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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História O SAL DA GUERRA: PADRE ANTÔNIO VIEIRA E AS TÓPICAS TEOLÓGICO- JURÍDICAS NA APRECIAÇÃO DA GUERRA JUSTA CONTRA OS ÍNDIOS Ludmila Gomides Freitas Janeiro de 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    Instituto de Histria

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    O SAL DA GUERRA: PADRE ANTNIO VIEIRA E AS TPICAS TEOLGICO-

    JURDICAS NA APRECIAO DA GUERRA JUSTA CONTRA OS NDIOS

    Ludmila Gomides Freitas

    Janeiro de 2014

  • ii

  • iii

    LUDMILA GOMIDES FREITAS

    O SAL DA GUERRA: PADRE ANTNIO VIEIRA E AS TPICAS TEOLGICO-JURDICAS NA

    APRECIAO DA GUERRA JUSTA CONTRA OS NDIOS

    Tese apresentada ao Programa de Doutorado do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial para a obteno do ttulo de doutor em Histria. rea de concentrao: Histria Social Orientador: Prof Dr. Guilherme Amaral Luz

    Uberlndia

    Janeiro de 2014

  • iv

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    F866s 2014

    Freitas, Ludmila Gomides, 1977- O sal da guerra: padre Antnio Vieira e as tpicas teolgico-jurdicas na apreciao da guerra justa contra os ndios / Ludmila Gomides Freitas. - 2014. 323 f. Orientador: Guilherme Amaral Luz.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de

    Ps-Graduao em Histria. Inclui bibliografia.

    1. Histria - Teses. 2. Vieira, Antonio, 1608-1697 - Teses. 3. Jesutas - Brasil - Histria - Teses. 4. Livre arbtrio e determinismo - Teses. 5. Jesui-tas - Misses - Brasil - Teses. 6. Brasil - Histria - Perodo colonial, 1500-1822 - Teses. I. Freitas, Ludmila Gomides. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III. Ttulo. CDU: 930

  • v

    Banca examinadora Orientador:

    ___________________________________

    Prof Dr. Guilherme Amaral Luz (Histria UFU)

    Banca:

    ___________________________________________

    Prof Dr. Carlos Alberto de Moura Zeron (Histria - USP)

    ___________________________________________

    Prof Dr. Antnio Alcir Pcora (Teoria Literria - UNICAMP)

    ___________________________________________

    Prof Dr. Sertrio de Amorim e Silva Neto (Filosofia UFU)

    ___________________________________________

    Prof Dr Mara Regina do Nascimento (Histria UFU)

    Suplentes:

    ___________________________________________

    Prof Dr. Luis Filipe Silvrio de Lima

    ___________________________________________

    Prof Dr. Jean Luiz Neves Abreu

  • vi

    RESUMO

    Os discursos jesuticos produzidos nos sculos XVI e XVII traduziram e

    interpretaram os encontros com a alteridade indgena americana a partir dos modelos

    teolgicos, jurdicos, polticos e retricos prprios do pensamento cristo. Elegemos a

    questo da guerra e, por conseguinte, o debate teolgico-jurdico que fundamenta

    historicamente esse conceito, como tema principal dessa pesquisa. A incluso do

    indgena no corpo mstico e poltico da monarquia crist portuguesa e sua utilizao

    como mo-de-obra para a explorao econmica da terra eram projetos polticos que,

    embora no excludentes, estiveram em disputa permanentemente, marcando a

    relao conflituosa entre jesutas, autoridades coloniais e moradores. Neste cenrio, o

    problema da guerra justa mostrava-se central. A partir da leitura dos discursos

    parentico e epistolar de Pe. Antnio Vieira investigamos de que maneira o tema da

    guerra contra os ndios participava de sua compreenso providencialista e finalista da

    histria. Como procuramos demonstrar, o jesuta interpretou a guerra pela via

    sacramental e, nesse sentido, como ocasio para a colaborao com o plano divino.

    Afinado concepo soteriolgica jesutica que postula a graa, a f e as obras e, por

    conseguinte, o papel do livre-arbtrio como condies para a justificao Antnio

    Vieira buscou, atravs de seus sermes e atuao poltica, persuadir os portugueses a

    dispor sua vontade ao crist, neste sentido, a justia da guerra e a escravido dos

    ndios eram partes essenciais na edificao da monarquia catlica portuguesa.

    PALAVRAS-CHAVE: Companhia de Jesus, Pe. Antnio Vieira, pensamento

    teolgico-jurdico, livre-arbtrio, guerra-justa, ndios.

  • vii

    ABSTRACT

    The sixteenth and seventeenth-century Jesuit discourses translated and

    interpreted their encounters with the Native American otherness by theological, legal,

    political and rhetorical models from the Christian thought. The main subject of this

    thesis is the topic of war and, therefore, the theological-legal debate that had based

    this concept historically. The introduction of the Indians into the political and mystical

    body of Christian Portuguese monarchy and their use as work force for the economic

    exploitation of the land were two different political projects in those times. Although

    they were not mutually exclusive, they had permanently been in dispute,

    characterizing the conflictions between Jesuits, colonial authorities and settlers. The

    problem of the Just War became central in this context. How the topic of war against

    the Indians compounded Antonio Vieiras providential and finalist understanding of

    history is a question that will be traced back from the reading of his sermons and

    letters. This aims to demonstrate that this Jesuit priest interpreted war in sacramental

    terms and so as an opportunity for men to collaborate with the divine plans. As a

    priest, Antonio Vieira sought to persuade the Portuguese settlers to set their will

    towards Christian actions. That was in compass with the Jesuit conception of salvation,

    which vindicated grace, faith and the role of free will as conditions for justification. In

    this sense, the justice of war and the enslavement of Indians were essential issues in

    the edification of a Portuguese Catholic Monarchy.

    KEY WORDS: Society of Jesus, Priest Antonio Vieira, theological-juridical thought,

    free will, just war, Indians.

  • viii

  • ix

    Agradecimentos

    Primeiramente, agradeo ao Prof Guilherme Amaral Luz pela forma acolhedora e

    generosa pela qual me recebeu no Instituto de Histria da UFU. Sua orientao, precisa e

    atenciosa, foi determinante durante todo o processo de realizao da tese. Agradeo,

    especialmente, pela confiana e liberdade que me proporcionou na pesquisa, sempre

    disposto a ajudar nos vrios momentos de dvida e nos percalos enfrentados durante o

    trabalho.

    Agradeo FAPEMIG pela bolsa de estudo concedida.

    Meus sinceros agradecimentos aos professores Mara Regina do Nascimento e

    Sertrio Neto, pelas sugestes, observaes e indicaes bibliogrficas. Suas participaes

    no exame de qualificao foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa.

    Agradeo o apoio dos professores e colegas da Linha de Pesquisa Poltica e

    Imaginrio.

    Obrigada aos amigos que esto perto e aos que esto longe, em So Carlos, So

    Paulo e Campinas. s queridas Liliane e Simone pelo estmulo e pelos momentos de

    descontrao fundamentais sade e ao esprito, durante estes anos de trabalho.

    Agradeo a meu irmo, Lo, pelo carinho e amizade. s queridas, Tia Maria e Tidinha

    pelo apoio, torcida e carinho de longa data. Ao Meia e s crianas, Beba e Samuel,

    motivos de alegria e renovao de nossa famlia.

    Agradeo com muito amor a meu pai, Luiz, pelo cuidado, apoio, carinho e exemplo de

    uma vida inteira.

    Meu agradecimento especial minha irm, Luciana, companheira e amiga, que

    partilha comigo, desde o comeo, as alegrias, incertezas, dificuldades e conquistas. um

    presente da vida ter uma irm como ela.

    minha querida me, Carminha. Faltam palavras para expressar o profundo amor e

    gratido que sinto. Obrigada por estar sempre ao meu lado; presena generosa e amiga,

    meu porto-seguro e exemplo de amor.

    Finalmente, ao Sandro, que soube com pacincia e leveza ser parceiro nessa jornada.

    Meu amor e meu amigo, que divide comigo a maior alegria de todas: nosso pequeno

    Toms. Meu amor, minha fora e inspirao de vida.

  • x

    O Sal da Guerra: Padre Antnio Vieira e as tpicas teolgico-

    jurdicas na apreciao das guerras justas contra os ndios

    Sumrio

    Introduo ................................................................................................... 1

    PARTE I....................................................................................................... 13

    1. Mistrios e interpretao da histria na soteriologia jesutica ........... 15

    1.1. INTRODUO...........................................................................................................15

    1.2. A CONSTRUO DO ETHOS JESUTICO ............................................................................16

    1.3. LIVRE-ARBTRIO E SALVAO NA ORTODOXIA CRIST.........................................................26

    1.4. LIVRE-ARBTRIO E SALVAO NO PENSAMENTO JESUTICO ..................................................35

    1.5. OS MISTRIOS NO MUNDO CRIADO: A INTERPRETAO JESUTICA ........................................49

    1.5.2. MISTRIOS: SENTIDO, EFICCIA E OCASIO......................................................................51

    2. Os sinais divinos e os enganos do mundo nos sermes do padre

    Antnio Vieira: cobia versus nimo cristo ............................................ 75

    PARTE II...................................................................................................... 99

    3. A guerra justa na tradio ocidental e no alvorecer do mundo

    moderno .................................................................................................. 101

    3.1 INTRODUO..........................................................................................................101

    3.2. A GUERRA JUSTA NA TRADIO CRIST OCIDENTAL.........................................................102

  • xi

    3.2.1. A GUERRA JUSTA NO PENSAMENTO DOS PADRES DA IGREJA ......................................109

    3.3. A GUERRA JUSTA NO CONTEXTO DAS CONQUISTAS ULTRAMARINAS PORTUGUESAS E ESPANHOLAS

    DOS SCULOS XVI E XVII.................................................................................................115

    3.4. A ORDENAO DO DIREITO DE GUERRA NO CONTEXTO DO NOVO MUNDO: POLTICA E LEGISLAO

    INDIGENISTA PORTUGUESA NOS SCULOS XVI E XVII.............................................................125

    4. O mistrio da guerra contra os ndios: ocasio para (in)conformidade

    da ao humana no plano divino ........................................................... 149

    4.1. INTRODUO.........................................................................................................149

    4.2. LEGISLAO INDIGENISTA AMAZNICA E APLICAO DA JUSTIA NAS CARTAS E INFORMAES DO

    PADRE ANTNIO VIEIRA..................................................................................................155

    4.3. ENTRADAS, MISSO E MISTRIO EM CARTAS E INFORMAES DO PADRE. ANTNIO VIEIRA.....198

    5. O mistrio da guerra nos sermes do padre Antnio Vieira.............. 241

    Consideraes finais................................................................................ 283

    Bibliografia.............................................................................................. 297

    FONTES DOCUMENTAIS ..................................................................................................297

    SITES (FONTES DOCUMENTAIS) .......................................................................................299

    LIVROS E ARTIGOS..........................................................................................................300

  • xii

  • xiii

    O nobre, o alto, o fino, o maravilhoso da

    providncia divina, no fazer a sua vontade

    violentando a minha: deixar livre e absoluta a

    minha vontade, e com a minha, e pela minha,

    conseguir a sua.

