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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO REA DE CONCENTRAO EM FUNDAMENTOS DA EDUCAO
JANANA RIBEIRO DE REZENDE
OS SENTIDOS DA FORMAO EM PEDAGOGIA DA TERRA: O CASO DAS MILITANTES DO MST NO ESTADO DE SO PAULO
SO CARLOS
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO REA DE CONCENTRAO EM FUNDAMENTOS DA EDUCAO
JANANA RIBEIRO DE REZENDE
OS SENTIDOS DA FORMAO EM PEDAGOGIA DA TERRA: O CASO DAS MILITANTES DO MST NO ESTADO DE SO PAULO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, na rea de Concentrao de Fundamentos da Educao, como requisito obteno do ttulo de mestre em Educao. Orientao Prof. Dr. Luiz Bezerra Neto
SO CARLOS
2010
Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria da UFSCar
R467sf
Rezende, Janana Ribeiro de. Os sentidos da formao em Pedagogia da Terra : o caso das militantes do MST no estado de So Paulo / Janana Ribeiro de Rezende. -- So Carlos : UFSCar, 2010. 117 f. Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2010. 1. Educao rural. 2. Educao do campo. 3. Pedagogia da terra. 4. Educao - movimentos sociais. I. Ttulo. CDD: 370.19346 (20a)
BANCA EXAMI ADORA
Prof. Dr. Luiz Bezerra Neto
Prof' Dr Maria Clara di Pierro
Prof" Dr" Rosemeire Aparecida Scopinho
Prof' Dr" Kt ia Regina Moreno Caiado
Dedico esse trabalho s educadoras Sem Terra
que assumem de forma corajosa a luta por uma Educao do Campo
e ao Yuri,
um Sem Terrinha cheio de luz...
Ns todas
Pedro Tierra
Ns somos os sangues convocados dos rios que nutrem os continentes. Ns somos o ventre que pare os filhos dos homens e sua ferocidade.
Ns somos moldadas em barro e fulgor, a matria da vida. Ns somos quem perdeu os filhos com grito agudo devorado pela sombra do
silncio. Ns somos aquelas que vigiam os rios da insnia.
Ns somos as mes de cobre e cinza dos povos indgenas exterminados, sobreviventes.
Ns somos quem palmilha o p da Amrica buscando fantasmas e s encontramos ossos.
Ns somos o grito que golpeia as janelas fechadas dos palcios. Ns somos a mo que toca o manto da justia que sempre nos escapa como
miragem. Com que nome batizamos nossa angstia?
Pureza, Izabel, Marta, Maria, Margarida, Roseli, Ftima, Adelaide...
Carregamos pedras como penitentes e aprendemos com os olhos que as nascentes da dor vertem rios de lgrimas: claras cordas de cristal e corte.
Chegamos de todas as areias, de todas as caatingas, de todas as guas para tecer no dorso dos ventos o clamor por justia.
No somos apenas mulheres que choram. Somos fecundas. Somos mulheres que vo parir a vida, quando a morte vos alcanar.
Ns somos a multiplicao das lutas como a Terra multiplica o cereal plantado. Somos o plantio e colheita. Somos a raiz da esperana.
AGRADECIMENTOS
Dizem que o ato de fazer pesquisa uma ao solitria. No entanto, este trabalho
resultado da combinao de esforos de vrias pessoas, que me ajudaram direta ou
indiretamente a me embrenhar nesse mundo misterioso e conturbado do fazer cincia. Em
primeiro lugar, agradeo a meus pais, Engracia e Jos, por cultivarem em mim uma
inquietante curiosidade que me leva a tentar entender como as coisas funcionam, de me
perguntarem por que so assim e tentarem fazer que algumas coisas no sejam sempre assim.
Meu muito obrigada aos meus irmos, Renata e Andr, que sempre me apoiaram, e ainda
apoiam, nessa empreitada. Estendo meus agradecimentos a toda minha famlia,
principalmente a minha av Cida, a Vivian e o Samuel, por se mostrarem compreensivos em
relao as minhas ausncias, devido s diversas tarefas que tinha que realizar.
Aproveito a oportunidade para agradecer ao Fernando, que com todo afeto e pacincia,
que lhe caracterstica, nunca se negou a me acolher e me acalentar nos momentos de
dificuldades, viagens, irritaes, alegrias, contradies e conquistas desencadeadas por essa
pesquisa. No posso esquecer-me de destacar a forma brilhante com que ele desempenhou a
funo de meu tcnico de informtica e tcnico de som durante esse perodo.
Obrigada aos inmeros amigos e amigas que sempre me estenderam a mo, ouviram
minhas lamentaes e descobertas, entenderam minha faltas e comemoraram minha presena,
em especial a Jlia, que teve de me ouvir bastante...
Agradeo ao MST, ao setor estadual de educao e s pedagogas da terra do estado de
So Paulo, por no se negarem a me receber e por me ensinarem muito, tanto sobre o tema
por mim estudado, quanto em relao luta pela terra, pela educao do campo, pela
sobrevivncia e pela transformao da sociedade empreendida por esses sujeitos. Obrigada
turma de Pedagogia da Terra da UFSCar, Aninha, Enedina e Paula, que me aceitaram junto a
sua coordenao e me permitiram entender a lgica desse curso, alm de me proporcionarem
um crescimento pessoal indescritvel.
Por fim, agradeo aos educadores e educadoras que participaram da minha trajetria
de vida. Destaco a Rose, que ousou investir na minha formao enquanto pesquisadora,
psicloga e ser humano. Obrigada, Bezerra, pela orientao e a Maria Clara, pelo olhar atento
e colaborativo, com que analisou essa pesquisa, alm da Ktia, que se empenhou em
contribuir com o desenvolvimento deste e de outros trabalhos. Por fim, agradeo ao
PPGE/UFSCar e a CAPES, por terem me concedido a bolsa de mestrado.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar os sentidos atribudos formao e os usos feitos do conhecimento adquirido nos cursos de Pedagogia da Terra, pelas profissionais formadas que atuam ou atuaram no MST do estado de So Paulo. Para tanto, foi necessrio diagnosticar quantas pessoas se formaram nesses cursos, que se encaixam nesta condio, bem como levantar informaes a respeito da trajetria de vida destas pedagogas, a fim de identificar suas origens sociais, escolarizao, trajetrias profissionais, formas de insero no MST, informaes acerca do curso de Pedagogia, atuao posterior a formao e expectativas para o futuro. Para a realizao deste estudo, lanamos mo de pesquisa bibliogrfica e documental, entrevistas semi e no estruturadas. A anlise das informaes foi realizada atravs do procedimento de triangulao das informaes e validao consensual. Encontramos onze mulheres que se graduaram em cursos de Pedagogia da Terra e que atuam ou atuaram em So Paulo, que apresentaram trajetrias de vida bem diversas. Embora encontremos pontos em comum, visto que todas as participantes tm origens pobres, muitas delas migraram diversas vezes em busca de melhores condies de vida, e empregaram-se em servios precrios, que exigiam pouca qualificao tcnica. O compromisso com a luta pela terra e a educao do campo um elemento presente em todas as histrias, porm as motivaes que levaram as participantes ao MST so bem diferentes. Elas encontraram na militncia do movimento social uma forma de construir referncias de vida e sociabilidade. As participantes cursaram os cursos de Pedagogia da Terra na Uiju, Unemat, Iterra/UERGS e Unioeste. Todas as entrevistadas avaliaram positivamente a educao oferecida nos cursos, tanto nos aspectos polticos, quanto pedaggicos. Estas profissionais atuam nas regionais da Grande So Paulo, Promisso, Iaras, Pontal do Paranapanema e na Escola Nacional Florestan Fernandes, duas delas atuam fora do estado, uma na Paraba e outra em Moambique, ambas desenvolvendo atividades do Movimento. Apenas uma se afastou da militncia recentemente, embora tenha contribudo com o setor de educao durante cerca de dez anos. As outras contribuem com o setor de educao regional, estadual ou nacional, desenvolvendo diversas funes, dentre elas, destaca-se o acompanhamento dos cursos formais do MST, tarefa assumida pela maioria das entrevistadas. Em So Paulo, nenhuma das pedagogas da terra formadas, assumiu a docncia de escolas, devido s dificuldades de insero nestas instituies e prioridade na atuao poltica demandada pelo MST do estado. Em relao s perspectivas para o futuro, todas as entrevistadas apresentaram expectativas otimistas, visando articulao de projetos que abrangiam todas as dimenses de suas vidas, tais como: mulher, me, assentada e militante. A anlise das informaes possibilitou identificar que os sentidos atribudos formao so: aumento da escolaridade, boa qualidade da formao, formao pedaggica e poltica, valorizao da militncia, qualificao da atuao e relao entre formao e atuao. Em suma, conclumos que os usos e sentidos atribudos formao em Pedagogia da Terra pelas militantes referem-se a manter a contribuio no MST. Dessa forma, entendemos que a inteno do Movimento ao indic-las para o curso era a de formao de quadros.
Palavras-chaves: Educao do Campo; Pedagogia da Terra; Movimentos Sociais e Educao
ABSTRACT
This research aims to analyze the meanings attributed to formation and knowledge uses acquired through the Land Pedagogy, by professionals who have worked with the MST (landless movement) in Sao Paulo State. For that, it was necessary to diagnose how many people graduated in this course, who fits in this working context, as well as gathering some information about their lives in order to identify their social origins, schooling, professional course, participation conditions in MST, information about the Pedagogy Course they did, performance after graduation and their expectations for the future. To reach this study, we have researched through literature and documents and performed semi-structured and structured interviews with participants. For the analysis, we used data triangulation and consensual validation. We have found eleven women who graduated in Education for Rural Communities University Course Program and who have worked in Sao Paulo. Although there were common points among them, for all come from poor backgrounds, there were also diverse life stories. Many of them migrated several times searching for better living conditions and were employed in unskilled jobs which required no technical qualifications. The commitment with the struggle for land and Land Education is the common element present in all stories, but the motivations which have led the participants to MST are quite different. They have found through their social movement militancy a way to build references of life and sociability. The participants attended the Land Pedagogy course at Uijui, Unemat, Iterra/UERGS and Unioeste and all interviews positively accessed the education level offered in it, in both political and educational aspects. Some of these professionals work in the Metropolitan Sao Paulo region, Promisso, Iaras Pontal and at Escola Nacional Florestan Fernandes. Among the others, two of them work outside So Paulo State, one of them in Paraba State e the other one in Mozambique, all of them developing activities for the MST. Among the participants, only one of them gave up militancy recently, although she has contributed to the educational department over almost ten years. The other participants still contribute with the regional, state or national educational department. They develop a variety of functions, taking more attention to the formal MST courses which are assumed by most of them. In Sao Paulo, none of them took the school teaching task because of the difficulties of participation in these institutions and their personal political activity priority demanded by the MST in the state. Concerning the outlook for the future, all of them had an optimistic forecast seeking for projects linking all aspects of their personal lives, as women, mothers, rural settled and militants. As a result of this study, the data analysis identified that the meanings attributed to graduation are: increased schooling, qualified studies, pedagogical and political education, militancy appreciation, performance qualification and an established relation between formation or studies and performance or practice. Summarizing, we conclude that the uses and meanings attributed to Land Pedagogy graduation by our participants militants at MST refer to the maintenance of their contribution to this social movement. Therefore, we believe that the intention of the MST when leading them for the course was promoting the training of staff.
