822 I Kant Antropologia Menschenkunde AA 25 p 1098-1099

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

121

vista geneacutetico isto eacute para que Kant chegue agrave diferenciaccedilatildeo do belo em relaccedilatildeo ao atrativo e agrave emoccedilatildeo tratada no paraacutegrafo 13 da criacutetica do Juiacutezo reflexionante3

Teria Kant lido diretamente as obras de Winckelmann ou seu contato com elas seria de segunda matildeo Eacute grande sem duacutevida a dificuldade de solucionar inteiramente a questatildeo Uma pista fundamental nessa direccedilatildeo eacute talvez uma anotaccedilatildeo mais antiga de Kant referindo-se agravequele que eacute considerado por mui-tos o pai da histoacuteria da arte

A sensibilidade agrave beleza dos jovens deu origem ao amor grego pela paixatildeo mais vergonhosa que jamais cons-purcou a natureza humana e seus criminosos bem mereciam ser entregues agrave vinganccedila e ao insulto das mulheres4

Desta anotaccedilatildeo de 1764-1765 agraves passagens posterio-res a posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave homossexualidade eacute diametralmen-te oposta e o ganho conceitual que essa perspectiva natildeo mo-ralizadora trouxe para a concepccedilatildeo esteacutetica kantiana tambeacutem eacute consideraacutevel Os textos como tambeacutem assinala corretamente a editora das Notas agraves ldquoObservaccedilotildees sobre o sentimento do belo e do sublimerdquo fazem referecircncia a uma passagem em que Win-ckelmann discute a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino Dois paraacutegrafos deste opuacutesculo merecem ser citados na iacutentegra por decisivos que foram para os caminhos da esteacutetica posterior

Para a juventude noviccedila essa capacidade [de sen-tir o belo] estaacute envolvida em emoccedilotildees obscuras e confusas como qualquer outra inclinaccedilatildeo e se anuncia como um forte comichatildeo na pele cujo verdadeiro lugar natildeo pode ser encon-trado ao coccedilar Deve ser procurada antes em jovens bem for-mados do que em outros porque pensamos em geral como somos feitos mas menos na formaccedilatildeo do que no ser e no modo de pensar e sentir Um coraccedilatildeo brando e sentidos doacute-ceis satildeo sinais de tal capacidade Ela se mostra mais niti-damente quando lendo algum escritor o sentimento eacute mais ternamente comovido ali onde o senso inculto passa ao largo como aconteceria diversas vezes no discurso de Glauco a Diomedes isso que eacute a comparaccedilatildeo comovente da vida hu-mana com folhas arrancadas pelo vento e que voltam a bro-tar na primavera Onde esse sentimento natildeo existe eacute como pregar o conhecimento da beleza a um cego assim como a muacutesica a um ouvido natildeo musical Em meninos que natildeo foram educados na arte nem satildeo propriamente destinados a ela

3 ldquoO juiacutezo-de-gosto puro eacute independente de atrativo e emoccedilatildeordquo I Kant Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filosoacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974 p 3184 I Kant Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Rischmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

122

um sinal mais proacuteximo dele eacute o impulso natural ao desenho que eacute inato como o impulso agrave poesia e agrave muacutesica

Aleacutem disso como para conhecer a beleza humana eacute preciso apreendecirc-la num conceito geral observei que aque-les que atentam somente para as belezas do sexo feminino e satildeo pouco ou nada tocados pelas belezas de nosso sexo natildeo possuem o sentimento do belo facilmente inato geral e vivo Neles o belo na arte dos gregos permaneceraacute defectivo jaacute que as maiores belezas dela satildeo mais do nosso sexo do que do outro Exige-se poreacutem mais sentimento para o belo na arte do que na natureza porque aquele como as laacutegrimas no teatro eacute sem dor e sem vida e precisa ser despertado e res-tituiacutedo pela imaginaccedilatildeo Mas como esta eacute muito mais fogosa na juventude do que na idade madura a capacidade de que falamos deve ser exercitada a tempo e conduzida ao belo an-tes que chegue a idade na qual estremecemos ao confessar que natildeo o sentimos5

O opuacutesculo sobre a capacidade de sentir a beleza cha-mou logo a atenccedilatildeo de Kant (a primeira ediccedilatildeo eacute de 1763) cer-tamente tanto pelo seu aspecto cognitivo (em que consistiria a faculdade para apreensatildeo do belo) como pelo seu aspecto conceitual pois o belo supotildee um ldquoconceito geralrdquo que natildeo se restringe a este ou agravequele indiviacuteduo a este ou agravequele sexo mas deve levar o apreciador de arte agrave condiccedilatildeo de algueacutem que julga universalmente Mas alcanccedilar esse sentimento da beleza ideal natildeo eacute resultado de uma ciecircncia de um saber universalmente evidente Antecipando outro ponto fundamental da esteacutetica kan-tiana Winckelmann mostraraacute que natildeo haacute uma ciecircncia do sensiacute-vel ao contraacuterio do que tentara ensinar Baumgarten

A beleza pode ser reduzida a certos princiacutepios mas natildeo definida Geralmente se diz que ela consiste no consen-so muacutetuo da criatura com os seus fins e das partes consigo mesmas e com o todo mas isso eacute confundir a beleza com a perfeiccedilatildeo a qual tampouco pode ser definida nem pode de-finir-se por isso porque a humanidade natildeo tem capacidade para tal Ora eacute adequada ao belo uma definiccedilatildeo que a con-funde com o perfeito

A impossibilidade de definir a beleza nasce de que ela eacute algo superior ao nosso intelecto e como dessa superio-ridade natildeo nos eacute possiacutevel idear algo que seja mais sublime e perfeito que a beleza resultou que o belo e o perfeito nos pareceram duas coisas idecircnticas e se natildeo fosse assim teriacute-amos a verdadeira definiccedilatildeo dele como ocorreu a qualquer outra coisa da qual se conhece toda a essecircncia6

5 J J Winckelmann Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a ca-pacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771 pp 8-9 Ediccedilatildeo encontraacutevel no site vd18de6 J J Winckelmann Monumenti antichi inediti spiegati ed illustrati da

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

123

Em virtude da dificuldade de definir os conceitos a filo-sofia passou seacuteculos confundindo a ideia de beleza com a ideia de perfeiccedilatildeo ela concebe o belo segundo um conceito de fina-lidade que eacute proacuteprio apenas aos seres orgacircnicos Ora eacute pre-cisamente essa identificaccedilatildeo do belo com o perfeito que seraacute rejeitada na Criacutetica do juiacutezo Ao mostrar que o ldquojuiacutezo-de-gosto eacute inteiramente independente do conceito de perfeiccedilatildeordquo Kant lem-bra que a finalidade objetiva eacute justamente a referecircncia de uma diversidade agrave unidade produzida por um fim determinado isto eacute por um conceito7 mas em contraposiccedilatildeo a ele a beleza natildeo pode ter conceito algum natildeo sendo portanto passiacutevel de de-finiccedilatildeo Noutros termos a vitalidade a sauacutede de um corpo tem como fim a sua conservaccedilatildeo e agrave da espeacutecie (mediante a repro-duccedilatildeo) mas a beleza natildeo precisa ou deve servir a este fim

Winckelmann antecipa assim claramente tambeacutem a criacutetica kantiana ao conceito objetivo de beleza mas suas consi-deraccedilotildees satildeo tanto mais interessantes porque chegam agrave auto-nomia esteacutetica por um vieacutes todo proacuteprio que inclui tambeacutem uma libertaccedilatildeo do preconceito em relaccedilatildeo ao homoerotismo ndash algo que como se viu desaparece dos textos publicados por Kant mas natildeo das reflexotildees e pelo menos de um curso de Antro-pologia E essa brecha que ele abre tambeacutem seraacute muito bem percebida e explorada pela esteacutetica e literatura posterior

O Renascimento

Entre as tomadas de posiccedilatildeo mais instigantes de Wal-ter Pater com respeito agrave Renascenccedila estaacute certamente sua con-cepccedilatildeo de que o espiacuterito renascentista eacute algo supra-histoacuterico e supranacional pairando como que acima das determinaccedilotildees circunstanciais e extravasando limites temporais e espaciais Entre os ldquorenascentistasrdquo devem ser incluiacutedos segundo ele no-mes que natildeo viveram na eacutepoca do Renascimento como Abe-lardo e Heloiacutesa os trovadores provenccedilais e tambeacutem Johann Joachim Winckelmann pensador setecentista alematildeo que em-bora vivendo distante de todo o contato com a civilizaccedilatildeo antiga e num momento pouco favoraacutevel aos estudos claacutessicos teve ldquoo sentimento do mundo helecircnicordquo foi irresistivelmente atraiacutedo por ele e adivinhou os canais secretos que levavam a ele8 Graccedilas a um poder divinatoacuterio que o fez perceber a permanecircncia do espiacuterito grego ao longo de toda a histoacuteria Winckelmann com-preendeu muito bem que diferentemente do que ocorre com outras forccedilas espirituais que satildeo soterradas e absorvidas por assim dizer pelos tempos posteriores

Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767 cap 4 parte I p XXX-VIII7 I Kant Criacutetica do juiacutezo sect 15 trad cit p 3218 W Pater O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014 p 190

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

124

[] o elemento helecircnico natildeo se deixa absorver assim nem se deixa contentar com essa vida subterracircnea de tem-pos em tempos ele vem agrave tona a cultura eacute levada de volta agraves suas fontes para ser clarificada e corrigida O helenismo natildeo eacute apenas um elemento em nossa vida intelectual eacute uma tradiccedilatildeo consciente no interior dela9

O historiador da arte antiga reconheceu todo um conjun-to de caracteriacutesticas do mundo helecircnico mediante a compreen-satildeo de que o nuacutecleo de sua arte estava baseado na idealidade ou generalidade (Allgemeinheit) A arte principalmente a escul-tura deve eliminar tudo o que eacute de apelo particular para se con-centrar no que eacute tiacutepico universal

Obras de arte produzidas segundo essa lei e unica-mente estas satildeo realmente caracterizadas pela generalidade e amplitude helecircnicas Esta eacute uma lei de limitaccedilatildeo em todos os sentidos Ela manteacutem a paixatildeo sempre abaixo daquele grau de intensidade no qual eacute sempre transitoacuteria sem jamais arrematar os traccedilos numa soacute nota de ira desejo ou surpre-sa10

A idealidade esteacutetica de Winckelmann eacute retomada aqui em toda a forccedila mais de um seacuteculo depois da publicaccedilatildeo de suas obras e num momento em que jaacute sofreu e continuava so-frendo ataques de todos os lados Pater natildeo tem vergonha de dizer retomando as teses winckelmannianas que essa ideali-dade estava ligada agrave serenidade (Heiterkeit) grega agrave ausecircncia do pathos desmedido o que significa propriamente uma ausecircn-cia de ldquosexualidaderdquo

A beleza das estaacutetuas gregas era uma beleza asse-xuada as estaacutetuas dos deuses quase natildeo tinham traccedilos de sexo Havia ali uma assexualidade moral uma espeacutecie de totalidade ineficaz da natureza embora dotada de verdadeira beleza e de uma significaccedilatildeo proacutepria11

A arte grega mostrava uma atitude distanciada serena para com a sexualidade e sensualidade A imersatildeo no elemen-to sensual natildeo era um problema de consciecircncia para os gre-gos natildeo causava vergonha inibiccedilatildeo ou desapontamento Sem se deixar ldquointoxicarrdquo pela sensualidade ou pela espiritualidade Winckelmann tambeacutem se tornou um grego entre os gregos

[] ele toca os dedos naqueles maacutermores pagatildeos sem se persignar sem nenhum senso de vergonha ou de per-da Isso eacute lidar com o lado sensual da arte de uma maneira

9 Idem pp 190-19110 Idem p 20411 Idem p 208

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

125

pagatilde12

O ideal esteacutetico

O livro de Pater sobre o Renascimento teve grande re-percussatildeo como se sabe na literatura inglesa mas por seu intermeacutedio a esteacutetica winckelmanniana conhece tambeacutem um desdobramento inesperado na obra de Fernando Pessoa Na importante resenha que ele escreve ao livro Canccedilotildees do poeta Antoacutenio Botto publicada no nuacutemero 3 da revista Contemporacirc-nea em julho de 1922 Pessoa redige um verdadeiro programa esteacutetico baseado nos princiacutepios da serenidade grega tirando consequecircncias fecundas das observaccedilotildees de Pater a respeito do historiador da arte grega

Segundo o poeta portuguecircs somente o paganismo gre-go eacute realmente capaz de construir um ideal esteacutetico jaacute que o espiritualismo hindu e o espiritualismo cristatildeo desprezam a im-perfeiccedilatildeo do mundo em prol de uma outra ordem que seria a verdadeira e real A civilizaccedilatildeo helecircnica ao contraacuterio aceita o mundo terreno como sendo o que eacute mera aparecircncia e a sua arte recria essa aparecircncia e a vive ndash fatalisticamente ndash como tal Soacute os gregos aceitam a imperfeiccedilatildeo e buscam transformaacute-la reconhecendo ao mesmo tempo que a perfeiccedilatildeo eacute inatingiacutevel soacute os gregos portanto construiacuteram um ideal humano traacutegico e profundo de aperfeiccediloamento subjetivo da vida13 Sem se aba-lar com as limitaccedilotildees proacuteprias da vida com a calma equiliacutebrio e harmonia que lhe satildeo proacuteprios o homem grego foi o uacutenico a conseguir pocircr a arte na trilha de um ldquoideal esteacutetico absolutordquo14

Satildeo trecircs as formas pelas quais o ideal helecircnico se mani-festa ao ver que a vida eacute imperfeita ele busca criar a perfeiccedilatildeo substituindo a arte agrave vida15 Esse ideal eacute encontrado em Homero e Virgiacutelio Dante e Milton Na segunda forma de manifestaccedilatildeo do ideal esteacutetico o grego assume a vida imperfeita e tenta transfor-maacute-la em sua proacutepria pessoa Eacute esta forma ldquoemotiva e dolorosa do ideal esteacuteticordquo que criou a trageacutedia Na terceira forma do ideal esteacutetico os gregos sem forccedila espiritual para recriar artistica-mente ou para assumir subjetivamente a imperfeiccedilatildeo a aceitam tal qual se apresenta nos gestos nas coisas nos momentos particulares etc Trata-se sem duacutevida da forma mais iacutenfima e fraacutegil do ideal porque natildeo eacute nem uma reaccedilatildeo da inteligecircncia nem da emoccedilatildeo mas ao mesmo tempo eacute em certo sentido a mais esteacutetica porque natildeo tem outro predicado moral ou emotivo

12 Idem ibidem13 F Pessoa ldquoAntoacutenio Botto e o ideal esteacutetico em Portugalrdquo In Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990 pp 350-35114 Idem ibidem15 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

126

a qualificaacute-la Ela eacute o ideal esteacutetico ldquopurordquo16

O caraacuteter distintivo do verdadeiro esteta eacute produzir uma arte em que estatildeo ausentes quaisquer elementos metafiacutesicos ou morais Entretanto essa ausecircncia de elementos metafiacutesicos ou morais natildeo significa ausecircncia de ideias metafiacutesicas ou mo-rais Pessoa tem plena consciecircncia de que combate em duas frentes tendo em vista que se a autonomia esteacutetica natildeo eacute puro formalismo mera arte pela arte por outro lado tambeacutem natildeo se pode recair no platonismo de assimilar o belo ao bem e agrave ver-dade

Haacute uma ideia que sem ser metafiacutesica nem moral faz na obra do esteta as vezes das ideias morais e metafiacutesicas O esteta substitui a ideia de beleza agrave ideia de verdade e agrave ideia de bem poreacutem daacute por isso mesmo a essa ideia de beleza um alcance metafiacutesico e moral A ceacutelebre ldquoConclusatildeordquo da Renascenccedila de Pater o maior dos estetas europeus eacute o exemplo culminante desta atitude17

O esteticismo puro seria capaz de assimilar ideias me-tafiacutesicas e morais Eis a liccedilatildeo que Winckelmann-Pater datildeo tanto aos puros formalistas quanto aos estetas impuros ou melhor aos cristatildeos ou decadentes travestidos de pagatildeos como Wilde e Baudelaire (aos quais Pessoa natildeo hesitaria em acrescentar o nome de Nietzsche)18 O verdadeiro esteta natildeo defende uma ldquocausardquo ele eacute avesso a toda forma de doutrinaccedilatildeo A forccedila de sua poesia como em Antoacutenio Botto adveacutem de duas ideias simples a ideia de beleza fiacutesica e a ideia de prazer ndash ideias estas que lhe servem de metafiacutesica e moral ainda que sejam totalmente amorais e ao mesmo tempo estejam longe de toda espeacutecie de imoralidade19 E aqui Fernando Pessoa esmiuacuteccedila e aprofunda as consideraccedilotildees de Winckelmann

16 Idem pp 351-35217 Idem ibidem18 Idem ibidem A criacutetica a Nietzsche tatildeo presente em outros textos do escritor portuguecircs talvez fique clara por essa diferenciaccedilatildeo que alias eacute explicitada em relaccedilatildeo ao filoacutesofo alematildeo na beliacutessima sequecircncia desse mesmo texto haacute nas Canccedilotildees de Antoacutenio Botto ldquoa intuiccedilatildeo do fundo traacutegico do ideal helecircnico do fundo traacutegico de todo o prazer que sabe que natildeo tem aleacutem Essa intuiccedilatildeo poreacutem se eacute do que eacute traacutegico natildeo eacute traacutegica em si Este prazer natildeo tem a cor da alegria nem a da dor lsquoA alegriarsquo disse Nietzsche lsquoquer eternidade quer profunda eternidadersquo Natildeo eacute nem nunca foi assim a alegria natildeo quer nada e eacute por isso que eacute alegria A dor essa eacute o contraacuterio da alegria como a concebia Nietzsche quer acabar quer natildeo ser O prazer poreacutem quando o concebemos fora de relaccedilatildeo essencial com a alegria ou com a dor como concebe o autor deste livro esse sim quer eternidade po-reacutem quer a eternidade num soacute momentordquo Esse revide tardio do classicismo winckelmanniano a Nietzsche natildeo deixa de ter seu interesse O sentido ver-dadeiramente traacutegico de estar aleacutem de bem e mal sem motivaccedilatildeo nenhuma eacute diferente do sentimento de estar aleacutem deles por um espiacuterito de antagonismo ou razatildeo profunda qualquer19 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

127

Das trecircs formas que podemos conceber da beleza fiacutesica ndash a graccedila a forccedila e a perfeiccedilatildeo ndash o corpo feminino soacute tem a primeira porque natildeo pode ter a beleza da forccedila sem quebra da sua feminilidade isto eacute sem perda do seu caraacuteter proacuteprio o corpo masculino pode sem quebra de sua mas-culinidade reunir a graccedila e a forccedila a perfeiccedilatildeo soacute aos cor-pos dos deuses se existem eacute dado tecirc-la Um homem se se guiar pelo instinto sexual e natildeo pelo instinto esteacutetico canta-raacute como poeta soacute o corpo feminino Essa atitude representa uma preocupaccedilatildeo exclusivamente moral O instinto sexual normalmente tendente para o sexo oposto eacute o mais rudimen-tar dos instintos morais A sexualidade eacute uma eacutetica animal a primeira e a mais instintiva das eacuteticas Como poreacutem o esteta canta a beleza sem preocupaccedilatildeo eacutetica segue que a cantaraacute onde mais a encontra e natildeo onde sugestotildees externas agrave es-teacutetica como a sugestatildeo sexual o faccedilam procuraacute-la Como se guia pois soacute pela beleza o esteta canta de preferecircncia o cor-po masculino por ser o corpo humano que mais elementos de beleza dos poucos que haacute pode acumular20

Natildeo satisfeito com retomar-lhe as ideias Pessoa cita di-retamente Winckelmann numa traduccedilatildeo que faz da traduccedilatildeo de Pater

Como eacute confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral assim tenho no-tado que aqueles que observam a beleza soacute nas mulheres e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens raras vezes tecircm instinto imparcial vital inato da beleza na arte A pessoas como essas a beleza da arte grega pareceraacute sempre falha porque a sua beleza suprema eacute antes masculina que feminina21

A nova maneira de olhar

A concepccedilatildeo de ideal esteacutetico exposta na resenha sobre Canccedilotildees de Antoacutenio Botto natildeo eacute certamente uma manifestaccedilatildeo isolada na obra pessoana Outro texto que mostra o interesse do poeta pela obra de Pater eacute a traduccedilatildeo que fez do beliacutessimo trecho dedicado agrave ldquoGiocondardquo publicado na revista Athena de Lisboa em novembro de 1924 Assim como a resenha sobre o livro de Botto a seleccedilatildeo de um excerto tatildeo curto mas escolhido agrave dedo merece atenccedilatildeo E mesmo o melhor comentaacuterio a ele ndash como o comentaacuterio da proacutepria obra de arte que descreve ndash natildeo 20 Idem p 35421 Idem p 354 Como o leitor estaacute lembrado o trecho eacute exatamente o mesmo da Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben de Winckelmann citado agrave nota 5 Pessoa cita apenas um trecho do texto citado por Pater (trad cit pp185-186)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

128

poderia dispensar a sua transcriccedilatildeo

La Gioconda eacute no mais verdadeiro dos sentidos a obra-prima de Leonardo o exemplo revelador do seu modo de pensamento e de trabalho Em sugestatildeo soacute a Melancolia de Duumlrer lhe eacute comparaacutevel e natildeo haacute simbolismo cru que per-turbe o efeito do seu misteacuterio esbatido e gracioso Conhece-mos todos o rosto e as matildeos da figura posta em sua cadeira de maacutermore naquele ciacuterculo de rochedos fantaacutesticos como em vaga luz de sob o mar Talvez de todos os quadros anti-gos seja aquele que o tempo menos desbotou Como muitas vezes acontece com obras em que dir-se-ia que a invenccedilatildeo chegou a seu limite haacute nela um elemento dado ao mestre que natildeo inventado por ele Naquele inestimaacutevel foacutelio de dese-nhos que um tempo Vasari possuiu havia certos esboccedilos de Verrocchio rostos de beleza tatildeo expressiva que Leonardo jo-vem muitas vezes os copiou Eacute difiacutecil natildeo relacionar com es-tes esboccedilos do mestre preteacuterito como com seu princiacutepio ger-minal o sorriso insondaacutevel sempre como tocado de qualquer coisa de sinistro que paira em toda a obra de Leonardo Aleacutem disso o quadro eacute um retrato Desde a infacircncia vemos esta imagem definindo-se no estofo de seus sonhos e se natildeo fora o testemunho expresso da histoacuteria pudeacuteramos pensar que natildeo era esta mais que a sua dama ideal por fim corporizada e vista Que parentesco teve uma florentina real com esta cria-tura de seu pensamento Por que estranhas afinidades assim cresceram separados o sonho e a pessoa ainda que ligados de tatildeo perto Presente desde o princiacutepio incorporeamente no ceacuterebro de Leonardo delineada vagamente nos desenhos de Verrocchio ela encontra-se por fim presente em casa drsquoIl Gio-condo Que haacute muito de simples retrato no quadro atesta-o a lenda de que por meios artificiais a presenccedila de mimos e de tocadores de flauta se prolongou no rosto aquela expressatildeo sutil E ainda seria em quatro anos e por um trabalho reno-vado nunca em verdade findo ou em quatro meses e como por um golpe de magia que a imagem assim se projetou

A presenccedila que assim tatildeo estranhamente se ergueu de ao peacute das aacuteguas eacute expressiva daquilo que os homens nos caminhos de um milhar de anos tinham chegado a desejar Aquela eacute a cabeccedila sobre a qual ldquovieram todos os fins do mun-dordquo e as paacutelpebras estatildeo um pouco cansadas Eacute uma beleza trabalhada de dentro sobre a carne o depoacutesito ceacutelula a ceacutelu-la de pensamentos estranhos e devaneios fantaacutesticos e pai-xotildees esquisitas Colocai-a um momento ao peacute de uma dessas brancas deusas da Greacutecia ou mulheres belas da antiguidade e como elas se turbariam desta beleza para onde entrou jaacute a alma com todas as suas doenccedilas Todos os pensamentos e experiecircncia do mundo ali gravaram e modelaram no que tecircm de poder de refinar e tornar expressiva a forma exterior

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

129

o animalismo da Greacutecia a luxuacuteria de Roma o misticismo da Idade Meacutedia com sua ambiccedilatildeo espiritual e seus amores ima-ginativos o regresso do mundo pagatildeo os pecados dos Bor-gias Ela eacute mais velha que os rochedos entre os quais se assenta como o vampiro morreu jaacute muitas vezes e aprendeu os segredos do tuacutemulo e mergulhou em mares profundos e guarda cercando-a ainda o seu dia morto e traficou em teci-dos estranhos com os mercadores do Oriente e como Leda foi matildee de Helena de Troia e como Santa Ana foi matildee de Maria e tudo isto natildeo foi para ela mais que um som de liras e flautas e vive apenas uma delicadeza com que lhe modelou as feiccedilotildees instaacuteveis e lhe coloriu as paacutelpebras e as matildeos A fantasia de uma vida perpeacutetua congregando dez mil experi-ecircncias eacute antiga e a filosofia moderna concebeu a ideia da humanidade como trabalhada por e resumindo em si todos os modos de pensamento e vida Por certo que a Dama Lisa poderia ficar como a encarnaccedilatildeo da fantasia antiga o siacutembo-lo da ideia moderna22

Esses dois paraacutegrafos magistrais satildeo obviamente uma ekphrasis poeacutetica da obra de Leonardo mas tambeacutem muito mais que isso23 Sem contar a admiraacutevel prosa (que levou Ye-ats a selecionar surpreendentemente um trecho dela para abrir a sua coletacircnea de ldquoversos modernosrdquo para a editora Oxford transformando-o em versos livres24) Pater concentra neles tudo aquilo que haacute de essencial em sua ldquofilosofia da histoacuteriardquo na qual se poderia notar a presenccedila de certo hegelianismo embora o fundamental seja provavelmente a sua diacutevida para com Heine de quem cita um longo trecho em Renascimento25 E de fato assim como Heine Pater natildeo vecirc a histoacuteria desconectada dos impulsos religiosos que a movem pois as religiotildees satildeo ldquomovi-mentosrdquo naturais do espiacuterito humano Uma delas aliaacutes como se viu anteriormente o paganismo grego estaria tatildeo ligada agrave histoacuteria do espiacuterito que pode ser considerada a verdadeira forccedila motora e modificadora das atitudes humanas Como os deu-

22 O autor agradece imensamente a Claacuteudia Souza pela indicaccedilatildeo e pelo acesso a este texto23 Num pequeno comentaacuterio que redige sobre essa descriccedilatildeo de Mona Lisa Fernando Pessoa escreve ldquoQuando Walter Pater descreve a Gioconda vecirc nela coisas que laacute natildeo estatildeo Mas a sua descriccedilatildeo eacute mais bela do que a Gioconda porque eacute Gioconda + muacutesica (ritmo da prosa) + ideias (as conti-das nas palavras da descriccedilatildeo) + rdquo In F Pessoa Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizarro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009 p 284 O comentaacuterio se explica pois como se sabe diferentemente de Pater para quem todas as artes tendem agrave muacutesica para Pessoa todas devem tender agrave literatura24 ldquoShe is older than the rocks among which she sitsLike the vampireShe has been dead many timesAnd learned the secrets of the graveAnd has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about her She is older than the rocks among which she sits Like the vampireShe has been dead many times And learned the secrets of the grave And has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about herrdquo25 Trad cit pp 54-55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

130

ses exilados de Heine a Madonna percorreu todas as eacutepocas da histoacuteria tendo assumido os mais diferentes papeacuteis e ofiacutecios (foi Helena Santa Ana traficou com mercadores do Oriente) e suas paacutelpebras mostram o cansaccedilo de algueacutem que como Zeus--Odin na ilha dos Coelhos eacute velho como o mundo

Os Deuses no exiacutelio satildeo efetivamente o marco decisivo para uma nova forma de ver a histoacuteria na qual esta se mostra natildeo soacute como ldquohistoacuteria do espiacuteritordquo nos moldes da filosofia he-geliana mas como uma verdadeira ldquohistoacuteria da sexualidaderdquo O paganismo eacute manancial perene de rejuvenescimento natildeo tan-to porque serviria de estimulante agrave fantasia luacutebrica de homens decadentes e sim por mostrar a possibilidade de um modo de encarar a sexualidade que nada tem que ver com a tara de sexo dos homens modernos Partindo do neoclassicismo winckel-manniano e goethiano Heine tornou patente a diferenccedila entre a visualidade natural inocente do sexo entre os antigos e o aco-bertamento dele pelo cristianismo acobertamento este sempre acompanhado de um voyeurismo doentio Kierkegaard eacute outro autor que muito provavelmente seguiu Heine neste ponto afir-maccedilatildeo que se eacute verdadeira torna ainda mais interessante sua visatildeo cristatilde de que a sensualidade eacute uma representaccedilatildeo que surge somente com o advento do cristianismo Ela existia entre os gregos mas soacute se passa a ter consciecircncia dela com o adven-to da espiritualidade cristatilde de que ela eacute o negativo

Enquanto princiacutepio enquanto forccedila enquanto siste-ma em si a sensualidade [Sandseligheden] foi primeiramente posta com o cristianismo posso acrescentar uma determina-ccedilatildeo que talvez mostre mais enfaticamente o que quero dizer a sensualidade foi primeiramente posta com o cristianismo sob a determinaccedilatildeo do espiacuterito [Aand] Isso eacute inteiramente natural pois o cristianismo eacute espiacuterito e o espiacuterito o princiacutepio positivo que ele trouxe para o mundo26

Todas essas consideraccedilotildees sobre a dialeacutetica do espiacuterito e da sensualidade do cristianismo e do paganismo ajudam cer-tamente a entender melhor o quadro no qual se constitui o es-tetismo de Pater e tambeacutem ndash a partir deste ndash a formular melhor o que seria aquela volta do paganismo anunciada por Pessoa e seus heterocircnimos ndash doutrina que eacute explicitada especialmen-te por Antoacutenio Mora Natildeo caberia certamente elencar e discutir todos os ingredientes poeacuteticos esteacutetico-morais e poliacuteticos que estatildeo em jogo na postulaccedilatildeo salviacutefica do ldquoregresso dos deusesrdquo por Fernando Pessoa27 mas valeria a pena sim destacar um deles eacute que a retomada do paganismo perde pelo menos um pouco de sua aura miacutestico-utoacutepica quando se percebe que ela significa essencialmente uma mudanccedila na forma de olhar Essa transformaccedilatildeo do modo de ver produzida por um retorno aos

26 S Kierkegaard Enten ndash Eller Copenhague Gyndendal 1994 p 6027 A citaccedilatildeo de um longo paraacutegrafo dos Deuses no exiacutelio de Heine eacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

131

gregos pode ser reconhecida por exemplo neste fragmento de O regresso dos deuses

O grego reparava essencialmente na forma Eacute carac-teriacutestico do visual e do atento notar as formas das coisas A nascenccedila da fisiognomia e correlacionadas formas de ciecircn-cia na Greacutecia aponta isto Eacute na forma que repara primeiro o homem atento ao mundo exterior O Cristianismo trouxe um adoecimento de sentimentos e de sentidos que levou a esmiuccedilar as formas e achar o sentimento das cores e das tonalidades Mas perdeu-se por aiacute caiu no erro regressivo de buscar na arte uma expressatildeo de emoccedilotildees de sensaccedilotildees de aspiraccedilotildees A arte eacute isto poreacutem apenas num seu estaacute-dio inferior depois chegada agrave Greacutecia desde a Greacutecia a arte passa a ser um fenoacutemeno de trabalho de esforccedilo de querer realizar a perfeiccedilatildeo28

Uma forma de ver pagatilde em oposiccedilatildeo agrave expressividade cristatilde sentimental simplificando muito se poderia afirmar que a poeacutetica pessoana se faz precisamente por essa remissatildeo agrave visi-bilidade pura ndash ou talvez eacute pela proximidade ou afastamento em relaccedilatildeo a essa pureza do olhar eacute por ver mais distintamente ou por estar mais ou menos ldquodoente dos olhosrdquo que se mede o grau de paganismo ou de decadentismo dos poetas que compotildeem a plecirciade heteroniacutemica Alberto Caeiro Ricardo Reis Aacutelvaro de Campos Fernando Pessoa ele mesmo Fernando Pessoa autor dos sonetos ingleses

Mas talvez nem um deles soube exprimir melhor que Bernardo Soares qual eacute o segredo dessa combinaccedilatildeo maacutegica de erotismo e autonomia do olhar Eacute o que se pode ler num frag-mento do Livro do desassossego intitulado muito precisamente ldquoO amante visualrdquo ou ldquoAnterosrdquo

Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo Sou sujeito a paixotildees visu-ais Guardo intacto o coraccedilatildeo dado a mais irreais destinos

Natildeo me lembro de ter amado senatildeo o lsquoquadrorsquo em algueacutem o puro exterior ndash em que a alma natildeo entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo ndash e assim diferente dos quadros que os pintores fazem

Amo assim fixo por bela atraente ou de outro qual-quer modo amaacutevel uma figura de mulher ou de homem ndash onde natildeo haacute desejo natildeo haacute preferencia de sexo ndash e essa fi-gura me obceca me prende se apodera de mim Poreacutem natildeo quero mais que vecirc-la nem olho nada com mais horror que a

um documento de interesse para a formulaccedilatildeo da ideia do regresso do paga-nismo em Pessoa A ediccedilatildeo que utiliza eacute da editora Macmillan publicada em Londres em 1915 O contato com Pater (e Heine) pode portanto ser bem anterior agrave traduccedilatildeo do trecho sobre a Gioconda28 F Pessoa O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013 p 55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

132

possibilidade [] de vir a conhecer e falar agrave pessoa real que essa figura aparentemente manifesta

Amo com o olhar e nem com a fantasia Porque nada fantasio dessa figura que me prende Natildeo me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decorativo nada tem de mais psicoloacutegico [] Natildeo me interessa saber quem eacute que faz que pensa a criatura que me daacute para ver o seu aspecto exterior

A imensa seacuterie de pessoas e de coisas que forma o mundo eacute para mim uma galeria inteacutermina de quadros cujo interior me natildeo interessa Natildeo me interessa porque a alma eacute monoacutetona e sempre a mesma em toda a gente diferem ape-nas as suas manifestaccedilotildees pessoais e o melhor dela eacute o que transborda para o sonho para os modos para os gestos e assim entra para o quadro que me prende e em que visiono caras constantes a essa afeiccedilatildeo

Para mim uma criatura natildeo tem alma A alma eacute soacute com ela mesma

Assim vivo em visatildeo pura o exterior animado das coisas e dos seres indiferente como um deus de outro mun-do ao conteuacutedo-espiacuterito deles Aprofundo o ser proacuteprio soacute em extensatildeo e quando anseio a profundeza eacute em mim e no meu conceito das coisas que a procuro

Que pode dar-me o conhecimento pessoal da cria-tura que assim amo em deacutecor Natildeo uma desilusatildeo porque como nela soacute amo o aspecto e nada dela fantasio a sua es-tupidez ou mediocridade nada tira porque eu natildeo esperava nada senatildeo o aspecto que natildeo tinha que esperar e o aspec-to persiste Mas o conhecimento pessoal eacute nocivo porque eacute inuacutetil e o inuacutetil material eacute nocivo sempre Saber o nome da criatura para quecirc e eacute a primeira coisa que apresentado a ela fico sabendo

O conhecimento pessoal precisa ser tambeacutem de li-berdade de contemplaccedilatildeo a que meu geacutenero de amar dese-ja Natildeo podemos fitar contemplar em liberdade quem conhe-cemos pessoalmente

O que eacute supeacuterfluo eacute a menos para o artista porque perturbando-o diminui o efeito

O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das aparecircncias e manifestaccedilatildeo das coisas ndash ob-jetivista dos sonhos amante visual das formas e dos aspec-tos da natureza

Natildeo eacute um caso do que os psiquiatras chamam ona-nismo psiacutequico nem sequer do que chamam erotomania Natildeo fantasio como no onanismo psiacutequico natildeo me figuro em sonho amante carnal ou sequer amigo de fala da criatura que fito e recordo nada fantasio dela Nem como o erotoacutema-no a idealizo e a transporto para fora da esfera da esteacutetica concreta natildeo quero dela ou penso dela mais do que o que me daacute aos olhos e agrave memoacuteria direta e pura do que os olhos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

133

viram29

Nesse fragmento Bernarndo Soares confronta seu amor agrave visualidade com a monomania eroacutetica da subjetividade moder-na procurando resgatar em meio ao mundo adverso um olhar divergente diferenciado voltado para o aspecto visual das coi-sas e das pessoas enfim para aquilo que nelas eacute tatildeo-somente forma e visualidade Esse encanto simples quase infantil com a manifestaccedilatildeo primeira das formas tem sido uma armadilha em que constantemente voltam a cair leitores que tentam des-vendar uma metafiacutesica na obra do poeta principalmente no que concerne ao heterocircnimo Alberto Caeiro Natildeo se pode certamen-te excluir que haja um fundo filosoacutefico na poeacutetica pessoana Mas seu alinhamento na tradiccedilatildeo esteacutetica aqui discutida talvez propicie uma explicaccedilatildeo mais plausiacutevel e simples para suas es-colhas e de resto ela tambeacutem ajudou o proacuteprio Pessoa a dar respostas claras aos clichecircs psicologizantes que procuravam (e continuando procurando) a todo custo rotular a sua (ausecircncia de) sexualidade

O ideal poeacutetico pessoano natildeo estaacute portanto numa recu-peraccedilatildeo ontoloacutegica do mundo mas provavelmente numa trans-formaccedilatildeo do poeta em alguma coisa que tem muito que ver com o artista visual com o artista plaacutestico no sentido que lhe foi dado por Roberto Longhi O filoacutesofo o homem adulto jaacute perdeu ldquoaquele senso tatildeo simples intenso e verdadeiro da apreensatildeo de uma realidaderdquo que caracteriza a experiecircncia perceptiva da crianccedila e do artista Soacute este eacute capaz de devolver aos olhos em-botados agravequela experiecircncia primordial de sentir a beleza de uma linha de um colorido de um volume de uma obra arquitetocircnica Como explica o criacutetico italiano

Cada estilo figurativo traz em si o dom essencial-mente esteacutetico primordialmente liacuterico de restaurar o contato do nosso espiacuterito com a realidade visual corpoacuterea jaacute que os haacutebitos cotidianos nos fizeram perder a empatia e a comu-nhatildeo que mantiacutenhamos com ela Quando por vias filosoacuteficas chegamos agrave convicccedilatildeo da existecircncia do mundo a ferrugem da vida metoacutedica jaacute nos fez perder a convicccedilatildeo original a convicccedilatildeo plaacutestica30

A busca de densidade psicoloacutegica de aprofundamento introspectivo eacute o avesso dessa convicccedilatildeo plaacutestica da realidade que eacute tambeacutem um modo poeacutetico de apreender o real assim

29 F Pessoa O livro do desassossego Composto por Bernardo Soa-res ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Organizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010 pp 479-480 Sobre a ldquovisu-alidaderdquo de Bernardo Soares ver o belo texto de Leyla Perrone-Moiseacutes ldquoIn-troduccedilatildeo ao desassossegordquo que figura na ediccedilatildeo do Livro do desassossego publicada pela editora Brasiliense (Satildeo Paulo 2a ed 1996)30 R Longhi Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Traduccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosacnaify 2005 p 19

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

134

descrito por Longhi

[] o sentir para o artista figurativo eacute o ver e o seu estilo isto eacute a sua arte se constroacutei inteiramente sobre os ele-mentos liacutericos da sua visatildeo31

A transformaccedilatildeo fundamental da liacuterica pessoana talvez possa ser pensada segundo esse ldquosenso liacuterico particular da arte figurativa essa ldquoliacuterica figurativardquo32 ou ldquoaderecircncia liacuterica agrave figurardquo33 da tradiccedilatildeo pictoacuterica escultoacuterica conforme os termos de Longhi Assim como requer um outro modo pelo qual deve ser vista a poesia pessoana tambeacutem procura instituir um modo novo de olhar Sua insistente defesa e exigecircncia desse outro modo de ver eacute o contraponto agrave miopia agrave cegueira agrave doenccedila dos olhos enfermidade que tambeacutem muitas vezes a acomete e da qual eacute certamente difiacutecil se libertar Mas o combate vale a pena Os so-netos ingleses e tantos outros estatildeo aiacute para o confirmar Se Kant disse que uma moccedila para ser bela tem de ser bela como moccedila ou mesmo disfarccedilada de homem do mesmo modo soacute quem pud L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confron-to intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012 er olhar com olhos livres uma rapariga de modos masculinos teraacute toda a li-berdade de dizer contra as convenccedilotildees sociais e as regras da gramaacutetica mas em absoluto fotograficamente ndash aquela rapaz34

31 Idem p 732 R Longhi Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 196133 L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 201234 Idem p 112

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

135

BIBLIOGRAFIA

KANT Immanuel Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodri-gues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filo-soacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974

KANT Immanuel Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Ris-chmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

KIERKEGAARD Soren Enten ndash Eller Copenhague Gynden-dal 1994 p 60

LONGHI R Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Tra-duccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosac Naify 2005

LONGHI R Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 1961

MARQUES L ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um con-fronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012

PATER Walter O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014

PESSOA F Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990

PESSOA F Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizar-ro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009

PESSOA F O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacute-nio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013

PESSOA F O livro do desassossego Composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Orga-nizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010

WINCKELMANN JJ Abhandlung von der Faumlhigkeit der Emp-findung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771

WINCKELMANN JJ Monumenti antichi inediti spiegati ed illus-trati da Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

136

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoHegel e Szondi notes on the content and form of modern drama

Palavras-chave Hegel esteacutetica drama moderno Peter SzondiKeywords Hegel aesthetics modern Drama Peter Szondi

RESUMO Pretende-se analisar como Peter Szondi a partir de um quadro teoacuterico hegeliano ressalta a contradiccedilatildeo entre a for-ma e o conteuacutedo no drama moderno o qual por sua vez con-duz ao predomiacutenio do eacutepico sobre o dramaacutetico

ABSTRACT We intended to analyze how Peter Szondi from a theoretical framework Hegelian emphasizes the contradiction between the form and the content in the modern drama wich in turn lead to the predominance of the epic over the dramatic

Em seu livro Teoria do drama moderno Peter Szondi parte de uma perspectiva que procura situar as obras dramaacute-ticas no acircmbito de uma ldquoantinomia interiorrdquo (SZONDI 1978 p 13) determinada por uma relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo A matriz teoacuterica dessa perspectiva remonta a Hegel citado pelo proacuteprio Szondi a partir da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas No sect 133 dessa obra intitulado ldquoconteuacutedo e formardquo Hegel afirma que ldquoo conteuacutedo natildeo eacute senatildeo o mudar da forma em conteuacutedo e a forma natildeo eacute senatildeo o mudar de conteuacutedo em formardquo (HEGEL 1995 p 253)

Esse trecho corresponde na chamada pequena loacutegica da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas agrave loacutegica da essecircncia da grande loacutegica ou seja agrave Ciecircncia da loacutegica Trata-se gros-so modo na loacutegica da essecircncia (situada no campo da primeira parte da loacutegica a chamada loacutegica objetiva a qual engloba ainda a loacutegica do ser) de examinar o segundo momento do elemento loacutegico [das Logische] marcado pelo princiacutepio da reflexatildeo e da aparecircncia Se na loacutegica do ser Hegel reinterpreta as categorias da quantidade e da qualidade no horizonte de uma fusatildeo entre metafiacutesica e loacutegica nesse segundo momento da primeira parte a saber na loacutegica da essecircncia estatildeo em jogo as categorias de relaccedilatildeo e modo Dito de outra forma se na loacutegica do ser as determinaccedilotildees puras de pensamento se manteacutem relativamen-te isoladas na loacutegica da essecircncia passamos para o campo da

Marco Aureacutelio Werle

Doutor e professor de Esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail mawerleuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

137

reflexatildeo As determinaccedilotildees entram numa relaccedilatildeo se dizem por sua alteridade por seu contraacuterio ldquoum-para-o-outrordquo no acircmbito de uma certa tensatildeo entre ser e essecircncia Dominam entatildeo na loacutegica da essecircncia pares de pensamento essencial e inessen-cial identidade e diferenccedila positivo e negativo realidade e apa-recircncia etc

Transpondo esse princiacutepio para o uso que Szondi faz dele pode-se dizer que as obras dramaacuteticas investigadas e jun-to com elas o respectivo pensamento dos dramaturgos satildeo mar-cadas ou se resolvem estruturalmente por uma relaccedilatildeo intriacutense-ca de contrariedade e de oposiccedilatildeo satildeo situadas no campo de um processo de reflexatildeo no qual vale mais a ldquorelaccedilatildeordquo do que os extremos isolados Szondi mesmo lida em muitos momentos com categorias que exprimem ldquorelaccedilotildeesrdquo (o ldquoentrerdquo presentepassado diaacutelogomonoacutelogo interiorexterior etc) muito mais do que com ldquoidentidadesrdquo As obras ou as peccedilas teatrais sob seu olhar acabam sempre se colocando nesse domiacutenio inter-mediaacuterio revertendo uma na outra uma vez que se encontram sob o princiacutepio da alteridade natildeo de uma identidade atomiacutestica fechada em si mesma Simplificando as obras encontram-se num processo de reflexatildeo entre o conteuacutedo e a forma Por isso mesmo natildeo se pode analisaacute-las a partir de categorias oriundas de uma poeacutetica da trageacutedia que considera cada peccedila teatral operando num mundo por assim dizer fechado em si mesmo

A partir desse princiacutepio ou leitmotiv torna-se principal-mente possiacutevel falar da ldquocrise do dramardquo denominaccedilatildeo que sig-nifica principalmente um questionamento do proacuteprio gecircnero dra-maacutetico o qual desde a antiguidade se apresentou sob o signo do absoluto ldquoO drama eacute absoluto A fim de poder estabelecer uma relaccedilatildeo pura isto eacute poder ser dramaacutetico ele necessita es-tar desconectado de tudo o que lhe eacute exterior Ele natildeo conhece nada que natildeo seja ele mesmo e fora de si mesmordquo (SZONDI 1978 p 17) Essa designaccedilatildeo do drama como sendo marcado pelo ldquoabsolutordquo jaacute se encontra impliacutecita na Teoria do romance de Lukaacutecs um dos autores que inspira o estudo de Szondi A tra-geacutedia grega segundo Lukaacutecs ldquoencontrava-se acima do dilema entre a aproximaccedilatildeo da vida ou a abstraccedilatildeo porque para ela a plenitude natildeo era uma questatildeo de aproximaccedilatildeo da vida a trans-parecircncia do diaacutelogo natildeo era uma superaccedilatildeo de sua imediatez seu sentido artiacutestico eacute conduzir a essecircncia para um aleacutem de qualquer vida de toda vitalidade e plenituderdquo (LUKAacuteCS 1994 p 33) Num outro registro essa caracterizaccedilatildeo antiga do drama remete de alguma forma agrave loacutegica do ser de Hegel (natildeo agrave loacutegi-ca da essecircncia) como se o drama se colocasse desde sempre como um ser posto ou como uma dimensatildeo ontoloacutegica quase natural de fechamento em si mesmo ou se quisermos de es-vaziamento no que tange ao particular Pois natildeo eacute o proacuteprio Hegel que afirma que devido agrave sua universalidade ldquoo puro ser e o puro nada satildeo o mesmordquo (HEGEL 2011 p 72) Entretan-to a eacutepoca moderna cada vez mais recusaraacute essa concepccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

138

de drama O ser passa para o registro da essecircncia isto eacute da reflexatildeo num campo de tensatildeo e flexibilizaccedilatildeo dos pilares de sustentaccedilatildeo tradicionais da trageacutedia

Mas como se apresenta esse quadro categorial nas pe-ccedilas mesmas Szondi percorre cinco dramaturgos do fim do seacute-culo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX Ibsen Tschechov Strindberg Maeterlinck e Hauptmann Cada um eacute examinado segundo pe-ccedilas representativas tanto a partir de um certo momento temaacute-tico que se desenvolve em sua produccedilatildeo teatral ou melhor a atravessa quanto segundo um certo percurso que os envolve e transcende como um todo No que se refere ao toacutepico geral da relaccedilatildeo ldquoforma e conteuacutedordquo temos entatildeo o seguinte desenvol-vimento

1) Em Ibsen emerge ldquoo problema formal do dramardquo (SZONDI 1978 p 29) na impossibilidade de ser exposta dra-maticamente a dimensatildeo do presente e da interioridade dos per-sonagens Nas peccedilas Rosmersholm e John Gabriel Borkman a trama eacute dominada pelo passado gerando um imobilismo Ao contraacuterio do Eacutedipo Rei de Soacutefocles observa Szondi que punha o passado para funcionar dramaticamente como revelador do presente em Ibsen o passado prende os personagens diante da accedilatildeo presente Em Rosmersholm eacute o suiciacutedio da esposa do protagonista que bloqueia os planos bem como em John Ga-briel Borkman satildeo os negoacutecios fracassados e as expectativas da cunhada e esposa em relaccedilatildeo ao filho que geram um imobi-lismo impedindo qualquer tipo de accedilatildeo

2) Tschechow por sua vez deixa de apostar na forma do diaacutelogo enquanto articulador positivo da accedilatildeo presente e assume claramente essa impossibilidade apresentando seus personagens de imediato diante de uma ldquorenuacutencia ao presenterdquo (SZONDI 1978 p 31) Em As trecircs irmatildes estatildeo entrelaccedilados o teacutedio da vida burguesa o peso de um passado tido como fe-liz e um presente tomado pelo fracasso Esse ldquoconteuacutedordquo leva Tschechow a renunciar agrave forma tradicional do diaacutelogo Muito embora os personagens falem intensamente de si essas falas natildeo possuem o propoacutesito de entabular uma conversa e propi-ciar uma mensagem intersubjetiva ou compreensatildeo reciacuteproca e comunicativa ldquoo diaacutelogo natildeo tem forccedilardquo (SZONDI 1978 p 35) No lugar disso a dimensatildeo liacuterica eacute incorporada no drama tornando-se o diaacutelogo uma espeacutecie de monoacutelogo na medida em que se compartilha a solidatildeo e a ausecircncia de sentido da vida burguesa que se aproxima de uma espeacutecie de mutismo e imobilismo

3) Como ponto de inflexatildeo das anaacutelises de Szondi colo-ca-se o proacuteximo dramaturgo Strindberg sem duacutevida autor mais decisivo com a sua ldquodramaturgia do eurdquo Natildeo se trata poreacutem de um teatro que procura afirmar a potecircncia da subjetividade tal como vemos ocorrer em Shakespeare Ao contraacuterio Strindberg parte do fato da quase impossibilidade de expressar a vida indi-vidual de cada ser humano Na peccedila O pai surge justamente a

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

139

expressatildeo ldquoconhecemos apenas uma vida a proacutepriardquo (SZON-DI 1978 p 39) e na peccedila de um ato A mais forte emerge de maneira extremamente condensada o elemento oculto e repri-mido da vida dos homens A novidade formal dessa uacuteltima peccedila consiste justamente numa espeacutecie de monoacutelogo que por sua vez eacute quase um relato pura e simples

Partindo pois da dificuldade de expressatildeo da dimensatildeo humana Strindberg avanccedila para o conceito de ldquodrama de esta-ccedilatildeordquo cujo princiacutepio formal consiste em iluminar um ldquoeurdquo a partir daqueles que o cercam configurando-se assim uma unidade do eu que se coloca no lugar da unidade da accedilatildeo A unidade de accedilatildeo eacute dissolvida e se destacam as ldquopedras isoladasrdquo do eu que progride Ou seja o ldquoeurdquo eacute de natureza essencialmente frag-mentada exposto a uma situaccedilatildeo de signos existenciais (peccedila A mais forte)

4) Maeterlinck o proacuteximo dramaturgo examinado tor-na-se o autor que decididamente lida com a impotecircncia do ser humano diante do destino Satildeo homens que jaacute renunciaram e estatildeo entregue agrave situaccedilatildeo existencial mais imediata Estatildeo agrave espera de algo que decididamente nunca chegaraacute

O termo ldquosituaccedilatildeordquo empregado por Szondi nos remete novamente para Hegel que o emprega na primeira parte dos Cursos de esteacutetica para designar uma determinidade do ideal da arte colocada entre o chamado ldquoestado de mundordquo (pensado como heroacuteico e prosaico) e a ldquocolisatildeordquo O ideal se apresenta na existecircncia fazendo um sentido para o agir universal de modo que ldquoa situaccedilatildeo em geral eacute o estaacutegio intermediaacuterio entre o estado universal do mundo em si mesmo imoacutevel e a accedilatildeo [Handlung] concreta aberta em si mesma para a accedilatildeo [Aktion] e reaccedilatildeo [Reaktion]rdquo (HEGEL 1999 p 208) E Hegel ainda ressalta que a tarefa de encontrar situaccedilotildees interessantes favoraacuteveis agrave arte foi ldquodesde sempre o aspecto mais importante da arterdquo (HEGEL 1999 p 207)

Em Maeterlinck poreacutem a situaccedilatildeo exprime-se no acircmbito dos homens no maacuteximo como uma Stimmung [disposiccedilatildeo aniacute-mica] diante da qual os diaacutelogos satildeo desprovidos de sentido e conexatildeo intersubjetiva Isso significa antes o que Hegel chama de ldquoausecircncia de situaccedilatildeordquo por exemplo o que encontrariacuteamos na rigidez de certos retratos medievais Seja como for essa re-missatildeo ao medievo natildeo deixa de ser instrutiva para o teatro de Maeterlinck um teatro marcado pela situaccedilatildeo da ausecircncia de situaccedilatildeo Poder-se-ia dizer que esse seraacute um traccedilo incorporado largamente pelo teatro em geral do seacuteculo XX Basta lembrar de Esperando Godot de Beckett

5) Por fim apresenta-se Hauptmann em cujo teatro jaacute se verifica uma autonomizaccedilatildeo total do chamado ldquodrama socialrdquo A dimensatildeo social eacute o assunto principal que se sobrepotildee sobre a dimensatildeo propriamente dramaacutetica em que faz sentido a accedilatildeo humana Szondi chama a atenccedilatildeo para o caraacutecter eacutepico dessa denominaccedilatildeo de ldquodrama socialrdquo que implica ao mesmo tempo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

140

uma contradiccedilatildeo que jaacute se coloca totalmente contra a proacutepria possibilidade do drama (SZONDI 1978 p 60)

Nesse percurso vai se desnudando aos poucos o que vem a ser em termos de significaccedilatildeo esse embate entre for-ma e conteuacutedo no drama moderno grosso modo trata-se fun-damentalmente de um embate entre o dramaacutetico e o eacutepico no interior da forma dramaacutetica O eacutepico eacute o conteuacutedo e dramaacutetica eacute a forma sendo que a segunda acaba por ser questionada e forccedilada a aceitar as mudanccedilas formais devido agrave primeira No drama moderno cada vez mais se torna decisivo o conteuacutedo eacutepico ou dito de outro modo a instacircncia da prosa que forccedila o gecircnero dramaacutetico a recuar de seus pontos de sustentaccedilatildeo basi-lares desde a antiguidade que satildeo a accedilatildeo o diaacutelogo e a cons-truccedilatildeo de um sentido intersubjetivo compartilhado Eacute como se o teatro natildeo coubesse mais nos limites que lhe foram conferidos desde a Poeacutetica de Aristoacuteteles isto eacute no espaccedilo de jogo entre a mimese e a catarse

Rompendo com uma poeacutetica da trageacutedia e pensando nos termos de uma filosofia do traacutegico Szondi orienta-se ainda segundo a esteacutetica de Hegel quando privilegia o conteuacutedo dian-te da forma Sabemos que a esteacutetica de Hegel eacute sobretudo uma esteacutetica do conteuacutedo e que no fundo o problema da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e forma somente surge quando se privilegia a instacircncia do conteuacutedo Nas esteacuteticas que punham em primeiro lugar o princiacutepio da forma por exemplo no acircmbito do pensa-mento alematildeo da eacutepoca desde Baumgarten Kant chegando ateacute Schiller esse problema natildeo tinha como surgir a forma resolvia de antematildeo a particularidade do conteuacutedo Aliaacutes a temaacutetica do particular de um universal particular eacute o que justamente marca a instacircncia do conteuacutedo e desencadeia o movimento dialeacutetico baseado nas transformaccedilotildees histoacutericas da arte que levam a uma problematizaccedilatildeo permanente da forma Natildeo significa que a forma se torna relativa Pelo contraacuterio a forma se torna de fato e pela primeira vez uma questatildeo efetiva de pensamento a ser constantemente revista e observada com intensidade

No entanto a filiaccedilatildeo de Szondi ao modo como Hegel lida com o problema da relaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo natildeo dei-xa de ser isenta de criacuteticas se lembrarmos por exemplo das objeccedilotildees que Adorno fez a isso em sua Teoria esteacutetica Para Adorno Hegel e Kant tomam a forma como sendo conteuacutedo ou seja deixam a desejar no que se refere a uma transforma-ccedilatildeo da proacutepria forma Hegel veria uma passagem tranquila do conteuacutedo social para o domiacutenio da prosa da arte quando essa ldquopassagemrdquo lida a partir do conceito de ideologia tornar-se-ia sobretudo problemaacutetica a partir do seacuteculo XIX ldquoHegel e Kant foram os uacuteltimos que dito de modo brusco puderam escrever grandes esteacuteticas sem compreender algo acerca de arte Isso foi possiacutevel porque a arte por seu lado se orientava pelas nor-mas abrangentes que natildeo eram questionadas pela obra de arte individual e sim eram diluiacutedas em sua problemaacutetica imanenterdquo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

141

(ADORNO 1973 p 495) Certamente pode-se questionar o pensamento que lida com o esquema forma e conteuacutedo a partir da situaccedilatildeo da arte no seacuteculo XIX jaacute que a relaccedilatildeo entre arte e cultura ingressou a partir de entatildeo numa tensatildeo cada vez maior Por outro lado igualmente pode-se questionar o pressuposto adorniano de que toda obra de arte autecircntica jaacute eacute por si mes-ma um questionamento das chamadas ldquonormas abrangentesrdquo e que portanto as obras de arte estariam sempre em descom-passo com o mundo social dominante Assumir essa tese signifi-ca excluir uma grande parte da produccedilatildeo artiacutestica e literaacuteria dos seacuteculos XIX e XX

Poder-se-ia lembrar aqui tambeacutem das objeccedilotildees que Hei-degger faz ao par mateacuteria e forma no ensaio A origem da obra de arte cuja origem adviria de uma ausecircncia de questionamen-to da ldquocoisidade da coisardquo Por traacutes do questionamento da coisa reside a concepccedilatildeo de coisa como instrumento de modo que o par mateacuteria e forma depende de uma certa noccedilatildeo de serventia isto eacute de uma certa teacutecnica aplicada pelo homem agrave coisa mas que seria estranha a ela mesma em seu desenvolvimento on-toloacutegico ldquoA distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma em suas mais dife-rentes combinaccedilotildees eacute o esquema conceitual puro e simples de toda teoria da arte e esteacutetica Mas esse fato incontestaacutevel natildeo comprova nem que a distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma seja sufi-cientemente fundamentada nem que pertence originariamente ao acircmbito da arte e da obra de arterdquo (HEIDEGGER 2003 p 12)

Ou seja tanto Adorno quanto Heidegger questionam a legitimidade do pensamento que opera ainda com o par ldquoforma e conteuacutedordquo Ambos podem ser mobilizados como contraponto criacutetico ao percurso indicado por Szondi uma vez que se poderia supor algo de irredutiacutevel no drama moderno e que se subtrai ao desenvolvimento dialeacutetico de forma e conteuacutedo

Voltando ao problema central de Szondi coloca-se po-reacutem a pergunta de onde proveacutem essa necessidade de emer-gecircncia do eacutepico na eacutepoca moderna Talvez possamos discutir esse ponto retomando o tema da posiccedilatildeo da prosa na eacutepoca da filosofia e da poesia alematildes claacutessicas em particular desde a filosofia kantiana e segundo o centro do romantismo e idealis-mo refletidos no classicismo de Weimar Para tanto parece-me instrutivo remeter ao romance de Goethe intitulado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister escrito entre 1794 e 1797 em particular ao modo como eacute encaminhado o tema do teatro

No capiacutetulo 7 do livro V de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister o grupo de teatro ocupado com a discussatildeo do Hamlet de Shakespeare e de sua encenaccedilatildeo se depara dian-te da seguinte questatildeo o que deve ser privilegiado o drama ou o romance A partir disso discutem algumas caracteriacutesticas do drama e do romance que parecem por assim dizer anteci-par o que ocorreraacute com o drama posterior objeto de anaacutelise de Szondi principalmente quando se diz que ldquonatildeo seria impossiacute-vel escrever um drama em forma epistolarrdquo (GOETHE 2006 p

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

142

300) Elementos eacutepicos tais como o da passividade do heroacutei da ausecircncia de destino da evoluccedilatildeo lenta do jogo do acaso satildeo confrontados com os elementos essencialmente dramaacuteti-cos tais como o predomiacutenio da accedilatildeo a pressa e a aceleraccedilatildeo o destino e a eficaacutecia do agir (cf GOETHE 2006 p 300-01) Essa comparaccedilatildeo entre o drama e o romance indica um pensamento que toma os dois gecircneros como passiacuteveis de flexibilizaccedilatildeo de seus princiacutepios de modo que permitem perceber o processo de como no drama do fim do seacuteculo XIX pocircde justamente ocorrer a emergecircncia do eacutepico A leitura feita do Hamlet nesse romance como sendo uma peccedila que extrapola os limites do teatro pre-nuncia o que viraacute depois

Ou seja a impressatildeo que se tem diante da leitura de Szondi eacute que ele como grande conhecedor da esteacutetica alematilde claacutessica toma emprestado o esquema discutido por Goethe e Schiller que possui algo de programaacutetico e visionaacuterio e o mo-biliza para compreender o teatro posterior E aqui seria preciso ainda explorar o anexo Sobre Poesia eacutepica e dramaacutetica da Cor-respondecircncia de Goethe e Schiller onde se coloca o mesmo problema Eacute como se Szondi tomasse esses apontamentos bre-ves de Goethe e Schiller como uma espeacutecie de prognoacutestico da proacutepria tendecircncia do teatro ao longo do seacuteculo XIX como se o teatro do futuro a partir da essecircncia da modernidade tivesse de se deparar inevitavelmente com essa dimensatildeo eacutepica No fundo o problema parece ser esse como eacute possiacutevel fazer teatro na eacutepoca do paradigma do romance

Com efeito cabe lembrar que o problema em si natildeo eacute la-teral ou secundaacuterio na estruturaccedilatildeo do romance de Goethe Uma das teses mais fortes desse romance consiste em indicar como o paradigma humano se desloca do campo do teatro como ins-tituiccedilatildeo essencialmente representativa (no seacuteculo XVIII) para o campo do romance como o paradigma de exposiccedilatildeo do homem poacutes Revoluccedilatildeo Francesa (seacuteculo XIX) Um certo ideal relacio-nado ao seacuteculo XVIII de que o gecircnero humano pode encontrar o seu sentido e destino no teatro sendo a noccedilatildeo de representa-ccedilatildeo o signo pelo qual o homem se reconhece enquanto tal dei-xa de ter validade com o espiacuterito de criacutetica radicalizado por Kant e as implicaccedilotildees sociais e culturais da Revoluccedilatildeo Francesa No romance de Goethe essa situaccedilatildeo eacute pela primeira e talvez uacutenica vez enfrentado de frente o ser humano passa a ser visto natildeo mais como um ideal abstrato um certo tipo universal e sim en-contra-se entregue a si mesmo no horizonte de uma tarefa de formaccedilatildeo Natildeo haacute mais ldquorepresentaccedilatildeordquo possiacutevel ou a possibili-dade de o homem elaborar pela via teatral uma imagem repre-sentativa de si mesmo Por isso temos no romance de Goethe a passagem do teatro para a vida o conflito da poesia do coraccedilatildeo com a prosa do mundo (como interpreta Hegel) Goethe equili-bra muito habilmente o teatro e a vida de modo que nenhuma das duas instacircncias prevalece sobre a outra embora cada uma reivindique o seu direito

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

143

Esse eacute justamente o desafio colocado para o ser hu-mano a partir da criacutetica kantiana e da Revoluccedilatildeo Francesa eacute preciso procurar a felicidade a amizade a dimensatildeo iacutentima e afetiva a realizaccedilatildeo individual (teatro) mas ao mesmo tempo natildeo eacute possiacutevel deixar de lado o princiacutepio da realidade (vida) a organizaccedilatildeo social com as suas exigecircncias e compromissos (ditames do capitalismo) Na concepccedilatildeo de Goethe esse seraacute o dilema que acompanharaacute o ser humano e que estaraacute no cerne do ldquonovordquo gecircnero o romance que teraacute que operar um delicado equiliacutebrio reciacuteproco Segundo a forma do romance (teorizada de modo magistral posteriormente por Lukaacutecs) a diversidade hu-mana e sua contingecircncia natildeo cabem mais no palco pelo menos natildeo mais num palco equilibrado pelas categorias aristoteacutelicas de mimese e catarse A concisatildeo representativa deve dar lugar ao amplo terreno do romance

Ora esse parece-me ser um dos motivos de surgimento da questatildeo do eacutepico nos principais dramaturgos do fim do seacutecu-lo XIX analisados por Szondi Pergunta-se poreacutem agrave guisa de conclusatildeo por que Szondi emprega preferencialmente o termo ldquoeacutepicordquo e natildeo os termos ldquoromancerdquo ou ldquoprosardquo Haacute diferenccedila em dizer que o teatro do fim do seacuteculo XIX se encaminha gra-dualmente para a dimensatildeo eacutepica ou que se encaminha cada vez mais para a ldquoprosardquo ou para o ldquonarrativordquo (enquanto proce-dimento tiacutepico do romance) Parece-me que a primeira opccedilatildeo abriga um certo desejo de retorno agrave origem uma certa nostal-gia a qual poreacutem estaacute irremediavelmente deslocada na eacutepoca moderna e principalmente eacute impossiacutevel no quadro do drama Talvez o caminho passasse antes pelo exame da teoria do ro-mance e seus impasses

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

144

BIBLIOGRAFIA

ADORNO T Aumlsthetische Theorie Frankfurt am Main Suhrkamp 1975

GOETHE J W Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trad de Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2006

HEGEL G W Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas vol I ndash A ciecircncia da loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______ Cursos de esteacutetica vo I trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Edusp 1999

______ Ciecircncia da loacutegica (excertos) trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Barcarolla 2011

HEIDEGGER M ldquoDer Ursprung des Kunstwerkesrdquo In Holzwe-ge Frankfurt am Main Klostermann 2003 (8 ediccedilatildeo)

LUKAacuteCS G Die Theorie des Romans Muumlnchen DTV 1994

SZONDI P Theorie des modernen Dramas (1880-1950) In Schriften I Frankfurt am Main Suhrkamp 1978

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de PiacutendaroThe laborious Muse and the victory ode Pindarrsquos second Isthmian

Palavras-chave Piacutendaro epiniacutecio Iacutestmica II poesia grega arcaicaKey-words Pindar epinician Isthmian II archaic Greek poetry

RESUMO Traduzo inicialmente a segunda Iacutestmica de Piacutendaro Apresento em segundo lugar certas caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega centrando-me sobretudo na liacuterica coral Busco entatildeo esboccedilar como nela se encontram determinados padrotildees que fazem emergir sem prescritiva ou regras diversos gecircneros que se modelam por uma pragmaacutetica oral e performaacute-tica Discuto a seguir a estrutura baacutesica das Odes dedicadas aos vencedores dos Jogos a fim de verificar se a segunda Iacutestmi-ca eacute ou natildeo um poema epiniacutecio

ABSTRACT First I translate Pindarrsquos second Isthmian Secon-dly I present some general characteristics of archaic Greek po-etry chiefly choral lyric poetry I try then draw up a framework on general patterns that bring to surface without prescriptions or rules diverse genres shaped by oral and performatic prag-matism Finally I discuss the fundamental structure of odes de-dicated to winners of the Games in order to determine whether Pindarrsquos second Isthmian is an epinician poem or not

TRADUCcedilAtildeO

De antano os varotildees TrasiacutebuloI que no carrodas Musas com aacuteureas fitas subiam unindo-seagrave gloriosa lira imediatamente flechavammeliacutefluos hinos em garotosqualquer um que sendo belo mantivesse a maispropiacutecia estaccedilatildeo evocadorade Afrodite em seu belo trono

Porque entatildeo a Musa ainda natildeo eraamante de ganho nem laboriosaIInem as doces canccedilotildees de voz suave argentadasna fachadaIII por TerpsiacutecoraIV de meloso

Adriano Machado Ribeiro

Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacute-culas da Faculdade de Filo-sofia Letras e Ciecircncias Hu-manas da Universidade de Satildeo Paulo

email adrianoruspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

146

acento eram vendidasMas agora ela insta observar do argivoV

a conhecida palavra que caminha muito mais perto da verdade

ldquoDinheiro dinheiro eis o homemrdquo dizia eledesamparado conjuntamente de posses e amigosVIPorque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignoradahiacutepica vitoacuteria iacutestmicaVIIdepois de a Xenoacutecrates Poseiacutedon concedecirc-laenviava-lhe para cingir agrave comauma coroa de doacuterico aipo selvagemVIII

Blaureando homem de belo carroa luz de Agrigento Em CrisaIX por ele olhoupoderoso Apolo e lhe deu esplendortambeacutem laacute e agraciado com as homenagens renomadasdos Erectidas na luzidia Atenas natildeo lamentoua matildeo preservante do carrodo varatildeo que golpeia cavalos

matildeo com que Nicocircmaco na medidacerta bem controlou todas as reacutedeasa quem ateacute os arautos das temporadasdos jogos os Eleacuteios portadores da treacuteguade Zeus Cronida reconheceramdepois decerto de provar algumato de acolhedora hospitalidade

Com uma voz suave sopro saudavam a elecaindo no colo da aacuteurea vitoacuteria sobresua proacutepria terra a que chamam de Zeus Oliacutempiosagrado bosque onde em honras imortaisos filhos de Enesidemo se misturaramDe fato Trasiacutebulo natildeo desconhecedoras satildeo vossas mansotildeesnem das amaacuteveis procissotildees cantadas nem dos meliacutefluos cantos]

CPois natildeo eacute penhasco nem se tornaescarpa o caminho se algueacutem conduzagrave casa dos homens ilustres as honras das HeliconiacuteadasX

Tendo atirado a lanccedilaque eu possa arremessar tatildeo longequanto Xenoacutecrates obteve doce tecircmpera acima dos homensEra ele venerado por consociar com seus concidadatildeos

respeitando o costumeiro cuidado dos cavalossegundo o costume de todos os helenos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

147

E abraccedilava dos deuses os banquetestodos e jamais vento soprante em torno da hospitaleiraXI

mesa o fez recolher a velaMas cruzava pelo Faacutesis no veratildeoe no inverno ia navegando ateacute a margem do NiloXII

Que agora o filho jaacute que invejosasesperanccedilas rondam suspensas as mentes dos mortaisnatildeo silencie a virtude paternanem estes hinos aqui porquenatildeo os confeccionei para permanecerem imoacuteveisIsso Nicasipo partilha quandochegares a meu hoacutespede leal

O POEMA

Αʹ Οἱ μὲν πάλαι ὦ Θρασύβουλεφῶτες οἳ χρυσαμπύκωνἐς δίφρον Μοισᾶν ἔβαι-νον κλυτᾷ φόρμιγγι συναντόμενοιῥίμφα παιδείους ἐτόξευον μελιγάρυας ὕμνουςὅστις ἐὼν καλὸς εἶχεν Ἀφˈροδίταςεὐθρόνου μνάστειραν ἁδίσταν ὀπώραν

ἁ Μοῖσα γὰρ οὐ φιλοκερδήςπω τότrsquo ἦν οὐδrsquo ἐργάτιςοὐδrsquo ἐπέρναντο γˈλυκεῖ-αι μελιφθόγγου ποτὶ (pros)Τερψιχόραςἀργυρωθεῖσαι πρόσωπα μαλθακόφωνοι ἀοιδαίνῦν δrsquo ἐφίητι ltτὸgt τὠργείου φυλάξαιῥῆμrsquo ἀλαθείας ltu ndash ἐτᾶςgt ἄγχιστα βαῖνον

rsquoχρήματα χρήματrsquo ἀνήρrsquoὃς φᾶ κτεάνων θrsquo ἅμα λειφθεὶς καὶ φίλωνἐσσὶ γὰρ ὦν σοφός οὐκ ἄγˈνωτrsquo ἀείδωἸσθμίαν ἵπποισι νίκαντὰν Ξενοκˈράτει Ποσειδάων ὀπάσαιςΔωρίων αὐτῷ στεφάνωμα κόμᾳπέμπεν ἀναδεῖσθαι σελίνων

Βʹ εὐάρματον ἄνδρα γεραίρωνἈκˈραγαντίνων φάος ἐν Κρίσᾳ δrsquo εὐρυσθενὴςεἶδrsquo Ἀπόλλων νιν πόρε τrsquo ἀγˈλαΐανκαὶ τόθι κˈλειναῖς ltτrsquogt Ἐρεχθειδᾶν χαρίτεσσιν ἀραρώςταῖς λιπαραῖς ἐν Ἀθάναις οὐκ ἐμέμφθηῥυσίδιφˈρον χεῖρα πλαξίπποιο φωτός

τὰν Νικόμαχος κατὰ καιρὸννεῖμrsquo ἁπάσαις ἁνίαις

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

148

ὅν τε καὶ κάρυκες ὡ-ρᾶν ἀνέγˈνον σπονδοφόροι ΚρονίδαΖηνὸς Ἀλεῖοι παθόντες πού τι φιλόξενον ἔργον

ἁδυπνόῳ τέ νιν ἀσπάζοντο φωνᾷχρυσέας ἐν γούνασιν πίτˈνοντα Νίκαςγαῖαν ἀνὰ σφετέραντὰν δὴ καλέοισιν Ὀλυμπίου Διόςἄλσος ἵνrsquo ἀθανάτοις Αἰνησιδάμουπαῖδες ἐν τιμαῖς ἔμιχθεν

καὶ γὰρ οὐκ ἀγνῶτες ὑμῖν ἐντὶ δόμοιοὔτε κώμων ὦ Θρασύβουλrsquo ἐρατῶνοὔτε μελικόμπων ἀοιδᾶν

Γʹοὐ γὰρ πάγος οὐδὲ προσάντηςἁ κέλευθος γίνεταιεἴ τις εὐδόξων ἐς ἀν-δρῶν ἄγοι τιμὰς Ἑλικωνιάδωνμακˈρὰ δισκήσαις ἀκοντίσσαιμι τοσοῦθrsquo ὅσον ὀργάνΞεινοκράτης ὑπὲρ ἀνθρώπων γλυκεῖανἔσχεν αἰδοῖος μὲν ἦν ἀστοῖς ὁμιλεῖν

ἱπποτˈροφίας τε νομίζωνἐν Πανελλάνων νόμῳκαὶ θεῶν δαῖτας προσέ-πτυκτο πάσας οὐδέ ποτε ξενίανοὖρος ἐμπνεύσαις ὑπέστειλrsquo ἱστίον ἀμφὶ τράπεζανἀλλrsquo ἐπέρα ποτὶ μὲν Φᾶσιν θερείαιςἐν δὲ χειμῶνι πˈλέων Νείλου πρὸς ἀκτάνή νυν ὅτι φθονεραὶθνατῶν φρένας ἀμφικρέμανται ἐλπίδεςμήτrsquo ἀρετάν ποτε σιγάτω πατρῴανμηδὲ τούσδrsquo ὕμνους ἐπεί τοιοὐκ ἐλινύσοντας αὐτοὺς ἐργασάμανταῦτα Νικάσιππrsquo ἀπόνειμον ὅτανξεῖνον ἐμὸν ἠθαῖον ἔλθῃς

_______________

Notas ao poema

i Filho de Xenoacutecrates de Agrigento Nota-se ser o uacutenico poema de Piacutendaro supeacuterstite endereccedilado a um ser humano na primeira linha Verdenius (1988

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

149

p 119) explica que embora seja uma ode para celebrar uma vitoacuteria haacute nela forte caraacuteter pessoal Para aleacutem poreacutem do sentido pessoal conveacutem talvez destacar a peculiaridade de um epiniacutecio cuja celebraccedilatildeo da vitoacuteria se confi-gura no passado tornando presente a memoacuteria do pai para firmar o futuro como confirmaccedilatildeo da arete familiar que soacute seraacute futuro se configurar o que deve se confirmar na enunciaccedilatildeo em que se apresenta que no entanto sempre eacute futuro quando se celebra a vitoacuteria ndash aqui preteacuterita ndash na proacutepria enunciaccedilatildeo do poema A presenccedila das divindades do mesmo modo molda--se por tal relaccedilatildeo de tempos

ii O texto eacute de difiacutecil traduccedilatildeo porque implica forte interpretaccedilatildeo sobre o po-ema Como nota Verdenius (1988 p 123) Wilamowitz encontra no termo que implica trabalhar por dinheiro o sentido sarcaacutestico de Arquiacuteloco (206 W) para significar prostituta Outra forte conotaccedilatildeo eacute traduzir a Musa por merce-naacuteria implicando uma criacutetica a toda poesia epiniacutecia visto ser esta calcada no pagamento Mas Piacutendaro aqui natildeo seria incluiacutedo cabendo uma criacutetica a Simocircnides ou seja a um tipo especiacutefico de viacutenculo acarretado pelo paga-mento de um serviccedilo

iii Este eacute o sentido primeiro a meu ver mais adequado do que rosto ou apa-recircncia pois Piacutendaro pensa na fachada de um preacutedio Verdenius destaca para confirmaacute-lo a VI Oliacutempica v 3 e a VI Piacutetica v 14

iv Como diz Verdenius tal nome talvez tenha sido escolhido porque Piacutendaro pensa na poesia coral destacando poreacutem que natildeo deve haver uma oposi-ccedilatildeo entre as musas mas sim entre passado e presente (1988 p123)

v Aristodemo que no entanto provavelmente era espartano A razatildeo aqui talvez seja aproximar a sonoridade argivo-argecircnteo

vi O verso 12 implica uma quebra que mostra as dificuldades de Piacutendaro com efeito a conjunccedilatildeo explicativa γάρ eacute lida por Denniston (1996) como se referisse ao que se segue Mas pode como mostra Verdenius implicar uma referecircncia ao que se disse ateacute agora ou seja como se natildeo fosse preciso dizer mais nada

vii Vitoacuteria referida na II Oliacutempica v 50

viii Como nota Verdenius ldquothis plant was sacred to the gods of the underworld and the schol may be right in referring to the fact that the Isthmia were origi-narilly funeral games in honour of Melicertesrdquo (1988 p131)

ix Local nas proximidades de Delfos

x As musas que habitam o monte Heacutelicon como aparece em Hesiacuteodo no iniacutecio da Teogonia

xi Hospitalidade em grego eacute ξενία que em Homero eacute marca maior de civilida-de jaacute que acolher o estranhoestrangeiro separa vg na Odisseia os feaacutecios

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

150

como reencontro civilizador em contraponto agraves paragens em que Odisseu natildeo fora devidamente acolhido pois na esfera selvagem de um Ciclope natildeo cabe a hospitalidade Mesmo sendo um topos fortemente presente em Piacuten-daro aqui a hospitalidade ainda eacute sonoramente destacada pela presenccedila da proacutepria palavra no nome de Ξεινοκράτη Note-se tambeacutem que no reconheci-mento dos arautos de Zeus realccedila-se ser φιλόξενον Nicocircmaco (que tambeacutem destaca no nome a vitoacuteria)

xii Faacutesis e Nilo delimitam fronteiras polar e norte respectivamente do nave-gaacutevel marcando tambeacutem o frioquente que como nota Verdenius sugeram a separaccedilao dos hemisfeacuterios pelas estaccedilotildees do ano Efetiva a imagem a extensatildeo e continuidade da hospitalidade de Xenoacutecrates ldquoThe fame of his hospitality extended to the eastern limits of the known world reaching as far as Phasis the distant river of the Euxine in the summer and as far as the Nile in the winter The Euxine was open to navigation in the summer alone and it was only to Egypt that the Greeks sailed in the winterrdquo (SANDYS 1915 p 453 n 2)

De generalizaccedilotildees e generalidades O poema de Piacutendaro configura-se pelas marcas do que entatildeo lhe efetivava como um modo ou maneira proacutepria delineando em traccedilos gerais o que ainda natildeo eacute especificamente gecircnero em seu sentido forte mas que traccedila configuraccedilotildees que no entanto especificam-no nos topoi e imagens adequados para a ocasiatildeo a que se destina1 Haacute pois como afirma Carey ldquotendecircnciasrdquo que se modelam pela expectativa da audiecircncia a que se desti-na mas que muita vez se modela tambeacutem pela quebra de tais expectaccedilotildees conforme os traccedilos gerais de tal poesia entatildeo pra-ticada na Heacutelade

Para audiecircncias do que se convenciona nomear como periacuteo-do arcaico2 grego de modo geral satildeo muitas as variaacuteveis nas apresentaccedilotildees de poemas3 Mesmo tendo em comum o fato de serem apresentados numa tradiccedilatildeo fortemente oral em perfor-mances haacute enorme diferenccedila se satildeo eles ou recitados ou can-tados Este eacute um ponto bastante controverso para se apresentar 1 ldquohowever as recent scholars have repeatedly emphasised it is unwi-se to reify literary genres to the point of envisaging a set of objective rules ndash specially for the archaic and early classical periods Though the tendency to categorise exists from the earliest period the formulation of an explicit grammar of genres postdates the performance culture of archaic and early classical Greece Equally it is a mistake to view genres as completely homo-genous and distinct The boundaries are not fixed but elastic porous nego-tiable and provisionalrdquo (CAREY 2009 pp 21-22)2 A designaccedilatildeo jaacute por si ruim embora uacutetil conflitua com a utilizada para marcar etapas historicamente distintas Sendo assim o periacuteodo arcaico que vai do seacuteculo VIII ao VI aC natildeo coincide com a liacuterica arcaica coral que embora se inicie no seacuteculo VI estaacute em pleno vigor com Piacutendaro no seacuteculo V3 Este e o paraacutegrafo seguinte seguem de perto as observaccedilotildees em-bora gerais bastante pertinentes para uma apresentaccedilatildeo da questatildeo no ca-piacutetulo inicial de Introducing Greek Lyric de Felix Budelmann do livro por ele editado The Cambridge companion to Greek Lyric (2009 p11-13)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

151

na distacircncia do tempo e ausecircncia de informaccedilotildees mais precisas sobre a parte musical e caracteriacutesticas especiacuteficas das proacuteprias performances Haacute no entanto uma oposiccedilatildeo clara contrapu-nha-se a meacutelica (de melos canto) por ser cantada agrave poesia re-citada fosse esta elegia iambo ou ateacute mesmo o epos da eacutepi-ca Aleacutem da importante separaccedilatildeo dos metros daiacute decorrentes mais regulares na poesia falada implica tal diferenccedila acompa-nhamentos diversos jaacute que a meacutelica o era por instrumentos de corda como a lira enquanto a elegia possivelmente fosse acom-panhada por um muacutesico tocando o aulos Mas tais separaccedilotildees devem tambeacutem ser nuanccediladas pois o proacuteprio Piacutendaro faz refe-recircncias ao uso do aulos em seus poemas (Pind Ol 5 19)

Nas canccedilotildees marcava-se a diferenccedila entre a apresentaccedilatildeo solo (monoacutedica) daquela que era cantada por um coro a liacuterica coral Os limites de tais distinccedilotildees no entanto tambeacutem natildeo satildeo nem um pouco claros Na praacutetica da composiccedilatildeo aleacutem de um mesmo poeta apresentar canccedilotildees nas duas modalidades (Piacuten-daro vg com os ditirambos corais ou os curtos enkomia mo-noacutedicos) podem tambeacutem ter ocorrido numa mesma apresen-taccedilatildeo formas mistas visto que uma obra poderia ser em seu iniacutecio monoacutedica e depois pudesse passar a ser um canto coral

A audiecircncia por sua vez podia se reunir para distintas oca-siotildees como casamentos funerais simpoacutesios ou cerimocircnias poliacutetico-religiosas da polis Aleacutem disso cabe tambeacutem destacar a especificidade de haver ou natildeo um contratante com as dife-rentes finalidades disso decorrentes como aqui se veraacute Tais pontos gerais implicam as possiacuteveis diferenccedilas de gecircneros que se possam distinguir na pragmaacutetica e composiccedilatildeo dos poemas desse periacuteodo

Haacute assim um aspecto peculiar agrave poesia dita arcaica que por maiores nuanccedilas que possam implicar eacute a ela peculiar e par-ticularmente a modela num gecircnero que natildeo se compunha em vista de regraacuterio escrito e programaacutetico a oralidade se destaca pois para aleacutem dos limites do uso da escrita importam os efei-tos mimeacuteticos alcanccedilados pela performance a que a canccedilatildeo se destina Mesmo que o autor se servisse da escrita para a com-posiccedilatildeo de suas obras com as possiacuteveis implicaccedilotildees de rees-crituras a partir da reaccedilatildeo preacutevia de uma performance anterior importava sobretudo o modo de apresentaccedilatildeo que se modela-va por canto ou reacutecita para a ocasiatildeo a que se destinava Tal poesia como lembra Gentili (1990 p3) tinha assim evidente funccedilatildeo pragmaacutetica conferindo-se a ela seu valor a partir da fun-ccedilatildeo proacutepria que cumpria na polis

Longe pois de um modelo subjetivista como emancipaccedilatildeo de individualidades tal pragmatismo implica as caracteriacutesticas comuns de tal poesia a se moldar particular e diversamente conforme a especificidade implicada na intricada relaccedilatildeo poliacuteti-ca presente entre vaacuterios elementos o compositor a audiecircncia para a qual ele compotildee4 a circunstacircncia para a qual se destina 4 Para uma avaliaccedilatildeo criteriosa e perspicaz sobre as interpretaccedilotildees de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

152

sua obra a ser apresentada A ocasiatildeo pois configura a espe-cificidade que se celebra a partir de um kairos (momento opor-tuno) que delineia o que eacute ou natildeo decorosamente apropriado que deve orientar o compositor para que sua trama configure adequadamente a recepccedilatildeo da audiecircncia

Natildeo havendo teorizaccedilatildeo sobre sua funccedilatildeo nem diretrizes de-marcando uma prescritiva ou seja sem nenhum traccedilo do que posteriormente se nomearaacute uma poeacutetica verifica-se no entan-to nas proacuteprias obras a perspicaacutecia do compositor sobre o que deve modelar sua proacutepria praacutetica Piacutendaro especifica no frag-mento de um treno a diversidade de possibilidades a se molda-rem diferentemente em funccedilatildeo da conformidade com a ocasiatildeo a que se destina o canto Destaca-se aqui especificamente na maior parte do que se menciona a divindade que delineia o tipo de canto pelo qual ela se direciona

Ἔντι μὲν χρυσαλακάτου τεκέων Λατοῦς ἀοιδαίὥ[ρ]ιαι παιάνιδες ἐντὶ [δὲ καί]θάλλοντος ἐκ κισσοῦ στεφάνων ἐκ Διο[νύσου[ μ]αιόμεναι τὸ δὲ κοι [] αντρεῖς [desunt ca 15ll] σώματ ἀποφθιμένωνἁ μὲν ἀχέταν Λίνον αἴλινον ὕμνειἁ δ Ὑμέναιον ltὃνgt ἐν γάμοισι χροϊζόμενον[Μοῖρα] σύμπρωτον λάβενἐσχάτοις ὕμνοισιν ἁ δ Ἰάλεμον ὠμοβόλῳνούσῳ ὅτι πεδαθέντα σθένος

Haacute peatildes canccedilotildees na oportuna hora dos nascidosde Leto de aacuteurea roca haacute tambeacutem aquelas a partirde Dioniso com guirlandas de vicejante hera[ ] desejosa trecircs [canccedilotildees] [faltando cerca de 15 versos] dos corpos mor-

tosuma cantou um hino de lamento fuacutenebre a Linooutra (cantou) o Himeneu a quem tendo sua pele tocada nas

bodaspela primeira vez a Moira arrebatoucom uacuteltimos hinos e outra (canccedilatildeo) de Ialemo cuja forccedilafoi agrilhoada por doenccedila devoradora de carne

Em que pesem as lacunas dos versos faltantes em tal frag-mento evidencia-se que o compositor sabe como seus poemas--canccedilotildees devem moldar-se diversamente conforme a ocasiatildeo podendo ser entoado pois para diversa celebraccedilatildeo na diferen-ciaccedilatildeo sempre possiacutevel de ser ou natildeo o poema destinado para determinada divindade

Importa por outro lado de maneira mais geral marcar tam-beacutem a diferenccedila de audiecircncias no tocante agrave extensatildeo de seu Piacutendaro a partir do seacuteculo XIX veja-se o artigo de Hugh Lloyd-Jones (1973 pp 109-137)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

153

caraacuteter puacuteblico Havia assim aquelas que se caracterizavam por afinidades seja de natureza poliacutetica ou de grupo mas sempre restritivas no tocante ao ciacuterculo de ouvintes outra poreacutem era a audiecircncia proacutepria da liacuterica coral Aqui a performance era em geral extensivamente mais puacuteblica muitas vezes com funccedilatildeo religiosa e celebrante de eventos

O puacuteblico proacuteprio da liacuterica coral eacute decorrente de uma seacuterie de mudanccedilas especiacuteficas ocorridas na polis a partir do seacuteculo VI A mudanccedila de audiecircncia se caracteriza por implicar uma nova relaccedilatildeo entre um patronato contratante e o poeta contratado com a decorrente consequecircncia tanto para o canto quanto para a performance que daiacute deriva

Era baseada na relaccedilatildeo direta entre patratildeo e poeta que viu seu periacuteodo de maior desenvolvimento no final do seacuteculo VI e comeccedilo do V ndash resultado do advento de uma economia monetaacuteria baseada no comeacutercio A nova riqueza favoreceu as artes em geral tanto a pintura e escultura quanto a poesia embora natildeo em razatildeo delas mesmas mas sim de um desejo por prestiacutegio e poder Para o nobre rico o aristocrata urbano e acima de todos para o tirano a obra de um artista era um meio de aumentar seu status e consolidar sua posiccedilatildeo poliacutetica O poeta se torna assim um profissional intelectual que trabalha para um patratildeo e recebe de volta algum pre-sente consideraacutevel ndash um honoraacuterio no verdadeiro sentido da palavra capaz inclusive se necessaacuterio de ser aumentado (GENTILI 1990 p115)

Gentili destaca as consequecircncias de tal relaccedilatildeo De matiz aris-tocraacutetico a funccedilatildeo celebratoacuteria da liacuterica coral seja para exalta-ccedilatildeo do divino seja do humano se serve de um repertoacuterio amplo das narrativas miacuteticas sempre com o cuidado de escolher na pluralidade de mitos as legendas e versotildees delas a que melhor conviesse para a apresentaccedilatildeo que celebrava o contratante

[hellip] escolher um mito adequado agrave ocasiatildeo significa conectar a pessoa a ser louvada com uma histoacuteria tradicional de tal modo que ela pudesse ser glorificada por meio dos feitos de um exemplar miacutetico E a audiecircncia tinha de ver a conexatildeo ndash de outro modo a significaccedilatildeo efetiva e o valor paradigmaacutetico do mito estariam perdidos (GENTILI 1990 p116)

Certos modelos satildeo assim seguidos na liacuterica coral tanto no que tange agrave celebraccedilatildeo humana quanto agrave divina No que diz respeito a esta especificamente as canccedilotildees dedicadas aos deuses dirigem-se a eles como oferendas de uma cultura calca-da na relaccedilatildeo de devoccedilatildeo com a reciacuteproca expectativa de uma recompensa As diferenccedilas apontadas acima no gecircnero que se especifica pelo culto preciso de cada divindade natildeo escondem a caracteriacutestica comum a todos eles

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

154

In general one is more stuck by the shared features than by the divergences between these types More substantial songs of worship contained a mythic narrative and it is normal for the myth to be connected with the god [hellip] Poetry compo-sed for a specific occasion incluiding worship usually has a pronounced deitic element that is it draws attention to its im-mediate context andor function Cult song also identifies its deity early often (though not inevitably) in the form of invoca-tion and gives praise A tripartite structure is normal (though not inevitably) with a central mythic section flanked by an in-troductory section dealing with the immediate context and a fi-nale which returns to the (performers) present It is commmon but not inevitable for a prayer to be made (CAREY 2009 pp 27-8)

Tal estrutura presente nos poemas dedicados aos deuses tam-beacutem se encontra nas canccedilotildees dedicadas aos humanos sejam trenos epiniacutecios himeneus ou encocircmios Como ressalta Carey ldquothough the performative occasion affects the content of these compositions it has little significance for the structure which al-most invariably follows the tripartite model we find in the cult songs (2009 p32) Haacute assim uma base sobre a qual se movem tais canccedilotildees modelando-se ora e vez diversamente em con-sonacircncia com as expectativas esperadas pela audiecircncia mas surpreendentemente remodeladas pelo compositor para refor-ccedilar pela ausecircncia o que no canto natildeo se apresenta

Do Epiniacutecio Dado que como se viu os gecircneros natildeo sejam formas fixas e

sempre existentes sua molda ocorre em consonacircncia com as peculiaridades que a fazem emergir e tambeacutem de certo modo desaparecer Em se tratando especificamente da liacuterica coral tal eacute o caso da consagraccedilatildeo que compositores dos seacuteculos VI e V perpetuaram para os vencedores dos jogos pan-helecircnicos no devir de um gecircnero cujo brilho estaacute atrelado ao que nele se celebra com glorificaccedilatildeo que como se viu dirige-se a homens e os imortaliza justamente porque soacute ocorre por completo a va-loraccedilatildeo humana pela presenccedila divina visto o proacuteprio poema o poeta e o vencedor partilharem de uma aura religiosa que os distingue

Genres come into being and pass away Thus the victory ode has its origins in the sudden explosion of interest in athle-tics in the sixth century BCE and is almost inconceivable be-fore that [hellip] Secular forms such as the victory ode inevitably have a religious content in a society where sacred and secular

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

155

always to some degree coexistrdquo (CAREY 2009 p 22)

Piacutendaro e o epiniacutecio satildeo pois paradigmas de uma tradiccedilatildeo fir-mada na valoraccedilatildeo de consagraccedilotildees pois o modelar do gecircnero se faz em vista da celebraccedilatildeo imortalizante da divina poreacutem hu-mana vitoacuteria nos jogos em que homens ndash com ou sem animais ndash competiam para consagrar uma divindade Zeus (Jogos Oliacutem-picos e as Nemeias) Apolo (Jogos Piacuteticos) e Poseiacutedon (Jogos Iacutestmicos) satildeo as principais divindades cultuadas e celebradas pelo poeta divinamente humano que consagra o vencedor tam-beacutem divinizado humanamente

A celebraccedilatildeo do vencedor via de regra ocorria em sua ci-dade nativa na de seus ancestrais ou mesmo no local da proacute-pria competiccedilatildeo Ser num ou noutro local acabava por implicar modos diversos de apresentaccedilatildeo do canto-poema pois este se modelava em consonacircncia com a expectativa do puacuteblico que poderia ali estar ou para consagrar seu governante ou para os familiares quando a performance se fazia na terra de algum parente ou mesmo como salienta Gentili quando inesperada-mente se celebra a vitoacuteria no proacuteprio local em que ela ocorreu Em tal caso como na VII Piacutetica uma parte importante do poema como o mito central pode ser omitida para marcar topicamente a improvisaccedilatildeo da qual resulta o poema

Haacute como se viu no toacutepico anterior uma estrutura tripartite baacute-sica a construir um epiniacutecio5 Nela omissotildees ou mudanccedilas satildeo sempre possiacuteveis e mesmo esperadas sem contudo que se percam todos os elementos para tal fundaccedilatildeo

A estrutura interna do epiniacutecio ndash para considerar apenas este gecircnero particular ndash era tambeacutem determinada em certo grau pela necessidade cerimonial Um epiniacutecio sem certos elementos eacute inconcebiacutevel louvar o vencedor referecircncia ndash mais ou menos expliacutecita ndash ao evento atleacutetico indicaccedilatildeo das vitoacuterias anteriores do atleta e realizaccedilotildees notaacuteveis por parte de sua famiacutelia e finalmente maacuteximas gnocircmicas que ajuda-vam a criar um elo entre a narrativa miacutetica e a realidade pre-sente O que natildeo se determina eacute como tal ligaccedilatildeo deveria ser realizada Circunstacircncias particulares na proacutepria vida do vencedor ou algo em sua famiacutelia poderiam oferecer uma via direta para o passado heroico especialmente quando o mito

5 De modo geral tal estrutura se articula pela apresentaccedilatildeo inicial do vencedor e de sua vitoacuteria parte-se num segundo momento para uma narrativa miacutetica apresentada como paradigma do que ora se celebra o que se evidencia pela maacutexima gnocircmica retorna-se num terceiro momento ao ponto inicial da celebraccedilatildeo implicando agora uma valoraccedilatildeo sobre a vitoacuteria presente numa perspectiva para o futuro Joseacute Cavalcante de Souza assim a delineia ldquopor articulaccedilatildeo temaacutetica entenda-se o agenciamento de estrutu-ras toacutepicas que historicamente constituiacuteram o gecircnero epiniacutecio uma apresen-taccedilatildeo em certa medida coloquial do vencedor e de sua vitoacuteria geralmente no proecircmio mas podendo reaparecer em pontos estrateacutegicos da sequecircncia uma intervenccedilatildeo miacutetica fundamental ou sob a forma de uma ou mais nar-rativas ou no limite de breves esboccedilos alusotildees ou imagens que avizinham

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

156

era relacionado com seus proacuteprios ancestrais[] (GENTILI 1990 p 117)

Havia pois uma grande variedade de mecanismos pelos quais o poeta poderia transitar do evento motivador da ode a vitoacuteria especificamente tratada para a variegada trama de ancestrais e relatos miacuteticos que em menor ou maior grau se relacionas-sem com a consagraccedilatildeo do vencedor O mito e o presente da enunciaccedilatildeo formam tessitura complexa e variada pelos quais o mito exemplarmente se torna paradigma do que canta o poeta Para justificar tais liames o gnocircmico adentra para avaliar de ma-neira generalizante a particularidade dos eventos e narrativas apresentadas Aforismas ou afirmaccedilotildees pessoais apresentam o propoacutesito do mito e especificam seu papel no poema dando margem assim dentro de uma poesia bastante alicerccedilada em bases convencionais agrave presenccedila de uma enunciaccedilatildeo do poeta mais incisiva

Haacute assim em Piacutendaro forte presenccedila estruturante de um coacute-digo firmado e confirmado por convenccedilotildees Estas no entanto se abrem ao ouvinte-leitor numa mescla de imagens e recursos verbais que natildeo soacute dificultam propositalmente a decodificaccedilatildeo da mensagem como tambeacutem mostram que o vigor forccedila e brilho do vencedor divinamente coroado por sua vitoacuteria soacute se eterniza pela presenccedila tambeacutem vigorosa brilhante e luminosa que o po-eta mimeticamente alcanccedila com labor e inspiraccedilatildeo na vitoriosa ode que presentifica em palavras a jaacute passada vitoacuteria para ser proclamada no futuro

Do poema O poema aqui traduzido molda-se em conformidade com suas

caracteriacutesticas performaacuteticas proacuteprias de sua apresentaccedilatildeo liacute-rica de um coro que possivelmente cantasse e danccedilasse para apresentaacute-lo Para tanto compotildee-se em trecircs grupos triaacutedicos compostos cada um por estrofe antiacutestrofe e epodo

Os dois primeiros satildeo termos orqueacutestricos de danccedila e sig-nificam respectivamente volta e contravolta Na antiga liacuterica grega os versos da estrofe e da antiacutestrofe tinham exatamente o mesmo ritmo prosoacutedico baseado na duraccedilatildeo longa ou breve das siacutelabas e ritmicamente formavam um par a que sucedia o epodo com ritmo diferente Epodo deriva-se de uma forma adjetiva que corresponde a uma forma substantiva ldquoepodeacuterdquo literalmente sobrecanto isto eacute o canto maacutegico atuando medi-cinalmente sobre o corpo (SOUZA 1999 p 194)

o mito da apresentaccedilatildeo e por assim dizer o incorporam no desenrolar da solenidade e alternando com o mito um jogo de ditos sentenciosos gnocircmai bem formulados no momento certo e bem apreciados no a propoacutesito do que comentam e ensinamrdquo (SOUZA 1999 p 195)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

157

Se do ponto de vista meacutetrico o poema segue um padratildeo ade-quado para a liacuterica coral o mesmo no entanto natildeo se pode dizer da presenccedila tiacutepica dos elementos estruturadores do epiniacutecio com efeito eacute o uacutenico poema de Piacutendaro a apresentar um mortal em seu verso inicial Ainda mais curiosamente a primeira estrofe do primeiro grupo triaacutedico natildeo determina e especifica um vence-dor mas ao contraacuterio descreve um horizonte passado estranho agrave liacuterica coral

Os versos iniciais sendo assim celebram uma atmosfera eroacute-tica proacutepria da liacuterica monoacutedica na qual o canto eacute flecha a atingir jovens garotos pelos encantos sob as graccedilas de Afrodite como fariam os poemas de Alceu e Anacreonte vg Contrapondo-se a tal canto regido pelas musas na imediatez amorosa a antiacutes-trofe delineia uma musa que trabalha por um salaacuterio Laboriosa ela deve firmar sua construccedilatildeo em prata natildeo na imediatez antes propagada mas nos novos tempos celebrar sua voz suave e meloso acento pois conforme o epodo a seguir sem dinheiro um homem natildeo possui nem amigos nem posses

A inesperada apresentaccedilatildeo do poema fez que se o visse natildeo como epiniacutecio mas como uma espeacutecie de epiacutestola puacuteblica em que Piacutendaro declara a Trasiacutebulo seja seu amor por ele seja uma espeacutecie de consolaccedilatildeo poliacutetica ao filho e sobrinho de tirano cuja polis ora democraacutetica o obrigaria a vender poemas seja uma cobranccedila por parte do proacuteprio Piacutendaro de uma diacutevida natildeo paga por Trasiacutebulo a ele6

Lecirc-se tambeacutem o poema como denuacutencia da atividade da liacuterica coral de Simocircnides aacutevida por dinheiro e pronta a se prostituir com maacutescara facial de prata por quem pagar melhor preccedilo Se natildeo meretriz a musa eacute mercenaacuteria e labora por avidez do ga-nho7 Decorreria daiacute a criacutetica de Piacutendaro ao valor do homem mensurado em dinheiro conforme propagado no poema pelo dito argivo

Tais leituras em que pese o valor de seus autores incorrem numa questatildeo complexa para a relaccedilatildeo do poema com sua proacute-pria finalidade por que Piacutendaro desqualifica sua proacutepria ativida-de Responder a tal questatildeo implica deixar de lado as leituras que desqualificam a musa como mercenaacuteria e aacutevida lendo sem a desqualificar a atividade laboriosa cujo valor e preccedilo se justi-ficam pela atividade que propaga para a eternidade seu proacuteprio valor bem como o daqueles que por ela se eternizam

Lido assim o poema justifica seu abrupto assiacutendeto que se-para a introduccedilatildeo da passagem para a glorificaccedilatildeo das vitoacuterias do pai de Trasiacutebulo ldquolsquoDinheiro dinheiro eis o homemrsquo dizia ele desamparado conjuntamente de posses e amigos Porque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignorada hiacutepica vitoacuteria iacutestmi-cardquo (vv 15-18) O dizer argivo verdade reafirmada eacute compre-

6 Para um mapeamento da questatildeo leia-se Woodbury (1968 pp 527-542)7 Cf Simpson (1969 pp 437-473)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

158

endido por Trasiacutebulo que se liga ao poeta pela xenia que natildeo descura nem da poesia nem do poeta que imortaliza os feitos do pai

A segunda triacuteade entatildeo confirma ser o poema uma canccedilatildeo de epiniacutecio rememorando topicamente natildeo soacute as vitoacuterias de Xenoacutecrates nos jogos Iacutestmicos e Piacuteticos bem como o valor do auriga que comandava seu carro em Atenas terra dos filhos do miacutetico rei Erecteu Do mesmo auriga se fala ao se descrever a vitoacuteria nos Jogos Oliacutempicos quando ele venceu como condutor do carro de Teratildeo irmatildeo de Xenoacutecrates ambos filhos de Ene-sidemo Culmina assim esta triacuteade na valoraccedilatildeo da famiacutelia de Trasiacutebulo o que se confirma com o cuidado no trato das Musas que tornam sagradas suas casas

A triacuteade final celebra e consagra topicamente a xenia que ge-nerosamente acolhe todos que a ela recorrem Natildeo mais flecha eroacutetica o poema eacute agora atleacutetica lanccedila que se distancia para no porvir alcanccedilar a incomensuraacutevel distacircncia da hospitalidade da famiacutelia que aqui se consagra Vencedores dos jogos circunda-dos de amizades e posses a famiacutelia de Trasiacutebulo encontra nele a confirmaccedilatildeo de seus valores pela riqueza e pela generosida-de Longe de desqualificar os bens que eles possuem o poema confirma o alto valor do patronato que natildeo guarda nem esconde o que deve ser amplamente partilhado e divulgado Vale assim mesmo mais longamente reafirmar as palavras de Woodbury

The public nature of excellence and the dependence upon fame explain the Muses commendation of the proverbial ma-xim of Aristodemus For it was spoken as Pindar says expli-citly when he was deprived at one stroke of possessions and friends In the Pindaric world there can be no fame without the approval of generous and approving friends and wealth is in turn necessary to entertain them in comfort and distinction whether they form a court a clan or a coterie The Muses ce-lebration of excellence therefore testifies to the openhanded and conspicuous use of wealth It now becomes intelligible why the poet goes on to say that Thrasybulus is wise and well--acquainted with his theme which is the victory of Xenocrates with the chariot at the Isthmus He is surely not performing any of the incongruous gestures that have been attributed to him such as shaking his head silently with distaste for the avarice of a rival poet winking to suggest that payment of his fee is either overdue or unnecessary ornodding in sympathy with the predicament of a poet who must earn his living He is congratulating his patron on the use of his wealth which is made evident by the performance of his ode and its reception by the company of friends The point is made even clearer a few lines later when in a second apostrophe to Thrasybulus he says that his house is well-acquainted with the songs of celebrating friends The occasion itself is proof that Thrasybu-lus knows very well the importance of the victory and of poe-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

159

try Pindar displays a characteristically Greek frankness in his praise of wealth That may be surprising to us but is without embarrassment for him because of his secure approval of the purposes for which that wealth was used It is even more surprising that he found it appropriate to enrol his Muse in the service of that same power That he did so is convincing proof if any proof is needed that for him poetry was deeply implica-ted in the values and the attitudes of the society for which he wrote (WOODBURY 1968 p 542)

A II Iacutestmica assim surpreende expectativas da audiecircncia pela ausecircncia do mito central do vencedor no iniacutecio do poema com a divindade deus ou lugar que mostra sua ligaccedilatildeo com o divi-no Mas confirma seu valor como epiniacutecio pela celebraccedilatildeo de vitoacuterias na parte central do poema que luminosamente eacute exem-plaridade para Trasiacutebulo filho a quem se destina a ode que eacute lanccedila a arremessaacute-lo juntamente com seus ancestrais para o futuro Nesse mesmo sentido consolida-se pelo largo uso de topoi que sedimentam os valores que o vencedor e seus familia-res devem honrar e que cabe ao poeta propagar O epodo final cumpre na inversatildeo a funccedilatildeo decircitica via de regra apresentada na introduccedilatildeo firmando e confirmando pelo movimento de um sugestivo Nicasipo cujo nome associa vitoacuteria a cavalos o cui-dado com a grandiosidade invejada na agoniacutestica situaccedilatildeo de disputa que canto e vitoacuterias atleacuteticas ocasionam A grandeza e generosidade de Trasiacutebulo natildeo podem ficar nem paradas nem silentes O patratildeo contratante encontra no poeta contratado natildeo uma situaccedilatildeo mercenaacuteria de partes mobilizadas pela ganacircncia mas uma espeacutecie de dom e contradom em que o dinheiro natildeo afasta amigos mas sim a ausecircncia dele

O final da ode reinscreve em seu final no cuidado admoes-tante do poeta por meio de seu intermediaacuterio a palavra ἠθαῖον aqui traduzida como leal mas para Verdenius valorada como caro a construccedilatildeo pindaacuterica proacutepria da poesia coral por ele edi-ficada

A van Groningen La composition litteacuteraire archaiumlque gre-cque (Amsterdan 1958 p 72) rightly observes that in choral poetry on constate une tendance toute naturelle agrave donner au dernier eacuteleacutement un accent particulier dintensiteacute Au deacutesir de bacirctir au deacutebut le splendide fronton correspond celui de termi-ner par une phrase agrave grand effet sentence proverbe expres-sion remarquable priegravere note personelle In the present case there is a close connection between the final note personelle and the opening of the poem by emphasizing the intimacy of their friendship Pindar strenghtens his appeal to the generosi-ty of Trasybulus [hellip] (VERDENIUS 1988 p 147)

Piacutendaro assim alicerccedila seu canto como epiniacutecio pois embora consagradora seja a vitoacuteria do pai e tio de Trasiacutebulo no passado seus feitos ainda perduram vencedores na solidez dos valores

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

160

por eles firmados e presentes no filho cuja generosa amizade sedimenta para o futuro a continuidade dos antepassados e do compositor que os canta em seu canto

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

161

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

BUDELMANN F ldquoIntroducing Greek Lyricrdquo in _______ (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cambridge Cambri-dge University Press 2009

CAREY C ldquoGenre occasion and performancerdquo in BUDEL-MANN (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cam-bridge Cambridge University Press 2009

DENNISTON J D The Greek Particles 2ordf ediccedilatildeo Indiana-polis Hackett Publishing Company 1996

COLIN F Pindare Traduction Complegravete Olympiques Pythi-ques Neacutemeacuteennes Isthmiques Fragments Strasbourg Silber-mann 1841

GENTILI B Poetry and Its Public in Ancient Greece ndash From Homer to the Fifth Century Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo Thomas Cole Baltimore The John Hopkins University Press 1990

LLOYD-JONES H ldquoModern Interpretation of Pindar The Se-cond Pythian and Seventh Nemean Odesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 93 (1973) pp 109-137

MARCHI M A Odi di Pindaro Milatildeo Presso Luigi di Giaco-mo Pirola 1835

NISETICH F J ldquoConvention and Occasion in Isthmian 2rdquo in Classical Antiquity Vol 10 (1977) pp 133-156

PRIVITERA A Pindaro Le Istmiche 5ordf ediccedilatildeo Roma Fon-dazione Lorenzo Valla 2009

ROMAGNOLI E Pindaro Le Odi e i frammenti Bologna Ni-nola Zanichelli Editore 1927 Disponiacutevel em itwikisourceorgwikiLe_Odi_e_i_frammenti_IOde_Istmica_II (uacuteltimo acesso 22112017)

SANDYS J The Odes of Pindar Londres The Macmillan co 1915

SIMPSON M ldquoThe chariot and the Bow as Metaphors for Po-etry in Pindarrsquos Odesrdquo in Transactions and Proceedings of the American Philological Association Vol 100 (1969) pp 437-473

SOMMER E Pythiques et Isthmiques Paris Hachette Eacutedi-tion 1847

SOUZA J C ldquoPiacutendaro Piacutetica III A Hiecircronrdquo in Revisa USP Satildeo Paulo nordm 43 setnov 1999 pp 188-201

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

162

SVARLIEN D A Pindar Odes 1990 Disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101623Abook3DI3Apoem3D2 (Uacuteltimo acesso 22112017)

VERDENIUS W J Commentaries on Pindar Olympian Odes 1 10 11 Nemean 11 Isthmian 2 Vol 2 Bibliotheca Classica Batava Mnemosyne Supplementum Brill 1988

WOODBURY L ldquoPindar and the Mercenary Muse Isthm 2 1-13rdquo in Transactions and Proceedings of the American Philolo-gical Association Vol 99 (1968) pp 527-542

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudThe place of the Phantasm in Philosophy ndash Agamben as a Freudrsquos reader

Palavras-chave acedia ndash melancolia ndash phantasma ndash eros ndash desejo - DuumlrerKeywords aecidia - melancholy ndash phantasmndash Eros ndash desire ndash Duumlrer

RESUMO No seacuteculo passado (1976) Giorgio Agamben escre-veu dois ensaios que expotildeem as ideias de fantasia e melancolia destacadas no artigo de Freud ldquoLuto e Melancoliardquo Este trabal-ho mostra que a interpretaccedilatildeo que Agamben faz da concepccedilatildeo psicanaliacutetica de melancolia resulta da perspectiva por ele cons-truiacuteda com base na relaccedilatildeo entre esta e as noccedilotildees correlatas de fantasia (phantasma ou fantasia) e eros O assunto eacute de interes-se na medida em que possibilita uma compreensatildeo a respeito de como a visatildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo Nossa leitura assinala que algo do desenvolvi-mento daqueles ensaios permanece na obra recente do autor

ABSTRACT In the last century (1976) Giorgio Agamben wrote two essays that expose the ideas of phantasy and melancholy in Freudrsquos article ldquoTrauer und Melancholierdquo (1917) This paper points out that the authorrsquos interpretation of the psychoanalyti-cal conception of melancholy depends upon the perspective constructed by him around the relation between this and the correlated notions of fantasy (phantasm or fantasia) and eros The theme is of interest insofar as it also provides an explana-tion about how Agambenrsquos view of critical philosophy and poetic philosophy perform an appropriation of contemporary psychoa-nalytical thinking Our reading hints that there is something in the developing of those essays that remains in the authorrsquos recent work