    Pe. Antnio Vieira, Sermo das Cadeias de

    So Pedro.

    E quando a F se prega debaixo das

    armas, e sombra delas, to Apstolos so os

    que pregam, como os que defendem; porque uns

    e outros cooperam salvao das Almas.

    Pe. Antnio Vieira, Sermo do Esprito

    Santo.

  • Introduo

    As primeiras narrativas dos ibricos sobre os encontros com Novo Mundo

    apreenderam as sociedades indgenas inscrevendo-as na memria europeia. O passado, o

    presente e mesmo o futuro desses povos foram assimilados pelos quadros cultural,

    teolgico e poltico prprios do europeu, e, por essa razo, como partes da narrativa

    histrica crist. As terras e as humanidades reveladas a partir dos descobrimentos

    somente tinham sentido se interpretadas como um restabelecimento da comunicao

    crist interrompida em tempos imemoriais. A despeito da surpresa e do estranhamento

    resultantes dos encontros, no incio dos tempos modernos, a universalidade da religio

    crist no estava colocada em questo.

    Seria realmente impensvel que os primeiros conquistadores, colonizadores e

    missionrios espanhis e portugueses pudessem compreender os diferentes povos

    que encontraram na Amrica fora dos modelos definidos pela cultura de seu tempo. Um

    julgamento relativo ou o reconhecimento da singularidade do outro seriam operaes

    impossveis para eles. Como assinalou Anthony Pagden,

    (...) os observadores do mundo americano, como os observadores de

    qualquer coisa culturalmente desconhecida, para qual existem poucos

    antecedentes facilmente identificveis, tinham que classificar antes de poder

    ver corretamente; e, para isso, no tinham mais alternativa que acudir a um

    sistema que j se utilizava. E era este sistema, no a estrutura inata do

    mundo, o que determinou as reas que selecionaram para descrev-las. 1

    As representaes dos ndios contidas nos discursos europeus dos sculos XVI e XVII

    formam um quadro mltiplo e contrastante por vezes simultaneamente em um mesmo

    1 PAGDEN, Anthony. La caida del hombre natural. El indio americano y los orgenes de la etnologa

    comparativa, Trad. esp. Madri: Alianza Editorial, 1988, p.25. (traduo nossa)

  • 2

    autor ; imagens ora positivas, ora depreciativas; ora sentimentos de confiana em

    relao integrao do ndio ao corpo mstico e poltico da Igreja e do Estado, ora repulsa

    diante de sua natureza considerada irreversivelmente brbara. Imagens distintas e

    contraditrias, pois distintos foram os sujeitos que as enunciaram, e com propsitos

    tambm distintos. parte as diferenas entre as representaes, todas elas tinham em

    comum a busca de uma explicao, que, contudo, s poderia ser formulada a partir dos

    modelos teolgicos, jurdicos e polticos da poca. Tais modelos explanam conceitos que

    foram forjados na longa tradio clssica e crist, e, ao serem mobilizados para traduzir

    as experincias com os ndios, puderam, em parte, manter sua ortodoxia, ao mesmo

    tempo em que sofreram adaptaes em decorrncia das novas experincias.

    No caso da Amrica portuguesa, os jesutas foram essenciais no processo de

    ocupao da terra e de submisso dos ndios ordem colonial; ademais, conferiram o

    propsito evangelizador e civilizatrio colonizao. Podemos afirmar que os discursos

    jesuticos conformam um campo privilegiado para a escritura do outro nos sculos XVI e

    XVII, e, por esta razo, so fontes incontornveis para os estudos cujas temticas passam

    pela traduo e incorporao do gentio americano ordem colonial. Nesta tese,

    elegemos como objeto os escritos jesuticos dos sculos XVI e XVII e, mais

    especificamente, as cartas e sermes do padre Antnio Vieira.

    fundamental pontuarmos que a ao missionria da Companhia de Jesus tinha por

    finalidade instaurar a ordem crist nas terras do Brasil. No caso de Antnio Vieira, seus

    sermes tinham claramente o sentido pedaggico de inspirar os colonos para a ao

    crist. Para isso, a exposio reatualizada e reinterpretada dos mistrios revelados

    (atravs dos sacramentos e da oratria sacra) visava despertar nos portugueses a

    conscincia de sua responsabilidade e cooperao na evangelizao dos ndios,

    condenando, desta feita, suas aes escravistas, sobretudo, aquelas oriundas das guerras

    injustas.

    Podemos dizer que os discursos jesuticos, de maneira geral, apresentam contedos

    de carter tico-jurdico e teolgico-moral. Neste sentido, possuem uma plasticidade no

    modo de enunciar e dispor seus conceitos e, portanto, devem ser entendidos a partir das

    tpicas que os constituem. Essas tpicas, de caractersticas retrico-poticas delimitadas,

    eram mobilizadas conforme a especificidade das circunstncias histricas e das

    necessidades suasrias.

  • 3

    Dentro do universo de temticas a respeito dos ndios presentes nos escritos

    jesuticos, elegemos o tema da guerra e, por conseguinte, o debate teolgico-jurdico que

    fundamenta historicamente esse conceito, como o tema principal dessa pesquisa.

    Propomos refletir sobre a representao da guerra contra os ndios a partir das tpicas

    que eram mobilizadas de modo a comunicar os verdadeiros sentidos que tal dispositivo

    deveria assumir na arquitetura do projeto poltico e teolgico para os ndios. A guerra

    para ser justa dependia de critrios definidos, cujo substrato era a tradio jurdica

    clssica e crist, alm disso, deveria ser usada como um dispositivo de exceo. Sua

    prtica desenfreada e apartada da justia abalava a finalidade evanglica da colonizao.

    Portanto, entendemos que a discusso sobre a guerra encerrava uma srie de

    argumentos (tpicas) prprios e comuns aqui pensados nos moldes da retrica

    aristotlica2 que eram dispostos de modo a enunciar seu sentido legtimo. Como

    lugares prprios do discurso sobre a guerra, entendemos os argumentos fundados na

    doutrina e nas ideias jurdicas e teolgicas. J as tpicas do justo/injusto, amor/desamor,

    cobia/nimo cristo, vcio/virtude, avareza/liberalidade etc., ao explanarem os juzos

    morais e ticos que informavam a mentalidade crist, sero, neste estudo, entendidas

    tambm como lugares comuns que conformam a discusso sobre a guerra.

    Neste sentido, a pesquisa no se volta a mapear a transformao das ideias, mas os

    diferentes contextos de aplicao de tpicas duradouras que, fundadas na tradio

    neoescolstica e jesutica, particularmente, operavam com distintas finalidades

    cabendo por vezes a contradio para justificar a guerra justa, a liberdade e a

    escravido dos ndios. Ao situarmos a anlise dos documentos no jogo e movicidades das

    2 A retrica, para Aristteles, a arte de bem argumentar comparvel dialtica. Os meios de

    persuaso so basicamente trs: os derivados do carter do orador (ethos); os derivados da emoo

    despertada pelo orador no auditrio (pathos); e os derivados de argumentos verdadeiros ou provveis

    (logos). Em conjunto estes trs elementos de prova contribuem para o raciocnio entimemtico. Sendo

    os entimemas os veculos por excelncia da argumentao retrica, as suas premissas so

    materialmente constitudas por tpicos: os tpicos especficos, aplicveis a cada um dos gneros

    particulares de discurso (judicial: justo/injusto; deliberativo: til/intil; epidtico: belo/feio); e os tpicos

    comuns, aplicveis indistintamente a qualquer um dos trs gneros (possvel/impossvel; real/irreal;

    mais/menos). Texto de apresentao, Manuel Alexandre Junior. In ARISTTELES, Retrica. Lisboa:

    Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, Coleo Obras Completas de Aristteles, vol.III, tomo I,

    coordenao Antnio Pedro Mesquita. (ver Livro I).

  • 4

    tpicas, esperamos escapar da armadilha de pensar em separado ideia/teoria e

    realidade/experincia. Como procuraremos demonstrar, era constitutivo da tradio

    neoescolstica, e tambm do modo de proceder jesutico, considerar o universo mstico-

    espiritual (e dentro dele a doutrina) e a realidade histrica circunstanciada da ao

    humana (poltica) no mundo, no como apartados, mas como instncias justapostas. A

    inteno, enfim, no estudar as ideias jurdicas e teolgicas, mas v-las em uso na

    prpria dinmica de compreenso jesutica do mistrio envolvido na misso junto aos

    ndios.

    A tese est organizada em duas partes. Na primeira, composta por dois captulos, os

    temas discutidos giram em torno do conceito de livre-arbtrio e seu papel central na

    soteriologia jesutica e de mistrio tpica essencial da hermenutica sacramental do

    mundo criado. A reflexo estar pautada pela bibliografia, mas tambm pela anlise de

    sermes de padre Antnio Vieira. Na segunda parte da tese, o tema da guerra ser

    explorado em trs captulos sobre diferentes enfoques. Alm da parentica, sero

    analisados os discursos epistolares do jesuta no perodo em que esteve frente das

    misses do Maranho e Gro-Par (1653-1661).