Keywords: Education for Rural Communities, Land Pedagogy, Social Movements and Education
SUMRIO
INTRODUO.........................................................................................................................9
1. PANORAMA EDUCACIONAL DA POPULAO RURAL BRASILEIRA: POLTICAS, RESULTADOS E LUTAS... ..........................................................................16
2. O PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAO NA REFORMA AGRRIA PRONERA...............................................................................................................................37
2.1. O Pronera nas universidades ..........................................................................................44
2.1.1. A Pedagogia da Terra...................................................................................................49
3. AS PEDAGOGAS DA TERRA DO ESTADO DE SO PAULO..................................54
3.1. Origens e trajetrias anteriores formao..................................................................72
3.2. Os cursos de Pedagogia da Terra ...................................................................................78
3.3. Atuao posterior e sentidos atribudos formao em Pedagogia da Terra ...........90
CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................107
REFERNCIAS....................................................................................................................111
APNDICE............................................................................................................................116
9
INTRODUO
O presente trabalho consiste em uma dissertao, requisito para a aquisio do grau de
Mestre do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de So Carlos
PPGE/UFSCar, na rea de Concentrao de Fundamentos da Educao.
A pesquisa tem como objetivo analisar os sentidos da formao em Pedagogia da
Terra atribudos pelas militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST,
que se formaram nesse curso e atuam ou atuaram no estado de So Paulo, bem como
apreender os usos que tais profissionais fazem da qualificao adquirida. Alm disso,
buscamos analisar tais aspectos, luz do conhecimento das trajetrias de vida das
participantes antes, durante e depois da graduao, a fim de entender as repercusses dos
cursos de Pedagogia da Terra na vida das pedagogas formadas.
Para tanto, o texto est organizado da seguinte forma: no primeiro captulo, Panorama
educacional da populao rural brasileira: polticas, consequncias e lutas, consta uma
contextualizao do tema da pesquisa, visando contemplar os conceitos e categorias que
basearam o desenvolvimento do estudo, bem como apresentar os objetivos e a metodologia
utilizada na pesquisa. No Captulo 2, intitulado O Programa Nacional de Educao na
Reforma Agrria - Pronera, tratamos da apresentao histrica do programa, de seus
objetivos, enfocando os projetos de Ensino Superior e, principalmente, a Pedagogia da Terra,
de modo a estabelecer uma leitura crtica das suas potencialidades e limites.
No Captulo 3, As pedagogas da terra do estado de So Paulo, centramos a discusso
na apresentao das pedagogas da terra que atuam ou atuaram no MST do estado de So
Paulo, buscando contemplar as origens e trajetrias de vida dessas mulheres, seu processo de
escolarizao, suas trajetrias profissionais, as formas de insero no MST, as regies em que
atuam, as atividades que esto desenvolvendo depois de formadas e suas expectativas em
relao ao futuro.
Apresentaremos, tambm, brevemente o perfil das participantes da pesquisa, visando
no identific-las, usamos nomes fictcios para nos referir s participantes. Assim,
pretendemos apresentar brevemente as trajetrias de Alzira, Mercedes, Carolina, Joana,
Maria, Ana, Gabriela, Betnia e Hortncia, ao longo da dissertao. A partir dos elementos
presentes nas trajetrias de vida das entrevistadas, dos pontos em comum e das diferenas,
pretendemos identificar os sentidos atribudos formao em Pedagogia da Terra e os usos
feitos pelas profissionais dos recursos decorrentes dessa formao.
10
Finalizaremos o trabalho com algumas consideraes a respeito das possveis
concluses e desdobramentos decorrentes do desenvolvimento da pesquisa.
A fim de iniciarmos as discusses desta pesquisa, importante afirmar que
partilhamos da compreenso de Leite, Heredia, Medeiros, Palmeira e Cintro (2004), que
asseguram que pesquisas sobre reforma agrria podem assumir dois posicionamentos: a favor
ou contra a realizao dessa poltica, visto que a produo de conhecimentos nesta rea no
Brasil est intrinsecamente articulada com uma abordagem ideolgica do tema. Nesse sentido,
enquanto pesquisadora de assuntos referentes reforma agrria, sinto a necessidade de me
posicionar abertamente a favor da sua realizao, pois acredito que essa medida
imprescindvel para viabilizar a desconcentrao da propriedade fundiria no pas, de modo a
distribuir renda e criar meios de sobrevivncia para muitos brasileiros.
Os dados do Censo Agropecurio de 2006, realizado pelo IBGE (2009), comprovam
que os ndices de concentrao fundiria de 1985, 1995 e 2006 mantiveram-se praticamente
iguais. No ano de 2006, as propriedades com mais de 1.000 hectares representavam 43% da
rea total destinada a estabelecimentos agropecurios, enquanto as propriedades com menos
de 10 hectares representavam somente 2,7% da rea total. E ainda, 47% dos estabelecimentos
agropecurios apresentavam menos de 10 hectares e 1% das propriedades possuam mais de
1.000 hectares. Assim sendo, verificamos que a concentrao de terras ainda caracteriza os
campos brasileiros, enquanto existem muitos trabalhadores que demandam o acesso a terra
para produzir e se reproduzir.
Ainda nesse sentido, as medidas governamentais que resultam na criao de
assentamentos rurais, muitas vezes, apresentam-se de forma precria e limitada (LEITE, et.
al., 2004). Fernandes (1999) afirma que nunca foi praticado um programa de reforma agrria
baseado em uma poltica de reestruturao fundiria efetiva e abrangente, uma vez que os
projetos de assentamentos costumam ser restritos s reas de conflitos fundirios e no so
acompanhados por uma poltica agrcola, infra-estrutura e servios sociais necessrios a
viabilizao de tais projetos.
Acrescida ao reconhecimento dessa realidade, apresenta-se a interpretao de que h a
necessidade de polticas pblicas que viabilizem os assentamentos, criando uma estrutura
compatvel com a produo agropecuria, possibilitando o acesso a crditos agrcolas e
oferecendo servios, como sade e educao (MOLINA, 2006). Esta uma das dimenses da
luta empreendida pelos movimentos sociais e sindicais do campo (CALDART, 2004), na
medida em que buscam se reconhecer e serem reconhecidos como sujeitos de direitos
(MOLINA, 2003)
11
No que tange os aspectos educacionais, identificamos que a educao oferecida
populao rural, em especial aos beneficirios da reforma agrria no Brasil, est aqum do
desejvel, visto que no est plenamente garantida nesse meio (BRASIL, 2005). Em
decorrncia deste panorama, os movimentos sociais do campo passaram a reivindicar polticas
educativas especficas para a sua realidade. nesse contexto que se fortalece a luta pela
educao do campo.
Apesar de recente, as produes tericas a respeito desta concepo de educao
apresentam convergncias e dissensos. Uma reviso na literatura permitiu identificar que a
produo cientfica referente educao do campo, embora ampla, ainda apresenta grandes
lacunas e desacordos, no se constituindo como prioridade nas pesquisas educacionais
(ARROYO, CALDART & MOLINA, 2005; MOLINA, 2003, 2006; SOUZA, 2007). Alm
disso, no que se refere ao Pronera, ainda no existem muitas produes a respeito.
Destacamos o estudo realizado por Souza (2007), que analisou as pesquisas de ps-
graduao na rea de Educao realizadas sobre o MST. A autora listou a existncia de uma
srie de teses e dissertaes que abordam diversas dimenses da prtica educativa do
Movimento. Entretanto, no levantamento realizado por esta, as pesquisas referentes aos cursos
de Pedagogia da Terra no so muitas, o que demonstra que esta rea ainda precisa de uma
explorao com mais afinco. A maioria dos trabalhos encontrados sobre o tema costuma
relatar as experincias vivenciadas nos cursos, enfatizando o papel dos movimentos sociais,
bem como a interpretao dos educandos envolvidos no processo, reforando a considerao
de Andrade e Di Pierro (2003), que valorizam o protagonismo dos movimentos sociais na
definio dos projetos do Pronera.
Como j existem vrias turmas graduadas e devido aos mais de dez anos de existncia
de cursos de Pedagogia da Terra, avaliamos que a realizao de um estudo que aponte os
possveis sentidos e usos decorrentes da formao em Pedagogia da Terra atribudos pelas
militantes do MST paulista j formadas, possa contribuir, ainda que timidamente, para o
desenvolvimento desta rea de pesquisa, uma vez que o tema apresenta relevncia acadmica
e social.
Nesse sentido, a presente pesquisa buscou atingir os seguintes objetivos:
Objetivos gerais:
I) Analisar os sentidos da formao em Pedagogia da Terra atribudos pelas pessoas que
concluram o curso e que atuam ou atuaram no MST do estado de So Paulo.
12
II) Estudar o uso feito da instrumentao obtida no curso, a partir do conhecimento das
atividades desenvolvidas pelas pessoas formadas antes e depois do curso, para verificar se
houve alteraes na atuao dessas profissionais e, caso havido, identificar quais foram.