No seacuteculo passadofoi publicada a obra Estacircncias ndash a palavra e o fantasma na cultura ocidental (1976) conjunto de ensaios de Giorgio Agamben em que encontramos leituras suas de Freud Destaco as de ldquoLuto e Melancoliardquo nos capiacutetulos quarto e quinto da primeira parte denominada rdquoOs Fantasmas de Erosrdquo Nos anteriores encontramos primeiro sua pesquisa referente agrave concepccedilatildeo de aceacutedia sobretudo aquela adotada pe-los padres da Igreja na Idade Meacutedia para os quais haveria um mal da alma designado por nomes como acedia tristitia tae-dium vitae desidia

Camila Salles Gonccedilalves

Psicanalista membro do Departamento de Psicanaacutelise do Instituto Se-des Sapientiae Doutora em Filosofia ndash USP

camila_sallesuolcombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

164

Descriccedilotildees estendem diante de noacutes o panorama desenhado por uma praga que se propagava tida por mui-tos como pior do que a peste Tambeacutem chamada democircnio mediterracircneo esta se apoderava de membros de confrarias em conventos ou abadias e se caracterizaria por induzi-los ao desacircnimo e a uma crescente indiferenccedila em relaccedilatildeo aos estu-dos ao conhecimento e ao conviacutevio com os pares culminando na vontade de se afastar de todos

Apenas este democircnio comeccedila a deixar obcecada a mente de algum desventurado insinua-se em seu interior um horror do lugar em que se encontra um fastio da proacutepria cela e um asco pelos irmatildeos que vivem com ele que lhe parecem agora negligentes e grosseiros (AGAMBEN 2006 p25)

Do ldquocortejo infernal das filiae acediaerdquo (AGAMBEN 2006 P27) que nos eacute apresentado recorto

o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos poderia curar e finalmente evagatio mentis a fuga do acircnimo em relaccedilatildeo a si mesmo e o inquieto vagar de fantasia em fantasia1 (AGAMBEN 2006 p27)

Aos poucos a copiosa citaccedilatildeo de paraacutegrafos de vaacuterios tratados permite-nos acompanhar o modo pelo qual ao longo das definiccedilotildees descritivas a aceacutedia vai mostrando sua quase coincidecircncia com a melancolia e ambas satildeo aproximadas do temperamento saturnino que corresponde ao elemento terra sombrio avesso a qualquer entusiasmo Agamben natildeo deixa de percorrer tambeacutem os diagnoacutesticos da medicina medieval a permanecircncia nestes da classificaccedilatildeo dos humores e as teorias sobre a bile negra cuja nomeaccedilatildeo jaacute fora mantida por Aristoacuteteles Deparamo-nos com a fenomeno-logia do indiviacuteduo atrabiliaacuterio saturnino e tambeacutem aos poucos com a tendecircncia ao distanciamento por parte deste melancoacuteli-co daquilo e daqueles que se encontram agrave sua volta Na sequecircnciacontudoeacute-nos revelado ter havido um ou-tro lado uma perspectiva a partir da qual o humor melancoacutelico tenderia ao extremo oposto ao daquele caracterizado pela maacute sauacutede do corpo e por sinistras tendecircncias a sonhos sombrios agrave demecircncia etc (AGAMBEN 2016 p38) Antes de o apontar-mos cumpre ainda destacar que anterior agravequela associaccedilatildeo feita pela astrologia com Saturno teria havido uma e se man-tido com a figuraccedilatildeo de um deus com o mesmo nome o deus ldquocanibal e castradordquo(AGAMBEN 2006 p41) Apesar disto teria

1 Em nota de rodapeacute (nota 6) Agamben traz mais informaccedilotildees Trans-crevo apenas as primeiras linhas ldquoA incapacidade de controlar o incessante discurso (a co-gitatio) dos fantasmas interiores estaacute entre os traccedilos essen-ciais da caracterizaccedilatildeo patriacutestica da aceacutediardquo (AGAMBEN 2006 p27)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

165

ocorrido paralelamente uma reabilitaccedilatildeo da melancolia que ldquoia a par com um influxo de Saturno que a tradiccedilatildeo astroloacutegica associava com o temperamento melancoacutelico como o mais ma-ligno dos planetasrdquo (AGAMBEN 2006 p40)

Agamben apoia em seu farto material a afirmaccedilatildeo segun-do a qualldquouma antiga tradiccedilatildeo natildeo obstante associava o mais calami-toso dos humores com o exerciacutecio da poesia da filosofia e das artesrdquo (AGAMBEN 2006 p38)

Ele prossegue respondendo agravequeles que indagariam porque tal disposiccedilatildeo encontrar-se-ia justamente em indiviacuteduos sujeitos a sofrer segundo os antigos os efeitos moacuterbidos da bile negra Responde mencionando uma lista de melancoacutelicos citada por Aristoacuteteles que seria demasiado extensa mas que teria acompanhado o ponto de partida de um processo dialeacutetico Na concepccedilatildeo de Agamben trata-se de um processo da histoacuteria no qual o mais negativo no sentido de se opor agrave atividade de modo paradoxal eacute contraposto agrave afirmaccedilatildeo do aspecto criativo da reflexatildeo e da arte Assim no ponto de partida compreendido pela lista aristoteacutelica ter-se-ia iniciado um movimento no qual ldquoa doutrina do gecircnio enlaccedila-se indissoluvelmente com a do humor melancoacutelico na fascinaccedilatildeo de um complexo simboacutelico cujo em-blema plasmou-se ambiguamente no anjo alado da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p39) Agora eacute preciso salientar que o ensaio que estamos acompanhando eacute escrito em um estilo associativo a que preci-samos nos habituar A referecircncia a uma passagem de Aristoacutete-les eacute na mesma frase emendada com uma menccedilatildeo agrave famosa gravura de Duumlrer cujas interpretaccedilotildees por parte de autores que tambeacutem vatildeo ser citados seratildeo discutidas na sequecircncia A lista atribuiacuteda a Aristoacuteteles eacute acompanhada por exem-plos de tipos melancoacutelicos ldquohaacute alguns que se tornam torpes e estranhosrdquo outros ldquoque se tornam maniacuteacos e alegresrdquo (AGAM-BEN 2006 p39) e outros que satildeo de determinada maneira natildeo por morbidez mas por um temperamento natural Haacute o exemplo de um poeta de Siracusa que soacute era bom poeta quan-do estava fora de si e de outros indiviacuteduos que se destacavam alguns nas artes outros nas letras outros na vida puacuteblica Deixo de reproduzir as consideraccedilotildees a respeito de quantidade circu-laccedilatildeo grau de aquecimento local de depoacutesito da bile etc que diferenciariam os melancoacutelicos entre si O que pretendo apontar aqui eacute o modo pelo qual vatildeo se exemplificando as mudanccedilas de sentido da melancolia numa dialeacutetica peculiar vinda agrave tona por meio de uma arqueologia do saber praticada por Agamben que natildeo deixa de evocar (embora sem referecircncia expliacutecita) a pesqui-sa realizada por Walter Benjamin que encontramos em Origem do drama traacutegico alematildeo Esta obra conteacutem um exame ainda

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

166

mais minucioso da melancolia e em grande parte cita primeiro os mesmos autores Dentre estudos sobre alegorias que evocam a melancolia no campo das artes plaacutesticas aqueles dedicados agrave imagem cria-da por Duumlrer tem papel fundamental No ensaio de Agamben este eacute retomado contra o lugar ldquoescassordquo que Panofsky e Saxl2 autores de interpretaccedilatildeo da gravura3ldquoreservaram para a litera-tura patriacutestica sobre o lsquodemocircnio meridianorsquo em sua tentativa de reconstruir a genealogia da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p41) Adiante o autor acrescenta ldquoEacute curioso que esta conste-laccedilatildeo eroacutetica tenha escapado tatildeo tenazmente aos estudiosos que trataram de rastrear a genealogia e os significados da Me-lancolia duumlrenianardquo(AGAMBEN 2006 p49) No texto as objeccedilotildees de Agamben aos dois autores natildeo retomam nem mencionam a importacircncia que lhes deu Walter Benjamin que ao tratar da melancolia revecirc concepccedilotildees errocirc-neas que historiadores e leigos mantiveram a respeito do Re-nascimento e da Idade Meacutedia Aleacutem disto apresenta-nos mo-mentos nessas eacutepocas em que houve um enobrecimento da melancolia uma visatildeo da melancolia sublime que era preciso libertar ldquoda melancolia comum e destruidorardquo (BENJAMIN 2013 p158) Ao que tudo indica Agamben quer para aleacutem do ensaio histoacuterico benjaminiano pocircr em destaque a Patriacutestica em que en-controu a valorizaccedilatildeo do temaacuterio da aceacutedia e chamar a atenccedilatildeo para o componente eroacutetico da melancolia Com isto deixa de assinalar que o papel da astrologia eacute analisado por Benjamin e levado em consideraccedilatildeo no elogio que ele faz dos dois autores

Anuncia-se um traccedilo dialeacutetico da concepccedilatildeo de Saturno que corresponde de modo surpreendente ao conceito grego de melancolia A descoberta deste nuacutecleo vital da imagem de Saturno eacute o grande meacuterito de Panofsky e Saxl4 (BENJAMIN 2013 pp155-156)

Benjamin nos traz vaacuterios textos que precederam a obra duumlreniana ou foram seus contemporacircneos Deteacutem-se na convi-vecircncia de extremos no campo de concepccedilotildees do saber e anali-sa o quadro O quadrado maacutegico que vemos desenhado num quadro por cima da cabeccedila da lsquoMelancoliarsquo de Duumlrer eacute o selo plane-taacuterio de Juacutepiter cuja influecircncia se opotildee agraves forccedilas obscuras de

2 Os autores Panofsky e Sax satildeo citados por Walter Benjamin ( BEN-JAMIN 2013 p156)3 Erwin Panofsky (e) Fritz Sax Duumlrers ldquoMelancolie Irdquo Eine quellen- und typengechichtilich Untersuchung (A ldquoMelancolia Irdquo de Duumlrer Um estudo de fontes e tipologia histoacuterica) Berlim 1922 pp18-19 (=Studien der Bibliothek Warburg 2) (BENJAMIN 2013 P156) - Encontramos a referecircncia em Benja-min natildeo em Agamben4 Erwin Panofsky apud Walter Benjamin (BENJAMIN 2013 p156)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

167

Saturno Ao lado desse quadrado estaacute pendurada a balanccedila uma alusatildeo ao signo astroloacutegico de Juacutepiterrdquo (BENJAMIN 2013 p158) Trazendo mais autores mostra que sob inspiraccedilotildees ne-fastas e beneacuteficas Duumlrer teria posto na fisionomia do melancoacute-lico a concentraccedilatildeo espiritual e dedica vaacuterias paacuteginas aos ele-mentos que compotildeem a obra Agamben tambeacutem comenta a gravura do mestre renas-centista levando-nos de uma eacutepoca histoacuterica para outra expotildee o que garimpa nas diversas camadas arqueoloacutegicas Suas pes-quisas fundamentam a associaccedilatildeo do humor negro com Eros jaacute nas conjecturas filosoacuteficas e meacutedicas da Idade Meacutedia Assinalam um nexo entre amor e melancoliaque jaacute teria sido reconhecido por uma tradiccedilatildeo divulgada e mantida na medicina europeia me-dieval que os tomava como enfermidades afins ou idecircnticas A gravura alegoacuterica eacute por ele situada na esfera do desejo eroacutetico

Toda interpretaccedilatildeo que prescinda dessa pertenccedila fundamen-tal do humor negro agrave esfera do desejo eroacutetico por mais que possa decifrar uma a uma das figuras inscritas agrave sua volta estaacute condenada a passar ao largo do misteacuterio que se plasmou emblematicamente nessa imagem (AGAMBEN 2006 p49)

Lembremos a imagem por meio de uma miacutenima descriccedilatildeo agrave direita do espectador haacute uma figura sentada que seria a perso-nificaccedilatildeo da melencolia (a palavra estaacute gravada deste modo na obra) com a cabeccedila apoiada na matildeo esquerda segurando um compasso com a direita e rodeada por instrumentos alguns re-lacionados com a Geometria Agrave sua direita estaacute no chatildeo a seus peacutes adormecido um catildeo e acima sentada sobre a confusatildeo de objetos uma figura menor (que Lacan chamou de petit ange) tambeacutem com asas que fica mais ou menos na altura da cabeccedila da figura maior e que para noacutes evocaria a imagem popularizada de Eros5

Para Agamben

Soacute se compreende que (a gravura) se situa sob o signo de Eros eacute possiacutevel guardar e ao mesmo tempo revelar seu se-gredo cuja intenccedilatildeo alegoacuterica estaacute inteiramente subentendida no espaccedilo entre Eros e seus fantasmas (AGAMBEN 2006 p49)

Freud melancolia e fantasia

No Capiacutetulo quinto da Primeira Parte de Estancias o au-tor introduz deste modo seus comentaacuterios a respeito de Luto e Melancolia

5 A imagem pode ser obtida em vaacuterios sites na Web por exemplo em httpscommonswikimediaorgwikiFileDuumlrer_melancholia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

168

Freud aponta o eventual caraacuteter fantasmaacutetico do processo melancoacutelico observando que a rebeldia contra a perda do objeto de amor pode chegar a um ponto tal que o sujeito se esquiva agrave realidade e se aferra ao objeto perdido graccedilas a uma psicose alucinatoacuteria do desejo (AGAMBEN 2006 p57)

Em seguida ele nos remete para o ldquoComplemento me-tapsicoloacutegico da doutrina dos sonhosrdquo frisando que este texto devia fazer parte junto com o ensaio sobre a melancolia de um volume em projeto denominado Preparaccedilatildeo para uma Metapsi-cologia Assinala a importacircncia da relaccedilatildeo entre os dois escritos uma vez que eacute preciso consultar o segundo

para encontrar esboccedilada paralelamente a uma anaacutelise do mecanismo do sonho uma indagaccedilatildeo do processo atraveacutes do qual os fantasmas do desejo logram esquivar-se a essa instituiccedilatildeo fundamental do eu que eacute a prova de realidade e penetrar na consciecircncia (AGAMBEN2006 p57)

Agamben faz-nos notar que eacute fundamental a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre fantasma e prova de realidade e ressalta que ainda ecoa em Freud a descriccedilatildeo do conjunto de sintomas feita na antiguidade claacutessica e na idade meacutedia cuja causa era atri-buiacuteda agrave bile negra citando

A melancolia se caracteriza no aniacutemico por um enfado profun-damente doiacutedo um cancelamento do interesse pelo mundo exterior pela perda da capacidade de amar pela inibiccedilatildeo de toda produtividade (FREUD 1955 p242)6

Dentre os incontaacuteveis comentaacuterios existentes talvez o que possa ser destacado como peculiar no de Agamben seja uma visatildeo da relaccedilatildeo do Ego com a perda cujo foco principal natildeo estaacute nos desenvolvimentos teoacutericos que investigam modos de identificaccedilatildeo com o objeto perdido mas na perda enquanto tal Lembremo-nos noacutes leitores de que para aleacutem de exem-plos didaacuteticos ndash Freud chega a dar entre parecircnteses o exem-plo da melancolia da jovem que perdeu seu namorado ndash de hipoacuteteses sobre alteraccedilotildees no Ego que perde a si mesmo O criador da psicanaacutelise faz uma retomada metapsicoloacutegica do narcisismo mas somos levados por Agamben a nos determos no vazio que acompanha a perda Natildeo eacute o que ocorre segundo as observaccedilotildees que se fazem na esteira de Strachey Este co-mentador e primeiro organizador da obra de Freud assinala em sua introduccedilatildeo que de um determinado ponto de vista o artigo ldquoexigiu submeter a exame toda a questatildeo da identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p239) e que ldquoo mais significativo deste artigo 6 Para a traduccedilatildeo desta frase optei pela comparaccedilatildeo entre o texto em alematildeo e a traduccedilatildeo argentina ao inveacutes de passar para o portuguecircs a ci-taccedilatildeo da obra de Agamben traduzida para o espanhol que foi utilizada neste trabalho

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

169

parece ter sido para Freud sua exposiccedilatildeo do processo atraveacutes do qual o investimento (Besetzung) de objeto eacute substituiacutedo na melancolia por uma identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p240) Para Freud tanto no luto quanto na melancolia houve perda mas eacute preciso distinguir os tipos de perda que caracteri-zam um e outro estado Na leitura de Agamben natildeo satildeo ignora-das as semelhanccedilas nem desqualificados os destinos das iden-tificaccedilotildees Muito menos o abatimento do Ego na melancolia diante da perda do suposto objeto de amor expresso por aquela famosa formulaccedilatildeo freudiana ndash ldquoA sombra do objeto caiu sobre o egordquo (FREUD 1955 p246) Mas somos conduzidos a valorizar a constataccedilatildeo de que natildeo sabemos que objeto o melancoacutelico perdeu e a admitir que ele tambeacutem natildeo Eacute verdade que depois do exemplo da noiva abandonada no qual o amado natildeo morreu mas o objeto de amor idealizado foi perdido Freud escreveu

E em outras circunstacircncias cremo-nos autorizados a supor uma perda tambeacutem mas natildeo atinamos com discernir com precisatildeo o que se perdeu e com maior razatildeo podemos pensar que tampouco o enfermo pode apreender em sua consciecircncia o que perdeu (FREUD 1955 p243)

Acrescentou que nessas condiccedilotildees mesmo se a perda eacute evidente para o enfermo ele natildeo sabe o que perdeu naquela pessoa que ele perdeu concluindo

Isto nos levaria de algum modo a referir a melancolia a uma perda de objeto subtraiacuteda da consciecircncia agrave diferenccedila do luto no qual nada haacute de inconsciente no que diz respeito agrave perda (FREUD1955 p243)

Para desenvolver a questatildeo do fantasma relacionada com a me-lancolia Agamben apoia-se principalmente neste paraacutegrafo de Freud

O Ego entatildeo despedaccedila seu laccedilo com a realidade e retira do sistema consciente das percepccedilotildees seu proacuteprio investi-mento (Besetzung) Eacute atraveacutes deste esquivar-se do real que se evita a prova de realidade e os fantasmas do desejo natildeo reprimidos mas perfeitamente conscientes podem penetrar na consciecircncia e ser aceitos como realidade melhor (FREUD apud AGAMBEN 2006 p58)7

Para o autor em nenhum de seus escritos Freud desen-volveu uma teoria expliacutecita do fantasma8 e natildeo precisou qual eacute

7 Traduccedilatildeo modificada por mim8 Eacute claro que haacute teorias sobre a fantasia ao longo da obra de Freud Podemos consultar por exemplo Soliva Soria Ana Carolina rdquoInterpretaccedilatildeo sentido e jogo um estudo sobre a concepccedilatildeo de fantasia (Phantasie) em Sig-mund Freudldquondash Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo (2010)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

170

a parte deste ldquona dinacircmica da introjeccedilatildeo melancoacutelicardquo (AGAM-BEN 2006 p58) E eacute em seguida a esta afirmaccedilatildeo que ele expressa sua maneira de conceber a psicanaacutelise contemporacirc-nea e ao mesmo tempo de alertaacute-la para a importacircncia que a questatildeo tem para seu proacuteprio desenvolvimento Entende que a psicanaacutelise contemporacircnea reavaliou o papel do fantasma nos processos psiacutequicos e tende a se considerar ldquouma teoria geral do fantasmardquo (AGAMBEN 2006 p59) de modo cada vez mais expliacutecito Conveacutem observar que a escolha da palavra fantasma sinocircnimo de fantasia segue uma tendecircncia francesa datada do seacuteculo passado Para Laplanche e Pontalis ldquoEm francecircso termo fantasme voltou a ser posto em uso pela psicanaacutelise e como tal estaacute mais carregado de ressonacircncias psicanaliacuteticas do que seu homoacutelogo alematildeodesigna determinada formaccedilatildeo imaginaacuteria e natildeo o mundo de fantasias a atividade imaginativa em geralrdquo (LAPLANCHE ndash PONTALIS 1970 p238) Veremos que Agamben segue a tendecircncia francesa mas natildeo parece evi-tar referecircncias agrave atividade imaginativa em geral Tudo leva a pensar que Agamben tem uma visatildeo filo-soacutefica que se apoacuteia na psicanaacutelise lacaniana a qual como se sabe influencia certos temas e concepccedilotildees que permeiam filo-sofias contemporacircneas Natildeo exploraremos este campo mas eacute preciso reconhecer que ele eacute indissociaacutevel das abordagens que autor faz da Cultura da psicanaacutelise e de um tipo de arqueologia do saber que pratica No movimento de seu texto constatamos que ele estabelece uma funccedilatildeo na histoacuteria do saber para a associaccedilatildeo da melancolia com a fantasia (sinocircnimo de fantas-ma) que eacute esquadrinhada com o auxiacutelio de uma determinada visatildeo da psicanaacutelise e desse fazer resulta algo que eacute ofertado agrave proacutepria psicanaacutelise contemporacircnea Esta a seu ver

ldquoencontraria um uacutetil ponto de referecircncia em uma doutrina que com muitos seacuteculos de antecipaccedilatildeo tinha concebido Eros como um processo essencialmente fantasmaacutetico e tin-ha dado um grande lugar ao fantasma na vida do espiacuteritordquo (AGAMBEN 2006 p59)

A escrita investigativa de Agamben que segue a fecunda eru-diccedilatildeo de Walter Benjamin9 executa movimentos circulares que encaminham as questotildees despertadas para uma camada ar-queoloacutegica mais profunda escavando cada vez mais no passa-do os sentidos efetivos do presente Elabora uma perspectiva a partir da qual a psicanaacutelise beneficiar-se-ia com o conheci-mento e o reconhecimento daquilo que se pensou haacute centenas e ateacute haacute milhares de anosApoacutes a frase citada acima o autor prossegue

ldquoA fantasmologia medieval nascia de uma convergecircncia da

9 Encontramos pesquisas aprofundadas sobre aceacutedia e melancolia em Origem do Drama Traacutegico Alematildeo (BENJAMIN 2013)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

171

teoria da imaginaccedilatildeo de origem aristoteacutelica com a doutrina neoplatocircnica do pneuma como veiacuteculo da alma a teoria maacute-gica da fascinaccedilatildeo e a teoria meacutedica dos influxos entre espiacute-rito e corpordquo (AGAMBEN 2006 p60)

A peregrinaccedilatildeo de Agamben atraveacutes do cada vez mais arcaico tem para ele a finalidade de elucidar os feitos da fan-tasia que se liberta do princiacutepio de realidade e se potildee a serviccedilo de Eros (ainda natildeo visam a face de Tanatos como uma outra face) Expotildee passagens do que ele denomina um ldquomultiforme complexo doutrinalrdquo (AGAMBEN 2006 p59) no qual a fantasia (fantaacutestikon pneuma spiritus phantasticus) eacute concebida como

uma espeacutecie de corpo sutil da alma que situado na ponta extrema da alma sensitiva recebe as imagens dos objetos forma os fantasmas dos sonhos e em determinadas circuns-tacircncias pode separar-se do corpo para estabelecer contatos e visotildees sobrenaturais (AGAMBEN 2006 p59)

Para aleacutem do sabor desta linguagem extraiacuteda da Teologia pseudo aristoteacutelica e de alfarraacutebios eruditos Agamben integrou a figura do noacute borromeano jaacute utilizada por Lacan na proacutepria concepccedilatildeo de seu meacutetodo filosoacutefico No Prefaacutecio afirma que a perspectiva a partir da qual trata do lugar do fantasma eacute aquela na qual ldquose pode falar de uma topologia do irrealrdquo (AGAMBEN 2006 p14) e nas uacuteltimas linhas afirma que nos ensaios que compotildeem sua obra dedica-se ao topos outopos10 E assevera

Soacute uma topologia filosoacutefica anaacuteloga agrave que em matemaacutetica se define como analysis situs por oposiccedilatildeo a analysis magnitu-dinis seria adequada ao topos outopos cujo noacute borromeano tentamos aqui configurar (AGAMBEN 2006 p15)

Eacute claro que o uso da figura composta pelo entrelaccedilamen-to de trecircs ciacuterculos dos quais a soltura de um implica na sepa-raccedilatildeo de todos da qual Lacan fez uso famoso referindo-se a real ao simboacutelico e imaginaacuterio traz impliacutecita a ideia de que o fantasma vem a ser no entrelaccedilamento dos trecircs registros trecircs domiacutenios pode-se entender aqui A mesma figura eacute trazida por Agamben para colocar em foco o tema de algo que natildeo eacute e se faz com que seja e do lugar em que se estabelece que natildeo eacute espacial e sim ldquoalgo mais originaacuterio do que o espaccedilordquo (AGAM-BEN 2006 p15) Aristoacuteteles eacute citado porque teria feito menccedilatildeo a esse lugar esse topos ldquotatildeo difiacutecil de apanharrdquo e dotado de um ldquopoder maravilhoso e anterior a qualquer outrordquo(AGAMBEN 2006 p14) Agamben pretende que se trata do mesmo lugar natildeo espacial de ldquoum terceiro gecircnerordquo (AGAMBEN 2006 p14) talvez ldquouma pura diferenccedilardquo11 a que faz alusatildeo o Timeu de Pla-

10 ldquolugarnatildeolugarrdquo gt utopia11 Sugere a interpretaccedilatildeo de Derrida que entre vaacuterios comentaacuterios ressalta que chocircra natildeo eacute ldquonatildeo pertence aos gecircneros de ser conhecidos ou

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

172

tatildeo Para que acompanhemos este desenvolvimento do texto agambeano eacute preciso que recordemos a passagem No Timeu como em outros Diaacutelogos platocircnicos foi posta a diferenccedila entre o gecircnero de ser que compreende o mundo das Ideias inteligiacutevel e imutaacutevel e aquele que abrange o ser das coisas sensiacuteveis e visiacuteveis em constante mudanccedila A personagem Timeu eacute levada a conceber um terceiro gecircnero quando se chega agrave abordagem dos elementos aacutegua ar terra e fogo e eacute obrigada a reconhecer que estes tecircm sua forma em constante mudanccedila e que soacute se pode falar deles quando suas propriedades estatildeo presentes de modo perceptiacutevel Mas os elementos satildeo tatildeo necessaacuterios e es-senciais quanto as Ideias Das especulaccedilotildees surge entatildeo sua opiniatildeo provaacutevel de que eacute preciso conceber um terceiro gecircnero que eacute denominado chora Eacute o lugar daquilo que vem a ser que daacute a forma mas que permanece inalterado Eacute a natureza que recebe todos os corpos (taacute panta dechoumeacutenes socircmata phiacute-seos)12 Qual a relaccedilatildeo desse lugar tatildeo difiacutecil de apreender com o melancoacutelico que vive o vazio da perda do objeto desconhe-cido Nos ensaios de Agamben em sua leitura de ldquoLuto e Me-lancoliardquo eacute visado o vazio da perda que recebe o fantasma criaccedilatildeo do imaginaacuterio inconsciente

A perda imaginaacuteria que ocupa tatildeo obsessivamente a intenccedilatildeo melancoacutelica natildeo tem objeto real algum porque eacute agrave impossiacute-vel captaccedilatildeo do fantasma que dirige sua fuacutenebre estrateacutegia (AGAMBEN 2006 pp62-63)

Lacan tambeacutem fez referecircncia agrave gravura de Duumlrer em seu Seminaacuterio 6 no qual trata do fantasma e do desejo e diz es-tar lanccedilando questotildees sobre ldquouma articulaccedilatildeo essencialrdquo que o fantasma introduz ldquono interior dessa vaga determinaccedilatildeo da natildeo oposiccedilatildeo do sujeito e do objetordquo (LACANSTAFERLA p9) afirmando mais adiante ldquoentendo que o objeto imaginaacuterio do fantasma eacute o proacuteprio sujeitordquo (LACAN p273) Natildeo eacute possiacutevel seguir todas as pistas dos fundamentos ou das inspiraccedilotildees das conclusotildees de Agamben Mas pode-se constatar que a psicanaacutelise eacute convocada enquanto teoria do fantasma para se associar a um tipo de pensamento filosoacutefico em que ele situa o seu a que daacute o nome de criacutetica O autor men-ciona ldquouma teoria da arte apontada como operaccedilatildeo fantasmaacuteti-cardquo surgida quatro seacuteculos antes de a psicanaacutelise ser formula-da (AGAMBEN 2006 p61) teoria com frequecircncia incluiacuteda na histoacuteria do conceito de melancolia Tudo leva a entender que o fantasma que Agamben pretende recuperar estaacute na psicanaacutelise

reconhecidosrdquo (DERRIDA 1987 p270) Tratei do tema em outro lugar (SA-LLES GONCcedilALVES C 2004)

12 PLATON Timeacutee (1949 p12)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

173

enquanto ligado a Eros e eacute na sua confluecircncia com um objeto inseparaacutevel do sujeito e ao mesmo tempo indefiniacutevel que o au-tor situa o lugar sem lugar da palavra filosoacutefica Voltando-se ao iniacutecio da primeira parte de Estacircncias eacute possiacutevel constatar que o proacuteprio meacutetodo de pesquisa e investi-gaccedilatildeo desenvolvido por Agamben aproxima suas concepccedilotildees de psicanaacutelise e de filosofia Isto se daacute por meio da relaccedilatildeo que estabelece ou a seu ver restabelece entre filosofia e poesia Para ele quando se daacute o surgimento da palavra criacutetica no vo-cabulaacuterio da filosofia ocidental ela tem sobretudo o significado de uma indagaccedilatildeo sobre os limites da consciecircnciardquo (AGAMBEN 2006 p9) Para ele equivale a uma indagaccedilatildeo sobre aquilo que ldquonatildeo eacute possiacutevel nem fixar nem apreenderrdquo (AGAMBEN2006 p9) Relembra entatildeo a proposiccedilatildeo do Grupo de Iena13 e seu projeto de uma poesia universal progressiva que teria tentado abolir ldquoa distinccedilatildeo entre poesia e disciplinas criacutetico ndash filosoacuteficasrdquo (AGAMBEN 2006 pp9-10) Esta construccedilatildeo de perspectivas de pensamento passa por uma certa ideia de negatividade Em sua busca pela criacutetica capaz de apresentar um caraacuteter criativo Agamben refere-se a uma obra que seria capaz de incluir ldquoem si mesma sua proacutepria negaccedilatildeordquo (AGAMBEN 2006 p10) e declara natildeo considerar a ensaiacutestica europeia ldquodeste seacuteculordquo14 rica no gecircnero de obra de-signado e afirma que talvez soacute haja um uacutenico livro criacutetico Urs-prung des deutschen Trauerspiel15 (Origem do Drama Traacutegico Alematildeo) de Walter Benjamin Infelizmente ele natildeo esclarece aiacute os criteacuterios de seu jul-gamento e passa para a camada da antiguidade antes de reto-mar a referecircncia ao projeto que atribui aos poetas-filoacutesofos do seacuteculo XIX de abolir a distinccedilatildeo entre poesia e teorias criacutetico fi-loloacutegicas Menciona entatildeo associativamenteo poeta e filoacutelogo alexandrino Filitas ao qual se teria aplicado a foacutermula ldquopoeta e ao mesmo tempo criacuteticordquo (AGAMBEN 2006 p10) Para Agamben a criacutetica pode hoje se identificar com a

13 Grupo de Iena ndash a ironia praticada por estes poetas e filoacutesofos pos-sibilitaria rdquoseguindo ainda o projeto romacircntico redefinir um novo lugar para a filosofia Ela estaria situada no espaccedilo intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte entre o condicionado e o incondicionado a liberdade e a necessidade Eacute um lugar que se define por uma lsquo proporccedilatildeo entre ideal e realrsquo da qual a poesia romacircntica eacute a expressatildeo maior Eacute um saber diz Schlegel em lsquonova figurarsquoA ironia significa reconhecer que a harmonia experimentada entre os antigos jaacute se perdeu e que a filosofia agora antes de postular uma nova harmonia desdobra-se sobre si mesma no ato de fazer-se e se percebe em formaccedilatildeo com uma fisionomiardquo- Almeida da Silva Arlenice ldquoA evoluccedilatildeo do conceito de ironia romacircntica na obra do jovem Gyoumlrg Lukaacuteksrdquo- in Cadernos de Filosofia Alematilde no09 | pp 49-70| JANJUN2007 Cito o artigo da Profes-sora de Esteacutetica e Histoacuteria da Arte no Departamento de Filosofia da UNESP a guisa de esclarecimento devido agraves siacutenteses que realiza com clareza em seu artigo que natildeo deixa de citar livros pertinentes ao tema como eacute o caso de O Gecircnio Romacircntico de Marcio Suzuki ndash Satildeo Paulo Iluminuras199814 Lembremos que o texto de Agamben eacute do seacuteculo XX15 Cita apenas o tiacutetulo original em alematildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

174

obra de arte natildeo soacute por ser criativa mas tambeacutem por ser nega-tividade Neste ponto ele faz referecircncia a Hegel agrave sua objeccedilatildeo agrave ironia autonegante ou autonadificante praticada pelo grupo de poetas-filoacutesofos de Iena Hegel teria se oposto a Schlegel Solger Novalis e ldquoa outros teoacutericos da ironiardquo (AGAMBEN 2006 p10) e afirmado que eles haviam ldquopermanecido na infinita ne-gatividade absolutardquo (AGAMBEN 2006 p10) tomando o me-nos artiacutestico por verdadeiro princiacutepio da arte Segundo Agamben aqueles adeptos da ironiada pers-pectiva do filoacutesofo natildeo teriam podido ir adiante porque para Hegelldquoa negatividade da ironia natildeo eacute o provisional da dialeacuteticardquo (AGAMBEN 2006 p10) Ou seja ao natildeo ser ultrapassada a ironia deixaria de integrar o movimento histoacuterico da consciecircncia Vecirc-se que Agamben por sua vez eacute irocircnico (no sentido usual) em relaccedilatildeo agrave postura que atribui a Hegel ao escrever que ldquoa va-rinha maacutegica da Aufhebung estaacute sempre em ato de transformar a negatividade (da ironia) em algo positivordquo(AGAMBEN 2016 p10) Para Agamben a ironia dos poetas seria ldquouma negativi-dade absoluta e sem resgate a qual entretanto natildeo renuncia por isso ao conhecimentordquo (AGAMBEN 2016 p10) e da ironia romacircntica de um Schlegel pode brotar ldquouma atitude autentica-mente filosoacutefica e cientiacuteficardquo (AGAMBEN 2006 p11) A peculiar interpretaccedilatildeo (redutora) de posiccedilotildees de Hegel eacute expressa por meio de algumas frases sem indicaccedilatildeo dos tex-tos utilizados Mas eacute evidente que Agamben se opotildee agrave dialeacutetica de Hegel na medida em que defende uma praacutetica filosoacutefica que pretenderia preservar uma negatividade insuperaacutevel jamais subsumida pelo movimento do desenvolvimento da consciecircncia descrito na Fenomenologia do Espiacuterito16

Os artigos que vatildeo da acedia agrave melancolia percorrem as vaacuterias atribuiccedilotildees da melancolia a pensadores escritores poe-tas e o autor natildeo deixa de mencionar alguma semelhanccedila com o mal du siegravecle expresso pelos escritores do seacuteculo XIX nem de tirar partido da imagem de Kierkegaard (AGAMBEN 2006 p31) autor do Tratado do Desespero que descreve o desesperar-se consciente de si e a ambiguidade de seu eu A dor pelo que natildeo haacute a dor cultivada nesse inverno da desesperanccedila com frequecircncia estaacute associada com criacuteticas fei-tas pelo melancoacutelico ao mundo circundante Temos o pessimista o descrente o entediado pondo o dedo nas feridas da cultura Por outro lado constatamos que o vazio do perder o que se natildeo tem inseparaacutevel da concepccedilatildeo de desejo para a psicanaacutelise eacute nos desenvolvimentos da escrita de Agamben associado com a fantasia e com o lugar utoacutepico da criaccedilatildeo Depois do livro do qual comentei algumas leituras Agam-ben publicou vaacuterios outros e dentre estes tiveram repercussatildeo no meio psicanaliacutetico sobretudo os que desenvolvem o projeto

16 Muito posterior aos comentaacuterios de Hegele que Agamben natildeo cita

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

175

Homo Sacer sendo o mais recente O Uso dos Corpos em que ele abandona o proacuteprio projeto de modo expliacutecito e justificado Para Giacoia este livro marca ldquoo abandono do projeto Homo Sacer mas sob a condiccedilatildeo de compreendermos abandonar como o uacutenico gesto consequente que se segue agrave plena reali-zaccedilatildeo de uma obra de poesia ou de pensamentordquo (GIACOIA 2016 p140)17 Lembremos do que Agamben escreveu a respeito da obra que seria capaz de conter em si mesma sua proacutepria negaccedilatildeo citado acima Embora haja uma distacircncia de deacutecadas entre os artigos trabalhados aqui e seu uacuteltimo livro eacute possiacutevel consta-tar que a concepccedilatildeo de vazio lugar natildeo espacial permanece nesse pensamento poeacutetico-filosoacutefico O tiacutetulo Estacircncia tambeacutem inspirado em Walter Benjamin eacute-nos apresentado com o sig-nificado que os poetas do seacuteculo XVIII teriam dado ao nome de ldquomorada capaz e receptaacuteculordquo Receberia acolherialdquojunto a todos os elementos formais da canccedilatildeo aquela lsquofoi drsquoamourrsquo na qual eles confiavam como uacutenico objeto da poesiardquo (AGAMBEN 2006 p11) Desde a origem de nossa cultura teria havido uma cisatildeo ldquoentre poesia e filosofia entre palavra poeacutetica e palavra pen-santerdquo (AGAMBEN 2006 p12) O acesso agraves interrogaccedilotildees que mereceria estaria barrado pelo esquecimento No percurso do autor aquilo que no seacuteculo passado foi apontado como parte de um sintoma mantendo a ressonacircncia de textos medievais e anteriores tendo renascido como espiritualidade em companhia de Eros na intrigante obra de Duumlrer o vazio melancoacutelico parece convocar ainda o sem forma o lugar indefiniacutevel que recebe o pensamento que vem a ser

17 Giacoia in Percurso 2016

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

176

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AGAMBEN G Estancias - La palabra y Elfantasmaen la cultura occidental Valencia Pre-Textos 2006

BENJAMIN W Origem do drama traacutegico alematildeo ediccedilatildeo e tra-duccedilatildeo Joatildeo Barreto ndash 2ed ndash Belo Horizonte Autecircntica Editora 2013

FREUD S ldquoDuelo y Melancoliardquo in Obras completas volXIV Buenos Aires Amorrortu 1993

DERRIDAJrdquoChocircrardquoin Poikilia_Eacutetudes offertes aacute Jean-Pierre Vernant Paris EHESS1987

GIACOIA O ldquoPor uma filosofia do abandono (Lrsquouso dei corpi Homo Sacer)rdquo in Percurso ndash Revista de Psicanaacutelise no 54 ANO XXVIII JUNHO DE 2015 pp138 ndash 144

LACANJ Seminaire 6 Le Deacutesir 1958 in httpstaferlafreefr

PLATON Timeacutee texte eacutetabli par ARivaud Paris Les Belles Le-ttres 1949 p12

SALLES GONCcedilALVES C ldquoChora em Platatildeo Derrida e Feacutedi-dardquo in Percurso-Revista de Psicanaacutelise no 3132 ANO XVI 2ordm SEM20031ordm SEM2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

177

Politics without a subject David Hume on general rules

Key-words Hume politics subject freedom belief

ABSTRACT In this article after having described the role and functioning of general rules and of customs by Hume I will show that the centrality of these in his political reflection leads to a denial of the identification of man as the subject intending with this concept the union of the conceptual pair subjectum (support of personal peculiarity) and subditus Hume doubts the presence of an element that is able to impose itself on man subduing him to its own will the man himself if he tries to impose a norm on himself attains only useless sufferings

1 Introduction

Humersquos skepticism brings him to refuse to trust any norm with mathematical certainty that purports to regulate either nature or politics both fields are domains of matters of fact for which it is not possible to find rules that are always valid For Hume norms are descriptions of regular repetitions taking place they are not an account of necessary phenomena It is the constant repeti-tion that defines laws and not the other way around This counts both in the cognitive as in the political field respect for a law is not a consequence of its intrinsic necessity as the law does not derive from a government to which we necessarily must obey for a transcendent or rational necessity or for an ancient promise of submission Power understood as the probability that an ele-ment A is the cause of an element B1 cannot be perceived and its existence is for this reason doubted by Hume2 just as in the cognitive field it is the repetitiveness of nature that brings us to the formulation of scientific laws which imply a hypothetical causality that is not demonstrable so in politics it is the repeti-tive inclination of man that leads to a hypothetical authority or the power of a government and of its laws It is the custom and tendency to be obedient that mostly influences our actions not a sovereign monopoly of force

1 laquopower consists in the possibility or probability of any action as dis-coverrsquod by experience and the practice of the worldraquo David Hume A Treatise of Human Nature ed D F Norton M J Norton (Oxford Clarendon Press 2007) 2042 See David Hume An Enquiry Concerning Human Understanding in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 450ndash60

Giulia Valpione

Universitagrave degli Studi di Pa-dova Dipartimento di Filoso-fia Sociologia Pedagogia Psicologia Applicata (FISP-PA) Post-DocPoacutes-Doc em Filosofia - UFSCAR

giuliavalpionegmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

178

2 The general rules analogy and imagination

General rules are considered throughout all three books of Hu-mersquos Treatise on Human Nature as they concern the modality in which men produce reasoning and they are implied in actions and behaviors Such rules reveal human naturemdashwhich is in-clined to repetitionmdashthe construction of series that follow one another connecting similar cases3 if there is a multiplicity of si-milar cases the causes of our actions and thinking are moved to the background and they are replaced by habit which is able to originate certainties and passions even though they have not been caused

The two fundamental passions to which Hume devotes am-ple space in the Treatise (pride and humility) are originally the result of the relationship of three elements4 (two ideas and one impression) among which our pleasure or sorrow are instigating causes However due to the existence of habits of thought an instigating cause5 may not necessarily be present passions can simply arise from two ideas6 The procedure is very similar when we consider causality here from an impression A we derive an idea a belief in an object B The judgment that derives B from A is not an analytical judgment nor is it a synthetic a priori one (which can be only found in mathematics and geometry) since the knowledge of such relationship is not so much caused by the repeated experience of A rarr B as by the constant experience of the conformity of the future in comparison of the past in other words nature repeats itself and only through such repetitiveness does man infer the necessity that ldquoif A always Brdquo7 Therefore the

3 Treatise 2344 See Section II-V of Book II Part I (Treatise 182ndash190)5 We must [hellip] make a distinction betwixt the cause and the object of these passions betwixt that idea which excites them and that to which they direct their view when excited [hellip] The first idea that is presented to the mind is that of the cause or productive principle This excites the passion connected with it and that passion when excited turns our view to another idea which is that of self Here then is a passion placrsquod betwixt two ideas of which the one produces it and the other is producrsquod by it The first idea the-refore represents the cause the second the object of the passionraquoTreatise 1836 laquoWhen an idea produces an impression related to an impression which is connected with an idea related to the first idea these two impres-sions must be in a manner inseparable nor will the one in any case be unat-tended with the other lsquoTis after this manner that the particular causes of pride and humility are determinrsquod The quality which operates on the passion produces separately an impression resembling it the subject to which the quality adheres is related to self the object of the passion No wonder the whole cause consisting of a quality and of a subject does so unavoidably give rise to the passion To illustrate this hypothesis we may compare it to that by which I have already explainrsquod the belief attending the judgments which we form from causationraquo Treatise 189ndash1907 I do not linger here on the discussion that tries to establish if for Hume

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

179

causal link does not derive its necessity from reasoning or de-duction8 However it is based on the experience of the similarity between past and future that is on something that cannot be demonstrated In the case of the passions and belief in the ne-cessity of a causal link they are not the result of reasoning but they are the effect of a tendency and habit The necessity that we feel existing in the bond between two elements (for instance between fire and loose wax or between wealth and pride) is due to human nature which tries to produce a series of repetitions which bring about general rules

Habit acts on the human mind through imagination a faculty that turns impressions into ideas and whose procedure is free devoid of fixed rules9 if we observe it we see that it is possible to identify some constants and to notice that it usually gathers impressions to create bonds of resemblance bonds of contigui-ty in space and time and of cause and effect10 among similar elements The inferences of imagination are influenced by ha-bit because the ideas produced receive such a strong vivacity that they are able to provoke the belief that the inferences will be confirmed by experience Their vivacity equates these ideas with impressions granting them the faculty to influence human passions11 From the perception of an object A and an object B the mind is suited by custom to firmly believe that after the appearance of the first one the second one should follow to the point of reaching the conviction that they are indeed tied up by a necessary relationship which we believe follows a rule Howe-ver no perception corresponds to the idea that we have of such necessity therefore it is a production of our mind and not an element that our senses can perceive12 The same procedures are at play in the formation of general rules that lead humans to create habits that influence our behavior These rules are not

there is a nature outside the I or not I hold that to the goals of the present article that topic is not relevant because this article focuses on the norma-tivity that crosses the act of humans and not on the adherence of objects to the causal law For a possible close examination I refer to the following texts Brian A Chance ldquoCausal Powers Humersquos Early German Critics and Kant Response to Humerdquo Kant-Studien 104 (2013) 213ndash236 Winkler P Kenneth ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo in The Cambridge Companion to Hu-mersquos Treatise ed D C Anslie A Butler (Cambridge Cambridge University Press 2015) 135ndash1648 The deduction is possible only in a priori elaborations by imagination and by intellect elaborations that are characterized for reaching propositions whose contrary is contradictory The experience of ldquoIf A then Brdquo and ldquoIf A then C (neB)rdquo and their related propositions are not contradictory if nature changes its course if it does not repeat itself anymore it does not contradict itself9 laquonothing is more free than that faculty But we are only to regard it as a gentle force which commonly prevailsraquo Treatise 1210 Treatise 1311 Treatise 8212 laquoHere then it appears that of those three relations which depend not upon the mere ideas the only one that can be tracrsquod beyond our senses and informs us of existences and objects which we do not see or feel is causa-tionraquo Treatise 53

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

180

dictated by reason but they are the instruments through which man can extend principles and thoughts beyond the datum and present reasons by following the repetitiveness that characteri-zes nature as a whole13

This is the tool that man possesses for the use of his abilities with a goal-oriented purpose to satisfy his needs14 an inclina-tion to repeat the same intellectual operation or to reproduce the same action15 Custom is a principle of human nature16 but it does not lead us to always behave in the same way habit is not the eternal reproduction of the identical For the observer to have the impression of a causal link between two objects it is not necessary for him or her to have already experienced the same identical situation the typical necessity of the causal rela-tionship that connects an object to another does not only occur in case that the observer perceives the same object A definable as cause of object B but also in the case of a more generally similar objects and similar conditions The repetition that allows to reasoning to go beyond the datum does not develop in the terms of a narrow identity but in terms of similarity it describes a series of repetitions that follows a rhythm of analogy While traveling or considering history we realize that men and women have altered their own institutions and creations (the way they build residences and the tools that they use) to suit them to gi-ven conditions with the purpose of reaching their goals ldquoMen in different times and places frame their houses differently here we perceive the influence of reason and customrdquo17 Objectives common to all men and women such as the maintenance and the propagation of human species can be pursued well only by adapting to existing conditions general rules are not universal or necessary but variable If we perpetuate the reproduction of the identical we will be reduced to the level of simple instincts like animals whose peculiarity consists in being submitted to the power of nature which forces them to the simple repetition of behaviors and procedures18

13 laquoto the force of this argument I so far submit as to acknowledge that general rules commonly extend beyond the principles on which they are foundedraquo Treatise 35314 laquoCustom then is the great guide of human life [hellip] [Without the in-fluence of custom] We should never know how to adjust means to ends or to employ our natural powers in the production of any effect There would be an end at once of all action as well as of the chief part of speculationraquo Enquiry concerning Human Understanding 3915 Enquiry concerning Human Understanding 3716 Enquiry concerning Human Understanding 3717 Hume D An Enquiry concerning the Principles of Morals in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 419518 laquoA man who has contracted a custom of eating fruit by the use of pears or peaches will satisfy himself with melons where he cannot find his favourite fruit [hellip] From this principle I have accounted for that species of probability derivrsquod from analogy where we transfer our experience in past instances to objects which are resembling but are not exactly the same with those concerning which we have had experienceraquo Treatise 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

181

Human beings use ldquoexperimental reasoningrdquo19 and thus are able to use their own knowledge derived from experience ela-borating it and suiting their own tools for the satisfaction of their passions In turn these innovations and diversifications beco-me a habit and custom in a brief period of time the motivations that led to their creation are forgotten and we perpetuate the following of such new precepts

General rules are not determined to the least detail they le-ave space for variations and unlike instincts do not have their own cause in themselves They are the product of the faculty of imagination which elaborates tools with the goal of resolving our tendencies20 and this establishes them as norms hiding their instrumental character This is what characterizes human nature more than reason it is imagination that identifies it It is thanks to imagination alone if men develop the belief that nature repeats itself and so allow them to extend their faculties over the simple perceptions only through it do men believe in the necessity of not interrupting the present habits but of proposing them again in this way building a chain of analogous elements

3 General rules strengthening and correction

The primary role of general rules is the extension of human faculties beyond their justified limits with our passions and re-asoning21 bringing order to experience without a stable base making a systematization of experience that is not grounded on the necessity of certain mechanisms but on the probability that nature will not change its repetitive tendency Both in the moral and cognitive fields general rules are essential for the survival of human beings allowing the production of reasoning that at-tempts to foresee the immediate future and the establishment of institutions that preserve the species

In the absence of habit and repeated bonds among similar ob-jects it would not be possible to reach the conclusion that ldquothose instances of which we have no experience resemble those of which we have experiencerdquo22 there would not be a principle on which the belief in necessity is created therefore without repe-tition reasoning would be impossible23 That is the procedure through which mind goes over what is immediately present to

19 Enquiry concerning Human Understanding 8820 The ldquotendencyrdquo is a desire an impulse immediately satisfied ndash following Gilles Deleuze interpretation ndash by an instinct and in human beings satisfied through institutions see Deleuze Gilles Empirisme et subjectiviteacute (Paris PUF 2010)21 Treatise 19222 Treatise 6223 It is to note that the elevation of passed experience to criterion for future judgement namely the belief that tomorrow will resemble to yesterday it is not in itself a reasoning but it is the ground of every possible reasoning See Enquiry concerning Human Understanding 28f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

182

the senses would be inconceivable Particularly causality (the only philosophical relationship to venture beyond the senses in-forming us about the existence of objects that we do not see or feel)24 could not occur Without this ability to project and forecast it would not be possible for human beings to manage to satisfy their own passions make inferences25 or speculate or act in or-der to achieve a consequence

Fixed habits cause the formation of stable institutions and constitute that network of use and custom within which every human being already exists and that cannot be described as a system of prohibitions It is rather a tool to facilitate thanks to the ability of the imagination26 to arouse a passion lacking its own reason to be27 the actualization of principles that lead to the vi-gor28 of such habits Therefore we are quite distant from a binary scheme of prohibition and permission in which the law preser-ves human beings from their own wickedness or egoism Hume proposes the idea that a rule is an entirety of habits intended to facilitate the attainment of goals (be they egoistic or prescribed by sympathy) of human beings that work together to generate an equilibrium between the repetitive nature of men and women and the conditions in which such habits are created29

This never fixed always imperfect and to be reconstructed equilibrium implicates the second peculiarity of general rules they not only have the role of strengthening and facilitating thou-ghts and action but they also develop the mutually corrective role to create an order in human relationships and in rational reconstructions General rules being the generalization of an individual idea30 applying the peculiarities of a single experience to different cases will lead to errors and prejudices whose defect does not consist so much in their falsehood (against the truth) but rather in the contrast and contradictions that they cause be-tween other prejudices or beliefs31

The ability of the imagination to generalize is not only applied to identical cases but also to similar elements sometimes con-fusing necessary conditions of some effects with other on the contrary superfluous conditions that are only accidental32 in this 24 Treatise 5325 See note 1426 Treatise 23427 Treatise 23428 Treatise 19229 On this aspect focused Gilles Deleuze see Deleuze Gilles Empiris-me et subjectiviteacute30 laquoIf ideas be particular in their nature and at the same time finite in their number lsquotis only by custom they can become general in their represen-tation and contain an infinite number of other ideas under themraquo Treatise 2131 laquoAn Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have soli-dity for which reason thorsquo the conversation of the former in any instance be visibly very agreeable and of the latter very judicious we have entertainrsquod such a prejudice against them that they must be dunces or fops in spite of sense and reason Human nature is very subject to errors of this kindraquo Trea-tise 10032 Treatise 101

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

183

way the faculty leads to general rules that confuse the terms in play

the same custom goes beyond the instances from which it is derivrsquod and to which it perfectly corresponds and influen-ces his ideas of such objects as are in some respect resem-bling but fall not precisely under the same rule33

Only reasoning can counterbalance this excessive amplifica-tion of habit but the very same reasoning is constituted by the cause-effect relationship or by a further general rule Conflict does not occur therefore among elements of different natures but is always between probability and stronger beliefs and not between possibility and certainty Error emerges when among our thoughts we ascertain an incongruity as when two probabi-lities appear in conflict the only way to overcome this does not consist in appealing to an absolute truth but on the contrary in opting for a general rule that brings with itself a degree of greater probability and in relegating to a simple exception the weakest impression the least vivid thought34 In the field of experience (of what Hume calls ldquomatters of factrdquo) every judgment is the re-sult of relationships produced by the imagination thanks to the influence of habit and its relationship with general rules they are grounded in belief which must submit to a more or less founded probability which increases or decreases through other formu-lated judgments35 and that cannot flow in the field of certainty and truth

this gradual increase of assurance is nothing but the ad-dition of new probabilities and is derivrsquod from the constant union of causes and effects according to past experience and observation36

Certainty is a feeling provided by the senses and not by rea-soning or demonstration we live using illusions provided by the imagination without regarding the fact that ldquoall knowledge resol-ves itself into probabilityrdquo37

There are no fixed or stable laws and certainty is replaced by probability which has to be composed turning resemblance into identity or contiguity or causes because of the influence of the modality in which ideas and impressions are conceived What is given are only singular impressions and the rest is construction

The operation of the general rule that exerts itself between cor-rection and expansion does not lead us to exclude the exception from the rule itself but rather to include it in a new series of repe-

33 Treatise 10134 Treatise 10135 Treatise 12136 Treatise 12137 Treatise 122

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

184

titions and analogies In the case of rebellion against a govern-ment resistance overturns and interrupts the habit to obedience This breach is not the breakdown of a rational order that finds its own justification in logic38 as it is not the transgression of an original contractual source of political legitimacy Respecting an established order is not a necessary behavior as necessity is a characteristic that is always and only attributed by the observer it is not present in nature39 and neither is it due to the presence of a real authority established by an original transfer of power and enacted by an unbreakable promise40 The (also moral) obliga-tion of subjugation to a government is due to none of this

If we are to explain constant obedience to a magistrate we have to question and observe the opinions of men and women who would never accept the idea that the origin of government consists in an original promise or contract41 Loyalty to the magis-trate does not consist in a promise or a necessary relationship Rather it is a consequence of general rules thanks to which we extended our maxims beyond the first reason that pushed us to establish them42 and that induced us to get use to do something to repeat ourselves in a regime of analogy leading human bein-gs to consider the magistrates or sovereigns as authoritative not in respect of some legitimating promise but rather because they have achieved their powerful position by inheritance or posses-sed the throne for a long time43 In other words if it is possible to establish an analogy between the actual holders of authority and the predecessors a similitude allows the imagination of the subject to pass from one to the other without unpleasant and difficult passages

Rebellion against an established political order is not due to the breaking of some promise or the shattering of a rational regi-me that for its own logical strength should stay unchanged wi-thout being submitted to assault Rebellion is possible although it is an exception to the general rule of loyalty to authority exactly because general rules are not laws inscribed in human nature Such rules simply describe the general tendency to follow habits and customs Resistance to a sovereign consists in the introduc-tion of an unpredictable variable to a flowing series of analogies This variable does not linearly correspond to principles through

38 Treatise 101ndash10239 Enquiry concerning Human Understanding 7740 laquothe magistrates are so far from deriving their authority and the obli-gation to obedience in their subjects from the foundation of a promise or original contractraquo Treatise 350 laquophilosophers may if they please extend their reasoning to the supposrsquod state of nature provided they allow it to be a mere philosophical fiction which never had and never coursquod have any reality [hellip] But however philosophers may have been bewilderrsquod in those specula-tions poets have been guided more infallibly by a certain taste or common instinctraquo Treatise 316ndash31741 Treatise 35042 Treatise 35343 Treatise 356f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

185

which knowledge can be extended beyond the simply given44

Rebellion is a sign that theory is not a rigid system of absolute truths to which faith must be lent and that one must adopt45

in this particular the study of history confirms the reasonin-gs of true philosophy which shewing us the original qualities of human nature teaches us to regard the controversies in politics as incapable of any decision in most cases46

This does not make it a varying and unpredictable element that sometimes surges in a series of analogies that regulate the poli-tical life of human beings simply splintering them The operation of general rules is corrective not because it excludes what esca-pes from the planed repetition decreeing a narrow invariability (even if only on the plan of analogy and not of identity) however it is because in the actions of men and women the exception becomes a rule It does not rest on a binary plane of truth and untruth in which right and injustice are in originally defined and opposed knowledge moves in a field of probabilities Hume ac-cepts the inclusion of exceptions and admits equilibrium among what is more or less possible Regarding cases of political resis-tance their exceptionality is dissolved in two directions first of all human history has shown so many examples of rebellion47 that it can be considered as a general rule The exceptionality of resistance is inserted in a chain of usual obedience that this way is broken up but its exceptional nature is darkened and integrated into another canon of behavior not left to a chaos that could cast a shadow in repetitive order of humansrsquo and naturersquos procedures The occurrence of the unexpected is immediately included in a habit that explains it normalizing it (also predicting its frequent resurfacing)48 it is instantly integrated in an order of habits that collides against one another Nature repeats it-self confirming our reasoning which ismdasheven though without necessitymdashgrounded on that same repetition this leaves room for possible subversions in what we take for certain49 we un-derstand ordinary human behavior but nothing prevents it from 44 laquowe [hellip] make allowances for resistance in the more flagrant instan-ces of tyranny and oppression [hellip] Nor is it [the resistance] less infallible because men cannot distinctly explain the principles on which it is foundedraquo Treatise 353ndash35445 laquoWhoever considers the history of the several nations of the world their revolutions conquests increase and diminution the manner in whi-ch their particular governments are establishrsquod and the successive right transmitted from one person to another will soon learn to treat very lightly all disputes concerning the rights of princes and will be convincrsquod that a strict adherence to any general rules and the rigid loyalty to particular persons and families on which some people set so high value are virtues that hold less of reason than of bigotry and superstitionraquo Treatise 35946 Treatise 35947 For a detailed study of Hume as historian see Spencer K Wertz ldquoHume History and Human Naturerdquo Journal of the History of Ideas 36 (1975) 481ndash49648 Treatise 35349 Enquiry concerning Human Understanding 33

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

186

contradicting our expectations

4 General rules and freedom

The introduction of variation within general rules does not im-ply for Hume that human beings are unlike other creatures free The nature of human beings in which tendencies do not seek for their own satisfaction through blind instinctive repetition but rather through the elaboration of strategies which result from an equilibrium among new habits does not put him outside a world ordered by blind necessity in which he intervenes to start a new series of repetitions by grounding it in peculiarities that do not belong to the deterministic reality

Human beings do not impose themselves on nature within a proper moral order and with justice their constitution does not separate them completely from natural repetition In other words human beings are not free beings intervening in a reality under a narrow regime of necessity What we consider human ldquolibertyrdquo or ldquofreedomrdquo that is the capacity to enter an established order to change its repetitive series is nothing else than the result of dou-ble ignorance an error in our conception of the necessary and deterministic bond between events and the inability to recognize all the regular connections in which a human action is inserted (without interruptions or breaks) Human beings sometimes act in an apparently unpredictable way practicing a real interruption of any regular and repetitive behavior a fragmentation of any analogy with the past in reality we simply ignore all connections all general rules followed by the individual Therefore when a behavior that is consequence of a till now minor and less evident series prevails on the principal general rule when it alters the equilibrium through the more or less hidden breaking in of con-trary causes50 an observer is not able to recognize the fluidity of the mutation and he motivates his incapacity to recognize a causal bond asserting that he has been spectator of an action which is not the effect of some determining cause but which is rather free

The conviction that holds human beings to be entities endowed with liberty opposed to nature that obeys a regime of necessity is a reflex of a common error due to the consideration of the status of the bond between cause and effect Human beings and nature obey the same type of necessity the chain of natural causes and the chain of voluntary causes are not separated by the presence or absence of freedom Necessity is not internal to the cause as if it were itself bearer of such a determining element It is ra-ther the effect of the imagination of the observer This faculty is able to produce such a firm conviction that when human beings reflects on themselves and do not see in their spirits a neces-sary connection comparable to that which he believes existing 50 Enquiry concerning Human Understanding 71

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

187

among natural objects they then consider themselves detached from the natural world in possession of an exclusive characte-ristic liberty Incapable of remembering that necessity is not a quality of the agent or of the effect but rather of what we con-sider their relationship to be we build two different fields one for human beings and the other for nature the two kingdoms of liberty and determinism Eliminating the possibility of freedom implies the elimination of its opposite which is necessity these are the results of the beliefs of the human mind What we seem to know is simply a constant conjunction that we are able or not to foresee and not the necessity or its contrary in both cases Liberty (as the contrary of necessity)51 and its opposite do not exist human beings are the same as nature The fact that hu-man actions appear irregular and uncertain opposed to natural regularity does not make them exist on a different level52 The bond between motives and actions has the same regularity as natural developments53

The ability of human beings to introduce an unexpected ele-ment does not make them free beings but only marks a facul-ty of adaptation in a mutable equilibrium If human beings sim-ply followed their instincts there would be no change and they would continue to act in the same identical way independently from every condition birds build their nests without adapting to a varied situation without any assessment and forecast54 The intervention of mutation within a repetitive series is possible only if it does not deal with impulses but custom and general rules or when human minds expand beyond the given through imagi-nation and habit which reconstruct resemblance contiguity and causation55 producing such a vivacious conception of objects and consequences that we firmly believe them to be able to pro-voke specific effects despite mutable conditions56 Human bein-gs are different from animals because they are not tied to their instincts this is what we would think we can conclude However reason is not a faculty external to nature On the contrary it is a sort of instinct or mechanic power similarly to the blind impul-se that induces animals to behave in a perpetual repetition57 What characterizes the human mind is the ability to go beyond the datum and simple perceptions building series of resemblan-51 We can talk about freedom only in the sense of the absence of cons-trictions Enquiry concerning Human Understanding 7952 Treatise 25953 laquoI do not ascribe to the will that unintelligible necessity which is su-pposrsquod to lie in matter But I ascribe to matter that intelligible quality call it necessity or not which the most rigorous orthodoxy does or must allow to belong to the willraquo Treatise 26354 laquoAll birds of the same species in every age and country build their nests alike In this we see the force of instinctraquo Enquiry concerning the Prin-ciples of Morals 19555 Enquiry concerning Human Understanding 4356 See note 1457 laquothe experimental reasoning itself [hellip] is nothing but a species of ins-tinct or mechanical powerraquo Enquiry concerning Human Understanding 88

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

188

ces and causalities between them whose conception can be more or less vivacious provoking changes or simple repetitions in behavior according to a resultant emergence from the inter-section of different series of habits reconstructed causal chains and produced resemblances We are in a domain not subdued to reasoning and built by belief imagination and the general rules or by the human propensity to produce repetitions and to belie-ve in them building series whose members are based on each other and not on a cause or tendency The results of this order are the praxis and the knowledge of human being which do not originate from the imposition of pure reason external to nature but they are rather the result of probability of more or less cer-tain reconstruction and of already given conditions

The human mind is a natural element among many others it does not refer to some transcendent plan and it is not drawn by some liberty It is rather a simple reaction to human passions and a tool that facilitates their satisfaction We are then wrong if we think that reason can command passions and impose on them a moral law or a truly and right order When we think we are ac-ting reasonably our behavior in reality is due to a predominant passion which in this case is calm quiet and not expressed violently58 Even if the human mind is able to introduce an unpre-dictable variable in the development of habits and of general rules it is not able to produce a metaphysical reality The only things from which it starts are impressions in their singleness and in their mutual isolation Everything it reconstructs is only its product the harmonious order that we think we are recons-tructing in science59 is not a revealed truth nor a discovery but only a projection of our belief that allows us to direct our own tendencies

5 Identity and difference the absence of the ldquoIrdquo

Hume places the concepts of difference and becoming as prior to those of identity and being because identity is nothing more than a construction of imagination60 Moreover the source from which such falsification is produced cannot be understood as a constant ldquoselfrdquo always identical to itself among the flow of im-pressions there is no stable subject that arises as sovereign The 58 laquoMen often counter-act a violent passion in prosecution of their inte-rests and designs [hellip] What we call strength of mind implies the prevalence of the calm passions above the violentraquo Treatise 268 About the possibility to have or not a practical reason in Hume see Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non-sceptical Interpretationrdquo History of political Thought 34 (2013) 89ndash11359 Michel Malherbe La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 4960 laquoOur chief business then must be to improve that all objects to which we ascribe identity without observing their invariableness and uninter-ruptedness are such as consist of a succession of related objectsraquo Treatise 167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

189

identity that is usually attributed to the human mind is ldquofictitiousrdquo61 and what we are used to calling ldquoIrdquo is nothing else than an enti-rety of perceptions whose bond is something we have attributed ourselves62 building in this way a continuous chain of thought63 that results in being identical to itself There is no impression of the ldquoIrdquo and of its identity that is a demonstration of the fact that it is a construction Philosophy must thus be empiricist it has to be related to experience obliging it to open and destruct identity and to radically resolve it into the difference64 Personal identity is the result of an operation of imagination that reflects on itself on thinking65 thus perceiving a facility in the passage among the consideration of different perceptions and allowing the emergen-ce of the feeling of necessity taking into consideration causal bonds as the effects of the same ldquoIrdquo and its faculties66 It is at this point of the discussion that Hume introduces the comparison between the mind and a theater (deprived however of scene stage or any other structure) where the perceptions incessantly follow one another combining themselves to each other ldquoThere is properly no simplicity in it at one time nor identity in diffe-rentrdquo67 The fact that this theater has no scenes and materials is a marker that the same powers of the mind are not perpetually identical68 and therefore that imagination memory and reason are not faculties in the sense that they do not constitute a trans-cendental structure laying between the subject and his object They do not systematize knowledge and practice They are ra-ther attitudes to pursue a purpose in a determined way similar to instincts that have been born and developed in nature Therefo-re as birds mechanically build identical nests ndash even though not implying a specific faculty of their mind in this action (however only implying a tendency that is repetitively updated without va-riation) ndash human beings stir inside nature through similarly ins-tinctive procedures that may also be constant but which cannot

61 Treatise 16962 Treatise 16963 laquoour notion of personal identity proceed entirely from the smooth and uninterrupted progress of the thought along a train of connected ideasraquo Treatise 169ndash17064 Malherbe Michel La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 19365 laquoIdentity depends on the relations of ideas and these relations pro-duce identity by means of that easy transition they occasionraquo Treatise 17166 In this last passage memory plays an central role because it allows to extend the chain of causes to every moment we remember laquoIn this view therefore memory does not so much produce as discover personal identity by shewing us the relation of cause and effect among our different percep-tions lsquoTwill be incumbent on those who affirm that memory produces entirely our personal identity to give a reason why we can thus extend our identity beyond our memoryraquo Treatise 17167 Treatise 16568 laquoOur thought is still more variable than our sight and all our other senses and faculties contribute to this change nor is there any single power of the soul which remains unalterably the same perhaps for one momentraquo Treatise 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

190

be hypostatized

6 The Absence of the Subject

Man as a flow of perceptions is deprived of any reason that is able to distance him from nature and capable of imposing a proper order a human mind that results from a specific fold pro-duced by natural processes all of this makes the formulation of the self as a subject in contrast to objects impossible Percep-tion before it has been elaborated and has been transformed into an idea is pure presentation69 without any distance between the object and the subject Perceptions are singularities in which a perceiving subject and a perceived object are not distinguisha-ble both emerge in a second moment as a consequence of the attribution of continuity and coherence to different perceptions Every piece of information furnished by our senses is at mini-mum disconnected from any other perceptions that do not alrea-dy carry within themselves the sign of possible relationships with other impressions They do not have in themselves singularly a necessary bond to other perceptions even if they are represen-ted as inherent to the same object as two points contingently connected by a segment are traced in a second moment the re-lationship between impressions follows it is not necessary and it is a consequence of the attribution of a regularity they do not have70

The centrality of habit and of repetition not only involves the notion of a subject intended to be opposite to the object Hume also expressly denies other characteristics attributed to this con-cept which is reducible to a simple grammatical matter71 taking into consideration the central peculiarities that characterize it we are therefore able to distance Hume from the philosophical tradition identified by Alain de Libera which gradually identifies the subject of the act the subject of the inherence of attributes and the cognitive subject72

From the beginning the absence of the cognitive subject is de-69 With this expression I intend the precedence of the impression in respect to every representation which presupposes the distance between the thought and its object70 Treatise 13771 To this is also reduced the personal identity laquoThe whole of this doc-trine leads us to a conclusion which is of great importance in the present affair viz that all the nice and subtile questions concerning personal identity can never possibly be decided and are to be regarded rather as grammatical than as philosophical difficultiesraquo Treatise 171 Neujahr put in relation the Humean analysis on identity and the which one on time Philip J Neujahr ldquoHume on Identityrdquo Hume Studies 4 (1978) 18ndash2872 The path toward this identification is the subject matter of the re-search of Alain de Libera in particular Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet moderne Cours du Collegravege de France 2013ndash2014 (Paris Vrin 2015) More extensively Alain de Libera Archeacuteologie du sujet I Naissance du sujet (Pa-ris Vrin 2007) Alain de Libera Archeacuteologie du sujet II La Quecircte de lrsquoidentiteacute (Paris Vrin 2008)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

191

termined by the negation of an identity to which it is possible to submit rational and stable faculties The denial of the subject as a center of inherence73 excludes the possibility to think of actions and human faculties as attributes of a crucial point (be it a subs-tance or a transcendental synthetic unity) This brings Hume to a tradition that is different from the one that places being prior to becoming and that ndash following Alain de Libera ndash74 connects Aris-totle to Thomas Aquinas to Kant

The notion of accidents is an unavoidable consequence of this method of thinking with regard to substances and substan-tial forms nor can we forbear looking upon colours sounds tastes figures and other properties of bodies as existences which cannot subsist apart but require a subject of inhesion to sustain and support them For having never discoverrsquod any of these sensible qualities where for the reasons above--mentionrsquod we did not likewise fancy a substance to exist the same habit which makes us infer a connexion betwixt cause and effect makes us here infer a dependence of every quality on the unknown substance75

Imagination memory and reason are not the faculties of a subject this concept is replaced in Hume by an ldquoIrdquo that precedes the distinction between subject and object There are only two uses of the term ldquosubjectrdquo expressly accepted by Hume76 the first one concerns one of the causes of a passion The subject of a passion is not the man or woman who feels it rather it is that thing to which a quality (identified with the second cause of that passion) inheres With an example the subject of proud is not the human being proud of itself rather the cause of that feeling his propriety following an example of Hume77 The subject of passion is different from the self which is on the contrary the object of proud78 in case that it is related to the subject of that passion79

The second use ndash central for the demonstration of this arti-cle ndash of the term ldquosubjectrdquo is that of subditus a man or woman

73 This prevents in Humersquos intentions to think of the object as a subs-tance (in particular see Treatise 146ndash147) See also Jay F Rosenberg ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo Topoi 19 (2000) 137ndash14574 See Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet modern (Paris Vrin 2015) 174ndash175 See also Steven C Patten ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo Hume Studies 2 (1976) 59ndash7575 Treatise 146ndash14776 I exclude here the use of ldquosubjectrdquo in the sense of ldquoargumentrdquo ldquoobject of a discussionrdquo77 laquoit appears necessary we shoursquod make a new distinction in the cau-ses of the passion betwixt that quality which operates and the subject on which it is placrsquod A man for instance is vain of a beautiful house which be-longs to him [hellip] The quality is the beauty and the subject is the houseraquo Tre-atise 183 For examples concerning other passions Treatise 201 214ndash21578 See quote in note 679 laquothe subject to which the quality adheres is related to self the object of the passionraquo Treatise 189

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

192

subjected to an authority80 therefore Hume denies the tradition that relates the subject to the subjectum (the support of personal peculiarity) he only admits its meaning deriving from subjectus in the narrow sense of being subjugated81

Refusing to identify the subject with the self avoiding the con-ception of this as a totally subjugated entity he leaves space for the possibility of thinking of human beings as a not already and always subjected being not only subjected by the government but also by a fixed (even substantial) identity by an universal and stable description to which everybody must adhere82 Hume does not pose human beings as subjects in the sense that they are not subjugated to a universal anthropological structure to some moral or epistemological law they are not even subjuga-ted to their own consideration in which there is no impression of themselves This prevents the antinomy that derives from the desire to write an anthropology that sets man as an object fal-sifying him because of the consequent impossibility to describe his being a subject Hume admits instead a science of the hu-man being that is only restricted to the description of his (or her) absence of identity Man is a subject only if he is subjugated this however does not entail that the man is always free apart from the aspect of his or her subjection to the magistrate (as if free-dom belonged to his private and apolitical space)

The attempt to subjugate his own desire to a rational or spiritu-al norm is also criticized such effort is not only painful but also useless83 and furthermore it is not the demonstration of liberty imposed by man on his or her life Hume speaks in this case of artificial behaviors that derive from the split with the analogy and with repetition furnished by custom they are not manifestations of a strong freedom that ranges inside what is given They only concern the exasperation of some principles or inclinations that become dominant subjugating all the other desires and affec-tions84 Human beings cannot impose a norm on themselves or on others

It is particularly clear in this sense what Hume intends to warn the skeptical philosopher (with whom we may identify Hume himself) skepticism must be limited to the philosophical matters It must not lead to popular objections with the purpose of placing into question the bases of our daily behavior Radical doubt is

80 Remaining in the Treatise we can find the following recurrences of the word ldquosubjectrdquo in the sense of ldquosubmittedrdquo ldquosubjugatedrdquo ldquoa person owing allegiance to a king or queenrdquo Treatise 221 222 262 343 345 358 364 37581 See the entry ldquosujetrdquo in Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles ed B Cassin (Paris Le Seuil Le Robert 2004) 1233ndash125482 About this see Eacutetienne Balibar Citoyen sujet et autres essais drsquoan-thropologie philosophique (Paris PUF 2011) in particular the introduction (ldquoAvant-propos ndash Apregraves la querellerdquo)83 David Hume The Sceptic in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 323184 The Sceptic 214

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

193

easily swept away not due to solid reasoning but through life itself The occupations of daily life will be the agents that will wake up the skeptic from his dream full of questions the skepti-cal principles ldquovanish like smoke and leave the most determined skeptic in the same condition as other mortalsrdquo85

7 A politics without subjugation

General rules imagination and habit thought of as central fac-tors lead to a conception of politics as a continuous rebalancing between repetitions series of analogies and without reaching a firm center that would be able to bring them (also in a teleological way) to stability and establish a fixed criterion to distinguish what is right and what is wrong86 Norms that regulate relationships among human beings develop independently from any law sti-pulated by the state or a rational or divine being and they are not necessarily instituted by a constitution or by a philosophical system Thus it is possible to verify the source of obedience to norms without however implying that this obedience presuppo-ses submission or a subject It is therefore possible to think of a norm invested of a power that does not want to subdue man the power still remains in his hands87 and it cannot be ceded to a sovereign Instead of a binary order constituted by the pairs truefalse and correctwrong to which human beings should submit Hume proposes probability which totally replaces the possibility of certainty in the cognitive and practical fields Thus norms are not an instrument to include or to exclude legitimate or not but it is the result of what may be more or less probable Its purpose is to allow man to proceed over what is simply given hence streng-thening his faculties In a different way in respect to the instincts general rules include any element preventing the consideration of something as a transgression a glitch among all analogies These rules are not established to regulate the liberty of the indi-viduals or allow their independence They are rather the result of human imagination and nature Obeying them is not a matter of subjugation and breaking them is not a sign of freedom liberty is not something that should (or not) be folded to the general rules

Humersquos skeptic and empirical philosophy has dethroned the subject from its grounding position and has made it the product of the general rules themselves of the imagination and of habits Nobody can impose on nature to make possible a condition of freedom general rules are not the product of reasoning and they 85 Enquiry concerning Human Understanding 13086 For a summery about the interpretations of Hume as a conservative or as a reformer see D W Livingston ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo Hume Studies 21 (1995) 151ndash16487 laquoas Force is always on the side of the governed the governors have nothing to support them but opinionraquo David Hume Of the First Principles of Government in The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 3110

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

194

do not lead to a complete and perfect systematization of socie-ty and ethics Whether it is a matter of liberty truth and moral or cognitive order there is a continuous reconstruction and an equilibrium to be rebalanced the human mind does not possess principles that could systematize experience Originally man is nothing else than a sort of a fold inside the immanence of the pro-cesses that characterizes nature that does not leave a space for certain truths but only an eternal rebalance among probabilities Thinking politics with Hume implicates the refusal of any element already given to the relationships and to empirical differences the renouncing of any transcendent plan and the idea of human liberty previous to relationships to the (violent) interaction of strength among men Liberty is not an anthropological peculiari-ty but it is rather already held within order and equilibrium It is not even possible to think of an already given subject that enjoys liberty Even if it would seem that man originally finds himself in the pair subjectumndashsubjectus88 he precedes it identities and the elements that allow the emergence of that pair of concepts are later constituted They are only a product of the imagination which is able to hide the differences and ever-changing flows

This is the advantage offered by Humersquos philosophy having difference and probability as points of departure for a philosophi-cal reflection on politics it is possible to trace the birth of identi-ties showing their fallacy and their mutability departing from the relationships the subject appears as a simple product We are very far from the idea of a subject grasping the truth We are ins-tead in the field of mutability in which human beings stir among probability and balances in which norms do not forbid but rather strengthen their faculties

88 laquoWe naturally suppose ourselves born to submissionraquo Treatise p 355

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

195

BIBLIOGRAFIA

BALIBAR Eacutetienne Citoyen sujet et autres essais drsquoanthropo-logie philosophique Paris PUF 2011

CASSIN Barbara Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles Paris SeuilLe Robert 2004

DELEUZE Gilles Empirisme et subjectiviteacute Paris PUF 2010

HUME David A Treatise of Human Nature Ed D F Norton M J Norton Oxford Clarendon Press 2007

___________ ldquoAn Enquiry Concerning Human Understan-dingrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoAn Enquiry Concerning the Principles of Mo-ralsrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoThe Scepticrdquo In HUME David The Philoso-phical Works Ed T H Green T H Grose Aalen Scientia Ver-lag 1964

KENNETH Winkler P ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo In The Cambridge Companion to Humersquos Treatise Ed D C Anslie A Butler Cambridge Cambridge University Press 2015

KONG Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non--sceptical Interpretationrdquo In History of political Thought nordm 34 2013) pp 89ndash113

LIBERA Alain Archeacuteologie du sujet Naissance du sujet vol I Paris Vrin 2007

___________ Archeacuteologie du sujet La Quecircte de lrsquoidentiteacute vol II Paris Vrin 2008

___________ Lrsquoinvention du sujet moderne Paris Vrin 2015

LIVINGSTON D W ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo In Hume Studies nordm 21 1995 pp 151ndash164

MALHERBE Michel La Philosophie Empiriste de David Hume Paris Vrin 2001

NEUJAHR Philip J ldquoHume on Identityrdquo In Hume Studies nordm 4 1978 pp 18ndash28

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

196

PATTEN Steven C ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo In Hume Studies nordm 2 1976 pp 59ndash75

ROSENBERG Jay F ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo In Topoi nordm 19 2000 pp 137ndash145

WERTZ Spencer K ldquoHume History and Human Naturerdquo In Journal of the History of Ideas nordm 36 1975 pp 481ndash496

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

197

Resenha

Resenha do livro Teoria da heteroniacutemia de Fernando Pessoa (Org de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvin 2012)

O Palco da Heteroniacutemia

Teoria da heteroniacutemia tem como eixo central o tema que seus organizadores consideram como sendo dos mais impor-tantes para compreensatildeo da obra pessoana como um todo a questatildeo da criaccedilatildeo heteroniacutemica que aqui se apresenta em fragmentos cartas poemas ensaios e textos escritos pelo poeta portuguecircs ou por seus heterocircnimos ao longo de deacuteca-das Muitas vezes sem dataccedilatildeo precisa os documentos prati-camente cobrem toda a vida intelectual de Pessoa dando-nos testemunhos das inquietaccedilotildees que o motivaram a formular e a desenvolver sua poeacutetica No prefaacutecio que escrevem a esse volume quando buscam introduzir o leitor no universo da pro-duccedilatildeo pessoana os organizadores de Teoria da heteroniacutemia re-correm a um exemplo cuja fonte seria o psiquiatra Ronald Laing e que teria sido citado por Eduardo Prado Coelho em um estudo que dedicou a Pessoa Trata-se de uma crianccedila que brinca com certo nuacutemero de cadeiras

ldquoCada cadeira tinha por funccedilatildeo desencadear um ima-ginaacuterio especiacutefico na primeira ela [a crianccedila] tornava-se um cow-boy do Oeste americano na segunda convertia-se num gangster de Chicago na terceira era um chinecircs negociante que atravessava a Aacutesia na quarta um pirata dos mares do Sul segundo o modelo de Sandokan e na uacuteltima cadeira voltava a ser a crianccedila ajuizada que sempre havia sido e que tinha que fazer os trabalhos da escolardquo1

Como o menino e suas cadeiras o poeta portuguecircs tem uma obra muacuteltipla constituiacuteda de vaacuterias personas literaacuterias ou personagens dos quais por vezes o proacuteprio nome Fernando Pessoa poderia ser visto como sendo mais um deles mais uma das ldquocadeirasrdquo agraves quais recorre quando desenvolve sua obra Em carta a Joatildeo Caspar Simotildees de 28 de julho de 1932 o poeta ldquoexplicita sua intenccedilatildeo final toda a obra heterocircnima eacute para ser publicada sob o seu proacuteprio nome Fernando Pessoa sem ne-nhuma espeacutecie de hesitaccedilatildeordquo2 Se aqui o nome Fernando Pes-soa eacute visto como aquele que unificaria e para o qual culminaria todo o processo que eacute a proacutepria dinacircmica da criaccedilatildeo heteroniacute-1 Teoria da heteroniacutemia p16 apud COELHO EP ldquoO Viajante do In-versordquo ColoacutequioLetras 96 marccedilo-abril de 1987 p462 Teoria da heteroniacutemia p18

Luiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

Professor de filosofia pela Universidade Federal deSatildeo Carlos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

198

mica um nome que resume e abrange os demais em outros momentos ele natildeo parece ser mais que uma das assinaturas empregadas pelo poeta tais como as de Caeiro Aacutelvaro de Cam-pos Ricardo Reis Alexandre Search Antoacutenio Mora Bernardo Soares etc Assim na medida em que eacute visto como apenas mais um nome usado pelo autor Fernando Pessoa estaria submetido a mesma loacutegica que rege a produccedilatildeo e desenvolvimento dos outros nomes que aparecem na obra do poeta De certo ponto de vista ele pode mesmo ser considerado como sendo o menos real de todos os personagens do poeta Quando tomado como uma espeacutecie de veiacuteculo meio pelo qual os outros nomes sur-gem se exprimem e se reuacutenem em sua obra Fernando Pessoa poderia ser visto como o menos coeso o mais variaacutevel dos seus personagens como afirma o proacuteprio poeta ao falar de si mesmo ldquoSou poreacutem menos real que os outros menos uno menos pes-soal eminentemente influenciaacutevel por todos elesrdquo3

O que aqui estaria em jogo dizem os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ao fazer menccedilatildeo a leitura de Joseacute Gil es-tudioso da obra pessoana seria uma outra concepccedilatildeo de sub-jetividade possibilitada pelo proacuteprio movimento no qual surgem os heterocircnimos um ldquosujeito de tipo novo que consistiria no proacute-prio intervalo entre os sujeitos que a escrita heteroniacutemica potildee em cenardquo4 Desse modo a escrita heteroniacutemica pressuporia um agente produtor ou autor que tivesse sempre de guardar algo de indistinto ou despersonalizado na medida mesma em que ele deve estar sempre aqueacutem ou aleacutem dos personagens que forma ou assume Ao menos em um primeiro momento para ser aque-le que daacute ocasiatildeo para que surjam todos esses personagens o autor natildeo poderia ser nenhum deles em particular Por isso quando assim considerado a autoria e com ela a subjetivida-de do autor passaria a ocupar uma ldquosituaccedilatildeo intervalarrdquo expli-cam-nos os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ndash o autor sempre estaria no espaccedilo entre o personagem que acabou de apresentar ou assumir e aquele que estaacute prestes a expor ou a encarnar Assim a autoria passa a assemelhar-se a um espaccedilo vazio se por isso entendermos algo desprovido de forma defini-da ou mesmo amorfo termo usado pelo proacuteprio Pessoa quando descreve a ldquolinha fluida de minha personalidade amorfardquo5 Tal passagem nos parece interessante justamente por conjugar a ausecircncia de forma a um movimento que eacute o da escrita o escri-tor acaba por representar um papel no interior do processo de escrita mas a condiccedilatildeo de sua arte eacute que ele seja um tipo de personagem despersonalizado que seja antes um fluxo e que para assumir diversas personas ele mesmo natildeo possa ser ne-nhuma em especial Desse tipo de relaccedilatildeo complexa que sua poeacutetica exigiria nosso autor parece bastante consciente quan-do por exemplo afirma que ele eacute ldquoindividuado por uma suma 3 Teoria da heteroniacutemia p2314 Teoria da heteroniacutemia p13 grifo nosso5 Teoria da heteroniacutemia p 160 Texto 31 provavelmente de 1915

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

199

de natildeondasheus sintetizados num eu posticcedilordquo6 Neste processo a necessidade de formar e depois unificar os diversos natildeo-eus eacute tatildeo forte quanto a consciecircncia de que tal unificaccedilatildeo se faz no interior da divisatildeo e que aqui paradoxalmente o indiviacuteduo ape-nas poderaacute se apresentar como sendo divisiacutevel ao infinito ele formaraacute outros natildeo-eus para unificaacute-los sob um novo eu posticcedilo que em seguida daraacute continuidade ao processo e originaraacute ou-tros natildeo-eus e assim por diante Designaria o nome Fernando Pessoa esse eu posticcedilo que se unifica e se divide a cada mo-mento de sua obra Como vimos em certo sentido podemos pensar que se trata de um nome privilegiado frente aos demais (corresponderia agrave assinatura do autor distinta da de seus per-sonagens como a de Caeiro Campos ou Reis) mas por outro lado ele ainda pode ser visto como sendo apenas mais um dos personagens soacute mais uma ldquocadeirardquo entre as muitas que o poe-ta fabrica talvez a mais irreal de todas como nos dizia Pessoa em trecho acima citado Assim como o garoto do exemplo que encontra a cadeira na qual volta a ser o menino que era antes de iniciar a brincadeira Pessoa teria esse momento em que se-ria ele mesmo mas esse ele mesmo jaacute natildeo existe fora de um universo em que os seus outros eus tambeacutem existem Neste instante o eu jaacute estaacute em uma situaccedilatildeo em que ele soacute eacute na medi-da em que eacute muitos em que eacute dois para falar como Pessoa em um poema que tambeacutem se deteacutem na ideia de uma brincadeira infantil

Brincava a crianccedilaCom um carro de bois Sentiu-se brincandoE disse Eu sou dois

Haacute um a brincar E outro a saberUm vecirc-me a brincarE outro vecirc-me a ver7

Nesse sentido o eu passaria a ser mais um persona-gem uma vez que se mostra tal como um deles em que se relaciona com os demais e em que aparece no mesmo jogo ou sob a mesma loacutegica8 que rege o surgimento dos outros o eu que primeiramente poderia ser visto como o produtor do proces-so da brincadeira no caso das crianccedilas passa agora a inte-grar a proacutepria criaccedilatildeo como se o autor no processo mesmo de autoria fosse levado a criar em algum momento o seu lugar o

6 Teoria da heteroniacutemia p 150 Texto 26 provavelmente de 19157 Teoria da heteroniacutemia Poema 6 de 5121927 p3378 Vale lembrar que ldquoloacutegicardquo eacute um termo usado pelo proacuteprio Pessoa para designar uma forma de proceder ou certo modo de conduccedilatildeo no de-senvolvimento de algo de um modo de escrever ou criar por exemplo (Ver Teoria da heteroniacutemia p129 ou p142)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

200

seu espaccedilo ou o seu papel exatamente como criara para cada um de seus personagens Sob tal perspectiva toda criaccedilatildeo de personagens todo o nomear feito no interior da loacutegica da hete-roniacutemia seria tambeacutem algo como um ldquoheteronimiarrdquo com per-datildeo da expressatildeo isto eacute dar um nome pressuporia levar em conta todos os outros nomes com os quais esse primeiro se relaciona e a partir dos quais o seu proacuteprio nome ganha signifi-cado Nesse sentido a capacidade de formar um personagem seria tambeacutem aquela de formar vaacuterios isto eacute os seus vaacuterios os seus natildeo-eus os outros com os quais cada personagem se relaciona no interior dessa loacutegica criativa talvez algo que com alguma liberdade pudeacutessemos chamar de os seus natildeo-nomes proacuteprios todos aqueles nomes que natildeo satildeo o do personagem ou da persona literaacuteria mas que estatildeo a ele ligados e por isso ainda lhe seriam proacuteprios Posto assim em meio ao processo de criaccedilatildeo heteroniacutemica natildeo acabaria por receber o nome Fernan-do Pessoa algo que o aproxima da condiccedilatildeo de um heterocircnimo justamente quando o vemos como o autor de uma obra que estaacute plena de personagens que satildeo eles tambeacutem autores9 Segundo o criteacuterio adotado pelos organizadores de Teoria da heteroniacutemia antes de tudo um heterocircnimo se caracterizaria por ser um escritor por ter redigido um livro um ensaio um poema ou ter o projeto de fazecirc-lo Satildeo entatildeo personagens ativos eles mesmos criadores e sob essa perspectiva muito proacuteximos da atividade daquele que os forjou o proacuteprio Pessoa

Termo que teria sido cunhado pelo poeta portuguecircs por volta de 1928 para designar um modo de produccedilatildeo artiacutestico que o acompanhava desde os cinco anos de idade quando teria criado o Chevalier de Pas10 heterocircnimo jaacute traz em sua letra a alteridade sem a qual ele natildeo se define e natildeo se individua Eacute nesse sentido que malgrado seus traccedilos proacuteprios seu estilo ca-racteriacutestico e tudo o mais que o distingue e o torna algueacutem uacutenico e particular Caeiro (na medida em que eacute um heterocircnimo e como todo heterocircnimo) pode tambeacutem ser visto como um ser plural uma vez que o seu nome jaacute pressuporia um universo de outros nomes com os quais ele se liga ou em direccedilatildeo aos quais ele se estende Sua obra como sua assinatura iria aleacutem dela mesma e se completaria naquela de seus seguidores como Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antoacutenio Mora Tal conviacutevio ou relaccedilatildeo torna cada um desses heterocircnimos tatildeo individuais fechados e acabados em si mesmos quanto dependentes desses seus natildeo-eus ndash esses seus outros a ele aparentados ou apropriados

9 Sem aqui querer entrar nos meandros das questotildees e das distinccedilotildees que separam o que em Pessoa chama-se de ortocircnimo semi-heterocircnimo e heterocircnimo propriamente dito buscamos unicamente centrar-nos em um processo ou loacutegica de criaccedilatildeo pela qual o poeta forja seus personagens ou autores tal como sugere o volume Teoria da heteroniacutemia ao reunir variados textos sob a rubrica maior da heteroniacutemia10 Os organizadores de Teoria da heteroniacutemia o consideram como sen-do o primeiro dos heterocircnimos de uma lista de mais de cem criados por Pes-soa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

201

Prova disso seriam os textos que Ricardo Reis Aacutelvaro de Cam-pos e Thomas Crosse escreveram sobre Caeiro momentos em que se analisa a obra do mestre em que se descreve seu modo de vida e por vezes lhe datildeo a palavra e o fazem falar como o faz Aacutelvaro de Campos ao relatar diaacutelogos que teve com Caeiro11 O mesmo poderia ser notado em relaccedilatildeo agraves transformaccedilotildees modificaccedilotildees e intercacircmbios que ocorrem entre os heterocircnimos pelos quais Alexander Search talvez seja tambeacutem Ceaser Seek ou quando Vicente Guedes ldquocede lugar (e o Livro do desassos-sego) a Bernardo Soaresrdquo12 ou ainda quando pensamos no viacuten-culo que se estabelece entre o mesmo Bernardo Soares e o seu livro e a obra de outro heterocircnimo o Baratildeo de Teive Nesse mo-vimento de criaccedilatildeo que a criacutetica chamou de heteroniacutemico13 tudo leva a crer que quanto melhor e mais acabada estiver a com-posiccedilatildeo de um heterocircnimo mais ela indicaraacute ou pressuporaacute os desdobramentos em direccedilatildeo agrave alteridade que ele o heterocircnimo jaacute compreenderia em seu interior como sendo o exterior que lhe eacute proacuteprio o seu universo Ele traria entatildeo consigo uma exterio-ridade (que eacute tambeacutem o seu outro sua alteridade) que natildeo lhe seria exata e completamente estranha ou alheia mas que a ele ainda guardaria proximidade Entatildeo talvez seja por ser tatildeo bem caracterizado por ter um estilo e personalidade tatildeo marcados que Caeiro possa tambeacutem explicitar com tanta eficaacutecia a ordem do universo que o ladeia e deixar claro o que Pessoa chama de ldquonatureza dramaacutetica das minhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo14 Eacute sobretudo a partir da relaccedilatildeo entre Caeiro Campos e Reis que se poderia compreender a criaccedilatildeo heteroniacutemica como dra-maacutetica e Pessoa o criador passaria ser um poeta dramaacutetico como ele mesmo nos diz15 ldquoCriarrdquo escreve Pessoa ldquoeacute substituir a si proacuteprio () Que cada um seja muitosrdquo16 Ou entatildeo ldquoPara criar destruiacute-me Tanto me exteriorizei de mim que dentro de mim natildeo existe senatildeo exteriormente Sou a cena nua onde pas-sam vaacuterios atores representando vaacuterias peccedilasrdquo17

Toda criaccedilatildeo demandaria um sair de si que por sua vez acaba por dar origem a uma comunidade ou antes a uma cena ou espaccedilo em que atuam ou podem atuar diversos persona-

11 Teoria da heteroniacutemia Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro p31512 Teoria da heteroniacutemia p3113 Vale lembrar que Pessoa cria apenas heterocircnimo que por vezes aparece descreve o seu ato de compor por exemplo ldquominhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo em um trecho que citaremos a seguir Heteroniacutemico ou hete-roniacutemia satildeo termos cunhados pela criacutetica pessoana Ver Teoria da heteroniacute-mia p11114 Teoria da heteroniacutemia texto 69 p230 provavelmente de 192815 ldquoO ponto central da minha personalidade como artista eacute sou um poeta dramaacutetico tenho continuamente em tudo quanto escrevo a exalta-ccedilatildeo iacutentima do poeta e a despersonalizaccedilatildeo do dramaturgo Voo outro ndash eis tudordquo afirma Pessoa Teoria da heteroniacutemia Carta a Joatildeo Gaspar Simotildees 11121931 p25316 Teoria da heteroniacutemia texto 50 p19817 Teoria da heteroniacutemia texto 57 p210 grifo nosso

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

202

gens um tipo de palco no qual a individualidade surge ao se relacionar com os seus proacuteprios natildeo-eus A criaccedilatildeo em geral e a poeacutetica em particular dependeriam do estabelecimento desta cena ou teatro como nos explica Pessoa em uma passagem em que se faz menccedilatildeo a uma distinccedilatildeo aristoteacutelica

ldquoHaacute duas feiccedilotildees literaacuterias ndash a eacutepica e dramaacutetica O lirismo eacute a incapacidade comovida de ter qualquer delas O que eacute ser liacuterico Eacute cantar as emoccedilotildees que se tecircm Ora cantar as emoccedilotildees que se tecircm faz-se ateacute sem cantar O que custa eacute cantar as emoccedilotildees que se natildeo tecircm Sentir profundamente o que se natildeo sente eacute a flacircmula de almirante da inspiraccedilatildeo O poeta dramaacutetico faz isto diretamente o poeta eacutepico faacute-lo in-diretamente sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela isto eacute sentindo exatamente aquele elemento da obra de que natildeo pode haver emoccedilatildeo nenhuma pessoal porque eacute abstrato e por isso impessoal Fomos esboccediladamente eacutepicos Seremos inviolavelmente dramaacuteticos Fomos liacutericos quando natildeo fomos nadardquo18

Anos mais tarde provavelmente em 1932 Pessoa volta ao tema agora explicitando a fonte aristoteacutelica da distinccedilatildeo com a qual trabalha para ir aleacutem dela e chamar a atenccedilatildeo para o que aqui lhe surge como sendo o mais importante a destacar a saber a passagem de uma poesia liacuterica para uma poesia dra-maacutetica

ldquoDividiu Aristoacuteteles a poesia em liacuterica elegiacuteaca eacutepica e dramaacutetica Como todas as classificaccedilotildees bem pensadas eacute esta uacutetil e clara como todas as classificaccedilotildees eacute falsa Os gecirc-neros natildeo se separam com tanta facilidade iacutentima e se ana-lisarmos bem aquilo de que se compotildeem verificaremos que da poesia liacuterica agrave dramaacutetica haacute uma gradaccedilatildeo contiacutenuardquo19

Para Pessoa natildeo se trata mais de determinar com pre-cisatildeo cada um dos gecircneros literaacuterios elencados mas antes en-tender sua correspondecircncia ou continuidade Ateacute mesmo a in-dividualidade ou as caracteriacutesticas dos gecircneros parecem aqui demandar a ideia de uma multiplicidade a eles vinculada os gecircneros satildeo pensados em relaccedilatildeo aos outros gecircneros O poeta passa entatildeo a mostrar que a gradaccedilatildeo que iria da liacuterica ao dra-ma eacute feita por uma ldquoescala de despersonalizaccedilatildeordquo20 pela qual o poeta se tornaria cada vez mais um outro cada vez menos ele mesmo se por ele aqui entendermos o cantor de suas proacuteprias emoccedilotildees Assim o drama caracterizar-se-ia pela despersonali-zaccedilatildeo daquele que cria pela possibilidade de dar origem a ou-

18 Teoria da heteroniacutemia texto 61 ldquoEntrevista agrave Revista Portuguesardquo 13 de outubro de 1923 p22119 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p268 provavelmente de 193220 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 1932

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

203

tros personagens de inventar para si mesmo outros autores e sentir intensamente o que eles sentiriam O poeta dramaacutetico jaacute natildeo pode entatildeo sentir como noacutes comumente fazemos pois o sentimento que revela em sua obra eacute o do outro eacute o do persona-gem portanto um sentimento fruto da ficccedilatildeo Por esse motivo embora na forma um poema possa se parecer com aquela em que comumente se apresenta a liacuterica ele passa a ser dramaacutetico quando atinge essa niacutevel de despersonalizaccedilatildeo Se explica-nos Pessoa Shakespeare retirasse Hamlet da forma como aparece no ceacutelebre poema dramaacutetico que leva o seu nome e fizesse com esse mesmo personagem uma espeacutecie de monoacutelogo ele natildeo perderia sua carga dramaacutetica seria apenas um ldquodrama de uma soacute personagemrdquo21 A ideia de drama aqui natildeo se restringe entatildeo agrave estrutura feita por diaacutelogos e falas como estamos acostuma-dos a ver nos textos que se prestam agrave encenaccedilatildeo teatral Para Pessoa a noccedilatildeo de poesia dramaacutetica alarga-se e eacute antes de-terminada pelo distanciamento do poeta frente ao personagem ou ao discurso que apresenta O poeta aqui daacute a palavra ao personagem e nesse sentido todo personagem eacute ele mesmo o autor de sua fala possuidor de sua proacutepria assinatura Seria exatamente esse procedimento que estaria operando na com-posiccedilatildeo dos heterocircnimos como nos explica Pessoa a propoacutesito daquele que talvez seja o mais conhecido dos autores por ele inventados Caeiro

ldquoAlberto Caeiro poreacutem como eu o concebi eacute assim assim tem pois ele que escrever quer eu queira ou natildeo quer eu pense como ele ou natildeordquo22

No prefaacutecio de Teoria da heteroniacutemia os organizado-res do volume ainda nos lembram que poderiacuteamos reconhecer elementos desta dramaticidade aqui defendida por Pessoa em autores como Keats Browning Wordsworth e Novalis ldquoTudo o que se passa numa mente humana de algum modo anaacutelogo se passou jaacute em toda mente humanardquo23 reconhece o proacuteprio autor E no entanto jaacute eacute impossiacutevel natildeo admitir a dimensatildeo e o modo original com que a obra do poeta portuguecircs trata o tema rela-cionando-o com uma de suas caracteriacutesticas mais peculiares e marcantes a dinacircmica da produccedilatildeo heteroniacutemica Desta origi-nalidade os textos que compotildeem Teoria da heteroniacutemia datildeo--nos muitas provas

21 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 193222 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p270 provavelmente de 193223 Teoria da heteroniacutemia texto 65 p225 provavelmente de 1925

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

204

Resenha do livro STAROBINSKI Jean A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2014

A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire

Com uma produccedilatildeo criacutetica heterogecircnea que inclui a anaacute-lise da obra de filoacutesofos como Rousseau e Montesquieu Jean Starobinski eacute um dos mais respeitaacuteveis criacuteticos literaacuterios da atu-alidade Em A melancolia diante do espelho esse meacutedico de formaccedilatildeo analisa os desdobramentos do tema da melancolia nos poemas de Baudelaire

No primeiro capiacutetulo o leitor eacute informado de que embo-ra consciente da claacutessica interpretaccedilatildeo meacutedica que associa a melancolia ldquoa ofuscaccedilatildeo do ceacuterebro pelardquo bile negra Baudelaire se apropria do tema de forma mais proacutexima agraves significaccedilotildees do seu tempo Aleacutem disso para evitar o uso excessivo do termo o poeta de ldquoAs flores do malrdquo agraves vezes recorre agrave expressatildeo sple-en Para tanto o spleen vai assumir nos estudos de Walter Ben-jamin sobre o poeta da modernidade uma configuraccedilatildeo impor-tante junto com o conceito de ideal ele sintetizaria o cerne da vivecircncia moderna caracterizada pela impossibilidade de trans-missatildeo dos valores ligados agrave tradiccedilatildeo Segundo Starobinski a interpretaccedilatildeo benjaminiana que entrevecirc na melancolia um sin-toma da natildeo assimilaccedilatildeo da experiecircncia eacute uma perspectiva de leitura interessante

Em ldquoIronia e reflexatildeordquo segundo capiacutetulo nota-se que a representaccedilatildeo da melancolia por meio da imagem refletida no espelho mote principal dos estudos de Starobinski comeccedila a ser engendrada em ldquoO Espelhordquo A conexatildeo entre a melanco-lia e o espelho estabelecida nesse poema em prosa publica-do pela primeira vez em 1864 eacute fruto do descontentamento de Baudelaire com o Golpe poliacutetico de Napoleatildeo II que suplantou o governo revolucionaacuterio de 1848 Eacute possiacutevel observar em ldquoO Es-pelhordquo o lamento pela natildeo efetivaccedilatildeo dos ideais emancipatoacuterios da Revoluccedilatildeo de 1848

Um homme eacutepouvantable entre et se regarde dans la glacelaquoPourquoi vous regardez- vous au miroir puis que vous ne pouvez vous y voir qursquoavec deacuteplaisirraquoLrsquohomme eacutepouvantable me reacutepond laquomdashMonsieur drsquoapregraves les immortelsprincipes de 89 tous les hommes sont eacutegaux en droits donc je possegravede le droit deme mirer avec plaisir ou deacuteplaisir cela ne regarde que ma

Franceila de SouzaRodrigues

Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

205

conscienceraquoAu nom du bom sens jrsquoavais sans doute raison mais au point de vue de la loiil nrsquoavait past ort1

Outra forma de representaccedilatildeo da melancolia espelha-da pode ser observada em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo Segundo Starobinski esse poema em prosa faria parte de um epiacutelogo inconcluso para ldquoAs Flores do malrdquo A imagem do melancoacutelico diante do espelho exibida em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo evidencia uma interioridade ferida Em uma anaacutelise atenta do poema eacute possiacutevel notar a presenccedila da dualidade sadomasoquista Ela seria intriacutenseca agrave melancolia Diante dessa questatildeo Starobinski observa que a interpretaccedilatildeo corrente que associa o masoquis-mo ao gozo conquistado por meio da inflicccedilatildeo de dor estaacute dis-tante da compreensatildeo freudiana para quem o masoquismo tem uma precedecircncia saacutedica Ou seja de acordo com Freud a dor dirigida a si mesmo na verdade eacute fruto de um tormento dirigido a outrem e que recalcado retorna para o ldquoeurdquo como num espelho

Je suis la plaie et le couteauJe sui la soufflet et la joueJe suis les membres et la roueEt la victime et le bourreau2

No terceiro capiacutetulo dedicado agraves figuras inclinadas Sta-robinski analisa o poema ldquoLe Cygnerdquo exemplo mais bem acaba-do de poesia sentimental Nesse momento do texto percebe-se que apoacutes estudar a longa tradiccedilatildeo iconoloacutegica e literaacuteria sobre a melancolia o autor conclui que a exaltaccedilatildeo e o abatimento satildeo duas caracteriacutesticas inerentes ao comportamento do melancoacute-lico A figura inclinada apoiando a cabeccedila numa das matildeos eacute a representaccedilatildeo mais frequente dessa dualidade que pode dar ensejo tanto a tristeza esteacuteril quanto a plenitude do saber

A divisatildeo de ldquoLe Cygnerdquo entre duas figuras icocircnicas o Androcircmaca e o cisne produz um efeito de espelhamento que reforccedila o peso inerente agrave figura inclinada Enquanto o cisne se caracteriza pela loucura e pela posse mon grand cygne o An-drocircmaca remete ao olhar pesaroso em busca do incorpoacutereo e do efecircmero ou ainda a proacutepria imagem refletida no espelho

No entanto uma anaacutelise atenta dos poemas com me-lancolias espelhadas revela o desejo de Baudelaire curar-se do estupor melancoacutelico Na anaacutelise de Starobinski o conceito de ironia desenvolvido pelos romacircnticos eacute fundamental para esse ponto de virada que possibilita a Baudelaire substituir os traccedilos passivos e derrotados do melancoacutelico pela agressividade Sen-1 BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 892 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p108 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

206

do assim a consciecircncia reflexiva possibilita ao melancoacutelico que se encontra dissonante da muacutesica do mundo refletir sobre a perda da totalidade levando-o a um estado de humor capaz de transformar o masoquismo em potecircncia afirmativa condutora do autoconhecimento socraacutetico

Por outro lado como ressalta Starobinski a ironia natildeo oferece uma possibilidade de emancipaccedilatildeo da melancolia Pelo contraacuterio ela eacute consequecircncia dessa desordem O homem me-lancoacutelico estaria condenado ao riso eterno Fenocircmeno que pode ser notado neste excerto de ldquoLe Cygnerdquo

Paris change mais rien dans ma meacutelancolieNrsquoa bougeacutepalais neufs eacutechafaudages blocsVieux faubougs tout pour moi devient alleacutegorieEt mecircs chers souvenirs sont plus lourds que des rocs3

Em ldquoEspelhos derradeirosrdquo uacuteltimo capiacutetulo a figura me-lancoacutelica pesarosa daacute lugar agrave imagem da velha senhora que diante do espelho percebe a passagem do tempo sem perder a altivez Eacute como se estiveacutessemos diante de uma imagem refleti-da no espelho livre da imagem do peso inerente a um ldquoeurdquo que soacute pode brilhar no vazio e na natildeo existecircncia A partir da expres-satildeo da velha senhora diante do espelho eacute possiacutevel refletir sobre a vida que mesmo contraditoacuteria eacute o uacutenico lugar de realizaccedilatildeo das potencialidades humanas Eacute na contradiccedilatildeo inerente agrave rea-lidade que a vida se desdobra Eacute nela que nos realizamos como sujeito e que podemos ser felizes Talvez seja essa a principal liccedilatildeo de Baudelaire

BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 89

_______ Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles__les_fleurs_du_malpdf

STAROBINSKI J A melancolia diante do espelho Trad Samuel Titan Jr Satildeo Paulo Editora 34 2014

3 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

207

Traduccedilatildeo

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y Comentaacuterio

La idea de agregar comentarios a algunos de los poemas de esta antologiacutea se debe al propio Rilke quien le pidioacute a su editor que intercalara paacuteginas en blanco en un ejemplar de las Elegiacuteas de Duino y de los Sonetos a Orfeo para escribir en ellas sus explicaciones de los textos maacutes difiacuteciles1 Unas pocas aclara-ciones se encuentran al final de los Sonetos Los comentarios que aquiacute ofrecemos no pretenden sustituir a los que habriacutea po-dido redactar el propio autor Pero obedecen a una indicacioacuten del poeta y con eso adquieren en alguna medida legitimidad En ellos procuramos justificar tambieacuten nuestra traduccioacuten de al-gunos pasajes La seleccioacuten de los poemas aquiacute presentados se debe al azar Son meros ejercicios de traduccioacuten no esta-ban pensados para ser publicados y seguramente deberaacuten ser corregidos muchas veces Esperamos no haber dantildeado dema-siado los poemas al traducirlos Hemos tomado los textos de varias ediciones Rainer Maria Rilke Gedichte Herausgegeben von Silvia Schlenstedt Leipzig Philipp Reclam jun 1979 Rilke Werke (seleccioacuten) Tres tomos Frankfurt Insel 1991 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Gedichte aus den Jahren 1906 bis 1926 Insel Verlag 3ra ed 1978 En cada poema indicamos de manera abreviada el lugar donde puede encontraacuterselo

Archaiumlscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhoumlrtes Hauptdarin die Augenaumlpfel reiften Abersein Torso gluumlht noch wie en Kandelaberin dem sein Schauen nur zuruumlckgeschraubt

sich haumllt und glaumlnzt Sonst koumlnnte nicht der Bugder Brust dich blenden und im leisen Drehender Lenden koumlnnte nicht ein Laumlcheln gehenzu jener Mitte die die Zeugung trug

Sonst stuumlnde dieser Stein entstellt und kurzunter der Schultern durchsichtigem Sturzund flimmerte nicht so wie Raubtierfelle

1 Seguacuten J-F Angelloz ldquoIntroductionrdquo en Rilke Duineser Elegien Die Sonette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943 p 32

Mario Caimi

Professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Uni-versidade de Buenos Aires Doutor em Filosofia pela Uni-versidade de Mainz Alema-nha

mcaimi3yahoocom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

208

und braumlche nicht aus allen seinen Raumlndernaus wie ein Stern denn da ist keine Stelledie dich nicht sieht Du musst dein Leben aumlndern2

No conocimos su cabeza inimaginableen la que estaban los ojos Pero su torso arde todaviacutea como un candelabroen el que su mirada soacutelo retirada hacia adentro

se conserva y brilla Si no fuera asiacute la proadel pecho no podriacutea deslumbrarte ni podriacutea por la suave torsioacuten de la cintura llegar una sonrisahasta aquel punto medio capaz de engendrar

Si no fuera asiacute esta piedra estariacutea mutilada y seriacutea brevebajo el dintel diaacutefano de los hombrosy no brillariacutea como la piel de un animal de presa

ni escapariacutea de todos sus liacutemites la lumbrecomo una estrella pues no hay alliacute ninguacuten lugarque no te vea Debes cambiar tu vida

Muchas de las palabras que aparecen en el texto estaacuten usa-das con sentidos poco frecuentes o con sentidos que soacutelo son posibles en los maacutergenes del campo semaacutentico de cada una de ellas (esto como justificacioacuten de la traduccioacuten un poco arbitraria que sigue) El original estaacute formado por endecasiacutelabos rimados Creo que el tema general del poema es la mirada del dios La mirada que perdida la cabeza se ha refugiado en el torso Al recogerse la mirada dentro del torso todo eacutel queda incandes-cente todo eacutel se transforma en mirada (ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo)

Probablemente sea significativo tambieacuten que se trate de un torso arcaico Eso lo coloca maacutes cerca del origen y por eso maacutes cerca del dios mismo Como si fuera una copia del natural y no una copia de copia Esto le da un caraacutecter divino a todo el objeto Eso parece estar presente tambieacuten en la frase ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo

La mirada del dios tiene la propiedad de conocer cada cosa tal como es en siacute misma Por eso quien recibe esa mirada (quien la percibe cuando ella se transluce desde el interior del torso) siente que toda su vida con todos sus secretos ha quedado expuesta y con ello han quedado expuestas todas sus debi-lidades De ahiacute probablemente la frase final ldquoDebes cambiar tu vidardquo El cambio a que aquiacute se hace referencia no es segu-ramente un cambio banal cualquiera sino que debe de ser el cambio que resulta de poner toda la vida ante la mirada de un dios

2 Rainer Maria Rilke Gedichte p 95 Der neuen Gedichte anderer Teil en Rilke Werke Frankfurt 1991 tomo 1 p 313

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

209

Abschied

Wie hab ich das gefuumlhlt was Abschied heisst Wie weiss ichs noch ein dunkles unverwundnesgrausames Etwas das ein Schoumlnverbundnesnoch einmal zeigt und hinhaumllt und zerreisst

Wie war ich ohne Wehr dem zuzuschauendas da es mich mich rufend gehen liesszuruumlckblieb so als waumlrens alle Frauenund dennoch klein und weiss und nichts als dies

