universidade federal de pernambuco ufpe … · À prof. dra mary jane spink e ao prof. dr. aécio...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
TÚLIO ROMÉRIO LOPES QUIRINO
A PRODUÇÃO DE CUIDADOS NO
COTIDIANO DE UM SERVIÇO DE ATENÇÃO
À SAÚDE DO HOMEM
RECIFE/PE
2012
TÚLIO ROMÉRIO LOPES QUIRINO
A PRODUÇÃO DE CUIDADOS NO COTIDIANO DE
UM SERVIÇO DE ATENÇÃO À SAÚDE DO HOMEM
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Benedito Medrado
RECIFE/PE
2012
Catalogação na fonte
Bibliotecária Divonete Tenório Ferraz |Gominho.CRB-4 985
Q8g Quirino,Túlio Romério Lopes.
A produção de cuidados no cotidiano de um serviço de atenção à
saúde do homem / Túlio Romério Lopes Quirino. – Recife: O autor, 2012.
165 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Benedito Medrado.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,
CFCH. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2012.
Inclui bibliografia e apêndices.
1. Psicologia social. 2. Homem - Saúde. Produção – Cuidados médicos. I. Medrado, Benedito. (Orientador). II. Título.
150 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2013-09)
À minha mãe e à vida...
...pela possibilidade de existir!
AGRADECIMENTOS
Eu queria ser poeta, pra dizer tudo o que quero com rimas, palavras bonitas e
harmoniosas... Queria ser compositor, para escrever musicas e inscrever acordes, pensar em
encadeamentos melódicos e tecer palavras que ressoassem pelos ouvidos... Queria ter o poder
de brincar com as palavras, de dedilhar entre as letras e fazer surgir sílabas que minimamente
expressem os meus sentimentos quando escrevo esta dissertação, e especificamente esta seção
que a compõe...
Com os olhos marejados vou lembrando passo a passo das (milhares de) coisas que me
aconteceram nestes últimos dois anos, e até mesmo antes deles, quando decidi ingressar num
programa de mestrado... Eis que chega o momento de dizer “Obrigado” àquelas pessoas
especiais que estiveram presentes, de uma maneira ou de outra, me apoiando e possibilitando
que a minha vida (tenha sido) e seja mais bonita...
Agradeço à minha mãe, a responsável por eu estar aqui hoje... Minha amiga, meu
porto seguro, aquela que sempre acreditou em mim, e sempre me bancou! Sim! Ela foi meu
banco e minha banca! Quem apostou e me fez acreditar que é persistindo que a gente
alcança... Obrigado mãe! Amo você!
Ao meu irmão Thiago, meu mano, meu amigão! (BOM DIA!) Parece que te ouço
sempre dizer isso quando acordo, e é engraçado te ouvir repetir sempre que nos falamos...
Embora às vezes eu perca a paciência em meio a tanta repetição. Obrigado por me apoiar
mano! Saudades sempre de você! Também à minha família, àqueles que tem confiado e me
incentivado a buscar sempre mais...
A Bene e Jorge, este primeiro por ser mais que um orientador, um mentor para a vida.
Uma pessoa que admiro bastante e com quem aprendi muito durante estes poucos dois anos
de proximidade. A este último pelas palavras e conselhos, pelo afeto e acolhimento, por
mostrar-se sempre disponível a conversar e a compartilhar.
À minha eterna orientadora Molije, a grande responsável pelo despertar do meu
incessante desejo em fazer pesquisa. Juízo! A Aléssia por ser o exemplo de profissional que
um dia almejo ser. A Bárbara (Pró Babinha...) por ser sempre uma referência para mim de
profissionalismo e afeto. Amo o modo como você lida com a vida e a leveza com que conduz
o seu trabalho. Te admiro bastante!
À galera do GEMA pelo acolhimento desde os primeiros dias em que cheguei em
Recife. Foi importante reconhecer em vocês pontos de apoio que me possibilitassem “crescer”
nesta grande cidade. Agradeço a Michael, meu coringa, a carta especial que parecia estar na
manga e foi importante sacar nesta reta final do mestrado. Obrigado por estar presente!
Obrigado por se dispor a me ajudar! Obrigado por se interessar pelo meu tema e obrigado por,
em muitos aspectos, iluminar este momento! Agradeço também às minhas flores, Alanna,
Ludmila e Symone, três pessoinhas que eu adorei conhecer e principalmente compartilhar
ótimos momentos... a gente bota pra quebrar! WOOOOOW! A Márcio pelos constantes
devaneios teóricos e também pelas inúmeras conversas mundanas. A Jéssica por desenvolver
comigo ótimas reflexões sobre a temática que escolhi estudar. A Tiago, Dara, Luisa,
Celestino, Clarissa, Fernanda, Aida, Camila, Laís... estar com vocês neste período também foi
uma oportunidade única de aprendizado, não apenas teórico, mas humano! Não sei se já disse
o quanto me orgulho de vocês...
À Prof. Dra Mary Jane Spink e ao Prof. Dr. Aécio Matos pelas ricas contribuições ao
meu projeto de pesquisa durante a banca de qualificação. Também ao Prof. Dr. Felipe Rios
pelas inquietações provocadas na banca de defesa dessa dissertação.
Às minhas queridas e inesquecíveis Rose, Leide, Luanna e Mona. Minha equipecão,
família de cartoon, “ralé juazeirense”. Também a Bruninha, Jayce, Lady, Gabi, Vanessa, Ju,
Bruno, Joana, Pitty, Flora, Ilka, Fran... Enfim, aos/às meus/minhas amigos/as de graduação na
UNIVASF, de quem tenho tanta saudade. Pessoas com quem compartilhei muitos momentos
hilários e gostosos, mas também grandes desafios e verdadeiras provações. Muito do que
conquistei nestes processos formativos devo a vocês, nas nossas constantes discussões (e
reclamações!)... Fomos pioneiros na (A)diversidade e, uma vez assim, carregamos as marcas
dos inúmeros obstáculos enfrentados. Às vezes me pego pensando no quão bons foram os
anos que (con)vivemos e, por isso, tão forte é o desejo de nos reencontrarmos... Adoro a todos
vocês!
Aos profissionais do Instituto PAPAI, Mariana, Ricardo, Sirley, Hemerson, Thiago...
pelos momentos que pudemos conversar e trocar idéias, pela oportunidade de conhecer novas
visões de mundo...
Às jóias raras que o mestrado me deu: Paloma, Karine e Rhutinha. Quem diria, quem
diria? Entre uma série de compromissos, conseguimos ser o melhor grupo dentre os melhores
grupos dos melhores mestrados de todos os tempos do mundo... UFA! Amo vocês!
Também a Joyce, Fernanda, Patrícia, Vivian, Pedro Paulo, Halline, Isabela, Júlia,
Selma, Creuza, Igor, Flávio, Érica... enfim, toda a minha turma do mestrado. Gente foi tão
bom conhecer vocês e poder compartilhar um pouquinho das delícias e angústias de ser
mestrando. Sabemos como é gostoso e também sofrido esse processo, e acredito que pudemos
ser mais fortes quando estivemos juntos. Obrigado a vocês pelos diálogos que empreendemos,
pelas trocas de experiência, pelas nossas convergências e também pelos pontos de
discordância. Foi bom conhecer um pouquinho de vocês nestes dois anos.
À galera da ABRAPSO-PE, principalmente Raíssa, Adele, Mariana, Marília, Juliana,
Domitila, Patrícia e Mayara, pelos diálogos políticos, pelas risadas e preocupações, pelas
redes que construímos e pelas tantas outras que fortalecemos...
À família que encontrei em Recife e que passou, nestes dois anos, por algumas
(trans)formações... Renata, Patrícia Carvalho, Ana Patrícia... Principalmente a Leilane, minha
irmã, minha amiga, a pessoa com quem divido a maior parte das alegrias e tristezas do
cotidiano... Obrigado por estar sempre aqui e por compartilhar comigo um “lar”!
A João, secretário do programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE, por toda a
atenção, orientação e colaboração, principalmente, nos momentos de aperreio para o
cumprimento dos protocolos.
Aos profissionais e usuários do serviço de saúde com quem tive contato na realização
deste trabalho, sem vocês, finalizar esta etapa da minha formação seria impossível...
À CAPES por possibilitar que esta importante etapa na minha vida acontecesse.
Enfim, a todos/as vocês... MUITO OBRIGADO!
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples.
Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele
mesmo. É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de
curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de
obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém
conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que
valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a
aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto
quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do
que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo têm que
permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte
desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós no
momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar
hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o
trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento?
Michel Foucault
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Quantidade de Municípios com ESF implantadas (de 1994 a agosto de
2011)..................................................................................................................................
Pág.
42
Figura 2. Quantitativos de ESF e ACS e cobertura populacional no Brasil (de 2001 a
agosto de 2011) .................................................................................................................
43
Figura 3. Disposição Espacial da Unidade de Saúde Pesquisada .................................... 77
Quadro 1. Taxa de Incidência de óbitos por todas as causas na faixa etária de 15-59
anos da população masculina (2005).................................................................................
49
Quadro 2. Homens/usuários entrevistados no cotidiano do serviço de saúde
pesquisado.........................................................................................................................
83
Quadro 3. Trabalhadores de saúde entrevistados na unidade básica de saúde
pesquisada. ........................................................................................................................
84
Quadro 4. Modelo do Quadro de Análise 1, elaborado para organizar as informações
produzidas com os interlocutores da pesquisa a partir das entrevistas. ............................
90
Quadro 5. Modelo do Quadro de Análise 2, elaborado para organizar as informações
produzidas com os interlocutores da pesquisa a partir das questões-eixo orientadoras....
90
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABS – Atenção Básica à Saúde
ACS – Agentes Comunitários de Saúde
AVEPSO – Associação Venezuelana de Psicologia Social
BVS – Biblioteca Virtual em Saúde
CISAM – Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros
DAB – Departamento da Atenção Básica
DGGT – Diretoria Geral de Gestão do Trabalho
ESF – Estratégia Saúde da Família
FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz
GEMA – Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFF – Instituto Fernandes Figueira
MS – Ministério da Saúde
NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
ONG – Organização Não-Governamental
PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde
PAPAI – Programa de Apoio ao Pai (atualmente Instituto Papai)
PNAB – Política Nacional da Atenção Básica
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNAISH – Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem
PSA – Antígeno Prostático Efetivo
PSF – Programa Saúde da Família
PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SBU – Sociedade Brasileira de Urologia
Scielo – Scientific Electronic Library Online
SUS – Sistema Único de Saúde
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UBS – Unidade Básica de Saúde
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UNIVASF – Universidade Federal do Vale do São Francisco
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
UPE – Universidade de Pernambuco
SUMÁRIO
PRIMEIRAS PALAVRAS... 14
Alguns Pontos de Partida................................................................................................... 15
A Constituição de um Campo: Limites e Possibilidades................................................... 17
A Aproximação com o Objeto........................................................................................... 19
Esboçando um Processo de Pesquisa................................................................................. 23
Finalizando este começo.................................................................................................... 24
CAPÍTULO I
Saúde do Homem: A Produção de um Campo e um Sujeito
27
Homens, Gênero e Políticas Públicas de Saúde................................................................. 27
A Construção/Delimitação de Modos de Ser Homem e Cuidados à Saúde...................... 32
Sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.................................. 35
A Organização da Atenção Básica à Saúde: Conceitos Fundamentais e Lógica de
Funcionamento...................................................................................................................
41
Homens e Acesso aos Serviços de Atenção Básica à Saúde............................................. 44
Números como Dispositivo de Criação de um Sujeito-Alvo das Políticas Públicas......... 48
CAPÍTULO II
Entre Reflexões Teóricas: A Produção da Pesquisa a partir de uma Postura
Construcionista
53
Pressupostos Construcionistas........................................................................................... 54
A Perspectiva Construcionista........................................................................................... 56
Trabalhando com a Produção de Sentidos: O Estudo das Práticas Discursivas em seus
Usos e Efeitos....................................................................................................................
62
CAPÍTULO III
Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no Cotidiano de um Serviço
Público da Atenção Básica à Saúde
68
Entre Objetos e Questões................................................................................................... 68
O Cotidiano da Pesquisa e a Pesquisa no Cotidiano: Aportes iniciais.............................. 71
A Entrada em Campo (ou...) a Entrada do Campo?.......................................................... 72
Onde realizamos a pesquisa? Seria esta uma definição do campo?.................................. 74
O Espaço de Produção: Materialização e Estabilização do Campo – Contextualizando a
Unidade Básica de Saúde..................................................................................................
75
Construindo Compreensões sobre o Cotidiano: Instrumentos e Métodos para a
Produção de Informações...................................................................................................
77
Interlocutores...................................................................................................................... 82
Considerações Éticas.......................................................................................................... 85
CAPÍTULO IV
Quem disse que homem não se cuida? A Produção de Cuidados à Saúde do
Homem no Cotidiano de Usuários e Trabalhadores da Atenção Básica
87
Conhecendo a Unidade Básica de Saúde: Algumas Notas sobre o Funcionamento do
Serviço e as Práticas de Saúde voltadas ao Homem..........................................................
91
Práticas Discursivas sobre Saúde e Cuidado................................................................. 93
Conversando com Homens sobre Saúde e Cuidado........................................................... 94
Conversando com Trabalhadores sobre Saúde e Cuidado................................................. 97
Produção de Cuidados à Saúde com Homens/Usuários............................................... 101
Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?.................... 102
Como os homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?............ 111
Produção de Cuidados à Saúde com Trabalhadores de Saúde.................................... 117
Como os trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da
unidade básica de saúde?...................................................................................................
118
Como os trabalhadores de saúde operam a produção de cuidados à saúde dos homens
no cotidiano do serviço?.....................................................................................................
127
Outras Questões Relacionadas às Práticas de Cuidado...................................................... 141
CAPÍTULO FINAL: Algumas considerações... 147
Entre Controvérsias............................................................................................................ 148
Retomando Alguns Nós..................................................................................................... 150
REFERÊNCIAS 154
APÊNDICES 162
RESUMO
Esta pesquisa se insere no campo de debates sobre gênero e produção de cuidados à saúde dos
homens, alinhando-se às discussões que vem orientando estudos em psicologia social sobre
práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano (SPINK, 2004), a partir de uma
perspectiva construcionista. Dialogando com usuários de um serviço de saúde voltado para os
homens e com trabalhadores/as deste serviço, buscou-se compreender como se constrói a
produção de cuidados em saúde neste contexto de implantação de uma política recente. O
campo de investigação escolhido compreendeu uma unidade básica de saúde que desenvolve
ações de cuidado à Saúde do Homem, em um distrito sanitário da região metropolitana de
Recife-PE. As informações produzidas neste trabalho resultam de entrevistas realizadas com
doze homens, seis profissionais e cinco agentes comunitários de saúde que interatuavam no
serviço pesquisado. Tais entrevistas foram audiogravadas e transcritas para análise. O trabalho
analítico desenvolveu-se a partir de questões-eixo que contemplavam os modos como
usuários do serviço e trabalhadores/as operavam a saúde do homem em seu dia-a-dia. Em
linhas gerais, as análises produzidas indicam que o cuidado à saúde do homem é permeado
por uma complexa rede de relações que, inegavelmente, produz-se em regimes de verdade e
jogos de poder. As falas dos/as trabalhadores/as acabam (de)marcando os corpos dos homens
e limitando suas possibilidades de existir ou de desenvolver práticas de cuidado. Algumas
falas indicam como as questões de gênero se implicam nos modos de cuidar e nas relações
dos sujeitos com os seus corpos. Observaram-se práticas discursivas marcadas pela negação:
homem não se cuida, não acessa o serviço de saúde, não é como a mulher, não participa etc.
Os/as interlocutores/as citam uma série de argumentos desfavoráveis à disponibilização de
ações voltadas à população masculina no serviço e, em consequência, algumas justificativas
para a menor presença dos homens se mantém, tais como a associação do hábito de cuidar ao
âmbito feminino e as diferenças de horário entre trabalho e funcionamento dos serviços. Além
disso, há uma noção de saúde marcada pela prevenção de agravos, medicalização e
normatização das práticas de cuidado. Entre os homens e trabalhadores/as esta produção
discursiva parece se alinhar, os quais apresentam uma noção de cuidado que algumas vezes
extrapola o processo saúde-doença, mas que acabam reproduzindo práticas orientadas por um
amplo tecnicismo médico centrado. Compreende-se que as atividades desenvolvidas no
serviço pesquisado têm efeitos positivos nas ações de cuidado dos homens, no entanto, estas
ainda apresentam tensões. Iniciativas têm sido feitas, embora elas ainda careçam de reflexões
e amadurecimento para tornarem-se mais efetivas e abrangentes, pois, desafios continuam a
surgir. Por fim, acredita-se que é necessário relativizar os modos como o cuidado à saúde do
homem se produz, bem como os saberes e as práticas que o norteiam. Ao mesmo tempo, é
necessária reflexão crítica sobre um dos princípios que sustentam a Política Nacional de
Atenção Integral aos Homens na Saúde, a saber, o pressuposto de que a demanda de serviços
de saúde por parte dos homens seria necessariamente um indicador de cuidado.
Palavras-chave: Saúde do Homem, Produção de Cuidados, Atenção Básica, Práticas
Discursivas, Práticas de Cuidado.
ABSTRACT
This research is situated within debates about gender and the production of men’s health care,
it is also in line with discussions that have guided social psychology studies about discursive
practices and the production of meaning in every day life (SPINK, 2004) from a
constructionist perspective. In dialogue with users of health services designed specifically for
men and with service providers, we sought to understand how the provision of health care was
constructed in the context of the recent implementation of a health policy. The chosen
research area comprised a basic health service unit that develops men’s health care initiatives
in a public health district within the metropolitan region of Recife-Pernambuco. The
information produced in this work is the result of conversations/interviews with twelve men,
six professionals, and five community health agencies that were involved in the services
under consideration. These interviews were audio recorded and transcribed for subsequent
analysis. The analysis was developed from a series of questions about the ways in which
service users and providers operationalize men’s health on a daily basis. In general, the
analysis indicates that men’s health care is permeated by a complex network of relationships,
that are unquestionably produced in terms of regimes of truth and power dynamics. Health
workers’ statements marked men’s bodies and (de)limited their possibilities of existence or
their ability to develop care practices. Some of their statements reveal how gender issues are
implicated in the care of individuals and in the subjects’ relationships with their bodies.