Objetivos especficos:
i) Identificar as pessoas que se formaram em Pedagogia da Terra que atuam ou atuaram no
MST do estado de So Paulo.
ii) Partir das trajetrias de vida das participantes, em busca de elementos para subsidiar a
compreenso dos sentidos e usos da formao. Para tanto, as trajetrias sero pautadas nas
seguintes informaes: origem social; escolarizao; trajetrias profissionais; formas de
insero no MST; informaes sobre o curso de graduao realizado; atuao posterior a
formao em Pedagogia, projetos e expectativas para o futuro das pessoas entrevistadas.
iii) Analisar a atuao das pessoas formadas, de modo a entender os usos feitos dos recursos
oferecidos na formao em Pedagogia da Terra.
iv) Apreender os sentidos da formao que as participantes atribuem ao curso e o uso que
fazem dessa formao, a partir dos seus relatos.
A opo por avaliar como este processo se d no MST resultado de uma
aproximao anterior com o Movimento, devido realizao de estudos de iniciao
cientfica. Nesse perodo, uma militante do setor de educao do MST afirmou que uma das
conquistas do setor estadual foi garantir a qualificao superior de seus integrantes
(REZENDE, SCOPINHO, 2007). Essa constatao instigou o interesse pelo tema estudado,
de modo a verificar qual o uso feito pelas profissionais da qualificao oferecida. Alm
disso, a participao nas discusses sobre a criao de um curso de Pedagogia da Terra, em
parceria com a UFSCar, permitiu o estabelecimento de uma relao entre a pesquisadora e
militantes do setor estadual de educao do MST, o que facilitou o desenvolvimento da
pesquisa.
A escolha de estudar as repercusses da formao em Pedagogia da Terra no estado de
So Paulo decorrente da ausncia de pesquisas que se centram nesse foco. Dessa maneira,
consideramos relevante compreender como as pessoas que se formaram nesse curso, como
atuam e quais so as atribuies de sentido que elas fazem dessa formao, pois tais
informaes podem subsidiar o entendimento e a justificativa da criao de cursos de
Pedagogia da Terra em So Paulo. Tal anlise trouxe alguns indcios sobre as repercusses
13
dos cursos de Pedagogia da Terra no estado, tanto individual das profissionais formadas,
quanto para a organizao que indica e investe nessa formao.
Metodologia
Para tentar atingir tais escopos, assumimos como ponto de partida o particular para
chegar ao geral, ou seja, tomamos como referncia inicial as histrias individuais das
pedagogas da terra, para buscar compreender os sentidos e os usos que as profissionais
formadas fazem desta capacitao. Assim, conhecemos os significados da formao para tais
militantes, com o objetivo de entendermos o sentido que ela assume para o MST e sua
organizao social.
Almejamos garantir uma abordagem historicista da realidade, compreendendo que os
fatos atuais devem ser entendidos a partir da sua relao com os acontecimentos que os
antecederam. Assim, procuramos compreender o processo de constituio histrica do
campesinato brasileiro e do MST, a conjuntura poltica e educacional pertinente origem e
desenvolvimento do Pronera, e ao debate sobre a educao do campo, que convergiram para o
desenvolvimento dos cursos de Pedagogia da Terra e para a formao das participantes da
pesquisa. De acordo com Vendramini (2007b, p. 1400):
Esta forma de apreenso histrica sugere a necessidade de contextualizao dos movimentos sociais atuais, de no tom-los como experincias em si, desconectadas do conjunto social, de apreender seu sentido, tendo em vista as tradies passadas, de identificar suas origens sociais e histricas, para no incorrermos no duplo erro de subestim-los ou supervaloriz-los.
Alm disso, procuramos relacionar tais elementos histricos, polticos e econmicos
com os interesses do Estado, de governos, movimentos sociais e universidades ao assumirem
o compromisso de educar assentados. Tais informaes trouxeram subsdios para analisar
quais so as motivaes desses diferentes agentes, em especial do MST, que os levam a
investir em uma parceria para garantir a formao dos assentados. Do mesmo modo,
propusemo-nos a colaborar com as pesquisas dessa rea, a fim de acrescentar algumas
informaes em torno do debate que visa responder a seguinte questo: os resultados do
Pronera contribuem para a formao de sujeitos que combatem a ordem social vigente e
tornem o acesso a educao mais democrtico para a classe trabalhadora? Ou a formao se
d no sentido de cooptar e minar aes que buscam conquistas benficas para esta classe
social?
Partimos da compreenso de que os projetos de cursos do Pronera ocorrem a partir de
uma relao dialtica entre interesses distintos de todos os agentes envolvidos na definio
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desses projetos. Os representantes das universidades, do Instituto Nacional de Colonizao e
Reforma Agrria INCRA, do governo e de movimentos sociais do campo tm objetivos
comuns e distintos entre si. Esta relao resulta em consensos e dissensos ao longo do
processo de criao, elaborao, acompanhamento e avaliao desses projetos (MOLINA,
2003).
Para a realizao dessa pesquisa, lanamos mo dos seguintes procedimentos
metodolgicos:
a) Anlise documental, resultante do estudo de documentos pertinentes ao desenvolvimento
da pesquisa. Baseamo-nos em buscas nas bases de dados que se encontra na pgina da internet
do INCRA/ Pronera, do MST e em outros stios que continham informaes relevantes. O
acesso s fontes primrias permitiu estabelecer uma relao entre o que prescrito a acontecer
e o que realmente praticado.
b) Pesquisa bibliogrfica, realizada nos acervos fsicos da Biblioteca Comunitria da
UFSCar, acervo pessoal da pesquisadora e atravs de trabalhos disponveis na internet,
especialmente, www.scielo.com.br. Esta etapa do processo de pesquisa mostrou-se
fundamental, visto que o contato com estudos anteriores e com teorias consolidadas norteou o
trabalho de campo e a anlise das informaes levantadas (WHITAKER, 2002). O
embasamento terico serviu para reunir subsdios na busca por compreender as
particularidades dos casos estudados, relacionando-as com um contexto geral e mais amplo.
c) Entrevistas semi-estruturadas e no estruturadas individuais ou coletivas, realizadas
com as pedagogas da terra que j se formaram e que atuam ou atuaram no MST do estado de
So Paulo, com militantes do setor de Educao do MST, representantes do Pronera e outras
pessoas que poderiam contribuir para a realizao deste estudo. O roteiro no qual nos
baseamos para desenvolver as entrevistas semi-estruturadas com as pedagogas formadas
encontra-se no Apndice A. Foram realizadas nove entrevistas, oito foram devidamente
gravadas e sete transcritas (WHITAKER, 2002), com autorizao das participantes. Buscamos
respeitar as entrevistadas e as construes lgicas apresentadas por elas, procurando no
intervir no processo, o que permitiu um enriquecimento do contedo e da forma como as
informaes foram expostas para a entrevistadora.
A anlise das informaes foi realizada atravs do procedimento de triangulao das
informaes e validao consensual (WHITAKER, 2002), ou seja, as informaes oriundas
http://www.scielo.com.br/
15
das diferentes fontes foram confrontadas de modo a identificar consensos e dissensos no
contedo, tendo como referncia os acmulos tericos encontrados na literatura.
Com esses procedimentos, identificamos a existncia de onze pedagogas da terra que
atuam ou atuaram no MST do estado de So Paulo. Entrevistamos nove delas e transcrevemos
sete desses encontros, visto que devido a problemas tcnicos relacionados m qualidade da
gravao de trs entrevistas, no conseguimos transcrev-las. No conseguimos entrevistar
duas pedagogas, pois uma no atuava no estado no momento de desenvolvimento da pesquisa
e no foi possvel encontrar a segunda. O perodo de realizao das entrevistas foi de
fevereiro a maio de 2009.
A identidade das participantes foi preservada, de modo que utilizamos nomes fictcios
para design-las. Os nomes atribudos s pedagogas da terra do estado de So Paulo foram:
Alzira, Mercedes, Carolina, Joana, Maria, Ana, Gabriela, Betnia, Hortncia, Ktia e Soraia,
sendo que no entrevistamos as duas ltimas. Ao longo deste trabalho, sero expostas falas
das entrevistadas transcritas, identificadas com tais pseudnimos. No Captulo 3, faremos uma
apresentao das participantes, para que possamos analisar o perfil das pedagogas da terra do
estado de So Paulo. Antes disso, consideramos relevante apresentar o contexto histrico em
que as lutas dos movimentos sociais e a discusso acerca da educao do campo se inserem,
debate que ser abordado a seguir.
16
1. PANORAMA EDUCACIONAL DA POPULAO RURAL BRASILEIRA:
POLTICAS, RESULTADOS E LUTAS...
Quem sabe a diferena principal entre o nosso sistema educacional
e o sistema burgus repousa justamente no fato de que, conosco, o coletivo infantil deve necessariamente crescer e enriquecer,
vislumbrar a sua frente um amanh melhor e lutar por ele num jubiloso esforo comum, num sonho alegre e obstinado.
Quem sabe nisso que se resume a verdadeira dialtica pedaggica.
Makarenko
Esta pesquisa parte da compreenso de que a populao rural brasileira foi
historicamente excluda de uma srie de direitos sociais, devido forma de explorao
capitalista imposta ao campo no Brasil (FERNANDES, 1981). Uma das consequncias dessa
maneira de organizao da relao campo-cidade que o acesso a bens de consumo e servios
centraliza-se no meio urbano, de modo a reforar a dependncia dos trabalhadores rurais
cidade. Martins (1983) afirma que essa relao sempre subjugou o campesinato1, mantendo-o
em condies de explorao e expropriao insustentveis.
O processo de urbanizao no Brasil, que teve incio no comeo do sculo XX,
intensificando-se massivamente nas dcadas de 1960 e 1970, tinha como motivao a
tentativa de industrializao do pas. Uma das maneiras de atrair a populao campesina para
o trabalho das fbricas foi a de concentrar o acesso aos direitos sociais e bens de consumo na
cidade, ou seja, o acesso a escolas pblicas, servio de sade, previdncia social, entre outros
foi restrito populao urbana (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2005).
Outra mudana que marcou esse perodo foi a adoo da matriz produtiva referenciada
na revoluo verde, que pretendia modernizar a agropecuria brasileira (STEDILE,
FERNANDES, 1999). Este novo paradigma desencadeou uma modernizao conservadora
no campo, visto que no alterou a estrutura fundiria e a concentrao de terras, estimulou a
disseminao do latifndio por todo pas, alm de no transformar a forma de explorao do
trabalho agrcola (OLIVEIRA, 2008). O desenvolvimento da produo agropecuria,
decorrente do aumento da mecanizao, do uso de insumos qumicos no campo, sem alterar a
forma de distribuio de terras, expulsou os camponeses, meeiros, arrendatrios, pequenos
proprietrios, entre outros, do meio rural. Tais fatores contriburam para promover um
1 Baseamos o conceito da campesinato em Martins (1983), que define campons como o expropriado da terra, que segue uma trajetria de explorao e migrao na busca por melhores condies de vida. Assumimos esta concepo apoiados nas contribuies de Bernardo Manano Fernandes (s.d.), na defesa da importncia poltica de adoo do termo campons, que resgata o histrico de luta e resistncia apresentado por essa classe, que no est presente em outros conceitos mais atuais, como o de agricultor familiar.