Ein Winken schon nicht mehr auf mich bezogenein leise Weiterwinkendes mdash schon kaumerklaumlrbar mehr vielleicht ein Pflaumenbaumvon dem ein Kuckuck hastig abgeflogen3

Cuaacutento sentiacute lo que es la despedidaQueacute bien lo seacute algo oscuro algo invulnerabley cruel que muestra otra vez lo amadoy lo ofrece otra vez y lo desgarra

Queacute inerme estaba yo mientras veiacuteaaquello que llamaacutendome me dejaba iry se quedaba Como si aquello fuera todas las mujeresY sin embargo era algo pequentildeo y blanco [y no era nada maacutes que esto

El agitarse de un pantildeuelo que ya no se referiacutea a miacuteUn suave agitarse del pantildeuelo que seguiacutea ya apenasreconocible quizaacute un ciruelodel que habiacutea salido volando de suacutebito un cuclillo

No fue posible traducir todas las palabras Se trata supon-go de formaciones expresivas que no tienen equivalente en espantildeol En especial ldquolo amadordquo del verso 3 es traduccioacuten apro-ximada de ldquoein Schoumlnverbundnesrdquo ldquolo bellamente aliadordquo ldquolo aliado en la bellezardquo El Adioacutes (la despedida) se muestra cosi-ficado aquiacute como algo (escrito con mayuacutescula en el original ldquoAlgordquo para subrayarlo) capaz de ser sujeto de acciones como mostrar ofrecer desgarrar El Adioacutes se presenta primero en el primer cuarteto de una manera general casi como si se pre-sentara una definicioacuten de eacutel De ahiacute el tiempo presente de los verbos con los que se lo describe

En el segundo cuarteto los verbos estaacuten en tiempo verbal pre-teacuterito y sirven para relatar una experiencia concreta (que fue de donde se extrajo probablemente el conocimiento que permitioacute

3 Neue Gedichte (1907) En Rilke Werke Frankfurt Insel 1991 p 273

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

210

la definicioacuten general de la estrofa primera) En los dos uacuteltimos versos el pantildeuelo que se agita en el adioacutes es ya indistinguibleYa no se sabe si es un pantildeuelo o si son flores de un aacuterbol movidas por el suacutebito vuelo de un paacutejaro Asiacute es como la memoria evoca algunas imaacutegenes que de tan remotas se han vuelto confusas El pantildeuelo y su adioacutes comienzan a perderse en el pasado

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Siehe wie klein dortsiehe die letzte Ortschaft der Worte und houmlheraber wie klein auch noch ein letztesGehoumlft von Gefuumlhl Erkennst dursquosAusgesetzt auf den Bergen des Herzens Steingrundunter den Haumlnden Hier bluumlht wohleiniges auf aus stummem Absturzbluumlht ein unwissendes Kraut singend hervorAber der Wissende Ach der zu wissen begannund schweigt nun ausgesetzt auf den Bergen des HerzensDa geht wohl heilen Bewusstseinsmanches umher manches gesicherte Bergtierwechselt und weilt Und der grosse geborgene Vogelkreist um der Gipfel reine Verweigerung mdash Aberungeborgen hier auf den Bergen des Herzens4

Expuesto sobre los montes del corazoacuten Mira queacute pequentildeo [allaacute

mira el uacuteltimo caseriacuteo de las palabras y maacutes arriba- pero queacute pequentildea tambieacuten - una uacuteltimagranja del sentimiento iquestAlcanzas a verlaExpuesto sobre los montes del corazoacuten Suelo de piedrabajo las manos Aquiacute tambieacuten brotaraacute seguramentealgo del abismo mudobrota cantando una hierba inocenteiquestPero el que sabe Ay el que comenzoacute a sabery ahora calla expuesto sobre los montes del corazoacutenPor ahiacute andaraacute quizaacute con la conciencia intactamaacutes de una cosa maacutes de un animal de la montantildea que estaacute seguro cambia y permanece Y el gran paacutejaro amparadoda vueltas en torno de la pura negacioacuten de las cumbres -

[Perodesamparado aquiacute sobre los montes del corazoacuten

Este poema parece un comentario y una prolongacioacuten de un texto de Goethe ldquoUumlber den Granitrdquo (ldquoSobre o Granitordquo)5 Alliacute Go-ethe ldquosentado en una alta y desnuda cumbrerdquo indica que el 4 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 895 Goethe J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

211

granito es el fundamento primero de la materia terrestre algo que no deriva de otra cosa ni del fuego ni del agua como las demaacutes rocas sino que sirve de principio del que las otras rocas derivan El granito es ldquoel fundamento de nuestra tierra sobre el cual se han formado todas las demaacutes montantildeasrdquo (ldquodie Grund-feste unserer Erde [] worauf sich alle uumlbrigen mannigfaltigen Gebirge hinaufgebildetrdquo) Forma dice Goethe ldquola entrantildea mis-ma de la tierrardquo (ldquoIn den innersten Eingeweiden der Erde ruht sie unerschuumlttertrdquo)

Los primeros cuatro versos son claros se dejan atraacutes las ca-sas de las palabras y uno queda como desnudo expuesto en lo que ya es puro corazoacuten sin palabras maacutes allaacute incluso de los sentimientos (quizaacute porque eacutestos todaviacutea pueden nombrarse) Este puro corazoacuten no es puro sentimentalismo sino algo que estaacute maacutes alto que los sentimientos Es algo que estaacute fundado en la roca viva (como lo dicen los versos quinto y sexto ldquoSuelo de piedra bajo las manosrdquo) Aquiacute se llega a lo que es fundamento uacuteltimo de todo lo demaacutes Es algo maacutes alto que las palabras e incluso maacutes alto que sentimiento Palabras y sentimiento des-cansan sin saberlo en esta roca viva

(Cf Goethe ldquoHier ruhst du unmittelbar auf einem Grunde der bis zu den tiefsten Orten der Erde hinreicht keine neuere Schicht keine aufgehaumlufte zusammengeschwemmte Truumlmmer haben sich zwischen dich und den festen Boden der Urwelt ge-legtrdquo Trad ldquoAquiacute descansas inmediatamente sobre un funda-mento que llega hasta los maacutes profundos lugares de la tierra ninguacuten estrato nuevo ninguna acumulacioacuten de escombros traiacute-dos por el agua se interponen entre tiacute y el firme suelo del mundo originariordquo)

Goethe niega toda vida a esta cumbre diese Gipfel haben ni-chts Lebendiges erzeugt [] sie sind vor allem Leben und uumlber alles Leben (ldquoEstas cumbres no han engendrado nada viviente [] son previas a toda vida y estaacuten por encima de toda vidardquo) En esto Rilke disiente de eacutel Aun alliacute en la roca viva y en el abismo mudo primordial brota una vida misteriosa Algo primi-tivo de una inocencia elemental Y lo primitivo lleva en siacute ale-griacutea (o al menos canto) ldquodel abismo mudo brota cantando una hierba inocenterdquo Para tener esa alegriacutea primitiva hay que ser inocente en el doble sentido de libre de pecado y de insciente o inconsciente La hierba estaacute afincada confiadamente en el abis-mo porque no es consciente de la profundidad de eacuteste ni del peligro A ella se contrapone ldquoel que saberdquo (que es lo contrario del inocente)

iquestQuieacuten o queacute es ldquoel que saberdquo Es el que tiene conciencia el que puede contemplar y ver con conciencia el poeta mismo Tal vez esteacute representado por el ldquogran paacutejarordquo mencionado a continuacioacuten Este puede sobrevolarlo todo y seguir estando se-guro Pero eacutel mismo se vuelve inseguro o desamparado cuan-hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981 paacuteg 254 y siguientes

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

212

do alcanza esa altura maacutexima la de los montes del corazoacuten Alliacute queda eacutel tambieacuten expuesto Creo que tambieacuten nos ayuda aquiacute el texto de Goethe So einsam sage ich zu mir selber [] wird es dem Menschen zumute der nur den aumlltsten ersten tiefsten Gefuumlhlen der Wahrheit seine Seele eroumlffnen will [] Ich fuumlhle die ersten festesten Anfaumlnge unsers Daseins ich uumlberschaue die Welt ihre schrofferen und gelinderen Taumller und ihre fernen fruchtbaren Weiden meine Seele wird uumlber sich selbst und uumlber alles erhaben und sehnt sich nach dem naumlhern Himmel (ldquoAsiacute de solitario me digo a miacute mismo [] se siente el ser humano que quiere abrir su alma soacutelo a los maacutes antiguos primeros maacutes pro-fundos sentimientos de la verdad [] Siento los primeros y maacutes firmes fundamentos de nuestra existencia contemplo el mundo sus valles empinados o suaves y sus lejanas praderas feacutertiles mi alma se eleva sobre siacute misma y sobre todas las cosas y anhela el cielo cercanordquo)

Lo extraordinario lo verdaderamente novedoso es la trans-mutacioacuten que opera Rilke del fundamento graniacutetico en un mon-te de corazoacuten Ya el mismo Goethe pone en relacioacuten esta piedra duriacutesima e inmutable con el corazoacuten humano vulnerable y ver-saacutetil Precisamente esa oposicioacuten parece vincularlos ldquoIch fuumlrch-te den Vorwurf nicht daszlig es ein Geist des Widerspruches sein muumlsse der mich von Betrachtung und Schilderung des mens-chlichen Herzens des juumlngsten mannigfaltigsten beweglichs-ten veraumlnderlichsten erschuumltterlichsten Teiles der Schoumlpfung zu der Beobachtung des aumlltesten festesten tiefsten unerschuumlt-terlichsten Sohnes der Natur gefuumlhrt hat Denn man wird mir gerne zugeben daszlig alle natuumlrlichen Dinge in einem genauen Zusammenhange stehenrdquo (ldquoNo temo a la objecioacuten de que sea un espiacuteritu de contradiccioacuten el que me lleva de la consideracioacuten y descripcioacuten del corazoacuten humano la parte maacutes nueva maacutes muacutelti-ple maacutes moacutevil maacutes mudable y maacutes conmovible de la Creacioacuten a la observacioacuten de la criatura maacutes antigua maacutes soacutelida maacutes profunda y maacutes inconmovible de la naturaleza Pues se me con-cederaacute faacutecilmente que todas las cosas de la naturaleza estaacuten en una correspondencia exactardquo)

Pero Rilke no establece soacutelo una relacioacuten por contraste sino que opera una transmutacioacuten Si uno fuera capaz de entender el mecanismo de esa operacioacuten entenderiacutea lo que es la poesiacutea y lo que es el don poeacutetico Alliacute donde Goethe veiacutea con razoacuten una correspondencia de los opuestos da Rilke un paso maacutes y muestra que lo que verdaderamente constituye el fundamento uacuteltimo lo que estaacute maacutes allaacute de las palabras y de los sentimien-tos lo que es el principio del que todo deriva y que no deriva a su vez de otra cosa es el corazoacuten La montantildea de granito se ha convertido en el monte del corazoacuten y las relaciones del sujeto expuesto con el suelo primigenio que lo sostiene se mantienen las mismas tanto en el caso de estar sobre una montantildea en la que aflora el fundamento graniacutetico como en el caso de estar expuesto sobre un monte en el que aflora la fuente misma de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

213

la vida y de la sensibilidad Ahora se ve queacute es lo que haciacutea que aquel fundamento de granito fuera un fundamento (y no un simple suelo) era su analogiacutea con el verdadero fundamento la fuente de la vida que es el corazoacuten Habriacutea que trabajar maacutes en la interpretacioacuten para ver queacute es exactamente ese corazoacuten Uno piensa naturalmente en Pascal y sus razones del corazoacuten Y la evocacioacuten de Pascal no es desencaminada tambieacuten en eacutel se oponen el granito cognoscible con el esprit de geometrie y el corazoacuten cuyos principios son accesibles soacutelo con el esprit de finesse

Wir sind nur Mund

Wir sind nur Mund Wer singt das ferne Herzdas heil inmitten aller Dinge weiltSein grosser Schlag ist in uns eingeteiltin kleine Schlaumlge Und sein grosser Schmerzist wie sein grosser Jubel uns zu grossSo reissen wir uns immer wieder losund sind nur Mund Aber auf einmal bricht der grosse Herzschlag heimlich in uns einso dass wir schreinmdash und sind dann Wesen Wandlung und Gesicht6

Somos soacutelo boca iquestQuieacuten canta al corazoacuten lejanoque permanece intacto en medio de todas las cosasSu gran latido estaacute repartido entre nosotrosen latidos pequentildeos Y su gran dolory su gran juacutebilo son demasiado grandes para nosotrosPor eso nos soltamos [de eacutel] una y otra vezy somos soacutelo boca Pero a veces en secreto irrumpe en nosotros el gran latidoy entonces gritamosy entonces somos esencia mutacioacuten y rostro

Parece un eco o una reminiscencia de Spinoza en el centro de todas las cosas intocado por ellas y daacutendoles vida a todas estaacute el gran corazoacuten (lo que Spinoza llamariacutea la esencia actuosa de la substancia el Ser que es activo que ejerce su potencia infinita daacutendoles ser a infinitas cosas) La esencia en la que todo es estaacute repartida se expresa en el pequentildeo y limitado esfuerzo con el que cada cosa singular trata de perseverar en el ser Nosotros en nuestra pequentildeez (es decir cuando esta-mos separados de esa Esencia cuando nos hemos soltado o arrancado de ella y nos quedamos en nuestra singularidad) la expresamos la decimos somos soacutelo bocas que la nombran

Pero a veces percibimos que aunque seamos cosas sin-6 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens 1978 p 136

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

214

gulares y limitadas somos parte de aquel Ser uacutenico y divino Y entonces somos verdaderamente lo que somos modos y afec-ciones de la Substancia uacutenica Pero entonces gritamos porque lo inmenso se apodera de nosotros y nos volcamos hacia ello

Ach nicht getrennt sein

Ach nicht getrennt seinnicht durch so wenig Wandungausgeschlossen vom Sternen-MassInnres was istsWenn nicht gesteigerter Himmeldurchworfen mit Voumlgeln und tiefvon Winden der Heimkehr7

Oh no estar separadono estar excluiacutedo por una pared tan delgadade la medida de las estrellasLo interior iquestqueacute esSi no es el cielo ahondadosurcado de paacutejaros y profundode los vientos del retorno a casa

La pared delgada viene a ser probablemente la piel las pa-redes de la caja toraacutecica lo que separa el interior humano del espacio inmenso de las estrellas Y sin embargo esa pared in-significante es lo que hace posible que haya un interior iquestQueacute es el interior iquestQueacute es lo que queda separado lo que existe con-trapuesto al mundo externo contrapuesto al mundo inmenso de las estrellas Es algo significativo justo por esa contraposicioacuten como si fuese algo capaz de igualar al universo estelar o de ser-virle de contrapeso Despueacutes leiacute en el Brockhaus que Rilke ha-biacutea empleado en otras partes el concepto de Weltinnenraum que Eduardo Garciacutea Belsunce tradujo bien por ldquoespacio coacutesmi-co interiorrdquo Aquiacute en este poema eso parece ser un espacio que se opone al infinito espacio coacutesmico pero que se le opone como un igual Lo interior es tambieacuten cielo pero cielo maacutes hondo cielo ahondado Y no es cielo soacutelo astronoacutemico no es espacio soacutelo geomeacutetrico sino viviente surcado de paacutejaros

En este espacio interior hay sobre todo algo que no estaacute en el espacio de las estrellas la casa el retorno a casa No hay casa en el espacio de las estrellas Todo es igual en ese espa-cio un lugar es igual a otro cualquiera En cambio en el espacio humano en ese espacio interior hay un centro o por lo menos hay un lugar que es diferente de todos los otros la casa Es la casa de cada cual y por tanto es diferente para cada uno Sin embargo por diferentes que sean las diversas casas en todos los humanos estaacute ese lugar privilegiado esa especie de centro de la intimidad Eso es lo que le da al espacio interior cierta 7 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 172

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

215

superioridad cualitativa ante el espacio infinito externo (ante el espantoso ldquosilencio eterno del espacio infinitordquo de Pascal)

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist alles

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist allesGeschicklichkeit und laumlsslicher Gewinn mdasherst wenn du ploumltzlich Faumlnger wirst des Ballesden eine ewige Mit-Spielerindir zuwarf deiner Mitte in genaugekonntem Schwung in einem jener Boumlgenaus Gottes grossem Bruumlcken-Bauerst dann ist Fangen-Koumlnnen ein Vermoumlgen mdashnicht deines einer Welt Und wenn du garzuruumlckzuwerfen Kraft und Mut besaumlssest nein wunderbarer Mut und Kraft vergaumlssestund schon geworfen haumlttest (wie das Jahrdie Voumlgel wirft die Wandervogelschwaumlrmedie eine aumlltre einer jungen Waumlrme hinuumlbershleudert uumlber Meere mdash) erstin diesem Wagnis spielst du guumlltig mit Erleichterst dir den Wurf nicht mehr erschwerstdir ihn nicht mehr Aus deinen Haumlnden trittdas Meteor und rast in seine Raumlume8

Mientras atrapes lo que tuacute mismo has arrojado todo eshabilidad y ganancia faacutecilSoacutelo cuando de repente eres el que atrapa una pelotaque te arrojoacute que lanzoacute al medio de tiuna jugadora eternacon impulso exactamente logrado en uno de aquellos girosde los de Dios cuando construye sus grandes puentessoacutelo entonces la habilidad de atrapar es una facultadmdashno tuya sino de un mundomdash Y si llegaras a poseerla fuerza y el coraje de devolver el tirono maacutes maravilloso auacuten si olvidaras el coraje y la fuerzay ya hubieras lanzado (como el antildeolanza los paacutejaros las bandadas de paacutejaros migrantesque un calor maacutes viejo le lanza a otro maacutes jovenpor encima de los mares) soacutelo cuando tienes ese arrojoparticipas en el juego de manera vaacutelidaYa no te haces faacutecil el tiro ya no te lo haces difiacutecilDe tus manos sale el meteoroy corre veloz por sus espacios

Creo que se trata de una reflexioacuten sobre la creacioacuten litera-ria Como si dijera ldquomientras intentes expresar lo que estaacute en ti mientras soacutelo trates de expresar las ideas que se te ocurren todo seraacute comparativamente faacutecilrdquo Esa poesiacutea que soacutelo expresa

8 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 124

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

216

a su autor estaacute al servicio de eacuteste Con respecto a ella dijo una vez un escritor colombiano Fernando Vallejo que ldquola poesiacutea es uno de los males de nuestro tiempordquo Todos tenemos algo que podriacutea ser expresado pero que difiacutecilmente les interese a los lectores porque ellos a su vez tienen tambieacuten cosas propias para expresar cosas que aunque no las expresen les intere-san maacutes Porque a cada cual le interesa en primer lugar y muy justificadamente lo suyo

Pero hay una obra que no es mera expresioacuten del autor (si en ella hay tal expresioacuten del autor es soacutelo como un momento secundario y accesorio) Esa poesiacutea es ante todo respuesta a una solicitacioacuten o a un desafiacuteo de origen divino (a un enviacuteo de la ldquojugadora eternardquo) El autor es entonces soacutelo un momento un segmento de un arco inmenso de los que traza Dios en su disentildeo del mundo Y eso es maacutes maravilloso auacuten si la respues-ta la devolucioacuten del tiro no es premeditada sino que obedece ella tambieacuten a la ciega necesidad de la esencia del autor como una respuesta inevitable e impensada La obra sale del autor (en ese caso ideal) como salen del otontildeo las bandadas de paacuteja-ros migratorios El autor entonces participa de un juego divino Participa de manera vaacutelida en el inmenso juego (que en realidad exige fuerzas muy superiores a las de un individuo singular) El poema (ese poema asiacute nacido) es entonces un cuerpo celeste que por derecho propio (como un elemento maacutes del disentildeo di-vino del mundo) ldquocorre veloz por los espaciosrdquo Lo mismo que se aplica aquiacute a la creacioacuten literaria podriacutea aplicarse al pensa-miento filosoacutefico

Jetzt waumlre es Zeit

Jetzt waumlr es Zeit dass Goumltter traumlten ausbewohnten Dingen Und dass sie jede Wand in meinem Haus umschluumlgen Neue Seite Nur der Windden solches Blatt im Wenden wuumlrfe reichte hindie Luft wie eine Scholle umzuschaufeln ein neues Atemfeld Oh Goumltter GoumltterIhr Oftgekommnen Schlaumlfer in den Dingendie heiter aufstehn die sich an den Brunnendie wir vermuten Hals und Antlitz waschenund die ihr Ausgeruhtsein leicht hinzutunzu dem was voll scheint unserm vollen LebenNoch einmal sei es euer Morgen Goumltter Wir wiederholen Ihr allein seid UrsprungDie Welt steht auf mit euch und Anfang glaumlnztan allen Bruchstelln unseres Misslingens9

Ya seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitan

9 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 173

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

217

Y de que derribaran cada pared de mi casa Nueva paacutegina Ya soacutelo el viento que esa paacutegina levantariacutea al volversealcanzariacutea para dar vuelta el airecomo el arado remueve la tierraun nuevo campo de respiracioacuten iexclOh dioses diosesVosotros visitantes frecuentes que duermen en las cosasque se levantan alegres que en fuentesque nosotros sospechamos se lavan el cuello y el rostroy que con ligereza antildeaden su descanso renovadoa aquello que pareciacutea completo a nuestra vida plenaQue otra vez sea vuestra mantildeana diosesNosotros repetimos Soacutelo vosotros sois origenEl mundo se levanta con vosotros y el comienzo relumbraen todas las roturas de nuestros fracasos

Creo que lo que figura como versos primero y segundo es en realidad un solo verso de medida mucho mayor que los demaacutes ldquoYa seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitanrdquo Ese primer verso del poema expresa con su oleada riacutetmica arrebatadora precisamente el viento gigante del que se habla en los versos siguientes Se anhela un viento de cambio que renueve todo Y esa inmensa renovacioacuten no seriacutea maacutes que una consecuencia del despertar de los dioses

Los dioses habitan en las cosas Hay en las cosas un nuacutecleo una dimensioacuten que no es de meras cosas inertes sino de algo divino Se ha dicho de muchas maneras la presencia de dioses en las cosas Ya sea que habiten verdaderamente en ellas como almas de las cosas (ldquoTodo estaacute lleno de diosesrdquo) ya sea que cada cosa sea la expresioacuten finita y limitada de la infinita potencia del ser de Dios ya sea que los dioses esteacuten presentes en cada cosa al crearla continuamente y conservarla en el ser (Spinoza Ethices pars secunda Propositio XLV Unaquaeque cuiuscum-que corporis vel rei singularis actu existentis idea Dei aeternam et infinitam essentiam necessario involvit)

Lo nuevo aquiacute el acontecimiento es el despertar de los dio-ses su salida de las cosas en las que habitan Con toda na-turalidad se produce ese despertar porque lo verdaderamente natural es la presencia de los dioses en las cosas Hay hasta detalles prosaicos los dioses se lavan ldquoel cuello y el rostrordquo No es una aparicioacuten solemne la de ellos sino que tiene ldquoligerezardquo Somos nosotros los que al medir todo por nuestro tiempo y por nuestra memoria encontramos extraordinaria esa presencia de los dioses y esa manifestacioacuten de ellos Para la verdadera ma-nera de ser de las cosas no hay nada maacutes natural que esa pre-sencia y el despertar estaacute dentro de lo normal para el tiempo de los dioses

Los dioses parecen ingenuos alegres y despreocupados No-sotros apenas sospechamos las fuentes en que ellos se lavan y se refrescan Cuando ellos aparecen descansados y alegres advertimos que faltaba algo al mundo nuestro que creiacuteamos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

218

completo Advertimos que no haciacuteamos maacutes que repetir una pauta o rutina que alguna vez nos fue dada como nueva Ahora con la renovacioacuten y el aire nuevo vuelve el origen lo origina-rio u original el inicio lo que es absolutamente nuevo Este es el verso central del poema ldquoNosotros repetimos soacutelo vosotros sois comienzordquo

Por maacutes naturalidad que expresen los dioses en su desper-tar por maacutes que ellos no se sorprendan de eacutel ni lo encuentren extraordinario no deja de ser un comienzo absoluto todo lo que ellos hacen Cada accioacuten de ellos es creacioacuten Ellos son origen En eso consisten su ingenuidad y su despreocupacioacuten Por eso tambieacuten nuestro ser gastado resulta renovado por su presencia De lo roto mana la luz de un nuevo comienzo

Bangnis

Im welken Walde ist ein Vogelrufder sinnlos scheint in diesem welken WaldeUnd dennoch ruht der runde Vogelrufin dieser Weile die ihn schufbreit wie ein Himmel auf dem welken WaldeGefuumlgig raumlumt sich alles in den SchreiDas ganze Land scheint lautlos drin zu liegender grosse Wind scheint sich hineinzuschmiegenund die Minute welche weiter willist bleich und still als ob sie Dinge wuumlsstean denen jeder sterben muumlssteaus ihm herausgestiegen10

Desasosiego

En el bosque mustio resuena el llamado de un paacutejaroun llamado que parece no tener sentido en este bosque marchitoY sin embargo el rotundo llamado del paacutejaroen este momento que lo hizo nacerdescansa amplio como un cielo sobre el bosque mustioDoacutecilmente se acomoda todo en el gritoTodo el campo parece yacer en eacutel en silencio el gran viento parece refugiarse en eacutely el minuto que quiere seguir su caminoestaacute paacutelido y silencioso como si supiera que de ese llamado bajan

[cosasque podriacutean llevar a cualquiera a la muerte

10 Rilke Das Buch der Bilder des ersten Buches zweiter Teil En Rilke Werke tomo 1 p 152

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

219

BIBLIOGRAFIA

ANGELLOZ J-F ldquoIntroductionrdquoIn Duineser Elegien Die So-nette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943

GOETHE J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden Hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981

RILKE Rainer Maria Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens In RILKE Rainer Maria Saumlmtliche Werke hg vom Rilke-Archiv in Verbindung mit Ruth Sieber-Rilke besorgt durch Ernst Zinn FrankfurtMain 1976

__________________ Das Buch der Bilder des ersten Bu-ches zweiter Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Gedichte Der neuen Gedichte ande-rer Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Neue Gedichte (1907)rdquo In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

220

Traduccedilatildeo

A Canccedilatildeo de outono de Paul Verlaine

Ineacutedito quando foi publicado em 1867 Canccedilatildeo de outono um dos poemas mais famosos1 de Paul Verlaine eacute o quinto da se-ccedilatildeo ldquoPaisagens tristesrdquo dos Poemas saturninos2 primeiro livro do autor O tiacutetulo da recolha eacute o que exprime com mais verdade concisatildeo e elegacircncia a proacutepria essecircncia do temperamento e da esteacutetica do poeta No plano iacutentimo Verlaine se julga marcado pelo selo original do infortuacutenio e da incapacidade de viver e atri-bui sua sina de eterno perdedor e de maldito agrave influecircncia do planeta Saturno considerado maleacutefico na tradiccedilatildeo esoteacuterica3 E eacute isso que a sua escritura no que ela tem de mais original tenta dizer pela recusa da eloquecircncia pela meacutetrica breve e sobretu-do pela busca constante de uma musicalidade do modo menor ldquoa muacutesica antes de tudordquo como ele diraacute na sua Arte poeacutetica4

A Canccedilatildeo de outono sugere a paisagem em vez de descre-vecirc-la esboccedila-a em vez de pintaacute-la Eacute um poema da sensaccedilatildeo do natildeo-dito do inexprimiacutevel das nuanccedilas em que o efecircmero convive com o indefinido em que os contornos se diluem na bruma das laacutegrimas e a paisagem real se apaga para dar lugar ao reflexo torturado de uma consciecircncia atormentada e indeci-sa Aqui o outono natildeo eacute a estaccedilatildeo do ano com as suas conota-ccedilotildees positivas as colheitas e o brilho das cores da natureza Eacute na verdade um fim melancoacutelico agonizante como uma morte No poema Verlaine tenta exorcizar pela muacutesica a inquietude da sua alma mas nele a tristeza eacute precisa saudade do passa-do inquietaccedilatildeo por sentir-se transportado por um ldquoar ruimrdquo sem renatamparreiracordeirogmailcom

1 Natildeo apenas pelo seu valor literaacuterio mas tambeacutem porque a Raacutedio Londres utilizou a primeira estrofe ligeiramente modificada em 5 de junho de 1944 agraves 21 horas e 15 minutos para avisar agrave rede de resistecircncia Ventri-loquista que o desembarque na Normandia iria ocorrer nas horas seguintes Parece que o exeacutercito alematildeo conseguiu decodificar a mensagem embora natildeo a tenha usado a seu favor As duas primeiras estrofes estatildeo gravadas no anverso da moeda de 2 euros comemorativa do aniversaacuterio de 70 anos do dito desembarque em 6 de junho de 19442 VERLAINE P Poegravemes saturniens suivi de Fecirctes galantes Paris LDP sd3 ldquoEacute ridiacuteculo o riso e assim decepcionanteAquela explicaccedilatildeo do misteacute-rio noturno Os que nasceram sob o signo de SATURNO Planeta fero fulvo e caro aos necromantes Segundo os manuais de bruxaria dacuteantes Tecircm um grande quinhatildeo de infortuacutenios e bilerdquo O primeiro dos Poemas saturninos (Traduccedilatildeo de Renata Cordeiro)4 VERLAINE P Jadis et naguegravere Paris LDP 2009

Renata Cordeiro

Tradutora profissional pre-miada pelo FNLIJ dos idio-mas francecircs inglecircs caste-lhano alematildeo e italiano para o portuguecircs Organizou e traduziu antologias de poe-mas franceses e de sonetos de Wiliam Shakespeare

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

221

poder reagir ldquoE eu vou-me assimrdquo natildeo significa ldquoeu partordquo mas ldquoeu me deixo irrdquo para onde o vento me leva deixo-me levar pela corrente pelo ldquoar ruimrdquo que me transporta A fatalidade eacute um tema caro a Verlaine porque Saturno o planeta mau natildeo lhe daacute treacutegua e o impede de ser feliz O ritmo do poema traduz esse sentimento complexo feito de anguacutestia e de abandono pelo jogo delicado de versos de quatro e de trecircs siacutelabas Esses metros curtos datildeo agrave rima que volta a intervalos regulares ressonacircncias particularmente sugestivas Neste caso o verso natildeo eacute soacute um conjunto de palavras providas de uma sintaxe e de um sentido mas tambeacutem o agrupamento de sons escolhidos para encantar o ouvido Verlaine revela possibilidades musicais do verso ateacute entatildeo ineacuteditas Privilegia as assonacircncias repeticcedilotildees de vogais as aliteraccedilotildees repeticcedilotildees de consoantes para repartir os ecos focircnicos dentro dos versos em relaccedilatildeo agraves rimas finais que se dividem estritamente em todas as estrofes em masculinas e femininas (AAbCCb) O ritmo 443 adotado por Verlaine eacute proacute-prio da canccedilatildeo e confere originalidade ao poema

Chanson dacuteautomne

Les sanglots longsDes violonsDe lacuteautomneBlessent mon coeurDacuteune langueurMonotone

Tout suffocantEt blecircme quandSonne lacuteheureJe me souviens Des jours anciensEt je pleure

Et je macuteen vaisAu vent mauvaisQui macuteemporteDeccedilagrave delagravePareil agrave laFeuille morte

Anaacutelise formal

O poema eacute composto de trecircs estrofes de seis versos cada qual Em cada uma os versos 1 2 4 e 5 tecircm quatro siacutelabas e os versos 3 e 6 trecircs siacutelabas meacutetricas As rimas obedecem ao

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

222

esquema AAbCCb sendo rimas masculinas (agudas) as maiuacutes-culas e femininas (graves) as minuacutesculas

O ritmo de cada estrofe eacute o seguinte

- - - (4)- - - (4)- - - (3)- - - (4)- - - (4)- - - (3)

No esquema acima as barras obliacutequas representam as siacute-labas fortes aqui cada trecircs versos formam um verso de onze siacutelabas meacutetricas integrado num ritmo maior

- - - - - - - - - (11)

- - - - - - - - - (11)

E o poema na leitura fica assim

Les sanglots longs de violons de lacuteautomneBlessent mon coeur dacuteune langueur monotoneTout suffocant et blecircme quand sonne lacuteheureJe me souviens des jours anciens et je pleureEt je macuteen vais au vent mauvais qui macuteemporteDecagrave delagrave pareil agrave la feuille morte

Para conseguir formar em cada estrofe dois versos hendecas-siacutelabos resultando ao todo em seis Verlaine obedece agrave alter-nacircncia de rimas masculinas e femininas praticada pela poesia francesa desde a Idade Meacutedia e que se consolidou a partir do seacuteculo XVI Nenhuma traduccedilatildeo nesse caso especiacutefico que natildeo observe essa alternacircncia conseguiraacute produzir na liacutengua recep-tora seis versos de onze siacutelabas com tocircnicas 4-8-11 sempre5 Aleacutem disso se eacute uma canccedilatildeo deduz-se que eacute para cantar6 Por-5 ldquo a fidelidade retoacuterico-formal natildeo vale por ser uma norma externa a ser aplicada mecanicamente ao texto de poesia Ela vale sim enquanto se prende a manifestaccedilotildees externas a manifestaccedilotildees textuais da significacircncia condicionando o leitor para uma leitura inclinada em determinada direccedilatildeo em determinado sentido Ela implica fatores socioculturais e linguiacutestico-estru-turais cujo conhecimento e exame ponderado deve determinar no sujeito-tra-dutor a escolha de uma reescritura mais proacutexima do moacutedulo original ou mais condizente com os usos poeacuteticos da linguagem receptorardquo LARANJEIRA M Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp 19936 Por seu caraacuteter predominantemente musical Reynaldo Hahn jaacute no seacuteculo XIX fez uma composiccedilatildeo a partir do poema para piano e voz HAHN R VERLAINE P Chansons grises Paris Au Meacutenestrel 1891-1892 E no

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

223

tanto o ritmo resultante aqui tambeacutem dessa alternacircncia7 que confere originalidade ao poema deveraacute ser mantido e caberaacute a quem traduz em que pesem as dificuldades produzir um texto homoacutelogo ao original que provoque um impacto emocional e esteacutetico no leitor da liacutengua de chegada semelhante ao causado pelo texto original no leitor da liacutengua de partida

Propotildeem-se algumas traduccedilotildees para mostrar que esse traba-lho embora difiacutecil eacute possiacutevel

Canccedilatildeo de outono

Ferem-me os aisDos outonaisViolinosO coraccedilatildeoCom a inaccedilatildeoDos seus trinos

E quando daacuteTal hora jaacuteRememoroSem cor sem arDias sem parE entatildeo choro

E eu vou-me assimNo ar que ruimMe transportaPra caacute pra laacuteTal e qual aFolha morta

Ferem-me os ais dos outonais violinosO coraccedilatildeo com a inaccedilatildeo dos seus trinos

seacuteculo XX na deacutecada de 1940 foi a vez de Charles Trenet fazer a sua can-ccedilatildeo em que substituiu o verbo na terceira pessoa do presente do indicativo blessentferem por bercentembalam Jaacute Georges Brassens quando reto-mou a canccedilatildeo de Trenet manteve o poema no original Essa tambeacutem foi a atitude de Leacuteo Ferreacute embora no DVD ao vivo ldquoLeacuteo Ferreacute canta os poetasrdquo ele diga bercent na primeira vez mas blessent quando retoma o final Haacute vaacuterias gravaccedilotildees no Youtube de vaacuterios inteacuterpretes tanto da composiccedilatildeo de Hahn quanto da canccedilatildeo de Trenet e de outras em geral baseadas na de Trenet7 Em nenhuma das vinte traduccedilotildees do poema encontradas na Inter-net essa alternacircncia de rimas eacute obedecida Seguem os links httpformasfixasblogspotcombr201507paul-verlaine-1844-1896html (Acesso 03122017)httpmiscelaneadoorejanablogspotcombr201310chanson-d-automne-paul-verlaine-1844html (Acesso 03122017)httpculturafmcmaiscombrradiometropolislavrapaul-verlaine-cancao-deoutono (Acesso 03122017)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

224

E quando daacute tal hora jaacute rememoroSem cor sem ar dias sem par e entatildeo choroE eu vou-me assim no ar que ruim me transportaPra caacute pra laacute tal e qual a folha morta

Canccedilatildeo de outono

Cravam punhaisCom longos aisQue datildeo sonoDentro de mimOs bandolinsDesse outono

E quando jaacuteSem cor e ar daacuteO momentoDias me vecircmIdos poreacutemE eu lamento

E eu vou ao leacuteuAo ar cruelQue me enxotaDe caacute de laacuteSemelhante agraveFolha rota

Cravam punhais com longos ais que datildeo sonoDentro de mim os bandolins desse outonoE quando jaacute sem cor e ar daacute o momentoDias me vecircm idos poreacutem e eu lamentoE eu vou ao leacuteu ao ar cruel que me enxotaDe caacute de laacute semelhante agrave folha rota

Canccedilatildeo de outono

Causam-me dorCom um langorMorrediccediloOs violotildeesE os seus bordotildeesOutoniccedilos

E quando semCor sem ar vecircmTantos tantosDias natildeo mais

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

225

Do tempo atraacutesCaio aos prantos

E eu sigo a errarAo malvado arQue me arrastaPra caacute pra laacuteSemelhante agraveFolha gasta

Causam-me dor com um langor morrediccediloOs violotildees e os seus bordotildees outoniccedilosE quando sem cor sem ar vecircm tantos tantosDias natildeo mais do tempo atraacutes caio aos prantosE eu sigo a errar ao malvado ar que me arrastaPra caacute pra laacute semelhante agrave folha gasta

Traduccedilotildees de Renata Cordeiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

ldquoRevoltardquo um poema antigo de Pound

ldquoRevolta contra o espiacuterito crepuscular na poesia modernardquo faz parte de Personae terceiro livro de poemas de Pound e o pri-meiro que publica em Londres em 19091 Mais tarde em 1926 Pound tambeacutem denomina Personae uma versatildeo ampliada do li-vro de 1909 com o subtiacutetulo ldquoPoemas Reunidos de Ezra rdquo2 Por que Personae para a obra de 1909 Um comentaacuterio autobio-graacutefico de Pound no Gaudier-Brzeska de 1916 pode dar uma pista ldquoNa lsquobusca por si mesmorsquo na busca pela lsquosincera expres-satildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade Diz--se lsquoSoursquo isto aquilo ou o outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisa Comecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradas Em segundo lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realida-de objetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo () Em terceiro lugar escrevi lsquoHeatherrsquo que representa um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquo () Essas duas uacutelti-mas espeacutecies de poemas satildeo impessoais ()rdquo3

Natildeo eacute possiacutevel aqui mera apresentaccedilatildeo de um poema e de sua traduccedilatildeo analisar o que seja a constituiccedilatildeo de ldquopessoasrdquo (personae) praacutetica de Pound ldquocuja importacircncia jamais pode ser superestimadardquo4 Basta afastar alguns juiacutezos mais imediatos que poderiam impedir de saiacuteda que o poema pudesse falar por si mesmo Em latim personae (persona no singular) possui diversos significados aparentados5 Persona pode ser a perso-1 De acordo com Thomas F Grieve ldquoEmbora se costume pensar que tenha sido o primeiro livro de poesia publicado por Pound Personae foi na verdade precedido por A Lume Spento que teve 150 coacutepias impressas em Veneza custeadas pelo proacuteprio Pound e depois por Uma quinzena por este Yule de 1908 No entanto Personae de 1909 pode ser considerado lsquode fatorsquo o primeiro livro de poemas de Pound teve uma impressatildeo significativa (1000 exemplares por uma editora respeitaacutevel) e atraiu interesse de criacuteticos de importantes jornais literaacuterios britacircnicosrdquo (GRIEVE F T 2005 p 216) Para a traduccedilatildeo do poema Revolta tomamos como base o poema tal como se encontra em POUND 1982 p 96 e p 97 Agradeccedilo a Rubens Joseacute da Ro-cha Renata Cordeiro e Luiz M Garcia pelas sugestotildees a uma versatildeo preacutevia desse texto2 Nadel observa que mais adequado seria o subtiacutetulo Obras selecio-nadas pois o Personae de 1926 inclui apenas alguns dos poemas anterior-mente publicados por Pound (NADEL BI 2007 p 44)3 POUND 1916 p 984 Cf NADEL BI 2007 p 445 Sigo aqui de modo natildeo exaustivo as indicaccedilotildees de Trendelenburg sobre a histoacuteria da palavra persona (Cf TRENDELENBURG 1908) Esse artigo eacute tambeacutem mencionado por Leonel Ribeiro dos Santos que analisa ex-tensamente o conceito de pessoa na filosofia moderna particularmente em

Paulo R Licht dos Santos

Professor de Filosofia ndash UFSCarCNPq

paulolicht2gmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

227

nagem de um drama Daiacute tambeacutem a possiacutevel referecircncia do livro de Pound a Dramatis Personae obra de Robert Browning de 18646 Tambeacutem pode ser o papel que algueacutem desempenha em diversas atividades ou ofiacutecios ou entatildeo o caraacuteter que algueacutem possui ou exibe Persona tambeacutem pode ter sentido juriacutedico No direito romano pode designar cada uma das funccedilotildees exercidas em um tribunal (o acusado o acusador e o juiz) ou ainda todos os que possuem direitos e podem reclamaacute-los em diversas cir-cunstacircncias (com exclusatildeo dos escravos e das coisas) Perso-na pode designar por fim os homens em geral Esses e outros significados natildeo mencionados aqui provecircm por uma seacuterie de transposiccedilotildees do significado originaacuterio de persona as maacutesca-ras usadas no teatro pelos antigos atores romanos

Eacute nesse sentido que Pound usa o termo personae ao dizer ter extraiacutedo ldquomaacutescaras inteiras do eu em cada poemardquo De fato ldquomaacutescaras do eurdquo atravessam Personae de ponta a ponta O ldquoeurdquo para dar alguns exemplos aparece agraves vezes enfaticamen-te jaacute nos versos iniciais como em ldquoPraise of Ysoltrdquo que abre o Personae de 1909 ldquoIn vain have I strivento teach my heart to bowrdquo ou como no proacuteprio ldquoRevoltardquo ldquoI would shake off the lethargy of this our timerdquo Agraves vezes aparece mais timidamente como em ldquoXeniardquo com o uso do possessivo ldquomeurdquo (my) ldquoAndunto thine eyes my heartsendeth old dreams of the spring-timerdquo O poema ldquoOcciditrdquo tambeacutem refere-se agrave primeira pessoa mas do plural com o possessivo ldquonossordquo (ldquoourrdquo) ldquoAs in our southern lands brave tapestriesrdquo Ou por fim o poema ldquoMarvoil inicia-se com a declaraccedilatildeo de Arnaut de Marvoil sobre si mesmo pela oacutetica dos que o circundam ldquoA poor clerk I lsquoArnaut the lessrsquo they call merdquo Em ldquoNotas aos novos poemasrdquo que encerram Perso-nae Pound esclarece que as personae de ldquoMarvoilrdquo satildeo entre outros o proacuteprio Arnaut de Marvoil trovador do seacuteculo XI Se aqui a primeira pessoa eacute a de um outro natildeo seria assim com os demais poemas de Personae Ou seja o proacuteprio ldquoeurdquo ou o ldquonoacutesrdquo tambeacutem natildeo seriam maacutescaras mesmo quando Pound diz que o livro Personae faz parte de suas primeiras tentativas em busca da lsquosincera expressatildeo de sirsquo A conjectura ganha focirclego caso se lembre a proveniecircncia do nome e da categoria gramatical de pessoa Trendelenburg apresenta alguns documentos histoacutericos para mostrar que os gregos que fundaram nossa gramaacutetica tal-vez os estoicos recorreram agrave palavra grega πρόσωπον (face ou maacutescara) para designar as principais terminaccedilotildees verbais e assim as trecircs pessoas do discurso7 Portanto transposiccedilatildeo para a gramaacutetica de um termo proveniente do drama primeiro pelos gregos e depois pelos romanos

Se persona possui o significado originaacuterio de maacutescara em que o ldquoeurdquo fala e se apresenta por traccedilos de outros natildeo estaria Kant (Cf SANTOS 2011 pp 7-40) Uma possiacutevel etimologia de persona eacute per-sono ldquoo que soa ou faz soar por meio derdquo Trendelenburg contudo potildee em duacutevida essa etimologia mencionando outras possiacuteveis6 Essa eacute sugestatildeo de Nadel (NADEL BI 2007 p 44)7 Cf TRENDELENBURG 1904 p 10

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

228

em jogo na teacutecnica de Pound a dissimulaccedilatildeo de si ou do real Natildeo eacute o que se pode inferir do comentaacuterio de Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae ()rdquo Essa busca soacute faz sentido poreacutem porque o real natildeo se apresenta imediatamente definido ldquona busca pela lsquosincera expressatildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade ()rdquo Nesse caso ateacute mesmo a ldquoexpressatildeo sincera de sirdquo que talvez pudes-se evocar algum lirismo ainda pouco elaborado estaacute longe de ser a transposiccedilatildeo imediata para o poema de algum traccedilo jaacute de-finido de si Pois natildeo haacute por um lado o que eu sou realmente e por outro a linguagem que me conveacutem ou natildeo Na construccedilatildeo de uma persona a forma de expressatildeo e o real a maacutescara e o rosto satildeo concomitantes ldquolsquoEu soursquo isto aquilo ou outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisardquo Note-se que no texto original de Pound ldquoEu sourdquo vem entre aspas pois natildeo se eacute sem uma forma precisa de expressatildeo Por isso mesmo uma persona natildeo eacute a maacutescara que esconde o real ou dissimula o que sou mas o que primeiro os molda para exibi-los de certo modo Negativamente se a forma de expressatildeo eacute inadequada o real de iniacutecio apenas entrevisto (ldquoalgo que parece verdaderdquo) eacute com-pletamente perdido ldquodeixa-se de ser a coisardquo Nesse caso tam-beacutem natildeo tem cabimento tomar determinada persona ou poema como a maacutescara autecircntica por excelecircncia Cada uma delas eacute expressatildeo parcial de um processo contiacutenuo que apenas pode ganhar complexidade crescente mas nunca alcanccedilar a expres-satildeo definitiva de si e do que eacute Vale a pena retomar Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradasrdquo Eacute precisamente como bus-ca para dar forma ao opaco e concretude ao difuso que se pode ler a abertura do ldquoRevoltardquo

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

A passagem autobiograacutefica de Pound citada haacute pouco classi-fica seus primeiros poemas em trecircs fases8 Se as duas uacuteltimas satildeo de poemas impessoais seria a primeira a de Personae de menor valor poeacutetico Por buscar a ldquosincera expressatildeo de sirdquo a primeira fase ficaria aqueacutem da expressatildeo precisa que se encon-traria nas duas fases seguintes Em outras ocasiotildees Pound iraacute desqualificar seus poemas iniciais Mas aqui a transiccedilatildeo dos poemas ldquopessoaisrdquo para os ldquoimpessoaisrdquo natildeo marca uma escala de valor apenas a diferenccedila do domiacutenio do real investigado A primeira fase eacute a da busca pela apreensatildeo e expressatildeo de si mesmo ldquoDiz-se lsquoSoursquo isto aquilo ou outro ()rdquo A fase seguin-te eacute busca pela expressatildeo da realidade objetiva ldquoEm segundo

8 Cf KENNER H 1985 p121

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

229

lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realidade ob-jetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo ()rdquo Jaacute a terceira ldquorepresenta um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquordquo Trecircs modos portanto da investigaccedilatildeo contiacutenua do real por meio de uma linguagem que procura apresentaacute-lo e representaacute-lo em domiacutenios distintos expressatildeo precisa daquilo que lsquosoursquo apresentaccedilatildeo da realidade objetiva do que eacute e por fim representaccedilatildeo dos estados de consciecircncia

Essa anaacutelise ateacute certo ponto vazia por ser muito geral en-contra apoio na leitura circunstanciada que Hugh Kenner faz de alguns dos poemas mencionados por Pound nas duas fases finais Para reter apenas a conclusatildeo dessa leitura teriacuteamos na transiccedilatildeo de Pound da primeira para as duas fases seguintes natildeo a passagem da pessoalidade para a impessoalidade mas a passagem para uma persona mais ampla ou essencial Teriacute-amos ldquoum experimento despersonalizado do eurdquo reconheciacutevel em alguns dos Cantos ldquoa personalidade despida de todas as contingecircncias tornou-se extensivamente um ponto de luz que se move por mundos possiacuteveis um modo de consciecircncia capaz de ser transposto em um nuacutemero indefinido de usosrdquo9 Por nos-sa conta personae como poemas de ningueacutem

Eacute plausiacutevel pensar que eacute com base nessa proposta natildeo por seu abandono que Pound iraacute rejeitar seus poemas iniciais A ediccedilatildeo Personae de 1926 descarta o poema ldquoRevoltardquo junta-mente com noventa e oito poemas antes publicados10 A justi-ficativa de Pound ldquoEstava ofuscado pela linguagem vitoriana () a crosta do inglecircs morto o sedimento presente em meu proacuteprio vocabulaacuterio disponiacutevel () Rossetti fez sua proacutepria lin-guagem Ateacute 1910 eu natildeo fizera uma linguagem natildeo quero di-zer uma linguagem para usar mas mesmo uma para pensarrdquo11 Ao abandonar alguns poemas anteriores Pound recusa natildeo a praacutetica de personalizaccedilatildeo mas o resultado alcanccedilado insufi-ciente para constituir uma linguagem capaz de pensar o real Se for assim por que teriacuteamos de rejeitar sem mais uma maacutescara anterior de Pound com base em uma persona posterior (Pound como criacutetico de si mesmo)

Prova dos noves de que o poema tem de falar por si mesmo estaacute na recepccedilatildeo conflitante do poema ldquoRevoltardquo Os criacuteticos mais recentes consideram o poema um bem logrado malogro de Pound em tentar criar uma nova linguagem para lidar com as condiccedilotildees da vida moderna ldquoEntre os poemas que concluem Personae (1909) haacute um que defende bravamente uma lsquoRevol-tarsquo mas acaba olhando-se melhor por tornar-se igualmente um protesto crepuscular lsquocontra a letargia de nosso temporsquordquo12 Jaacute um leitor de primeira de hora de Personae vecirc em Pound uma ldquosemente novardquo que destoaria do gosto de parte do puacuteblico por 9 Idem ibidem p 12110 Essa contabilidade eacute de Louis Martz autor da introduccedilatildeo aos Collec-ted Early Poems of Ezra Pound (POUND E 1982 p vii)11 Citado por RUTHVEN K K 1983 pp 17 1812 RUTHVEN K K 1983 p 17 Opiniatildeo similar se encontra em p62

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

230

ldquonovas variedades dos antigos favoritosrdquo13 O poema ldquoRevoltardquo que o criacutetico considera ldquoirregular mas vigorosordquo seria um caso exemplar da ldquoqualidade do Sr Poundrdquo14 Mas o caraacuteter exemplar natildeo viria da singularidade do poema ou da excentricidade do poeta mas do enraizamento de ambos no passado mais remo-to e mais proacuteximo Depois de ter lembrado a filiaccedilatildeo de Pound a Browning o criacutetico o compara aos trovadores provenccedilais ldquopelo senso de beleza das coisas e das palavrasrdquo e a Walt Whitman pela ldquovigorosa individualidaderdquo15 O criacutetico assim situa Pound na tradiccedilatildeo em plena conformidade com a epiacutegrafe que abre o livro Personae de 1909 ldquoMake-strong old dreams lest this our world lose heartrdquo16

Entre os dois criacuteticos o mais recente e o antigo qual esco-lher A pergunta eacute descabida por dois motivos aparentados Primeiro que contradiccedilatildeo poderia haver entre quem enxerga de perto com exatidatildeo mas natildeo o que o ultrapassa e quem tem a visatildeo ampla mas natildeo o foco do que estaacute proacuteximo Se for assim natildeo se impotildee nenhuma escolha entre o criacutetico passado que tem presente o niacutetido contraste dos poemas de Pound com a produccedilatildeo requentada de outros autores contemporacircneos seus e o criacutetico mais recente que tem presente a amplitude da obra posterior de Pound A pergunta inicial eacute descabida em segundo lugar pela proacutepria relaccedilatildeo temporal que o poema propotildee ao lei-tor O ponto de partida eacute nosso momento presente (ldquoeste nosso tempordquo) natildeo necessariamente o ldquonosso tempordquo de Pound O ponto de chegada eacute a aposta que uma dicccedilatildeo antiga mais vigo-rosa possa abrir o futuro

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos tatildeo [raacutepidos Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e revolvam Esta terra outra vez

O poema instaura assim uma relaccedilatildeo entre passado e futuro que deve ser moldada continuamente a partir de nosso tempo presente Se for assim o poema ou todo poema exemplar ain-da que jamais possa dar a uacuteltima palavra deveraacute ter sempre a primeira Agora soacute resta a pergunta se o ldquoRevoltardquo e em algum grau sua traduccedilatildeo em portuguecircs alcanccedilam o que Pound ambi-13 Trata-se da resenha de publicada sem o nome do autor em 23 de abril de 1909 no Daily Telegraph A resenha encontra-se reproduzida em ldquoCOURTNNEY W L 2009 pp 44 e 4514 Idem ibidem p 4515 Idem ibidem p 4516 T S Eliot natildeo vecirc nada de Walt Whitman em Personae aleacutem dos provenccedilais apenas haveria dos poetas modernos marcas de Browning e de Yeats (cf Eliot p 9) Diggory por sua vez entende ser Yeats o alvo do ldquoRevoltardquo bem como a referecircncia dos versos ldquoOr tread too violent in passing themrdquo Cita como apoio o uacuteltimo verso do poema de Yeats ldquoAedh Wishes for the Cloths of Heavenrdquo ldquoTread softly because you tread on my dreamsrdquo (Cf Diggory 2016 p 40)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

231

ciona ldquodar agraves pessoas novos olhos natildeo fazecirc-las ver uma nova coisa particularrdquo17

REVOLTA Contra o Espiacuterito Crepuscular na Poesia Moderna

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

ldquoEacute melhor sonhar que agirrdquo Sim E natildeo

Sim se sonhamos grandes feitos homens de fibraQuente o coraccedilatildeo potente o pensarNatildeo se sonhamos flores sem corCortejo lento de horas que languidamenteGotejam feito fruto passado de aacutervores paacutelidasSe assim morremos e vivemos natildeo a vida mas sonhos

Grande Deus concede vida em sonhosNatildeo fuga mas vidaSejamos homens que sonhamNatildeo fracos ocos facircmulosAgrave espera que o Tempo morto acorde e mitigueInominados males

Grande Deus se a nossa sina eacute ser natildeo homens [sonhos apenasEntatildeo sejamos sonhos que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila senhores embora meros sonhosEntatildeo sejamos sombras que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila mestres embora meras sombras

Grande Deus se medrados os homens soacute espectros [enfermos sem corQue tecircm de viver apenas nestas neacutevoas e luzes teacutepidasE tremem quando batem alto horas mudasOu pisam demais brutais ao passaacute-las

17 Relato de Pound sobre um correspondente russo inicialmente per-plexo com o poema ldquoHeatherrdquo (POUND 1916 p 98)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

232

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos [tatildeo raacutepidos

Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e reviremEsta terra outra vez

REVOLT

Against the Crepuscular Spirit in Modern Poetry

I would shake off the lethargy of this our timeAnd giveFor shadows - shapes of powerFor dreams - men

ldquoIt is better to dream than do ldquoAye and No

Aye if we dream great deeds strong menHearts hot thoughts mightyNo if we dream pale flowersSlow-moving pageantry of hours that languidlyDrop as orsquoer-ripened fruit from sallow treesIf so we live and die not life but dreamsGreat God grant life in dreamsNot dalliance but life

Let us be men that dreamNot cowards dabblers waitersFor dead Time to reawaken and grant balm for ills unnamed

Great God if we be damnrsquod to be not men but only dreamsThen let us be such dreams the world shall tremble atAnd know we be its rulers though but dreamsThen let us be such shadows as the world shall tremble atAnd know we be its masters though but shadow

Great God if men are grown but pale sick phantomsThat must live only in these mists and tempered lightsAnd tremble for dim hours that knock orsquoer loudOr tread too violent in passing them

Great God if these thy sons are grown such thin ephemeraI bid thee grapple chaos and begetSome new titanic spawn to pile the hills and stirThis earth again

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

233

BIBLIOGRAFIA

COURTNNEY W L ldquoDaily Telegraphrdquo In ldquoEzra Pound The Critical Heritage Seriesrdquo Ed Eric Homberger New York-London Routledge 2009

DIGGORY T Yeats and American Poetry The Tradition of the Self Princeton University Press 2016

ELIOT TS Ezra Pound his metric and poetry New York 1917 Disponiacutevel em lthttpswwwblukcollection-itemsezra-pound-his-metric-and-poetry-by-t-s-eliotgt Acesso em 19122017)

GRIEVE F T ldquoPersonaerdquo in The Ezra Pound Encyclopedia

Ed D P Tryphonopoulos andlrm S J Adams Westport- Connec-ticut - London Greenwood 2005

KENNER H The Poetry of Ezra Pound Reprinted edition Lincoln and London University of Nebraska Press 1985

NADEL I B The Cambridge Introduction to Ezra Pound New York Cambridge University Press 2007

POUND E Collected Early Poems of Ezra Pound Ed por Mi-chael John King New York A New Directions Book 1982

POUND E Gaudier- Brzeska London John Lante Company 1916

RUTHVEN K K A Guide to Ezra Poundlsquos Personae (1926) Berkeley-Los Angeles-London University of California Press 1983

SANTOS L R ldquoDo paralogismo loacutegico da personalidade ao paradoxo moral da pessoa geacutenese e significado da antropolo-gia moral kantianardquo Studia Kantiana 11 (2011) 7-40

TRENDELENBURG A ldquoZur Geschichte des Wortes Personrdquo Kantstudien 13 (1908) pp1 -17

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

234

Traduccedilatildeo

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano

A epiacutestola X 96 de Pliacutenio o Jovem (61ndashc 113 dC) con-teacutem o testemunho mais antigo do conflito entre cristatildeos e Impeacute-rio Romano e das praacuteticas rituais do Cristianismo primitivo Ape-nas trecircs autores latinos antigos ldquopagatildeosrdquo escreveram sobre os cristatildeos o epistoloacutegrafo Pliacutenio o Jovem e os historioacutegrafos Cor-neacutelio Taacutecito (c 56ndashc 120 dC) e Suetocircnio Tranquilo (c 69ndashc 122 dC) O testemunho de Taacutecito (Anais XV 44) foi escrito por volta de 115 e 116 dC e descreve com alguma detenccedila a dura puniccedilatildeo que Nero (imperador entre 54 e 68 dC) reservou aos cristatildeos como supostos responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma do ano 64 dC Os dois testemunhos de Suetocircnio (Vida dos Doze Ceacutesares ldquoClaacuteudiordquo 25 4 e ldquoNerordquo 16 2)1 foram escritos por volta de 122 dC e brevemente informam que os cristatildeos foram expulsos de Roma por Claacuteudio (imperador entre 41 e 54 dC) e perseguidos por Nero como praticantes de perigosa supersti-ccedilatildeo

A epiacutestola X 96 foi escrita entre 18 de setembro e 3 de janeiro de 112 dC em Amaacutestris ou Amiso (atuais Amasra e Samsun na Turquia) no segundo ano do governo de Pliacutenio sobre a Bitiacutenia e o Ponto (igualmente na atual Turquia) e era endere-ccedilada ao proacuteprio imperador Trajano que a responde como se leraacute a seguir Pliacutenio para dar conta a Trajano das providecircncias tomadas quanto aos cristatildeos as quais incluiacuteam pena capital descreve como era o ritual daqueles seguidores de Cristo e quais eram no caso as accedilotildees que nessa qualidade eles con-fessavam praticar Como entre tais accedilotildees constava o juramento de natildeo roubar natildeo matar natildeo mentir e natildeo sonegar impostos mas apenas reunir-se na alvorada para rezar e cantar a Cris-to e como eacute sempre Pliacutenio que o afirma houve quem julgasse espuacuterias as epiacutestolas escritas ou interpoladas mais tarde com intuito de exibir os cristatildeos como maacutertires e assim colaborar com a narrativa triunfalista do Cristianismo como se a visatildeo Agradeccedilo ao CNPq pela bolsa de Produtividade em Pesquisa que possi-bilitou a confecccedilatildeo deste artigo integrante de trabalho maior que inclui a traduccedilatildeo comentada de todas as cartas de Pliacutenio o Jovem

1 Para eventual consulta menciono as seguintes traduccedilotildees ao portu-guecircs Taacutecito Anais Prefaacutecio de Breno Silveira traduccedilatildeo de J L Freire de Carvalho Rio Satildeo Paulo Porto Alegre W M Jackson 1952 pp 408-409 ldquoClaacutessicos Jacksonrdquo vol XXV Suetoacutenio Os Doze Ceacutesares Traduccedilatildeo e no-tas de Joatildeo Gaspar Simotildees Lisboa Editorial Presenccedila 1973 p 204 e p 223

Joatildeo Angelo Oliva Neto

Livre-docente em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas - USP

olivanetoicloudcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

235

favoraacutevel aos cristatildeos vinda aqui de insuspeitiacutessima parte que eacute um governador romano que os persegue e ateacute executa fos-se por assim dizer boa demais para ser verdade Assim longa querela teve iniacutecio no fim do seacuteculo XVIII quando J S Sember na segunda ediccedilatildeo de Novae Observationes quibus Studiosius Illustrantur Potiora Capita Historiae et Religionis Chistianae us-que ad Constantinum (ldquoNovas Observaccedilotildees pelas quais com Maior Detenccedila se Explicam Capiacutetulos Mais Importantes da Reli-giatildeo Cristatilde ateacute Constantinordquo) as considerou stolidissimae nugae fraudesque non piae sed impudentissimae (Halle vol II p 37 1788) ldquoninharias estuacutepidas e fraudes nada piedosas mas des-pudoradiacutessimasrdquo e de pronto foi contestado por A C Haver-saat (Vertheid der Plinischen Briefe uumlber die Christen gegen die Einwendungen Semlerrsquos Goumlttingen 1788)2 Hoje a epiacutestola e Pliacutenio e a de Trajano satildeo consideradas verdadeiras assim como eram na Antiguidade quando foram igualmente ceacutelebres a julgar pelos numerosos testemunhos que delas nos chega-ram3

As epiacutestolas exibem tambeacutem exemplos ainda que sem-pre anocircnimos da coragem de quem se manteacutem fiel agrave proacutepria crenccedila do humano medo de morrer de quem a renega da sor-didez que eacute a denuacutencia anocircnima Quanto a Pliacutenio ele produ-ziu ainda que sem querer efeitos retoacutericos dignos de nota a credibilidade e sobretudo o pateacutetico que adveio ironicamente de sua proacutepria impassibilidade O distanciamento que o ofiacutecio obriga a desejada impassibilidade descritiva na judicial frieza com que conduz o inqueacuterito de fato soacute fez ressaltar malgrado seu a comovente mansidatildeo daqueles reacuteus nisso os partidaacuterios da falsidade das epiacutestolas tinham razatildeo

Epiacutestolas Cristatildes 1Pliacutenio o Jovem Livro X Epiacutestola 96 (97)

2 Para etapas importantes do longo debate ver os autores arrola-dos por Anne-Marie Guillemin Pline le Jeune tome IV Lettres Livre X Panegyrique de Trajan Paris ldquoLes Belles Lettresrdquo 1947 pp 70-72 Eacute desta ediccedilatildeo o texto latino adotado3 Tert Apol II 6-10 Clem Al Strom V 12 (Patrol Gr IX 400c) Eus HE III 33 Hier Chron 220a Olimp Sulp Sev Chron II 45 Oros VII 12 3 Paul Diac Hist Misc X Traianus

Caius Plinius Traiano Imperatori

1 Sollemne est mihi domine omnia de quibus dubito ad te referre Quis enim potest melius uel cunctationem meam regere uel ignorantiam instruere

Cognitionibus de Christianis interfui numquam ideo nescio quid et quatenus aut

Caio Pliacutenio ao Imperador Trajano

1 Para mim senhor eacute nor-ma submeter-te todas as ques-totildees em que tenho duacutevida pois quem melhor pode guiar minha hesitaccedilatildeo ou educar minha igno-racircncia

Nunca tomei parte dos in-queacuteritos sobre os cristatildeos de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

236

puniri soleat aut quaeri 2 Nec mediocriter haesitaui sitne aliquod discrimen aetatum an quamlibet teneri nihil a robustioribus differant detur paenitentiae uenia an ei qui omnino Christianus fuit desisse non prosit nomen ipsum si flagitiis careat an flagitia cohaerentia nomini puniantur

Interim ltingt iis qui ad me tamquam Christiani d e f e r e b a n t u r hunc sum secutus modum 3 Interrogaui ipsos an essent Christiani Confitentes iterum ac tertio interrogaui supplicium minatus perseuerantes duci iussi Neque enim dubitabam qualecumque esset quod faterentur pertinaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri 4 Fuerunt alii similis amentiae quos quia ciues Romani erant adnotaui in urbem remittendos Mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species inciderunt

5 Propositus est libellus sine auctore multorum nomina continens Qui negabant esse se Christianos aut fuisse cum praeeunte me deos adpellarent et imagini tuae quam propter hoc iusseram cum simulacris numinum adferri ture ac uino supplicarent praeterea male dicerent Christo quorum nihil cogi posse dicuntur qui sunt re uera Christiani dimittendos putaui 6 Alii ab indice nominati esse se Christianos dixerunt et mox negauerunt fuisse quidem

modo que ignoro o quecirc e ateacute onde se deve punir ou inquirir 2 Natildeo foi pequena minha hesi-taccedilatildeo sobre se deve haver dis-criacutemen de idade ou se em nada diferem crianccedilas de qualquer ta-manho dos mais adultos se se daacute perdatildeo ao arrependimento ou se agravequele que foi cristatildeo convic-to de nada valeraacute renunciar se se pune o mero nome de cristatildeo quando natildeo houver delitos ou os delitos ligados ao nome

Entrementes quanto agraveque-les que me foram denunciados como cristatildeos procedi do se-guinte modo 3 Perguntei-lhes se eram cristatildeos aos que con-fessavam perguntei de novo e ainda uma terceira vez ame-accedilando-os de supliacutecio os que perseveravam mandei execu-tar⁴ E natildeo tive duacutevidas de que qualquer que fosse a confissatildeo ao menos a persistecircncia e a in-flexiacutevel obstinaccedilatildeo deviam ser punidas 4 Houve outros capa-zes de semelhante demecircncia os quais porque eram cidadatildeos romanos registrei para que fos-sem mandados de volta a Roma Logo como costuma ocorrer ampliando-se no proacuteprio proces-so a incriminaccedilatildeo muitos casos diferentes apareceram

5 Um cartaz sem autor⁵ foi afixado contendo o nome de muitas pessoas Se os que ne-gavam ser ou ter sido cristatildeos in-vocassem os deuses repetindo a foacutermula que eu lhes ditava e com incenso ou vinho venerassem a tua imagem que adrede eu man-dara trazer junto com estaacutetuas

4 executar duci infinitivo passivo de duco ducere ldquoser conduzidordquo subentendendo-se ad mortem Esse uso de duci implica que a execuccedilatildeo era imediata e pela espada

5 cartaz sem autor libellus sine auctore denuacutencia anocircnima a que se referiraacute Trajano na resposta Epiacutestola 97 (98) 2

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

237

sed desisse quidam ante triennium quidam ante plures annos non nemo etiam ante uiginti ltHigt quoque omnes et imaginem tuam deorumque simulacra uenerati sunt et Christo male dixerunt

7 Adfirmabant autem hanc fuisse summam uel culpae suae uel erroris quod essent soliti stato die ante lucem conuenire carmenque Christo quasi deo dicere secum inuicem seque sacramento non in scelus aliquod obstringere sed ne furta ne latrocinia ne adulteria committerent ne fidem fallerent ne depositum adpellati abnegarent Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum promiscuum tamen et innoxium quod ipsum facere desisse post edictum meum quo secundum mandata tua hetaerias esse uetueram 8 Quo magis necessarium credidi ex duabus ancillis quae ministrae dicebantur quid esset ueri et per tormenta quaerere Nihil aliud inueni quam superstitionem prauam et immodicam

9 Ideo dilata cognitione ad consulendum te decucurri Visa est enim mihi res digna consultatione maxime propter periclitantium numerum Multi enim omnis aetatis omnis ordinis utriusque sexus etiam uocantur in periculum et uocabuntur

Neque ciuitates tantum sed uicos etiam atque agros superstitionis istius contagio peruagata est quae uidetur sisti et corrigi posse 10 Certe satis constat prope iam desolata templa coepisse

dos numes e aleacutem disso amal-diccediloassem Cristo ndash atitudes a que diz-se natildeo se consegue obrigar os que satildeo verdadeira-mente cristatildeos ndash esses julguei que devia dispensar 6 Outros delatados nominalmente por informante afirmaram ser cris-tatildeos e logo disseram que natildeo que de fato haviam sido mas que tinham renunciado uns haacute mais de trecircs anos outros haacute mais tempo ainda alguns ateacute haacute mais de vinte anos Todos eles tambeacutem veneraram natildeo apenas tua imagem como as estaacutetuas dos deuses e amaldi-ccediloaram Cristo

7 Afirmavam que sua maior culpa ou erro tinha sido o costume de reunir-se num dia fixo antes do amanhecer e entre si entoar um por vez hi-nos a Cristo como a um deus e por juramento obrigar-se natildeo a algum crime mas a natildeo cometer furto nem latrociacutenio nem adulteacuterio a natildeo faltar agrave palavra dada nem intimados pela justiccedila sonegar imposto Que cumpridos esses ritos era seu costume separar-se e de novo reunir-se para receber o alimento comum poreacutem e inoacutecuo o que tambeacutem deixa-ram de realizar depois de meu edito pelo qual segundo tuas ordens eu proibira as confra-rias 8 Achei ateacute necessaacuterio mesmo por tortura arrancar a verdade de duas escravas que segundo se dizia eram ajudan-tes nada mais encontrei aleacutem de insensata e desmedida su-persticcedilatildeo

9 Por isso suspenso o inqueacuterito recorri a ti para con-sultar-te A mateacuteria pareceu-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

238

celebrari et sacra sollemnia diu intermissa repeti passimque uenire ltcarnemgt uictimarum cuius adhuc rarissimus emptor inueniebatur Ex quo facile est opinari quae turba hominum emendari possit si sit paenitentiae locus

-me digna de consulta sobre-tudo por causa do nuacutemero de acusados muitos de todas as idades de todas as ordens de ambos os sexos intimados es-tatildeo e estaratildeo em perigo⁶ Natildeo soacute as cidades mas as aldeias e os campos o contaacutegio desta su-persticcedilatildeo alcanccedilou que pode ao que parece ser detida e sa-nada 10 Consta e eacute pratica-mente certo que os templos⁷ antes quase desertos comeccedila-ram a ser frequentados e que solenidades sagradas por mui-to tempo interrompidas foram retomadas e que por toda parte se vende carne das viacutetimas de que ateacute agora se achava rariacutes-simo comprador Por isso eacute faacute-cil perceber que se pode corrigir a turba dos homens se houver lugar para arrependimento

6 estatildeo e estaratildeo em perigo uocantur in periculum et uocabuntur ldquoperigordquo em vista do supliacutecio e principalmente da pena capital

7 os templos templa Pliacutenio refere-se aos templos romanos

8 Segundo Pliacutenio chamava-se Caio Pliacutenio Ceciacutelio Segundo

Epiacutestolas Cristatildes 2Pliacutenio o Jovem Livro 10 epiacutestola 97 (98)

Traianus Plinio

1 Actum quem debuisti mi Secunde in excutiendis causis eorum qui Christiani ad te delati fuerant secutus es Neque enim in uniuersum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest Conquirendi non sunt si deferantur et arguantur puniendi sunt ita tamen ut qui negauerit se Christianum esse idque re ipsa manifestum fecerit id est supplicando dis nostris quamuis suspectus in praeteritum ueniam ex paenitentia impetret 2 Sine

Trajano a Pliacutenio

1 Tomaste as providecircn-cias que devias meu querido Segundo⁸ ao investigar as causas daqueles que te foram delatados como cristatildeos pois natildeo eacute possiacutevel constituir um princiacutepio universal que tenha por assim dizer forma precisa Natildeo haacute que ir ao encalccedilo deles se forem denunciados e incul-pados devem ser punidos res-salvando-se poreacutem que quem negar que eacute cristatildeo e tornaacute-lo manifesto pelos proacuteprios atos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

239

isto eacute venerando nossos deu-ses por mais suspeito que te-nha sido no passado consiga perdatildeo pelo arrependimento 2 Cartazes sem autor⁹ natildeo devem ter lugar em nenhuma acusaccedilatildeo pois satildeo peacutessimo exemplo que natildeo eacute proacuteprio de nosso tempo

9 cartazes sem autor libelli sine auctore Satildeo as denuacutencias anocircnimas mencionadas na epoacutestola anterior sect5 Pliacutenio parece tecirc-las levado em consi-deraccedilatildeo no processo

auctore uero propositi libelli ltingt nullo crimine locum habere debent Nam et pessimi exempli nec nostri saeculi est

O Palco da Heteroniacutemia Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard ZenithLuiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

A melancolia diante do espelho de Jean StarobinskiFranceila de Souza Rodrigues

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y ComentaacuterioMario Caimi

ldquoCanccedilatildeo de outonordquo de Paul VerlaineRenata Cordeiro

ldquoRevoltardquo um poema antigo de PoundPaulo Licht

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e TrajanoJoatildeo Angelo Oliva Neto

RESENHAS

TRADUCcedilOtildeES

p197

p204

p207

p220

p226

p234

7

Editorial

A sexta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas eacute dedicada agrave relaccedilatildeo entre filosofia e literatura Seu nuacutecleo consiste na coletacircnea de artigos apresentados no Coloacutequio Fernando Pessoa (+ ou -) Filosofia realizado pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da UFSCar em 2013 A relaccedilatildeo entre filosofia e literatura na obra de Fernando Pessoa tema do evento inspirou esta sexta edi-ccedilatildeo da revista e abriu o espaccedilo para contribuiccedilotildees que tratam agraves vezes de modo mais indireto mas natildeo menos pertinente dessa relaccedilatildeo em outros campos e autores

Os entrevistados desta ediccedilatildeo da Revista Ipseitas satildeo Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro pesquisadores de destaque da obra de Fernando Pessoa cujo trabalho conjunto de ediccedilatildeo e publi-caccedilatildeo de textos ineacuteditos do espoacutelio tem contribuiacutedo de maneira decisiva para a compreensatildeo da real amplitude da obra em pro-sa e poeacutetica e para uma interpretaccedilatildeo mais precisa das diferen-tes perspectivas que a animam

No primeiro artigo Diogo Ferrer analisa diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo filosoacutefica presente no poema dramaacutetico Primeiro Fausto destacando a recorrecircncia do procedimento dialeacutetico da negaccedilatildeo em passagens cruciais do drama Em seguida Gisele Candido deteacutem-se na anaacutelise do ensinamento poeacutetico atribuiacutedo a Alberto Caeiro e sua proposta de insubordinaccedilatildeo dos sentidos agraves prerrogativas do conhecimento intelectual

Munidos de evidecircncias cuidadosamente colhidas em docu-mentos ainda pouco explorados do espoacutelio Claacuteudia Souza e Nuno Ribeiro debatem sobre a dimensatildeo e o alcance da obra filosoacutefica do poeta Claudia pondera sobre o impacto da tradiccedilatildeo poeacutetico-filosoacutefica alematilde em particular do romantismo alematildeo em sua obra enquanto Nuno Ribeiro mostra como a ambiccedilatildeo filosoacutefica de Pessoa ia muito aleacutem dos ecos de leituras presen-tes nos poemas ou nas obras de ficccedilatildeo abrangendo reflexotildees mais ou menos sistemaacuteticas escritas sob a forma de diaacutelogos ensaios e fragmentos muitas vezes com a intenccedilatildeo de publicaacute--las como produccedilatildeo filosoacutefica autocircnoma agrave criaccedilatildeo heteroniacutemica

Em artigo dedicado aos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos Fabriacutecio Luacutecio mostra como para aleacutem de um simples desejo de ruptura com a tradiccedilatildeo o heterocircnimo engenheiro vislumbra um estado criativo no qual o corpo e a arte possam convergir em estreita relaccedilatildeo com o princiacutepio de forccedila assumindo-o como alternativa ao meacutetodo de medidas e proporccedilotildees da tradiccedilatildeo aristoteacutelica

Rubens Joseacute da Rocha examina no artigo ldquoFernando Pessoa e sua Filosofia da Composiccedilatildeordquo alguns aspectos da desperso-nalizaccedilatildeo do eu liacuterico no poema dramaacutetico O Marinheiro e nos heterocircnimos Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos No artigo ldquoA

8

Liberdade do Olharrdquo Maacutercio Suzuki traccedila um paralelo histoacuteri-co entre Winckelmann e Pessoa Apesar da disposiccedilatildeo uacutenica de pensamento de ambos os autores Maacutercio chama a atenccedilatildeo para a maneira como eles aspiram agrave realizaccedilatildeo de uma nova sensibilidade grega elaborando cada qual a seu modo uma teoria da arte centrada no olhar

Marco Aureacutelio Werle analisa o procedimento dialeacutetico de Peter Szondi que assim como Hegel conceitua o eacutepico como supe-rior ao dramaacutetico em sua teoria do drama moderno No artigo ldquoA Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de Piacutenda-rordquo Adriano Machado Ribeiro propotildee uma traduccedilatildeo ineacuteditaem portuguecircs da segunda Iacutestmica de Piacutendaro como ponto de par-tida para a discussatildeo sobre as caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega e o caso especiacutefico da segunda Iacutestmica em rela-ccedilatildeo aos poemas epiniacutecios

O artigo seguinte ldquoO lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agam-ben leitor de Freudrdquo de Camila Salles Gonccedilalves examina a apropriaccedilatildeo filosoacutefica que o filoacutesofo italiano faz das concepccedilotildees freudianas de fantasma e melancolia O artigo destaca que a partir dessa anaacutelise eacute possiacutevel compreender melhor como a vi-satildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo

A seccedilatildeo de artigos se encerra com uma uacutenica contribuiccedilatildeo que natildeo toca a relaccedilatildeo entre filosofia e literatura No artigo ldquoPolitics without a subject David Hume on general rulesrdquo Giulia Valpione analisa como a interpretaccedilatildeo de Hume do processo de consti-tuiccedilatildeo da subjetividade possui ganhos importantes para pensar filosoficamente a poliacutetica

Na seccedilatildeo de resenhas Luiacutes Fernandes dos Santos Nasci-mento desvenda o caraacuteter dramaacutetico do procedimento teoacuterico e criativo de Fernando Pessoa com anaacutelise da coletacircnea de tex-tos em prosa Teoria da Heteroniacutemia organizado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Ainda na seccedilatildeo de resenhas Franceila de Souza Rodrigues aborda o tema da melancolia com anaacutelise de trecircs estudos de Starobinski sobre Baudelaire livro traduzido por Samuel Titan Jr

A revista conta ainda com traduccedilotildees ineacuteditas de poemas de Rilke Verlaine e Ezra Pound e uma traduccedilatildeo das epiacutestolas de Pliacutenio e Trajano contando todas elas com uma apresentaccedilatildeo dos textos traduzidos Mario Caimi estudioso e tradutor de Kant e Espinosa traduz agora para o espanhol (como ldquoejercicios de traduccioacutenrdquo) poemas de Rainer Maria Rilke e enriquece a leitura com comentaacuterios Mario Caimi observa que a ideia de agregar comentaacuterios aos poemas se deve ao proacuteprio Rilke que pediu que seu editor intercalasse paacuteginas em branco em um exemplar das Elegias de Duiacuteno e dos Sonetos a Orfeu para que pudesse anotar suas proacuteprias explicaccedilotildees sobre os textos mais difiacuteceis Renata Cordeiro traduz o famoso poema de Verlaine ldquoCanccedilatildeo de outonordquo publicado no livro Poemas Saturninos em 1867 com atenccedilatildeo especial dedicada agrave estrutura riacutetmica do original

9

francecircs e agraves diversas possibilidades de traduzir o poema em portuguecircs de acordo com a mesma estrutura do original em francecircs Paulo Licht traduz ldquoRevoltardquo poema pouco conhecido de Ezra Pound publicado em seu livro Personae de 1909 A apresentaccedilatildeo procura situar o ldquoRevoltardquo em meio aos poemas iniciais de Pound e dar alguma pista do que seria sua teacutecnica de ldquopersonalizaccedilatildeordquo Para finalizar Joatildeo Angelo Oliva Neto traduz as ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano epiacutestolas que figuram como o mais antigo testemunho do conflito entre o Impeacuterio Romano e os primoacuterdios da era cristatilde A apresentaccedilatildeo defendendo a autenticidade das cartas em face de querela ini-ciada no seacuteculo XVII destaca o caraacuteter exemplar dos testemu-nhos que o documento encerra

Este nuacutemero da Ipseitas com textos de tal amplitude concen-traccedilatildeo e diversidade convida o leitor a escolher o que mais lhe interessar ou entatildeo a ler cada um deles Nos dois casos cabe talvez a pergunta se o simples conectivo ldquoerdquo em ldquoFilosofia e Literaturardquo antes separa do que adiciona dois termos tatildeo proacutexi-mos

Rubens Joseacute da Rocha e Paulo Licht dos Santos

10

Entrevista com Jorge Uribe e Jeroacutenimo Pizarro

Jeroacutenimo Pizarro eacute professor da Universidade dos Andes titular da Caacutetedra de Estudos Portugueses do Instituto Camotildees na Colocircmbia e doutor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006) em Literaturas Hispacircnicas e Linguiacutestica Portuguesa Participou de diver-sos projetos referentes ao espoacutelio de Fernando Pessoa como Obra completa de Aacutelvaro de Campos (2015) e Obra Completa de Ricardo Reis (2016) publicadas pela Tinta-da-China aleacutem de ensaios criacuteticos como A Arca de Pessoa (2007) em parceria com Steffen Dix e Pes-soa Existe (Aacutetica 2012)

Jorge Uribe eacute doutor pelo Programa em Teoria da Literatura da Uni-versidade de Lisboa com tese dedicada a biografia intelectual de Fer-nando Pessoa e os conceitos de criacutetica esteacutetica e despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica nas obras de Oscar Wilde Walter Pater e Matthew Arnold Eacute membro do projeto criacutetico e editorial Estranhar Pessoa associado ao Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lis-boa (IFL) e tem colaborado com diversas ediccedilotildees criacuteticas das obras de Fernando Pessoa dentre elas Sebastianismo e Quinto Impeacuterio (Aacutetica 2011) Prosa de Aacutelvaro de Campos (Aacutetica 2012) e Obras Completas de Ricardo Reis (Tinta-da-China 2016)

_______________________________

IPSEITAS O que despertou seu interesse pelo estudo da obra de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO PIZARRO Desculpem a tautologia mas a obra mesma o espanto que geram certos textos poeacuteticos e em pro-sa Mas o momento-revelaccedilatildeo foi o arquivo a sua materialida-de as suas formas natildeo textuais de iluminar certos textos a sua vastidatildeo o seu segredo a sua beleza a sua diversidade Toda uma literatura para passar ali imerso toda uma vida embora tenha preferido fugir

JORGE URIBE Bem acho que foi um processo de contiacutenuos acasos O interesse e a praacutetica sobre esse interesse isto eacute o estudo foram acordando e tomando posse sem que eu desse por isso e continua um pouco assim como se eu tivesse adqui-rido um haacutebito que foi encontrando formas de se desenvolver Na parte anedoacutetica posso contar que na adolescecircncia caiu nas minhas matildeos uma ediccedilatildeo ldquopiratardquo que alguns sebos em Bogotaacute

11

faziam autocircnoma e ilegalmente de livros difiacuteceis de encontrar Essa ediccedilatildeo tinha uns poucos poemas assinados por Fernando Pessoa Ricardo Reis Alberto Caeiro e Aacutelvaro de Campos e natildeo vinham acompanhados de nenhuma nota explicativa nem creacuteditos de traduccedilatildeo Eu tive a sorte rara de ler pela primei-ra vez esses autores desconhecidos sem ter que pensar que eram um soacute eu era portanto absolutamente ignorante de qual-quer coisa acerca de Pessoa um autor que para esse momen-to ndash comeccedilos da deacutecada de 2000 ndash era conhecido nos ciacuterculos especializados de Bogotaacute mas ausente nos curriacuteculos escolares e universitaacuterios e certamente distante de adolescentes como eu que natildeo tiacutenhamos uma biblioteca em casa O resultado foi que gostei muito de Aacutelvaro de Campos enquanto Fernando Pes-soa me pareceu ter uns poucos versos contundentes lembro perfeitamente onde estava sentado a primeira vez que li ldquoAu-topsicografiardquo Por outro lado Caeiro e Reis me resultaram de-sinteressantes natildeo me disseram nada nesse momento o meu primeiro pensamento foi o de achar muito estranho que algueacutem tivesse posto esses autores todos num mesmo livro sendo que uns eram tatildeo bons e os outros natildeo Eu era um leitor muito des-norteado e demorei talvez um ano com essa ideia eram tempos sem Google Mais tarde e com acesso a melhores ediccedilotildees e traduccedilotildees o estranhamento se consolidou quando soube que o motivo pelo qual esses autores todos partilhavam um mesmo livro era ainda muito mais surpreendente do que eu tinha ima-ginado logo virou desafio Jaacute enquanto eu era aluno do progra-ma de Humanidades e Literatura da Universidad de los Andes Pessoa virou um nome resplandecente num santoral que eu ia cultivando nas conversas com os amigos ao lado de Ceacutesar Val-lejo Wilde Pizarnik Dostoieacutevsky quando chegou o momento de fazer uma monografia de final de curso eu queria que fosse sobre um desses autores que na eacutepoca eram os que mais me entusiasmavam e Pessoa era o uacutenico que nunca tinha sido par-te dos cursos da faculdade Portanto havia muita coisa para ir procurar pela minha conta escolhi-o e sendo a minha uma faculdade muito liberal no sentido claacutessico do termo concede-ram-me a oportunidade Veio tambeacutem o Eccedila de Queiroacutes espe-cificamente A Correspondecircncia de Fradique Mendes e o meu trabalho de final de curso acabou sendo uma aproximaccedilatildeo entre dois textos e dois momentos da literatura portuguesa agrave volta do problema da autoria embora eu natildeo tivesse nenhuma formaccedilatildeo escolarizada em letras portuguesas Nesse contexto foi muito importante ter como orientador um dos maiores especialistas na obra de Pessoa Jeroacutenimo Pizarro que era ex-aluno da minha faculdade ndash hoje professor ndash que morava entatildeo em Portugal e que conheci por acaso comecei a aprender portuguecircs e pouco tempo mais tarde cheguei a Portugal e agrave gigantesca surpresa que eacute o espoacutelio de Fernando Pessoa Com isso uma viagem que teria sido de 4 meses acabou sendo de 6 anos desde entatildeo a leitura estranhada da obra pessoana eacute para mim praacutetica

12

quase quotidiana e natildeo a tenho longe da vida

IPSEITAS Em 2015 juntamente com Antonio Cardiello e Felipa Freitas vocecircs participaram da ediccedilatildeo do volume Obra completa de Aacutelvaro de Campos Vocecircs acreditam que em termos edito-riais o trabalho com esse heterocircnimo esteja concluiacutedo se eacute que podemos falar em conclusotildees quando tratamos de Fernando Pessoa

JEROacuteNIMO Praticamente sim Mas com algumas ressalvas Essa Obra Completa teve um primeiro anuacutencio e uma primei-ra preparaccedilatildeo o livro Prosa de Aacutelvaro de Campos aparecido em junho de 2012 em que se incluiu por exemplo uma maior quantidade de material preparatoacuterio ou geneacutetico de alguns tex-tos tal como de ldquoUltimatumrdquo que tinha sido publicado em Sen-sacionismo e Outros Ismos (2009) de forma extensa Essa Obra completa foi posterior a artigos como ldquoSobre a primeira gaze-tilha de Aacutelvaro de Camposrdquo (2012 wwwpessoapluralcom) e comeccedilou haacute pouco a ser complementada por contributos tais como ldquoEditar Aacutelvaro de Campos o primeiro Arco de Triumphordquo (em Genuiacutena Fazendeira ndash os frutiacuteferos 100 anos de Cleonice Berardinelli) e outros em processo de publicaccedilatildeo Natildeo conside-ro que a Obra completa de Aacutelvaro de Campos seja uma conclu-satildeo mas o que falte nela que eacute miacutenimo seraacute apresentado e discutido em proacuteximos artigos

JORGE Acho que eacute uma questatildeo agudizada pela presenccedila do adjetivo ldquocompletardquo no tiacutetulo Poreacutem esse adjetivo possui um significado mais restrito do que seria esperado mais relacio-nado com a histoacuteria editorial da ldquoobra de Camposrdquo do que com uma descriccedilatildeo essencialista dela Explico desde os anos 1940 Campos foi apresentado pelos editores poacutestumos de Pessoa principalmente como autor de poemas embora essa imagem deixasse de fora uma parte importante daquilo que Pessoa deu a conhecer sob esse nome durante a sua vida Na verdade ldquoCampos publicourdquo vaacuterias e importantes prosas nas revistas Portugal Futurista Contemporacircnea Athena e Presenccedila Contu-do durante um tempo consideraacutevel a ideia foi como disse que a obra de Campos eram os poemas conhecidos e os que esta-vam ainda ineacuteditos Foi esse o principal interesse dos primeiros editores da Aacutetica Luiacutes de Montalvor e Joatildeo Gaspar Simotildees e foi isso que procuraram editar como o ldquoCampos definitivordquo Soacute no final dos anos oitenta Teresa Rita Lopes abriu o olhar dos leitores noutra direccedilatildeo e publicou durante a deacutecada de 1990 vaacuterios livros com a autoria ldquode Camposrdquo Vida e obra do enge-nheiro Livro de Versos e Notas para a recordaccedilatildeo do meu mes-tre Caeiro para nomear alguns que surgiram com uma ideia de complementaridade entre si mas natildeo de integraccedilatildeo Em 2012 Jeroacutenimo Antonio e eu organizamos o volume Prosa de Aacutelvaro de Campos para uma nova seacuterie da Aacutetica que infelizmente dei-

13

xou de existir pouco tempo depois O volume reivindicava com forccedila e pela primeira vez de forma abrangente essa faceta de Campos menos referida pela criacutetica mas que jaacute desde antes da morte de Pessoa era fundamental para a vida puacuteblica do heteroacutenimo e tambeacutem para a configuraccedilatildeo do chamado ldquodrama em genterdquo Portanto esse ldquocompletardquo no tiacutetulo de 2015 refere-se mais ao fato de que partes que estavam dispersas estatildeo final-mente reunidas Natildeo deveraacute entender-se por ldquocompletardquo defi-nitiva Todo os leitores pessoanos e mais incomodamente os seus editores sabemos que no caso de Pessoa estaacute-se sempre a correr riscos e a fazer apostas alguns manuscritos satildeo muito difiacuteceis de ler e certamente ainda pode haver melhorias (ateacute por motivos tecnoloacutegicos as ferramentas de ediccedilatildeo vatildeo mudando para melhor) tambeacutem pode haver papeis que estejam perdidos e venham a aparecer supomos que satildeo poucos A arrumaccedilatildeo de textos que foram deixados em estados de dispersatildeo e frag-mentaccedilatildeo por parte do autor eacute sempre uma tarefa especulativa tambeacutem o eacute a dataccedilatildeo e serializaccedilatildeo de suportes e materiais ge-neacuteticos Melhores formas de organizar algum texto podem vir a ser propostas ou ldquodescobertasrdquo por editores futuros Eles assim como noacutes teratildeo a vantagem de basear-se no trabalho jaacute feito para acataacute-lo melhoraacute-lo ou contestaacute-lo

IPSEITAS Como vocecircs avaliam o estaacutegio atual de ediccedilotildees criacute-ticas que procuram estabelecer um padratildeo editorial para os ma-nuscritos Ainda haacute uma ldquoEquipa Pessoardquo como a de 1985 aos moldes de uma forccedila-tarefa ou tem prevalecido o trabalho de investigadores isolados Como satildeo planejadas as publicaccedilotildees

JEROacuteNIMO A ediccedilatildeo criacutetica eacute um sonho que como Portugal estaacute por cumprir ldquoCumpriu-se o Mar e o Impeacuterio se desfez Se-nhor falta cumprir-se Portugalrdquo Falta cumprir-se um Pessoa plenamente editado Mas essa eacute uma tarefa monumental que nunca foi assumida como tal Haacute muitos trabalhos e esforccedilos mas os poliacuteticos ainda natildeo perceberam o valor simboacutelico da obra pessoana A ldquoEquipa Pessoardquo que houve foi pouco apoiada e passado pouco tempo esquecida por diversas instituiccedilotildees portuguesas e natildeo soacute Se Pessoa fosse reconhecido como o tesouro nacional que foi declarado (para evitar leilotildees que se tornaram vendas silenciosas) Portugal e os paiacuteses de liacutengua portuguesa seriam um sonho ainda maior

JORGE Eacute uma questatildeo muito pertinente porque estaacute desen-volvendo-se de forma inovadora enquanto respondo agrave pergunta A Equipa Pessoa tal como constituiacuteda nos anos oitenta sob a direccedilatildeo de Ivo Castro teve diversos periacuteodos alguns de alta produccedilatildeo outros de silecircncio quase absoluto Por exemplo entre 2006 e 2010 a equipa publicou uns oito tiacutetulos enquanto entre 2011 e 2015 somente dois Contudo o uacuteltimo tiacutetulo eacute talvez um dos mais importantes da seacuterie e em certo sentido estaacute na gecirc-

14

nese mesma da constituiccedilatildeo da Equipa trata-se dos poemas de Alberto Caeiro organizados por Ivo Castro Todos os tiacutetulos da coleccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para qualquer leitor que queira aprofundar o seu conhecimento da obra pessoana e satildeo tambeacutem a melhor porta de entrada ao espoacutelio antes do espoacutelio Nomes como Luiacutes Prista Joatildeo Dioniacutesio e Luiacutes Fagundes Duarte membros da Equipa Pessoa continuam sendo referecircncias im-portantes e ediccedilotildees como o da Pauly Ellen Bothe ou do Enrico Martines satildeo referecircncias de grande utilidade para qualquer es-tudo sobre Pessoa Ainda a Imprensa Nacional-Casa da Moe-da editora da Equipa Pessoa inaugurou em 2015 uma coleccedilatildeo ensaiacutestica dedicada ao Pessoa e que a comeccedilos de 2016 teraacute um segundo tiacutetulo que reuacutene algumas das listas de projetos do espoacutelio pessoano Portanto esse labor continua embora natildeo saibamos se haveraacute novas ediccedilotildees da chamada ldquoSeacuterie Maiorrdquo Paralelamente natildeo considero que nas ediccedilotildees pessoanas te-nha havido muitos pesquisadores isolados em realidade posso pensar sobretudo num caso notaacutevel e muito importante o da Teresa Sobral Cunha A maior parte das ediccedilotildees de Pessoa embora assinadas por um ou dois nomes satildeo elaboradas no marco de esforccedilos editoriais para os quais contribuem muitas pessoas Eacute o caso das ediccedilotildees da INCM e tambeacutem da Assiacuterio amp Alvim que reuacutene nomes como Manuela Parreira da Silva Ana Maria Freitas Fernando Cabral Martins e Richard Zenith es-pecialistas que partilham ideias e mantecircm comunicaccedilatildeo entre si Por outro lado ainda que os criteacuterios de apresentaccedilatildeo das ediccedilotildees da Assiacuterio difiram daqueles da ediccedilatildeo criacutetica da INCM eacute impossiacutevel ignorar que haacute um diaacutelogo no interior das ediccedilotildees e nenhum editor uma vez reconhecida uma melhoria conseguida por outro deixaraacute de consideraacute-la na sua proacutexima ediccedilatildeo Um caso paradigmaacutetico eacute o do Livro do Desassossego Claro so-brevivem poleacutemicas mas soacute temos (noacutes leitores) a ganhar com elas sempre e quando sejam levadas de maneira clara no acircm-bito acadecircmico Mais recentemente em 2013 surgiu a coleccedilatildeo pessoana da Tinta-da-China onde Jeroacutenimo Pizarro conta com coautorias e colaboraccedilotildees de um grupo significativo de pes-soas entre os quais Antonio Cardiello Patricio Ferrari e Joseacute Barreto Nesse sentido a ldquoforccedila-tarefardquo cresce e multiplica-se ao contraacuterio de tornar-se um ciacuterculo restrito como pode ter sido o primeiro plano patrocinado pelo estado portuguecircs nos anos oitenta com uma agenda bem delimitada Ainda recentemente a Tinta-da-China comeccedilou a imprimir seus livros no Brasil e eacute de esperar que isso traga novas possibilidades e novos olha-res Eacute tambeacutem importante notar que alguns dos atuais editores de Pessoa embora mantenham um viacutenculo forte com Portugal natildeo residem nesse paiacutes A tecnologia tem permitido que esse movimento descentralizador se manifeste produtivo O principal continua sendo o esforccedilo por dar a conhecer responsavelmen-te a obra de Pessoa a um puacuteblico cada vez maior Nesse sen-tido trata-se de um esforccedilo colaborativo Pessoalmente para

15

mim o mais interessante ainda estaacute por acontecer Agrave medida que Pessoa necessariamente comeccedila a migrar e a desafiar as possibilidades da ediccedilatildeo digital de acesso livre internacional as possibilidades de leitura dos seus textos e manuscritos e de penetraccedilatildeo em novas obras e novas vidas crescem Existe um importante projeto dedicado ao Livro do Desassossego se-diado na Universidade de Coimbra e em breve seraacute conhecido um projeto de publicaccedilatildeo digital de grandes dimensotildees produ-to da colaboraccedilatildeo entre universidades de Portugal Alemanha e mais recentemente da Universidade de Satildeo Paulo (USP) instituiccedilatildeo onde se consolida atualmente um Grupo de Estudos Pessoanos coordenado pelo professor Caio Gagliardi Cada vez mais esta empreitada exige grupos de trabalho por vezes de caraacuteter multidisciplinar no contexto do que hoje eacute conhecido como digital humanities Contudo o meacutetodo de planejamento dos novos esforccedilos editoriais continua sendo muito semelhante ao das ediccedilotildees criacuteticas da Equipa Pessoa revisitar o que jaacute foi feito confrontar com os originais questionar identificar lacunas ou possiacuteveis melhorias e oferecer ao puacuteblico novas portas e ja-nelas para o vasto legado que eacute a escrita de Fernando Pessoa

IPSEITAS Qual o papel de interpretaccedilotildees biograacuteficas em que pesa a anaacutelise de teor psicoloacutegico do autor como o livro Vida e obra de Fernando Pessoa de Joatildeo Gaspar Simotildees nessa tarefa de definir um padratildeo editorial para a obra

JEacuteROacuteNIMO A meu ver quase nenhum Pode levar a criar ten-tativas fantaacutesticas de textos iacutentimos ou autobiograacuteficos de um autor muito introspectivo a lermos em excesso as suas cartas de amor a falar apenas da sua sexualidade como de um fetiche mas a biografia que interessa em termos editoriais natildeo eacute uma de teor psicoloacutegico mas intelectual Pessoa pode ter tido medo da loucura por volta de 1907 mas o que estava a ler para a seguir escrever tantos escritos sobre o gecircnio e a loucura Eacute isto uacuteltimo que me interessa mais Claro quero saber da avoacute Dioniacutesio e da famiacutelia Pessoa que encontrou em Lisboa quando regressou em 1905 mas quais foram as suas investigaccedilotildees Quando descobriu os termos histeria e neurastenia Eacute isso que tentei responder em ediccedilotildees e estudos anteriores

JORGE Mais do que as interpretaccedilotildees biograacuteficas por si mes-mas o que resulta marcante para a ediccedilatildeo e leitura da obra eacute a importacircncia da questatildeo escrita-vida que natildeo escapou a Si-motildees jaacute em 1929 e particularmente no seu livro icocircnico dos anos cinquenta Esse problema estaacute no nuacutecleo duro da obra pessoana e especialmente na ideia do ldquodrama em genterdquo Se isto eacute percebido em chave confessional-biograacutefica psicanaliacuteti-ca ou como exploraccedilatildeo luacutedica das possibilidades da linguagem depende dos leitores Os conceitos de autobiografia confissatildeo e ficccedilatildeo satildeo objetivamente constitutivos da obra satildeo postos

16

em causa e instrumentalizados continuamente nos textos que a conformam Faz-se necessaacuterio que o leitor reflita acerca des-ses conceitos pois a categorizaccedilatildeo mesma depende da sua participaccedilatildeo Para isso eacute importante que conte com algumas informaccedilotildees biograacuteficas com diferentes graus de historicidade O trabalho de Joatildeo Gaspar Simotildees eacute de grande importacircncia e continua sendo fundamental embora possamos natildeo estar jaacute igualmente interessados nas conclusotildees de algumas das suas anaacutelises ldquopsicologistasrdquo e possamos corrigir (e tem sido assim) muitas das informaccedilotildees histoacuterico-biograacuteficas que ele achou ter fixado Contudo a compreensatildeo de aspectos do percurso vi-tal de Pessoa enquanto autor as instacircncias editoriais das suas publicaccedilotildees em vida e o desenvolvimento dos seus muacuteltiplos projetos como particularidades do seu processo criativo satildeo todos aspectos que interessaram a Simotildees e que continuam tendo grande importacircncia para uma leitura abrangente da obra As mais recentes ediccedilotildees estatildeo cada vez mais atentas a essas informaccedilotildees que contrastam a atividade editorial de Pessoa ndash enquanto esteve vivo ndash e o seu legadoarquivo Por outro lado as ediccedilotildees criacuteticas implicam necessariamente uma aproxima-ccedilatildeo ao processo criativo do autor a partir da sua componente material No caso de Pessoa os editores podem estar mais ou menos certos de estarem seguindo com fidelidade a ldquointenccedilatildeordquo do autor ou a pragmaacutetica materialidade do suporte documental mas sempre as suas proacuteprias convicccedilotildees e vieses criacuteticos to-mam parte no jogo interpretativo Reconhecer isso eacute importan-te natildeo haacute ediccedilatildeo sem leitura nem leitura sem interpretaccedilatildeo e pode haver diversos graus de participaccedilatildeo por parte dos edito-res nas ediccedilotildees mas eles sempre estatildeo aiacute a mediaccedilatildeo editorial natildeo eacute transparente o que natildeo quer dizer que por isso seja con-denaacutevel Como leitores e em geral como animais pensantes tendemos a achar sentido em processos causativos ou sequen-ciais por isso nos interessa por exemplo saber se um texto foi escrito antes ou depois de outro pela mesma matildeo ou por outra Entendemos nessas sequecircncias uma relaccedilatildeo que se tece entre dois ou mais elementos de maneira distinta a se a relaccedilatildeo fosse contraacuteria Uma cronologia da obra uma cronologia do desenvol-vimento dos textos embora natildeo exista para resolver de maneira irrevogaacutevel o sentido dos mesmos faz parte de aquilo que os torna para noacutes legiacuteveis e sedutores essa cronologia constitui uma visatildeo biograacutefica da obra literaacuteria como processo vital em-bora encenado nos limites e possibilidades da linguagem

IPSEITAS A famosa carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro escrita em 13 de janeiro de 1935 parece ter guiado por anos a fio parte consideraacutevel da criacutetica pessoana O que vo-cecircs pensam a respeito do uso frequente desse documento que ao lado de poemas como ldquoIstordquo e ldquoAutopsicografiardquo publicados em abril de 1933 na Presenccedila costuma servir de base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircnimos

17

JEROacuteNIMO Eacute uma carta fundamental e foi concebida como um testamento por Fernando Pessoa A meu ver natildeo serve ldquode base para a interpretaccedilatildeo do processo criativo nos heterocircni-mosrdquo mas para discutir a ldquoverdaderdquo desse processo e a relaccedilatildeo como diria Goethe entre poesia e verdade Ora cada pormenor dessa carta abre mil e uma questotildees relevantes e eacute difiacutecil assi-nalar outro texto pessoano que gere tantas e tatildeo apaixonantes questotildees linha a linha e palavra a palavra

JORGE Pessoalmente o que mais me interessa eacute ver como a correspondecircncia de Pessoa em particular as cartas a Casais Monteiro mas tambeacutem as cartas a Joatildeo Gaspar Simotildees a Ar-mando Cocircrtes-Rodrigues entre outros podem ser lidas ao lado de poemas como ldquoAutopsicografiardquo ou entatildeo ldquoTabacariardquo ou as odes de Reis e natildeo por cima deles como se fizessem parte de um niacutevel diferente do discurso da obra A relaccedilatildeo que me interessa mais nesses textos eacute de contiguidade e natildeo de so-breposiccedilatildeo Se alguma ldquoexplicaccedilatildeordquo pode ser retirada da carta a respeito dos poemas eacute por semelhanccedila por analogia uma re-laccedilatildeo de familiaridade que existe no meio daquilo que podemos chamar a ldquoescrita de Fernando Pessoardquo Acho justo que esses textos estejam na base de algumas interpretaccedilotildees ndash satildeo textos extraordinaacuterios ndash e entendo que sejam preferidos pelos leitores em contraposiccedilatildeo a outros Poreacutem como eles a obra toda na sua incontornaacutevel dimensatildeo inconclusiva eacute relevante para ler ldquoFernando Pessoardquo o homem implicado na literatura de si proacute-prio Considero suspeita a posiccedilatildeo de um criacutetico que se conven-ccedila de que por ter lido a carta a Casais Monteiro que foi batizada de maneira espuacuteria ldquocarta sobre a geacutenese dos heteroacutenimosrdquo obteve uma imagem definitiva do processo geneacutetico ali descrito e que ache que essa imagem eacute de natureza radicalmente dis-tinta da oferecida pelas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo de Aacutelvaro de Campos Acho menos interessante ainda a posiccedilatildeo de outro criacutetico que leia essa carta e pense que se trata de uma cambada de mentiras

IPSEITAS Atualmente parece correto afirmar haver pelo me-nos trecircs modalidades de pensamento em jogo nos heterocircnimos o poeacutetico o filosoacutefico e o miacutestico Vocecircs acham possiacutevel falar de um pensamento cultural poliacutetico ou pedagoacutegico em escritos como por exemplo os de Ricardo Reis e os de Antoacutenio Mora sobre o paganismo Qual bibliografia vocecircs indicariam para o estudo dessas diferentes perspectivas

JEROacuteNIMO Natildeo sei bem o que responder Nem sempre vejo um pensamento ldquomiacutesticordquo nem sempre vejo uma vertente ldquopeda-goacutegicardquo Talvez fuja parcialmente da questatildeo citando um artigo de Antonio Cardiello ldquoO devir-pagatildeo e o regresso aos deusesrdquo publicado em Nietzsche e Pessoa Ensaios (2016) ldquoTranscen-

18

dendo todas as Igrejas todos os sistemas todas as crenccedilas na aceitaccedilatildeo superior das diversas verdades em que se possa indagar a Verdade o neopagatildeo admitiria entatildeo segundo a va-riante perspectivada pelo ortoacutenimo todos os deuses na larga capacidade do seu panteatildeo O Paganismo Superior ou paga-nismo transcendental para Fernando Pessoa seria ainda uma forma de politeiacutesmo supremo jaacute que na eterna mentira de to-dos os deuses de todas as doxas e de todas as aparecircncias as vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas mais natildeo seriam do que frutos mitoloacutegicos da Verdade perspectivas do misteacuterio a haver

JORGE Acho que haveraacute quase tantas perspectivas de aproxi-maccedilatildeo agrave obra como leitores Eacute muito difiacutecil destrinccedilar os limites de interesse dos textos pessoanos Textos exclusivamente filo-soacuteficos natildeo satildeo carateriacutesticos da obra e por traacutes dos poemas de Reis ou de Caeiro soacute para dar um exemplo existem reflexotildees filosoacuteficas de grande calado que natildeo estatildeo fora do fazer poeacutetico O mesmo pode ser dito sobre os textos assinados por Pessoa sobre Portugal ou de poemas como ldquoA memoacuteria do presidente--rei Sidoacutenio Paesrdquo neles a fronteira entre o poeacutetico e o poliacutetico eacute marcadamente difusa ndash passe-se o oxiacutemoro por ser pertinente O ldquodrama em genterdquo implica uma reflexatildeo sobre relaccedilotildees de tipo pedagoacutegico mas a perspectiva eacute complementar entre por exemplo o que afirma Campos nas ldquoNotas para recordaccedilatildeo do meu mestre Caeirordquo e o que Pessoa assina na sua carta a Ca-sais Monteiro acerca do magisteacuterio de Caeiro Os textos pesso-anos tendem agrave confluecircncia embora o resultado dessa confluecircn-cia se manifeste por vezes em oposiccedilotildees Satildeo textos em certa forma pensados para resistir ao dogmatismo Sobre a noccedilatildeo de magisteacuterio na obra pessoana recomendo a leitura do mais recente livro de Antoacutenio M Feijoacute acerca de Pessoa e Teixeira de Pascoais Sobre o caso de Mora e Reis uma das maiores dificuldades para a leitura decorre de tratar-se de dois estilos de escrita que satildeo frequentemente indistinguiacuteveis inclusive para o proacuteprio Pessoa que fez que dezenas de textos oscilassem en-tre um autor e outro e em muitos casos parece ter desistido ou adiado indeterminadamente a tarefa de definir o que pertenceria a quem Recentemente comeccedilamos a conhecer melhor alguns textos Em 2013 Manuela Parreira da Silva apresentou uma vi-satildeo bastante coesa do que seriam as obras de Antoacutenio Mora numa ediccedilatildeo publicada pela Assiacuterio Em 2016 Jeroacutenimo Pizarro e eu publicamos a obra ldquocompletardquo ndash veja-se o sentido do termo numa resposta anterior ndash de Ricardo Reis da qual uma das par-tes mais relevantes satildeo as diferentes tentativas de elaborar um prefaacutecio agrave obra do mestre Caeiro tarefa que teve vigecircncia no atelier de escrita pessoano durante quase vinte anos Sem duacute-vida os textos reunidos nas ediccedilotildees mais recentes contribuem para a leitura interpretativa de alguns assuntos importantes da obra de Pessoa tais como o ldquopaganismordquo mas sobretudo essa perspectiva mais ampla ajuda a ver que natildeo haacute afirmaccedilotildees

19

completas ou cristalizadas a esse respeito Pelo contraacuterio nos textos e rascunhos faz-se reconheciacutevel um desenvolvimento da escrita que instrumentaliza os temas na configuraccedilatildeo de estilos literaacuterios e entidades autorais os temas estatildeo ao serviccedilo des-ses estilos e entidades e natildeo o contraacuterio Por outro lado haacute uma fronteira muito cinzenta entre o tipo de interesse por traacutes de fazer mapas astrais interpretar profecias e escrever centenas de versos decassiacutelabos A importacircncia que queira por exemplo ser-lhe concedida ao fato biograacutefico de Pessoa ter conhecido pessoalmente Aleister Crowley o famoso mago inglecircs venera-do por Jimmy Page e por Raul Seixas em 1930 depende de diversos fatores muitos dos quais associados agrave bagagem inter-pretativa de cada leitor e agraves suas proacuteprias crenccedilas e interesses Sobre esse assunto satildeo relevantes por exemplo os trabalhos interpretativos e historiograacuteficos de Marco Pasi e Steffen Dix Por outro lado a escrita pessoana associada agrave maccedilonaria ou o rosacrucianismo tambeacutem pode ser objeto de estudo o que natildeo necessariamente implica que se esteja a definir qual eacute o viacutenculo de Pessoa com qualquer uma dessas ordens Nesse sentido satildeo importantes e contrastantes os trabalhos de Pedro Teixeira da Mota e de Joseacute Barreto Pessoa oferece uma diversidade de assuntos de leitura notaacutevel e o leitor pode encontrar muitos temas agrave medida da sua curiosidade o difiacutecil eacute pretender que um deles possa submeter todos os outros para aleacutem de um conceito muito generoso de ldquoliteraturardquo Poderia ser pertinente poreacutem ter presente que em alguns casos os ldquotemasrdquo tratados por Pes-soa ou pelas suas criaturas lembram o suculento pedaccedilo de carne do qual falava T S Eliot ldquoThe chief use of the lsquomeaningrsquo of a poem in the ordinary sense may be () to satisfy one habit of the reader to keep his mind diverted and quiet while the poem does its work upon him much as the imaginary burglar is always provided with a nice bit of meat for the house-dogrdquo The use of poetry and the use of criticism)

IPSEITAS Jeroacutenimo no livro Pessoa existe publicado pela Aacuteti-ca em 2012 vocecirc escreveu ldquoPara aleacutem da indicaccedilatildeo de uma ordem falta-nos muitas vezes uma visatildeo de conjuntordquo Eacute possiacute-vel mensurar as consequecircncias dessa ausecircncia de uma visatildeo de conjunto nos trabalhos de criacutetica e de ediccedilatildeo

JEROacuteNIMO Entendo que sim Natildeo apenas porque jaacute existiram vaacuterios projetos de laquoObra completaraquo que falharam pela ausecircncia dessa visatildeo e porque jaacute foram escritas vaacuterias biografias com ig-noracircncia do espoacutelio pessoano mas porque para editar Pessoa embora seja laquochatoraquo (e a expressatildeo laquoque chaticeraquo eacute muito por-tuguesa) eacute preciso percorrer milhares de papeacuteis Praticamente nada estaacute em um nuacutecleo soacute e depois interessa e eacute relevante o diaacutelogo entre leitura e criaccedilatildeo entre os livros lidos e os papeacuteis escritos