Discursive practices of denial were observed: men do not take care of themselves, they do not
access health services, they are not like women, they do not participate, etc. Speakers cited a
series of unfavorable conditions to the provision of services targeted to men and, therefore,
some justifications for men’s higher rates of absence, such as the association of the habit of
care with women and the differences between men’s work schedules and the hours of
operation of health service providers, for example. Moreover, there is a notion of health
marked by the prevention of disease, medicalization, and the standardization of care. Among
men and health professionals, this discursive formulation seems to be aligned. It represents a
notion of care that sometimes stems from the health-disease process, but that ends up
reproducing practices guided by a broad medical-technical focus. It is evident that the
activities undertaken in the services surveyed have a positive effect on men’s health behavior.
However, tensions remain. While initiatives have been undertaken, they require further
reflection and development to make them more effective and far-reaching, since new
challenges continue to arise. Finally, we believe it is necessary to relativize the ways in
which men’s health care is produced, as well as the knowledge and practices that guide them.
At the same time, critical reflection is needed on the principles that underpin national policy
on men’s health, namely the presumption that men’s demand for health services would
necessarily be an indicator of care.
Key words: Men’s health, Production of care, Basic medical care, Discursive Practices, Care
practices.
14
PRIMEIRAS PALAVRAS...
Gostaria de começar de maneira diferente esta dissertação. Não é que queira ser
subversivo, nem tenha a pretensão de conceder a ela um caráter de ineditismo, até mesmo
porque não acho que seja este o caso. Apenas não gostaria de conceder ao meu trabalho uma
dureza em sua construção, por preferir e considerar que os textos são mais agradáveis quando
fluidos e são mais palatáveis quando se constroem na simplicidade.
Preferi escrever este trabalho como se estivesse contando uma história. Uma história
de como um empreendimento imediato se estendeu por quase dois anos e resultou num
trabalho, por assim dizer, integral (ou parcialmente acabado). Os capítulos que escrevo ao
longo desta dissertação cumprem o papel definido a priori de situar, fundamentar, orientar e
direcionar o meu olhar sobre determinado objeto a que outrora decidi me dedicar, a saber: a
produção de cuidados à saúde do homem. Cumprindo minha posição de cientista, ou seja, de
pesquisador em constante formação, não fujo do dever de descrever e defender teórica e
metodologicamente minhas reflexões, mas ao mesmo tempo, busco tornar o fio condutor
dessa dissertação mais tênue e levemente embaçado, buscando me fazer presente ao longo do
texto... Implicação! É disto que estou falando! Ou, nas palavras de Donna Haraway (1995),
conhecimento situado.
De início, prefiro contar como parti de uma ideia inicial a um produto final, ou ainda
inicial, tendo em vista que a atividade científica nunca para, pelo contrário, é constantemente
alimentada pelas respostas que encontramos às perguntas de que partimos, as quais por sua
vez orientam outras questões que conduzirão a novas respostas... Ademais, outras respostas às
mesmas perguntas poderiam ser encontradas por outros em contextos distintos, ou por mim
mesmo, em momentos diversos.
15
Nesta primeira seção da dissertação, a qual encaro como um capítulo introdutório,
apresentarei de onde estou partindo (ou o ponto que escolhi como tal), ao propor o meu
estudo, e para onde pretendo ir com ele. Como eu formulei minha questão de pesquisa, e mais
ainda como escolhi fazer para buscar respondê-la. Enfim, começo aqui a relatar o caminho
trilhado desde que entrei no curso do mestrado até o momento em que, afinal, tento chegar à
sua conclusão. Esta dissertação retrata bem isso: é o produto de um empreendimento
dinâmico e inconstante!
Antes de começar este relato, é importante fazer uma consideração: como não poderia
deixar de ser, o trabalho que apresento aqui é fruto de muitas reflexões e motivações pessoais,
no entanto, sua realização só foi possível graças a um incessante processo de produção
coletiva e negociada. Neste sentido, refiro-me a todas as pessoas que aqui se fazem presentes,
nomeadas ou não, que podem ser reconhecidas como co-construtoras das reflexões que aqui
estão escritas e inscritas. Cito desde meus/minhas companheiros/as de pesquisa, integrantes
do núcleo de estudos do qual faço parte, inclusive o meu orientador, até as pessoas que
construíram comigo informações relativas à temática que busquei investigar no cotidiano do
serviço assistencial escolhido, do qual falarei mais tarde. Assim sendo, embora esteja
escrevendo, em algumas vezes, na primeira pessoa do singular (presentificando-me e
posicionando-me ao longo do texto), estarei sempre remetendo as considerações que faço a
um contexto maior, em que tais pessoas também merecem e devem ser reconhecidas. Ao
mesmo tempo, quando estiver escrevendo na primeira pessoa do plural também estarei
considerando estas reflexões.
Alguns Pontos de Partida...
A seguir, descrevo algumas linhas de uma complexa rede, a partir das quais busco
apresentar o objeto de pesquisa dessa dissertação, construído ao longo do meu processo de
formação acadêmica. Tenho bacharelado em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do
São Francisco (UNIVASF), tendo concluído o curso em dezembro de 2009, na ênfase
“Desenvolvimento em Saúde”. Desde meu ingresso na universidade/graduação, demonstrei
grande interesse pela Saúde Pública/Coletiva, em especial, à Atenção Básica à Saúde (ABS) e
à Estratégia Saúde da Família (ESF). No que diz respeito à minha formação específica, tenho
particular interesse na Psicologia Social, e nos seus modos de produção do saber e de
construção coletiva.
16
Diante das possibilidades formativas oferecidas pela universidade da qual fiz parte,
busquei ao longo dos anos enveredar por produções acadêmicas teóricas e práticas
problematizando a produção social cotidiana da saúde. Assim sendo, desde o primeiro ano da
graduação venho desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão, bem como estágios
curriculares, interessado em compreender os sentidos e significados produzidos pelas
pessoas/atores sociais em seus processos de subjetivação, em diferentes contextos.
Sempre acreditei que a Psicologia pode contribuir bastante à Saúde Pública/Coletiva,
oferecendo a possibilidade de repensar os processos de trabalho, com a reflexão e
problematização constante dos modos de intervir, apresentando uma postura crítica, criativa e
mais consoante às realidades locais. A Psicologia também pode auxiliar na potencialização de
espaços dialógicos, voltados à troca de saberes interdisciplinares, com a promoção de relações
mais horizontais e coletivas, numa perspectiva transdisciplinar. Desse modo, é possível citar a
articulação de processos interventivos diferenciados, com o desenvolvimento de trabalhos
integrados, intersetoriais e coletivos lançando outros modos de compreender e lidar com o
processo saúde-doença-cuidado.
Um dos temas que aparece como bastante caro nas discussões da Psicologia em
diálogo com a Saúde Pública é a questão do sujeito das/nas práticas em saúde e a produção de
subjetividades. Para Mary Jane Spink (2010), a Psicologia pode colaborar com os estudos
sobre a problemática do sujeito nas práticas em saúde, desde que mantenha um
posicionamento crítico frente às tendências universalizantes e biologizantes que
historicamente marcaram a Saúde Pública. Segundo esta autora, é a partir da crítica aos
saberes médicos tradicionais que a Psicologia foi/é convocada a estabelecer um diálogo
constante com a Saúde Coletiva.
No entanto, a autora salienta a presença de diversos desafios, não apenas dentro da
Psicologia, mas também em outros campos profissionais, na proposição de práticas que
estejam de acordo com as demandas do SUS. Paradoxalmente, a noção de sujeito que permeia
a produção das práticas psicológicas, uma das maiores contribuições da Psicologia para o
campo da saúde, aparece também como um dos seus principais desafios. Nas palavras de
Spink: “se a questão que nos mobiliza é a introdução de novas formas de atuação compatíveis
com os princípios do SUS, torna-se necessário romper com aquilo que foi historicamente
construído” (SPINK, 2010, p. 27).
Trabalhando com conceitos foucaultianos, Spink argumenta que as ciências humanas,
dentre elas a Psicologia, “são produtos da estruturação da sociedade disciplinar. Funcionam
como estratégias auxiliares de disciplina de corpos e almas” (2010, p. 33). Neste sentido, é
17
sobre o saber-poder disciplinador das teorias e práticas psicológicas que está se discutindo
aqui. Ao constituir certa noção de sujeito, a Psicologia apresenta uma função normativa e
higienizadora, que precisa ser subvertida. Ao situar a Psicologia no campo da saúde, o que se
enfatiza é a compreensão dos processos de subjetivação que são forjados em cada contexto de
produção da saúde, segundo determinantes sócio-históricos e culturais, e não a partir de
práticas individualizantes que colocam sobre o sujeito prescrições normativas.
A Constituição de um Campo: Limites e Possibilidades
Zeidi Trindade e Ângela Andrade (2003), na introdução do livro “Psicologia e Saúde:
Um campo em construção”, fazem uma breve revisão histórica da área de estudos que
nomeiam como “Psicologia e Saúde”. Segundo estas autoras, esta área estabeleceu-se
formalmente em 1978, como uma parte da Psicologia que compartilhava de contribuições
teóricas advindas de diversos campos, tais como a Medicina, a Antropologia, a
Epidemiologia, a Sociologia, entre outros. No Brasil, desde a década de 80 observou-se um
grande crescimento nas produções científicas em saúde advindas da Psicologia, as quais se
voltavam principalmente à investigação e produção de maneiras de se lidar com as questões
de saúde. Ao mesmo tempo, também se foi observando paulatinamente uma crescente
inserção dos psicólogos em instituições e serviços de saúde públicos e privados, o que
possibilitou o desenvolvimento e consolidação da saúde como um promissor campo de
trabalho na Psicologia.
Para Magda Dimenstein (1998), esta inserção da Psicologia na saúde, em específico na
saúde pública, foi possível graças a um determinado contexto sócio-político-econômico que
favoreceu o reconhecimento cultural da profissão e sua importância para a sociedade. Neste
movimento, ela destaca quatro fatores que foram essenciais à entrada dos psicólogos nas
instituições de saúde:
1) O contexto das políticas públicas de saúde do final dos anos 70 e da década de 80,
em que se observava uma série de transformações nos modelos assistenciais bem
como nas próprias formas de se compreender e se lidar com a saúde, fruto das
reflexões proporcionadas pela redefinição e ampliação do conceito de saúde;
2) A crise econômica e social que o país enfrentou na década de 80, que fez com que
os profissionais de Psicologia, até então fortemente concentrados nos consultórios
18
particulares, vissem as classes média e alta, suas consumidoras, reduzirem suas
despesas com os atendimentos psicológicos;
3) Diante disto, observou-se um movimento de redefinição da categoria, que envolveu
um processo de valorização do profissional de Psicologia no meio social e sua
migração cada vez mais frequente dos consultórios privados para os serviços públicos,
sendo as instituições de saúde (hospitais psiquiátricos, maternidades, postos de saúde
etc.) suas maiores receptoras, e;
4) A psicologização da sociedade, ou seja, a criação de uma cultura psicológica no
país, fortemente associada à difusão e fortalecimento da psicanálise no Brasil. Isto
proporcionou um aumento na busca pelas faculdades e cursos de Psicologia, na oferta
e disposição dos serviços, além da expansão do campo de atuação do psicólogo.
Atualmente, observa-se um grande número de publicações da Psicologia articuladas ao
campo da saúde, a qual se apresenta como uma área consolidada. Uma simples busca nas
principais bases de dados e indexadores virtuais, tais como Scielo (Scientific Electronic
Library Online) e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), por exemplo, é capaz de revelar uma
grande variedade de temáticas que tem sido alvo de reflexões pela Psicologia. No entanto,
como afirmam Trindade e Andrade (2003), há ainda um descompasso entre as demandas
apresentadas pelo setor saúde e as respostas dadas pela Psicologia, tendo em vista os
processos formativos dos profissionais para atuar na área e a complexidade de questões que
surgem neste setor, as quais solicitam constante reflexão crítica e inspiração por parte dos
psicólogos em sua atuação.
Assim, como dizem estas autoras, mesmo notando-se este grande crescimento nas
últimas décadas, a produção em Psicologia e Saúde ainda aparece bastante difusa em termos
de sistematização de conhecimentos, fazendo com que os profissionais e pesquisadores da
Psicologia tenham grande dificuldade em se inserir e desenvolver trabalhos neste campo.
Assim, apesar de promissora a área “Psicologia e Saúde” apresenta grandes desafios para seu
fortalecimento, principalmente se considerarmos os diálogos necessários de serem
estabelecidos entre o campo das práticas fortemente marcadas por modelos tradicionais de
fazer e conceber a saúde, bem como pelas incessantes reflexões impulsionadas pela
complexidade das demandas apresentadas no cotidiano dos serviços.
Quando se toma a Atenção Básica à Saúde em específico, as questões se ampliam.
Segundo Dimenstein (1998) existe uma série de problemas e insucessos relacionados às
práticas de psicólogos neste âmbito, o que acaba também se refletindo nas produções teóricas
19
originadas da Psicologia sobre este contexto de atuação. Para ela, alguns elementos que
podem ser associados a estes desafios são: o relativamente pequeno tempo de inserção do
psicólogo nos serviços de atenção básica, o reduzido número de profissionais que ocupam
estes espaços, mesmo tendo-se percebido o seu crescimento nos últimos anos1, e o reduzido
número de pesquisas e publicações que investem na atuação do psicólogo na atenção básica,
ou mesmo que revelam uma preocupação da Psicologia com este campo/contexto de trabalho
em particular.
Além disso, se tomarmos os estudos sobre homens e masculinidades no campo da
saúde, ainda são incipientes os estudos que partem da Psicologia, principalmente aqueles que
buscam problematizar a relação “homens e produção de cuidados à saúde”, a partir de uma
perspectiva de gênero, como é o caso do trabalho que desenvolvemos aqui. Cabe ressaltar que
reconhecemos a Psicologia como uma das ciências humanas e sociais que mais tem se
dedicado aos estudos situados na intersecção gênero e saúde, no entanto, dentre as temáticas
mais contempladas pelos seus pesquisadores, a produção de cuidados à saúde voltada à
população masculina ainda é algo que carece de maior investimento.
Desse modo, começamos a situar a relevância do estudo para a construção desta
dissertação, o qual será mais bem detalhado nos tópicos a seguir.
A Aproximação com o Objeto
Munido das reflexões acima, bem como das experiências acadêmicas que tive,
principalmente no último ano de graduação, quando fui me inserindo no contexto da gestão
em saúde, comecei a me questionar sobre os modos de produção do cuidado à saúde no
cotidiano das Unidades Básicas de Saúde (UBS), a partir do prisma da disponibilização de
recursos e organização dos serviços assistenciais. Minha ideia na época situava-se na
discussão acerca das disposições políticas que inscreviam as práticas e, mais precisamente, as
inscrições práticas possíveis no dia-a-dia dos serviços a partir destas disposições. No meu
entender, havia aí uma controvérsia.
Começava a me questionar até que ponto as prescrições gerenciais possibilitavam o
cumprimento dos princípios políticos definidos pelo SUS, e ao mesmo tempo como tais
prescrições ressoavam no interior das unidades básicas. O que, afinal, produzia-se, a partir do
1 Pode-se citar, por exemplo, a publicação da Portaria nº 154/GM/MS, de 24 de janeiro de 2008, que institui os
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), os quais têm a Psicologia como uma das categorias profissionais
indicadas para a composição das equipes.
20
plano da gestão, neste dia-a-dia? Tais reflexões estiveram presentes em mim por algum
tempo, e ao término da graduação, ao decidir ingressar num curso de mestrado, resolvi
construir uma proposta de estudo tendo a gestão como foco.
As mobilizações provocadas pelas experiências na graduação começaram a tomar mais
forma e força quando participei do II Seminário Nacional de Humanização, promovido pelo
Ministério da Saúde, em agosto de 2009, momento em que de maneira mais acurada tive
acesso a outras discussões acerca da gestão e da produção de cuidados em saúde, que
enfatizavam a construção coletiva e a participação popular.
Ao ingressar no mestrado, estes questionamentos começaram a adquirir outros
contornos. Estar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE possibilitou, ao
mesmo tempo, a minha inserção e vinculação ao Núcleo de Pesquisas em Gênero e
Masculinidades (GEMA), que é coordenado pelo professor doutor Benedito Medrado,
orientador desta dissertação. A entrada no GEMA atuou como um divisor de águas na minha
formação acadêmica e profissional (e também pessoal).
No GEMA acabei participando de diversas ações de pesquisa e extensão, com foco
privilegiado na saúde pública e com destaque no contexto do controle social e da atenção
básica, além do contato com várias temáticas em estudos sobre violência de gênero,
diversidade sexual, paternidade e saúde da população masculina. Neste momento, observei
uma reorientação do meu olhar sobre o fazer pesquisa em Psicologia Social por meio da
aproximação com o movimento construcionista, bem como pelas discussões a partir de uma
perspectiva de gênero. Também tive acesso às discussões sobre homens e masculinidades, as
quais não apareciam a priori na minha proposta de pesquisa, e que acabou tornando-se um
dos seus eixos estruturantes.
Ao mesmo tempo, estar no GEMA possibilitou também o intercâmbio com outros
pesquisadores, de diferentes formações, e seus temas de interesse, proporcionando diálogos
que muito reverberaram nas minhas reflexões sobre o objeto que trabalharia. Cito, por
exemplo, minha aproximação com o trabalho de Noemi Jéssica Noca (2011) que na época,
estava escrevendo a sua dissertação relacionada às produções discursivas sobre homens e
masculinidades num serviço de saúde voltado à população masculina, oportunizando-me
participar deste momento e ir aos poucos instigando o desejo de trabalhar a relação “homens e
saúde”.
As articulações no GEMA me proporcionaram também uma aproximação aos
pesquisadores do Instituto PAPAI, Organização Não-Governamental (ONG) localizada em
Recife e que trabalha a temática de homens e masculinidades a partir de um enfoque feminista
21
e de gênero, contemplando projetos que aliam ensino, pesquisa e extensão. Neste movimento
de aproximação com esta organização, tive a oportunidade de participar da pesquisa “Homens
nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais”, à
qual este trabalho de dissertação acabou estando vinculado como uma de suas ramificações,
mantendo, até certo ponto, o mesmo tom reflexivo.
