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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO RICARDO GOMES COSTA FILHO OLHAR HUMANO, VIDA ANIMAL: SUBSÍDIOS PARA UM ESTUDO SOBRE OS WILDLIFE FILMS SÃO CRISTÓVÃO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

RICARDO GOMES COSTA FILHO

OLHAR HUMANO, VIDA ANIMAL: SUBSÍDIOS PARA UM ESTUDO SOBRE OS

WILDLIFE FILMS

SÃO CRISTÓVÃO

2014

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RICARDO GOMES COSTA FILHO

OLHAR HUMANO, VIDA ANIMAL: SUBSÍDIOS PARA UM ESTUDO SOBRE OS

WILDLIFE FILMS

Dissertação apresentada como requisito para a

obtenção do grau de Mestre em Comunicação

pelo Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de

Sergipe

Orientadora: Profa. Dra. Lilian Cristina Monteiro França

Coorientadora: Profa. Cynthia Chris, Ph.D. (College of Staten Island)

SÃO CRISTÓVÃO

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Costa Filho, Ricardo Gomes C837o Olhar humano, vida animal : subsídios para um estudo sobre

os wildlife films / Ricardo Gomes Costa Filho ; orientadora Lilian Cristina Monteiro França– São Cristóvão, 2014. 104 f. : il.

Dissertação (mestrado em Comunicação) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2014.

O 1. Cinema. 2. Documentário. 3. Filmes da vida selvagem. 4.

Human-animal studies. I. França, Lilian Cristina Monteiro, orient. II. Título.

CDU: 791-57/-58

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“I don’t know what I think,” says Elizabeth Costello.

“I often wonder what thinking is, what understanding is.”

J. M. Coetzee, The Lives of Animals

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação não poderia ter sido concretizada sem os esforços de minha mãe,

Eneide, que me apoiou de todas as maneiras possíveis antes e durante a realização do meu

curso de mestrado. Sua generosidade, compreensão e incentivo irrestritos foram a base e a

linha de condução deste trabalho.

Agradeço à professora Dra. Lilian Cristina Monteiro França pelo acolhimento na

orientação, pela paciência e, principalmente, por acreditar que, mesmo com tantas mudanças,

dúvidas, adaptações e descrenças, esta dissertação ainda poderia ter sido feita. Devo à

professora Lilian não apenas por todo o suporte dado nos últimos dois anos, mas também pelo

aprendizado decorrente de meu período de iniciação científica na Universidade Federal de

Sergipe, que foi fundamental para construir o caminho que levou a este trabalho.

Sem o auxílio da professora Cynthia Chris, Ph.D., do College of Staten Island,

inúmeros pontos apresentados aqui não poderiam ter sido explorados. Obrigado, professora,

por ter aceitado tão abertamente um aluno estrangeiro e desconhecido em sua sala,

semanalmente, durante o segundo semestre de 2013. Obrigado, ainda mais, por tê-lo feito tão

interessadamente e por ter me apresentado tantas possibilidades que eu desconhecia.

Fanny, não há sequer um ponto neste texto que não seja um reflexo de seu apoio.

Agradeço, ainda, àqueles que de alguma forma cederam uma parte do seu tempo para

discutir comigo os assuntos que abordo aqui, em especial à banca de qualificação e de

apresentação. Agradeço também a todos que fazem parte do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Sergipe – servidores, professores, colegas e

representantes – pelo aprendizado, pela dedicação e pela companhia.

O suporte da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de

Sergipe (FAPITEC/SE) foi imprescindível para que eu pudesse me dedicar a esta pesquisa.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo oferecer, a partir de uma perspectiva principalmente

exploratória e bibliográfica, um olhar para os chamados wildlife films, ou filmes de vida

selvagem, enquanto objetos de pesquisa. Esse esforço é realizado em um primeiro momento

com o auxílio do recente campo de pesquisa dos Human-Animal Studies, que buscam

compreender de maneira interdisciplinar as diversas problemáticas que afetam a imensa gama

de interações – éticas, afetivas, simbólicas – entre os humanos e os animais não humanos. A

pesquisa também empreende, nesse bojo, um estudo do documentário e do subgênero em

questão em uma análise teórica e na descrição de um breve trajeto historiográfico. Em

seguida, em um segundo momento, é realizada uma análise, ainda dentro da proposta

exploratória do estudo, dos filmes Migração Alada (2001), de Jacques Perrin, e A Marcha dos

Pinguins (2005), de Luc Jacquet.

Palavras-chave: Human-Animal Studies, documentário, wildlife films.

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ABSTRACT

Using an exploratory approach, this master thesis aims to provide an understanding of the

issues around wildlife films as possible study objects. In the first part, this is made by

examining some perspectives of the recent field of the Human-Animal Studies (HAS), which

seeks to provide an interdisciplinary look at the several issues affecting the vast range of—

ethical, emotional, symbolic—interactions between humans and nonhuman animals. The

research also tries to enumerate some of the main theoretical, formal and historiographical

questions on this matter with an analysis of the documentary film and wildlife film genres. In

its final part, this master thesis embarks on an examination of Jacques Perrin’s Winged

Migration (2001) and Luc Jacquet’s March of the Penguins (2005) with the assumption that

they can serve to demonstrate the importance and the complexity of animal representation in

film.

Keywords: Human-Animal Studies, documentary films, wildlife films.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: The God of the Internets. Montagem apontando com humor a ‘onipresença’ de

imagens de gatos na rede mundial de computadores................................................................11

Figura 2: Fotograma do filme A Marcha dos Pinguins...........................................................16

Figura 3: Fotograma do filme Migração Alada.......................................................................17

Figura 4: Fotogramas da abertura de Migração Alada – visualização da mudança de

estação.......................................................................................................................................75

Figura 5: Fotograma de pássaros em ninho na sequência de abertura de Migração

Alada.........................................................................................................................................76

Figura 6: Menino observa ganso-bravo atrás de janela com grade de madeira em fotograma

de Migração Alada....................................................................................................................77

Figura 7: Dois fotogramas com visualização de representação humana em Migração

Alada.........................................................................................................................................78

Figura 8: Fotograma de trabalhadores rurais de rosto difuso em Migração

Alada.........................................................................................................................................79

Figura 9: Fotograma de ganso preso a dejetos de zona industrial em Migração

Alada.........................................................................................................................................80

Figura 10: Fotograma de um dos planos da abertura de A Marcha dos

Pinguins....................................................................................................................................83

Figura 11: Fotograma de A Marcha dos Pinguins com o primeiro sinal dos animais na

paisagem....................................................................................................................................84

Figura 12: Fotograma ilustrativo da ideia de ‘caminhada’ em A Marcha dos

Pinguins....................................................................................................................................85

Figura 13: Fotograma de cena do processo de acasalamento em A Marcha dos

Pinguins....................................................................................................................................87

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Figura 14: Fotograma de cena ilustrando temática ‘familiar’ em A Marcha dos

Pinguins....................................................................................................................................87

Figura 15: Fotograma de cena de ataque de uma foca-leopardo a um grupo de pinguins

fêmeas em A Marcha dos Pinguins...........................................................................................89

Figura 16: Fotograma dos créditos finais com quebra de diegese em A Marcha dos

Pinguins....................................................................................................................................89

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Definições de alguns termos-chave no estudo de animais.....................................28

Quadro 2 – Tabela dos documentários de maior bilheteria nos Estados Unidos....................104

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................11

2. PENSAR O ANIMAL: NOTAS SOBRE OS HUMAN-ANIMAL STUDIES E AS

REFLEXÕES ACERCA DO ANIMAL NÃO-HUMANO..................................................23

2.1. Que são os HAS?.............................................................................................................................25

2.2. Pensar o animal: ética e excepcionalismo........................................................................................29

2.3. Pensar o animal: outras perspectivas na ética e além dela...............................................................36

3..PENSAR O DOCUMENTÁRIO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE AS

TENSÕES DO GÊNERO E DOS WILDLIFE FILMS........................................................48

3.1. Notas sobre o documentário e o filme de vida animal.....................................................................50

3.2. Wildlife films: trajetórias..................................................................................................................59

4. UM OLHAR PARA MIGRAÇÃO ALADA E PARA A MARCHA DOS PINGUINS....69

4.1. Um olhar para Migração Alada.......................................................................................................70

4.2. Um olhar para A Marcha dos Pinguins...........................................................................................80

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................95

APÊNDICE............................................................................................................................102

ANEXO..................................................................................................................................104

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1. INTRODUÇÃO

“Por que olhar para os animais?”1, pergunta o título de um texto de John Berger (1980,

p. 3) que influenciaria diversas investigações acadêmicas sobre a imagem e o uso simbólico

do animal não-humano2 (CHRIS, 2006) nas últimas décadas do século XX e neste começo do

século XXI. A questão se movimenta principalmente em dois sentidos: primeiro, em direção a

uma importância em perceber os animais como seres atuantes no mundo; segundo, em

direção às próprias formas de olhar para tais seres que são constituídas pelos humanos. Pode-

se, assim, reformular a pergunta das seguintes maneiras: o que há de importante/interessante

nos animais? O que há de importante/interessante nos olhares humanos a eles dirigidos?

De registros antigos, como as pinturas nas cavernas de Lascaux, na França, às imagens

– fotos, GIFs, vídeos, montagens – de gatos e cães espalhadas pela World Wide Web

(DeMELLO, 2002; ver Figura 1), passando por uma miríade de representações que incluem a

escultura e o cinema, para economizarmos nos exemplos, pode-se constatar a existência de

uma vasta produção imagética que baseiam essas dúvidas. Outra pergunta, então, coloca as

duas anteriores em mais uma perspectiva: o que há de tão atrativo na figura do animal que

gera tal abundância de representação?

De início, talvez alguns esclarecimentos surjam se pensarmos no sentido inverso e nos

questionarmos a respeito do que sentimos em relação ao olhar do animal que recai sobre nós.

Segundo Derrida (2011, p. 15), há uma “dificuldade” e um “incômodo” em receber o olhar do

animal quando se está nu – sim, nu; desnudo. O limiar da diferença entre o humano e o animal

é dado por uma espécie de estado de nudez do animal que transcenderia a própria nudez –

entendida talvez, mas não apenas, como metonímia de uma noção do senso comum de valor e

moralidade. Ou seja, “nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus”

(DERRIDA, 2011, p. 17). A nudez não precede o sentido de nudez; somos nós que a criamos

e a atribuímos.

1 “Why look at animals?” no original em inglês. Todas as traduções dos textos originais em inglês utilizados

nesta dissertação foram feitas pelo autor.

2 Na literatura especializada sobre o assunto, é comum o uso do termo ‘animal não-humano’ (nonhuman animal,

algumas vezes other-than-human animal) para designar de maneira geral seres do reino animal que não

pertencem à espécie Homo sapiens. Aqui, poderá ser utilizado para esse fim tanto este termo como,

simplesmente, ‘animal’.

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Essa questão é trazida pelo autor por meio de uma reflexão sobre o olhar e sobre a

vida animal: o que é o animal e o que é o humano quando o primeiro está diante da nudez do

segundo, aqui até em sentido literal? Derrida (2011, p. 29, em itálico no original) descreve,

então, o embaraço de ser observado, nu, pelo animal – por ele chamado de “completamente

outro”3. De acordo com o filósofo, trata-se da vergonha de uma outra vergonha, primeira,

percebida ao se verificar o olhar do animal, despido de nudez, sobre o eu, quando nu. Com

isso, ele classifica brevemente o discurso sobre o animal em dois tipos: um poético, raro e

compatível com a descrição acima, e outro pertencente a “pessoas que sem dúvida viram,

observaram, analisaram, refletiram o animal mas nunca se viram vistas pelo animal” – ou que,

mais precisamente, procuraram suprimir tal situação (DERRIDA, 2011, p. 32, em itálico no

texto original).

Figura 1: The God of the Internets – “O Deus da Internets”, em tradução livre. Montagem apontando com

humor a ‘onipresença’ de imagens de gatos na rede mundial de computadores. Disponível em:

<http://img.izifunny.com/pics/2012/20121112/640/funny-demotivational-posters_27.jpg>. Acesso em: 18 de

março de 2014.

Para Derrida (2011, p. 34), a “denegação” que caracteriza essa segunda postura

“institui o próprio do homem, a relação consigo de uma humanidade antes de mais nada

preocupada com seu próprio e ciumenta em relação a ele”. Se o animal possui uma existência

3 Ou, como colocado mais propriamente no texto e em referência à especificidade da observação do autor,

“completamente outro que eles chamam animal, e por exemplo um gato” (DERRIDA, 2011, p. 29).

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anterior à ação do olhar humano que o observa, os trajetos da perspectiva voltada ao ‘próprio’

humano tomariam um caminho que, ao recusar ou suavizar a controvérsia característica da

‘nudez’ animal, por exemplo, imprimiriam sobre ela suas reelaborações. Há, assim, algo que

impele o olhar humano a esse tipo de atribuição.

Neste estudo, como ficará claro mais adiante, será levado em consideração

principalmente o olhar humano que é realizado dentro do contexto dos meios de comunicação

contemporâneos, e em especial no contexto do filme. Parte-se, dessa forma, do princípio de

que há algo de particular na representação de animais não-humanos não só nesses meios, mas

também no ambiente sociocultural e econômico que lhes dá base. Os animais estão

desaparecendo4 da vida cotidiana, diz Berger (1980) – e isso ocorre em integração a

mudanças importantes na maneira com que nos relacionamos com eles. Essa situação é

particularmente bem ilustrada, conforme explica o autor, no estabelecimento de locais

públicos de exposição de animais, como os zoológicos, e de consumo privado de suas

imagens, como ocorre com os bichos de pelúcia. Espaços como os zoológicos estão

frequentemente preenchidos com mentalidades de alguma forma relacionadas à modernidade:

ideias conectadas à ciência, ao colonialismo e a certas suposições sobre o outro são ali

embrulhadas em um contexto de ‘progresso’ e instrução. “Como todas as outras instituições

públicas do século XIX, o zoológico, embora partidário da ideologia do imperialismo, tinha

que reivindicar uma função independente e cívica” (BERGER, 1980, p. 21). Ou, como explica

Cynthia Chris (2006):

Exposições zoológicas e etnográficas forneceram às capitais europeias do século

XIX não apenas “exibições do mundo”, isto é, proximidade física e acesso visual a

objetos e performances procedente de terras e culturas distantes, mas também, como

Timothy Mitchell argumenta, acesso ao “mundo-enquanto-exibição”, uma suposição

tomada como certa de que essas representações e simulações forneciam reflexos

confiáveis de distantes e aparentemente primitivos modos de vida (CHRIS, 2006, p.

4).

Refletindo sobre essa faceta da exibição e sua conexão com o animal não-humano,

voltamos à questão inicial: por que, afinal, eles importam tanto – em outras palavras, que

especificidade os levam a esse papel central? Sendo a existência dos animais, em certa

medida, vaga para nós – “similar e diferente” a nossa própria existência ao mesmo tempo

(FUDGE, 2002, p. 7; BERGER, 1980) –, eles aparecem como um tipo de ponto de referência

4 Para Berger (1980, p. 26), o animal de estimação urbano é um “novo fantoche animal” cuja demanda está

relacionada aos brinquedos realistas de animais. As populações de animais domésticos podem ser vistas, dessa

forma, como um sintoma e uma remediação higienizada desse desaparecimento geral das relações anteriores

entre humanos e animais.

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metafórico para seres humanos. Ou seja, eles funcionam “como uma intercessão entre o

homem e sua origem” (BERGER, 1980, p. 6; em itálico no original). Essa é uma ideia-chave

para compreender a relevância das adaptações simbólicas implícitas na reemergência dos

animais enquanto entidades de certa maneira ontológicas na mídia. E o inverso também pode

ser considerado válido: conforme demonstra Lippit (2000, pp. 2-3), a modernidade “pode ser

definida pelo desaparecimento da vida selvagem do hábitat da humanidade e pelo

reaparecimento da mesma na reflexão da humanidade sobre si mesma: na Filosofia,

Psicanálise e em mídias tecnológicas como o telefone, o filme e o rádio”.

O interesse deste estudo, enfim, é direcionado não exatamente à figuração do animal

da mídia em termos gerais, mas à representação de animais selvagens em um subgênero do

documentário5 conhecido como wildlife film

6 (ou filme de vida selvagem)

7. Outros nomes, na

realidade, podem aparecer para designar filmes que, a depender do ponto de vista, podem cair

dentro do ‘guarda-chuva’ a que aludimos: Aufderheide (2007, p. 117), por exemplo, vai se

referir a essa categoria fílmica por “documentário de natureza” (“nature documentary”),

reconhecendo também as denominações “ambiental” (“environmental”), “conservacionista”

(“conservationist”) e o já citado wildlife; Bousé (2000, p. 37) acrescenta ainda o termo “filme

de história natural” (“natural history film”).

Segundo Bousé (2000, p. 37) o subgênero dos wildlife films possui formatos bem

sedimentados. O termo natural history film já era utilizado nos anos 1910, primeiramente

sendo ligado a filmes de fundo supostamente educativo, mas várias de suas convenções

tradicionais seriam codificadas apenas em meados do século XX, em meio a um forte e

complexo entrelaçamento com o entretenimento que lançaria as bases de sua relação com o

meio televisivo. A partir dos anos 1980, com a consolidação, por exemplo, do canal a cabo

Discovery Channel como um lugar de referência para esse tipo de produção – assim como a

criação, em 1996, do Animal Planet, canal da Discovery Communications dedicado

completamente à programação ‘animal’ –, o espaço ocupado pelo wildlife na mídia viveria um

5 No entanto, a classificação desse tipo de produção como documentário ou filme de não-ficção não pode ser

feita sem algumas ressalvas, principalmente se levarmos em conta as considerações de Bousé (2000), a serem

exploradas mais a frente.

6 Para que seja respeitada uma terminologia de uso comum, será privilegiado na maior parte dos casos aqui o uso

do termo em inglês.

7 Fica claro, assim, a preferência do animal como centro deste estudo, muito embora documentaristas de wildlife

já tenham se voltado às plantas e os fungos – é o caso célebre de David Attenborough em A Vida Secreta das

Plantas (1995).

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novo momento (BOUSÉ, 2000)8. “No começo do século XXI, a realização de filmagens de

vida animal, talvez se agarrando nas saias da explosão do gênero na TV, começou a aparecer

com mais frequência nas salas de cinema, especialmente depois do sucesso de Migração

Alada” (CHRIS, 2006, p. 204), filme a que, como será visto, dedicaremos alguma atenção.

Nos wildlife films, os animais selvagens parecem ressurgir – mas sob uma luz de

modernidade9, em um campo tensionado onde o discurso científico, a educação, o consumo, o

entretenimento e muitos outros elementos agem. “Os zoológicos, os brinquedos realistas de

animais e a extensa difusão comercial de imagens de animais: tudo começou quando os

animais começaram a ser retirados da vida cotidiana”, reforça Berger (1980, p. 26)10

. No

entanto, de acordo com ele, essas “inovações” não trazem os animais de volta; no caso das

imagens, os animais são tratados como algo ainda “mais exótico e remoto” (BERGER, 1980,

p. 26).

Os motivos que levaram à elaboração desta pesquisa são, antes de tudo, frutos de uma

experiência pessoal em relação aos meios de comunicação. Como expõe Gil (1994, p. 54), o

“pesquisador, desde a escolha do problema, recebe influência de seu meio cultural, social e

econômico”. Neste caso, foi decisiva a confluência entre o fenômeno de implementação,

expansão e globalização da TV por assinatura no Brasil nos anos 1990 (BRITTOS, 1998) e a

fase de atenção ao conteúdo animal na televisão fechada aludida acima por Bousé (2000): a

convivência com esse processo despertou uma curiosidade que, anos mais tarde, iria se

transformar na inquietação que deu origem a este trabalho. É claro que, como diz Santaella

(2001, p. 158), “um tema surge quase sempre de uma intenção ainda imprecisa”, e este estudo

não fugiu à regra. A identificação mais adequada dessas bases de influência não seria possível

sem o próprio estudo que elas suscitaram.

8 Chris (2006), também traz algumas contribuições sobre esse momento. Em 1995, diz a autora, a Discovery

reuniu seu acervo de conteúdos sobre o ‘mundo selvagem’ sob o título Wild Discovery. No ano seguinte, em

parceria com a British Broadcasting Corporation (BBC), lançou um canal exclusivo para esse tipo de

programação: surgia então o Animal Planet. Logo em seguida, em 1997, a National Geographic adentrou no

mercado de televisão em parceria com grandes conglomerados de mídia (CHRIS, 2006).

9 Segue-se aqui, a ideia de modernidade dada por Giddens (1991, p. 11) e que será utilizada nesta dissertação

para fins de recorte do contexto em que se tratará da questão: “estilo, costume de vida ou organização social que

emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua

influência”. Além desse escopo globalizante, pode-se relacionar as dimensões institucionais da modernidade aos

“‘feixes organizacionais’” do industrialismo e do capitalismo (GIDDENS, 1991, p. 67).

10 Ver nota 4.

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16

Figura 2: Fotograma do filme A Marcha dos Pinguins.

O caminho que as intenções de pesquisa percorreriam até o desenho final do trajeto

investigativo realizado aqui sofreria, no entanto, algumas modificações11

. A primeira foi um

deslocamento do interesse de análise focado nas estruturas da programação da TV a cabo

voltada ao conteúdo animal – um estudo fundamentado pela Economia Política da

Comunicação e da Cultura (EPC) e ligado diretamente às razões apresentadas no parágrafo

anterior – para algo que permitisse uma observação dedicada ao conteúdo wildlife e à

formação de um alicerce mais bem fundamentado nesse sentido para trabalhos posteriores. À

época, avaliou-se que isso não seria possível sem um olhar mais demorado em direção ao

documentário. Percebendo-se, então, um movimento recente do filme documentário de vida

selvagem no cinema de formato IMAX – que demanda altos investimentos –, em um processo

que Aufderheide (2007) diz ter vindo da tradição de produzir séries fílmicas de exibição

internacional (ou seja, de ‘qualidade global’) disseminada por Disney a partir do final dos

anos 194012

, optou-se por uma análise dos filmes A Marcha dos Pinguins (2005 – ver Figura

2), de Luc Jacquet, e Migração Alada (2001 – ver Figura 3), de Jacques Perrin, apontados

11

Antes mesmo dessas mudanças no interior desta pesquisa sobre o animal nos meios de comunicação, houve,

em meados de 2012, uma completa modificação em relação ao primeiro projeto oferecido ao Programa de Pós-

Graduação em Comunicação, que apresentava uma proposta de estudo sobre elementos de personalização do

comércio eletrônico. Essa escolha ocorreu ao longo da experiência do primeiro semestre no curso de mestrado,

tanto na sala de aula quanto na orientação.

12 Trata-se, no caso, das True-Life Adventures – uma série de 14 curtas e longas-metragens lançados entre 1948 e

1960 que se transformaram em ponto de referência formal na produção de wildlife films: elas “os consolidaram

em uma forma unificada, porém flexível, e acima de tudo os popularizou como nunca antes” (BOUSÉ, 2000, p.

62).

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como exemplos relevantes dessa leva voltada para a exibição na sala de cinema

(AUFDERHEIDE, 2007; DeMELLO, 2012; CHRIS, 2006).

Figura 3: Fotograma do filme Migração Alada.

A essa altura, no entanto, evidenciava-se uma dificuldade em tratar das questões que o

tema trazia sem ignorar os diversos desafios que ele impunha. Assim como os animais

parecem ter algo de imperscrutável, esses filmes – apesar da proximidade às convenções da

linguagem e da indústria cinematográfica, principalmente no caso de A Marcha dos Pinguins

–, ao tomar emprestado suas imagens, carregavam também certo enigma. Muitos não

demonstravam o alinhamento ao surrealismo dos documentários de Jean Painlevé (CHRIS,

2006) e muito menos a significativa violência e ruptura formal de um Leviathan (2012), de

Lucien Castaing-Taylor, mas ainda continham a problemática de leitura que emerge quando o

completamente outro é apresentado como elemento central.

Já era claro, portanto, que a complexa tarefa de tratar da representação animal exigiria

um esforço tanto geral quanto particular. Para dar conta disso, foi identificado que seria

necessário à pesquisa o aporte, ainda que em nível de base, de um campo acadêmico recente

denominado alternadamente de Estudos Animais (ou Animal Studies), Antrozoologia (ou

Anthrozoology) ou, ainda, de Human-Animal Studies (HAS)13

, e que pressupõe que a

13

Uma discussão mais aprofundada sobre a terminologia do campo foge dos limites desse trabalho, mas será

retomada concisamente mais adiante. Poderão ser utilizados aqui todos esses nomes – no entanto, em razão do

termo ‘Animal Studies’ ser utilizado pelas ciências naturais para se referir aos estudos feitos em/com animais

(DeMELLO, 2012) e pelo fato da bibliografia consultada aqui recorrer pouco ao termo ‘Anthrozoology’, o uso

de ‘Human-Animal Studies’ será mais frequente.

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sociedade contemporânea demanda estudos mais cuidadosos acerca dos sentidos e das

relações/interações entre os humanos e animais não-humanos14

. Para além disso, era preciso

que se analisasse como essa preocupação poderia ser incorporada a um estudo do filme, ou,

mais especialmente, do filme documentário.

Foi nesse sentido, então, que a partir do final de 2012, tendo em mente informações

dadas pela orientadora deste trabalho a respeito de um acordo entre a Universidade Federal de

Sergipe (UFS) e a universidade norte-americana City University of New York (CUNY),

procurou-se estabelecer um contato com a professora Cynthia Chris, Ph.D. – do Programa de

Cinema and Media Studies do College of Staten Island (CSI), ligado à CUNY –, um dos

principais nomes da área. Após um demorado processo burocrático, pôde-se enfim cursar,

durante o segundo semestre de 2013, um estudo independente15

com a professora Chris no

CSI, o que permitiu explorar, até a medida do possível, uma literatura variada – estudos sobre

ética, gênero, ontologia, imagem – e que se tornaria útil para esta pesquisa e para

investigações futuras não só de maneira informativa, mas principalmente por suscitar novos

questionamentos.

Se, antes, a dificuldade apresentada pela questão do animal provinha do mistério geral

que o cerca, agora ela surgia através de inúmeras inquietações não resolvidas sobre o tema em

si e sobre os caminhos que a dissertação tomaria: que mudanças poderiam sofrer as

percepções das imagens dos animais de acordo com as transformações ocorridas nas

sociedades, como procura entender Van Horn (2012) a respeito dos lobos na cultura norte-

americana, por exemplo? O pesquisador estaria preparado para empreender um diálogo entre

as ideias de devir-animal e de multiplicidade de Deleuze e Guattari (1997) e uma découpage

dos documentários estudados? Até que ponto a discussão ética sobre o animal de autores

como Peter Singer (2010) e Tom Regan (2008), tão ligada ao despertar recente das atenções

acadêmicas sobre o assunto (DeMELLO, 2012), seria levada em conta?

14

“Nas últimas décadas, o debate sobre a questão animal tem mobilizado pensadores de diferentes áreas do

conhecimento, em várias partes do mundo. Esse crescente interesse pelo tema possibilitou, inclusive, o

surgimento de um novo campo de investigação que, sob a denominação de Estudos Animais, vem se afirmando

como um espaço de entrecruzamento de várias disciplinas oriundas das ciências humanas e biológicas, em torno

de dois grandes eixos de discussão: o que concerne ao animal propriamente dito e à chamada animalidade e o

que se volta para as complexas e controversas relações entre homens e animais não humanos” (MACIEL, 2011,

p. 7).