20

IPSEITAS Ainda a propoacutesito do livro Pessoa existe na oca-siatildeo de seu lanccedilamento vocecirc disse ao programa Ler + Ler Me-lhor da TV RTP ldquoSinto que ultimamente estamos a falar muito a seacuterio de Fernando Pessoa que estamos a tornaacute-lo um objeto de culto () Sinto que eacute necessaacuterio descontrair mais o discurso sobre Fernando Pessoa () tem que ser mais informalrdquo Qual estrateacutegia podemos assumir na tentativa de conciliar a inves-tigaccedilatildeo criacutetica com a necessidade de um discurso mais des-contraiacutedo sobre o autor E quais implicaccedilotildees decorrem dessa tendecircncia em tornar Fernando Pessoa um ldquoobjeto de cultordquo

JEROacuteNIMO Noacutes temos que procurar a meu ver ser scholars de excelecircncia e investigadores capazes de transmitir o que des-cobrimos haacute textos ndash como a ediccedilatildeo criacutetica do Livro do Desas-sossego (2010) ndash que tem que ter um tom e uma certa dimen-satildeo e haacute outros ndash tipo Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida (2016) ndash que devem ter outro tom e outras pretensotildees Num artigo intitulado ldquoO jogo do desassossegordquo (2014) publica-do em Central de Poesia II escrevi ldquoTalvez seja o momento de ensaiarmos uma escrita menos seacuteria ou melhor com um tipo de seriedade menos solene em relaccedilatildeo a Fernando Pessoa Porquecirc Porque acredito que Pessoa preparou uma grande ar-madilha para a posteridade e que todos noacutes caiacutemos nela Creio que haacute dias em que tambeacutem noacutes temos de nos equilibrar numa soacute perna como uma iacutebis como Pessoa como quem levitardquo Uma implicaccedilatildeo delicada de tornar Pessoa um objeto de culto eacute a paralisia fica congelado no tempo embora ainda esteja por co-nhecer e numa entrevista de 1923 ele proacuteprio tenha respondi-do em jeito de conclusatildeo que ldquoNa eterna mentira de todos os deuses soacute os deuses todos satildeo verdaderdquo

Perguntas elaboradas pelos doutorandos Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza (UNB) Mariella Augusta Pereira (UNICAMP) e Rubens Joseacute da Rocha (UFSCar)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

21

Fernando Pessoa Aproximaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegicaFernando Pessoa A Dialectical and Phenomenological Approach

Palavras-chave Pessoa Nada Negaccedilatildeo Fausto Heteroniacutemia Filosofia da Literatura Poeacutetica da SensaccedilatildeoKeywords Pessoa Nothingness Negation Faust Heteronymy Philosophy of Literatu-re Poetics of Sensation

RESUMO Este estudo expotildee a estrutura filosoacutefica sistemaacuteti-ca da poesia de Fernando Pessoa Esta estrutura funda-se nos conceitos de negativo natildeo-ser e nada A experiecircncia obsessi-va do nada e a explicaccedilatildeo da sua dialeacutetica estaacute exemplificada principalmente no Fausto Uma Trageacutedia Subjetiva O negativo eacute em seguida exposto como a distacircncia entre mim e eu mes-mo que eacute a chave da dialeacutetica pessoana da subjetividade entre verdade e fingimento sensaccedilatildeo e realidade pensamento e sen-timento A heteroniacutemia eacute entatildeo explicada como esta distacircncia de si proacuteprio ie a negaccedilatildeo da identidade e ldquooutrar-serdquo Satildeo apresentadas sete teses sobre a heteroniacutemia como conceito po-eacutetico e filosoacutefico procurando mostrar-se que ela natildeo deve ser considerada uma anomalia mas antes como o estado normal da criaccedilatildeo artiacutestica uma vez que o autor e a obra satildeo criados simultaneamente A posiccedilatildeo fenomenoloacutegica de Alberto Caeiro eacute em seguida apresentada como a soluccedilatildeo para os problemas dialeacuteticos da obra de Pessoa e algumas observaccedilotildees conclusi-vas acerca dos modos da diferenccedila em Pessoa encerram esta abordagem dialeacutetica e fenomenoloacutegica agrave obra de Pessoa

ABSTRACT This paper exposes the systematic philosophical structure of Fernando Pessoarsquos poetry This structure is groun-ded on the concepts of the negative not-being and nothingness The obsessive experience of nothingness and the explanation of its dialectics is best exemplified by Pessoarsquos Faust A Sub-jective Tragedy The negative is then exposed as the ldquodistance between me and myselfrdquo which is the key to Pessoarsquos dialectics of subjectivity between truth and pretending sensation and rea-lity thought and feeling His characteristic heteronymy is explai-ned as this distance to himself ie the negation of identity and self-otherness Seven thesis about the heteronymy as a poetic and philosophical concept are then presented arguing that hete-ronymy should not be considered an anomaly but rather as the

Diogo Ferrer

Professor Associado na Universidade de Coimbra

ferrerdiogogmailcom

() Este artigo corresponde a uma conferecircncia apresentada no coloacutequio Fer-nando Pessoa (+ ou -) Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos SP em 12 de Setembro de 2013 Seraacute publicado em breve tambeacutem como capiacutetu-lo de D Ferrer Transparecircncias Linguagem e Reflexatildeo de Ciacutecero a Pessoa Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra 2018

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

22

normal state of any artistic creation Indeed the author and the work are always created at the same time The phenomenolo-gical position of the heteronym Alberto Caeiro is then presented as the solution to the dialectical problems of Pessoarsquos work and some concluding remarks on the ways of difference in Pessoa completes this phenomenological and dialectical approach to his works

1 O sistema da poesia pessoana

O valor literaacuterio da obra de Fernando Pessoa eacute insisten-temente sublinhado desde a sua descoberta ainda em vida do poeta pelo grupo de Coimbra da Presenccedila Mais especifica-mente Joseacute Reacutegio jaacute em 1927 o sauacuteda pela primeira vez em Portugal como o mestre maior da poesia portuguesa contem-poracircnea1 e Pierre Hourcade (1908-1983) publica em 1930 em Paris dois artigos quase exclusivamente dedicados a Pessoa e comeccedila a traduzi-lo para o francecircs Aleacutem do aspecto literaacute-rio contudo a obra de Pessoa envolve uma conceptualizaccedilatildeo filosoacutefica de uma riqueza surpreendente que a par do aspecto mais evidente dos temas ligados agrave reflexatildeo existencial apre-sentam dois aspectos invulgares Satildeo estes (1) o facto de que a obra pessoana apresenta uma estrutura filosoacutefica que salta agrave vista Natildeo se poderia falar de uma infra-estrutura filosoacutefica uma vez que natildeo haacute uma base conceptual anterior agrave imaginaccedilatildeo po-eacutetica ou dela isolaacutevel mas deveraacute falar-se por um lado de uma estrutura interna teoacuterica que estaacute implicada de modo estranha-mente evidente em muito da criaccedilatildeo poeacutetica e por outro da permanente acccedilatildeo reciacuteproca entre vida e obra literaacuteria Procu-rarei mostrar que a construccedilatildeo poeacutetica de Pessoa assenta num travejamento filosoacutefico clariacutessimo que embora esteja entrete-cido sem hiato com a imagem a representaccedilatildeo e a linguagem poeacuteticas e lhes confira uma clara estrutura conceptual mesmo categorial natildeo pode todavia ser jamais entendido de modo es-quemaacutetico A poesia natildeo se encontra enquadrada pela estrutura conceptual mas por assim dizer respira-a Isto faz de Pessoa para aleacutem de poeta tambeacutem filoacutesofo embora do tipo especiacutefico do poeta-filoacutesofo tipo literaacuterio onde o seu estatuto natildeo me pare-ce ser inferior agrave importacircncia da sua obra da perspectiva poeacutetica (2) Um segundo aspecto que merece ser muito especialmente notado eacute que esta intra-estrutura filosoacutefica mesmo se se tomar em termos de um pensamento filosoacutefico de cariz natildeo literaacuterio ou poeacutetico eacute invulgarmente completa organizada e deveraacute di-zer-se ateacute mesmo sistemaacutetica Potenciada ndash mas sobretudo actualizada ndash principalmente pela heteroniacutemia a diversidade integraccedilatildeo e completude da intra-estrutura conceptual aproxi-

1 Cf Robert Breacutechon Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernan-do Pessoa trad M Abreu P Tamen Ciacuterculo de Leitores Lisboa 1997 p 462

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

23

ma-se bastante uma sistematizaccedilatildeo teoacuterica2 Mas isto natildeo signi-fica absolutamente que se pudesse de algum modo substituir a criaccedilatildeo literaacuteria por uma sistematizaccedilatildeo filosoacutefica sob outra for-ma literaacuteria uma vez que a integraccedilatildeo da forma com o conteuacutedo eacute no geral e no particular das diferentes esferas ou elementos da criaccedilatildeo pessoana um factor indeclinaacutevel da sua expressatildeo Eacute que natildeo haacute traccedilo de alegoria ou de roupagem literaacuteria para conceitos filosoacuteficos ateacute porque quase tudo eacute explicitamente dito ndash como disse acima estranhamente manifesto temaacutetico e discutido ndash na poesia pessoana A integraccedilatildeo forma-conteuacutedo eacute inseparaacutevel e soacute por abstraccedilatildeo ou como diria Caeiro quando se tem um membro dormente no corpo poeacutetico se pode fazer a anaacutelise filosoacutefica a que me proponho

Joseacute Gil algum Eduardo Lourenccedilo ou com bastante me-nor amplitude Joseacute Enes jaacute expuseram os principais paracircme-tros filosoacuteficos da obra pessoana Sabemos que se trata nos seus traccedilos mais gerais de uma teoria das sensaccedilotildees3 de uma abordagem do conceito do nada ou de uma ontologia radical situada para aleacutem de toda a metafiacutesica do ente Eacute conhecido que o ldquodrama em genterdquo da heteroniacutemia dramatiza o desapa-recimento da unidade do sujeito na modernidade avanccedilada ou numa poacutes-modernidade4 talvez entatildeo jaacute a prenunciar-se como consequecircncia inevitaacutevel do modernismo

2 As figuras do natildeo-ser pessoano

No que se segue irei reorganizar resumidamente estes te-mas na obra de Pessoa complementando-os com elementos de sistematizaccedilatildeo dialeacutectica e fenomenoloacutegica e procurando tornar claros alguns dos grandes eixos das suas relaccedilotildees e in-teracccedilotildees conceptuais

Como se viu eacute possiacutevel mostrar que a obra de Pessoa irra-dia no que toca ao seu alcance filosoacutefico ontoloacutegico ou metafiacute-sico em redor de um centro absolutamente diferencial ocupado por um conceito filosoacutefico claacutessico o do natildeo-ser que podemos fazer remontar aos alvores da metafiacutesica ocidental Platatildeo pro-jeta muito para traacutes esta concepccedilatildeo ateacute Parmeacutenides de Eleia

2 O inteacuterprete mais significativo da obra pessoana da perspectiva filo-soacutefica eacute sem duacutevida hoje Joseacute Gil Embora de uma perspectiva diferente e servindo-se de uma conceptualizaccedilatildeo com outras referecircncias tambeacutem Gil depara-se na obra pessoana com uma configuraccedilatildeo sistemaacutetica sobretudo na geacutenese dos heteroacutenimos Trata-se nomeadamente de ldquouma esteacutetica que permite o nascimento de multiplicidades e a construccedilatildeo do mito do nasci-mento dessas multiplicidades poeacuteticas (heteroniacutemicas) eis a configuraccedilatildeo geral do sistema da poesia pessoana [] Tudo isto faz sistema satildeo as mes-mas distacircncias tambeacutem que separam a poeacutetica de Caeiro de cada uma das poeacuteticas dos seus disciacutepulosrdquo (Joseacute Gil Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Reloacutegio DacuteacuteAgua Lisboa 2013 pp 65-66 [itaacutelicos meus])3 Sobre a ldquoesteacutetica do sensacionismordquo cf ib p 624 V Breacutechon op cit

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

24

No diaacutelogo com o nome deste filoacutesofo lecirc-se como vimos que ldquopara que possa ser completamente o ente possui o natildeo-ente do natildeo-ser que natildeo eacuterdquo ou numa traduccedilatildeo mais simples ldquoo ser participa da natildeo-existecircncia do natildeo-ser para que possa atingir a sua perfeita existecircnciardquo5 Independentemente da traduccedilatildeo a ideia-chave eacute que mesmo o ser perfeito da metafiacutesica parmeniacute-dea necessita do natildeo-ser do natildeo-ser ldquopara que possa ser com-pletamenterdquo Poderaacute dizer-se que a anulaccedilatildeo da mediaccedilatildeo eacute necessaacuteria como condiccedilatildeo da posiccedilatildeo da identidade Esta con-cepccedilatildeo claacutessica do ser restabelecido na sua completude pela negatividade reiterada eacute sem duacutevida um dos eixos categoriais e um problema conceptual da poesia de Pessoa A dupla nega-ccedilatildeo ou negatividade absoluta e a sua inevitaacutevel reflexatildeo satildeo a condiccedilatildeo da afirmaccedilatildeo do ente que soacute eacute ldquocompletamenterdquo ou ldquoperfeitamenterdquo na sua relaccedilatildeo negativa com o natildeo-ser

Reencontra-se com frequecircncia em Pessoa a sua oposi-ccedilatildeo e diferenccedila em relaccedilatildeo ao mundo e ao outro a par de um natildeo menos significativo distanciamento em relaccedilatildeo a si mes-mo A este respeito poderaacute ler-se especialmente o ortocircnimo por exemplo

Nada conduz a nada Nada serve de ser [] Nada e o nada persiste Na estrada e no veratildeo

ou

Nada sou nada posso nada sigo [] Natildeo comprendo compreender nem sei Se hei-de ser sendo nada o que serei6

Na poesia ortocircnima a negatividade estaacute presente como centro gerador de muito da criaccedilatildeo poeacutetica que se vai traduzir no que o autor denomina por vezes de ldquointervalo dolorosordquo Mas esta reiteraccedilatildeo do nada ou da negaccedilatildeo eacute tambeacutem transversal agrave he-teroniacutemia Encontram-se traccedilos dela em Aacutelvaro de Campos na prosa do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares e em Ricardo Reis Da Ode X deste uacuteltimo eacute um outro trecho claramente exemplifi-cativo

Melhor destino que o de conhecer-se Natildeo frui quem mente frui Antes sabendo Ser nada que ignorando

5 Platatildeo Parmeacutenides 162a segundo as traduccedilotildees (alteradas) de M J Figueiredo e H N Fowler respectivamente (Platatildeo Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa 2001 e Plato IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Harvard 1977)6 PE 186 e 156 Poemas de 791927 e de 611923 respectivamente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

25

Nada dentro de nada7

A negatividade tem por caracteriacutestica dialeacutetica natildeo poder ser pensada ou para o nosso caso tatildeo-pouco vivida e dita sem se negar a si mesma Parece inevitaacutevel que a negaccedilatildeo uma vez visada como categoria se intensifique e reitere As consequecircn-cias disto vatildeo em diferentes sentidos e niacuteveis de complexidade O caso categorialmente mais simples encontra-se no Fausto or-toacutenimo

E hora a hora na minha esteacuteril alma Mais fundo o abismo entre meu ser e mim se abre e nesse () abismo natildeo haacute nada8

3 O laboratoacuterio faacuteustico e a dissoluccedilatildeo do real

O Fausto em que Pessoa trabalhou episodicamente ao longo de toda a sua vida dramatiza a negaccedilatildeo no seu estado mais puro o nuacutecleo negativo tomado simplesmente com as suas conclusotildees mais rigorosas O mesmo rigor da deduccedilatildeo das consequecircncias que parecem desprezar os aspectos mais reificados do mundo com que Pessoa se deleita nos seus tex-tos poliacuteticos e esteacuteticos encontra-se dramatizada na poesia do Fausto A consequecircncia da reiteraccedilatildeo do negativo eacute aqui expos-ta sem concessotildees Fausto no seu laboratoacuterio conceptual cria a experiecircncia mais mortal da improdutividade do negativo em estado puro e definitivo

A coerecircncia feacuterrea do laboratoacuterio de Fausto eacute claramente explicitada nas suas consequecircncias que se diferenciam prin-cipalmente em duas vertentes uma a da inteligecircncia que vai ser tomada pela questatildeo impossiacutevel da origem outra a da vida que eacute sentida num contiacutenuo ldquohorrorrdquo palavra cuja presenccedila ao longo do texto eacute quase obsessiva9 A negaccedilatildeo eacute aqui simples questatildeo pelo natildeo-ser ou ser outro daquilo que eacute partindo da compreensatildeo de que

[] tudo eacute siacutembolo e analogia O vento que passa a noite que esfria Satildeo outra coisa que a noite e o vento ndash Sombras da vida e do pensamento10

O pensamento comeccedila pelo ser do natildeo-ser como criaccedilatildeo

7 RR 178 Fernando Pessoa Fausto ed Teresa Sobral Cunha Reloacutegio DrsquoAacutegua Lisboa 2013 [reediccedilatildeo] [=F] 45 Os parecircnteses no texto satildeo da editora9 Para uma anaacutelise de aspectos essenciais da dimensatildeo afectivo-on-toloacutegica da obra pessoana v o estudo de Joseacute Gil ldquoCansaccedilo Teacutedio Desas-sossegordquo in op cit pp 93-11810 F 39

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

26

de significado ndash ldquosiacutembolo e analogiardquo ndash com a contrapartida de que a categorizaccedilatildeo seja doravante inevitavelmente uma ale-gorizaccedilatildeo O ser-outro passa a categoria central do pensamen-to e toda a criaccedilatildeo de significado tem como consequecircncia o caraacutecter ilusoacuterio do ser Dialecticamente o ser eacute ser-outro natildeo como simples ser-ao-lado de outro ser mas como todo o outro do ser a negaccedilatildeo integral do seu regime de sentido O trecho conclui naturalmente alguns versos mais abaixo retomando os elementos evidentes da sombra e da impermanecircncia sob este novo regime que satildeo os derivados primeiros da negaccedilatildeo inten-sificada

A noite fria o passar do vento Satildeo sombras de matildeos cujo gestos satildeo A ilusatildeo matildee desta ilusatildeo[]11

Na concepccedilatildeo do Fausto a alteridade torna-se uma total desigualdade do ente consigo proacuteprio tiacutepico do regime da ima-gem insubsistente

Tudo transcende tudo E eacute mais real e menos do que eacute12

Pessoa trilha um percurso categorial que estaacute perfeitamente ex-pliacutecito e que eacute reforccedilado pelos elementos naturais ndash a noite o vento ndash que longe de atenuarem o isolamento ou darem corpo a uma realidade extra-categorial mostram a facilidade com que a vertigem categorial dela se apodera Por isso pode-se falar de uma quasi-sistematicidade do pensamento pessoano que se mostra como totalmente coerente com as formas claacutessicas da dialeacutetica no pensamento ocidental (e provavelmente natildeo soacute) Neste sentido dificilmente se poderia encontrar um criador poeacute-tico com uma compreensatildeo filosoacutefica mais clara e aprofundada A experiecircncia filosoacutefica sistemaacutetica parece mesmo ndash num certo sentido e dependendo do gosto ndash no Fausto relegar para se-gundo plano a experiecircncia esteacutetica que soacute pode ser fruiacuteda por-ventura no refluxo do pensamento Aqui tudo estaacute literalmente aspirado no ldquoMaumlelstromrdquo do negativo aleacutem do ser e do natildeo-ser

[] Ah deve haver Aleacutem da vida e da morte ser natildeo ser Um inominaacutevel supertranscendente [] Deus Nojo Ceacuteu Inferno Nojo nojo13

Esta eacute

11 F 3912 F 3913 F 42

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

27

Uma noite de Tudo que eacute um Nada Um abismo de Nada que eacute um Tudo14

Jaacute nada deteacutem a vertigem e natildeo haacute muito mais a dizer ldquoO abismo eacute abismo num abismordquo15 Em conclusatildeo leia-se ainda o verso ldquoEu sou o Aparte o Excluiacutedo o Negrordquo Difiacutecil seria exigir maior rigor de pensamento

Este vertiginoso e abjecto regime laboratorial do negativo eacute a origem da questatildeo A tese eacute que toda a questatildeo eacute origina-riamente ontoloacutegica porque nasce da suspensatildeo do ser e do natildeo-ser Fichte jaacute tinha procurado mostrar que o ldquoo querdquo (ldquoWasrdquo) e o ldquoporquecircrdquo (ldquoWeilrdquo) ndash como resposta agrave questatildeo ldquopor querdquo16 ndash satildeo as categorias principais em que o absoluto aparece agrave cons-ciecircncia Fausto estaacute obsidiado pela questatildeo em geral que eacute a questatildeo sobre o que e porque satildeo o ser ou o existir

Mas que haja espaccedilo tempo que haja seres Que haja um mundo () cores sons Movimentos mudanccedilas ()Que haja qualquer coisa sim que a haja17

Daiacute somos conduzidos agrave generalizaccedilatildeo

Mais que a existecircncia Eacute um misteacuterio o existir o ser o haver Um ser uma existecircncia um existir ndash [] O que eacute existir ndash natildeo noacutes ou o mundo Mas existir em si18

Ou mais simplesmente na inevitaacutevel reduplicaccedilatildeo auto-referen-te da questatildeo

ldquoO que eacute haver haver Porque eacute que o que eacute eacute isto que eacute Como eacute que o mundo eacute mundordquo19

Esta essecircncia negativa eacute obsessiva porque auto-referente e conduz natildeo soacute ao recalcar do seu outro como tambeacutem agrave sua expressa abjeccedilatildeo e aniquilaccedilatildeo Aqui o dramatismo do absoluto natildeo-outro infecta a partir do universo inteiro a relaccedilatildeo com o corpo e o outro sujeito

Acordo ao conceber quanto eu odeio

14 F 5415 F 6016 Ver Ferrer O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Coimbra 2014 pp 174-17517 F 7418 F 10419 F 57

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

28

Mais do que esta mais que a humanidade Mas o universo todo []20

Ver-se-aacute ainda que passada esta vertigem da reiteraccedilatildeo de si a negaccedilatildeo do outro eacute outrossim a razatildeo do ver Tambeacutem aqui como lemos em Sartre ldquoa apariccedilatildeo de outro algueacutem no mundo corresponde a um [] deslizamento congelado do uni-verso inteiro que mina por baixo a centralizaccedilatildeo que eu simul-taneamente operordquo21 Dramatizado este deslizamento de ordem fenomenoloacutegica lemos no Fausto como se segue

Sinto horror Agrave significaccedilatildeo que olhos humanos Contecircm22

O olhar do outro eacute a alteridade que ameaccedila de modo in-compreensiacutevel a auto-referecircncia do eu o deslocamento violen-to para a pura auto-referecircncia do significado para um outro inte-rior que natildeo eacute o meu A origem da auto-referecircncia como vimos eacute anterior ao exerciacutecio dos sentidos e sobretudo da visatildeo e reside na estrutura conceptual dialeacutectica do negativo O para-digma e origem da auto-referecircncia eacute o negativo que permite construir os fenoacutemenos de centramento de auto-centramento a pura repeticcedilatildeo (malgreacute Gil-Deleuze) que se traduz em deslo-camentos de sentido na pergunta em geral na reduccedilatildeo do ou-tro agrave imagem e com isto no ver mas tambeacutem no fenoacutemeno da repulsa O ldquoodeio a naturezardquo exclamado na Voyage au bout de la nuit de Ceacuteline grita em toda esta construccedilatildeo Antes de mais

O misteacuterio de ver e o horror de verem-me Abisma-me23

ndash porque o olhar do outro ou jaacute o seu simples rosto segundo a tradiccedilatildeo fichteana eacute a natureza amaacutevel e livre ou seja recon-ciliada com o sujeito O olhar do outro natildeo significa e natildeo eacute assim antes de mais o outro-eu simplesmente mas o eu outro Ou seja o objeto da inquietaccedilatildeo e do oacutedio natildeo eacute em primeira linha um outro sujeito idecircntico a mim em espelhamento mas a constataccedilatildeo de que a alteridade eacute tambeacutem a naturalidade do eu sujeito Fausto sente assim a repulsa perante o eu outro

Oacute horror metafiacutesico de ti Sentido pelo instinto sentido pelo instinto

[natildeo na menteVil metafiacutesica do horror da carne

20 F5421 J-P Sartre Lacuteecirctre et le neacuteant 1984 30122 F 13723 F 150

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

29

Medo do amor24

E em consequecircncia

Ouvir um riso Amarga-me a alma ndash mas porquecirc natildeo sei Sinto como um insulto esta alegria ndash Toda a

[alegria[] Aqueles corpos Tenham filhos vejam Seus filhos afogados ante os olhos As filhas violadas a seu ver25

4 As nuacutepcias da diferenccedila

Ainda antes de abandonar esta leitura do Fausto como ex-posiccedilatildeo mais direta e revoltada das sequelas da negaccedilatildeo ab-solutamente auto-referida deveraacute observar-se que a auto-refe-recircncia como repeticcedilatildeo de si eacute tambeacutem a fonte da subjetividade reencontrada sob diferentes formas em toda a obra pessoana Jaacute encontramos o ldquohaver haverrdquo ou o ldquohaver eu sou eurdquo26 a que se poderia acrescentar a figura claacutessica da ldquoalma da almardquo ou a curiosa frase ldquoCasei com a diferenccedilardquo27 Este eacute em geral o ldquoIntervalordquo28 e ldquoIntervalo dolorosordquo referido no Livro do De-sassossego ou mais especificamente ldquointervalo entre nada e nadardquo29 A proacutepria preposiccedilatildeo ldquoentrerdquo eacute tomada no mesmo livro como objecto substantivado de uma reflexatildeo numa nota acer-ca do poema ldquoRio entre sonhosrdquo Lecirc-se aiacute que ldquoa ideia de rio eacute sugerida pela ideia que ocorre em todos os versos de uma coisa que passa entre e a ideia de entre eacute vincadiacutessimardquo30 Este ldquoentrerdquo que nos faz tambeacutem pensar numa similar substantiva-ccedilatildeo em Heidegger (ldquodas Zwischenrdquo) multiplica-se em diferentes distacircncias entre si e si mesmo entre si mesmo e a realidade entre eu e o outro e tambeacutem significativamente como se vol-taraacute a referir entre mim e ver entre o ver e a coisa ou entre o pensamento e a sensaccedilatildeo Assim tomando alguns exemplos o distanciamento comeccedila por ser em relaccedilatildeo a si mesmoldquoLonge de mim em mim existordquo31 Eacute igualmente uma distacircncia que estaacute expressa no conceito da personalidade aqui trata-se do ldquoNexo inuacutetil entre o que sou e quem sourdquo32 A alma eacute pois simples dis-

24 F 6025 F 52 5326 F 5327 PE p 188 Poema de 910192728 LD 22629 LD 22630 Cit in Richard Zenith ldquoIntroduccedilatildeordquo in LD 2631 PE 24932 PE249

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

30

tacircncia ldquoDe que eacute que a minha alma distardquo33 ou eacute a distacircncia entre mim e o agora ldquoQue haacute entre mim e o momentordquo34 Mas a questatildeo do intervalo eacute projectada pelo ortoacutenimo igualmente como tese metafiacutesica

Deus eacute um grande intervalo Mas entre quecirc e quecirc35

Este toacutepico reflete com rigor a grande questatildeo do sujeito que se descobre como ldquoauto-posiccedilatildeordquo segundo a versatildeo de Fichte para se descobrir que esta mesma auto-posiccedilatildeo que o funda e constitui abre necessariamente tambeacutem o espaccedilo para um fun-damento obscuro ainda mais vasto Este ponto cego da reflexatildeo atravessa boa parte do questionamento filosoacutefico posterior que a partir de Schelling critica o sujeito com base justamente neste fundamento impensado e obscuro o qual como resultado da diferenccedila inerente agrave sua reflexatildeo proacutepria abre-se de modo mais patente justamente perante a mais pura auto-atividade do sujei-to Toda a exposiccedilatildeo pessoana que temos vindo a seguir com base nesta abertura de um intervalo entre mim e mim (o ldquohaver eu sou eurdquo) eacute o que permite apontar por um lado para o nada e o negativo como ceacutelula categorial de base da expressatildeo pesso-ana como tambeacutem por outro para o impensado sempre aleacutem do ser Bernardo Soares diz do modo mais claro esta ligaccedilatildeo da distacircncia de si mesmo e a interrogaccedilatildeo por um fundamento aleacutem do ser e do natildeo-ser ldquoEu longe dos caminhos de mim proacute-prio cego da visatildeo da vida que amo cheguei por fim tambeacutem ao extremo vazio das coisas agrave borda imponderaacutevel do limite dos entesrdquo36 Inspiraccedilatildeo semelhante encontra-se em Aacutelvaro de Campos ldquoPerante esta uacutenica realidade terriacutevel ndash a de haver uma realidaderdquo37 E leia-se tambeacutem ainda mais uma vez no Fausto

Uma vez contemplando dum outeiro A linha da colina majestosa Que azulada e em perfis desaparecia No horizonte contemplando os campos Vi de repente como que tudo Desaparecer []

e um abismo invisiacutevel uma coisa Nem parecida com a existecircncia Ocupar natildeo o espaccedilo mas o modo Com que eu pensava o visiacutevelrdquo38

33 PE 77 Poema de 1111191434 PE 81 Poema de 310191535 PE 56 Poema de Jan-Mar 191336 LD 147

37 Fernando Pessoa Poesias de Aacutelvaro de Campos Aacutetica Lisboa 1958 [=AC] 93 38 F 44

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

31

A distacircncia de si a si pressuposta pela reflexatildeo vai estar tambeacutem na base de um outro modo de estranhamento de si ldquoFalam na nossa boca laacutebios que natildeo nos pertencemrdquo39 ndash segun-do um toacutepico de que tambeacutem se poderiam multiplicar os exem-plos A lucidez absoluta da reflexatildeo integral do eu segrega um ponto cego que se manifesta para laacute da reflexatildeo como este permanente aleacutem

A principal funccedilatildeo da negaccedilatildeo em geral e muito em parti-cular na esteacutetica de Pessoa eacute a produccedilatildeo de alteridade Como se disse ao desposar o negativo ldquoCasei-me com a diferenccedilardquo A produccedilatildeo de alteridade assume diferentes formas entre as quais o estranhamento da consciecircncia em relaccedilatildeo a si mesma Mas seria excessivo prosseguir na leitura da negatividade e das suas manifestaccedilotildees conforme expostas no seu estado mais puro no Fausto onde eacute explorado ateacute agrave exaustatildeo o seu significado como uma essecircncia totalmente centrada sobre si e redutora da alte-ridade Esta essecircncia que Pessoa apoda inuacutemeras vezes em cada paacutegina do Fausto de ldquohorrorrdquo eacute o que o impede ou pare-ce impedir biograficamente a realizaccedilatildeo pessoal impondo-lhe porventura uma ldquoconsciecircncia infelizrdquo que pela intensificaccedilatildeo do seu nuacutecleo vazio natildeo pode sair de si conforme eacute exigido para agir amar ou simplesmente existir

Mas natildeo poderiacuteamos agora prosseguir na anaacutelise nem da consciecircncia infeliz nem da accedilatildeo ou inaccedilatildeo em Pessoa ndash para o que natildeo faltaria aliaacutes material no Livro do Desassossego Nem por outro lado enunciar a questatildeo biograacutefica do alegado fracas-so existencial do poeta que pelo contraacuterio a meu ver tematiza todas as condiccedilotildees desse fracasso e cultiva-as mesmo de tal modo que a sua transformaccedilatildeo em arte e pensamento eacute o modo de o objetivar e afastar de si Houve parafraseando o poeta que ldquopassar aleacutem da dorrdquo

A dialeacutetica embora centrada no natildeo-ser e no negativo co-nhece tambeacutem uma interpretaccedilatildeo mais branda pela qual este vazio absoluto na base da loucura da auto-referecircncia negativa de Fausto assume formas diversas Se prosseguirmos no ca-minho sistemaacutetico que o desdobramento heteroniacutemico da obra de Pessoa sugere observa-se que o denominado ldquooutrar-serdquo do poeta pode com inteira naturalidade ser lido a partir do negati-vo entendido dialeticamente como alteridade ou ser-outro Se a negaccedilatildeo intensificada e reiterada em si produz a estrutura cate-gorial do Fausto a negaccedilatildeo simples estaacute na base do ser-outro da heteroniacutemia ser-outro simples ou imediato cuja reiteraccedilatildeo eacute apenas repeticcedilatildeo e diferenccedila e natildeo mais a mortal reiteraccedilatildeo de si que ameaccedila o ortoacutenimo e de que este no Fausto parece fa-zer a catarse objetivando-a de modo justamente a natildeo a trazer consigo A esta repeticcedilatildeo simples da negaccedilatildeo como outro e natildeo

39 FP 85 Poema de 2741916

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

32

mais negatividade pura corresponde agora natildeo uma intensifica-ccedilatildeo voraz mas uma multiplicaccedilatildeo Jaacute no seu devaneio infantil conforme menciona na sua Carta a Casais Monteiro sobre a geacutenese dos heteroacutenimos Pessoa criou aquele que parece ser o primeiro precursor dos heteroacutenimos o Chevalier de Pas que bem poderiacuteamos traduzir pelo Cavaleiro do Natildeo

Desta perspectiva o que Hegel na sua anaacutelise da nega-ccedilatildeo denominou a negaccedilatildeo simples traduz-se bem no outrar-se pessoano Casado com a diferenccedila o eu manteacutem-na como ne-gatividade absoluta intensificando-a mas uma vez objetivada pode tambeacutem reemergir sob a forma da multiplicaccedilatildeo do ser--outro A heteroniacutemia eacute assim uma outra face da negatividade que se manteacutem temaacutetica tanto no ortoacutenimo quanto nalguns dos heteroacutenimos

5 A faacutebrica dos heteroacutenimos

Na sua informada e notaacutevel biografia de Pessoa Robert Breacutechon apresenta uma explicaccedilatildeo sem duacutevida correta em parte da heteroniacutemia Esta ldquoeacute um meacutetodo experimental para ter pensamentos e sensaccedilotildees emoccedilotildees e crenccedilas novas capazes de nos fazer sair da personalidade cristalizada moldada pelo nosso caraacutecter a nossa educaccedilatildeo a nossa heranccedila cultural [] Levei muito tempo a compreender a profunda verdade da hete-roniacutemia Pensamos que temos opiniotildees seguras crenccedilas fun-damentadas e ateacute uma feacute que julgamos ser a uacutenica verdadeira mas haacute outros que estatildeo igualmente seguros das suas opiniotildees das suas crenccedilas da sua feacute diferentes das nossas [] Caeiro Reis e Campos satildeo posturas da consciecircncia de Pessoa diferen-tes daquela que lhe eacute mais naturalrdquo40 A questatildeo seria segundo esta descriccedilatildeo ou explicaccedilatildeo a de o autor poder pela hetero-niacutemia assumir crenccedilas ou modos de ser que natildeo os preponde-rantes na sua consciecircncia colocar-se no lugar de outro Se isto natildeo eacute incorreto passa parece-me ao lado do mais importante A heteroniacutemia eacute sem duacutevida desenvolver traccedilos diferentes e ateacute contraditoacuterios de uma personalidade de modo a poder co-locar-se no lugar de um outro Ela tem eacute certo alguma relaccedilatildeo com o aprofundamento e desenvolvimento que Pessoa faz do programa expresso sobretudo em Aacutelvaro de Campos de ldquosentir tudo de todas as maneirasrdquo Esta ultrapassagem ateacute agrave anulaccedilatildeo do ponto de vista uacutenico e do isolamento do sujeito eacute parte do processo heteroniacutemico Uma das condiccedilotildees deste processo de impersonalizaccedilatildeo estaacute sem duacutevida descrito em trechos como o que se segue do Livro do Desassossego ldquoHaacute criaturas que satildeo capazes de sofrer longas horas por natildeo lhe ser possiacutevel ser uma figura dum quadro ou dum naipe de baralho de cartas Haacute almas sobre quem pesa como uma maldiccedilatildeo o natildeo lhes ser possiacutevel

40 Breacutechon op cit 216-217

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

33

ser hoje gente da idade meacutedia Aconteceu-me deste sofrimen-to em tempo [] Poder sonhar o inconcebiacutevel visibilizando-o eacute um dos grandes triunfos que natildeo eu [sic] que sou tatildeo grande senatildeo raras vezes atinjo Sim sonhar que sou por exemplo si-multaneamente separadamente inconfusamente o homem e a mulher dum passeio que um homem e uma mulher datildeo agrave beira--riordquo41 Ou teorizando este processo de sentir multiplamente em termos gerais ldquoO mais alto grau de sonho eacute quando criado um quadro com personagens vivemos todas elas ao mesmo tempo ndash somos todas essas almas conjunta e interactivamente Eacute in-criacutevel o grau de despersonalizaccedilatildeo e encinzamento [sic] do es-piacuterito a que isso leva confesso-o [] Mas o triunfo eacute talrdquo42 Mas perante isto se a razatildeo da heteroniacutemia residisse somente aqui seria insuficiente ser somente quatro ou cinco heteroacutenimos pe-rante este programa bem mais vasto de ser todas as perspecti-vas e todas as sensaccedilotildees separada e simultaneamente

A heteroniacutemia deriva por isso de diversos factores(1) Eacute provocada em primeiro lugar pelo ao processo de

ser-outro imediato que pertence ao eu que reflete sobre si que jaacute caracterizei suficientemente acima Todo o espaccedilo da refle-xatildeo eacute tambeacutem a possibilidade de ver-se de fora como objeto identificar-se consigo aleacutem e fora de si um devir-outro

(2) Em segundo lugar obedece tambeacutem ao programa sen-sacionista de natildeo se ficar encerrado na perspectiva de um eu Eacute assim um programa iroacutenico e criacutetico de afastamento relati-vamente a todas as opiniotildees e naturalidades do caraacutecter e das convicccedilotildees Se bem se pode dizer em termos pessoanos que desconhecer eacute conhecer-se segundo o autor ldquodesconhecer--se conscienciosamente eacute o emprego activo da ironiardquo43 Neste sentido bem apreendido pelo passo supracitado de Breacutechon eacute uma postura de desenraizamento e universalismo tipicamen-te modernos que Pessoa encarna acentuando-o de modo por vezes sofiacutestico A centralizaccedilatildeo de toda a atividade subjetiva na sensaccedilatildeo provoca de modo aparentemente inevitaacutevel a perda da identidade que eacute construiacuteda no ldquoeu pensordquo da inteligecircncia Sentir integralmente conduz e consiste em sentir tudo de todas as maneiras porque sentir eacute desidentificar devir-outro ou perder o ortoacutenimo despessoalizar

(3) Em terceiro lugar talvez um dos pontos filosoficamen-te mais importantes e que natildeo estaacute de modo nenhum apreen-dido no excerto de Breacutechon a heteroniacutemia eacute um processo de objetivaccedilatildeo simples que eacute uma necessidade inerente do eu O desejo do reconhecimento pode assumir diferentes formas en-tre as quais as formas redutoras agrave identidade da consciecircncia mesmo que negativa como vimos no caso do Fausto O modo mais completo do reconhecimento eacute poreacutem o que Hegel de-

41 LD 172-17342 LD 44443 LD 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

34

nomina ldquoencontrar-se a si mesmo no seu outrordquo ou seja a de que o mundo objetivo esteja impregnado ou formado pelo eu O heteroacutenimo neste contexto eacute a projeccedilatildeo objetivada do eu que pode entatildeo romper a barreira do seu isolamento e encontrar--se como eu-outro numa obra Neste sentido a heteroniacutemia em termos hegelianos encerra uma teoria da arte ou melhor eacute a proacutepria condiccedilatildeo artiacutestica Lecirc-se assim nas Liccedilotildees de Esteacutetica de Hegel ldquoa necessidade universal e absoluta de que brota a arte [] encontra a sua origem em que o homem eacute uma consci-ecircncia pensante ou seja que torna para si o que ele eacute e o que em geral existe As coisas da natureza satildeo soacute imediatamente e uma vez mas o homem como espiacuterito duplica-se [] intui-se representa-se pensa e soacute por este ser-para-si ativo eacute espiacuteritordquo44 Esta duplicaccedilatildeo do eu no seu outro contudo eacute a verdade da falsa duplicaccedilatildeo do nada que encontraacutemos no Fausto O que espanta eacute que a heteroniacutemia como instrumento oacutebvio de au-to-objectivaccedilatildeo e reconhecimento natildeo seja a norma mas uma excepccedilatildeo nos procedimentos artiacutesticos e criativos em geral Se-ria de esperar que fosse o processo natural da criaccedilatildeo artiacutestica sendo a ortoniacutemia um caso excepcional de devir-idecircntico O po-der expressivo da heteroniacutemia deriva de que eacute a descoberta de um processo comum e forccediloso que subjaz esquecido mesmo sob a superfiacutecie da autoria

(4) Por isso em quarto lugar a heteroniacutemia eacute um instru-mento poderosiacutessimo de auto-conhecimento Soacute assim se en-tendem afirmaccedilotildees como ldquoFingir eacute descobrir-serdquo45 Porque o co-nhecimento de si eacute tambeacutem a formaccedilatildeo de si a criaccedilatildeo do autor juntamente com a obra eacute um processo evidente e natural que Pessoa se limita a tornar expliacutecito o que ainda mais se confirma pelo facto de que o proacuteprio ortoacutenimo acabaraacute por se assumir tambeacutem como mais um participante do jogo heteroniacutemico Por este jogo os diferentes traccedilos e potencialidades da personali-dade satildeo cuidadosamente representados distinguidos desen-volvidos e objetivados o que conduz a um auto-conhecimento muito mais completo do que o que eacute dado na ortoniacutemia Tam-beacutem aqui soacute surpreende que um procedimento tatildeo oacutebvio de au-to-estudo natildeo tenha sido descoberto e praticado mais cedo

(5) Mas a heteroniacutemia eacute tambeacutem teoria da criaccedilatildeo artiacutestica num outro sentido Ao representar ou expor natildeo soacute o objeto ar-tiacutestico mas juntamente e ao mesmo tempo que ele o seu autor a heteroniacutemia permite representar o proacuteprio processo da cria-ccedilatildeo artiacutestica Todo o processo de representaccedilatildeo que parte do autor estaacute normalmente juntamente com o autor omisso De modo similar agraves gravuras de Escher onde o representante ou o observador estaacute representado na representaccedilatildeo ndash com tudo o que isto tem de paradoxal porque remete sempre para um ato e

44 Hegel Werke 13 50-5145 F Pessoa Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Pre-senccedila Lisboa 1990 240

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

35

realizaccedilatildeo subjetivos por princiacutepio jamais representaacuteveis como objeto46 ndash tambeacutem em Pessoa o criador eacute criado juntamente com a criaccedilatildeo Isto que eacute normalmente do domiacutenio dos fac-tos havendo na obra apenas a representaccedilatildeo de uma parte do quadro geral do processo da criaccedilatildeo surge aqui simplesmente reproduzido integralmente O sujeito representante estaacute assim literalmente representado na representaccedilatildeo e a tese eacute que ele existe tanto mais quanto mais claramente fica representado Eacute assim patente que o essencial da representaccedilatildeo artiacutestica eacute natildeo o objeto mas o ato criativo que estaacute na base de toda a repre-sentaccedilatildeo Por isso a heteroniacutemia eacute uma reflexatildeo ou teorizaccedilatildeo da criaccedilatildeo artiacutestica e da proacutepria subjetividade

(6) Mas refira-se tambeacutem na sequecircncia do ponto anterior que esta auto-criaccedilatildeo do criador que eacute afinal um elemento cen-tral da arte realiza uma auto-referecircncia objetivada de tal modo que evita a armadilha faacuteustica da subjetividade representada como buraco negro Temos na heteroniacutemia natildeo soacute um outro eu mas tambeacutem como se viu um eu-outro eu naturalizado objetivado que permite reconciliar o sujeito com o seu mundo A importacircncia da auto-objetivaccedilatildeo natildeo eacute reproduzir-se mas per-der-se como condiccedilatildeo de reconciliaccedilatildeo

(7) E finalmente por todas estas razotildees a criaccedilatildeo hete-roniacutemia eacute um vasto estudo sobre a ligaccedilatildeo e a interaccedilatildeo entre a literatura e a vida Torna-se evidente que a consciecircncia tanto mais se preenche e enriquece quanto maior a sua capacidade de operaccedilatildeo e objetivaccedilatildeo E consequentemente encontra-se no ldquooutrar-serdquo pessoano uma demonstraccedilatildeo da capacidade for-mativa e auto-formativa da literatura e que se eacute verdade que o autor cria a obra natildeo o eacute menos que a obra forma e constitui o autor que toda a accedilatildeo ou criaccedilatildeo eacute reflexiva formando tanto o autor quanto a obra Nos termos de Pessoa ldquoToda a literatura consiste num esforccedilo para torna a vida realrdquo47 ou ldquoHaacute metaacutefo-ras que satildeo mais reais do que a gente que anda na ruardquo48 Em suma ldquosou em grande parte a mesma prosa que escrevordquo49

Com base nesta breve tematizaccedilatildeo dos aspectos iniciais do estudo da intra-estrutura categorial da obra de Pessoa po-demos avanccedilar para um esboccedilo breve do desenvolvimento con-ceptual sistemaacutetico que estes aspectos iniciais devem neste contexto receber

Em geral dada a ceacutelula germinal da negatividade os he-teroacutenimos desenvolvem-se como uma seacuterie diferencial de mo-dulaccedilotildees da alteridade com relaccedilatildeo agrave negatividade de onde satildeo originaacuterios Em Ricardo Reis encontra-se diferentemente do 46 Procurei mostrar que a representaccedilatildeo do processo de criaccedilatildeo artiacutes-tica eacute um objecto principal da criaccedilatildeo artiacutestica em Ferrer ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Conceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 (2012) pp 363-39047 LD 14048 LD 17249 Fernando Pessoa Livro do Desassossego I (ed Galhoz e Cunha Aacutetica Lisboa 1982 p 240) cit in Breacutechon op cit p 519

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

36

que vimos ser o caso no Fausto a negatividade transformada num mundo habitaacutevel a partir em primeiro lugar da experiecircncia do tempo Esta vivecircncia manteacutem-se negativa mas estaacute mantida sobre uma durabilidade tal que

[] agrave arte o mundo Cria que natildeo a mente Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela50

Os temas partem da temporalidade e brevidade da vida humana para a qual a arte eacute a gloacuteria breve de uma coroa de flores tatildeo breve quanto o pode ser o prazer e o instante O negativo estaacute transmutado numa natureza reconciliada mas dentro dos limites estritos da consciecircncia temporal em que a presenccedila da morte eacute incessante A aceitaccedilatildeo do destino e do prazer permite todavia tolerar essa presenccedila O estilo de Reis reflete a forma plenamente desenvolvida e apurada mas vin-cada fortemente como forma porquanto reteacutem a marca da natildeo naturalidade do domiacutenio subjetivo e intelectual da expressatildeo forma ainda separada do outro pela finitude e pela temporalida-de que tingem a reconciliaccedilatildeo com uma simultacircnea perda de si O vincar extremo da forma poeacutetica da linguagem faz compreen-der que a reconciliaccedilatildeo eacute tambeacutem somente formal que o seu conteuacutedo estaacute sempre ausente para laacute do tempo dos deuses ou do destino invocados

Jaacute o Engenheiro Aacutelvaro de Campos encontra em si um ou-tro efeito patente da negatividade entendida como alteridade ser-outro ou melhor o outro que eacute o mesmo porque reconstituiacute-do como outro do outro Assim recuperado o outro encontra-se como sensaccedilatildeo agrave superfiacutecie esfeacuterica da reflexatildeo do sujeito O real eacute entatildeo fenoacutemeno transmutado por um lado em sensa-ccedilotildees por outro em forccedilas como na proposta de Pessoa ldquoPara um Esteacutetica Natildeo Aristoteacutelicardquo onde o belo eacute substituiacutedo pela for-ccedila O real soacute eacute acessiacutevel como forccedila e sensaccedilatildeo Mas a par da sensaccedilatildeo o real soacute pode ser recuperado tambeacutem na contradi-ccedilatildeo da reflexatildeo ndash que eacute a marca proacutepria tambeacutem do ortoacutenimo Na poesia do engenheiro naval este aspecto eacute recorrente em passos como o seguinte

Agrave esquerda laacute para traacutes o casebre modesto [mais que modesto

A vida ali deve ser feliz soacute porque natildeo eacute [minhardquo51

Nesta universalidade das sensaccedilotildees Campos declara

50 RR 1351 AC 36

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

37

ldquoeu adoro todas as coisas e o meu coraccedilatildeo eacute um albergue aberto toda

[a noite Tenho pela vida um interesse aacutevido Que busca compreendecirc-la sentindo muito

[Amo tudo animo tudo empresto humanidade a tudo Aos homens e agraves pedras agraves almas e agraves

[maacutequinas Para aumentar com isso a minha

[personalidade

Pertenccedilo a tudo para pertencer cada vez [mais a mim proacutepriordquo52

A aceitaccedilatildeo de tudo jaacute natildeo eacute regida aqui como em Reis pela temporalidade a finitude e o amor fati mas pela capacida-de do eu de se exteriorizar ou de ser unicamente exterior de modo a se preencher pelos fenoacutemenos e pelas suas manifesta-ccedilotildees A negatividade estaacute mais para traacutes encontrada no sujeito jaacute transformada em impulso de perda da unidade subjetiva e de aceitaccedilatildeo da sensibilidade como redenccedilatildeo do pensamento que permanece dela sempre tanto idecircntico quanto separado para que dela possa ter consciecircncia Aqui o estilo tendencialmente histeacuterico especialmente na sua fase inicial das grandes Odes eacute dotado de uma violecircncia que responde agrave necessidade destrutiva do sujeito pensante e da negatividade para que se possa desa-possar na pura superfiacutecie das sensaccedilotildees e das forccedilas que delas se dirigem agrave expressatildeo

Completa a seacuterie principal da heteroniacutemia que procuraacute-mos entender como um quasi-sistema de resposta diferencial agrave negatividade o mestre de todos os outros heteroacutenimos Alber-to Caeiro53 Na descriccedilatildeo que nas ldquoNotas para a Recordaccedilatildeo

52 AC 9953 A propoacutesito tambeacutem da compreensatildeo de Caeiro leia-se Paulo Bor-ges ldquoContrariamente ao que escreve Leyla Perrone-Moiseacutes uma das mais interessantes inteacuterpretes de Pessoa a sua laquogranderaquo e laquouacutenicaraquo laquoquestatildeoraquo natildeo nos parece ser laquosempre a identidade almejada e falhadaraquo (F Pessoa Satildeo Paulo 1982 72) e antes um excesso de pressuposiccedilatildeo de identidade e de pretensatildeo agrave sua consciencializaccedilatildeo e totalizaccedilatildeo que lhe faz ressen-tir em termos fuacutenebres todo o pressentimento ou experiecircncia da sua real vacuidade e incognoscibilidade Rejeitando o iacutentimo laquonadaraquo como um ser jaacute laquotudoraquo o que o levaria a descentrar-se e perder-se encontrando-se na exuberante multiplicidade dos seres e fenoacutemenos do mundo sem carecer imaginaacute-los em si ou a partir de si redu-los a mero ponto de partida da so-lipsista reinvenccedilatildeo do mundo como teatro interno [] Isto num enredo onde sintomaticamente satildeo sistematicamente exorcizadas todas as emergecircncias da alteridade real como a vida e o amor [] Por tudo isto ndash e salvaguarde-se a precariedade de todos estes juiacutezos [] ndash a genialidade literaacuteria de Pessoa pode natildeo ser mais do que o verso de um reverso que seja um natildeo menos grandioso insucesso sapiencialrdquo (Paulo Borges Pensamento Atlacircntico Lis-boa 2002 331-332) O comentaacuterio de Paulo Borges parece aqui esquecer a funccedilatildeo sistemaacutetica de Caeiro sublinhada sempre pelo contraacuterio por Joseacute Gil Por outro lado Paulo Borges conclui com reservas eacute certo por um fra-casso sapiencial e vivencial de Pessoa num campo onde precisamente pelo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

38

do meu Mestre Caeirordquo Aacutelvaro de Campos faz do mestre tudo evoca uma clareza e retidatildeo transcendentes Caeiro permite al-canccedilar o extremo oposto de Fausto Nele a negatividade es-gotou-se em si mesma encontra-se inteiramente anulada ou auto-anulada de tal modo que o resultado eacute a sua pura e sim-ples elisatildeo Numa aproximaccedilatildeo dialeacutetica encontrariacuteamos aqui a mediaccedilatildeo perfeita Caeiro eacute como que o milagre da mediaccedilatildeo integralmente realizada o retorno absoluto ao imediato54 onde jaacute o modo da expressatildeo se opotildee contraditoriamente ao de Reis Ao maacuteximo artificialismo que era o traccedilo da essecircncia negativa como forma acentuando a evanescecircncia do conteuacutedo opotildee-se a total naturalidade do discurso caeiriano absolutamente claro e direto formalmente neutro nem prosa nem poesia A lingua-gem encontra aqui a plena naturalidade porventura como o seu paiacutes natal

A contradiccedilatildeo criacutetica e moderna que constitui a subjetivi-dade finita entre pensamento e sensaccedilatildeo estaacute agora definitiva-mente conciliada numa unidade de forma e conteuacutedo que natildeo eacute a da vazia identidade do sujeito O eu-outro reconciliador da na-tureza e do espiacuterito estaacute encontrado na mediaccedilatildeo auto-anulada do negativo Em termos dialeacuteticos poderia dizer-se que jaacute natildeo temos a fuacuteria destrutiva e anuladora da pura essecircncia negativa mas tatildeo-pouco a mera positividade imediata e preacute-reflexiva do ser Na verdade Caeiro soacute pode resultar do processo de atra-vessar a contradiccedilatildeo e o negativo e passar aleacutem ateacute ao seu oposto que sem o esquecer tem-nos (o negativo e o positivo) em si reconciliados

6 Conclusatildeo os modos da diferenccedila em Pessoa

Uma vez que como se viu Pessoa se casou com a dife-renccedila para prosseguir seria preciso analisar os modos que a diferenccedila assume no seu pensamento Nessa anaacutelise que por exceder os limites deste estudo natildeo poderei mais do que indi-car seraacute necessaacuterio analisar o lugar das trecircs formas principais da diferenccedila filosoacutefica na obra do autor Satildeo elas nomeadamen-te a diferenccedila reflexiva ou seja a que cria o distanciamento en-tre eu e eu cuja funccedilatildeo jaacute foi desenvolvida acima em segundo lugar a diferenccedila criacutetica ou seja a diferenccedila entre o pensar e o sentir ou a emoccedilatildeo cuja importacircncia em Pessoa eacute fulcral

contraacuterio natildeo seria possiacutevel encontrar o menor traccedilo de ignoracircncia no poeta Natildeo haacute em Pessoa justamente este saber do nada do eu como recuperaccedilatildeo do mundo Descrever o percurso que conduz ateacute esta recuperaccedilatildeo do ser e percorrecirc-lo talvez incessantemente eacute sinal antes do reconhecimento sem ilu-satildeo da condiccedilatildeo finita Quanto agrave positividade sapiencial e aspectos do ecircxito vivencial do poeta v tambeacutem ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infelizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 33 (2008) pp 203-22254 Como observa Gil a proacutepria relaccedilatildeo da alma com corpo eacute transfigu-rada Joseacute Gil op cit 30-35

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

39

como vimos A este niacutevel assiste-se na sua obra agrave criaccedilatildeo de todo um imaginaacuterio poeacutetico a partir de um jogo de eclipsamento muacutetuo entre pensamento e sensaccedilatildeo entre pensar e ver Este jogo eacute constitutivo da imagem poeacutetica E por fim em terceiro lugar poderaacute mencionar-se a diferenccedila transcendental ou seja a diferenccedila entre o objeto visto e a sua visibilidade ou entre o ente e o sentido que o permite apreender Na verdade a poesia tem por funccedilatildeo pocircr entre parecircnteses a realizaccedilatildeo entificadora do real e substituiacute-la por uma reflexatildeo transcendental sobre os meios expressivos do olhar que permite ver o real Neste sen-tido toda a poesia natildeo menos que o pensamento filosoacutefico eacute eminentemente uma atividade transcendental Tambeacutem esta diferenccedila encontra o seu lugar no pensamento de Pessoa sob a forma da ausecircncia ou perda de sentido da pergunta em que a diferenccedila entre o ente e o ser eacute claramente enunciada Mas tambeacutem o voltar-se para o proacuteprio meio expressivo ou seja para a condiccedilatildeo da mostraccedilatildeo poeacutetica dos entes eacute um modo de enunciado da diferenccedila transcendental Este eacute o sentido das passagens onde o autor defende que a criaccedilatildeo literaacuteria o saber dizer eacute a verdadeira instituiccedilatildeo de sentido ldquoDizer Saber dizer Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual Tudo isto eacute quanto a vida vale []rdquo55

Mas o desenvolvimento da anaacutelise das diferenccedilas decisi-vas seria jaacute um outro capiacutetulo da investigaccedilatildeo filosoacutefica sobre Pessoa

55 LD 141

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 21-40jul-dez 2017

40

BIBLIOGRAFIA

BORGES Paulo Pensamento Atlacircntico Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 2002

BORGES Paulo ldquoFernando Pessoa e a Consciecircncia Infe-lizrdquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra Hegel-Studien 33 2008

BREacuteCHON Robert Estranho Estrangeiro Uma Biografia de Fernando Pessoa trad M Abreu P Tamen Lisboa 1997

FERRER Diogo O Sistema da Incompletude A Doutrina da Ciecircncia de Fichte nas versotildees de 1794 a 1804 Imprensa da Universidade de Coimbra 2014

FERRER Diogo ldquoHegel ndash Escher ndash Borges Figuras e Con-ceitos da Reflexatildeordquo in Revista Filosoacutefica de Coimbra 42 2012

GIL Joseacute Cansaccedilo Teacutedio Desassossego Lisboa Reloacute-gio drsquoaacutegua 2013

HEGEL Friedrich Gesammelte Werke 13 Hamburg Felix Meiner 2000

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

PLATAtildeO Parmeacutenides trad M J Figueiredo Lisboa Ins-tituto Piaget 2001

PLATO IV Cratylus Parmenides Greater Hippias Lesser Hippias trad H N Fowler Londres Harvard 1977

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Presenccedila 1990

PESSOA Fernando Livro do Desassossego I ed Galhoz e Cunha Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Poesias de Aacutelvaro de Campos Lis-boa Aacutetica 1958

PESSOA Fernando Fausto ed Teresa Sobral Cunha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

41

Caeiro uma vacina contra a estupidez dos inteligentesCaeiro a vaccine against the stupidity of intelligent people

Palavras-chave poesia filosofia sensaccedilatildeo Fernando Pessoa Alberto CaeiroKeywords Poetry philosophy sensation Fernando Pessoa Alberto Caeiro

ldquoO homem natildeo pode permanecer consciente por muito tempo agraves vezes tem de se refugiar na inconsciecircncia pois nela vive sua raizrdquo

Thomas Mann Carlota em Weimar

RESUMO Mais que um heterocircnimo Alberto Caeiro eacute reconhe-cido como um Mestre por Fernando Pessoa e pelos outros he-terocircnimos do universo deste poeta portuguecircs As experiecircncias nascidas de sua singular entrega agraves sensaccedilotildees nos conduz tanto a reflexotildees criacuteticas de pertinecircncia filosoacutefica sobre os do-miacutenios e os limites do pensamento como a uma nova forma de experienciar o mundo Aleacutem de acompanhar tal movimento e explorar os mecanismos da ldquoloacutegicardquo caeiriana considerando o caminho percorrido por Caeiro e o relato de seus disciacutepulos (Aacutel-varo de Campos Ricardo Reis Antonio Mora e Pessoa) esse ensaio buscaraacute tambeacutem refletir sobre a posiccedilatildeo ndash a de Mestre ndash ocupada por ele no universo pessoano

ABSTRACT More than a heteronym Alberto Caeiro is consi-dered a Master by Fernando Pessoa and the other heteronyms of the universe of this Portuguese poet The experiences that come from his unique dedication to sensations lead us to critical reflections of philosophical importance about the domains and limits of thought as well as to a new form of experiencing the world This essay not only tracks this movement and explores the Caeirian ldquologicrdquo considering the path taken by Caeiro and the reports from his disciples (Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antonio Mora and Pessoa) but also reflects on the position ndash that of a Master ndash that he occupies in the Pessoan universe

I

A pertinecircncia filosoacutefica da obra de Fernando Pessoa eacute tal que constantemente seus leitores mais afeitos ao cotidiano des-

Gisele Batista Candido

Doutora em Filosofia - Uni-versidade de Satildeo Paulo E-mail giselebcgmxnet

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

42

se universo encontram em seus escritos ecos e ateacute mesmo re-ferecircncias que os remetem a diversos autores da filosofia O proacute-prio poeta portuguecircs reconheceu que ldquoera um poeta inspirado pela filosofiardquo (PESSOA Escritos autobiograacuteficos p 19) Com efeito aleacutem de seu espoacutelio contar com inuacutemeros escritos criacuteti-cos sobre diferentes filoacutesofos sua poesia tambeacutem apresenta de certa forma teor filosoacutefico Entretanto o envolvimento entre poesia e filosofia na obra pessoana natildeo se configura como uma relaccedilatildeo oacutebvia como se sua poesia fosse apenas um pretexto para o desenvolvimento de palpitaccedilotildees filosoacuteficas ou mesmo uma simples tentativa de poetizar experiecircncias alheias Embora o poeta reconheccedila a influecircncia da filosofia ele imediatamente reitera que ldquonatildeo [eacute] um filoacutesofo com faculdades poeacuteticasrdquo (PES-SOA Escritos autobiograacuteficos p 19)

Nesse horizonte a poesia de Alberto Caeiro revela natildeo apenas inspiraccedilatildeo filosoacutefica mas sobretudo uma problemati-zaccedilatildeo do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico que seraacute enfaticamente questionado em algumas de suas perquiriccedilotildees mais proacuteprias a saber a orientaccedilatildeo do pensamento e a primazia atribuiacuteda ao conhecimento

Como veremos adiante natildeo podemos negar que em mui-tos momentos essa criacutetica caeiriana pode nos lembrar a filosofia de Nietzsche que por exemplo em suas Consideraccedilotildees Ex-temporacircneas enfatiza o prejuiacutezo envolvido na acumulaccedilatildeo de conhecimento num certo sentido histoacuterico

Pois noacutes modernos natildeo temos absolutamente nada que provenha de noacutes mesmos somente na medida em que nos entulhamos e apinha-mos com eacutepocas haacutebitos artes filosofias re-ligiotildees conhecimentos alheios tornamo-nos dignos de consideraccedilatildeo a saber enciclopeacute-dias ambulantes (NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva p 34)

Tal criacutetica em Caeiro no entanto constitui apenas uma etapa da experiecircncia proposta por sua poesia como uma opor-tunidade para desintoxicaccedilatildeo do acuacutemulo civilizatoacuterio Desse momento decorreraacute por exemplo uma percepccedilatildeo mais nua da natureza que bem poderia ser comparaacutevel agraves reflexotildees de Mer-leau-Ponty sobre Ceacutezanne

Percebemos coisas entendemo-nos sobre elas estamos enraizados nelas e eacute sobre essa base de ldquonaturezardquo que construiacutemos ci-ecircncias Foi esse mundo primordial que Ceacutezan-ne quis pintar e por isso seus quadros datildeo a impressatildeo da natureza em sua origem en-quanto as fotografias das mesmas paisagens

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

43

sugerem os trabalhos dos homens suas co-modidades sua presenccedila iminente (hellip) Vive-mos em um meio de objetos construiacutedos pe-los homens entre utensiacutelios em casas ruas cidades e na maior parte do tempo natildeo os vemos senatildeo atraveacutes das accedilotildees humanas das quais eles podem ser os pontos de aplicaccedilatildeo Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e eacute inabalaacutevel A pintura de Ceacutezanne suspende esses haacutebitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual o ho-mem se instala (MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito p 128 131)

Apesar dessas e de tantas outras possiacuteveis convergecircn-cias o caminho aberto e percorrido por Caeiro como veremos eacute peculiar em suas transformaccedilotildees e originalmente conciliatoacuterio em sua potencial plenitude experiecircncias inseparaacuteveis de sua iacutempar existecircncia poeacutetica

II

Sobre o processo de gecircnese de Alberto Caeiro lemos em uma carta de Pessoa destinada a Casais Monteiro

Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Saacute-Carneiro mdash de inventar um poeta bucoacuteli-co de espeacutecie complicada e apresentar-lho jaacute me natildeo lembro como em qualquer espeacute-cie de realidade Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui Num dia em que finalmente desistira mdash foi em 8 de Marccedilo de 1914 mdash acerquei-me de uma coacutemoda alta e tomando um papel comecei a escrever de peacute como escrevo sempre que posso E escrevi trinta e tantos poemas a fio numa espeacutecie de ecircxtase cuja natureza natildeo conseguirei definir Foi o dia triunfal da minha vida e nunca pode-rei ter outro assim Abri com um tiacutetulo O Guar-dador de Rebanhos E o que se seguiu foi o aparecimento de algueacutem em mim a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro Descul-pe-me o absurdo da frase aparecera em mim o meu mestre Foi essa a sensaccedilatildeo imediata que tive E tanto assim que escritos que foram esses trinta e tantos poemas imediatamente peguei noutro papel e escrevi a fio tambeacutem os seis poemas que constituem a Chuva Obliacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

44

qua de Fernando Pessoa Imediatamente e totalmente Foi o regresso de Fernando Pes-soa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele soacute Ou melhor foi a reacccedilatildeo de Fernando Pessoa contra a sua inexistecircncia como Alberto Caeiro (PESSOA Alguma Prosa p 52)

Embora essa versatildeo sobre a criaccedilatildeo do ldquomestrerdquo seja em certa medida colocada em questatildeo por estudos dos manus-critos da obra pessoana1 nem por isso torna-se menos perti-nente consideraacute-la Cientes tambeacutem do apreccedilo de Pessoa pela criaccedilatildeo de mitos a escolha por tal versatildeo e a necessidade de expressaacute-la natildeo parece ser gratuita ela compotildee a histoacuteria de Caeiro (de outros heterocircnimos e do proacuteprio ortocircnimo) e pode contribuir para iluminar aspectos de sua natureza Encontramos nos escritos de Rudolf Lind observaccedilotildees que tambeacutem corrobo-ram com essa abordagem

Natildeo haacute pois na carta uma uacutenica referecircncia aos programas esteacutetico-literaacuterios que original-mente tal como no-lo mostra o espoacutelio apa-drinharam o nascimento dos heteroacutenimos Natildeo nos repugnaria concluir que o poeta manhoso se decidira em 1935 a cultivar consciente-mente a sua proacutepria lenda apresentando-se aos amigos mais jovens como o pai involuntaacute-rio de trecircs personagens poeacuteticas e ocultando propositadamente todas as consideraccedilotildees de ordem teoacuterica e programaacutetica que haviam precedido o nascimento delas (LIND Estudos sobre Fernando Pessoa p 100)

Sem cair no meacuterito de determinar se foi consciente ou natildeo a escolha pessoana por salientar que a primeira tentativa de criaccedilatildeo do mestre heterocircnimo nasceu de uma espeacutecie de brin-cadeira ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo chama-nos aten-ccedilatildeo a sintonia dessa circunstacircncia ndash o jogar remete tambeacutem agrave ingenuidade da infacircncia momento privilegiado para se envolver pela criatividade luacutedica ndash com o caraacuteter tambeacutem luacutedico ingecircnuo e porque natildeo infantil de Alberto Caeiro que insiste em com-parar seu modo de sentir ao de uma crianccedila e diz ldquoNunca fui senatildeo uma crianccedila que brincavardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 94)

1 Conforme Richard Zenith a verdadeira ordem cronoloacutegica da obra caeiriana eacute distinta da ordem estabelecida por Pessoa Assim como o tal dia triunfal em que o poeta portuguecircs diz ter escrito trinta e tantos poemas a fio natildeo existiu da maneira como foi narrada por ele A escrita desses poemas envolveu uma extensatildeo de tempo bem maior ldquoHouve se natildeo um dia um mecircs triunfal ndash marccedilo de 1914 ndash confirmado pelos dados dos manuscritosrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 221)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

45

Configurando sua recusa em crer num Deus abstrato ou carnalmente ausente o poeta ingecircnuo opta inclusive por en-carnar o seu Cristo em uma crianccedila brincalhona e afirma que esse Cristo-crianccedila ldquoA mim ensinou-me tudo Ensinou-me a olhar para as coisasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 29) Longe de qualquer idealizaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo esse deus-crianccedila-encarnado mostra-se absolutamente huma-no e particular em suas atitudes que satildeo enfaticamente infantis

Num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer agrave terra Veio pela encosta de um mon-te Tornando outra vez menino A correr e a rolar pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de lon-ge () Eacute uma crianccedila bonita de riso natural Limpa o nariz ao braccedilo direito Chapinha nas poccedilas de aacutegua Colhe as flores e gosta delas e esquece-as Atira pedras aos burros Rou-ba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos catildees E porque sabe que elas natildeo gostam E que toda gente acha graccedila Cor-re atraacutes das raparigas Que vatildeo em ranchos pelas estradas Com as bilhas agraves cabeccedilas E levanta-lhes as saias (PESSOA Poesia Com-pleta de Alberto Caeiro p 28)

Ainda que em sonho a existecircncia desse deus eacute necessa-riamente vivenciada por Caeiro e mais a relaccedilatildeo direta entre o deus e o poeta eacute estabelecida de forma luacutedica atraveacutes de uma brincadeira ldquoAo anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No de-grau da porta de casa Graves como conveacutem a um deus e a um poetardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 31)

A ingenuidade do olhar infantil livre dos viacutecios do haacutebito e do conhecimento se achega ao mundo de forma aberta sem determinaacute-lo previamente Assim ele eacute capaz de se surpreen-der uma vez que tudo se mostra como novidade diante dessa perspectiva pueril O pasmo advindo de tal olhar seraacute uma das principais caracteriacutesticas cultivadas por Caeiro sobretudo quan-do ele quer explicitar sua forma de sentir o mundo ldquoComo uma crianccedila antes de a ensinarem a ser grande Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvirdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p146) Ademais sua ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p49) ndash meacutetodo absolutamente necessaacuterio para se despir de todas as interferecircn-cias culturais e intelectuais ndash natildeo eacute nada mais que uma forma deliberada de retomar esse contato ingecircnuo e primordial com o mundo Caeiro defende que o seu modo de sentir em certa medida eacute como o de uma crianccedila que acabara de nascer ldquoSei

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

46

ter os pasmo comigo Que tem uma crianccedila se ao nascer Re-parasse que nasceu deverasrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 19)

Sabemos que a noccedilatildeo de infacircncia ocupa um lugar privile-giado no universo de Pessoa Natildeo eacute de se estranhar portanto que o seu mestre ateacute nas circunstacircncias de sua gecircnese seja aquele que tem a relaccedilatildeo mais iacutentima com ela2

O projeto de ldquofazer uma partida ao Saacute Carneirordquo pode ter sido malogrado mas talvez natildeo seja exagero dizer que desse lapso nasceu uma nova partida um jogo entre Pessoa e Caeiro O surgimento deste uacuteltimo natildeo estaacute condicionado a qualquer vontade deliberada O poeta portuguecircs escreve que quando pretendia criar Caeiro apesar de todo o seu esforccedilo este natildeo surgia agrave revelia de sua vontade e como que brincando com sua autonomia o mestre heterocircnimo soacute veio ao mundo quando ele finalmente desistiu de criaacute-lo assumindo ainda personalidade e vida proacuteprias sensivelmente distintas do originalmente planeja-do por seu por assim dizer criador Nesse circuito o jogo entre criador e criatura torna-se ambiacuteguo Para Joseacute Augusto Seabra ldquoas criaturas satildeo aqui criadas por e para a criaccedilatildeordquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 90) Com efeito a pre-senccedila de Caeiro surge imperiosamente e arrebata de tal forma o seu criador que este confessa sentir-se apenas como meio e natildeo senhor dessa criaccedilatildeo Aleacutem de ser completamente tomado por essa presenccedila sem ser capaz de suspendecirc-la manipulaacute-la ou direcionaacute-la Pessoa eacute como que controlado por ela tanto que sente uma espeacutecie de apagamento de sua proacutepria perso-nalidade e a sujeiccedilatildeo de sua autonomia a uma potecircncia maior que em contrapartida o obriga a escrever ndash como ele mesmo o poeta ortocircnimo ndash para que seja possiacutevel o retorno a si

Em Poetas do Atlacircntico a propoacutesito de um possiacutevel para-lelismo entre Pessoa e Wallace Stevens Irene Ramalho Santos escreve sobre a relevacircncia e o caraacuteter da experiecircncia de des-personalizaccedilatildeo dramaacutetica vivida por Pessoa diante da presenccedila de Caeiro

Ambos os textos [a carta a Casais Monteiro sobre a gecircnese da heteroniacutemia de Pessoa e Notes Toward a Supreme Ficiton de Stevens] satildeo representaccedilotildees do modo como um poeta entende sua proacutepria identidade (ou ficccedilatildeo de identidade) enquanto criador original Ambos necessitam da dramatizaccedilatildeo de um outro po-der poeacutetico contra o qual a sua independecircncia

2 Aacutelvaro de Campos tambeacutem escreve sobre o teor infantil da obra de Caeiro ldquoO que realmente recebemos drsquoaquelles versos eacute a sensaccedilatildeo infantil da vida com toda a materialidade directa dos conceitos da infancia e toda espitirualidade vital da esperanccedila e do crescimento que satildeo dos inconscien-te da alma e corpo da infacircnciardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 105)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

47

criativa tem de ser afirmada e avaliada (SAN-TOS Poetas do Atlacircntico p 243)

Enfim mais do que ser arrebatado e submetido Pessoa eacute sobremaneira modificado ainda que tenha voltado a si ele confessa que depois dessa experiecircncia nunca mais foi o mes-mo pois foi transformado recriado pela presenccedila daquele que seraacute entatildeo reconhecido como seu mestre bem como de seus principais heterocircnimos

III

Alberto Caeiro natildeo foi a primeira personalidade a surgir no universo pessoano Entre os principais heterocircnimos ele tambeacutem natildeo eacute o de idade mais avanccedilada ou o de maior longe-vidade natildeo eacute o mais ldquoexperienterdquo nem o mais erudito nunca alcanccedilou publicamente qualquer destaque sua condiccedilatildeo social eacute limitada conheceu poucos lugares teve acesso a pouca ins-truccedilatildeo a estrutura de seus versos pode natildeo parecer muito so-fisticada ao olhar erudito e o teor deles agrave primeira vista eacute de uma simplicidade que beira o pueril Entretanto a despeito de tudo isso ele eacute reconhecido como o mestre por personalidades tatildeo distintas como Aacutelvaro de Campos engenheiro viajado que procurou vivenciar toda sorte de experiecircncias e extrapolaacute-las em sua poesia Ricardo Reis meacutedico ilustrado simpatizante da monarquia e do classicismo grego extremamente cioso da or-dem da vida e de seus versos Antonio Mora personalidade de iacutendole filosoacutefica que passou parte de sua vida em uma espeacutecie de hospiacutecio Fernando Pessoa natildeo somente o criador de Caei-ro mas tambeacutem demiurgo de todo um universo Em vista de todos os pormenores mencionados haacute pouco ndash detalhes que se natildeo fosse pela negativa das condiccedilotildees poderiam justificar a posiccedilatildeo central desse heterocircnimo ndash eacute difiacutecil natildeo se ver envolvido pela questatildeo o que faz de Caeiro o mestre

Em um dos textos de Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro ao refletir sobre as metamorfoses que a influecircn-cia caeiriana operou em Ricardo Reis em Fernando Pessoa em Antocircnio Mora e em si mesmo Aacutelvaro de Campos faz refe-recircncia a uma ldquoreacccedilatildeo agrave Grande Vaccinardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103) Segundo Campos a obra de seu mestre forneceu a Ricardo Reis a sensibilidade que lhe faltava para sua transformaccedilatildeo de um pagatildeo latente em um pagatildeo de fato Foi tambeacutem depois de ler O Guardador de Rebanhos que Reis passou a escrever poemas e ldquoa saber que era organica-mente poetardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Nas palavras do proacuteprio Ricardo Reis

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

48

Quando pela primeira vez estando entatildeo em Portugal ouvir ler O Guardador de Rebanhos tive a maior e a mais perfeita sensaccedilatildeo da mi-nha vida Rolou-se-me de sobre o coraccedilatildeo de repente todo o peso da nossa civilizaccedilatildeo posticcedila todo o peso do cristianismo ativo cuja sombra jaz sobre a nossa alma Respirei outra vez a grandeza a forccedila e a singela perfeiccedilatildeo das grandes emoccedilotildees primitivas que vinha da natureza sem datas das almas (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 65)

Antonio Mora vivia atraacutes de uma verdade sobre a qual pu-desse desdobrar suas especulaccedilotildees filosoacuteficas ldquopassava a vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido () Encontrou Caeiro e encontrou a verdaderdquo (PES-SOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Mora era como um corpo sem alma ateacute que a influecircncia de Caeiro lhe deu uma alma uma motivaccedilatildeo central desde entatildeo ele se dedicou a for-malizar isto eacute construir um sistema filosoacutefico a partir das expe-riecircncias contempladas nas palavras de seu mestre A influecircncia sobre Aacutelvaro de Campos eacute tatildeo intensa que este confessa que antes de conhecer Caeiro natildeo passava de ldquouma machina ner-vosa de natildeo fazer coisa nenhumardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Soacute depois de conhececirc-lo ele passou a ser ele mesmo ldquoE de ahi em deante por mal ou por bem tenho sido eurdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Quando considera a reaccedilatildeo de Pessoa ao seu mestre Campos pare-ce estar sensiacutevel agrave pulverizaccedilatildeo caracteriacutestica da subjetividade pessoana ldquoMais curioso eacute o caso de Fernando Pessoa que natildeo existe propriamente fallandordquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102) Conforme o poeta-engenheiro Pessoa soacute conseguiu alcanccedilar a proacutepria individualidade atraveacutes dos poe-mas escritos em reaccedilatildeo ao surgimento de Caeiro3 ldquoNum mo-mento num uacutenico momento conseguiu ter sua individualidade ndash a que natildeo tivera antes nem poderaacute tornar a ter porque a natildeo temrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 102)

De acordo com a analogia de Campos como uma ldquoGrande Vaccinardquo Caeiro provoca reaccedilotildees transformaccedilotildees na existecircn-cia daqueles que se mostram suscetiacuteveis agrave sua influecircncia Mas qual seria o princiacutepio dessa ldquoGrande Vaccinardquo Aacutelvaro de Cam-pos eacute direto e decisivo ao falar sobre o seu teor trata-se de uma ldquovacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 103)

A simplicidade de Caeiro eacute elementar ldquoEle Caeiro natildeo 3 Considerando as palavras de Aacutelvaro de Campos e o relato pesso-ano sobre o episoacutedio da gecircnese de Caeiro podemos depreender que ao anular tatildeo enfaticamente a subjetividade de Pessoa o surgimento de Caeiro mostrou de forma exemplar o que realmente compunha a individualidade do poeta portuguecircs a dispersatildeo a anulaccedilatildeo do eu em prol do outro Condiccedilatildeo nevraacutelgica para a criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da pluralidade heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

49

sabe porque vive mas sabe que o natildeo saberdquo (BERARDINELLI A poesia de Fernando Pessoa p 46) Milecircnios de acumulaccedilatildeo cultural de desenvolvimento intelectual e tecnoloacutegico natildeo ga-rantem necessariamente que o ser humano tenha evoluiacutedo ou mesmo que a evoluccedilatildeo seja algo a almejar Questotildees essenciais e existenciais continuam sem respostas definitivas nenhum ca-minho religioso filosoacutefico ou social trouxe satisfaccedilatildeo ou conhe-cimento plenos e definitivos e a tecnologia jamais foi capaz de alterar de fato o curso da vida ou o Destino do homem Fausto Trageacutedia Subjetiva de Pessoa eacute o emblema radical de todo o esforccedilo em vatildeo do conhecimento Por mais que tenha se empe-nhado em conhecer desenvolver inovar o ser humano nunca deixou de ser aquilo que ele eacute Antes ele parece ter se esque-cido desse fato primordial Filho ou imagem e semelhanccedila de deus animal racional descendente de macacos agrupamento de aacutetomos sujeito homem humano um nome enfim tudo isso na perspectiva caeiriana eacute distraccedilatildeo enfadonha e sem sentido Nenhuma dessas compreensotildees foi capaz de dizer o que de fato somos ou fazer de noacutes mais ou menos do que somos ldquoEs-sas coisas compreendidas soacute com a inteligecircncia nada satildeo e nada valemrdquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 80) Entretan-to envolvido por milecircnios de acumulaccedilatildeo supeacuterflua inteligecircncia estuacutepida facilmente o ser humano se esquiva de sua condiccedilatildeo elementar ele se distrai cogita ser tudo isso se esquece de ser aquilo que ele eacute e confunde aquilo que as coisas satildeo

A recusa de Caeiro em ldquover mais nas coisas que as proacute-prias coisasrdquo (ZENITH Caeiro Triunfal p 211) aplica-se igual-mente agrave sua proacutepria condiccedilatildeo No decorrer de sua vida e obra ele procura se despir de toda acumulaccedilatildeo esquecer de tudo aquilo que lhe ensinaram se desvencilhar da noccedilatildeo de homem e se desfazer ateacute de seu proacuteprio nome para afirmar que ele natildeo eacute aquilo que fizeram dele mas sim aquilo que ele verdadeira-mente sente

Procuro despir-me do que aprendi Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-sinaram E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos Desencaixotar as minhas emo-ccedilotildees verdadeiras Desembrulhar-me e ser eu natildeo Alberto Caeiro Mas um animal humano que a natureza produziu E assim escrevo querendo sentir a Natureza nem sequer como um homem Mas como quem sente a Natu-reza e mais nada () Sou o Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-proacuteprio (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 72)

Tudo o que aprendemos pensamos conhecemos nasce

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

50

daquilo que sentimos e posteriormente depois da infacircncia de nossos sentidos tudo isso tambeacutem vem a compor e interferir em nossas sensaccedilotildees Todas as questotildees abstratas ndash sobre o sentido da existecircncia a evoluccedilatildeo do homem o misteacuterio do mundo e da vida ndash nascem dessas sensaccedilotildees corrompidas por pensamentos por isso essas questotildees natildeo tecircm respostas de-finitivas elas natildeo satildeo coisas verdadeiramente sentidas porque natildeo existem como coisas mas apenas como pensamentos abs-tratos das sensaccedilotildees ldquoUma vez mais eacute o pensamento e soacute o pensamento elemento patoloacutegico sempre a insinuar-se que eacute o responsaacutevel pela metafiacutesica do misteacuterio enquanto que para Caeiro o problema nem se chega a porrdquo (SEABRA Fernando Pessoa ou o poetodrama p 97) Caeiro ignora ou melhor ri dessas questotildees abstratas aceitando e por isso esquecendo o jugo do Destino e fruindo aquilo que a Natureza lhe oferece

A obra de Caeiro tem poreacutem e aleacutem drsquoisto um efeito criacutetico Estes versos da sensaccedilatildeo directa contraposta a sua alma aos nossos conceitos sem naturalidade agrave nossa sensa-ccedilatildeo mental artificiosa contabilizada em ga-vetas rasga-nos todos os trapos que temos por fato lava-nos a cara da chimica e o esto-mago dos pharmaceuticos ndash entra pela nossa casa adentro e mostra-nos que uma mesa de madeira eacute madeira madeira madeira e que mesa eacute uma allucinaccedilatildeo necessaacuteria de nossa vontade industrial (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 106)

A criacutetica do mestre heterocircnimo agrave racionalidade desenfre-ada agrave estupidez dos inteligentes agraves abstraccedilotildees desnecessaacute-rias natildeo corresponde simplesmente agrave negaccedilatildeo despropositada essa criacutetica faz parte de um propoacutesito maior a depuraccedilatildeo das sensaccedilotildees

Caeiro apresenta-se antes de mais nada como o poeta das sensaccedilotildees estremes ldquoA sensaccedilatildeo eacute tudo () e o pensamento eacute uma doenccedilardquo ndash diz ele segundo um texto de Pes-soa E este explica que ldquopor sensaccedilatildeo enten-de Caeiro a sensaccedilatildeo das coisas tais como satildeo sem acrescentar quaisquer elementos do pensamento pessoal convenccedilatildeo sentimen-to ou qualquer outro lugar da almardquo Haacute nele em suma uma identificaccedilatildeo das sensaccedilotildees com o seu objeto por uma reduccedilatildeo que se poderaacute dizer fenomenoloacutegica operada atraveacutes da eliminaccedilatildeo de todos os vestiacutegios da sub-jetividade (SEABRA Fernando Pessoa ou o

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

51

poetodrama p 91)Satildeo as sensaccedilotildees verdadeiras que expurgadas de toda

abstraccedilatildeo e interferecircncias nos oferecem a realidade o mundo tal como ele eacute Com o perdatildeo da redundacircncia vir a ser o que Caeiro realmente eacute ou seja se colocar em seu devido lugar envolve sentir verdadeiramente o que ele eacute4 as coisas que ele sente Ao trazer as coisas para o seu lugar proacuteprio mais do que se colocar em seu devido lugar ele traz tambeacutem ldquoao Universo ele-proacutepriordquo Sobre esse movimento da vida e obra caeiriana Ricardo Reis escreve

Ignorante da vida e quase ignorante das letras quase sem conviacutevio nem cultura fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptiacutevel e profundo como aquele que dirige atraveacutes das consciecircncias inconscientes dos homens o de-senvolvimento loacutegico das civilizaccedilotildees Foi um progresso de sensaccedilotildees ou antes de manei-ras de as ter e uma evoluccedilatildeo iacutentima de pensa-mentos derivados de tais sensaccedilotildees progres-sivas Por uma intuiccedilatildeo sobre-humana como aquelas que fundam religiotildees para sempre poreacutem a que natildeo assenta o tiacutetulo de religiosa por isso que como o sol e a chuva repugna toda a religiatildeo e toda a metafiacutesica este ho-mem descobriu o mundo sem pensar nele e criou um conceito de universo que natildeo con-teacutem meras interpretaccedilotildees (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 46)

Provavelmente Caeiro eacute a uacutenica personalidade conscien-temente plena do universo pessoano ele natildeo eacute cindido nem se sente incompleto perdido estrangeiro ou temeroso Todos os paradoxos incoerecircncias e desvios de sua obra podem ser organicamente absorvidos pela compreensatildeo central composta por ela

Caeiro em que todas absolutamente todas as contradiccedilotildees rupturas distacircncias oposiccedilotildees se encontram resolvidas e unificadas Caeiro o mestre da doutrina neopagatilde de que Antoacutenio Mora eacute o filoacutesofo realiza a aspiraccedilatildeo uacuteltima do projecto heteroniacutemco sentir tudo de todas as maneiras atingindo a realidade das coisas sem deformar (GIL O Espaccedilo Interior p 21)

4 A certa altura em um diaacutelogo entre Campos e Caeiro nos depa-ramos com a seguinte conversa ldquo- Diga-me uma cousa O Caeiro o que eacute para si mesmo - O que sou para mim mesmo repetiu Caeiro ndash Sou uma sensaccedilatildeo minhardquo (PESSOA Prosa de Aacutelvaro de Campos p 100)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

52

Talvez seja por isso tambeacutem que a duraccedilatildeo de sua vida foi tatildeo curta ele natildeo tinha necessidade de viver mais para estar re-alizado Nenhum de seus disciacutepulos consciente ou inconscien-temente assumiu integralmente as suas ideacuteias nem era essa a sua pretensatildeo ldquoCaeiro natildeo espera que os demais heterocircnimos sejam ldquonaturaisrdquo como ele mas que captando-lhe a ldquonaturali-daderdquo busquem construir a poesia que a sua visatildeo do mundo suscitardquo (MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge p 158) Mais do que sua ldquodoutrinardquo das sensaccedilotildees verdadeiras o que parece fazer dele o mestre eacute o seu exemplo de plenitude5 sua capacidade de saber reconhecer e ser exatamente aquilo que ele eacute ldquoEacute a minha descoberta de todos os dias Cada coisa eacute o que eacute E eacute difiacutecil explicar a algueacutem quanto isso me alegra E quanto isso me basta Basta existir para ser completordquo (PES-SOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 91) Sobre a maes-tria de Cairo Octavio Paz escreve

Alberto Caeiro eacute meu mestre Esta afirmaccedilatildeo eacute a pedra de toque de tocircda a sua obra E po-deria acrescentar-se que a obra de Caeiro eacute a uacutenica afirmaccedilatildeo feita por Pessoa Caeiro eacute o sol e em tocircrno decircle giram Reis Campos e o proacuteprio Pessoa Em todos ecircles haacute partiacutecu-las de negaccedilatildeo ou de irrealidade Reis acre-dita na forma Campos na sensaccedilatildeo Pessoa nos siacutembolos Caeiro natildeo acredita em nada existe () Caeiro eacute tudo o que Pessoa natildeo eacute e aleacutem disso tudo o que nenhum poeta mo-derno pode ser o homem reconciliado com a natureza Antes do cristianismo sim mas tam-beacutem antes do trabalho e da histoacuteria Caeiro nega pelo mero fato de existir natildeo somente a esteacutetica simbolista de Pessoa como tocircdas as esteacuteticas todos os valores tocircdas as ideacuteias Natildeo fica nada Fica tudo limpo todos os fan-tasmas e teias de aranha da cultura (PAZ Signos em Rotaccedilatildeo p 209)

Na obra do Argonauta das sensaccedilotildees verdadeiras trans-formar a forma de sentir implicaraacute necessariamente em trans-formar a forma de pensar O tiacutetulo do seu primeiro livro de poe-mas O Guardador de Rebanhos pode ser visto tambeacutem como

5 Sobre o efeito provocado por Caeiro Reis escreve ldquo[Caeiro] foi para mim como viraacute a ser para mais que muitos o revelador da Realidade ou como ele mesmo disse lsquoo Argonauta das sensaccedilotildees verdadeirarsquo ndash o grande Libertador que nos restituiu cantando ao nada luminoso que somos que nos arrancou agrave morte e agrave vida deixando-nos entre simples coisas que nada conhecem em seu decurso de viver nem de morrer que nos livrou da es-peranccedila e da desesperanccedila para que nos natildeo consolemos sem razatildeo nem nos entristeccedilamos sem causa convivas com ele sem pensar da realidade objectiva do Universordquo (PESSOA Ricardo Reis - Prosa p 74)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

53

uma referecircncia expliacutecita ao seu labor ldquoSou um guardador de rebanhosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) Entretanto curiosamente no verso inaugural desse livro Caeiro afirma ldquoEu nunca guardei rebanhos Mas eacute como se os guardasserdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 16) Ele nunca guardou de fato rebanhos pois seu rebanho eacute de uma ordem diferente do habitual rebanho animal ldquoO rebanho eacute os meus pensamentosrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34) escreve o poeta e eacute como se ele os guardasse pois esses pensamentos tambeacutem satildeo de uma ordem diferen-te da habitual abstraccedilatildeo intelectual e devem ser resguardados desta influecircncia Ele completa ldquoos meus pensamentos satildeo to-dos sensaccedilotildeesrdquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 34)

Os sentidos ocupam um lugar privilegiado nos poemas de Caeiro Enquanto as experiecircncias sensoriais satildeo consideradas a forma espontacircnea e direta de contato com os fenocircmenos o pensar eacute visto como uma abstraccedilatildeo destes uma deturpaccedilatildeo das sensaccedilotildees Contudo nem por isso o pensar eacute deixado de lado6 nem essa espontaneidade sensorial eacute alcanccedilada de for-ma espontacircnea ldquoO que Caeiro tenta rejeitar repetidamente natildeo eacute o pensamento in toto mas sim o uso especulativo e transcen-dental do pensamentordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 19) Suas ldquosensaccedilotildees verdadeirasrdquo natildeo satildeo meras sensaccedilotildees Alcanccedilaacute-las exige a depuraccedilatildeo dos senti-dos tarefa que envolve a reflexatildeo criacutetica sobre o conhecimento sobre a proacutepria reflexatildeo e sobre as influecircncias que podem mar-car as sensaccedilotildees a redefiniccedilatildeo da subjetividade ou melhor do eu a reconstruccedilatildeo da relaccedilatildeo desse eu com os fenocircmenos e por fim uma nova compreensatildeo do Universo Essas transfor-maccedilotildees natildeo excluem o exerciacutecio do pensar poreacutem assim como as sensaccedilotildees natildeo satildeo meras sensaccedilotildees no horizonte caeiria-no a forma de pensar natildeo corresponde agraves formas habituais do pensamento Trata-se de um pensamento capaz de suspender--se em prol das sensaccedilotildees por isso o mestre pode dizer ldquopen-so nisto natildeo como quem pensa mas como quem natildeo pensardquo (PESSOA Poesia Completa de Alberto Caeiro p 62)

Como um guardador de rebanhos nosso poeta pastor in-terveacutem no movimento de seus pensamentos para garantir que eles natildeo se percam em abstraccedilotildees seu esforccedilo consiste em conduzi-los agrave sua condiccedilatildeo primeira promover o seu enlace com o sentir ldquoSoacute atraveacutes da absorccedilatildeo do pensamento pelas

6 Ao comparar a experiecircncia Zen agrave caeiriana Leyla Perrone-Moiseacutes tambeacutem diz que o mestre heterocircnimo natildeo nega absolutamente o pensar ldquonem o Zen nem Caeiro ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial pretendem que o homem deva ser soacute instintos O proacuteprio do animal humano eacute ter essa mente-corpo capaz de um conhe-cimento que eacute ao mesmo tempo fiacutesico e ldquoespiritualrdquo O que se nega aiacute eacute o pensamento analiacutetico e o que se exalta eacute um pensamento sinteacutetico tambeacutem exclusivo do homemrdquo (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 124)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

54

sensaccedilotildees se pode realizar sua identificaccedilatildeo muacutetua exterior agraves sensaccedilotildees o pensamento eacute uma excrescecircncia se natildeo um viacuterus corruptor que chega por vezes a perturbar a sauacutede do poeta pondo em causa a sua ldquoobjetividaderdquordquo (SEABRA Fernando Pes-soa ou o poetodrama p 92) O pensamento nasce das sensa-ccedilotildees e torna-se abstrato quando se afasta ou tenta suplantaacute-las

Marcada enfaticamente pela criacutetica agraves interferecircncias das abstraccedilotildees do pensamento sobre a vida a obra de Caeiro insis-te em uma volta agraves coisas mesmas atraveacutes das sensaccedilotildees ou melhor ao cabo de todo um processo de depuraccedilatildeo dos senti-dos natildeo haveraacute diferenccedila entre o sentir e as coisas mesmas Em um movimento de pura coincidecircncia as sensaccedilotildees seratildeo as coisas mesmas Esse percurso seraacute marcado por uma espeacutecie de fenomenologia das sensaccedilotildees jogo em que o proacuteprio sentir se transforma em objeto dos sentidos Seraacute sobretudo atraveacutes desse recurso que nosso poeta poderaacute depurar o sentir dis-tinguindo-o do pensar abstrato dos conhecimentos adquiridos das interferecircncias sociais culturais e enfim do haacutebito infiltrado na experiecircncia sensiacutevel

As coisas satildeo brutalmente reais objecto puro renitentes a qualquer subjectivaccedilatildeo ou interio-rizaccedilatildeo absolutamente impenetraacuteveis porque satildeo o que parecem ser sem profundidade sem logos simples como a pura superfiacutecie De si as coisas satildeo singulares e se lhes atri-buo complexificaccedilotildees ou mistificaccedilotildees estou a transferir para elas caracteriacutesticas dos meus esquemas mentais As categorias e esquemas aprioriacutesticos da mente natildeo me datildeo a coisa mas um resultado irreal sem objectividade ou melhor se alguma objectividade tecircm eacute ape-nas enquanto ficccedilatildeo que me imponho a mim proacuteprio por me ser uacutetil e agradaacutevel na condu-ccedilatildeo da vida (COELHO A P Os fundamen-tos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa p 289)

A missatildeo envolvida na ldquoaprendizagem de desaprenderrdquo consistiraacute portanto em identificar o alcance das influecircncias e dos conhecimentos adquiridos para deixaacute-los de lado desa-prendecirc-los em prol de um contato ingecircnuo com mundo Aleacutem de realccedilar as sensaccedilotildees atraveacutes da anulaccedilatildeo de seu alcance abs-trato o pensamento nesse processo de aprender a desapren-der seraacute exercido tambeacutem em sua funccedilatildeo criacutetica auxiliando na depuraccedilatildeo do sentir

O empenho em despir as coisas para experimentaacute-las tal como elas satildeo em promover um retorno agraves coisas mesmas e em arrebanhar os pensamentos que se perderam em abstra-ccedilotildees como podemos constatar envolve tambeacutem uma criacutetica agrave

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

55

filosofia sobretudo ao movimento da metafiacutesica e agrave valorizaccedilatildeo do intelecto Contudo por mais que Caeiro critique a filosofia e se recuse a ser classificado como materialista7 ou representante de qualquer outro movimento as experiecircncias promovidas por sua poesia apresentam ldquopertinecircncia ou consequumlecircncia filosoacutefi-casrdquo (MARTINS O erro da filosofia p 250) Como uma ldquogrande vacina contra a estupidez dos intelligentesrdquo a obra de Caeiro nos leva a questionar de forma radical o papel ocupado pelo intelecto e o valor de suas aquisiccedilotildees Sem que essa criacutetica se esgote em uma simples negaccedilatildeo dessa faculdade como um pastor ele conduziraacute tal exerciacutecio do pensar ao lugar que lhe eacute proacuteprio

A simplicidade de Caeiro estaacute longe de ser equivalente agrave ingenuidade pueril Essa frase pode parecer desconcertante aos olhos de quem leu sobretudo no iniacutecio deste ensaio insis-tentes correlaccedilotildees entre o iacutempeto da crianccedila e o temperamento do poeta Natildeo obstante as inocecircncias infantil e a caeiriana se-rem comparaacuteveis em diversos aspectos um fator as diferen-cia radicalmente a saber a ingenuidade do mestre poeta natildeo eacute nada ingecircnua Muito pelo contraacuterio enquanto a simplicidade infantil deriva da condiccedilatildeo primaacuteria do desenvolvimento ainda latente da crianccedila a simplicidade de Caeiro eacute fruto de um pro-cesso sofisticado de maturaccedilatildeo que envolve a supressatildeo de todo acuacutemulo intelectual e uma espeacutecie de depuraccedilatildeo do sentir enfim o aprender a desaprender Atraveacutes das observaccedilotildees de um mestre Zen Leyla Perrone-Moiseacutes fala sobre esse percurso caeiriano

Um mestre Zen deixou a consignaccedilatildeo seguin-te ldquoAntes de me tornar esclarecido os rios eram rios e as montanhas eram montanhas Quando comecei a tornar-me esclarecido os rios jaacute natildeo eram rios e as montanhas jaacute natildeo eram montanhas Agora depois que me tornei esclarecido os rios voltaram a ser rios e as

7 Conforme Benedito Nunes ldquoAlberto Caeiro que desconhece o pro-blema da substacircncia estaacute longe do materialismo por ecircle reputado muito estuacutepido ndash ldquocoisa de padres sem religiatildeo e portanto sem desculpa nenhumardquo A mateacuteria eacute uma abstraccedilatildeo Soacute eacute real o que vemos Sensualismo Natildeo Se o naturalismo abstrai os secircres em proveito do conjunto do todo que eacute a Natu-reza o sensualismo natildeo menos abstrato tudo reduz a elementos sensiacuteveis a impressotildees-aacutetomos desfigurando as sensaccedilotildees cada uma das quais de-ferente das outras eacute nova se sabemos sentirrdquo (NUNES B O dorso do tigre p 220) Jaacute sobre uma possiacutevel identificaccedilatildeo de Caeiro com a fenomenologia husserliana Luiz de Oliveira e Silva escreve ldquoCaeiro no entanto e este facto divorcia-o completamente da fenomenologia contemporacircnea natildeo tem nenhum interesse em desvelar ldquoum significado imanente ao fenocircmeno e in-corporado nelerdquo Ainda que ele possa parecer ao observador desatento como um partidaacuterio veemente do slogan de Husserl ldquoZu den Sachen selbstrdquo na ver-dade o significado que ele reclama natildeo eacute senatildeo uma ausecircncia de significadordquo (SILVA L O materialismo idealista de Fernando Pessoa p 22)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

56

montanhas voltaram a ser montanhasrdquo Eis--nos jaacute proacuteximos das constataccedilotildees de Caei-ro (PERRONE-MOISEacuteS Fernando Pessoa Aqueacutem do eu aleacutem do outro p 118)

A trajetoacuteria da simplicidade caeiriana natildeo apenas estaacute mui-to aleacutem da compreensatildeo imatura de uma crianccedila como ultra-passa tambeacutem a compreensatildeo do homem civilizado8 que ainda se encontra ancorado em camadas de conhecimentos deriva-dos de experiecircncias indiretas

8 Joseacute Gil tambeacutem escreve sobre a maturidade caeiriana ldquoA obra de Caeiro encontra-se como o olhar do primeiro homem mas apoacutes a construccedilatildeo e a destruiccedilatildeo das civilizaccedilotildees que se sucederam na Europardquo (GIL Diferen-ccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pessoa p 17)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

57

BIBLIOGRAFIA

Escritos de Fernando Pessoa

__ Alguma Prosa 5ordf ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990

__ Fausto ndash Trageacutedia Subjetiva Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991

__ F Pessoa ndash Escritos autobiograacuteficos automaacuteticos e de reflexatildeo pessoal Satildeo Paulo A Girafa 2006

__ Obras de Antoacutenio Mora vol VI Ediccedilatildeo criacutetica por Luiacutes Filipe Texeira Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2002

__ Paacuteginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Tex-tos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1966

__ Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lisboa Estampa 1990

__ Poemas Completos de Alberto Caeiro Lisboa Presen-ccedila 1994

__ Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2005

__ Poesias Fernando Pessoa Lisboa Aacutetica 1995

__ Poemas de Ricardo Reis Ediccedilatildeo Criacutetica de Luiz Fagun-des Duarte Lisboa Imprensa Nacional - Casa da Moeda 1994

__ Prosa de Aacutelvaro de Campos Lisboa Aacutetica 2012

__ Ricardo Reis ndash Poesia Completa Satildeo Paulo Compa-nhia das Letras 2000

__ Ricardo Reis Prosa Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

__ Textos filosoacuteficos 2 vols Textos estabelecidos e prefa-ciados por Antocircnio de Pina Coelho Lisboa Nova Aacutetica 2006

__ Textos Filosoacuteficos Vol II Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio de Pina Coelho Lisboa Aacutetica 1968

Escritos sobre Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

58

BERARDINELLI C HUumlHNE L PEGORARO O Fernan-do Pessoa e Martin Heidegger ndash O Poetar Pensante Rio de Janeiro UAPEcirc 1994

COELHO A Pina Os fundamentos filosoacuteficos da obra de Fernando Pessoa 2 vols Lisboa Editorial Verbo 1971

GIL J Diferenccedila e negaccedilatildeo na poesia de Fernando Pes-soa Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

__ O Espaccedilo Interior Lisboa Editora Presenccedila 1994

LIND R Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 1981

MANN T Carlota em Weimar Rio de Janeiro Editora Nova Fronteira 1984

MARTINS O erro da filosofia In Poesia completa de Al-berto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

MERLEAU-PONTY O olho e o espiacuterito 1ordf ed Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina Galvatildeo Gomes Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MOISEacuteS M Fernando Pessoa o espelho e a esfinge 3ordf ed Satildeo Paulo Cultrix 2009

NUNES B O dorso do tigre Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1969

__ ldquoPoesia e filosofia na obra de Fernando Pessoardquo In 4 Revista ColoacutequioLetras Ensaio nordm 20 Jul 1974 p 22-34

NIETZSCHE F Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2003

PAZ O Signos em Rotaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1976

PERRONE-MOISEacuteS L Aqueacutem do eu aleacutem do outro Satildeo Paulo Martins Fontes 1982

__ ldquoPensar eacute estar doente dos olhosrdquo In Novaes Adauto (org) O olhar Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

SAacute-CARNEIRO M Correspondecircncia com Fernando Pes-soa Satildeo Paulo Cia das Letras 2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 41-59jul-dez 2017

59

__ Obras completas Cartas a F P edit Por Urbano Tava-res Rodrigues 2 volumes Lisboa 1958

SANTOS I R Poetas do Atlacircntico ndash Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano Belo Horizonte UFMG 2007

SEABRA J A Fernando Pessoa ou o poetodrama 2ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1991

__ O Coraccedilatildeo do Texto - Novos ensaios pessoanos Lis-boa Ediccedilotildees Cosmo 1996

__ O Heterotexto Pessoano Satildeo Paulo Editora Perspec-tiva 1988

SILVA L O Materialismo idealista de Fernando Pessoa Lisboa Claacutessica Editora 1985

ZENITH Caeiro Triunfal In Poesia completa de Alberto Caeiro Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

60

Fernando Pessoa Friedrich Schlegel e NovalisFernando Pessoa Friedrich Schlegel and Novalis

Palavras-chave Fernando Pessoa ndash literatura ndash romantismo alematildeoKeywords Fernando Pessoa - literature - German Romanticism

RESUMO Pretendemos neste artigo aproximar aspectos da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana da filosofia do primeiro romantismo alematildeo Fernando Pessoa foi leitor do romantismo alematildeo Em sua biblioteca particular encontramos livros que comprovam esse fato Para aleacutem deste aspecto haacute uma consonacircncia entre a filosofia do primeiro romantismo alematildeo e o espaccedilo artiacutestico e muacuteltiplo da criaccedilatildeo literaacuteria pessoana

ABSTRACT We intend in this article to approach aspects of Pessoarsquos literary creation and the philosophy of the first German Romanticism Fernando Pessoa was a reader of the German romanticism In his private library one finds books that prove this fact Furthermore there is an affinity between the philosophy of the first German Romanticism and the Pessoarsquos artistic and mul-tiple space of literary creation

ldquoO mundo eacute um indiviacuteduo potencializado assim como o indiviacuteduo natildeo passa de um

universo condensado1rdquo Maacutercio Suzuki

ldquoSecirc plural como o universordquo Fernando Pessoa

Pretendo aproximar neste artigo alguns aspectos da obra pessoana dando especial ecircnfase para o projeto do desassos-sego e ao desdobramento pessoano do pensamento filosoacutefico dos primeiros romacircnticos alematildees sobretudo dos escritos dei-xados por Friedrich Schlegel2 e Novalis

Fernando Pessoa poeta e criador de heterocircnimos foi tam-beacutem um leitor voraz a anaacutelise dos documentos do seu espoacutelio e

Financiamento da Fapesp (proc nordm 201516698-2)

1 SUZUKI 1998 p1332 Neste trabalho fazemos referecircncia ao filoacutesofo Friedrich Schlegel e em nenhum momento citamos a obra e o pensamento do seu irmatildeo August Schlegel Sendo assim a utilizaccedilatildeo do sobrenome Schlegel indica referecircncia apenas agrave obra e pensamento de Friedrich Schlegel

Claacuteudia Souza(USPFAPESP)

Doutora em Literaturas de Liacutengua Portuguesa ndash PUC--MG Poacutes-Doc em FIlosofia ndash USP

claudiasouzzzahotmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

61

da sua biblioteca particular satildeo comprovaccedilotildees deste fato Entre essas muitas leituras destacamos algumas relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho Em sua biblioteca particu-lar constam um livro de Novalis Les disciples agrave Sais et Les fragments3 curiosamente traduzido por Maeterlink4 e outro livro intitulado The literature of Germany5 onde existe um capiacutetulo sobre o romantismo alematildeo A presenccedila destes dois livros no espoacutelio pessoano nos revela que Pessoa se interessou pelo ro-mantismo alematildeo Para aleacutem destes indiacutecios encontramos re-ferecircncia a Schlegel e a Novalis em outros escritos pessoanos

Para fazer uma anaacutelise do primeiro escrito selecionado no qual haacute referecircncia ao romantismo alematildeo eacute preciso antes es-clarecer quem eacute o autor deste texto Trata-se de uma persona-lidade pessoana cujo nome eacute Antoacutenio Mora Mora aparece pela primeira vez num projeto pessoano intitulado Na casa de sauacutede de Cascaes como o proacuteprio nome indica trata-se de um livro - que natildeo chegou a ser publicado - sobre uma casa de tratamento psiquiaacutetrico Antoacutenio Mora neste projeto exerce o papel de um dos doentes como podemos constatar na seguinte passagem

O mais interessante poreacutem eacute o Antoacutenio Mora Eacute pelo menos o mais original de todos

- O mais original- Sim pessoalmente original como pessoa natildeo clinicamen-

te original Clinicamente natildeo se afasta em nada do typo de paranoico ou da marcha conhecida da paranoia Eacute verdade que natildeo eacute simplesmente um paranoico Eacute tambeacutem um hyste-rico Mas a paranoia eacute as vezes acompanhada de uma psy-chonevrose intercorrente Natildeo ha que extranhar Nada ha ahi de exquisito Natildeo eacute nisto que elle eacute original Eacute na especie do seu delirio no conteudo que estaacute todo o interesse E natildeo te digo mais nadaVeraacutesE dispotildee-te para gastares tempo com elle porque vaes ver ficas interessadiacutessimo

-Veremos- Garanto-te Natildeo seraacute preciso apontar-trsquoo Conhecel-o logo

pela toga- A toga O quecirc O typo anda de toga Mas isso tem qual-

quer cousa que vecircr com o delirio- Veraacutes meu velho veraacutesNatildeo quero te dizer nada Natildeo

quero te tirar o interesse aacute surpreza6

Mais tarde Antoacutenio Mora exerceraacute um importante papel no 3 NOVALIS Friedrich von Hardenberg Les disciples agrave Sais et Les fragments de Novalis traduits de lrsquoallemand et preacuteceacutedeacutes drsquoune introduction par Maurice Maeterlinck - Paris - Bruxelles Paul Lacomblez 19144 Pessoa foi muito influenciado pelo teatro simbolista de Maeterlink Em seus projetos do Teatro estaacutetico encontramos referecircncias ao dramatur-go belga (Cf PESSOA 2010)5 ROBERTSON J G The literature of Germany - London Williams and Norgate - New York Henry Holt and Company [19]6 [BNPE3-2719-B3-4]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

62

diaacutelogo entre Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos e Ricardo Reis Num primeiro momento Mora eacute personagem de um romance e depois se transforma em autor de textos Assim como Reis Campos e Caeiro ele faraacute parte da composiccedilatildeo deste drama em gente7 pessoano sendo influecircnciado por Alberto Caeiro como podemos constatar no seguinte trecho

O Antonio Mora era uma sombra de veleidades especu-lativas Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido Indeciso como todos os fortes natildeo tinha encontrado a verdade ou o que para elle fosse verdade o que para mim eacute o mesmo Encontrou Caeiro e encontrou a verdade O meu mestre Caeiro deu-lhe a alma que elle natildeo tinha poz dentro do Mora peripherico que elle sempre tinha sido um Mora central E o resulatdo foi a reduc-ccedilatildeo a systema e a verdade logica dos pensamentos insticti-vos de Caeiro O resultado triumphal foi esses dois tratados maravilhas de originalidade e de pensamento O Regresso dos Deuses e os Prolegomenos a uma Reformaccedilatildeo do Pa-ganismo8

Neste trecho percebemos a relaccedilatildeo entre Mora e a filosofia passava a vida a mastigar Kant Essa personalidade escreveu em prosa e formava ao lado de Pessoa Reis e Caeiro um con-traponto com Campos como podemos constatar em outro tre-cho de um projeto inacabado intitulado Notas para a recordaccedilatildeo do meu Mestre Caeiro assinado por Aacutelvaro de Campos

Maravilho-me da doutrina de Antonio Mora e discordo drsquoella com

7 Em Dezembro de 1928 no nuacutemero 17 da revista Presenccedila foi pu-blicada a taacutebua bibliograacutefica pessoana e neste texto Pessoa afirma que a elaboraccedilatildeo da obra dos seus heterocircnimos (Alberto Caeiro Ricardo Reis e Aacutelvaro de Campos) constituiu um drama em gente em vez de um drama em actos como atesta a seguinte passagem ldquoAs obras destes trecircs poetas for-mam como se disse um conjunto dramaacutetico e estaacute devidamente estudada a entreacccedilatildeo intelectual das personalidades assim como as suas proacuteprias relaccedilotildees pessoais Tudo isto constaraacute de biografias a fazer acompanhadas quando se publiquem de horoacutescopos e talvez de fotografias Eacute um drama em gente em vez de em actos (Se estas trecircs individualidades satildeo mais ou menos reais que o proacuteprio Fernando Pessoa mdash eacute problema metafiacutesico que este ausente do segredo dos Deuses e ignorando portanto o que seja reali-dade nunca poderaacute resolverrdquo) PESSOA 2000 p404 Podemos assegurar a participaccedilatildeo de Antoacutenio Mora neste drama em gente baseados na afirmaccedilatildeo do proacuteprio Pessoa no seguinte trecho que faria parte de uma obra intitulada Aspectos ldquoEsse Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador phi-losophico Os dois discipulos Ricardo Reis e Alvaro de Campos seguiram caminhos differentes tendo o primeiro intensificado e tornado orthodoxo o paganismo descoberto por Caeiro e o segundo baseando-se em outra parte da obra de Caeiro desenvolvido por um sytema inteiramente differente e baseado inteiramente nas sensaccedilotildees O continuador philosophico Antonio Moacutera (os nomes satildeo tatildeo inevitaacuteveis tatildeo impostos de foacutera como as persona-lidades) tem um ou dois livros a escrever onde provaraacute completamente a verdade metaphysica e practica do paganismo()rdquo [BNPE3-20-70 a 72]8 [BNPE3-71A-24 a 26]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