Durante minha participação em atividades desta pesquisa, tive contato com diversas
discussões enfocando demandas e necessidades dos homens na saúde pública relacionadas à
atenção básica e as dificuldades apresentadas pelos profissionais em recepcionar estes homens
e responder a tais demandas. Isto começou a me fazer considerar uma reorientação no meu
objeto de pesquisa outrora definido. Ao mesmo tempo, acabei tendo a oportunidade de
realizar entrevistas com alguns gestores da saúde publica, nos níveis local e estadual, que me
possibilitaram acesso a informações sobre os contextos assistenciais e organização dos
serviços locais. Isto foi essencial para definir possíveis direções da pesquisa.
Em agosto de 2010, participei do II Encontro Estadual de Saúde do Homem, o que me
possibilitou o acesso ao processo de implementação da Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde do Homem (PNAISH), publicada no ano anterior, 2009. Identifiquei naquele
momento que entre dificuldades e êxitos, começava a ocorrer no estado de Pernambuco um
movimento de busca e oferta de ações voltadas à população masculina, e isto foi despertando
a minha curiosidade sobre como os serviços estavam se organizando para atender este
público.
Foram estes eventos, em seu conjunto, que me fizeram optar por estudar a relação
homens, gênero e saúde. Ainda não havia, no entanto, um foco específico que definisse por
onde trilharia meu caminho e que orientaria a realização do meu estudo. Apenas sabia que
gostaria de discutir homens/masculinidades e saúde, a partir do contexto da atenção básica.
Como havia o desejo anterior de considerar o plano da gestão, resolvi definir uma questão
inicial considerando também estes novos elementos que me apareceram.
Escrevi então um projeto de pesquisa, o qual foi encaminhado para o exame de
qualificação, outro momento fundamental neste processo. Dentre as ponderações feitas pela
banca, a qual foi composta pela Prof. Dra. Mary Jane Spink, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP) e pelo professor Aécio Matos, do mestrado em Psicologia da
UFPE, além do meu orientador, o Prof. Dr. Benedito Medrado, destacou-se a necessidade de
definição de um foco. De fato, reconheci que algo ainda não me estava claro, e assim ficou
durante muito tempo, até que fui aos poucos materializando isto à medida que comecei a
desenvolver minhas reflexões sobre o campo-tema (SPINK, P., 2003).
22
Foi durante o exame de qualificação que me veio a sugestão de investir na produção
de cuidados. Não necessariamente no cuidado, enquanto conceito, mas em como este cuidado
se produz ou é produzido no cotidiano de uma unidade básica de saúde, e em específico, para
a minha pesquisa, voltado para o homem. Logo, comecei a esboçar questionamentos que
considerassem a presença dos homens nas unidades básicas, de que modo estes homens
acessavam e utilizavam os serviços da atenção básica, como eram recebidos, como os
profissionais os acolhiam e respondiam às suas demandas, dentre muitas outras.
Desde o início foi minha intenção tentar fugir do plano da avaliação dos serviços de
saúde. Não era meu objetivo saber se tal prática ocorria ou não, se era benéfica ou não, se era
indicada ou não... Pelo contrário, minha ideia era compreender como práticas desenvolvidas
pelos atores do serviço, aí incluindo usuários e profissionais, eram produzidas sob “o prisma”
do cuidado.
Assim, meu objetivo neste trabalho passou a considerar a compreensão dos modos
como usuários/homens e trabalhadores de saúde produzem o cuidado à saúde do homem
no cotidiano da atenção básica. Neste caso, a partir de uma leitura psicossocial, estou me
referindo às produções discursivas destes atores que inscrevem modos de ser e de viver
dentro dos serviços assistenciais. Em específico, também busquei compreender de que modo
estes homens estão presentes no serviço, como chegam, como percebem o serviço, e ao
mesmo tempo como os profissionais os percebem no seu dia-a-dia.
Um último evento é ainda necessário de ser mencionado aqui. Em agosto de 2011, fui
ao Rio de Janeiro fazer um breve intercâmbio no Programa de Pós Graduação em Saúde da
Criança e da Mulher no Instituto Fernandes Figueira (IFF), vinculado à FIOCRUZ, sob
orientação do Prof Dr. Romeu Gomes. Estive com ele durante alguns meses e neste tempo
tive acesso a diversos temas, textos e pesquisadores/as, além de modos novos de enxergar o
meu próprio estudo.
Neste período, trabalhamos na organização, tratamento e análise das informações que
produzi no meu dia-a-dia na unidade de saúde, tendo sido, muitas vezes instigado a (re)pensar
meus posicionamentos e questionamentos frente àquilo que estava chamando de “produção de
cuidados”. Foi então que decidi não investir necessariamente numa discussão sobre o conceito
de cuidado.
Desse modo, prefiro, neste momento, considerar a expressão “produção de cuidados”,
como uma unidade semântica que diz respeito à disposição, disponibilização e utilização de
determinadas práticas, recursos, serviços e ações assistenciais em saúde pública e que tem por
objetivo prover a população diante das demandas de saúde que apresentam nos serviços de
23
atenção. Assim, não pretendo discutir o conceito de cuidado em específico, mas como este
cuidado é produzido, a partir das tramas discursivas destas pessoas. Fazer esta diferenciação
aqui é necessário, principalmente para mim, que muitas vezes estive relacionando, de maneira
inadvertida, a noção de cuidado às práticas usualmente desenvolvidas no cotidiano dos
serviços de saúde, sem considerar os efeitos dessas práticas nas vidas das pessoas às quais
elas se direcionam. Logo, meu foco está nas práticas em saúde, nas práticas de cuidado, ou,
mais precisamente, nas práticas que “dizem cuidar”, nos usos do cuidado, independentemente
do que esse “cuidar” significa.
Esboçando um Processo de Pesquisa
Tentando circunscrever melhor a pesquisa que aqui apresento, este trabalho
dissertativo está vinculado à linha de pesquisa “Processos Psicossociais, Poder e Práticas
Coletivas” do curso de mestrado em Psicologia da UFPE. Nesta pesquisa, focalizei o contexto
de uma unidade básica de saúde que desenvolve ações de cuidado à Saúde do Homem, em um
distrito sanitário da região metropolitana de Recife-PE.
Para esta definição, ressalta-se o meu interesse, já mencionado acima, e aproximação
nas discussões sobre a relação “Homens e Saúde”, tendo em vista a minha inserção no Núcleo
de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (GEMA/UFPE) e, especificamente, a participação
na pesquisa multicêntrica “Homens nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras
culturais, institucionais e pessoais”, a qual a minha pesquisa está vinculada.
A pesquisa Homens nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras culturais,
institucionais e pessoais, coordenada pelos professores Dr. Jorge Lyra e Dr. Benedito
Medrado, teve por objetivo geral promover a inserção dos homens nos serviços de saúde
sexual e reprodutiva, oferecidos no nível da atenção básica, através da capacitação de
profissionais, elaboração de estratégias de comunicação e avaliação. Esta pesquisa foi
desenvolvida em três cidades de diferentes estados brasileiros (Recife-PE, Campinas-SP e
Florianópolis-SC). Em Recife, a realização da pesquisa esteve sob responsabilidade do
Instituto PAPAI, em parceria com o GEMA/UFPE.
O recorte da pesquisa que apresento nesta dissertação deu-se a partir de algumas
considerações importantes, que já foram relatadas no tópico anterior, as quais levaram à
formulação do seu tema norteador. Para tanto, foi lançada a questão disparadora a seguir: De
que modo se produz o cuidado à saúde do homem no cotidiano dos serviços da Atenção
Básica? E a partir desta, questiona-se, também: Como o homem aparece nas práticas
24
discursivas dos trabalhadores de saúde dos serviços da atenção básica, e qual o lugar que se
tem construído para ele no cotidiano destes serviços? Como estes homens/usuários chegam ao
serviço e de que modo são recebidos/acolhidos? Como os homens/usuários lidam com a
própria saúde e se reconhecem em suas práticas de cuidados? Foi a partir deste conjunto de
questionamentos que tentei organizar esta dissertação.
Para a realização da pesquisa, optamos por um desenho metodológico que contemplou
como contexto os cenários de produção da saúde em nível territorial e como sujeitos
trabalhadores/as e homens/usuários da saúde pública, que interatuam em um serviço da rede
básica de atenção referenciado ao cuidado à Saúde do Homem. Neste ínterim, definimos uma
proposta de estudo que utilizou como procedimentos para a produção de informações em
campo, a Observação no Cotidiano, a realização de conversas informais (com inspiração na
técnica de produção de entrevistas narrativas) e a construção de diários de bordo2.
Em sua realização, acreditamos que esta pesquisa pode vir a contribuir para o
desenvolvimento de estudos e intervenções sobre/nas práticas em vigor e construção de outros
saberes em saúde pública, auxiliando na articulação de ações que possam proporcionar
melhorias na produção de cuidado à saúde do homem no SUS. Neste sentido, partimos do
pressuposto de que o conhecimento das ações dos trabalhadores e usuários da atenção básica
pode colaborar no planejamento de estratégias coletivas de atenção à saúde em nível
comunitário, bem como ampliar as discussões sobre esta temática.
Com isto, citamos também a possibilidade de que este estudo venha a subsidiar a
(co)formação de profissionais de saúde atentos aos desafios e objetivos dos contextos de
trabalho em saúde, em específico à saúde do homem, antenados às demandas locais de
atenção e com vistas a promover uma maior articulação transdiscipinar, democrática e
intersetorial. Por fim, acreditamos que estudar a produção de cuidados à saúde do homem
pode possibilitar a construção de práticas coletivas pelos diversos atores, em consonância às
atuais recomendações políticas e os princípios éticos que as sustentam.
Finalizando este começo...
Tudo o que escrevemos acima tem o objetivo de traçar o processo que nos levou a
partir de uma ideia inicial de pesquisa, a um produto final, inscrito numa trajetória não linear,
que refere uma experiência situada. Reiteramos aqui que neste processo alguns marcos foram
2 Para maiores detalhes sobre o desenho metodológico deste estudo, ver o Capítulo III.
25
importantes para a definição do objeto ao qual nos aproximamos, os quais já foram
mencionados anteriormente.
Dessa maneira, esta dissertação está organizada em cinco capítulos, os quais foram
construídos de maneira a tornar a compreensão do processo de pesquisa mais fácil. Em cada
capítulo situamos rapidamente, desde o seu início, nossa pretensão imediata e desenvolvemos
o texto a partir de subtópicos que se referem a temáticas ou discussões conceituais específicas.
O primeiro capítulo, que denominamos “Saúde do Homem: A Produção de um Campo
e um Sujeito”, constitui o momento no qual nos dedicamos a apresentar e discutir o tema da
nossa pesquisa, a saber, a produção de cuidados à saúde do homem na atenção básica, a partir
de textos (artigos, livros e documentos de políticas públicas) que problematizam e tensionam
este campo de estudos. Partimos de alguns autores e pesquisadores que têm se dedicado a este
campo, com o intuito de visibilizar o que tem sido abordado pelos mesmos em seus trabalhos,
que desafios e limitações tem se observado nas trajetórias particulares que empreendem e
também suas contribuições teórico-práticas e reflexivas sobre os campos produtivos da saúde
pública, considerando as possíveis ressonâncias de tais produções.
No capítulo seguinte, que intitulamos “Entre Reflexões Teóricas: A Produção da
Pesquisa a partir de uma Postura Construcionista”, fazemos uma apresentação da
perspectiva construcionista em Psicologia Social, base epistemológica e conceitual de que
partimos para a realização desta pesquisa. Neste momento da dissertação acreditamos ser
essencial elencar e discutir os pressupostos históricos e filosóficos que orientam este
movimento teórico, bem como os modos de fazer pesquisa a partir desta perspectiva. No
ultimo tópico, apresentamos o trabalho por meio do estudo das Práticas Discursivas e
Produção de Sentidos no Cotidiano (SPINK, 2004a), menos como um campo teórico fechado
e mais como uma tendência ético-política de inspiração construcionista que tem orientado o
trabalho de vários grupos de pesquisadores nacionais em Psicologia Social, e que
especificamente foi adotada por nós para a produção, análise e reflexão das informações
resultantes do nosso processo de pesquisa.
No terceiro capítulo, “Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no
Cotidiano de um Serviço Público da Atenção Básica à Saúde”, descrevemos de maneira mais
aprofundada os procedimentos, materiais, recursos e instrumentos que utilizamos para a
realização do nosso estudo. Ao mesmo tempo indicamos os caminhos percorridos para
definir nosso contexto de pesquisa e como nos posicionamos e atuamos em seu cotidiano,
como nos relacionamos com os atores e de que modo escolhemos e nos aproximamos
daqueles que atuaram como nossos interlocutores. Além disso, apresentamos no início do
26
capítulo uma breve reflexão sobre o fazer ciência e retomamos, apresentando alguns
elementos novos, a discussão sobre a definição/aproximação do objeto de nossa investigação.
No quarto capítulo, que nomeamos “Quem disse que homem não se cuida? A
Produção de Cuidados à Saúde do Homem no Cotidiano de Usuários e Trabalhadores da
Atenção Básica”, dedicamo-nos a apresentar e discutir as informações que produzimos no
nosso campo. Cabe salientar que se trata de um processo situado e posicionado, e que,
portanto neste capítulo estão expressos aqueles componentes que nos pareceram mais
importantes segundo os recortes que demos a partir das informações produzidas. Além disso,
retomamos os objetivos de pesquisa e os autores/interlocutores com quem dialogamos no
primeiro capítulo da dissertação, de modo a problematizar e analisar alguns aspectos do nosso
objeto.
No capítulo posterior, “Algumas Considerações...”, traçamos nossas últimas reflexões
a partir do trabalho que realizamos. Trata-se de uma tentativa de finalizar esta dissertação,
embora não tenhamos a pretensão de esgotar nossos questionamentos. Assim, buscamos
apontar alguns tensionamentos e visibilizar outras perguntas que possam manter o diálogo
fluindo. Boa leitura!
27
CAPÍTULO I
Saúde do Homem: A Produção de um Campo e um Sujeito
Neste capítulo pretendemos situar a discussão proposta na presente dissertação em um
contexto mais amplo de produção científica. Trata-se do momento de articular teoricamente a
temática da “saúde do homem” aos processos de cuidado construídos pelo Sistema Único de
Saúde brasileiro a partir de interlocutores privilegiados.
Abaixo construímos uma linha argumentativa que situa o interesse das ciências sociais
e da saúde nos estudos sobre homens e masculinidades. Além disso, trazemos uma breve
discussão de como o tema “saúde do homem” começa a ganhar destaque, principalmente, nos
últimos anos, no debate das políticas públicas no Brasil. Logo, mencionamos a construção de
um sujeito homem como alvo de atuação dessas políticas públicas no campo nacional,
lançando mão, para isso, de levantamentos epidemiológicos e sócio-demográficos.
Homens, Gênero e Políticas Públicas de Saúde
Para iniciar este tópico, preferimos adotar a iniciativa de Romeu Gomes (2003) no
início do seu texto “Sexualidade Masculina e Saúde do Homem: proposta para uma
discussão”, quando se pergunta: por que decidimos estudar aqui a masculinidade e a saúde
do homem? Recorrendo a este autor, consideramos importante e necessário visualizar os
sujeitos, homens e mulheres, de maneira singular. Neste caso, estamos considerando a
possibilidade de que os modos de construção de si são variados e se realizam segundo
processos particulares distintos que dialogam com marcações sociais, econômicas, políticas e
culturais.
28
Outra possível postura, também mencionada pelo referido autor, diz da adoção de uma
perspectiva relacional e, neste caso, refere-se à construção social do gênero. O gênero, para
Gomes (2003), aparece como “uma forma de legitimar e construir as relações sociais” (p.
826). Sendo assim, ele menciona que o termo “gênero”, construído no bojo do movimento
feminista, teve papel preponderante para se pensar as relações entre homens e mulheres. Esta
perspectiva relacional de gênero concedeu deslocamentos importantes no campo dos papéis
masculinos, como diz este autor, possibilitando reflexões sobre a construção social das
masculinidades e favorecendo problematizações sobre matrizes hegemônicas. Desse modo,
seja por causa da desestabilização ou pela necessidade de se rever os papéis sexuais no
cenário atual, a discussão sobre masculinidade já é um movimento que vem preenchendo
diferentes espaços (GOMES, 1998).
Em linhas gerais, a noção de gênero compreende uma das contribuições das ciências
sociais aos estudos na saúde, sendo usada como referência para compreender e problematizar
a produção da saúde a partir de uma perspectiva multidimensional, englobando aspectos de
ordem social e histórico-cultural. Os estudos considerando a perspectiva de gênero começam
a ganhar força a partir da década de 70, com o movimento feminista e a luta contra a histórica
subordinação feminina no meio social, herança de uma organização política hegemonizada na
instituição patriarcal (FIGUEIREDO, 2008).
Como afirmam Thiago Pinheiro e Márcia Couto (2008), as mulheres organizavam suas
críticas sobre as forças políticas dominantes, dentre elas a classe médica, a Igreja e o próprio
Estado, que impunham, a partir do modelo biomédico, justificativas para a conformação de
seus corpos. Deste modo, questões sociais, como a desigualdade entre homens e mulheres,
estavam sustentadas biologicamente, sendo então alvo de questionamentos pelo movimento
feminista.
Neste sentido, Joan Scott (1995), fazendo uma crítica aos históricos usos errôneos de
termos gramaticais e linguísticos para definir traços de caráter e traços sexuais, afirma que a
palavra “gênero” foi adotada mais seriamente pelas feministas para referir-se à organização
social da relação entre os sexos, rejeitando, dessa forma, o determinismo biológico a ela
associado.
Inicialmente, a noção de gênero aparece como sinônimo de “mulheres”, apresentando
uma função política de busca de legitimidade. Como diz Scott (1995, p. 75) “o uso do termo
‘gênero’ visa sugerir a erudição e a seriedade de um trabalho, pois ‘gênero’ tem uma
conotação mais objetiva e neutra do que ‘mulheres’”, o que possibilitaria um maior
29
reconhecimento das proposições teórico-analíticas do feminismo, aproximando-o das ciências
sociais. Nas palavras de Scott:
O termo gênero, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado
para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação
sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Esta utilização enfatiza o fato de
que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino (SCOTT, 1995, p. 75).