15 E, à parte disso, uma disciplina de Media History com a professora Bilge Yesil, Ph.D., no mesmo programa do

CSI.

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19

Com tudo isso, a influência desse período acabou incitando outra modificação

significativa no trabalho. Se já havia grandes preocupações em relação a como analisar os

filmes selecionados, ou seja, com a metodologia de pesquisa a ser utilizada, essas tensões

apenas cresceram com as leituras feitas durante a experiência no CSI. Decidiu-se, assim, que

seria mais proveitoso utilizar a oportunidade do mestrado para concentrar os esforços desta

pesquisa ao nível bibliográfico e exploratório.

Segundo Gil (1994, p. 45), as “pesquisas exploratórias constituem a primeira etapa de

uma investigação mais ampla”. Elas “são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão

geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato” (GIL, 1994, p. 45); além disso, elas

são particularmente relevantes quando há poucos estudos na área (GIL, 1994), o que pareceu

ser o caso encontrado quando se considera o tema específico dos wildlife films. Para Santaella

(2006, p. 147), de maneira similar, a pesquisa exploratória “tem por finalidade ampliar as

informações do pesquisador a respeito de sua pesquisa”. No entanto, a autora complementa

que isso ocorre em razão da “elaboração de um projeto de pesquisa” (SANTAELLA, 2006, p.

147), o que, se pensarmos nessas palavras em sentido estrito, não se aplica inteiramente a este

trabalho – que tem mais afinidade com a ideia de preparação para algo de maior fôlego de Gil

(1994). Há uma preocupação formativa, sim, e por isso mesmo o resultado esperado para o

futuro é maior que um projeto em especial.

Também de acordo com Gil (1994), a pesquisa bibliográfica

é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros

e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de

trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de

fontes bibliográficas. Boa parte dos estudos exploratórios podem ser definidos como

pesquisas bibliográficas, assim como certo número de pesquisas desenvolvidas a

partir da técnica de análise do conteúdo (GIL, 1994, p. 71; itálico nosso).

Acredita-se, aqui, que as pesquisas bibliográfica e exploratória permitem lançar um

olhar aberto, mas eficiente, sobre a literatura que cerca os filmes dedicados à vida animal

selvagem. De fato, a decisão por centrar o estudo nesse viés ocorre após boa parte do que

seria ‘explorado’ já ter sido passado em vista. Por conta disso, os procedimentos

subsequentes, bem como a comunicação escrita desta investigação, se organizam em dois

movimentos: o primeiro discute aspectos dos Human-Animal Studies e do pensamento sobre a

questão animal, no segundo capítulo, e algumas considerações sobre o filme documentário, no

terceiro capítulo. O segundo movimento se preocupa em estabelecer uma visão dos filmes que

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20

antes eram o objeto principal – mas, agora, dentro de uma alçada menos sistemática e mais

afeita à qualidade exploratória do projeto.

O objetivo geral do trabalho não se limita, então, a apenas fornecer um mapeamento

do que foi produzido sobre os wildlife films, se interessando mais em promover uma leitura de

publicações – e, complementarmente, de filmes – identificados como influentes na área e que

apresentam potencial contributivo para estudos posteriores. É necessário, entretanto, ter em

mente alguns pontos em particular que possam guiar essa investigação. Dessa forma, se

buscará nos textos uma indicação dos principais elementos ligados à produção dos wildlife

films e das interações e percepções sobre a relação humano-animal no pensamento estudado,

além de, na medida do possível, a demarcação de alguns pontos de interesse para trabalhos

futuros ao final do texto.

As ideias levantadas poderão ser abstratamente cotejadas com a noção de que a

‘abertura ontológica’ do animal na mídia de que se tratou aqui anteriormente permite que

reelaborações e encaminhamentos de sentidos – de maneira geral, antropocêntricos – sejam

feitas sob a influência de tais fatores no caso dos wildlife films. Como expõe Malamud (2011,

p. 366), os animais, afinal, “são aplaudidos pela sua subserviência, seu valor de

entretenimento e na medida em que afirmam um etos antropocêntrico (a inatacável convicção

de que tudo diz respeito a nós)”.

Essa visão mais aberta não descarta a Economia Política da Comunicação e da Cultura

como uma das referências possíveis em um nível subjacente. A partir de uma perspectiva

norte-americana, por exemplo, Vincent Mosco (2009) aborda um conceito que pode ser

relevante para se ter em mente enquanto se pensa os temas tratados nesta dissertação: a

commodification, ou comodificação. Trata-se, diz o autor, de um “processo de transformação

de coisas valorizadas pelo seu uso em produtos vendáveis que são valorizados por aquilo que

eles podem trazer em troca” (MOSCO, 2009, p. 127) – ou seja, a conversão do valor de uso

em valor de troca, nos termos de Marx (apud MOSCO, 2009). A comodificação é triangulada

com os processos de espacialização – que diz respeito à forma como os capitais lidam com os

limites geográficos no âmbito da comunicação – e de estruturação, ligado à criação e à

manutenção de relações sociais (de acesso, de gênero, etc.) que dialogam com a mídia

(MOSCO, 2009).

De acordo com Mosco (2009), a comodificação se relaciona com a comunicação

principalmente de duas maneiras. Em primeiro lugar, seus “processos e tecnologias”

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(MOSCO, 2009, p. 130; em itálico no original) participam da própria comodificação que

ocorre no sistema econômico como um todo; em segundo, pode-se dizer que esses

movimentos de comodificação também “penetram os processos e instituições da

comunicação, de forma que as melhorias e contradições no processo de comodificação social

influenciem a comunicação enquanto prática social” (MOSCO, 2009, 130; em itálico no

original). Assim, pode-se dizer que, se há uma comodificação da imagem do animal na

sociedade, por exemplo, a mídia é tanto um setor influenciado como um agente reforçador

desse processo.

É importante ressaltar também a diferença entre a comodificação e os conceitos de

comercialização e objetificação, diz Mosco (2009). A comercialização se atém às relações da

mídia com a audiência e com o anunciante – o que, é claro, também tem seu espaço de

importância aqui; já a objetificação (ou reificação) trata das relações sociais que ganham

caráter de objeto, de desumanização; por tratar de relações que se ligam a objetos que passam

a ter valor de troca, a comodificação pode ser vista como uma manifestação interior no

processo mais amplo de reificação na sociedade (MOSCO, 2009, pp. 132-133).

Embora a questão da comodificação e os postulados básicos da EPC pudessem sugerir

um caminho para a presente pesquisa, optou-se por centrar os estudos no campo dos Animal

Studies, cujos estudos no Brasil ainda são escassos, o que tornaria mais relevante o seu

emprego como referencial teórico. Presume-se, no entanto, que uma confluência dessas duas

literaturas em um futuro trabalho de maior fôlego não traga muitos problemas de assimilação.

Abrangendo perspectivas que vão desde uma base teórica para o ativismo dos direitos dos

animais até análises em áreas diversas como a Sociologia, a Psicologia e a Geografia, os

Human-Animal Studies têm feito progressos, ainda que modestos, em várias dessas frentes

(SHAPIRO, 2002). Trata-se, assim, de um esforço que se integra à natureza interdisciplinar

(DeMELLO, 2012) apresentada pelos estudos recentes das interações entre homens e animais.

Explicitadas brevemente essas relações, já poderiam ser até levantadas questões que

facilitariam uma aproximação à problemática da representação midiática dos animais e que

perpassariam esse trajeto teórico. Se avaliarmos, por exemplo, como Bolaño (2000, p. 202;

em caixa-alta no original), que o elemento que melhor explica a especificidade do produto

cultural é “a sua capacidade de preencher NECESSIDADES de ordem ideológica, psicológica

e psicossocial”, está montado todo um cenário propício a investigações que levem em

consideração os conteúdos – documentários, programas infantis e até reality shows de animais

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– da programação de canais como Discovery Channel, Animal Planet e National Geographic,

para ficar em um panorama mais restrito.

Como afirma Chris (2006, p. XIV), o gênero de ‘vida selvagem’ em que investem os

capitais “fornece um caso histórico, em seus voláteis ciclos de gênero […], sobre algumas das

formas em que a economia da mídia, a estrutura da indústria, modela e remodela a mídia que

a audiência recebe”. Esse fator pode ser posto em evidência em relação ao aspecto da

necessidade que esses produtos culturais de temática animal buscam preencher no público e

que, afinal, vão ao encontro da demanda que justificaria o investimento das empresas e a

diferenciação do mercado. Segundo o Box Office Mojo, sete dos 20 documentários de maior

bilheteria nos Estados Unidos são wildlife films (ver anexo). Migração Alada, que foi

indicado ao Oscar de melhor documentário em 2002, e A Marcha dos Pinguins, que venceu

essa categoria do prêmio em 2006, ocupam a 18ª e a segunda posições, respectivamente.

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2. PENSAR O ANIMAL: NOTAS SOBRE OS HUMAN-ANIMAL STUDIES E AS

REFLEXÕES ACERCA DO ANIMAL NÃO-HUMANO

Ao escrever suas palestras para as Tanner Lectures on Human Values de 1997-1998,

realizadas na Universidade de Princeton, o escritor sul-africano J. M. Coetzee (1999) fez uma

escolha incomum. Voltado às reflexões éticas, o evento costuma ser dominado por ensaios

filosóficos; Coetzee (1999), no entanto, apresentou o trabalho de ficção The Lives of Animals,

que consistia em “duas palestras dentro de duas palestras”, como define Gutmann (1999, p. 3)

na introdução do livro que compila o texto do escritor e as reflexões que autores convidados

fazem sobre ele.

O tema das Tanner Lectures era direito dos animais. Na sua apresentação, Coetzee

(1999) narra os acontecimentos em volta das palestras da personagem Elizabeth Costello, uma

escritora convidada por uma universidade para falar de qualquer assunto que deseje.

Profundamente tocada pelo tema da crueldade humana praticada contra os animais, Costello

decide falar sobre isso em dois eventos – que são, afinal, as tais palestras duplicadas de

Coetzee (1999). Em meio às palavras da escritora, o texto acaba sendo permeado por

referências àqueles que já trataram do assunto, pontos de vistas personificados em outros

personagens, além de contendas e tensões familiares e acadêmicas que dão à narração o tom

tenso e o sentido de disputa que rondam o assunto. As impressões do filho de Costello – um

professor na mesma universidade que a convidou – ao pegar e levar a mãe ao aeroporto e os

comentários amargos de sua esposa sobre os pensamentos da sogra importam tanto quanto os

enunciados da palestrante. Ao realizar um percurso de forma ficcional, avalia Gutmann (1999,

p. 3), as palestras de Coetzee continham “uma crítica a uma abordagem filosófica mais

comum ao tópico dos direitos animais”.

O filósofo Peter Singer (1999, p. 91), um dos convidados a responder às palestras de

Coetzee (1999), todavia, parece encarar o formato com certa impaciência por não poder

acessar os ‘argumentos finais' do texto: “o dispositivo ficcional de Coetzee permite a ele se

distanciar deles”. É algo, no entanto, que acaba sendo aplicável ao próprio Singer (1999) – ele

também escreve sua reflexão como um diálogo entre ele mesmo e sua filha, Naomi, que

sugere devolver essa ‘dificuldade’ na mesma moeda. É de se perguntar onde ficaria nessa

questão a antiga tradição filosófica de escrever em forma de diálogo – e Singer (1999), que

prefere se colocar como uma personagem a lançar mão da sua própria Elizabeth Costello,

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24

parece levar isso em conta –, mas uma reflexão detalhada a esse respeito foge dos propósitos

deste capítulo16

.

Seguindo esse debate um pouco à sua margem, entretanto, pode-se dizer que a escolha

de Coetzee (1999) parece demonstrar, de modo geral, que existe uma dificuldade em afrontar

a questão do tratamento humano em relação ao animal. Ao eleger a ficção – ou, mais

propriamente, a metaficção, como aponta Garber (1999) – para tratar do assunto e criar um

ambiente propício para que uma complexa e dinâmica camada de sentidos e possibilidades aja

mais livremente sobre o texto, o autor abre também espaço para uma variedade de perguntas

formais. Até que ponto é possível pensar o animal dentro de um discurso acadêmico? Até

onde a razão e até mesmo a linguagem são instrumentos válidos para refletir sobre as questões

que surgem no confronto com a vida animal não-humana?

The Lives of Animals não é um caso isolado na bibliografia de Coetzee. Segundo

Maciel (2010), outros livros do autor – Disgrace; Foe; In the Heart of the Country; Diary of a

Bad Year; Boyhood – também exploram questões ligadas aos animais não-humanos. E neles

também há uma subjacente inquietação formal, um questionamento sobre a “tradição

filosófica de viés antropocêntrico” (MACIEL, 2010, p. 116).

Desde o seu surgimento, a filosofia ocidental não se furtou exatamente a enfrentar a

questão animal, ou pelo menos algumas facetas do que hoje parece mais claramente ser uma

problemática repleta de pontos não-resolvidos e de difícil aproximação. Mais recentemente,

entretanto, os animais não-humanos têm sido pensados sob uma perspectiva diferente dentro

da academia. Esse fenômeno é chamado por alguns de animal turn – ou “virada animal”

(SILVA, 2012, p. 15), uma mudança de postura em relação a eles –, principalmente no que

diz respeito à pesquisa feita no começo do século XXI:

Em diversas áreas do conhecimento, e em campos em si mesmos interdisciplinares,

as atenções têm se voltado para a figura do animal e as problematizações teóricas e

práticas que ela instiga. Atualmente, diferentes campos veem seus paradigmas

questionados pelo “olhar do animal” e estão se debruçando sobre os significados que

os animais produzem ou que são produzidos sobre eles (SILVA, 2012, p. 15).

É nesse contexto que os Human-Animal Studies (em suas diversas formas e

nomenclaturas) emerge. Neste capítulo, será feita uma breve descrição do campo, bem como

uma recuperação de algumas das ideias que acompanharam o pensamento sobre a questão

16

Algumas considerações sobre o assunto podem ser encontradas em Garber (1999).

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animal – em uma amplitude que, como não poderia deixar de ser, obedece aos limites e a

natureza deste trabalho.

2.1. QUE SÃO OS HAS?

Os Human-Animal Studies, como já mencionado, são um campo recente de estudos17

cujo foco é o ponto de encontro entre o animal humano e o animal não-humano. Trata-se,

grosso modo, de um espaço que percebe o animal enquanto um objeto de estudo importante

dentro de um sentido mais amplo, sociocultural e reflexivo. Ou, como sumariza DeMello

(2012):

Human-animal studies (HAS) – algumas vezes conhecidos como anthrozoology

ou animal studies – são um campo interdisciplinar que explora o espaço que os

animais ocupam nos mundos sociais e culturais humanos e as interações que os

humanos possuem com eles. Central para esse campo é uma exploração das

maneiras com que as vidas dos animais se interseccionam com as sociedades

humanas. (…) Ao contrário da etologia, da psicologia comparativa, da zoologia,

da primatologia ou das várias disciplinas de comportamento animal, os HAS não se

tratam do estudo dos animais neles mesmos. Em vez disso, nós estudamos as

interações entre humanos e outros animais, onde e quando quer que nós as

encontremos (DeMELLO, 2012, pp. 4-5; em negrito no original).

Segundo DeMello (2012), os Human-Animal Studies não deixam de receber auxílios

dessas áreas que pesquisam o animal em si18

, mas seus esforços são direcionados àquilo que

até recentemente foi de certa forma ignorado pelas ciências: um olhar dos animais inseridos

nas relações, muitas vezes existentes em larga escala, que estão presentes na sociedade. Como

ressalta a teórica, os exemplos disso abundam em nosso dia-a-dia (DeMELLO, 2012, p. 4). Se

vamos à feira ou ao supermercado, lá estão expostas a carne, os ovos, o leite – e também, em

alguns casos, os vegetais que foram produzidos com algum tipo de trabalho animal. Em casa,

afagamos os bichos de estimação (e de pelúcia) e exterminamos os insetos. Na rua, tememos

os pombos e os detritos dos cães; em alguns locais, lamentamos (ou não) o uso de animais de

17

Em 2010, escrevem Shapiro e DeMello (2010, p. 308), havia “23 programas universitários em HAS ou campo

relacionado nos Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, Israel e Países Baixos, bem como oito

programas complementares em escolas de veterinária na América do Norte, e cerca de 30 organizações de HAS

nos Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, Austrália, França, Alemanha, Nova Zelândia, Israel, Suécia e

Suíça”.

18 Na biologia ou na pesquisa do comportamento animal, diz Flynn (2008), o “foco é no animal em uma forma

técnica e específica – seu hábitat, seus hábitos de alimentação, seus padrões de reprodução, etc. – e,

particularmente, nas suas características enquanto espécie, e não enquanto indivíduos” (FLYNN, 2008, p. XVI).

Com isso, podermos entender que há uma diferença entre o olhar para “o animal propriamente dito”, como quer

Maciel (2011, p. 7) no trecho referenciado no capítulo anterior, e essa pesquisa do ‘animal em si’ que atua de

maneira ‘técnica’.

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carga. No escritório, pode haver quem chame o chefe de cavalo, o colega de anta, a cliente de

gata.

De muitas formas – econômicas, políticas, simbólicas –, o animal permeia o cotidiano

humano e, constantemente, esses processos são tão bem incorporados à rotina que podem

passar sem serem notados, seja em qualidade ou em frequência. De acordo com DeMello

(2012), esse despercebimento não ficou restrito ao senso comum, mas se estendeu também à

academia. A autora argumenta que, apesar de ter sido capaz de identificar os animais

enquanto objetos passíveis de estudo há algum tempo – e, aqui, temos em mente a biologia, a

zoologia, etc. –, a ciência não os encarava como “‘sujeitos de uma vida’”, ou “‘subjects of a

life’”, no original em inglês (DeMELLO, 2012, p. 6; itálico nosso).

De maneira similar, Flynn (2008), Shapiro (2002) e Waldau (2013)19

também levam a

entender que a interação, seja ela real ou virtual, entre o humano e o animal não-humano

enquanto sujeito é um conceito-chave para compreender a perspectiva do que eles chamam de

Human- Animal Studies ou Animal Studies. Para Waldau (2013),

Os Animal Studies envolvem as muitas formas em que indivíduos e culturas

humanas estão agora interagindo e explorando animais não-humanos, em que no

passado envolveram seres vivos além da nossa própria espécie, e em que no futuro

podem desenvolver formas de viver em um mundo compartilhados com outros

animais (WALDAU, 2013, p. 1).

Segundo Flynn (2008), importa também o aprendizado que pode ser retirado do

estudo dessas interações, em especial o conhecimento que podemos obter sobre os próprios

humanos a partir de seus engajamentos nessas relações. Shapiro (2002) destaca, além disso,

que a dimensão do animal enquanto sujeito é essencial para compreender as ‘intenções’ dos

HAS – é preciso entender os animais não-humanos “não exclusivamente como artefatos

culturais, símbolos, modelos ou commodities em um mundo predominantemente centrado no

humano” (SHAPIRO, 2002, p. 332)20

.

Por abarcar iniciativas de várias frentes do conhecimento e por se utilizar de teorias e

dados de diversas áreas, os HAS podem ser considerados um campo tanto interdisciplinar

como multidisciplinar (DeMELLO, 2012; SHAPIRO, 2002; WALDAU, 2013). Suas

19

Bem como a já citada Maciel (2011), se entendermos essas interações a uma ideia de relações.

20 Essa perspectiva desafiadora estabelece, é claro, alguns pontos de tensão neste trabalho. Entretanto, a tensão

principal, que emerge do que foi indicado no Capítulo 1 – ou seja, a observação de uma ‘abertura ontológica’ do

animal no contexto de processos como os de comodificação, por exemplo – é enfrentada aqui não como um

simples nós a ser desatado, mas como uma parte constituinte daquilo que o problema oferece. Trata-se, dessa

forma, de um ponto de vista que busca considerar a complexidade do tema dentro dos limites propostos.

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investigações podem partir tanto de pesquisadores da Psicologia como das Letras ou da

Comunicação Social. É possível, entretanto, localizar na origem dos HAS uma forte

influência de estudos de Filosofia que se dedicaram a questões éticas envolvendo o animal na

segunda metade do século XX, bem como de estudos acadêmicos voltados à temática da

exploração animal – os chamados Critical Animal Studies (CAS – ver Quadro 1); essas

tendências surgiram ou entraram em consonância com movimentos sociais de proteção e

conservação que fortificariam o interesse sobre o assunto na sociedade (DeMELLO, 2012).

Dois trabalhos foram de grande importante para a interconexão dessas tendências: Libertação

Animal, de Peter Singer, lançado em 1975, e The Case for Animal Rights, de Tom Regan,

lançado em 1983 (SHAPIRO e DeMELLO, 2010; WALDAU, 2013). A partir daí, assim

como

estudiosos feministas21

nos anos 1970 fizeram com as categorias da “mulher”, da

“fêmea” e do “feminino”, os estudiosos dos HAS e dos CAS têm inserido “o

animal” nas ciências humanas, nas ciências sociais e nas ciências naturais. Como

aumenta a dependência humana em relação aos animais não-humanos e o nosso

relacionamento com eles se modifica no século XXI, não examinar esse

relacionamento dentro do contexto acadêmico parece bizarro – especialmente dado o

aumento da presença do ativismo animal no mundo ao nosso redor (DeMELLO,

2012, p. 7; em itálico no original).

Malamud (2011), por exemplo, chega a derivar dessa analogia com a perspectiva

feminista o que chama de olhar humano partindo do conceito de olhar masculino de que fala

Laura Mulvey (apud MALAMUD, 2011, pp. 364-365) ao discorrer sobre a “posição

masculina” – “dominante, sádica” – do espectador no cinema. “O olhar dirigido aos animais

na cultura visual se aproxima fortemente da formulação que Mulvey faz do olhar masculino.

Chame-o, porém, em vez de olhar masculino, de olhar humano; e substitua-se mulher por

‘animal’” (MALAMUD, 2011, p. 365; em itálico no original). As aproximações feitas entre a

área e os estudos feministas não param por aí, é claro, e abordam desde essa correlação entre

o sexismo e o chamado especismo22

(DeMELLO, 2012) aos papeis de gênero envolvidos no

consumo de carne (ver, por exemplo, ADAMS, 2008). Conforme indicado em Weil (2012, p.

5), se os Human-Animal Studies têm amadurecido, pode ser porque “os animais não-humanos

se tornaram um caso-limite para teorias da diferença, da alteridade e do poder”.

21

No original, “feminist scholars” (DeMELLO, 2012, p. 7), ou seja, sem a indicação de gênero existente, na

língua portuguesa, em “estudiosos”.

22 Um dos conceitos-chave da bibliografia sobre as interações entre humanos e animais não-humanos, o termo

especismo é usado mais disseminadamente para descrever o “preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a

favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os de outras” (SINGER, 2010, p. 11) e está

fortemente associado a uma ideia de exploração e desigualdade, sendo considerado por Singer (2010), por

exemplo, como análogo ao racismo.

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Definições

Direitos animais Uma posição filosófica, bem como um movimento social

que defende que se dê aos animais não-humanos um status

moral e, assim, direitos básicos.

Estudos animais

(Animal studies)

Geralmente utilizado, pelo menos nas Ciências Naturais,

para se referir ao estudo científico ou o uso médico de

animais não-humanos, a exemplo da pesquisa médica. Nas

Ciências Humanas, é o termo preferido para o que as

Ciências Sociais chamam de Human-Animal Studies (HAS).

Antrozoologia

(Anthrozoology)

O estudo científico da interação e do vínculo humano-

animal.

Critical animal studies

(CAS)

Um campo acadêmico de estudo dedicado à abolição da

exploração, opressão e dominação animal.

Etologia O estudo científico do comportamento animal.

Human Animal Studies O estudo das interações e relações entre humanos e animais

não-humanos.

Quadro 1: Definições de alguns termos-chave no estudo de animais. Fonte: DeMello (2012, p. 5); tradução

livre.

Além de desembocar nesse exercício de verificação de suas bases recentes, uma

tentativa de definir o que são os Human-Animal Studies também convoca questionamentos

sobre algumas de suas próprias definições internas. O que é humano? O que é o animal?

Longe de serem questões que poderiam ser fácil e rapidamente respondidas aqui, essas duas

perguntas acompanham, na verdade, uma parte das inquietações que ainda movem o próprio

campo. Pode-se, entretanto, avançar nessa problemática ao se compreender tais definições

como categorias de linguagem:

Os animais são definidos através de categorias linguísticas humanas – animais de

estimação, de criação pecuária e animais de trabalho – e essas próprias categorias

são relacionadas a como os animais são usados pelos humanos. Além disso, essas

categorias são frequentemente relacionadas ao lugar onde os animais são localizados

espacialmente: na casa, na fazenda, no laboratório, na televisão, no ambiente

“selvagem”, etc. Para complicar ainda mais, o “humano” é geralmente definido

como o que não é humano – muito embora, falando biologicamente, humanos sejam

animais. Conforme o psicólogo Ken Shapiro apontou [...], o próprio nome do campo

– human-animal studies – é “tão incoerente quanto dizer ‘cenouras e vegetais’”

(DeMELLO, 2012, p. 15; em itálico no original).

Isso, prossegue DeMello (2012), ultrapassa o âmbito do significado desses termos e

retorna à ética: a forma como definimos o animal e nós mesmos em relação a ele é, pelo

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menos em parte, uma das bases para a ação humana em relação ao animal não-humano, isto é,

é aquilo que permite que o que poderia ser visto como ‘exploração’, por exemplo, possa ser

entendido como algo que não seja classificado dessa forma. Esses entendimentos são

importantes para que, nas sociedades humanas, seja dado o status moral dos animais. As

maneiras como os pensamos constituem, obviamente, um ponto essencial para as

investigações que levem em conta os HAS; alguns de seus aspectos serão discutidos no item

que segue.

2.2. PENSAR O ANIMAL: ÉTICA E EXCEPCIONALISMO

Para se traçar um panorama – mesmo que seja como este, restrito por suas próprias

condições – em que se inserem autores como Singer (2010) é necessário explorar ao menos

certos pontos do chamado pensamento ocidental, o ambiente do pensamento de matriz grega e

europeia, judaico-cristã. No entanto, é importante também que se deixe claro que esta não é a

única via de acesso à percepção do animal não-humano, principalmente se levarmos em

consideração as dificuldades em pensar o animal ‘academicamente’ apontadas no início deste

capítulo.

Sax (2007), por exemplo, parece apontar para essa diversidade ao sugerir que

pensemos os animais enquanto tradição, ou seja, dando atenção não só a suas populações e

representantes genéticos (o que, acrescente-se, não deixa de poder ser incorporado como tal),

mas também às histórias contadas sobre eles, dentre outras práticas; não apenas os animais,

mas também essas tradições estariam desaparecendo do mundo. Para o autor, “a tradição

conecta os animais a ideias, práticas e eventos que compõem a cultura humana” (SAX, 2007,

p. 272).