63

um gesto delicado de afastamento O mal drsquoestes homens todos ndash o do Ricardo Reis do Antonio Mora do Fernando Pessoa sim por-

que sinto outside idolatry do meu mestre Caeiro tambeacutem ndash eacute que so veem a realidade Diversamente todos a veem com clareza todos

satildeo objectivistas ateacute Fernando Pessoa Mas eu natildeo vejo a realidade ndash palpo-a Por isso elles satildeo mais ou menos declaradamente poly-

theistas e eu sou monotheista9 ()

Esse fragmento mostra como Mora participava do diaacutelogo en-tre Caeiro Campos e Reis Apesar de natildeo ter uma biografia consolidada como os demais (Caeiro Campos e Reis) cum-pria um papel importante na construccedilatildeo deste drama-em gente Num escrito sobre a questatildeo do paganismo que como vimos eacute um dos projetos do Antoacutenio Mora ele comenta sobre o roman-tismo alematildeo

Com o romantismo alematildeo propriamente dito o dos Schlegel de Tieck e de Novalis entra a literatura germacircnica uma decadecircncia

referindo-nos por comparaccedilatildeo agrave precedente literatura de Schiller e de Goethe se bem que o primeiro pecasse (houvesse pecado) na

sua utilizaccedilatildeo do que admirava no paganismo10

Neste texto Mora discorre sobre os efeitos do cristianismo e do paganismo no progresso da civilizaccedilatildeo A referecircncia ao ro-mantismo alematildeo eacute importante porque revela os efeitos da per-sona critica pessoana em sua produccedilatildeo literaacuteria Outro aspecto relevante que aproxima Pessoa dos primeiros romanticos eacute a anaacutelise que ambos fazem da obra de Goethe Reflexotildees sobre a obra de Goethe estatildeo presentes em vaacuterios fragmentos do es-poacutelio assim como em diversos fragmentos de Schlegel e Nova-lis A criacutetica de Mora ao romantismo alematildeo parece ter relaccedilatildeo com uma subjetividade excessiva presente no romantismo de acordo com essa personalidade pessoana Essa subjetividade que seria responsaacutevel pela decadecircncia da literatura germacircni-ca Mora como defensor da construccedilatildeo de um novo paganismo preza pela objetividade rejeitando uma interiorizaccedilatildeo excessiva do indiviacuteduo que consequentemente afastaria o mesmo da ex-periecircncia pagatilde

Em outro texto intitulado O Provicianismo Portuguecircs de 1928 eacute Pessoa quem faz referecircncia ao romantismo alematildeo citando uma frase de Novalis

Para o provincianismo haacute soacute uma terapecircutica eacute o saber que ele existe O provincianismo vive da inconsciecircncia de nos supormos civilizados quando natildeo o somos de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades que o natildeo somos O princiacutepio da cura estaacute na consciecircncia da doenccedila o da ver-

9 [BNPE3-71ordf-27]10 [BNPE3-121-71]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

64

dade no conhecimento do erro Quando um doido sabe que estaacute doido jaacute natildeo eacute doido Estamos perto de acordar disse Novalis quando sonhamos que sonhamos (PESSOA 2000 p373)

A referecircncia a Novalis demonstra o interesse pessoano pela obra deste autor Essa frase de Novalis foi lida e sublinhada por Pessoa no jaacute referido livro presente em sua biblioteca particular Les disciples agrave Sais et Les fragments

Nous sommes pregraves du reacuteveil quand nous recircvons que nous recircvons11

Eacute relevante tambeacutem ressaltar a afirmaccedilatildeo pessoana tambeacutem presente neste trecho do texto O provincianismo portuguecircs - eacute na incapacidade de ironia que reside o traccedilo mais fundo do pro-vincianismo mental - justamente a ironia elemento tatildeo importan-te na obra dos primeiros romacircnticos alematildees Parece que em 1928 ano da publicaccedilatildeo do texto pessoano aqui trabalhado o autor portuguecircs estava em consonacircncia com alguns aspectos da filosofia do primeiro romantismo alematildeo

Aleacutem das evidecircncias aqui demonstradas que aproximam de alguma maneira Pessoa de F Schlegel e de Novalis mostrare-mos a seguir como o projeto do desassossego pessoano dia-loga com alguns fragmentos deixados por Schlegel e Novalis

O Livro do Desassossego permaneceu como projeto durante a vida de Fernando Pessoa Antes de 1935 somente alguns trechos deste projeto foram publicados A aproximaccedilatildeo deste projeto pessoano com o pensamento de Schlegel e de Novalis pode ser realizada atraveacutes do desdobramento pessoano que faz parte da elaboraccedilatildeo deste livro

A noccedilatildeo de gecircnio como uma coletividade interior desenvolvi-da por Schlegel parece estar em consonacircncia com a tessitura da esteacutetica do Desassossego O projeto do Desassossego ao longo da sua elaboraccedilatildeo recebeu a assinatura de trecircs autores numa primeira fase Fernando Pessoa assinou os fragmentos do Livro do Desassossego como podemos averiguar nesta lis-ta escrita talvez em 1914

Biblioteca da EuropaMario de Saacute-Carneiro Ceacuteu em focircgoAntoacutenio Ponce de Leatildeo A Venda

11 NOVALIS 1914 p77 Traduccedilatildeo nossa Estamos perto de acordar quando sonhamos que sonhamos Rubens Rodrigues Torres Filho em sua ediccedilatildeo Poacutelen Novalis traduz este trecho de outra forma Estamos proacuteximos do despertar quando sonhamos que sonhamos (NOVALIS 2009 p43)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

65

Fernando Pessoa Livro do Desasocego

Theatro estatico12

Na fase seguinte Pessoa passa o livro para as matildeos de Vicen-te Guedes como podemos confirmar nesta lista

Na Casa de saude de Cascaes inclui1) Introduccedilatildeo entrevista com Antonio Mora2) Alberto Caeiro3) Ricardo Reis4) ldquoProlegoacutemenosrdquo de Antoacutenio Mora5) Fragmentos

_______________________________________________

Vida e obras do engenheiro Alvaro de Campos_______________________________________________

Livro do Desassocegoescripto por Vicente Guedes publicado por

Fernando Pessoa13

12 [BNPE3-68ordf-3]13 [BNPE3-5-83]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

66

Vicente Guedes foi uma personagem literaacuteria pessoana que natildeo chegou a se constituir como heterocircnimo Essa personalida-de assumiu diversas tarefas no laboratoacuterio literaacuterio de Pessoa foi contista tradutor e responsaacutevel pelo projeto do Desassosse-go durante a segunda fase da elaboraccedilatildeo deste Outro aspecto importante deste documento eacute a referecircncia ao nome de Antoacutenio Mora Esse fato mostra como o espoacutelio pessoano funcionou e ainda funciona como um laboratoacuterio de experimentaccedilatildeo onde as substacircncias ou seja nomes e projetos se misturam se en-contram

Na terceira e uacuteltima fase da escrita do Desassossego Fernan-do Pessoa entregou o projeto a outra personalidade Bernardo Soares o ajudante de guarda livros da cidade de Lisboa como podemos contatar neste documento

Do ldquoLivro do Desasocegocomposto por BernardoSoares ajudante de guarda-Livros na cidade de LisboardquoporFernando Pessoa

Podemos assim dizer que Pessoa se constituiu em uma pes-soa genuinamente sinteacutetica como diriam os primeiros romacircnti-cos ldquoO gecircnio diz Schlegel eacute uma coletividade interior uma co-munidade interna legalmente livre de muitos talentos ou como diz Novalis uma pessoa genuinamente sinteacutetica que eacute ao mes-mo tempo mais pessoasrdquo (SUZUKI 1998 p 235) E podemos constatar esse fato natildeo somente no projeto do Desassossego como tambeacutem na proacutepria constituiccedilatildeo da personalidade literaacuteria Antoacutenio Mora

No que diz respeito a escrita do projeto do Desassossego o problema da autoria ainda se coloca cada editor deste livro ao organizar os fragmentos para a publicaccedilatildeo torna-se de alguma forma autor participando do desdobramento pessoano

Depois da anaacutelise de todos os documentos pessoanos aqui apresentados podemos concluir que existe um forte e comple-xo diaacutelogo entre a literatura pessoana e o romantismo alematildeo O interesse de Pessoa pela filosofia do primeiro romantismo alematildeo acabou transbordando em seu espaccedilo artiacutestico dimi-nuindo de alguma forma as fronteiras entre poesia (no sentido mais amplo do termo) e filosofia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

67

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN Walter O conceito de criacutetica de arte no Romantis-mo alematildeo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Seligman-n-Silva Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1999

BORGES Paulo Teatro da vacuidade ou a impossibilidade de ser eu Estudos e ensaios pessoanos Lisboa Verbo 2011

LACOUE-LABARTHE Philippe NANCY Jean-Luc ldquoA exigecircn-cia fragmentaacuteriardquo Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo Joatildeo Camillo Pen-na In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-gradua-ccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp67-94

NOVALIS Friedrich von Hardenberg Poacutelen - Fragmentos diaacute-logo monoacutelogo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Rubens Rodri-gues Torres Filho Satildeo Paulo Editora Iluminuras 2009

PESSOA Fernando Criacutetica ndash Ensaios Artigos e Entrevistas Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2000

PESSOA Fernando Livro do Desasocego Tomos I e II Edi-ccedilatildeo de Jerocircnimo Pizarro Lisboa INCM 2010 p43

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Bernardo Soares Recolha e transcriccedilatildeo dos textos Maria Aliete Galhoz Teresa Sobral Cunha prefaacutecio e organizaccedilatildeo Jacinto do Prado Coelho Lisboa Aacutetica 1982

PESSOA Fernando Livro do Desassossego por Vicente Gue-des e Bernardo Soares Volume I e II Organizaccedilatildeo e notas de Teresa Sobral Cunha Lisboa Editorial Presenccedila 1990

RIBEIRO Nuno ldquoFernando Pessoa leitor de Novalis e o pro-blema da heteroniacutemiardquo Revista Scripta Belo Horizonte PU-CMG v16 pp56-68 2012

RIBEIRO Nuno (ed) Fernando Pessoa Philosophical Es-says A critical edition New York Contra Mundum Press 2012

SCHLEGEL Friedrich O dialeto dos fragmentos Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas Maacutercio Suzuki Satildeo Paulo Editora Ilumi-nuras 1997

SELIGMANN-SILVA Maacutercio ldquoFriedrich Schlegel e Novalis poesia e filosofiardquo In Terceira Margem ndash Revista do programa de poacutes-graduaccedilatildeo em ciecircncia da literatura UFRJ Ano IX nordm10 2004 pp95-111

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 60-68jul-dez 2017

68

SOUZA Claacuteudia ldquoA esteacutetica do desassossego Fernando Pessoa e o romantismo alematildeordquo In Osmar Oliva (Org) Litera-tura e Danaccedilatildeo Montes Claros Editora Unimontes 2013

SOUZA Claacuteudia RIBEIRO N ldquoCharles Robert Anon amp Ale-xander Search Filosofia e Psiquiatriardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 21 p 541-556 2012

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano poliacutetica e criaccedilatildeo literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais Dezembro de 2011

SOUZA Claacuteudia ldquoInconsciente e arte um ponto de encontro entre Fernando Pessoa e Freudrdquo In A Cultura Portuguesa no Divatilde Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2011 pp113-123

SOUZA Claacuteudia ldquoVicente Guedes e Bernardo Soares para aleacutem do Desasocegordquo Revista Cultura ENTRE Culturas Lis-boa 2011 pp186-191

SOUZA Claacuteudia SUZUKI Maacutercio ldquoNovalis e Pessoa lucidez poeacutetica e reflexatildeo oniacutericardquo Revista Filosoacutefica de Coimbra v 23 p 9-26 2015

SUZUKI Maacutercio O gecircnio romacircntico ndash criacutetica e histoacuteria na filosofia de Friedrich Schlegel Satildeo Paulo Editora Iluminuras 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

69

O retrato de Fernando Pessoa enquanto filoacutesofo ndash uma incursatildeo pelo espoacutelio filosoacutefico de PessoaThe portrait of Fernando Pessoa as a philosopher ndash an incursion into Pessoarsquos philosophical booty

Palavras-chave Fernando Pessoa filosofia espoacutelioKey-words Fernando Pessoa philosophy archive

RESUMO Este artigo procura debater e problematizar o al-cance filosoacutefico da obra de Fernando Pessoa Partindo de uma anaacutelise dos documentos em grande parte ineacuteditos do espoacutelio de Pessoa pretende demonstrar-se que o alcance filosoacutefico da obra deste autor se estende muito aleacutem dos ecos de leituras filosoacuteficas presentes na sua poesia e nas suas ficccedilotildees Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos inuacutemeros projectos destinados a futuros livros ensaios pequenas produccedilotildees e di-aacutelogos filosoacuteficos Assim tendo por base a apresentaccedilatildeo do es-poacutelio filosoacutefico de Pessoa o presente artigo visa elucidar em que medida se pode falar de um Pessoa filoacutesofo para aleacutem do ldquopoeta animado pela filosofiardquo

ABSTRACT This article intends to debate and problematize the philosophical reach of Fernando Pessoarsquos work Based on an analysis of the documents in a great extent unpublished form Pessoarsquos Archive we intend to show that the philosophical reach of this authorrsquos work goes far beyond the echoes of philosophi-cal readings present in his poetry and in his fictions Indeed in Pessoarsquos Archive one finds numerous projects for future books essays short works and philosophical dialogues Thus based on the presentation of the philosophical writings from Pessoarsquos Archive this article aims to clarify to what extent one can speak of a Pessoa philosopher beyond the ldquopoet animated by philoso-phyrdquo

I ndash Os escritos filosoacuteficos do espoacutelio pessoano

Num escrito autobiograacutefico de Pessoa relativo agrave sua escrita le-mos

Nenhum dos meus escritos foi concluiacute-do sempre se interpuseram novos pensamen-tos associaccedilotildees de ideias extraordinaacuterias im-possiacuteveis de excluir com o infinito como limite Natildeo consigo evitar a aversatildeo que tem o meu

Nuno Ribeiro

Doutor em filosofia - Univer-sidade Nova de Lisboa - poacutes-doutorado em Filosofia na Universidade Federal de Satildeo Carlos

nunofribeirosapopt

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

70

pensamento pelo acto de acabar seja o que for

[My writings were none of them finished new thoughts intruded ever extraordinary inexcusable associations of ideas bearing in-finity for term I cannot prevent my thoughtrsquos hatred of finish[ing] [hellip]] (PESSOA 2003 pp100-101 BNPE3 20 ndash 12rI)

Este trecho para aleacutem de se constituir como um testemu-nho de Fernando Pessoa relativo ao caraacutecter dos seus escritos eacute tambeacutem representativo do estado em que se encontram os textos presentes no espoacutelio deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos uma multiplicidade de fragmentos destinados a projectos de livros que este pensador pretendia futuramente es-crever mas que natildeo chegou a concluir De facto se excluirmos o Livro de Odes de Ricardo Reis ndash que eacute mais uma colecccedilatildeo de poemas do que um livro estruturado ndash Pessoa publicou ape-nas um livro em portuguecircs Esse livro eacute a Mensagem Fernando Pessoa publicou diversos poemas e ensaios em revistas lite-raacuterias que criou ou com as quais colaborou1 Chegou tambeacutem a publicar em formato de opuacutesculo algumas produccedilotildees como os 35 Sonnets Antinous os English Poems I-II e III e ainda o opuacutesculo Interregno ndash Defesa e Justificaccedilatildeo da Ditadura Militar em Portugal Mas nenhum destes escritos constitui por si soacute um livro e na sua maior parte satildeo apenas partes ou capiacutetulos de livros mais extensos projectados por Pessoa Assim no espoacutelio de Pessoa existe uma multiplicidade de projectos concebidos para futuros livros e ensaios Entre os livros e ensaios que este autor projectou mas que natildeo chegou a concluir encontram-se os escritos filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num documento do espoacutelio deste autor lemos

Milhares de teorias grotescas extraor-dinaacuterias profundas sobre o mundo sobre o homem sobre todos os problemas que per-tencem agrave metafiacutesica atravessaram o meu es-piacuterito Tive em mim milhares de filosofias das quais ndash como se fossem reais ndash nem mesmo duas concordariam

[Thousands of theories grotesque ex-traordinary profound on the world on man on all problems that pertain to metaphysics have passed through my mind I have had in me thousands of philosophies not any two of which mdash as if they were real mdash agreed] (LO-

1 Para efeitos de averiguaccedilatildeo de textos de Fernando Pessoa publica-dos em vida consulte-se a seguinte referecircncia bibliograacutefica BLANCO 1983

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

71

PES 1993 p 402 BNPE3 15B3sup3 ndash 12rI)

O espoacutelio de Pessoa catalogado na Biblioteca Nacional de Portugal [BNP] sob a designaccedilatildeo de ldquoE3rdquo [Espoacutelio 3] en-contra-se dividido em envelopes e compreende mais de vinte e sete mil documentos Cada envelope estaacute classificado com um nuacutemero uma designaccedilatildeo e conteacutem uma quantidade variaacute-vel de documentos Entre os diversos envelopes do espoacutelio de Pessoa encontramos quatorze envelopes filosoacuteficos com 1428 documentos Existem cinco envelopes (15sup1 15sup2 15sup3 15⁴ e 15⁵) com a designaccedilatildeo ldquoFilosofiardquo um (15A) classificado como ldquoFilo-sofia-Metafiacutesicardquo quatro (15Bsup1 15Bsup2 15Bsup3 e 15B⁴) designados como ldquoFilosofia-Psicologiardquo e finalmente quatro (22 23 24 e 25) intitulados ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo2 No entanto se eacute um facto que a divisatildeo do espoacutelio filosoacutefico em envelopes nos permite identificar nuacutecleos de textos filosoacuteficos este facto levanta um problema de iacutendole topograacutefica Por um lado nem todos os tex-tos filosoacuteficos se encontram nos envelopes de iacutendole filosoacutefica e por outro lado os envelopes filosoacuteficos contecircm documentos que natildeo satildeo filosoacuteficos Assim num envelope com a designaccedilatildeo ldquoPaacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuteriasrdquo [envelo-pe 19] encontramos por exemplo um texto sobre a filosofia de Nietzsche intitulado ldquoFriedrich Nietzscherdquo [BNP E3 19 ndash 99]3 e num envelope com a designaccedilatildeo ldquoTextos Filosoacuteficosrdquo [enve-lope 23] existe um texto com o tiacutetulo ldquoDe Profundisrdquo [BNPE3 23 ndash 66] publicado por Antoacutenio de Pina Coelho na selecccedilatildeo de textos filosoacuteficos intitulada Textos Filosoacuteficos de Fernando Pes-soa4 mas que no entanto eacute uma traduccedilatildeo de um excerto de De Profundis de Oacutescar Wilde

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]5 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo Assim tendo todos estes aspectos

2 Para efeitos da elucidaccedilatildeo das problemaacuteticas relativas agrave cataloga-ccedilatildeo organizaccedilatildeo e ediccedilatildeo do conteuacutedo dos envelopes filosoacuteficos consulte-se as seguintes referecircncias RIBEIRO 2011b RIBEIRO 2011c RIBEIRO 20123 Este texto encontra-se publicado em PESSOA 1994 pp333-3344 Cf PESSOA 2006b pp 227-228 Outro flagrante exemplo do pro-blema topograacutefico no que respeita aos envelopes filosoacuteficos eacute um texto sobre o sensacionismo [BNPE3 15Bsup1-98I] que se encontra catalogado no envelo-pe 15Bsup1 (ldquoFilosofia Psicologiardquo)5 PESSOA 2006a p167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

72

em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

Os envelopes com a designaccedilatildeo ldquoFilosofia-Psicologiardquo [en-velopes 15Bsup1 a 15B⁴] satildeo tambeacutem um caso especial no espoacutelio de Pessoa Embora estes envelopes estejam classificados sob a designaccedilatildeo de ldquofilosofiardquo contecircm escritos que em grande par-te Pessoa classifica sob a designaccedilatildeo de ldquoMicrosofia a Ciecircncia do Diminutordquo [ldquoMicrosphy the Science of the Minuterdquo] [BNPE3 24 ndash 120v]6 que eacute um termo criado pelo autor para designar aacutereas do conhecimento tais como a frenologia a fisionomia assim como outras ciecircncias menores relacionadas com a psi-quiatria e natildeo um grupo de textos que deva ser considerado sob a designaccedilatildeo de ldquoFilosofiardquo7 Assim tendo todos estes aspectos em consideraccedilatildeo os textos filosoacuteficos de Pessoa podem ser classificados em cinco grupos

O primeiro grupo de textos filosoacuteficos compreende os livros filosoacuteficos inacabados No espoacutelio de Pessoa existem diversos documentos com projectos destinados a livros filosoacuteficos e ela-borados pelo proacuteprio Pessoa Esses projectos encontram-se di-vididos em diversos toacutepicos correspondentes a vaacuterios capiacutetulos ou linhas de pensamento que Pessoa pretendia desenvolver em livros por si projectados Muitos desses toacutepicos correspondem a diversas paacuteginas que existem no espoacutelio de Pessoa Com efei-to a designaccedilatildeo dos toacutepicos presente em muitos dos projectos corresponde ao tiacutetulo e agraves indicaccedilotildees de uma multiplicidade de paacuteginas espalhadas ao longo do espoacutelio de Pessoa Entre os documentos com projectos de Pessoa encontramos os projec-tos de livros filosoacuteficos O seguinte texto redigido por Pessoa em inglecircs e os seus diversos toacutepicos que correspondem a um projecto destinado a um livro filosoacutefico constituem um exemplo de um projecto filosoacutefico de Pessoa

Book I ndash Theory of Categories[Book] II ndash Theory following on and depending on the Categories[Book] III ndash Theory of the Absolute

_______________

SubdivisionsBook I - 1 Category of Being Considerations 2 Category of Extension Consideration 3 Category of Relation Consideration 4 Conclusion Critique of Pure Reason 5 Conclusion

6 PESSOA 2006a p1677 Relativamente ao sentido e agrave circunscriccedilatildeo do termo ldquomicrosofiardquo re-metemos para os seguintes estudos SOUZA 2011 PIZARRO 2007

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

73

Book II - 1 Relation of Objects to Categories 2 Proofs of the Inexistence of the External World

[BNPE3 15sup3 ndash 3 fac-simile abaixo]

O segundo grupo de escritos filosoacuteficos corresponde aos ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa Com efeito num do-cumento presente no espoacutelio de Fernando Pessoa correspon-dente agrave tentativa de elaboraccedilatildeo de uma lista de obras a realizar e organizar encontramos a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo [BNPE3 48B ndash 152r fac-simile abaixo]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

74

Nesse documento Fernando Pessoa comeccedila por redigir uma lista com a indicaccedilatildeo de tiacutetulos e temaacuteticas a considerar sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Pessoa risca essa lista e inicia na mesma paacutegina uma segunda lista tambeacutem com a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophical Essaysrdquo Tanto a primeira quanto a segunda listas satildeo bastante imprecisas pois por um lado apre-sentam-nos tiacutetulos que Pessoa viria posteriormente a considerar em listas de obras e em projectos natildeo filosoacuteficos por outro lado ambas as listas deixam de fora muitos dos ensaios filosoacuteficos que encontramos no espoacutelio de Fernando Pessoa Isto justifi-ca que Pessoa tenha abandonado essa lista deixando-a ina-cabada De facto ao longo do espoacutelio de Pessoa encontramos centenas de projectos e listas de obras muitas das quais satildeo abandonadas por Pessoa No entanto a indicaccedilatildeo ldquoPhilosophi-cal Essaysrdquo presente na lista descrita constitui-se natildeo soacute como o testemunho de um conjunto de textos que Pessoa pretendia redigir e dos quais nos legou fragmentos mas tambeacutem como a evidecircncia do projecto de reunir esses textos sob a designaccedilatildeo de ldquoPhilosophical Essaysrdquo Ao longo do espoacutelio de Pessoa exis-tem vaacuterios geacuteneros de ensaios com extensotildees diversas e que discutem o mais variado tipo de assuntos autores e movimen-tos filosoacuteficos8

8 No livro Fernando Pessoa Philosophical Essays a critical edition

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

75

O terceiro grupo corresponde agraves pequenas produccedilotildees filo-soacuteficas Com efeito para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos o espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem igualmente uma multipli-cidade de textos correspondentes a artigos opuacutesculos e outras produccedilotildees filosoacuteficas de menor dimensatildeo consagrados agrave dis-cussatildeo dos mais diversificados autores movimentos e concei-tos da histoacuteria da filosofia A distinccedilatildeo entre ensaios e pequenas produccedilotildees eacute explicitamente enunciada numa lista de obras de Pessoa onde se lecirc ldquoEssays and Shorter Worksrdquo [BNPE3 48B ndash 142 detalhe do fac-simile abaixo]

O quarto grupo de textos corresponde agraves notas de leitu-ra filosoacuteficas de Pessoa Pessoa tinha o haacutebito de tomar notas das suas leituras muitas das quais se encontram conservadas do espoacutelio deste autor Isto acontecia porque muitas vezes Pessoa lia livros que natildeo eram seus mas cuja referecircncia queria manter embora algumas das suas notas filosoacuteficas se reportem a livros que se encontram na sua Biblioteca Particular Estas notas satildeo de crucial importacircncia natildeo soacute para traccedilar as vaacuterias influecircncias filosoacuteficas na obra de Pessoa mas tambeacutem porque muitas dessas notas estatildeo na origem de alguns dos seus escri-tos filosoacuteficos Assim podemos distinguir dois tipos de notas primeiro as notas acriacuteticas que compreendem todas aquelas notas que tecircm meras indicaccedilotildees ou citaccedilotildees de livros filosoacutefi-cos que Pessoa leu segundo as notas criacuteticas que para aleacutem das referecircncias e citaccedilotildees de livros englobam tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Pessoa sobre aquilo que leu No envelope 22 existe um exemplo de uma nota de leitura criacutetica como se pode verificar no seguinte texto escrito por Pessoa em inglecircs sobre a definiccedilatildeo aristoteacutelica de metafiacutesica

apresentamos a compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacuteficos de Fer-nando Pessoa Para aleacutem de compilaccedilatildeo e organizaccedilatildeo dos ensaios filosoacutefi-cos a introduccedilatildeo a essa ediccedilatildeo conteacutem uma revisatildeo histoacuterica dos principais tiacutetulos relativos agraves ediccedilotildees e comentaacuterios aos textos filosoacuteficos de Pessoa com especial ecircnfase nas seguintes referecircncias 1) PESSOA 2006 ndash corres-pondente a uma reimpressatildeo de um texto originalmente publicado em 1968 2) MOTA 1988 3) LOPES 1993 4) Loacutepez 2012 Aiacute mostramos que todas essas referecircncias laboram num erro comum que consiste em natildeo considerar os diversos fragmentos de Fernando Pessoa no contexto dos projectos e tiacutetulos de obras de iacutendole filosoacutefica ainda que lhe faccedilam referecircncias esporaacute-dicas Discutimos tambeacutem na introduccedilatildeo agrave nossa ediccedilatildeo o estatuto proble-maacutetico de muitos dos tiacutetulos enumerados na lista acima apresentada com o tiacutetulo ldquoPhilosophical Essaysrdquo tendo por base a anaacutelise de outros projectos do espoacutelio de Fernando Pessoa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

76

Notes 1Aristotle defines metaphysics (1) science of first principles and of first causes and (2) science of being as being [qua being]

Also defined ldquothe science of the absoluterdquo Metaphysics contains 3 great theories 1) The-ory of knowledge 2) theory of being 3) theory of the first principle of knowledge and of being

Critique It contains great theories indeed These are 1) Theory of knowledge 2)

[BNPE3 22 -73r fac-simile abaixo]

Finalmente o quinto grupo de textos filosoacuteficos correspon-de agraves paacuteginas filosoacuteficas autoacutenomas Este tipo de textos englo-ba todos aqueles escritos que lidam com a filosofia ou com as-suntos filosoacuteficos mas que natildeo correspondem a nenhum dos outros grupos filosoacuteficos nem tecircm qualquer relaccedilatildeo material di-recta com os outros escritos filosoacuteficos O espoacutelio de Fernando Pessoa conteacutem inuacutemeras paacuteginas deste tipo

Para aleacutem destes cinco grupos pode ainda ser identificado um outro grupo de documentos filosoacuteficos Esse grupo de docu-mentos corresponde ao projecto de criaccedilatildeo de diaacutelogos filosoacutefi-cos No envelope 24 existe um documento precisamente intitu-lado ldquoDiaacutelogos filosoacuteficosrdquo [BNPE3 24 ndash 96a] que conteacutem um trecho de discussatildeo sobre os argumentos acerca da existecircncia de Deus No entanto os documentos relativos aos diaacutelogos filo-soacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo bastante escassos e por outro lado o conteuacutedo e o estilo do texto intitulado ldquoDiaacute-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

77

logos filosoacuteficosrdquo encontram-se bastante proacuteximos das ficccedilotildees e contos deste autor No espoacutelio de Pessoa encontramos por exemplo um documento com a indicaccedilatildeo ldquoContos Intellectuaesrdquo [BNPE3 48A ndash 48i] que poderaacute corresponder a um desenvol-vimento dos diaacutelogos filosoacuteficos Noutro documento contendo uma lista de obras encontramos tambeacutem a indicaccedilatildeo ldquoContos metaphysicosrdquo [BNPE3 48E ndash 29i] que poderaacute igualmente ser considerado como outro dos tiacutetulos correspondentes a um de-senvolvimento do projecto de diaacutelogos filosoacuteficos Isto leva-nos a concluir que muito provavelmente os diaacutelogos filosoacuteficos natildeo teratildeo passado da fase de projecto e que Pessoa teraacute reaprovei-tado o conteuacutedo destinado a esses diaacutelogos para construir os seus contos e ficccedilotildees os quais muitas vezes satildeo mais dialo-gados do que narrados

II ndash Filosofia e a pluralidade de personalidades de Pessoa

Uma das mais claras consequecircncias da criaccedilatildeo de uma pluralidade de personalidades em Fernando Pessoa eacute a pro-blematizaccedilatildeo do conceito de autoria A problematizaccedilatildeo des-te conceito tem naturalmente consequecircncias no que respeita agrave circunscriccedilatildeo do acircmbito da produccedilatildeo filosoacutefica deste autor No decurso da sua produccedilatildeo literaacuteria Pessoa cria uma multi-plicidade de personalidades entre as quais os heteroacutenimos satildeo as mais conhecidas Um heteroacutenimo eacute uma personalidade com uma biografia um nome e uma obra inteiramente autoacutenomos das demais personalidades No entanto a marca distintiva da heteroniacutemia eacute o estilo A cada heteroacutenimo corresponde a fabri-caccedilatildeo de um estilo proacuteprio A fabricaccedilatildeo de uma multiplicidade de heteroacutenimos corresponde agrave produccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos9

Contudo para aleacutem dos heteroacutenimos Pessoa cria ainda um conjunto de semi-heteroacutenimos e de outras personalidades subalternas que poderatildeo ser classificadas como sub-heteroacuteni-mos A diferenccedila entre um heteroacutenimo e um semi-heteroacutenimo consiste no facto de que enquanto o heteroacutenimo tem um esti-lo literaacuterio inteiramente autoacutenomo o semi-heteroacutenimo escreve no mesmo estilo natural do autor real da escrita Eacute isso que por exemplo lemos no texto Ficccedilotildees do Interluacutedio a respeito do semi-heteroacutenimo Bernardo Soares ldquo[hellip] Bernardo Soares distinguindo-se de mim por suas ideias seus sentimentos seus modos de ver e de compreender natildeo se distingue de mim pelo estilo de expor [hellip]rdquo (PESSOA 2007 p153)

9 Para a elucidaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a heteroniacutemia e a criaccedilatildeo de uma multiplicidade de estilos veja-se RIBEIRO 2011 Neste livro apresentamos o desenvolvimento da multiplicidade estilos ligada agrave fabricaccedilatildeo dos heteroacute-nimos atraveacutes de um confronto da noccedilatildeo de heteroniacutemia com a noccedilatildeo niet-zschiana de perspectivismo Consulte-se tambeacutem a este respeito a seguinte referecircncia RIBEIRO 2010

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

78

Os sub-heteroacutenimos desempenham por outro lado um papel inteiramente diferente dos heteroacutenimos e dos semi-he-teroacutenimos Estas personalidades tecircm por funccedilatildeo dominante a traduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo das obras dos heteroacutenimos e de outros autores portugueses Thomas Crosse e I I Crosse satildeo dois exemplos deste tipo de personalidades

No entanto a produccedilatildeo de personalidades na obra de Fer-nando Pessoa natildeo se esgota na criaccedilatildeo dos heteroacutenimos semi--heteroacutenimos e sub-heteroacutenimos A primeira apariccedilatildeo puacuteblica de um heteroacutenimo de Pessoa ocorre em 1915 com a publicaccedilatildeo do ldquoOpiaacuteriordquo e da ldquoOde Triunfalrdquo de Aacutelvaro de Campos no primeiro nuacutemero da revista literaacuteria Orpheu Contudo existe todo um tra-balho de criaccedilatildeo preacute-heteroniacutemica que antecede o surgimento dos heteroacutenimos Com efeito Fernando Pessoa escreve sob o nome de dezenas de personalidades literaacuterias10 a maior parte das quais produz as suas obras ou fragmentos de obras no pe-riacuteodo preacute-heteroniacutemico

No que diz respeito aos preacute-heteroacutenimos a produccedilatildeo de textos filosoacuteficos encontra-se maioritariamente centralizada nas produccedilotildees de duas personalidades preacute-heteroniacutemicas inglesas de Fernando Pessoa Charles Robert Anon e Alexander Search A relaccedilatildeo de Anon e de Search com a filosofia encontra-se des-de logo expressa nos documentos biograacuteficos que Pessoa nos deixa relativamente a estes dois preacute-heteroacutenimos

Com efeito num caderno dataacutevel de cerca de 1906 [BNPE3 144Csup2] encontramos um fragmento em inglecircs intitulado Ex-communication [Excomunhatildeo] que se constitui como um de resumo biograacutefico de Charles Robert Anon e que nos lega inuacute-meros indiacutecios da relaccedilatildeo desta personalidade com as proble-maacuteticas ligadas agrave filosofia Aiacute lemos

Excomunhatildeo

natildeo casado excepto em momentos estranhos____________________________________

Eu Charles Robert Anon ser animal mamiacutefe-ro tetraacutepode primata com placenta macaco catarrino homem dezoito anos de idade natildeo casado (excepto em momentos estra-nhos) megalomaniacuteaco com laivos de dipso-mania degenerado superior poeta com pre-tensotildees a escritos humoriacutesticos cidadatildeo do

10 Em Pessoa por Conhecer numa secccedilatildeo intitulada ldquo11 ndash Dramatis Personaerdquo Teresa Rita Lopes conta setenta e duas personalidades de Fer-nando Pessoa (Cf LOPES 1990 pp 167-169) No entanto este nuacutemero tem vindo a ser reconsiderado quer pela autora quer por posteriores estudos so-bre a obra de Fernando Pessoa que tecircm vindo progressivamente a ampliar o nuacutemero de personalidades e que contam ndash embora em muitos casos de uma forma bastante problemaacutetica ndash mais de cem personalidades fictiacutecias cf PESSOA 2013

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

79

mundo filoacutesofo idealista etc etc (para poupar mais dores ao leitor)Em nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSO-FIA sem sineta livro e vela mas com caneta tinta e papelPasso uma declaraccedilatildeo de excomunhatildeo a to-dos os padres e todos os sectaacuterios de todas as religiotildees do mundo

Excomungo-vosDanais-vos todosAssim sejaRazatildeo Verdade Virtude por Charles Robert Anon

[Excommunication

not married except at odd moments___________________________________I Charles Robert Anon being animal mammal tetrapod primate placental ape catarrhyna man eighteen years of age not married (except at odd moments) megaloma-niac with touches of dipsomania deacutegeacuteneacutereacute superior poet with pretensions to written hu-mour citizen of the world idealistic philoso-pher etc etc (to spare the reader further pains) In the name of TRUTH SCIENCE and PHILO-SOPHIA not with bell book and candle but with pen ink and paperPass sentence of excommunication on all priests and all sectarians of all religions in the world

Excomunicabo vosBe damnrsquod to you allAnsi-soit-ilReason Truth Virtue per C[harles] R[obert] A[non]]

[PESSOA 2009 p289 BNPE3 144Csup2 5v a 6r]

Este excerto para aleacutem de se constituir como uma auto--psicografia humoriacutestica de Anon aos dezoito anos de idade revela-nos tambeacutem muacuteltiplos aspectos da caracterizaccedilatildeo dos interesses filosoacuteficos deste preacute-heteroacutenimo Neste texto Char-les Robert Anon elabora explicitamente uma excomunhatildeo ldquoEm

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

80

nome da VERDADE CIEcircNCIA e FILOSOFIArdquo [BNPE3 144Csup2 6r ldquoIn the name of TRUTH SCIENCE and PHILOSOPHIArdquo] denominando-se como ldquofiloacutesofo idealistardquo [BNPE3 144Csup2 5v ldquoidealistic philosopherrdquo] Com efeito no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel identificar um conjunto de testemunhos relativos a obras de filosofia assinados por Anon que abrangem os mais diversos temas como os textos intitulados Teoria da Percepccedilatildeo [BNPE3 25 ndash 58r Theory of Perception] e Sobre os Limites da Ciecircncia [BNPE3 28 ndash 99v On the Limits of Science]

A fabricaccedilatildeo da personalidade de Alexander Search eacute de igual forma conforme ao interesse pela filosofia A preocupaccedilatildeo de Search com filosofia encontra reflexo no caderno intitulado Livro da Transformaccedilatildeo ou livro das tarefas [BNPE3 48C ndash 1 a 5 Transformation Book or Book of Tasks] onde Pessoa nos apresenta uma breve descriccedilatildeo biograacutefica de Search acompa-nhada de uma lista de obras correspondentes a tarefas a serem realizadas por esta personalidade Nessa ficha biograacutefica lemos

Alexander SearchNascido a 13 de Junho 1888 em LisboaTarefa todas as que natildeo provenham dos ou-tros trecircs___________________________________1 ldquoO Regiciacutedio e a Situaccedilatildeo Poliacutetica em Por-tugalrdquo2 ldquoA Filosofia do Racionalismordquo3 ldquoA Perturbaccedilatildeo Mental de Jesusrdquo4 ldquoDeliacuteriordquo5 ldquoAgoniardquo

[Alexander SearchBorn June 13th 1888 at LisbonTask all not the province of the other three___________________________________

1 ldquoThe Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugalrdquo2 ldquoThe Philosophy of Rationalismrdquo3 ldquoThe Mental Disorder(s) of Jesusrdquo4 ldquoDeliriumrdquo5 ldquoAgonyrdquo]

[PESSOA 2014 p 4 BNPE3 48C ndash 2r]

Nesta ficha biograacutefica elaborada por Pessoa encontramos para aleacutem dos dados biograacuteficos de Search a menccedilatildeo ao tiacutetulo A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] que eacute representativo de um dos mais significativos interesses filosoacute-ficos de Pessoa Com efeito ao longo do espoacutelio de Fernando

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

81

Pessoa existe uma multiplicidade de documentos destinados a um projecto relativo ao sentido e agrave natureza do racionalismo Esse projecto passou por diversas fases e teve vaacuterios tiacutetulos A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] foi justamente um desses tiacutetulos

No entanto os tiacutetulos referidos na ficha biograacutefica de Se-arch satildeo apenas alguns dos exemplos de obras filosoacuteficas atri-buiacutedas a esta personalidade de Pessoa Ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa existe ndash com a assinatura deste preacute-heteroacute-nimo ndash uma multiplicidade de outras obras de filosofia como eacute o caso do texto A Natureza Interna das Faculdades [BNPE3 23 ndash 18 a 19 The Internal Nature of the Faculties] e do Ensaio sobre a Ideia de Causa [BNPE3 15⁴ ndash 99 a 100 Essay on the Idea of Cause]

Assim todos estes elementos que temos vindo a enunciar permitem-nos concluir que haacute uma afinidade de fundo entre as duas personalidades preacute-heteroniacutemicas apresentadas e a cria-ccedilatildeo de textos filosoacuteficos Contudo a afinidade de Anon e de Search a respeito das questotildees ligadas agrave filosofia existe desde logo numa etapa anterior agrave produccedilatildeo de textos filosoacuteficos Nas listas de leitura presentes no espoacutelio de Pessoa eacute possiacutevel en-contrar um ponto de contacto dessas duas personalidades com o interesse pelos diversos autores e temaacuteticas dos vaacuterios periacuteo-dos da histoacuteria da filosofia

No espoacutelio de Fernando Pessoa existe um caderno intitu-lado ldquoNordm I1 Charles R Anonrdquo [BNPE3 13A 1 a 20] que para aleacutem de inuacutemeros escritos e projectos filosoacuteficos conteacutem ainda uma extensa lista de leituras que eacute antecedida pela seguinte indicaccedilatildeo

LivrosSobre Ciecircncia e sobre Filosofia

[BooksOn Science and on Philosophy]

[PESSOA 2009 p271 BNPE3 13A ndash 2r detalhe do fac-simile abaixo]

Nesta lista provavelmente contemporacircnea das leituras re-alizadas por Pessoa na Biblioteca Nacional e por conseguinte dataacutevel de 1906 encontramos justamente a evidecircncia dos in-teresses relativos agrave filosofia que Pessoa atribui a Charles Ro-bert Anon Com efeito aiacute encontramos referecircncias a livros de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

82

filoacutesofos como Aristoacuteteles Descartes Malebranche Espinosa Leibniz Kant Schopenhauer Hegel e Bergson para citar ape-nas alguns dos nomes da histoacuteria da filosofia referidos nesse caderno Todas estas referecircncias viriam a ser retomadas nas listas de leitura de Search

Com efeito no espoacutelio de Pessoa encontramos um cader-no com a seguinte indicaccedilatildeo

Alexander SearchSetembro 1906

________

Filosofia etc[Alexander SearchSeptember 1906

________

Philosophy etc]

[BNPE3 144H ndash contracapa]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

83

Este caderno que eacute datado de Setembro de 1906 e por-tanto contemporacircneo do caderno de Anon conteacutem uma lista de livros alfabeticamente ordenada de ldquoArdquo a ldquoZrdquo na sua maioria re-lativos agrave filosofia Nele satildeo retomadas e em alguns casos am-pliadas as referecircncias presentes no caderno de Anon relativa-mente ao qual satildeo acrescentados novos tiacutetulos e novos nomes

Contudo apesar de as obras filosoacuteficas no periacuteodo preacute--heteroniacutemico estarem de um modo geral centralizadas em Charles Robert Anon e Alexander Search encontramos tambeacutem textos de cariz filosoacutefico atribuiacutedos a outros intervenientes Um exemplo disso eacute o Ensaio sobre a Intuiccedilatildeo [BNPE3 14⁶ ndash 30 a 31r Essay on Intuition] cujos fragmentos se encontram espa-lhados ao longo do espoacutelio de Fernando Pessoa e que embora breve esboccedila o iniacutecio de discussatildeo acerca da natureza e cons-tituiccedilatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica de intuiccedilatildeo No final de um dos frag-mentos deste ensaio encontramos as seguintes assinaturas correspondentes a nomes de duas personalidades preacute-hetero-niacutemicas ldquoA Moreira Faustino Antunesrdquo [BNPE3 14⁶ ndash 31r] Para aleacutem de todos os nomes de preacute-heteroacutenimos que temos vindo a enunciar encontramos ainda textos filosoacuteficos assina-dos por Fernando Pessoa em seu proacuteprio nome Um exemplo de um texto filosoacutefico

assinado por Pessoa no periacuteodo preacute-heteroniacutemico eacute o en-saio intitulado ldquoDa Impossibilidade de uma Sciencia do Lexiconrdquo [BNPE3 23 ndash 1-2a] que corresponde a uma ldquofalaacutecia filosoacuteficardquo escrita em 1906 como trabalho a apresentar para a disciplina de filologia na Universidade de Lisboa que Fernando Pessoa frequentou entre 1905 e 1907 Com efeito eacute isso que depreen-demos do seguinte apontamento presente num diaacuterio com a data de 11 de Maio de 1906

Preparando a minha falaacutecia filosoacutefica ndash laquoSobre a fenomenologia do Lexiconraquo para aula de Fi-lologia o tema foi laquoA Orientaccedilatildeo do Lexiconraquo

[Preparing my philosophical fallacy ndash ldquoOn the Phenomenology of the Lexiconrdquo for the Philo-logy Class the subject given us was ldquoA Orien-taccedilatildeo do Lexiconrdquo] (PESSOA 2003 pp38-39)

No que diz respeito agraves personalidades do periacuteodo hetero-niacutemico a produccedilatildeo filosoacutefica tem como principal preocupaccedilatildeo a questatildeo da definiccedilatildeo do conceito de metafiacutesica De Aacutelvaro de Campos existe um texto precisamente intitulado ldquoO que eacute a me-tafiacutesicardquo publicado em 1924 no nuacutemero 2 da revista Athena que constitui uma contra-resposta ao ensaio ldquoAtenardquo publicado pelo ortoacutenimo no primeiro nuacutemero dessa revista Antoacutenio Mora uma personalidade literaacuteria que Pessoa faz dialogar com os he-teroacutenimos participa igualmente nessa discussatildeo como se pode

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

84

verificar pelo conjunto de fragmentos destinados a um opuacutesculo intitulado ldquoIntroduccedilatildeo ao Estudo da Metafiacutesicardquo (Cf PESSOA 2002 pp 321-331)

Contudo a questatildeo da circunscriccedilatildeo dos textos filosoacuteficos de Pessoa no acircmbito da problemaacutetica da autoria tem uma di-ficuldade acrescida Se eacute verdade que Pessoa cria uma mul-tiplicidade de textos assinados sob o nome das mais diversas personalidades literaacuterias tambeacutem eacute um facto que no espoacutelio de Pessoa encontramos vaacuterios textos sem qualquer atribuiccedilatildeo autoral expliacutecita ou impliacutecita Assim os textos do espoacutelio deste autor podem ser distinguidos em duas classes os textos assina-dos ou incluiacutedos em projectos destinados a determinadas per-sonalidades de Pessoa segundo os textos que natildeo se encon-tram assinados O segundo tipo de textos constitui aquilo que se pode designar de textos anoacutenimos de Pessoa Eacute no acircmbito dos textos anoacutenimos de Pessoa que encontramos a maior variedade de projectos e fragmentos de livros de pequenas produccedilotildees e de ensaios filosoacuteficos de Fernando Pessoa discutindo os mais variados autores desde os preacute-socraacuteticos a Bergson passando por consideraccedilotildees relativas a movimentos como o materialismo o positivismo e o idealismo bem como aos conceitos filosoacuteficos de sensaccedilatildeo e de ser

III ndash Fernando Pessoa o filoacutesofo e o ldquopoeta animado pela filosofiardquo

A tematizaccedilatildeo da importacircncia da filosofia e o emprego de con-ceitos filosoacuteficos em Fernando Pessoa encontram-se tambeacutem presentes ao longo da obra poeacutetica e ficcional deste autor No poema Tabacaria encontramos por exemplo a seguinte con-fissatildeo de Aacutelvaro de Campos ldquoTenho feito filosofias em segre-do que nenhum Kant escreveurdquo (CAMPOS 2002 p322) Em O Guardador de Rebanhos Alberto Caeiro problematiza critica e discute algumas noccedilotildees filosoacuteficas como os conceitos de meta-fiacutesica de alma e de Deus11 Estes e outros exemplos presentes na obra de Fernando Pessoa satildeo suficientes para pocircr em evi-decircncia e dar a conhecer um ldquopoeta animado pela filosofiardquo [ldquopoet animated by philosophyrdquo] (PESSOA 2003 p18) que este autor afirmou ter sido e efectivamente chegou a ser mas natildeo para provar que Pessoa foi de facto um escritor filosoacutefico Com efeito a presenccedila de conceitos filosoacuteficos ao longo das diversas pro-duccedilotildees poeacuteticas e ficcionais de Fernando Pessoa constituem apenas o indiacutecio das leituras filosoacuteficas que teratildeo ocupado este autor em diferentes periacuteodos da sua vida Mas a relaccedilatildeo de Pes-soa com o pensamento filosoacutefico natildeo se circunscreve agraves men-ccedilotildees a autores movimentos ou conceitos filosoacuteficos presentes nos seus mais variados textos poeacuteticos e ficcionais Para aleacutem 11 Veja-se em especial o poema V de O Guardador de Rebanhos [CAEIRO 2001 pp29-32]

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

85

do ldquopoeta animado pela filosofiardquo encontramos tambeacutem no es-poacutelio de Fernando Pessoa diversos indiacutecios que nos permitem reconstituir o retrato de Pessoa enquanto filoacutesofo Os diversos escritos filosoacuteficos presentes no espoacutelio de Pessoa satildeo o teste-munho da actividade filosoacutefica deste autor e por conseguinte permitem-nos concluir a existecircncia de um Pessoa-filoacutesofo O cultivo do estilo e dos diversos geacuteneros filosoacuteficos foi para Fer-nando Pessoa um dos momentos do desenvolvimento de uma multiplicidade de estilos A escrita filosoacutefica constitui para Pes-soa uma das formas de desenvolvimento literaacuterio Para aleacutem dos livros e ensaios filosoacuteficos encontramos entre as pequenas produccedilotildees filosoacuteficas de Pessoa inuacutemeros projectos de artigos opuacutesculos e de outros textos de pequena dimensatildeo Os pro-jectos de livros ensaios e pequenas produccedilotildees filosoacuteficas do espoacutelio de Pessoa correspondem agrave multiplicidade de geacuteneros filosoacuteficos que este autor pretendia e que na verdade chegou a desenvolver Deste modo o estilo filosoacutefico e os diversos geacutene-ros nele incluiacutedos foram para Pessoa a ocasiatildeo para o desen-volvimento de uma forma de literatura que este autor deixou por concluir mas cujos projectos e indicaccedilotildees presentes ao longo de todo o espoacutelio nos permitem reconstruir

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

86

BIBLIOGRAFIA

BLANCO Joseacute Fernando Pessoa Esboccedilo de uma bibliografia Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1983

CAEIRO Alberto Poesia Ediccedilatildeo de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001

CAMPOS Aacutelvaro de Poesia Ediccedilatildeo de Teresa Rita Lopes Lis-boa Assiacuterio amp Alvim 2002

LOPES Teresa Rita (org) Pessoa Ineacutedito Lisboa Livros Hori-zonte 1993

LOPES Teresa Rita Pessoa por Conhecer Vol I Lisboa Edi-torial Estampa 1990

LOacutePEZ Pablo Javier Peacuterez Poesiacutea Ontologiacutea y Tragedia en Fernando Pessoa Madrid Editorial Manuscritos 2012

MOTA Pedro Teixeira da Fernando Pessoa Moral Regras de Vida Condiccedilotildees de Iniciaccedilatildeo Textos estabelecidos e comenta-dos por Pedro Teixeira da Mota Lisboa Ediccedilotildees Manuel Len-castre 1988

PESSOA Fernando Cadernos Tomo I Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pi-zarro Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2009

PESSOA Fernando Escritos Autobiograacuteficos Automaacuteticos e de Reflexatildeo Pessoal Ediccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2003

PESSOA Fernando Escritos sobre Geacutenio e Loucura Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2006a

PESSOA Fernando Eu sou uma antologia 136 autores fictiacute-cios Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro e Patricio Ferrari Lisboa Tinta da China 2013

PESSOA Fernando Obras de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Luiacutes Fi-lipe Teixeira Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2002

PESSOA Fernando Paacuteginas de Esteacutetica e de Teoria e Criacutetica Literaacuterias Lisboa Aacutetica 1994

PESSOA Fernando Philosophical Essays a critical edition Edition notes and introduction by Nuno Ribeiro (afterword by Paulo Borges) New York Contra Mundum Press 2012

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 69-87jul-dez 2017

87

PESSOA Fernando Prosa Iacutentima e de Autoconhecimento Edi-ccedilatildeo de Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2007

PESSOA Fernando Textos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa Vol I Estabelecidos e prefaciados por Antoacutenio Pina Coelho Lis-boa Aacutetica 2006b

PESSOA Fernando The Transformation Book mdash or Book of Tasks Edition Notes and Introduction by Nuno Ribeiro amp Claacuteu-dia Souza New York Contra Mundum Press 2014

PIZARRO Jeroacutenimo Fernando Pessoa entre geacutenio e loucura Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2007

RIBEIRO Nuno Fernando Pessoa e Nietzsche O pensamento da pluralidade Lisboa Verbo Editora 2011a

RIBEIRO Nuno ldquoHeteroniacutemia e Perspectivismo ldquoEspaccedilo lite-raacuteriordquo e multiplicidade de estilos nos pensamentos de Nietzsche e Pessoardquo In Cadernos Nietzsche nordm26 Satildeo Paulo Grupo de Estudos Nietzsche 2010 pp155-176

RIBEIRO Nuno ldquoOs Livros Filosoacuteficos Inacabados de Pessoa ndash Problemas e Criteacuterios para a Publicaccedilatildeo dos Escritos Filosoacutefi-cos de Pessoardquo In Philosophica nordm 38 Lisboa Ediccedilotildees Colibri 2011b pp 165 ndash 174

RIBEIRO Nuno ldquoTive em mim milhares de Filosofiasrdquo - ques-totildees para a ediccedilatildeo dos escritos filosoacuteficos ineacuteditos de Pessoardquo In cultura ENTRE culturas nordm3 Lisboa ncora Editora 2011c pp 192 ndash 200

RIBEIRO Nuno Tradiccedilatildeo e Pluralismo nos Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo I ndash 214pp) Escritos Filosoacuteficos de Fernando Pessoa (Tomo II ndash 382pp) Lisboa Faculdade de Ci-ecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 2012 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

SOUZA Claacuteudia Ciecircncias do Psiquismo Humano Poliacutetica e Criaccedilatildeo Literaacuteria no espoacutelio de Fernando Pessoa (1905-1914) Belo Horizonte PUC ndash Minas Gerais 2011 (Dissertaccedilatildeo de doutoramento)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

88

Notas sobre os ldquoApontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelicardquo de Aacutelvaro de CamposrdquoNotes on ldquoRemarks for a non-Aristotelian Aesthetics in Aacutelvaro de Camposrdquo

Palavras-chave Fernando Pessoa Esteacutetica natildeo-aristoteacutelica Corpo e ArteKeywords Fernando Pessoa Aesthetics non-Aristotelian Body and Art

RESUMO Os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacuteli-ca entre outros escritos sobre arte figuram na obra pessoa-na como ponto de relevacircncia por se tratar de um esboccedilo para uma ldquoteoria esteacuteticardquo em via contraacuteria agrave Tradiccedilatildeo Nem sempre atendendo agraves expectativas de muitos criacuteticos quanto agrave aplicabi-lidade de tal pensamento agrave leitura do proacuteprio Fernando Pessoa nem demonstrando consistecircncia suficiente enquanto reflexatildeo sistecircmica do ponto de vista filosoacutefico os Apontamentos mesmo assim nos oferecem em potencial margens para uma releitu-ra que transpasse agrave discussatildeo restritiva de uma esteacutetica natildeo aristoteacutelica Em suma nosso intuito eacute mostrar que para aleacutem de uma descontinuidade da tradiccedilatildeo esteacutetica aristoteacutelica Fernan-do Pessoa atraveacutes do discurso de Aacutelvaro de Campos vislumbra um estado em que corpo e arte estabeleccedilam estreita relaccedilatildeo firmada em princiacutepios de forccedila pelo vieacutes da sensibilidade em vez do tradicional caminho da razatildeo Nesse sentido natildeo pre-tendemos emitir conclusotildees definitivas concernentes aos escri-tos em questatildeo visto que entendemos e acolhemos o termo ldquoapontamentordquo como um prospecto de um trabalho que natildeo se concretizou

ABSTRACT Pessoarsquos Remarks for a Non-Aristotelian Aesthetics as many other writings about Arts are highly relevant inasmuch as they present a sketch for non-traditional theories on Aesthetics In spite of this relevance some critics argue that Pessoarsquos Remarks are not quite useful to read Fernando Pessoa himself Their criticism turns on the point that the Remarks have no sufficient consistency to be considered a systematic thought from a philosophical point of view Diverging from this position we assume that Fernando Pessoarsquos Remarks allow us to pre-sent a ldquore-readingrdquo that can go far beyond some restrictive rea-dings based on some non-Aristotelian Aesthetics Accordingly we argue that Fernando Pessoa can be considered apart from the question about his discontinuity in relation to the Aristotelian aesthetic tradition Our main point is that Pessoa through Aacutelva-ro de Camposrsquo views envisions some state in which body and art can establish a very close relation by means of principles

Fabriacutecio Luacutecio Gabriel de Souza

Doutorando em Literatura ndash POacuteSLITUnBFAPDF

fabriciogabrieldesouzagmailcom

() E-mail fabriciogabrieldesouzagmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

89

of force from the perspective of sensibility However we do not here intend to reach definitive conclusions on this issue since we understand the term ldquoremarksrdquo as a mere prospectus for a not accomplished work

1

Devemos sempre ter em conta a produccedilatildeo teoacuterica de Fernando Pessoa visto que seus exerciacutecios de reflexatildeo podem ser entendidos como dobras em sua proacutepria obra De igual modo devemos tecirc-la com leve cuidado Se tais prospectos satildeo capa-zes de lanccedilar alguma luz sobre seu legado talvez nem o tempo de aacuterduo trabalho dos investigadores poderaacute trazer agrave tona o de-lineamento total e exato da produccedilatildeo pessoana Basta lembrar que quase maioria do que foi escrito pelo poeta portuguecircs ficou guardada durante sua vida numa arca vindo a puacuteblico poste-riormente graccedilas agrave dedicaccedilatildeo e a um princiacutepio de trabalho mais criterioso da Equipa Pessoa no iniacutecio dos anos de 1980

Nossas consideraccedilotildees iniciais satildeo no intuito primeiro de reafirmar que o que noacutes temos na atualidade publicado com o nome de Fernando Pessoa ou de seus autores fictiacutecios satildeo propostas editoriais Algumas com criteacuterios rigorosos outras com menos e aquelas sem criteacuterios algum com o intuito apenas mercadoloacutegico Afinal o nome de Fernando Pessoa se tornou natildeo sem motivos uma chancela em alta estima Segundo fazer lembrar que muitas publicaccedilotildees natildeo possuem uma versatildeo final pensada pelo seu autor Exemplo disso eacute o alto grau de frag-mentariedade da obra que conta com mais de trinta mil papeis entre eles diversos escritos ou notas como planos de obras ou lista de tiacutetulos para possiacuteveis obras O Livro do desassossego tem publicado cerca de dez ediccedilotildees com organizaccedilotildees diferen-tes sendo algumas delas nas visotildees de seus editores perten-centes a dois ou trecircs autores criados por Fernando Pessoa in-cluindo fases distintas Dos textos dramaacuteticos aos quais temos nos dedicado ultimamente apenas O Marinheiro foi terminado e publicado em vida no primeiro nuacutemero da Revista Orpheu em 1915 Partindo dessas observaccedilotildees optamos pela cautela na apreciaccedilatildeo dos textos considerando a obra enquanto conjunto (todo) poreacutem com elementos variaacuteveis e em sua maioria ina-cabados

Desse modo apresentamos e propomos um breve olhar sobre dois textos teoacutericos escritos pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos A influecircncia da engenharia nas armas nacionais com data de 1924 e Apontamentos para uma esteacutetica natildeo aristo-teacutelica com as datas de dezembro de 1924 e janeiro de 1925 Nosso intento primeiro eacute mostrar como as ideias do heterocircnimo pessoano aproximam (ou afastam) arte ciecircncia e cultura colo-cando-se como antagonista agrave poeacutetica claacutessica em especial a Poeacutetica de Aristoacuteteles e buscando se afirmar enquanto nova te-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

90

oria esteacutetica a qual corpo e sensaccedilotildees teratildeo maior afirmaccedilatildeo no processo criativo Ressaltamos por fim que o nosso interesse maior eacute fazer emergir o pensamento pessoano natildeo o colocando em condiccedilatildeo de mero suporte de comparaccedilatildeo para teorias de outros autores ou fazendo aplicaccedilotildees desses da teoria desses autores

2

A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aponta-mento com data de 1924 parece figurar como introduccedilatildeo ldquogecirc-neserdquo dos Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica As-sinado pelo heterocircnimo Aacutelvaro de Campos dito poeta futurista e engenheiro naval o primeiro texto supracitado lacocircnico e inaca-bado inicia-se trazendo como epiacutegrafe uma frase de Leonardo da Vinci que diz ldquoQuanto mais uma arte traz consigo a fadiga do corpo tanto mais ela eacute vilrdquo1 Tal referecircncia ao artista italiano poderia tender nossos julgamentos para a aceitaccedilatildeo da presen-ccedila marcante da esteacutetica renascentista na reflexatildeo proposta por Aacutelvaro Campos caso a posiccedilatildeo do poeta da Ode triunfal natildeo fosse contundentemente contraacuteria a continuidade de tudo o que foi preservado pela tradiccedilatildeo Logo a batalha do poeta contra a accedilatildeo da ldquopermanecircnciardquo da ldquotradiccedilatildeordquo e suas consequecircncias eclode quando ele expotildee sua ldquoteoriardquo acerca da civilizaccedilatildeo

Haacute muito sustento a teoria que a civilizaccedilatildeo eacute a cria-ccedilatildeo de estiacutemulos em excesso constantemente progressivo sobre a nossa capacidade de reaccedilatildeo a eles A civilizaccedilatildeo eacute pois a tendecircncia para a morte pelo desequiliacutebrio A coisa mais inuacutetil que a ficccedilatildeo real chamada povo pode fazer eacute resistir a civilizar-se por processos de civilizaccedilatildeo Existir eacute natildeo se dei-xar matar ser civilizado eacute inventar reaccedilotildees para os estiacutemulos que excedem jaacute a reaccedilatildeo possiacutevel Isto eacute inventar reaccedilotildees artificiais quer dizer civilizadas contra a proacutepria civilizaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445)

A civilizaccedilatildeo para Campos representa a negaccedilatildeo dos estiacutemulos naturais (vitais) logo o homem civilizado torna-se in-capaz da proacutepria criaccedilatildeo pela imposiccedilatildeo da carga de estiacutemulos civilizadores que atuam de modo incisivo sobre ele Por outro lado torna-se inuacutetil a resistecircncia agrave civilizaccedilatildeo atraveacutes do proacuteprio processo civilizador vigente ao longo do tempo porque efetiva-mente agindo assim natildeo haveria ruptura mas a continuidade do ldquomesmordquo sob um mascaramento de formas diversificadas tais como as crenccedilas e os valores Civilizar-se dessa forma tende a morte pelo desequiliacutebrio visto que meios artificiais implicam

1 ldquoQuanto piugrave umrsquoarte porta seco fatica di corpo tanto piugrave egrave vilerdquo ndash Consultoria e traduccedilatildeo em liacutengua italiana de Sylvia Gouveia doutoranda em Literatura pelo PoacutesLitUnB

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

91

anulaccedilatildeo das forccedilas vitais de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo ou seja a vida subsiste pelo equiliacutebrio entre tais forccedilas as quais satildeo igualadas ao ldquoanabolismo e o catabolismo dos fisiologistasrdquo (PESSOA 2015 p445)

Segundo o ciclo natural a forccedila que ldquoinsisterdquo cria partindo da destruiccedilatildeo uma vez que destruiccedilatildeo significa transformaccedilatildeo concomitantemente a forccedila que subsiste permite a criaccedilatildeo ao mesmo tempo em que impede a destruiccedilatildeo logo a transforma-ccedilatildeo para o outro Contudo na sociedade ordem posta acima da ordem dos organismos vivos (ordem bioacutetica) ocorre a inver-satildeo da ldquodinacircmica dos fatores agentesrdquo assim ldquoa tendecircncia para subsistir eacute que mata a tendecircncia para natildeo subsistir eacute que faz vi-ver Isto porque a sociedade eacute um corpo artificial e vive por isso segundo leis que satildeo contraacuterias agraves leis naturaisrdquo (Ibidem) Por essa artificialidade do corpo social Aacutelvaro de Campos expotildee sua problematizaccedilatildeo partindo da questatildeo da ldquosubsistecircnciardquo isto eacute da questatildeo acerca de um estado de permanecircncia que seria causa mortis dos instintos do homem nas sociedades

O que faz subsistir nas sociedades A tradiccedilatildeo a continuidade a tendecircncia para permanecer isto eacute para natildeo viver E a tradiccedilatildeo a tendecircncia para permanecer tem trecircs formas ndash o apego ao passado que eacute tradiccedilatildeo vulgar o ape-go ao presente que eacute a moda e o apego ao futuro que eacute o ideal social em que se confia O que faz viver isto eacute natildeo sub-sistir nas sociedades A antitradiccedilatildeo a tendecircncia para natildeo permanecer E a tendecircncia para natildeo permanecer tem soacute uma forma ndash o apego ao natildeo passado ao natildeo presente e ao natildeo futuro Isto quer dizer o apego ao abstrato e ao ideal em que natildeo se confia Por isso a forccedila que conserva as sociedades eacute a inteligecircncia de abstraccedilatildeo e imaginaccedilatildeo (PESSOA 2015 p445-446)

A vida para nas invenccedilotildees de dispositivos ldquoabioacuteticosrdquo ou seja nos costumes embebidos da necessidade de perma-necircncia de conservaccedilatildeo Tais dispositivos tecircm-se manifestado conforme vimos sob trecircs formas poreacutem girando em torno de um eixo apenas o eixo do ldquoapegordquo volvendo-se desse modo alternadamente aos periacuteodos de tempo representados pela tra-diccedilatildeo vulgar pela moda e pela confianccedila em um ideal social porvir Todavia o antiacutedoto contra a praga que potildee por terra a vida opera no mesmo eixo do ldquoapegordquo girando em sentido con-traacuterio ao sentido da permanecircncia das crenccedilas do tradicionalis-mo do conservadorismo A trajetoacuteria defendida por Aacutelvaro de Campos quer atuar apegando-se ldquoao abstrato e ao ideal em que natildeo se confiardquo Enfim o que afirmaraacute a vida nas sociedades eacute a substituiccedilatildeo do apego ao ldquoidordquo ao ldquoestilo prevalenterdquo de cada eacutepoca o ldquoporvirrdquo pelo ldquodevirrdquo

A conservaccedilatildeo do estado de permanecircncia ou a tendecircn-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

92

cia que ldquofaz morrerrdquo nas sociedades age atraveacutes da ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo e da ldquoimaginaccedilatildeordquo Estes dois agentes por sua vez desdobram-se nas formas ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo donde

A matemaacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto da essecircncia da experiecircncia o uacutenico criteacuterio de verdadeira ob-jetividade que temos eacute o criteacuterio de matematizaccedilatildeo A criacutetica abstrai de toda a experiecircncia exceto de ela ser nossa o uacutenico criteacuterio verdadeiro de subjetividade que temos eacute o da confron-taccedilatildeo natildeo das nossas impressotildees com as cousas mas das cousas com nossas impressotildees (PESSOA 2015 p445)

Temos aiacute a confrontaccedilatildeo de duas formas de percepccedilatildeo e juiacutezo que reforccedilam o ciclo da permanecircncia do ldquomesmordquo o ju-iacutezo que parte do universal (abstrato) para a singularidade se atendo ao criteacuterio de objetividade pela matematizaccedilatildeo que aqui entendemos como meio de ordenaccedilatildeo das coisas e a criacutetica que parte da experiecircncia singular obedecendo a um criteacuterio que relaciona o conteuacutedo das nossas percepccedilotildees (impressotildees) vin-culando-o agraves coisas que percebemos pelas sensaccedilotildees Parece--nos estar criado por essa via mais uma delimitaccedilatildeo que nos prende a tendecircncia de ldquoordemrdquo e ldquopermanecircnciardquo dos processos civilizatoacuterios mencionados anteriormente Acerca da definiccedilatildeo de ldquocriticardquo2 Campos ressalta que

Deve-se compreender que entendo por criacutetica toda a atividade criacutetica a criacutetica no sentido em que emprego a palavra inclui toda forma de atividade que ou natildeo aceita ou quer substituir a objetividade da experiecircncia Assim a arte eacute uma forma de criacutetica porque fazer arte eacute confessar que a vida ou natildeo presta ou natildeo chega Assim por assim dizer a parte dogmaacutetica da religiatildeo (natildeo a sua parte social nem a sua parte metafiacutesica) eacute uma forma de criacutetica porque crer numa cousa sem ser com uma razatildeo embora aparente (como acontece na metafiacutesica que procura explicar) natildeo sendo essa cousa um elemento da experiecircncia (objetiva) eacute querer substituir essa experiecircncia (PESSOA 2015 p446)

Diante do exposto podemos inferir que o conjunto das ideias e praacuteticas civilizatoacuterias arraigadas na tradiccedilatildeo da perma-necircncia do ldquomesmordquo agem de modo constante a minar as forccedilas vitais Ora com civilizaccedilatildeo natildeo haacute vida mas morte pelo dese-quiliacutebrio de tais forccedilas conforme vimos Assim tanto as formas de ldquointeligecircncia de abstraccedilatildeordquo quanto de ldquoimaginaccedilatildeordquo sendo esta desdobrada em ldquomatemaacuteticardquo e ldquocriacuteticardquo atuam como ins-trumentos de evasatildeo da objetividade da experiecircncia seja arte

2 Em manuscrito o texto eacute complementado no final ldquoA criacutetica eacute em suma todo o artifiacutecio que eacute feito com inteligecircncia e sem fim social nenhum Desde que sirva um ideal em vez de uma impressatildeo [] a criacutetica eacute falsa como criacutetica natildeo eacute criacutetica em suma mas soacute opiniatildeordquo Cf PESSOA 2015 p678-688

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

93

seja religiatildeo Nesse caso a arte eacute que nos interessa e essa mesma arte como forma de criacutetica desponta-se com duas faces por um lado ldquoa vida natildeo prestardquo logo faccedilo arte para ldquosuportar a vidardquo aliviar o ldquoFadordquo em um exerciacutecio redentorista atraveacutes da obra por outro admite-se a brevidade e o pouco que a vida seja e passa-se a afirmar e utilizar das forccedilas que se dispotildee para afirmaccedilatildeo objetiva e plena da existecircncia Vale assim lem-brar de uma passagem de uma ode de Aacutelvaro de Campos ldquoTal-vez porque a alma eacute grande e a vida pequenaE todos os gestos natildeo saem do nosso corpoE soacute alcanccedilamos onde o nosso braccedilo chegaE soacute vemos ateacute onde chega o nosso olhar rdquo (PESSOA 2015 p58)

Os textos em tela podem ser entendidos como um esbo-ccedilo daquilo que Aacutelvaro de Campos denominou ldquoesteacutetica natildeo-aris-toteacutelicardquo Nosso proacuteximo intento eacute o de mostrar de forma concisa essa ldquodoutrinardquo que Campos afirma ter visto aplicada em ape-nas trecircs poetas ldquonos assombrosos poemas de Walt Whitmanrdquo ldquonos poemas mais que assombrososrdquo do mestre Caeiro e nas duas odes a Ode triunfal e a Ode mariacutetima de sua proacutepria au-toria (PESSOA 2015 p436-444)

3

Divididos em duas seccedilotildees os Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica partem no primeiro momento do se-guinte pressuposto haacute as geometrias natildeo-euclidianas ou seja que se baseiam em postulados diferentes dos formulados por Euclides de Alexandria e chegam a resultados tambeacutem diferen-tes Cada uma das geometrias possui desenvolvimentos loacutegi-cos peculiares sendo ldquosistemas interpretativos independentes independentemente aplicaacuteveis agrave realidaderdquo Do mesmo modo que se formaram as geometrias que natildeo seguiam os postulados euclidianos seria uacutetil a formaccedilatildeo de uma esteacutetica que natildeo fosse pautada nos princiacutepios aristoteacutelicos Logo Aacutelvaro de Campos esclarece

Chamo de esteacutetica aristoteacutelica agrave que pretende que o fim da arte eacute (sic) a beleza ou dizendo melhor a produccedilatildeo nos outros da mesma impressatildeo que a que nasce da con-templaccedilatildeo ou sensaccedilatildeo das coisas belas Para arte claacutessica ndash e as suas derivadas a romacircntica a decadente e outras assim - a beleza eacute o fim divergem apenas os caminhos para esse fim exatamente como em matemaacutetica se podem fazer diversas demonstraccedilotildees do mesmo teorema A arte claacutessica deu-nos obras grandes e sublimes o que natildeo quer dizer que a teoria de construccedilatildeo dessas obras seja certa ou que seja a uacutenica teoria ldquocertardquo Eacute frequente aliaacutes tanto na vida teoacuterica como na pratica chegar-se a um resultado certo por proces-sos incertos ou mesmo errados Creio poder formular uma

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

94

esteacutetica natildeo na ideia de beleza mas na de forccedila ndash tomando eacute claro a palavra forccedila no seu sentido abstrato e cientiacutefico porque se fosse no vulgar tratar-se-ia de certa maneira ape-nas de uma forma disfarccedilada de beleza Esta nova esteacutetica ao mesmo tempo que admite como boas grande nuacutemero de obras claacutessicas ndash admitindo-as poreacutem por uma razatildeo diferen-te da dos aristoteacutelicos que foi naturalmente tambeacutem a dos seus autores - estabelece uma possibilidade de se constru-iacuterem novas espeacutecies de obras de arte que quem sustente a teoria aristoteacutelica natildeo poderia prever ou aceitar (PESSOA 2015 p436-437)

A arte na esteacutetica natildeo-aristoteacutelica de Aacutelvaro de Campos origina-se do mesmo princiacutepio vital de toda atividade humana gerada pela ldquoforccedila ou energiardquo Entatildeo sendo a arte ldquoum produto de entes vivosrdquo conforme ele disse isto eacute ldquoum produto da vidardquo as forccedilas que se manifestam na obra satildeo as mesmas formas as quais se manifestam na vida Por essa via a produccedilatildeo ar-tiacutestica tende a acontecer a partir das forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo semelhantes ao ldquoanabolismordquo e ldquocatabolismordquo orgacircnicos No entanto ldquosem a coexistecircncia e equiliacutebrio destas duas forccedilas natildeo haacute vida pois a pura integraccedilatildeo eacute a ausecircncia da vida e a pura desintegraccedilatildeo eacute a morterdquo (PESSOA 2015 p437) Ademais ldquoa vida eacute uma accedilatildeo acompanhada automaacutetica e intrinsecamente da reaccedilatildeo correspondente E eacute no automa-tismo da reaccedilatildeo que reside o fenocircmeno especiacutefico da vidardquo O ldquovalor da vidardquo ou a ldquovitalidade do organismordquo estaacute condicionado agrave ldquointensidaderdquo igual e paralela de accedilatildeo e reaccedilatildeo a fim de que se mantenha o equiliacutebrio e que se evite uma proporcionalidade inversa na accedilatildeo e reaccedilatildeo das forccedilas Nesse sentido Aacutelvaro de Campos conclui ldquoAssim o equiliacutebrio vital eacute natildeo um fato dire-to ndash como querem para a arte (natildeo esqueccedilamos o fim destes apontamentos) os aristoteacutelicos ndash mas o resultado abstrato do encontro de dois fatosrdquo

Na concepccedilatildeo de Campos ldquoa arte eacute feita por se sentir e para se sentir ndash sem o que seria ciecircncia ou propagandardquo logo ldquoa sensibilidade eacute a vida da arterdquo No interior da sensibilidade deve haver accedilatildeo e reaccedilatildeo atuando sobre a estrutura equilibra-da de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo com a finalidade de fazer existir a arte Aacutelvaro de Campos crecirc que sua teoria ldquoeacute mais loacutegi-ca ndash se eacute que haacute loacutegicardquo do que a aristoteacutelica pelo fato de que na sua teoria ldquoa arte fica o contraacuterio da ciecircncia ndash entendemos aqui ciecircncia por teacutecnica ndash o que na aristoteacutelica natildeo acontecerdquo (Ibidem p 242) Segundo Georg Rudolf Lind a diferenccedila feita por Campos entre a teoria aristoteacutelica e a natildeo-aristoteacutelica im-plicam a primeira a qual conforme afirmou o poeta tem por finalidade ldquoagradarrdquo estabelece-se em ldquo1) beleza 2) inteligecircn-cia e 3) unidaderdquo a segunda enunciada por Campos reivindica ldquo1) forccedila 2) sensibilidade e 3) unidaderdquo (LIND 1981 p 226) Das ldquoanalogias abstrusasrdquo observa Lind o poeta e engenheiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

95

daacute um salto abruptamente nas consideraccedilotildees a fim de concluir que ldquoa esteacutetica aristoteacutelica tende do individual para o geral () a natildeo-aristoteacutelica em contrapartida do geral para o particularrdquo (Ibidem p 227) Se a primeira parte dos Apontamentos eacute passiacute-vel de muitas ressalvas a segunda o eacute mais ainda Se o projeto de uma nova teoria esteacutetica eacute faliacutevel ainda escreve Lind ldquoas demonstraccedilotildees pseudoloacutegicas da 2ordf parte contecircm ainda uma quantidade maior de errosrdquo (LIND 1981 p 227) Ainda se com-parado ao Ultimatum seu manifesto de vanguarda a referida seccedilatildeo de tais apontamentos pouco foi modificada sendo dessa maneira uma repeticcedilatildeo das mesmas ideias do manifesto

A complexidade e as abstraccedilotildees dos conceitos criados por Aacutelvaro de Campos no intento de fundar uma teoria esteacutetica vigorosa contraacuteria agrave tradiccedilatildeo aristoteacutelica fizeram com que seu projeto com ares futuristas de unir ciecircncia e arte falhasse con-forme acreditam comentadores tais como Almeida Faria Joatildeo Gaspar Simotildees e o jaacute citado Georg Rudolf Lind Entretanto ponto consideravelmente forte desenvolvido pelo natildeo-aristote-lismo de Campos foi sem duacutevida a postura incisiva no combate aos atos civilizatoacuterios que ldquofazem morrerrdquo no homem sua forccedila natural instintiva de reaccedilatildeo e criaccedilatildeo

Nesse sentido cremos que a teoria de Campos tenha saiacutedo vitoriosa o escrito sob o tiacutetulo A influecircncia da engenharia nas artes nacionais aparece conforme dissemos no iniacutecio de modo preliminar agrave ideia de negaccedilatildeo da esteacutetica de Aristoacuteteles A relaccedilatildeo desse primeiro momento das ideias de Campos com os seus Apontamentos para uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica pode ser estabelecida quando consideramos que a aceitaccedilatildeo dos termos aristoteacutelicos correlatos harmonia e beleza tende a um princiacutepio de arranjo estruturado pela permanecircncia aniquiladora dos ins-tintos naturais natildeo harmocircnicos do homem Ora se desarmonia e feiuacutera (fealdade na lsquoterminologiarsquo pessoana) constituem tam-beacutem a natureza realmente natildeo haacute sentido em crer-se apenas na arte fundada na estreita relaccedilatildeo da harmonia das partes de um todo implicando princiacutepio de beleza Contudo haacute no pensa-mento de Campos um requerimento de equiliacutebrio entre as forccedilas de ldquointegraccedilatildeordquo e ldquodesintegraccedilatildeordquo que poderia ser entendido tal como um princiacutepio de harmonia do mesmo modo que em Aris-toacuteteles se o plano teoacuterico do poeta da Ode triunfal natildeo fosse baseado na ideia de ldquoforccedilardquo

4

Diante da possibilidade de a sensibilidade imperar no processo de fazer artiacutestico abrimos caminhos para pensar na substacircncia fiacutesica ou na estrutura do ser humano o corpo Quan-do Fernando Pessoa esboccedila a possibilidade de uma esteacutetica natildeo-aristoteacutelica mesmo natildeo concluiacuteda mesmo natildeo sendo para

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

96

alguns aplicaacutevel agrave proacutepria obra ou a qualquer obra que seja her-damos uma fenda larga como passagem pelo muro das repre-sentaccedilotildees cristalizadas Eacute muito evidente que o seu linguajar se aproprie da biologia e da matemaacutetica num diaacutelogo estabelecido entre arte e ciecircncia esteacutetica e epistemologia esteacutetica e eacutetica Poreacutem evidente tambeacutem eacute que o mesmo natildeo desloca os ins-tintos do gecircnero humano para fora da sociedade Ao contraacuterio observa que esse meio artificial atenta de modo frequente agraves forccedilas vitais tendendo agrave perenidade e que cabe ao ser humano criador de arte o artista atraveacutes da sensibilidade das sensa-ccedilotildees recebidas pelo seu corpo se desvencilhar das amarras da tradiccedilatildeo que faz morrer Morrer no sentido de anular-se natildeo no de transformar-se dando lugar a outra coisa agrave outra ldquovidardquo Um poeta absorve impressotildees de toda ordem das vivecircncias faz com que as mesmas ldquomorramrdquo nele transformando-as para dar agrave luz ao poema que por sua vez provocaraacute sensaccedilotildees no leitor ldquoE os que leem o que escreveNa dor lida sentem bemNatildeo as duas que ele teveMas soacute a que eles natildeo tecircmrdquo (PESSOA 2001 p164-165)

Joseacute Gil em Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sen-saccedilotildees mesmo natildeo abordando as reflexotildees sobre a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica aproximou os escritos de Campos ao conceito de ldquocorpo sem oacutergatildeosrdquo de Deleuze e Guattarri o relacionando ao ldquoplano de consciecircnciardquo criado pelo poeta (GIL 1998 p66-75) Em suma a anaacutelise de Gil se estabelece na poesia de Aacutelvaro de Campos colocando o heterocircnimo pessoano enquanto ldquoanali-sador de sensaccedilotildeesrdquo no espaccedilo abstrato revelado nos poemas Entatildeo considerando as observaccedilotildees do criacutetico portuguecircs seria possiacutevel uma relaccedilatildeo entre o natildeo-aristotelismo pensado pelo heterocircnimo sensacionista e o seu fazer poeacutetico Da perspectiva sobre as sensaccedilotildees e do enfrentamento dos atos civilizatoacuterios que negam a vida no plano da imanecircncia pelo alcance da bele-za por meios natildeo-tradicionais a resposta eacute sim

Por fim a esteacutetica natildeo-aristoteacutelica figura natildeo apenas en-quanto pensamento oposto agraves poeacuteticas claacutessicas aristoteacutelicas mas tambeacutem se apresenta como marco natildeo-normativo natildeo--prescritivo de um modelo a ser seguido ainda que seu autor afirme que a finalidade seja a mesma o alcance da beleza se-guindo meios distintos o mesmo autor desconstroacutei a rigidez da tradiccedilatildeo apontando-nos uma via de acesso agrave arte pelo corpo Uma via de matildeo dupla na qual tanto quem faz da arte um acon-tecimento independente do suporte (palavra imagem som etc) quanto quem exerce a fruiccedilatildeo seja perpassado e afetado de alguma forma pela expressatildeo esteacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 88-97jul-dez 2017

97

BIBLIOGRAFIA

ARISTOacuteTELES Poeacutetica 7ed Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterios e apecircndices de Eudoro de Sousa Lisboa Impren-sa Nacional ndash Casa da Moeda 2003

GIL Joseacute Fernando Pessoa ou a metafiacutesica das sensaccedilotildees Lisboa Reloacutegio Drsquoaacutegua 1988

LIND Georg Rudolf Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1981 (Estudos Portugue-ses)

LOPES Teresa Rita Fernando Pessoa et le drame symbo-liste heacuteritage et creacuteation Paris De La Difeacuterence 2004 (Les Essais)

PESSOA Fernando Apontamentos para uma esteacutetica natildeo--aristoteacutelica In___ Obra completa de Aacutelvaro de Campos Edi-ccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p436-444

___ ANEXO Geacutenese dos ldquoApontamentosrdquo In___ Obra com-pleta de Aacutelvaro de Campos Ediccedilatildeo de Jeroacutenimo Pizarro Rio de Janeiro Tinta-da-China Brasil 2015 p445-446

___ Obra poeacutetica Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001

___ Obra em prosa Organizaccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notas de Cle-onice Berardineli 2ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

98

Fernando Pessoa e sua Filosofia da ComposiccedilatildeoFernando Pessoa and his Philosophy of Composition

Palavras-chave Heteroniacutemia identidade natildeo-identidade autorreflexatildeo desper-sonalizaccedilatildeo personificaccedilatildeo forma sensaccedilatildeoKeywords Heteronym identity non-identity cogito self-reflexion depersonali-zation personification form sensation

RESUMO Examinarei alguns niacuteveis formais do paradoxo e da contradiccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro de Fernando Pessoa explicitando aspectos formais do processo de desper-sonalizaccedilatildeo que move sua escrita poeacutetica Mostrarei em segui-da como ao trilhar o caminho de despersonalizaccedilatildeo aberto pela certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro Aacutelvaro de Campos conden-sa estilhaccedilos de noccedilotildees reflexivas do sujeito levando agraves uacuteltimas consequecircncias a despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico tal como teori-zado por Fernando Pessoa

ABSTRACT This article aims to show some formal levels of paradox and contradiction on the dramatic poem The Sailor taking into account the subjective drama that moves its poetic writing Hope to show how Aacutelvaro de Campos treading the path of depersonalization opened by the sense-certainty of Alberto Caeiro condenses fragments of reflective notions of the subject as propelling elements of depersonalization such as it is treated by Pessoa

1 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo

Quando Fernando Pessoa escreve sobre os heterocircni-mos ele pensa imediatamente no ato de invenccedilatildeo literaacuteria ca-paz de unir sob uma forma superior de composiccedilatildeo os efeitos dramaacuteticos da despersonalizaccedilatildeo e as formas de expressatildeo correntes na tradiccedilatildeo literaacuteria ocidental A despersonalizaccedilatildeo figura como responsaacutevel pela reuniatildeo de diferentes graus de elaboraccedilatildeo do estilo numa forma superior de composiccedilatildeo Essa ideia encontra-se particularmente desenvolvida em dois frag-mentos em que o poeta distingue os cinco ldquograus da poesia liacuteri-cardquo entendendo-os como progressatildeo intensiva da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica

O terceiro grau da poesia liacuterica eacute aquele em que o poeta ainda mais intelectual comeccedila a despersonalizar-se a sentir natildeo jaacute porque sente mas porque pensa que sente a sentir estados de alma que realmente natildeo tem simplesmente por-

Rubens Joseacute da Rocha

Doutorando pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia da UFSCar E-mail ens_rubensyahoocombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

99

que os compreende Estamos na antecacircmara da poesia dra-maacutetica na sua essecircncia iacutentima O temperamento do poeta seja qual for estaacute dissolvido pela inteligecircncia A sua obra seraacute unificada soacute pelo estilo uacuteltimo reduto da sua unidade espiri-tual da sua coexistecircncia consigo mesmo O quarto grau da poesia liacuterica eacute aquele muito mais raro em que o poeta mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo entra em plena despersonalizaccedilatildeo Natildeo soacute sente mas vive os estados de alma que natildeo tem directamente Em grande nuacutemero de ca-sos cairaacute na poesia dramaacutetica propriamente dita como fez Shakespeare poeta substancialmente liacuterico erguido a dramaacute-tico pelo espantoso grau de despersonalizaccedilatildeo que atingiu (PESSOA 1993 pp 274-275)1

Ao lado de noccedilotildees como ldquotemperamentordquo ldquosentimentordquo ldquoemoccedilatildeordquo ldquoimaginaccedilatildeordquo e ldquointeligecircnciardquo a despersonalizaccedilatildeo aparece como um dos conceitos centrais na caracterizaccedilatildeo do eu liacuterico e das personagens dramaacuteticas O poeta compreende o conceito segundo a ideia de uma progressatildeo expressiva que se desdobra da poesia liacuterica em direccedilatildeo agrave poesia dramaacutetica e alcanccedila sua forma ideal de expressatildeo na poesia heterocircnima A poesia liacuterica eacute o gecircnero que define as duas primeiras etapas Na terceira completa-se o primeiro ciclo de despersonalizaccedilatildeo com o deslocamento da unidade expressiva do eu liacuterico para uma posiccedilatildeo coadjuvante em face agraves exigecircncias de unidade da forma dramaacutetica Nas duas etapas finais o poeta descreve a po-esia heterocircnima em comparaccedilatildeo agrave forma dramaacutetica em particu-lar nas peccedilas de Shakespeare em que o monoacutelogo se sobrepotildee ao diaacutelogo entre as personagens

No primeiro grau de despersonalizaccedilatildeo a escrita produz a unidade expressiva do eu liacuterico como forma poeacutetica ligada agrave personalidade do autor A forma poeacutetica ainda natildeo goza de au-tonomia com relaccedilatildeo agrave ldquomaneira de sentirrdquo do poeta (seu tempe-ramento) estando a unidade do eu liacuterico diretamente vinculada agrave sua atitude psicoloacutegica O segundo grau ocorre quase exclu-sivamente no interior da forma poeacutetica quando o temperamen-to do poeta e o estilo encontram-se enredados num complexo movimento de reflexatildeo na busca de uma saiacuteda possiacutevel para a

1 A esta passagem corresponde este trecho de um segundo texto so-bre os graus da poesia liacuterica ldquoUm passo mais na escala poeacutetica [terceiro grau] e temos o poeta que eacute uma criatura de sentimentos vaacuterios e fictiacutecios mais imaginativo do que sentimental e vivendo cada estado de alma antes pela inteligecircncia que pela emoccedilatildeo Este poeta exprimir-se-aacute como uma mul-tiplicidade de personagens unificadas natildeo jaacute pelo temperamento e o estilo pois que o temperamento estaacute substituiacutedo pela imaginaccedilatildeo e o sentimento pela inteligecircncia mas tatildeo-somente pelo simples estilo Outro passo na mes-ma escala de despersonalizaccedilatildeo [quarto grau] ou seja de imaginaccedilatildeo e temos o poeta que em cada um de seus estados mentais vaacuterios se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza de sorte que vivendo ana-liticamente esse estado da alma faz dele como que a expressatildeo de um ou-tro personagem e sendo assim o mesmo estilo tende a variarrdquo (PESSOA 1993 pp 274-275)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

100

oposiccedilatildeo entre sentir e pensar (emoccedilatildeo e inteligecircncia)No terceiro grau ocorre a despersonalizaccedilatildeo da ldquomanei-

ra de sentirrdquo que conferia unidade ao eu liacuterico O movimento de autorreflexatildeo forccedila a forma poeacutetica a distanciar-se ainda mais da atitude psicoloacutegica do autor cindindo o eu liacuterico em duas ou mais identidades Ocorre entatildeo a personificaccedilatildeo dessas identi-dades em personagens que dialogam e interagem segundo exi-gecircncias formais do gecircnero dramaacutetico Como veremos adiante a personificaccedilatildeo seraacute compreendida natildeo apenas como figura de estilo cuja funccedilatildeo consiste em atribuir caracteriacutesticas da per-sonalidade humana a animais objetos e ideias abstratas mas tambeacutem como composiccedilatildeo de uma identidade a qual se atribui alternadamente segundo certa dinacircmica de oposiccedilatildeo agrave natildeo-i-dentidade o estatuto ficcional de uma maacutescara uma figura ou de uma personalidade heteroniacutemica

No quarto grau inicia-se a despersonalizaccedilatildeo da forma dramaacutetica A natildeo-identidade entre as maneiras de sentir pensar e falar das personagens promove a suspensatildeo das unidades de tempo e espaccedilo observando-se no quinto grau de desper-sonalizaccedilatildeo a personificaccedilatildeo da alteridade simboacutelica do drama (o autor o puacuteblico o leitor) As personagens abandonam aos poucos a seacuterie de oposiccedilotildees entre o pensar o sentir o falar e o agir para personificar a forma poeacutetica com a atitude psicoloacutegica de personagens que falam e atuam simultaneamente como au-tor ator diretor puacuteblico e leitor de seu proacuteprio drama subjetivo

2 A despersonalizaccedilatildeo no poema dramaacutetico O Marinheiro

O poema dramaacutetico O Marinheiro eacute um dos passos de-cisivos na caracterizaccedilatildeo do processo de despersonalizaccedilatildeo teorizado pelo poeta2 Escrito em 1913 e publicado no primeiro volume da revista Orpheu em 1915 o poema conjuga caracte-riacutesticas do terceiro e quarto graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico Estampada no frontispiacutecio da obra a noccedilatildeo de ldquodrama es-taacutetico em um quadrordquo3 pode ser interpretada como execuccedilatildeo de um plano de superaccedilatildeo da esteacutetica aristoteacutelica plano que se en-contra na base do drama subjetivo nos heterocircnimos4 Desde o 2 Nas palavras de Carlos Felipe Moiseacutes ldquoOs poucos estudiosos que se manifestaram a respeito poreacutem sugerem de um modo ou de outro que eacute um texto decisivo para a compreensatildeo do conjunto da poesia pessoana quando menos porque o seu lsquodrama estaacutetico em um quadrorsquo como o chamou o poeta pode ser visto como lsquoensaiorsquo preliminar em torno de algumas linhas de forccedila da obra heteroniacutemica ainda praticamente toda por criarrdquo (MOISEacuteS CF Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p163)3 Praticado e teorizado por dramaturgos simbolistas como Strindberg e Maeterlinck Cf LOPES MTR Fernando Pessoa et le Drame Symboliste4 Em sua proposta de superaccedilatildeo do pensamento aristoteacutelico Aacutelvaro de Campos opotildee ao conceito de beleza o conceito de forccedila cuja principal ca-racteriacutestica seria o embate entre os princiacutepios de integraccedilatildeo e desintegraccedilatildeo orgacircnica da vida ldquoA arte para mim eacute como toda a atividade um indiacutecio de forccedila ou energia mas como a arte eacute produzida por entes vivos sendo pois

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

101

iniacutecio do diaacutelogo eacute possiacutevel notar uma seacuterie de atitudes que faz as trecircs personagens recuar diante da exigecircncia tradicional da accedilatildeo Um recuo representado natildeo soacute pela disposiccedilatildeo espacial de cada personagem (que se encontram sentadas e portanto inertes diante de ldquouma janela alta e estreitardquo no interior de ldquoum castelo antigordquo) mas tambeacutem pela sequecircncia de enunciaccedilotildees negativas precedidas pelo adveacuterbio de negaccedilatildeo

PRIMEIRA VELADORA mdash Ainda natildeo deu hora nenhu-ma

SEGUNDA mdash Natildeo se pode ouvir Natildeo haacute reloacutegio aqui perto Dentro em pouco deve ser dia

TERCEIRA mdash Natildeo o horizonte eacute negroPRIMEIRA mdash Natildeo desejais minha irmatilde que nos en-

tretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falso

SEGUNDA mdash Natildeo natildeo falemos nisso De resto fo-mos noacutes alguma cousa

PRIMEIRA mdash Talvez Eu natildeo sei Mas ainda assim sempre eacute belo falar do passado As horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircncio Por mim tenho estado a olhar para a chama daquela vela Agraves vezes treme ou-tras torna-se mais amarela outras vezes empalidece Eu natildeo sei por que eacute que isso se daacute Mas sabemos noacutes minhas irmatildes por que se daacute qualquer cousa

(uma pausa) TERCEIRA mdash Por que natildeo haveraacute reloacutegio neste quar-

to SEGUNDA mdash Natildeo sei Mas assim sem o reloacutegio

tudo eacute mais afastado e misterioso A noite pertence mais a si proacutepria Quem sabe se noacutes poderiacuteamos falar assim se soubeacutessemos a hora que eacute

PRIMEIRA mdash Minha irmatilde em mim tudo eacute triste Passo Dezembros na alma Estou procurando natildeo olhar para a janela Sei que de laacute se vecircem ao longe montes Eu fui feliz para aleacutem de montes outrora Eu era pequeni-na Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que natildeo mas tirassem Natildeo sei o que isto tem de irre-paraacutevel que me daacute vontade de chorar Foi longe daqui que isto pocircde ser Quando viraacute o dia

TERCEIRA mdash Que importa Ele vem sempre da mes-ma maneira sempre sempre sempre

(uma pausa)5

um produto da vida as formas da forccedila que se manifestam na arte satildeo as formas da forccedila que se manifestam na vidardquo (Obra em Prosa Apontamentos para uma Esteacutetica natildeo Aristoteacutelica p241)5 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp441-442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

102

Logo no iniacutecio do poema trecircs irmatildes velam a morte de uma quarta que se encontra no centro do quarto estendida so-bre um caixatildeo O diaacutelogo comeccedila quando uma delas nota a au-secircncia de reloacutegio no quarto A ausecircncia de accedilatildeo dramaacutetica entra aos poucos em evidecircncia com a transposiccedilatildeo do tempo linear do reloacutegio para o tempo psicoloacutegico das veladoras As enunciaccedilotildees negativas impulsionam o diaacutelogo em sentido inverso ao tempo linear (o drama inicia-se ao anoitecer e termina ao romper do dia) o que leva as personagens a buscar no passado o sentido necessaacuterio para suprir a ausecircncia de accedilatildeo Na busca pelo senti-do o diaacutelogo se sobrepotildee agrave accedilatildeo ldquoNeste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar ten-do Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes delerdquo Falar do passado implica natildeo soacute interromper o ritmo da accedilatildeo dramaacute-tica mas tambeacutem sobrepor agrave pulsatildeo linear do reloacutegio (para elas inexistente) uma pulsatildeo lacunar de origem psicoloacutegica6

A transposiccedilatildeo do tempo linear para o tempo psicoloacutegico ocorre a partir da oposiccedilatildeo entre o silecircncio e a fala das velado-ras ldquoAs horas tecircm caiacutedo e noacutes temos guardado silecircnciordquo A opo-siccedilatildeo entre o silecircncio e a fala aparece marcada pelas reticecircncias e pausas que costumam entrecortar natildeo somente a fala das personagens como tambeacutem os momentos criacuteticos do diaacutelogo Se de iniacutecio a transposiccedilatildeo psicoloacutegica do tempo7 ldquoPasso De-zembros na almardquo representa o recuo da personagem diante da accedilatildeo ela representaraacute a seguir a ultrapassagem do tempo psicoloacutegico pela accedilatildeo estaacutetica do sonho A oposiccedilatildeo entre o recuo da accedilatildeo em direccedilatildeo ao passado e a ultrapassagem do presente pelo sonho constitui um continuum temporal represen-tado pelo quarto circular do castelo antigo Ao destacar-se da pulsatildeo linear do reloacutegio a oposiccedilatildeo entre as atitudes de recuo e ultrapassagem impulsiona a fala das personagens (o vento e a luz cambiante da vela) para fora da clausura subjetiva ldquoNatildeo desejais minha irmatilde que nos entretenhamos contando o que fomos Eacute belo e eacute sempre falsordquo ou para o plano horizontal da escrita (ldquoNatildeo o horizonte eacute negrordquo) Um complexo movimento de reflexatildeo sobressalente ao jogo dos significantes (assonacircn-cia e aliteraccedilatildeo) interfere diretamente na orquestraccedilatildeo simboacuteli-ca do poema A ultrapassagem da accedilatildeo dramaacutetica pelo sonho personificada na figura da irmatilde morta torna-se cada vez mais evidente com a recusa da segunda veladora de levar a cabo o gesto de se levantar ou seja o gesto de projetar-se em direccedilatildeo 6 Maria Teresa Rita Lopes comenta da seguinte maneira essa ausecircn-cia temporal ldquoCe nrsquoest que coupeacutees de tout contact avec le monde quotidien en flottant dans ce lsquonulle-temps et dans de lsquonulle partrsquo du recircve que leurs paro-le srsquoeacutepanouissent en toute liberteacute jusqursquoagrave leur paraicirctre eacutetrangegraveres agrave elles-mecirc-mes (RITA LOPES MariaTeresa Fernando Pessoa et le Drame Symboliste Heritage et Creation p189)7 BACHELARD Gaston A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo pp85-103 Mais tar-de para fixar com maior precisatildeo a singularidade do parto heteroniacutemico o poeta sentiraacute ainda necessidade de sobrepor ao tempo psiacutequico dos heterocirc-nimos o tempo astroloacutegico calcado nos dados objetivos de nascimento de cada heterocircnimo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

103

ao futuro por meio de uma accedilatildeo atitude que impediria o sonho de avanccedilar para fora dos tempos linear e psicoloacutegico ldquoNatildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonhordquo A tensatildeo entre o gesto estaacutetico da fala (ou da escri-ta) e a encenaccedilatildeo progressiva do sonho resulta na duplicaccedilatildeo do impulso criativo ldquoContemos contos umas agraves outrasrdquo como promessa de saiacuteda do conflito entre as categorias temporais a imaginaccedilatildeo e a realidade

SEGUNDA mdash Contemos contos umas agraves outras Eu natildeo sei contos nenhuns mas isso natildeo faz mal Soacute vi-ver eacute que faz mal Natildeo rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes Natildeo natildeo vos levanteis Isso seria um gesto e cada gesto interrompe um sonho Neste momento eu natildeo tinha sonho nenhum mas eacute-me suave pensar que o podia estar tendo Mas o passado mdash por que natildeo falamos noacutes dele

PRIMEIRA mdash Decidimos natildeo o fazer Breve raiaraacute o dia e arrepender-nos-emos Com a luz os sonhos ador-mecem O passado natildeo eacute senatildeo um sonho De resto nem sei o que natildeo eacute sonho Se olho para o presente com muita atenccedilatildeo parece-me que ele jaacute passou O que eacute qualquer cousa Como eacute que ela passa Como eacute por dentro o modo como ela passa Ah falemos minhas irmatildes falemos alto falemos todas juntas O silecircncio co-meccedila a tomar corpo comeccedila a ser cousa Sinto-o en-volver-me como uma neacutevoa Ah falai falai8

Cada sonho desliza portanto sobre uma seacuterie de opo-siccedilotildees simboacutelicas atraveacutes da qual alternam-se os gestos da fala e da escrita Gestos e atitudes que condensam ou dispersam ao longo do diaacutelogo os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do so-nho ateacute a completa suspensatildeo da aderecircncia psicoloacutegica das irmatildes ao ritmo linear do reloacutegio com a narraccedilatildeo do sonho do marinheiro pela segunda veladora nuacutecleo da tensatildeo dramaacutetica Ao percorrer os diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo do sonho a ati-tude psicoloacutegica das veladoras oscila (a chama da vela) entre a direccedilatildeo perpendicular do pensamento (o segredo de pedra dos montes) e as direccedilotildees obliacutequa e horizontal da fala e da escrita (ldquoporque natildeo vale nunca a pena fazer nadardquo) tornando possiacutevel alccedilar a atitude psicoloacutegica das veladoras (pelo amor agraves ondas) ao plano de um continuum temporal oniacuterico

TERCEIRA mdash As vossas frases lembram-me a minha alma

SEGUNDA mdash Eacute talvez por natildeo serem verdadeiras Mal sei que as digo Repito-as seguindo uma voz que natildeo ouccedilo que mas estaacute segredando Mas eu devo ter vivido realmente agrave beira-mar Sempre que uma cousa

8 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp 442

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

104

ondeia eu amo-a Haacute ondas na minha alma Quando ando embalo-me Agora eu gostaria de andar Natildeo o faccedilo porque natildeo vale nunca a pena fazer nada sobre-tudo o que se quer fazer Dos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e gran-des Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um mo-mento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz9

A despersonalizaccedilatildeo ocorre a partir desse desniacutevel entre o ritmo linear (andar) e o ritmo lacunar (ondear) como expres-satildeo da descontinuidade entre o tempo linear da accedilatildeo e o tempo psicoloacutegico da fala ou seja como ato criativo que evidencia o desniacutevel formal entre a fala das veladoras e a ultrapassagem autorreflexiva do sonho A despersonalizaccedilatildeo das personagens e a ultrapassagem da accedilatildeo pelo sonho servem de mola pro-pulsora para a personificaccedilatildeo do marinheiro personagem que figura no drama atraveacutes da estoacuteria de um naufraacutegio narrada pela segunda veladora Ao reduplicar o processo criativo com a estoacuteria do marinheiro a segunda veladora torna-se responsaacutevel pela dobra temporal que se situa na intermitecircncia entre os dois mundos possiacuteveis no drama o mundo sonhado agrave luz da vela e o mundo sonhado agrave luz do sol

SEGUNDA mdash Para quecirc Fito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos Este ar quente eacute frio por dentro naquela parte que toca na alma Eu devia agora sentir matildeos impossiacuteveis passarem-me pelos ca-belos mdash eacute o gesto com que falam das sereias (Cru-za as matildeos sobre os joelhos Pausa) Ainda haacute pouco quando eu natildeo pensava em nada estava pensando no meu passado

PRIMEIRA mdash Eu tambeacutem devia ter estado a pen-sar no meu

TERCEIRA mdash Eu jaacute natildeo sabia em que pensava No passado dos outros talvez no passado de gente ma-ravilhosa que nunca existiu Ao peacute da casa de minha matildee corria um riacho Por que eacute que correria e por que eacute que natildeo correria mais longe ou mais perto Haacute alguma razatildeo para qualquer cousa ser o que eacute Haacute para isso qualquer razatildeo verdadeira e real como as minhas matildeos10

Ao ampliar a tensatildeo entre o plano horizontal da fala ou 9 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44310 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p443

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

105

da escrita e o plano perpendicular do sonho a despersonaliza-ccedilatildeo desestrutura os elementos de composiccedilatildeo que cumprem funccedilatildeo simboacutelica na individuaccedilatildeo das personagens ldquoAs matildeos natildeo satildeo verdadeiras nem reais Satildeo misteacuterios que habitam na nossa vida agraves vezes quando fito as minhas matildeos tenho medo de Deus Natildeo haacute vento que mova as chamas das velas e olhai elas movem-se Para onde se inclinam elas Que pena se algueacutem pudesse responderrdquo11 O impulso de desper-sonalizaccedilatildeo desliza em direccedilatildeo obliacutequa sobre o plano horizon-tal da escrita criando diversas associaccedilotildees entre significante e significado (vela vento veladora mar marinheiro onda andar alma amar) de modo a produzir um regime de significaccedilotildees instaacuteveis que no limite da tensatildeo gera um vaacutecuo de sentido responsaacutevel pela propulsatildeo do sonho em duas direccedilotildees tem-porais superpostas primeiro em direccedilatildeo ao passado rumo ao universo infantil simbolizado pelo ato de personificaccedilatildeo de flo-res ondas rochedos etc e segundo em direccedilatildeo ao futuro rumo ao nada existencial simbolizado pela presenccedila da quarta irmatilde morta A superposiccedilatildeo temporal dessas duas direccedilotildees sus-pende progressivamente qualquer apelo subjetivo agrave identidade do eu liacuterico ldquoEacute sempre longe na minha alma Talvez porque quando crianccedila corri atraacutes das ondas agrave beira-mar Levei a vida pela matildeo entre rochedos mareacute-baixa quando o mar parece ter cruzado as matildeos sobre o peito e ter adormecido como uma es-taacutetua de anjo para que nunca mais ningueacutem olhasse As vos-sas frases lembram-me a minha almardquo12

A dissoluccedilatildeo do apelo das irmatildes agrave identidade do eu liacuteri-co seraacute tambeacutem o momento da completa dissoluccedilatildeo da forma dramaacutetica tradicional13 ldquoFito-vos a ambas e natildeo vos vejo logo Parece-me que entre noacutes se aumentaram abismos Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver--vosrdquo14 Mas a dissoluccedilatildeo do apelo agrave identidade (segredo de pedra do pensamento) natildeo significa dissipaccedilatildeo do sonho no pla-no horizontal da accedilatildeo Ao contraacuterio o sonho natildeo soacute continua em seu movimento reflexivo de condensaccedilatildeo e dispersatildeo simboacutelica como tambeacutem assume a funccedilatildeo de exprimir a natildeo-identidade da forma dramaacutetica em seus diferentes graus de despersonaliza-ccedilatildeo15 11 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44312 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro pp442 44313 A propoacutesito da dissoluccedilatildeo da forma tradicional no drama simbolista escreve Anatol Rosenfeld ldquoToda a dramaturgia serviraacute apenas para revelar os misteacuterios da proacutepria alma (de um eu central) a partir da qual se projetaraacute mdash como meros reflexos impressotildees ou visotildees mdash os outros personagens jaacute sem posiccedilatildeo autocircnoma e sim transformados em funccedilatildeo do Ego centralrdquo (ROSENFELD Anatol O Teatro Eacutepico p100)14 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44315 Carlos Felipe Moiacuteseacutes descreve do seguinte modo a relaccedilatildeo entre a dispersatildeo do sentido e a despersonalizaccedilatildeo ldquoAbaladas pelo espectro de Thaacutenatos mergulhadas no real caoacutetico gerado pelo poder persuasivo e dilui-dor das palavras as veladoras chegam ao limiar da indistinccedilatildeo entre Ser e Natildeo-ser Mas as falas prosseguem ainda mais ansiosas diante da evidente

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

106

SEGUNDA mdashDos montes eacute que eu tenho medo Eacute impossiacutevel que eles sejam tatildeo parados e grandes De-vem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que tecircm Se desta janela debruccedilando-me eu pudesse deixar de ver montes debruccedilar-se-ia um momento da minha alma algueacutem em quem eu me sentisse feliz

PRIMEIRA mdash Por mim amo os montes Do lado de caacute de todos os montes eacute que a vida eacute sempre feia Do lado de laacute onde mora minha matildee costumaacuteva-mos sentarmo-nos agrave sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves uma de cada lado do caminho A floresta natildeo tinha outras clareiras senatildeo os nossos pensamentos E os nossos sonhos eram de que as aacutervores projectassem no chatildeo outra calma que natildeo as suas sombras Foi decerto assim que ali vivemos eu e natildeo sei se mais algueacutem Dizei-me que isto foi verdade para que eu natildeo tenha de chorar 16

Sob efeito da despersonalizaccedilatildeo a accedilatildeo autorreflexiva do sonho17 desliza sobre o plano obliacutequo da fala suprimindo a identidade das personagens e convertendo o vaacutecuo existen-cial em polo de atraccedilatildeo do sentido A erradicaccedilatildeo da clausura subjetiva da identidade e a personificaccedilatildeo da natildeo-identidade na figura da donzela morta forccedilam a atitude psicoloacutegica das irmatildes a assumir uma forma indefinida como se elas estivessem a falar de Ningueacutem para Ningueacutem Nesse momento elas abandonam o regime de oposiccedilotildees elaborado no jogo entre os significan-tes para assumir o continuum temporal oniacuterico volteando como uma serpente entorno a oposiccedilatildeo entre fala e escuta escrita e leitura

PRIMEIRA mdash Contai sempre minha irmatilde contai sem-pre Natildeo pareis de contar nem repareis em que dias raiam O dia nunca raia para quem encosta a cabeccedila no seio das horas sonhadas Natildeo torccedilais as matildeos Isso faz um ruiacutedo como o de uma serpente furtiva Falai-nos muito mais do vosso sonho Ele eacute tatildeo verdadeiro que natildeo tem sentido nenhum Soacute pensar em ouvir-vos me toca muacutesica na almahellip

SEGUNDA ndashndash Sim falar-vos-ei mais dele Mesmo eu

dispersatildeo do Eu no contexto circundante um contexto que eacute o Eu ao mesmo tempo em que natildeo o eacute mais pois jaacute eacute concomitantemente o Outro (FELIPE MOISEacuteS Carlos Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos p167)16 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44317 Em ensaios de Aacutelvaro de Campos sobre a esteacutetica sensacionista o heterocircnimo refere-se agrave reflexatildeo assim como agraves demais atitudes introspecti-vas e autoanaliacuteticas como manifestaccedilatildeo do impulso sensiacutevel compreenden-do-a como ldquosensaccedilatildeo da sensaccedilatildeordquo Cf Obra em Prosa Ideias Esteacuteticas pp 424-454

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

107

preciso de vo-lo contar Agrave medida que o vou contando eacute a mim tambeacutem que o conto Satildeo trecircs a escutar (De repente olhando para o caixatildeo e estremecendo) Trecircs natildeo Natildeo sei Natildeo sei quantas

TERCEIRA mdash Natildeo faleis assim Contai depressa contai outra vez Natildeo faleis em quantos podem ouvir Noacutes nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vecircem e escutam Voltai ao vosso sonho O marinhei-ro O que sonhava o marinheiro18

O diaacutelogo entre as trecircs veladoras ocorre no primeiro pla-no de composiccedilatildeo da peccedila no qual se consuma o terceiro grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico com a eclosatildeo do horror que a donzela morta aos poucos desperta nas trecircs personagens A presenccedila da personagem morta ocorre no segundo plano e fun-ciona como elemento psicoloacutegico que impulsiona as veladoras para fora da clausura subjetiva quando elas passam a contar e a ouvir a estoacuteria do marinheiro O terceiro plano de composiccedilatildeo corresponde ao quarto grau de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico no decorrer do qual cria-se a expectativa de personificaccedilatildeo do marinheiro como soluccedilatildeo para o problema da unidade dada a ausecircncia da accedilatildeo dramaacutetica Quando a segunda veladora passa a contar a estoacuteria do marinheiro referido ora como personagem sonhado ora como personagem real o contraste entre a fala das veladoras (em primeiro plano) e o silecircncio da donzela morta (no segundo plano) intensifica o processo de despersonalizaccedilatildeo dramaacutetica

Naacuteufrago numa ilha deserta o marinheiro sonha viver numa paacutetria fictiacutecia capaz de apagar e substituir a lembranccedila da paacutetria natal Assim como as veladoras ele tambeacutem se des-personaliza pelo sonho de maneira a personificar um plano de composiccedilatildeo autocircnomo com relaccedilatildeo agrave estoacuteria narrada pela se-gunda veladora passando as trecircs veladoras a desejar personi-ficar o sonho do marinheiro como promessa de vida superior agrave realidade por elas mesmas vivida ldquoDizei-me istoDizei-me uma coisa ainda Por que natildeo seraacute a uacutenica coisa real nisto tudo o marinheiro e noacutes e tudo isto aqui apenas um sonho delerdquo19 O sonho do marinheiro sobrevoa de tal modo a inaccedilatildeo dramaacute-tica das veladoras que elas passam a acreditar na presenccedila fiacutesica do personagem ausente prenunciando a intervenccedilatildeo de uma ldquoquinta pessoardquo em cena ldquoQuem eacute a quinta pessoa neste quarto que estende o braccedilo e nos interrompe sempre que va-mos a sentirrdquo20