Scott (1995) toma o gênero como categoria analítica, apresentando um debate a partir
do questionamento de como este funciona nas relações sociais humanas e, mais ainda, como
possibilita a construção de sentidos à organização e percepção do conhecimento histórico.
Assim, para esta autora, o gênero adquire sempre uma perspectiva relacional: designando
como se dão as relações entre os sexos, o estudo das mulheres implicaria também considerar
as relações estabelecidas com os homens. A definição de gênero adotada por Scott (1995)
considera que “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às
relações de poder” (p. 86).
Para Pinheiro e Couto (2008) a perspectiva de gênero possibilita uma maior
visibilidade às condições sociais em que os sexos são construídos, configurando-se como uma
forma mais abrangente de se abordar as relações entre homens e mulheres. Desse modo, fazer
uma discussão na perspectiva de gênero no campo da saúde aqui é válido por considerarmos
relevante lançar um olhar de gênero sobre os modos cotidianos de produção da saúde em nível
comunitário, a partir da premissa de que as marcas de gênero, os modos de construção social
de homens e mulheres importam para a oferta de serviços e construção de processos de
cuidado que considerem as demandas singulares.
Ao partir de uma perspectiva relacional de gênero, acreditamos que os modos de
construção social das masculinidades estão intimamente relacionados às maneiras pelas quais
os homens lidam com sua própria saúde e cuidam de si e dos outros. Ao mesmo tempo,
compartilhamos das ideias de Benedito Medrado e Jorge Lyra (2008) quando situam a Saúde
Pública “como um campo de relações interpessoais e institucionais que se organizam em
dispositivos e relações de poder e que marcam posições de sujeito e modos de ser, de saber e
de fazer” (p. 810). Assim, pensar os homens e as masculinidades na saúde, a partir de uma
perspectiva de gênero, implica então, situar como histórica e socialmente homens se formam e
são formados em nossa cultura e os efeitos que tais processos (con)formativos tem sobre suas
relações consigo mesmo, com outros homens e com as mulheres.
30
Tomando uma perspectiva histórica, pode-se citar que o marco dos estudos sobre a
temática “homens e saúde” deu-se a partir da segunda metade do século XX, especificamente
na década de 70. Estes estudos apresentavam a premissa de que a construção da
masculinidade tradicional atuava como produtora de déficits à saúde (SCHRAIBER, GOMES
e COUTO, 2005).
Segundo Lilian Schraiber, Romeu Gomes e Márcia Couto (2005), baseados em
Couternay (2000), esta perspectiva avançou de maneira mais consistente nos anos 80,
observando-se neste período uma mudança em sua nomeação, o que fez com que os estudos
dos homens passassem a ser compreendidos como estudos de masculinidades. Com isto, nos
anos 90, outras noções passam a ser incorporadas a estes estudos, tais como poder,
desigualdade, orientação sexual, classe, etnia, religião, geração etc. No Brasil e na América
Latina, os estudos com foco na relação homem-saúde começam a surgir no final da década de
80 e seguem o padrão dos estudos europeus e norte americanos (SCHRAIBER, GOMES e
COUTO, 2005).
No final da década de 90, como Benedito Medrado, Jorge Lyra, Karla Galvão e Pedro
Nascimento (2000) destacam, alguns pesquisadores de diversos lugares do mundo vinham se
dedicando a refletir sobre a construção social das masculinidades no intuito de problematizar
de que modo os homens atualizavam, ou não, no seu cotidiano, o modelo hegemônico de
masculinidade. Em território nacional, na segunda metade da década de 90, a publicação de
teses e dissertações sobre a temática concedeu fôlego a esta discussão, quando se observou
também a construção de uma rede de diálogos entre diversos estudiosos e interessados, bem
como investimentos por parte das agências de fomento. Na visão destes autores, conhecer as
práticas sociais dos homens poderia contribuir para diversos programas e ações de saúde,
podendo-se citar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, o enfrentamento da
violência de gênero, e melhorias na saúde das crianças, das mulheres e dos próprios homens.
Medrado et al (2000) enfatizam dois eventos sócio-políticos que podem ser tomados
como marcos no investimento e visibilidade no estudo de homens e saúde reprodutiva e
sexualidade: a IV Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no
Cairo, em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, em 1995.
Recomendações destes eventos abrangiam a necessidade de uma maior participação
masculina na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, envolvendo os homens em ações
relativas à “paternidade responsável” e ao uso de métodos anticoncepcionais.
É nesta direção que queremos situar a construção, nos últimos anos, de uma suposta
visibilidade dos homens no campo da saúde. Não estamos partindo de um ponto de
31
argumentação que coloca os homens como desfavorecidos no campo dos direitos em saúde,
pelo contrário, compreendemos que a construção da “saúde do homem” parte de um
movimento que em muito difere do que ocorreu com a “saúde da mulher”, por exemplo, que
partiu de uma série de ações afirmativas com vistas ao fortalecimento de seus direitos. Do
mesmo modo, não estamos aqui compartilhando da ideia de uma separação necessária entre
os gêneros no campo da saúde, nem tampouco, estabelecendo privilégios entre um ou outro.
Pressupomos, como já afirmado, que é necessário considerar as demandas singulares e
relacionais, identificando as necessidades dos homens no campo da saúde.
Patrícia Bezerra e Itamar Lages (2011) fazem considerações importantes na discussão
que se assume entre homens e direitos de saúde. Nas palavras destes autores, quando se fala
em direito à saúde, é preferível abordar a acepção da “deliberação dos direitos de cidadania”,
concernindo à perspectiva de ultrapassar de uma noção estritamente jurídica (o direito
jurídico, de garantia de uma série de processos de cuidado, acolhimento, assistência clínica
etc.), para englobar também o “direito do homem a ser sujeito de si” (p. 274-275). Assim,
citando Paulo Henrique Martins (2009, p. 59) eles afirmam que “o entendimento
contemporâneo da cidadania exige considerar-se que o jurídico é apenas um dos termos
constituintes, devendo ser lembradas igualmente a moral e a política”.
Isto fica mais claro quando consideramos o texto da ainda recém-publicada Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem – PNAISH (BRASIL, 2009a) que aborda,
desde a sua introdução, a necessidade de “mobilizar a população masculina brasileira pela luta
e garantia do direito social à saúde”, constituindo-se esta mobilização um dos seus desafios,
com vistas a “tornar os homens protagonistas de demandas que consolidem seus direitos de
cidadania” (p. 16). Assim, compreendemos que a convocação dos homens às ações de saúde,
e mais ainda, o reconhecimento dos homens como sujeitos alvos das políticas públicas em
saúde torna-se fundamental por considerarmos importante que homens e mulheres sejam
vistos como sujeitos de direitos.
Neste sentido, é mister considerar que a publicação da PNAISH é um importante passo
na consolidação deste objetivo. Ainda estamos começando a sentir seus efeitos e ressonâncias,
tanto no plano científico, com o grande e recente aumento de publicações relacionadas à
temática, quanto no campo das práticas em saúde, com a paulatina inserção de ações voltadas
à população masculina no cotidiano dos serviços assistenciais. Voltaremos a discutir melhor a
publicação da referida Política em outro tópico desta dissertação.
32
A Construção/Delimitação de Modos de Ser Homem e Cuidados à Saúde
Neste tópico buscamos apresentar a intersecção homens-saúde a partir de discussões
que situam as relações de gênero como determinantes de modos específicos de
construção/produção de sujeitos da saúde. Para tanto partimos de interlocutores privilegiados,
que abordam em seus trabalhos um olhar sobre a produção da saúde da população masculina,
tomando como prisma a necessidade de se considerar o gênero a partir de uma perspectiva
relacional.
Dados epidemiológicos, que serão mais bem contemplados em outra seção deste
mesmo capítulo, acabam confluindo para a conclusão de que os homens apresentam riscos
diferenciados para diversas questões de saúde, demonstrando condições de saúde
desfavoráveis em comparação às mulheres, do ponto de vista da morbimortalidade
(FIGUEIREDO, 2008). Um exercício que podemos fazer diante desta constatação é
questionar os motivos que tornam os homens mais vulneráveis do que as mulheres no tocante
às questões relacionadas à sua própria saúde.
De antemão podemos responder, com base, inclusive, nos autores e autoras que
recorremos para dialogar neste capítulo, que homens e mulheres tem padrões de sociabilidade
diferenciados em nossa sociedade, e isto tem reflexos diretos e indiretos nos modos de
produção da saúde, seja em nível individual ou coletivo. Quando situamos ao menos estes
dois níveis, pretendemos considerar que a produção da saúde se realiza a partir de
movimentos existenciais, intrapessoais e interpessoais. Dentre aqueles podemos citar as
práticas de autocuidado, e dentre estes, a produção de cuidados que se realiza por outros,
estando aí contidas as práticas desenvolvidas no interior dos serviços de saúde
(institucionais).
O que queremos dizer especificamente é que a construção do que é ser homem e do
que é ser mulher condicionam necessariamente modos distintos de relacionamento dos
sujeitos com o cuidado de si e dos outros, e que tais modos de ser, acabam funcionando como
matrizes existenciais que direcionam, por sua vez, estes sujeitos a modos distintos de
produzirem e lidarem com sua própria saúde.
Destacamos que, em geral, homens e mulheres são educados para assumirem e
responderem a diferentes expectativas sociais que os situam em lugares pré-estabelecidos.
Considerando-se o modelo hegemônico de masculinidade a que os homens devem aceder,
diversos autores (FIGUEIREDO, 2008; MEDRADO et al, 2000) salientam que as
expectativas sociais do “ser homem”, per se, constituem fatores que tornam os homens
33
vulneráveis por buscarem incessantemente responder a este ideal, em que a exposição a
fatores de risco não é algo a ser evitado e, pelo contrário, riscos precisam ser superados
cotidianamente. Esta atitude de superação dos riscos por parte dos homens acaba fazendo com
que os mesmos adquiram um estilo de vida autodestrutivo, deixando de lado a busca pelo
autocuidado (MEDRADO et al, 2000).
No entanto, como salienta R. Connell (1995) a “masculinidade hegemônica”
corresponde a um modelo cultural ideal, que não é alcançado praticamente por nenhum
homem. Esta subsunção dos homens ante o modelo hegemônico da masculinidade, além de
contribuir para a aquisição e exposição a comportamentos de risco, ao mesmo tempo,
compreende um fator de vulnerabilidade ao impedir que outros homens possam assumir este
modelo tendo em vista relações sociais hierárquicas, com desigualdades de poder, gênero, cor
e raça.
Pinheiro e Couto (2008), seguindo a mesma lógica de argumentação, consideram que
muitos comportamentos danosos à saúde dos homens podem ser atribuídos aos processos de
construção social das masculinidades. Estes autores, citando Couternay (2000), salientam que
os homens adotam certas práticas e comportamentos em saúde para responder aos padrões
hegemônicos de masculinidade necessários ao seu estabelecimento como homens. Deste
modo, para “ser homem”, acabam reprimindo questões importantes de saúde em suas
necessidades e demandas, recusam-se a admitir fraqueza, dor, sofrimento e vulnerabilidade e,
ao mesmo tempo, negam necessidades de cuidado à própria saúde. Tal posicionamento, leva-
nos a considerar a reiteração da noção de cuidado associada ao feminino, o qual deve ser
evitado (PINHEIRO e COUTO, 2008).
Roberto DaMatta (1997), ao tratar das inseguranças do “ser homem”, estabelece uma
separação entre “ser homem” e “sentir-se como homem”. Para ele “‘ser homem’ é receber de
uma mulher o atestado ou a prova de que se é verdadeiramente ‘homem’” (p. 827). A
diferença, neste caso, situa-se no saber relacionar-se, o que vai mais além que simplesmente
“ser equipado para funcionar como macho”.
Fernanda Simião (2010), em sua dissertação de mestrado, recorre a Elisabeth Badinter
(1993) para falar do processo de “tornar-se homem”. Num caminho semelhante ao
apresentado pelos autores acima citados, Badinter apresenta a premissa de que o “tornar-se
homem” exige esforços e trabalho diferentes do “tornar-se mulher”. No caso dos homens,
estes precisam “conquistar” a sua masculinidade, estando esta conquista relacionada à prova
de sua virilidade, construída socialmente. Logo, o “tornar-se homem”, tal qual apontado por
34
DaMatta (1997), vai além de uma determinação biológica, envolvendo também fatores
sociais, psicológicos e culturais.
Em estudo realizado com homens com idade maior que 40 anos e de diferentes
escolaridades, Romeu Gomes, Elaine Nascimento e Fábio de Araujo (2007), encontraram
pistas, fornecidas pelos seus interlocutores, associadas ao “ser homem”. Na visão destes,
percebe-se uma lógica argumentativa que parece aproximar-se da noção relacional de gênero,
sendo o homem visto a partir de uma série de características que os diferenciam das mulheres.
Assim, os homens são viris, fortes, tem iniciativa sexual (são ativos) e são sexualmente
infiéis, enquanto as mulheres são mais frágeis, sensíveis, passivas e controladas (são menos
infiéis).
Além disso, os autores, baseados em outros estudiosos (WELZER-LANG, 2001;
BOZON, 2004), destacam que a educação dos meninos realiza-se desde a infância, a partir da
oposição entre os sexos e as atribuições de gênero: os meninos devem rejeitar os
comportamentos associados ao feminino para se constituírem como homens. Deste modo, a
construção do “ser homem” parece acontecer pela via contrária, não se realizando a partir do
desejo e identificação com a virilidade, mas pelo receio de terem esta suposta virilidade
negada, sendo vistos como efeminados (GOMES, NASCIMENTO e ARAÚJO, 2007).
A perspectiva da construção do “ser homem” a partir da oposição/evitação também
aparece nas palavras de Badinter (1993, citada por SIMIÃO, 2010, p. 33), ao mencionar que
“as negativas predominam”. Nestes termos, “ser homem” compreende não ser: “feminino,
homossexual, dócil, dependente, submisso, efeminado, impotente, entre outras”. Ainda, o “ser
homem” está amplamente relacionado à dificuldade em expressar sentimentos, à
supervalorização do pênis e à violência.
Neste sentido, a construção social da masculinidade tem reflexos sobre a saúde dos
homens, pois
O imaginário de ser homem pode aprisionar o masculino em amarras culturais,
dificultando a adoção de práticas de autocuidado, pois à medida que o homem é visto
como viril, invulnerável e forte, procurar o serviço de saúde, numa perspectiva preventiva, poderia associá-lo à fraqueza, medo e insegurança; portanto poderia
aproximá-lo das representações do universo feminino, o que implicaria possivelmente
desconfianças acerca dessa masculinidade socialmente construída (GOMES,
NASCIMENTO e ARAÚJO, 2007, p. 571)
No entanto, Gomes, Nascimento e Araújo (2007) destacam, entre os interlocutores do
seu estudo, alguns aspectos que podem ser compreendidos como mudanças nas formas de se
perceber e lidar com essa imagem de “ser homem”. Assim, começa-se a pensar, por exemplo,
35
na existência de diversas formas de expressão da masculinidade e na atribuição de certos
comportamentos e sentimentos (mesmo contidos) ditos como femininos aos homens. É
importante considerar que, mesmo neste movimento de ruptura com a ideia de uma
masculinidade hegemônica, esta está ainda amplamente relacionada à heterossexualidade, a
qual funciona como eixo estruturador das formas de construção da masculinidade.
Sobre a relação homem-saúde, em outro trabalho, Romeu Gomes e Elaine Nascimento
(2006, p. 908) acabam apresentando duas conclusões importantes: 1) os modelos
hegemônicos de masculinidade acabam dificultando que homens adotem hábitos e convicções
mais saudáveis; e, 2) estes homens, quando influenciados por ideologias hegemônicas de
gênero, podem colocar em risco tanto a sua saúde e a de outros homens, quanto a das
mulheres.
Deste modo, os homens a partir dessa identificação com a ideia de uma masculinidade
hegemônica, acabam tornando-se vulneráveis pelo próprio senso de invulnerabilidade
socialmente compartilhado. As ideias dos autores acima apresentados acabam nos auxiliando
a compreender a importância de estudos em saúde que centram sua atenção nos processos de
cuidado ao homem, no tocante a práticas sensíveis de manutenção da própria saúde e
promoção de hábitos saudáveis. Este estudo, que apresentamos aqui, baseia-se então, na
premissa de que é necessário problematizar a produção cotidiana dos homens na saúde tendo
em vista ainda a invisibilidade dos mesmos nos serviços públicos, estando esta invisibilidade
intimamente relacionada aos modos cotidianos de construção do ser masculino.
Desde já não assumimos a invisibilidade masculina a partir de uma via de mão única,
pelo contrário, trata-se de uma complexa rede de relações que acaba por produzir efeitos
significativos nos modos de vida de determinados sujeitos, e por diversos fatores que estão
mutuamente implicados. Dentre eles, a falta de ações voltadas aos homens nos serviços, bem
como o descuido na atenção às demandas apresentadas por eles, a suposta “auto-
invisibilização” do homem ao não considerar sua própria vulnerabilidade e que o leva a não
praticar o autocuidado, e não acessar os serviços de saúde, e o próprio ambiente social que
reproduz modelos de masculinidade que situam os homens como grupo de risco.
Sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem
No presente tópico, dedicaremo-nos a discutir e apresentar a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Homem, publicada no ano de 2008. Não é nosso objetivo aqui
fazer uma análise crítica da política. Outros autores (MENDONÇA e ANDRADE, 2010;
36
CARRARA, RUSSO e FARO, 2009) já se propuseram a isso e consideramos que, embora
tais análises correspondam a lugares distintos e com finalidades diferentes, este exercício
merece destaque e recomendamos a leitura destes trabalhos para maior aprofundamento neste
tipo de discussão.
A nossa intenção em resgatar o texto da política tem mais uma tentativa de auxiliar na
contextualização de um campo de estudos que se desenvolveu em meados à sua publicação,
ou seja: a política de certo modo organiza um processo histórico, não-linear, de fortalecimento
de uma área de estudos.