No que tange às culturas não-ocidentais, a constatação de uma diversidade de

entendimentos e atitudes em relação ao animal é bastante documentada. DeMello (2012)

ilustra esse ponto citando as culturas que não separam o animal como uma categoria à parte, e

também as culturas animistas, que concebem todos os seres como possuidores de alma; o

totemismo, em que, para ela, animais assumem o papel de “importantes figuras genealógicas”

entre certos povos (DeMELLO, 2012, p. 35); a crença na transfiguração, ou na capacidade de

se transformar em animal, presente no xamanismo; o panteísmo hindu, que põe o mundo em

perspectiva universalista e é relacionado a um conceito de vínculo entre os seres e em um

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princípio de não-violência. Entretanto, em se tratando do especismo e do antropocentrismo, a

antropóloga Barbara Noske (2008b)23

afirma que, embora haja uma tendência geral nas

culturas não-ocidentais a não reificar/reduzir os animais não-humanos, é possível encontrar,

sim, tais práticas em algumas dessas culturas. Ao analisar grupos de caçadores-coletores, de

caçadores e também de pastores, ela conclui que, “embora uma visão orgânica do mundo

possa, em princípio e potencialmente, ser mais simpática ao animal, esse tipo de visão do

mundo não é necessariamente uma salvaguarda contra o antropocentrismo” (NOSKE, 2008b,

p. 86). De maneira semelhante, podemos acrescentar que o distanciamento daquilo que se

considera como ocidental não pode, talvez, ser uma garantia da existência nem mesmo de tal

“visão orgânica”.

Dentro do contexto do pensamento grego, pode-se recuperar um interesse em pensar o

animal desde antes das linhas socrático-platônica e aristotélica. Muitos pensadores gregos

eram vegetarianos (DeMELLO, 2012). Pitágoras de Samos é um exemplo célebre: não à toa,

houve tempos em que aqueles que são hoje chamados de vegetarianos eram chamados de

pitagóricos (KALOF e FITZGERALD, 2007). Nas Metamorfoses, Ovídio (1999) descreve a

perspectiva de Pitágoras sobre essa esfera da relação humano-animal: para ele, o consumo de

carne não é apenas condenável – é uma atitude que não fazia parte do cotidiano dos homens

da idade de ouro24

. Na visão de Pitágoras, se alimentar de animais é uma bestialidade que não

é vista nem mesmo entre todos os animais, e foi ao cobiçar aquilo que havia sido caçado pelas

bestas – como o leão, conforme a imagem que ele constrói – que o humano passou a fazê-lo

(OVÍDIO, 1999). A questão do trabalho animal, entretanto, aparece não só mais naturalizada

que o vegetarianismo como faz parte de sua argumentação em prol da abstenção do consumo

de carne: para Pitágoras, segundo nos conta Ovídio (1999), é incompreensível que se mate os

animais que vieram ao mundo para a serventia dos humanos na produção de bens como o leite

e a lã, por exemplo.

A perspectiva pitagórica vai influenciar muito diretamente Plutarco (2007), que viveu

já no século I d.C.: de fato, a própria posição vegetariana de Pitágoras é o que impele o

pensador a falar do assunto, no qual ele compartilha com o Samiano um assombro a respeito

da ideia de ingerir carne – para ele uma atitude que vai “contra a Natureza” (PLUTARCO,

23

A respeito do antropocentrismo enquanto elemento da própria Antropologia, ver Noske (2008a).

24 Sobre essa questão, é válida a contribuição de Vernant (2002), que, ao analisar o mito hesiódico das raças,

aponta que o ciclo apresentado – das raças de ouro, de prata, de bronze e dos heróis no plano do passado, e da

raça de ferro, no plano do presente – é colocado em sentido de decadência.

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2007, p. 155) e que foi derivada provavelmente da restrição ou do desejo por comida. Assim

como Pitágoras, Plutarco (2007) acredita que o consumo de carne é um fator de diferença

entre os homens de hoje e os antigos – no seu ponto de vista, entretanto, os homens do

passado estranhariam o hábito muito mais por ocorrer em uma era mais abastada e bem-

servida de alimentos que a deles.

Conforme discorria sobre o vegetarianismo, o filósofo também pensou sobre a relação

entre humanos e animais não-humanos de forma mais ampla, refletindo sobre o aspecto social

do tratamento concedido a estes últimos. Para ele, pode haver uma conexão entre o consumo

de carne e não só a saúde humana, mas também a sua mentalidade, que pode acabar se

inclinando “à sanguinolência e à destruição, uma vez que tivermos nos acostumados a não

entreter um convidado ou manter um casamento ou tratar nossos amigos sem sangue e

assassinato” (PLUTARCO, 2007, p. 157). Além disso, como afirma DeMello (2012, p. 379;

em negrito no original), Plutarco, “juntamente a outros filósofos como Plínio, o Velho,

compartilhava uma filosofia conhecida como teriofilia, que sustenta que os animais possuem

racionalidade”.

Essa linha de pensamento difere da apresentada por Aristóteles (2007), que, por sua

vez, exerceria maior influência posterior a respeito da questão na Filosofia (DeMELLO, 2012;

KALOF e FITZGERALD, 2007). Platão chegou a fazer algumas alusões ao vegetarianismo

nos seus escritos (DURANT, 2006), mas foi seu discípulo mais famoso quem se dedicou, na

Grécia Antiga, a estabelecer um olhar mais demorado em relação aos animais não-humanos.

Para Aristóteles (2007), que possuía uma visão materialista da realidade, existia uma

espécie de hierarquia entre os seres que habitavam o mundo – “um sistema mais tarde

conhecido como ‘scala naturae’ ou a ‘Grande Cadeia do Ser’” (KALOF e FITZGERALD,

2007, p. 5). Os humanos, é claro, se situariam no topo dessa cadeia e, quanto menos

semelhantes a eles, mais distantes do cume os outros seres – por ele classificado em formas

fixas, ‘espécies’ – se encontrariam. As qualidades encontradas no homem são nos animais

“representadas por qualidades análogas e não idênticas” (ARISTÓTELES, 2007, p. 5), e

algumas dessas características correspondentes possuem apenas diferenças quantitativas nas

espécies.

Dessa forma, diz Aristóteles (2007), nos animais podemos ver medo ou coragem,

dentre outros traços, assim como nos humanos. No caso da inteligência, ele se preocupa em

fazer um aparte específico: o correspondente seria “algo equivalente à sagacidade”

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(ARISTÓTELES, 2007, p. 5), que aparece, como nas crianças, como potencialidade.

Colocadas na linha hierárquica de Aristóteles (2007), qualidades como vitalidade,

sensibilidade e movimento aparecem maiores ou menores a depender do animal. Entretanto,

mesmo tendo em vista essas gradações e semelhanças, Aristóteles (2007, p. 6) considera que a

vida do animal pode “ser dividida em dois atos: procriação e alimentação; por ser nesses dois

atos que todos os seus interesses na vida se concentram”; tudo que eles buscam é se

conformar às suas próprias naturezas.

Esse último ponto, bem como o isolamento da ‘inteligência’ enquanto característica

humana, faz parte de uma concepção mais larga do pensamento aristotélico que entende o

humano como um ‘animal racional’ – ou seja, a racionalidade é, como cita Durant (2006, p.

76), sua “‘diferença específica’” em relação aos outros animais. Como já foi mencionado e

como poderá ser percebido mais à frente, essa visão parece ter influenciado bastante

percepções posteriores do animal e do humano; Descartes (2007), de maneira semelhante a

Aristóteles, afirmará no século XVII que a separação entre o animal e homem se dá, antes de

tudo, pela existência de uma mente e pela capacidade da fala. Parece, assim, se tornar

visivelmente recorrente que um ou outro seja definido através de comparações entre os dois,

especialmente para separar o bruto do racional. Como bem diz Nunes (2011, p. 13), pode

existir aí uma ideia de marginalidade cultural ou de espécie que relaciona o “animal e o

primitivo”:

A noção que me parece ser um elemento de ligação entre ambos é a de “bárbaro”, tal

como os gregos a usavam: aquele considerado estranho à cultura grega ou à sua área

de influência, estranho que normalmente era considerado também adversário; o

diferente se tornava oposto, e o oposto se tornava inimigo. Na nossa cultura

encontramos essa relação entre diferente e oposto, diferente e inimigo, no nexo

havido entre nós e esses outros, entre nós e o animal, ou entre nós e os primitivos.

Com o animal, as relações são, sobretudo, transversais, ou seja, o animal é

considerado o oposto do homem, mas ao mesmo tempo uma espécie de

simbolização do próprio homem. Na acepção comum, simboliza o que o homem

teria de mais baixo, de mais instintivo, de mais rústico ou rude na sua existência. Por

isso mesmo, o animal para nós é o grande outro da nossa cultura, e essa relação é

muito importante como tópico de reflexão (NUNES, 2011, p. 13)25

.

Na Idade Média, durante o século XIII, o teólogo Tomás de Aquino reforça a escala

hierarquizada dos animais com que Aristóteles – uma influência direta no seu pensamento

(DURANT, 2006) – trabalha. Segundo DeMello (2012, p. 380), Aquino divide o mundo entre

“pessoas, que são dotadas de razão e, logo, de almas imortais, e não-pessoas. Não-pessoas

25

E as relações com o ‘selvagem’ – o animal selvagem, a vida selvagem, o wildlife – caras a este trabalho ficam

aí implícitas nessa ponderação.

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são, essencialmente, coisas que podem ser usadas de qualquer maneira para servir os

interesses das pessoas”. O valor é algo exclusivo dos que possuem racionalidade; àqueles que

são julgados como irracionais, resta não a caridade, mas apenas uma posição de

instrumentalidade (AQUINO apud DeMELLO, 2012). Esse ponto de vista não era o único

dentro da esfera do pensamento cristão medieval – podemos, como Waldau (2013, p. 148),

lembrar de Francisco de Assis como “um bem conhecido exemplo de um indivíduo que falou

abertamente de compaixão por outros animais” –, mas era o mais difundido na cultura

ocidental, e o mais persistente nos séculos seguintes.

No Iluminismo, como adiantado acima, Descartes (2007) consolida a justificativa da

possessão de um ‘algo-a-mais’ dos humanos em comparação aos animais não-humanos para a

conduta do homem em relação a eles. O filósofo, que trabalhou notoriamente com uma noção

de observação direta que fundaria a ciência moderna e com reflexões sobre as relações entre

mente e corpo, centraliza o seu pensamento a respeito da questão animal justamente numa

ponderação sobre a impossibilidade deles serem capazes de pensar conscientemente ou

desfrutarem de uma mente – e é daí que emerge a sua ideia dualista de separação entre

homens e bichos (KALOF e FITZGERALD, 2007).

Descartes (2007) refuta Pitágoras e Michel de Montaigne, o ensaísta francês que,

como o pensador Pierre Charron, havia expressado dúvidas a respeito da distinção

humano/animal no século XVI. Montaigne (2007) criticava a ideia de superioridade humana

diretamente: “de todas as criaturas, o homem é a mais miserável e frágil, e, além disso, a

mais orgulhosa e cheia de desdém” (MONTAIGNE, 2007, p. 57, em itálico no original). Ele

acreditava que as relações entre seres humanos e animais poderiam funcionar em estado de

aproveitamento mútuo, o que denotava que neles haveria certas capacidades mentais;

argumentava também que eles poderiam empreender expressões comunicativas eficazes.

Segundo o escritor, “nós manifestamente percebemos que há uma completa e perfeita

comunicação entre eles, e que não apenas aqueles da mesma espécie entendem uns aos outros,

como até mesmo os de espécies diferentes” (MONTAIGNE, 2007, p. 58).

Sendo, como já discutido, na mente e na linguagem – centrada, aqui, na fala – que está

o argumento de Descartes (2007), é abordando precisamente esses pontos que ele responde a

Montaigne (2007):

Eu não posso compartilhar da opinião de Montaigne e de outros que atribuem

entendimento ou pensamento aos animais. [...] Montaigne e Charron podem ter dito

que há mais diferença entre um ser humano e outro que entre um ser humano e um

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animal; mas nunca se conheceu um animal tão perfeito ao ponto de usar um sinal

para fazer outros animais entenderem algo que não expressasse paixão; e não há ser

humano tão imperfeito ao ponto de não fazê-lo, já que até mesmo surdos-mudos

inventam sinais especiais para expressar seus pensamentos. Isso me parece um

argumento muito forte para provar que a razão pela qual animais não falam não é

porque lhes faltem os órgãos, mas porque eles não têm pensamentos

(DESCARTES, 2007, p. 59-60; itálico nosso).

Tomando isso como base, Descartes (2007) postula que animais não-humanos são

presas de seus próprios instintos, e seu comportamento pode ser definido como mecânico –

uma noção que seria ajustada ao conceito de observação direta e à distinção cartesiana de

corpo e espírito que segregaria homem e animal. “De fato, Descartes dissecou cães vivos e

conscientes e interpretou seus gritos não como dor, mas como os barulhos instintivos que uma

máquina faria” (DeMELLO, 2012, p. 380).

Apesar da profunda influência da perspectiva cartesiana daí em diante26

, isso não

significou uma concordância plena sobre essas questões no âmbito da Filosofia do tempo de

Descartes (2007). Como afirma DeMello (2012, p. 380), John Locke acreditava que animais

possuíam sentimentos e eram capazes de sentir dor – a crueldade contra animais, entretanto,

só era injustificável quando prejudicava as pessoas humanas. Voltaire atacou Descartes

frontalmente, criticando sua incapacidade de conceber que os animais seriam capazes de

sentir dor mesmo ao verificar em seus corpos a presença de estruturas de sensação física

análogas às dos seres humanos (DeMELLO, 2012).

No século XVIII, Immanuel Kant (apud DeMELLO, 2012) centraliza a questão nos

termos racionalidade e autonomia, descrevendo-os como as características que impunham

uma separação entre humanos e animais. Animais não teriam como realizar escolhas morais

racionais; não sendo, assim, agentes morais plenos, não poderiam ter valor dentro de

considerações desse tipo (KANT apud DeMELLO, 2012, p. 381). Da mesma forma que

Locke, entretanto, Kant enxergava na crueldade contra animais algo condenável, na medida

em que afetava os humanos (DeMELLO, 2012).

Ainda nesse século, diz DeMello (2012), passou a ser esboçado de forma mais

estruturada um sistema teórico de direitos que levava em conta os animais, ainda que de

forma limitada. Com Jean-Jacques Rousseau, diz a autora, há uma mudança da noção de

limites à crueldade animal como forma de não lesar os humanos envolvidos para uma ideia de

26

O que, expõe Waldau (2013), é de extrema importância para os Animal Studies, visto que sua perspectiva

dualista ainda é largamente usada atualmente como fundamentação moral da ação humana nas relação com os

animais, como no caso de testes científicos in vivo feitos com não-humanos, por exemplo.

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proteção ligada ao valor intrínseco que eles podem ter. O filósofo separava os direitos em

positivos – os direitos de fazer, de crer, expressar, etc. – e negativos – onde se encontra o

direito de não sofrer algo cometido por alguém, por exemplo. De acordo com ele, os animais

podem não ter racionalidade e nem a capacidade de entender ou participar de contratos

morais, mas são sencientes, ou seja, abertos às sensações do mundo, como os humanos. Como

eles, portanto, devem ser resguardados de maus tratamentos dentro do contexto dos direitos

negativos (ROUSSEAU apud DeMELLO, 2012).

Indo em direção similar à de Rousseau, Jeremy Bentham (2007) faz, ainda àquela

época, algumas considerações que marcariam intensamente o pensamento sobre a questão

animal e lançariam de forma direta as bases dos argumentos de Singer (2010), por exemplo.

Bentham, dizem Kalof e Fitzgerald (2007, p. 8) é especialmente conhecido “por seu trabalho

em filosofia utilitária (uma proposição de que o maior bem vem daquilo que traz maior

felicidade). Na sua máxima de que ‘cada um conta por um e nenhum conta por mais de um’

[...], todos os interesses têm peso igual”. Para Bentham (2007), os animais também entram na

conta dos interesses a serem analisados para se chegar ao melhor resultado de felicidade

possível. Comparando o caso deles ao do racismo na escravidão, situação já condenada pelos

franceses naquele momento, o filósofo escreveu um dos trechos mais referenciados na

literatura sobre o assunto:

Pode vir o dia em que será reconhecido que o número de pernas, a vilosidade da pele

ou a terminação dos sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um

ser senciente à mesma sorte [das populações negras]. O que mais deveria traçar a

linha insuperável? Seria a capacidade da razão ou, talvez, a capacidade do discurso?

Mas um cavalo plenamente crescido ou um cão são, sem comparação, animais mais

racionais, assim como mais sociáveis, que uma criança de um dia, uma semana, ou

mesmo de um mês de idade. Mas, supondo que o caso fosse outro, de que isso

valeria? A questão não é ‘podem eles raciocinar?’, nem ‘podem eles falar?’, mas:

‘podem eles sofrer?’ (BENTHAM, 2007, p. 9; em itálico no original).

DeMello (2012, p. 383) esclarece que muitas dessas visões estão calcadas no chamado

humanismo ético, em que subsiste “a crença de que apenas seres humanos merecem ser

considerados moralmente e que todos os humanos, independentemente de inteligência ou

habilidade, merecem tal consideração”27

. O humanismo ético, segundo a autora, pode se

27

Adicionalmente, também é importante perceber, como o faz Waldau (2013, p. 143), que esses filósofos

“tiveram pontos de vista muito fortes sobre os animais não-humanos mesmo quando eles sabiam relativamente

pouco a respeito da vasta maioria dos não-humanos de suas próprias localizações, e muito menos do resto do

mundo”. Ele cita o exemplo de Kant, que nunca ultrapassou um raio de cerca de 130 km a partir de sua cidade

natal, Konigsberg, “o que significa que ele nunca passou tempo algum com elefantes, ou baleias, ou golfinhos,

ou bonobos, nos contextos onde suas habilidades evidentes são exercidas mais completamente” (WALDAU,

2013, p. 143). Entretanto, é igualmente importante perceber os limites dessa observação, como pode apontar de

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relacionar a um excepcionalismo de cunho especista de duas maneiras em geral: (1) apenas

restringindo o direito a ser considerado moralmente à espécie humana; ou (2) argumentando

que os humanos possuem algo que os aloca em um patamar superior em termos de

importância moral. Entretanto, desde “o tempo de Jeremy Bentham, filósofos lutam com uma

questão: Existem mesmo essas diferenças moralmente significantes que justificam a

exploração humana de animais não-humanos – e elas podem ser verificadas empiricamente?”

(DeMELLO, 2012, p. 384). Muitos sinais de resposta a esse questionamento são feitos por

pesquisas que demonstram níveis de complexidade emotiva e uso de linguagem por algumas

espécies não-humanas28

; entretanto, como para eles isso não seria a norma, alguns filósofos

acreditam que espécie humana ainda deve ser privilegiada nas ponderações morais

(DeMELLO, 2012). Outros, entretanto, tendem a ver a problemática de outra maneira,

principalmente a partir do século XX.

2.3. PENSAR O ANIMAL: OUTRAS PERSPECTIVAS NA ÉTICA E ALÉM DELA

Como dito anteriormente, Jeremy Bentham exerceu considerável influência sobre o

trabalho de Peter Singer – que viria, por sua vez, a disseminar um interesse geral na questão

animal a partir dos anos 1970 e fornecer boa parte do impulso que gerou os recentes estudos

da interação entre o humano e o animal. Fundamentando seu pensamento em um ponto de

vista utilitarista como Bentham (2007), Singer (2010) parece estar constantemente

preocupado com as implicações da capacidade dos animais em sofrer e sentir.

Não lhe interessa se os animais possuem ou não racionalidade. Para Singer (2010), não

importa se eles possuem características que os tornam mais próximos ou mais longínquos dos

humanos do que costumamos pensar no que concerne ao entendimento da moralidade, à

autonomia ou à habilidade de estabelecer processos de linguagem; é nesse ponto, aliás, que o

autor traça uma analogia do especismo ao racismo, já que, neste último, guardadas as

proporções, também existe um esforço de diferenciação baseado no destacamento de

características que isolariam um grupo intitulado superior (SINGER, 2010). Mas se os

animais são sencientes – se podem sentir o mundo pela dor e pelo prazer –, diz Singer (2010),

alguma forma a preferência de Descartes em ver as estruturas e reações dos cães dissecados por ele como

simplesmente mecânicas.

28 Pesquisadores têm concluído que “muitas espécies de animais possuem as capacidades básicas consideradas

necessárias para a subjetividade: autoconsciência, agenciamento racional, capacidade de aprender e transmitir

linguagem” (WEIL, 2012, p. 4).

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então eles devem, sim, estar incluídos dentro da esfera de obrigações morais dos seres

humanos. Em sua perspectiva, seres sencientes, humanos ou não, têm igual peso na

matemática das decisões com que o utilitarismo pretende atingir os melhores cenários de

resolução moral possíveis – ou, como expressado por ele, dentro de um “princípio da

minimização do sofrimento” (SINGER, 2010, p. 34).

Essa inclusão, segundo Singer (2010) não significa que os animais devem ter os

mesmos direitos dos seres humanos. Ele exemplifica que, da mesma forma que uma mulher

defensora do aborto, na luta por seu direito a fazê-lo, não tem a necessidade de lutar pelo

mesmo direito para os homens – a biologia masculina humana, como a conhecemos hoje, não

comporta a concepção e o aborto –, há direitos que não precisam ser garantidos aos animais.

“Como os cães não podem votar, não há sentido em falar sobre o direito deles de votar. [...] O

princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico, mas sim igual

consideração. Igual consideração por seres diferentes pode levar a tratamentos e direitos

distintos” (SINGER, 2010, p. 5; em itálico no original). Seguindo essa argumentação, ele

expõe que, se levarmos em consideração esse princípio de igualdade, “nosso interesse pelos

outros e nossa prontidão em considerar seus interesses não devem depender da aparência ou

das capacidades que possam ter” (SINGER, 2010, p. 9).

Dessa forma, ressalta-se que, para Singer (2010), a utilização de traços como a

capacidade de raciocinar ou a linguagem para demarcar uma separação entre o humano e o

animal do ponto de vista das implicações morais é, como sugeria Bentham (2007), uma

abordagem arbitrária do problema. Ao invés disso, a questão deve ser centrada no sentir: a

“capacidade de sofrer e de sentir prazer é um pré-requisito para um ser ter algum interesse”

(SINGER, 2010, p. 13; em itálico no original). Esse interesse deveria ser equacionado para

uma perspectiva calcada não nos direitos (SINGER, 2007; SINGER, 2010), cuja linguagem

seria “uma conveniente taquigrafia política” (SINGER, 2010, p. 14) presa a questões de

autonomia e envolvimento numa comunidade, mas nos eixos da igualdade, da libertação e da

atitude humana em relação aos animais. Em sua Libertação Animal, Singer (2010) não apenas

constrói essa resposta aos argumentos comumente usados para justificar a não-obrigação

humana em relação aos animais eticamente – como quando, por exemplo, coloca em debate a

perspectiva capacitista de autores como Descartes ao discutir o valor moral dos ‘inválidos’

humanos em relação aos animais não-humanos –, mas também apresenta uma discussão sobre

as consequências do especismo em atividades como a pesquisa científica e a criação industrial

de animais para a alimentação humana.

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Nos anos 1980, outro autor viria a acrescentar mais uma perspectiva influente sobre a

questão. Tom Regan (2008) faz uma crítica às abordagens mais comuns usadas anteriormente

para pensar o lugar moral dos animais. Ele rebate, assim, o contratualismo, ligado à noção de

que a “moralidade é um conjunto de regras que os indivíduos voluntariamente concordam em

respeitar, como quando assinamos um contrato” (REGAN, 2008, p. 358)29

e o utilitarismo de

Bentham (2007) e Singer (2010), que, ao colocar os interesses na sua balança, mesmo que de

forma igualitária, prezava o resultado das comparações de interesse em detrimento dos

sofrimentos pontuais que poderiam ocorrer nos indivíduos envolvidos. Regan (2008, p. 359)

avalia que o contratualismo “nega sistematicamente que possuímos deveres diretos para

aqueles seres humanos que não têm um senso de justiça – crianças pequenas, por exemplo, e

muitos humanos com retardo mental”. Sobre o utilitarismo, o autor diz que:

A igualdade que encontramos no utilitarismo [...] não é a do tipo que um defensor

dos direitos animais ou humanos deveria ter em mente. O utilitarismo não tem

nenhum espaço para os direitos morais igualitários de indivíduos diferentes porque

não tem nenhum espaço para os seus inerentes valores igualitários. O que tem valor

para o utilitarista é a satisfação do interesse de um indivíduo, e não o indivíduo que

possuem esses interesses (REGAN, 2008, p. 361).

Para Regan (2008), é importante ressaltar o valor inerente dos animais. Sencientes,

eles seriam “sujeitos de uma vida” (REGAN, 2008, p. 364) e, portanto, interessados em seu

próprio bem-estar e integridade. Para o autor, é essencial que se garantam direitos (negativos,

infere-se) aos animais não-humanos – uma posição considerada por ele como “abolicionista”

(REGAN, 2008, p. 365). Apenas dessa maneira se garantiria que: (1) seres com valor inerente

derivados de sua senciência não sejam prejudicados por não serem capazes de participar como

agentes de contratos morais; e (2) esse valor seja protegido não em relação aos interesses que

surgem, mas de forma inalienável, como uma “carta de trunfo” (REGAN, 2007, p. 29)30

que

não pode ser relativizada.

Essa discussão ética, que dá sustentação a uma parte significativa das indagações dos

Human-Animal Studies – e, de maneira ainda mais expressiva, dos esforços dos Critical

Animal Studies – não se encerra por aí. Contemporaneamente, não está limitada às posições

de Regan e Singer. O que se deseja destacar aqui, além desse compêndio muito breve e

generalizado que foi montado nos parágrafos anteriores, é a grandeza da influência que a ética

exerce sobre as reflexões acerca do animal não-humano. O exercício de pensar o animal,

29

E relacionado, dessa forma, àquelas discussões sobre autonomia capacidade de entender proposições morais

citadas anteriormente neste texto.

30 “Trump card” no original em inglês (REGAN, 2007, p. 29).

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39

quando ele é colocado assim em separado, parece levantar muito facilmente uma ponderação

sobre o agir (no caso, racional) do humano em relação a ele. Ao se delegar planos diferentes

ao humano e ao animal não-humano, questões a respeito dessas interações surgem de maneira

de certa forma necessária – seja para serem negadas, seja para serem colocadas como pontos

de pauta dentro da organização humana do mundo. Considerou-se que as posições

apresentadas acima compõem um panorama mínimo para os interessados em ir mais além.

Apreciações mais densas a esse respeito exigiriam um debate muito mais amplo do que o que

este estudo permite.

Pode-se, entretanto, apontar algumas dessas perspectivas que têm ganhado força

recentemente. Nussbaum (2007, p. 31), por exemplo, utiliza uma abordagem voltada para as

“capacidades”31

para se contrapor às perspectivas “Kantianas” – isto é, que privilegiam a

racionalidade e concentram as obrigações morais aos seres que a detêm – e utilitaristas da

ética humano-animal. Para a autora, os indivíduos devem ter respeitadas as necessidades que

permitem que eles floresçam a partir dessas capacidades32

. Há, também, conforme aponta

DeMello (2012, p. 390; em negrito no original), diversas frentes de estudos ligadas ao

feminismo, como o “ecofeminismo e a ética do cuidado feminista”33

; nesse bojo se

encontra, por exemplo, o trabalho da já citada Carol Adams (2008).

Não é só a reflexão ética, entretanto, que o pensamento sobre o animal desperta. Sax

(2007), como já discutido, recomenda que as interações entre os humanos e os animais sejam

pensadas de forma mais ampla, no sentido da tradição; existe, ainda, todo o pensamento que é

desenvolvido no âmbito das Ciências Naturais34

. Em outra contribuição importante, Lévi-

31

“Capabilities approach” no original em inglês (NUSSBAUM, 2007, p. 31).

32 “Uma abordagem das capacidades pode reconhecer uma vasta gama de tipos de dignidade animal, e o que os

animais necessitam para florescer” (NUSSBAUM, 2007, p. 31).