No limite da despersonalizaccedilatildeo o movimento autorre-flexivo do sonho desloca o diaacutelogo para o plano de composi-ccedilatildeo da quinta personagem operando a transposiccedilatildeo do ritmo

18 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44819 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p44920 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p451

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

108

psicoloacutegico da fala para o ritmo lacunar do sonho21 O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinheiro e da quinta pes-soa seraacute o mais alto grau de despersonalizaccedilatildeo da peccedila (quarto grau da poesia liacuterica) A personificaccedilatildeo do personagem ausente ocorre ao nascer do dia com a supressatildeo do tempo linear da accedilatildeo e a transposiccedilatildeo do tempo psicoloacutegico das veladoras para o tempo-origem do sonho Esse processo de despersonalizaccedilatildeo prenuncia a entrada em cena da quinta pessoa como figura que representa a despersonalizaccedilatildeo do quinto grau da poesia liacuterica primeiro passo em direccedilatildeo agrave certeza sensiacutevel de Alberto Caeiro e agrave escrita heteroniacutemica

O plano de composiccedilatildeo da natildeo-identidade do marinhei-ro natildeo aparece apenas durante o ato de escrita mas tambeacutem como efeito compreensivo de leitura ou seja como apreciaccedilatildeo criacutetica do processo de composiccedilatildeo dramaacutetica A quinta pessoa seraacute a figura que exprime este efeito compreensivo como um testemunho impliacutecito de que durante os momentos de pausa descanso ou interrupccedilotildees descontiacutenuas da escrita e da leitura as irmatildes natildeo poderatildeo existir senatildeo a partir de uma seacuterie de an-tagonismos que reverberam na imaginaccedilatildeo do leitor

TERCEIRA (para a SEGUNDA) mdash Minha irmatilde natildeo nos deviacuteeis ter contado essa histoacuteria Agora estranho--me viva com mais horror Contaacuteveis e eu tanto me dis-traiacutea que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente E parecia-me que voacutes e a vossa voz e o sentido do que diziacuteeis eram trecircs entes diferen-tes como trecircs criaturas que falam e andam

SEGUNDA mdash Satildeo realmente trecircs entes diferentes com vida proacutepria e real Deus talvez saiba porquecirc Ah mas por que eacute que falamos Quem eacute que nos faz conti-nuar falando Por que falo eu sem querer falar Por que eacute que jaacute natildeo reparamos que eacute dia

PRIMEIRA mdash Quem pudesse gritar para despertar-mos Estou a ouvir-me a gritar dentro de mimmas jaacute natildeo sei o caminho da minha vontade para a minha garganta Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que algueacutem possa bater agravequela porta Por que natildeo bate algueacutem agrave porta Seria impossiacutevel e eu tenho necessidade de ter medo disso de saber de que eacute que tenho medo Que estranha que me sinto Parece-me jaacute natildeo ter a minha voz Parte de mim adormeceu e ficou a ver O meu pavor cresceu mas eu jaacute natildeo sei senti-lo Jaacute natildeo sei em que parte da alma eacute que se sente Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo

21 ldquoRetire-se com efeito a dupla significaccedilatildeo do fingimento natildeo se considere nem o que se finge nem por que se finge e o que restaraacute Muita coisa resta a ordem o lugar a densidade a regularidade dos instantes em que a pessoa que finge deve forccedilar a naturezardquo (BACHELARD Gastoacuten A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo p97)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

109

Para que foi que nos contastes a vossa histoacuteria22

A progressatildeo dos graus de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuteri-co ocorre segundo uma seacuterie de exigecircncias expressivas da for-ma poeacutetica Ao despersonalizar os pensamentos e as emoccedilotildees que caracterizam as personagens no poema dramaacutetico O Mari-nheiro a autorreflexatildeo da forma poeacutetica permite agrave alteridade do drama (puacuteblico autor e diretor) ocupar cada vez mais o espaccedilo deixado pela dissoluccedilatildeo da unidade dramaacutetica Alternando-se na posiccedilatildeo de autores leitores e diretores as personagens natildeo apenas rompem com a unidade da accedilatildeo como passam a bus-car no contato direto com o sonho um substituto para a unidade perdida

3 Despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo em Alberto Caeiro

NrsquoO Guardador de Rebanhos a busca pela unidade per-dida culmina na personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica com uma espeacutecie de cogito heteroniacutemico e logo em seguida no encontro desse cogito heteroniacutemico com o mundo concreto das sensa-ccedilotildees e das formas sensiacuteveis23

Quando me sento a escrever versosOu passeando pelos caminhos ou pelos atalhosEscrevo versos num papel que estaacute no meu pensamentoSinto um cajado nas matildeosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiroOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem natildeo compreende [o que se dizE quer fingir que compreende

22 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa O Marinheiro p45023 Eacute bastante conhecida a ideia de Descartes sobre a impossibilidade de o pensamento sustentar-se na certeza de si sem antes esgotar o percur-so da duacutevida definindo seu ser pela negaccedilatildeo do mundo sensiacutevel do gecircnio maligno e do deus enganador No limite desse percurso o pensamento eacute for-ccedilado a desdobrar-se em sua completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo negado ou seja como natildeo-identidade entre a forma pura do pensamento e o conteuacutedo por ele pensado Na despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico em Fernan-do Pessoa o cogito heteroniacutemico tambeacutem adquire completa autonomia com relaccedilatildeo ao conteuacutedo pensado por ele A natildeo-identidade entre o ldquoeu pensordquo a ideia de Deus as sensaccedilotildees e as formas sensiacuteveis projeta a escrita poeacutetica de Alberto Caeiro sobre um plano de composiccedilatildeo que absorve o pensamento heteroniacutemico em sua natildeo-identidade ou seja ao mesmo tempo como sujeito pensante e como sujeito pensado Desse modo o cogito heteroniacutemico passa a ser refletido como momento de natildeo-identidade entre forma pensante e for-ma pensada permitindo agrave escrita percorrer a distacircncia entre a idealidade do ldquoeu pensordquo e a realidade do ldquoeu sourdquo como desdobramento interno agrave forma poeacutetica Ao produzir um mundo um cogito e um deus a natildeo-identidade en-tre forma pensada e forma pensante duplica um amplo espectro de atitudes reflexivas dando ensejo agrave individuaccedilatildeo da forma heteroniacutemica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

110

(PESSOA 2006 p204)

A oposiccedilatildeo entre o plano horizontal da accedilatildeo (passear caminhar escrever) e o plano perpendicular do pensamento (o cajado e o cimo do outeiro) forccedila os elementos estruturais da linguagem (o som o sentido a sintaxe) a aparecer ora como negaccedilatildeo das formas sensiacuteveis ora como negaccedilatildeo da forma po-eacutetica ldquoOlhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideiasOu olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanhordquo A oposiccedilatildeo entre a visatildeo estaacutetica das ideias e a accedilatildeo de tanger o rebanho gera um vaacutecuo de sentido (ldquoE sorrindo vagamente como quem natildeo compreende o que se dizrdquo) abrindo espaccedilo para a substituiccedilatildeo da unidade dramaacutetica pela atitude psicoloacute-gica do heterocircnimo (ldquoE quer fingir que compreenderdquo) A desper-sonalizaccedilatildeo passa entatildeo a agir sobre esse vaacutecuo de sentido substituindo a accedilatildeo das personagens dramaacuteticas pelo pensa-mento estaacutetico do heterocircnimo Desse modo a personificaccedilatildeo de Alberto Caeiro encerra na forma poeacutetica o drama existencial de um personagem agrave procura de formas sensiacuteveis capazes de doar unidade para seus pensamentos suas ideias e suas sen-saccedilotildees A personificaccedilatildeo da forma poeacutetica com as ideias es-taacuteticas de Caeiro (escrever olhar pensar sorrir falar) implica na personificaccedilatildeo das formas sensiacuteveis (o rebanho o cajado o outeiro) pelo movimento de autorreflexatildeo da forma em substi-tuiccedilatildeo agrave unidade da accedilatildeo dramaacutetica

Haacute metafiacutesica bastante em natildeo pensar em nadaO que penso eu do mundoSei laacute o que penso do mundoSe eu adoecesse pensaria nissoQue ideacuteia tenho eu das cousasQue opiniatildeo tenho sobre as causas e os efeitosQue tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criaccedilatildeo do MundoNatildeo sei Para mim pensar nisso eacute fechar os olhosE natildeo pensar Eacute correr as cortinasDa minha janela (mas ela natildeo tem cortinas)

(PESSOA 2006 pp206-207)

A autorreflexatildeo projeta o drama subjetivo do heterocircnimo para fora da forma poeacutetica como um ldquoeu penso que natildeo pen-sordquo24 que ldquoquer fingir que compreenderdquo o que a forma sensiacutevel supostamente significa tanto do lado interior como do lado ex-terior agrave forma poeacutetica A forma autorreflexiva do ldquoeu penso que

24 A despersonalizaccedilatildeo nos heterocircnimos percorre trecircs estaacutegios intensi-vos do pensamento o ldquoeu pensordquo posiccedilatildeo do eu liacuterico tradicional o ldquoeu pen-so que pensordquo comum agraves personagens dramaacuteticas ou agraves maacutescaras poeacuteticas e o ldquoeu penso que penso que pensordquo um heterocircnimo ou um personagem conceitual capaz de pensar seu proacuteprio pensamento atraveacutes de um conti-nuum temporal de reflexatildeo centrado na expressatildeo poeacutetica

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

111

pensordquo forccedila o heterocircnimo a buscar a unidade perdida em accedilotildees como caminhar passear abrir cortinas que passam a figurar a atitude psicoloacutegica do heterocircnimo A unidade da accedilatildeo cede es-paccedilo portanto agrave unidade da argumentaccedilatildeo

Mas se Deus eacute as flores e as aacutervoresE os montes e sol e o luarEntatildeo acredito neleEntatildeo acredito nele a toda a horaE a minha vida eacute toda uma oraccedilatildeo e uma missaE uma comunhatildeo com os olhos e pelos ouvidosMas se Deus eacute as aacutervores e as floresE os montes e o luar e o solPara que lhe chamo eu DeusChamo-lhe flores e aacutervores e montes e sol e luarPorque se ele se fez para eu o verSol e luar e flores e aacutervores e montesSe ele me aparece como sendo aacutervores e montesE luar e sol e floresEacute que ele quer que eu o conheccedilaComo aacutervores e montes e flores e luar e solE por isso eu obedeccedilo-lhe(Que mais sei eu de Deus que Deus de si proacuteprio)Obedeccedilo-lhe a viver espontaneamenteComo quem abre os olhos e vecircE chamo-lhe luar e sol e flores e aacutervores e montesE amo-o sem pensar neleE penso-o vendo e ouvindoE ando com ele a toda a hora

(PESSOA 2006 p207)

A completa personificaccedilatildeo do heterocircnimo ocorre quando a unidade da argumentaccedilatildeo for colocada agrave prova pela desperso-nalizaccedilatildeo do proacuteprio ldquoeu penso que pensordquo25 que estrutura sua forma subjetiva opondo agrave autorreflexatildeo da forma poeacutetica um ldquoeu penso que penso que pensordquo como autorreflexatildeo da forma sensiacutevel26 A expressatildeo da natildeo-identidade entre forma poeacutetica e forma sensiacutevel inaugura um estilo de escrita capaz de conferir individuaccedilatildeo agrave personalidade do heterocircnimo A autorreflexatildeo da

25 Nas palavras de Walter Benjamin ldquoO pensar do pensar do pensar pode ser abarcado e consumado de duas maneiras Quando se parte da ex-pressatildeo ldquopensar do pensarrdquo este pode ser entatildeo no terceiro grau ou o objeto pensado o pensar (do pensar do pensar) ou entatildeo o sujeito pensante (pen-sar do pensar) do pensar A riacutegida forma originaacuteria da reflexatildeo do segundo grau eacute no terceiro abalada e acometida pela ambiguidade Esta no entanto se desdobraria em cada grau consecutivo numa ambiguidade cada vez mais muacuteltiplardquo BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Ale-matildeo p3826 Pode-se dizer assim que Alberto Caeiro aparece de um modo simi-lar e ao mesmo tempo inverso agrave definiccedilatildeo da identidade no cogito cartesia-no uma vez que de um modo muito mais complexo a personificaccedilatildeo que daacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

112

forma dramaacutetica o ldquoeu penso que penso que pensordquo conserva na escrita do heterocircnimo a natildeo-identidade entre forma poeacutetica cogito heteroniacutemico27 e forma sensiacutevel natildeo-identidade sem a qual a personalidade de Alberto Caeiro natildeo poderia se desen-volver e sem a qual natildeo seria possiacutevel atribuir a ele e aos de-mais heterocircnimos a autoria de uma obra em que eles mesmos se encontram implicados como personagens ao mesmo tempo reais e ficcionais Nesse estaacutegio de despersonalizaccedilatildeo do eu liacuterico e do eu dramaacutetico Alberto Caeiro evidencia completo do-miacutenio sobre a atitude psicoloacutegica que o impulsiona em direccedilatildeo agraves sensaccedilotildees dando ensejo a uma leitura compreensiva que o defina como poeta dramaacutetico que aleacutem da simples invenccedilatildeo de formas e intensidades poeacuteticas eacute capaz de criar por fingimento e ironia formas e intensidades aniacutemicas e natildeo-aniacutemicas sob o efeito combinado de despersonalizaccedilatildeo e personificaccedilatildeo da forma dramaacutetica

4 Despersonalizaccedilatildeo e sensacionismo em Aacutelvaro de Campos

A sensaccedilatildeo constitui o uacutenico meio de apreensatildeo das for-mas sensiacuteveis em Alberto Caeiro Sua existecircncia simples e ime-diata exclui qualquer prerrogativa idealista da linguagem e da representaccedilatildeo Observa-se uma concepccedilatildeo antiacutepoda em Aacutelva-ro de Campos Os elementos que melhor definem sua maneira de conceber a sensaccedilatildeo encontram-se na vanguarda esteacutetica criada pelo heterocircnimo e que se intitula sensacionismo Como observa Fernando Pessoa ortocircnimo os ideais esteacuteticos do sen-sacionismo satildeo em larga medida inspirados no objetivismo de Caeiro embora o objetivismo natildeo possa ser reduzido agrave esteacutetica sensacionista sem desvirtuar os traccedilos elementares de sua per-sonalidade

Dizem que Alberto Caeiro lamentou que o nome de ldquosensacionismordquo tivesse sido dado agrave sua atitude e agrave atitude que ele criou por um disciacutepulo seu mdash disciacutepulo um tanto quanto estranho eacute verdade mdash o Sr Aacutelvaro de Campos Se

origem ao cogito heteroniacutemico conserva a natildeo-identidade como momento de autorreflexatildeo da forma ao apresentar o cogito heteroniacutemico como natildeo-ser do pensamento atraveacutes do objetivismo absoluto do mestre heterocircnimo27 Ao assinalar a diferenccedila entre sonho noturno e devaneio Bachelard sugere a seguinte aproximaccedilatildeo entre o cogito e a experiecircncia poeacutetica do eu ldquoAo passo que o sonhador de sonho noturno eacute uma sombra que perdeu o proacuteprio eu o sonhador de devaneio se for um pouco filoacutesofo pode no centro do seu eu sonhador formular um cogitordquo (BACHELARD Gaston A Poeacutetica do devaneio p144) A noccedilatildeo de cogito heteroniacutemico mostra-se de pleno acordo com a definiccedilatildeo de filosofia proposta pelo heterocircnimo Antocircnio Mora heterocircnimo-filoacutesofo de Pessoa ldquoToda a filosofia eacute um antropomorfismo O erro fundamental eacute admitir como real a alma do indiviacuteduo o erigir a consciecircn-cia do indiviacuteduo em consciecircncia absoluta e a Realidade em individualidaderdquo (Obra em prosa Antocircnio Mora p527)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

113

Caeiro protestou contra a palavra como possivelmente pare-cendo indicar uma ldquoescolardquo a igual do Futurismo por exem-plo estava no seu direito e por duas razotildees pois a proacutepria sugestatildeo de escolas e movimentos literaacuterios soa mal quando aplicada a uma espeacutecie de poesia tatildeo incivilizada e natural E aleacutem disso embora tenha ele pelo menos dois ldquodisciacutepulosrdquo o fato eacute que exerceu sobre eles uma influecircncia igual agravequela que algum poeta mdash Cesaacuterio Verde talvez mdash exerceu sobre ele nenhum deles se lhe assemelha absolutamente embora na verdade bem mais claramente do que a influecircncia de Ce-saacuterio Verde sobre ele possa ser vista sua influecircncia em toda a obra deles (PESSOA 1993 p129)

Desse modo ao incluir Alberto Caeiro entre os poetas sensacionistas Aacutelvaro de Campos mostra-se muito mais pre-ocupado em elaborar sua proacutepria teoria do que em definir com precisatildeo o ensinamento do mestre Com efeito uma liccedilatildeo que Aacutelvaro de Campos aprendera mas que Alberto Caeiro natildeo en-sinara eacute que uma sensaccedilatildeo embora possa ser objetivamente percebida como forma sensiacutevel exterior tambeacutem encerra em si um universo desconhecido de outras sensaccedilotildees que podem ser sentidas ou percebidas internamente em toda sua amplitu-de pelo sujeito Em primeiro lugar lembremos que ldquosensaccedilatildeordquo era a palavra que o mestre heterocircnimo aplicava para designar a diferenccedila ontoloacutegica entre as formas sensiacuteveis Concebida as-sim a sensaccedilatildeo natildeo poderia ser um estado de apreensatildeo inter-na do sujeito Quando muito ela poderia significar algo como o contentamento que acompanha o ato de observar as formas sensiacuteveis ou a insatisfaccedilatildeo de natildeo poder observaacute-las com exa-tidatildeo Mesmo que se admitisse a existecircncia de caracteriacutesticas comuns que autorizasse o emprego do mesmo nome para a cor vermelha numa peacutetala de flor e a cor vermelha que tinge um vestido por exemplo as duas formas sensiacuteveis designadas pelo nome ldquovermelhordquo seriam sempre percebidas como sensa-ccedilotildees distintas cuja realidade independia do estado subjetivo de quem as via

A teoria sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste grosso modo na tentativa bem-sucedida de transpor a espon-taneidade sensiacutevel da crianccedila para o campo intelectual da refle-xatildeo conferindo realidade objetiva natildeo apenas agraves formas sen-siacuteveis mas tambeacutem agraves representaccedilotildees puramente subjetivas que as sucedem A diferenccedila sensiacutevel que caracterizava o obje-tivismo absoluto de Caeiro seraacute agora transposta para o plano da diferenccedila intelectual da representaccedilatildeo A sensaccedilatildeo natildeo seraacute somente a percepccedilatildeo imediata da forma sensiacutevel mas tambeacutem a ampliaccedilatildeo subjetiva dessa percepccedilatildeo pelo ato de sentir Ela seraacute um ldquosentir que senterdquo que corresponde aos momentos de projeccedilatildeo e espelhamento da reflexatildeo sobre si mesma a proje-ccedilatildeo subjetiva sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e a proje-ccedilatildeo das formas sensiacuteveis sobre a reflexatildeo subjetiva (realismo)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

114

A forma sensiacutevel torna-se meio de reflexatildeo do seu proacuteprio ser como reflexatildeo exterior ao sujeito e ao mesmo tempo torna--se capaz de comunicar-se por meio de representaccedilotildees para a reflexatildeo subjetiva do heterocircnimo Percorrendo o caminho de reflexatildeo que projeta o universo subjetivo do heterocircnimo sobre as formas sensiacuteveis (idealismo) e depois o caminho que proje-ta o universo objetivo das formas sensiacuteveis sobre as represen-taccedilotildees subjetivas (realismo) Aacutelvaro de Campos personifica o terceiro niacutevel de reflexatildeo o cogito agrave terceira potecircncia no qual o ldquoeu penso que penso que pensordquo incorpora e amplia os dois niacuteveis anteriores

O terceiro niacutevel de reflexatildeo marca o iniacutecio da autonomi-zaccedilatildeo da sensaccedilatildeo que conta agora com uma dupla forma de expressatildeo primeiro a sensaccedilatildeo se expressa como multiplica-ccedilatildeo progressiva dos modos de representar as formas sensiacuteveis (ou seja como autorreflexatildeo subjetiva da forma) e segundo ela se expressa como multiplicaccedilatildeo progressiva dos modos de ver sentir pensar e ser essa multiplicidade sensiacutevel (isto eacute como autorreflexatildeo objetiva da forma) A transposiccedilatildeo do ato de ver para o ato de representar costuma vir acompanhada de uma descarga de energia que aparece sob a forma gradual de um sentimento uma emoccedilatildeo uma paixatildeo ou uma perversatildeo se-gundo os graus de personificaccedilatildeo que acompanham os atos de pensar sentir e de ser as sensaccedilotildees A cor vermelha de um vestido por exemplo pode ser investida de uma descarga his-teacuterica que a associa agrave cor vermelha do sangue e agrave intensidade subjetiva da raiva Ou uma foacutermula puramente abstrata como o binocircmio de Newton pode associar-se a uma forma sensiacutevel como a Vecircnus de Milo por meio do sentimento do belo e produ-zir um sentimento sublime

A livre associaccedilatildeo entre ideias imagens e emoccedilotildees im-plica portanto um plano de composiccedilatildeo objetiva da diferenccedila centrada na multiplicaccedilatildeo subjetiva das sensaccedilotildees Esse o mo-tivo porque o lema central do sensacionismo ldquosentir tudo de to-das as maneirasrdquo28 tambeacutem implica uma foacutermula do tipo ldquopensar tudo de todos os modosrdquo Uma sensaccedilatildeo pode duplicar-se em inuacutemeras outras se acompanhada pela personificaccedilatildeo do ldquoeu pensordquo do ldquoeu sintordquo e do ldquoeu sourdquo tornando-se a proacutepria sen-saccedilatildeo capaz de pensar sentir e ser todas as demais A multipli-caccedilatildeo das sensaccedilotildees depende dessa capacidade heteroniacutemica de personificar o ldquoeu pensordquo o ldquoeu sintordquo e o ldquoeu sourdquo como trecircs identidades autocircnomas Quando encontram a faiacutesca produzida pelo embate entre a autorreflexatildeo a despersonalizaccedilatildeo e a per-sonificaccedilatildeo como eacute o caso das grandes odes inspiradas em Walt Whitman as sensaccedilotildees podem jorrar em alta velocidade de maneira quase irrefletida como uma combustatildeo intelectual movendo a maacutequina de escrever e preenchendo longas paacuteginas de prosa poeacutetica Contudo quando o que prepondera satildeo vagas sensaccedilotildees de melancolia os poemas assumem dimensotildees me-

28 Obra Poeacutetica Fernando Pessoa Passagem das Horas p344

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

115

nores chegando mesmo em alguns casos a poemas formais como o Opiaacuterio ou sonetos em estilo moderno

Vimos que na obra-prima do mestre o ritmo da escri-ta seguia a mesma naturalidade do vilarejo Ribatejo palco da vida e da obra do heterocircnimo A coleccedilatildeo de fragmentos poeacuteti-cos compunha uma constelaccedilatildeo de ldquoagorasrdquo independente da representaccedilatildeo e pensada a partir da autorreflexatildeo das formas sensiacuteveis Toda a astuacutecia sensacionista de Aacutelvaro de Campos consiste em transpor a simultaneidade espacial das formas sen-siacuteveis percebidas por Caeiro para o plano da sucessatildeo tem-poral que constitui a experiecircncia subjetiva no espaccedilo urbano Nas odes de Aacutelvaro de Campos o palco subjetivo transporta-se para um porto mariacutetimo um edifiacutecio urbano uma estrada ou uma ferrovia que interliga uma cidade agrave outra de onde se segue uma viagem real ou imaginaacuteria de navio um passeio real ou imaginaacuterio a peacute de comboio de automoacutevel ou de cavalo pelas ruas e arredores de Lisboa Note-se a transposiccedilatildeo subjetiva da sensaccedilatildeo logo nos primeiros versos da Ode Mariacutetima

Sozinho no cais deserto a esta manhatilde de VeratildeoOlho pro lado da barra olho pro IndefinidoOlho e contenta-me verPequeno negro e claro um paquete entrandoVem muito longe niacutetido claacutessico agrave sua maneiraDeixa no ar distante atraacutes de si a orla vatilde do seu fumoVem entrando e a manhatilde entra com ele e no rioAqui acolaacute acorda a vida mariacutetimaErguem-se velas avanccedilam rebocadoresSurgem barcos pequenos de traacutes dos navios que estatildeo

[no portoHaacute uma vaga brisaMas a minhrsquoalma estaacute com o que vejo menosCom o paquete que entraPorque ele estaacute com a Distacircncia com a ManhatildeCom o sentido mariacutetimo desta HoraCom a doccedilura dolorosa que sobe em mim como uma

[naacuteuseaComo um comeccedilar a enjoar mas no espiacuterito

Olho de longe o paquete com uma grande [independecircncia de almaE dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamente

(PESSOA 2006 pp 314-315)

Assim como outras odes de Aacutelvaro de Campos Ode Ma-riacutetima concentra os esforccedilos de siacutentese de estados subjetivos diversos com o intuito de atualizar o universo de representa-ccedilotildees histoacutericas Siacutentese que se desdobra no poema em meio a imagens amplificadas pelo impulso de despersonalizaccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

116

internalizado nas sensaccedilotildees O que se observa nesta primei-ra estrofe eacute a transposiccedilatildeo gradual da forma sensiacutevel do navio para o universo subjetivo da representaccedilatildeo Um navio que se aproxima do cais aparecendo primeiro como forma sensiacutevel ex-terior aos poucos transporta o heterocircnimo para o plano intelec-tual da representaccedilatildeo Mais precisamente para uma represen-taccedilatildeo sinteacutetica do Absoluto que se encontra aleacutem da Distacircncia e aqueacutem do Indefinido Os versos isolados ldquoOlho e contenta-me ver Pequeno negro e claro um paquete entrandordquo poderiam figurar como versos objetivistas de Caeiro Mas em seguida a antiacutestrofe que diz ldquoOlho de longe o paquete com uma grande independecircncia de alma E dentro de mim um volante comeccedila a girar lentamenterdquo sela de vez a transposiccedilatildeo do navio como for-ma sensiacutevel para dentro do universo subjetivo do heterocircnimo Como na transposiccedilatildeo da foto para o cinema a representaccedilatildeo temporal de Aacutelvaro de Campos converte em movimento a ima-gem estaacutetica das sensaccedilotildees de Caeiro A guinada subjetiva da reflexatildeo promove assim a transposiccedilatildeo do tempo natural da escrita espontacircnea de Caeiro para o tempo histoacuterico-subjetivo que tem iniacutecio na escrita ortocircnima de Fernando Pessoa e osci-la entre o subjetivismo e o objetivismo neoclaacutessico de Ricardo Reis ateacute o salto agrave multiplicidade oceacircnica das sensaccedilotildees em Aacutelvaro de Campos A escrita sensacionista percorre assim o espaccedilo da paacutegina em branco como um fluxo de sensaccedilotildees que compotildee o corpo literaacuterio do poeta-ningueacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

117

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD G A Dialeacutetica da Duraccedilatildeo SP Editora Aacutetica 1994

BENJAMIN W O Conceito de Criacutetica de Arte no Romantismo Alematildeo SP Iluminuras 2002

BERARDINELLI C Fernando Pessoa Outra Vez te Revejo RJ Nova Aguilar 2004

BLANCHOT M O Espaccedilo Literaacuterio RJ Rocco 2011

COELHO AP Os Fundamentos Filosoacuteficos da Obra de Fernan-do Pessoa Lisboa Verbo 2 vols 1971

COELHO J do P Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa SP Verbo 1977

DELEUZE G GUATTARI F Diferenccedila e Repeticcedilatildeo RJ Graal 2006

_________ O que eacute a Filosofia RJ Editora 34 1997

DESCARTES R Meditaccedilotildees Metafiacutesicas ldquoOs Pensadoresrdquo SP Abril Cultural 1983

GIL J Fernando Pessoa ou a Metafiacutesica das Sensaccedilotildees Lis-boa Reloacutegio drsquoAacutegua 1987

_________ Diferenccedila e Negaccedilatildeo na Poesia de Fernando Pes-soa RJ Relume Dumaraacute 2000

HEGEL GWF Fenomenologia do Espiacuterito Petroacutepolis Vozes 1992

LOURENCcedilO E Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente Lisboa Gradiva 2003

OSAKABE H Fernando Pessoa Resposta agrave Decadecircncia SP Iluminuras 2013

PESSOA F Obra em Prosa RJ Nova Aguilar 2006

_________ Obra Poeacutetica RJ Nova Aguilar 2006

NUNES B O Dorso do Tigre RJ Editora 34 2009

PERRONE-MOISEacuteS L Fernando Pessoa Aqueacutem do Eu Aleacutem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 98-118jul-dez 2017

118

do Outro SP Martins Fontes 2001

SENA J Fernando Pessoa amp Companhia Heterocircnima Lisboa Ediccedilotildees 70 1982

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

119

A liberdade do olhar Erotismo e autonomia esteacutetica de Winckelmann a Fernando PessoaThe freedom of the gaze Erotism and aesthetic autonomy from Winckelmann to Fernando Pessoa

Palavras-chave Winckelmann Kant Fernando PessoaKeywords Wilckelmann Kant Fernando Pessoa

RESUMO Pretende-se estudar aqui o caminho de uma ideia winckelmanniana sobre a autonomia do olhar esteacutetico que foi fundamental para a poeacutetica de Fernando Pessoa

ABSTRACT It is intended to study here the way of a Winckel-mannian idea about the autonomy of the aesthetic gaze which was fundamental for the poetics of Fernando Pessoa

Hoje eacute quase ponto paciacutefico aceitar que Kant foi o pri-meiro a formular de maneira inequiacutevoca a ideia de autonomia da obra de arte Quando esse consenso eacute questionado eacute por-que em geral se quer saber apenas se o autor da Criacutetica do juiacutezo teria sido influenciado por algum predecessor como Adam Smi-th ou Karl Philipp Moritz Teria Kant chegado sozinho agraves suas consideraccedilotildees sobre o juiacutezo de gosto ou satildeo elas resultado de sua leitura de outros pensadores E seriam estes meros anteci-padores ou teriam deixado ideias apenas diferentes mas igual-mente interessantes a respeito do tema

Bem interessante para a compreensatildeo desse toacutepico eacute investigar algumas evidecircncias da presenccedila do pensamento de Winckelmann no conjunto da obra kantiana

Um dos textos mais interessantes nesse aspecto eacute por certo uma reflexatildeo sobre antropologia a de nuacutemero 640 na qual se traccedila a diferenccedila importantiacutessima entre beleza e atrativo ou sem meias palavras entre o prazer provocado pela bela forma e a atraccedilatildeo oriunda do desejo sexual

Em questotildees de gosto devemos diferenciar o atrativo da beleza o primeiro se perde para este ou aquele mas a beleza permanece Quartos adornados permanecem sempre belos embora tenham o seu atrativo com a morte da amada e o amante escolhe outros objetos Tais conceitos do belo diz Winckelmann satildeo voluptuosos isto eacute natildeo se diferencia o atrativo da beleza pois de fato eles estavam tatildeo vinculados entre os antigos como entre os modernos (embora natildeo tatildeo confundidos) mas talvez diferenciados nos conceitos dos ar-

Maacutercio Suzuki

Doutor e professor de esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo

marciosuzukiuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

120

tistas que queriam exprimi-losA bela pessoa apraz por sua figura e atrai por seu

sexo Digamos ao ouvido de algueacutem que a beleza que ele admira eacute um cantor efeminado o atrativo desaparece num instante mas a beleza permanece Eacute difiacutecil separar esse atra-tivo da beleza mas basta deixarmos de lado todas as nossas necessidades particulares e nossas relaccedilotildees privadas em que nos diferenciamos dos outros para que reste o frio juiacutezo de gosto1

Segundo essa anotaccedilatildeo de Kant o ensinamento princi-pal das consideraccedilotildees sobre o belo ideal por parte de Winckel-mann estaria em ter ensinado a diferenciar aquilo que atrai se-xualmente e aquilo que satisfaz como bela forma Os exemplos que Kant traz como ilustraccedilatildeo como sempre natildeo satildeo bons o quarto da mulher permanece belo mesmo com a morte desta e o marido pode buscar outros objetos para a satisfaccedilatildeo do seu instinto o desejo manifesto por uma jovem desaparece quando fica sabendo que o cantor pelo qual se sente atraiacuteda natildeo tem interesse por pessoas do seu sexo ainda que a despeito da frustraccedilatildeo de sua propensatildeo a beleza do indiviacuteduo permaneccedila

Numa versatildeo posterior um pouco diferente as mesmas ideias satildeo assim explicadas

Com frequecircncia natildeo diferenciamos o que eacute objeto do gosto e o que eacute objeto do apetite Winckelmann diz que a verdadeira ideia da beleza estaacute entre os gregos Nossos con-ceitos da beleza satildeo muito partidaacuterios e mais juiacutezos sobre o atrativo Beleza poreacutem natildeo eacute atrativo e atrativo logo natildeo eacute beleza pois ela diz unicamente respeito agrave forma Para julgar-mos de modo universalmente vaacutelido para todos nosso juiacutezo tem de ser unacircnime por exemplo se uma moccedila eacute bela como moccedila ou se a considerariacuteamos bela tambeacutem disfarccedilada de homem Para que algo deva ser visto como belo apenas por causa do gosto esse juiacutezo partidaacuterio natildeo se volta para o gos-to Em nosso juiacutezo de gosto natildeo deve se imiscuir nenhum atrativo pois o atrativo faz parte do Juiacutezo sensiacutevel2

Essa explicaccedilatildeo dada no curso de antropologia Mens-chenkunde (inverno de 1781-1782) eacute a mesma da reflexatildeo an-terior (do ano de 1769) mas se detalha melhor a diferenccedila entre o juiacutezo de gosto e o juiacutezo sensiacutevel sendo este baseado no es-tiacutemulo ou atraccedilatildeo entre os sexos Essa identificaccedilatildeo entre estiacute-mulo sensiacutevel e atraccedilatildeo sexual (sinnlich pode remeter tanto aos oacutergatildeos do sentido como agrave sensualidade) desaparece na Criacuteti-ca do juiacutezo uma vez que nela se encontra apenas a distinccedilatildeo mais geneacuterica entre aquilo que atrai a sensibilidade e aquilo que apraz o sentimento Entretanto ela eacute fundamental do ponto de 1 I Kant Refl 640 AA 15 pp 280-2822 I Kant Antropologia Menschenkunde AA 25 p 1098-1099

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

121

vista geneacutetico isto eacute para que Kant chegue agrave diferenciaccedilatildeo do belo em relaccedilatildeo ao atrativo e agrave emoccedilatildeo tratada no paraacutegrafo 13 da criacutetica do Juiacutezo reflexionante3

Teria Kant lido diretamente as obras de Winckelmann ou seu contato com elas seria de segunda matildeo Eacute grande sem duacutevida a dificuldade de solucionar inteiramente a questatildeo Uma pista fundamental nessa direccedilatildeo eacute talvez uma anotaccedilatildeo mais antiga de Kant referindo-se agravequele que eacute considerado por mui-tos o pai da histoacuteria da arte

A sensibilidade agrave beleza dos jovens deu origem ao amor grego pela paixatildeo mais vergonhosa que jamais cons-purcou a natureza humana e seus criminosos bem mereciam ser entregues agrave vinganccedila e ao insulto das mulheres4

Desta anotaccedilatildeo de 1764-1765 agraves passagens posterio-res a posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave homossexualidade eacute diametralmen-te oposta e o ganho conceitual que essa perspectiva natildeo mo-ralizadora trouxe para a concepccedilatildeo esteacutetica kantiana tambeacutem eacute consideraacutevel Os textos como tambeacutem assinala corretamente a editora das Notas agraves ldquoObservaccedilotildees sobre o sentimento do belo e do sublimerdquo fazem referecircncia a uma passagem em que Win-ckelmann discute a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino Dois paraacutegrafos deste opuacutesculo merecem ser citados na iacutentegra por decisivos que foram para os caminhos da esteacutetica posterior

Para a juventude noviccedila essa capacidade [de sen-tir o belo] estaacute envolvida em emoccedilotildees obscuras e confusas como qualquer outra inclinaccedilatildeo e se anuncia como um forte comichatildeo na pele cujo verdadeiro lugar natildeo pode ser encon-trado ao coccedilar Deve ser procurada antes em jovens bem for-mados do que em outros porque pensamos em geral como somos feitos mas menos na formaccedilatildeo do que no ser e no modo de pensar e sentir Um coraccedilatildeo brando e sentidos doacute-ceis satildeo sinais de tal capacidade Ela se mostra mais niti-damente quando lendo algum escritor o sentimento eacute mais ternamente comovido ali onde o senso inculto passa ao largo como aconteceria diversas vezes no discurso de Glauco a Diomedes isso que eacute a comparaccedilatildeo comovente da vida hu-mana com folhas arrancadas pelo vento e que voltam a bro-tar na primavera Onde esse sentimento natildeo existe eacute como pregar o conhecimento da beleza a um cego assim como a muacutesica a um ouvido natildeo musical Em meninos que natildeo foram educados na arte nem satildeo propriamente destinados a ela

3 ldquoO juiacutezo-de-gosto puro eacute independente de atrativo e emoccedilatildeordquo I Kant Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filosoacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974 p 3184 I Kant Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Rischmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

122

um sinal mais proacuteximo dele eacute o impulso natural ao desenho que eacute inato como o impulso agrave poesia e agrave muacutesica

Aleacutem disso como para conhecer a beleza humana eacute preciso apreendecirc-la num conceito geral observei que aque-les que atentam somente para as belezas do sexo feminino e satildeo pouco ou nada tocados pelas belezas de nosso sexo natildeo possuem o sentimento do belo facilmente inato geral e vivo Neles o belo na arte dos gregos permaneceraacute defectivo jaacute que as maiores belezas dela satildeo mais do nosso sexo do que do outro Exige-se poreacutem mais sentimento para o belo na arte do que na natureza porque aquele como as laacutegrimas no teatro eacute sem dor e sem vida e precisa ser despertado e res-tituiacutedo pela imaginaccedilatildeo Mas como esta eacute muito mais fogosa na juventude do que na idade madura a capacidade de que falamos deve ser exercitada a tempo e conduzida ao belo an-tes que chegue a idade na qual estremecemos ao confessar que natildeo o sentimos5

O opuacutesculo sobre a capacidade de sentir a beleza cha-mou logo a atenccedilatildeo de Kant (a primeira ediccedilatildeo eacute de 1763) cer-tamente tanto pelo seu aspecto cognitivo (em que consistiria a faculdade para apreensatildeo do belo) como pelo seu aspecto conceitual pois o belo supotildee um ldquoconceito geralrdquo que natildeo se restringe a este ou agravequele indiviacuteduo a este ou agravequele sexo mas deve levar o apreciador de arte agrave condiccedilatildeo de algueacutem que julga universalmente Mas alcanccedilar esse sentimento da beleza ideal natildeo eacute resultado de uma ciecircncia de um saber universalmente evidente Antecipando outro ponto fundamental da esteacutetica kan-tiana Winckelmann mostraraacute que natildeo haacute uma ciecircncia do sensiacute-vel ao contraacuterio do que tentara ensinar Baumgarten

A beleza pode ser reduzida a certos princiacutepios mas natildeo definida Geralmente se diz que ela consiste no consen-so muacutetuo da criatura com os seus fins e das partes consigo mesmas e com o todo mas isso eacute confundir a beleza com a perfeiccedilatildeo a qual tampouco pode ser definida nem pode de-finir-se por isso porque a humanidade natildeo tem capacidade para tal Ora eacute adequada ao belo uma definiccedilatildeo que a con-funde com o perfeito

A impossibilidade de definir a beleza nasce de que ela eacute algo superior ao nosso intelecto e como dessa superio-ridade natildeo nos eacute possiacutevel idear algo que seja mais sublime e perfeito que a beleza resultou que o belo e o perfeito nos pareceram duas coisas idecircnticas e se natildeo fosse assim teriacute-amos a verdadeira definiccedilatildeo dele como ocorreu a qualquer outra coisa da qual se conhece toda a essecircncia6

5 J J Winckelmann Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a ca-pacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771 pp 8-9 Ediccedilatildeo encontraacutevel no site vd18de6 J J Winckelmann Monumenti antichi inediti spiegati ed illustrati da

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

123

Em virtude da dificuldade de definir os conceitos a filo-sofia passou seacuteculos confundindo a ideia de beleza com a ideia de perfeiccedilatildeo ela concebe o belo segundo um conceito de fina-lidade que eacute proacuteprio apenas aos seres orgacircnicos Ora eacute pre-cisamente essa identificaccedilatildeo do belo com o perfeito que seraacute rejeitada na Criacutetica do juiacutezo Ao mostrar que o ldquojuiacutezo-de-gosto eacute inteiramente independente do conceito de perfeiccedilatildeordquo Kant lem-bra que a finalidade objetiva eacute justamente a referecircncia de uma diversidade agrave unidade produzida por um fim determinado isto eacute por um conceito7 mas em contraposiccedilatildeo a ele a beleza natildeo pode ter conceito algum natildeo sendo portanto passiacutevel de de-finiccedilatildeo Noutros termos a vitalidade a sauacutede de um corpo tem como fim a sua conservaccedilatildeo e agrave da espeacutecie (mediante a repro-duccedilatildeo) mas a beleza natildeo precisa ou deve servir a este fim

Winckelmann antecipa assim claramente tambeacutem a criacutetica kantiana ao conceito objetivo de beleza mas suas consi-deraccedilotildees satildeo tanto mais interessantes porque chegam agrave auto-nomia esteacutetica por um vieacutes todo proacuteprio que inclui tambeacutem uma libertaccedilatildeo do preconceito em relaccedilatildeo ao homoerotismo ndash algo que como se viu desaparece dos textos publicados por Kant mas natildeo das reflexotildees e pelo menos de um curso de Antro-pologia E essa brecha que ele abre tambeacutem seraacute muito bem percebida e explorada pela esteacutetica e literatura posterior

O Renascimento

Entre as tomadas de posiccedilatildeo mais instigantes de Wal-ter Pater com respeito agrave Renascenccedila estaacute certamente sua con-cepccedilatildeo de que o espiacuterito renascentista eacute algo supra-histoacuterico e supranacional pairando como que acima das determinaccedilotildees circunstanciais e extravasando limites temporais e espaciais Entre os ldquorenascentistasrdquo devem ser incluiacutedos segundo ele no-mes que natildeo viveram na eacutepoca do Renascimento como Abe-lardo e Heloiacutesa os trovadores provenccedilais e tambeacutem Johann Joachim Winckelmann pensador setecentista alematildeo que em-bora vivendo distante de todo o contato com a civilizaccedilatildeo antiga e num momento pouco favoraacutevel aos estudos claacutessicos teve ldquoo sentimento do mundo helecircnicordquo foi irresistivelmente atraiacutedo por ele e adivinhou os canais secretos que levavam a ele8 Graccedilas a um poder divinatoacuterio que o fez perceber a permanecircncia do espiacuterito grego ao longo de toda a histoacuteria Winckelmann com-preendeu muito bem que diferentemente do que ocorre com outras forccedilas espirituais que satildeo soterradas e absorvidas por assim dizer pelos tempos posteriores

Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767 cap 4 parte I p XXX-VIII7 I Kant Criacutetica do juiacutezo sect 15 trad cit p 3218 W Pater O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014 p 190

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

124

[] o elemento helecircnico natildeo se deixa absorver assim nem se deixa contentar com essa vida subterracircnea de tem-pos em tempos ele vem agrave tona a cultura eacute levada de volta agraves suas fontes para ser clarificada e corrigida O helenismo natildeo eacute apenas um elemento em nossa vida intelectual eacute uma tradiccedilatildeo consciente no interior dela9

O historiador da arte antiga reconheceu todo um conjun-to de caracteriacutesticas do mundo helecircnico mediante a compreen-satildeo de que o nuacutecleo de sua arte estava baseado na idealidade ou generalidade (Allgemeinheit) A arte principalmente a escul-tura deve eliminar tudo o que eacute de apelo particular para se con-centrar no que eacute tiacutepico universal

Obras de arte produzidas segundo essa lei e unica-mente estas satildeo realmente caracterizadas pela generalidade e amplitude helecircnicas Esta eacute uma lei de limitaccedilatildeo em todos os sentidos Ela manteacutem a paixatildeo sempre abaixo daquele grau de intensidade no qual eacute sempre transitoacuteria sem jamais arrematar os traccedilos numa soacute nota de ira desejo ou surpre-sa10

A idealidade esteacutetica de Winckelmann eacute retomada aqui em toda a forccedila mais de um seacuteculo depois da publicaccedilatildeo de suas obras e num momento em que jaacute sofreu e continuava so-frendo ataques de todos os lados Pater natildeo tem vergonha de dizer retomando as teses winckelmannianas que essa ideali-dade estava ligada agrave serenidade (Heiterkeit) grega agrave ausecircncia do pathos desmedido o que significa propriamente uma ausecircn-cia de ldquosexualidaderdquo

A beleza das estaacutetuas gregas era uma beleza asse-xuada as estaacutetuas dos deuses quase natildeo tinham traccedilos de sexo Havia ali uma assexualidade moral uma espeacutecie de totalidade ineficaz da natureza embora dotada de verdadeira beleza e de uma significaccedilatildeo proacutepria11

A arte grega mostrava uma atitude distanciada serena para com a sexualidade e sensualidade A imersatildeo no elemen-to sensual natildeo era um problema de consciecircncia para os gre-gos natildeo causava vergonha inibiccedilatildeo ou desapontamento Sem se deixar ldquointoxicarrdquo pela sensualidade ou pela espiritualidade Winckelmann tambeacutem se tornou um grego entre os gregos

[] ele toca os dedos naqueles maacutermores pagatildeos sem se persignar sem nenhum senso de vergonha ou de per-da Isso eacute lidar com o lado sensual da arte de uma maneira

9 Idem pp 190-19110 Idem p 20411 Idem p 208

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

125

pagatilde12

O ideal esteacutetico

O livro de Pater sobre o Renascimento teve grande re-percussatildeo como se sabe na literatura inglesa mas por seu intermeacutedio a esteacutetica winckelmanniana conhece tambeacutem um desdobramento inesperado na obra de Fernando Pessoa Na importante resenha que ele escreve ao livro Canccedilotildees do poeta Antoacutenio Botto publicada no nuacutemero 3 da revista Contemporacirc-nea em julho de 1922 Pessoa redige um verdadeiro programa esteacutetico baseado nos princiacutepios da serenidade grega tirando consequecircncias fecundas das observaccedilotildees de Pater a respeito do historiador da arte grega

Segundo o poeta portuguecircs somente o paganismo gre-go eacute realmente capaz de construir um ideal esteacutetico jaacute que o espiritualismo hindu e o espiritualismo cristatildeo desprezam a im-perfeiccedilatildeo do mundo em prol de uma outra ordem que seria a verdadeira e real A civilizaccedilatildeo helecircnica ao contraacuterio aceita o mundo terreno como sendo o que eacute mera aparecircncia e a sua arte recria essa aparecircncia e a vive ndash fatalisticamente ndash como tal Soacute os gregos aceitam a imperfeiccedilatildeo e buscam transformaacute-la reconhecendo ao mesmo tempo que a perfeiccedilatildeo eacute inatingiacutevel soacute os gregos portanto construiacuteram um ideal humano traacutegico e profundo de aperfeiccediloamento subjetivo da vida13 Sem se aba-lar com as limitaccedilotildees proacuteprias da vida com a calma equiliacutebrio e harmonia que lhe satildeo proacuteprios o homem grego foi o uacutenico a conseguir pocircr a arte na trilha de um ldquoideal esteacutetico absolutordquo14

Satildeo trecircs as formas pelas quais o ideal helecircnico se mani-festa ao ver que a vida eacute imperfeita ele busca criar a perfeiccedilatildeo substituindo a arte agrave vida15 Esse ideal eacute encontrado em Homero e Virgiacutelio Dante e Milton Na segunda forma de manifestaccedilatildeo do ideal esteacutetico o grego assume a vida imperfeita e tenta transfor-maacute-la em sua proacutepria pessoa Eacute esta forma ldquoemotiva e dolorosa do ideal esteacuteticordquo que criou a trageacutedia Na terceira forma do ideal esteacutetico os gregos sem forccedila espiritual para recriar artistica-mente ou para assumir subjetivamente a imperfeiccedilatildeo a aceitam tal qual se apresenta nos gestos nas coisas nos momentos particulares etc Trata-se sem duacutevida da forma mais iacutenfima e fraacutegil do ideal porque natildeo eacute nem uma reaccedilatildeo da inteligecircncia nem da emoccedilatildeo mas ao mesmo tempo eacute em certo sentido a mais esteacutetica porque natildeo tem outro predicado moral ou emotivo

12 Idem ibidem13 F Pessoa ldquoAntoacutenio Botto e o ideal esteacutetico em Portugalrdquo In Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990 pp 350-35114 Idem ibidem15 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

126

a qualificaacute-la Ela eacute o ideal esteacutetico ldquopurordquo16

O caraacuteter distintivo do verdadeiro esteta eacute produzir uma arte em que estatildeo ausentes quaisquer elementos metafiacutesicos ou morais Entretanto essa ausecircncia de elementos metafiacutesicos ou morais natildeo significa ausecircncia de ideias metafiacutesicas ou mo-rais Pessoa tem plena consciecircncia de que combate em duas frentes tendo em vista que se a autonomia esteacutetica natildeo eacute puro formalismo mera arte pela arte por outro lado tambeacutem natildeo se pode recair no platonismo de assimilar o belo ao bem e agrave ver-dade

Haacute uma ideia que sem ser metafiacutesica nem moral faz na obra do esteta as vezes das ideias morais e metafiacutesicas O esteta substitui a ideia de beleza agrave ideia de verdade e agrave ideia de bem poreacutem daacute por isso mesmo a essa ideia de beleza um alcance metafiacutesico e moral A ceacutelebre ldquoConclusatildeordquo da Renascenccedila de Pater o maior dos estetas europeus eacute o exemplo culminante desta atitude17

O esteticismo puro seria capaz de assimilar ideias me-tafiacutesicas e morais Eis a liccedilatildeo que Winckelmann-Pater datildeo tanto aos puros formalistas quanto aos estetas impuros ou melhor aos cristatildeos ou decadentes travestidos de pagatildeos como Wilde e Baudelaire (aos quais Pessoa natildeo hesitaria em acrescentar o nome de Nietzsche)18 O verdadeiro esteta natildeo defende uma ldquocausardquo ele eacute avesso a toda forma de doutrinaccedilatildeo A forccedila de sua poesia como em Antoacutenio Botto adveacutem de duas ideias simples a ideia de beleza fiacutesica e a ideia de prazer ndash ideias estas que lhe servem de metafiacutesica e moral ainda que sejam totalmente amorais e ao mesmo tempo estejam longe de toda espeacutecie de imoralidade19 E aqui Fernando Pessoa esmiuacuteccedila e aprofunda as consideraccedilotildees de Winckelmann

16 Idem pp 351-35217 Idem ibidem18 Idem ibidem A criacutetica a Nietzsche tatildeo presente em outros textos do escritor portuguecircs talvez fique clara por essa diferenciaccedilatildeo que alias eacute explicitada em relaccedilatildeo ao filoacutesofo alematildeo na beliacutessima sequecircncia desse mesmo texto haacute nas Canccedilotildees de Antoacutenio Botto ldquoa intuiccedilatildeo do fundo traacutegico do ideal helecircnico do fundo traacutegico de todo o prazer que sabe que natildeo tem aleacutem Essa intuiccedilatildeo poreacutem se eacute do que eacute traacutegico natildeo eacute traacutegica em si Este prazer natildeo tem a cor da alegria nem a da dor lsquoA alegriarsquo disse Nietzsche lsquoquer eternidade quer profunda eternidadersquo Natildeo eacute nem nunca foi assim a alegria natildeo quer nada e eacute por isso que eacute alegria A dor essa eacute o contraacuterio da alegria como a concebia Nietzsche quer acabar quer natildeo ser O prazer poreacutem quando o concebemos fora de relaccedilatildeo essencial com a alegria ou com a dor como concebe o autor deste livro esse sim quer eternidade po-reacutem quer a eternidade num soacute momentordquo Esse revide tardio do classicismo winckelmanniano a Nietzsche natildeo deixa de ter seu interesse O sentido ver-dadeiramente traacutegico de estar aleacutem de bem e mal sem motivaccedilatildeo nenhuma eacute diferente do sentimento de estar aleacutem deles por um espiacuterito de antagonismo ou razatildeo profunda qualquer19 Idem ibidem

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

127

Das trecircs formas que podemos conceber da beleza fiacutesica ndash a graccedila a forccedila e a perfeiccedilatildeo ndash o corpo feminino soacute tem a primeira porque natildeo pode ter a beleza da forccedila sem quebra da sua feminilidade isto eacute sem perda do seu caraacuteter proacuteprio o corpo masculino pode sem quebra de sua mas-culinidade reunir a graccedila e a forccedila a perfeiccedilatildeo soacute aos cor-pos dos deuses se existem eacute dado tecirc-la Um homem se se guiar pelo instinto sexual e natildeo pelo instinto esteacutetico canta-raacute como poeta soacute o corpo feminino Essa atitude representa uma preocupaccedilatildeo exclusivamente moral O instinto sexual normalmente tendente para o sexo oposto eacute o mais rudimen-tar dos instintos morais A sexualidade eacute uma eacutetica animal a primeira e a mais instintiva das eacuteticas Como poreacutem o esteta canta a beleza sem preocupaccedilatildeo eacutetica segue que a cantaraacute onde mais a encontra e natildeo onde sugestotildees externas agrave es-teacutetica como a sugestatildeo sexual o faccedilam procuraacute-la Como se guia pois soacute pela beleza o esteta canta de preferecircncia o cor-po masculino por ser o corpo humano que mais elementos de beleza dos poucos que haacute pode acumular20

Natildeo satisfeito com retomar-lhe as ideias Pessoa cita di-retamente Winckelmann numa traduccedilatildeo que faz da traduccedilatildeo de Pater

Como eacute confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral assim tenho no-tado que aqueles que observam a beleza soacute nas mulheres e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens raras vezes tecircm instinto imparcial vital inato da beleza na arte A pessoas como essas a beleza da arte grega pareceraacute sempre falha porque a sua beleza suprema eacute antes masculina que feminina21

A nova maneira de olhar

A concepccedilatildeo de ideal esteacutetico exposta na resenha sobre Canccedilotildees de Antoacutenio Botto natildeo eacute certamente uma manifestaccedilatildeo isolada na obra pessoana Outro texto que mostra o interesse do poeta pela obra de Pater eacute a traduccedilatildeo que fez do beliacutessimo trecho dedicado agrave ldquoGiocondardquo publicado na revista Athena de Lisboa em novembro de 1924 Assim como a resenha sobre o livro de Botto a seleccedilatildeo de um excerto tatildeo curto mas escolhido agrave dedo merece atenccedilatildeo E mesmo o melhor comentaacuterio a ele ndash como o comentaacuterio da proacutepria obra de arte que descreve ndash natildeo 20 Idem p 35421 Idem p 354 Como o leitor estaacute lembrado o trecho eacute exatamente o mesmo da Abhandlung von der Faumlhigkeit der Empfindung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben de Winckelmann citado agrave nota 5 Pessoa cita apenas um trecho do texto citado por Pater (trad cit pp185-186)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

128

poderia dispensar a sua transcriccedilatildeo

La Gioconda eacute no mais verdadeiro dos sentidos a obra-prima de Leonardo o exemplo revelador do seu modo de pensamento e de trabalho Em sugestatildeo soacute a Melancolia de Duumlrer lhe eacute comparaacutevel e natildeo haacute simbolismo cru que per-turbe o efeito do seu misteacuterio esbatido e gracioso Conhece-mos todos o rosto e as matildeos da figura posta em sua cadeira de maacutermore naquele ciacuterculo de rochedos fantaacutesticos como em vaga luz de sob o mar Talvez de todos os quadros anti-gos seja aquele que o tempo menos desbotou Como muitas vezes acontece com obras em que dir-se-ia que a invenccedilatildeo chegou a seu limite haacute nela um elemento dado ao mestre que natildeo inventado por ele Naquele inestimaacutevel foacutelio de dese-nhos que um tempo Vasari possuiu havia certos esboccedilos de Verrocchio rostos de beleza tatildeo expressiva que Leonardo jo-vem muitas vezes os copiou Eacute difiacutecil natildeo relacionar com es-tes esboccedilos do mestre preteacuterito como com seu princiacutepio ger-minal o sorriso insondaacutevel sempre como tocado de qualquer coisa de sinistro que paira em toda a obra de Leonardo Aleacutem disso o quadro eacute um retrato Desde a infacircncia vemos esta imagem definindo-se no estofo de seus sonhos e se natildeo fora o testemunho expresso da histoacuteria pudeacuteramos pensar que natildeo era esta mais que a sua dama ideal por fim corporizada e vista Que parentesco teve uma florentina real com esta cria-tura de seu pensamento Por que estranhas afinidades assim cresceram separados o sonho e a pessoa ainda que ligados de tatildeo perto Presente desde o princiacutepio incorporeamente no ceacuterebro de Leonardo delineada vagamente nos desenhos de Verrocchio ela encontra-se por fim presente em casa drsquoIl Gio-condo Que haacute muito de simples retrato no quadro atesta-o a lenda de que por meios artificiais a presenccedila de mimos e de tocadores de flauta se prolongou no rosto aquela expressatildeo sutil E ainda seria em quatro anos e por um trabalho reno-vado nunca em verdade findo ou em quatro meses e como por um golpe de magia que a imagem assim se projetou

A presenccedila que assim tatildeo estranhamente se ergueu de ao peacute das aacuteguas eacute expressiva daquilo que os homens nos caminhos de um milhar de anos tinham chegado a desejar Aquela eacute a cabeccedila sobre a qual ldquovieram todos os fins do mun-dordquo e as paacutelpebras estatildeo um pouco cansadas Eacute uma beleza trabalhada de dentro sobre a carne o depoacutesito ceacutelula a ceacutelu-la de pensamentos estranhos e devaneios fantaacutesticos e pai-xotildees esquisitas Colocai-a um momento ao peacute de uma dessas brancas deusas da Greacutecia ou mulheres belas da antiguidade e como elas se turbariam desta beleza para onde entrou jaacute a alma com todas as suas doenccedilas Todos os pensamentos e experiecircncia do mundo ali gravaram e modelaram no que tecircm de poder de refinar e tornar expressiva a forma exterior

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

129

o animalismo da Greacutecia a luxuacuteria de Roma o misticismo da Idade Meacutedia com sua ambiccedilatildeo espiritual e seus amores ima-ginativos o regresso do mundo pagatildeo os pecados dos Bor-gias Ela eacute mais velha que os rochedos entre os quais se assenta como o vampiro morreu jaacute muitas vezes e aprendeu os segredos do tuacutemulo e mergulhou em mares profundos e guarda cercando-a ainda o seu dia morto e traficou em teci-dos estranhos com os mercadores do Oriente e como Leda foi matildee de Helena de Troia e como Santa Ana foi matildee de Maria e tudo isto natildeo foi para ela mais que um som de liras e flautas e vive apenas uma delicadeza com que lhe modelou as feiccedilotildees instaacuteveis e lhe coloriu as paacutelpebras e as matildeos A fantasia de uma vida perpeacutetua congregando dez mil experi-ecircncias eacute antiga e a filosofia moderna concebeu a ideia da humanidade como trabalhada por e resumindo em si todos os modos de pensamento e vida Por certo que a Dama Lisa poderia ficar como a encarnaccedilatildeo da fantasia antiga o siacutembo-lo da ideia moderna22

Esses dois paraacutegrafos magistrais satildeo obviamente uma ekphrasis poeacutetica da obra de Leonardo mas tambeacutem muito mais que isso23 Sem contar a admiraacutevel prosa (que levou Ye-ats a selecionar surpreendentemente um trecho dela para abrir a sua coletacircnea de ldquoversos modernosrdquo para a editora Oxford transformando-o em versos livres24) Pater concentra neles tudo aquilo que haacute de essencial em sua ldquofilosofia da histoacuteriardquo na qual se poderia notar a presenccedila de certo hegelianismo embora o fundamental seja provavelmente a sua diacutevida para com Heine de quem cita um longo trecho em Renascimento25 E de fato assim como Heine Pater natildeo vecirc a histoacuteria desconectada dos impulsos religiosos que a movem pois as religiotildees satildeo ldquomovi-mentosrdquo naturais do espiacuterito humano Uma delas aliaacutes como se viu anteriormente o paganismo grego estaria tatildeo ligada agrave histoacuteria do espiacuterito que pode ser considerada a verdadeira forccedila motora e modificadora das atitudes humanas Como os deu-

22 O autor agradece imensamente a Claacuteudia Souza pela indicaccedilatildeo e pelo acesso a este texto23 Num pequeno comentaacuterio que redige sobre essa descriccedilatildeo de Mona Lisa Fernando Pessoa escreve ldquoQuando Walter Pater descreve a Gioconda vecirc nela coisas que laacute natildeo estatildeo Mas a sua descriccedilatildeo eacute mais bela do que a Gioconda porque eacute Gioconda + muacutesica (ritmo da prosa) + ideias (as conti-das nas palavras da descriccedilatildeo) + rdquo In F Pessoa Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizarro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009 p 284 O comentaacuterio se explica pois como se sabe diferentemente de Pater para quem todas as artes tendem agrave muacutesica para Pessoa todas devem tender agrave literatura24 ldquoShe is older than the rocks among which she sitsLike the vampireShe has been dead many timesAnd learned the secrets of the graveAnd has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about her She is older than the rocks among which she sits Like the vampireShe has been dead many times And learned the secrets of the grave And has been a diver in the deep seas And keeps their fallen day about herrdquo25 Trad cit pp 54-55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

130

ses exilados de Heine a Madonna percorreu todas as eacutepocas da histoacuteria tendo assumido os mais diferentes papeacuteis e ofiacutecios (foi Helena Santa Ana traficou com mercadores do Oriente) e suas paacutelpebras mostram o cansaccedilo de algueacutem que como Zeus--Odin na ilha dos Coelhos eacute velho como o mundo

Os Deuses no exiacutelio satildeo efetivamente o marco decisivo para uma nova forma de ver a histoacuteria na qual esta se mostra natildeo soacute como ldquohistoacuteria do espiacuteritordquo nos moldes da filosofia he-geliana mas como uma verdadeira ldquohistoacuteria da sexualidaderdquo O paganismo eacute manancial perene de rejuvenescimento natildeo tan-to porque serviria de estimulante agrave fantasia luacutebrica de homens decadentes e sim por mostrar a possibilidade de um modo de encarar a sexualidade que nada tem que ver com a tara de sexo dos homens modernos Partindo do neoclassicismo winckel-manniano e goethiano Heine tornou patente a diferenccedila entre a visualidade natural inocente do sexo entre os antigos e o aco-bertamento dele pelo cristianismo acobertamento este sempre acompanhado de um voyeurismo doentio Kierkegaard eacute outro autor que muito provavelmente seguiu Heine neste ponto afir-maccedilatildeo que se eacute verdadeira torna ainda mais interessante sua visatildeo cristatilde de que a sensualidade eacute uma representaccedilatildeo que surge somente com o advento do cristianismo Ela existia entre os gregos mas soacute se passa a ter consciecircncia dela com o adven-to da espiritualidade cristatilde de que ela eacute o negativo

Enquanto princiacutepio enquanto forccedila enquanto siste-ma em si a sensualidade [Sandseligheden] foi primeiramente posta com o cristianismo posso acrescentar uma determina-ccedilatildeo que talvez mostre mais enfaticamente o que quero dizer a sensualidade foi primeiramente posta com o cristianismo sob a determinaccedilatildeo do espiacuterito [Aand] Isso eacute inteiramente natural pois o cristianismo eacute espiacuterito e o espiacuterito o princiacutepio positivo que ele trouxe para o mundo26

Todas essas consideraccedilotildees sobre a dialeacutetica do espiacuterito e da sensualidade do cristianismo e do paganismo ajudam cer-tamente a entender melhor o quadro no qual se constitui o es-tetismo de Pater e tambeacutem ndash a partir deste ndash a formular melhor o que seria aquela volta do paganismo anunciada por Pessoa e seus heterocircnimos ndash doutrina que eacute explicitada especialmen-te por Antoacutenio Mora Natildeo caberia certamente elencar e discutir todos os ingredientes poeacuteticos esteacutetico-morais e poliacuteticos que estatildeo em jogo na postulaccedilatildeo salviacutefica do ldquoregresso dos deusesrdquo por Fernando Pessoa27 mas valeria a pena sim destacar um deles eacute que a retomada do paganismo perde pelo menos um pouco de sua aura miacutestico-utoacutepica quando se percebe que ela significa essencialmente uma mudanccedila na forma de olhar Essa transformaccedilatildeo do modo de ver produzida por um retorno aos

26 S Kierkegaard Enten ndash Eller Copenhague Gyndendal 1994 p 6027 A citaccedilatildeo de um longo paraacutegrafo dos Deuses no exiacutelio de Heine eacute

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

131

gregos pode ser reconhecida por exemplo neste fragmento de O regresso dos deuses

O grego reparava essencialmente na forma Eacute carac-teriacutestico do visual e do atento notar as formas das coisas A nascenccedila da fisiognomia e correlacionadas formas de ciecircn-cia na Greacutecia aponta isto Eacute na forma que repara primeiro o homem atento ao mundo exterior O Cristianismo trouxe um adoecimento de sentimentos e de sentidos que levou a esmiuccedilar as formas e achar o sentimento das cores e das tonalidades Mas perdeu-se por aiacute caiu no erro regressivo de buscar na arte uma expressatildeo de emoccedilotildees de sensaccedilotildees de aspiraccedilotildees A arte eacute isto poreacutem apenas num seu estaacute-dio inferior depois chegada agrave Greacutecia desde a Greacutecia a arte passa a ser um fenoacutemeno de trabalho de esforccedilo de querer realizar a perfeiccedilatildeo28

Uma forma de ver pagatilde em oposiccedilatildeo agrave expressividade cristatilde sentimental simplificando muito se poderia afirmar que a poeacutetica pessoana se faz precisamente por essa remissatildeo agrave visi-bilidade pura ndash ou talvez eacute pela proximidade ou afastamento em relaccedilatildeo a essa pureza do olhar eacute por ver mais distintamente ou por estar mais ou menos ldquodoente dos olhosrdquo que se mede o grau de paganismo ou de decadentismo dos poetas que compotildeem a plecirciade heteroniacutemica Alberto Caeiro Ricardo Reis Aacutelvaro de Campos Fernando Pessoa ele mesmo Fernando Pessoa autor dos sonetos ingleses

Mas talvez nem um deles soube exprimir melhor que Bernardo Soares qual eacute o segredo dessa combinaccedilatildeo maacutegica de erotismo e autonomia do olhar Eacute o que se pode ler num frag-mento do Livro do desassossego intitulado muito precisamente ldquoO amante visualrdquo ou ldquoAnterosrdquo

Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo Sou sujeito a paixotildees visu-ais Guardo intacto o coraccedilatildeo dado a mais irreais destinos

Natildeo me lembro de ter amado senatildeo o lsquoquadrorsquo em algueacutem o puro exterior ndash em que a alma natildeo entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo ndash e assim diferente dos quadros que os pintores fazem

Amo assim fixo por bela atraente ou de outro qual-quer modo amaacutevel uma figura de mulher ou de homem ndash onde natildeo haacute desejo natildeo haacute preferencia de sexo ndash e essa fi-gura me obceca me prende se apodera de mim Poreacutem natildeo quero mais que vecirc-la nem olho nada com mais horror que a

um documento de interesse para a formulaccedilatildeo da ideia do regresso do paga-nismo em Pessoa A ediccedilatildeo que utiliza eacute da editora Macmillan publicada em Londres em 1915 O contato com Pater (e Heine) pode portanto ser bem anterior agrave traduccedilatildeo do trecho sobre a Gioconda28 F Pessoa O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacutenio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013 p 55

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

132

possibilidade [] de vir a conhecer e falar agrave pessoa real que essa figura aparentemente manifesta

Amo com o olhar e nem com a fantasia Porque nada fantasio dessa figura que me prende Natildeo me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decorativo nada tem de mais psicoloacutegico [] Natildeo me interessa saber quem eacute que faz que pensa a criatura que me daacute para ver o seu aspecto exterior

A imensa seacuterie de pessoas e de coisas que forma o mundo eacute para mim uma galeria inteacutermina de quadros cujo interior me natildeo interessa Natildeo me interessa porque a alma eacute monoacutetona e sempre a mesma em toda a gente diferem ape-nas as suas manifestaccedilotildees pessoais e o melhor dela eacute o que transborda para o sonho para os modos para os gestos e assim entra para o quadro que me prende e em que visiono caras constantes a essa afeiccedilatildeo

Para mim uma criatura natildeo tem alma A alma eacute soacute com ela mesma

Assim vivo em visatildeo pura o exterior animado das coisas e dos seres indiferente como um deus de outro mun-do ao conteuacutedo-espiacuterito deles Aprofundo o ser proacuteprio soacute em extensatildeo e quando anseio a profundeza eacute em mim e no meu conceito das coisas que a procuro

Que pode dar-me o conhecimento pessoal da cria-tura que assim amo em deacutecor Natildeo uma desilusatildeo porque como nela soacute amo o aspecto e nada dela fantasio a sua es-tupidez ou mediocridade nada tira porque eu natildeo esperava nada senatildeo o aspecto que natildeo tinha que esperar e o aspec-to persiste Mas o conhecimento pessoal eacute nocivo porque eacute inuacutetil e o inuacutetil material eacute nocivo sempre Saber o nome da criatura para quecirc e eacute a primeira coisa que apresentado a ela fico sabendo

O conhecimento pessoal precisa ser tambeacutem de li-berdade de contemplaccedilatildeo a que meu geacutenero de amar dese-ja Natildeo podemos fitar contemplar em liberdade quem conhe-cemos pessoalmente

O que eacute supeacuterfluo eacute a menos para o artista porque perturbando-o diminui o efeito

O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das aparecircncias e manifestaccedilatildeo das coisas ndash ob-jetivista dos sonhos amante visual das formas e dos aspec-tos da natureza

Natildeo eacute um caso do que os psiquiatras chamam ona-nismo psiacutequico nem sequer do que chamam erotomania Natildeo fantasio como no onanismo psiacutequico natildeo me figuro em sonho amante carnal ou sequer amigo de fala da criatura que fito e recordo nada fantasio dela Nem como o erotoacutema-no a idealizo e a transporto para fora da esfera da esteacutetica concreta natildeo quero dela ou penso dela mais do que o que me daacute aos olhos e agrave memoacuteria direta e pura do que os olhos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

133

viram29

Nesse fragmento Bernarndo Soares confronta seu amor agrave visualidade com a monomania eroacutetica da subjetividade moder-na procurando resgatar em meio ao mundo adverso um olhar divergente diferenciado voltado para o aspecto visual das coi-sas e das pessoas enfim para aquilo que nelas eacute tatildeo-somente forma e visualidade Esse encanto simples quase infantil com a manifestaccedilatildeo primeira das formas tem sido uma armadilha em que constantemente voltam a cair leitores que tentam des-vendar uma metafiacutesica na obra do poeta principalmente no que concerne ao heterocircnimo Alberto Caeiro Natildeo se pode certamen-te excluir que haja um fundo filosoacutefico na poeacutetica pessoana Mas seu alinhamento na tradiccedilatildeo esteacutetica aqui discutida talvez propicie uma explicaccedilatildeo mais plausiacutevel e simples para suas es-colhas e de resto ela tambeacutem ajudou o proacuteprio Pessoa a dar respostas claras aos clichecircs psicologizantes que procuravam (e continuando procurando) a todo custo rotular a sua (ausecircncia de) sexualidade

O ideal poeacutetico pessoano natildeo estaacute portanto numa recu-peraccedilatildeo ontoloacutegica do mundo mas provavelmente numa trans-formaccedilatildeo do poeta em alguma coisa que tem muito que ver com o artista visual com o artista plaacutestico no sentido que lhe foi dado por Roberto Longhi O filoacutesofo o homem adulto jaacute perdeu ldquoaquele senso tatildeo simples intenso e verdadeiro da apreensatildeo de uma realidaderdquo que caracteriza a experiecircncia perceptiva da crianccedila e do artista Soacute este eacute capaz de devolver aos olhos em-botados agravequela experiecircncia primordial de sentir a beleza de uma linha de um colorido de um volume de uma obra arquitetocircnica Como explica o criacutetico italiano

Cada estilo figurativo traz em si o dom essencial-mente esteacutetico primordialmente liacuterico de restaurar o contato do nosso espiacuterito com a realidade visual corpoacuterea jaacute que os haacutebitos cotidianos nos fizeram perder a empatia e a comu-nhatildeo que mantiacutenhamos com ela Quando por vias filosoacuteficas chegamos agrave convicccedilatildeo da existecircncia do mundo a ferrugem da vida metoacutedica jaacute nos fez perder a convicccedilatildeo original a convicccedilatildeo plaacutestica30

A busca de densidade psicoloacutegica de aprofundamento introspectivo eacute o avesso dessa convicccedilatildeo plaacutestica da realidade que eacute tambeacutem um modo poeacutetico de apreender o real assim

29 F Pessoa O livro do desassossego Composto por Bernardo Soa-res ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Organizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010 pp 479-480 Sobre a ldquovisu-alidaderdquo de Bernardo Soares ver o belo texto de Leyla Perrone-Moiseacutes ldquoIn-troduccedilatildeo ao desassossegordquo que figura na ediccedilatildeo do Livro do desassossego publicada pela editora Brasiliense (Satildeo Paulo 2a ed 1996)30 R Longhi Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Traduccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosacnaify 2005 p 19

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

134

descrito por Longhi

[] o sentir para o artista figurativo eacute o ver e o seu estilo isto eacute a sua arte se constroacutei inteiramente sobre os ele-mentos liacutericos da sua visatildeo31

A transformaccedilatildeo fundamental da liacuterica pessoana talvez possa ser pensada segundo esse ldquosenso liacuterico particular da arte figurativa essa ldquoliacuterica figurativardquo32 ou ldquoaderecircncia liacuterica agrave figurardquo33 da tradiccedilatildeo pictoacuterica escultoacuterica conforme os termos de Longhi Assim como requer um outro modo pelo qual deve ser vista a poesia pessoana tambeacutem procura instituir um modo novo de olhar Sua insistente defesa e exigecircncia desse outro modo de ver eacute o contraponto agrave miopia agrave cegueira agrave doenccedila dos olhos enfermidade que tambeacutem muitas vezes a acomete e da qual eacute certamente difiacutecil se libertar Mas o combate vale a pena Os so-netos ingleses e tantos outros estatildeo aiacute para o confirmar Se Kant disse que uma moccedila para ser bela tem de ser bela como moccedila ou mesmo disfarccedilada de homem do mesmo modo soacute quem pud L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confron-to intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012 er olhar com olhos livres uma rapariga de modos masculinos teraacute toda a li-berdade de dizer contra as convenccedilotildees sociais e as regras da gramaacutetica mas em absoluto fotograficamente ndash aquela rapaz34

31 Idem p 732 R Longhi Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 196133 L Marques ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um confronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 201234 Idem p 112

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 119-135jul-dez 2017

135

BIBLIOGRAFIA

KANT Immanuel Criacutetica do juiacutezo Traduccedilatildeo de Rubens Rodri-gues Torres Filho In Criacutetica da razatildeo pura e outros textos filo-soacuteficos Satildeo Paulo Abril 1974

KANT Immanuel Bemerkungen in den ldquoBeobachtungen uumlber das Gefuumlhl des Schoumlnen und Erhabenenrdquo ediccedilatildeo de Marie Ris-chmuumlller Hamburgo Felix Meiner 1991 p 100

KIERKEGAARD Soren Enten ndash Eller Copenhague Gynden-dal 1994 p 60

LONGHI R Breve mais veridical histoacuteria da pintura italiana Tra-duccedilatildeo de Denise Bottmann Satildeo Paulo Cosac Naify 2005

LONGHI R Rinascimento fantastico In Scritti giovanilli 1911-1922 Florenccedila Sansoni 1961

MARQUES L ldquoRoberto Longhi e Giulio Carlo Argan ndash um con-fronto intelectualrdquo In fevereiro 5 outubro de 2012

PATER Walter O Renascimento Apresentaccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Paulo Butti de Lima Satildeo Paulo Iluminuras 2014

PESSOA F Obras em prosa Ediccedilatildeo de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Nova Aguilar 1990

PESSOA F Sensacionismo e outros ismos Ediccedilatildeo de J Pizar-ro Lisboa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2009

PESSOA F O regresso dos deuses e outros escritos de Antoacute-nio Mora Ediccedilatildeo de Manuela Parreira da Silva Porto Assiacuterio amp Alvim 2013

PESSOA F O livro do desassossego Composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa Orga-nizaccedilatildeo de Richard Zenith Satildeo Paulo Companhia de Bolso 2010

WINCKELMANN JJ Abhandlung von der Faumlhigkeit der Emp-findung des Schoumlnen in der Kunst und dem Unterricht derselben (Ensaio sobre a capacidade de sentir o belo na arte e no seu ensino] Dresden Walther 1771

WINCKELMANN JJ Monumenti antichi inediti spiegati ed illus-trati da Giovanni Winckelmann Roma ediccedilatildeo do autor 1767

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

136

Szondi e Hegel notas sobre o conteuacutedo e a forma do drama modernoHegel e Szondi notes on the content and form of modern drama

Palavras-chave Hegel esteacutetica drama moderno Peter SzondiKeywords Hegel aesthetics modern Drama Peter Szondi

RESUMO Pretende-se analisar como Peter Szondi a partir de um quadro teoacuterico hegeliano ressalta a contradiccedilatildeo entre a for-ma e o conteuacutedo no drama moderno o qual por sua vez con-duz ao predomiacutenio do eacutepico sobre o dramaacutetico

ABSTRACT We intended to analyze how Peter Szondi from a theoretical framework Hegelian emphasizes the contradiction between the form and the content in the modern drama wich in turn lead to the predominance of the epic over the dramatic

Em seu livro Teoria do drama moderno Peter Szondi parte de uma perspectiva que procura situar as obras dramaacute-ticas no acircmbito de uma ldquoantinomia interiorrdquo (SZONDI 1978 p 13) determinada por uma relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo entre forma e conteuacutedo A matriz teoacuterica dessa perspectiva remonta a Hegel citado pelo proacuteprio Szondi a partir da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas No sect 133 dessa obra intitulado ldquoconteuacutedo e formardquo Hegel afirma que ldquoo conteuacutedo natildeo eacute senatildeo o mudar da forma em conteuacutedo e a forma natildeo eacute senatildeo o mudar de conteuacutedo em formardquo (HEGEL 1995 p 253)

Esse trecho corresponde na chamada pequena loacutegica da Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas agrave loacutegica da essecircncia da grande loacutegica ou seja agrave Ciecircncia da loacutegica Trata-se gros-so modo na loacutegica da essecircncia (situada no campo da primeira parte da loacutegica a chamada loacutegica objetiva a qual engloba ainda a loacutegica do ser) de examinar o segundo momento do elemento loacutegico [das Logische] marcado pelo princiacutepio da reflexatildeo e da aparecircncia Se na loacutegica do ser Hegel reinterpreta as categorias da quantidade e da qualidade no horizonte de uma fusatildeo entre metafiacutesica e loacutegica nesse segundo momento da primeira parte a saber na loacutegica da essecircncia estatildeo em jogo as categorias de relaccedilatildeo e modo Dito de outra forma se na loacutegica do ser as determinaccedilotildees puras de pensamento se manteacutem relativamen-te isoladas na loacutegica da essecircncia passamos para o campo da

Marco Aureacutelio Werle

Doutor e professor de Esteacuteti-ca e histoacuteria da filosofia pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail mawerleuspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

137

reflexatildeo As determinaccedilotildees entram numa relaccedilatildeo se dizem por sua alteridade por seu contraacuterio ldquoum-para-o-outrordquo no acircmbito de uma certa tensatildeo entre ser e essecircncia Dominam entatildeo na loacutegica da essecircncia pares de pensamento essencial e inessen-cial identidade e diferenccedila positivo e negativo realidade e apa-recircncia etc

Transpondo esse princiacutepio para o uso que Szondi faz dele pode-se dizer que as obras dramaacuteticas investigadas e jun-to com elas o respectivo pensamento dos dramaturgos satildeo mar-cadas ou se resolvem estruturalmente por uma relaccedilatildeo intriacutense-ca de contrariedade e de oposiccedilatildeo satildeo situadas no campo de um processo de reflexatildeo no qual vale mais a ldquorelaccedilatildeordquo do que os extremos isolados Szondi mesmo lida em muitos momentos com categorias que exprimem ldquorelaccedilotildeesrdquo (o ldquoentrerdquo presentepassado diaacutelogomonoacutelogo interiorexterior etc) muito mais do que com ldquoidentidadesrdquo As obras ou as peccedilas teatrais sob seu olhar acabam sempre se colocando nesse domiacutenio inter-mediaacuterio revertendo uma na outra uma vez que se encontram sob o princiacutepio da alteridade natildeo de uma identidade atomiacutestica fechada em si mesma Simplificando as obras encontram-se num processo de reflexatildeo entre o conteuacutedo e a forma Por isso mesmo natildeo se pode analisaacute-las a partir de categorias oriundas de uma poeacutetica da trageacutedia que considera cada peccedila teatral operando num mundo por assim dizer fechado em si mesmo

A partir desse princiacutepio ou leitmotiv torna-se principal-mente possiacutevel falar da ldquocrise do dramardquo denominaccedilatildeo que sig-nifica principalmente um questionamento do proacuteprio gecircnero dra-maacutetico o qual desde a antiguidade se apresentou sob o signo do absoluto ldquoO drama eacute absoluto A fim de poder estabelecer uma relaccedilatildeo pura isto eacute poder ser dramaacutetico ele necessita es-tar desconectado de tudo o que lhe eacute exterior Ele natildeo conhece nada que natildeo seja ele mesmo e fora de si mesmordquo (SZONDI 1978 p 17) Essa designaccedilatildeo do drama como sendo marcado pelo ldquoabsolutordquo jaacute se encontra impliacutecita na Teoria do romance de Lukaacutecs um dos autores que inspira o estudo de Szondi A tra-geacutedia grega segundo Lukaacutecs ldquoencontrava-se acima do dilema entre a aproximaccedilatildeo da vida ou a abstraccedilatildeo porque para ela a plenitude natildeo era uma questatildeo de aproximaccedilatildeo da vida a trans-parecircncia do diaacutelogo natildeo era uma superaccedilatildeo de sua imediatez seu sentido artiacutestico eacute conduzir a essecircncia para um aleacutem de qualquer vida de toda vitalidade e plenituderdquo (LUKAacuteCS 1994 p 33) Num outro registro essa caracterizaccedilatildeo antiga do drama remete de alguma forma agrave loacutegica do ser de Hegel (natildeo agrave loacutegi-ca da essecircncia) como se o drama se colocasse desde sempre como um ser posto ou como uma dimensatildeo ontoloacutegica quase natural de fechamento em si mesmo ou se quisermos de es-vaziamento no que tange ao particular Pois natildeo eacute o proacuteprio Hegel que afirma que devido agrave sua universalidade ldquoo puro ser e o puro nada satildeo o mesmordquo (HEGEL 2011 p 72) Entretan-to a eacutepoca moderna cada vez mais recusaraacute essa concepccedilatildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

138

de drama O ser passa para o registro da essecircncia isto eacute da reflexatildeo num campo de tensatildeo e flexibilizaccedilatildeo dos pilares de sustentaccedilatildeo tradicionais da trageacutedia

Mas como se apresenta esse quadro categorial nas pe-ccedilas mesmas Szondi percorre cinco dramaturgos do fim do seacute-culo XIX e comeccedilo do seacuteculo XX Ibsen Tschechov Strindberg Maeterlinck e Hauptmann Cada um eacute examinado segundo pe-ccedilas representativas tanto a partir de um certo momento temaacute-tico que se desenvolve em sua produccedilatildeo teatral ou melhor a atravessa quanto segundo um certo percurso que os envolve e transcende como um todo No que se refere ao toacutepico geral da relaccedilatildeo ldquoforma e conteuacutedordquo temos entatildeo o seguinte desenvol-vimento

1) Em Ibsen emerge ldquoo problema formal do dramardquo (SZONDI 1978 p 29) na impossibilidade de ser exposta dra-maticamente a dimensatildeo do presente e da interioridade dos per-sonagens Nas peccedilas Rosmersholm e John Gabriel Borkman a trama eacute dominada pelo passado gerando um imobilismo Ao contraacuterio do Eacutedipo Rei de Soacutefocles observa Szondi que punha o passado para funcionar dramaticamente como revelador do presente em Ibsen o passado prende os personagens diante da accedilatildeo presente Em Rosmersholm eacute o suiciacutedio da esposa do protagonista que bloqueia os planos bem como em John Ga-briel Borkman satildeo os negoacutecios fracassados e as expectativas da cunhada e esposa em relaccedilatildeo ao filho que geram um imobi-lismo impedindo qualquer tipo de accedilatildeo

2) Tschechow por sua vez deixa de apostar na forma do diaacutelogo enquanto articulador positivo da accedilatildeo presente e assume claramente essa impossibilidade apresentando seus personagens de imediato diante de uma ldquorenuacutencia ao presenterdquo (SZONDI 1978 p 31) Em As trecircs irmatildes estatildeo entrelaccedilados o teacutedio da vida burguesa o peso de um passado tido como fe-liz e um presente tomado pelo fracasso Esse ldquoconteuacutedordquo leva Tschechow a renunciar agrave forma tradicional do diaacutelogo Muito embora os personagens falem intensamente de si essas falas natildeo possuem o propoacutesito de entabular uma conversa e propi-ciar uma mensagem intersubjetiva ou compreensatildeo reciacuteproca e comunicativa ldquoo diaacutelogo natildeo tem forccedilardquo (SZONDI 1978 p 35) No lugar disso a dimensatildeo liacuterica eacute incorporada no drama tornando-se o diaacutelogo uma espeacutecie de monoacutelogo na medida em que se compartilha a solidatildeo e a ausecircncia de sentido da vida burguesa que se aproxima de uma espeacutecie de mutismo e imobilismo

3) Como ponto de inflexatildeo das anaacutelises de Szondi colo-ca-se o proacuteximo dramaturgo Strindberg sem duacutevida autor mais decisivo com a sua ldquodramaturgia do eurdquo Natildeo se trata poreacutem de um teatro que procura afirmar a potecircncia da subjetividade tal como vemos ocorrer em Shakespeare Ao contraacuterio Strindberg parte do fato da quase impossibilidade de expressar a vida indi-vidual de cada ser humano Na peccedila O pai surge justamente a

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

139

expressatildeo ldquoconhecemos apenas uma vida a proacutepriardquo (SZON-DI 1978 p 39) e na peccedila de um ato A mais forte emerge de maneira extremamente condensada o elemento oculto e repri-mido da vida dos homens A novidade formal dessa uacuteltima peccedila consiste justamente numa espeacutecie de monoacutelogo que por sua vez eacute quase um relato pura e simples

Partindo pois da dificuldade de expressatildeo da dimensatildeo humana Strindberg avanccedila para o conceito de ldquodrama de esta-ccedilatildeordquo cujo princiacutepio formal consiste em iluminar um ldquoeurdquo a partir daqueles que o cercam configurando-se assim uma unidade do eu que se coloca no lugar da unidade da accedilatildeo A unidade de accedilatildeo eacute dissolvida e se destacam as ldquopedras isoladasrdquo do eu que progride Ou seja o ldquoeurdquo eacute de natureza essencialmente frag-mentada exposto a uma situaccedilatildeo de signos existenciais (peccedila A mais forte)

4) Maeterlinck o proacuteximo dramaturgo examinado tor-na-se o autor que decididamente lida com a impotecircncia do ser humano diante do destino Satildeo homens que jaacute renunciaram e estatildeo entregue agrave situaccedilatildeo existencial mais imediata Estatildeo agrave espera de algo que decididamente nunca chegaraacute

O termo ldquosituaccedilatildeordquo empregado por Szondi nos remete novamente para Hegel que o emprega na primeira parte dos Cursos de esteacutetica para designar uma determinidade do ideal da arte colocada entre o chamado ldquoestado de mundordquo (pensado como heroacuteico e prosaico) e a ldquocolisatildeordquo O ideal se apresenta na existecircncia fazendo um sentido para o agir universal de modo que ldquoa situaccedilatildeo em geral eacute o estaacutegio intermediaacuterio entre o estado universal do mundo em si mesmo imoacutevel e a accedilatildeo [Handlung] concreta aberta em si mesma para a accedilatildeo [Aktion] e reaccedilatildeo [Reaktion]rdquo (HEGEL 1999 p 208) E Hegel ainda ressalta que a tarefa de encontrar situaccedilotildees interessantes favoraacuteveis agrave arte foi ldquodesde sempre o aspecto mais importante da arterdquo (HEGEL 1999 p 207)

Em Maeterlinck poreacutem a situaccedilatildeo exprime-se no acircmbito dos homens no maacuteximo como uma Stimmung [disposiccedilatildeo aniacute-mica] diante da qual os diaacutelogos satildeo desprovidos de sentido e conexatildeo intersubjetiva Isso significa antes o que Hegel chama de ldquoausecircncia de situaccedilatildeordquo por exemplo o que encontrariacuteamos na rigidez de certos retratos medievais Seja como for essa re-missatildeo ao medievo natildeo deixa de ser instrutiva para o teatro de Maeterlinck um teatro marcado pela situaccedilatildeo da ausecircncia de situaccedilatildeo Poder-se-ia dizer que esse seraacute um traccedilo incorporado largamente pelo teatro em geral do seacuteculo XX Basta lembrar de Esperando Godot de Beckett

5) Por fim apresenta-se Hauptmann em cujo teatro jaacute se verifica uma autonomizaccedilatildeo total do chamado ldquodrama socialrdquo A dimensatildeo social eacute o assunto principal que se sobrepotildee sobre a dimensatildeo propriamente dramaacutetica em que faz sentido a accedilatildeo humana Szondi chama a atenccedilatildeo para o caraacutecter eacutepico dessa denominaccedilatildeo de ldquodrama socialrdquo que implica ao mesmo tempo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

140

uma contradiccedilatildeo que jaacute se coloca totalmente contra a proacutepria possibilidade do drama (SZONDI 1978 p 60)

Nesse percurso vai se desnudando aos poucos o que vem a ser em termos de significaccedilatildeo esse embate entre for-ma e conteuacutedo no drama moderno grosso modo trata-se fun-damentalmente de um embate entre o dramaacutetico e o eacutepico no interior da forma dramaacutetica O eacutepico eacute o conteuacutedo e dramaacutetica eacute a forma sendo que a segunda acaba por ser questionada e forccedilada a aceitar as mudanccedilas formais devido agrave primeira No drama moderno cada vez mais se torna decisivo o conteuacutedo eacutepico ou dito de outro modo a instacircncia da prosa que forccedila o gecircnero dramaacutetico a recuar de seus pontos de sustentaccedilatildeo basi-lares desde a antiguidade que satildeo a accedilatildeo o diaacutelogo e a cons-truccedilatildeo de um sentido intersubjetivo compartilhado Eacute como se o teatro natildeo coubesse mais nos limites que lhe foram conferidos desde a Poeacutetica de Aristoacuteteles isto eacute no espaccedilo de jogo entre a mimese e a catarse

Rompendo com uma poeacutetica da trageacutedia e pensando nos termos de uma filosofia do traacutegico Szondi orienta-se ainda segundo a esteacutetica de Hegel quando privilegia o conteuacutedo dian-te da forma Sabemos que a esteacutetica de Hegel eacute sobretudo uma esteacutetica do conteuacutedo e que no fundo o problema da relaccedilatildeo entre conteuacutedo e forma somente surge quando se privilegia a instacircncia do conteuacutedo Nas esteacuteticas que punham em primeiro lugar o princiacutepio da forma por exemplo no acircmbito do pensa-mento alematildeo da eacutepoca desde Baumgarten Kant chegando ateacute Schiller esse problema natildeo tinha como surgir a forma resolvia de antematildeo a particularidade do conteuacutedo Aliaacutes a temaacutetica do particular de um universal particular eacute o que justamente marca a instacircncia do conteuacutedo e desencadeia o movimento dialeacutetico baseado nas transformaccedilotildees histoacutericas da arte que levam a uma problematizaccedilatildeo permanente da forma Natildeo significa que a forma se torna relativa Pelo contraacuterio a forma se torna de fato e pela primeira vez uma questatildeo efetiva de pensamento a ser constantemente revista e observada com intensidade

No entanto a filiaccedilatildeo de Szondi ao modo como Hegel lida com o problema da relaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo natildeo dei-xa de ser isenta de criacuteticas se lembrarmos por exemplo das objeccedilotildees que Adorno fez a isso em sua Teoria esteacutetica Para Adorno Hegel e Kant tomam a forma como sendo conteuacutedo ou seja deixam a desejar no que se refere a uma transforma-ccedilatildeo da proacutepria forma Hegel veria uma passagem tranquila do conteuacutedo social para o domiacutenio da prosa da arte quando essa ldquopassagemrdquo lida a partir do conceito de ideologia tornar-se-ia sobretudo problemaacutetica a partir do seacuteculo XIX ldquoHegel e Kant foram os uacuteltimos que dito de modo brusco puderam escrever grandes esteacuteticas sem compreender algo acerca de arte Isso foi possiacutevel porque a arte por seu lado se orientava pelas nor-mas abrangentes que natildeo eram questionadas pela obra de arte individual e sim eram diluiacutedas em sua problemaacutetica imanenterdquo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

141

(ADORNO 1973 p 495) Certamente pode-se questionar o pensamento que lida com o esquema forma e conteuacutedo a partir da situaccedilatildeo da arte no seacuteculo XIX jaacute que a relaccedilatildeo entre arte e cultura ingressou a partir de entatildeo numa tensatildeo cada vez maior Por outro lado igualmente pode-se questionar o pressuposto adorniano de que toda obra de arte autecircntica jaacute eacute por si mes-ma um questionamento das chamadas ldquonormas abrangentesrdquo e que portanto as obras de arte estariam sempre em descom-passo com o mundo social dominante Assumir essa tese signifi-ca excluir uma grande parte da produccedilatildeo artiacutestica e literaacuteria dos seacuteculos XIX e XX

Poder-se-ia lembrar aqui tambeacutem das objeccedilotildees que Hei-degger faz ao par mateacuteria e forma no ensaio A origem da obra de arte cuja origem adviria de uma ausecircncia de questionamen-to da ldquocoisidade da coisardquo Por traacutes do questionamento da coisa reside a concepccedilatildeo de coisa como instrumento de modo que o par mateacuteria e forma depende de uma certa noccedilatildeo de serventia isto eacute de uma certa teacutecnica aplicada pelo homem agrave coisa mas que seria estranha a ela mesma em seu desenvolvimento on-toloacutegico ldquoA distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma em suas mais dife-rentes combinaccedilotildees eacute o esquema conceitual puro e simples de toda teoria da arte e esteacutetica Mas esse fato incontestaacutevel natildeo comprova nem que a distinccedilatildeo entre mateacuteria e forma seja sufi-cientemente fundamentada nem que pertence originariamente ao acircmbito da arte e da obra de arterdquo (HEIDEGGER 2003 p 12)

Ou seja tanto Adorno quanto Heidegger questionam a legitimidade do pensamento que opera ainda com o par ldquoforma e conteuacutedordquo Ambos podem ser mobilizados como contraponto criacutetico ao percurso indicado por Szondi uma vez que se poderia supor algo de irredutiacutevel no drama moderno e que se subtrai ao desenvolvimento dialeacutetico de forma e conteuacutedo

Voltando ao problema central de Szondi coloca-se po-reacutem a pergunta de onde proveacutem essa necessidade de emer-gecircncia do eacutepico na eacutepoca moderna Talvez possamos discutir esse ponto retomando o tema da posiccedilatildeo da prosa na eacutepoca da filosofia e da poesia alematildes claacutessicas em particular desde a filosofia kantiana e segundo o centro do romantismo e idealis-mo refletidos no classicismo de Weimar Para tanto parece-me instrutivo remeter ao romance de Goethe intitulado Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister escrito entre 1794 e 1797 em particular ao modo como eacute encaminhado o tema do teatro

No capiacutetulo 7 do livro V de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister o grupo de teatro ocupado com a discussatildeo do Hamlet de Shakespeare e de sua encenaccedilatildeo se depara dian-te da seguinte questatildeo o que deve ser privilegiado o drama ou o romance A partir disso discutem algumas caracteriacutesticas do drama e do romance que parecem por assim dizer anteci-par o que ocorreraacute com o drama posterior objeto de anaacutelise de Szondi principalmente quando se diz que ldquonatildeo seria impossiacute-vel escrever um drama em forma epistolarrdquo (GOETHE 2006 p

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

142

300) Elementos eacutepicos tais como o da passividade do heroacutei da ausecircncia de destino da evoluccedilatildeo lenta do jogo do acaso satildeo confrontados com os elementos essencialmente dramaacuteti-cos tais como o predomiacutenio da accedilatildeo a pressa e a aceleraccedilatildeo o destino e a eficaacutecia do agir (cf GOETHE 2006 p 300-01) Essa comparaccedilatildeo entre o drama e o romance indica um pensamento que toma os dois gecircneros como passiacuteveis de flexibilizaccedilatildeo de seus princiacutepios de modo que permitem perceber o processo de como no drama do fim do seacuteculo XIX pocircde justamente ocorrer a emergecircncia do eacutepico A leitura feita do Hamlet nesse romance como sendo uma peccedila que extrapola os limites do teatro pre-nuncia o que viraacute depois

Ou seja a impressatildeo que se tem diante da leitura de Szondi eacute que ele como grande conhecedor da esteacutetica alematilde claacutessica toma emprestado o esquema discutido por Goethe e Schiller que possui algo de programaacutetico e visionaacuterio e o mo-biliza para compreender o teatro posterior E aqui seria preciso ainda explorar o anexo Sobre Poesia eacutepica e dramaacutetica da Cor-respondecircncia de Goethe e Schiller onde se coloca o mesmo problema Eacute como se Szondi tomasse esses apontamentos bre-ves de Goethe e Schiller como uma espeacutecie de prognoacutestico da proacutepria tendecircncia do teatro ao longo do seacuteculo XIX como se o teatro do futuro a partir da essecircncia da modernidade tivesse de se deparar inevitavelmente com essa dimensatildeo eacutepica No fundo o problema parece ser esse como eacute possiacutevel fazer teatro na eacutepoca do paradigma do romance

Com efeito cabe lembrar que o problema em si natildeo eacute la-teral ou secundaacuterio na estruturaccedilatildeo do romance de Goethe Uma das teses mais fortes desse romance consiste em indicar como o paradigma humano se desloca do campo do teatro como ins-tituiccedilatildeo essencialmente representativa (no seacuteculo XVIII) para o campo do romance como o paradigma de exposiccedilatildeo do homem poacutes Revoluccedilatildeo Francesa (seacuteculo XIX) Um certo ideal relacio-nado ao seacuteculo XVIII de que o gecircnero humano pode encontrar o seu sentido e destino no teatro sendo a noccedilatildeo de representa-ccedilatildeo o signo pelo qual o homem se reconhece enquanto tal dei-xa de ter validade com o espiacuterito de criacutetica radicalizado por Kant e as implicaccedilotildees sociais e culturais da Revoluccedilatildeo Francesa No romance de Goethe essa situaccedilatildeo eacute pela primeira e talvez uacutenica vez enfrentado de frente o ser humano passa a ser visto natildeo mais como um ideal abstrato um certo tipo universal e sim en-contra-se entregue a si mesmo no horizonte de uma tarefa de formaccedilatildeo Natildeo haacute mais ldquorepresentaccedilatildeordquo possiacutevel ou a possibili-dade de o homem elaborar pela via teatral uma imagem repre-sentativa de si mesmo Por isso temos no romance de Goethe a passagem do teatro para a vida o conflito da poesia do coraccedilatildeo com a prosa do mundo (como interpreta Hegel) Goethe equili-bra muito habilmente o teatro e a vida de modo que nenhuma das duas instacircncias prevalece sobre a outra embora cada uma reivindique o seu direito

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

143

Esse eacute justamente o desafio colocado para o ser hu-mano a partir da criacutetica kantiana e da Revoluccedilatildeo Francesa eacute preciso procurar a felicidade a amizade a dimensatildeo iacutentima e afetiva a realizaccedilatildeo individual (teatro) mas ao mesmo tempo natildeo eacute possiacutevel deixar de lado o princiacutepio da realidade (vida) a organizaccedilatildeo social com as suas exigecircncias e compromissos (ditames do capitalismo) Na concepccedilatildeo de Goethe esse seraacute o dilema que acompanharaacute o ser humano e que estaraacute no cerne do ldquonovordquo gecircnero o romance que teraacute que operar um delicado equiliacutebrio reciacuteproco Segundo a forma do romance (teorizada de modo magistral posteriormente por Lukaacutecs) a diversidade hu-mana e sua contingecircncia natildeo cabem mais no palco pelo menos natildeo mais num palco equilibrado pelas categorias aristoteacutelicas de mimese e catarse A concisatildeo representativa deve dar lugar ao amplo terreno do romance

Ora esse parece-me ser um dos motivos de surgimento da questatildeo do eacutepico nos principais dramaturgos do fim do seacutecu-lo XIX analisados por Szondi Pergunta-se poreacutem agrave guisa de conclusatildeo por que Szondi emprega preferencialmente o termo ldquoeacutepicordquo e natildeo os termos ldquoromancerdquo ou ldquoprosardquo Haacute diferenccedila em dizer que o teatro do fim do seacuteculo XIX se encaminha gra-dualmente para a dimensatildeo eacutepica ou que se encaminha cada vez mais para a ldquoprosardquo ou para o ldquonarrativordquo (enquanto proce-dimento tiacutepico do romance) Parece-me que a primeira opccedilatildeo abriga um certo desejo de retorno agrave origem uma certa nostal-gia a qual poreacutem estaacute irremediavelmente deslocada na eacutepoca moderna e principalmente eacute impossiacutevel no quadro do drama Talvez o caminho passasse antes pelo exame da teoria do ro-mance e seus impasses

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 136-144jul-dez 2017

144

BIBLIOGRAFIA

ADORNO T Aumlsthetische Theorie Frankfurt am Main Suhrkamp 1975

GOETHE J W Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trad de Nicolino Simone Neto Satildeo Paulo Editora 34 2006

HEGEL G W Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas vol I ndash A ciecircncia da loacutegica trad de Paulo Meneses Satildeo Paulo Loyola 1995

______ Cursos de esteacutetica vo I trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Edusp 1999

______ Ciecircncia da loacutegica (excertos) trad de Marco Aureacutelio Werle Satildeo Paulo Barcarolla 2011

HEIDEGGER M ldquoDer Ursprung des Kunstwerkesrdquo In Holzwe-ge Frankfurt am Main Klostermann 2003 (8 ediccedilatildeo)

LUKAacuteCS G Die Theorie des Romans Muumlnchen DTV 1994

SZONDI P Theorie des modernen Dramas (1880-1950) In Schriften I Frankfurt am Main Suhrkamp 1978

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

A Musa laboriosa e a vitoriosa ode a segunda Iacutestmica de PiacutendaroThe laborious Muse and the victory ode Pindarrsquos second Isthmian

Palavras-chave Piacutendaro epiniacutecio Iacutestmica II poesia grega arcaicaKey-words Pindar epinician Isthmian II archaic Greek poetry

RESUMO Traduzo inicialmente a segunda Iacutestmica de Piacutendaro Apresento em segundo lugar certas caracteriacutesticas gerais da poesia arcaica grega centrando-me sobretudo na liacuterica coral Busco entatildeo esboccedilar como nela se encontram determinados padrotildees que fazem emergir sem prescritiva ou regras diversos gecircneros que se modelam por uma pragmaacutetica oral e performaacute-tica Discuto a seguir a estrutura baacutesica das Odes dedicadas aos vencedores dos Jogos a fim de verificar se a segunda Iacutestmi-ca eacute ou natildeo um poema epiniacutecio

ABSTRACT First I translate Pindarrsquos second Isthmian Secon-dly I present some general characteristics of archaic Greek po-etry chiefly choral lyric poetry I try then draw up a framework on general patterns that bring to surface without prescriptions or rules diverse genres shaped by oral and performatic prag-matism Finally I discuss the fundamental structure of odes de-dicated to winners of the Games in order to determine whether Pindarrsquos second Isthmian is an epinician poem or not

TRADUCcedilAtildeO

De antano os varotildees TrasiacutebuloI que no carrodas Musas com aacuteureas fitas subiam unindo-seagrave gloriosa lira imediatamente flechavammeliacutefluos hinos em garotosqualquer um que sendo belo mantivesse a maispropiacutecia estaccedilatildeo evocadorade Afrodite em seu belo trono

Porque entatildeo a Musa ainda natildeo eraamante de ganho nem laboriosaIInem as doces canccedilotildees de voz suave argentadasna fachadaIII por TerpsiacutecoraIV de meloso

Adriano Machado Ribeiro

Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacute-culas da Faculdade de Filo-sofia Letras e Ciecircncias Hu-manas da Universidade de Satildeo Paulo

email adrianoruspbr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

146

acento eram vendidasMas agora ela insta observar do argivoV

a conhecida palavra que caminha muito mais perto da verdade

ldquoDinheiro dinheiro eis o homemrdquo dizia eledesamparado conjuntamente de posses e amigosVIPorque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignoradahiacutepica vitoacuteria iacutestmicaVIIdepois de a Xenoacutecrates Poseiacutedon concedecirc-laenviava-lhe para cingir agrave comauma coroa de doacuterico aipo selvagemVIII

Blaureando homem de belo carroa luz de Agrigento Em CrisaIX por ele olhoupoderoso Apolo e lhe deu esplendortambeacutem laacute e agraciado com as homenagens renomadasdos Erectidas na luzidia Atenas natildeo lamentoua matildeo preservante do carrodo varatildeo que golpeia cavalos

matildeo com que Nicocircmaco na medidacerta bem controlou todas as reacutedeasa quem ateacute os arautos das temporadasdos jogos os Eleacuteios portadores da treacuteguade Zeus Cronida reconheceramdepois decerto de provar algumato de acolhedora hospitalidade

Com uma voz suave sopro saudavam a elecaindo no colo da aacuteurea vitoacuteria sobresua proacutepria terra a que chamam de Zeus Oliacutempiosagrado bosque onde em honras imortaisos filhos de Enesidemo se misturaramDe fato Trasiacutebulo natildeo desconhecedoras satildeo vossas mansotildeesnem das amaacuteveis procissotildees cantadas nem dos meliacutefluos cantos]

CPois natildeo eacute penhasco nem se tornaescarpa o caminho se algueacutem conduzagrave casa dos homens ilustres as honras das HeliconiacuteadasX

Tendo atirado a lanccedilaque eu possa arremessar tatildeo longequanto Xenoacutecrates obteve doce tecircmpera acima dos homensEra ele venerado por consociar com seus concidadatildeos

respeitando o costumeiro cuidado dos cavalossegundo o costume de todos os helenos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

147

E abraccedilava dos deuses os banquetestodos e jamais vento soprante em torno da hospitaleiraXI

mesa o fez recolher a velaMas cruzava pelo Faacutesis no veratildeoe no inverno ia navegando ateacute a margem do NiloXII

Que agora o filho jaacute que invejosasesperanccedilas rondam suspensas as mentes dos mortaisnatildeo silencie a virtude paternanem estes hinos aqui porquenatildeo os confeccionei para permanecerem imoacuteveisIsso Nicasipo partilha quandochegares a meu hoacutespede leal

O POEMA

Αʹ Οἱ μὲν πάλαι ὦ Θρασύβουλεφῶτες οἳ χρυσαμπύκωνἐς δίφρον Μοισᾶν ἔβαι-νον κλυτᾷ φόρμιγγι συναντόμενοιῥίμφα παιδείους ἐτόξευον μελιγάρυας ὕμνουςὅστις ἐὼν καλὸς εἶχεν Ἀφˈροδίταςεὐθρόνου μνάστειραν ἁδίσταν ὀπώραν

ἁ Μοῖσα γὰρ οὐ φιλοκερδήςπω τότrsquo ἦν οὐδrsquo ἐργάτιςοὐδrsquo ἐπέρναντο γˈλυκεῖ-αι μελιφθόγγου ποτὶ (pros)Τερψιχόραςἀργυρωθεῖσαι πρόσωπα μαλθακόφωνοι ἀοιδαίνῦν δrsquo ἐφίητι ltτὸgt τὠργείου φυλάξαιῥῆμrsquo ἀλαθείας ltu ndash ἐτᾶςgt ἄγχιστα βαῖνον

rsquoχρήματα χρήματrsquo ἀνήρrsquoὃς φᾶ κτεάνων θrsquo ἅμα λειφθεὶς καὶ φίλωνἐσσὶ γὰρ ὦν σοφός οὐκ ἄγˈνωτrsquo ἀείδωἸσθμίαν ἵπποισι νίκαντὰν Ξενοκˈράτει Ποσειδάων ὀπάσαιςΔωρίων αὐτῷ στεφάνωμα κόμᾳπέμπεν ἀναδεῖσθαι σελίνων

Βʹ εὐάρματον ἄνδρα γεραίρωνἈκˈραγαντίνων φάος ἐν Κρίσᾳ δrsquo εὐρυσθενὴςεἶδrsquo Ἀπόλλων νιν πόρε τrsquo ἀγˈλαΐανκαὶ τόθι κˈλειναῖς ltτrsquogt Ἐρεχθειδᾶν χαρίτεσσιν ἀραρώςταῖς λιπαραῖς ἐν Ἀθάναις οὐκ ἐμέμφθηῥυσίδιφˈρον χεῖρα πλαξίπποιο φωτός

τὰν Νικόμαχος κατὰ καιρὸννεῖμrsquo ἁπάσαις ἁνίαις

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

148

ὅν τε καὶ κάρυκες ὡ-ρᾶν ἀνέγˈνον σπονδοφόροι ΚρονίδαΖηνὸς Ἀλεῖοι παθόντες πού τι φιλόξενον ἔργον

ἁδυπνόῳ τέ νιν ἀσπάζοντο φωνᾷχρυσέας ἐν γούνασιν πίτˈνοντα Νίκαςγαῖαν ἀνὰ σφετέραντὰν δὴ καλέοισιν Ὀλυμπίου Διόςἄλσος ἵνrsquo ἀθανάτοις Αἰνησιδάμουπαῖδες ἐν τιμαῖς ἔμιχθεν

καὶ γὰρ οὐκ ἀγνῶτες ὑμῖν ἐντὶ δόμοιοὔτε κώμων ὦ Θρασύβουλrsquo ἐρατῶνοὔτε μελικόμπων ἀοιδᾶν

Γʹοὐ γὰρ πάγος οὐδὲ προσάντηςἁ κέλευθος γίνεταιεἴ τις εὐδόξων ἐς ἀν-δρῶν ἄγοι τιμὰς Ἑλικωνιάδωνμακˈρὰ δισκήσαις ἀκοντίσσαιμι τοσοῦθrsquo ὅσον ὀργάνΞεινοκράτης ὑπὲρ ἀνθρώπων γλυκεῖανἔσχεν αἰδοῖος μὲν ἦν ἀστοῖς ὁμιλεῖν

ἱπποτˈροφίας τε νομίζωνἐν Πανελλάνων νόμῳκαὶ θεῶν δαῖτας προσέ-πτυκτο πάσας οὐδέ ποτε ξενίανοὖρος ἐμπνεύσαις ὑπέστειλrsquo ἱστίον ἀμφὶ τράπεζανἀλλrsquo ἐπέρα ποτὶ μὲν Φᾶσιν θερείαιςἐν δὲ χειμῶνι πˈλέων Νείλου πρὸς ἀκτάνή νυν ὅτι φθονεραὶθνατῶν φρένας ἀμφικρέμανται ἐλπίδεςμήτrsquo ἀρετάν ποτε σιγάτω πατρῴανμηδὲ τούσδrsquo ὕμνους ἐπεί τοιοὐκ ἐλινύσοντας αὐτοὺς ἐργασάμανταῦτα Νικάσιππrsquo ἀπόνειμον ὅτανξεῖνον ἐμὸν ἠθαῖον ἔλθῃς

_______________

Notas ao poema

i Filho de Xenoacutecrates de Agrigento Nota-se ser o uacutenico poema de Piacutendaro supeacuterstite endereccedilado a um ser humano na primeira linha Verdenius (1988