Fazendo uma breve reconstrução histórica da PNAISH, observa-se que embora seu
lançamento tenha sido anunciado no ano de 2005, isto só veio acontecer em 2008, quando foi
publicado o documento “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem:
Princípios e Diretrizes”. O contexto de articulação desta Política apresenta a premissa,
comentada pelo então ministro da saúde José Gomes Temporão, de que os homens adoecem
mais que as mulheres, morrem mais precocemente e utilizam menos os serviços de saúde.
Além do texto da Política, também é importante citar a existência do “Plano de Ação
Nacional (2009-2011)” (BRASIL, 2009b). Atualmente, as ações e estratégias referentes à
Política de Saúde do Homem no Brasil estão norteadas pelos referidos documentos.
Segundo seu texto, o objetivo da PNAISH é “promover a melhoria das condições de
saúde da população masculina do Brasil, contribuindo, de modo efetivo, para a redução da
morbidade e mortalidade dessa população, através do enfrentamento racional dos fatores de
risco e mediante a facilitação ao acesso, às ações e aos serviços de assistência integral à
saúde” (BRASIL, 2009a, p. 53).
Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo, Marcio Valente e Jéssica Noca
(2011), realizando uma leitura crítica desta Política, apontam algumas questões que merecem
destaque, a começar pela definição de saúde utilizada que “parece ainda atrelada à tradicional
oposição à enfermidade, na medida em que se enfatiza a redução da morbidade e mortalidade”
(p. 31). Além disso, segundo estes autores, “ao ressaltar o ‘enfrentamento racional dos fatores
de risco’, focaliza-se a resolução de problemas de saúde na dimensão da racionalidade e
exclusivamente em indivíduos” (p. 31).
Outro aspecto destacado pelos autores supracitados diz respeito “à importância do
olhar de gênero para compreensão dos agravos à saúde dos homens”, que apesar de no texto
da política aparecer em seus objetivos específicos da seguinte maneira: “incluir o enfoque de
gênero, orientação sexual, identidade de gênero e condição étnico-racial nas ações
educativas”, não é contemplado pelas ações descritas no Plano de Ação (idem, ibidem).
37
O documento do Plano de Ação Nacional 2009-2011 (BRASIL, 2009b), apresenta o
planejamento das ações e estratégias que orientariam a implementação da PNAISH no triênio
referido e possui nove eixos norteadores, que apontam para a inserção de estratégias de ação
para a Saúde do Homem nos níveis municipal e estadual, tais como: a elaboração de
estratégias com intuito de aumentar a demanda dos homens nos serviços de saúde; a
sensibilização dos homens e de suas famílias, com incentivo ao autocuidado e
desenvolvimento de hábitos saudáveis; a elaboração de estratégia de educação permanente
junto aos trabalhadores do SUS; dentre outros.
O Plano ainda salienta que a implementação da política se dará de maneira sistemática,
ao longo dos três anos iniciais, começando pela escolha de um município em cada estado
(total de 26 municípios) que servirá de referência ao desenvolvimento local das ações à saúde
do homem. Por fim, é importante destacar que este documento não menciona, como salientam
Medrado et al (2011) “as instâncias de controle social na formulação da política ou do Plano
de Ação” (p. 33), o que chama bastante atenção, tendo em vista a organização do sistema de
saúde brasileiro, que tem como uma de suas prerrogativas a produção democrática da saúde,
tanto no planejamento, quanto na avaliação e acompanhamento das ações.
Em outro documento, Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo, Edna Granja
e Sirley Vieira (2009), mobilizados pelo contexto político de criação da PNAISH e
preocupando-se com o delineamento de princípios e diretrizes que possam orientar o
desenvolvimento de uma atenção integral aos homens na saúde, afirmam a necessidade de se
considerar “a complexa teia de significados e valores que orientam processos educativos e
institucionais mais amplos e conferem aos homens, ao mesmo tempo, privilégios e restrições”
(p. 30).
Neste documento, intitulado “Princípios, Diretrizes e Recomendações para uma
Atenção Integral aos Homens na Saúde”, é elaborada uma série de diretrizes necessárias à
discussão de ações e estratégias focadas na promoção da saúde da população masculina. São
16 diferentes proposições que abordam como uma Política Nacional, que se propõe a traçar
parâmetros de organização do cuidado à saúde, deve se estruturar para minimamente garantir
e efetivar uma maior participação masculina nas práticas de cuidado de si e dos outros. Dentre
estas proposições, podemos destacar: a necessidade de que uma política de saúde voltada para
os homens também contribua para a promoção dos direitos das mulheres; considerar a
ampliação do conceito de saúde, reconhecendo que cuidar da saúde dos homens, implica mais
que tratar de doenças específicas atribuídas à população masculina, levar em conta
38
determinantes psicossociais e culturais associados; compreender que a atenção à saúde dos
homens deve se dar de maneira integral; entre outras (MEDRADO et al, 2009).
Tais recomendações também englobam a importância de se reconhecer e respeitar a
diversidade, compreendendo as diferentes formas de construção das masculinidades. Alguns
setores específicos também são destacados, funcionando como um chamamento político à
participação dos homens em atividades que, a princípio, não contam com a sua presença,
como o campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Um último destaque damos à premissa de
que os serviços de saúde precisam acolher as demandas apresentadas pelos homens, atraindo-
os e contemplando suas necessidades singulares (MEDRADO et al, 2009).
O documento citado também traz uma lista de recomendações que devem ser seguidas
por gestores e profissionais no tocante a promoção de cuidados à saúde do homem. Trata-se
de proposições que englobam processos de organização do cuidado à saúde nos diferentes
níveis de atenção, orientados pelas diretrizes já citadas acima. Dentre estas recomendações
podemos destacar a premissa de que a formulação e implementação de uma política de
atenção à saúde da população masculina precisa desenvolver-se considerando ações
territoriais, integrais e intersetoriais (MEDRADO et al, 2009).
Com relação ao texto da PNAISH, já nas suas palavras de apresentação, aparece a
premissa de que “cada homem pode manter-se saudável em qualquer idade” (BRASIL, 2009a,
p. 9), justificando assim que uma ênfase predominante na Política se relaciona às ações de
prevenção, proteção e promoção da saúde. Tal pressuposto também parece relacionar-se às
palavras do Ministro José Gomes Temporão quando salienta que o desenvolvimento da
Política deu-se de maneira a articular suas ações também e principalmente com a Política
Nacional da Atenção Básica (PNAB), porta de entrada do Sistema Único de Saúde, com
ênfase particular nas estratégias de humanização do atendimento e considerando-se a
necessidade de contemplar a população masculina nas realidades singulares, a partir de
contextos socioculturais e político-econômicos variados (BRASIL, 2009a).
Como nesta dissertação estamos tratando especificamente da produção de cuidados à
saúde do homem nos serviços da atenção básica, em outro momento nos dedicaremos a
discutir e apresentar este nível de complexidade do sistema de saúde brasileiro. Neste
momento importa considerar apenas que há uma prerrogativa na PNAISH de incluir na
atenção básica, ações e atividades voltadas à população masculina, de modo a garantir, não
apenas uma maior presença dos homens nestes serviços, mas também uma atenção integral
que contemple os três níveis de complexidade do SUS.
39
Na nossa leitura, destacamos também no texto da PNAISH a consideração das
“questões do masculino” (no texto aparece como “agravos do sexo masculino”) tomando-as
como problemas de saúde pública, as quais não podem mais ser invisibilizadas. Cita-se, neste
contexto, que “o sistema de saúde deu-se conta de que o modelo básico de atenção aos quatro
grupos populacionais – crianças, adolescentes, mulheres e idosos – não é suficiente para
tornar o País mais saudável, principalmente por deixar de fora nada menos do que 27% da
população: os homens de 20 a 59 anos de idade” – os quais representavam, em 2009, 52
milhões de pessoas (BRASIL, 2009a, p. 08).
Outro aspecto merece ser mencionado aqui: por mais que o texto introdutório da
Política, bem como os argumentos que conduzem à definição de princípios e diretrizes para o
trabalho da saúde do homem, tragam uma visão ampliada da saúde da população masculina,
considerando determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais, principalmente no
tocante às questões geracionais, de idade e de gênero, a definição do objetivo geral da mesma
acaba centrando-se apenas nos aspectos morfofisiológicos, enfatizando as informações
epidemiológicas que tem por foco a redução da morbimortalidade masculina.
Na leitura crítica do texto da Política realizada por Medrado (et al, 2011), acima
disposta, já se discutia isto. Nesse caso, questionamos em que medida se pode avançar nas
discussões sobre a ampliação do acesso aos serviços de saúde, se a racionalidade
epidemiológica (insuficiente para dar conta da complexidade dos determinantes da saúde)
acaba direcionando na maioria das vezes a definição das estratégias e ações. Isto acaba se
refletindo no plano mais “prático”, ao tomarmos o Plano de Ação, em que há uma
predominância de ações orientadas por esta racionalidade.
Também chamamos a atenção a um aspecto, já mencionado por Jéssica Noca (2011),
em sua dissertação de mestrado, que diz respeito ao contexto mais amplo de criação da
Política, quando pontua a participação das sociedades médicas, como a Sociedade Brasileira
de Urologia (SBU) neste processo, à qual foi dado grande espaço e voz, ainda considerando a
centralidade na discussão biologicista, que encara o homem a partir de questões fisiológicas.
Neste caso, saúde do homem estaria relacionada à saúde da próstata e outras doenças, ou
questões da sexualidade. Na leitura de Noca (2011) isto vem “corroborar com a valorização
dada à saúde do homem no campo da ‘sexualidade medicalizada’, com ênfase na genitália e
nos agravos físicos à saúde sexual” (p. 39). Esta autora chama a atenção para a ênfase que tem
sido dada no incentivo ao consumo de medicamentos voltados às disfunções sexuais dos
homens, um movimento que parece indicar uma crescente medicalização dos corpos
masculinos.
40
Cabe, neste sentido, destacar os interesses econômicos e corporativos relacionados a
esta participação das sociedades médicas, o que já foi comentado por Sérgio Carrara, Jane
Russo e Livi Faro (2009). Se junta a isto a ação da indústria farmacêutica, com mobilização
na medicalização dos corpos masculinos, que tem grande apoio da própria categoria médica, a
qual prescreve medicamentos e, consequentemente, legitima os benefícios à saúde do homem
associados ao consumo de remédios (NOCA, 2011). Na visão de Lilia Schraiber et al (2010),
a medicalização “é marca sócio-histórica que apaga a socialidade da doença e da medicina,
reduzindo-as a questões biomédicas e impedindo que sejam enunciados carecimentos que não
encontram possibilidade discursiva nessa linguagem” (p. 962).
Isto complementa o argumento anterior, quando mencionamos que a ênfase nas
questões biológicas acaba fazendo com que sejam deixados de lado aspectos de ordem
psicossocial e cultural que respondem em grande parte pelos problemas que acometem a
população masculina. Ademais, compreendemos que uma política que se propõe integral e
demanda ações em diversos campos, não pode nem deve centrar suas ações em setores
particulares, marcados por interesses econômicos e políticos, tendo em vista uma conjuntura
social mais ampla que estrutura demandas e necessidades específicas.
Como vimos, um dos objetivos da PNAISH é o fortalecimento e qualificação da
Atenção Básica à Saúde (ABS), de modo que esta esteja preparada para atrair e acolher as
demandas dos homens na saúde. Tal ênfase situa-se no fato de que os homens costumam
acessar o sistema único de saúde através dos serviços de média e alta complexidade (unidades
de urgência e emergência, e hospitais, por exemplo), que tem como consequência o agravo da
morbidade tendo em vista o retardamento da atenção (BRASIL, 2009a). Uma das razões para
isto relaciona-se ao fato de que os homens procuram mais os serviços de saúde por motivo de
doença, ao contrário das mulheres que os utilizam para a realização de exames de rotina e
prevenção (PINHEIRO et al, 2002).
Além disso, os homens preferem utilizar serviços que proporcionem resolubilidade
imediata ao seu problema, sendo a ABS rechaçada por eles em vista do tempo de espera entre
a marcação de consultas e a efetivação de uma resposta. Compreende-se que muitos dos
agravos à saúde dos homens poderiam ser evitados se estes realizassem, periodicamente, as
medidas de proteção primária, no entanto, percebe-se uma resistência da população masculina
na adesão a este tipo de cuidado com a própria saúde (BRASIL, 2009a). Dito isto, no próximo
tópico nos preocuparemos em abordar de maneira breve a organização e lógica de
funcionamento da ABS e, posteriormente, trazemos um panorama geral do uso e acesso dos
homens aos serviços de atenção básica à saúde no Brasil.
41
A Organização da Atenção Básica à Saúde: Conceitos Fundamentais e Lógica de
Funcionamento
A Atenção Básica à Saúde compõe uma rede articulada de cuidados que tem como
objetivo maior contemplar o sujeito de modo integral, constituindo uma lógica territorial de
funcionamento voltada para as necessidades singulares e sociais, e compreendendo um
conjunto de ações de caráter individual e coletivo, com ênfase na promoção à saúde,
prevenção, tratamento e reabilitação (BRASIL, 2006a).
Neste modelo, a Atenção Básica se organiza a partir da atuação da Estratégia de Saúde
da Família (ESF), a qual se constitui por equipes básicas compostas por: um/a médico/a de
família, um/a enfermeiro/a, um/a auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários/as de
saúde, podendo ser ampliada com a participação de um/a dentista, um/a auxiliar de
consultório dentário e um/a técnico/a em higiene bucal. A ação das equipes da ESF ocorre nas
Unidades de Saúde da Família (USF) e nas residências da população atendida, configurando-
se como porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1998; 2006b).
Tomando uma perspectiva histórica, percebe-se que a implementação da ESF foi
gerada a partir da experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O
PACS foi criado em 1991, no Nordeste brasileiro, com o objetivo de atuar frente aos altos
índices de morbimortalidade materno-infantil existentes nessa região. Essa experiência
fornece importantes contribuições para a reorganização da assistência à saúde: a família passa
a ser o foco das ações, e não o indivíduo; introduz-se a noção de área adstrita; e promove a
adoção de uma postura ativa dos profissionais, os quais não devem mais basear suas
intervenções a partir das demandas apresentadas, mas agir sobre elas de maneira preventiva
(NASCIMENTO, 2007).
A partir disso, o Ministério da Saúde (MS) propõe a criação do Programa Saúde da
Família (PSF), em 1994, e o PACS é tomado como estratégia de transição do modelo de
saúde vigente para a proposta do PSF (atualmente ESF), o qual tem como objetivo principal:
“reorganizar a prática da atenção à saúde em novas bases e substituir o modelo tradicional
centrado no hospital, além de assumir o desafio de garantir o acesso igualitário de todos aos
serviços de saúde” (NASCIMENTO, 2007, p. 22).
Assim, a partir de 1998, observa-se uma grande expansão do PSF por todo o país,
consolidando-se como estratégia prioritária para a reorganização da Atenção Básica e
efetivação de novas práticas de saúde no Brasil (NASCIMENTO, 2007; PAIM, 2003). Em
42
agosto de 2011, o número de ESFs no Brasil totalizou 32.079, distribuídas em 5.284
municípios, o que corresponde a 94,95% dos municípios do território nacional (Figura 1).
Figura 1: Quantidade de Municípios com ESF implantadas (de 1994 a agosto de 2011).
Fonte: DAB/MS. Dados atualizados até agosto/2011. (on line)3
No entanto, mesmo que a maioria dos municípios do país possua equipes de ESF, a
cobertura da população ainda é relativamente baixa, chegando a pouco mais de 53% (Figura
2). Uma das principais razões para isto é a baixa cobertura nos municípios mais populosos,
principalmente nas capitais, em que as disparidades comunitárias e desigualdades sociais
obstaculizam a gestão e organização dos serviços de saúde.
No que diz respeito à organização das práticas de saúde voltadas para a família, seus
pressupostos são: a saúde como um direito de cidadania e expressão da qualidade de vida; a
família como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde; a democratização do
conhecimento, organização e produção da saúde; a intervenção sobre os fatores de risco; a
prestação de atenção integral no domicílio, no ambulatório e no hospital; a humanização e
busca de satisfação do usuário; o estímulo à organização comunitária no intuito de
potencializar o controle social; e o estabelecimento de parcerias (CORDEIRO, 1996).
3 Figura reproduzida do Departamento da Atenção Básica – DAB/MS. Imagem disponível em:
http://dab.saude.gov.br/imgs/ graficos_abnumeros/dab_graph_sf_nro_municipio.jpg. Acesso: 12/01/2012
43
Figura 2: Quantitativos de ESF e ACS e cobertura populacional no Brasil (de 2001 a agosto de 2011)
Fonte: DAB/MS. Dados atualizados até agosto/2011. (on line)4
A produção do cuidado, na ABS, aponta para outro direcionamento das práticas de
saúde, com a necessidade de uma vinculação cada vez maior destas com a análise e utilização
do território e da rede social. Esta articulação no território tem por finalidade o
desenvolvimento de uma clínica tal, que possibilite a constituição de sujeitos autônomos, mais
saudáveis em sua afetividade e em suas relações sociais, e mais potentes para transformar a
realidade (FIGUEIREDO e ONOCKO-CAMPOS, 2009). A noção de clínica ampliada é
fundamental para a efetivação dessas mudanças, nas formas de se produzir o cuidado e na
transformação dos modos de vida de cada sujeito.
O fortalecimento de vínculos entre usuários, famílias e comunidade com as equipes de
saúde aparece como um dos meios adequados para a prática da clínica ampliada no interior da
atenção básica. Vládia Jucá, Mônica Nunes e Suely Barreto (2009) salientam, no entanto, que
é preciso considerar que esta noção envolve a existência de uma postura incorporada
culturalmente e que demanda tempo e esforços de ambas as partes para ser construída. Neste
sentido, estas autoras afirmam que para iniciar esse processo, os profissionais precisam
negociar com a comunidade tendo, para isso, um direcionamento compartilhado em termos
das condutas a serem adotadas.