33 “Feminist ethic of care” no original em inglês (DeMELLO, 2012, p. 390).

34 Não se podendo aqui deixar de mencionar, de passagem, os nomes de Carlos Lineu, que, em sua classificação

dos seres vivos, aproximou os humanos dos símios (BUCHANAN, 2012), e de Charles Darwin, cujo trabalho foi

essencial “não só na história da ciência e no desenvolvimento da cultura ocidental, mas também para a

humanidade e para o mundo em geral. As contribuições de Darwin são bem conhecidas – suas percepções sobre

a evolução, a seleção natural e a origem comum, incluindo sua documentação detalhada das forças que afetam a

sobrevivência e a proliferação das espécies, produziram mudanças profundas de diversas maneiras na cultura

ocidental e além dela – e visões de mundo se modificaram para incluir uma consciência muito maior da

continuidade fundamental entre os humanos e as outras espécies. Todos esses desenvolvimentos são de grande

relevância para os Animal Studies, mas, em particular, Darwin avançou nos processos pelos quais tanto os

humanos como os não-humanos foram desmistificados” (WALDAU, 2013, pp. 81-82).

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40

Strauss (2007, p. 268)35

, ao desafiar a noção predominante de que as relações associativas que

se estabelecem simbolicamente entre clãs humanos e elementos do seu entorno – os totens, e

mais especificamente os totens animais – são estabelecidos primordialmente por razões

alimentares, argumenta que os animais “são escolhidos não porque são ‘bons para comer’,

mas porque são ‘bons para pensar’”. Com isso, o autor reconhece que existe uma força

atrativa não tão pragmática no animal que induz esse pensar e, principalmente, dá vazão a

essas associações metafóricas, simbólicas – a essas constituições essenciais de mediação do

humano em relação ao seu entorno a partir da figura do animal.

Os Human-Animal Studies, se os entendermos como gerados sob a influência do

utilitarismo de Singer (2010), tiveram o seu primeiro desenvolvimento ancorado em uma base

de filosofia analítica (SHAPIRO e DeMELLO, 2010), ou seja, dentro de uma visão anglo-

saxã intimamente relacionada aos pensamentos sobre ética e racionalidade discutidos no

começo deste item e no anterior. Esse primeiro momento foi marcado por diversos estudos

quantitativos das Ciências Sociais e da Psicologia sobre relações de companhia entre humanos

e animais; em seguida, cresceram as contribuições de áreas da Antropologia, da Geografia,

das Ciências Políticas e do Direito (SHAPIRO e DeMELLO, 2010, p. 311). A partir dos anos

1990, tendências advindas da Filosofia, das Ciências Humanas e de áreas das Ciências Sociais

acrescentaram perspectivas mais ligadas à filosofia continental, uma classificação

generalizante de diversas vertentes do pensamento europeu de escopo mais ‘interpretativo’

(SHAPIRO e DeMELLO, 2010, p. 311), a exemplo dos aportes influenciados pelo já citado

Derrida (2011). No que diz respeito à ética, essas abordagens têm a vantagem de trazer uma

visão menos hierarquizada e menos centrada em supostas qualidades diferenciadoras

atribuídas às espécies (DeMELLO, 2012, p. 390); tais aportes significaram também a

emergência de uma crítica literária e artística centrada no animal (SHAPIRO e DeMELLO,

2010).

Multiplicam-se, assim, inquietações não apenas relacionadas ao agir racional humano

perante o animal – embora, é claro, este seja um ponto tocado frequentemente pelos estudos

da área, mesmo quando não figura como tema central. As questões que cercam o animal não-

humano em sua visualidade, mais caras aos objetivos deste estudo, parecem estar

particularmente conectadas à última tendência relatada no parágrafo anterior. Segundo Weil

35

Que, a partir de uma visão estruturalista da Antropologia, como expõem Kalof e Fitzgerald (2007, p. 262)

acreditava que “todas as culturas têm um sistema de comunicação simbólica que produz formas de pensar que

são similares para todos os humanos e que organizam e categorizam seus mundos”.

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41

(2012, p. XX), existe, no esforço da concepção visual do animal, um “desejo persistente de

saber como é ser um animal (especialmente o ‘animal que sou’)”. Subjacentes, de maneira

geral, a tal abordagem estão noções de “construção social, hibridismo” (SHAPIRO e

DeMELLO, 2010, p. 314) implicadas na compreensão de seres não-humanos.

Weil (2012) cita como influências dessa vertente o trabalho de Jakob von Uexküll,

para quem os animais seriam capazes de produzir subjetividades próprias dentro de seus

ambientes de percepção, e de Martin Heidegger, que se interessou pela própria questão do ser

no animal. Segundo Buchanan (2012), Heidegger se encontra em um momento filosófico em

que, havendo o peso das proposições de Darwin, não era mais tão simples relegar o animal

não-humano à condição de ‘máquina’ inferior, como o fez, por exemplo, Descartes (2007).

Seria preciso fazer perguntas mais complexas a respeito de sua existência, pensá-lo

ontologicamente – e isso, no caso, vai implicar uma noção de complementaridade existencial

entre humanos e animais. “Fenomenologicamente, Heidegger abre a porta para que se

considere como nós existimos com os animais mesmo que nós não coabitemos os mesmos

mundos” (BUCHANAN, 2012, p. 280), muito embora ele considerasse que os animais teriam

uma capacidade subjetiva limitada – em suas palavras, eles seriam “pobres em mundo”

(HEIDEGGER apud BUCHANAN, 2002, p. 275; LIPPIT, 2000, p. 59).

Outros autores resgatados pela linha em questão põem em debate, direta ou

indiretamente, a posição de Martin Heidegger a respeito da restrição da experiência do animal

no mundo. Thomas Nagel, em um texto que parece ser dos mais influentes para as reflexões

sobre a questão do ser no animal – What Is Like to Be a Bat?36

, publicado nos anos 1970 –,

questiona profundamente a possibilidade de se alcançar uma compreensão da experiência da

vida animal através do pensamento humano. Para o filósofo, para saber como é ser um

animal, precisaríamos experimentar o mundo pelos mesmos dispositivos físicos com que eles

acessam suas vidas (NAGEL, 1974); seria difícil, assim, reduzir a existência do animal por

meio da expressão e do pensamento humano. De acordo com Nagel (1974), a consciência do

animal estaria relacionada de forma muito próxima à sua própria experiência; se eu quiser

imaginar como seria ser um morcego, como o autor se pergunta, pode ser que tudo que eu

consiga seja imaginar como um ser humano imaginaria o que é ser um morcego37

.

36

“Como É Ser um Morcego?”, em tradução livre (NAGEL, 1974, p. 435).

37 Como aponta Doniger (1999), essa não é uma ponderação exatamente recente: o filósofo grego Xenófanes

celebremente já havia afirmado que, caso pudessem desenhar, os cavalos representariam seus deuses à sua

semelhança. Para a autora, Nagel (1974) utiliza a figura do morcego na sua indagação porque, à diferença dos

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42

Um estranhamento similar pode ser constatado, como mencionado no capítulo

anterior, nas reflexões de Derrida (2011), para quem a relação entre o acesso dos animais ao

mundo é, em relação aos humanos, mais uma diferença de tipo que de grau. Para além dessa

questão e das considerações já discutidas, o autor estabelece também um importante ponto de

vista ao partir sua observação de um animal corporificado, real (e que, como vimos, o observa

em sua nudez): “o gato do qual falo é um gato real, efetivamente, acreditem-me, um gatinho.

Não é uma figura do gato. Ele não entra silenciosamente no quarto para alegorizar todos os

gatos do mundo, os felinos que atravessam as mitologias e as religiões, a literatura e as

fábulas” (DERRIDA, 2011, p. 18; em itálico no original).

Deleuze e Guattari (1997) também tecem reflexões que podem ser acrescentados neste

debate. Os autores falam de um devir-animal, isto é, de uma ideia de relação entre os humanos

e os animais calcada na proximidade e na diferença – na multiplicidade e numa noção de

transitoriedade, fluidez, contágio. Segundo os filósofos, um

devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança,

uma imitação e, em última instância, uma identificação. [...] Os devires-animais não

são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se

trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é

evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o

animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele

próprio. [...] Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por

dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria

imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem

da aliança (DELEUZE e GUATTARI, 1997, pp. 18-19).

Existe, assim, em Deleuze e Guattari (1997), uma compreensão muito complexa das

interações possíveis entre os humanos e os animais e que dependem não só da ação do

primeiro, mas de uma criação complementar mesma entre os elementos, em fluxo contínuo,

de uma relação de natureza múltipla. “Essas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-

funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é neles que o homem opera

seus devires-animais” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 23; em itálico no original).

A filósofa norte-americana Donna Haraway (2008) faz uma crítica a Derrida (2011) –

que segundo ela, retoma seu ‘pensamento filosófico’, com todas as implicações institucionais

que isso traz, mesmo partindo de um encontro com um animal corpóreo, não apenas ideal.

Também faz algumas ressalvas ao pensamento de Deleuze e Guattari (1997), que ela diz

cavalos, “nós não amamos os morcegos” (DONIGER, 1999, p. 102; em itálico no original). Assim, de acordo

com ela, a compaixão e, infere-se, a empatia são elementos essenciais no exercício do pensar o ser dos animais

não-humanos.

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43

admirar, mas no qual constata uma “profunda ausência de curiosidade ou respeito para ou

com animais reais, embora inúmeras referências a diversos animais sejam invocadas”

(HARAWAY, 2008, p. 27). A autora situa, então, o seu entendimento da questão num plano

muito mundano, tátil, para desenvolver uma ideia de relação entre “espécies companheiras”38

(HARAWAY, 2008, p. 16) que se influenciam mutuamente – algo como parceiros numa

jornada biológica. A referência a Deleuze e Guattari é explícita (HARAWAY, 2008); a

tentativa de se esquivar do antropomorfismo, ou seja, da exclusividade da ação ou da

impressão humana nos resultados das ações e percepções do mundo parece evidente aqui.

Para Haraway (2008), cujo pensamento sobre o híbrido produziu também uma famosa

reflexão sobre ciborgues (KALOF e FITZGERALD, 2007), é importante pensar a relação

entre o homem e o animal a partir de uma noção de “emaranhamento”39

que produz realidades

mundanas a partir de “zonas de contato” (HARAWAY, 2008, p. 4). É essa a relação, quase

simbiótica, que homens e cães teriam construído, por exemplo; ambos se modificaram e se

modificam de forma importante por meio de seus próprios agenciamentos sobre o outro.

Haraway (2008, p. 17) comenta que “nunca quis ser pós-humana, ou pós-humanista,

mais do que quis ser pós-feminista. [...] ainda há um trabalho urgente a ser feito em referência

àqueles que precisam habitar as categorias conturbadas da mulher e do humano, propriamente

pluralizadas, reformuladas [...]”. Sua percepção do tema parece, entretanto, caber bem na

“rubrica dos ‘pós’ – pós-humanismo e pós-modernismo” que influencia consideravelmente a

abordagem “interpretativa” dos HAS, conforme colocado por Shapiro e DeMello (2010, p.

310).

Obviamente, uma discussão completa sobre o pós-moderno, em toda a sua

complexidade, não cabe nesta dissertação40

. Podemos, entretanto, esclarecer brevemente

alguns pontos sobre o pós-humano, devido a sua atual recorrência em parte da literatura sobre

a questão animal. Wolfe (2010), ao falar do pós-humanismo, esclarece que a ideia do que é

humano na sociedade contemporânea, em seu caráter de ente separado da natureza e do

38

“Companion species”, no original em inglês (HARAWAY, 2008, p. 16).

39 “Entanglement”, no original em inglês (HARAWAY, 2008, p. 4)

40 Reiterando-se que, aqui, leva-se em conta a percepção de Giddens (1991, p. 56) sobre o assunto, para quem o

pós-moderno pode se referir ao pós-modernismo – que diz “respeito a aspectos da reflexão estética sobre a

natureza da modernidade” – e à pós-modernidade, que, além do “sentido geral de se estar vivendo um período de

nítida disparidade do passado”, traz uma ideia de desconstrução de (1) noções epistemológicas, no campo do

conhecimento, e (2) da crença no progresso, no campo político. No entanto, como bem apontado pelo autor, as

inquietações da dita pós-modernidade podem ser vistas como “‘a modernidade vindo a entender a si mesma’ ao

invés da superação da modernidade enquanto tal” (GIDDENS, 1991, p. 58), posição adotada nesta pesquisa para

uma visão geral da questão.

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animal, é não só recente como transitória – ou seja, seus valores, que hoje seriam tomados

como perenes e universais, não deveriam ser encarados dessa forma. A ideia do pós-

humanismo não seria suplantar o humano, mas alcançar um senso de descentralização “do

humano por sua imbricação nas redes técnicas, médicas, informáticas” (WOLFE, 2010, p.

XV) – não em um sentido ‘transumano’, isto é, de aperfeiçoamento híbrido de sua existência a

partir dos valores contidos no humano iluminista, por exemplo, mas pelo contrário disso: o

pós-humano viria, assim “tanto antes como depois do humanismo”. Para Shapiro e DeMello

(2010, p. 314), no pós-humanismo, assim, não há “animal enquanto tal”; apenas construtos e

divisões de limites pouco claros.

A partir dessas reflexões que cercam os Human-Animal Studies, podemos fazer neste

ponto pelo menos duas considerações básicas. A primeira delas diz respeito à preponderância

já adiantada acima do fator ético como um elemento que acompanha quase que

invariavelmente o pensamento sobre o animal não-humano. Mesmo que se considere a

questão sob um ponto de vista descentralizador, que procure de alguma forma evitar o

antropocentrismo – e, mais especificadamente, o reducionismo de se pensar em apenas uma

noção do que é o ser humano e o que são os animais enquanto categorias fechadas – ao se

pensar nas relações que inevitavelmente existem, a ética assume uma posição de topo dentre

as interações por seu caráter frequentemente mundano e urgente.

É relevante destacar aqui que, mesmo que o pensamento acadêmico e filosófico aponte

um caminho em que seja importante notar como são enevoadas as divisões entre humanos e

animais, estes não deixam de ser afetados por uma visão de mundo que os relega a uma

categoria inferior, estando, assim, estruturalmente passíveis de atos humanos que ignorem

tudo isso. Em outras palavras, podemos até ser capazes de repensar a barreira humano-animal,

mas isso não resolve prontamente os dilemas éticos que permeiam a experiência dos animais

não-humanos no mundo contemporâneo. Da mesma forma que a modernidade não se desfaz

quando desconstruímos mentalmente suas configurações, a construção social da divisão entre

humanos e animais não é rompida instantaneamente quando um grupo de pesquisadores, por

mais bem armados de argumentos que estejam, publicam livros e manifestos expondo as

fraturas que tornam urgente pensarmos a sua dissolução na ideia de algo múltiplo,

recombinável de inúmeras maneiras. Os problemas éticos advindos dessas construções, por

consequência, tampouco são imediatamente isolados das disputas existentes. Fica, dessa

forma, marcado o indispensável papel dos Critical Animal Studies no ambiente de reflexão

sobre as relações entre o humano e o animal.

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45

A segunda consideração a ser feita está, enfim, relacionada mais de perto às

atribuições simbólicas dadas ao animal – ao animal bom para pensar de Lévi-Strauss (2007),

por exemplo. E, aqui, oportunamente nos concentrando no mérito da questão do olhar para o

animal, podemos avaliar que, assim como no debate ético, existe certa clivagem entre a

dissolução das barreiras fomentadas por algumas das observações dos Animal Studies e as

construções realizadas e acumuladas sobre essa noção e que impõem uma carga simbólica

sobre o animal que não pode ser desconsiderada.

Em ambos os casos, essas posições não são sempre excludentes, é claro, cabendo em

um panorama de concepções múltiplas, principalmente no que concerne a essa última

consideração. Mas é possível realizar, sim, alguns discernimentos privilegiando a temática

abordada neste trabalho.

Em Berger (1980), como já explorado, existe a percepção de um processo de sumiço

dos animais no cotidiano. Isso é reverberado nos eventos em que ele é o centro de exibição

pública, de visualidade, nos termos de uma destruição de um dito animal ‘real’, como bem

comentado por Baker (2001)41

. Se pensarmos mais propriamente a respeito do animal

selvagem como um tal animal real – já que, para Berger (1980), os animais domésticos não

poderiam ser considerados dessa forma –, uma comparação entre a problemática de espaços

como o zoológico, tocada no Capítulo 1, e os wildlife films é perfeitamente possível,

guardadas as especificidades evidentes. Lippit (2000) estabelece uma ponte ainda mais

abrangente que parece deixar clara essa relação ao falar do filme enquanto uma ferramenta de

deslocamento de linguagem e do lugar do antropomorfismo na cultura:

É durante o século XIX, com o surgimento do modernismo na literatura e na arte,

que os animais vêm ocupar os pensamentos de uma cultura em transição. Conforme

eles desapareciam, os animais se tornavam crescentemente sujeitos de uma

curiosidade nostálgica. [...] Os animais pareciam se fundir com os novos corpos

tecnológicos que os substituíam. As expressões e as histórias de numerosas

inovações tecnológicas, da máquina a vapor à mecânica quântica, carregam os traços

de uma animalidade incorporada. [...] A tecnologia, e mais precisamente os

instrumentos tecnológicos e a mídia daquele tempo, começaram a servir como

abrigos virtuais para animais deslocados. Dessa maneira, a tecnologia e, por fim, o

cinema, vieram para determinar um vasto mausoléu para o ser animal (LIPPIT,

2000, pp. 186-187).

Sob essa perspectiva, os animais não-humanos vistos no zoológico e nos filmes são

artefatos inseridos em um processo de separação e desaparecimento. Para Berger (1980, p.

41

Note-se, como faz Baker (2001, p. 14), que Berger (1980) possui “uma concepção do animal real, certamente,

mas é uma concepção que ele emprega retoricamente”.

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16), dentro desse ideário, “os animais são sempre observados. O fato de eles poderem nos

observar perdeu todo o seu significado. Eles são o objeto do nosso conhecimento sempre em

expansão. O que sabemos sobre eles é um índice de nosso poder e, assim, um índice do que

nos separa deles”. Não por acaso, dois elementos em especial – o conhecimento/educação e

uma ética de conservação – assumem um papel proeminente nos wildlife films em dado

momento, como poderá ser percebido mais adiante42

.

Esse é, então, um aspecto essencial da visualidade e da simbologia do animal na

atualidade: uma profunda conexão com os valores gerais da sociedade, e uma ligação muito

específica com o status de sua presença gerado por esses mesmo valores, que são, por fim,

baseados na separação humano-animal, apesar da necessidade de se considerar uma visão

híbrida dessa relação. Para autores como Burt (2002; 2007), entretanto, é preciso ir um pouco

além dessa perspectiva.

Reconhecendo que, geralmente, “os problemas que emergem em relação à

representação do animal são exacerbados pela díade conceitual do humano-animal e, por

extensão, da cultura-natureza” (BURT, 2007, p. 290), o autor explica que essa representação

não se limita às metáforas antropomórficas, mas às próprias condições sociais em que eles são

vistos, como seria o caso de sua reconfiguração imagética através da tecnologia na

modernidade (BURT, 2007). Nesse bojo, no entanto, é preciso notar que o animal não se torna

um ser plenamente virtual dentro da sua captura técnica: o animal não pode desaparecer

completamente na imagem porque “essa imagem não é uniforme, mas inevitavelmente

fragmentada, tanto em termos de variedade técnica de sua reprodução como em termos dos

conflitos variados que existem ao redor da própria imagem” (BURT, 2002, p. 87). Esse ponto

de vista é esclarecido por Pick (2011, p. 108), que comenta que, ao “enfatizar a existência de

uma variedade de (algumas vezes contrastantes) constelações de olhares entre humanos e

animais e de diferentes regimes de visibilidade para o animal no espaço público moderno,

Burt quer recuperar o animal visual como uma presença potencialmente positiva”, ou seja,

agente.

Existe, portanto, uma tensão na imagem do animal que não pode ser ignorada.

Entende-se aqui que esse conflito está, em boa parte, inscrito na questão do antropocentrismo:

até onde fazemos tudo isso se tornar algo que diz respeito quase sempre a nós mesmos? Sim,

42

Existem, obviamente, dimensões éticas muito diversas entre um zoológico e um documentário de vida animal,

se se analisar a questão sob esse ponto, como faz Malamud (2007).

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o animal é, para nós, bom para pensar. Mas isso ocorre porque tudo o que pensamos sobre ele

é, em princípio, baseado naquela denegação que “institui o próprio do homem, a relação

consigo de uma humanidade antes de mais nada preocupada com seu próprio e ciumenta em

relação a ele” (DERRIDA, 2011, p. 34)? Burt (2011), ao falar de uma representação que não é

uniforme, parece fornecer um caminho para aliviar essa problemática. Mas isso não significa

o desaparecimento dessa tensão. Trata-se, entendemos, de um ponto não resolvido – repleto

de construções e fraturas acumuladas. Podemos, com isso, retomar o nosso juízo do texto de

Coetzee (1999) para nos perguntamos até onde reside o animal dentro não só do texto

acadêmico, mas também em sua concepção visual na atualidade.

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3. PENSAR O DOCUMENTÁRIO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE AS

TENSÕES DO GÊNERO E DOS WILDLIFE FILMS

Cada um tem suas razões para estar em algum lugar para fazer alguma coisa. Isso

que eu quero descobrir. Então a razão do outro me interessa. Tentar estar no lugar do

outro é a chave da questão. É impossível, mas tem que tentar, e nesse confronto de

tentar entender o outro sai um diálogo que é improvisado, que é inventado, porque

você inventa também quando fala. E não importa, se inventa bem, é verdade. Se é

bem inventado, é verdadeiro e ponto final. “Eu fui feliz”, sei lá se é verdade. Tá

dizendo! Pode ser que daqui um ano diga outra coisa (COUTINHO, 2014).

No trecho acima, retirado de uma entrevista concedida a Mariana Simões e publicada

no portal virtual da Agência Pública43

, o cineasta Eduardo Coutinho dá pistas significativas

para uma possível leitura de seus documentários: não lhe preocupa uma veracidade final dos

discursos de seus entrevistados, mas seu próprio interesse nas palavras e razões do outro,

sejam elas inventadas ou não, que emergem durante as conversas apresentadas em filmes

como Santo Forte (1999) e Edifício Master (2002). Entretanto, seria essa a posição

tradicionalmente esperada de um documentarista? Se não o que se chama de veracidade, o que

diferencia o documentário do cinema de ficção?

Indicado ao Oscar de melhor documentário exibido em 2013, O Ato de Matar (2012),

de Joshua Oppenheimer e Christine Cynn, é um exemplo recente que também desafia, à sua

maneira, as noções dos limites dispostos entre o ficcional e o ‘documental’ na produção

fílmica. Ao se debruçar sobre os massacres políticos ocorridos na Indonésia na década de

1960, O Ato de Matar concentra sua atenção nas figuras dos próprios homicidas, vangloriados

no país, ao pedir que reencenem os assassinatos que cometeram. Isso é feito muitas vezes com

referências aos elementos hollywoodianos preferidos pelos indivíduos em questão.

Como avaliar os limites de uma separação entre ficção e realidade44

em um filme que

conta, ao mesmo tempo, com ‘cabeças’ de depoimentos e filmagens de encontros políticos

contemporâneos – mas onde a ressignificação do ocorrido no passado se faz presente de certa

forma – e dramatizações que recuperam com apenas algumas sombras de pudor crimes reais,

43

Disponível no endereço eletrônico <http://www.apublica.org/2014/02/tudo-eu-faco-e-contra-jornalismo/>.

Acesso em: 3 de fevereiro de 2014.

44 De maneira similar, pode-se estender esse problema à questão da subjetividade e da própria falibilidade da

construção objetiva do documentário. Isso não será aprofundado aqui nesses termos, mas estará entendido como

uma discussão subjacente às tensões tratadas no capítulo. Para um maior aprofundamento acerca desse ponto,

ver: Aumont (2006); Nichols (2005); Bordwell (1985); Winston (1988); Renov (1993); Vanoye e Goliot-Lété

(2005); Sales (2007); entre outros.

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49

feitas pelos mesmos personagens que os perpetraram – mas em ambientes que lembram filmes

americanos, de onde, aliás, alguns dos homicidas teriam retirado inspiração para matar

(ROHTER, 2013)? Segundo o próprio Joshua Oppenheimer (2014), em artigo ao jornal

britânico The Guardian45

, o propósito dos pedidos de reencenação dos crimes tem menos a

ver com uma estratégia para fazer os assassinos “se abrirem” – eles, afinal, falam diretamente

do que fizeram, e são congratulados por seus atos no atual contexto político indonésio – e

mais com uma “resposta” e uma “tentativa de entender os motivos e as consequências” dessa

mesma disposição a falar abertamente do assunto já encontrada entre eles. Ou seja: de alguma

maneira similar à de Coutinho, Oppenheimer se preocupa não com a obtenção de uma

revelação incontestável, mas com uma busca pelo ‘outro’46

.

As posições de Coutinho e Oppenheimer – que, é claro, também têm suas diferenças –

podem deixar desconfortáveis aqueles que situam o documentário como uma composição fiel

e restrita da ‘verdade factual’. E, no entanto, até para esses pode parecer difícil utilizar outra

palavra que não documentário para se referir aos trabalhos que foram citados acima.

As produções de que tratamos aqui podem fornecer um contexto ainda mais

espinhoso. Se as incursões ao humano feitas por Coutinho e Oppenheimer já induzem esse

incômodo, o que dizer dos filmes que procuram tratar do animal? Como visto no capítulo

anterior, o animal não-humano pode apresentar algumas dificuldades a quem queira observá-

lo ou conhecê-lo. Dessas dificuldades emergem tanto uma barreira como, através das zonas

escuras que essa divisão impõe, um espaço de interação múltiplo sujeito à aproximação e

também ao antropomorfismo. Dentro do documentário, o olhar o humano em direção ao

animal pode se tornar ainda mais problemático por conta das expectativas que são criadas em

torno do filme e em torno desse gênero em específico.

Como expôs Ismail Xavier (1984, p. 12), se “já é um fato tradicional a celebração do

‘realismo’ da imagem fotográfica, tal celebração é muito mais intensa no caso do cinema,

dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma

propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza – o

45

Disponível em: <http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/feb/25/the-act-of-killing-indonesia-past-

present-1965-genocide>. Acesso em: 25 de fevereiro de 2014.

46 A representação do outro no documentário pode se dar de diversas formas, é claro: esse é um assunto com

extensão própria, que merece ser tratado à parte. Freire (2005, p. 64), ao comentar o olhar em direção ao outro na

obra de Jean Rouch, traz à tona pelo menos duas abordagens: uma que se configura como um “exercício

explícito de voyeurismo”, da ordem do espetáculo (e frequentemente do objetivismo, acrescente-se), e outra,

mais atenta às subjetividades que são criadas no encontro da câmera com o outro, e de onde se depreende uma

ficcionalidade, ou mesmo uma ‘verdade’, que lhe é própria.

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50

movimento”. Dotado de uma capacidade ‘ilusionista’, o cinema, no percurso formal que

acabou adotando, engendrou para si convenções que deram ao filme o ar de um “universo que

existe em si e por si” (XAVIER, 1984, p. 15) – formalidades naturalistas identificadas com a

ilusão de realidade, como é o caso da chamada decupagem clássica do influente cinema

hollywoodiano.

Se foi por esse caminho que se enveredou o cinema narrativo, o que seria esperado do

documentário? Nos itens a seguir, serão exploradas algumas das questões e desenvolvimentos

que cercam o fenômeno dos filmes de vida selvagem tanto por meio de algumas anotações

sobre o documentário quanto sobre os próprios wildlife films em sua especificidade.