    No captulo 1, nossos objetivo ser compreender a singularidade da Companhia de Jesus

    no que diz respeito a seu projeto apostlico, da a importncia de apresentarmos, ainda que

    sumariamente, a estrutura de sua unidade institucional, o sentido universalista das misses,

    e a concepo humanista de sua doutrina. Outro objetivo, e podemos dizer o mais central,

    ser compreender a concepo soteriolgica do pensamento inaciano. Neste sentido, duas

    exigncias se faro presentes. A primeira ser contextualizar a fundao da ordem num

    momento particularmente delicado da histria da cristandade: a poca das Reformas. O

    vis de anlise desse perodo turbulento dar-se- pela discusso da teoria da Graa divina e

    o processo de justificao. Neste sentido, e a encontramos a segunda exigncia, nosso

    objetivo ser entender o conceito de livre-arbtrio tal como formulado pela tradio

    filosfica crist, e, sobretudo, a polmica em torno deste conceito no bojo das Reformas.

    Para isso, discutiremos a contenda entre catlicos e protestantes pela afirmao e recusa

    do livre-arbtrio, respectivamente. A seguir, nos debruaremos sobre os efeitos dessa

    polmica, agora vivida no prprio seio da Igreja, com os embates entre jesutas e

    dominicanos.

  • 5

    Entender o conceito de livre-arbtrio e a centralidade que ele assume no interior da

    concepo soteriolgica dos jesutas ser um dos objetivos principais da primeira parte

    deste trabalho. Por esta razo, ser fundamental explicar o lugar ontolgico do gnero

    humano na ordem da Criao, para, assim, entendermos as especificidades de seu ser: a

    razo natural, o livre-arbtrio e sua participao no Ser de Deus, ou seja, a graa. As obras

    de tienne Gilson sero fundamentais para essa reflexo.3 Outro conceito que ser

    detalhadamente examinado ser o de mistrio, uma vez que ele ascende, no interior da

    concepo sacramental do mundo criado, como o sinal divino que auxilia a vontade humana

    para as escolhas condizentes com o Bem.

    No humanismo jesutico, o homem abonadamente qualificado no sentido de que,

    dotado de vontade e razo natural, pode no somente conhecer os desgnios divinos, como

    tambm ser agente nas etapas histricas que levam a esse Fim. De acordo com a

    espiritualidade inaciana, a unio com Deus no alcanada apenas pela vida contemplativa

    nos mosteiros, pelo contrrio, ela definida, sim, pela graa da F, mas necessariamente

    implica a postura ativa do homem no mundo, que, agindo conforme a sua vontade, realiza a

    Vontade divina. Enfim, obrar com f e caridade , por excelncia, a disposio perfeita e

    congruente ao caminho de Deus.

    Veremos com Alcir Pcora que, no interior da hermenutica jesutica, especialmente em

    Antnio Vieira, est pressuposto que pela via do mistrio que so sinalizados ao arbtrio

    dos homens os desgnios de Deus: ao tornar tangvel o que divino, o mistrio capaz de

    comover e mover os homens a agir voluntariamente em busca da Verdade.4 Vale ressaltar

    que a decodificao dos mistrios, bem como a mediao do encontro do fiel com o Criador,

    d-se exclusivamente no interior da Igreja; cabe aos homens, portanto, manter estreita

    obedincia a ela para que a unio mstica possa acontecer.

    Pcora argumenta que, se por um lado, os sacramentos ministrados durante a liturgia

    so ocasies seguras para a ocorrncia do mistrio, por outro, temos que o modo

    sacramental se espalha por ocasies insuspeitas da histria e da natureza. Portanto, a Igreja

    no a depositria exclusiva da presena divina em meio humano, ainda que o seja

    3 GILSON, tienne. O Esprito da Filosofia Medieval. So Paulo: Martins Fontes, 2006. GILSON, E. A

    Filosofia na Idade Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 1995. 4 PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antnio

    Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008.

  • 6

    essencialmente, pois h a possibilidade do mistrio ocorrer no que h de mais vrio e cho

    dentro do universo criado, dotando-lhe de uma densidade sagrada. Em suma, o modo

    sacramental, no interior da hermenutica jesutica, constitui-se como uma forma essencial

    de leitura do mundo sensvel e de sua relao com o transcendente.5

    A exposio da hermenutica misteriosa (ou do universo sacramental em modo)

    justifica-se pelo fato de que os mistrios tm seno a finalidade providencial de ensinar o

    livre-arbtrio a desejar e a agir na direo do plano divino. Como veremos, a razo humana

    (imperfeita desde a Queda admica) mostra-se incapaz de julgar corretamente e, neste

    sentido, a opacidade da verdade em relao aos sentidos s pode ser superada mediante o

    mistrio dos objetos de f institudos pela magnanimidade de Deus. Os mistrios sinalizam

    para as aes prudentes a serem assumidas em acordo com a Providncia. Contudo, isso

    no se d de forma coercitiva aos homens, uma vez que deixa em aberto o espao para o

    arbtrio, cujo desdobramento correto e natural depende de uma orientao ajuizada da

    vontade dos sujeitos que escolhem.

    O captulo 2 est inteiramente voltado s relaes que se estabelecem entre os

    enganos do mundo, a razo natural falvel dos homens e o papel corretivo e pedaggico da

    oratria sacra. Para isso, elegemos como fontes alguns sermes de Antnio Vieira pregados

    durante o perodo em que esteve frente das misses no Estado do Maranho e Gro-Par

    (1653-1661). De acordo com sua funo bsica de ensinar e mover, o sermo promove a

    adeso dos fiis ao providencial e, no caso dos sermes aqui tratados, as aes dizem

    respeito participao dos colonos na consagrada misso de civilizar e converter os ndios

    americanos. Vieira investe contra a corrupo, a cobia e a violncia que pautam o modo de

    viver daqueles colonos portugueses. Veremos que ao repor os sentidos teolgicos

    verdadeiros ao fiel pecador, a oratria sacra almejava despertar a reflexo, a auto-censura e,

    por fim, a mudana das aes na direo dos desgnios de Deus. Naquela poro da colnia,

    todos os males e pecados estavam relacionados violncia e escravido pelas quais os

    moradores subjugavam os indgenas.

    A guerra contra os ndios foi, inevitavelmente, tema essencial das discusses

    decorrentes descoberta e conquista do Novo Mundo, estando no bojo da polmica sobre a

    5 Idem. Ver, especialmente, os captulos II (Razo do Mistrio) e III (Oficina Universal, Armazm

    Divino).

  • 7

    legitimidade do domnio portugus e espanhol sobre as terras e povos americanos. A

    segunda parte da tese, organizada em trs captulos, ser dedicada a essa temtica e

    buscaremos analis-la em suas vrias dimenses: o conceito de guerra justa na filosofia e na

    tradio jurdica crists, bem como suas transformaes e permanncias no contexto da

    expanso ultramarina; finalmente, a poltica e a legislao indigenistas portuguesas. Essas

    discusses ajudaro a subsidiar a anlise dos discursos de Antnio Vieira, epistolar e

    parentico, que referiram-se s questes indgenas.

    Veremos, no captulo 3, que a tica e o direito de guerra mobilizados na situao de

    embate contra os ndios reportaram-se, necessariamente, a uma longa tradio jurdica, e,

    longe de ser condenada ou proibida, a guerra foi considerada necessria e, por vezes,

    sagrada. Dentro dessa tradio, a distino entre fiis e infiis consistia no elemento

    definidor da tica-moral da guerra justa. Porm, ainda que o direito de guerra medieval

    previsse critrios para os casos de guerra contra pagos, no contexto americano, a guerra

    contra os ndios suscitou problemas no descritos at ento. Nesse sentido, interessa-nos

    investigar a maneira como as tpicas da guerra justa foram agenciadas para dar conta de

    situaes bastante especficas do contexto histrico colonial, especialmente nas reas de

    missionao de Antnio Vieira, o Estado do Maranho e Gro-Par.

    Se comparada tica de guerra medieval contra o infiel, temos que a guerra justa

    definida no contexto americano, no visava o extermnio do ndio hostil. Ao invs disso, tal

    dispositivo era pensado como um meio de submisso que, em ltima instncia, possibilitava

    a entrada do indgena na ordem colonial. Assim, no lugar da sentena de morte (ainda que

    muitas fossem decorrentes dos combates), era sob a condio jurdica de escravo legtimo

    que o ndio passaria a fazer parte da sociedade colonial. Se por um lado, as razes

    econmicas para essa poltica so evidentes, por outro, essencial demarcar que a

    condio de pago impunha alternativas condizentes com a misso evangelizadora e

    civilizatria da monarquia portuguesa ps-tridentina. Diferente dos infiis, as almas dos

    pagos americanos no estavam irreversivelmente condenadas e, portanto, mesmo sob a

    condio cativa poderiam os ndios tornar-se cristos e sditos produtivos para a economia

    colonial.

    Ainda no captulo 3, teremos um item dedicado exclusivamente a apresentar o

    panorama da poltica e da legislao indigenistas portuguesas nos sculos XVI e XVII.

    Optamos por no nos fixar na anlise detida das leis, primeiramente, por se tratar de uma

  • 8

    massa documental consideravelmente volumosa e dispersa; segundo, pelo carter repetitivo

    do contedo de leis, bandos, regimentos e alvars. Ao invs disso, pontuaremos nossa

    anlise rejeitando a interpretao que simplesmente qualifica a legislao indigenista como

    ineficaz e contraditria. Nosso interesse ser perscrutar a lgica interna que ditava o

    anncio sucessivo dos dispositivos legais e que devero, portanto, ser compreendidos luz

    do universo jurdico e doutrinrio da poca. A nosso ver, o movimento oscilante da poltica

    colonial refletido nas leis de liberdade irrestrita e escravido buscou, sobretudo, conciliar

    demandas distintas, porm igualmente necessrias para o desenvolvimento da empresa

    colonial: a incluso do indgena no corpo mstico e poltico da monarquia crist portuguesa e

    a viabilidade da explorao econmica da terra. Embora no excludentes em tese, fato que

    os projetos polticos estiveram em disputa todo o tempo, marcando a acirrada relao entre

    jesutas, autoridades coloniais e moradores.