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

149

p 119) explica que embora seja uma ode para celebrar uma vitoacuteria haacute nela forte caraacuteter pessoal Para aleacutem poreacutem do sentido pessoal conveacutem talvez destacar a peculiaridade de um epiniacutecio cuja celebraccedilatildeo da vitoacuteria se confi-gura no passado tornando presente a memoacuteria do pai para firmar o futuro como confirmaccedilatildeo da arete familiar que soacute seraacute futuro se configurar o que deve se confirmar na enunciaccedilatildeo em que se apresenta que no entanto sempre eacute futuro quando se celebra a vitoacuteria ndash aqui preteacuterita ndash na proacutepria enunciaccedilatildeo do poema A presenccedila das divindades do mesmo modo molda--se por tal relaccedilatildeo de tempos

ii O texto eacute de difiacutecil traduccedilatildeo porque implica forte interpretaccedilatildeo sobre o po-ema Como nota Verdenius (1988 p 123) Wilamowitz encontra no termo que implica trabalhar por dinheiro o sentido sarcaacutestico de Arquiacuteloco (206 W) para significar prostituta Outra forte conotaccedilatildeo eacute traduzir a Musa por merce-naacuteria implicando uma criacutetica a toda poesia epiniacutecia visto ser esta calcada no pagamento Mas Piacutendaro aqui natildeo seria incluiacutedo cabendo uma criacutetica a Simocircnides ou seja a um tipo especiacutefico de viacutenculo acarretado pelo paga-mento de um serviccedilo

iii Este eacute o sentido primeiro a meu ver mais adequado do que rosto ou apa-recircncia pois Piacutendaro pensa na fachada de um preacutedio Verdenius destaca para confirmaacute-lo a VI Oliacutempica v 3 e a VI Piacutetica v 14

iv Como diz Verdenius tal nome talvez tenha sido escolhido porque Piacutendaro pensa na poesia coral destacando poreacutem que natildeo deve haver uma oposi-ccedilatildeo entre as musas mas sim entre passado e presente (1988 p123)

v Aristodemo que no entanto provavelmente era espartano A razatildeo aqui talvez seja aproximar a sonoridade argivo-argecircnteo

vi O verso 12 implica uma quebra que mostra as dificuldades de Piacutendaro com efeito a conjunccedilatildeo explicativa γάρ eacute lida por Denniston (1996) como se referisse ao que se segue Mas pode como mostra Verdenius implicar uma referecircncia ao que se disse ateacute agora ou seja como se natildeo fosse preciso dizer mais nada

vii Vitoacuteria referida na II Oliacutempica v 50

viii Como nota Verdenius ldquothis plant was sacred to the gods of the underworld and the schol may be right in referring to the fact that the Isthmia were origi-narilly funeral games in honour of Melicertesrdquo (1988 p131)

ix Local nas proximidades de Delfos

x As musas que habitam o monte Heacutelicon como aparece em Hesiacuteodo no iniacutecio da Teogonia

xi Hospitalidade em grego eacute ξενία que em Homero eacute marca maior de civilida-de jaacute que acolher o estranhoestrangeiro separa vg na Odisseia os feaacutecios

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

150

como reencontro civilizador em contraponto agraves paragens em que Odisseu natildeo fora devidamente acolhido pois na esfera selvagem de um Ciclope natildeo cabe a hospitalidade Mesmo sendo um topos fortemente presente em Piacuten-daro aqui a hospitalidade ainda eacute sonoramente destacada pela presenccedila da proacutepria palavra no nome de Ξεινοκράτη Note-se tambeacutem que no reconheci-mento dos arautos de Zeus realccedila-se ser φιλόξενον Nicocircmaco (que tambeacutem destaca no nome a vitoacuteria)

xii Faacutesis e Nilo delimitam fronteiras polar e norte respectivamente do nave-gaacutevel marcando tambeacutem o frioquente que como nota Verdenius sugeram a separaccedilao dos hemisfeacuterios pelas estaccedilotildees do ano Efetiva a imagem a extensatildeo e continuidade da hospitalidade de Xenoacutecrates ldquoThe fame of his hospitality extended to the eastern limits of the known world reaching as far as Phasis the distant river of the Euxine in the summer and as far as the Nile in the winter The Euxine was open to navigation in the summer alone and it was only to Egypt that the Greeks sailed in the winterrdquo (SANDYS 1915 p 453 n 2)

De generalizaccedilotildees e generalidades O poema de Piacutendaro configura-se pelas marcas do que entatildeo lhe efetivava como um modo ou maneira proacutepria delineando em traccedilos gerais o que ainda natildeo eacute especificamente gecircnero em seu sentido forte mas que traccedila configuraccedilotildees que no entanto especificam-no nos topoi e imagens adequados para a ocasiatildeo a que se destina1 Haacute pois como afirma Carey ldquotendecircnciasrdquo que se modelam pela expectativa da audiecircncia a que se desti-na mas que muita vez se modela tambeacutem pela quebra de tais expectaccedilotildees conforme os traccedilos gerais de tal poesia entatildeo pra-ticada na Heacutelade

Para audiecircncias do que se convenciona nomear como periacuteo-do arcaico2 grego de modo geral satildeo muitas as variaacuteveis nas apresentaccedilotildees de poemas3 Mesmo tendo em comum o fato de serem apresentados numa tradiccedilatildeo fortemente oral em perfor-mances haacute enorme diferenccedila se satildeo eles ou recitados ou can-tados Este eacute um ponto bastante controverso para se apresentar 1 ldquohowever as recent scholars have repeatedly emphasised it is unwi-se to reify literary genres to the point of envisaging a set of objective rules ndash specially for the archaic and early classical periods Though the tendency to categorise exists from the earliest period the formulation of an explicit grammar of genres postdates the performance culture of archaic and early classical Greece Equally it is a mistake to view genres as completely homo-genous and distinct The boundaries are not fixed but elastic porous nego-tiable and provisionalrdquo (CAREY 2009 pp 21-22)2 A designaccedilatildeo jaacute por si ruim embora uacutetil conflitua com a utilizada para marcar etapas historicamente distintas Sendo assim o periacuteodo arcaico que vai do seacuteculo VIII ao VI aC natildeo coincide com a liacuterica arcaica coral que embora se inicie no seacuteculo VI estaacute em pleno vigor com Piacutendaro no seacuteculo V3 Este e o paraacutegrafo seguinte seguem de perto as observaccedilotildees em-bora gerais bastante pertinentes para uma apresentaccedilatildeo da questatildeo no ca-piacutetulo inicial de Introducing Greek Lyric de Felix Budelmann do livro por ele editado The Cambridge companion to Greek Lyric (2009 p11-13)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

151

na distacircncia do tempo e ausecircncia de informaccedilotildees mais precisas sobre a parte musical e caracteriacutesticas especiacuteficas das proacuteprias performances Haacute no entanto uma oposiccedilatildeo clara contrapu-nha-se a meacutelica (de melos canto) por ser cantada agrave poesia re-citada fosse esta elegia iambo ou ateacute mesmo o epos da eacutepi-ca Aleacutem da importante separaccedilatildeo dos metros daiacute decorrentes mais regulares na poesia falada implica tal diferenccedila acompa-nhamentos diversos jaacute que a meacutelica o era por instrumentos de corda como a lira enquanto a elegia possivelmente fosse acom-panhada por um muacutesico tocando o aulos Mas tais separaccedilotildees devem tambeacutem ser nuanccediladas pois o proacuteprio Piacutendaro faz refe-recircncias ao uso do aulos em seus poemas (Pind Ol 5 19)

Nas canccedilotildees marcava-se a diferenccedila entre a apresentaccedilatildeo solo (monoacutedica) daquela que era cantada por um coro a liacuterica coral Os limites de tais distinccedilotildees no entanto tambeacutem natildeo satildeo nem um pouco claros Na praacutetica da composiccedilatildeo aleacutem de um mesmo poeta apresentar canccedilotildees nas duas modalidades (Piacuten-daro vg com os ditirambos corais ou os curtos enkomia mo-noacutedicos) podem tambeacutem ter ocorrido numa mesma apresen-taccedilatildeo formas mistas visto que uma obra poderia ser em seu iniacutecio monoacutedica e depois pudesse passar a ser um canto coral

A audiecircncia por sua vez podia se reunir para distintas oca-siotildees como casamentos funerais simpoacutesios ou cerimocircnias poliacutetico-religiosas da polis Aleacutem disso cabe tambeacutem destacar a especificidade de haver ou natildeo um contratante com as dife-rentes finalidades disso decorrentes como aqui se veraacute Tais pontos gerais implicam as possiacuteveis diferenccedilas de gecircneros que se possam distinguir na pragmaacutetica e composiccedilatildeo dos poemas desse periacuteodo

Haacute assim um aspecto peculiar agrave poesia dita arcaica que por maiores nuanccedilas que possam implicar eacute a ela peculiar e par-ticularmente a modela num gecircnero que natildeo se compunha em vista de regraacuterio escrito e programaacutetico a oralidade se destaca pois para aleacutem dos limites do uso da escrita importam os efei-tos mimeacuteticos alcanccedilados pela performance a que a canccedilatildeo se destina Mesmo que o autor se servisse da escrita para a com-posiccedilatildeo de suas obras com as possiacuteveis implicaccedilotildees de rees-crituras a partir da reaccedilatildeo preacutevia de uma performance anterior importava sobretudo o modo de apresentaccedilatildeo que se modela-va por canto ou reacutecita para a ocasiatildeo a que se destinava Tal poesia como lembra Gentili (1990 p3) tinha assim evidente funccedilatildeo pragmaacutetica conferindo-se a ela seu valor a partir da fun-ccedilatildeo proacutepria que cumpria na polis

Longe pois de um modelo subjetivista como emancipaccedilatildeo de individualidades tal pragmatismo implica as caracteriacutesticas comuns de tal poesia a se moldar particular e diversamente conforme a especificidade implicada na intricada relaccedilatildeo poliacuteti-ca presente entre vaacuterios elementos o compositor a audiecircncia para a qual ele compotildee4 a circunstacircncia para a qual se destina 4 Para uma avaliaccedilatildeo criteriosa e perspicaz sobre as interpretaccedilotildees de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

152

sua obra a ser apresentada A ocasiatildeo pois configura a espe-cificidade que se celebra a partir de um kairos (momento opor-tuno) que delineia o que eacute ou natildeo decorosamente apropriado que deve orientar o compositor para que sua trama configure adequadamente a recepccedilatildeo da audiecircncia

Natildeo havendo teorizaccedilatildeo sobre sua funccedilatildeo nem diretrizes de-marcando uma prescritiva ou seja sem nenhum traccedilo do que posteriormente se nomearaacute uma poeacutetica verifica-se no entan-to nas proacuteprias obras a perspicaacutecia do compositor sobre o que deve modelar sua proacutepria praacutetica Piacutendaro especifica no frag-mento de um treno a diversidade de possibilidades a se molda-rem diferentemente em funccedilatildeo da conformidade com a ocasiatildeo a que se destina o canto Destaca-se aqui especificamente na maior parte do que se menciona a divindade que delineia o tipo de canto pelo qual ela se direciona

Ἔντι μὲν χρυσαλακάτου τεκέων Λατοῦς ἀοιδαίὥ[ρ]ιαι παιάνιδες ἐντὶ [δὲ καί]θάλλοντος ἐκ κισσοῦ στεφάνων ἐκ Διο[νύσου[ μ]αιόμεναι τὸ δὲ κοι [] αντρεῖς [desunt ca 15ll] σώματ ἀποφθιμένωνἁ μὲν ἀχέταν Λίνον αἴλινον ὕμνειἁ δ Ὑμέναιον ltὃνgt ἐν γάμοισι χροϊζόμενον[Μοῖρα] σύμπρωτον λάβενἐσχάτοις ὕμνοισιν ἁ δ Ἰάλεμον ὠμοβόλῳνούσῳ ὅτι πεδαθέντα σθένος

Haacute peatildes canccedilotildees na oportuna hora dos nascidosde Leto de aacuteurea roca haacute tambeacutem aquelas a partirde Dioniso com guirlandas de vicejante hera[ ] desejosa trecircs [canccedilotildees] [faltando cerca de 15 versos] dos corpos mor-

tosuma cantou um hino de lamento fuacutenebre a Linooutra (cantou) o Himeneu a quem tendo sua pele tocada nas

bodaspela primeira vez a Moira arrebatoucom uacuteltimos hinos e outra (canccedilatildeo) de Ialemo cuja forccedilafoi agrilhoada por doenccedila devoradora de carne

Em que pesem as lacunas dos versos faltantes em tal frag-mento evidencia-se que o compositor sabe como seus poemas--canccedilotildees devem moldar-se diversamente conforme a ocasiatildeo podendo ser entoado pois para diversa celebraccedilatildeo na diferen-ciaccedilatildeo sempre possiacutevel de ser ou natildeo o poema destinado para determinada divindade

Importa por outro lado de maneira mais geral marcar tam-beacutem a diferenccedila de audiecircncias no tocante agrave extensatildeo de seu Piacutendaro a partir do seacuteculo XIX veja-se o artigo de Hugh Lloyd-Jones (1973 pp 109-137)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

153

caraacuteter puacuteblico Havia assim aquelas que se caracterizavam por afinidades seja de natureza poliacutetica ou de grupo mas sempre restritivas no tocante ao ciacuterculo de ouvintes outra poreacutem era a audiecircncia proacutepria da liacuterica coral Aqui a performance era em geral extensivamente mais puacuteblica muitas vezes com funccedilatildeo religiosa e celebrante de eventos

O puacuteblico proacuteprio da liacuterica coral eacute decorrente de uma seacuterie de mudanccedilas especiacuteficas ocorridas na polis a partir do seacuteculo VI A mudanccedila de audiecircncia se caracteriza por implicar uma nova relaccedilatildeo entre um patronato contratante e o poeta contratado com a decorrente consequecircncia tanto para o canto quanto para a performance que daiacute deriva

Era baseada na relaccedilatildeo direta entre patratildeo e poeta que viu seu periacuteodo de maior desenvolvimento no final do seacuteculo VI e comeccedilo do V ndash resultado do advento de uma economia monetaacuteria baseada no comeacutercio A nova riqueza favoreceu as artes em geral tanto a pintura e escultura quanto a poesia embora natildeo em razatildeo delas mesmas mas sim de um desejo por prestiacutegio e poder Para o nobre rico o aristocrata urbano e acima de todos para o tirano a obra de um artista era um meio de aumentar seu status e consolidar sua posiccedilatildeo poliacutetica O poeta se torna assim um profissional intelectual que trabalha para um patratildeo e recebe de volta algum pre-sente consideraacutevel ndash um honoraacuterio no verdadeiro sentido da palavra capaz inclusive se necessaacuterio de ser aumentado (GENTILI 1990 p115)

Gentili destaca as consequecircncias de tal relaccedilatildeo De matiz aris-tocraacutetico a funccedilatildeo celebratoacuteria da liacuterica coral seja para exalta-ccedilatildeo do divino seja do humano se serve de um repertoacuterio amplo das narrativas miacuteticas sempre com o cuidado de escolher na pluralidade de mitos as legendas e versotildees delas a que melhor conviesse para a apresentaccedilatildeo que celebrava o contratante

[hellip] escolher um mito adequado agrave ocasiatildeo significa conectar a pessoa a ser louvada com uma histoacuteria tradicional de tal modo que ela pudesse ser glorificada por meio dos feitos de um exemplar miacutetico E a audiecircncia tinha de ver a conexatildeo ndash de outro modo a significaccedilatildeo efetiva e o valor paradigmaacutetico do mito estariam perdidos (GENTILI 1990 p116)

Certos modelos satildeo assim seguidos na liacuterica coral tanto no que tange agrave celebraccedilatildeo humana quanto agrave divina No que diz respeito a esta especificamente as canccedilotildees dedicadas aos deuses dirigem-se a eles como oferendas de uma cultura calca-da na relaccedilatildeo de devoccedilatildeo com a reciacuteproca expectativa de uma recompensa As diferenccedilas apontadas acima no gecircnero que se especifica pelo culto preciso de cada divindade natildeo escondem a caracteriacutestica comum a todos eles

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

154

In general one is more stuck by the shared features than by the divergences between these types More substantial songs of worship contained a mythic narrative and it is normal for the myth to be connected with the god [hellip] Poetry compo-sed for a specific occasion incluiding worship usually has a pronounced deitic element that is it draws attention to its im-mediate context andor function Cult song also identifies its deity early often (though not inevitably) in the form of invoca-tion and gives praise A tripartite structure is normal (though not inevitably) with a central mythic section flanked by an in-troductory section dealing with the immediate context and a fi-nale which returns to the (performers) present It is commmon but not inevitable for a prayer to be made (CAREY 2009 pp 27-8)

Tal estrutura presente nos poemas dedicados aos deuses tam-beacutem se encontra nas canccedilotildees dedicadas aos humanos sejam trenos epiniacutecios himeneus ou encocircmios Como ressalta Carey ldquothough the performative occasion affects the content of these compositions it has little significance for the structure which al-most invariably follows the tripartite model we find in the cult songs (2009 p32) Haacute assim uma base sobre a qual se movem tais canccedilotildees modelando-se ora e vez diversamente em con-sonacircncia com as expectativas esperadas pela audiecircncia mas surpreendentemente remodeladas pelo compositor para refor-ccedilar pela ausecircncia o que no canto natildeo se apresenta

Do Epiniacutecio Dado que como se viu os gecircneros natildeo sejam formas fixas e

sempre existentes sua molda ocorre em consonacircncia com as peculiaridades que a fazem emergir e tambeacutem de certo modo desaparecer Em se tratando especificamente da liacuterica coral tal eacute o caso da consagraccedilatildeo que compositores dos seacuteculos VI e V perpetuaram para os vencedores dos jogos pan-helecircnicos no devir de um gecircnero cujo brilho estaacute atrelado ao que nele se celebra com glorificaccedilatildeo que como se viu dirige-se a homens e os imortaliza justamente porque soacute ocorre por completo a va-loraccedilatildeo humana pela presenccedila divina visto o proacuteprio poema o poeta e o vencedor partilharem de uma aura religiosa que os distingue

Genres come into being and pass away Thus the victory ode has its origins in the sudden explosion of interest in athle-tics in the sixth century BCE and is almost inconceivable be-fore that [hellip] Secular forms such as the victory ode inevitably have a religious content in a society where sacred and secular

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

155

always to some degree coexistrdquo (CAREY 2009 p 22)

Piacutendaro e o epiniacutecio satildeo pois paradigmas de uma tradiccedilatildeo fir-mada na valoraccedilatildeo de consagraccedilotildees pois o modelar do gecircnero se faz em vista da celebraccedilatildeo imortalizante da divina poreacutem hu-mana vitoacuteria nos jogos em que homens ndash com ou sem animais ndash competiam para consagrar uma divindade Zeus (Jogos Oliacutem-picos e as Nemeias) Apolo (Jogos Piacuteticos) e Poseiacutedon (Jogos Iacutestmicos) satildeo as principais divindades cultuadas e celebradas pelo poeta divinamente humano que consagra o vencedor tam-beacutem divinizado humanamente

A celebraccedilatildeo do vencedor via de regra ocorria em sua ci-dade nativa na de seus ancestrais ou mesmo no local da proacute-pria competiccedilatildeo Ser num ou noutro local acabava por implicar modos diversos de apresentaccedilatildeo do canto-poema pois este se modelava em consonacircncia com a expectativa do puacuteblico que poderia ali estar ou para consagrar seu governante ou para os familiares quando a performance se fazia na terra de algum parente ou mesmo como salienta Gentili quando inesperada-mente se celebra a vitoacuteria no proacuteprio local em que ela ocorreu Em tal caso como na VII Piacutetica uma parte importante do poema como o mito central pode ser omitida para marcar topicamente a improvisaccedilatildeo da qual resulta o poema

Haacute como se viu no toacutepico anterior uma estrutura tripartite baacute-sica a construir um epiniacutecio5 Nela omissotildees ou mudanccedilas satildeo sempre possiacuteveis e mesmo esperadas sem contudo que se percam todos os elementos para tal fundaccedilatildeo

A estrutura interna do epiniacutecio ndash para considerar apenas este gecircnero particular ndash era tambeacutem determinada em certo grau pela necessidade cerimonial Um epiniacutecio sem certos elementos eacute inconcebiacutevel louvar o vencedor referecircncia ndash mais ou menos expliacutecita ndash ao evento atleacutetico indicaccedilatildeo das vitoacuterias anteriores do atleta e realizaccedilotildees notaacuteveis por parte de sua famiacutelia e finalmente maacuteximas gnocircmicas que ajuda-vam a criar um elo entre a narrativa miacutetica e a realidade pre-sente O que natildeo se determina eacute como tal ligaccedilatildeo deveria ser realizada Circunstacircncias particulares na proacutepria vida do vencedor ou algo em sua famiacutelia poderiam oferecer uma via direta para o passado heroico especialmente quando o mito

5 De modo geral tal estrutura se articula pela apresentaccedilatildeo inicial do vencedor e de sua vitoacuteria parte-se num segundo momento para uma narrativa miacutetica apresentada como paradigma do que ora se celebra o que se evidencia pela maacutexima gnocircmica retorna-se num terceiro momento ao ponto inicial da celebraccedilatildeo implicando agora uma valoraccedilatildeo sobre a vitoacuteria presente numa perspectiva para o futuro Joseacute Cavalcante de Souza assim a delineia ldquopor articulaccedilatildeo temaacutetica entenda-se o agenciamento de estrutu-ras toacutepicas que historicamente constituiacuteram o gecircnero epiniacutecio uma apresen-taccedilatildeo em certa medida coloquial do vencedor e de sua vitoacuteria geralmente no proecircmio mas podendo reaparecer em pontos estrateacutegicos da sequecircncia uma intervenccedilatildeo miacutetica fundamental ou sob a forma de uma ou mais nar-rativas ou no limite de breves esboccedilos alusotildees ou imagens que avizinham

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

156

era relacionado com seus proacuteprios ancestrais[] (GENTILI 1990 p 117)

Havia pois uma grande variedade de mecanismos pelos quais o poeta poderia transitar do evento motivador da ode a vitoacuteria especificamente tratada para a variegada trama de ancestrais e relatos miacuteticos que em menor ou maior grau se relacionas-sem com a consagraccedilatildeo do vencedor O mito e o presente da enunciaccedilatildeo formam tessitura complexa e variada pelos quais o mito exemplarmente se torna paradigma do que canta o poeta Para justificar tais liames o gnocircmico adentra para avaliar de ma-neira generalizante a particularidade dos eventos e narrativas apresentadas Aforismas ou afirmaccedilotildees pessoais apresentam o propoacutesito do mito e especificam seu papel no poema dando margem assim dentro de uma poesia bastante alicerccedilada em bases convencionais agrave presenccedila de uma enunciaccedilatildeo do poeta mais incisiva

Haacute assim em Piacutendaro forte presenccedila estruturante de um coacute-digo firmado e confirmado por convenccedilotildees Estas no entanto se abrem ao ouvinte-leitor numa mescla de imagens e recursos verbais que natildeo soacute dificultam propositalmente a decodificaccedilatildeo da mensagem como tambeacutem mostram que o vigor forccedila e brilho do vencedor divinamente coroado por sua vitoacuteria soacute se eterniza pela presenccedila tambeacutem vigorosa brilhante e luminosa que o po-eta mimeticamente alcanccedila com labor e inspiraccedilatildeo na vitoriosa ode que presentifica em palavras a jaacute passada vitoacuteria para ser proclamada no futuro

Do poema O poema aqui traduzido molda-se em conformidade com suas

caracteriacutesticas performaacuteticas proacuteprias de sua apresentaccedilatildeo liacute-rica de um coro que possivelmente cantasse e danccedilasse para apresentaacute-lo Para tanto compotildee-se em trecircs grupos triaacutedicos compostos cada um por estrofe antiacutestrofe e epodo

Os dois primeiros satildeo termos orqueacutestricos de danccedila e sig-nificam respectivamente volta e contravolta Na antiga liacuterica grega os versos da estrofe e da antiacutestrofe tinham exatamente o mesmo ritmo prosoacutedico baseado na duraccedilatildeo longa ou breve das siacutelabas e ritmicamente formavam um par a que sucedia o epodo com ritmo diferente Epodo deriva-se de uma forma adjetiva que corresponde a uma forma substantiva ldquoepodeacuterdquo literalmente sobrecanto isto eacute o canto maacutegico atuando medi-cinalmente sobre o corpo (SOUZA 1999 p 194)

o mito da apresentaccedilatildeo e por assim dizer o incorporam no desenrolar da solenidade e alternando com o mito um jogo de ditos sentenciosos gnocircmai bem formulados no momento certo e bem apreciados no a propoacutesito do que comentam e ensinamrdquo (SOUZA 1999 p 195)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

157

Se do ponto de vista meacutetrico o poema segue um padratildeo ade-quado para a liacuterica coral o mesmo no entanto natildeo se pode dizer da presenccedila tiacutepica dos elementos estruturadores do epiniacutecio com efeito eacute o uacutenico poema de Piacutendaro a apresentar um mortal em seu verso inicial Ainda mais curiosamente a primeira estrofe do primeiro grupo triaacutedico natildeo determina e especifica um vence-dor mas ao contraacuterio descreve um horizonte passado estranho agrave liacuterica coral

Os versos iniciais sendo assim celebram uma atmosfera eroacute-tica proacutepria da liacuterica monoacutedica na qual o canto eacute flecha a atingir jovens garotos pelos encantos sob as graccedilas de Afrodite como fariam os poemas de Alceu e Anacreonte vg Contrapondo-se a tal canto regido pelas musas na imediatez amorosa a antiacutes-trofe delineia uma musa que trabalha por um salaacuterio Laboriosa ela deve firmar sua construccedilatildeo em prata natildeo na imediatez antes propagada mas nos novos tempos celebrar sua voz suave e meloso acento pois conforme o epodo a seguir sem dinheiro um homem natildeo possui nem amigos nem posses

A inesperada apresentaccedilatildeo do poema fez que se o visse natildeo como epiniacutecio mas como uma espeacutecie de epiacutestola puacuteblica em que Piacutendaro declara a Trasiacutebulo seja seu amor por ele seja uma espeacutecie de consolaccedilatildeo poliacutetica ao filho e sobrinho de tirano cuja polis ora democraacutetica o obrigaria a vender poemas seja uma cobranccedila por parte do proacuteprio Piacutendaro de uma diacutevida natildeo paga por Trasiacutebulo a ele6

Lecirc-se tambeacutem o poema como denuacutencia da atividade da liacuterica coral de Simocircnides aacutevida por dinheiro e pronta a se prostituir com maacutescara facial de prata por quem pagar melhor preccedilo Se natildeo meretriz a musa eacute mercenaacuteria e labora por avidez do ga-nho7 Decorreria daiacute a criacutetica de Piacutendaro ao valor do homem mensurado em dinheiro conforme propagado no poema pelo dito argivo

Tais leituras em que pese o valor de seus autores incorrem numa questatildeo complexa para a relaccedilatildeo do poema com sua proacute-pria finalidade por que Piacutendaro desqualifica sua proacutepria ativida-de Responder a tal questatildeo implica deixar de lado as leituras que desqualificam a musa como mercenaacuteria e aacutevida lendo sem a desqualificar a atividade laboriosa cujo valor e preccedilo se justi-ficam pela atividade que propaga para a eternidade seu proacuteprio valor bem como o daqueles que por ela se eternizam

Lido assim o poema justifica seu abrupto assiacutendeto que se-para a introduccedilatildeo da passagem para a glorificaccedilatildeo das vitoacuterias do pai de Trasiacutebulo ldquolsquoDinheiro dinheiro eis o homemrsquo dizia ele desamparado conjuntamente de posses e amigos Porque eacutes tu decerto conhecedor Eu canto natildeo ignorada hiacutepica vitoacuteria iacutestmi-cardquo (vv 15-18) O dizer argivo verdade reafirmada eacute compre-

6 Para um mapeamento da questatildeo leia-se Woodbury (1968 pp 527-542)7 Cf Simpson (1969 pp 437-473)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

158

endido por Trasiacutebulo que se liga ao poeta pela xenia que natildeo descura nem da poesia nem do poeta que imortaliza os feitos do pai

A segunda triacuteade entatildeo confirma ser o poema uma canccedilatildeo de epiniacutecio rememorando topicamente natildeo soacute as vitoacuterias de Xenoacutecrates nos jogos Iacutestmicos e Piacuteticos bem como o valor do auriga que comandava seu carro em Atenas terra dos filhos do miacutetico rei Erecteu Do mesmo auriga se fala ao se descrever a vitoacuteria nos Jogos Oliacutempicos quando ele venceu como condutor do carro de Teratildeo irmatildeo de Xenoacutecrates ambos filhos de Ene-sidemo Culmina assim esta triacuteade na valoraccedilatildeo da famiacutelia de Trasiacutebulo o que se confirma com o cuidado no trato das Musas que tornam sagradas suas casas

A triacuteade final celebra e consagra topicamente a xenia que ge-nerosamente acolhe todos que a ela recorrem Natildeo mais flecha eroacutetica o poema eacute agora atleacutetica lanccedila que se distancia para no porvir alcanccedilar a incomensuraacutevel distacircncia da hospitalidade da famiacutelia que aqui se consagra Vencedores dos jogos circunda-dos de amizades e posses a famiacutelia de Trasiacutebulo encontra nele a confirmaccedilatildeo de seus valores pela riqueza e pela generosida-de Longe de desqualificar os bens que eles possuem o poema confirma o alto valor do patronato que natildeo guarda nem esconde o que deve ser amplamente partilhado e divulgado Vale assim mesmo mais longamente reafirmar as palavras de Woodbury

The public nature of excellence and the dependence upon fame explain the Muses commendation of the proverbial ma-xim of Aristodemus For it was spoken as Pindar says expli-citly when he was deprived at one stroke of possessions and friends In the Pindaric world there can be no fame without the approval of generous and approving friends and wealth is in turn necessary to entertain them in comfort and distinction whether they form a court a clan or a coterie The Muses ce-lebration of excellence therefore testifies to the openhanded and conspicuous use of wealth It now becomes intelligible why the poet goes on to say that Thrasybulus is wise and well--acquainted with his theme which is the victory of Xenocrates with the chariot at the Isthmus He is surely not performing any of the incongruous gestures that have been attributed to him such as shaking his head silently with distaste for the avarice of a rival poet winking to suggest that payment of his fee is either overdue or unnecessary ornodding in sympathy with the predicament of a poet who must earn his living He is congratulating his patron on the use of his wealth which is made evident by the performance of his ode and its reception by the company of friends The point is made even clearer a few lines later when in a second apostrophe to Thrasybulus he says that his house is well-acquainted with the songs of celebrating friends The occasion itself is proof that Thrasybu-lus knows very well the importance of the victory and of poe-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

159

try Pindar displays a characteristically Greek frankness in his praise of wealth That may be surprising to us but is without embarrassment for him because of his secure approval of the purposes for which that wealth was used It is even more surprising that he found it appropriate to enrol his Muse in the service of that same power That he did so is convincing proof if any proof is needed that for him poetry was deeply implica-ted in the values and the attitudes of the society for which he wrote (WOODBURY 1968 p 542)

A II Iacutestmica assim surpreende expectativas da audiecircncia pela ausecircncia do mito central do vencedor no iniacutecio do poema com a divindade deus ou lugar que mostra sua ligaccedilatildeo com o divi-no Mas confirma seu valor como epiniacutecio pela celebraccedilatildeo de vitoacuterias na parte central do poema que luminosamente eacute exem-plaridade para Trasiacutebulo filho a quem se destina a ode que eacute lanccedila a arremessaacute-lo juntamente com seus ancestrais para o futuro Nesse mesmo sentido consolida-se pelo largo uso de topoi que sedimentam os valores que o vencedor e seus familia-res devem honrar e que cabe ao poeta propagar O epodo final cumpre na inversatildeo a funccedilatildeo decircitica via de regra apresentada na introduccedilatildeo firmando e confirmando pelo movimento de um sugestivo Nicasipo cujo nome associa vitoacuteria a cavalos o cui-dado com a grandiosidade invejada na agoniacutestica situaccedilatildeo de disputa que canto e vitoacuterias atleacuteticas ocasionam A grandeza e generosidade de Trasiacutebulo natildeo podem ficar nem paradas nem silentes O patratildeo contratante encontra no poeta contratado natildeo uma situaccedilatildeo mercenaacuteria de partes mobilizadas pela ganacircncia mas uma espeacutecie de dom e contradom em que o dinheiro natildeo afasta amigos mas sim a ausecircncia dele

O final da ode reinscreve em seu final no cuidado admoes-tante do poeta por meio de seu intermediaacuterio a palavra ἠθαῖον aqui traduzida como leal mas para Verdenius valorada como caro a construccedilatildeo pindaacuterica proacutepria da poesia coral por ele edi-ficada

A van Groningen La composition litteacuteraire archaiumlque gre-cque (Amsterdan 1958 p 72) rightly observes that in choral poetry on constate une tendance toute naturelle agrave donner au dernier eacuteleacutement un accent particulier dintensiteacute Au deacutesir de bacirctir au deacutebut le splendide fronton correspond celui de termi-ner par une phrase agrave grand effet sentence proverbe expres-sion remarquable priegravere note personelle In the present case there is a close connection between the final note personelle and the opening of the poem by emphasizing the intimacy of their friendship Pindar strenghtens his appeal to the generosi-ty of Trasybulus [hellip] (VERDENIUS 1988 p 147)

Piacutendaro assim alicerccedila seu canto como epiniacutecio pois embora consagradora seja a vitoacuteria do pai e tio de Trasiacutebulo no passado seus feitos ainda perduram vencedores na solidez dos valores

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

160

por eles firmados e presentes no filho cuja generosa amizade sedimenta para o futuro a continuidade dos antepassados e do compositor que os canta em seu canto

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

161

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

BUDELMANN F ldquoIntroducing Greek Lyricrdquo in _______ (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cambridge Cambri-dge University Press 2009

CAREY C ldquoGenre occasion and performancerdquo in BUDEL-MANN (org) The Cambridge Companion to Greek Lyric Cam-bridge Cambridge University Press 2009

DENNISTON J D The Greek Particles 2ordf ediccedilatildeo Indiana-polis Hackett Publishing Company 1996

COLIN F Pindare Traduction Complegravete Olympiques Pythi-ques Neacutemeacuteennes Isthmiques Fragments Strasbourg Silber-mann 1841

GENTILI B Poetry and Its Public in Ancient Greece ndash From Homer to the Fifth Century Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo Thomas Cole Baltimore The John Hopkins University Press 1990

LLOYD-JONES H ldquoModern Interpretation of Pindar The Se-cond Pythian and Seventh Nemean Odesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 93 (1973) pp 109-137

MARCHI M A Odi di Pindaro Milatildeo Presso Luigi di Giaco-mo Pirola 1835

NISETICH F J ldquoConvention and Occasion in Isthmian 2rdquo in Classical Antiquity Vol 10 (1977) pp 133-156

PRIVITERA A Pindaro Le Istmiche 5ordf ediccedilatildeo Roma Fon-dazione Lorenzo Valla 2009

ROMAGNOLI E Pindaro Le Odi e i frammenti Bologna Ni-nola Zanichelli Editore 1927 Disponiacutevel em itwikisourceorgwikiLe_Odi_e_i_frammenti_IOde_Istmica_II (uacuteltimo acesso 22112017)

SANDYS J The Odes of Pindar Londres The Macmillan co 1915

SIMPSON M ldquoThe chariot and the Bow as Metaphors for Po-etry in Pindarrsquos Odesrdquo in Transactions and Proceedings of the American Philological Association Vol 100 (1969) pp 437-473

SOMMER E Pythiques et Isthmiques Paris Hachette Eacutedi-tion 1847

SOUZA J C ldquoPiacutendaro Piacutetica III A Hiecircronrdquo in Revisa USP Satildeo Paulo nordm 43 setnov 1999 pp 188-201

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 145-162jul-dez 2017

162

SVARLIEN D A Pindar Odes 1990 Disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101623Abook3DI3Apoem3D2 (Uacuteltimo acesso 22112017)

VERDENIUS W J Commentaries on Pindar Olympian Odes 1 10 11 Nemean 11 Isthmian 2 Vol 2 Bibliotheca Classica Batava Mnemosyne Supplementum Brill 1988

WOODBURY L ldquoPindar and the Mercenary Muse Isthm 2 1-13rdquo in Transactions and Proceedings of the American Philolo-gical Association Vol 99 (1968) pp 527-542

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

O lugar do Fantasma na Filosofia ndash Agamben leitor de FreudThe place of the Phantasm in Philosophy ndash Agamben as a Freudrsquos reader

Palavras-chave acedia ndash melancolia ndash phantasma ndash eros ndash desejo - DuumlrerKeywords aecidia - melancholy ndash phantasmndash Eros ndash desire ndash Duumlrer

RESUMO No seacuteculo passado (1976) Giorgio Agamben escre-veu dois ensaios que expotildeem as ideias de fantasia e melancolia destacadas no artigo de Freud ldquoLuto e Melancoliardquo Este trabal-ho mostra que a interpretaccedilatildeo que Agamben faz da concepccedilatildeo psicanaliacutetica de melancolia resulta da perspectiva por ele cons-truiacuteda com base na relaccedilatildeo entre esta e as noccedilotildees correlatas de fantasia (phantasma ou fantasia) e eros O assunto eacute de interes-se na medida em que possibilita uma compreensatildeo a respeito de como a visatildeo de Agamben da filosofia criacutetica e da filosofia poeacutetica realiza uma apropriaccedilatildeo do pensamento psicanaliacutetico contemporacircneo Nossa leitura assinala que algo do desenvolvi-mento daqueles ensaios permanece na obra recente do autor

ABSTRACT In the last century (1976) Giorgio Agamben wrote two essays that expose the ideas of phantasy and melancholy in Freudrsquos article ldquoTrauer und Melancholierdquo (1917) This paper points out that the authorrsquos interpretation of the psychoanalyti-cal conception of melancholy depends upon the perspective constructed by him around the relation between this and the correlated notions of fantasy (phantasm or fantasia) and eros The theme is of interest insofar as it also provides an explana-tion about how Agambenrsquos view of critical philosophy and poetic philosophy perform an appropriation of contemporary psychoa-nalytical thinking Our reading hints that there is something in the developing of those essays that remains in the authorrsquos recent work

No seacuteculo passadofoi publicada a obra Estacircncias ndash a palavra e o fantasma na cultura ocidental (1976) conjunto de ensaios de Giorgio Agamben em que encontramos leituras suas de Freud Destaco as de ldquoLuto e Melancoliardquo nos capiacutetulos quarto e quinto da primeira parte denominada rdquoOs Fantasmas de Erosrdquo Nos anteriores encontramos primeiro sua pesquisa referente agrave concepccedilatildeo de aceacutedia sobretudo aquela adotada pe-los padres da Igreja na Idade Meacutedia para os quais haveria um mal da alma designado por nomes como acedia tristitia tae-dium vitae desidia

Camila Salles Gonccedilalves

Psicanalista membro do Departamento de Psicanaacutelise do Instituto Se-des Sapientiae Doutora em Filosofia ndash USP

camila_sallesuolcombr

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

164

Descriccedilotildees estendem diante de noacutes o panorama desenhado por uma praga que se propagava tida por mui-tos como pior do que a peste Tambeacutem chamada democircnio mediterracircneo esta se apoderava de membros de confrarias em conventos ou abadias e se caracterizaria por induzi-los ao desacircnimo e a uma crescente indiferenccedila em relaccedilatildeo aos estu-dos ao conhecimento e ao conviacutevio com os pares culminando na vontade de se afastar de todos

Apenas este democircnio comeccedila a deixar obcecada a mente de algum desventurado insinua-se em seu interior um horror do lugar em que se encontra um fastio da proacutepria cela e um asco pelos irmatildeos que vivem com ele que lhe parecem agora negligentes e grosseiros (AGAMBEN 2006 p25)

Do ldquocortejo infernal das filiae acediaerdquo (AGAMBEN 2006 P27) que nos eacute apresentado recorto

o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos poderia curar e finalmente evagatio mentis a fuga do acircnimo em relaccedilatildeo a si mesmo e o inquieto vagar de fantasia em fantasia1 (AGAMBEN 2006 p27)

Aos poucos a copiosa citaccedilatildeo de paraacutegrafos de vaacuterios tratados permite-nos acompanhar o modo pelo qual ao longo das definiccedilotildees descritivas a aceacutedia vai mostrando sua quase coincidecircncia com a melancolia e ambas satildeo aproximadas do temperamento saturnino que corresponde ao elemento terra sombrio avesso a qualquer entusiasmo Agamben natildeo deixa de percorrer tambeacutem os diagnoacutesticos da medicina medieval a permanecircncia nestes da classificaccedilatildeo dos humores e as teorias sobre a bile negra cuja nomeaccedilatildeo jaacute fora mantida por Aristoacuteteles Deparamo-nos com a fenomeno-logia do indiviacuteduo atrabiliaacuterio saturnino e tambeacutem aos poucos com a tendecircncia ao distanciamento por parte deste melancoacuteli-co daquilo e daqueles que se encontram agrave sua volta Na sequecircnciacontudoeacute-nos revelado ter havido um ou-tro lado uma perspectiva a partir da qual o humor melancoacutelico tenderia ao extremo oposto ao daquele caracterizado pela maacute sauacutede do corpo e por sinistras tendecircncias a sonhos sombrios agrave demecircncia etc (AGAMBEN 2016 p38) Antes de o apontar-mos cumpre ainda destacar que anterior agravequela associaccedilatildeo feita pela astrologia com Saturno teria havido uma e se man-tido com a figuraccedilatildeo de um deus com o mesmo nome o deus ldquocanibal e castradordquo(AGAMBEN 2006 p41) Apesar disto teria

1 Em nota de rodapeacute (nota 6) Agamben traz mais informaccedilotildees Trans-crevo apenas as primeiras linhas ldquoA incapacidade de controlar o incessante discurso (a co-gitatio) dos fantasmas interiores estaacute entre os traccedilos essen-ciais da caracterizaccedilatildeo patriacutestica da aceacutediardquo (AGAMBEN 2006 p27)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

165

ocorrido paralelamente uma reabilitaccedilatildeo da melancolia que ldquoia a par com um influxo de Saturno que a tradiccedilatildeo astroloacutegica associava com o temperamento melancoacutelico como o mais ma-ligno dos planetasrdquo (AGAMBEN 2006 p40)

Agamben apoia em seu farto material a afirmaccedilatildeo segun-do a qualldquouma antiga tradiccedilatildeo natildeo obstante associava o mais calami-toso dos humores com o exerciacutecio da poesia da filosofia e das artesrdquo (AGAMBEN 2006 p38)

Ele prossegue respondendo agravequeles que indagariam porque tal disposiccedilatildeo encontrar-se-ia justamente em indiviacuteduos sujeitos a sofrer segundo os antigos os efeitos moacuterbidos da bile negra Responde mencionando uma lista de melancoacutelicos citada por Aristoacuteteles que seria demasiado extensa mas que teria acompanhado o ponto de partida de um processo dialeacutetico Na concepccedilatildeo de Agamben trata-se de um processo da histoacuteria no qual o mais negativo no sentido de se opor agrave atividade de modo paradoxal eacute contraposto agrave afirmaccedilatildeo do aspecto criativo da reflexatildeo e da arte Assim no ponto de partida compreendido pela lista aristoteacutelica ter-se-ia iniciado um movimento no qual ldquoa doutrina do gecircnio enlaccedila-se indissoluvelmente com a do humor melancoacutelico na fascinaccedilatildeo de um complexo simboacutelico cujo em-blema plasmou-se ambiguamente no anjo alado da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p39) Agora eacute preciso salientar que o ensaio que estamos acompanhando eacute escrito em um estilo associativo a que preci-samos nos habituar A referecircncia a uma passagem de Aristoacutete-les eacute na mesma frase emendada com uma menccedilatildeo agrave famosa gravura de Duumlrer cujas interpretaccedilotildees por parte de autores que tambeacutem vatildeo ser citados seratildeo discutidas na sequecircncia A lista atribuiacuteda a Aristoacuteteles eacute acompanhada por exem-plos de tipos melancoacutelicos ldquohaacute alguns que se tornam torpes e estranhosrdquo outros ldquoque se tornam maniacuteacos e alegresrdquo (AGAM-BEN 2006 p39) e outros que satildeo de determinada maneira natildeo por morbidez mas por um temperamento natural Haacute o exemplo de um poeta de Siracusa que soacute era bom poeta quan-do estava fora de si e de outros indiviacuteduos que se destacavam alguns nas artes outros nas letras outros na vida puacuteblica Deixo de reproduzir as consideraccedilotildees a respeito de quantidade circu-laccedilatildeo grau de aquecimento local de depoacutesito da bile etc que diferenciariam os melancoacutelicos entre si O que pretendo apontar aqui eacute o modo pelo qual vatildeo se exemplificando as mudanccedilas de sentido da melancolia numa dialeacutetica peculiar vinda agrave tona por meio de uma arqueologia do saber praticada por Agamben que natildeo deixa de evocar (embora sem referecircncia expliacutecita) a pesqui-sa realizada por Walter Benjamin que encontramos em Origem do drama traacutegico alematildeo Esta obra conteacutem um exame ainda

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

166

mais minucioso da melancolia e em grande parte cita primeiro os mesmos autores Dentre estudos sobre alegorias que evocam a melancolia no campo das artes plaacutesticas aqueles dedicados agrave imagem cria-da por Duumlrer tem papel fundamental No ensaio de Agamben este eacute retomado contra o lugar ldquoescassordquo que Panofsky e Saxl2 autores de interpretaccedilatildeo da gravura3ldquoreservaram para a litera-tura patriacutestica sobre o lsquodemocircnio meridianorsquo em sua tentativa de reconstruir a genealogia da Melancolia de Duumlrerrdquo (AGAMBEN 2006 p41) Adiante o autor acrescenta ldquoEacute curioso que esta conste-laccedilatildeo eroacutetica tenha escapado tatildeo tenazmente aos estudiosos que trataram de rastrear a genealogia e os significados da Me-lancolia duumlrenianardquo(AGAMBEN 2006 p49) No texto as objeccedilotildees de Agamben aos dois autores natildeo retomam nem mencionam a importacircncia que lhes deu Walter Benjamin que ao tratar da melancolia revecirc concepccedilotildees errocirc-neas que historiadores e leigos mantiveram a respeito do Re-nascimento e da Idade Meacutedia Aleacutem disto apresenta-nos mo-mentos nessas eacutepocas em que houve um enobrecimento da melancolia uma visatildeo da melancolia sublime que era preciso libertar ldquoda melancolia comum e destruidorardquo (BENJAMIN 2013 p158) Ao que tudo indica Agamben quer para aleacutem do ensaio histoacuterico benjaminiano pocircr em destaque a Patriacutestica em que en-controu a valorizaccedilatildeo do temaacuterio da aceacutedia e chamar a atenccedilatildeo para o componente eroacutetico da melancolia Com isto deixa de assinalar que o papel da astrologia eacute analisado por Benjamin e levado em consideraccedilatildeo no elogio que ele faz dos dois autores

Anuncia-se um traccedilo dialeacutetico da concepccedilatildeo de Saturno que corresponde de modo surpreendente ao conceito grego de melancolia A descoberta deste nuacutecleo vital da imagem de Saturno eacute o grande meacuterito de Panofsky e Saxl4 (BENJAMIN 2013 pp155-156)

Benjamin nos traz vaacuterios textos que precederam a obra duumlreniana ou foram seus contemporacircneos Deteacutem-se na convi-vecircncia de extremos no campo de concepccedilotildees do saber e anali-sa o quadro O quadrado maacutegico que vemos desenhado num quadro por cima da cabeccedila da lsquoMelancoliarsquo de Duumlrer eacute o selo plane-taacuterio de Juacutepiter cuja influecircncia se opotildee agraves forccedilas obscuras de

2 Os autores Panofsky e Sax satildeo citados por Walter Benjamin ( BEN-JAMIN 2013 p156)3 Erwin Panofsky (e) Fritz Sax Duumlrers ldquoMelancolie Irdquo Eine quellen- und typengechichtilich Untersuchung (A ldquoMelancolia Irdquo de Duumlrer Um estudo de fontes e tipologia histoacuterica) Berlim 1922 pp18-19 (=Studien der Bibliothek Warburg 2) (BENJAMIN 2013 P156) - Encontramos a referecircncia em Benja-min natildeo em Agamben4 Erwin Panofsky apud Walter Benjamin (BENJAMIN 2013 p156)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

167

Saturno Ao lado desse quadrado estaacute pendurada a balanccedila uma alusatildeo ao signo astroloacutegico de Juacutepiterrdquo (BENJAMIN 2013 p158) Trazendo mais autores mostra que sob inspiraccedilotildees ne-fastas e beneacuteficas Duumlrer teria posto na fisionomia do melancoacute-lico a concentraccedilatildeo espiritual e dedica vaacuterias paacuteginas aos ele-mentos que compotildeem a obra Agamben tambeacutem comenta a gravura do mestre renas-centista levando-nos de uma eacutepoca histoacuterica para outra expotildee o que garimpa nas diversas camadas arqueoloacutegicas Suas pes-quisas fundamentam a associaccedilatildeo do humor negro com Eros jaacute nas conjecturas filosoacuteficas e meacutedicas da Idade Meacutedia Assinalam um nexo entre amor e melancoliaque jaacute teria sido reconhecido por uma tradiccedilatildeo divulgada e mantida na medicina europeia me-dieval que os tomava como enfermidades afins ou idecircnticas A gravura alegoacuterica eacute por ele situada na esfera do desejo eroacutetico

Toda interpretaccedilatildeo que prescinda dessa pertenccedila fundamen-tal do humor negro agrave esfera do desejo eroacutetico por mais que possa decifrar uma a uma das figuras inscritas agrave sua volta estaacute condenada a passar ao largo do misteacuterio que se plasmou emblematicamente nessa imagem (AGAMBEN 2006 p49)

Lembremos a imagem por meio de uma miacutenima descriccedilatildeo agrave direita do espectador haacute uma figura sentada que seria a perso-nificaccedilatildeo da melencolia (a palavra estaacute gravada deste modo na obra) com a cabeccedila apoiada na matildeo esquerda segurando um compasso com a direita e rodeada por instrumentos alguns re-lacionados com a Geometria Agrave sua direita estaacute no chatildeo a seus peacutes adormecido um catildeo e acima sentada sobre a confusatildeo de objetos uma figura menor (que Lacan chamou de petit ange) tambeacutem com asas que fica mais ou menos na altura da cabeccedila da figura maior e que para noacutes evocaria a imagem popularizada de Eros5

Para Agamben

Soacute se compreende que (a gravura) se situa sob o signo de Eros eacute possiacutevel guardar e ao mesmo tempo revelar seu se-gredo cuja intenccedilatildeo alegoacuterica estaacute inteiramente subentendida no espaccedilo entre Eros e seus fantasmas (AGAMBEN 2006 p49)

Freud melancolia e fantasia

No Capiacutetulo quinto da Primeira Parte de Estancias o au-tor introduz deste modo seus comentaacuterios a respeito de Luto e Melancolia

5 A imagem pode ser obtida em vaacuterios sites na Web por exemplo em httpscommonswikimediaorgwikiFileDuumlrer_melancholia

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

168

Freud aponta o eventual caraacuteter fantasmaacutetico do processo melancoacutelico observando que a rebeldia contra a perda do objeto de amor pode chegar a um ponto tal que o sujeito se esquiva agrave realidade e se aferra ao objeto perdido graccedilas a uma psicose alucinatoacuteria do desejo (AGAMBEN 2006 p57)

Em seguida ele nos remete para o ldquoComplemento me-tapsicoloacutegico da doutrina dos sonhosrdquo frisando que este texto devia fazer parte junto com o ensaio sobre a melancolia de um volume em projeto denominado Preparaccedilatildeo para uma Metapsi-cologia Assinala a importacircncia da relaccedilatildeo entre os dois escritos uma vez que eacute preciso consultar o segundo

para encontrar esboccedilada paralelamente a uma anaacutelise do mecanismo do sonho uma indagaccedilatildeo do processo atraveacutes do qual os fantasmas do desejo logram esquivar-se a essa instituiccedilatildeo fundamental do eu que eacute a prova de realidade e penetrar na consciecircncia (AGAMBEN2006 p57)

Agamben faz-nos notar que eacute fundamental a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre fantasma e prova de realidade e ressalta que ainda ecoa em Freud a descriccedilatildeo do conjunto de sintomas feita na antiguidade claacutessica e na idade meacutedia cuja causa era atri-buiacuteda agrave bile negra citando

A melancolia se caracteriza no aniacutemico por um enfado profun-damente doiacutedo um cancelamento do interesse pelo mundo exterior pela perda da capacidade de amar pela inibiccedilatildeo de toda produtividade (FREUD 1955 p242)6

Dentre os incontaacuteveis comentaacuterios existentes talvez o que possa ser destacado como peculiar no de Agamben seja uma visatildeo da relaccedilatildeo do Ego com a perda cujo foco principal natildeo estaacute nos desenvolvimentos teoacutericos que investigam modos de identificaccedilatildeo com o objeto perdido mas na perda enquanto tal Lembremo-nos noacutes leitores de que para aleacutem de exem-plos didaacuteticos ndash Freud chega a dar entre parecircnteses o exem-plo da melancolia da jovem que perdeu seu namorado ndash de hipoacuteteses sobre alteraccedilotildees no Ego que perde a si mesmo O criador da psicanaacutelise faz uma retomada metapsicoloacutegica do narcisismo mas somos levados por Agamben a nos determos no vazio que acompanha a perda Natildeo eacute o que ocorre segundo as observaccedilotildees que se fazem na esteira de Strachey Este co-mentador e primeiro organizador da obra de Freud assinala em sua introduccedilatildeo que de um determinado ponto de vista o artigo ldquoexigiu submeter a exame toda a questatildeo da identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p239) e que ldquoo mais significativo deste artigo 6 Para a traduccedilatildeo desta frase optei pela comparaccedilatildeo entre o texto em alematildeo e a traduccedilatildeo argentina ao inveacutes de passar para o portuguecircs a ci-taccedilatildeo da obra de Agamben traduzida para o espanhol que foi utilizada neste trabalho

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

169

parece ter sido para Freud sua exposiccedilatildeo do processo atraveacutes do qual o investimento (Besetzung) de objeto eacute substituiacutedo na melancolia por uma identificaccedilatildeordquo (in FREUD 1955 p240) Para Freud tanto no luto quanto na melancolia houve perda mas eacute preciso distinguir os tipos de perda que caracteri-zam um e outro estado Na leitura de Agamben natildeo satildeo ignora-das as semelhanccedilas nem desqualificados os destinos das iden-tificaccedilotildees Muito menos o abatimento do Ego na melancolia diante da perda do suposto objeto de amor expresso por aquela famosa formulaccedilatildeo freudiana ndash ldquoA sombra do objeto caiu sobre o egordquo (FREUD 1955 p246) Mas somos conduzidos a valorizar a constataccedilatildeo de que natildeo sabemos que objeto o melancoacutelico perdeu e a admitir que ele tambeacutem natildeo Eacute verdade que depois do exemplo da noiva abandonada no qual o amado natildeo morreu mas o objeto de amor idealizado foi perdido Freud escreveu

E em outras circunstacircncias cremo-nos autorizados a supor uma perda tambeacutem mas natildeo atinamos com discernir com precisatildeo o que se perdeu e com maior razatildeo podemos pensar que tampouco o enfermo pode apreender em sua consciecircncia o que perdeu (FREUD 1955 p243)

Acrescentou que nessas condiccedilotildees mesmo se a perda eacute evidente para o enfermo ele natildeo sabe o que perdeu naquela pessoa que ele perdeu concluindo

Isto nos levaria de algum modo a referir a melancolia a uma perda de objeto subtraiacuteda da consciecircncia agrave diferenccedila do luto no qual nada haacute de inconsciente no que diz respeito agrave perda (FREUD1955 p243)

Para desenvolver a questatildeo do fantasma relacionada com a me-lancolia Agamben apoia-se principalmente neste paraacutegrafo de Freud

O Ego entatildeo despedaccedila seu laccedilo com a realidade e retira do sistema consciente das percepccedilotildees seu proacuteprio investi-mento (Besetzung) Eacute atraveacutes deste esquivar-se do real que se evita a prova de realidade e os fantasmas do desejo natildeo reprimidos mas perfeitamente conscientes podem penetrar na consciecircncia e ser aceitos como realidade melhor (FREUD apud AGAMBEN 2006 p58)7

Para o autor em nenhum de seus escritos Freud desen-volveu uma teoria expliacutecita do fantasma8 e natildeo precisou qual eacute

7 Traduccedilatildeo modificada por mim8 Eacute claro que haacute teorias sobre a fantasia ao longo da obra de Freud Podemos consultar por exemplo Soliva Soria Ana Carolina rdquoInterpretaccedilatildeo sentido e jogo um estudo sobre a concepccedilatildeo de fantasia (Phantasie) em Sig-mund Freudldquondash Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo (2010)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

170

a parte deste ldquona dinacircmica da introjeccedilatildeo melancoacutelicardquo (AGAM-BEN 2006 p58) E eacute em seguida a esta afirmaccedilatildeo que ele expressa sua maneira de conceber a psicanaacutelise contemporacirc-nea e ao mesmo tempo de alertaacute-la para a importacircncia que a questatildeo tem para seu proacuteprio desenvolvimento Entende que a psicanaacutelise contemporacircnea reavaliou o papel do fantasma nos processos psiacutequicos e tende a se considerar ldquouma teoria geral do fantasmardquo (AGAMBEN 2006 p59) de modo cada vez mais expliacutecito Conveacutem observar que a escolha da palavra fantasma sinocircnimo de fantasia segue uma tendecircncia francesa datada do seacuteculo passado Para Laplanche e Pontalis ldquoEm francecircso termo fantasme voltou a ser posto em uso pela psicanaacutelise e como tal estaacute mais carregado de ressonacircncias psicanaliacuteticas do que seu homoacutelogo alematildeodesigna determinada formaccedilatildeo imaginaacuteria e natildeo o mundo de fantasias a atividade imaginativa em geralrdquo (LAPLANCHE ndash PONTALIS 1970 p238) Veremos que Agamben segue a tendecircncia francesa mas natildeo parece evi-tar referecircncias agrave atividade imaginativa em geral Tudo leva a pensar que Agamben tem uma visatildeo filo-soacutefica que se apoacuteia na psicanaacutelise lacaniana a qual como se sabe influencia certos temas e concepccedilotildees que permeiam filo-sofias contemporacircneas Natildeo exploraremos este campo mas eacute preciso reconhecer que ele eacute indissociaacutevel das abordagens que autor faz da Cultura da psicanaacutelise e de um tipo de arqueologia do saber que pratica No movimento de seu texto constatamos que ele estabelece uma funccedilatildeo na histoacuteria do saber para a associaccedilatildeo da melancolia com a fantasia (sinocircnimo de fantas-ma) que eacute esquadrinhada com o auxiacutelio de uma determinada visatildeo da psicanaacutelise e desse fazer resulta algo que eacute ofertado agrave proacutepria psicanaacutelise contemporacircnea Esta a seu ver

ldquoencontraria um uacutetil ponto de referecircncia em uma doutrina que com muitos seacuteculos de antecipaccedilatildeo tinha concebido Eros como um processo essencialmente fantasmaacutetico e tin-ha dado um grande lugar ao fantasma na vida do espiacuteritordquo (AGAMBEN 2006 p59)

A escrita investigativa de Agamben que segue a fecunda eru-diccedilatildeo de Walter Benjamin9 executa movimentos circulares que encaminham as questotildees despertadas para uma camada ar-queoloacutegica mais profunda escavando cada vez mais no passa-do os sentidos efetivos do presente Elabora uma perspectiva a partir da qual a psicanaacutelise beneficiar-se-ia com o conheci-mento e o reconhecimento daquilo que se pensou haacute centenas e ateacute haacute milhares de anosApoacutes a frase citada acima o autor prossegue

ldquoA fantasmologia medieval nascia de uma convergecircncia da

9 Encontramos pesquisas aprofundadas sobre aceacutedia e melancolia em Origem do Drama Traacutegico Alematildeo (BENJAMIN 2013)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

171

teoria da imaginaccedilatildeo de origem aristoteacutelica com a doutrina neoplatocircnica do pneuma como veiacuteculo da alma a teoria maacute-gica da fascinaccedilatildeo e a teoria meacutedica dos influxos entre espiacute-rito e corpordquo (AGAMBEN 2006 p60)

A peregrinaccedilatildeo de Agamben atraveacutes do cada vez mais arcaico tem para ele a finalidade de elucidar os feitos da fan-tasia que se liberta do princiacutepio de realidade e se potildee a serviccedilo de Eros (ainda natildeo visam a face de Tanatos como uma outra face) Expotildee passagens do que ele denomina um ldquomultiforme complexo doutrinalrdquo (AGAMBEN 2006 p59) no qual a fantasia (fantaacutestikon pneuma spiritus phantasticus) eacute concebida como

uma espeacutecie de corpo sutil da alma que situado na ponta extrema da alma sensitiva recebe as imagens dos objetos forma os fantasmas dos sonhos e em determinadas circuns-tacircncias pode separar-se do corpo para estabelecer contatos e visotildees sobrenaturais (AGAMBEN 2006 p59)

Para aleacutem do sabor desta linguagem extraiacuteda da Teologia pseudo aristoteacutelica e de alfarraacutebios eruditos Agamben integrou a figura do noacute borromeano jaacute utilizada por Lacan na proacutepria concepccedilatildeo de seu meacutetodo filosoacutefico No Prefaacutecio afirma que a perspectiva a partir da qual trata do lugar do fantasma eacute aquela na qual ldquose pode falar de uma topologia do irrealrdquo (AGAMBEN 2006 p14) e nas uacuteltimas linhas afirma que nos ensaios que compotildeem sua obra dedica-se ao topos outopos10 E assevera

Soacute uma topologia filosoacutefica anaacuteloga agrave que em matemaacutetica se define como analysis situs por oposiccedilatildeo a analysis magnitu-dinis seria adequada ao topos outopos cujo noacute borromeano tentamos aqui configurar (AGAMBEN 2006 p15)

Eacute claro que o uso da figura composta pelo entrelaccedilamen-to de trecircs ciacuterculos dos quais a soltura de um implica na sepa-raccedilatildeo de todos da qual Lacan fez uso famoso referindo-se a real ao simboacutelico e imaginaacuterio traz impliacutecita a ideia de que o fantasma vem a ser no entrelaccedilamento dos trecircs registros trecircs domiacutenios pode-se entender aqui A mesma figura eacute trazida por Agamben para colocar em foco o tema de algo que natildeo eacute e se faz com que seja e do lugar em que se estabelece que natildeo eacute espacial e sim ldquoalgo mais originaacuterio do que o espaccedilordquo (AGAM-BEN 2006 p15) Aristoacuteteles eacute citado porque teria feito menccedilatildeo a esse lugar esse topos ldquotatildeo difiacutecil de apanharrdquo e dotado de um ldquopoder maravilhoso e anterior a qualquer outrordquo(AGAMBEN 2006 p14) Agamben pretende que se trata do mesmo lugar natildeo espacial de ldquoum terceiro gecircnerordquo (AGAMBEN 2006 p14) talvez ldquouma pura diferenccedilardquo11 a que faz alusatildeo o Timeu de Pla-

10 ldquolugarnatildeolugarrdquo gt utopia11 Sugere a interpretaccedilatildeo de Derrida que entre vaacuterios comentaacuterios ressalta que chocircra natildeo eacute ldquonatildeo pertence aos gecircneros de ser conhecidos ou

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

172

tatildeo Para que acompanhemos este desenvolvimento do texto agambeano eacute preciso que recordemos a passagem No Timeu como em outros Diaacutelogos platocircnicos foi posta a diferenccedila entre o gecircnero de ser que compreende o mundo das Ideias inteligiacutevel e imutaacutevel e aquele que abrange o ser das coisas sensiacuteveis e visiacuteveis em constante mudanccedila A personagem Timeu eacute levada a conceber um terceiro gecircnero quando se chega agrave abordagem dos elementos aacutegua ar terra e fogo e eacute obrigada a reconhecer que estes tecircm sua forma em constante mudanccedila e que soacute se pode falar deles quando suas propriedades estatildeo presentes de modo perceptiacutevel Mas os elementos satildeo tatildeo necessaacuterios e es-senciais quanto as Ideias Das especulaccedilotildees surge entatildeo sua opiniatildeo provaacutevel de que eacute preciso conceber um terceiro gecircnero que eacute denominado chora Eacute o lugar daquilo que vem a ser que daacute a forma mas que permanece inalterado Eacute a natureza que recebe todos os corpos (taacute panta dechoumeacutenes socircmata phiacute-seos)12 Qual a relaccedilatildeo desse lugar tatildeo difiacutecil de apreender com o melancoacutelico que vive o vazio da perda do objeto desconhe-cido Nos ensaios de Agamben em sua leitura de ldquoLuto e Me-lancoliardquo eacute visado o vazio da perda que recebe o fantasma criaccedilatildeo do imaginaacuterio inconsciente

A perda imaginaacuteria que ocupa tatildeo obsessivamente a intenccedilatildeo melancoacutelica natildeo tem objeto real algum porque eacute agrave impossiacute-vel captaccedilatildeo do fantasma que dirige sua fuacutenebre estrateacutegia (AGAMBEN 2006 pp62-63)

Lacan tambeacutem fez referecircncia agrave gravura de Duumlrer em seu Seminaacuterio 6 no qual trata do fantasma e do desejo e diz es-tar lanccedilando questotildees sobre ldquouma articulaccedilatildeo essencialrdquo que o fantasma introduz ldquono interior dessa vaga determinaccedilatildeo da natildeo oposiccedilatildeo do sujeito e do objetordquo (LACANSTAFERLA p9) afirmando mais adiante ldquoentendo que o objeto imaginaacuterio do fantasma eacute o proacuteprio sujeitordquo (LACAN p273) Natildeo eacute possiacutevel seguir todas as pistas dos fundamentos ou das inspiraccedilotildees das conclusotildees de Agamben Mas pode-se constatar que a psicanaacutelise eacute convocada enquanto teoria do fantasma para se associar a um tipo de pensamento filosoacutefico em que ele situa o seu a que daacute o nome de criacutetica O autor men-ciona ldquouma teoria da arte apontada como operaccedilatildeo fantasmaacuteti-cardquo surgida quatro seacuteculos antes de a psicanaacutelise ser formula-da (AGAMBEN 2006 p61) teoria com frequecircncia incluiacuteda na histoacuteria do conceito de melancolia Tudo leva a entender que o fantasma que Agamben pretende recuperar estaacute na psicanaacutelise

reconhecidosrdquo (DERRIDA 1987 p270) Tratei do tema em outro lugar (SA-LLES GONCcedilALVES C 2004)

12 PLATON Timeacutee (1949 p12)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

173

enquanto ligado a Eros e eacute na sua confluecircncia com um objeto inseparaacutevel do sujeito e ao mesmo tempo indefiniacutevel que o au-tor situa o lugar sem lugar da palavra filosoacutefica Voltando-se ao iniacutecio da primeira parte de Estacircncias eacute possiacutevel constatar que o proacuteprio meacutetodo de pesquisa e investi-gaccedilatildeo desenvolvido por Agamben aproxima suas concepccedilotildees de psicanaacutelise e de filosofia Isto se daacute por meio da relaccedilatildeo que estabelece ou a seu ver restabelece entre filosofia e poesia Para ele quando se daacute o surgimento da palavra criacutetica no vo-cabulaacuterio da filosofia ocidental ela tem sobretudo o significado de uma indagaccedilatildeo sobre os limites da consciecircnciardquo (AGAMBEN 2006 p9) Para ele equivale a uma indagaccedilatildeo sobre aquilo que ldquonatildeo eacute possiacutevel nem fixar nem apreenderrdquo (AGAMBEN2006 p9) Relembra entatildeo a proposiccedilatildeo do Grupo de Iena13 e seu projeto de uma poesia universal progressiva que teria tentado abolir ldquoa distinccedilatildeo entre poesia e disciplinas criacutetico ndash filosoacuteficasrdquo (AGAMBEN 2006 pp9-10) Esta construccedilatildeo de perspectivas de pensamento passa por uma certa ideia de negatividade Em sua busca pela criacutetica capaz de apresentar um caraacuteter criativo Agamben refere-se a uma obra que seria capaz de incluir ldquoem si mesma sua proacutepria negaccedilatildeordquo (AGAMBEN 2006 p10) e declara natildeo considerar a ensaiacutestica europeia ldquodeste seacuteculordquo14 rica no gecircnero de obra de-signado e afirma que talvez soacute haja um uacutenico livro criacutetico Urs-prung des deutschen Trauerspiel15 (Origem do Drama Traacutegico Alematildeo) de Walter Benjamin Infelizmente ele natildeo esclarece aiacute os criteacuterios de seu jul-gamento e passa para a camada da antiguidade antes de reto-mar a referecircncia ao projeto que atribui aos poetas-filoacutesofos do seacuteculo XIX de abolir a distinccedilatildeo entre poesia e teorias criacutetico fi-loloacutegicas Menciona entatildeo associativamenteo poeta e filoacutelogo alexandrino Filitas ao qual se teria aplicado a foacutermula ldquopoeta e ao mesmo tempo criacuteticordquo (AGAMBEN 2006 p10) Para Agamben a criacutetica pode hoje se identificar com a

13 Grupo de Iena ndash a ironia praticada por estes poetas e filoacutesofos pos-sibilitaria rdquoseguindo ainda o projeto romacircntico redefinir um novo lugar para a filosofia Ela estaria situada no espaccedilo intermediaacuterio entre a ciecircncia e a arte entre o condicionado e o incondicionado a liberdade e a necessidade Eacute um lugar que se define por uma lsquo proporccedilatildeo entre ideal e realrsquo da qual a poesia romacircntica eacute a expressatildeo maior Eacute um saber diz Schlegel em lsquonova figurarsquoA ironia significa reconhecer que a harmonia experimentada entre os antigos jaacute se perdeu e que a filosofia agora antes de postular uma nova harmonia desdobra-se sobre si mesma no ato de fazer-se e se percebe em formaccedilatildeo com uma fisionomiardquo- Almeida da Silva Arlenice ldquoA evoluccedilatildeo do conceito de ironia romacircntica na obra do jovem Gyoumlrg Lukaacuteksrdquo- in Cadernos de Filosofia Alematilde no09 | pp 49-70| JANJUN2007 Cito o artigo da Profes-sora de Esteacutetica e Histoacuteria da Arte no Departamento de Filosofia da UNESP a guisa de esclarecimento devido agraves siacutenteses que realiza com clareza em seu artigo que natildeo deixa de citar livros pertinentes ao tema como eacute o caso de O Gecircnio Romacircntico de Marcio Suzuki ndash Satildeo Paulo Iluminuras199814 Lembremos que o texto de Agamben eacute do seacuteculo XX15 Cita apenas o tiacutetulo original em alematildeo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

174

obra de arte natildeo soacute por ser criativa mas tambeacutem por ser nega-tividade Neste ponto ele faz referecircncia a Hegel agrave sua objeccedilatildeo agrave ironia autonegante ou autonadificante praticada pelo grupo de poetas-filoacutesofos de Iena Hegel teria se oposto a Schlegel Solger Novalis e ldquoa outros teoacutericos da ironiardquo (AGAMBEN 2006 p10) e afirmado que eles haviam ldquopermanecido na infinita ne-gatividade absolutardquo (AGAMBEN 2006 p10) tomando o me-nos artiacutestico por verdadeiro princiacutepio da arte Segundo Agamben aqueles adeptos da ironiada pers-pectiva do filoacutesofo natildeo teriam podido ir adiante porque para Hegelldquoa negatividade da ironia natildeo eacute o provisional da dialeacuteticardquo (AGAMBEN 2006 p10) Ou seja ao natildeo ser ultrapassada a ironia deixaria de integrar o movimento histoacuterico da consciecircncia Vecirc-se que Agamben por sua vez eacute irocircnico (no sentido usual) em relaccedilatildeo agrave postura que atribui a Hegel ao escrever que ldquoa va-rinha maacutegica da Aufhebung estaacute sempre em ato de transformar a negatividade (da ironia) em algo positivordquo(AGAMBEN 2016 p10) Para Agamben a ironia dos poetas seria ldquouma negativi-dade absoluta e sem resgate a qual entretanto natildeo renuncia por isso ao conhecimentordquo (AGAMBEN 2016 p10) e da ironia romacircntica de um Schlegel pode brotar ldquouma atitude autentica-mente filosoacutefica e cientiacuteficardquo (AGAMBEN 2006 p11) A peculiar interpretaccedilatildeo (redutora) de posiccedilotildees de Hegel eacute expressa por meio de algumas frases sem indicaccedilatildeo dos tex-tos utilizados Mas eacute evidente que Agamben se opotildee agrave dialeacutetica de Hegel na medida em que defende uma praacutetica filosoacutefica que pretenderia preservar uma negatividade insuperaacutevel jamais subsumida pelo movimento do desenvolvimento da consciecircncia descrito na Fenomenologia do Espiacuterito16

Os artigos que vatildeo da acedia agrave melancolia percorrem as vaacuterias atribuiccedilotildees da melancolia a pensadores escritores poe-tas e o autor natildeo deixa de mencionar alguma semelhanccedila com o mal du siegravecle expresso pelos escritores do seacuteculo XIX nem de tirar partido da imagem de Kierkegaard (AGAMBEN 2006 p31) autor do Tratado do Desespero que descreve o desesperar-se consciente de si e a ambiguidade de seu eu A dor pelo que natildeo haacute a dor cultivada nesse inverno da desesperanccedila com frequecircncia estaacute associada com criacuteticas fei-tas pelo melancoacutelico ao mundo circundante Temos o pessimista o descrente o entediado pondo o dedo nas feridas da cultura Por outro lado constatamos que o vazio do perder o que se natildeo tem inseparaacutevel da concepccedilatildeo de desejo para a psicanaacutelise eacute nos desenvolvimentos da escrita de Agamben associado com a fantasia e com o lugar utoacutepico da criaccedilatildeo Depois do livro do qual comentei algumas leituras Agam-ben publicou vaacuterios outros e dentre estes tiveram repercussatildeo no meio psicanaliacutetico sobretudo os que desenvolvem o projeto

16 Muito posterior aos comentaacuterios de Hegele que Agamben natildeo cita

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

175

Homo Sacer sendo o mais recente O Uso dos Corpos em que ele abandona o proacuteprio projeto de modo expliacutecito e justificado Para Giacoia este livro marca ldquoo abandono do projeto Homo Sacer mas sob a condiccedilatildeo de compreendermos abandonar como o uacutenico gesto consequente que se segue agrave plena reali-zaccedilatildeo de uma obra de poesia ou de pensamentordquo (GIACOIA 2016 p140)17 Lembremos do que Agamben escreveu a respeito da obra que seria capaz de conter em si mesma sua proacutepria negaccedilatildeo citado acima Embora haja uma distacircncia de deacutecadas entre os artigos trabalhados aqui e seu uacuteltimo livro eacute possiacutevel consta-tar que a concepccedilatildeo de vazio lugar natildeo espacial permanece nesse pensamento poeacutetico-filosoacutefico O tiacutetulo Estacircncia tambeacutem inspirado em Walter Benjamin eacute-nos apresentado com o sig-nificado que os poetas do seacuteculo XVIII teriam dado ao nome de ldquomorada capaz e receptaacuteculordquo Receberia acolherialdquojunto a todos os elementos formais da canccedilatildeo aquela lsquofoi drsquoamourrsquo na qual eles confiavam como uacutenico objeto da poesiardquo (AGAMBEN 2006 p11) Desde a origem de nossa cultura teria havido uma cisatildeo ldquoentre poesia e filosofia entre palavra poeacutetica e palavra pen-santerdquo (AGAMBEN 2006 p12) O acesso agraves interrogaccedilotildees que mereceria estaria barrado pelo esquecimento No percurso do autor aquilo que no seacuteculo passado foi apontado como parte de um sintoma mantendo a ressonacircncia de textos medievais e anteriores tendo renascido como espiritualidade em companhia de Eros na intrigante obra de Duumlrer o vazio melancoacutelico parece convocar ainda o sem forma o lugar indefiniacutevel que recebe o pensamento que vem a ser

17 Giacoia in Percurso 2016

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 163-176jul-dez 2017

176

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

AGAMBEN G Estancias - La palabra y Elfantasmaen la cultura occidental Valencia Pre-Textos 2006

BENJAMIN W Origem do drama traacutegico alematildeo ediccedilatildeo e tra-duccedilatildeo Joatildeo Barreto ndash 2ed ndash Belo Horizonte Autecircntica Editora 2013

FREUD S ldquoDuelo y Melancoliardquo in Obras completas volXIV Buenos Aires Amorrortu 1993

DERRIDAJrdquoChocircrardquoin Poikilia_Eacutetudes offertes aacute Jean-Pierre Vernant Paris EHESS1987

GIACOIA O ldquoPor uma filosofia do abandono (Lrsquouso dei corpi Homo Sacer)rdquo in Percurso ndash Revista de Psicanaacutelise no 54 ANO XXVIII JUNHO DE 2015 pp138 ndash 144

LACANJ Seminaire 6 Le Deacutesir 1958 in httpstaferlafreefr

PLATON Timeacutee texte eacutetabli par ARivaud Paris Les Belles Le-ttres 1949 p12

SALLES GONCcedilALVES C ldquoChora em Platatildeo Derrida e Feacutedi-dardquo in Percurso-Revista de Psicanaacutelise no 3132 ANO XVI 2ordm SEM20031ordm SEM2004

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

177

Politics without a subject David Hume on general rules

Key-words Hume politics subject freedom belief

ABSTRACT In this article after having described the role and functioning of general rules and of customs by Hume I will show that the centrality of these in his political reflection leads to a denial of the identification of man as the subject intending with this concept the union of the conceptual pair subjectum (support of personal peculiarity) and subditus Hume doubts the presence of an element that is able to impose itself on man subduing him to its own will the man himself if he tries to impose a norm on himself attains only useless sufferings

1 Introduction

Humersquos skepticism brings him to refuse to trust any norm with mathematical certainty that purports to regulate either nature or politics both fields are domains of matters of fact for which it is not possible to find rules that are always valid For Hume norms are descriptions of regular repetitions taking place they are not an account of necessary phenomena It is the constant repeti-tion that defines laws and not the other way around This counts both in the cognitive as in the political field respect for a law is not a consequence of its intrinsic necessity as the law does not derive from a government to which we necessarily must obey for a transcendent or rational necessity or for an ancient promise of submission Power understood as the probability that an ele-ment A is the cause of an element B1 cannot be perceived and its existence is for this reason doubted by Hume2 just as in the cognitive field it is the repetitiveness of nature that brings us to the formulation of scientific laws which imply a hypothetical causality that is not demonstrable so in politics it is the repeti-tive inclination of man that leads to a hypothetical authority or the power of a government and of its laws It is the custom and tendency to be obedient that mostly influences our actions not a sovereign monopoly of force

1 laquopower consists in the possibility or probability of any action as dis-coverrsquod by experience and the practice of the worldraquo David Hume A Treatise of Human Nature ed D F Norton M J Norton (Oxford Clarendon Press 2007) 2042 See David Hume An Enquiry Concerning Human Understanding in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 450ndash60

Giulia Valpione

Universitagrave degli Studi di Pa-dova Dipartimento di Filoso-fia Sociologia Pedagogia Psicologia Applicata (FISP-PA) Post-DocPoacutes-Doc em Filosofia - UFSCAR

giuliavalpionegmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

178

2 The general rules analogy and imagination

General rules are considered throughout all three books of Hu-mersquos Treatise on Human Nature as they concern the modality in which men produce reasoning and they are implied in actions and behaviors Such rules reveal human naturemdashwhich is in-clined to repetitionmdashthe construction of series that follow one another connecting similar cases3 if there is a multiplicity of si-milar cases the causes of our actions and thinking are moved to the background and they are replaced by habit which is able to originate certainties and passions even though they have not been caused

The two fundamental passions to which Hume devotes am-ple space in the Treatise (pride and humility) are originally the result of the relationship of three elements4 (two ideas and one impression) among which our pleasure or sorrow are instigating causes However due to the existence of habits of thought an instigating cause5 may not necessarily be present passions can simply arise from two ideas6 The procedure is very similar when we consider causality here from an impression A we derive an idea a belief in an object B The judgment that derives B from A is not an analytical judgment nor is it a synthetic a priori one (which can be only found in mathematics and geometry) since the knowledge of such relationship is not so much caused by the repeated experience of A rarr B as by the constant experience of the conformity of the future in comparison of the past in other words nature repeats itself and only through such repetitiveness does man infer the necessity that ldquoif A always Brdquo7 Therefore the

3 Treatise 2344 See Section II-V of Book II Part I (Treatise 182ndash190)5 We must [hellip] make a distinction betwixt the cause and the object of these passions betwixt that idea which excites them and that to which they direct their view when excited [hellip] The first idea that is presented to the mind is that of the cause or productive principle This excites the passion connected with it and that passion when excited turns our view to another idea which is that of self Here then is a passion placrsquod betwixt two ideas of which the one produces it and the other is producrsquod by it The first idea the-refore represents the cause the second the object of the passionraquoTreatise 1836 laquoWhen an idea produces an impression related to an impression which is connected with an idea related to the first idea these two impres-sions must be in a manner inseparable nor will the one in any case be unat-tended with the other lsquoTis after this manner that the particular causes of pride and humility are determinrsquod The quality which operates on the passion produces separately an impression resembling it the subject to which the quality adheres is related to self the object of the passion No wonder the whole cause consisting of a quality and of a subject does so unavoidably give rise to the passion To illustrate this hypothesis we may compare it to that by which I have already explainrsquod the belief attending the judgments which we form from causationraquo Treatise 189ndash1907 I do not linger here on the discussion that tries to establish if for Hume

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

179

causal link does not derive its necessity from reasoning or de-duction8 However it is based on the experience of the similarity between past and future that is on something that cannot be demonstrated In the case of the passions and belief in the ne-cessity of a causal link they are not the result of reasoning but they are the effect of a tendency and habit The necessity that we feel existing in the bond between two elements (for instance between fire and loose wax or between wealth and pride) is due to human nature which tries to produce a series of repetitions which bring about general rules

Habit acts on the human mind through imagination a faculty that turns impressions into ideas and whose procedure is free devoid of fixed rules9 if we observe it we see that it is possible to identify some constants and to notice that it usually gathers impressions to create bonds of resemblance bonds of contigui-ty in space and time and of cause and effect10 among similar elements The inferences of imagination are influenced by ha-bit because the ideas produced receive such a strong vivacity that they are able to provoke the belief that the inferences will be confirmed by experience Their vivacity equates these ideas with impressions granting them the faculty to influence human passions11 From the perception of an object A and an object B the mind is suited by custom to firmly believe that after the appearance of the first one the second one should follow to the point of reaching the conviction that they are indeed tied up by a necessary relationship which we believe follows a rule Howe-ver no perception corresponds to the idea that we have of such necessity therefore it is a production of our mind and not an element that our senses can perceive12 The same procedures are at play in the formation of general rules that lead humans to create habits that influence our behavior These rules are not

there is a nature outside the I or not I hold that to the goals of the present article that topic is not relevant because this article focuses on the norma-tivity that crosses the act of humans and not on the adherence of objects to the causal law For a possible close examination I refer to the following texts Brian A Chance ldquoCausal Powers Humersquos Early German Critics and Kant Response to Humerdquo Kant-Studien 104 (2013) 213ndash236 Winkler P Kenneth ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo in The Cambridge Companion to Hu-mersquos Treatise ed D C Anslie A Butler (Cambridge Cambridge University Press 2015) 135ndash1648 The deduction is possible only in a priori elaborations by imagination and by intellect elaborations that are characterized for reaching propositions whose contrary is contradictory The experience of ldquoIf A then Brdquo and ldquoIf A then C (neB)rdquo and their related propositions are not contradictory if nature changes its course if it does not repeat itself anymore it does not contradict itself9 laquonothing is more free than that faculty But we are only to regard it as a gentle force which commonly prevailsraquo Treatise 1210 Treatise 1311 Treatise 8212 laquoHere then it appears that of those three relations which depend not upon the mere ideas the only one that can be tracrsquod beyond our senses and informs us of existences and objects which we do not see or feel is causa-tionraquo Treatise 53

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

180

dictated by reason but they are the instruments through which man can extend principles and thoughts beyond the datum and present reasons by following the repetitiveness that characteri-zes nature as a whole13

This is the tool that man possesses for the use of his abilities with a goal-oriented purpose to satisfy his needs14 an inclina-tion to repeat the same intellectual operation or to reproduce the same action15 Custom is a principle of human nature16 but it does not lead us to always behave in the same way habit is not the eternal reproduction of the identical For the observer to have the impression of a causal link between two objects it is not necessary for him or her to have already experienced the same identical situation the typical necessity of the causal rela-tionship that connects an object to another does not only occur in case that the observer perceives the same object A definable as cause of object B but also in the case of a more generally similar objects and similar conditions The repetition that allows to reasoning to go beyond the datum does not develop in the terms of a narrow identity but in terms of similarity it describes a series of repetitions that follows a rhythm of analogy While traveling or considering history we realize that men and women have altered their own institutions and creations (the way they build residences and the tools that they use) to suit them to gi-ven conditions with the purpose of reaching their goals ldquoMen in different times and places frame their houses differently here we perceive the influence of reason and customrdquo17 Objectives common to all men and women such as the maintenance and the propagation of human species can be pursued well only by adapting to existing conditions general rules are not universal or necessary but variable If we perpetuate the reproduction of the identical we will be reduced to the level of simple instincts like animals whose peculiarity consists in being submitted to the power of nature which forces them to the simple repetition of behaviors and procedures18

13 laquoto the force of this argument I so far submit as to acknowledge that general rules commonly extend beyond the principles on which they are foundedraquo Treatise 35314 laquoCustom then is the great guide of human life [hellip] [Without the in-fluence of custom] We should never know how to adjust means to ends or to employ our natural powers in the production of any effect There would be an end at once of all action as well as of the chief part of speculationraquo Enquiry concerning Human Understanding 3915 Enquiry concerning Human Understanding 3716 Enquiry concerning Human Understanding 3717 Hume D An Enquiry concerning the Principles of Morals in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 419518 laquoA man who has contracted a custom of eating fruit by the use of pears or peaches will satisfy himself with melons where he cannot find his favourite fruit [hellip] From this principle I have accounted for that species of probability derivrsquod from analogy where we transfer our experience in past instances to objects which are resembling but are not exactly the same with those concerning which we have had experienceraquo Treatise 100

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

181

Human beings use ldquoexperimental reasoningrdquo19 and thus are able to use their own knowledge derived from experience ela-borating it and suiting their own tools for the satisfaction of their passions In turn these innovations and diversifications beco-me a habit and custom in a brief period of time the motivations that led to their creation are forgotten and we perpetuate the following of such new precepts

General rules are not determined to the least detail they le-ave space for variations and unlike instincts do not have their own cause in themselves They are the product of the faculty of imagination which elaborates tools with the goal of resolving our tendencies20 and this establishes them as norms hiding their instrumental character This is what characterizes human nature more than reason it is imagination that identifies it It is thanks to imagination alone if men develop the belief that nature repeats itself and so allow them to extend their faculties over the simple perceptions only through it do men believe in the necessity of not interrupting the present habits but of proposing them again in this way building a chain of analogous elements

3 General rules strengthening and correction

The primary role of general rules is the extension of human faculties beyond their justified limits with our passions and re-asoning21 bringing order to experience without a stable base making a systematization of experience that is not grounded on the necessity of certain mechanisms but on the probability that nature will not change its repetitive tendency Both in the moral and cognitive fields general rules are essential for the survival of human beings allowing the production of reasoning that at-tempts to foresee the immediate future and the establishment of institutions that preserve the species

In the absence of habit and repeated bonds among similar ob-jects it would not be possible to reach the conclusion that ldquothose instances of which we have no experience resemble those of which we have experiencerdquo22 there would not be a principle on which the belief in necessity is created therefore without repe-tition reasoning would be impossible23 That is the procedure through which mind goes over what is immediately present to

19 Enquiry concerning Human Understanding 8820 The ldquotendencyrdquo is a desire an impulse immediately satisfied ndash following Gilles Deleuze interpretation ndash by an instinct and in human beings satisfied through institutions see Deleuze Gilles Empirisme et subjectiviteacute (Paris PUF 2010)21 Treatise 19222 Treatise 6223 It is to note that the elevation of passed experience to criterion for future judgement namely the belief that tomorrow will resemble to yesterday it is not in itself a reasoning but it is the ground of every possible reasoning See Enquiry concerning Human Understanding 28f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

182

the senses would be inconceivable Particularly causality (the only philosophical relationship to venture beyond the senses in-forming us about the existence of objects that we do not see or feel)24 could not occur Without this ability to project and forecast it would not be possible for human beings to manage to satisfy their own passions make inferences25 or speculate or act in or-der to achieve a consequence

Fixed habits cause the formation of stable institutions and constitute that network of use and custom within which every human being already exists and that cannot be described as a system of prohibitions It is rather a tool to facilitate thanks to the ability of the imagination26 to arouse a passion lacking its own reason to be27 the actualization of principles that lead to the vi-gor28 of such habits Therefore we are quite distant from a binary scheme of prohibition and permission in which the law preser-ves human beings from their own wickedness or egoism Hume proposes the idea that a rule is an entirety of habits intended to facilitate the attainment of goals (be they egoistic or prescribed by sympathy) of human beings that work together to generate an equilibrium between the repetitive nature of men and women and the conditions in which such habits are created29

This never fixed always imperfect and to be reconstructed equilibrium implicates the second peculiarity of general rules they not only have the role of strengthening and facilitating thou-ghts and action but they also develop the mutually corrective role to create an order in human relationships and in rational reconstructions General rules being the generalization of an individual idea30 applying the peculiarities of a single experience to different cases will lead to errors and prejudices whose defect does not consist so much in their falsehood (against the truth) but rather in the contrast and contradictions that they cause be-tween other prejudices or beliefs31

The ability of the imagination to generalize is not only applied to identical cases but also to similar elements sometimes con-fusing necessary conditions of some effects with other on the contrary superfluous conditions that are only accidental32 in this 24 Treatise 5325 See note 1426 Treatise 23427 Treatise 23428 Treatise 19229 On this aspect focused Gilles Deleuze see Deleuze Gilles Empiris-me et subjectiviteacute30 laquoIf ideas be particular in their nature and at the same time finite in their number lsquotis only by custom they can become general in their represen-tation and contain an infinite number of other ideas under themraquo Treatise 2131 laquoAn Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have soli-dity for which reason thorsquo the conversation of the former in any instance be visibly very agreeable and of the latter very judicious we have entertainrsquod such a prejudice against them that they must be dunces or fops in spite of sense and reason Human nature is very subject to errors of this kindraquo Trea-tise 10032 Treatise 101

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

183

way the faculty leads to general rules that confuse the terms in play

the same custom goes beyond the instances from which it is derivrsquod and to which it perfectly corresponds and influen-ces his ideas of such objects as are in some respect resem-bling but fall not precisely under the same rule33

Only reasoning can counterbalance this excessive amplifica-tion of habit but the very same reasoning is constituted by the cause-effect relationship or by a further general rule Conflict does not occur therefore among elements of different natures but is always between probability and stronger beliefs and not between possibility and certainty Error emerges when among our thoughts we ascertain an incongruity as when two probabi-lities appear in conflict the only way to overcome this does not consist in appealing to an absolute truth but on the contrary in opting for a general rule that brings with itself a degree of greater probability and in relegating to a simple exception the weakest impression the least vivid thought34 In the field of experience (of what Hume calls ldquomatters of factrdquo) every judgment is the re-sult of relationships produced by the imagination thanks to the influence of habit and its relationship with general rules they are grounded in belief which must submit to a more or less founded probability which increases or decreases through other formu-lated judgments35 and that cannot flow in the field of certainty and truth

this gradual increase of assurance is nothing but the ad-dition of new probabilities and is derivrsquod from the constant union of causes and effects according to past experience and observation36

Certainty is a feeling provided by the senses and not by rea-soning or demonstration we live using illusions provided by the imagination without regarding the fact that ldquoall knowledge resol-ves itself into probabilityrdquo37

There are no fixed or stable laws and certainty is replaced by probability which has to be composed turning resemblance into identity or contiguity or causes because of the influence of the modality in which ideas and impressions are conceived What is given are only singular impressions and the rest is construction

The operation of the general rule that exerts itself between cor-rection and expansion does not lead us to exclude the exception from the rule itself but rather to include it in a new series of repe-

33 Treatise 10134 Treatise 10135 Treatise 12136 Treatise 12137 Treatise 122

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

184

titions and analogies In the case of rebellion against a govern-ment resistance overturns and interrupts the habit to obedience This breach is not the breakdown of a rational order that finds its own justification in logic38 as it is not the transgression of an original contractual source of political legitimacy Respecting an established order is not a necessary behavior as necessity is a characteristic that is always and only attributed by the observer it is not present in nature39 and neither is it due to the presence of a real authority established by an original transfer of power and enacted by an unbreakable promise40 The (also moral) obliga-tion of subjugation to a government is due to none of this

If we are to explain constant obedience to a magistrate we have to question and observe the opinions of men and women who would never accept the idea that the origin of government consists in an original promise or contract41 Loyalty to the magis-trate does not consist in a promise or a necessary relationship Rather it is a consequence of general rules thanks to which we extended our maxims beyond the first reason that pushed us to establish them42 and that induced us to get use to do something to repeat ourselves in a regime of analogy leading human bein-gs to consider the magistrates or sovereigns as authoritative not in respect of some legitimating promise but rather because they have achieved their powerful position by inheritance or posses-sed the throne for a long time43 In other words if it is possible to establish an analogy between the actual holders of authority and the predecessors a similitude allows the imagination of the subject to pass from one to the other without unpleasant and difficult passages

Rebellion against an established political order is not due to the breaking of some promise or the shattering of a rational regi-me that for its own logical strength should stay unchanged wi-thout being submitted to assault Rebellion is possible although it is an exception to the general rule of loyalty to authority exactly because general rules are not laws inscribed in human nature Such rules simply describe the general tendency to follow habits and customs Resistance to a sovereign consists in the introduc-tion of an unpredictable variable to a flowing series of analogies This variable does not linearly correspond to principles through

38 Treatise 101ndash10239 Enquiry concerning Human Understanding 7740 laquothe magistrates are so far from deriving their authority and the obli-gation to obedience in their subjects from the foundation of a promise or original contractraquo Treatise 350 laquophilosophers may if they please extend their reasoning to the supposrsquod state of nature provided they allow it to be a mere philosophical fiction which never had and never coursquod have any reality [hellip] But however philosophers may have been bewilderrsquod in those specula-tions poets have been guided more infallibly by a certain taste or common instinctraquo Treatise 316ndash31741 Treatise 35042 Treatise 35343 Treatise 356f

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

185

which knowledge can be extended beyond the simply given44

Rebellion is a sign that theory is not a rigid system of absolute truths to which faith must be lent and that one must adopt45

in this particular the study of history confirms the reasonin-gs of true philosophy which shewing us the original qualities of human nature teaches us to regard the controversies in politics as incapable of any decision in most cases46

This does not make it a varying and unpredictable element that sometimes surges in a series of analogies that regulate the poli-tical life of human beings simply splintering them The operation of general rules is corrective not because it excludes what esca-pes from the planed repetition decreeing a narrow invariability (even if only on the plan of analogy and not of identity) however it is because in the actions of men and women the exception becomes a rule It does not rest on a binary plane of truth and untruth in which right and injustice are in originally defined and opposed knowledge moves in a field of probabilities Hume ac-cepts the inclusion of exceptions and admits equilibrium among what is more or less possible Regarding cases of political resis-tance their exceptionality is dissolved in two directions first of all human history has shown so many examples of rebellion47 that it can be considered as a general rule The exceptionality of resistance is inserted in a chain of usual obedience that this way is broken up but its exceptional nature is darkened and integrated into another canon of behavior not left to a chaos that could cast a shadow in repetitive order of humansrsquo and naturersquos procedures The occurrence of the unexpected is immediately included in a habit that explains it normalizing it (also predicting its frequent resurfacing)48 it is instantly integrated in an order of habits that collides against one another Nature repeats it-self confirming our reasoning which ismdasheven though without necessitymdashgrounded on that same repetition this leaves room for possible subversions in what we take for certain49 we un-derstand ordinary human behavior but nothing prevents it from 44 laquowe [hellip] make allowances for resistance in the more flagrant instan-ces of tyranny and oppression [hellip] Nor is it [the resistance] less infallible because men cannot distinctly explain the principles on which it is foundedraquo Treatise 353ndash35445 laquoWhoever considers the history of the several nations of the world their revolutions conquests increase and diminution the manner in whi-ch their particular governments are establishrsquod and the successive right transmitted from one person to another will soon learn to treat very lightly all disputes concerning the rights of princes and will be convincrsquod that a strict adherence to any general rules and the rigid loyalty to particular persons and families on which some people set so high value are virtues that hold less of reason than of bigotry and superstitionraquo Treatise 35946 Treatise 35947 For a detailed study of Hume as historian see Spencer K Wertz ldquoHume History and Human Naturerdquo Journal of the History of Ideas 36 (1975) 481ndash49648 Treatise 35349 Enquiry concerning Human Understanding 33

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

186

contradicting our expectations

4 General rules and freedom

The introduction of variation within general rules does not im-ply for Hume that human beings are unlike other creatures free The nature of human beings in which tendencies do not seek for their own satisfaction through blind instinctive repetition but rather through the elaboration of strategies which result from an equilibrium among new habits does not put him outside a world ordered by blind necessity in which he intervenes to start a new series of repetitions by grounding it in peculiarities that do not belong to the deterministic reality

Human beings do not impose themselves on nature within a proper moral order and with justice their constitution does not separate them completely from natural repetition In other words human beings are not free beings intervening in a reality under a narrow regime of necessity What we consider human ldquolibertyrdquo or ldquofreedomrdquo that is the capacity to enter an established order to change its repetitive series is nothing else than the result of dou-ble ignorance an error in our conception of the necessary and deterministic bond between events and the inability to recognize all the regular connections in which a human action is inserted (without interruptions or breaks) Human beings sometimes act in an apparently unpredictable way practicing a real interruption of any regular and repetitive behavior a fragmentation of any analogy with the past in reality we simply ignore all connections all general rules followed by the individual Therefore when a behavior that is consequence of a till now minor and less evident series prevails on the principal general rule when it alters the equilibrium through the more or less hidden breaking in of con-trary causes50 an observer is not able to recognize the fluidity of the mutation and he motivates his incapacity to recognize a causal bond asserting that he has been spectator of an action which is not the effect of some determining cause but which is rather free

The conviction that holds human beings to be entities endowed with liberty opposed to nature that obeys a regime of necessity is a reflex of a common error due to the consideration of the status of the bond between cause and effect Human beings and nature obey the same type of necessity the chain of natural causes and the chain of voluntary causes are not separated by the presence or absence of freedom Necessity is not internal to the cause as if it were itself bearer of such a determining element It is ra-ther the effect of the imagination of the observer This faculty is able to produce such a firm conviction that when human beings reflects on themselves and do not see in their spirits a neces-sary connection comparable to that which he believes existing 50 Enquiry concerning Human Understanding 71

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

187

among natural objects they then consider themselves detached from the natural world in possession of an exclusive characte-ristic liberty Incapable of remembering that necessity is not a quality of the agent or of the effect but rather of what we con-sider their relationship to be we build two different fields one for human beings and the other for nature the two kingdoms of liberty and determinism Eliminating the possibility of freedom implies the elimination of its opposite which is necessity these are the results of the beliefs of the human mind What we seem to know is simply a constant conjunction that we are able or not to foresee and not the necessity or its contrary in both cases Liberty (as the contrary of necessity)51 and its opposite do not exist human beings are the same as nature The fact that hu-man actions appear irregular and uncertain opposed to natural regularity does not make them exist on a different level52 The bond between motives and actions has the same regularity as natural developments53

The ability of human beings to introduce an unexpected ele-ment does not make them free beings but only marks a facul-ty of adaptation in a mutable equilibrium If human beings sim-ply followed their instincts there would be no change and they would continue to act in the same identical way independently from every condition birds build their nests without adapting to a varied situation without any assessment and forecast54 The intervention of mutation within a repetitive series is possible only if it does not deal with impulses but custom and general rules or when human minds expand beyond the given through imagi-nation and habit which reconstruct resemblance contiguity and causation55 producing such a vivacious conception of objects and consequences that we firmly believe them to be able to pro-voke specific effects despite mutable conditions56 Human bein-gs are different from animals because they are not tied to their instincts this is what we would think we can conclude However reason is not a faculty external to nature On the contrary it is a sort of instinct or mechanic power similarly to the blind impul-se that induces animals to behave in a perpetual repetition57 What characterizes the human mind is the ability to go beyond the datum and simple perceptions building series of resemblan-51 We can talk about freedom only in the sense of the absence of cons-trictions Enquiry concerning Human Understanding 7952 Treatise 25953 laquoI do not ascribe to the will that unintelligible necessity which is su-pposrsquod to lie in matter But I ascribe to matter that intelligible quality call it necessity or not which the most rigorous orthodoxy does or must allow to belong to the willraquo Treatise 26354 laquoAll birds of the same species in every age and country build their nests alike In this we see the force of instinctraquo Enquiry concerning the Prin-ciples of Morals 19555 Enquiry concerning Human Understanding 4356 See note 1457 laquothe experimental reasoning itself [hellip] is nothing but a species of ins-tinct or mechanical powerraquo Enquiry concerning Human Understanding 88

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

188

ces and causalities between them whose conception can be more or less vivacious provoking changes or simple repetitions in behavior according to a resultant emergence from the inter-section of different series of habits reconstructed causal chains and produced resemblances We are in a domain not subdued to reasoning and built by belief imagination and the general rules or by the human propensity to produce repetitions and to belie-ve in them building series whose members are based on each other and not on a cause or tendency The results of this order are the praxis and the knowledge of human being which do not originate from the imposition of pure reason external to nature but they are rather the result of probability of more or less cer-tain reconstruction and of already given conditions

The human mind is a natural element among many others it does not refer to some transcendent plan and it is not drawn by some liberty It is rather a simple reaction to human passions and a tool that facilitates their satisfaction We are then wrong if we think that reason can command passions and impose on them a moral law or a truly and right order When we think we are ac-ting reasonably our behavior in reality is due to a predominant passion which in this case is calm quiet and not expressed violently58 Even if the human mind is able to introduce an unpre-dictable variable in the development of habits and of general rules it is not able to produce a metaphysical reality The only things from which it starts are impressions in their singleness and in their mutual isolation Everything it reconstructs is only its product the harmonious order that we think we are recons-tructing in science59 is not a revealed truth nor a discovery but only a projection of our belief that allows us to direct our own tendencies

5 Identity and difference the absence of the ldquoIrdquo

Hume places the concepts of difference and becoming as prior to those of identity and being because identity is nothing more than a construction of imagination60 Moreover the source from which such falsification is produced cannot be understood as a constant ldquoselfrdquo always identical to itself among the flow of im-pressions there is no stable subject that arises as sovereign The 58 laquoMen often counter-act a violent passion in prosecution of their inte-rests and designs [hellip] What we call strength of mind implies the prevalence of the calm passions above the violentraquo Treatise 268 About the possibility to have or not a practical reason in Hume see Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non-sceptical Interpretationrdquo History of political Thought 34 (2013) 89ndash11359 Michel Malherbe La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 4960 laquoOur chief business then must be to improve that all objects to which we ascribe identity without observing their invariableness and uninter-ruptedness are such as consist of a succession of related objectsraquo Treatise 167

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

189

identity that is usually attributed to the human mind is ldquofictitiousrdquo61 and what we are used to calling ldquoIrdquo is nothing else than an enti-rety of perceptions whose bond is something we have attributed ourselves62 building in this way a continuous chain of thought63 that results in being identical to itself There is no impression of the ldquoIrdquo and of its identity that is a demonstration of the fact that it is a construction Philosophy must thus be empiricist it has to be related to experience obliging it to open and destruct identity and to radically resolve it into the difference64 Personal identity is the result of an operation of imagination that reflects on itself on thinking65 thus perceiving a facility in the passage among the consideration of different perceptions and allowing the emergen-ce of the feeling of necessity taking into consideration causal bonds as the effects of the same ldquoIrdquo and its faculties66 It is at this point of the discussion that Hume introduces the comparison between the mind and a theater (deprived however of scene stage or any other structure) where the perceptions incessantly follow one another combining themselves to each other ldquoThere is properly no simplicity in it at one time nor identity in diffe-rentrdquo67 The fact that this theater has no scenes and materials is a marker that the same powers of the mind are not perpetually identical68 and therefore that imagination memory and reason are not faculties in the sense that they do not constitute a trans-cendental structure laying between the subject and his object They do not systematize knowledge and practice They are ra-ther attitudes to pursue a purpose in a determined way similar to instincts that have been born and developed in nature Therefo-re as birds mechanically build identical nests ndash even though not implying a specific faculty of their mind in this action (however only implying a tendency that is repetitively updated without va-riation) ndash human beings stir inside nature through similarly ins-tinctive procedures that may also be constant but which cannot

61 Treatise 16962 Treatise 16963 laquoour notion of personal identity proceed entirely from the smooth and uninterrupted progress of the thought along a train of connected ideasraquo Treatise 169ndash17064 Malherbe Michel La Philosophie Empiriste de David Hume (Paris Vrin 2001) 19365 laquoIdentity depends on the relations of ideas and these relations pro-duce identity by means of that easy transition they occasionraquo Treatise 17166 In this last passage memory plays an central role because it allows to extend the chain of causes to every moment we remember laquoIn this view therefore memory does not so much produce as discover personal identity by shewing us the relation of cause and effect among our different percep-tions lsquoTwill be incumbent on those who affirm that memory produces entirely our personal identity to give a reason why we can thus extend our identity beyond our memoryraquo Treatise 17167 Treatise 16568 laquoOur thought is still more variable than our sight and all our other senses and faculties contribute to this change nor is there any single power of the soul which remains unalterably the same perhaps for one momentraquo Treatise 165

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

190

be hypostatized

6 The Absence of the Subject

Man as a flow of perceptions is deprived of any reason that is able to distance him from nature and capable of imposing a proper order a human mind that results from a specific fold pro-duced by natural processes all of this makes the formulation of the self as a subject in contrast to objects impossible Percep-tion before it has been elaborated and has been transformed into an idea is pure presentation69 without any distance between the object and the subject Perceptions are singularities in which a perceiving subject and a perceived object are not distinguisha-ble both emerge in a second moment as a consequence of the attribution of continuity and coherence to different perceptions Every piece of information furnished by our senses is at mini-mum disconnected from any other perceptions that do not alrea-dy carry within themselves the sign of possible relationships with other impressions They do not have in themselves singularly a necessary bond to other perceptions even if they are represen-ted as inherent to the same object as two points contingently connected by a segment are traced in a second moment the re-lationship between impressions follows it is not necessary and it is a consequence of the attribution of a regularity they do not have70

The centrality of habit and of repetition not only involves the notion of a subject intended to be opposite to the object Hume also expressly denies other characteristics attributed to this con-cept which is reducible to a simple grammatical matter71 taking into consideration the central peculiarities that characterize it we are therefore able to distance Hume from the philosophical tradition identified by Alain de Libera which gradually identifies the subject of the act the subject of the inherence of attributes and the cognitive subject72

From the beginning the absence of the cognitive subject is de-69 With this expression I intend the precedence of the impression in respect to every representation which presupposes the distance between the thought and its object70 Treatise 13771 To this is also reduced the personal identity laquoThe whole of this doc-trine leads us to a conclusion which is of great importance in the present affair viz that all the nice and subtile questions concerning personal identity can never possibly be decided and are to be regarded rather as grammatical than as philosophical difficultiesraquo Treatise 171 Neujahr put in relation the Humean analysis on identity and the which one on time Philip J Neujahr ldquoHume on Identityrdquo Hume Studies 4 (1978) 18ndash2872 The path toward this identification is the subject matter of the re-search of Alain de Libera in particular Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet moderne Cours du Collegravege de France 2013ndash2014 (Paris Vrin 2015) More extensively Alain de Libera Archeacuteologie du sujet I Naissance du sujet (Pa-ris Vrin 2007) Alain de Libera Archeacuteologie du sujet II La Quecircte de lrsquoidentiteacute (Paris Vrin 2008)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

191

termined by the negation of an identity to which it is possible to submit rational and stable faculties The denial of the subject as a center of inherence73 excludes the possibility to think of actions and human faculties as attributes of a crucial point (be it a subs-tance or a transcendental synthetic unity) This brings Hume to a tradition that is different from the one that places being prior to becoming and that ndash following Alain de Libera ndash74 connects Aris-totle to Thomas Aquinas to Kant

The notion of accidents is an unavoidable consequence of this method of thinking with regard to substances and substan-tial forms nor can we forbear looking upon colours sounds tastes figures and other properties of bodies as existences which cannot subsist apart but require a subject of inhesion to sustain and support them For having never discoverrsquod any of these sensible qualities where for the reasons above--mentionrsquod we did not likewise fancy a substance to exist the same habit which makes us infer a connexion betwixt cause and effect makes us here infer a dependence of every quality on the unknown substance75

Imagination memory and reason are not the faculties of a subject this concept is replaced in Hume by an ldquoIrdquo that precedes the distinction between subject and object There are only two uses of the term ldquosubjectrdquo expressly accepted by Hume76 the first one concerns one of the causes of a passion The subject of a passion is not the man or woman who feels it rather it is that thing to which a quality (identified with the second cause of that passion) inheres With an example the subject of proud is not the human being proud of itself rather the cause of that feeling his propriety following an example of Hume77 The subject of passion is different from the self which is on the contrary the object of proud78 in case that it is related to the subject of that passion79

The second use ndash central for the demonstration of this arti-cle ndash of the term ldquosubjectrdquo is that of subditus a man or woman

73 This prevents in Humersquos intentions to think of the object as a subs-tance (in particular see Treatise 146ndash147) See also Jay F Rosenberg ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo Topoi 19 (2000) 137ndash14574 See Alain de Libera Lrsquoinvention du sujet modern (Paris Vrin 2015) 174ndash175 See also Steven C Patten ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo Hume Studies 2 (1976) 59ndash7575 Treatise 146ndash14776 I exclude here the use of ldquosubjectrdquo in the sense of ldquoargumentrdquo ldquoobject of a discussionrdquo77 laquoit appears necessary we shoursquod make a new distinction in the cau-ses of the passion betwixt that quality which operates and the subject on which it is placrsquod A man for instance is vain of a beautiful house which be-longs to him [hellip] The quality is the beauty and the subject is the houseraquo Tre-atise 183 For examples concerning other passions Treatise 201 214ndash21578 See quote in note 679 laquothe subject to which the quality adheres is related to self the object of the passionraquo Treatise 189

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

192

subjected to an authority80 therefore Hume denies the tradition that relates the subject to the subjectum (the support of personal peculiarity) he only admits its meaning deriving from subjectus in the narrow sense of being subjugated81

Refusing to identify the subject with the self avoiding the con-ception of this as a totally subjugated entity he leaves space for the possibility of thinking of human beings as a not already and always subjected being not only subjected by the government but also by a fixed (even substantial) identity by an universal and stable description to which everybody must adhere82 Hume does not pose human beings as subjects in the sense that they are not subjugated to a universal anthropological structure to some moral or epistemological law they are not even subjuga-ted to their own consideration in which there is no impression of themselves This prevents the antinomy that derives from the desire to write an anthropology that sets man as an object fal-sifying him because of the consequent impossibility to describe his being a subject Hume admits instead a science of the hu-man being that is only restricted to the description of his (or her) absence of identity Man is a subject only if he is subjugated this however does not entail that the man is always free apart from the aspect of his or her subjection to the magistrate (as if free-dom belonged to his private and apolitical space)

The attempt to subjugate his own desire to a rational or spiritu-al norm is also criticized such effort is not only painful but also useless83 and furthermore it is not the demonstration of liberty imposed by man on his or her life Hume speaks in this case of artificial behaviors that derive from the split with the analogy and with repetition furnished by custom they are not manifestations of a strong freedom that ranges inside what is given They only concern the exasperation of some principles or inclinations that become dominant subjugating all the other desires and affec-tions84 Human beings cannot impose a norm on themselves or on others

It is particularly clear in this sense what Hume intends to warn the skeptical philosopher (with whom we may identify Hume himself) skepticism must be limited to the philosophical matters It must not lead to popular objections with the purpose of placing into question the bases of our daily behavior Radical doubt is

80 Remaining in the Treatise we can find the following recurrences of the word ldquosubjectrdquo in the sense of ldquosubmittedrdquo ldquosubjugatedrdquo ldquoa person owing allegiance to a king or queenrdquo Treatise 221 222 262 343 345 358 364 37581 See the entry ldquosujetrdquo in Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles ed B Cassin (Paris Le Seuil Le Robert 2004) 1233ndash125482 About this see Eacutetienne Balibar Citoyen sujet et autres essais drsquoan-thropologie philosophique (Paris PUF 2011) in particular the introduction (ldquoAvant-propos ndash Apregraves la querellerdquo)83 David Hume The Sceptic in David Hume The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 323184 The Sceptic 214

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

193

easily swept away not due to solid reasoning but through life itself The occupations of daily life will be the agents that will wake up the skeptic from his dream full of questions the skepti-cal principles ldquovanish like smoke and leave the most determined skeptic in the same condition as other mortalsrdquo85

7 A politics without subjugation

General rules imagination and habit thought of as central fac-tors lead to a conception of politics as a continuous rebalancing between repetitions series of analogies and without reaching a firm center that would be able to bring them (also in a teleological way) to stability and establish a fixed criterion to distinguish what is right and what is wrong86 Norms that regulate relationships among human beings develop independently from any law sti-pulated by the state or a rational or divine being and they are not necessarily instituted by a constitution or by a philosophical system Thus it is possible to verify the source of obedience to norms without however implying that this obedience presuppo-ses submission or a subject It is therefore possible to think of a norm invested of a power that does not want to subdue man the power still remains in his hands87 and it cannot be ceded to a sovereign Instead of a binary order constituted by the pairs truefalse and correctwrong to which human beings should submit Hume proposes probability which totally replaces the possibility of certainty in the cognitive and practical fields Thus norms are not an instrument to include or to exclude legitimate or not but it is the result of what may be more or less probable Its purpose is to allow man to proceed over what is simply given hence streng-thening his faculties In a different way in respect to the instincts general rules include any element preventing the consideration of something as a transgression a glitch among all analogies These rules are not established to regulate the liberty of the indi-viduals or allow their independence They are rather the result of human imagination and nature Obeying them is not a matter of subjugation and breaking them is not a sign of freedom liberty is not something that should (or not) be folded to the general rules