3.1. NOTAS SOBRE O DOCUMENTÁRIO E O FILME DE VIDA ANIMAL

Documentários, de acordo com Nichols (2005, p. 47), não são fáceis de definir: uma

tentativa de fazê-lo deverá funcionar de forma “relativa ou comparativa”, isto é, em um

cotejamento com outros gêneros. Seus contornos formais são, assim, geralmente negociados

em um processo que leva em consideração percepções do que não-documentários são. Apesar

disso, existe uma associação “retórica”, “discursiva” (TAGG, 1993, pp. 8-9), do documentário

com o realismo e com uma noção de verdade que é comumente utilizada para diferenciar suas

qualidades. Mas esses filmes, como esclarece Nichols (2005, p. 47, em itálico no original),

não reproduzem a realidade; eles manufaturam “uma representação do mundo em que

vivemos”. Assim como outros tipos de construção discursiva da vida, os documentários estão

longe de se constituírem espelhos dos objetos que lhes interessam. Se analisarmos o problema

de outra maneira, também “podemos dizer que todos os filmes são documentários, sejam eles

documentários de satisfação de desejos, seja de representação social” (NICHOLS, 2005, p.

65; itálico nosso).

Segundo a interpretação de Penafria (1999, p. 21), “a oposição não-ficção/ficção exige

um tratamento diferenciado da oposição documentário/ficção”. A autora argumenta que,

embora os documentários caibam dentro da não-ficção, ela implica uma noção mais larga, que

pode abarcar a propaganda e a reportagem, por exemplo; além disso, pode existir no

documentário uma recursividade ou uma ambiguidade em relação à ficção. Ressaltando a

importância do fator histórico no gênero, Penafria (1999, p. 26), faz menção a uma ideia de

especificidade do documentário similar à de Nichols ao dizer que a “característica do

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51

documentário é apresentar-nos um argumento sobre o mundo histórico ou, dito de outro

modo, é uma representação no sentido em que coloca perante nós uma evidência de onde

constrói um determinado ponto de vista”.

Nichols (2005) oferece uma maneira interessante de abordar uma definição do

documentário. Ele procura tratar da questão utilizando quatro perspectivas diversas: a

institucional, a profissional, a textual e a relacionada ao público.

Dentro do ângulo institucional, diz Nichols (2005), importam as autodenominações

perpetradas pela estrutura das instituições ligadas à produção de documentários. Pode parecer

reducionista ou até mesmo uma forma imprecisa de tratar do assunto, mas, apesar “da

circularidade, essa definição funciona como um primeiro sinal de que determinada obra pode

ser considerada um documentário” (NICHOLS, 2005, p. 50). É importante perceber também

que a esfera institucional – que pode ser constituída por uma complexa ordem organizacional

de financiamento, produção e distribuição – influi de maneira relevante nas formas ou

possibilidades do gênero, o que pode afetar as outras perspectivas ligadas à percepção do

documentário enquanto tal47

.

Para Nichols (2005), a comunidade de profissionais que participam da realização de

documentários constitui outra esfera essencial de particularização do documentário. Os

integrantes dessa comunidade muitas vezes compartilham vocabulários, anseios e objetivos,

se reúnem em eventos específicos e atuam dentro de linhas variáveis, mas com alguns

relevantes pontos em comum.

A perspectiva textual, segundo o mesmo Nichols (2005, p. 54), costuma ser bastante

relacionada a um conjunto de convenções: algumas características formais – “o uso de

comentário com voz de Deus, as entrevistas, a gravação de som direto, os cortes para

introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situação mostrada [...]” – e certa relação

com a informação fazem parte do repertório tradicional, em sentido lato, do documentário. De

acordo com o autor, é na existência de uma proposição interna ou algum tipo de afirmação

que o documentário ganha a sua especificidade formal em relação a outros gêneros. Por

exemplo, a montagem em continuidade, que dá sutileza aos cortes da decupagem clássica do

cinema ficcional, é geralmente suplantado por uma “‘montagem de evidência’” (NICHOLS,

47

Aufderheide (2007) lembra que, embora os documentários sejam, em geral, menos dispendiosos que parte

significante da produção fílmica ficcional, eles não estão livres de limites comerciais; é possível constatar na sua

indústria, assim, casos de sensacionalismo e apelo a temáticas e tonalidades ‘atrativas’ como a morbidez e a

sensualidade.

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52

2005, p. 58) que compartimentaliza esses cortes para dar valor às partes em relação ao todo e

operar uma montagem preocupada com a persuasão.

A diversidade interna, entretanto, existe e pode ser bastante marcada, seja por algumas

fases de sua trajetória, seja por alguns movimentos ou grupos – como Nichols (2005),

podemos citar os casos do documentário dos anos 1970, interessado em fenômenos do

passado, ou as perspectivas subjetivas de Chris Marker e Luis Buñuel em contraste ao cinema

pretensamente objetivo da maioria dos realizadores anglo-saxões. Para marcar essas

diferenças, o teórico também faz uma relação daquilo que ele chama de modos do

documentário – categorias que servem para fazer distinções internas e também externas, em

relação a outros gêneros (NICHOLS, 2005).

Nichols (2005) descreve, assim, seis modos que podem ajudar a compreender o papel

dessa perspectiva na definição do documentário. São eles: o modo poético, interessado na

visualidade, na descrição, na formalidade; o modo expositivo, na linha de argumentação; o

modo observativo, no cotidiano, nas personagens; o modo participativo, na interação do

realizador; o modo reflexivo, no próprio documentário, suas convenções e expressões; e o

modo performático, na expressividade, na relação do cineasta com a temática (NICHOLS,

2005, pp. 62-63).

O espectador, como já colocado acima, é o quarto elemento da consideração do

documentário proposta por Nichols (2005). De acordo com ele, “aquilo que delineamos com

esmero como o domínio do documentário tem limites permeáveis e aparência camaleônica. A

sensação de que um filme é um documentário está tanto na mente do espectador quanto no

contexto ou na estrutura do filme” (NICHOLS, 2005, p. 64).

Para o autor, essa ideia que está no público tem a ver com as expectativas que ele tem

do gênero. Essas expectativas estão ligadas a características como o fator icônico da imagem:

“sons e imagens cinematográficos usufruem de uma relação indexadora com o que registram”

(NICHOLS, 2005, p. 65) – o que vale, é claro, para todo tipo de filme. No documentário, essa

relação serve para dar margem a uma representação48

, e é esse o uso que o espectador

48

Entendida nos termos da comparação já mencionada entre satisfação de desejo e representação social

(NICHOLS, 2005). Pode-se, entretanto, avançar mais um pouco nessa questão evocando a representação social

conforme a entende Moscovici (2003, p. 210), ou seja, como uma “‘rede’ de ideias, metáforas e imagens, mais

ou menos interligadas livremente”, tematicamente organizada e organizadora. Situando essa categoria numa

disciplina que estuda “os processos culturais que são responsáveis pela organização do conhecimento em uma

sociedade, pelo estabelecimento das relações interindividuais no contexto do ambiente social e físico”

(MOSCOVICI, 2003, p. 154), o autor destaca o lugar dos meios de comunicação de massa em tal cenário –

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53

esperaria no documentário. Essa linha estaria atenta ao ‘histórico’ e à própria ligação da

imagem com um mundo factual49

; entretanto, o público entenderia o documentário não como

uma sucessão transcritiva de fontes, mas como um “tratamento criativo da realidade”

(NICHOLS, 2005, p. 68; em itálico no original). É uma expectativa baseada nos “‘discursos

de sobriedade’” presentes na sociedade (NICHOLS, 2005, p. 68) e numa busca do saber sobre

o mundo: o “vídeo e o filme documentário estimulam a epistefilia (o desejo de saber) no

público. Transmitem uma lógica informativa, uma retórica persuasiva, uma poética

comovente, que prometem informação e conhecimento, descobertas e consciência”

(NICHOLS, 2005, p. 70). Não à toa, por conta de suas especificidades representativas e de

sua linha de condução geral, o documentário é associado a uma base ética, muitas vezes

engajada, e a uma ‘representação do outro’ (NICHOLS, 2005).

Aufderheide (2007) complementa esse ponto do entendimento do documentário a

partir da audiência ao ressaltar que as percepções a respeito do documentário são

constantemente redefinidas tanto por quem os produz como por quem os assiste. As

expectativas do público, de acordo com a autora, estão ligadas à sua própria experiência

enquanto audiência. No caso do documentário, espera-se algo sobre o mundo da ‘realidade’ e,

além disso, que ele seja abordado em “uma representação justa e honesta da experiência de

realidade de alguém” (AUFDERHEIDE, 2007, p. 3). Ou seja, calcado em um discurso de

sobriedade. Existe, assim, uma espécie de contrato entre realizador e espectador (RABIGER

apud AUFDERHEIDE, 2007) e suas concepções formais operam dentro de uma tensão que

existe entre representação e realidade (AUFDERHEIDE, 2007, pp. 9-10).

Mas como essas concepções emergiram e se sedimentaram? As bases do

documentário, isto é, sua fundamentação não-ficcional, se confundem com as bases do

próprio cinema. Como é apontado por Warren (1996),

Filmes curtos – filmes sobre eventos breves, ou breves olhares a localidades – eram

uma parte maior da exibição do cinema em seus primeiros dias. Começando com A

Chegada do Trem, em 1895, os Lumière e seus agentes e, então, outros filmaram

muitos, muitos filmes curtos de atualidades. Tais filmes eram feitos e mostrados por

todo o mundo por agentes viajantes e por gente local treinada no novo equipamento.

afinal, a “cultura é criada pela e através da comunicação; e os princípios organizacionais da comunicação

refletem as relações sociais que estão implícitas neles” (MOSCOVICI, 2003, p. 155).

49 Warren (1996, p. 2; em itálico no original) aponta isso em sentido mais lato, no contexto maior da não-ficção:

“cada filme notável de não-ficção é um experimento com a realidade e pergunta: [...] o que está acontecendo

com esse filme? O que é um fato? O que são estes fatos? O que é isso que reflete neles, ou os torna memoráveis,

dessa maneira?”.

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54

Coisas bem conhecidas pareciam maravilhosas na tela; e o desconhecido era visto

também [...] (WARREN, 1996, p. 3).

E, de maneira bastante transparente, pelo próprio Nichols (2005),

Uma forma corrente de explicar a ascensão do documentário inclui a história do

amor do cinema pela superfície das coisas, sua capacidade incomum de captar a vida

como ela é; capacidade que serviu de marca para o cinema primitivo e seu imenso

catálogo de pessoas, lugares e coisas recolhidas em todos os lugares do mundo.

Como a fotografia antes dele, o cinema foi uma revelação. As pessoas nunca tinham

visto imagens tão fiéis a seus temas nem testemunhado movimento aparente que

transmitisse sensação tão convincente de movimento real (NICHOLS, 2005, p. 117).

Para o autor, o surgimento do documentário50

pode ser explicado não apenas por essa

conexão ‘fotográfica’, mas também pelo esforço do realizador, pela exploração das

capacidades do cinema pelos primeiros indivíduos que se envolveram com o ofício da

produção fílmica (NICHOLS, 2005, p. 118). Aufderheide (2007, p. 25) acrescenta que os três

cineastas mais comumente associados à fundação do documentário – Robert Flaherty, John

Grierson e Dziga Vertov – trazem consigo as tensões da relação representação/realidade por

ela sublinhadas: “cada um [deles] afirmava simultaneamente que eles contavam a verdade e

que eram artistas”. Flaherty e Grierson, apesar das diferenças, tinham em comum certo

‘realismo’; Vertov, por sua vez, se alinhava mais a uma perspectiva formalista

(AUFDERHEIDE, 2007).

O trabalho de Flaherty, balizado pela produção de Nanook, o Esquimó, lançado em

1922, foi uma espécie de marco ao reunir diversos elementos que se tornariam icônicos dentro

da estética do documentário. No filme, o cineasta faz um apelo ao ‘selvagem’, uma

aproximação ao ‘outro’ (PENAFRIA, 2004), e isso marcaria a trajetória do gênero,

juntamente com o seu “refinamento narrativo” (NICHOLS, 2005, p. 118). Outro fator de

grande importância seria o faro comercial de Flaherty, sua capacidade de atrair e entreter o

público. “Aclamado por quase todos os críticos, o filme foi também um sucesso de bilheteria

nos Estados Unidos e um [título] muito substancial no exterior” (BARNOW, 1993, p. 42).

Segundo Nichols (2005), Grierson, de maneira complementar, se esforçou para dar as

bases comerciais que solidificariam o formato do documentário; nesse empenho, ele

encabeçou um movimento britânico pelo gênero (PENAFRIA, 2004). “Grierson impulsionou

o patrocínio governamental da produção de documentários na Inglaterra dos anos 30 da

50

A histórica polêmica entre a vertente predominantemente documentarista dos irmãos Lumière e a vertente

ficcional de Georges Méliès não será aqui abordada em função da complexidade do tema. Trabalhos como o de

Bilharinho (2003) e Mascarello (2006) são referências em língua portuguesa acerca da questão.

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55

mesma forma como Dziga Vertov fizera em toda a década de 1920 na União Soviética e Pare

Lorentz faria em meados da década seguinte nos Estados Unidos” (NICHOLS, 2005, p. 119).

De fato, Grierson parecia particularmente interessado na configuração do gênero. Ele

enxergava nesses filmes uma saída para a falta de engajamento de uma sociedade cujo nível

de complexidade só aumentava – “o realizador de documentário, ao dramatizar problemas e

suas implicações de maneira significativa, poderia guiar o cidadão [...]. Isso se tornou a

missão de Grierson” (BARNOW, 1993, p. 85). Daí, portanto, sua visão de certa forma

educativa, reformista – e, diga-se, algo elitista – das possibilidades do documentário. Como

foi bem resumido por Aufderheide (2007, p. 38), “Flaherty fez da apresentação da realidade

uma virtude estética, e Grierson a fez uma missão social”.

Nichols (2005) analisa que essa postura de Grierson, por sua incisividade, acabou

sendo muito mais decisiva para a consolidação do documentário que a de Dziga Vertov – que,

apesar de ter começado a atuar nesse sentido antes mesmo que o britânico, “permaneceu mais

como um não conformista, no interior da nascente indústria cinematográfica soviética”

(NICHOLS, 2005, p. 119). Aufderheide (2007) considera Vertov um agente provocador, uma

referência para o cinema experimental e vanguardista. Em O Homem da Câmera, de 1929, o

cineasta explora um fluxo de imagens do novo cotidiano soviético sem nenhum pudor em

afirmar a opacidade da câmera e a intencionalidade da realização cinematográfica. Conforme

dito por Barnow (1993, p. 63), o “filme é um ensaio sobre a verdade do filme, abarrotado de

ironias atormentadoras”.

Certo espírito da proposta de Vertov afetaria uma vertente renovadora do cinema

documentário. Com o Free Cinema, movimento britânico do fim dos anos 1950 que buscava

romper as amarras do documentário educativo, já se sinalizava certa atmosfera de mudança.

Além disso, a difusão das câmeras 16 mm no pós-guerra, bem como do som sincronizado à

filmagem, criou um ambiente propício para filmar novos objetos e dar maior espaço para a

espontaneidade, para o trabalho de confecção do filme no processo de edição

(AUFDERHEIDE, 2007). Surgiam, por volta dos anos 1960, o cinema direto, baseado nessas

premissas, e o cinéma verité, um tipo de documentário em que vemos “como o cineasta e as

pessoas que representam seu tema negociam um relacionamento, como interagem, que formas

de poder e controle entram em jogo e que níveis de revelação e de relação nascem dessa

forma específica de encontro” (NICHOLS, 2005, p. 155).

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56

Um dos nomes mais associados ao cinéma verité é o de Jean Rouch, que também

procurou abordar os temas etnográficos da tradição de documentário que havia sido de certa

forma lançada por Robert Flaherty51

. Antropólogos como Margaret Mead52

e o próprio Franz

Boas já haviam usado o filme como ferramenta de trabalho (AUFDERHEIDE, 2007), e na

metade do século XX o documentário já acumulava títulos nessa área, feitos por acadêmicos

ou não. Nos anos 1960, Rouch aliou um descontentamento com a noção de objetividade na

área e certos aportes do cinema direto53

e promoveu uma mudança de perspectiva na forma de

conduzir esses filmes – de fato, o nome cinéma verité foi cunhado por Rouch e pelo sociólogo

Edgar Morin em homenagem ao kino-pravda de Vertov (BARNOW, 1993). Na sua

abordagem, Rouch entendia a câmera como um fator provocador que poderia ser usado não da

maneira ‘colonialista’ com que os filmes etnográficos vinham fazendo – ou seja, não como

uma interrogação, mas como um diálogo (AUFDERHEIDE, 2007, p. 112).

Vemos, assim, que a formação do gênero do filme documentário ocorre de maneira

multifacetada, diversa, mas em um processo onde determinadas tensões emergem como

elementos configuradores e, portanto, essenciais para se pensar os filmes que feitos e/ou

percebidos sob tal insígnia. Existe no documentário uma atração pelo outro exemplarmente

visível no interesse etnográfico que atravessa o cinema de Flaherty, os usos acadêmicos da

filmagem de não-ficção, as propostas do cinema direto e a reestruturação fílmica empreendida

por Rouch; existe no gênero também uma complexidade relacionada aos usos e conflitos dos

sentidos de verdade, realidade e representação, assim como, a depender do caso, uma tomada

de consciência das implicações formais do cinema – e, aqui, poderíamos mencionar outra vez

o cinema direto e o cinéma verité; existe ainda nesse tipo de filme um importante fator de

concepção ligado à educação e ao entretenimento como formas de financiamento e

direcionamento solidificadas conforme se seguia as experiências de Grierson e Flaherty, por

exemplo.

51

Muito embora a aproximação com o outro e o ‘exótico’ no cinema fosse anterior a Nanook, como se infere de

Freire (2005).

52 Com efeito, Barnow (1993, p. 210) credita a Margaret Mead e ao também antropólogo Gregory Bateson um

“papel paralelo” nos Estados Unidos do pré-guerra ao de Rouch na França do pós-guerra.

53 Há uma confusão comum entre os dois movimentos. Eric Barnow (1993, pp. 254-255) ilustra da seguinte

forma as diferenças entre cinema direto e cinema verité: “O documentarista do cinema direto levava sua câmera

até uma situação de tensão e esperançosamente aguardava por uma crise; a versão de Rouch do cinéma verité

tentava precipitá-la. O artista do cinema direto aspirava à invisibilidade; o cinéma verité de Rouch era

frequentemente um participante confesso”.

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57

Mas onde se situam os wildlife films nesse contexto? Já foram adiantados na

introdução deste trabalho alguns pontos essenciais a respeito disso, mas podemos acrescentar

aqui mais algumas reflexões. Antes de mais nada, é preciso deixar clara a escassez de estudos

específicos sobre o tema. Conforme considerado por MacDonald (2006),

Provavelmente nenhuma dimensão substancial da história do filme tão largamente

admirada por um público e tão frequentemente utilizada em contextos acadêmicos

tenha sido tão completamente ignorada por críticos, historiadores e teóricos quanto o

nature film (ou, para usar o termo corrente e mais largamente aceito, o “wildlife

film”): aqueles filmes e vídeos que se propõem a revelar as vidas de outras espécies

(MacDONALD, 2006, p. 4).

Segundo o autor, existem duas razões principais para isso acontecer. A primeira tem a

ver com uma ideia de que esse tipo de filme não teria a linha clara de argumentação ou

posicionamento que seria característica do documentário – parece existir, assim, uma noção

de que há pouco a depreender dos wildlife films porque muitos deles são identificados como

detentores de certa ‘cientificidade’. Ora, como reflete MacDonald (2006, p. 5), a “presunção

de objetividade no filme científico é simplesmente uma instância particular da aura de

objetividade que o documentário quase sempre carrega consigo”. Trata-se de um jogo

contraditório de atribuições de isenção: ao se creditar objetividade absoluta à ciência – coisa

que ela não possui –, o documentário, ao incorporar o seu discurso nos wildlife film, acabaria

também objetivo e desinteressante do ponto de vista do estudo fílmico – coisa que ele não é.

A segunda razão da escassez de estudos apontada por MacDonald (2006) parece

conectada de forma complexa à primeira. Para alguns teóricos – notadamente Bousé (2000) –,

os wildlife films não são documentários propriamente ditos. O motivo seria, curiosamente, o

inverso: os wildlife films são ficcionalizados demais para serem considerados documentários,

que, para ele, têm uma qualidade predominantemente mimética e icônica (BOUSÉ, 2000, p.

13). De fato, muito do que foi feito para ser vendido como filmagem objetiva da ‘realidade’

da vida animal em seu ambiente natural até hoje contém grandes doses de narratividade e

filmagem em estúdio. Mas o staging, por exemplo, faz parte da própria história – e dos

dilemas éticos – do documentário como um todo, especialmente quando ele estava restrito ao

formato de 35 mm (AUFDERHEIDE, 2007). Como argumenta Mitman (1999), dentre outros

autores que tratam do assunto, os wildlife films têm uma estrutura tão intricada quanto

qualquer outra linha do gênero.

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58

Talvez um caminho tomado por Chris (2006)54

ajude a colocar um ponto de referência

em que seja possível refletir essas tensões levando em consideração sua complexidade e, até,

a complexidade dos temas tratados no capítulo anterior. Segundo a autora, pode-se dizer que o

gênero do wildlife têm um aspecto institucional afeito “àquelas instituições que Michel

Foucault descreveu como heterotopias, que, por meio de sua coleção de objetos, formas de

vida ou representações normalmente não-relacionadas, expunha visitantes a mundos além de

seu alcance” (CHRIS, 2006, p. XI). Dentre os vários tipos de heterotopias propostos por

Foucault existem aquelas que, conforme citado pela própria Chris (2006, p. XI), são, na sua

intenção de abarcar completamente certos mundos, “capazes de justapor em um único lugar

real diversos espaços, diversos sítios que são eles mesmos incompatíveis”, a exemplo do

teatro, do cinema e do zoológico55

. Dessa forma, o que se tem nos wildlife films é uma

imagem de um lugar outro e compreendido como real, já que representa um espaço de fato

existente – mas com uma diferença essencial em relação a esse próprio lugar representado por

conta das implicações advindas das convenções e constrições dos meios de comunicação, por

exemplo, bem como das “condições geopolíticas” do local em questão (CHRIS, 2006, p. XII).

Assim, ao se falar dessa representação fílmica do animal ‘real’ em seu ambiente ‘natural’, é

preciso ter em mente todas essas contradições e resíduos discursivos, fazendo pouco sentido

polarizar e simplificar os sentidos de verdade, cientificidade e realidade e, o que é ainda mais

grave, creditar um status inferior àquilo que parece ‘trair’ essas construções.

Embora sua visão seja problemática em alguns pontos, Bousé (2000) oferece, a partir

da leitura de um artigo do naturalista Stephen Mills, algumas tendências que podem ser

relevantes para esta discussão, se elas forem entendidas como uma perspectiva da questão

dentro de um diálogo mais amplo. As características abaixo são utilizadas por Bousé (2000)

na sua argumentação a respeito da especificidade dos wildlife films como não-documentários;

aqui, elas servem para apontar parcialmente algumas de suas particularidades como um

subgênero. As tendências são as seguintes:

54

E que já vem sendo compartilhado por outros estudiosos da área, como Malamud (2011).

55 Na palestra que deu origem ao texto que fala dessas heterotopias, Of Other Spaces, a questão do espaço

aparece como um elemento central para a caracterização dessas instituições. Para Foucault (1986, p. 22),

“Estamos em uma época de simultaneidade: estamos na época da justaposição, a época do próximo e do distante,

do lado a lado, do disperso. Estamos no momento, acredito, quando nossas experiências do mundo são menos

aquelas da longa vida que se desenvolve através do tempo que aquelas de uma rede que conecta pontos e se

intersecciona com seu próprio tecido [no texto referenciado em inglês: skein; matassa, seda crua]. [...] No

entanto, é necessário perceber que o espaço que hoje parece formar o horizonte de nossas preocupações, nossa

teoria, nossos sistemas, não é uma inovação; o próprio espaço tem uma história na experiência ocidental, e não é

possível deixar de levar em consideração a intersecção fatal do tempo com o espaço”.

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59

(1) a representação da mega-fauna – grandes felinos, ursos, tubarões, crocodilos,

elefantes, baleias e afins; (2) esplendor visual – cenário esplendoroso como pano de

fundo para os animais, sugerindo um mundo selvagem ainda intocado, primevo; (3)

trama dramática – uma narrativa atraente, talvez centrada em um único animal, com

algum tipo de arco dramático destinado a capturar e prender a atenção do espectador

(isto é, não é uma aula de ciência); (4) ausência de ciência – embora seja talvez a

mais fraca e frequentemente quebrada destas “regras”, o discurso da ciência pode

ocasionar sua própria narrativa de pesquisa, com todo o seu jargão técnico de

assistência e metodologias aparentemente misteriosas, o que pode mudar o foco para

os cientistas e estragar a “fantasia de época” de uma natureza primitiva; (5) ausência

de política – pouca ou nenhuma referência a questões controversas, que

frequentemente são vistas como temas de “tristeza e melancolia”56

, e não como

evidente propaganda da linha Griersoniana em nome das questões da conservação da

vida selvagem, suas causas ou possíveis soluções, embora uma breve declaração

possa ser incluída na conclusão do filme; (6) ausência de pontos de referência

históricos – “Deve haver uma noção de atemporalidade”, diz a produtora Dione

Gilmour, sugerindo que não apenas a natureza deve parecer atemporal, mas que

também não deve haver referências claras que possam datar o filme ou ancorá-lo em

um tempo específico, e assim prevenir futuras vendas de reprises; (7) ausência de

pessoas – a presença de humanos pode também estragar a imagem de um reino

atemporal, intocado e não corrompido pela civilização, onde predadores e presas

ainda interagem da mesma forma que fizeram por eternidades (BOUSÉ, 2000, pp.

14-15)

As observações de Bousé (2000) parecem desconsiderar que não há filme sem ponto

de vista – toda escolha de filmagem e edição, cada trecho incluído e excluído, gera uma

construção passível de politização, por exemplo, em sua produção e em sua recepção57

. Mas,

da mesma forma, tais observações apontam muito bem algumas das intenções subjacentes

nesse formato ‘clássico’ dos wildlife films dentro do panorama já abordado aqui, como no

caso da tensão entre ciência/educação e entretenimento.

De que forma, no entanto, esses elementos foram incorporados – e como eles

dialogaram com as necessidades sociais e culturais que os circundavam no decorrer de sua

formação? No item a seguir, procuraremos levantar alguns pontos do trajeto de configuração

dos filmes de vida selvagem. Trata-se de uma recuperação incompleta, é claro, mas que deve

dar conta de elucidar elementos e experiências essenciais para esses filmes.

3.2. WILDLIFE FILMS: TRAJETÓRIAS

Se limitarmos a trajetória dos wildlife films à captura da imagem do animal selvagem

dentro de um contexto da fotografia e do cinema, pode-se iniciar essa discussão com James

56

“‘Doom and gloom’” no original em inglês (BOUSÉ, 2000, p. 15).

57 Como bem notado por Aufderheide (2007, p. 117), os documentário de natureza, “que à primeira vista

parecem ser diretos e neutros ideologicamente, expõem nossas suposições sobre nossa relação com o nosso

ambiente”.