A ideia de vínculo remete a outro pressuposto, a saber, a questão da responsabilidade
pelo cuidado, entendida como co-gestão sobre os cuidados, do sujeito e do profissional sobre
4 Figura reproduzida do Departamento da Atenção Básica – DAB/MS. Imagem disponível em:
http://dab.saude.gov.br/imgs/ graficos_abnumeros/dab_graph_sf_acs_sb_cobertura.jpg. Acesso: 12/01/2012
44
as ações em saúde, que pode se efetivar por meio de discussões conjuntas e intervenções junto
às famílias e comunidades. Na prática, aponta-se uma tendência para que a lógica da co-
responsabilização seja sobreposta à lógica do encaminhamento (FIGUEIREDO e ONOCKO-
CAMPOS, 2009).
Neste patamar, é perceptível uma modificação do foco da orientação da assistência
oferecida pelos dispositivos de saúde, que passa a se deslocar progressivamente do interior
dos serviços e de seus procedimentos pré-formatados, para ocorrer a partir das necessidades
dos sujeitos, das famílias, do território e da rede de relações que nele acontecem. Assim, a
construção de projetos terapêuticos arquitetados para cada situação singular ganha lugar no
fazer dos diversos profissionais da atenção básica.
Ademais, devemos considerar que as disposições que são promulgadas pelas políticas
públicas precisam ser trabalhadas junto às equipes, instalando-se espaços destinados à
reflexão e à análise crítica sobre o próprio trabalho, e que possam ser continentes aos
problemas cotidianos na relação entre profissionais e usuários dos serviços de saúde. No caso
especial da PNAISH, que prevê uma articulação intersetorial e fortalecimento de processos de
cuidado já existentes, de modo que estes possam contemplar os homens como sujeitos de suas
ações, compreende-se que algumas mudanças são necessárias.
Homens e Acesso aos Serviços de Atenção Básica à Saúde
Com relação à presença de homens no interior dos serviços da atenção básica, Wagner
Figueiredo (2005) elenca uma série de explicações e justificativas que responderiam à pouca
procura desses serviços pelos homens. Para ele, uma primeira consideração diz respeito a uma
característica da identidade masculina, relacionada ao seu processo de socialização. Neste
particular, os homens adotam uma postura de desvalorização do autocuidado e pouca
preocupação com a saúde. Uma segunda consideração relaciona-se à busca, pelos homens, de
outros serviços que apresentam respostas mais objetivas às suas questões de saúde, tais como
hospitais, unidades de urgência e emergência ou farmácias. Tal premissa, parte da ideia de
que nestes lugares o homem seria atendido com mais rapidez, sem tempo de espera e com
exposição e resolução dos seus problemas com maior facilidade.
Outro aspecto considerado por Figueiredo (2005) diz respeito à imagem que o homem
possui dos serviços de atenção básica, encarando estes como espaços feminilizados, seja pela
maior presença das mulheres no seu cotidiano, seja pelo fato de a equipe de profissionais ser
constituída, na maioria das vezes, também por mulheres. Além disso, pode-se citar a
45
concentração de atendimentos voltados quase que exclusivamente para as mulheres, sem
atividades e programas que contemplem as especificidades dos homens, bem como a sua
formatação estética (cartazes, murais, quadros de avisos, decoração etc.) que enfatiza
programas de saúde com foco na população feminina. Para este autor, isto acaba fazendo com
que os homens tenham a sensação de que o serviço básico de saúde não constitui um espaço
do qual façam parte.
Romeu Gomes et al (2011), em estudo publicado recentemente, dedicaram-se a
analisar a satisfação de usuários homens de unidades básicas de saúde, de quatro diferentes
estados, no uso destes serviços. Trata-se de um estudo, de certo modo, inédito, tendo em vista
a inexistência de trabalhos no âmbito nacional que se preocupam em analisar a tríade homens-
satisfação-serviços de saúde, segundo revisão bibliográfica dos próprios autores.
Os resultados deste estudo indicam que de modo geral, os homens consideram que um
bom atendimento nos serviços destacados caracteriza-se pela “atenção” e “respeito”
(atendimento atencioso), pelo estabelecimento de diálogo entre profissional e usuário
(atendimento ancorado na comunicação), pela resolubilidade alcançada (atendimento que faz
algo) e pelo menor tempo necessário à efetivação do atendimento (prontidão do atendimento)
(GOMES et al, 2011). Os resultados deste estudo são importantes tendo em vista a
necessidade de se considerar como os usuários compreendem as ações em saúde
desenvolvidas pelos serviços de atenção básica, principalmente, se estes têm conseguido
atender às suas expectativas e necessidades.
Dentre os aspectos negativos relatados pelos homens-usuários entrevistados, citam-se
a necessidade de investimento político que proporcione um maior acesso destes aos serviços
de atenção, bem como questionamentos quanto à qualidade do acesso aos serviços e
acolhimento/resolução de suas demandas. Neste segundo aspecto, estão relacionadas as
queixas quanto à demora e espera nas filas para atendimento e ao intervalo de tempo
compreendido entre a marcação e a resolução do problema apresentado (GOMES et al, 2011),
o que também foi identificado por Figueiredo (2005), como já comentado.
Figueiredo (2005) afirma que há uma “dificuldade de interação entre as necessidades
de saúde da população masculina e a organização das práticas de saúde das unidades de
atenção primária” (p. 106). Uma primeira medida para a transformação deste descompasso
entre demanda e oferta de atendimentos na atenção básica, situa-se no conhecimento das
necessidades de saúde apresentadas pelos homens que acessam estes serviços. Neste caso, é
de particular importância considerar os levantamentos epidemiológicos (mas não apenas
46
eles!) com vistas a identificar as principais questões de saúde apresentadas pela população
assistida, auxiliando na definição de ações preventivas e de promoção da saúde.
Além disso, para este autor, especificamente com relação aos homens, existem atitudes
e comportamentos adotados por estes que acabam se constituindo como questões de saúde,
que podem e devem ser trabalhadas no cotidiano das UBS. Neste caso, parte-se da dimensão
relacional do gênero compreendendo, como vimos, a construção social de homens e mulheres.
Vários autores (KORIN, 2001; SABO, 2000 e COURTENAY, 2000) citados por Figueiredo
(2005) indicam que, na construção do gênero, muitos homens acabam assumindo riscos que
interferem nas condições de sua saúde, e dessa forma, adotam comportamentos pouco
saudáveis, os quais estão amplamente relacionados às demandas sociais para assumirem um
modelo hegemônico de masculinidade.
Nesses modelos de masculinidade idealizada estão presentes as noções de
invulnerabilidade e de comportamento de risco – como valores da cultura masculina –
e a ideia de uma sexualidade instintiva e, portanto, incontrolável. Associadas a isso
encontram-se fortalecidas suas dificuldades de verbalizar as próprias necessidades de
saúde, pois falar de seus problemas de saúde pode significar uma possível demonstração de fraqueza, de feminilização perante os outros. Denota-se daí a ideia
de feminilização associada aos cuidados de saúde. (FIGUEIREDO, 2005, p. 107)
Outra recomendação de Figueiredo (2005) diz respeito às mudanças no espaço da
UBS, tendo como plano de fundo a perspectiva de gênero. Diante das queixas acima citadas
pelos homens sobre a percepção dos serviços como feminilizados, aponta-se a necessidade de
que a UBS passe por transformações que possam atender também às demandas trazidas pelos
homens. Tais transformações não se situam necessariamente na inserção de profissionais do
sexo masculino nas equipes ou na criação de serviços de saúde específicos para os homens,
mas na adoção de outra postura entre os profissionais destas equipes, de modo que estes
estejam sensibilizados e disponíveis para acolher as necessidades de saúde apresentadas pelos
homens no cotidiano dos serviços.
Sobre isto, os usuários/interlocutores do estudo de Gomes et al (2011) também fazem
algumas recomendações que poderiam, na sua ótica, minimizar os problemas existentes no
atendimento disponibilizado pelos serviços. Dentre as recomendações podem ser
mencionadas: o aumento da oferta de atendimentos, uma maior atenção por parte dos
profissionais de saúde, facilitação do processo de marcação de consultas e melhor
remuneração dos profissionais para que ofereçam uma assistência com mais qualidade. Além
disso, aparecem como ideias que poderiam melhorar o atendimento específico ao homem e
atraí-los aos serviços: a realização de campanhas e reuniões de esclarecimento sobre cuidados
47
à saúde, a separação dos espaços de atendimento para homens, mulheres e crianças, e a
existência de uma assistência multiprofissional especializada. Ainda aparece, com certa
tensão, a ideia de que os atendimentos de homens devem ser realizados por profissionais
também homens, trazendo, contudo duas outras acepções que indicam que mulheres também
podem prestar assistência aos homens, ou mesmo que isto pode acontecer em alguns casos,
excetuando-se aqueles relacionados à exposição de determinadas partes íntimas do corpo
(GOMES et al, 2011).
Figueiredo (2005) argumenta que “a constatação da ausência dos indivíduos do sexo
masculino nas UBS não deve ser pensada exclusivamente como uma falta de responsabilidade
dos homens com sua saúde nem especificamente como uma falha na organização dos modelos
de atenção primária à saúde” (p. 106). Para este autor, é necessário compreender este
problema a partir de uma rede complexa de relações que acaba englobando três dimensões
que interagem entre si:
1) os homens na qualidade de sujeitos confrontados com as diferentes dimensões da
vida; 2) os serviços na maneira como eles se organizam para atender os usuários
considerando suas particularidades; e 3) os vínculos estabelecidos entre os homens e
os serviços (FIGUEIREDO, 2005, p. 106).
Desta forma, situamos que o desenvolvimento de ações preventivas e de promoção à
saúde no contexto da ABS deve estar vinculado às especificidades de cada local, às
potencialidades, características e práticas dos profissionais que compõem as equipes dos
serviços, bem como às demandas apresentadas pelos homens, de modo que haja o crescente
estabelecimento do vínculo entre profissionais e usuários, possibilitando o fortalecimento da
relação homem-saúde.
Além disso, de modo geral, diversos autores (GOMES e NASCIMENTO, 2006;
SCHRAIBER, GOMES e COUTO, 2005) acabam revelando uma grande associação entre a
manutenção de um certo modelo de masculinidade hegemônico e a existência de agravos à
saúde entre os homens. Disto depreende-se que a maior questão a ser considerada no tocante
aos determinantes da saúde da população masculina situa-se em questões culturais e de
gênero, ou, dito de outro modo, são os processos de ser e/ou tornar-se homem que atuam
como principal agravante das condições de saúde deste grupo.
48
Números como Dispositivo de Criação de um Sujeito-Alvo das Políticas Públicas
Em relação aos aspectos demográficos, de acordo com levantamento feito pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, a população masculina no
Brasil compreendia um total de 90.671.019 homens, representando 49,2% da população total.
A maior concentração populacional entre os homens situa-se na faixa etária de 10 a 19 anos
(21,3%), seguida das crianças de 0 a 9 anos (20,1%) e dos adultos jovens de 20 a 29 anos
(17,9%). A partir daí há um decréscimo das taxas percentuais de acordo com o
envelhecimento das faixas etárias, sendo os homens com 60 anos ou mais apenas 7,7% da
população (BRASIL, 2009a). Nestes números destacamos aqui a ocorrência deste decréscimo
populacional progressivo na faixa etária que compreende dos 20 aos 59 anos, sendo sobre essa
população que a PNAISH pretende atuar (correspondendo a 27% do total da população
brasileira).
Um perfil epidemiológico de morbimortalidade masculina também foi discutido por
Ruy Laurenti, Maria Helena Prado de Mello Jorge e Sabina Léa Davidson Gotlieb (2005) que
salientam as diferenças, expressas em números, nas características e indicadores de saúde para
homens e mulheres.
Segundo estes autores há uma clara predominância dos indicadores de mortalidade da
população masculina em relação à feminina, o que aponta para uma maior vulnerabilidade
daqueles: em praticamente todas as idades e para a quase totalidade de causas os homens
morrem mais que as mulheres. Além disso, as taxas de esperança de vida ao nascer deles são
inferiores. Laurenti, Prado e Gotlieb (2005) ainda afirmam que houve um considerável
crescimento na diferença de sobrevida das mulheres em relação aos homens, passando de
cinco anos antes da década de 80 para oito anos na década de 2000.
Quando levantadas as principais causas de mortalidade na população masculina na
faixa de 15 a 59 anos, verifica-se que a maior parte (78%) destas situa-se em cinco grupos
principais, sendo o primeiro as causas externas, seguida das doenças do aparelho circulatório,
em terceiro lugar aparecem os tumores, em quarto, as doenças do aparelho digestivo e por
último as doenças do aparelho respiratório. Sobre estes dados, chama a atenção o fato de
ocorrerem modificações na incidência destes fatores com o passar da idade, quando as causas
externas são superadas pelas doenças do aparelho circulatório (a partir dos 45 anos) e pelos
tumores (após os 50 anos) (BRASIL, 2009a).
49
Outro dado importante refere-se ao coeficiente de incidência de óbitos na população
masculina em todas as idades, em que se percebe um aumento progressivo de óbitos à medida
que se avança a faixa etária, como mostra o Quadro 1.
15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49 50 a 54 55 a 59 Total
Total de óbitos 14935 21496 20486 19818 22475 26845 32383 37130 40514 236082
% 6,33 9,11 8,68 8,39 9,52 11,37 13,72 15,73 17,16 100
Taxa de incidência
por 100 mil
homens
153 246 276 286 347 483 709 1006 1454
Quadro 1. Taxa de Incidência de óbitos por todas as causas, na faixa etária de 15-59 anos, da população
masculina (2005)5.
Dentre as causas externas, as quais são isoladamente as maiores responsáveis pelas
altas taxas de mortalidade na população masculina, encontram-se os acidentes de transporte,
as lesões autoprovocadas voluntariamente e as agressões. As agressões predominam como
principal responsável pela mortalidade masculina na faixa dos 15 a 40 anos. A partir desta
idade são os acidentes de transporte que aparecem em maior quantidade. As causas externas
também respondem por cerca de 80% dos internamentos hospitalares, preponderando a
ocorrência na faixa de 20 a 29 anos (BRASIL, 2009a).
Quanto às neoplasias, os tumores mais frequentes entre os homens acometem os
aparelhos digestivo, respiratório e urinário. Estima-se que dentre estes, os que se originam no
aparelho digestivo aparecem com maior incidência (43,2%), tendo como principais
representantes o câncer de estômago, seguido do câncer de boca e de esôfago (BRASIL,
2009a).
Dentre as neoplasias do sistema urinário, o câncer de próstata aparece como uma das
questões de saúde mais temidas pela população masculina, não apenas pela sua alta
incidência, mas também por aspectos culturais, principalmente, no tocante aos mecanismos
preventivos, o que acaba funcionando como uma barreira para a busca pelo cuidado por parte
dos homens (GOMES et al, 2008).
Também é relevante abordar o câncer de pênis que, embora seja raro, em algumas
regiões brasileiras sua incidência pode ultrapassar o câncer de próstata. Trata-se de uma
neoplasia relacionada a baixas condições socioeconômicas e pouca higiene íntima, que
5 Quadro disponível no texto da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil, 2009a). Não
foram encontradas informações mais recentes, a partir deste quadro, atualizadas pelo Ministério da Saúde (MS).
50
merece, portanto, que se trabalhe a partir de processos de educação em saúde e estímulo ao
autocuidado às parcelas mais vulneráveis da população masculina.
Ao final do seu texto Laurenti, Prado e Gotlieb (2005) dão atenção especial a duas
questões de saúde que, na sua visão, merecem ser destacadas no levantamento epidemiológico
referente à saúde do homem. A primeira delas diz respeito à Aids, a qual desde que despontou
como questão de saúde pública esteve associada ao sexo masculino e seus comportamentos de
risco. Para estes autores, esta centralização em uma população específica, com consequente
direcionamento das ações preventivas, acabou por favorecer o aumento da incidência em
outros setores da sociedade, aos quais estas ações não estavam direcionadas. Sendo assim,
torna-se importante considerar as transformações no padrão epidemiológico deste agravo o
qual teve a proporção de casos diminuída entre homossexuais e bissexuais e um aumento
entre os heterossexuais, com a permanência das taxas de incidência entre os homens e
aumento da incidência entre as mulheres, apontando-se a necessidade de considerar tal
questão na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos.
A segunda questão destacada pelos autores supracitados é o alcoolismo, o qual ainda
carece de estudos e levantamentos mais consistentes. A questão do consumo abusivo de
álcool que acaba gerando, como uma das suas principais consequências a dependência e, a
partir dela, uma série de questões mais graves, aparece como problema multifacetado. Como
tal, tem reflexos diversos, tanto nos números de internações hospitalares, referentes a doenças
do aparelho digestivo, como nos casos de saúde mental. Além disso, podem-se citar questões
culturais associadas ao consumo de álcool, muitas vezes, visto como um padrão de
sociabilidade masculina e manutenção de um modelo hegemônico, o que acaba
potencializando episódios de violência de gênero. Neste sentido, aponta-se a necessidade de
lidar com esta questão de maneira a considerar os aspectos culturais e comportamentais
relacionados ao consumo abusivo a partir de um enfoque de gênero, de modo a problematizar
e desconstruir naturalizações existentes, bem como promover um maior autocuidado e
atenção entre os homens.
Sobre a questão do alcoolismo, outro aspecto que merece ser destacado, então, são as
diferenças nos padrões de consumo entre homens e mulheres, ocupando, deste modo, funções
sociais distintas. Em comparação, os homens acabam iniciando o consumo de álcool mais
cedo que as mulheres, apresentam tendência a beber mais e acabam tendo mais prejuízos à
saúde em decorrência deste consumo. No tocante à dependência, em termos numéricos
observa-se uma predominância dos homens (19,5%) em relação às mulheres (6,9%)
(BRASIL, 2009a).
51
A expressividade destas informações ajuda-nos a compreender também os efeitos que
as questões de saúde da população masculina têm sobre o sistema único de saúde. Além das
questões sociais e do sofrimento físico, psíquico e familiar inerentes ao adoecimento, há de se
considerar também os impactos econômicos dos internamentos e demais gastos hospitalares,
que acabam exigindo um grande investimento por parte do Estado. Sendo assim, é importante
trabalhar na perspectiva da prevenção e promoção de saúde não apenas para evitar
acometimentos e agravamentos da situação de saúde da população masculina, mas também
para reduzir os custos estatais com demandas que poderiam ser evitadas.