    No captulo 4 nos aproximaremos das especificidades da poltica e das leis indigenistas

    do Estado do Maranho e Gro-Par. Nosso caminho metodolgico ser compreender, a

    partir das cartas e informaes de padre Antnio Vieira, a implementao da lei e da justia,

    bem como as tenses da decorrentes entre autoridades coloniais, moradores e jesutas. A

    leitura dos escritos do perodo amaznico6 permite-nos acompanhar o conflito dos projetos

    polticos para os ndios, as disputas pelo poder temporal sobre as aldeias, as contendas pela

    distribuio da mo-de-obra, entre outras questes. Contudo, como procuraremos

    demonstrar, essas fontes tambm expressam, ao cabo, o modo sacramental pelo qual Vieira

    concebe e intervm na realidade histrica da qual participa.

    Ao se reportarem a situaes de conflito especficas da sociedade colonial situaes

    de conflito aberto entre padres e colonos, de guerra contra os ndios, descimentos etc.

    poderemos, por meios dessas fontes, mapear o contexto e os usos das tpicas do direito de

    guerra, de escravido e liberdade indgenas ento mobilizadas. Nesse sentido, teremos aqui

    a possibilidade de atestar o carter casusta do discurso vieiriano, apto a responder a

    questes divergentes postas em jogo. Veremos que a conciliao, tpica to prpria ao

    6 Convencionamos chamar de espao amaznico a extensa poro territorial da colnia que

    compreendia o Estado do Maranho e Gro-Par. Essa regio poltico-adminstrativa foi criada em 1654,

    como um Estado independente em relao ao Estado do Brasil. Alm disso, convencionamos chamar de

    perodo amaznico os anos entre 1653-1661, durante os quais Vieira missionou no Maranho e Par.

  • 9

    modo de proceder jesutico, mostrava-se como um instrumento fundamental da

    engrenagem discursiva e da ao poltica de Antnio Vieira.

    Iremos acompanhar o modo como eram feitos os contatos, as misses, as entradas e as

    guerras junto aos ndios. Enquanto as misses e os descimentos foram narradas como aes

    edificantes, as entradas e guerras movidas pelos colonos atestavam o desprezo da

    finalidade crist que, em primeira instncia, justificava a colonizao e submisso dos povos

    americanos. Poderemos atestar que as cartas e as informaes no raro acionavam a tpica

    do mistrio para ler a realidade que descreviam.

    Cabe dizer que ser fundamental perceber que os modelos retricos e os padres

    teolgico-polticos que informavam a interpretao de mundo no sculo XVII compunham

    parte essencial da escritura dos discursos. Na esteira de Alcir Pcora e Joo Hansen,

    entendemos que as cartas jesuticas escritas no espao americano devem ser interpretadas

    luz dos elementos retrico-poticos que compem o gnero epistolar nos sculos XVI e

    XVII.7 Nosso objetivo passa ao largo de uma discusso exaustiva dos princpios de

    composio dos gneros discursivos, contudo, cremos que alguns apontamentos nesta

    direo so fundamentais para o entendimento global dos documentos. Essa temtica ser

    melhor desenvolvida no segundo item do captulo 4, sobretudo quando discutirmos o valor

    da experincia e do exemplo histrico como lugares de autoridade e prova dos discursos.

    No captulo 5, nos ocuparemos de alguns dos sermes do Pe. Antnio Vieira. Como dito

    anteriormente, uma das finalidades da oratria sacra era desvelar os mistrios e, assim,

    poder instruir e dispor o fiel ao crist. Embora dos mais centrais, este no o papel

    exclusivo da oratria sacra. No caso jesutico, a comunicao dos sentidos teolgicos

    7 PCORA, Alcir. Cartas Segunda Escolstica. In: A Outra Margem do Ocidente. Adauto Novaes (org).

    So Paulo: Companhia das letras/ Minc. Funarte, 1999, p. 373-414. PCORA, Mquina de Gneros.

    Novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nbrega, Cames, Vieira, La Rochefoucauld,

    Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. So Paulo, Edusp, 2001. HANSEN, Joo Adolfo. Vieira e os estilos

    cultos: ut theologia rhetorica. In Revista Letras, n43, jul/dez de 2011.

    http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r43/artigo_01.pdf

    HANSEN. Correspondncia de Antnio Vieira (1646-1694): o Decoro. In Discurso. Revista do

    Departamento de Filosofia, FFLCH USP. So Paulo, n 31, 2000, p.259-284. HANSEN, texto de

    apresentao de Cartas. Alcir Pcora (org). So Paulo: Hedra, 2003. Ver tambm: LONDOO, Fernando

    Torres, Escrevendo Cartas Jesutas, Escrita e Misso no Sculo XVI. In: Revista Brasileira de Histria.

    V.22, n.43, So Paulo, 2002.

  • 10

    verdadeiros ao juzo imperfeito dos homens era uma dimenso essencial; da a

    interpretao adequada da doutrina contida nas Escrituras, a exposio do lugar ontolgico

    dos seres na ordem da Criao, a traduo do sentido figural dos eventos da histria.

    Porm, h pelo menos uma outra dimenso que no pode ser desprezada: a oratria sacra

    visa recolocar o auditrio diante dos mistrios, movendo-o afetivamente na direo dos

    seus sentidos espirituais profundos, em suma, promover a experincia mstica de

    comunho com o divino. Aqui a liturgia e, sobretudo, o ministrio dos sacramentos so os

    vetores principais desta experincia.8 Estas questes no fazem parte do escopo desta tese.

    No entanto, necessrio esclarecer que nossa interpretao rejeita a reduo da oratria

    sacra sua dimenso (teo)lgica.

    Enfim, no propomos a centralidade da teologia na oratria, mas acreditamos que h

    uma indissociabilidade entre a hermenutica jesutica da situao colonial e a hermenutica

    jesutica do mistrio, que base da orientao lgica da sua oratria. sob esta

    perspectiva que entendemos a construo da inveno da guerra na oratria, como sendo

    inveno teolgica da histria e como concepo misteriosa da poltica, definida pela moral

    crist.

    Estas ideias so o ponto de partida para compreendermos a leitura de Vieira sobre a

    guerra contra os ndios. Acreditamos que o jesuta a concebe como tendo um lugar na

    histria escatolgica crist e que, no ofcio de seu apostolado, este era um enigma

    misterioso a ser esclarecido. A partir de sua prdica, Vieira intentava conciliar a vontade e a

    ao dos colonos vontade divina. No caso da Amrica portuguesa, esperava-se dos

    colonos aes que ajudassem o projeto poltico dos jesutas: inversamente ao que

    praticavam, cabia-lhes participar da integrao dos ndios ordem colonial; etapa inicial

    para resgat-los da gentilidade. A guerra, neste contexto, um problema central pelo fato

    de ser um dos principais meios de se capturar escravos. A questo de sua justia era, por

    um lado, a clivagem da legalidade da utilizao do indgena como mo-de-obra em uma

    economia escravista. Por outro lado, era tambm a garantia de que o sentido evangelizador

    da colonizao fosse mantido.

    Neste captulo analisaremos os sermes de padre Vieira que, implcita ou

    explicitamente, testemunham seu olhar sobre a guerra contra os ndios. Na colnia,

    pecados como a cobia, a vaidade, o desamor, a avareza etc., conformavam a degradao 8 PCORA, Teatro do Sacramento, Op.Cit., ver captulo I, 4 De uma Trindade Perfeita.

  • 11

    em que vivia aquela sociedade. Em vista desse ambiente, a guerra precisa ser pensada no

    interior de um sistema soteriolgico anlogo aos planos divinos para a histria. Nesse

    sistema, a guerra, ou melhor, os juzos a respeito dela e as escolhas a ela relacionadas,

    possuem profundas implicaes ticas e morais. Isso porque, as escolhas so determinantes

    dentro de um sistema salvfico que impe as boas obras como uma condio para a

    justificao. Propomos pensar a guerra como uma tpica, o que significa que a

    compreendemos como sendo um lugar que encerra um conjunto de argumentos voltados

    tomada de posies e ao, tica e moralmente ordenadas conforme princpios

    evanglicos explanados pelo pensamento jesutico.

    Demonstraremos que, para Vieira, a guerra estava na origem de todos os pecados que

    enredam os colonos do Maranho e Gro-Par. Admoestar contra a cobia, censurar a

    vaidade, condenar os cativeiros ilegtimos, denunciar a injustia da guerra postar-se

    contra os nimos e as aes distanciadas do bem cristo que, ciclicamente, enredavam

    aquela sociedade condenada. Neste sentido, os sermes propunham inteleco

    imperfeita dos homens o reconhecimento do mistrio, que, por sua vez, era a mediao dos

    desgnios ocultos da Providncia. Ao jesuta, como membro e porta-voz da Igreja, cumpria

    anunci-lo e decifr-lo ao auditrio de fiis. Para isso, expe a adequada interpretao da

    doutrina e traduz os sentidos figurais dos eventos histricos (da a base teolgica da

    parentica), investe contra os enganos e vcios que corrompem as conscincias, comove e

    consola o esprito dos homens levando-os a comunho com o Criador. Lanamos, assim, a

    hiptese de que os sermes, ao comunicarem a guerra pela via misteriosa, a entendiam

    como uma ocasio em que os colonos poderiam, pela escolha do livre-arbtrio, realizar ou

    contraditar o plano divino. Se na concepo do mistrio temos que o divino sacramenta as

    mais diversas substncias e circunstncias, a guerra oferecia os elementos duais e

    contraditrios prprios expresso do universo sacramental cristo. Para Vieira, o mistrio

    sinalizava e o pregador evanglico desenganava, aos homens, contudo, restava escolher e

    agir em conjunto com a Providncia. Com isso, podiam ou no colaborar para sua prpria

    salvao e para o destino da monarquia catlica portuguesa.

  • 12

  • 13

    PARTE I

  • 14

  • 15

    1. Mistrios e interpretao da histria na soteriologia jesutica

    1.1 Introduo

    Esse captulo se prope a compreender como a tpica do mistrio fundamental para

    hermenutica jesutica se constituiu como um mecanismo privilegiado de compreenso do

    mundo nos sculos XVI e XVII. O mistrio entendido como a forma pela qual Deus sinaliza

    para os homens sua presena constante no mundo criado, indicando e comunicando seus

    desgnios. Para tanto, parte-se da ideia de que os homens so seres especiais dentre todas

    as criaturas: sendo fruto de uma escolha amorosa de Deus, os homens so capazes de uma

    unio com o transcendente. Como veremos, segundo a filosofia crist, isto s possvel

    atravs da graa que institui a participao do homem no Ser de Deus.