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60

Chapman – o responsável pela primeira tentativa de fotografar um animal na natureza,

durante uma expedição à África por volta de 1858 ou 1862 (BOUSÉ, 2000; CHRIS, 2006;

GUGGISBERG, 1977). Mas ele não obteve sucesso total. Depois de alguns problemas com

seu equipamento, tudo o que ele tinha ao final da jornada eram imagens de animais mortos.

Ele também não foi o primeiro a portar uma câmera no continente africano: em 1858,

aproximadamente, um instrumento de fotografia estava entre o equipamento de viagem de um

certo David Livingstone; foi usado principalmente por seu companheiro John Kirk, que não

parecia muito interessado em animais, mas em plantas e paisagens (GUGGISBERG, 1977, p.

12). Possivelmente, a primeira fotografia de um animal vivo, uma imagem de uma “cegonha

empoleirada em seu ninho” encontrada nos anos 1930, foi “tirada em Estrasburgo em maio de

1870 por Charles A. Hewins, de Boston” (GUGGISBERG, 1977, p. 14).

Chapman era um explorador, um caçador de elefantes; Livingstone, também um

explorador. Kirk era médico e naturalista (GUGGISBERG, 1977). Embora naquela ocasião os

dois últimos não estivessem diretamente envolvidos na fotografia de animais, a presença deles

naquele território e àquele momento fornece um vislumbre de alguns dos elementos

socioculturais mais significativos na fundamentação dos wildlife films: aqueles eram os

‘homens brancos’ em um mundo ‘selvagem’ – e a câmera era um novo instrumento de

exploração. De acordo com Chris (2006), o uso que exploradores faziam da fotografia seria

essencial para os filmes de animais que viriam mais tarde. Os wildlife films seriam

influenciados pelas primeiras fotografias de exploração e “pelas convenções de tecnologias

visuais do pré-cinema [...] usadas para descrever e delinear os limites das diferenças raciais,

das diferenças sexuais e do poder colonial” (CHRIS, 2006, p. 1). Os “frequentemente

conflituosos e ocasionalmente sobrepostos esforços de cientistas, naturalistas,

conservacionistas, caçadores, aventureiros e da indústria fílmica em si” se configuravam então

um fator importante nesse cenário (CHRIS, 2006, p. 1).

Como sugere a experiência de Chapman, questões técnicas eram um entrave para a

fotografia de vida selvagem na metade do século XIX. Em 1863, o professor alemão G.

Fritsch também fotografaria animais mortos na África (BOUSÉ, 2000, p. 195). Pela década de

1870, entretanto, equipamentos mais apropriados se tornariam disponíveis para fotógrafos

interessados em objetos em movimento (CHRIS, 2006): foi em 1870, como mencionado, que

Hewins fotografou sua cegonha; e entre 1872 e 1878, Eadweard Muybridge fotografou o

cavalo de corrida Occident galopando em Palo Alto, na Califórnia (BOUSÉ, 2000; CHRIS,

2006; GUGGISBERG, 1977; MITMAN, 1999).

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61

As fotografias de Muybridge são consideradas o “primeiro caso de uma combinação de

fotografia, movimento e comportamento animal” (BOUSÉ, 2000, p. 195). Suas imagens

serviriam para expor detalhes do galope do cavalo e resolver uma aposta sobre o assunto, mas

também seriam reconhecidas como um dos marcos da criação do cinema (BOUSÉ, 2000, p.

41). Entretanto, os animais de Muybridge quase sempre eram de cativeiro (CHRIS, 2006):

seu interesse fundamental era o movimento, não exatamente o animal em seu hábitat58

. Com a

ajuda de John D. Isaacs, Muybridge inventaria mais tarde o zoopraxiscópio, “um disco

rotatório do qual séries de fotografias poderiam ser projetadas em movimento, podendo ele

ser então considerado um dos pais da cinematografia” (GUGGISBERG, 1977, p. 16).

Na medida em que o século XX se aproximava, os fotógrafos de vida selvagem

experimentavam modificações nas câmeras para obter melhores resultados. O trabalho do

professor de história natural francês Etienne-Jules Marey, que havia se tornado ciente das

fotografias de Muybridge em 1878, é um caso ilustrativo: a fim de colocar em prática sua

noção de “zoologia animada”, ele desenvolveu uma câmera em formato de arma de fogo em

1882 para capturar “todos os animais imagináveis durante seus movimentos reais” (apud

BOUSÉ, 2000, p. 41). Mesmo as preocupações técnicas da fotografia animal eram, dessa

forma, imersas no caráter invasivo, caçador, que se tornou generalizado à época. Seguindo o

percurso de Chapman, por volta “da virada do século, utilizando novas tecnologias

fotográficas, os caçadores-fotógrafos haviam se tornado prolíficos produtores de imagem”,

diz Cynthia Chris (2006, p. 9).

Quando o cinema emergiu e os animais começaram a aparecer como objetos de

filmografia, exibições violentas eram a regra, como na famosa filmagem59

do eletrocutamento

de um elefante promovido pelo inventor Thomas Edison em 1903 (CHRIS, 2006). “A ação, o

conflito violento e o espetáculo sensacionalista também marcavam as representações de

animais em travelogues, filmes de atualidades e, finalmente, longas-metragens dos anos 1910

e 1920” (CHRIS, 2006, p. 11).

Essas exibições de poder cada vez mais se relacionavam ao entretenimento no ambiente

de cultura de massa onde a indústria do cinema se desenvolvia. Fraudes eram comuns:

Hunting Big Game in Africa, o filme de 1909 forjado por William Selig para ‘retratar’ a

58

Isso, no entanto, não coloca Muybridge fora do grupo dos que se preocupavam em construir um uso

‘científico’ da câmera (BOUSÉ, 2000).

59 Um curta nomeado Electrocuting an Elephant.

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62

expedição de Theodore Roosevelt daquele mesmo ano, foi mais bem-sucedido que o

‘genuíno’ filme de Cherry Kearton, Roosevelt in Africa, lançado em 1910. Selig, não por

acaso, apelou mais à ação do que Kearton (CHRIS, 2006, pp. 11-12).

Roosevelt não era o único a ter seus safáris filmados. De acordo com Bousé (2000),

quando os filmes de caça começaram a ganhar a atenção do público, no começo do século

XX, o Ártico era um dos ambientes mais recorrentes na produção cinematográfica.

Rapidamente, no entanto, os trópicos – a África em especial – se tornaram o centro das

expedições; o autor credita a popularidade do próprio Hunting Big Game in Africa como um

momento decisivo para esse processo60

. Essas aventuras pessoais eram preenchidas com

conotações próprias de raça, exotismo e indiferença perante as vidas de animais e indivíduos

de ascendência não-europeia (BOUSÉ, 2000; CHRIS, 2006).

Embora alguns desses filmes fossem considerados educativos, já nos anos 1920 havia

certa preocupação com a “falsificação” e o “sensacionalismo” (CHRIS, 2006, p. 13) em

relação a eles. Os filmes de safári realizados pelo casal Martin e Osa Johnson a partir dessa

década são talvez os mais expressivos dentro desse subgênero. Os Johnson iniciaram sua

carreira nos anos 1910 com filmes sobre canibalismo e rituais de mumificação. Foram,

entretanto, persuadidos por sua equipe e por seus distribuidores a se concentrarem em animais

ao invés dessa “etnografia” por razões mercadológicas, uma vez que os animais já possuíam

uma audiência notória (CHRIS, 2006, pp. 13-14). Apesar disso, o tom imperialista continuaria

a acompanhar suas produções.

Baseando seus filmes em uma fórmula de “pseudoeventos preparados e empreendidos a

fim de serem filmados” (BOUSÉ, 2000, pp. 49-50), Martin e Osa Johnson foram

razoavelmente bem sucedidos. No começo dos anos 1920, conseguiram, inclusive, obter

auxílio financeiro do American Museum of Natural History, que supostamente seria

beneficiado pela popularização da história natural. Ao final dessa década, no entanto,

controvérsias de natureza ética envolvendo as práticas empregadas pelos Johnson em animais

(e, o que é intrigante, não em humanos) teriam levado o Museum a retirar seu apoio (CHRIS,

2006). Outros realizadores populares que “abraçaram o sensacionalismo” e a simulação da

vida animal foram W. S. Van Dyke e Paul Hoefler – este último, em seu travelogue de 1931,

Africa Speaks, misturaria a característica visão imperial e a construção de uma ilusão

60

Apesar disso, complementa Bousé (2000), as primeiras filmagens de animais selvagens na África foram feitas

em 1907 por um cinegrafista desconhecido.

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63

naturalista ao gravar sons de animais em seus próprios hábitats (CHRIS, 2006, pp. 20-21). Tal

busca por uma natureza ‘real’ se tornaria um elemento importante dentro do gênero.

A posição dos realizadores que se valiam desse tipo de expediente para sublimar a vida

animal em objeto cinematográfico – seja para fins de entretenimento, seja para um dito fim

educativo – pode ser colocada em perspectiva com a produção de realizadores inseridos em

um ambiente acadêmico e que acabariam eles mesmos desenvolvendo uma relação particular

com o entretenimento. A integração da fotografia com um pano de fundo científico e o ethos

de caça e exploração iria compor o espírito que movia muitos etólogos-realizadores na

história dos filmes de vida selvagem (MITMAN, 1999).

De acordo com Mitman (1999), os etólogos envolvidos com a filmagem de animais no

início do século XX construíam suas obras ao mesmo tempo em que a indústria do cinema se

consolidava. Quando pareceu inevitável a eles tomar emprestado algumas das estruturas

narrativas de Hollywood, um intricado relacionamento entre a educação, a pesquisa e o

entretenimento se desenvolveu. The Private Life of the Gannets, filme de Julian Huxley

lançado em 1934 e “notável por sua origem tanto em interesses científicos quanto comerciais”

(CHRIS, 2006, p. 25), é um exemplo recorrente dessa tensão.

Por volta dos anos 1930, os filmes de expedição acabaram sendo “dissipados” por conta

de procedimentos tidos como escandalizantes (CHRIS, 2006, p. 27) e “o wildlife film de não-

ficção quase desapareceu da distribuição cinematográfica comercial” (CHRIS, 2006, p. 25).

As exceções, ambas britânicas, foram o próprio filme de Huxley e a série fílmica Secrets of

Nature, de Percy Smith, Mary Field e Bruce Woolfe, lançada entre 1922 e 1933. Embora The

Private Life of the Gannets tenha ganhado um Oscar em 1938, ele foi, assim como Secrets of

Nature, frustrado comercialmente. Wildlife films acadêmicos “amadureceram”, então, nos

anos 1930, para então adentrar numa prolífica fase de exibição não-comercial nos anos 1940

(CHRIS, 2006, p. 27). Como a produção de documentários do pós-1929 focava em

experiências humanas e em esforços relacionados ao New Deal, os filmes de vida selvagem

“permaneceram escassos nos cinemas americanos até que Walt Disney reintroduziu o gênero

uma década e meia depois, reapresentando os sujeitos animais como personagens

completamente desenvolvidos, individuais e emotivos, espelhos para suas audiências

humanas” (CHRIS, 2006, p. 27). De acordo com Chris (2006), alguns filmes de interesse,

como os documentários surrealistas de Jean Painlevé, eram produzidos nos anos 1930 e 1940,

mas não foram distribuídos significativamente nos Estados Unidos.

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64

Como descrito por Chris (2006, p. 29), o começo da jornada pós-guerra de Walt Disney

na produção de wildlife films se deu tanto graças à fortuidade quanto a “considerações

econômicas”. Vindo de uma trajetória bem-sucedida no ramo dos cartoons que atingiria um

pico em 1937 com o longa-metragem de animação Branca de Neve e os Sete Anões, Disney

encontrou algumas dificuldades em tornar rentáveis os filmes seguintes – Pinóquio, Fantasia

(ambos de 1940) e Bambi, de 1942 (MITMAN, 1999, p. 111). Embora Dumbo, de 1941, tenha

aliviado a série de lançamentos com retorno abaixo do esperado, o ingresso dos Estados

Unidos na Segunda Guerra Mundial em 1942 agravou, assim como o prejuízo milionário de

Bambi naquele ano, a situação financeira da companhia (MITMAN, 1999; SCHICKEL,

1997).

Segundo Maltin (1995, p. 17), no entanto, a guerra “interrompeu muitos dos planos de

Disney, mas manteve seu estúdio ocupado e um fluxo de dinheiro adentrando suas portas”. O

período bélico pode ter segurado alguns projetos e uma recuperação ampla da empresa, mas

deu a Disney algumas oportunidades no campo das produções instrucionais. Além disso,

como a especialidade de Disney era o entretenimento, uma subsequente mescla entre os dois

elementos serviria como base nas produções do estúdio durante o pós-guerra, em especial no

caso das True-Life Adventures. Bousé (2000, p. 63) também inclui as “experimentações” de

Disney com o live action a partir de 1941 como um dos componentes desse trajeto.

A veia entretenedora de Disney estava fortemente conectada a um interesse na

‘qualidade’ da representação e a um dito naturalismo/realismo – algo particularmente

perceptível na produção de Bambi, que utilizou recém-desenvolvidas melhorias tecnológicas e

estudos baseados na filmagem de objetos do ‘mundo real’ (MALTIN, 1995). Uma das

‘lendas’ da criação das True-Life Adventures – o momento de fortuidade mencionado por

Chris (2006) – é ligada a essas filmagens. “Uma coisa sempre levou a outra aqui e Bambi não

foi uma exceção. As cenas de vida selvagem nessa pesquisa geraram um dividendo

inesperado: uma ideia para nova série de filmes que nós chamamos de True-Life Adventures”,

conta o próprio Walt Disney em um vídeo promocional sobre a série61

.

Outras versões da criação das True-Life Adventures incluem uma envolvendo um

suposto momento de insight de Disney em uma viagem ao Alasca (CHRIS, 2006, p. 28) e

outra ligada a um interesse prévio que ele alimentava nos filmes amadores do casal Alfred e

61

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=HGpLTgo2o34>. Acesso em 8 de novembro de 2013.

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65

Elma Milotte, que eram donos de uma loja de câmeras naquele Estado (SCHICKEL, 1997, p.

284). Em todo caso, Walt Disney contratou o casal nos anos 1940 para produzir filmagens

documentais no Alasca. Depois de receberem pedidos contínuos para incluir “mais focas”

(CHRIS, 2006, p. 28) nas gravações, os Milotte acabaram obtendo o material que seria usado

para montar o curta Seal Island, lançado em 1948.

Os executivos do estúdio temiam assumir os riscos presentes na exibição de filmes de

vida selvagem àquela época; Howard Hughes, que estava à frente da RKO – então a

distribuidora de Disney – se recusou a negociar Seal Island (MITMAN, 1999). Preocupado

com o “valor imensurável da identidade de marca de seus produtos” (CHRIS, 2006, p. 29),

Walt Disney acreditava, no entanto, “que empacotar uma True-Life Adventure com um dos

longas-metragens de animação ou em live action do estúdio atrairiam cinemas com sessões

duplas e evitaria a exibição de filmes de Disney com filmes de menor qualidade produzidos

por outros estúdios” (MITMAN, 1999, p. 113). Ele conseguiu fazer com que o filme fosse

exibido em um cinema em Pasadena, o que o tornaria elegível ao Oscar; de fato, o curta

acabou sendo premiado. “Quando o filme ganhou o prêmio de melhor curta-metragem em

duas bobinas de 1948, os exibidores naturalmente clamaram por reservas – e por mais filmes

de natureza” (SCHICKEL, 1997, p. 285). Os custos de produção relativamente baratos do

gênero também foram um fator importante na transformação da experiência de Seal Island em

uma série de filmes (SCHICKEL, 1997, p. 285)62

.

As temáticas desses filmes frequentemente oscilavam entre questões de conflito entre

espécies, reprodução, luta pela sobrevivência e predação, em abordagens que poderiam estar

submetidas não exatamente a Darwin, mas às “distorções ideológicas do Darwinismo Social”

(CHRIS, 2006, p. 34). Em geral, eles trazem um humor e um caráter “Disneyesco” (CHRIS,

2006, p. 35), antropomorfizado, que poderia ser rechaçado pela crítica, mas era bem aceito

pelo público. Os ditos “fatos” (BOUSÉ, 2000, pp. 67-68) eram para a fórmula da Disney um

aliado do entretenimento e da narrativa – daí a ênfase em uma retórica baseada em cenas

“achadas” na natureza, embora algumas passagens fossem realizadas em estúdio. Em Perri,

62

Seis outros curtas-metragens foram produzidos sob o selo das True-Life Adventures. A via de sucesso

comercial aberta por tais curtas foi logo dar em projetos mais ambiciosos: em 1953, foi lançado o primeiro

longa-metragem True-Life, The Living Desert, seguido por The Vanishing Prairie, em 1954, e Secrets of Life, em

1956 (MALTIN, 1995). Auxiliado por uma mudança de distribuidor – da RKO para a Buena Vista –, a série

prosseguiu lucrativa. The Living Desert, que custou 300 mil dólares, arrecadou entre quatro e cinco milhões de

dólares à época apenas nos Estados Unidos, e o lançamento de The Vanishing Prairie obteve algo “como quinze

vezes seu custo de produção” (CHRIS, 2006, p. 35).

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66

uma True-Life Fantasy lançada em 1957, as filmagens seriam reorganizadas em um “drama

animal” (CHRIS, 2006, p. 40) totalmente roteirizado.

Embora esses sejam pontos essenciais da experiência particular de Disney com os

wildlife films, existem nas True-Life Adventures alguns aspectos mais especificamente

relacionados à situação americana no período do pós-guerra que não podem deixar de ser

levados em consideração; eles contribuem, talvez, para as diferenças históricas mais

significativas entre, por exemplo, os wildlife films de safari e expedição e as próprias True-

Life Adventures. Muitas dessas características poderiam ser associadas a um discurso

conservacionista que servia a ideais como a “dicotomia entre natureza e civilização”

(MITMAN, 1999, p. 131) e poderiam ser relacionados ao ideário americano de democracia e

à ideologia excepcionalista do país. De acordo com Chris (2006, p. 39), isso é especialmente

válido quando os filmes se passam nos Estados Unidos: se “o interesse prévio recaía em

coletar e disseminar imagens de lugares distantes, inacessíveis para a maioria, a mudança para

temas da vida selvagem encontradas dentro das fronteiras nacionais expressava ideologias

americanas de patriotismo e progresso”. Ao mesmo tempo, diz a autora, se evitava também o

cenário político tempestuoso da África nos anos 195063

.

Poucas True-Life Adventures foram, então, produzidas fora da América do Norte. Uma

das exceções é o último filme da série, Jungle Cat, de 1960. De acordo com Maltin (1995, p.

174), a série chegou ao fim por conta de uma casual falta de inventividade, e os efeitos disso

na assiduidade do público: “a reação da audiência, e seu próprio senso de showman em

relação às vibrações da audiência, contaram a Disney que o formato das True-Life estava se

desgastando”. A série permaneceria, entretanto, como uma colossal – e, às vezes,

63

Arrematando as considerações de diversos autores, Chris (2006) resume esse ponto ao afirmar que Disney

“[...] popularizou a vida selvagem e a paisagem norte-americanas como temas adequados para o gênero. Watts

liga a preferência das True-Life Adventures por localidades americanas e a predileção de Disney por uma visão

da natureza que celebra a sobrevivência do mais apto a uma ideologia liberal individualista e ao insurgente

nacionalismo do período da Guerra Fria. Alexander Wilson vê o direcionamento de Disney aos temas de vida

selvagem encontrado em fronteiras nacionais durante o período em que a suburbanização consumia muito do

interior americano das True-Life Adventures tanto como ‘alegorias transparentes do progresso, hinos ao culto

oficial da exploração, do desenvolvimento industrial, quanto de um sempre crescente padrão de vida [...],

metáforas do crescimento econômico’. Flores florescem ‘apenas até o ponto da ‘perfeição’’ nos filmes da Disney

(nomeadamente, The Living Desert; Secrets of Life também), elas raramente secam ou se decompõem e cada

nova geração de castores explora um pouco mais abaixo do rio que seus pais em Beaver Valley. As True-Life

Adventures podem parecer reivindicar uma correspondência isomórfica entre a prosperidade do pós-guerra e

essas características do ambiente natural, mas Wilson aponta que eles também fornecem uma tranquilizante

‘fantasia utópica’ de estabilidade e ‘equilíbrio’ para espectadores deslocados socialmente, geograficamente ou

fisicamente pelas largas reorganizações sociais desse período” (CHRIS, 2006, pp. 37-38).

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67

indesejável64

– referência não apenas para o cinema voltado à vida selvagem, mas também, é

claro, para a então emergente televisão (BOUSÉ, 2000; CHRIS, 2006).

No processo de sua formação, o meio televisivo tomou emprestado formas do rádio e

da produção fílmica existentes; a voz masculina e caucasiana continuava, por meio de sua

expressão cultural de autoridade, preponderante como ‘guia’ do espectador no exótico

ambiente dos animais, diz Chris (2006). “Nos anos 1950 e 1960, Perkins, David

Attenborough [...], sua contraparte de além-mar, Jacques-Yves Cousteau, e outros refizeram o

gênero outra vez como uma saga de aventura masculina reminiscente dos filmes de expedição

dos anos 1910 e 1920 em sua predileção pela ação e pelo exótico” (CHRIS, 2006, p. 46)65

.

A programação wildlife televisiva passaria por diversas reformulações e inovações. Os

espectadores presenciariam, assim, tanto a esquemática de exibição zoológica do showman

Marlin Perkins (MITMAN, 1999, p. 132), como as aventuras in loco de Attenborough e a

ascensão da BBC enquanto um exportador de programas sobre a natureza, ou o próprio

domínio breve da televisão pública americana sobre o seu mercado doméstico no começo dos

anos 1980 (CHRIS, 2006). Outros players, nomeadamente a National Geographic Channel e

a Discovery, se apropriariam do mercado que se expandia a partir desse ambiente em uma

guerra de investimentos, autoridade científica e sensacionalismo na década de 1990. Nesse

meio, desfilavam formatos inusitados, como o reality show, e produtos de exuberante

qualidade tecnológica (CHRIS, 2006; 2012).

A produção de documentários de circulação internacional, ressalte-se, continuava

bastante influenciada pelo legado das True-Life Adventures, como é caso, segundo a avaliação

de Aufderheide (2007), da série fílmica britânica Nature, de 1982. Diz ainda a autora:

Os assim chamados documentários blue-chip [uma referência às ações mais bem

cotadas do mercado financeiro] se tornaram um marco da produção internacional de

documentários para transmissão. Tais documentários apresentam grandes animais,

uma ausência de humanos ou influência humana, e uma narrativa dramática movida

64

Baker (2001) usa o termo “disnificação” (“disnification” no original em inglês) para tratar do fenômeno da

criação de perfis humanos para animais que deixam de ser reconhecidos apenas como tal para protagonizarem

sagas eminentemente humanas nas produções da Disney como um acontecimento eminentemente visual: “A

disnificação é o senso comum aplicado à imagem do animal. É a construção do senso comum da realidade visual

do animal. E é a condição sob a qual nós comumente atribuímos sentido às representações do animal” (BAKER,

2001, p. 177). Para o autor, “a disnificação é algo que, em sua forma mais completa, abraça positivamente a

contradição. Há uma espécie de padrão: quando o animal é colocado em sua forma visual, parece de alguma

maneira se inclinar em direção ao estereotípico” (BAKER, 2001, p. 175).

65 A primatologista Jane Goodall seria uma das poucas – e célebres – vozes femininas a emprestar sua

“credibilidade científica” à programação wildlife; outras mulheres geralmente apareceriam como “exceções

etéreas” à participação masculina (CHRIS, 2006, p. 46).

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68

pela reprodução e pela predação (sexo e violência). Blue Planet, a série da

BBC/Discovery Channel produzida em 2001, fornece um exemplo excelente. Essa

série de tirar o fôlego, cheia de feitiçaria tecnológica e maravilha natural, explora os

oceanos do mundo sem muitas pistas de que a ação humana está transformando as

condições [ambientais] para os animais extraordinários que apresenta.

Como a própria autora vai reconhecer, não sem fazer ressalvas à sua efetividade, uma

ética conservacionista passaria a permear a produção wildlife, principalmente a partir da

década de 195066

. “Conforme a consciência ambiental crescia, esses temas se tornariam mais

e mais comuns” (AUFDERHEIDE, 2007, p. 121), muito embora mesmo dentro dessas

produções mais conscientes houvesse artifício técnico, conformação a um formato ‘realista’

que minimizava o uso da imagem humana e que poderia até provocar animais para obter boas

tomadas (AUFDERHEIDE, 2007). Uma aura de ‘respeito’ e ‘preservação’ seria introjetada na

forma geral dos wildlife films.

Essas configurações – tanto as gerais como as específicas – são essenciais para que se

compreenda os filmes que serão tratados no capítulo a seguir. De certa forma, eles acumulam

e dialogam com os formatos e discursos que fizeram parte da trajetória dos documentários – e

dos wildlife films em especial, obviamente. Assim, com as observações que serão

desenvolvidas a seguir, espera-se não só formular uma interpretação dos filmes examinados,

mas um olhar para as considerações feitas neste capítulo e no anterior.

66

Como era de se esperar, essa tendência estava em consonância com anseios relativos a um contexto mais

amplo: “O mundo que os conservacionistas buscavam proteger nos anos 1950 e no começo dos anos 1960 era

uma paisagem fundamentalmente modificada pela Segunda Guerra Mundial e pela estratégia de contenção que

germinou nas consequências da guerra. [...] Como parte da herança do mundo, a vida selvagem deveria ser

apreciada e desfrutada por todos os cidadãos do mundo” (MITMAN, 1999, p. 201).

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69

4. UM OLHAR PARA MIGRAÇÃO ALADA E PARA A MARCHA DOS PINGUINS

Como informado na introdução desta dissertação, os filmes Migração Alada e A

Marcha dos Pinguins se constituíram como casos exemplares de wildlife films dentro de um

panorama de produção internacional recente de documentários do tipo. Neste capítulo, serão

traçadas algumas observações analíticas a respeito desses dois títulos de forma a discutir suas

especificidades e suas confluências em relação aos assuntos tratados aqui até o momento.

Antes de lançarmos esse olhar aos filmes, entretanto, pode ser pertinente trazer à tona

a diferença que Penafria (2009) faz entre crítica e a análise fílmica. A primeira, diz a autora,

teria uma tendência às qualificações abstratas e aos “juízos de valor” (PENAFRIA, 2009, p.

2), correndo frequentemente o risco de cometer generalizações inócuas na avaliação dos

atributos debatidos. A segunda, por sua vez, estaria estruturada de forma a permitir “ver mais

e ouvir mais” (PENAFRIA, 2009, p. 3). Seu funcionamento dependeria de uma desconstrução

e de uma identificação dos elementos dos filmes, que seriam em seguida reconstruídos

associativamente. Nesse esforço, propõe Penafria (2009), tal análise precisaria contar com a

adoção de objetivos prévios e de uma observação detalhada de, ao menos, alguns momentos

do filme examinado.

A análise fílmica, assim, funciona em movimentos de decomposição e recomposição.

Esses movimentos são marcados fortemente pela ‘mão’ daquele que faz a análise,

especialmente no caso dessa remontagem que surge das associações feitas com as peças

desconjuntadas. Muito embora não se almeje construir outro filme propriamente dito, a

análise, dizem Vanoye e Goliot-Lété, é uma “‘criação’ totalmente assumida pelo analista, é

uma espécie de ficção, enquanto a realização continua sendo uma realidade” (2005, p. 15).

Apesar das diferenças em relação à crítica, o seu aspecto qualitativo é preponderante.