Percorrendo o texto da PNAISH, identificamos um diagnóstico situacional referente a
levantamentos sócio-demográficos e epidemiológicos da população masculina no Brasil.
Trouxemos algumas destas informações aqui para demonstrar de que modo os levantamentos
epidemiológicos, em certa medida, acabam realizando para nós uma espécie de justificativa
para a criação de um sujeito-alvo das políticas públicas ao qual as ações em saúde necessitam
ser direcionadas. Para Medrado et al (2010), o uso retórico de informações como estas “não
apenas criou uma leitura vitimária sobre os homens, mas, antes de tudo, forjou um sujeito
para as políticas públicas”, produzindo-se “o homem que necessita de atenção especial” (p.
64).
Logo, as informações produzidas, na maioria das vezes, ilustradas em números,
acabam funcionando como dispositivos de produção e controle do Estado para construir uma
imagem/protótipo de sujeito alvo que lhe serve à definição de estratégias e mecanismos de
ação. No entanto, o que sabemos é que ao se criar um protótipo ou modelo de sujeito, está se
também correndo o risco de excluir outros sujeitos possíveis. Além de ignorar singularidades,
uma das consequências disto é a pouca relevância dada aos dados referentes a questões de
ordem sociocultural no referido levantamento epidemiológico. Não se verifica, por exemplo,
informações detalhadas sobre determinantes sociais e econômicos a partir da perspectiva de
raça/etnia e gênero, contemplando outras masculinidades.
Neste sentido, os números interagem para construir a imagem de que os homens são
aqueles que têm as maiores taxas de morbimortalidade e paradoxalmente são aqueles que
menos acessam os serviços públicos de saúde. Na nossa leitura, tais taxas funcionam como
uma justificativa para essa ausência dos mesmos nos serviços e, na direção contrária, como
estes procuram menos os serviços e supostamente não cuidam das questões da sua saúde
acabam acometidos em maior intensidade por doenças e óbito.
Não podemos perder de vista, no entanto, que, como salientam Medrado et al (2010),
os modos como são construídos os instrumentos que, por sua vez, viabilizam a produção de
52
informações e análises de estatísticas especiais, não se dá de maneira neutra ou imparcial. Na
visão destes autores, as escolhas metodológicas acabam produzindo “um fenômeno
(problema, questão, demanda, necessidade, população) que justifica a necessidade de uma
política sustentada em estratégias de biopoder” (p. 71, grifo próprio dos autores).
Neste sentido, é preciso estar atentos ao uso de estratégias numéricas como
mecanismos de justificação de políticas públicas, assim como a sua presença nos debates
científicos, tendo em vista o grande poder retórico a elas associado, que supõe maior precisão
e objetividade das informações. Até mesmo porque, é preciso compreender, para além do uso
que se faz dos números, como, discursivamente, eles são tomados na legitimação e produção
de realidades e sujeitos (SPINK e MENEGON, 2004).
53
CAPÍTULO II
Entre Reflexões Teóricas...
A Produção da Pesquisa a partir de uma Postura Construcionista
Neste capítulo tentaremos fazer uma breve apresentação da perspectiva construcionista
em Psicologia Social, lançando mão, para isto, de interlocutores privilegiados, que nos
auxiliam a compreender melhor seus fundamentos epistemológicos e características
principais. Neste sentido, recorremos a Mary Jane Spink (2004a; 2004b), Kenneth Gergen
(1985), Lupicinio Iñiguez (2003), Tomás Ibañez (2003), M. J. Spink e Rose Mary Frezza
(2004), M. J. Spink e Benedito Medrado (2004), M. J. Spink e Vera Menegon (2004),
Gustavo Castañon (2004) e Conceição Nogueira (2001), como autores que se dedicaram e/ou
tem se dedicado a discutir o Construcionismo Social em movimento, ou seja, tecendo
considerações históricas e epistemológicas que caracterizam esta perspectiva, mas também
fazendo críticas e situando seus limites.
Nosso intuito aqui, cabe destacar, não é apresentar as limitações e/ou potencialidades
de uma perspectiva teórica, embora saibamos o quanto isto é importante, nem tampouco situá-
la com posição de destaque dentre as diversas perspectivas que orientam a pesquisa em
Psicologia Social (e nas ciências humanas e sociais como um todo), mas demarcar de que
bases conceituais estamos partindo para contar a história da pesquisa que nos propomos a
realizar outrora, e que está sendo desenvolvida neste trabalho dissertativo. Trata-se, portanto,
de uma tentativa de ilustrar os princípios que utilizamos para desenvolver nosso estudo e de
que lentes lançamos mão para analisar e discutir as informações que produzimos no processo
da pesquisa.
54
Pressupostos Construcionistas
Segundo Spink (2004b), para entender a perspectiva construcionista faz-se necessário
compreender os processos que tornaram a ciência moderna reflexiva. Esta compreensão da
reflexividade em ciência em muito resulta das próprias transformações que a sociedade
passou ao longo dos últimos séculos, processo este marcado pela transição do feudalismo à
modernidade, com a emergência dos Estados-nação e da economia capitalista.
Baseada em Ulrich Beck, Spink (2004b) refere que a Modernidade Tardia (para Beck,
Modernidade Reflexiva) desenvolve-se a partir de três estágios: a Pré-Modernidade,
correspondente à transição do feudalismo à sociedade moderna; a Modernidade Clássica, que
coincide com a sociedade industrial; e a Modernidade Tardia, que coexiste à sociedade de
risco. O que se ressalta nesse processo de desenvolvimento da Modernidade Tardia, é a
mudança no foco do governo das populações: se na Modernidade Clássica há a preocupação
na distribuição de bens e no bem-estar social, na Modernidade Tardia (atualmente) esta
preocupação volta-se ao controle dos riscos; riscos estes produzidos pela própria sociedade de
controle.
Ao mesmo tempo, Spink (2004b), ainda trazendo Beck como interlocutor, afirma que
a Modernidade implica sempre uma ideia de ruptura com a tradição, ainda que esta ruptura
não seja total, já que existem elementos que permanecem e são incorporados pela nova ordem
social. Neste sentido, a Modernidade Reflexiva, na perspectiva de Beck (citado por SPINK,
2004b), gera uma série de desmistificações, dentre as quais se citam: “a desmistificação da
ciência e a desmistificação dos modos de ser na sociedade” (SPINK, 2004b, p. 14). Por sua
vez, a desmistificação da ciência, implica dois importantes questionamentos: das bases do
conhecimento epistemológico e do conhecimento produzido pela ciência.
Esta leitura que Spink faz de Beck é importante para entendermos aqui porque a
discussão sobre a Modernidade nos interessa, ou é relevante ao debate construcionista na
ciência, o que aparece em três características da Modernidade Tardia ou Reflexiva que são
situadas por Beck (SPINK, 2004b): a Globalização, a Individualização e a Reflexividade.
A globalização, para Spink (baseada em GIDDENS, 1998), diz respeito ao
“entrelaçamento de relações sociais e eventos sociais que estão distantes dos contextos
locais”, ou, dito de outra forma, seria “a intersecção da ausência e presença” (2004b, p. 15). O
destaque a este conceito se dá pela aceitação de que a globalização provoca/provocou
mudanças nos relacionamentos interpessoais. A individualização relaciona-se ao processo de
destradicionalização, sendo esta uma das maiores características da Modernidade Tardia. Tal
55
destradicionalização é marcada por processos de ruptura nos modos de vinculação e atuação,
principalmente, no plano das instituições da sociedade, tais como a família, a educação e o
trabalho. Por fim, a ideia de reflexividade – que mais nos interessa aqui, pois constitui, como
salienta Spink (2004b, p. 18), “a ponte para falar do Construcionismo” – remete à constante
revisão de práticas e conceitos instituídos, permitindo-nos propor novos conceitos munidos de
outras informações.
A reflexividade, para Spink, abrange duas facetas: por um lado, uma atitude que
possibilita à ciência olhar para si mesma e quebrar algumas hegemonias, e por outro uma
crítica de “fora da ciência” sobre os seus produtos. Para Spink (2004b) a reflexividade põe em
xeque o que Ibañez (1991) chama de “retórica da verdade”, inserindo a perspectiva da ciência
como Prática Social. Nas palavras dessa autora: “por muito tempo tivemos uma ciência
desenvolvida como prática ensimesmada, uma prática que não abria as portas do laboratório à
inspeção pública. (...) Hoje em dia todos esses processos estão abertos à inspeção” (SPINK,
2004b, p. 19).
Realizando uma leitura crítica do Construcionismo Social, Gustavo Castañon (2004)
vai apontá-lo como um movimento autêntico pós-moderno na Psicologia, o que, segundo este
autor, aparta esta disciplina da Ciência Moderna por romper com vários dos seus
fundamentos. Indo além, para ele os pressupostos construcionistas são incompatíveis com a
atividade científica, tendo em vista que não se pode abdicar do sentido moderno atribuído ao
termo “ciência”.
Como resume o autor, a ciência moderna apresenta como pressupostos básicos:
1) A crença de que o objeto existe independentemente da mente do observador, o
Realismo Ontológico; 2) a crença na estabilidade, pelo menos em alguns aspectos, do
objeto que se estuda, o princípio da Regularidade do Objeto; 3) a crença de que
através do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o objeto, o Otimismo
Epistemológico; e, por último e não menos importante, 4) a crença de que podemos
representar adequada e estavelmente o mundo através da linguagem, o
Representacionismo (CASTAÑON, 2004, p. 68). (grifos do próprio autor)
Por sua vez, o paradigma pós-moderno, sob o qual se assenta o Construcionismo
Social, apresenta como aspectos mais gerais o anti-racionalismo, o anti-individualismo e o
anti-universalismo. Caracteriza-se, em resumo, pela total rejeição ao projeto da modernidade
iluminista. Nesta direção, Castañon (2004) vai atribuir como principais referências à
emergência deste paradigma as teses epistemológicas relativistas e pessimistas de Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend, o anti-realismo ontológico de Jacques Derrida e o anti-
56
representacionismo de Richard Rorty e Ludwig Wittgesnstein, com a ênfase na construção
linguística da realidade.
Talvez consoantes com esta crítica apresentada por Castañon (2004), muitos autores
considerados como construcionistas (como Gergen, por exemplo) preferem nomeá-la como
“movimento” e não ciência construcionista. Assim, tendo feito esta breve apresentação de
conceitos que nos parecem caros ao entendimento e importância da perspectiva
construcionista na ciência, no tópico a seguir nos dedicaremos a apresentar o Construcionismo
Social, a partir de alguns interlocutores privilegiados, e algumas das principais características
que poderiam definir ou aproximar uma identificação à postura construcionista em Psicologia
Social.
A Perspectiva Construcionista
Como destacamos acima, neste trabalho desenvolvemos nossas reflexões a partir da
perspectiva construcionista em Psicologia Social. Ainda que consideremos as várias críticas
formuladas, esta perspectiva nos parece útil no processo de reflexão crítica sobre a produção
de modos de existir, sustentada na “familiarização de estranhos”, ou seja, na naturalização e
padronização de singularidades. Mary Jane Spink (2004b) refere-se ao Construcionismo
Social como um “movimento de contestação da ortodoxia em ciência” (p. 11). Logo, trata-se
de um movimento que visa, sobretudo, problematizar o fazer da ciência, inserindo elementos
que questionam o que usualmente e tradicionalmente se concebe como saber científico,
lançando para isto outro olhar sobre conceitos, métodos e procedimentos de coleta e análise
de dados, exigindo do pesquisador, mais que uma “devoção” metodológica, um
posicionamento crítico sobre o seu próprio fazer.
Segundo Spink (2004b) um dos autores que há mais tempo tem se dedicado à
discussão da perspectiva construcionista é Kenneth Gergen. A este autor é creditado o mérito
de ter publicado o texto “O Movimento do Construcionismo Social na Psicologia Moderna”
(do original em inglês, “The Social Constructionist Movement in Modern Psychology”), no
ano de 1985, o qual é considerando um clássico por ser um dos introdutores da postura
construcionista na Psicologia6. Neste texto, Gergen propõe-se a situar a perspectiva
construcionista, como movimento que instiga a produção científica na Psicologia, trazendo
seus contornos e esclarecendo elementos que favoreceram seu aparecimento.
6 É importante referir também uma publicação anterior de Gergen, no ano de 1973, “Social Psychology as
History”, considerado o marco inicial do Construcionismo Social.
57
No texto, Gergen (1985) também faz um exercício que busca situar a perspectiva
construcionista em relação a duas formas de lidar tradicionalmente com a produção do
conhecimento. De um lado cita teóricos empiristas como Locke, Hume e Mills, que partem de
uma visão exogênica do conhecimento, tido como uma representação, uma cópia do mundo.
De outro, lista filósofos e fenomenologistas, como Spinoza, Kant e Niestche, para quem o
conhecimento depende de processos internos do organismo, uma espécie de tendência inata
do ser humano em organizar e processar informações. Gergen (1985) vai afirmar que é
exatamente em meio a estas duas perspectivas que o Construcionismo Social vai emergir, de
modo a questionar e transcender ao tradicional dualismo sujeito-objeto que estas duas visões
trazem, seja encarando o conhecimento localizado no interior ou no meio externo ao ser
humano.
Uma das principais críticas destacadas por Gergen (1985) é à noção de conhecimento
tomado como representação mental. Para este autor, “o conhecimento não é algo que as
pessoas possuem em algum lugar dentro da cabeça, mas sim algo que fazem juntas” (p. 269).
O conhecimento, portanto, se produz nos processos de intercâmbio social. O que está em
jogo, neste caso, é a contestação da tradicional concepção ocidental do conhecimento como
objetivo, individualista e a-histórico.
Spink (2004b) menciona também Tomás Ibañez como um autor que traz importantes
contribuições ao movimento construcionista na Psicologia Social. No seu texto “La
Construccion del Conocimiento desde una Perspectiva Socioconstrucionista”, publicado na
revista da Associação Venezuelana de Psicologia Social – AVEPSO, em 1994, este autor
propõe que a adoção de uma postura construcionista plena exige uma série de desconstruções.
A primeira problematização feita por Ibañez relaciona-se à dicotomia sujeito-objeto, o
que também foi discutido por Gergen, como vimos acima. Segundo Ibañez
el construccionismo disuelve la dicotomia sujeto-objeto afirmando que ninguna de
estas dos entidades existe propiamente com independência de la outra, y que no da
lugar a pensarlas como entidades separadas, cuestionando así el próprio concepto de
objetividad. De hecho, el construccionismo se presenta como uma postura fuertemente
des-reificante, des-naturalizante, y des-esencializante, que radicaliza al máximo tanto
la naturaleza social de nuestro mundo, como La historicidad de nuestras praticas e
nuestra existência (IBAÑEZ, 1994, p. 44)
Neste sentido, sujeito, objeto e conhecimento são vistos como socialmente
construídos, negando uma suposta essência existencial que possa lhes ser atribuída. Para
Ibañez (1994) esse processo de crítica à dicotomia sujeito-objeto envolve quatro pressupostos
básicos da atividade científica: a) ontológicos (não existem objetos naturais; os objetos não
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existem independentemente de nós, assim como nós não existimos independentemente dos
objetos que criamos); b) epistemológicos (não se pode distinguir entre o mundo que
conhecemos e o conhecimento que produzimos sobre o mundo); c) sobre a natureza humana
(o conhecimento é uma prática social, de modo que os objetos e verdades sobre tais objetos
são produzidos socialmente); e, d) metodológicos (adoção de uma postura desreificante,
desessencializadora e desnaturalizante). Tais pressupostos apontados por Ibañez serão mais
bem apresentados a seguir, ainda neste tópico, quando mencionarmos os elementos ou
características que, de certo modo, acabam definindo uma postura construcionista em
Psicologia Social.
Um segundo deslocamento proposto por Ibañez (1994) diz respeito ao que este autor
chama de “retórica da verdade”. A retórica da verdade, para ele, relaciona-se aos processos de
legitimação do conhecimento científico que estão intimamente embasados no pressuposto da
existência de uma verdade absoluta, transcendental (SPINK, 2004b). Neste caso, a perspectiva
construcionista considera que a verdade corresponde à verdade das nossas concepções, das
relações que desenvolvemos e dos acordos sociais e institucionais que fazemos em nosso
cotidiano.
Spink e Freeza (2004) consideram o Construcionismo como decorrente de três
movimentos: a reação à perspectiva representacionista, no âmbito da Filosofia, a
problematização e desconstrução da “retórica da verdade” na Sociologia do Conhecimento, e
a busca de empowerment por grupos socialmente marginalizados, na Política.
Lupicinio Iñiguez (2003), num exercício parecido, lista uma série de antecedentes
históricos, apresentando alguns movimentos intelectuais aos quais a perspectiva
construcionista se associa. Neste sentido, da parte da Sociologia cita o Interacionalismo
Simbólico de Mead, a Etnometodologia de Garfinkel, e o notável trabalho de Peter Berger e
Thomas Luckman, “A Construção Social da Realidade”. No interior da Psicologia, este autor
destaca o trabalho de Gergen (A Psicologia Social como História, de 1973), além de outras
produções que se situam no contexto do que vem a considerar como “crise da Psicologia
Social”. Castañon (2004), baseado em Henderikus Stam (1990) também menciona, como
influências da perspectiva construcionista, o feminismo, o pós-estruturalismo e alguns
trabalhos alinhados à Filosofia da Ciência pós-fundacionalista e pós-positivista, além das
contribuições de autores pós-modernos, já citados, como Derrida, Rorty e Wittgenstein.
Dentre os trabalhos atuais a partir da perspectiva construcionista, os quais são
diversos, Iñiguez (2003) cita vários autores que tem apresentado produções significativas,
com destaque aos Estudos Sociais da Ciência, que tem autores como Bruno Latour, Steve
59
Woolgan e Karen Knorr-Cetina como referência; e a perspectiva da Psicologia Discursiva,
representada por Michael Billig, Jonathan Potter e Margareth Wetherell. A estes nomes
Castañon (2004) também adiciona os de Rom Harré e John Shotter como alguns dos mais
significativos representantes da perspectiva construcionista na atualidade.