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agravamento da questo agrria brasileira e para aumentar a incidncia de conflitos
fundirios.
Dessa forma, o xodo rural foi intensificado e houve um enorme inchao das cidades,
que no tinham infraestrutura para receber tanta gente em to pouco tempo. Tal processo de
expulso dos camponeses da terra acirrou as desigualdades sociais brasileiras, visto que, de
um lado, no havia emprego para todo o contingente recm-chegado cidade e, de outro, o
meio rural passou a no demandar a ocupao de toda a mo de obra excedente no campo,
devido mecanizao (VENDRAMINI, 2007a). As condies para a permanncia do
trabalhador em pequenas propriedades tornaram-se cada vez mais inviveis, decorrente da
falta de polticas de incentivo e financiamento de pequenos empreendimentos agrcolas, a
escassez de assistncia tcnica que atendesse s necessidades dos pequenos agricultores, etc.
A populao trabalhadora que permaneceu no campo at hoje enfrenta muitas
dificuldades para ter acesso aos direitos sociais que lhe foram historicamente negados
(MOLINA, 2003, 2006). Florestan Fernandes (1981), afirmou que, ao longo da histria
brasileira, nota-se uma deficincia no que se refere oferta de polticas pblicas, que
garantissem servios de sade, educao, assistncia social, saneamento bsico, previdncia,
direitos trabalhistas, entre muitos outros, o que, segundo o autor, pode ser identificado como a
no efetivao de uma revoluo burguesa no Brasil.
Por outro lado, pesquisas apontam para uma melhoria nas condies de vida das
famlias assentadas, em comparao com as realidades nas quais se inseriam antes do
assentamento, visto que elas comeam a se organizar para reivindicar infraestrutura, servios
de sade, criao de escolas, coleta de lixo, etc. (LEITE, et. al. 2004; SANTOS, 2007). No
entanto, nota-se tambm que estas condies esto longe das ideais, visto que muitas das
necessidades bsicas das famlias assentadas no so atendidas2.
Em relao educao, as condies da oferta educacional no campo foram
caracterizadas por sua baixa qualidade e falta de infraestrutura. A fim de buscar reverter esse
quadro, algumas medidas educacionais foram tomadas pelo Estado ou pela sociedade civil.
Desse modo, pretendemos tecer uma sinttica apresentao dessas aes destinadas
2 De acordo com Leite, et. al.(2004), 80% dos assentamentos no apresenta rede de esgoto, sendo que 40% das reas vale-se de fossas comuns, 35% de fossas spticas e 16% dos casos despejam os dejetos diretamente no rio. As famlias assentadas geralmente coletam a gua para uso domstico e agropecurio nos rios, poos, nascentes, etc., porm, 58,3% delas consomem a gua sem nenhum tratamento (SANTOS, 2007). Os assentamentos dependem das estradas para deslocamentos cotidianos e para viabilizar a produo. Entretanto, Leite, et. al. (2004) e Santos (2007) comprovam que as condies das estradas so precrias, o que prejudica o acesso servios de sade e s escolas, bem como dificulta a comercializao dos produtos do assentamento. Alm disso, a assistncia a sade das populaes assentadas, muitas vezes, precria, no contemplando a totalidade das demandas.
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populao rural. A populao do campo no foi prioridade na definio de polticas pblicas
que atendessem s suas demandas especficas. Mesmo assim, ao longo da histria do Brasil,
percebemos que houve momentos em que a educao rural foi foco de observao de
intelectuais ou governantes. No entanto, percebemos a ao restrita dessas medidas, visto que
at hoje existe uma defasagem entre a educao rural e urbana.
Por volta da dcada de 1920, no perodo de efervescncia da Escola Nova3, fortaleceu-
se o movimento conhecido como ruralismo pedaggico, cujos principais expoentes foram Sud
Menucci e Carneiro Leo. Tal movimento, de carter notadamente nacionalista, defendia a
necessidade da criao de teorias e projetos nacionais para responderem s demandas
educacionais e atacarem o analfabetismo que assolava o pas, concentrado nas reas rurais.
Todavia, o ruralismo pedaggico mostrou-se um fracasso, devido ao equvoco de abordar a
educao como redentora, considerando que somente o acesso educao garantiria a
permanncia do trabalhador na roa. Alm disso, essas ideias iam contramo do processo de
modernizao que o pas assumiu nesse perodo histrico (BEZERRA NETO, BEZERRA,
2009; MATTOS, 2009).
Mais tarde, na dcada de 1950, houve uma mobilizao em torno dos movimentos de
educao popular e os Centros Populares de Cultura. Esse foi o contexto de disseminao do
mtodo de alfabetizao criado por Paulo Freire, destinado s populaes excludas,
principalmente ao campesinato. Deste modo, o movimento de educao popular se espalhou
pelo Brasil, alfabetizando muitos trabalhadores de todo pas, alm de envolver parcelas
distintas da sociedade civil, como Igreja, movimento estudantil, partidos polticos, sindicatos,
etc., neste processo de educao. Essa foi uma medida para tentar intervir nas altas taxas de
analfabetismo do pas. No entanto, esse movimento foi duramente reprimido no perodo da
ditadura civil-militar, em 1964, o que impediu que seus resultados fossem mais expressivos.
Tambm consideramos relevantes as poltica de cursos tcnicos em agricultura, que
inserem-se na discusso da educao dual, uma vez que para elite dirigente so criados cursos
de Ensino Superior e para a classe trabalhadora destina-se Educao Bsica pblica e, no
3 A Escola Nova foi um movimento que pretendia uma reformulao das bases organizativas da educao brasileira, propondo que o mtodo educativo tradicional herana jesutica , fosse substitudo por um centrado no aluno, que se pautasse em metodologias participativas. O escolanovismo foi amplamente propagado no Brasil e era encabeado por grandes nomes como Ansio Teixeira e Fernando Azevedo. No entanto, essa proposta nunca foi implementada completamente no sistema educacional brasileiro, por partir do vis idealista de que a educao redentora e sozinha pode transformar a sociedade (NAGLE, 1978). Apesar de suas tendncias idealistas, esse movimento possibilitou pequenos avanos, uma vez que a educao passou a ser pautada no diversos mbitos e algumas medidas foram tomadas, buscando reverter o quadro de escolaridade no Brasil, o que contribuiu para a sistematizao e reorganizao do sistema escolar brasileiro. Entretanto, a educao no sofreu grandes transformaes estruturais, visto que manteve seu carter classista.
19
mximo, os cursos tcnico-profissionalizantes. Nesse sentido, notamos que sempre houve
preocupao em garantir cursos tcnico-agrcolas, oferecidos por instituies federais,
estaduais ou municipais, que buscam capacitar tecnicamente filhos de trabalhadores rurais
para atuarem em diversas reas do setor agropecurio. No entanto, tal preocupao restringe-
se formao tcnica, visto que o acesso formao superior, para o desempenho das
profisses que exigem um nvel maior de qualificao, costuma ser limitado classe
dominante.
Alm dessas iniciativas, existem no Brasil as experincias das Casas Familiares Rurais
- CFR e as Escolas Famlia Agrcola - EFA, que chegaram ao Brasil por volta da dcada de
1960. Segundo Oliveira (2008), ambas as organizaes apresentam a mesma estrutura e
funo, sendo que a primeira denominao mais comum no Sul do pas e a segunda, tpica
do Nordeste e Esprito Santo. As instituies fornecem a formao tcnica a jovens pequenos
agricultores, baseando-se na Pedagogia da Alternncia como forma de organizar o processo
de ensino-aprendizagem, de modo a pautar a realidade vivenciada pelos educandos no
processo educativo. Outra caracterstica de tais instituies de ensino a presena da
comunidade e dos pais dos educandos no cotidiano da escola (ANDRADE, DI PIERRO,
2003). Esta experincia rende resultados at hoje, embora seus impactos sejam restritos, pois
estas escolas localizam-se em algumas regies do pas, no abrangendo todo o territrio
nacional.
A partir de 1975, deu-se incio a um processo de fechamento das escolas rurais,
isoladas, precrias e unidocentes, de modo a deslocar os estudantes e professores at escolas
maiores em regies mais centrais, realizando a nucleao das escolas rurais. A justificativa de
dar fim s escolas menores foi a de que seria possvel fornecer melhores condies de ensino
em escolas maiores, atravs da racionalizao dos recursos (VENDRAMINI, 2007a). No
entanto, segundo Andrade e Di Pierro (2003), muitos pais e educandos desaprovaram o
fechamento das escolas rurais, devido necessidade de transporte escolar, distncia das
escolas, a precariedade das condies das estradas da zona rural, bem como dificuldade de
participao e acompanhamento do cotidiano escolar pelos pais e comunidade, decorrente do
afastamento das instituies.
Mais recentemente, podemos destacar a criao do Fundo de Desenvolvimento da
Escola FUNDESCOLA, institucionalizado em 1997, durante o Governo de Fernando
Henrique Cardoso, visando implementar os projetos educacionais propostos e financiados
pelo Banco Mundial no Brasil. O FUNDESCOLA define como meta a criao de uma srie
de projetos, com a adeso dos governos municipais, estaduais e nacional, nas reas entendidas
20
como prioritrias de ateno. No caso brasileiro, tais zonas foram as regies Norte, Nordeste e
Centro-Oeste do pas (OLIVEIRA, FONSECA, TOSCHI, 2005). No bojo desse fundo, o
Programa Escola Ativa buscava contemplar a realidade das escolas rurais multisseriadas
(ANDRADE, DI PIERRO, 2003).
Este programa foi baseado em um projeto semelhante desenvolvido na Colmbia e
financiado pelo Banco Mundial. No Brasil, o programa foi criado em 1996, implementado em
1997, pelo Projeto Nordeste e assumido pelo FUNDESCOLA, em 1999. Em 2007, o
programa passa a ser vinculado Coordenao Geral de Educao do Campo, da Secretaria
de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade Secad (BRASIL, 2008). O programa
Escola Ativa pretende melhorar a qualidade do ensino, a formao dos professores, a
permanncia dos estudantes de escolas rurais e multisseriadas. Assim, propem-se a fornecer
subsdios tericos e materiais s secretarias municipais de educao, educadores e estudantes.