Bellour (2000) expõe uma dificuldade importante em relação ao filme enquanto texto

a ser abordado. De acordo com o autor, “o texto do filme é inatingível porque é um texto que

não pode ser citado” (BELLOUR, 2000, p. 22). Ou seja: apesar de ter uma forma fixa, no que

é diferente da música e do teatro, sua heterogeneidade de formas dificultam essa

transponibilidade de citação que pode ser mais facilmente encontrada no texto escrito. O

filme, afinal, é composto de música, movimento, imagens, barulhos, formas escritas; transpor

essa complexidade no momento da análise é um desafio à parte (BELLOUR, 2000).

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70

A ênfase na descrição propagada por Penafria (2009) é, assim, uma das maneiras mais

recorrentes de tentar suprimir essa dificuldade de citação. Em boa parte dos estudos do filme,

esse esfacelamento detalhado de seus elementos fílmicos ocorre em uma extensão e em uma

esquemática que não são do interesse deste estudo nos conformes da proposta apresentada na

introdução. Não se pretende, por exemplo, verificar as qualidades poéticas de Migração Alada

ou A Marcha dos Pinguins dentro de um contexto estético do cinema.

A análise fica mais bem fundamentada, portanto, no outro pilar da análise fílmica

oferecido por Penafria (2009) – o objetivo prévio. A essa altura, ele já parece estar claro:

fornecer um olhar das produções em questão no contexto das problemáticas tratadas neste

trabalho holisticamente. Isso abarca tanto as tensões do humano e do animal quanto as

próprias tensões dos wildlife films – que incorporam, como visto, essas primeiras. Tal escolha

significa se aproximar de uma perspectiva principalmente temática, que, nos termos definidos

por Penafria (2009, p. 6), considera o filme como um relato e permite uma discussão mais

abrangente que a discussão (quase) puramente textual – embora tal abordagem não esteja

excluída. Essa alternativa visa a dar suporte ao caráter exploratório da pesquisa.

4.1. UM OLHAR PARA MIGRAÇÃO ALADA

Migração Alada é um documentário francês de aproximadamente 85 minutos, em cor,

lançado em 2001, dirigido por Jacques Perrin e codirigido por Jacques Cluzaud e Michel

Debats. Perrin também esteve envolvido na produção67

e no roteiro, que dividiu com Stéphane

Durand – uma das integrantes do corpo de ornitologistas do filme – e outros colaboradores. A

trilha sonora foi composta por Bruno Colais, com participações de Nick Cave e Robert Wyatt.

Na versão americana, que servirá de base para estas considerações, o documentário recebeu o

título Winged Migration. A versão original foi intitulada Le Peuple Migrateur – algo como

“O Povo Migrante” em português.

De forma geral, Migração Alada acompanha visualmente fragmentos das rotas

migratórias de diversas espécies de aves, em diversos continentes. São dezenas de espécies

mostradas em locações de cerca de 40 países; o documentário cobre, segundo o material de

67

Realizada pela Galatée Films com France 2 Cinéma, France 3 Cinéma, Les Productions de la Guéville, Bac

Films; o financiamento contou ainda com o aporte do Canal+. No âmbito internacional, participaram também a

Pandora Films (numa associação com a WDR e com a Filmstiftung NRW), da Alemanha, a JMH Productions

(em associação com a Television Suisse Romande), da Suíça, a Wanda Vision S.A., da Espanha, e Eyescreen

S.R.L., da Itália. A distribuição ficou a cargo da Sony Pictures Classics.

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71

divulgação de imprensa disponibilizado pela Sony Pictures Classics68

, a Europa, a Ásia, a

África, as Américas e o Polo Sul, e nas filmagens aparecem aves tão distintas como

flamingos, águias-americanas, grous e pinguins. As expedições de captura de imagens

começaram a ser feitas em julho de 1998, na Ilha de Skrúður, na Islândia, com papagaios-do-

mar, gansos-patola e uma espécie da família Alcidae. A última expedição terminou em junho

de 2001, com uma filmagem de pardais em Montana, nos Estados Unidos.

O processo de captura dessas filmagens e a sua constituição visual em um produto de

aspecto deslumbrante são alguns dos pontos mais importantes dentro de Migração Alada.

Como constatou Nicole Pallotta (2009, p. 144) em uma crítica acadêmica para o Journal for

Critical Animal Studies, “Mesmo que as migrações estejam acompanhadas de música e o

bater das asas das aves possa ser escutado em muitas cenas, o filme é primariamente uma

experiência visual”. Para acompanhar a movimentação geográfica das aves, a câmera procura

uma proximidade com os animais – com frequência planando no céu – e recorre

abundantemente, é claro, a paisagens naturais. Dentro do formato clássico dos wildlife films

proposto por Bousé (2000, p. 14), uma característica mais evidente aqui seria então a da

recursividade ao esplendor visual do “mundo selvagem”, mas com algumas ressalvas que

exploraremos nesta seção.

Muito embora seja um elemento comum no subgênero, esse esplendor foi parte

importante da recepção – ou seja, como uma particularidade – do filme, que acabou sendo

nomeado ao Oscar de melhor documentário em 200269

, como adiantado na Introdução. Os

trechos de crítica do Boston Herald, Los Angeles Times, Rolling Stone e USA Today que

compõem a capa do Blu-ray lançado em 2009 pela Sony centralizam essa qualidade com uma

comparação a Matrix e com o uso de expressões adjetivas como “hipnotizante”, “de tirar o

fôlego” e “milagre fílmico”. A constatação do apelo à visualidade, entretanto, não se restringe

a essa seleção de críticas da capa. Em geral, a percepção do apuro visual foi acompanhada de

uma notação a respeito do silêncio da voz humana na película. Em um texto publicado na

Time, Robert Schickel diz que, “Às vezes, você pode até ficar um pouco cansado das asas

batendo e das belas tomadas. Mas o filme sempre se recupera desses defeitos, principalmente

68

Disponível em: <http://www.sonyclassics.com/wingedmigration/_media/_presskit/presskit.pdf>. Acesso em:

15 de maio de 2014.

69 Segundo a página do filme na seção de cinema do site do New York Times, o filme venceu a categoria de

edição (para Marie-Josephe Yoyotte) do prêmio da Academia Francesa de Cinema em 2001. Outras nominações

foram de Melhor Música Original (para Bruno Colais), no prêmio da mesma Academia, e de Melhor

Documentário do prêmio de 2003 da Chicago Film Critics Association. Página disponível em:

<http://www.nytimes.com/movies/movie/259504/Winged-Migration/awards>. Acesso em: 15 de maio de 2014.

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72

porque as imagens de Migração Alada nunca cessam de surpreender”70

. Comentando alguns

lances de edição e a interferência reduzida do narrador no documentário, o crítico Roger

Erbert escreveu que “fatos não são a proposta de ‘Migração Alada’. [...] Eu estou satisfeito, na

verdade, que o filme tenha uma tal inclinação em direção ao visual e para longe da

informação”71

.

Em vários momentos, a impressão que Migração Alada deixa se assemelha mais à

contemplação grandiosa (acompanhada de uma trilha sonora que siga o mesmo passo) de um

Koyaanisqatsi (1983), de Godfrey Reggio, que à maioria dos documentários de cunho

informativos a respeito do comportamento animal que preenchem os canais de TV a cabo.

Perrin já tinha trabalhado como produtor em um documentário que também explorou de certa

forma essa configuração de modo poético72

– Microcosmos: Le Peuple de l’Herbe (algo como

“Microcosmos: O Povo da Grama” em português), de Claude Nuridsany e Marie Pérennou,

lançado em 1997. A trilha sonora desse filme, cuja proposta era captar cenas de diversas

espécies de insetos, aracnídeos e seus ambientes, também foi assinada por Bruno Colais.

Como bem pontua MacDonald (2006, p. 15), “é claro, em Microcosmos, assim como na

maioria dos filmes de natureza, a música e os efeitos de som funcionam como formas

indiretas de narração”.

Dentro da particularidade da questão visual no acompanhamento das aves em

Migração Alada, reside certo conforto aparente do animal com a câmera. O ‘trunfo’

fotográfico do filme vem, em parte, de uma perspectiva e de uma proximidade. As tomadas

que enchem os olhos durante o documentário são feitas não apenas em um ângulo baixo feito

do chão em direção às aves que migram no céu – mas da própria altura das aves, por exemplo,

e de qualquer forma com elas em pleno voo, em sequências aéreas ou em travellings em

superfícies aquáticas, por exemplo.

Para realizar esse feito foram necessários alguns esforços técnicos, inclusive com a

criação e adaptação de tecnologias específicas. Segundo o material de divulgação da Sony,

boa parte desse maquinário estava relacionado ao equipamento usado para seguir as aves e

filmá-las – ultraleve, helicóptero, balão, dispositivo de controle remoto. Apesar de engenhoso,

70

Disponível em: <http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,1101030616-457358,00.html>. Acesso

em: 20 de maio de 2014.

71 Disponível em: <http://www.rogerebert.com/reviews/winged-migration-2003>. Acesso em: 20 de maio de

2014.

72 Conforme citado no Capítulo 3, no sentido dado por Nichols (2005).

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o empreendimento não seria, entretanto, suficiente. Técnicas de filmagem camufladas não são

novas na indústria cinematográfica, mas como não assustar aves em formação alada com um

imenso e barulhento corpo tentando voar tão perto delas? Como não perder de vista os

animais que seriam seguidos em rota?

De acordo com o Making Of do filme, dirigido por Olli Barbé e Catharine Mauchain, a

equipe que trabalhou na produção de Migração Alada ultrapassou os 400 integrantes. Alguns

deles eram cientistas – ornitólogos, por exemplo – que utilizaram a técnica de imprinting (ou

estampagem), desenvolvida principalmente nos anos 1930 pelo etólogo Konrad Lorenz, para

criar uma familiaridade de integrantes da equipe com alguns dos animais que seriam filmados.

O imprinting é “o processo de transferência de paternidade”73

, informa o Making Of. O ‘pai’

ou ‘mãe’ humano das aves visadas falaria com eles desde antes de saírem de seus ovos, e os

acompanharia cotidianamente depois disso para criar um laço afetivo que facilitaria as

filmagens; o contato também permitia que os animais se acostumassem ao barulho dos

equipamentos. Cerca de 70 pessoas estiveram envolvidas na criação e no treinamento das

espécies que apareceriam no documentário. Ainda segundo o Making Of, o imprinting foi

decisivo na escolha das espécies, já que aquelas que seriam treinadas precisavam ser

suscetíveis a ele, e o aconselhamento científico do filme pesou na escolha das rotas

migratórias e dos locais propícios à observação de vida selvagem.

Esse contexto abre espaço para uma série de considerações e indagações inseridas no

enfoque tratado neste trabalho. Dentro da proposta exploratória do estudo, não convém ir a

fundo nessas questões, mas podemos enunciar alguns dos caminhos possíveis. Um deles é o

caminho ético: até que ponto técnicas como imprinting, que de certa maneira modelam o

animal às finalidades do documentário, podem ser realizadas? Como esse procedimento

implica em um tipo de cativeiro – físico e mental – das aves, também caberia um

questionamento a esse respeito, é claro. Espécimes transportados (em caixas, e geralmente por

via aérea) do local de criação ao local de filmagem chegaram, inclusive, a contrair doenças

nessas locações, como mostrado pelo próprio Making Of citado. As marcas do imprinting no

pós-filmagem também aparecem como um ponto nebuloso.

As perguntas não precisam se ater a esse nível mais evidente. O imprinting certamente

fornece um pano de fundo bastante complexo para que se discutam questões de entanglement,

nos termos de Haraway (2008), de hibridização e devir-animal – primeiramente, no trabalho e

73

No original em inglês, “parenthood” – maternidade ou paternidade.

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na vida dos biólogos e dos animais envolvidos com o convívio diário de ‘adoção’ dos

animais; depois, no sentido mais amplo da construção fílmica baseada nesse tipo de relação.

O fato de que essa situação ocorre em uma conjuntura que parece envolver o uso do

conhecimento e do discurso científico tanto para legitimar e criar essas interações como para

forjar visualmente, através de treinamento, o resultado fílmico que será afetado pela aura de

cientificidade que acompanha o gênero acrescenta alguns elementos que tornam mais

complexas – e interessantes – as considerações que podem ser realizadas.

Como questionar, ainda, o elemento de “ausência de ciência” do formato clássico de

wildlife films, que o próprio Bousé (2000, p. 15) admite ser uma caraterística flexível na

produção? O autor parece se referir mais à emergência do discurso científico a respeito do

comportamento animal na narração do filme – o que é um ponto difícil de pensar de forma tão

simples: há questões de expectativa do público por um ‘discurso de sobriedade’ e de

autoridade científica, mesmo que de forma cosmética, por exemplo, que Bousé (2000) parece

não levar em conta. A esse respeito, entretanto, não deixaria de ser interessante refletir como a

etologia, em Migração Alada, é usada não apenas para escolher e apresentar o objeto

estudado, mesmo que com uma restrição da narração informativa, mas também para modelar

alguns desses objetos – ou seja, as aves sujeitas ao imprinting – e como, apesar de emanar a

aura do campo científico enquanto wildlife film, o próprio uso prático dele na forma como os

objetos foram trabalhados desaparece na construção fílmica.

Nesse sentido, podem então surgir indagações a respeito do documentário como

gênero e da película em si, não apenas em relação aos ‘artifícios’ usados, mas ao próprio

tópico da ficcionalidade. Dentro da perspectiva que foi trabalhada aqui, tais tensões são

reduzidas se pensarmos, como Nichols (2005), em um tratamento criativo do que será

representado. Mas há bastante abertura para uma discussão desse ponto no caso de Migração

Alada. No próprio Making Of, o narrador diz: “Estamos fazendo um filme que não é nem

ficção, nem documentário; apenas um conto da natureza”. De fato, dos conjuntos de tomadas

de aves na natureza pode-se depreender alguma narratividade; a forma como isso dialoga com

a representação ‘documental’ da imagem em relação à natureza poderia dar vazão a uma

discussão específica, por exemplo.

Logo no início da versão norte-americana de Migração Alada, uma mensagem anterior

aos créditos de abertura fala do filme como o resultado de um acompanhamento das

“maravilhosas odisseias” que as aves realizam a cada primavera, na ida, e a cada outono, na

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volta. Depois dos créditos – dados com uma tomada da lua no céu noturno –, surge a

indicação de um arco narrativo centrado nessa ideia de estações do ano: uma imagem nevada

de uma paisagem do interior em plano aberto (ver Figura 4). A presença de uma construção

humana – o que aparenta ser um bucólico atracadouro de madeira à beira de um rio – já marca

um desafio à tentativa de apagamento completo da presença humana do formato clássico de

wildlife film, mas também parece apontar, pela escolha da estrutura simples e campestre, a

alguns sentidos particulares em relação a essa presença e sua interação com a natureza.

A primeira ave exposta no filme, uma espécie de pássaro, aparece em uma sequência

em que sai dessa estrutura para interagir com alguns galhos que brotam da neve. Em seguida,

com a câmera de volta ao mesmo enquadramento do início do filme, a paisagem nevada se

transforma, pela montagem, em um ambiente esverdeado com o ressurgimento da vegetação

(ver Figura 4). Ato contínuo, um exemplar da mesma espécie é enquadrado em plano fechado.

O bucolismo da locação é reforçado, logo depois, com a presença de algumas vacas quando o

pássaro pousa no telhado do atracadouro, captura um inseto e o leva até um ninho onde quatro

filhotes são enquadrados (ver Figura 5).

Figura 4: Fotogramas da abertura de Migração Alada – visualização da mudança de estação.

As cenas imediatas dão prosseguimento a esse foco na ideia de ‘ninho’ – uma

repercussão das temáticas suburbanizadas das True-Life Adventures, talvez? – e diversificam

a vida no ambiente de locação. Um filhote de ave, provavelmente de uma espécie parasita,

derruba ovos muito menores que ele para fora de um ninho. Outras espécies de aves vão aos

poucos ocupando o espaço: chegando em bando ao rio enevoado, pescando para alimentar a

cria.

Um garoto é mostrado correndo entre as plantas e, quando a câmera volta ao plano

aberto da locação, traços de uma cidade de interior podem ser vistos mais claramente ao

fundo. Os gansos-bravos que haviam chegado em bando fogem quando ele se aproxima, mas

um deles fica preso em uma rede. A câmera parece não querer enquadrar o menino em

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definição: quando ele está correndo, a vegetação, a velocidade e o corte rápido o ocultam de

certa forma. Quando observa o animal preso, o garoto é mostrado atrás da janela com grade

de madeira do atracadouro (ver Figura 6). Na abertura de Migração Alada, o rompimento com

a noção de natureza intocada acontece com algum pudor, com certa conservação da ausência

do humano74

que quebraria essa impressão de pureza – ou, pelo menos, com o distanciamento

da noção subjacente a esse apagamento e que seria responsável por tal quebra: a noção do

humano moderno, expansivo, ‘adulto’ e industrial – na figura da criança e na imagética

bucólica.

Figura 5: Fotograma de pássaros em ninho na sequência de abertura de Migração Alada.

Seguindo essa leitura, não surpreende que, após algumas tomadas da principal

imagem-tema do filme, aves (no caso, os gansos mostrados anteriormente) migrantes em

pleno voo, o filme mostra o menino soltando o ganso preso, que pode então se juntar à

revoada. Depois de mais cenas dos animais sobrevoando várias paisagens (rever Figura 3),

uma legenda aparece com algumas informações identificando a espécie e seus hábitos

migratórios. Só então a voz do narrador, que será escassa durante todo o filme, aparece em

voz-over, ao estilo voz de Deus75

, falando da migração como uma “história” – uma “história

74

Novamente, de acordo com o modelo de Bousé (2000).

75 Segundo Nichols (2005), essa é uma voz de alguém que não vemos e que frequentemente substitui a persona

individual associada do cineasta em um dispositivo de narração e autoridade. “Essa voz anônima e substituta

surgiu na década de 1930, como uma forma conveniente de descrever uma situação ou problema, apresentar um

argumento, propor uma solução e, às vezes, evocar um tom ou estado de ânimo poético. [...] A voz de Deus e a

correspondente voz da autoridade – alguém que vemos e ouvimos [...] – persistem como característica dominante

do documentário (e também dos noticiários televisivos)” (NICHOLS, 2005, pp. 40-41).

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de promessa... A promessa de retorno”. As imensas jornadas aéreas dessas aves teriam “um

único motivo: a sobrevivência. Sua migração é uma luta pela vida”.

Figura 6: Menino observa ganso-bravo atrás de janela com grade de madeira em fotograma de Migração Alada.

Esse viés temático do filme, ou seja, o seu uso da noção de luta pela sobrevivência,

por exemplo, é passível de diversas indagações que levem em conta o que foi visto

anteriormente. A narratividade imposta aos movimentos migratórios das aves retratadas pode

ser levada em consideração tendo em vista as questões relativas ao antropomorfismo e, por

exemplo, ao Darwinismo Social. Podem-se realizar perguntas, assim, a respeito do caráter

residual desses temas em documentários recentes como Migração Alada, ou investigar os

contextos que dialogam com essa temática na atualidade. Durante o percurso do

documentário, passagens tocam nessas temáticas ao mencionar a palavra “família”

explicitamente para descrever algumas relações dos animais e ao tratar da predação, dos

rituais de acasalamento, das intempéries encontradas nas jornadas das aves. Há, nisso tudo,

um possível uso da abertura de sentido causada pela semelhança da vida animal com o

entendimento do que é o ser humano como peça narrativa do filme na sua adequação a um

modelo algo comodificado de filme de vida selvagem. Também vale refletir como esse

próprio uso faz parte de uma espécie de interação – virtual, por meio da representação – do

humano e do animal.

Em outro sentido, a imagem da interação entre humanos e animais dentro de Migração

Alada – ou seja, não a que existiria entre animais, produção e público, mas aquela que ‘existe’

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entre os humanos e animais que aparecem no filme – mereceria algumas considerações

específicas. A tensão entre a evocação do humano e uma contenção dele não se limita à

sequência de abertura do documentário. Esse binômio de exibição-ocultação aparece em

diversos outros momentos de duas formas, principalmente. A primeira é nos encontros em

que a presença de um humano, corporalmente falando, é evidente, como no caso do garoto do

começo do filme. Não por acaso, a maior chance de visibilidade é dada a outra criança – um

menino em uma carroça que entra e sai de cena rapidamente. Uma mulher idosa também

recebe alguma visibilidade: ela, representada como uma habitante de uma zona rural, surge no

filme para marcar o movimento migratório de ida, primeiro, e o movimento de volta, ao final

da película. Apesar de ocupar um tempo considerável em tela, a mulher é vista apenas ao

longe ou contra a luz, por exemplo, e mesmo quando a câmera a captura de perto mal vemos

seu rosto por conta de seu véu preto (ver Figura 7).

Figura 7: Dois fotogramas com visualização de representação humana em Migração Alada.

Esses dois encontros aparentam manter, então, o padrão de bucolismo e sombreamento

do humano que é visto no primeiro deles, o do menino com os gansos-bravos. Mas não é o

que ocorre sempre: em outra cena em que humanos são mostrados, trabalhadores rurais

dirigindo máquinas agrícolas participam de uma sequência em tom de suspense em que as

lâminas do maquinário se aproximam de uma ave em uma plantação de agricultura intensiva

nos Estados Unidos; da mesma forma, entretanto, uma sombra recobre o rosto dos homens

(ver Figura 8). Outros encontros são fortuitos: um barco na neblina carregando silhuetas

humanas, montadores de cavalos vistos de relance e à distância, caçadores na penumbra,

barqueiros asiáticos imersos na paisagem ao fundo.

A outra forma como pode ser vista essa interação com o humano não é a partir da

aparição do corpo humano, mas através de sua ação no ambiente. Se, no modelo clássico de

wildlife film, o animal aparece muitas vezes em um ambiente intocado, sem história humana

ou vestígio de sua interferência, em Migração Alada as aves sobrevoam plantações, Paris,

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Nova York, um castelo, algumas ruínas, vilarejos antigos; descansam na parte externa de um

navio em meio a uma tempestade em alto mar; observam uma revoada de aves migrantes

enquanto estão presas em uma pequena granja; uma arara consegue se soltar de uma gaiola

em um barco com animais silvestres presos na Amazônia. Curiosamente, os tais locais e

construções parecem estar, na maioria das vezes, desabitados de alguma forma, e é aí que uma

tensão semelhante à do primeiro caso pode ser inferida.

Figura 8: Fotograma de trabalhadores rurais de rosto difuso em Migração Alada.

Uma possível mensagem conservacionista/ambiental é algo bastante plausível nessas

passagens, embora as cenas de caça e a das máquinas agrícolas também possam apontar nessa

direção. A escolha dos locais é um indicativo importante: no material de divulgação da Sony

consta que duas expedições realizadas pelas equipes de filmagem foram feitas para capturar

imagens não de animais – muito embora eles não deixem de aparecer –, mas de localidades

específicas. Talvez não por coincidência, são lugares onde é possível enxergar um sentido de

depredação relacionado à mão humana. Nas filmagens feitas em Kosovo, o objeto seria um

conjunto de ruínas; as imagens da Baía de Disko, na Groenlândia, são focadas nos icebergs da

região desmoronando tragicamente. Em uma cena particularmente significativa, um grupo de

gansos de peito vermelho sobrevoa uma zona industrial de aspecto escuro e poluído. Um deles

fica preso no que parece ser uma área coberta por dejetos (ver Figura 9). Em seus caminhos

migratórios, as aves também encontram lixo, carro abandonado, linha férrea, caminhão

passando por estrada.

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Figura 9: Fotograma de ganso preso a dejetos de zona industrial em Migração Alada.

Assim, a interação com os rastros da ação humana como forma possível de apelo ao

conservacionismo se constitui em um elemento importante dentro da abordagem temática de

Migração Alada. De certa maneira, o documentário acumula não só essa questão agregada à

formação dos wildlife films, mas vários pontos que vão além dos comentados aqui. Seu valor

para este estudo se encontra nessa capacidade de gerar inquietações a partir dos temas e

configurações do subgênero que, como filme, sintetiza e reformula.

4.1. UM OLHAR PARA A MARCHA DOS PINGUINS

Dirigido por Luc Jacquet, o também francês A Marcha dos Pinguins, de 80 minutos, é

um documentário em cor lançado em 2005 pela Warner Independent Pictures e pela National

Geographic Films76

. O filme acompanha, como Migração Alada, uma jornada migratória de

aves. Aqui, entretanto, o foco é dado a uma só espécie: os pinguins-imperadores da Antártida.

A versão original do filme, francesa, foi intitulada La Marche de l’Empereur (algo como “A

Marcha do Imperador” em português).

A versão a ser comentada neste estudo é a que circulou na maior parte dos países de

língua inglesa, intitulada March of the Penguins, de tradução próxima à do título recebido em

76

Produzido pela Bonne Pioche em associação à Wild Bunch. Paticiparam também a Buena Vista International

Film e o Canal+. O documentário foi co-produzido pela Alliance de Production Cinematographique e pelo

French Polar Institute.

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português. Ela possui algumas mudanças em relação à versão original. March of the Penguins

tem cerca de cinco minutos a menos que La Marche de l’Empereur; entretanto, não são os

cortes o que mais chama a atenção aqui. A versão francesa escolhe narrar o filme com vozes

em primeira pessoa (WEXLER, 2008) e tem uma trilha sonora mais vocal, feita por Émilie

Simon. Já a de língua inglesa teve sua trilha produzida por Alex Wurman, que apresentou um

trabalho mais discreto, e o narrador assume uma posição de voz de Deus – uma característica

fundamental de diferença. Isso tem uma importância ainda maior por essa voz ser a do ator

norte-americano Morgan Freeman que, “notavelmente, já havia atuado no papel de Deus em

um filme de Hollywood e estava trabalhando na sequência” (WEXLER, 2008, p. 275) à

época.

Essas modificações – que são, antes de tudo, escolhas – podem indicar muito sobre a

abordagem temática da vida dos pinguins em March of the Penguins. Entretanto, também

vários outros elementos poderiam ser depreendidos já da organização geral do documentário.

Em A Marcha dos Pinguins, a tendência de ‘contar uma história’ a partir do

comportamento animal é um dos alicerces de sua constituição e de sua proximidade com o

formato comodificado do modelo clássico de wildlife film. Em um material de divulgação

disponível no site da American Public Television77

, que havia contratado os direitos do filme

para exibição em março de 2009, podem ser lidos alguns comentários escritos pelo diretor – e

também biólogo – Luc Jacquet que parecem esclarecer esse ponto. Diz Jacquet no documento:

[…] Conforme segue a migração de inverno do pinguim imperador, “A Marcha dos

Pinguins” conta um conto de proporções lendárias, retratando o destino estranho e

espetacular de personagens poderosos e emocionalmente envolventes, rico em

coragem e humor, mistério e drama manifesto.

Meu objetivo é escavar do gelo uma história que nunca viu a luz do dia pela falta de

quem a contasse. Uma história verdadeira, porém extraordinária. Uma história

repetida a cada inverno, como tem sido por centenas de milhares de anos. Mas nunca

houve uma geração de homens para testemunhá-la e modelá-la, para deixá-la como

legado, pois o homem nunca colonizou a Antártida. [...] Em 1950, quando bases

preliminares, improvisadas, foram estabelecidas aqui, a observação científica havia

substituído a lenda como a narrativa preferida do Homem.

O pinguim imperial e o homem nunca viveram juntos por tempo suficiente para que

histórias folclóricas ou mitos se desenvolvessem. Eles permanecem estranhos, se

cruzando em ocasiões raras nas vastas extensões de deserto da Antártida.