    Nosso objetivo ser demonstrar que, no interior do pensamento cristo e, mais

    especificamente jesutico, haveria uma compreenso humanista do homem que o

    capacitaria a conhecer e agir na direo do Bem. Mais importante, pelo uso prudente da

    razo, ser-lhe-ia possvel adequar a sua vontade e a sua ao vontade de Deus. Nesse

    sentido, caberia aos homens o papel de coadjutores da Providncia para a consecuo do

    reino de Deus na terra.

    Contudo, a despeito da graa (disponvel a todos os homens) e da razo natural, o

    homem (em decorrncia do pecado original) permaneceria incapaz de conhecer plena e

    isoladamente a Verdade. Por essa razo, a magnanimidade divina institui os mistrios no

    mundo criado. A Igreja e seus membros seriam, exclusivamente, os mediadores da

    comunicao humana com o divino, realizada atravs do ministrio dos sacramentos e da

    oratria sacra. Ao sacerdote caberia, portanto, o papel de ajudar os homens na busca da

    salvao de suas almas, que, catlica e tridentinamente, d-se pela graa, pela f e pelas

    obras. Enfim, os mistrios revelados no mundo, e interpretados pelos padres, teriam a

    funo de advertir os homens sobre os enganos e os vcios, sinalizando, enfim, para as aes

    prudentes consoantes vontade de Deus. Todavia, como procuraremos deixar claro, os

    mistrios no agem de forma coativa aos homens, pelo contrrio, h aqui a afirmao do

    livre-arbtrio e de seu valor moral tpica esta genuinamente inaciana.

  • 16

    A apresentao do entendimento teolgico-cristo sobre a salvao e os mistrios,

    notadamente no pensamento jesutico, dar o fundamento doutrinrio e teolgico

    necessrio para compreendermos o sentido missionrio e o carisma que animavam a ao

    da Companhia de Jesus junto aos ndios e colonos da Amrica portuguesa no sculo XVII.

    Como procuraremos demonstrar atravs da anlise dos discursos do padre Antnio Vieira,

    os mistrios desvelados em seus sermes tinham o sentido de desenganar os colonos contra

    os vcios que enfraqueciam o real motivo de sua presena no Novo Mundo, qual seja,

    promover a incorporao dos ndios ordem colonial e, assim, facultar-lhes a entrada no

    grmio da Igreja e do Estado na condio de sditos cristos. Cumprindo esta misso

    providencial, estariam eles mesmo colaborando para sua prpria salvao.

    1.2. A construo do ethos jesutico

    O fundamento missionrio dos pilares mais centrais por meio dos quais se institui a

    Igreja Catlica, estando isso evidente na efuso do Esprito Santo nos Apstolos no dia de

    Pentecostes9. O Evangelho diz: ir anunciar a obra e a palavra do Mestre a todas as gentes

    (Mt 28, 20) Tal fundamento , sem dvida, parte essencial na construo do ethos da

    Companhia de Jesus. Fundada por Santo Incio de Loyola em 1534, na esteira da Contra-

    Reforma10, a ordem constituiu-se como herdeira da vocao apostlica num momento em

    9 O Pentecostes a celebrao da efuso do Esprito Santo. Para os cristos, o Pentecostes marca o

    nascimento da Igreja e sua vocao para a misso universal. Pentecostes Tendo-se completado o dia

    de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do cu um rudo como o

    agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes,

    ento, lnguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram

    repletos do Esprito Santo e comearam a falar em outras lnguas, conforme o Esprito lhes concedia se

    exprimissem. (At 2, 1-5). 10 Na viso de OMalley, o surgimento da Companhia no deve ser entendido como uma resposta ou

    reao catlica Reforma, embora seu destino tenha sido fortemente marcado pelo movimento da

  • 17

    que as fronteiras do mundo conhecido se dilatavam: ir pregar aos novos gentios, era a

    missio colocada aos jesutas.

    Diferente das outras ordens religiosas, a Companhia de Jesus representa um modelo

    de espiritualidade e de ao que se projeta no mundo. O monasticismo, onde a experincia

    com Deus se d claustro, abandonado pelos jesutas, que introduzem a ideia de uma

    ascese no mundo11. At ento, acreditava-se que, pela contemplao, o homem purificava-

    se, mas, ainda assim, a salvao era uma graa de Deus. Mesmo a escola mstico-asctica,

    que introduz pela primeira vez um caminho prtico (exerccios ascticos) em oposio a

    uma mstica exclusivamente passiva, considerava que uma tal via purgativa preparava o

    Contra Reforma (ou como prefere o autor, Reforma Catlica). Para ele, a Companhia teria existido

    independentemente da Reforma. Para o autor: No h necessidade de acentuar que a Reforma

    influenciou a imagem da Companhia de Jesus, que de fato frequentemente descrita como tendo sido

    fundada precisamente para opor-se ao protestantismo. Esta descrio, obviamente, erra o alvo. (p.36)

    E mais: Em muitas partes do mundo, o impacto direto da Reforma sobre os jesutas varia do mnimo

    at o inexistente. O impacto indireto outra questo totalmente diferente e muito mais complexa.

    Ainda sobre esta questo, o autor entende que o programa institudo pelo Conclio de Trento no

    coincide exatamente com o da Companhia: Nem todas as caractersticas que associamos ao

    catolicismo tridentino encontram comprovao na Companhia de Jesus. Mais especificamente, apesar

    do envolvimento de alguns poucos jesutas lderes no Conclio de Trento e do evidente apoio da

    Companhia ao Conclio, os jesutas como um corpo tinham caminhos significativamente diferentes para

    alcanar as metas comuns que compartilhavam com o Conclio. Para o autor, os jesutas no seguiram

    risca a agenda tridentina, pois tinham sua prpria agenda. OMALLEY, John W. Os Primeiros Jesutas.

    So Leopoldo, RS: Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.37-38. 11 Em um dos textos fundadores da Companhia de Jesus, a Frmula do Instituto, ficava estabelecido que,

    contrariamente a outras ordens religiosas, a Companhia no obrigaria seus membros a recitar e cantar

    em conjunto em longas jornadas litrgicas. Por outro lado, como nos informa John W. OMalley, a

    Frmula estipulava que os jesutas (...) tinham que pronunciar um voto especial a Deus que os

    comprometia a percorrer qualquer lugar do mundo para realizar o ministrio, quando assim ordenado

    pelo Papa. Segundo o autor, esse documento oficial da ordem um dos menos conhecidos entre

    queles atribudos a Igncio de Loyola. A redao da Frmula (1539) contou ainda com o auxlio de um

    comit, cujo destaque foi a contribuio do jesuta Joo Alfonso de Polanco, secretrio de Loyola. Aps a

    morte de Loyola, o documento foi revisado em 1550. Nessa segunda verso foram incorporadas

    algumas clarificaes e introduzidas mudanas decorrentes da experincia missionria, que ocorriam

    desde 1540. Idem, p.21-22.

  • 18

    homem, no melhor dos casos, para receber a inspirao divina. A unio com Deus

    continuava, pois, como um dom extraordinrio e voluntrio de Deus.

    A novidade trazida pelos jesutas , justamente, um modelo de espiritualidade que v

    no homem aptides para se alcanar a perfeio. Isto no significava em absoluto a

    negao do ato divino da graa, porm introduzia a ideia de que era possvel um

    aperfeioamento espiritual, fruto de uma escolha racional, que se constituiria numa

    condio pra a justificao. Conforme o estudioso da Companhia de Jesus, Ren Flop

    Miller,

    Segundo essa concepo, o homem no estava mais condenado a

    esperar pacientemente se e quando essa visio Dei viria ter com ele; pelo

    contrrio, foi atribuda vontade humana essa fora que, anteriormente, se

    buscara apenas na ao de uma transfigurao sobrenatural.12

    Assim escreve Loyola a um irmo da ordem: Todas as vezes que eu quiser, poderei

    encontrar a Deus.13 Basta para isso que o homem aspire a Deus de forma adequada, onde

    alm do fervor, haja necessariamente o uso acertado das aptides naturais. Assim como,

    (...) pelo caminhar, a marcha e a carreira o corpo pode ser treinado, assim tambm

    possvel preparar a vontade por meio de exerccios, a fim de que ela encontre a vontade

    divina.14

    Encontrar a vontade divina tambm se postar como soldado militante, empenhado

    na luta pelo Reino e pela Glria de Deus. Nos Exerccios Espirituais, o Jesus Cristo descrito

    por Igncio de Loyola no aparece como objeto de meditao contemplativa, mas sim como

    um Rei em luta contra as foras infernais. Cristo dirige a palavra aos exercitantes e exige

    deles deciso e ao: os jesutas devem ser, pois, os seus mais devotados soldados em

    12 MILLER, Ren Fllop. Os Jesutas: seus segredos e seu poder. Traduo Alvaro Franco. Rio de Janeiro/

    Porto Alegre/ So Paulo: Edio da Livraria do Globo, 1946, p.22. Sobre essa obra, importante salientar

    que, em nossa opinio, o autor por vezes exagera ao descrever a autonomia da vontade para a

    justificao, encolhendo, consequentemente, o papel da graa neste processo. Voltaremos a esse ponto

    adiante. 13 LOYOLA apud Miller, Idem, p.22. 14 LOYOLA apud Miller, Idem, p.22 (grifo nosso)

  • 19

    campanha. O Reino todo deve ser trazido verdadeira F; a converso dos gentios ,

    portanto, dever dos soldados.

    Sobre a imagem da Companhia como um exrcito militante, OMalley nos esclarece

    que:

    Porque as meditaes [parte do texto dos Exerccios Espirituais]

    empregam imagens blicas, elas tm ajudado a sugerir a interpretao de que

    a Companhia de Jesus foi concebida segundo um modelo de exrcito. Nessa

    mesma exortao, como tambm em outros lugares, Nadal apoiou tal ponto

    de vista quando, por exemplo, perguntou: Voc no v que estamos em

    guerra, que estamos em luta? Ele fez assim ainda mais enfaticamente quando

    chamou a Companhia de esquadro. Em outros documentos jesuticos, tal

    imagem ocorria repetidamente e tinha at mesmo certa proeminncia.