Inicialmente, o programa restringiu-se aos estados do Nordeste, atualmente, existem projetos
vinculados Escola Ativa quase na totalidade dos estados nacionais.
Segundo Andrade e Di Pierro (2003), as primeiras experincias do programa foram
avaliadas positivamente, visto que um nmero considervel de escolas aderiram ao programa,
cerca de 95 mil estudantes foram atendidos e houve uma melhora no desempenho escolar
deles, bem como houve um aumento na formao docente e no interesse dos mesmos pela
escola. No entanto, percebemos certa incongruncia terica no Projeto Base da Escola Ativa
(BRASIL, 2008), visto que o programa pauta-se em princpios construtivistas, traz
contribuies tericas oriundas de outras vertentes, como Vygotsky e financiado pelo Banco
Mundial.
Alm disso, outros projetos vinculados ao FUNDESCOLA tiveram um impacto
considervel nas reas rurais, como o Programa de Formao de Professores em Exerccio
Proformao, que visava qualificao profissional dos professores leigos das escolas
pblicas brasileiras, atravs de cursos de formao distncia. Assim, o atendimento
prioritrio foi para as escolas que se localizavam em regies mais isoladas do Centro-Oeste,
Norte e Nordeste do pas. Sendo assim, cerca de 75% dos professores que participaram dos
projetos atuavam em escolas rurais (ANDRADE, DI PIERRO, 2003).
O Programa Alfabetizao Solidria, criado em 1996, inicialmente, foi destinado s
regies do Norte e Nordeste que apresentava ndices de analfabetismo superiores mdia
nacional. O programa estruturou-se com base na participao dos poderes pblicos e a
sociedade civil. Entre 2000 e 2001, aproximadamente 70% das salas de aula criadas para a
Alfabetizao Solidria encontravam-se nas reas rurais. Entretanto, Andrade e Di Pierro
21
(2003) avaliam que um dos principais limites do programa foi a dificuldade de articulao
entre os diversos envolvidos na constituio dos projetos.
O Programa de Formao de Jovens Empresrios Rurais PROJOVEM, tambm
criado em 1996, a fim de assessorar projetos de empreendedorismo juvenil no campo,
resultado de uma parceria entre o Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza
CEETEPS e a Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz, da Universidade de So Paulo
ESALQ/USP. O programa era destinado a filhos de pequenos agricultores, de modo a
contribuir no desenvolvimento de projetos que gerassem renda para suas famlias e que
tivessem uma insero competitiva no mercado agropecurio. O curso organizava-se em trs
anos, a partir da Pedagogia da Alternncia, com bases construtivistas e as experincias eram
financiadas pela Fundao W. K. Kellogg.
O Servio Nacional de Aprendizagem Rural SENAR foi criado em 1991, pela
Confederao da Agricultura e Pecuria do Brasil CNA, a fim de ser um instrumento de
formao de trabalhadores para o setor agropecurio, vinculado s demandas do setor patronal
rural. Assim, como o Servio Nacional de Aprendizagem Comercial - SENAC, Servio
Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI, o SENAR pretende ofertar projetos aos
trabalhadores que atuam na agropecuria, primando pela formao profissional e promoo
social de jovens e agricultores. Nesse sentido, as duas experincias descritas acima se
mostram atreladas aos interesses de grandes instituies e do setor patronal, articulando a
formao com as necessidades imediatas do mercado de trabalho.
O Projeto Terra Solidria, desenvolvido desde 1998, pela Federao dos
Trabalhadores em Agricultura Familiar FETRAF, entidade sindical filiada Central nica
dos Trabalhadores CUT, tem como objetivo formar agentes de desenvolvimento, destinados
aos jovens da agricultura familiar. A formao organizada atravs de quatro programas:
Ensino Fundamental, Gesto Sustentvel e Solidria, Desenvolvimento Metodolgico e
Sindicalismo e Desenvolvimento. Os programas eram interdisciplinares e sob a docncia de
um nico professor.
Oliveira (2008) tece uma longa crtica ao projeto, pois o autor defende que a proposta
de formao da FETRAF tem como motivao a busca pelo empreendedorismo do agricultor
familiar. Nesse sentido, o autor revela que a procura por formar pequenos empreendedores
no possvel de ser praticada por todos, visto que no capitalismo apenas alguns atingem a
competitividade necessria para se manter em disputa no mercado agropecurio. Assim,
Oliveira conclui que o empreendedorismo presente na agricultura familiar acaba por excluir
22
grande parte dos pequenos produtores, sendo que apenas uma pequena parcela consegue ser
inserida economicamente na cadeia produtiva.
O Projeto Saberes da Terra uma proposio dos Ministrios do Desenvolvimento
Agrrio - MDA, da Educao - MEC, da Cultura e do Trabalho e Emprego MTE, assinada
em 2006. O projeto almeja fornecer educao e qualificao profissional aos jovens
agricultores familiares, de 16 a 24 anos de idade, de modo a fortalecer a agricultura familiar e
promover o desenvolvimento sustentvel nas suas comunidades. Oliveira (2008) afirma que o
Projeto Saberes da Terra uma apropriao do governo do Projeto Terra Solidria. Dessa
maneira, o autor desenvolve as mesmas crticas j apresentadas ao projeto da FETRAF.
Alm dessas medidas educacionais, existe o Programa Nacional de Educao na
Reforma Agrria - Pronera, criado em 1998, a fim de financiar projetos que vo desde a
alfabetizao e escolarizao, at cursos superiores destinados a assentados de todo Brasil
(BRASIL, 2004), programa que ser melhor apresentado no Captulo 1. O Pronera representa
um dos resultados da mobilizao pela educao do campo, decorrncia direta da luta de tais
movimentos e de aliados da sociedade civil, como professores universitrios, estudantes,
intelectuais, etc. (ANDRADE, DI PIERRO, 2003; MOLINA, 2003).
Apesar dessas propostas e polticas que visam atender populao rural, notamos que
a educao que oferecida aos trabalhadores rurais e moradores do campo est muito aqum
das necessidades dessa populao, tanto em relao qualidade, quanto a quantidade da
oferta, visto que o campo permanece concentrando altos ndices de analfabetismo e evaso
escolar (DI PIERRO, s.d.). De acordo com Buffa e Nosella (1991), o Brasil iniciou o sculo
XXI sem ter cumprido a meta atribuda ao sculo XX, que era a erradicao do analfabetismo
e a universalizao da educao bsica.
As consequncias da falta de investimento em relao educao da populao rural
podem ser observadas nos dados apresentados pelo Censo Demogrfico brasileiro de 2000
(IBGE, s.d.), que anunciou que 13,63% da populao brasileira de 15 anos ou mais eram
analfabetas; a mesma pesquisa aponta que: 10,25% dos moradores da cidade e 29,79% da
populao rural, dessa mesma faixa etria, no sabiam ler nem escrever no perodo em que a
pesquisa foi realizada. Nesse sentido, notamos uma grande diferena em relao aos ndices
de analfabetismo encontrado nas reas rurais e urbanas.
O Censo Agropecurio, realizado pelo IBGE em 2006 (IBGE, 2009), aponta que os
39% dos produtores agropecurios eram analfabetos ou foram alfabetizados, porm no
haviam frequentado a escola e 43% deles tinham o Ensino Fundamental incompleto. Esses
percentuais correspondem a cerca de 80 % dos produtores rurais brasileiros, o que indica o
23
baixo nvel de escolaridade desses trabalhadores. Do total de produtores, 8% apresentavam
Ensino Fundamental completo, 7% haviam cursado o Ensino Mdio ou Tcnico e somente
3% possua nvel superior.
Outra diferena que o censo apontou refere-se escolarizao das mulheres produtoras
agropecurias, que correspondem a aproximadamente 13% das propriedades agrcolas
pesquisadas. O analfabetismo feminino atinge a marca de 45,7% do total de produtoras. Para
os homens, esse ndice chega a 38,1% do total de produtores (IBGE, 2009), o que denota uma
diferena entre os gneros, no que se refere ao acesso educao.
Em relao qualidade da educao que ofertada a populao rural, alguns autores
(ARROYO, FERNANDES, 1999; LEANDRO, 2002, CALDART, 2004) apontam que os
responsveis pela criao, gesto e manuteno das escolas no campo tendem a acreditar que
para executar o trabalho rural no preciso muita instruo. Assim, estas escolas costumam
oferecer o estritamente necessrio para que tal populao desempenhe as funes mecnicas
da atividade agrcola.
A questo de territrio ainda se constitui um dos fatores que indicam o grau de
instruo das famlias, ou seja, os nveis de escolaridade so menores nas reas rurais, em
relao cidade. Di Pierro (s.d.) e Ribeiro (2001) demonstram que a falta de instruo e de
estudo do homem e da mulher do campo intensificam a marginalizao e a pauperizao das
condies de vida desses trabalhadores. Ainda segundo Di Pierro (s.d.), a educao oferecida
populao tende a ser desarticulada da realidade rural, o que costuma aumentar os ndices de
evaso escolar dessa populao, diminuindo o nvel de escolaridade dos trabalhadores rurais.
Outro estudo que demonstra as condies precrias em que se encontra a educao
rural a Pesquisa Nacional de Educao na Reforma Agrria - PNERA, realizada em 2004, a
fim de identificar o nvel e as condies de escolarizao dos beneficirios da reforma agrria
no Brasil (BRASIL, 2005). O censo foi feito atravs da parceria entre o MDA/INCRA/
Pronera, com o MEC/Instituto Nacional de Educao e Pesquisa - INEP. Os dados levantados
permitem afirmar que, no que se refere educao oferecida populao assentada, a
situao deplorvel, sendo que este quadro semelhante em todo territrio nacional, no
havendo grandes diferenas nas macrorregies do pas.
Esta pesquisa mostra que, 38,4% dos sujeitos da reforma agrria no Brasil tinham at
15 anos, ou seja, estavam em idade escolar durante a realizao do censo. Contudo, a oferta
de ensino das escolas que atendem esta populao pareceu no suprir essa demanda, j que
61,2% dos assentados entrevistados afirmaram no estarem frequentando a escola e no terem
atingido o nvel mdio de ensino.