Com isso em mente, meu desejo é contar a história real: através de imagens

extraordinárias do pinguim imperador durante o inverno austral, imagens que

sempre me fascinaram; e com palavras dignas tanto da natureza excessiva da

Antártida quanto do destino épico do imperador. É hora da lenda do imperador ser

contada.

77

Disponível em:

<http://www.aptonline.org/catalog.nsf/b419d0213e452ec785256db10052d22b/1be3a85a7f3778d685257562006

46b9c/$FILE/marchofthepenguinspressrelease.pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2014.

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História, conto, drama, épico, lenda, narrativa, destino, personagem, folclore: essas

palavras dificilmente seriam mencionadas à toa por Jacquet (mesmo que o material assinado

por ele tenha talvez sido escrito por um ghost writer). Obviamente, os objetivos do diretor –

que não necessariamente são imprescindíveis para a fruição ou para a análise no filme, mas

podem que ser considerados como pontos de referência interessantes a serem pensados dentro

da natureza exploratória deste trabalho – podem se referir mais à versão francesa de A Marcha

dos Pinguins, cuja narratividade é calcada em uma antropomorfização mais evidente dos

animais através da voz em primeira pessoa, mas isso não significa que o sentido geral de

‘conto’ escape à versão em inglês.

Os comentários de Jacquet parecem evocar uma das tensões fundamentais para

compreender os wildlife films: a tensão entre ciência e uma narratividade associada a um lugar

cultural distinto dela (e, em perspectiva, ligado às vezes ao entretenimento), já

consideravelmente trazida à tona neste trabalho. A contraposição é feita entre a “observação

científica” e o conto de uma história que só pode surgir a partir da interação dos seres

humanos com os animais – e que, apesar de “extraordinária”, é “real”. Nesse panorama

complexo, juntam-se ainda os sentidos de colonização, citada nominalmente pelo diretor, que

se refere aos pinguins – já aqui configurados como outros – como seres de uma terra estranha,

pouco acessível.

A versão narrada por Morgan Freeman carrega essas tensões de forma muito

proeminente por conta do valor não apenas poético, mas frequentemente informativo

atribuído à voz de Deus nos documentários e que ocorre, não raro, através de um empréstimo

da aura de autoridade discursiva da ciência. A disputa pelo exótico objeto da narração – ou

seja, a divisão do pinguim-imperador entre um animal cujo comportamento será exposto e

uma criatura antropomórfica a ter sua epopeia finalmente revelada – se torna, então, ainda

mais intricada nesse caso. Em um nível mais abrangente e simplificado, há uma ressonância

da articulação entre educação e entretenimento que foi vista antes aqui.

Interessantemente, apesar de Jacquet colocar o encontro do animal com o humano

como aquilo que torna possível o relato da ‘história’ dos remotos pinguins, a forma literal

desse encontro é apagada da superfície narrativa de A Marcha. A ausência de pessoas, ou

pelo menos de sua corporeidade óbvia, é um ponto de ligação consideravelmente explícito do

filme com os elementos do formato clássico de Bousé (2000) que dizem respeito à imagem

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intocada e separada da civilização moderna que os wildlife films comumente passam do

‘mundo natural’. A abordagem é diversa da que é possível ver em Migração Alada, mas,

assim como no filme de Perrin as locações serviam de base para um encontro clivado com o

humano – isto é, em um flerte com a presença e com a ausência do humano ao mesmo tempo

–, a Antártida emerge no trabalho de Jacquet como o dispositivo de um afastamento que vai

ao encontro de maneira bastante precisa às formas recorrentes que o subgênero utiliza para

representar os animais em um esquema que envolve dramaticidade e exotismo. De certa

forma, também podemos especular que o animal talvez se preste mais facilmente à abertura

enquanto metáfora do humano – e Jacquet parece mais interessado nisso que Perrin – quando

não há um corpo de fato humano que puxe esse sentido para si.

A Marcha dos Pinguins se inicia precisamente com uma série de planos abertos das

paisagens predominantemente brancas e gélidas da Antártida (ver Figura 10). A voz de

Freeman irrompe ainda durante os créditos iniciais, que se funde com a essa sequência de

ambientação: “Há poucos lugares mais difíceis de se chegar no mundo. Mas não existe

nenhum em que seja mais difícil de se viver. A temperatura média aqui na parte inferior do

mundo se situa entre os 58 graus abaixo de zero. Isso quando o sol brilha”. O narrador explica

que nem sempre aquele continente foi tão inóspito. Antes de se deslocar ao extremo sul do

planeta – ou seja, de se afastar até onde as condições climáticas são quase impossíveis de lidar

– a Antártida era recoberta de florestas que acabaram sendo substituídas pelo gelo atual.

Figura 10: Fotograma de um dos planos da abertura de A Marcha dos Pinguins.

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Após esse pequeno conto sobre o isolamento e a distância da localidade, Morgan

Freeman introduz os “habitantes” que restaram ali. Em outro plano aberto, vemos riscos

horizontais – bípedes – muito difusos, à distância na paisagem (ver Figura 11). Não há

menção a pinguins até aqui. A narração de Freeman toma contornos etnográficos: “A lenda

diz que uma tribo ficou no lugar”.

Figura 11: Fotograma de A Marcha dos Pinguins com o primeiro sinal dos animais na paisagem.

Uma sequência de tomadas com as figuras longilíneas ao longe ocorre a partir daí; a

câmera vai se aproximando delas a cada corte, mas não mostra o suficiente para que se possa

defini-las – a luz forma ondas de distorção sobre a superfície branca. Freeman continua

falando do desafio do clima local à existência daqueles seres. “Esta é uma história de

sobrevivência. Um conto da vida sobre a morte”, anuncia. Também em A Marcha dos

Pinguins, pelo que se vê, tal temática se repete. Entretanto, não é apenas isso que o

documentário quer evocar: “Mas é mais do que isso, na verdade. Esta é uma história de

amor”. O título do filme – March of the Penguins – aparece dentro de um enquadramento

onde se vê uma camada de gelo azulado e nada mais.

Em seguida, depois da tomada de um monte pontiagudo de gelo, um pinguim salta da

água de uma fenda para o chão sólido enquanto Freeman conta que essas aves vivem não no

ar, como acontece com a maioria das aves, mas no mar. “A cada ano, por volta da mesma

época, ele deixa o conforto de seu lar no oceano para embarcar em uma notável jornada”, diz.

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Esse é o “ato de tolice” que dá início a tal história de amor, “como acontece com a maioria

das histórias de amor”.

Freeman se dedica a fornecer uma série de informações a partir daí. Ele conta que a

jornada do pinguim-imperador é feita através da caminhada propriamente dita, da marcha que

se encontra no título do documentário, e esse empreendimento é realizado coletivamente (ver

Figura 12). Diversos pinguins são mostrados saindo de mais uma fenda de água no gelo.

Dados de ambientação – a longa estação de inverno que se aproxima, o hábito prévio dos

pinguins de se alimentarem no mar por três meses antes do evento sazonal que se seguirá –

são elencados. “Agora que suas barrigas estão cheias, é hora de encontrar um parceiro”,

relata.

Figura 12: Fotograma ilustrativo da ideia de ‘caminhada’ em A Marcha dos Pinguins.

O enredo que se desenrola desse momento em diante envolve a caminhada dos

pinguins-imperadores até uma localidade específica onde ocorre o acasalamento, a postura de

ovos e o período de proteção de filhotes recém-nascidos. A voz de Freeman não deixa de

pontuar as imagens com informações e comentários narrativos, mas há mais espaço para que a

atenção se concentre nas tomadas do já abordado esplendor visual do gênero e na trilha sonora

que o segue.

Wexler (2008) observa uma problemática importante no que diz respeito ao uso da

autoridade científica, da antropomorfização e da abertura a aproximações socioculturais em A

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Marcha dos Pinguins. A legitimidade dos wildlife film perante o público é conseguida em

parte por meio do recurso ao status da ciência enquanto discurso privilegiado na sociedade; de

acordo com a autora, entretanto, a narração de Freeman possui pouco de informação científica

e muito de alegorização, por exemplo. Existe uma dificuldade de separar as coisas inseridas

nesse contexto devido a uma série de pontos imprecisos existentes na relação desses filmes

com a ciência. Como aponta a própria Wexler (2008, p. 4), citando Mitman (1999), os

próprios usos da fotografia e do filme como ferramentas do estudo científico, e o

entendimento desses meios dentro da noção de objetividade mecânica dentro e fora do campo

da ciência são alguns dos fatores que fazem emergir essas dificuldades e aberturas de

interpretação.

A problemática da legitimação científica nos wildlife films, assim como o seu

frequente recurso à dramatização, abre um espaço imenso para questões que envolvem as

interações do humano com o animal no âmbito simbólico. À época do seu lançamento,

comenta Wexler (2008), A Marcha dos Pinguins se misturou ao imbróglio do intelligent

design (ou design inteligente, como ficou conhecido em português) nos Estados Unidos.

Defensores da ideia – que já traria em si um uso da legitimação científica para reposicionar o

criacionismo em uma aparência mais secular – compreendiam que o filme podia servir como

suporte à ideia de que alguma força superior conscientemente havia projetado aquelas

criaturas para superarem de forma habilidosa os desafios à vida presentes na Antártida.

Segundo Wexler (2008), evolucionistas contra-argumentaram que o mesmo valia para a ideia

de seleção natural. Houve reação até de Luc Jacquet. Interpelado sobre o assunto, ele chegou

a afirmar: “Eu sou um cientista [...]. Meu filme supostamente não é para ser entendido dessa

maneira”, ou seja, como um apoio ao design inteligente. Contraditoriamente, o diretor

reafirmou que a abertura de sentido do filme (salvo, pelo jeito, para o caso em questão) era

proposital: “Minha intenção era [...] deixar [a história] aberta a qualquer leitura” (JACQUET

apud WEXLER, 2008).

Essa captura dos elementos do filme para a discussão pública – e recorrente,

principalmente no âmbito norte-americano – entre criacionismo e evolucionismo, juntamente

ao esforço explícito de abertura empreendido em sua produção, encontra eco no debate sobre

a figura do animal enquanto signo frequente da reflexão da humanidade sobre si mesma nos

moldes do que foi discutido no segundo capítulo deste texto. Um ponto de vazão para essa

abertura a ser reforçado aqui é a dramaticidade de A Marcha dos Pinguins, já mencionada

acima e também por Wexler (2008).

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Como informa a autora, o drama e o antropomorfismo que podem ser depreendidos do

documentário ocorreriam tanto pela narração quando pela sua estrutura fílmica – como, por

exemplo, nas ocasiões em que a câmera parece adotar o ponto de vista de um pinguim, ou

pela própria montagem da película como um todo. Isso é mais fácil de ser percebido se

tivermos em mente os dois temas anunciados na abertura: sobrevivência e amor – ou, mais

propriamente, uma ideia de romance.

Quando chegam ao local de reprodução – segundo Freeman, de forma misteriosa,

intuitiva, já que os caminhos de gelo mudam o tempo todo – os pinguins tratam de procurar

um parceiro ou parceira, o que o filme aparenta explorar dentro dessa atmosfera de romance

(ver Figura 13). As relações desenvolvidas, frisa o documentário, serão “monogâmicas”, pelo

menos durante aquela temporada. A partir daí, a jornada dos pinguins-imperadores, que já se

deparava com menções a categorias de cunho etnográfico como clã e tribo, vai ao encontro de

imagens de comunidade e, principalmente, de família: os nomes pais (no sentido de casal de

progenitores), mãe, pai, casais e até família mesmo são usados explicitamente. Os conflitos e

desenvolvimentos, aliás, serão unificados por essa temática – as histórias de sobrevivência e

amor giram, então, em torno de ‘famílias’ de parceiros fixos pela vida da cria (ver Figura 14).

Figura 13: Fotograma de cena do processo de acasalamento em A Marcha dos Pinguins.

Esse construção do arco narrativo do documentário em torno da ideia de família – que,

como no caso de Migração Alada, podemos atribuir talvez à herança narrativa do formato

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clássico de wildlife film – foi um dos elementos importantes de divulgação e recepção de A

Marcha dos Pinguins. De acordo com MacDonald (2006, p. 18; em itálico no original), “O

longa de Luc Jacquet recebeu, em geral, elogios relutantes de críticos de cinema sérios,

muitos dos quais compreensivelmente o desencorajam por conta do abuso de narração e

música sentimental do filme – e talvez por conta de sua divulgação ao estilo da Disney nos

Estados Unidos, onde o filme foi apresentado como o filme familiar do verão”.

Figura 14: Fotograma de cena ilustrando temática ‘familiar’ em A Marcha dos Pinguins.

Dentro do filme, os elementos negativos são exteriores à família. As cenas de conflito

ocorrem pela introdução de entidades que viriam a destruir o laço monogâmico e reprodutivo,

principalmente pela ameaça ao filhote. É o caso dos momentos quando o inverno se torna

mais rigoroso, uma tempestade vem ou quando um predador ataca (ver Figura 15) – apesar

dos pinguins serem predadores de diversas espécies marinhas, o vilanismo da montagem cabe

apenas aos que os atacam. Há, então, uma estrutura bastante visível de costura ficcional e

cultural das vidas dos pinguins-imperadores.

As regras internas dessa diegese são quebradas apenas nos créditos finais do filme.

Quando a jornada dos pinguins completa seu ciclo – como seres “do mar”, os filhotes de

pinguim vão ao encontro do oceano de onde saíram seus pais no início de tudo – e os nomes

da equipe começam a aparecer, imagens das filmagens começam a ser expostas ao espectador

(ver Figura 16). De certa forma, com a visão humanos trabalhando com câmeras e vestidos

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com roupas de cor laranja industrialmente projetadas para suportar a temperatura do local, a

tensão entre a mística da narrativa e sua desconstrução discursiva é exposta.

Figura 15: Fotograma de cena de ataque de uma foca-leopardo a um grupo de pinguins fêmeas em A Marcha

dos Pinguins.

Figura 16: Fotograma dos créditos finais com quebra de diegese em A Marcha dos Pinguins.

A impressão de sombreamento do discurso científico de que fala Wexler (2008) parece

fazer sentido especialmente nos momentos da narração em que Freeman tece comentários a

respeito do comportamento dos animais. Se prestarmos atenção às palavras de Jacquet no

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documento de divulgação do filme, não estranha que A Marcha dos Pinguins tente

empreender uma narrativa com elementos de misticismo. Existe uma aparente hibridização,

portanto, quando o narrador fala dos motivos para a escolha do local que vai servir de berçário

para as novas crias, por exemplo – distância dos predadores que ficam à beira do mar,

existência de paredes rochosas que servirão como proteção ao vento, presença de chão de gelo

espesso para evitar que os filhotes caiam em fendas quando o verão se aproximar – e quando

há uma insistência em definições esotéricas das relações entre os animais – mães que

“apressam o passo” no retorno aos filhotes como se pressentissem que a vida deles estaria por

um fio, parceiros de procriação que se reconhecem pela “canção” da voz um do outro.

Marcações ainda mais explicitamente antropomórficas, como o próprio uso do conceito de

amor e descrições dos pinguins como seres semelhantes aos humanos (“Eles não são tão

diferentes de nós, na verdade. Eles fazem bico, eles berram, eles se pavoneiam”) também

avançam nessa direção que mistura a expectativa de certo discurso relacionado culturalmente

à educação, à informação e à ciência e o emprego de um vocabulário vago de uso alegórico.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por que olhar para os wildlife films? Ao se debruçar sobre as questões que cercam os

filmes de vida selvagem, este trabalho procurou conceber um esboço de resposta a essa

pergunta. Através de um esforço proeminentemente exploratório de pesquisa, buscou-se

demarcar aqui alguns dos interesses e oportunidades que esse tipo de produção proporciona

enquanto objeto de estudo. Alguns pontos, pudemos enxergar e discernir mais; outros

demandariam mais tempo e esforço do que dispúnhamos.

Os animais, assim como os filmes em que eles aparecem, com frequência se

apresentam a quem procura refletir sobre eles com mistério e complexidade – uma dificuldade

que, é claro, está acima de tudo no olho e no pensamento humano que em qualquer outra

parte. Essa situação se torna ainda mais complicada quando posicionada no campo das

interações entre as construções do humano e as construções do animal.

Partindo de uma detecção da importância de reconhecer esses problemas – e, mais

significativamente ainda, compreendendo a questão animal como uma questão que precisa ser

abordada com urgência e delimitação – os Human-Animal Studies empreendem uma tentativa

plural, interdisciplinar, de encarar as relações entre humanos e animais com a gravidade que

elas pedem. Reunindo uma tradição de pensamento heterogênea e uma perspectiva voltada

para as mais diversas questões, o campo, mesmo que recente, pode servir de base para vários

estudos sobre questões antes negligenciadas de certa forma.

Esses estudos podem avançar, portanto, por investigações tão amplas quanto a própria

presença e as relações dos animais com a vida humana. De pronto, há uma imensa área a ser

coberta no que diz respeito à ação do humano e a forma como os animais são considerados

moralmente. Isso se estende a situações tão distintas quanto a medicina e a indústria

cinematográfica; abrange proporções tão díspares quanto uma lei de alcance local e uma

estrutura global de produção de alimentos.

Além desse plano, existem as questões que, sem deixar de dialogar com a ação,

habitam uma esfera muito mais subjetiva da relação humano-animal e dos humanos entre si

quando o animal não-humano assume um papel de mediação. As apropriações, as imagens, as

representações e tantas outras formas de interação simbólica e cultural que dependem do

elemento animal, em sua capacidade de produzir tanto aberturas quanto agenciamentos de

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sentidos, se constituem numa parte tão expressiva da vida humana que não poderiam ser

consideradas como nada menos que uma parte da nossa própria experiência. Tratam-se de

fenômenos, assim, que desenham processos de multiplicidade que desafiam os próprios

limites das categorias do ‘humano’ e do ‘animal não-humano’. Se desaparecem os animais do

mundo, como sinaliza Berger (1980), então os recriamos, perseguimos, tentamos reposicionar

suas imagens, esses híbridos deles e de nós mesmos, em nosso cotidiano novamente.

Muitas vezes, todos esses caminhos parecem convergir em um único ambiente

específico de interação. É o caso, conforme o entendemos, dos wildlife films. Se os

documentários, enquanto gênero, já apresentam sua boa dose de tensões internas – a respeito

da autoridade do discurso, da verdade, da ficcionalidade, da construção da linguagem do

cinema –, os filmes de vida selvagem acrescentam a esse caldo ingredientes ainda mais

encorpados pelas tensões presentes nas tentativas de compreensão do animal, especialmente o

chamado animal ‘selvagem’, e de sua representação.

Essas disputas envolvem, conforme foi discutido, uma miríade de problemáticas

ligadas, por exemplo, ao colonialismo, ao antropocentrismo, à ciência e à cientificidade, a

uma série de transferências culturais conectadas aos ambientes dessas representações, a

percepções da natureza, à conservação. Nesse sentido, os filmes Migração Alada e A Marcha

dos Pinguins são repositórios ricos desses elementos que podem nos ajudar a compreender a

quantidade e a qualidade de questões que esses filmes podem levantar.

Apesar das considerações realizadas, no entanto, nem aquilo que exploramos e nem

mesmo o que esses dois títulos ofertam são capazes de esgotar as possibilidades de análise e

crítica presentes nos filmes de vida selvagem. Por conta disso, mas sem a pretensão ainda de

atingir esse esgotamento, propomos algumas direções possíveis para estudos futuros. São

elas:

- O conservacionismo faz parte, de forma implícita ou explícita, do arcabouço

atual de elementos discursivos dos wildlife films. Quais são as diferenças possíveis de

serem percebidas entre a forma como esse discurso ocorre em wildlife films e em

filmes dedicados explicitamente ao argumento da proteção animal como The Cove

(2009) ou Blackfish (2013)? De que maneiras o público perceberia essas abordagens e

de que maneira esses formatos adentram o debate público sobre o assunto?

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- Qual a medida do agenciamento dos animais na produção dos wildlife films?

Até que ponto a forma, a percepção, o comportamento das espécies influi nas escolhas

de ‘figuração’ nos documentários? Como esses agenciamentos dialogam com os

critérios, linguagens e maneirismos dos filmes de vida selvagem?

- Se a fauna africana, por exemplo, serviu de vetor e metáfora para uma

construção desumanizada dos povos daquele continente na mídia (CHRIS, 2006), que

processos ocorrem no caso da fauna e das percepções do Brasil, interna e

externamente?

- Qual o estado, aliás, da produção e do consumo de conteúdo wildlife no País?

- Sendo recorrente a relação feita ente wildlife films e ciência, e verificada a

relação histórica dos meios fotográficos e fílmicos com os campos da biologia e da

etologia, qual a percepção atual dos profissionais e estudantes da área a respeito desses

documentários? Como o filme e a fotografia são utilizados profissionalmente na

pesquisa e na educação dessa área, se é que existe esse uso de fato?

- Poderia um estudo similar ser feito levando em consideração o campo da

Antropologia?

- No que concerne mais especificamente à produção atual de wildlife films para

além dos títulos que foram citados e estudados aqui, vemos um retorno acentuado da

Disney, através da recém criada Disneynature, na produção de documentários de vida

animal de circulação internacional, com altos retornos de bilheteria (ver anexo – os

wildlife films da Disney são os distribuídos pela sigla BV, de Buena Vista

International). Qual a significação desse processo para a o gênero, tendo-se em conta

sua formação e o papel das True-Life Adventures nele? Que leituras podem ser feitas

dos filmes e dos discursos que circulam sobre eles?

As indagações possíveis são inúmeras, e muito pode ser derivado desses caminhos

apontados. Tomando emprestadas as palavras de Lévi-Strauss (2007), verificamos que, assim

como nossa relação com o animal bom para pensar cria toda uma sorte de relações simbólicas

com os animais não-humanos, os novos pontos de vista que vêm se desenvolvendo no âmbito

da pesquisa nos dão a oportunidade de rever essas interações com olhares de descoberta. Para

essa ocasião, escolhemos os wildlife films, mas quantos produtos de comunicação e mídia –

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revistas especializadas sobre animais de estimação, animações, memes, todo um uso

publicitário específico – não merecem uma atenção similar? Ainda há, assim, muito a ser

explorado, e mesmo contribuições que empreendessem um trajeto similar ao deste estudo

poderiam encontrar facetas do problema que não foram expostas.

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APÊNDICE – Filmes Citados (em Ordem Cronológica)

Electrocuting an Elephant (1903), Thomas Edison, Estados Unidos, 2’28’’.

Hunting Big Game in Africa (1909), William Selig, Estados Unidos, duração não

especificada.

Cherry Kearton's Roosevelt in Africa (1910), Estados Unidos, duração não especificada.

Nanook, o Esquimó (1922), Roberty Flaherty, Estados Unidos, 50’.

Secrets of Nature (1922-1933), Série, Mary Field e Harry Bruce Woolffe, Reino Unido,

duração não especificada.

O Homem da Câmera (1929), Dziga Vertov, Rússia, 68’.

Africa Speaks (1931), Paul Hoefler e Walter Futter, Estados Unidos, 75’.

The Private Life of the Gannets (1934), Julian Huxley, Reino Unido, 10’.

Pinóquio (1940), Hamilton Luske, Ben Sharpsteen, estados Unidos, 88'.

Fantasia (1940), múltiplos diretores, Ben Sharpsteen (produção), Estados Unidos, 120’.

Dumbo (1941), Ben Sharpsteen, Estados Unidos, 64’.

Bambi (1942), David Hand, Estados Unidos, 69’.

Seal Island (1948), James Algar, Estados Unidos, 45’.

Beaver Valley (1950), James Algar, Estados Unidos, 32’.

The Living Desert (1953), James Algar, Estados Unidos, 45’.

The Vanishing Prairie (1954), James Algar, Estados Unidos, 75’.

Perri (1957), N. Paul Kenworth, Jr., e Ralph Wright, Estados Unidos, 75’.

Jungle Cat (1960), James Algar, Estados Unidos, 70’.

Koyaanisqatsi: Life Out of Balance (1982), Godfrey Reggio, Estados Unidos, 87’.

Nature (1982), Série, Reino Unido, duração não especificada.

A Vida Secreta das Plantas (1995), David Attenborough, 300’.

Microcosmos: Le Peuple de l'Herbe (1996), Claude Nuridsany e Marie Pérrenou, França,

80’.

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103

Matrix (1999), Lana e Andy Wachowski, Estados Unidos, 150’.

Santo Forte (1999), Eduardo Coutinho, Brasil, 80’.

Migração Alada (2001), Jacques Perrin, França, 85’.

Blue Planet (2001), Séria da BBC, Reino Unido, 676’.

Edifício Master (2002), Eduardo Coutinho. Brasil, 110’.

Winged Migration Making Of (2002), Olli Barbé e Catharine Mauchain, França, 52’.

A Marcha dos Pinguins (2005), Luc Jacquet, França, 80’.

The Cove (2009), Louie Psihoyos, Estados Unidos, 87’.

Leviathan (2012), Lucien Castaing-Taylor e Vèréna Paravel, Estados Unidos, 98’.

O Ato de Matar (2012), Joshua Oppenheimer e Christine Cynn. Noruega, Dinamarca, Reino

Unido, 115’.

Blackfish (2013), Gabriela Cowperthwaite, Estados Unidos, 83’.

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ANEXO – TABELA DOS DOCUMENTÁRIOS DE MAIOR BILHETERIA NOS

ESTADOS UNIDOS (DE 1982 ATÉ 26/05/2014)78

# Título Bilheteria total (USD) Estúdio Lançamento

1 Fahrenheit 9/11 119.194.771 Lions 23/06/2004

2 March of the Penguins 77.437.223 WIP 24/06/2005

3 Justin Bieber: Never Say Never 73.013.910 Par. 11/02/2011

4 2016 Obama's America 33.449.086 RM 13/07/2012

5 Earth (2009) 32.011.576 BV 22/04/2009

6 Chimpanzee 28.972.764 BV 20/04/2012

7 One Direction: This is Us 28.873.374 TriS 30/08/2013

8 Katy Perry: Part of Me 25.326.071 Par. 07/05/2012

9 Sicko 24.540.079 LGF 22/06/2007

10 An Inconvenient Truth 24.146.161 ParC 24/05/2006

11 Bowling for Columbine 21.576.018 UA 11/10/2002

12 Oceans 19.422.319 BV 22/04/2010

13 Bears 17.047.651 BV 18/04/2014

14 African Cats 15.428.747 BV 22/04/2011

15 Madonna: Truth or Dare 15.012.935 Mira. 10/05/1991

16 Capitalism: A Love Story 14.363.397 Over. 23/07/2009

17 Religulous 13.011.160 LGF 01/10/2008

18 Winged Migration 11.689.053 SPC 18/04/2003

19 Super Size Me 11.536.423 IDP 07/05/2004

20 Mad Hot Ballroom 8.117.961 ParC 13/05/2005

78

Adaptado de dados do Box Office Mojo. Títulos dos wildlife films em negrito. A data de lançamento se refere

aos Estados Unidos. Fonte disponível em: <http://www.boxofficemojo.com/genres/chart/?id=documentary.htm>.

Acesso em: 26 de maio de 2014. De acordo com a fonte, documentários foram compreendidos “como um

subgênero da Não-Ficção”. Além disso, “[filmes de] Grande formato (ex. Everest), concerto (música, ex.

Woodstock, e comédao, ex. Raw), compilação (ex. That’s Entertainment) e reality TV (ex. Jackass) foram

omitidos. Híbridos (ex. Never Say Never) estão inclusos”.