    Contudo, no os domina como um motivo condutor. 15

    Enfim, a reforma crist do mundo, segundo os Exerccios, dependeria da ao

    afirmativa dos jesutas como um homem completo. Pois (...) s o homem completo, sem

    renunciar a quaisquer de seus dotes, intelectivos, sensveis e ativos, poderia esperar

    encontrar o caminho para aquele que o criou nessa inteireza.16

    Em outro texto fundador da Companhia, as Constituies17, est estabelecida a relao

    que h entre a salvao dos membros da ordem e a salvao dos outros: a primeira no

    ocorre sem o trabalho assduo e dedicado na direo da segunda a busca pela salvao do

    15 OMALLEY. Op.Cit. p.75. 16 PCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antonio

    Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008, p.68. 17 A primeira impresso das Constituies, na sua verso latina, data de 1558-1559. Segundo OMalley,

    as Constituies (...) articulavam os princpios gerais segundo os quais a Companhia esperava alcanar

    suas metas e traduziam as generalidades da Frmula para estruturas e procedimentos concretos.

    Alcanaram isso principalmente enfocando a qualidade essencial que a pessoa deveria ter para o

    sucesso dessa associao voluntria. (...) As Constituies esto estruturadas, em grande parte, sobre

    princpios de desenvolvimento espiritual com a ideia de que o jesuta cresceria espiritualmente e que

    as diferentes orientaes seriam adequadas aos diferentes tempos e etapas do percurso espiritual.

    Segundo o autor, o secretrio de Incio de Loyola, Jernimo Nadal, teve papel fundamental na redao

    do documento. OMALLEY. Op.Cit. p.24.

  • 20

    prximo, como ato caritativo e participao na coautoria da Providncia, meio para se

    buscar a remisso prpria. O modelo da espiritualidade jesutica, enfim, volta-se para a

    alma do prximo e, nesse sentido, a misso a expresso exata dessa vocao.18 Podemos

    evidenciar o imbricamento entre a santificao pessoal e a atividade apostlica em um

    documento anterior mesmo s Constituies:

    O fim da Companhia no somente ocupar-se da salvao e perfeio

    das almas prprias com a graa divina, mas tambm com a mesma, procurar

    intensamente ajudar a salvao e perfeio dos prximos.19

    importante notar que a santificao pessoal do jesuta continua sendo, antes de

    mais nada, obra da graa. Jesus Cristo, como juiz justssimo e misericordioso, quem

    justifica e santifica, conforme uma perfeio de juzo indisponvel aos homens. De maneira

    anloga, a salvao do prximo tambm depende do ato divino e da vontade de cada fiel.

    Nesse sentido, o papel do missionrio, como descrito no documento acima, no salvar,

    mas procurar intensamente ajudar a salvao e perfeio dos prximos; para isso, enfim,

    que o jesuta desempenha seu ministrio, numa clara vocao apostlica.

    Presente desde o incio da expanso ultramarina das monarquias ibricas, a

    Companhia de Jesus levou suas misses aos quatro quadrantes do Orbe, sendo, no caso

    portugus, a ponta de lana para a consolidao dos empreendimentos coloniais. A

    construo de uma unidade jesutica se deu, portanto, pari passu fragmentao

    18 importante ressaltar que, paralelamente vocao missionria, os jesutas assumiram um papel

    pioneiro e fundamental no campo da educao, com a fundao de inmeros colgios ao redor do

    mundo. Assim, ao longo dos sculos, a Companhia de Jesus orientou seus objetivos no somente para a

    instruo de seus prprios membros, mas tambm dos jovens em geral. Desta maneira, como explica

    Josette La Roche, os jesutas buscaram (...) ensinar as letras e a virtude juventude, com o objetivo de

    faz-la um meio de promoo dos valores defendidos pela Companhia, em seu mundo. LA ROCHE,

    Josette Riandire. La formation de lenfant par les jsuites. Lexemple du collge dOcaa. In:

    REDONDO, A. (org.). Formation de lenfant en Espagne au XVIe et XVIIe sicles. Paris: Publications de la

    Sorbonne, 1996, p. 194. Citado em CASTELNAU-LESTOILE, C. Operrios de uma Vinha Estril. Os jesutas

    e a converso dos ndios no Brasil 1580-1620. Bauru: SP: EDUSC, 2006. 19 LOYOLA, Incio de apud LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao

    Brasileira, 1950, tomo I, p.9.

  • 21

    caracterstica de sua atividade itinerante. Isto s foi possvel graas a uma particular

    organizao poltica-institucional e identidade espiritual, definidas modelarmente em seus

    textos fundadores: as Constituies e os Exerccios Espirituais.20 A frmula expressa no

    nosso modo de proceder (noster modus procedenti) representa bem a interpretao moral e

    institucional da vocao inaciana. Nela esto, essencialmente, a combinao entre a

    obedincia e a adaptabilidade, por um lado, e a instituio epistolar, por outro.

    A obedincia exigia uma reflexo e reconstruo das ordens dadas pelos superiores,

    possvel pelo exame minucioso do argumento, algo bastante diferente de uma aceitao

    passiva comum obedincia vivida nos monastrios. Dentro do modo de proceder jesutico,

    a obedincia deveria ser acompanhada da prudncia, que, dessa forma, abria espao para o

    casusmo, os exerccios da razo prtica e da tomada de decises acertadas. Enfim, a

    obedincia em conjunto com a prudncia dava ensejo adaptabilidade condio essencial

    para o sucesso das misses em contextos culturais e geogrficos to dspares.21

    Sobre essa questo, OMalley nos informa que o documento jesutico Chronicon

    Societatis Jesu uma fonte exemplar que desfaz o esteretipo de uma ordem fundada em

    uma obedincia cega. Para ele, o documento:

    Substitui esta imagem com o quadro de uma vasta rede de indivduos

    empreendedores, que mantendo estreita comunicao com seus superiores

    20 Para um bom estudo dos contedos dos textos jesuticos fundadores, as Constituies e os Exerccios

    Espirituais, ver: MILLER, Op. Cit.; CASTELNAU-LESTOILE, Op.Cit.; OMALLEY, Op.Cit. 21 Miller nos oferece uma boa explicao para o sentido jesutico de obedincia: Distingue Incio,

    cuidadosamente, diferentes graus de obedincia: o grau mais baixo, a obedincia do ato, puramente

    exterior, consiste em que o subordinado se limite a executar a ao de que foi incumbido; essa

    obedincia, designava-a Loyola como muito imperfeita. O segundo grau caracterizado pelo fato de

    que o subordinado torna sua a vontade do superior; esse grau j proporciona alegria ao ato de

    obedecer. Mas quem quiser dedicar-se por inteiro ao servio do Senhor, dever oferendar, alm de

    sua vontade, tambm o seu raciocnio: Haver mister que ele chegue ao ponto de no se limitar,

    apenas, a querer a mesma coisa que o superior, mas tambm a pensar da mesma maneira que ele, que

    o seu julgamento se submeta ao do seu superior, na medida que a vontade entregue possa dobrar a

    inteligncia. MILLER, Op.Cit., p.39.

  • 22

    e recebendo deles orientao e consolao adaptam-se s necessidades

    locais e tentam aproveitar as oportunidades como se apresentam.22

    As cartas, por sua vez, tinham um papel fundamental para a unidade institucional e

    doutrinria da Companhia de Jesus, sendo, sem exageros, a espinha dorsal da ordem.23 As

    cartas eram a forma exclusiva de comunicao e registro, essencial organizao e controle

    do corpo hierrquico, pois mantinham a conformidade da prtica missionria s normas da

    instituio. Esta correspondncia circulava em dois sentidos, da hierarquia na Europa s

    provncias em todo o mundo, e dessas provncias para as autoridades eclesisticas

    europeias. Por fim, mas no menos importante, as cartas promoviam a unio dos irmos

    em uma s vontade, alcanada, pois, pelos efeitos consoladores e edificantes presentes nas

    cartas. O estilo discursivo das cartas obedecia a um rigoroso enquadramento retrico-

    potico, fundado na ars dictaminis medieval. 24

    22 OMALLEY. Op.Cit., p.30. O Chronicon Societatis Jesu foi escrito pelo secretrio de Incio de Loyola,

    Joo Alfonso de Polanco, um dos jesutas mais importantes da primeira gerao e que produziu um

    legado profundo para as geraes posteriores. Como secretrio da Companhia, valia-se da vasta

    correspondncia trocada entre os membros para compor cartas circulares, na qual resumia as atividades

    mais importantes dos jesutas nas diversas misses espalhadas pelo mundo. Segundo OMalley, o

    trabalho mais extenso de Polanco foi a Chronicon, ditado a outros secretrios entre os anos de 1573-

    1574. O trabalho (...) uma crnica detalhada das atividades dos membros da Companhia, casa por

    casa, provncia por provncia, pas por pas, ano por ano, desde 1537 at a morte de Incio em 1556. (...)

    Polanco relatou na crnica, quando podia, o nmero de jesutas em cada casa, seus sucessos e fracassos

    nos ministrios, seus relacionamentos com as classes altas e baixas da sociedade. Polanco pesquisou os

    arquivos da correspondncia que lhe havia chegado para sua informao, que conhecia melhor do que

    qualquer outro. O Chronicon contm as imperfeies de todos os documentos desse gnero.

    OMALLEY, Op.Cit. p.29-30. 23 CASTELNAU-LESTOILE, Op.Cit., p.72. 24 Para o entendimento da Companhia de Jesus como uma instituio epistolar, ver: LODOO, Fernando

    Torres, Escrevendo Cartas Jesutas, Escrita e Misso no Sculo XVI. In: Revista Brasileira de Histria.

    V.22, n.43, So Paulo, 2002. Para uma boa apreciao dos estilos e partes das cartas, ver: PCORA,

    Cartas Segunda Escolstica. In A outra margem do Ocidente. Adauto Novaes (org). So Paulo:

    Companhia das letras/ Minc. Funarte, 1999, p. 373-414. PCORA, Alcir. A arte das cartas jesuticas do

    Brasil. In Mquina de Gneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nbrega,

    Cames, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. So Paulo: Edusp, 2001, p.17-68.