24
Ao se analisar a oferta de Educao Infantil das escolas que atendem os
assentamentos, uma porcentagem nfima, apenas 3,5% das escolas pesquisadas, continham
creches e estas atendiam apenas 0,1% da populao estudada. Em relao oferta de Ensino
Fundamental, verificou-se que 84,1% das escolas recenseadas disponibilizavam turmas de 1 a
4 srie e apenas 26,9% das escolas estudadas apresentavam turmas de 5 a 8 Srie. O que
refora a existncia de um baixo nmero de escolas que atendem os estudantes dessa faixa
etria, reafirmando, assim, a limitao da oferta de Ensino Fundamental para a populao do
campo.
No que se refere educao de adolescentes e adultos, somente 4,3% das escolas que
atendiam os assentamentos ofereciam Ensino Mdio; 0,5% apresentavam Ensino
Profissionalizante e 0,1% ofereciam Ensino Superior aos assentados. Sendo assim, essas
informaes indicam que a Educao Bsica, que abrange desde a Educao Infantil at o
Ensino Mdio, no devidamente oferecida populao rural, mesmo dentro dos
assentamentos.
De acordo com o que j apresentamos, o campo concentra os maiores ndices de
analfabetismo no Brasil. Apesar disso, a Educao de Jovens e Adultos - EJA no ofertada
de modo a reverter tais nmeros, visto que a EJA no nvel de Alfabetizao estava disponvel
em apenas 7,8% das escolas pesquisadas; EJA de 1 a 4 srie em 14,2%; EJA de 5 a 8 srie
em 6,2%; EJA de Ensino Mdio era oferecido em apenas 0,9% das escolas estudadas. Dos
61,2% dos assentados que no frequentavam escola, 27,1% nunca frequentaram a escola e no
sabiam ler, nem escrever; 4,9% nunca frequentaram, mas foram alfabetizados; 5% j
frequentaram a escola, porm eram analfabetos.
Sendo assim, muitos dos trabalhadores rurais que no tiveram a oportunidade de
estudar quando eram mais jovens, continuam excludos desse direito, visto que a oferta de
EJA e de cursos superiores para a populao do campo ainda muito reduzida.
No que se refere infraestrutura das escolas, a pesquisa demonstrou que elas, na sua
grande maioria, apresentavam condies inadequadas e precrias. Sendo que 27,7% das
escolas estudadas no apresentavam uma estrutura fsica que permitisse seu funcionamento,
no tendo espao prprio e sua atividade s era possvel atravs de improvisos. No geral, as
escolas eram pequenas, no dispondo de equipamentos e espao fsico para comportar seu
contingente de estudantes, e muitas delas, no tinham acesso gua encanada, saneamento
bsico, internet, telefone, entre outros recursos.
Alm disso, a maioria dos assentados entrevistados relatou estudar em escolas
afastadas dos seus locais de moradias, onde a distncia mdia percorrida pelos estudantes para
25
chegar escola era de 8,03 km. Distncia, esta, que em 69,9% dos casos era percorrida a p e
em 20,3% de nibus, sendo que cerca de 50% dos estudantes gastavam mais de 30 minutos
para chegar escola. Tal fato dificultava o acesso dos estudantes escola, uma vez que as
condies dos meios de transporte escolar pblico, geralmente, eram precrias e as vias de
acesso ao assentamento no eram adequadamente mantidas.
Dessa forma, uma das maiores preocupaes que as mes e pais das crianas se
referiram na pesquisa foi a falta de segurana a que os estudantes eram submetidos no trajeto
da escola. Inclusive, as escolas distantes inibem o acompanhamento da vida escolar dos filhos
por parte dos pais e diminuem a participao dos mesmos na gesto da escola.
Os dados do censo referentes ao estado de So Paulo indicam que, neste estado, todas
as crianas que fizeram parte do estudo, com idade de zero a trs anos, esto fora da escola.
Na faixa etria de quatro a seis anos, a maioria delas (51,5%) no estudavam. Todas as
crianas participantes do censo, com idade entre sete e dez anos, frequentavam a escola em
So Paulo. Dos 12 aos 14 anos, 2,8% dos adolescentes pesquisados no estavam nas escolas e
dos 97,2% que estudavam, estima-se que 13,5% cursavam uma srie diferente da
convencionada para a idade, geralmente, frequentando srie atrasada para sua faixa etria. Na
faixa de 15 a 17 anos 12,5% estavam fora da escola e dos que estudavam (87,5%), apenas
33,3% frequentavam srie adequada para a idade.
No que se refere educao de adultos, as aes que visavam reparar as falhas
cometidas anteriormente na escolarizao dos trabalhadores assentados no eram muitas. Em
So Paulo, apenas 9,1% dos maiores de 18 anos estudavam, desses, 4,9% estavam no curso
correto, representando 141 pessoas. Os outros 95,1% (2.723 pessoas) frequentam outro curso.
Dos 90,9% que estavam fora da escola, 11,9% nunca frequentou a escola; 39,7% pararam
entre a 1 e a 4 srie; 24,7% descontinuaram os estudos entre a 5 e 8 srie; 15,6% cursaram
at o Ensino Mdio e apenas 8,2% apresentavam outra escolaridade.
No entanto, verificamos tambm que, muitas vezes, o grau de escolarizao da
populao assentada maior do que em relao ao restante da populao rural (RUA,
ABRAMOVAY, 2000; LEITE, et al., 2004). Isso pode acontecer em decorrncia da ao dos
movimentos sociais do campo, que conferem aos seus militantes a categoria de sujeitos de
direitos, que podem e devem lutar pelo cumprimento de seus direitos, portanto, que podem e
devem estudar, para se formar, ter acesso a conhecimento e informao (MOLINA, 2006).
Benjamin e Caldart (2000) afirmam que a negao do direito ao estudo que atinge a
populao rural no perpassa simplesmente pela dificuldade de acesso escola, mas est
presente no carter ideolgico da educao convencional oferecida, visto que esta renega a
26
identidade camponesa, refora o preconceito contra a cultura do campo e desconsidera as
especificidades do rural. Em decorrncia destas caractersticas, o modelo educacional
tradicional mantm o processo de excluso dos estudantes do campo, uma vez que aumenta a
probabilidade de repetncias e evaso escolar dessa parcela da populao.
Leandro (2002) e Ribeiro (2001) afirmam que o investimento na formao do sujeito
do campo imprescindvel para a efetivao da reforma agrria no Brasil. De acordo com
Molina (2006), as aes que visam escolarizao dos assentados dependem quase que
exclusivamente, das polticas pblicas. Neste sentido, importante que o Estado invista na
educao destinada a essa populao como forma de reparar essa dvida histrica com o
campo.
No contexto de expulso dos camponeses do meio rural, falta de condies de vida no
campo e na cidade, revoluo verde e a efervescncia poltica do perodo de redemocratizao
no Brasil, a partir do final da dcada de 1970, surgem articulaes polticas, que resultam na
criao do MST, em 1984, visando organizar os trabalhadores rurais Sem Terra de todo pas
em torno da luta pela reforma agrria (STEDILE, FERNANDES, 1999). Ao longo da
trajetria de luta empreendida pelo MST, a educao assume um papel importante dentro
deste movimento social4, visto que o Movimento5 identificou que os projetos de reforma
agrria dependem da garantia de uma srie de direitos aos trabalhadores rurais, alm do mero
acesso a terra.
A partir do reconhecimento da necessidade de educao para os assentados, iniciou-se
a organizao do setor de educao do MST que cuidaria mais especificamente das questes
relativas escolarizao dos Sem Terra. Esse setor foi criado em 1987, a fim de garantir o
acesso a uma escola de qualidade e que considerasse a realidade do campo (BENJAMIN &
4 Caldart (2004, p. 131) revela a complexidade decorrente da tentativa de categorizar o MST, afirmando que ainda est para ser construda uma categoria que realmente d conta de expressar a especificidade identitria do MST. Dessa forma, a autora se vale de uma srie de definies, a fim de contemplar tais caractersticas especficas desta organizao. Como o caso da categoria movimento social, usada para realar suas caracterstica de movimento de massas, que apresenta um objetivo de luta social definido. Porm, a pesquisadora reconhece que o MST extrapola os limites de um movimento social, devido as suas caractersticas organizativas, assumidas pelo Movimento ao longo da sua trajetria de luta. Para tentar contemplar essa dimenso, a autora refere-se ao MST enquanto organizao social, categoria que tambm no define o Movimento na sua totalidade. Sendo assim, Caldart considera que devido estruturao do Movimento, a partir da hierarquizao e profissionalizao de seus quadros, o MST tambm pode ser compreendido como organizao poltica ou como um novo movimento social, em decorrncia do entendimento de que a correlao de foras atual limita a sua atuao a questes de um grupo social especfico. A pedagoga afirma, ainda, que alguns militantes costumam compreender o MST enquanto uma organizao de massas. Neste trabalho, referiremo-nos ao MST como movimento social, em decorrncia da dificuldade de encontrar termo mais adequado, porm considerando a discusso acadmica a respeito. 5 Seguindo a referncia de Caldart (2004), ao utilizarmos o termo Movimento, escrito com M maisculo, referimo-nos ao MST, a fim de destacar a sua caracterstica dinmica, de se manter em constante movimento.
27
CALDART, 2000). Todas as participantes dessa pesquisa atuam ou atuaram no setor de
educao do Movimento.
Nesse contexto, a busca pela garantia do acesso a educao sempre se apresentou
como uma preocupao para o Movimento. Com o passar do tempo, notou-se que a escola
convencional no era suficiente para a formao dos sujeitos pretendidos pelo MST. O
Movimento passou a reivindicar a criao de escolas pblicas nos assentamentos e
acampamentos do MST. Para tanto, foi necessrio pensar em uma Pedagogia especfica, a fim
de dar elementos para a constituio e desenvolvimento do trabalho pedaggico nessas
escolas (MST, 2005).
Dessa forma, o Movimento criou uma proposta pedaggica baseada em diversas
pedagogias e autores, sendo fortemente influenciada por Paulo Freire, Pistrak e Makarenko
(SCOPINHO, MARTINS, 2002; DAL RI, VIEITEZ, 2004). Um dos pilares fundamentais da
proposta pedaggica do MST a compreenso do princpio educativo presente na luta pela
terra, na luta pela reforma agrria e no movimento da luta (CALDART, 2004). Neste sentido,
Segundo compreende educao, para o MST a escola espao importante, mas ser to mais
educativa quanto capaz for de trazer para si elementos educativos de fora da escola, como o
processo de luta com que seus sujeitos esto envolvidos. (MOLINA, 2003, p. 47 48).