Humersquos skeptic and empirical philosophy has dethroned the subject from its grounding position and has made it the product of the general rules themselves of the imagination and of habits Nobody can impose on nature to make possible a condition of freedom general rules are not the product of reasoning and they 85 Enquiry concerning Human Understanding 13086 For a summery about the interpretations of Hume as a conservative or as a reformer see D W Livingston ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo Hume Studies 21 (1995) 151ndash16487 laquoas Force is always on the side of the governed the governors have nothing to support them but opinionraquo David Hume Of the First Principles of Government in The Philosophical Works ed T H Green T H Grose (Aalen Scientia Verlag 1964) 3110

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

194

do not lead to a complete and perfect systematization of socie-ty and ethics Whether it is a matter of liberty truth and moral or cognitive order there is a continuous reconstruction and an equilibrium to be rebalanced the human mind does not possess principles that could systematize experience Originally man is nothing else than a sort of a fold inside the immanence of the pro-cesses that characterizes nature that does not leave a space for certain truths but only an eternal rebalance among probabilities Thinking politics with Hume implicates the refusal of any element already given to the relationships and to empirical differences the renouncing of any transcendent plan and the idea of human liberty previous to relationships to the (violent) interaction of strength among men Liberty is not an anthropological peculiari-ty but it is rather already held within order and equilibrium It is not even possible to think of an already given subject that enjoys liberty Even if it would seem that man originally finds himself in the pair subjectumndashsubjectus88 he precedes it identities and the elements that allow the emergence of that pair of concepts are later constituted They are only a product of the imagination which is able to hide the differences and ever-changing flows

This is the advantage offered by Humersquos philosophy having difference and probability as points of departure for a philosophi-cal reflection on politics it is possible to trace the birth of identi-ties showing their fallacy and their mutability departing from the relationships the subject appears as a simple product We are very far from the idea of a subject grasping the truth We are ins-tead in the field of mutability in which human beings stir among probability and balances in which norms do not forbid but rather strengthen their faculties

88 laquoWe naturally suppose ourselves born to submissionraquo Treatise p 355

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

195

BIBLIOGRAFIA

BALIBAR Eacutetienne Citoyen sujet et autres essais drsquoanthropo-logie philosophique Paris PUF 2011

CASSIN Barbara Vocabulaire europeacuteen des philosophie dic-tionnaire des intraduisibles Paris SeuilLe Robert 2004

DELEUZE Gilles Empirisme et subjectiviteacute Paris PUF 2010

HUME David A Treatise of Human Nature Ed D F Norton M J Norton Oxford Clarendon Press 2007

___________ ldquoAn Enquiry Concerning Human Understan-dingrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoAn Enquiry Concerning the Principles of Mo-ralsrdquo In HUME David The Philosophical Works Ed T H Gre-en T H Grose Aalen Scientia Verlag 1964

___________ ldquoThe Scepticrdquo In HUME David The Philoso-phical Works Ed T H Green T H Grose Aalen Scientia Ver-lag 1964

KENNETH Winkler P ldquoHume on Scepticism and the Sensesrdquo In The Cambridge Companion to Humersquos Treatise Ed D C Anslie A Butler Cambridge Cambridge University Press 2015

KONG Camillia Kong ldquoHume and Practical Reason A Non--sceptical Interpretationrdquo In History of political Thought nordm 34 2013) pp 89ndash113

LIBERA Alain Archeacuteologie du sujet Naissance du sujet vol I Paris Vrin 2007

___________ Archeacuteologie du sujet La Quecircte de lrsquoidentiteacute vol II Paris Vrin 2008

___________ Lrsquoinvention du sujet moderne Paris Vrin 2015

LIVINGSTON D W ldquoOn Humersquos Conservatismrdquo In Hume Studies nordm 21 1995 pp 151ndash164

MALHERBE Michel La Philosophie Empiriste de David Hume Paris Vrin 2001

NEUJAHR Philip J ldquoHume on Identityrdquo In Hume Studies nordm 4 1978 pp 18ndash28

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 177-196jul-dez 2017

196

PATTEN Steven C ldquoHumersquos Bundles Self-Consciousness and Kantrdquo In Hume Studies nordm 2 1976 pp 59ndash75

ROSENBERG Jay F ldquoIdentity and Substance in Hume and Kantrdquo In Topoi nordm 19 2000 pp 137ndash145

WERTZ Spencer K ldquoHume History and Human Naturerdquo In Journal of the History of Ideas nordm 36 1975 pp 481ndash496

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

197

Resenha

Resenha do livro Teoria da heteroniacutemia de Fernando Pessoa (Org de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith Lisboa Assiacuterio amp Alvin 2012)

O Palco da Heteroniacutemia

Teoria da heteroniacutemia tem como eixo central o tema que seus organizadores consideram como sendo dos mais impor-tantes para compreensatildeo da obra pessoana como um todo a questatildeo da criaccedilatildeo heteroniacutemica que aqui se apresenta em fragmentos cartas poemas ensaios e textos escritos pelo poeta portuguecircs ou por seus heterocircnimos ao longo de deacuteca-das Muitas vezes sem dataccedilatildeo precisa os documentos prati-camente cobrem toda a vida intelectual de Pessoa dando-nos testemunhos das inquietaccedilotildees que o motivaram a formular e a desenvolver sua poeacutetica No prefaacutecio que escrevem a esse volume quando buscam introduzir o leitor no universo da pro-duccedilatildeo pessoana os organizadores de Teoria da heteroniacutemia re-correm a um exemplo cuja fonte seria o psiquiatra Ronald Laing e que teria sido citado por Eduardo Prado Coelho em um estudo que dedicou a Pessoa Trata-se de uma crianccedila que brinca com certo nuacutemero de cadeiras

ldquoCada cadeira tinha por funccedilatildeo desencadear um ima-ginaacuterio especiacutefico na primeira ela [a crianccedila] tornava-se um cow-boy do Oeste americano na segunda convertia-se num gangster de Chicago na terceira era um chinecircs negociante que atravessava a Aacutesia na quarta um pirata dos mares do Sul segundo o modelo de Sandokan e na uacuteltima cadeira voltava a ser a crianccedila ajuizada que sempre havia sido e que tinha que fazer os trabalhos da escolardquo1

Como o menino e suas cadeiras o poeta portuguecircs tem uma obra muacuteltipla constituiacuteda de vaacuterias personas literaacuterias ou personagens dos quais por vezes o proacuteprio nome Fernando Pessoa poderia ser visto como sendo mais um deles mais uma das ldquocadeirasrdquo agraves quais recorre quando desenvolve sua obra Em carta a Joatildeo Caspar Simotildees de 28 de julho de 1932 o poeta ldquoexplicita sua intenccedilatildeo final toda a obra heterocircnima eacute para ser publicada sob o seu proacuteprio nome Fernando Pessoa sem ne-nhuma espeacutecie de hesitaccedilatildeordquo2 Se aqui o nome Fernando Pes-soa eacute visto como aquele que unificaria e para o qual culminaria todo o processo que eacute a proacutepria dinacircmica da criaccedilatildeo heteroniacute-1 Teoria da heteroniacutemia p16 apud COELHO EP ldquoO Viajante do In-versordquo ColoacutequioLetras 96 marccedilo-abril de 1987 p462 Teoria da heteroniacutemia p18

Luiacutes Fernandes dos Santos Nascimento

Professor de filosofia pela Universidade Federal deSatildeo Carlos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

198

mica um nome que resume e abrange os demais em outros momentos ele natildeo parece ser mais que uma das assinaturas empregadas pelo poeta tais como as de Caeiro Aacutelvaro de Cam-pos Ricardo Reis Alexandre Search Antoacutenio Mora Bernardo Soares etc Assim na medida em que eacute visto como apenas mais um nome usado pelo autor Fernando Pessoa estaria submetido a mesma loacutegica que rege a produccedilatildeo e desenvolvimento dos outros nomes que aparecem na obra do poeta De certo ponto de vista ele pode mesmo ser considerado como sendo o menos real de todos os personagens do poeta Quando tomado como uma espeacutecie de veiacuteculo meio pelo qual os outros nomes sur-gem se exprimem e se reuacutenem em sua obra Fernando Pessoa poderia ser visto como o menos coeso o mais variaacutevel dos seus personagens como afirma o proacuteprio poeta ao falar de si mesmo ldquoSou poreacutem menos real que os outros menos uno menos pes-soal eminentemente influenciaacutevel por todos elesrdquo3

O que aqui estaria em jogo dizem os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ao fazer menccedilatildeo a leitura de Joseacute Gil es-tudioso da obra pessoana seria uma outra concepccedilatildeo de sub-jetividade possibilitada pelo proacuteprio movimento no qual surgem os heterocircnimos um ldquosujeito de tipo novo que consistiria no proacute-prio intervalo entre os sujeitos que a escrita heteroniacutemica potildee em cenardquo4 Desse modo a escrita heteroniacutemica pressuporia um agente produtor ou autor que tivesse sempre de guardar algo de indistinto ou despersonalizado na medida mesma em que ele deve estar sempre aqueacutem ou aleacutem dos personagens que forma ou assume Ao menos em um primeiro momento para ser aque-le que daacute ocasiatildeo para que surjam todos esses personagens o autor natildeo poderia ser nenhum deles em particular Por isso quando assim considerado a autoria e com ela a subjetivida-de do autor passaria a ocupar uma ldquosituaccedilatildeo intervalarrdquo expli-cam-nos os organizadores de Teoria da heteroniacutemia ndash o autor sempre estaria no espaccedilo entre o personagem que acabou de apresentar ou assumir e aquele que estaacute prestes a expor ou a encarnar Assim a autoria passa a assemelhar-se a um espaccedilo vazio se por isso entendermos algo desprovido de forma defini-da ou mesmo amorfo termo usado pelo proacuteprio Pessoa quando descreve a ldquolinha fluida de minha personalidade amorfardquo5 Tal passagem nos parece interessante justamente por conjugar a ausecircncia de forma a um movimento que eacute o da escrita o escri-tor acaba por representar um papel no interior do processo de escrita mas a condiccedilatildeo de sua arte eacute que ele seja um tipo de personagem despersonalizado que seja antes um fluxo e que para assumir diversas personas ele mesmo natildeo possa ser ne-nhuma em especial Desse tipo de relaccedilatildeo complexa que sua poeacutetica exigiria nosso autor parece bastante consciente quan-do por exemplo afirma que ele eacute ldquoindividuado por uma suma 3 Teoria da heteroniacutemia p2314 Teoria da heteroniacutemia p13 grifo nosso5 Teoria da heteroniacutemia p 160 Texto 31 provavelmente de 1915

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

199

de natildeondasheus sintetizados num eu posticcedilordquo6 Neste processo a necessidade de formar e depois unificar os diversos natildeo-eus eacute tatildeo forte quanto a consciecircncia de que tal unificaccedilatildeo se faz no interior da divisatildeo e que aqui paradoxalmente o indiviacuteduo ape-nas poderaacute se apresentar como sendo divisiacutevel ao infinito ele formaraacute outros natildeo-eus para unificaacute-los sob um novo eu posticcedilo que em seguida daraacute continuidade ao processo e originaraacute ou-tros natildeo-eus e assim por diante Designaria o nome Fernando Pessoa esse eu posticcedilo que se unifica e se divide a cada mo-mento de sua obra Como vimos em certo sentido podemos pensar que se trata de um nome privilegiado frente aos demais (corresponderia agrave assinatura do autor distinta da de seus per-sonagens como a de Caeiro Campos ou Reis) mas por outro lado ele ainda pode ser visto como sendo apenas mais um dos personagens soacute mais uma ldquocadeirardquo entre as muitas que o poe-ta fabrica talvez a mais irreal de todas como nos dizia Pessoa em trecho acima citado Assim como o garoto do exemplo que encontra a cadeira na qual volta a ser o menino que era antes de iniciar a brincadeira Pessoa teria esse momento em que se-ria ele mesmo mas esse ele mesmo jaacute natildeo existe fora de um universo em que os seus outros eus tambeacutem existem Neste instante o eu jaacute estaacute em uma situaccedilatildeo em que ele soacute eacute na medi-da em que eacute muitos em que eacute dois para falar como Pessoa em um poema que tambeacutem se deteacutem na ideia de uma brincadeira infantil

Brincava a crianccedilaCom um carro de bois Sentiu-se brincandoE disse Eu sou dois

Haacute um a brincar E outro a saberUm vecirc-me a brincarE outro vecirc-me a ver7

Nesse sentido o eu passaria a ser mais um persona-gem uma vez que se mostra tal como um deles em que se relaciona com os demais e em que aparece no mesmo jogo ou sob a mesma loacutegica8 que rege o surgimento dos outros o eu que primeiramente poderia ser visto como o produtor do proces-so da brincadeira no caso das crianccedilas passa agora a inte-grar a proacutepria criaccedilatildeo como se o autor no processo mesmo de autoria fosse levado a criar em algum momento o seu lugar o

6 Teoria da heteroniacutemia p 150 Texto 26 provavelmente de 19157 Teoria da heteroniacutemia Poema 6 de 5121927 p3378 Vale lembrar que ldquoloacutegicardquo eacute um termo usado pelo proacuteprio Pessoa para designar uma forma de proceder ou certo modo de conduccedilatildeo no de-senvolvimento de algo de um modo de escrever ou criar por exemplo (Ver Teoria da heteroniacutemia p129 ou p142)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

200

seu espaccedilo ou o seu papel exatamente como criara para cada um de seus personagens Sob tal perspectiva toda criaccedilatildeo de personagens todo o nomear feito no interior da loacutegica da hete-roniacutemia seria tambeacutem algo como um ldquoheteronimiarrdquo com per-datildeo da expressatildeo isto eacute dar um nome pressuporia levar em conta todos os outros nomes com os quais esse primeiro se relaciona e a partir dos quais o seu proacuteprio nome ganha signifi-cado Nesse sentido a capacidade de formar um personagem seria tambeacutem aquela de formar vaacuterios isto eacute os seus vaacuterios os seus natildeo-eus os outros com os quais cada personagem se relaciona no interior dessa loacutegica criativa talvez algo que com alguma liberdade pudeacutessemos chamar de os seus natildeo-nomes proacuteprios todos aqueles nomes que natildeo satildeo o do personagem ou da persona literaacuteria mas que estatildeo a ele ligados e por isso ainda lhe seriam proacuteprios Posto assim em meio ao processo de criaccedilatildeo heteroniacutemica natildeo acabaria por receber o nome Fernan-do Pessoa algo que o aproxima da condiccedilatildeo de um heterocircnimo justamente quando o vemos como o autor de uma obra que estaacute plena de personagens que satildeo eles tambeacutem autores9 Segundo o criteacuterio adotado pelos organizadores de Teoria da heteroniacutemia antes de tudo um heterocircnimo se caracterizaria por ser um escritor por ter redigido um livro um ensaio um poema ou ter o projeto de fazecirc-lo Satildeo entatildeo personagens ativos eles mesmos criadores e sob essa perspectiva muito proacuteximos da atividade daquele que os forjou o proacuteprio Pessoa

Termo que teria sido cunhado pelo poeta portuguecircs por volta de 1928 para designar um modo de produccedilatildeo artiacutestico que o acompanhava desde os cinco anos de idade quando teria criado o Chevalier de Pas10 heterocircnimo jaacute traz em sua letra a alteridade sem a qual ele natildeo se define e natildeo se individua Eacute nesse sentido que malgrado seus traccedilos proacuteprios seu estilo ca-racteriacutestico e tudo o mais que o distingue e o torna algueacutem uacutenico e particular Caeiro (na medida em que eacute um heterocircnimo e como todo heterocircnimo) pode tambeacutem ser visto como um ser plural uma vez que o seu nome jaacute pressuporia um universo de outros nomes com os quais ele se liga ou em direccedilatildeo aos quais ele se estende Sua obra como sua assinatura iria aleacutem dela mesma e se completaria naquela de seus seguidores como Aacutelvaro de Campos Ricardo Reis Antoacutenio Mora Tal conviacutevio ou relaccedilatildeo torna cada um desses heterocircnimos tatildeo individuais fechados e acabados em si mesmos quanto dependentes desses seus natildeo-eus ndash esses seus outros a ele aparentados ou apropriados

9 Sem aqui querer entrar nos meandros das questotildees e das distinccedilotildees que separam o que em Pessoa chama-se de ortocircnimo semi-heterocircnimo e heterocircnimo propriamente dito buscamos unicamente centrar-nos em um processo ou loacutegica de criaccedilatildeo pela qual o poeta forja seus personagens ou autores tal como sugere o volume Teoria da heteroniacutemia ao reunir variados textos sob a rubrica maior da heteroniacutemia10 Os organizadores de Teoria da heteroniacutemia o consideram como sen-do o primeiro dos heterocircnimos de uma lista de mais de cem criados por Pes-soa

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

201

Prova disso seriam os textos que Ricardo Reis Aacutelvaro de Cam-pos e Thomas Crosse escreveram sobre Caeiro momentos em que se analisa a obra do mestre em que se descreve seu modo de vida e por vezes lhe datildeo a palavra e o fazem falar como o faz Aacutelvaro de Campos ao relatar diaacutelogos que teve com Caeiro11 O mesmo poderia ser notado em relaccedilatildeo agraves transformaccedilotildees modificaccedilotildees e intercacircmbios que ocorrem entre os heterocircnimos pelos quais Alexander Search talvez seja tambeacutem Ceaser Seek ou quando Vicente Guedes ldquocede lugar (e o Livro do desassos-sego) a Bernardo Soaresrdquo12 ou ainda quando pensamos no viacuten-culo que se estabelece entre o mesmo Bernardo Soares e o seu livro e a obra de outro heterocircnimo o Baratildeo de Teive Nesse mo-vimento de criaccedilatildeo que a criacutetica chamou de heteroniacutemico13 tudo leva a crer que quanto melhor e mais acabada estiver a com-posiccedilatildeo de um heterocircnimo mais ela indicaraacute ou pressuporaacute os desdobramentos em direccedilatildeo agrave alteridade que ele o heterocircnimo jaacute compreenderia em seu interior como sendo o exterior que lhe eacute proacuteprio o seu universo Ele traria entatildeo consigo uma exterio-ridade (que eacute tambeacutem o seu outro sua alteridade) que natildeo lhe seria exata e completamente estranha ou alheia mas que a ele ainda guardaria proximidade Entatildeo talvez seja por ser tatildeo bem caracterizado por ter um estilo e personalidade tatildeo marcados que Caeiro possa tambeacutem explicitar com tanta eficaacutecia a ordem do universo que o ladeia e deixar claro o que Pessoa chama de ldquonatureza dramaacutetica das minhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo14 Eacute sobretudo a partir da relaccedilatildeo entre Caeiro Campos e Reis que se poderia compreender a criaccedilatildeo heteroniacutemica como dra-maacutetica e Pessoa o criador passaria ser um poeta dramaacutetico como ele mesmo nos diz15 ldquoCriarrdquo escreve Pessoa ldquoeacute substituir a si proacuteprio () Que cada um seja muitosrdquo16 Ou entatildeo ldquoPara criar destruiacute-me Tanto me exteriorizei de mim que dentro de mim natildeo existe senatildeo exteriormente Sou a cena nua onde pas-sam vaacuterios atores representando vaacuterias peccedilasrdquo17

Toda criaccedilatildeo demandaria um sair de si que por sua vez acaba por dar origem a uma comunidade ou antes a uma cena ou espaccedilo em que atuam ou podem atuar diversos persona-

11 Teoria da heteroniacutemia Notas para a recordaccedilatildeo do meu mestre Caeiro p31512 Teoria da heteroniacutemia p3113 Vale lembrar que Pessoa cria apenas heterocircnimo que por vezes aparece descreve o seu ato de compor por exemplo ldquominhas composiccedilotildees heterocircnimasrdquo em um trecho que citaremos a seguir Heteroniacutemico ou hete-roniacutemia satildeo termos cunhados pela criacutetica pessoana Ver Teoria da heteroniacute-mia p11114 Teoria da heteroniacutemia texto 69 p230 provavelmente de 192815 ldquoO ponto central da minha personalidade como artista eacute sou um poeta dramaacutetico tenho continuamente em tudo quanto escrevo a exalta-ccedilatildeo iacutentima do poeta e a despersonalizaccedilatildeo do dramaturgo Voo outro ndash eis tudordquo afirma Pessoa Teoria da heteroniacutemia Carta a Joatildeo Gaspar Simotildees 11121931 p25316 Teoria da heteroniacutemia texto 50 p19817 Teoria da heteroniacutemia texto 57 p210 grifo nosso

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

202

gens um tipo de palco no qual a individualidade surge ao se relacionar com os seus proacuteprios natildeo-eus A criaccedilatildeo em geral e a poeacutetica em particular dependeriam do estabelecimento desta cena ou teatro como nos explica Pessoa em uma passagem em que se faz menccedilatildeo a uma distinccedilatildeo aristoteacutelica

ldquoHaacute duas feiccedilotildees literaacuterias ndash a eacutepica e dramaacutetica O lirismo eacute a incapacidade comovida de ter qualquer delas O que eacute ser liacuterico Eacute cantar as emoccedilotildees que se tecircm Ora cantar as emoccedilotildees que se tecircm faz-se ateacute sem cantar O que custa eacute cantar as emoccedilotildees que se natildeo tecircm Sentir profundamente o que se natildeo sente eacute a flacircmula de almirante da inspiraccedilatildeo O poeta dramaacutetico faz isto diretamente o poeta eacutepico faacute-lo in-diretamente sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela isto eacute sentindo exatamente aquele elemento da obra de que natildeo pode haver emoccedilatildeo nenhuma pessoal porque eacute abstrato e por isso impessoal Fomos esboccediladamente eacutepicos Seremos inviolavelmente dramaacuteticos Fomos liacutericos quando natildeo fomos nadardquo18

Anos mais tarde provavelmente em 1932 Pessoa volta ao tema agora explicitando a fonte aristoteacutelica da distinccedilatildeo com a qual trabalha para ir aleacutem dela e chamar a atenccedilatildeo para o que aqui lhe surge como sendo o mais importante a destacar a saber a passagem de uma poesia liacuterica para uma poesia dra-maacutetica

ldquoDividiu Aristoacuteteles a poesia em liacuterica elegiacuteaca eacutepica e dramaacutetica Como todas as classificaccedilotildees bem pensadas eacute esta uacutetil e clara como todas as classificaccedilotildees eacute falsa Os gecirc-neros natildeo se separam com tanta facilidade iacutentima e se ana-lisarmos bem aquilo de que se compotildeem verificaremos que da poesia liacuterica agrave dramaacutetica haacute uma gradaccedilatildeo contiacutenuardquo19

Para Pessoa natildeo se trata mais de determinar com pre-cisatildeo cada um dos gecircneros literaacuterios elencados mas antes en-tender sua correspondecircncia ou continuidade Ateacute mesmo a in-dividualidade ou as caracteriacutesticas dos gecircneros parecem aqui demandar a ideia de uma multiplicidade a eles vinculada os gecircneros satildeo pensados em relaccedilatildeo aos outros gecircneros O poeta passa entatildeo a mostrar que a gradaccedilatildeo que iria da liacuterica ao dra-ma eacute feita por uma ldquoescala de despersonalizaccedilatildeordquo20 pela qual o poeta se tornaria cada vez mais um outro cada vez menos ele mesmo se por ele aqui entendermos o cantor de suas proacuteprias emoccedilotildees Assim o drama caracterizar-se-ia pela despersonali-zaccedilatildeo daquele que cria pela possibilidade de dar origem a ou-

18 Teoria da heteroniacutemia texto 61 ldquoEntrevista agrave Revista Portuguesardquo 13 de outubro de 1923 p22119 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p268 provavelmente de 193220 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 1932

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 197-203jul-dez 2017

203

tros personagens de inventar para si mesmo outros autores e sentir intensamente o que eles sentiriam O poeta dramaacutetico jaacute natildeo pode entatildeo sentir como noacutes comumente fazemos pois o sentimento que revela em sua obra eacute o do outro eacute o do persona-gem portanto um sentimento fruto da ficccedilatildeo Por esse motivo embora na forma um poema possa se parecer com aquela em que comumente se apresenta a liacuterica ele passa a ser dramaacutetico quando atinge essa niacutevel de despersonalizaccedilatildeo Se explica-nos Pessoa Shakespeare retirasse Hamlet da forma como aparece no ceacutelebre poema dramaacutetico que leva o seu nome e fizesse com esse mesmo personagem uma espeacutecie de monoacutelogo ele natildeo perderia sua carga dramaacutetica seria apenas um ldquodrama de uma soacute personagemrdquo21 A ideia de drama aqui natildeo se restringe entatildeo agrave estrutura feita por diaacutelogos e falas como estamos acostuma-dos a ver nos textos que se prestam agrave encenaccedilatildeo teatral Para Pessoa a noccedilatildeo de poesia dramaacutetica alarga-se e eacute antes de-terminada pelo distanciamento do poeta frente ao personagem ou ao discurso que apresenta O poeta aqui daacute a palavra ao personagem e nesse sentido todo personagem eacute ele mesmo o autor de sua fala possuidor de sua proacutepria assinatura Seria exatamente esse procedimento que estaria operando na com-posiccedilatildeo dos heterocircnimos como nos explica Pessoa a propoacutesito daquele que talvez seja o mais conhecido dos autores por ele inventados Caeiro

ldquoAlberto Caeiro poreacutem como eu o concebi eacute assim assim tem pois ele que escrever quer eu queira ou natildeo quer eu pense como ele ou natildeordquo22

No prefaacutecio de Teoria da heteroniacutemia os organizado-res do volume ainda nos lembram que poderiacuteamos reconhecer elementos desta dramaticidade aqui defendida por Pessoa em autores como Keats Browning Wordsworth e Novalis ldquoTudo o que se passa numa mente humana de algum modo anaacutelogo se passou jaacute em toda mente humanardquo23 reconhece o proacuteprio autor E no entanto jaacute eacute impossiacutevel natildeo admitir a dimensatildeo e o modo original com que a obra do poeta portuguecircs trata o tema rela-cionando-o com uma de suas caracteriacutesticas mais peculiares e marcantes a dinacircmica da produccedilatildeo heteroniacutemica Desta origi-nalidade os textos que compotildeem Teoria da heteroniacutemia datildeo--nos muitas provas

21 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p269 provavelmente de 193222 Teoria da heteroniacutemia texto 95 p270 provavelmente de 193223 Teoria da heteroniacutemia texto 65 p225 provavelmente de 1925

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

204

Resenha do livro STAROBINSKI Jean A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire Satildeo Paulo Editora 34 2014

A melancolia diante do espelho Trecircs leituras de Baudelaire

Com uma produccedilatildeo criacutetica heterogecircnea que inclui a anaacute-lise da obra de filoacutesofos como Rousseau e Montesquieu Jean Starobinski eacute um dos mais respeitaacuteveis criacuteticos literaacuterios da atu-alidade Em A melancolia diante do espelho esse meacutedico de formaccedilatildeo analisa os desdobramentos do tema da melancolia nos poemas de Baudelaire

No primeiro capiacutetulo o leitor eacute informado de que embo-ra consciente da claacutessica interpretaccedilatildeo meacutedica que associa a melancolia ldquoa ofuscaccedilatildeo do ceacuterebro pelardquo bile negra Baudelaire se apropria do tema de forma mais proacutexima agraves significaccedilotildees do seu tempo Aleacutem disso para evitar o uso excessivo do termo o poeta de ldquoAs flores do malrdquo agraves vezes recorre agrave expressatildeo sple-en Para tanto o spleen vai assumir nos estudos de Walter Ben-jamin sobre o poeta da modernidade uma configuraccedilatildeo impor-tante junto com o conceito de ideal ele sintetizaria o cerne da vivecircncia moderna caracterizada pela impossibilidade de trans-missatildeo dos valores ligados agrave tradiccedilatildeo Segundo Starobinski a interpretaccedilatildeo benjaminiana que entrevecirc na melancolia um sin-toma da natildeo assimilaccedilatildeo da experiecircncia eacute uma perspectiva de leitura interessante

Em ldquoIronia e reflexatildeordquo segundo capiacutetulo nota-se que a representaccedilatildeo da melancolia por meio da imagem refletida no espelho mote principal dos estudos de Starobinski comeccedila a ser engendrada em ldquoO Espelhordquo A conexatildeo entre a melanco-lia e o espelho estabelecida nesse poema em prosa publica-do pela primeira vez em 1864 eacute fruto do descontentamento de Baudelaire com o Golpe poliacutetico de Napoleatildeo II que suplantou o governo revolucionaacuterio de 1848 Eacute possiacutevel observar em ldquoO Es-pelhordquo o lamento pela natildeo efetivaccedilatildeo dos ideais emancipatoacuterios da Revoluccedilatildeo de 1848

Um homme eacutepouvantable entre et se regarde dans la glacelaquoPourquoi vous regardez- vous au miroir puis que vous ne pouvez vous y voir qursquoavec deacuteplaisirraquoLrsquohomme eacutepouvantable me reacutepond laquomdashMonsieur drsquoapregraves les immortelsprincipes de 89 tous les hommes sont eacutegaux en droits donc je possegravede le droit deme mirer avec plaisir ou deacuteplaisir cela ne regarde que ma

Franceila de SouzaRodrigues

Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Satildeo Paulo

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

205

conscienceraquoAu nom du bom sens jrsquoavais sans doute raison mais au point de vue de la loiil nrsquoavait past ort1

Outra forma de representaccedilatildeo da melancolia espelha-da pode ser observada em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo Segundo Starobinski esse poema em prosa faria parte de um epiacutelogo inconcluso para ldquoAs Flores do malrdquo A imagem do melancoacutelico diante do espelho exibida em ldquoLrsquoHeacuteautontimoumeacutenosrdquo evidencia uma interioridade ferida Em uma anaacutelise atenta do poema eacute possiacutevel notar a presenccedila da dualidade sadomasoquista Ela seria intriacutenseca agrave melancolia Diante dessa questatildeo Starobinski observa que a interpretaccedilatildeo corrente que associa o masoquis-mo ao gozo conquistado por meio da inflicccedilatildeo de dor estaacute dis-tante da compreensatildeo freudiana para quem o masoquismo tem uma precedecircncia saacutedica Ou seja de acordo com Freud a dor dirigida a si mesmo na verdade eacute fruto de um tormento dirigido a outrem e que recalcado retorna para o ldquoeurdquo como num espelho

Je suis la plaie et le couteauJe sui la soufflet et la joueJe suis les membres et la roueEt la victime et le bourreau2

No terceiro capiacutetulo dedicado agraves figuras inclinadas Sta-robinski analisa o poema ldquoLe Cygnerdquo exemplo mais bem acaba-do de poesia sentimental Nesse momento do texto percebe-se que apoacutes estudar a longa tradiccedilatildeo iconoloacutegica e literaacuteria sobre a melancolia o autor conclui que a exaltaccedilatildeo e o abatimento satildeo duas caracteriacutesticas inerentes ao comportamento do melancoacute-lico A figura inclinada apoiando a cabeccedila numa das matildeos eacute a representaccedilatildeo mais frequente dessa dualidade que pode dar ensejo tanto a tristeza esteacuteril quanto a plenitude do saber

A divisatildeo de ldquoLe Cygnerdquo entre duas figuras icocircnicas o Androcircmaca e o cisne produz um efeito de espelhamento que reforccedila o peso inerente agrave figura inclinada Enquanto o cisne se caracteriza pela loucura e pela posse mon grand cygne o An-drocircmaca remete ao olhar pesaroso em busca do incorpoacutereo e do efecircmero ou ainda a proacutepria imagem refletida no espelho

No entanto uma anaacutelise atenta dos poemas com me-lancolias espelhadas revela o desejo de Baudelaire curar-se do estupor melancoacutelico Na anaacutelise de Starobinski o conceito de ironia desenvolvido pelos romacircnticos eacute fundamental para esse ponto de virada que possibilita a Baudelaire substituir os traccedilos passivos e derrotados do melancoacutelico pela agressividade Sen-1 BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 892 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p108 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 204-206jul-dez 2017

206

do assim a consciecircncia reflexiva possibilita ao melancoacutelico que se encontra dissonante da muacutesica do mundo refletir sobre a perda da totalidade levando-o a um estado de humor capaz de transformar o masoquismo em potecircncia afirmativa condutora do autoconhecimento socraacutetico

Por outro lado como ressalta Starobinski a ironia natildeo oferece uma possibilidade de emancipaccedilatildeo da melancolia Pelo contraacuterio ela eacute consequecircncia dessa desordem O homem me-lancoacutelico estaria condenado ao riso eterno Fenocircmeno que pode ser notado neste excerto de ldquoLe Cygnerdquo

Paris change mais rien dans ma meacutelancolieNrsquoa bougeacutepalais neufs eacutechafaudages blocsVieux faubougs tout pour moi devient alleacutegorieEt mecircs chers souvenirs sont plus lourds que des rocs3

Em ldquoEspelhos derradeirosrdquo uacuteltimo capiacutetulo a figura me-lancoacutelica pesarosa daacute lugar agrave imagem da velha senhora que diante do espelho percebe a passagem do tempo sem perder a altivez Eacute como se estiveacutessemos diante de uma imagem refleti-da no espelho livre da imagem do peso inerente a um ldquoeurdquo que soacute pode brilhar no vazio e na natildeo existecircncia A partir da expres-satildeo da velha senhora diante do espelho eacute possiacutevel refletir sobre a vida que mesmo contraditoacuteria eacute o uacutenico lugar de realizaccedilatildeo das potencialidades humanas Eacute na contradiccedilatildeo inerente agrave rea-lidade que a vida se desdobra Eacute nela que nos realizamos como sujeito e que podemos ser felizes Talvez seja essa a principal liccedilatildeo de Baudelaire

BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE C Le spleen de Paris Paris Eacuteditions de Cluny 1943 p 89

_______ Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles__les_fleurs_du_malpdf

STAROBINSKI J A melancolia diante do espelho Trad Samuel Titan Jr Satildeo Paulo Editora 34 2014

3 BAUDELAIRE C Les Fleurs du Mal Paris Editions Bibebook p121 Disponiacutevel em httpwwwbibebookcomfilesebooklibreV2baudelaire_charles_-_les_fleurs_du_malpdf

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

207

Traduccedilatildeo

Algunos poemas de Rilke Traduccioacuten y Comentaacuterio

La idea de agregar comentarios a algunos de los poemas de esta antologiacutea se debe al propio Rilke quien le pidioacute a su editor que intercalara paacuteginas en blanco en un ejemplar de las Elegiacuteas de Duino y de los Sonetos a Orfeo para escribir en ellas sus explicaciones de los textos maacutes difiacuteciles1 Unas pocas aclara-ciones se encuentran al final de los Sonetos Los comentarios que aquiacute ofrecemos no pretenden sustituir a los que habriacutea po-dido redactar el propio autor Pero obedecen a una indicacioacuten del poeta y con eso adquieren en alguna medida legitimidad En ellos procuramos justificar tambieacuten nuestra traduccioacuten de al-gunos pasajes La seleccioacuten de los poemas aquiacute presentados se debe al azar Son meros ejercicios de traduccioacuten no esta-ban pensados para ser publicados y seguramente deberaacuten ser corregidos muchas veces Esperamos no haber dantildeado dema-siado los poemas al traducirlos Hemos tomado los textos de varias ediciones Rainer Maria Rilke Gedichte Herausgegeben von Silvia Schlenstedt Leipzig Philipp Reclam jun 1979 Rilke Werke (seleccioacuten) Tres tomos Frankfurt Insel 1991 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Gedichte aus den Jahren 1906 bis 1926 Insel Verlag 3ra ed 1978 En cada poema indicamos de manera abreviada el lugar donde puede encontraacuterselo

Archaiumlscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhoumlrtes Hauptdarin die Augenaumlpfel reiften Abersein Torso gluumlht noch wie en Kandelaberin dem sein Schauen nur zuruumlckgeschraubt

sich haumllt und glaumlnzt Sonst koumlnnte nicht der Bugder Brust dich blenden und im leisen Drehender Lenden koumlnnte nicht ein Laumlcheln gehenzu jener Mitte die die Zeugung trug

Sonst stuumlnde dieser Stein entstellt und kurzunter der Schultern durchsichtigem Sturzund flimmerte nicht so wie Raubtierfelle

1 Seguacuten J-F Angelloz ldquoIntroductionrdquo en Rilke Duineser Elegien Die Sonette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943 p 32

Mario Caimi

Professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Uni-versidade de Buenos Aires Doutor em Filosofia pela Uni-versidade de Mainz Alema-nha

mcaimi3yahoocom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

208

und braumlche nicht aus allen seinen Raumlndernaus wie ein Stern denn da ist keine Stelledie dich nicht sieht Du musst dein Leben aumlndern2

No conocimos su cabeza inimaginableen la que estaban los ojos Pero su torso arde todaviacutea como un candelabroen el que su mirada soacutelo retirada hacia adentro

se conserva y brilla Si no fuera asiacute la proadel pecho no podriacutea deslumbrarte ni podriacutea por la suave torsioacuten de la cintura llegar una sonrisahasta aquel punto medio capaz de engendrar

Si no fuera asiacute esta piedra estariacutea mutilada y seriacutea brevebajo el dintel diaacutefano de los hombrosy no brillariacutea como la piel de un animal de presa

ni escapariacutea de todos sus liacutemites la lumbrecomo una estrella pues no hay alliacute ninguacuten lugarque no te vea Debes cambiar tu vida

Muchas de las palabras que aparecen en el texto estaacuten usa-das con sentidos poco frecuentes o con sentidos que soacutelo son posibles en los maacutergenes del campo semaacutentico de cada una de ellas (esto como justificacioacuten de la traduccioacuten un poco arbitraria que sigue) El original estaacute formado por endecasiacutelabos rimados Creo que el tema general del poema es la mirada del dios La mirada que perdida la cabeza se ha refugiado en el torso Al recogerse la mirada dentro del torso todo eacutel queda incandes-cente todo eacutel se transforma en mirada (ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo)

Probablemente sea significativo tambieacuten que se trate de un torso arcaico Eso lo coloca maacutes cerca del origen y por eso maacutes cerca del dios mismo Como si fuera una copia del natural y no una copia de copia Esto le da un caraacutecter divino a todo el objeto Eso parece estar presente tambieacuten en la frase ldquono hay alliacute ninguacuten lugar que no te veardquo

La mirada del dios tiene la propiedad de conocer cada cosa tal como es en siacute misma Por eso quien recibe esa mirada (quien la percibe cuando ella se transluce desde el interior del torso) siente que toda su vida con todos sus secretos ha quedado expuesta y con ello han quedado expuestas todas sus debi-lidades De ahiacute probablemente la frase final ldquoDebes cambiar tu vidardquo El cambio a que aquiacute se hace referencia no es segu-ramente un cambio banal cualquiera sino que debe de ser el cambio que resulta de poner toda la vida ante la mirada de un dios

2 Rainer Maria Rilke Gedichte p 95 Der neuen Gedichte anderer Teil en Rilke Werke Frankfurt 1991 tomo 1 p 313

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

209

Abschied

Wie hab ich das gefuumlhlt was Abschied heisst Wie weiss ichs noch ein dunkles unverwundnesgrausames Etwas das ein Schoumlnverbundnesnoch einmal zeigt und hinhaumllt und zerreisst

Wie war ich ohne Wehr dem zuzuschauendas da es mich mich rufend gehen liesszuruumlckblieb so als waumlrens alle Frauenund dennoch klein und weiss und nichts als dies

Ein Winken schon nicht mehr auf mich bezogenein leise Weiterwinkendes mdash schon kaumerklaumlrbar mehr vielleicht ein Pflaumenbaumvon dem ein Kuckuck hastig abgeflogen3

Cuaacutento sentiacute lo que es la despedidaQueacute bien lo seacute algo oscuro algo invulnerabley cruel que muestra otra vez lo amadoy lo ofrece otra vez y lo desgarra

Queacute inerme estaba yo mientras veiacuteaaquello que llamaacutendome me dejaba iry se quedaba Como si aquello fuera todas las mujeresY sin embargo era algo pequentildeo y blanco [y no era nada maacutes que esto

El agitarse de un pantildeuelo que ya no se referiacutea a miacuteUn suave agitarse del pantildeuelo que seguiacutea ya apenasreconocible quizaacute un ciruelodel que habiacutea salido volando de suacutebito un cuclillo

No fue posible traducir todas las palabras Se trata supon-go de formaciones expresivas que no tienen equivalente en espantildeol En especial ldquolo amadordquo del verso 3 es traduccioacuten apro-ximada de ldquoein Schoumlnverbundnesrdquo ldquolo bellamente aliadordquo ldquolo aliado en la bellezardquo El Adioacutes (la despedida) se muestra cosi-ficado aquiacute como algo (escrito con mayuacutescula en el original ldquoAlgordquo para subrayarlo) capaz de ser sujeto de acciones como mostrar ofrecer desgarrar El Adioacutes se presenta primero en el primer cuarteto de una manera general casi como si se pre-sentara una definicioacuten de eacutel De ahiacute el tiempo presente de los verbos con los que se lo describe

En el segundo cuarteto los verbos estaacuten en tiempo verbal pre-teacuterito y sirven para relatar una experiencia concreta (que fue de donde se extrajo probablemente el conocimiento que permitioacute

3 Neue Gedichte (1907) En Rilke Werke Frankfurt Insel 1991 p 273

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

210

la definicioacuten general de la estrofa primera) En los dos uacuteltimos versos el pantildeuelo que se agita en el adioacutes es ya indistinguibleYa no se sabe si es un pantildeuelo o si son flores de un aacuterbol movidas por el suacutebito vuelo de un paacutejaro Asiacute es como la memoria evoca algunas imaacutegenes que de tan remotas se han vuelto confusas El pantildeuelo y su adioacutes comienzan a perderse en el pasado

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens

Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens Siehe wie klein dortsiehe die letzte Ortschaft der Worte und houmlheraber wie klein auch noch ein letztesGehoumlft von Gefuumlhl Erkennst dursquosAusgesetzt auf den Bergen des Herzens Steingrundunter den Haumlnden Hier bluumlht wohleiniges auf aus stummem Absturzbluumlht ein unwissendes Kraut singend hervorAber der Wissende Ach der zu wissen begannund schweigt nun ausgesetzt auf den Bergen des HerzensDa geht wohl heilen Bewusstseinsmanches umher manches gesicherte Bergtierwechselt und weilt Und der grosse geborgene Vogelkreist um der Gipfel reine Verweigerung mdash Aberungeborgen hier auf den Bergen des Herzens4

Expuesto sobre los montes del corazoacuten Mira queacute pequentildeo [allaacute

mira el uacuteltimo caseriacuteo de las palabras y maacutes arriba- pero queacute pequentildea tambieacuten - una uacuteltimagranja del sentimiento iquestAlcanzas a verlaExpuesto sobre los montes del corazoacuten Suelo de piedrabajo las manos Aquiacute tambieacuten brotaraacute seguramentealgo del abismo mudobrota cantando una hierba inocenteiquestPero el que sabe Ay el que comenzoacute a sabery ahora calla expuesto sobre los montes del corazoacutenPor ahiacute andaraacute quizaacute con la conciencia intactamaacutes de una cosa maacutes de un animal de la montantildea que estaacute seguro cambia y permanece Y el gran paacutejaro amparadoda vueltas en torno de la pura negacioacuten de las cumbres -

[Perodesamparado aquiacute sobre los montes del corazoacuten

Este poema parece un comentario y una prolongacioacuten de un texto de Goethe ldquoUumlber den Granitrdquo (ldquoSobre o Granitordquo)5 Alliacute Go-ethe ldquosentado en una alta y desnuda cumbrerdquo indica que el 4 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 895 Goethe J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

211

granito es el fundamento primero de la materia terrestre algo que no deriva de otra cosa ni del fuego ni del agua como las demaacutes rocas sino que sirve de principio del que las otras rocas derivan El granito es ldquoel fundamento de nuestra tierra sobre el cual se han formado todas las demaacutes montantildeasrdquo (ldquodie Grund-feste unserer Erde [] worauf sich alle uumlbrigen mannigfaltigen Gebirge hinaufgebildetrdquo) Forma dice Goethe ldquola entrantildea mis-ma de la tierrardquo (ldquoIn den innersten Eingeweiden der Erde ruht sie unerschuumlttertrdquo)

Los primeros cuatro versos son claros se dejan atraacutes las ca-sas de las palabras y uno queda como desnudo expuesto en lo que ya es puro corazoacuten sin palabras maacutes allaacute incluso de los sentimientos (quizaacute porque eacutestos todaviacutea pueden nombrarse) Este puro corazoacuten no es puro sentimentalismo sino algo que estaacute maacutes alto que los sentimientos Es algo que estaacute fundado en la roca viva (como lo dicen los versos quinto y sexto ldquoSuelo de piedra bajo las manosrdquo) Aquiacute se llega a lo que es fundamento uacuteltimo de todo lo demaacutes Es algo maacutes alto que las palabras e incluso maacutes alto que sentimiento Palabras y sentimiento des-cansan sin saberlo en esta roca viva

(Cf Goethe ldquoHier ruhst du unmittelbar auf einem Grunde der bis zu den tiefsten Orten der Erde hinreicht keine neuere Schicht keine aufgehaumlufte zusammengeschwemmte Truumlmmer haben sich zwischen dich und den festen Boden der Urwelt ge-legtrdquo Trad ldquoAquiacute descansas inmediatamente sobre un funda-mento que llega hasta los maacutes profundos lugares de la tierra ninguacuten estrato nuevo ninguna acumulacioacuten de escombros traiacute-dos por el agua se interponen entre tiacute y el firme suelo del mundo originariordquo)

Goethe niega toda vida a esta cumbre diese Gipfel haben ni-chts Lebendiges erzeugt [] sie sind vor allem Leben und uumlber alles Leben (ldquoEstas cumbres no han engendrado nada viviente [] son previas a toda vida y estaacuten por encima de toda vidardquo) En esto Rilke disiente de eacutel Aun alliacute en la roca viva y en el abismo mudo primordial brota una vida misteriosa Algo primi-tivo de una inocencia elemental Y lo primitivo lleva en siacute ale-griacutea (o al menos canto) ldquodel abismo mudo brota cantando una hierba inocenterdquo Para tener esa alegriacutea primitiva hay que ser inocente en el doble sentido de libre de pecado y de insciente o inconsciente La hierba estaacute afincada confiadamente en el abis-mo porque no es consciente de la profundidad de eacuteste ni del peligro A ella se contrapone ldquoel que saberdquo (que es lo contrario del inocente)

iquestQuieacuten o queacute es ldquoel que saberdquo Es el que tiene conciencia el que puede contemplar y ver con conciencia el poeta mismo Tal vez esteacute representado por el ldquogran paacutejarordquo mencionado a continuacioacuten Este puede sobrevolarlo todo y seguir estando se-guro Pero eacutel mismo se vuelve inseguro o desamparado cuan-hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981 paacuteg 254 y siguientes

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

212

do alcanza esa altura maacutexima la de los montes del corazoacuten Alliacute queda eacutel tambieacuten expuesto Creo que tambieacuten nos ayuda aquiacute el texto de Goethe So einsam sage ich zu mir selber [] wird es dem Menschen zumute der nur den aumlltsten ersten tiefsten Gefuumlhlen der Wahrheit seine Seele eroumlffnen will [] Ich fuumlhle die ersten festesten Anfaumlnge unsers Daseins ich uumlberschaue die Welt ihre schrofferen und gelinderen Taumller und ihre fernen fruchtbaren Weiden meine Seele wird uumlber sich selbst und uumlber alles erhaben und sehnt sich nach dem naumlhern Himmel (ldquoAsiacute de solitario me digo a miacute mismo [] se siente el ser humano que quiere abrir su alma soacutelo a los maacutes antiguos primeros maacutes pro-fundos sentimientos de la verdad [] Siento los primeros y maacutes firmes fundamentos de nuestra existencia contemplo el mundo sus valles empinados o suaves y sus lejanas praderas feacutertiles mi alma se eleva sobre siacute misma y sobre todas las cosas y anhela el cielo cercanordquo)

Lo extraordinario lo verdaderamente novedoso es la trans-mutacioacuten que opera Rilke del fundamento graniacutetico en un mon-te de corazoacuten Ya el mismo Goethe pone en relacioacuten esta piedra duriacutesima e inmutable con el corazoacuten humano vulnerable y ver-saacutetil Precisamente esa oposicioacuten parece vincularlos ldquoIch fuumlrch-te den Vorwurf nicht daszlig es ein Geist des Widerspruches sein muumlsse der mich von Betrachtung und Schilderung des mens-chlichen Herzens des juumlngsten mannigfaltigsten beweglichs-ten veraumlnderlichsten erschuumltterlichsten Teiles der Schoumlpfung zu der Beobachtung des aumlltesten festesten tiefsten unerschuumlt-terlichsten Sohnes der Natur gefuumlhrt hat Denn man wird mir gerne zugeben daszlig alle natuumlrlichen Dinge in einem genauen Zusammenhange stehenrdquo (ldquoNo temo a la objecioacuten de que sea un espiacuteritu de contradiccioacuten el que me lleva de la consideracioacuten y descripcioacuten del corazoacuten humano la parte maacutes nueva maacutes muacutelti-ple maacutes moacutevil maacutes mudable y maacutes conmovible de la Creacioacuten a la observacioacuten de la criatura maacutes antigua maacutes soacutelida maacutes profunda y maacutes inconmovible de la naturaleza Pues se me con-cederaacute faacutecilmente que todas las cosas de la naturaleza estaacuten en una correspondencia exactardquo)

Pero Rilke no establece soacutelo una relacioacuten por contraste sino que opera una transmutacioacuten Si uno fuera capaz de entender el mecanismo de esa operacioacuten entenderiacutea lo que es la poesiacutea y lo que es el don poeacutetico Alliacute donde Goethe veiacutea con razoacuten una correspondencia de los opuestos da Rilke un paso maacutes y muestra que lo que verdaderamente constituye el fundamento uacuteltimo lo que estaacute maacutes allaacute de las palabras y de los sentimien-tos lo que es el principio del que todo deriva y que no deriva a su vez de otra cosa es el corazoacuten La montantildea de granito se ha convertido en el monte del corazoacuten y las relaciones del sujeto expuesto con el suelo primigenio que lo sostiene se mantienen las mismas tanto en el caso de estar sobre una montantildea en la que aflora el fundamento graniacutetico como en el caso de estar expuesto sobre un monte en el que aflora la fuente misma de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

213

la vida y de la sensibilidad Ahora se ve queacute es lo que haciacutea que aquel fundamento de granito fuera un fundamento (y no un simple suelo) era su analogiacutea con el verdadero fundamento la fuente de la vida que es el corazoacuten Habriacutea que trabajar maacutes en la interpretacioacuten para ver queacute es exactamente ese corazoacuten Uno piensa naturalmente en Pascal y sus razones del corazoacuten Y la evocacioacuten de Pascal no es desencaminada tambieacuten en eacutel se oponen el granito cognoscible con el esprit de geometrie y el corazoacuten cuyos principios son accesibles soacutelo con el esprit de finesse

Wir sind nur Mund

Wir sind nur Mund Wer singt das ferne Herzdas heil inmitten aller Dinge weiltSein grosser Schlag ist in uns eingeteiltin kleine Schlaumlge Und sein grosser Schmerzist wie sein grosser Jubel uns zu grossSo reissen wir uns immer wieder losund sind nur Mund Aber auf einmal bricht der grosse Herzschlag heimlich in uns einso dass wir schreinmdash und sind dann Wesen Wandlung und Gesicht6

Somos soacutelo boca iquestQuieacuten canta al corazoacuten lejanoque permanece intacto en medio de todas las cosasSu gran latido estaacute repartido entre nosotrosen latidos pequentildeos Y su gran dolory su gran juacutebilo son demasiado grandes para nosotrosPor eso nos soltamos [de eacutel] una y otra vezy somos soacutelo boca Pero a veces en secreto irrumpe en nosotros el gran latidoy entonces gritamosy entonces somos esencia mutacioacuten y rostro

Parece un eco o una reminiscencia de Spinoza en el centro de todas las cosas intocado por ellas y daacutendoles vida a todas estaacute el gran corazoacuten (lo que Spinoza llamariacutea la esencia actuosa de la substancia el Ser que es activo que ejerce su potencia infinita daacutendoles ser a infinitas cosas) La esencia en la que todo es estaacute repartida se expresa en el pequentildeo y limitado esfuerzo con el que cada cosa singular trata de perseverar en el ser Nosotros en nuestra pequentildeez (es decir cuando esta-mos separados de esa Esencia cuando nos hemos soltado o arrancado de ella y nos quedamos en nuestra singularidad) la expresamos la decimos somos soacutelo bocas que la nombran

Pero a veces percibimos que aunque seamos cosas sin-6 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens 1978 p 136

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

214

gulares y limitadas somos parte de aquel Ser uacutenico y divino Y entonces somos verdaderamente lo que somos modos y afec-ciones de la Substancia uacutenica Pero entonces gritamos porque lo inmenso se apodera de nosotros y nos volcamos hacia ello

Ach nicht getrennt sein

Ach nicht getrennt seinnicht durch so wenig Wandungausgeschlossen vom Sternen-MassInnres was istsWenn nicht gesteigerter Himmeldurchworfen mit Voumlgeln und tiefvon Winden der Heimkehr7

Oh no estar separadono estar excluiacutedo por una pared tan delgadade la medida de las estrellasLo interior iquestqueacute esSi no es el cielo ahondadosurcado de paacutejaros y profundode los vientos del retorno a casa

La pared delgada viene a ser probablemente la piel las pa-redes de la caja toraacutecica lo que separa el interior humano del espacio inmenso de las estrellas Y sin embargo esa pared in-significante es lo que hace posible que haya un interior iquestQueacute es el interior iquestQueacute es lo que queda separado lo que existe con-trapuesto al mundo externo contrapuesto al mundo inmenso de las estrellas Es algo significativo justo por esa contraposicioacuten como si fuese algo capaz de igualar al universo estelar o de ser-virle de contrapeso Despueacutes leiacute en el Brockhaus que Rilke ha-biacutea empleado en otras partes el concepto de Weltinnenraum que Eduardo Garciacutea Belsunce tradujo bien por ldquoespacio coacutesmi-co interiorrdquo Aquiacute en este poema eso parece ser un espacio que se opone al infinito espacio coacutesmico pero que se le opone como un igual Lo interior es tambieacuten cielo pero cielo maacutes hondo cielo ahondado Y no es cielo soacutelo astronoacutemico no es espacio soacutelo geomeacutetrico sino viviente surcado de paacutejaros

En este espacio interior hay sobre todo algo que no estaacute en el espacio de las estrellas la casa el retorno a casa No hay casa en el espacio de las estrellas Todo es igual en ese espa-cio un lugar es igual a otro cualquiera En cambio en el espacio humano en ese espacio interior hay un centro o por lo menos hay un lugar que es diferente de todos los otros la casa Es la casa de cada cual y por tanto es diferente para cada uno Sin embargo por diferentes que sean las diversas casas en todos los humanos estaacute ese lugar privilegiado esa especie de centro de la intimidad Eso es lo que le da al espacio interior cierta 7 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 172

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

215

superioridad cualitativa ante el espacio infinito externo (ante el espantoso ldquosilencio eterno del espacio infinitordquo de Pascal)

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist alles

Solang du Selbsgeworfnes faumlngst ist allesGeschicklichkeit und laumlsslicher Gewinn mdasherst wenn du ploumltzlich Faumlnger wirst des Ballesden eine ewige Mit-Spielerindir zuwarf deiner Mitte in genaugekonntem Schwung in einem jener Boumlgenaus Gottes grossem Bruumlcken-Bauerst dann ist Fangen-Koumlnnen ein Vermoumlgen mdashnicht deines einer Welt Und wenn du garzuruumlckzuwerfen Kraft und Mut besaumlssest nein wunderbarer Mut und Kraft vergaumlssestund schon geworfen haumlttest (wie das Jahrdie Voumlgel wirft die Wandervogelschwaumlrmedie eine aumlltre einer jungen Waumlrme hinuumlbershleudert uumlber Meere mdash) erstin diesem Wagnis spielst du guumlltig mit Erleichterst dir den Wurf nicht mehr erschwerstdir ihn nicht mehr Aus deinen Haumlnden trittdas Meteor und rast in seine Raumlume8

Mientras atrapes lo que tuacute mismo has arrojado todo eshabilidad y ganancia faacutecilSoacutelo cuando de repente eres el que atrapa una pelotaque te arrojoacute que lanzoacute al medio de tiuna jugadora eternacon impulso exactamente logrado en uno de aquellos girosde los de Dios cuando construye sus grandes puentessoacutelo entonces la habilidad de atrapar es una facultadmdashno tuya sino de un mundomdash Y si llegaras a poseerla fuerza y el coraje de devolver el tirono maacutes maravilloso auacuten si olvidaras el coraje y la fuerzay ya hubieras lanzado (como el antildeolanza los paacutejaros las bandadas de paacutejaros migrantesque un calor maacutes viejo le lanza a otro maacutes jovenpor encima de los mares) soacutelo cuando tienes ese arrojoparticipas en el juego de manera vaacutelidaYa no te haces faacutecil el tiro ya no te lo haces difiacutecilDe tus manos sale el meteoroy corre veloz por sus espacios

Creo que se trata de una reflexioacuten sobre la creacioacuten litera-ria Como si dijera ldquomientras intentes expresar lo que estaacute en ti mientras soacutelo trates de expresar las ideas que se te ocurren todo seraacute comparativamente faacutecilrdquo Esa poesiacutea que soacutelo expresa

8 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 124

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

216

a su autor estaacute al servicio de eacuteste Con respecto a ella dijo una vez un escritor colombiano Fernando Vallejo que ldquola poesiacutea es uno de los males de nuestro tiempordquo Todos tenemos algo que podriacutea ser expresado pero que difiacutecilmente les interese a los lectores porque ellos a su vez tienen tambieacuten cosas propias para expresar cosas que aunque no las expresen les intere-san maacutes Porque a cada cual le interesa en primer lugar y muy justificadamente lo suyo

Pero hay una obra que no es mera expresioacuten del autor (si en ella hay tal expresioacuten del autor es soacutelo como un momento secundario y accesorio) Esa poesiacutea es ante todo respuesta a una solicitacioacuten o a un desafiacuteo de origen divino (a un enviacuteo de la ldquojugadora eternardquo) El autor es entonces soacutelo un momento un segmento de un arco inmenso de los que traza Dios en su disentildeo del mundo Y eso es maacutes maravilloso auacuten si la respues-ta la devolucioacuten del tiro no es premeditada sino que obedece ella tambieacuten a la ciega necesidad de la esencia del autor como una respuesta inevitable e impensada La obra sale del autor (en ese caso ideal) como salen del otontildeo las bandadas de paacuteja-ros migratorios El autor entonces participa de un juego divino Participa de manera vaacutelida en el inmenso juego (que en realidad exige fuerzas muy superiores a las de un individuo singular) El poema (ese poema asiacute nacido) es entonces un cuerpo celeste que por derecho propio (como un elemento maacutes del disentildeo di-vino del mundo) ldquocorre veloz por los espaciosrdquo Lo mismo que se aplica aquiacute a la creacioacuten literaria podriacutea aplicarse al pensa-miento filosoacutefico

Jetzt waumlre es Zeit

Jetzt waumlr es Zeit dass Goumltter traumlten ausbewohnten Dingen Und dass sie jede Wand in meinem Haus umschluumlgen Neue Seite Nur der Windden solches Blatt im Wenden wuumlrfe reichte hindie Luft wie eine Scholle umzuschaufeln ein neues Atemfeld Oh Goumltter GoumltterIhr Oftgekommnen Schlaumlfer in den Dingendie heiter aufstehn die sich an den Brunnendie wir vermuten Hals und Antlitz waschenund die ihr Ausgeruhtsein leicht hinzutunzu dem was voll scheint unserm vollen LebenNoch einmal sei es euer Morgen Goumltter Wir wiederholen Ihr allein seid UrsprungDie Welt steht auf mit euch und Anfang glaumlnztan allen Bruchstelln unseres Misslingens9

Ya seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitan

9 Rainer Maria Rilke Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens p 173

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

217

Y de que derribaran cada pared de mi casa Nueva paacutegina Ya soacutelo el viento que esa paacutegina levantariacutea al volversealcanzariacutea para dar vuelta el airecomo el arado remueve la tierraun nuevo campo de respiracioacuten iexclOh dioses diosesVosotros visitantes frecuentes que duermen en las cosasque se levantan alegres que en fuentesque nosotros sospechamos se lavan el cuello y el rostroy que con ligereza antildeaden su descanso renovadoa aquello que pareciacutea completo a nuestra vida plenaQue otra vez sea vuestra mantildeana diosesNosotros repetimos Soacutelo vosotros sois origenEl mundo se levanta con vosotros y el comienzo relumbraen todas las roturas de nuestros fracasos

Creo que lo que figura como versos primero y segundo es en realidad un solo verso de medida mucho mayor que los demaacutes ldquoYa seriacutea tiempo de que los dioses salieran de las cosas en que habitanrdquo Ese primer verso del poema expresa con su oleada riacutetmica arrebatadora precisamente el viento gigante del que se habla en los versos siguientes Se anhela un viento de cambio que renueve todo Y esa inmensa renovacioacuten no seriacutea maacutes que una consecuencia del despertar de los dioses

Los dioses habitan en las cosas Hay en las cosas un nuacutecleo una dimensioacuten que no es de meras cosas inertes sino de algo divino Se ha dicho de muchas maneras la presencia de dioses en las cosas Ya sea que habiten verdaderamente en ellas como almas de las cosas (ldquoTodo estaacute lleno de diosesrdquo) ya sea que cada cosa sea la expresioacuten finita y limitada de la infinita potencia del ser de Dios ya sea que los dioses esteacuten presentes en cada cosa al crearla continuamente y conservarla en el ser (Spinoza Ethices pars secunda Propositio XLV Unaquaeque cuiuscum-que corporis vel rei singularis actu existentis idea Dei aeternam et infinitam essentiam necessario involvit)

Lo nuevo aquiacute el acontecimiento es el despertar de los dio-ses su salida de las cosas en las que habitan Con toda na-turalidad se produce ese despertar porque lo verdaderamente natural es la presencia de los dioses en las cosas Hay hasta detalles prosaicos los dioses se lavan ldquoel cuello y el rostrordquo No es una aparicioacuten solemne la de ellos sino que tiene ldquoligerezardquo Somos nosotros los que al medir todo por nuestro tiempo y por nuestra memoria encontramos extraordinaria esa presencia de los dioses y esa manifestacioacuten de ellos Para la verdadera ma-nera de ser de las cosas no hay nada maacutes natural que esa pre-sencia y el despertar estaacute dentro de lo normal para el tiempo de los dioses

Los dioses parecen ingenuos alegres y despreocupados No-sotros apenas sospechamos las fuentes en que ellos se lavan y se refrescan Cuando ellos aparecen descansados y alegres advertimos que faltaba algo al mundo nuestro que creiacuteamos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

218

completo Advertimos que no haciacuteamos maacutes que repetir una pauta o rutina que alguna vez nos fue dada como nueva Ahora con la renovacioacuten y el aire nuevo vuelve el origen lo origina-rio u original el inicio lo que es absolutamente nuevo Este es el verso central del poema ldquoNosotros repetimos soacutelo vosotros sois comienzordquo

Por maacutes naturalidad que expresen los dioses en su desper-tar por maacutes que ellos no se sorprendan de eacutel ni lo encuentren extraordinario no deja de ser un comienzo absoluto todo lo que ellos hacen Cada accioacuten de ellos es creacioacuten Ellos son origen En eso consisten su ingenuidad y su despreocupacioacuten Por eso tambieacuten nuestro ser gastado resulta renovado por su presencia De lo roto mana la luz de un nuevo comienzo

Bangnis

Im welken Walde ist ein Vogelrufder sinnlos scheint in diesem welken WaldeUnd dennoch ruht der runde Vogelrufin dieser Weile die ihn schufbreit wie ein Himmel auf dem welken WaldeGefuumlgig raumlumt sich alles in den SchreiDas ganze Land scheint lautlos drin zu liegender grosse Wind scheint sich hineinzuschmiegenund die Minute welche weiter willist bleich und still als ob sie Dinge wuumlsstean denen jeder sterben muumlssteaus ihm herausgestiegen10

Desasosiego

En el bosque mustio resuena el llamado de un paacutejaroun llamado que parece no tener sentido en este bosque marchitoY sin embargo el rotundo llamado del paacutejaroen este momento que lo hizo nacerdescansa amplio como un cielo sobre el bosque mustioDoacutecilmente se acomoda todo en el gritoTodo el campo parece yacer en eacutel en silencio el gran viento parece refugiarse en eacutely el minuto que quiere seguir su caminoestaacute paacutelido y silencioso como si supiera que de ese llamado bajan

[cosasque podriacutean llevar a cualquiera a la muerte

10 Rilke Das Buch der Bilder des ersten Buches zweiter Teil En Rilke Werke tomo 1 p 152

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 207-219jul-dez 2017

219

BIBLIOGRAFIA

ANGELLOZ J-F ldquoIntroductionrdquoIn Duineser Elegien Die So-nette an Orpheus Les eacuteleacutegies de Duino Les sonnets a Orpheacutee Traduits et preacutefaceacutes par J-F Angelloz Paris Aubier Montaigne 1943

GOETHE J W v Goethes Werke Hamburger Ausgabe in 14 Baumlnden Hg Von E Trunz Band 13 Naturwissenschaftliche Schriften I Muumlnchen 1981

RILKE Rainer Maria Ausgesetzt auf den Bergen des Herzens In RILKE Rainer Maria Saumlmtliche Werke hg vom Rilke-Archiv in Verbindung mit Ruth Sieber-Rilke besorgt durch Ernst Zinn FrankfurtMain 1976

__________________ Das Buch der Bilder des ersten Bu-ches zweiter Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Gedichte Der neuen Gedichte ande-rer Teil In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

__________________ Neue Gedichte (1907)rdquo In Werke Frankfurt Insel Verlag 1991

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

220

Traduccedilatildeo

A Canccedilatildeo de outono de Paul Verlaine

Ineacutedito quando foi publicado em 1867 Canccedilatildeo de outono um dos poemas mais famosos1 de Paul Verlaine eacute o quinto da se-ccedilatildeo ldquoPaisagens tristesrdquo dos Poemas saturninos2 primeiro livro do autor O tiacutetulo da recolha eacute o que exprime com mais verdade concisatildeo e elegacircncia a proacutepria essecircncia do temperamento e da esteacutetica do poeta No plano iacutentimo Verlaine se julga marcado pelo selo original do infortuacutenio e da incapacidade de viver e atri-bui sua sina de eterno perdedor e de maldito agrave influecircncia do planeta Saturno considerado maleacutefico na tradiccedilatildeo esoteacuterica3 E eacute isso que a sua escritura no que ela tem de mais original tenta dizer pela recusa da eloquecircncia pela meacutetrica breve e sobretu-do pela busca constante de uma musicalidade do modo menor ldquoa muacutesica antes de tudordquo como ele diraacute na sua Arte poeacutetica4

A Canccedilatildeo de outono sugere a paisagem em vez de descre-vecirc-la esboccedila-a em vez de pintaacute-la Eacute um poema da sensaccedilatildeo do natildeo-dito do inexprimiacutevel das nuanccedilas em que o efecircmero convive com o indefinido em que os contornos se diluem na bruma das laacutegrimas e a paisagem real se apaga para dar lugar ao reflexo torturado de uma consciecircncia atormentada e indeci-sa Aqui o outono natildeo eacute a estaccedilatildeo do ano com as suas conota-ccedilotildees positivas as colheitas e o brilho das cores da natureza Eacute na verdade um fim melancoacutelico agonizante como uma morte No poema Verlaine tenta exorcizar pela muacutesica a inquietude da sua alma mas nele a tristeza eacute precisa saudade do passa-do inquietaccedilatildeo por sentir-se transportado por um ldquoar ruimrdquo sem renatamparreiracordeirogmailcom

1 Natildeo apenas pelo seu valor literaacuterio mas tambeacutem porque a Raacutedio Londres utilizou a primeira estrofe ligeiramente modificada em 5 de junho de 1944 agraves 21 horas e 15 minutos para avisar agrave rede de resistecircncia Ventri-loquista que o desembarque na Normandia iria ocorrer nas horas seguintes Parece que o exeacutercito alematildeo conseguiu decodificar a mensagem embora natildeo a tenha usado a seu favor As duas primeiras estrofes estatildeo gravadas no anverso da moeda de 2 euros comemorativa do aniversaacuterio de 70 anos do dito desembarque em 6 de junho de 19442 VERLAINE P Poegravemes saturniens suivi de Fecirctes galantes Paris LDP sd3 ldquoEacute ridiacuteculo o riso e assim decepcionanteAquela explicaccedilatildeo do misteacute-rio noturno Os que nasceram sob o signo de SATURNO Planeta fero fulvo e caro aos necromantes Segundo os manuais de bruxaria dacuteantes Tecircm um grande quinhatildeo de infortuacutenios e bilerdquo O primeiro dos Poemas saturninos (Traduccedilatildeo de Renata Cordeiro)4 VERLAINE P Jadis et naguegravere Paris LDP 2009

Renata Cordeiro

Tradutora profissional pre-miada pelo FNLIJ dos idio-mas francecircs inglecircs caste-lhano alematildeo e italiano para o portuguecircs Organizou e traduziu antologias de poe-mas franceses e de sonetos de Wiliam Shakespeare

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

221

poder reagir ldquoE eu vou-me assimrdquo natildeo significa ldquoeu partordquo mas ldquoeu me deixo irrdquo para onde o vento me leva deixo-me levar pela corrente pelo ldquoar ruimrdquo que me transporta A fatalidade eacute um tema caro a Verlaine porque Saturno o planeta mau natildeo lhe daacute treacutegua e o impede de ser feliz O ritmo do poema traduz esse sentimento complexo feito de anguacutestia e de abandono pelo jogo delicado de versos de quatro e de trecircs siacutelabas Esses metros curtos datildeo agrave rima que volta a intervalos regulares ressonacircncias particularmente sugestivas Neste caso o verso natildeo eacute soacute um conjunto de palavras providas de uma sintaxe e de um sentido mas tambeacutem o agrupamento de sons escolhidos para encantar o ouvido Verlaine revela possibilidades musicais do verso ateacute entatildeo ineacuteditas Privilegia as assonacircncias repeticcedilotildees de vogais as aliteraccedilotildees repeticcedilotildees de consoantes para repartir os ecos focircnicos dentro dos versos em relaccedilatildeo agraves rimas finais que se dividem estritamente em todas as estrofes em masculinas e femininas (AAbCCb) O ritmo 443 adotado por Verlaine eacute proacute-prio da canccedilatildeo e confere originalidade ao poema

Chanson dacuteautomne

Les sanglots longsDes violonsDe lacuteautomneBlessent mon coeurDacuteune langueurMonotone

Tout suffocantEt blecircme quandSonne lacuteheureJe me souviens Des jours anciensEt je pleure

Et je macuteen vaisAu vent mauvaisQui macuteemporteDeccedilagrave delagravePareil agrave laFeuille morte

Anaacutelise formal

O poema eacute composto de trecircs estrofes de seis versos cada qual Em cada uma os versos 1 2 4 e 5 tecircm quatro siacutelabas e os versos 3 e 6 trecircs siacutelabas meacutetricas As rimas obedecem ao

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

222

esquema AAbCCb sendo rimas masculinas (agudas) as maiuacutes-culas e femininas (graves) as minuacutesculas

O ritmo de cada estrofe eacute o seguinte

- - - (4)- - - (4)- - - (3)- - - (4)- - - (4)- - - (3)

No esquema acima as barras obliacutequas representam as siacute-labas fortes aqui cada trecircs versos formam um verso de onze siacutelabas meacutetricas integrado num ritmo maior

- - - - - - - - - (11)

- - - - - - - - - (11)

E o poema na leitura fica assim

Les sanglots longs de violons de lacuteautomneBlessent mon coeur dacuteune langueur monotoneTout suffocant et blecircme quand sonne lacuteheureJe me souviens des jours anciens et je pleureEt je macuteen vais au vent mauvais qui macuteemporteDecagrave delagrave pareil agrave la feuille morte

Para conseguir formar em cada estrofe dois versos hendecas-siacutelabos resultando ao todo em seis Verlaine obedece agrave alter-nacircncia de rimas masculinas e femininas praticada pela poesia francesa desde a Idade Meacutedia e que se consolidou a partir do seacuteculo XVI Nenhuma traduccedilatildeo nesse caso especiacutefico que natildeo observe essa alternacircncia conseguiraacute produzir na liacutengua recep-tora seis versos de onze siacutelabas com tocircnicas 4-8-11 sempre5 Aleacutem disso se eacute uma canccedilatildeo deduz-se que eacute para cantar6 Por-5 ldquo a fidelidade retoacuterico-formal natildeo vale por ser uma norma externa a ser aplicada mecanicamente ao texto de poesia Ela vale sim enquanto se prende a manifestaccedilotildees externas a manifestaccedilotildees textuais da significacircncia condicionando o leitor para uma leitura inclinada em determinada direccedilatildeo em determinado sentido Ela implica fatores socioculturais e linguiacutestico-estru-turais cujo conhecimento e exame ponderado deve determinar no sujeito-tra-dutor a escolha de uma reescritura mais proacutexima do moacutedulo original ou mais condizente com os usos poeacuteticos da linguagem receptorardquo LARANJEIRA M Poeacutetica da traduccedilatildeo Satildeo Paulo Edusp 19936 Por seu caraacuteter predominantemente musical Reynaldo Hahn jaacute no seacuteculo XIX fez uma composiccedilatildeo a partir do poema para piano e voz HAHN R VERLAINE P Chansons grises Paris Au Meacutenestrel 1891-1892 E no

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

223

tanto o ritmo resultante aqui tambeacutem dessa alternacircncia7 que confere originalidade ao poema deveraacute ser mantido e caberaacute a quem traduz em que pesem as dificuldades produzir um texto homoacutelogo ao original que provoque um impacto emocional e esteacutetico no leitor da liacutengua de chegada semelhante ao causado pelo texto original no leitor da liacutengua de partida

Propotildeem-se algumas traduccedilotildees para mostrar que esse traba-lho embora difiacutecil eacute possiacutevel

Canccedilatildeo de outono

Ferem-me os aisDos outonaisViolinosO coraccedilatildeoCom a inaccedilatildeoDos seus trinos

E quando daacuteTal hora jaacuteRememoroSem cor sem arDias sem parE entatildeo choro

E eu vou-me assimNo ar que ruimMe transportaPra caacute pra laacuteTal e qual aFolha morta

Ferem-me os ais dos outonais violinosO coraccedilatildeo com a inaccedilatildeo dos seus trinos

seacuteculo XX na deacutecada de 1940 foi a vez de Charles Trenet fazer a sua can-ccedilatildeo em que substituiu o verbo na terceira pessoa do presente do indicativo blessentferem por bercentembalam Jaacute Georges Brassens quando reto-mou a canccedilatildeo de Trenet manteve o poema no original Essa tambeacutem foi a atitude de Leacuteo Ferreacute embora no DVD ao vivo ldquoLeacuteo Ferreacute canta os poetasrdquo ele diga bercent na primeira vez mas blessent quando retoma o final Haacute vaacuterias gravaccedilotildees no Youtube de vaacuterios inteacuterpretes tanto da composiccedilatildeo de Hahn quanto da canccedilatildeo de Trenet e de outras em geral baseadas na de Trenet7 Em nenhuma das vinte traduccedilotildees do poema encontradas na Inter-net essa alternacircncia de rimas eacute obedecida Seguem os links httpformasfixasblogspotcombr201507paul-verlaine-1844-1896html (Acesso 03122017)httpmiscelaneadoorejanablogspotcombr201310chanson-d-automne-paul-verlaine-1844html (Acesso 03122017)httpculturafmcmaiscombrradiometropolislavrapaul-verlaine-cancao-deoutono (Acesso 03122017)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

224

E quando daacute tal hora jaacute rememoroSem cor sem ar dias sem par e entatildeo choroE eu vou-me assim no ar que ruim me transportaPra caacute pra laacute tal e qual a folha morta

Canccedilatildeo de outono

Cravam punhaisCom longos aisQue datildeo sonoDentro de mimOs bandolinsDesse outono

E quando jaacuteSem cor e ar daacuteO momentoDias me vecircmIdos poreacutemE eu lamento

E eu vou ao leacuteuAo ar cruelQue me enxotaDe caacute de laacuteSemelhante agraveFolha rota

Cravam punhais com longos ais que datildeo sonoDentro de mim os bandolins desse outonoE quando jaacute sem cor e ar daacute o momentoDias me vecircm idos poreacutem e eu lamentoE eu vou ao leacuteu ao ar cruel que me enxotaDe caacute de laacute semelhante agrave folha rota

Canccedilatildeo de outono

Causam-me dorCom um langorMorrediccediloOs violotildeesE os seus bordotildeesOutoniccedilos

E quando semCor sem ar vecircmTantos tantosDias natildeo mais

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 220-225jul-dez 2017

225

Do tempo atraacutesCaio aos prantos

E eu sigo a errarAo malvado arQue me arrastaPra caacute pra laacuteSemelhante agraveFolha gasta

Causam-me dor com um langor morrediccediloOs violotildees e os seus bordotildees outoniccedilosE quando sem cor sem ar vecircm tantos tantosDias natildeo mais do tempo atraacutes caio aos prantosE eu sigo a errar ao malvado ar que me arrastaPra caacute pra laacute semelhante agrave folha gasta

Traduccedilotildees de Renata Cordeiro

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

ldquoRevoltardquo um poema antigo de Pound

ldquoRevolta contra o espiacuterito crepuscular na poesia modernardquo faz parte de Personae terceiro livro de poemas de Pound e o pri-meiro que publica em Londres em 19091 Mais tarde em 1926 Pound tambeacutem denomina Personae uma versatildeo ampliada do li-vro de 1909 com o subtiacutetulo ldquoPoemas Reunidos de Ezra rdquo2 Por que Personae para a obra de 1909 Um comentaacuterio autobio-graacutefico de Pound no Gaudier-Brzeska de 1916 pode dar uma pista ldquoNa lsquobusca por si mesmorsquo na busca pela lsquosincera expres-satildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade Diz--se lsquoSoursquo isto aquilo ou o outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisa Comecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradas Em segundo lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realida-de objetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo () Em terceiro lugar escrevi lsquoHeatherrsquo que representa um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquo () Essas duas uacutelti-mas espeacutecies de poemas satildeo impessoais ()rdquo3

Natildeo eacute possiacutevel aqui mera apresentaccedilatildeo de um poema e de sua traduccedilatildeo analisar o que seja a constituiccedilatildeo de ldquopessoasrdquo (personae) praacutetica de Pound ldquocuja importacircncia jamais pode ser superestimadardquo4 Basta afastar alguns juiacutezos mais imediatos que poderiam impedir de saiacuteda que o poema pudesse falar por si mesmo Em latim personae (persona no singular) possui diversos significados aparentados5 Persona pode ser a perso-1 De acordo com Thomas F Grieve ldquoEmbora se costume pensar que tenha sido o primeiro livro de poesia publicado por Pound Personae foi na verdade precedido por A Lume Spento que teve 150 coacutepias impressas em Veneza custeadas pelo proacuteprio Pound e depois por Uma quinzena por este Yule de 1908 No entanto Personae de 1909 pode ser considerado lsquode fatorsquo o primeiro livro de poemas de Pound teve uma impressatildeo significativa (1000 exemplares por uma editora respeitaacutevel) e atraiu interesse de criacuteticos de importantes jornais literaacuterios britacircnicosrdquo (GRIEVE F T 2005 p 216) Para a traduccedilatildeo do poema Revolta tomamos como base o poema tal como se encontra em POUND 1982 p 96 e p 97 Agradeccedilo a Rubens Joseacute da Ro-cha Renata Cordeiro e Luiz M Garcia pelas sugestotildees a uma versatildeo preacutevia desse texto2 Nadel observa que mais adequado seria o subtiacutetulo Obras selecio-nadas pois o Personae de 1926 inclui apenas alguns dos poemas anterior-mente publicados por Pound (NADEL BI 2007 p 44)3 POUND 1916 p 984 Cf NADEL BI 2007 p 445 Sigo aqui de modo natildeo exaustivo as indicaccedilotildees de Trendelenburg sobre a histoacuteria da palavra persona (Cf TRENDELENBURG 1908) Esse artigo eacute tambeacutem mencionado por Leonel Ribeiro dos Santos que analisa ex-tensamente o conceito de pessoa na filosofia moderna particularmente em

Paulo R Licht dos Santos

Professor de Filosofia ndash UFSCarCNPq

paulolicht2gmailcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

227

nagem de um drama Daiacute tambeacutem a possiacutevel referecircncia do livro de Pound a Dramatis Personae obra de Robert Browning de 18646 Tambeacutem pode ser o papel que algueacutem desempenha em diversas atividades ou ofiacutecios ou entatildeo o caraacuteter que algueacutem possui ou exibe Persona tambeacutem pode ter sentido juriacutedico No direito romano pode designar cada uma das funccedilotildees exercidas em um tribunal (o acusado o acusador e o juiz) ou ainda todos os que possuem direitos e podem reclamaacute-los em diversas cir-cunstacircncias (com exclusatildeo dos escravos e das coisas) Perso-na pode designar por fim os homens em geral Esses e outros significados natildeo mencionados aqui provecircm por uma seacuterie de transposiccedilotildees do significado originaacuterio de persona as maacutesca-ras usadas no teatro pelos antigos atores romanos

Eacute nesse sentido que Pound usa o termo personae ao dizer ter extraiacutedo ldquomaacutescaras inteiras do eu em cada poemardquo De fato ldquomaacutescaras do eurdquo atravessam Personae de ponta a ponta O ldquoeurdquo para dar alguns exemplos aparece agraves vezes enfaticamen-te jaacute nos versos iniciais como em ldquoPraise of Ysoltrdquo que abre o Personae de 1909 ldquoIn vain have I strivento teach my heart to bowrdquo ou como no proacuteprio ldquoRevoltardquo ldquoI would shake off the lethargy of this our timerdquo Agraves vezes aparece mais timidamente como em ldquoXeniardquo com o uso do possessivo ldquomeurdquo (my) ldquoAndunto thine eyes my heartsendeth old dreams of the spring-timerdquo O poema ldquoOcciditrdquo tambeacutem refere-se agrave primeira pessoa mas do plural com o possessivo ldquonossordquo (ldquoourrdquo) ldquoAs in our southern lands brave tapestriesrdquo Ou por fim o poema ldquoMarvoil inicia-se com a declaraccedilatildeo de Arnaut de Marvoil sobre si mesmo pela oacutetica dos que o circundam ldquoA poor clerk I lsquoArnaut the lessrsquo they call merdquo Em ldquoNotas aos novos poemasrdquo que encerram Perso-nae Pound esclarece que as personae de ldquoMarvoilrdquo satildeo entre outros o proacuteprio Arnaut de Marvoil trovador do seacuteculo XI Se aqui a primeira pessoa eacute a de um outro natildeo seria assim com os demais poemas de Personae Ou seja o proacuteprio ldquoeurdquo ou o ldquonoacutesrdquo tambeacutem natildeo seriam maacutescaras mesmo quando Pound diz que o livro Personae faz parte de suas primeiras tentativas em busca da lsquosincera expressatildeo de sirsquo A conjectura ganha focirclego caso se lembre a proveniecircncia do nome e da categoria gramatical de pessoa Trendelenburg apresenta alguns documentos histoacutericos para mostrar que os gregos que fundaram nossa gramaacutetica tal-vez os estoicos recorreram agrave palavra grega πρόσωπον (face ou maacutescara) para designar as principais terminaccedilotildees verbais e assim as trecircs pessoas do discurso7 Portanto transposiccedilatildeo para a gramaacutetica de um termo proveniente do drama primeiro pelos gregos e depois pelos romanos

Se persona possui o significado originaacuterio de maacutescara em que o ldquoeurdquo fala e se apresenta por traccedilos de outros natildeo estaria Kant (Cf SANTOS 2011 pp 7-40) Uma possiacutevel etimologia de persona eacute per-sono ldquoo que soa ou faz soar por meio derdquo Trendelenburg contudo potildee em duacutevida essa etimologia mencionando outras possiacuteveis6 Essa eacute sugestatildeo de Nadel (NADEL BI 2007 p 44)7 Cf TRENDELENBURG 1904 p 10

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

228

em jogo na teacutecnica de Pound a dissimulaccedilatildeo de si ou do real Natildeo eacute o que se pode inferir do comentaacuterio de Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae ()rdquo Essa busca soacute faz sentido poreacutem porque o real natildeo se apresenta imediatamente definido ldquona busca pela lsquosincera expressatildeo de sirsquo tateia-se encontra-se algo que parece verdade ()rdquo Nesse caso ateacute mesmo a ldquoexpressatildeo sincera de sirdquo que talvez pudes-se evocar algum lirismo ainda pouco elaborado estaacute longe de ser a transposiccedilatildeo imediata para o poema de algum traccedilo jaacute de-finido de si Pois natildeo haacute por um lado o que eu sou realmente e por outro a linguagem que me conveacutem ou natildeo Na construccedilatildeo de uma persona a forma de expressatildeo e o real a maacutescara e o rosto satildeo concomitantes ldquolsquoEu soursquo isto aquilo ou outro e mal proferidas as palavras deixa-se de ser a coisardquo Note-se que no texto original de Pound ldquoEu sourdquo vem entre aspas pois natildeo se eacute sem uma forma precisa de expressatildeo Por isso mesmo uma persona natildeo eacute a maacutescara que esconde o real ou dissimula o que sou mas o que primeiro os molda para exibi-los de certo modo Negativamente se a forma de expressatildeo eacute inadequada o real de iniacutecio apenas entrevisto (ldquoalgo que parece verdaderdquo) eacute com-pletamente perdido ldquodeixa-se de ser a coisardquo Nesse caso tam-beacutem natildeo tem cabimento tomar determinada persona ou poema como a maacutescara autecircntica por excelecircncia Cada uma delas eacute expressatildeo parcial de um processo contiacutenuo que apenas pode ganhar complexidade crescente mas nunca alcanccedilar a expres-satildeo definitiva de si e do que eacute Vale a pena retomar Pound ldquoComecei esta busca pelo real em um livro chamado Personae extraindo por assim dizer maacutescaras inteiras do eu em cada poema Continuei em uma longa seacuterie de traduccedilotildees que foram apenas maacutescaras mais elaboradasrdquo Eacute precisamente como bus-ca para dar forma ao opaco e concretude ao difuso que se pode ler a abertura do ldquoRevoltardquo

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

A passagem autobiograacutefica de Pound citada haacute pouco classi-fica seus primeiros poemas em trecircs fases8 Se as duas uacuteltimas satildeo de poemas impessoais seria a primeira a de Personae de menor valor poeacutetico Por buscar a ldquosincera expressatildeo de sirdquo a primeira fase ficaria aqueacutem da expressatildeo precisa que se encon-traria nas duas fases seguintes Em outras ocasiotildees Pound iraacute desqualificar seus poemas iniciais Mas aqui a transiccedilatildeo dos poemas ldquopessoaisrdquo para os ldquoimpessoaisrdquo natildeo marca uma escala de valor apenas a diferenccedila do domiacutenio do real investigado A primeira fase eacute a da busca pela apreensatildeo e expressatildeo de si mesmo ldquoDiz-se lsquoSoursquo isto aquilo ou outro ()rdquo A fase seguin-te eacute busca pela expressatildeo da realidade objetiva ldquoEm segundo

8 Cf KENNER H 1985 p121

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

229

lugar fiz poemas como lsquoO Retornorsquo que eacute uma realidade ob-jetiva e tem uma espeacutecie complicada de significaccedilatildeo ()rdquo Jaacute a terceira ldquorepresenta um estado de consciecircncia ou o lsquoindicarsquo ou o lsquoimplicarsquordquo Trecircs modos portanto da investigaccedilatildeo contiacutenua do real por meio de uma linguagem que procura apresentaacute-lo e representaacute-lo em domiacutenios distintos expressatildeo precisa daquilo que lsquosoursquo apresentaccedilatildeo da realidade objetiva do que eacute e por fim representaccedilatildeo dos estados de consciecircncia

Essa anaacutelise ateacute certo ponto vazia por ser muito geral en-contra apoio na leitura circunstanciada que Hugh Kenner faz de alguns dos poemas mencionados por Pound nas duas fases finais Para reter apenas a conclusatildeo dessa leitura teriacuteamos na transiccedilatildeo de Pound da primeira para as duas fases seguintes natildeo a passagem da pessoalidade para a impessoalidade mas a passagem para uma persona mais ampla ou essencial Teriacute-amos ldquoum experimento despersonalizado do eurdquo reconheciacutevel em alguns dos Cantos ldquoa personalidade despida de todas as contingecircncias tornou-se extensivamente um ponto de luz que se move por mundos possiacuteveis um modo de consciecircncia capaz de ser transposto em um nuacutemero indefinido de usosrdquo9 Por nos-sa conta personae como poemas de ningueacutem

Eacute plausiacutevel pensar que eacute com base nessa proposta natildeo por seu abandono que Pound iraacute rejeitar seus poemas iniciais A ediccedilatildeo Personae de 1926 descarta o poema ldquoRevoltardquo junta-mente com noventa e oito poemas antes publicados10 A justi-ficativa de Pound ldquoEstava ofuscado pela linguagem vitoriana () a crosta do inglecircs morto o sedimento presente em meu proacuteprio vocabulaacuterio disponiacutevel () Rossetti fez sua proacutepria lin-guagem Ateacute 1910 eu natildeo fizera uma linguagem natildeo quero di-zer uma linguagem para usar mas mesmo uma para pensarrdquo11 Ao abandonar alguns poemas anteriores Pound recusa natildeo a praacutetica de personalizaccedilatildeo mas o resultado alcanccedilado insufi-ciente para constituir uma linguagem capaz de pensar o real Se for assim por que teriacuteamos de rejeitar sem mais uma maacutescara anterior de Pound com base em uma persona posterior (Pound como criacutetico de si mesmo)

Prova dos noves de que o poema tem de falar por si mesmo estaacute na recepccedilatildeo conflitante do poema ldquoRevoltardquo Os criacuteticos mais recentes consideram o poema um bem logrado malogro de Pound em tentar criar uma nova linguagem para lidar com as condiccedilotildees da vida moderna ldquoEntre os poemas que concluem Personae (1909) haacute um que defende bravamente uma lsquoRevol-tarsquo mas acaba olhando-se melhor por tornar-se igualmente um protesto crepuscular lsquocontra a letargia de nosso temporsquordquo12 Jaacute um leitor de primeira de hora de Personae vecirc em Pound uma ldquosemente novardquo que destoaria do gosto de parte do puacuteblico por 9 Idem ibidem p 12110 Essa contabilidade eacute de Louis Martz autor da introduccedilatildeo aos Collec-ted Early Poems of Ezra Pound (POUND E 1982 p vii)11 Citado por RUTHVEN K K 1983 pp 17 1812 RUTHVEN K K 1983 p 17 Opiniatildeo similar se encontra em p62

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

230

ldquonovas variedades dos antigos favoritosrdquo13 O poema ldquoRevoltardquo que o criacutetico considera ldquoirregular mas vigorosordquo seria um caso exemplar da ldquoqualidade do Sr Poundrdquo14 Mas o caraacuteter exemplar natildeo viria da singularidade do poema ou da excentricidade do poeta mas do enraizamento de ambos no passado mais remo-to e mais proacuteximo Depois de ter lembrado a filiaccedilatildeo de Pound a Browning o criacutetico o compara aos trovadores provenccedilais ldquopelo senso de beleza das coisas e das palavrasrdquo e a Walt Whitman pela ldquovigorosa individualidaderdquo15 O criacutetico assim situa Pound na tradiccedilatildeo em plena conformidade com a epiacutegrafe que abre o livro Personae de 1909 ldquoMake-strong old dreams lest this our world lose heartrdquo16

Entre os dois criacuteticos o mais recente e o antigo qual esco-lher A pergunta eacute descabida por dois motivos aparentados Primeiro que contradiccedilatildeo poderia haver entre quem enxerga de perto com exatidatildeo mas natildeo o que o ultrapassa e quem tem a visatildeo ampla mas natildeo o foco do que estaacute proacuteximo Se for assim natildeo se impotildee nenhuma escolha entre o criacutetico passado que tem presente o niacutetido contraste dos poemas de Pound com a produccedilatildeo requentada de outros autores contemporacircneos seus e o criacutetico mais recente que tem presente a amplitude da obra posterior de Pound A pergunta inicial eacute descabida em segundo lugar pela proacutepria relaccedilatildeo temporal que o poema propotildee ao lei-tor O ponto de partida eacute nosso momento presente (ldquoeste nosso tempordquo) natildeo necessariamente o ldquonosso tempordquo de Pound O ponto de chegada eacute a aposta que uma dicccedilatildeo antiga mais vigo-rosa possa abrir o futuro

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos tatildeo [raacutepidos Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e revolvam Esta terra outra vez

O poema instaura assim uma relaccedilatildeo entre passado e futuro que deve ser moldada continuamente a partir de nosso tempo presente Se for assim o poema ou todo poema exemplar ain-da que jamais possa dar a uacuteltima palavra deveraacute ter sempre a primeira Agora soacute resta a pergunta se o ldquoRevoltardquo e em algum grau sua traduccedilatildeo em portuguecircs alcanccedilam o que Pound ambi-13 Trata-se da resenha de publicada sem o nome do autor em 23 de abril de 1909 no Daily Telegraph A resenha encontra-se reproduzida em ldquoCOURTNNEY W L 2009 pp 44 e 4514 Idem ibidem p 4515 Idem ibidem p 4516 T S Eliot natildeo vecirc nada de Walt Whitman em Personae aleacutem dos provenccedilais apenas haveria dos poetas modernos marcas de Browning e de Yeats (cf Eliot p 9) Diggory por sua vez entende ser Yeats o alvo do ldquoRevoltardquo bem como a referecircncia dos versos ldquoOr tread too violent in passing themrdquo Cita como apoio o uacuteltimo verso do poema de Yeats ldquoAedh Wishes for the Cloths of Heavenrdquo ldquoTread softly because you tread on my dreamsrdquo (Cf Diggory 2016 p 40)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

231

ciona ldquodar agraves pessoas novos olhos natildeo fazecirc-las ver uma nova coisa particularrdquo17

REVOLTA Contra o Espiacuterito Crepuscular na Poesia Moderna

Queria sacudir a letargia deste nosso tempo e dar Para sombras ndash formas de forccedilaPara sonhos ndash homens

ldquoEacute melhor sonhar que agirrdquo Sim E natildeo

Sim se sonhamos grandes feitos homens de fibraQuente o coraccedilatildeo potente o pensarNatildeo se sonhamos flores sem corCortejo lento de horas que languidamenteGotejam feito fruto passado de aacutervores paacutelidasSe assim morremos e vivemos natildeo a vida mas sonhos

Grande Deus concede vida em sonhosNatildeo fuga mas vidaSejamos homens que sonhamNatildeo fracos ocos facircmulosAgrave espera que o Tempo morto acorde e mitigueInominados males

Grande Deus se a nossa sina eacute ser natildeo homens [sonhos apenasEntatildeo sejamos sonhos que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila senhores embora meros sonhosEntatildeo sejamos sombras que faccedilam o mundo tremerQue nos reconheccedila mestres embora meras sombras

Grande Deus se medrados os homens soacute espectros [enfermos sem corQue tecircm de viver apenas nestas neacutevoas e luzes teacutepidasE tremem quando batem alto horas mudasOu pisam demais brutais ao passaacute-las

17 Relato de Pound sobre um correspondente russo inicialmente per-plexo com o poema ldquoHeatherrdquo (POUND 1916 p 98)

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

232

Grande Deus se medrados estes filhos teus traccedilos [tatildeo raacutepidos

Rogo-te abraccedilar o caos e gerar nova proleTitatildes que empilhem penhascos e reviremEsta terra outra vez

REVOLT

Against the Crepuscular Spirit in Modern Poetry

I would shake off the lethargy of this our timeAnd giveFor shadows - shapes of powerFor dreams - men

ldquoIt is better to dream than do ldquoAye and No

Aye if we dream great deeds strong menHearts hot thoughts mightyNo if we dream pale flowersSlow-moving pageantry of hours that languidlyDrop as orsquoer-ripened fruit from sallow treesIf so we live and die not life but dreamsGreat God grant life in dreamsNot dalliance but life

Let us be men that dreamNot cowards dabblers waitersFor dead Time to reawaken and grant balm for ills unnamed

Great God if we be damnrsquod to be not men but only dreamsThen let us be such dreams the world shall tremble atAnd know we be its rulers though but dreamsThen let us be such shadows as the world shall tremble atAnd know we be its masters though but shadow

Great God if men are grown but pale sick phantomsThat must live only in these mists and tempered lightsAnd tremble for dim hours that knock orsquoer loudOr tread too violent in passing them

Great God if these thy sons are grown such thin ephemeraI bid thee grapple chaos and begetSome new titanic spawn to pile the hills and stirThis earth again

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 226-233jul-dez 2017

233

BIBLIOGRAFIA

COURTNNEY W L ldquoDaily Telegraphrdquo In ldquoEzra Pound The Critical Heritage Seriesrdquo Ed Eric Homberger New York-London Routledge 2009

DIGGORY T Yeats and American Poetry The Tradition of the Self Princeton University Press 2016

ELIOT TS Ezra Pound his metric and poetry New York 1917 Disponiacutevel em lthttpswwwblukcollection-itemsezra-pound-his-metric-and-poetry-by-t-s-eliotgt Acesso em 19122017)

GRIEVE F T ldquoPersonaerdquo in The Ezra Pound Encyclopedia

Ed D P Tryphonopoulos andlrm S J Adams Westport- Connec-ticut - London Greenwood 2005

KENNER H The Poetry of Ezra Pound Reprinted edition Lincoln and London University of Nebraska Press 1985

NADEL I B The Cambridge Introduction to Ezra Pound New York Cambridge University Press 2007

POUND E Collected Early Poems of Ezra Pound Ed por Mi-chael John King New York A New Directions Book 1982

POUND E Gaudier- Brzeska London John Lante Company 1916

RUTHVEN K K A Guide to Ezra Poundlsquos Personae (1926) Berkeley-Los Angeles-London University of California Press 1983

SANTOS L R ldquoDo paralogismo loacutegico da personalidade ao paradoxo moral da pessoa geacutenese e significado da antropolo-gia moral kantianardquo Studia Kantiana 11 (2011) 7-40

TRENDELENBURG A ldquoZur Geschichte des Wortes Personrdquo Kantstudien 13 (1908) pp1 -17

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

234

Traduccedilatildeo

Inverossiacutemil Verdade As ldquoEpiacutestolas Cristatildesrdquo de Pliacutenio o Jovem e Trajano

A epiacutestola X 96 de Pliacutenio o Jovem (61ndashc 113 dC) con-teacutem o testemunho mais antigo do conflito entre cristatildeos e Impeacute-rio Romano e das praacuteticas rituais do Cristianismo primitivo Ape-nas trecircs autores latinos antigos ldquopagatildeosrdquo escreveram sobre os cristatildeos o epistoloacutegrafo Pliacutenio o Jovem e os historioacutegrafos Cor-neacutelio Taacutecito (c 56ndashc 120 dC) e Suetocircnio Tranquilo (c 69ndashc 122 dC) O testemunho de Taacutecito (Anais XV 44) foi escrito por volta de 115 e 116 dC e descreve com alguma detenccedila a dura puniccedilatildeo que Nero (imperador entre 54 e 68 dC) reservou aos cristatildeos como supostos responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma do ano 64 dC Os dois testemunhos de Suetocircnio (Vida dos Doze Ceacutesares ldquoClaacuteudiordquo 25 4 e ldquoNerordquo 16 2)1 foram escritos por volta de 122 dC e brevemente informam que os cristatildeos foram expulsos de Roma por Claacuteudio (imperador entre 41 e 54 dC) e perseguidos por Nero como praticantes de perigosa supersti-ccedilatildeo

A epiacutestola X 96 foi escrita entre 18 de setembro e 3 de janeiro de 112 dC em Amaacutestris ou Amiso (atuais Amasra e Samsun na Turquia) no segundo ano do governo de Pliacutenio sobre a Bitiacutenia e o Ponto (igualmente na atual Turquia) e era endere-ccedilada ao proacuteprio imperador Trajano que a responde como se leraacute a seguir Pliacutenio para dar conta a Trajano das providecircncias tomadas quanto aos cristatildeos as quais incluiacuteam pena capital descreve como era o ritual daqueles seguidores de Cristo e quais eram no caso as accedilotildees que nessa qualidade eles con-fessavam praticar Como entre tais accedilotildees constava o juramento de natildeo roubar natildeo matar natildeo mentir e natildeo sonegar impostos mas apenas reunir-se na alvorada para rezar e cantar a Cris-to e como eacute sempre Pliacutenio que o afirma houve quem julgasse espuacuterias as epiacutestolas escritas ou interpoladas mais tarde com intuito de exibir os cristatildeos como maacutertires e assim colaborar com a narrativa triunfalista do Cristianismo como se a visatildeo Agradeccedilo ao CNPq pela bolsa de Produtividade em Pesquisa que possi-bilitou a confecccedilatildeo deste artigo integrante de trabalho maior que inclui a traduccedilatildeo comentada de todas as cartas de Pliacutenio o Jovem

1 Para eventual consulta menciono as seguintes traduccedilotildees ao portu-guecircs Taacutecito Anais Prefaacutecio de Breno Silveira traduccedilatildeo de J L Freire de Carvalho Rio Satildeo Paulo Porto Alegre W M Jackson 1952 pp 408-409 ldquoClaacutessicos Jacksonrdquo vol XXV Suetoacutenio Os Doze Ceacutesares Traduccedilatildeo e no-tas de Joatildeo Gaspar Simotildees Lisboa Editorial Presenccedila 1973 p 204 e p 223

Joatildeo Angelo Oliva Neto

Livre-docente em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo ndash Professor do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas - USP

olivanetoicloudcom

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

235

favoraacutevel aos cristatildeos vinda aqui de insuspeitiacutessima parte que eacute um governador romano que os persegue e ateacute executa fos-se por assim dizer boa demais para ser verdade Assim longa querela teve iniacutecio no fim do seacuteculo XVIII quando J S Sember na segunda ediccedilatildeo de Novae Observationes quibus Studiosius Illustrantur Potiora Capita Historiae et Religionis Chistianae us-que ad Constantinum (ldquoNovas Observaccedilotildees pelas quais com Maior Detenccedila se Explicam Capiacutetulos Mais Importantes da Reli-giatildeo Cristatilde ateacute Constantinordquo) as considerou stolidissimae nugae fraudesque non piae sed impudentissimae (Halle vol II p 37 1788) ldquoninharias estuacutepidas e fraudes nada piedosas mas des-pudoradiacutessimasrdquo e de pronto foi contestado por A C Haver-saat (Vertheid der Plinischen Briefe uumlber die Christen gegen die Einwendungen Semlerrsquos Goumlttingen 1788)2 Hoje a epiacutestola e Pliacutenio e a de Trajano satildeo consideradas verdadeiras assim como eram na Antiguidade quando foram igualmente ceacutelebres a julgar pelos numerosos testemunhos que delas nos chega-ram3

As epiacutestolas exibem tambeacutem exemplos ainda que sem-pre anocircnimos da coragem de quem se manteacutem fiel agrave proacutepria crenccedila do humano medo de morrer de quem a renega da sor-didez que eacute a denuacutencia anocircnima Quanto a Pliacutenio ele produ-ziu ainda que sem querer efeitos retoacutericos dignos de nota a credibilidade e sobretudo o pateacutetico que adveio ironicamente de sua proacutepria impassibilidade O distanciamento que o ofiacutecio obriga a desejada impassibilidade descritiva na judicial frieza com que conduz o inqueacuterito de fato soacute fez ressaltar malgrado seu a comovente mansidatildeo daqueles reacuteus nisso os partidaacuterios da falsidade das epiacutestolas tinham razatildeo

Epiacutestolas Cristatildes 1Pliacutenio o Jovem Livro X Epiacutestola 96 (97)

2 Para etapas importantes do longo debate ver os autores arrola-dos por Anne-Marie Guillemin Pline le Jeune tome IV Lettres Livre X Panegyrique de Trajan Paris ldquoLes Belles Lettresrdquo 1947 pp 70-72 Eacute desta ediccedilatildeo o texto latino adotado3 Tert Apol II 6-10 Clem Al Strom V 12 (Patrol Gr IX 400c) Eus HE III 33 Hier Chron 220a Olimp Sulp Sev Chron II 45 Oros VII 12 3 Paul Diac Hist Misc X Traianus

Caius Plinius Traiano Imperatori

1 Sollemne est mihi domine omnia de quibus dubito ad te referre Quis enim potest melius uel cunctationem meam regere uel ignorantiam instruere

Cognitionibus de Christianis interfui numquam ideo nescio quid et quatenus aut

Caio Pliacutenio ao Imperador Trajano

1 Para mim senhor eacute nor-ma submeter-te todas as ques-totildees em que tenho duacutevida pois quem melhor pode guiar minha hesitaccedilatildeo ou educar minha igno-racircncia

Nunca tomei parte dos in-queacuteritos sobre os cristatildeos de

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

236

puniri soleat aut quaeri 2 Nec mediocriter haesitaui sitne aliquod discrimen aetatum an quamlibet teneri nihil a robustioribus differant detur paenitentiae uenia an ei qui omnino Christianus fuit desisse non prosit nomen ipsum si flagitiis careat an flagitia cohaerentia nomini puniantur

Interim ltingt iis qui ad me tamquam Christiani d e f e r e b a n t u r hunc sum secutus modum 3 Interrogaui ipsos an essent Christiani Confitentes iterum ac tertio interrogaui supplicium minatus perseuerantes duci iussi Neque enim dubitabam qualecumque esset quod faterentur pertinaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri 4 Fuerunt alii similis amentiae quos quia ciues Romani erant adnotaui in urbem remittendos Mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species inciderunt

5 Propositus est libellus sine auctore multorum nomina continens Qui negabant esse se Christianos aut fuisse cum praeeunte me deos adpellarent et imagini tuae quam propter hoc iusseram cum simulacris numinum adferri ture ac uino supplicarent praeterea male dicerent Christo quorum nihil cogi posse dicuntur qui sunt re uera Christiani dimittendos putaui 6 Alii ab indice nominati esse se Christianos dixerunt et mox negauerunt fuisse quidem

modo que ignoro o quecirc e ateacute onde se deve punir ou inquirir 2 Natildeo foi pequena minha hesi-taccedilatildeo sobre se deve haver dis-criacutemen de idade ou se em nada diferem crianccedilas de qualquer ta-manho dos mais adultos se se daacute perdatildeo ao arrependimento ou se agravequele que foi cristatildeo convic-to de nada valeraacute renunciar se se pune o mero nome de cristatildeo quando natildeo houver delitos ou os delitos ligados ao nome

Entrementes quanto agraveque-les que me foram denunciados como cristatildeos procedi do se-guinte modo 3 Perguntei-lhes se eram cristatildeos aos que con-fessavam perguntei de novo e ainda uma terceira vez ame-accedilando-os de supliacutecio os que perseveravam mandei execu-tar⁴ E natildeo tive duacutevidas de que qualquer que fosse a confissatildeo ao menos a persistecircncia e a in-flexiacutevel obstinaccedilatildeo deviam ser punidas 4 Houve outros capa-zes de semelhante demecircncia os quais porque eram cidadatildeos romanos registrei para que fos-sem mandados de volta a Roma Logo como costuma ocorrer ampliando-se no proacuteprio proces-so a incriminaccedilatildeo muitos casos diferentes apareceram

5 Um cartaz sem autor⁵ foi afixado contendo o nome de muitas pessoas Se os que ne-gavam ser ou ter sido cristatildeos in-vocassem os deuses repetindo a foacutermula que eu lhes ditava e com incenso ou vinho venerassem a tua imagem que adrede eu man-dara trazer junto com estaacutetuas

4 executar duci infinitivo passivo de duco ducere ldquoser conduzidordquo subentendendo-se ad mortem Esse uso de duci implica que a execuccedilatildeo era imediata e pela espada

5 cartaz sem autor libellus sine auctore denuacutencia anocircnima a que se referiraacute Trajano na resposta Epiacutestola 97 (98) 2

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

237

sed desisse quidam ante triennium quidam ante plures annos non nemo etiam ante uiginti ltHigt quoque omnes et imaginem tuam deorumque simulacra uenerati sunt et Christo male dixerunt

7 Adfirmabant autem hanc fuisse summam uel culpae suae uel erroris quod essent soliti stato die ante lucem conuenire carmenque Christo quasi deo dicere secum inuicem seque sacramento non in scelus aliquod obstringere sed ne furta ne latrocinia ne adulteria committerent ne fidem fallerent ne depositum adpellati abnegarent Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum promiscuum tamen et innoxium quod ipsum facere desisse post edictum meum quo secundum mandata tua hetaerias esse uetueram 8 Quo magis necessarium credidi ex duabus ancillis quae ministrae dicebantur quid esset ueri et per tormenta quaerere Nihil aliud inueni quam superstitionem prauam et immodicam

9 Ideo dilata cognitione ad consulendum te decucurri Visa est enim mihi res digna consultatione maxime propter periclitantium numerum Multi enim omnis aetatis omnis ordinis utriusque sexus etiam uocantur in periculum et uocabuntur

Neque ciuitates tantum sed uicos etiam atque agros superstitionis istius contagio peruagata est quae uidetur sisti et corrigi posse 10 Certe satis constat prope iam desolata templa coepisse

dos numes e aleacutem disso amal-diccediloassem Cristo ndash atitudes a que diz-se natildeo se consegue obrigar os que satildeo verdadeira-mente cristatildeos ndash esses julguei que devia dispensar 6 Outros delatados nominalmente por informante afirmaram ser cris-tatildeos e logo disseram que natildeo que de fato haviam sido mas que tinham renunciado uns haacute mais de trecircs anos outros haacute mais tempo ainda alguns ateacute haacute mais de vinte anos Todos eles tambeacutem veneraram natildeo apenas tua imagem como as estaacutetuas dos deuses e amaldi-ccediloaram Cristo

7 Afirmavam que sua maior culpa ou erro tinha sido o costume de reunir-se num dia fixo antes do amanhecer e entre si entoar um por vez hi-nos a Cristo como a um deus e por juramento obrigar-se natildeo a algum crime mas a natildeo cometer furto nem latrociacutenio nem adulteacuterio a natildeo faltar agrave palavra dada nem intimados pela justiccedila sonegar imposto Que cumpridos esses ritos era seu costume separar-se e de novo reunir-se para receber o alimento comum poreacutem e inoacutecuo o que tambeacutem deixa-ram de realizar depois de meu edito pelo qual segundo tuas ordens eu proibira as confra-rias 8 Achei ateacute necessaacuterio mesmo por tortura arrancar a verdade de duas escravas que segundo se dizia eram ajudan-tes nada mais encontrei aleacutem de insensata e desmedida su-persticcedilatildeo

9 Por isso suspenso o inqueacuterito recorri a ti para con-sultar-te A mateacuteria pareceu-

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

238

celebrari et sacra sollemnia diu intermissa repeti passimque uenire ltcarnemgt uictimarum cuius adhuc rarissimus emptor inueniebatur Ex quo facile est opinari quae turba hominum emendari possit si sit paenitentiae locus

-me digna de consulta sobre-tudo por causa do nuacutemero de acusados muitos de todas as idades de todas as ordens de ambos os sexos intimados es-tatildeo e estaratildeo em perigo⁶ Natildeo soacute as cidades mas as aldeias e os campos o contaacutegio desta su-persticcedilatildeo alcanccedilou que pode ao que parece ser detida e sa-nada 10 Consta e eacute pratica-mente certo que os templos⁷ antes quase desertos comeccedila-ram a ser frequentados e que solenidades sagradas por mui-to tempo interrompidas foram retomadas e que por toda parte se vende carne das viacutetimas de que ateacute agora se achava rariacutes-simo comprador Por isso eacute faacute-cil perceber que se pode corrigir a turba dos homens se houver lugar para arrependimento

6 estatildeo e estaratildeo em perigo uocantur in periculum et uocabuntur ldquoperigordquo em vista do supliacutecio e principalmente da pena capital

7 os templos templa Pliacutenio refere-se aos templos romanos

8 Segundo Pliacutenio chamava-se Caio Pliacutenio Ceciacutelio Segundo

Epiacutestolas Cristatildes 2Pliacutenio o Jovem Livro 10 epiacutestola 97 (98)

Traianus Plinio

1 Actum quem debuisti mi Secunde in excutiendis causis eorum qui Christiani ad te delati fuerant secutus es Neque enim in uniuersum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest Conquirendi non sunt si deferantur et arguantur puniendi sunt ita tamen ut qui negauerit se Christianum esse idque re ipsa manifestum fecerit id est supplicando dis nostris quamuis suspectus in praeteritum ueniam ex paenitentia impetret 2 Sine

Trajano a Pliacutenio

1 Tomaste as providecircn-cias que devias meu querido Segundo⁸ ao investigar as causas daqueles que te foram delatados como cristatildeos pois natildeo eacute possiacutevel constituir um princiacutepio universal que tenha por assim dizer forma precisa Natildeo haacute que ir ao encalccedilo deles se forem denunciados e incul-pados devem ser punidos res-salvando-se poreacutem que quem negar que eacute cristatildeo e tornaacute-lo manifesto pelos proacuteprios atos

ISSN 2359-5140 (Online)

Ipseitas Satildeo Carlosvol3 n2 p 234-239jul-dez 2017

239

isto eacute venerando nossos deu-ses por mais suspeito que te-nha sido no passado consiga perdatildeo pelo arrependimento 2 Cartazes sem autor⁹ natildeo devem ter lugar em nenhuma acusaccedilatildeo pois satildeo peacutessimo exemplo que natildeo eacute proacuteprio de nosso tempo

9 cartazes sem autor libelli sine auctore Satildeo as denuacutencias anocircnimas mencionadas na epoacutestola anterior sect5 Pliacutenio parece tecirc-las levado em consi-deraccedilatildeo no processo

auctore uero propositi libelli ltingt nullo crimine locum habere debent Nam et pessimi exempli nec nostri saeculi est