  • 23

    A espiritualidade jesutica que se projeta no mundo exterior atravs da misso guarda

    no apstolo Paulo uma particular fonte de inspirao. 25 A identificao mais primria e

    evidente apresenta-se na figura do gentio, alvo dos apostolados jesutico e paulino, no

    obstante as diferenas histricas e culturais que distanciam tais gentios. O ministrio

    jesutico voltava-se, sobretudo, ao cuidado das almas das ovelhas perdidas, fossem elas

    pags ou hereges. No que diz respeito a essa questo encontramos as palavras de OMalley,

    que afirma:

    (...) assim como o evangelizador Paulo e os primeiros discpulos de Jesus

    foram modelos operativos mais poderosos na auto-imagem do jesuta do que

    o modelo do soldado cristo, sua vocao, como as Constituies colocavam,

    era viajar atravs do mundo e viver em qualquer parte dele, onde houvesse

    esperana de maior servio a Deus e de ajuda s almas.26

    Vejamos num rpido exemplo, como o entendimento que o apstolo tem dos pagos

    influenciou o modo como os primeiros jesutas interpretaram os ndios da Amrica

    portuguesa.

    So Paulo, em sua Epstola ao Romanos, reconhece que os pagos tm acesso a certos

    conhecimentos de Deus, independentemente de qualquer revelao:

    Pois, o que de Deus se pode conhecer, bem o conhecem eles; porque

    Deus lho ensinou. Com efeito, o que nele h de invisvel, contempla-o a

    inteligncia em suas obras desde a criao do mundo: o seu poder sempiterno

    e a sua divindade. (Rm 1, 19-20).

    Voltaremos a discutir a produo epistolar dos jesutas, e de Vieira em particular, no captulo 4, item

    4.3. Entradas, misso e mistrio em cartas e informaes de Pe. Antnio Vieira. 25 Vale lembrar que o apstolo Paulo foi tambm fonte de inspirao para a doutrina reformada. Na

    teoria da justificao pela f, somente a Graa concorre para a salvao dos homens (predestinao),

    no importando, portanto, a iniciativa e esforo humanos. Paulo citado como autoridade desse

    argumento; entre uma das passagens podemos citar: Logo isso no depende do que quer, nem do que

    corre, mas de Deus, que usa misericrdia (Rm 9,16). Voltaremos a esse ponto a seguir, quando

    discutirmos a questo do livre-arbtrio no pensamento jesutico. 26 OMALLEY. Op.Cit. p.118.

  • 24

    Ademais, reconhece aos gentios um saber natural acerca da lei moral:

    Se os pagos, que possuem a lei, fizerem de modo natural o que pede a

    lei, ento eles, que no tm lei, servem de lei a si mesmos; por sinal que

    mostram levar gravada no corao a essncia da lei. (Rm 2, 14).

    Os primeiros jesutas que travaram contato com os ndios, a despeito do

    estranhamento e repulsa causado pelos costumes dos naturais da terra, no deixaram de

    afirmar em seus relatos a presena de uma rudimentar ideia de Deus. So famosas as

    passagens em que o padre Manuel da Nbrega identifica no mito de Sum as

    reminiscncias corrompidas do apostolado de So Tom.27 Haveria, portanto, uma

    inclinao crist nos ndios, muito ressaltada nas primeiras cartas, cuja centelha da F

    haveria de ser acesa pelo trabalho missionrio jesutico. Creio ser bastante apropriado as

    27 Segundo Srgio Buarque de Holanda, o mito de Sum (o apstolo So Tom) foi o nico difundido

    pelos portugueses nos primeiros tempos da colonizao, ao passo que coube aos espanhis a inveno

    de inmeros outros. O mito de So Tom remonta ao sculo VI com a crena de comunidades crists no

    Oriente. Na Amrica o primeiro registro do mito apareceu numa crnica de viagem de 1514. A lenda

    difundia que o apstolo teria pregado a Palavra aos gentios em tempos imemoriais, e dessa passagem

    pelo Novo Mundo ficaram inscritas as suas pegadas. Essa crena lusa parece ter sido corroborada pelos

    ndios que, segundo vrias fontes, insistiam em mostrar aos adventcios os rastros do apstolo. Parece

    de qualquer modo evidente que muitos pormenores dessa espcie de hagiografia do So Tom

    brasileiro se deveram sobretudo colaborao dos missionrios catlicos, de modo que se incrustaram,

    afinal, tradies crists em crenas originrias dos primitivos moradores da terra. Entre os jesutas, os

    principais divulgadores do mito foram Manuel da Nbrega e Simo de Vasconcelos. Contudo, h notcias

    de So Tom at mesmo nas crnicas do protestante ingls Anthony Knivet. HOLANDA, Srgio Buarque.

    Viso do Paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil. So Paulo: Ed.

    Brasiliense, 6.ed., 1994, p.113. Ver p.108-129. Antnio Vieira tambm faz menso ao apostolado de So

    Tom: Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tom estampadas

    em uma pedra que hoje se v as praias da Bahia; mas rasto, nem memria da f que pregou Santo

    Tom, nenhum acharam nos homens. No se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente. Nas

    pedras acharam-se rastos do pregador, na gente no se achou rasto da pregao; as pedras

    conservaram memria do apstolo, os coraes no conservaram memria da doutrina. VIEIRA,

    Antnio, Sermo do Esprito Santo, So Lus do Maranho, 1657. Alcir Pcora (org). So Paulo: Hedra,

    2003, tomo I, p.422.

  • 25

    aproximaes entre os jesutas e So Paulo, no que toca razo do apostolado entre os

    gentios.

    No entanto, sobretudo a concepo paulina de comunidade crist (ekklesia) que os

    jesutas parecem mais se aproximar, pois nela que encontraram o princpio que definiria

    sua misso apostlica como uma misso universalista. So Paulo, a despeito de seu

    importante papel na teologia crist, foi antes de tudo um pregador e fundador de

    comunidades: suas sete cartas, compostas ao redor dos anos 50 e 60 do sculo I,

    testemunham a viso do apstolo sobre a vida religiosa das igrejas dos primeiros tempos.

    Segundo o historiador Adoni Agnolin, o fulcro do pensamento paulino pode ser

    expressado pela seguinte sentena: F certeza nas coisas esperadas, demonstrao das

    coisas que no se vem (Hebreus 11, 1). Trata-se da f e esperana na existncia do Reino

    dos Cus e na imortalidade da alma, que, assim, tem a possibilidade de fazer parte dele. A

    f na admisso da alma do fiel no Reino de Deus (interpretao bastante diferente da

    veterotestamentria) estende a possibilidade da salvao. Para o autor, a eclsia paulina

    (...) encontrava-se aberta em direo ao exterior e, ao mesmo tempo, caracterizava-se por

    uma mobilidade scio-religiosa que englobava o mundo, quase sem limites.28 parte as

    distines tnicas, sociais ou de origem, a eclsia mostra-se receptiva e abrangente, sua

    unidade, pois, era decorrncia da transformao interior dos homens, experimentada,

    sobretudo, no momento litrgico. Na Carta aos Romanos diz Paulo: No vos identificais

    com o esquema deste mundo, mas transformai-vos atravs da renovao da mente. (Rm

    12, 2). Segundo Agnolin:

    No se tratava, portanto, de substituir (subverter) o esquema do mundo

    dado, mas de transformar o mundo na prpria interioridade (o homem

    interior, segundo a repetida expresso do apstolo), vivendo uma realidade

    diferente e sobrenatural inspirada na forma de Cristo. Nesse sentido,

    segundo Paulo, no havia um projeto poltico de transformao da plis, mas

    havia um projeto de transformao interior do homem que se fundamentava

    28 AGNOLIN, Adoni. Jesutas e Selvagens. A negociao da F no encontro catequtico-ritual americano-

    tupi (sc. XVI-XVII). So Paulo: Humanitas/Fapesp, 2007, p.123.

  • 26

    no novo polteuma a nova cidadania desejada pelo crente que se

    encontrava somente longe deste mundo, nos cus.29

    A eclsia prpria da concepo paulina, enfim, abre-se numa perspectiva universalista

    (...) peculiar e abrangente, paralela quele do Imprio (romano) no qual de forma

    exemplar, sobretudo, com a obra agostiniana se enxertar na (e fortalecer

    sucessivamente a) dimenso universal de uma religio finalmente imperial.30

    No interior do pensamento jesutico, soma-se, concepo universalista da misso,

    uma profunda confiana na participao do homem em sua prpria salvao (j sinalizada

    no incio do captulo). Essa crena deve ser entendida no como uma autonomia humana

    frente vontade divina, mas, pelo contrrio, como consequncia do ato extremo de amor

    divino, que, pela graa, funda no homem a participao em seu Ser, e, assim, dota-lhe da

    capacidade de ir em busca do Bem (finalidade de toda criatura). Esta ideia central do

    pensamento jesutico de suma importncia para esta pesquisa, por essa razo, iremos a

    partir de agora acompanhar a origem de seus argumentos no interior da filosofia crist.

    1.3. Livre-arbtrio e salvao na ortodoxia crist

    Alcir Pcora, em seu livro Teatro do Sacramento31, identifica um autntico entusiasmo

    humanista na Companhia de Jesus, particularmente manifesto na extensa obra

    sermonstica do padre Antnio Vieira. Esse humanismo, todavia, precisa ser entendido para

    alm da presena de uma vasta rede de autores clssicos (filsofos, poetas, moralistas,

    historiadores) que compe as referncias literrias da poca renascentista e barroca.

    29 Idem, p.124. Os argumentos expostos pelo autor fundamentam-se na obra Antropologia delle origini

    cristiane, dos autores Adriana Destro e Mauro Pesce. 30 Idem, p.122. 31 PCORA, Alcir. Teatro do sacramento. A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de Antonio

    Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ So Paulo: Edusp, 2 ed., 2008.