De acordo com o MST (MST, 2005), a viso de que a educao deve ser concebida
para o trabalho e pelo trabalho de extrema importncia para a construo de sua proposta
pedaggica, j que, entende-se que todos os espaos constituem um local de ensino-
aprendizagem, h trocas de experincias e vivncias. O trabalho se mostra como espao
fundamental para a estruturao de uma nova forma de organizao social, uma vez que ele
que oferece a dimenso da objetividade e a relao com a realidade concreta.
Segundo Caldart (2004), a discusso sobre a relao entre teoria e prtica essencial
na compreenso da pedagogia do MST, pois existe a determinao de pensar os processos
educativos aliando teoria e prtica, o que resulta na prxis. Para tanto, Molina (2003, p. 48)
afirma que: Conforme o MST, a escola precisa ter condies de oferecer respostas
populao rural, impulsionar o desenvolvimento de um novo modelo para organizar a
agricultura, uma educao que faa crescer o pas..
A autogesto dos educandos outra marca da proposta educativa do MST, visto que
pretende-se com essa prtica dar elementos para que os educandos participem e contribuam
no seu prprio processo de formao (CALDART, 2004). Nesse sentido, recorrente a
referncia a coletividade inerente desse processo, j que o MST espera que os sujeitos que
tem a oportunidade de estudar, garantida pela luta do Movimento, entenda-se como o
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indivduo social, descrito por Mszros (2008), uma vez que tem compromisso com a
comunidade e com o coletivo ao qual pertence.
No entanto, a proposta pedaggica do MST sofre uma srie de crticas e vtima de
limitaes e contradies. A principal dificuldade encontrada para colocar em prtica os
princpios e diretrizes da Pedagogia do Movimento a falta de recursos tcnicos e financeiros,
de infraestrutura, de pessoas preparadas para desempenhar determinadas atividades. Tais
restries impedem o pleno desenvolvimento das aes educacionais do MST. Apesar disto,
alguns educadores conseguem superar essas dificuldades, usando medidas criativas e
inovadoras para garantir a educao e formao das crianas Sem Terra (REZENDE,
SCOPINHO, 2007).
Alguns autores (ARRUDA & BRITO, 2009; BEZERRA NETO, 1999; MATTOS,
2009) identificam que existe um problema estrutural na definio da proposta pedaggica do
Movimento: o ecletismo terico que marca o referencial do MST. O Movimento sofreu uma
grande influncia da Igreja na sua formao e traz elementos do idealismo e da
transcendentalidade at hoje. Por outro lado, diz-se uma organizao de esquerda, que luta
pelo socialismo e por uma transformao social radical, baseando-se no materialismo
histrico dialtico. Assim, esses pesquisadores afirmam que essa tentativa de conciliar essas
duas linhas de pensamento incoerente e impraticvel.
Alm disso, a concepo de partir da realidade local vivenciada no cotidiano da luta
pela terra apresenta-se para Oliveira (2008) como uma tendncia a aligeirar a formao e
educao dos assentados. Pois, segundo o autor, o Movimento prope uma supervalorizao
da sabedoria popular, o que desconsidera a contribuio determinante do conhecimento
cientfico para a superao da realidade atual. Por outro lado, a relao entre trabalho e
educao uma estratgia para construir uma educao diferente da capitalista, visto que essa
a nica forma de articular o contedo ensinado com a realidade concreta dos educandos
(PISTRAK, 2000).
Apesar dessas questes, o MST continua buscando superar os limites da educao
oferecida classe trabalhadora, buscando forjar uma pedagogia no processo de luta pela
reforma agrria, em um pas que enfrenta grandes problemas fundirios e desigualdades
sociais. Avanando e tropeando, os Sem Terra buscam se educar nessa marcha pela
conquista da justia social, busca pela manuteno e reproduo camponesa, bem como da
transformao da realidade.
As dificuldades enfrentadas para conseguir a garantia de uma educao de qualidade e
o processo de reivindicao de polticas educacionais para o campo levou o MST a aliar-se a
29
outros movimentos sociais e representantes da sociedade civil, em torno desta demanda.
neste contexto que surge a luta pela educao do campo, que prope que a educao do
campo, feita, produzida, pensada e aplicada pelas prprias pessoas envolvidas no processo e
no que seja uma proposta para o campo ou a ser implementada no campo (KOLLING,
NERY, MOLINA, 1999).
Desse modo, a educao do campo assume como ponto de partida o protagonismo dos
povos do campo os trabalhadores rurais, assentados e acampados, povos indgenas,
quilombolas, a populao ribeirinha, os povos da floresta, etc. para que eles sejam agentes
no seu processo de educao e emancipao. Assim, essa populao, historicamente excluda
do acesso ao conhecimento cientfico sistematizado, luta por apropriar-se dos instrumentos
tericos e polticos, a fim de definir as caractersticas da educao oferecida a ela (ARROYO,
CALDART, MOLINA, 2005).
Assim, cabe no projeto de campo gestado pelos camponeses a defesa da educao do
campo, pois o campesinato v que essa um dos instrumentos de promoo do
desenvolvimento rural proposto por ele (MOLINA, 2003). Portanto, o sentido atribudo
educao, presente no projeto de sociedade do campesinato, ope-se ao projeto de
desenvolvimento praticado pelo agronegcio e a proposta do campesinato. Segundo Bernardo
Manano Fernandes, (2006, p. 30):
A educao como poltica pblica no faz parte dos interesses do agronegcio porque essa dimenso territorial no est contemplada em seu modelo de desenvolvimento. A pesquisa para o agronegcio um importante setor para a criao de tecnologias voltadas para o aprimoramento dos diversos produtos de sua intricada cadeia de processamento de mercadorias. As grandes empresas do agronegcio possuem articulaes com as principais universidades pblicas, institutos de pesquisas pblicos, onde parte de seus profissionais e pesquisadores formada. (...) A educao como poltica pblica fundamental para o campesinato. Esta dimenso territorial espao essencial para o desenvolvimento de seus territrios. Embora a Educao do Campo ainda seja incipiente, est sendo pensada e praticada na amplitude que a multidimensionalidade territorial exige. Desde a formao tcnica e tecnolgica para os processos produtivos, at a formao nos diversos nveis educacionais, do fundamental ao superior para a prtica da cidadania.
Molina (2006) defende que o projeto campons de desenvolvimento para a nao tem
como objetivo a transformao do Brasil em uma nova sociedade, baseada em novos
princpios e valores solidrios e socialistas. Retomando as contribuies de Pistrak (2000),
Makarenko (2005) e Mszros (2008). nesse contexto que a educao assume a sua
dimenso mais radical, sendo importante garantir a formao desse novo sujeito, que construa
uma nova sociedade, embora a educao sozinha no seja suficiente para essa transformao.
Dessa forma, a relao entre trabalho e educao toma uma dimenso fundamental no
debate acerca da educao do campo, uma vez que segundo Pistrak (2000) a vivncia e
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experincia do trabalho que d elementos para a compreenso da realidade e suas
contradies. somente a partir do reconhecimento dessa realidade e de seus limites que
existe a possibilidade de transform-la (MSZROS, 2002, 2008). O trabalho e as
especificidades dessa atividade no meio rural, na perspectiva da construo de uma nova
sociedade proposta pelos movimentos sociais do campo (ARROYO, CALDART, MOLINA,
2005; MOLINA, 2006), tm que ser assumida como um pilar central da discusso sobre
educao do campo.
Criar uma proposta de educao diferente da que oferecida na cidade no significa
uma dicotomia entre a educao urbana e a rural, visto que se entende que o objetivo final da
educao seja a socializao do conhecimento historicamente produzido pela humanidade. No
entanto, para que esse escopo seja atingido necessrio que se parta da realidade dos
educandos, trazendo elementos do que vivenciado e conhecido pelas crianas no campo e na
cidade.
Nesse sentido, tal proposta de educao pretende reconhecer o papel formativo da luta
social e da organizao em um movimento para as pessoas envolvidas nesse processo, ou seja,
assumir a participao em um movimento social como um princpio educativo (ARROYO,
CALDART, MOLINA, 2005). Portanto, compreende-se que a educao no se restringe a
escola. As vivncias no acampamento/assentamento, o trabalho cooperado das famlias, a
reivindicao de direitos, a valorizao das razes culturais, tudo isso educa e transforma.
Cabe escola buscar se aproveitar desses elementos para formar sujeitos completos e capazes
(ARROYO, CALDART, MOLINA, 2005).
Ao relatar sobre o processo de luta para garantir o seu direito de estudante, enquanto
cursava Pedagogia da Terra na Unemat, Carolina, uma das participantes da pesquisa afirmou:
Inclusive, alguns estudantes [dos cursos regulares da Unemat] falavam assim: olha, os Sem Terra esto tendo privilgio e a gente no est. A gente conversava com eles, falava: olha, isso porque vocs no se organizam e vo reivindicar seus direitos. Todo mundo tem direito, n? (entrevista realizada em 20/02/2009).
Esse depoimento um exemplo da formao decorrente da insero no movimento
social, uma vez que deixa claro que quando os camponeses se reconhecem como sujeitos de
direito (MOLINA, 2003), podem e devem organizar-se para que tenham as suas
reivindicaes atendidas, resultando na criao de indivduos sociais (MSZROS, 2008).
Entretanto, a formao da educao do campo no se limita ao empirismo decorrente
das vivncias e experincias dos seus agentes, uma vez que a busca pelo conhecimento
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cientfico e sistematizado, produzido historicamente pela humanidade, expressa na luta para
garantir o acesso ao ensino formal, em escolas e universidades pblicas. A reivindicao por
uma educao de qualidade um indcio da necessidade que os povos do campo tm de se
apropriarem dos saberes produzidos pela humanidade e superarem o censo comum, buscando
a relao entre a teoria ensinada nas escolas e o cotidiano de trabalho e de luta vivenciado por
esses trabalhadores (JESUS, 2006).
Nesse sentido, a procura dos camponeses em se apropriar dos mtodos cientficos de
acesso ao conhecimento reflete a preocupao em produzir conhecimento, a fim de dar
elementos para a compreenso da realidade, de modo a identificar suas contradies e buscar
a sua superao. Assim, a educao aliada pesquisa pode se tornar uma ferramenta para a
construo de um projeto popular de nao, com base nas referncias oriundas do
entendimento e tentativa de superao da luta de classes. Segundo Fernandes (2006, p. 30):
A educao uma poltica social que tem importante carter econmico porque promove as condies polticas essenciais para o desenvolvimento. Desse modo, para o desenvolvimento do territrio campons necessria uma poltica educacional que atenda sua diversidade e amplitude e entenda a populao camponesa como protagonista propositiva de polticas e no como beneficirios e ou usurios. Da mesma forma, torna-se imprescindvel a pesquisa em Educao do Campo para contribuir com o desenvolvimento dessa realidade. Portanto, atribumos Educao do Campo, a poltica educacional voltada para o desenvolvimento do territrio campons como parte do campo brasileiro. Este territrio um campo especfico e diverso que possui singularidade na sua organizao por meio do trabalho familiar.
A especificidade da realidade do campo brasileiro demanda uma reparao da
excluso histrica que os trabalhadores rurais sofreram ao longo de todos esses anos, uma vez
que os ndices que medem a escolaridade dos camponeses so alarmantes. Portanto,
importante garantir o acesso educao para essa populao (ARROYO, CALDART,
MOLINA, 2005), visando articular trabalho e coletividade (MAKARENKO, 2005;
PISTRAK, 2000), a fim de formar novos sujeitos.
Desse modo, importante destacar o papel que as categorias trabalho, educao,
coletividade e autogesto, definidas e defendidas pelos autores apresentados acima, trazem
para a compreenso do conceito de Educao do Campo. Uma vez que:
S h sentido em se discutir uma proposta educacional especfica para as necessidades dos trabalhadores do campo se houver um projeto novo de desenvolvimento para o campo, que seja parte de um projeto nacional. As reflexes que abarcam a complexidade dos problemas da Educao do Campo, no podem ser compreendidas sem se analisar a dificuldade maior, que a sobrevivncia no espao rural, na sociedade brasileira. preciso educar para um modelo de agricultura que inclui os excludos, que amplia os postos de trabalho, que aumenta as oportunidades do desenvolvimento das pessoas e das comunidades e que avana na produo e produtividade centradas em uma vida mais digna para todos e respeitadora dos limites da natureza. (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2005, p. 13)
32
Os autores (ARROYO, FERNANDES, 1999; KOLLING, NERY, MOLINA, 1999;
BENJAMIN, CALDART, 2000; ARROYO, CALDART, MOLINA, 2005; MOLINA, 2006),
que defendem esta concepo de educao, afirmam que no s a conquista de polticas
educacionais que respeitem a realidade rural que transforma a sociedade. Portanto, segundo
esses autores, a luta pela educao do campo depende diretamente da conquista de outros
direitos dos trabalhadores rurais, a reforma agrria, uma poltica agrcola compatvel com a
pequena produo, uma nova matriz tecnolgica e produtiva, infraestrutura, entre muitos
outros. Assim, a defesa da educao do campo est articulada a um projeto de
desenvolvimento popular para o Brasil (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2005; MOLINA,
2006).
Alm disso, a defesa da educao do campo depende da sua articulao com a
categoria trabalho, visto que esse princpio educativo que orienta tal proposta. Nesse
sentido, tal demanda est atrelada necessidade de formao para o trabalho autogerido,
organizado a partir da coletividade e cooperao (STEDILE, FERNANDES, 1999;
LEANDRO, 2002).
A tentativa de se contrapor ao modo de organizao do trabalho vigente enfrenta uma
srie de dificuldades e obstculos (RIBEIRO, 2001), em decorrncia do fato de que o modo
de produo capitalista j ter sido internalizado pelo trabalhador, que sofre um processo de
auto-alienao (MSZROS, 2008). Assim, as desigualdades inerentes do sistema capitalista,
como: o individualismo, a falta de instruo e prtica do trabalho coletivo e a resistncia do
mercado em assimilar experincias produtivas diversificadas, so alguns dos desafios para a
efetivao da cooperao como um modo de produo (REZENDE, SCOPINHO, 2007).
Nesse sentido, a educao pode contribuir para superao desses desafios
(MSZROS, 2008), colaborando com a oferta de uma formao que viabilize a relao
entre teoria e prtica, partindo da realidade concreta vivenciada pelos educandos, de modo a
fornecer elementos terico-metodolgicos para a compreenso e transformao desta
realidade. Dessa forma, o ponto de partida, ou seja, a especificidade do trabalho do campo,
que justifica a necessidade de uma educao voltada para esta realidade, de modo a
apresentar-se comprometida com a luta social dos povos do campo. Tal especificidade do
trabalho o que caracteriza a necessidade de uma educao do campo, que depende do ensino
e da prtica da coletividade para se manter e frutificar. E essa proposta s resultar em
avanos, caso esteja articulada com a criao e manuteno da viabilidade econmica e
produtiva camponesa, ou seja, se a educao estiver indissociavelmente atrelada ao trabalho,
entendido como princpio educativo.
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Assim, a educao do campo assume um papel fundamental como instrumento para
respaldar as mobilizaes e as lutas sociais camponesas. A fim de apresentar adequadamente
a concepo de educao do campo, necessrio delimitar de qual campo estamos tratando,
visto que existem inmeras definies tericas e compreenses do meio rural brasileiro.
De acordo com Florestan Fernandes (1981), o debate em torno do rural s pode ser
entendido na sua relao com o urbano, compreendendo o contexto em que esses meios esto
inseridos, que, no caso brasileiro, o capitalismo dependente. A concepo de campo que foi
adotada para o desenvolvimento desse trabalho foi baseada na definio de Bernardo
Manano Fernandes (2006), que o concebe como um territrio. O autor compreende que o
campo :
Espao de vida, ou como um tipo de espao geogrfico onde se realizam todas as dimenses da existncia humana. O conceito de campo como espao de vida multidimensional e nos possibilita leituras e polticas mais amplas do que o conceito de campo ou de rural somente como espao de produo de mercadorias. (FERNANDES, 2006, p. 28 e 29)
E complementa que:
Educao, cultura, produo, trabalho, infra-estrutura, organizao poltica, mercado etc, so relaes sociais constituintes das dimenses territoriais. So concomitantemente interativas e completivas. (...) Nesse sentido, os territrios so espaos geogrficos e polticos, onde os sujeitos sociais executam seus projetos de vida para o desenvolvimento. Os sujeitos sociais organizam-se por meios das relaes de classe para desenvolver seus territrios. No campo, os territrios do campesinato e do agronegcio so organizados de formas distintas, a partir de diferentes classes e relaes sociais. (FERNANDES, 2006, p. 29)
Portanto, o campo entendido como um territrio permeado de vida e de relaes que
extrapolam a mera dimenso econmica e produtiva. Alm disso, Fernandes (2006) destaca
que existem concepes de campo distintas entre a proposta do agronegcio e do
campesinato. O projeto de desenvolvimento para o campo brasileiro proposto pelo
agronegcio resulta de uma associao entre os interesses de latifundirio, do capital
internacional e de transnacionais que controlam o mercado agropecurio atualmente. O campo
do campesinato defende novas relaes de produo e reproduo no campo, pautada na
agroecologia, cooperao, na diversidade cultural, entre outros aspectos6.
A fim de revelar as diferenas presentes no campo, Vendramini (2007a, p. 124 - 125)
afirma que:
No Brasil, o trabalho no campo desenvolve-se num amplo e diversificado espao e abrange um conjunto de atividades, entre elas, a agricultura, a pecuria, a pesca e o extrativismo. Alm disso, diz respeito a diversas formas de ocupao do espao, desde a produo para a subsistncia at a produo intensiva de eucaliptos para a
6 Para aprofundar a discusso sobre o tema ver Fernandes (2006).
34
obteno de celulose. Explicita a grande desigualdade social do pas. Constitui espao de trabalho, de vida, de relaes sociais e de cultura de pequenos agricultores; espao de grande explorao de trabalhadores, especialmente o trabalho temporrio, sem relaes contratuais, de pessoas que vagueiam pelo pas para acompanhar os perodos de colheitas, constituindo o trabalho sazonal; espao de terras para reserva de valor; espao de produo para o agronegcio; espao de difuso de tecnologias e de modificao gentica amplamente questionada por ambientalistas, pesquisadores e agricultores; e espao para o descanso, a vida tranqila, o lazer e o contato com a natureza.
Dessa forma, o desenvolvimento da concepo de campo campons depende de uma
ao interdisciplinar, envolvendo diversas reas do conhecimento e diferentes agentes. Essa
diversidade decorrente da necessidade de se criar novos paradigmas para garantir a
produo e reproduo dos trabalhadores do campo. Nesse sentido, a produo de
conhecimento vinculado proposta camponesa de desenvolvimento fundamental, de modo a
buscar consonncia na realidade vivenciada por esses trabalhadores e dar elementos para a
superao da mesma (JESUS, 2006).
Sendo assim, cabe no projeto de campo gestado pelos camponeses a defesa da
educao do campo, pois o campesinato v que essa um dos instrumentos de promoo do
desenvolvimento rural proposto por ele (MOLINA, 2003). Portanto, o sentido atribudo
educao diferente no projeto de desenvolvimento praticado pelo agronegcio e a proposta
do campesinato.
Os movimentos sociais do campo lutam para assegurar o direito de acesso educao.
Nesse sentido, Caldart (2004) afirma que, para o Movimento, a formao de educadores
apresenta uma importncia estratgica, uma vez que a educao representa um instrumento
privilegiado no processo de formao de conscincia. Assim, a preocupao em relao
formao dos seus educadores sempre esteve presente na histria do MST, a fim de que a
educao do campo, que parte da compreenso de campo apresentada acima, possa ser
praticada nas escolas dos assentamentos e acampamentos da reforma agrria (MST, 2005).
Dessa forma, os sujeitos do campo, ao assumirem a funo de educadores de si e dos
seus semelhantes e apropriarem-se dos espaos institudos para educar, contribuem para que a
realidade rural seja considerada no processo de formao dos assentados e acampados (MST,
2002). Esta oportunidade possibilita que os pedagogos formados atuem como agentes
multiplicadores nos assentamentos e movimentos sociais, garantindo que os sujeitos do
campo sejam os protagonistas dos processos educativos, press