  • 27

    Nota-se que, em Vieira, a referncia aos autores clssicos est condicionada pela forte

    influncia da Segunda Escolstica (neotomismo), que foi conduzida, primeiramente, por

    pensadores dominicanos e, num segundo momento, pelos jesutas.32

    Em um entendimento mais precpuo, o humanismo jesutico deve ser lido luz do alto

    sentido da Criatura Humana na inteireza crist do termo 33 o que nos leva de imediato

    a considerar a particularidade do homem dentro da obra da Criao. Os homens, enquanto

    gnero, foram escolhidos (eleitos) para receberem a graa de Deus, como um ato expresso

    de sua Vontade. Desta eleio surge a possibilidade de se estabelecer uma relao de unio

    com Deus, que exclusiva dos homens entre todas as outras criaturas. Enfim, o homem

    objeto de uma escolha amorosa de Deus e, nas palavras de Pcora, (...) uma escolha

    desinteressada que no tem outro propsito seno estender aos homens a participao no

    seu Ser.34 Vejamos, de maneira breve, como esse argumento construdo dentro da

    ortodoxia crist.

    No pensamento cristo, tudo que existe deve necessariamente a Deus o seu ser, que ,

    portanto, causa primeira da Criao: (...) Deus o ser primeiro e absolutamente perfeito;

    ele deve portanto ser necessariamente a causa que faz ser tudo o que existe.35 Nesta ideia,

    a ao criadora no se d a partir de uma matria preexistente, pelo contrrio, exclui toda

    suposio deste gnero Deus criou e cria coisas ex nihilo. No mundo cristo, a criao a

    32 Este movimento intelectual teve profundo impacto na reordenao catlica dos sculos XVI e XVII

    vivenciada, sobretudo, nas monarquias ibricas. Segundo Quentin Skinner, as teorias neotomistas

    tiveram grande importncia na fundao do pensamento poltico moderno. Na sua primeira fase, o

    neotomismo tem como maiores expoentes os dominicanos Francisco de Vitria, Covarrubias, Melchior

    Cano e Domingo de Soto na primeira metade do sculo XVI. J na segunda fase, destacam-se os

    jesutas Francisco Suarez e Luis Molina (ambos professores em Portugal, o primeiro em Coimbra, o

    segundo em vora). SKINNER, Quentin. As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1996. Ver a parte 5, O Constitucionalismo e a Contra-Reforma, especialmente,

    o captulo 14. 33 PCORA, Op. Cit., p.70. 34 Idem, p.71. 35 GILSON, tienne. O Esprito da Filosofia Medieval. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.100.

  • 28

    emanao do ser total, a partir do nada, e se d pela (...) evocao de algo fora do nada

    pela simples palavra fiat36, exemplarmente expressa nos primeiros versculos do Gnesis.37

    No pensamento cristo, somente Deus Ser (...) esse nome pertence a esse ser

    nico num sentido que s a ele convm pois somente nele a existncia idntica

    essncia38. Disso decorre que somente o Ser capaz de conceber o ser: a criao

    portanto a ao causal prpria de Deus, ela lhe possvel e s possvel para ele.39 Se

    Deus o Ser, e tambm nico, tudo o que no Deus s pode dele receber sua existncia.

    Consequentemente, os seres so, ao mesmo tempo, efeitos da causa primeira e

    contingentes. verdade dizer, portanto, que, salvo Deus, tudo o que existe poderia no ser

    o que , como passa a ser verdade dizer que, fora Deus, tudo o que existe poderia no

    36 Idem, p.92. Ver nota 5, que discute a diferena entre o entendimento platnico e cristo sobre a

    criao. 37 Gilson problematiza a questo indagando-nos como pensar esse nada seno como (...) uma

    espcie de matria de que o ato criador tira seus efeitos? No pensamos seno a mudana, a

    transmutao, a alterao; para pensar a criao, teramos de poder transcender, ao mesmo tempo que

    nosso grau de ser, nosso grau de causalidade.. Ainda em nota o autor acrescenta: Estamos portanto

    num desses pontos em que uma noo que, por si, racional pode escapar da razo na medida em que

    est privada do socorro da revelao. Ver o captulo Analogia, Causalidade e Finalidade, p.123 e nota

    7. 38 Gilson explica que a distino entre essncia e existncia foi um ganho da filosofia crist em relao

    filosofia grega de Plato e Aristteles. Segundo o autor: A distino real entre essncia e existncia,

    embora ela s se formule nitidamente a partir do sculo XIII, ento uma novidade filosfica, a qual,

    pode-se dizer, estava virtualmente presente desde o primeiro versculo do Gnese. Num ser criado, por

    mais simples que seja, mesmo se fosse uma forma separada e subsistente, como o Anjo, a essncia no

    contm em si a razo suficiente da sua existncia, mas precisa receb-la; logo, sua essncia realmente

    distinta da sua existncia. Essa composio radical, inerente ao estado da criatura, basta para distinguir

    todo ser contingente do Ser mesmo. Ver captulo Os seres e sua contingncia, p.90, ver nota 3. 39 Idem, p.122. Para reforar a explicao, citemos Gilson comentando So Toms: Em resumo, Deus

    causa porque ele o Ser e, como ele o Ser que no pressupe nenhum outro ser, ele a causa que

    no pressupe nenhuma outra causa. Ora, a causa primeira produz o primeiro efeito; o primeiro efeito,

    aquele que todos os outros supem, a existncia; cabe pois com exclusividade ao Ser causar a

    existncia, e isso criar. por isso que a criao o ato prprio de Deus. (ver p.122-123, nota 6).

  • 29

    existir40. No universo cristo, enfim, a existncia marcada por uma contingncia

    radical. Segundo Gilson:

    Todo ser contingente deve sua contingncia ao fato de que no mais que

    uma participao no ser; ele tem seu ser, mas no no sentido nico em que

    Deus o seu. por isso que os seres contingentes no passam de causas

    segundas, assim como no passam de seres segundos. (...) Numa palavra, o homo

    faber no pode de maneira nenhuma se tornar um homo creator, porque no

    tendo apenas um ser recebido, no poderia produzir o que no , nem superar na

    ordem da causalidade o nvel que ocupa na ordem do ser.41

    Sendo Deus o nico Ser, disso decorre tambm sua perfeio, infinitude e eternidade:

    nada pode ser acrescentado a ele ou retirado dele. Os seres, todavia, so contingentes,

    submetidos ao devir e mudana; (...) no so portanto seres perfeitos e imutveis, como

    necessariamente o Ser.42

    No universo cristo, os seres so efeitos de Deus e, necessariamente, anlogos a Ele.

    No que diz respeito especificamente ao humano, dizer que o homem anlogo a Deus, no

    significa dizer que faz parte Dele, mas sim que participa de seu Ser. Segundo Gilson,

    estamos falando de duas ordens de seres que no so capazes nem de adio, nem de

    subtrao: (...) eles so, rigorosamente falando, incomensurveis, e tambm por isso

    que so compossveis.43 A analogia que aqui se fala significa, segundo o tomismo, uma

    participao (ser causado), nunca uma identificao ou coincidncia (tomar parte). O Ser

    permanece o mesmo antes e depois da criao, e os seres no so jamais idnticos ao Ser.

    Como bem ressalta Gilson:

    40 Idem, p.89. A questo aparece mais clara na explicao de Pcora: Na perspectiva crist, como se

    sabe, no apenas os seres que existem so contingentes em relao ao seu modo de existncia (isto ,

    poderiam ser diversos do que so) como, mais do que isso, tampouco precisariam ser (uma vez que

    nada preexiste vontade soberanamente livre de Deus). PCORA, Op. Cit., p.72, nota 35. 41 Idem, p.122. 42 Idem, p.87. 43 Idem, p.129

  • 30

    Convm recordar sempre que a semelhana da criatura com Deus nada

    mais que a semelhana de um efeito cujo ser to-somente anlogo ao ser

    da sua causa e, muito embora anlogo, , infinitamente diferente dela.44

    Os filsofos cristos buscaram distinguir cuidadosamente as vrias espcies ou graus

    de analogia entre Deus e os seres. No que diz respeito ao homem, a analogia dada por

    uma proporcionalidade que se espelha (est contida) na graa. pois, pela graa, que os

    homens participam do Ser de Deus. Como dito anteriormente, h a um ato amoroso e

    voluntrio de Deus em escolher o homem entre todas as outras criaturas. Essa escolha,

    como sinaliza Pcora, qualifica o humano como o que voluntariamente pretendido por

    Deus.45 Esta escolha uma glria que resgata o homem de sua condio de contingncia

    radical, ao facultar-lhe a possibilidade de conhecer o plano divino.46 Porm, para que isso

    acontea, entra em cena uma faculdade (exclusiva e definidora do humano) tambm

    anloga ao Ser de Deus: a razo natural.

    Deus criou os homens dotados de razo e vontade, com poder de escolha semelhante

    aos dos anjos, seres tambm racionais.47 Ao criar os homens, Deus estabeleceu-lhes

    44 Idem, p. 129. 45 PCORA, Op. Cit., p.72. 46 Como veremos a seguir, a possibilidade do homem conhecer o plano divino d-se pelo carter

    sacramental do universo (um universo em que se leem em todas as coisas os vestgios da divindade).

    Nele a prpria natureza um meio seguro de iniciao F. Esse entendimento fica explcito na

    seguinte passagem de Vieira: (...) Deu Deus primeiro aos homens por mestra a natureza, havendo-lhe

    de dar depois a profecia, porque as obras da natureza so rudimentos dos mistrios da graa, e muito

    mais facilmente aprenderiam os homens o que se lhes ensinasse na escola da f, tendo sido primeiro

    discpulos da natureza. Antnio Vieira apud Pcora, Op.Cit., p.137. 47 So Toms de Aquino explica na Smula Contra os Gentios, que a razo humana consideravelmente

    menor que a razo anglica, visto se tratar de seres ontologicamente diferentes. Assim diz: Ora, a

    inteligncia dos anjos supera de muito a dos homens, em proporo muito maior do que a inteligncia

    do filsofo mais profundo supera a inteligncia do ignorante mais rude, pois esta ltima diferena

    permanece dentro dos limites da espcie humana, limites que a inteligncia dos anjos ultrapassa. O

    conhecimento que o anjo possui de Deus tanto mais profundo e perfeito do que o conhecimento que

    o homem possa lograr de Deus, quanto o seu ponto de partida um efeito mais nobre, na medida em

    que a substncia do anjo, a qual por um conhecimento natural conduz at o conhecimento de Deus,

    supera em dignidade as coisas sensveis e a prpria alma humana, que faz a inteligncia humana altear-

  • 31

    algumas leis ao mesmo tempo que lhes deu o poder para criar as suas. A vontade humana,

    a