Castañon (2004) afirma que há uma dificuldade de definir o que seria o
“Construcionismo Social”, sendo este muitas vezes encarado como um movimento, uma
posição, uma postura, uma teoria e/ou uma orientação teórica. Este autor, baseado em alguns
psicólogos, diz tratar-se de uma espécie de rótulo que reúne uma série de posições nem
sempre consonantes. Iñiguez (2003), seguindo a mesma direção, menciona que nunca se teve
verdadeiramente esclarecido o que é/seria e em que consiste/consistiria isto que se chama
“Construcionismo”. Para ele, é preferível adotar a noção de “perspectiva construcionista” ao
invés do termo “construcionismo” propriamente dito, tendo em vista os efeitos discursivos
que o sufixo “ismo” poderia provocar, fazendo com que esta vertente epistemológica chegue a
ser definida em termos de uma escola do pensamento ou mesmo uma teoria. Neste sentido,
adotar a nomeação “perspectiva construcionista” parece mais adequado, tendo em vista,
inclusive, a multiplicidade de matrizes e facetas apresentadas pelos seus adeptos.
De fato, como indicam vários autores, inclusive o próprio Iñiguez, não há uma única
definição de Construcionismo Social, nem mesmo uma demarcação específica do que vem a
ser um construcionista. Como diz Iñiguez, citando Vivian Burr (1997), “no se puede afirmar
que haya ningún elemento sine qua non que determine la adscripción de um autor o autora al
construccionismo social” (p. 3).
Apesar disso, parece ser consenso que há uma característica que se pode considerar
como principal da perspectiva construcionista: o constante questionamento das verdades
convencionalmente aceitas, negando sua obviedade, naturalidade e evidência (IÑIGUEZ,
2003). Do mesmo modo, M. J. Spink (2004b), baseada em Ian Hacking (1999) menciona
aquilo que parece ser a premissa fundamental da pesquisa construcionista: “o objetivo
subjacente de libertação daquilo que se tornou instituído ou essencializado” (p. 25). A partir
desta premissa, vários elementos são elencados por Iñiguez (2003), como sendo possíveis
definidores de uma postura construcionista em Psicologia Social, os quais estão situados a
seguir:
a) Antiessencialismo: A perspectiva construcionista parte do pressuposto de que as
pessoas e o mundo social resultam de processos sociais específicos, não possuindo,
portanto, uma natureza pré-determinada. Do mesmo modo, os objetos não são
60
naturais, não são dados; as pessoas os produzem em suas relações cotidianas com
outras pessoas e com o próprio mundo. Disto implica uma coisa importante, já citada
acima: os objetos dependem das pessoas para existirem, assim como as pessoas são
também dependentes deles.
b) Relativismo/Anti-Realismo: Para o construcionismo, a realidade é definida em
termos de versões construídas coletivamente, segundo pressupostos históricos e
culturais, e varia, portanto, de sociedade para sociedade. Neste caso, nega-se a ideia do
conhecimento da realidade via percepção direta, ou representacionista. Como diz
Iñiguez (2003, p. 4), citando Rorty (1979), “la ‘realidad’ no existe con independência
del conocimiento que producimos sobre ella o con cualquier descripción que hagamos
de ella”.
c) Questionamento das Verdades: Uma postura construcionista exige um contínuo
exercício de problematização e questionamento daquilo que usualmente se concebe
como “verdade”. Tal exercício ancora-se na ideia de que o conhecimento se origina a
partir da observação direta e imparcial da realidade, sendo, então, a perspectiva
construcionista um convite à autorreflexão, à medida que põe em dúvida o nosso olhar
sobre o mundo e sobre nós mesmos.
d) Determinação Cultural e Histórica do Conhecimento: Aqui parte-se do princípio
de que toda compreensão do mundo ou do social, é social e culturalmente dependente.
Disto implica que diferentes grupos sociais tecem compreensões diferentes do seu
próprio meio social, tendo em vista que as formas de produção de conhecimento
variam segundo processos específicos de cada cultura e de acordo com momentos
históricos distintos.
e) O Papel da Linguagem: Como vimos acima, na perspectiva construcionista a
realidade é construída socialmente. Por sua vez, os elementos que a constroem são
discursivos. Disto depreende-se um papel preponderante da linguagem no movimento
construcionista: “el lenguaje no es unicamente expresivo o referencial sino una forma
de acción mediante la cual construímos el mundo” (IÑIGUEZ, 2003, p. 5). A
linguagem possui, portanto, uma capacidade performativa, o que implica que nossas
compreensões sobre o mundo não se originam da realidade objetiva, mas sim das
nossas interações cotidianas.
f) O Conhecimento como Produção Social: Para o Construcionismo o conhecimento é
tido como empreendimento coletivo que se produz nas práticas cotidianas. É
importante destacar a influencia recíproca existente entre conhecimento e prática
61
social, tendo em vista que, se por um lado o conhecimento sobre o mundo se produz
no contexto das práticas sociais, por outro, as práticas sociais se mantém ou são
modificadas segundo estes conhecimentos produzidos na dinâmica interativa.
g) A Noção de “Construção Social”: Este último elemento remete aos demais citados
acima, e aponta para o risco de que a própria noção de “construção social” seja tomada
de maneira reificante. Considerar a noção de “construção social” implica em
compreender que a dinâmica construtiva é constante, ou seja, o que é socialmente
construído não apenas se constrói mediante processos determinados, mas se mantém
mediante a contínua atuação destes processos.
Iñiguez (2003), em seu texto, ainda destaca a importância de duas características
relacionadas às formas de se entender o ser humano que são associadas ao Construcionismo,
na manutenção da postura crítica tão valorizada pelo movimento: a historicidade do
conhecimento e o caráter interpretativo do ser humano.
Com relação a este primeiro aspecto Iñiguez (2003) destaca a necessidade de
considerar que os fenômenos e processos psicossociais são marcados pela historicidade, isto
significa que um fenômeno social, para ser compreendido, precisa que se considerem suas
condições de produção. Como implicação maior desta prerrogativa, tem-se que a realidade,
como socialmente construída, possui um caráter processual, ou seja, qualquer fenômeno é
resultante das práticas e relações sociais que historicamente o constituem.
O segundo aspecto ressaltado por Iñiguez (2003) refere-se à capacidade interpretativa
do ser humano. Na compreensão deste autor, é preciso levar em conta que nenhum processo
social nem mesmo o sujeito podem se constituir sem interpretação, uma vez que o nosso
conhecimento do mundo e de nós mesmos é perpassado pela interpretação que fazemos,
mediante os determinantes linguísticos e socioculturais em que nos desenvolvemos. Este
aspecto é importante para entendermos que, como diz Iñiguez (2003), citando Gadamer, as
pessoas não possuem outra forma de viver/ser no mundo a não ser a partir da produção de
sentidos.
Ainda na discussão sobre elementos que identificam uma postura construcionista,
Castañon (2004), também acaba elencando algumas características, de ordem epistemológica
e ontológica, que segundo ele podem ser atribuídas. Na verdade, tais características referem-
se aos mesmos pressupostos situados por Iñiguez (2003), mas são nomeadas e apresentadas
deveras de maneira diferente. Segundo Castañon (2004), são características da perspectiva
construcionista: o construtivismo social, o anti-realismo, o pessimismo epistemológico, o
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anti-fundacionismo, a irregularidade do objeto, o anti-representacionismo, a fragmentação, a
não-neutralidade, a retroalimentação teórica, o anti-metodologismo e o pragmatismo.
Por sua vez, Conceição Nogueira (2001), em artigo que aborda as contribuições do
Construcionismo à discussão da perspectiva de gênero na Psicologia, afirma, baseada em
Gergen (1994), que uma ciência construcionista social tem como pressupostos fundamentais:
a) a manutenção de uma postura crítica frente ao conhecimento tido como “verdadeiro”; b)
considerar que a compreensão do mundo se realiza mediante artefatos construídos
socialmente, segundo condições históricas e culturais específicas; c) compreender a
processualidade da construção social, em contraponto à validade objetiva das descrições do
mundo e de si; d) ter em conta que a linguagem tem seu significado derivado dos modos
como esta funciona nas interações sociais, e; e) avaliar as formas discursivas em determinado
meio social implica em avaliar seus padrões de vida cultural.
Nogueira (2004), nos pressupostos acima mencionados, enfatiza o importante papel
que Gergen (1985) confere à linguagem, sendo esta vista como uma precondição para o
pensamento. Para ele “as linguagens são essencialmente atividades compartilhadas” (p. 8), e
os estudos realizados sob orientação da perspectiva construcionista, em geral, demonstram
particular preocupação com “as formas de linguagem que permeiam a sociedade, os meios
pelos quais são negociadas, e suas implicações para outras gamas de atividades sociais” (p. 9).
Nestes termos, como diz Gergen (1985), uma pesquisa construcionista social tem a
preocupação de compreender os processos pelos quais as pessoas descrevem, tecem
explicações e dão conta do mundo em que vivem, e de si mesmas. Logo, volta-se
principalmente para as tramas discursivas que as pessoas constroem e se inserem em seu
cotidiano de modo a construir compreensões diversas sobre si e sobre o seu mundo. Assim, as
pesquisas construcionistas conferem especial atenção à linguagem, em específico, à
linguagem em uso, com interesse particular na produção de sentidos.
Trabalhando com a Produção de Sentidos: O Estudo das Práticas Discursivas em seus
Usos e Efeitos
O estudo que apresentamos nesta dissertação se alinha às discussões que vem
orientando as pesquisas sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano7,
definida por Spink (2004a), a partir de uma perspectiva construcionista em Psicologia Social.
7 Para um maior aprofundamento nesta discussão sugerimos a leitura do livro “Práticas Discursivas e Produção
de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas”, organizado por Mary Jane Spink (2004a).
63
Os estudos sobre práticas discursivas têm como principal objetivo compreender as redes de
significados em que os sujeitos estão inseridos, visando identificar os processos que estão
vinculados à produção de sentidos. Assim, tal perspectiva envolve em sua análise as maneiras
a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em suas relações cotidianas
(SPINK, 2004a). Neste caso, optamos por este referencial por permitir momentos de
resignificações, de rupturas, de produção de sentidos, que forneçam subsídios para a
compreensão de determinados aspectos que compõem o objeto do qual buscamos nos
aproximar.
Conforme já situado, a perspectiva das Práticas Discursivas fundamenta-se em um
referencial construcionista (SPINK e MENEGON, 2004; SPINK e MEDRADO, 2004). Como
vimos nos tópicos anteriores deste capítulo, a perspectiva construcionista contrapõe-se às
epistemologias objetivistas, tratando o conhecimento como produto de processos históricos e
socioculturais específicos. A proposta construcionista também se apresenta contrária às
posturas essencialistas, criticando metodologias fundamentalistas e encarando a construção do
conhecimento a partir de processos singulares de produção de sentidos (GERGEN, 2007).
Assim sendo, este estudo, inspirado na perspectiva construcionista, situa-se especificamente
nas contribuições de Spink (2000; 2004a; 2007) e de diversos outros interlocutores
(ARENDT, 2008; MENEGON, 2008; MEDRADO & MÉLLO, 2008; SPINK, P., 2008), que
investem no cotidiano, como lócus privilegiado de produção de conhecimentos8.
Na abordagem teórico-epistemológica das práticas discursivas, a investigação focaliza,
sobretudo, os processos pelos quais as pessoas descrevem e explicam o mundo em que vivem
e a si mesmas (SPINK e MEDRADO, 2004). Deste modo, os sentidos e significados
atribuídos a certos fenômenos não são considerados ideias isoladas presentes na cabeça dos
sujeitos, mas sim, algo construído e elaborado através da relação com os outros e com o meio
social em que o sujeito está inserido.
Nesta perspectiva, parte-se do pressuposto de que “a produção de sentidos não é uma
atividade cognitiva intra-individual, nem pura e simples reprodução de modelos
predeterminados” (SPINK e MEDRADO, 2004, p.42), mas sim uma construção social, visto
que os diferentes sujeitos compartilham pensamentos e visões de mundo ao se posicionarem
nas diversas relações cotidianas. O sentido seria então “um empreendimento coletivo, mais
precisamente interativo, por meio do qual as pessoas constroem os termos a partir dos quais
compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta” (p. 41).
8 No próximo capítulo desta dissertação nos dedicaremos melhor a discutir e apresentar o modo de fazer pesquisa
a que nos referimos como “pesquisa no cotidiano”, conforme definido por Spink (2007).
64
Como afirmam Medrado e Méllo (2008), a partir desta discussão, para compreender
esses movimentos de posicionamento e produção cotidianos, “torna-se imprescindível
compreender os recursos discursivos e não-discursivos que instauram, inauguram, constroem
e mantêm uma prática” (p. 79). Neste sentido, é sobre a linguagem, mais especificamente a
linguagem em uso, que se repousam as atenções do pesquisador que se situa neste modo de
fazer pesquisa. Logo, o foco está na “linguagem como prática social, historicamente datada e
contextualizada, que possibilita a circulação de conteúdos, produz efeitos e gera
posicionamentos. Nosso foco é na linguagem em uso, ou seja, nas práticas discursivas”
(SPINK, 2004a).
Tal premissa inevitavelmente remete a Bakhtin (1997), quando menciona que a
finalidade maior da língua está na sua realização no social, qual seja a sua função
comunicativa, interativa, relacional. Ora, é na linguagem em uso, nos movimentos de
palavras, gestos, atitudes, que se processam as construções de significados e que são possíveis
os entrelaçamentos das inúmeras vozes que constituem e estruturam o que chamamos de
social.
A partir disso, Spink e Medrado (2004) mencionam três dimensões básicas para o
trabalho a partir das Práticas Discursivas: a linguagem, o tempo/história e a pessoa. Sobre a
linguagem, como vimos, a noção adotada pelos autores se baseia na linguagem em uso,
compreendendo-a como prática social. Nesta perspectiva há uma ênfase na interface entre os
aspectos performáticos da linguagem e suas condições de produção.
Na visão de Spink e Medrado (2004), faz-se necessário, primeiramente, distinguir as
noções de discurso e de práticas discursivas, tendo em vista as raízes epistemológicas e os
efeitos semânticos destas expressões. O discurso remete, para estes autores, baseados em
Bronwyn Davies e Rom Harré (1990), ao uso institucionalizado da linguagem, segundo
regularidades linguísticas e permanências temporais. Já a noção de práticas discursivas
envolve os momentos ativos de uso da linguagem, que consideram a persistência tanto da
ordem quanto da diversidade. No trabalho com as práticas discursivas é importante considerar
três elementos constitutivos: a dinâmica, as formas e os conteúdos.
A dinâmica relaciona-se aos enunciados, os quais são orientados por vozes. Os
enunciados são definidos por Bakhtin (apud SPINK e MEDRADO, 2004), como expressões
produzidas em ações situadas que adquirem seu caráter social quando associados às vozes.
Por sua vez, as vozes referem-se aos diálogos e negociações que se articulam na produção dos
enunciados, compreendendo os interlocutores que se presentificam num diálogo. Assim, na
abordagem Bakhtiniana, as noções de enunciados e vozes remetem ao processo de
65
interanimação dialógica, característico na dinâmica de uma conversação. Isto implica, para
Bakhtin, que a linguagem é, por assim dizer, uma prática social: “a pessoa não existe
isoladamente, pois os sentidos são construídos quando duas ou mais vozes se confrontam”
(SPINK e MEDRADO, 2004, p. 46).
Spink e Medrado (2004) ainda destacam que é necessário compreender que a
linguagem, como ação, produz consequências. Estes autores ressaltam que quando falamos
estamos inevitavelmente realizando ações, produzindo um jogo de posicionamentos com os
nossos interlocutores. Esses posicionamentos, ao mesmo tempo, não se processam a partir de
um nada. A produção de um enunciado implica na utilização de um sistema linguístico e de
enunciações pré-existente; em outras palavras, os sentidos, produzidos nessa constante
interação dialógica, resultam dos usos que fazemos dos repertórios interpretativos à nossa
disposição.
Estes autores definem os repertórios interpretativos como as unidades de construção
das práticas discursivas, e consistem no “conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e
figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo
por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais
específicos” (p. 47). Situados em Jonathan Potter e Margareth Wetherell, Spink e Medrado
(2004), compreendem que é por meio dos repertórios interpretativos, como dispositivos
linguísticos, que construímos versões das nossas ações e dos fenômenos que nos rodeiam.
A noção de repertórios interpretativos é de particular importância para a pesquisa a
partir das práticas discursivas, tendo em vista que por meio deles se pode vislumbrar tanto a
variabilidade das produções linguísticas humanas, assim como seus pontos de estabilidade.
Logo, a adoção deste conceito possibilita ir mais além do regular, consensual e habitual, para
também considerar a polissemia das produções discursivas. Na pesquisa que apresentamos
nesta dissertação isto aparece de maneira essencial, tendo em vista o nosso intuito em
visibilizar as diferentes formas pelas quais o cuidado à saúde do homem é produzido no
cotidiano de um serviço de saúde de base territorial, a partir de vozes (interlocutores)
distintas, situadas e posicionadas em diferentes tramas/redes discursivas.
No trabalho com as práticas discursivas, e em específico com os repertórios
interpretativos, a questão do tempo, já mencionada acima, merece ser destacada, tendo em
conta que tais repertórios possuem inscrições históricas em variados contextos socioculturais.
No texto “A Produção de Sentidos na Perspectiva da Linguagem em Ação”, Spink (2004b)
situa, de maneira breve, a importância de se trabalhar o contexto discursivo a partir de três
tempos históricos: o tempo longo, que diz respeito à longa história de construção de
66
repertórios linguísticos no meio social, destacando-se as suas condições de permanência e
reativação nas produções culturais da humanidade; o tempo vivido, que remete ao tempo de
socialização, ou de maneira mais específica, aos diferentes contextos de socialização (escola,
família etc.) em que nos inserimos e aos quais somos oportunizados, ao longo de nossa vida, a
acessar determinados repertórios linguísticos, e; o tempo curto, que seria o tempo do “aqui e
agora” (p. 47), o tempo das interações, o tempo em que a interanimação dialógica acontece e
conduz à produção de sentidos.
Para Spink, é necessário considerar estes três tempos para compreender os modos
como os sentidos circulam no cotidiano. Dessa forma, a pesquisa que focaliza a produção de
sentidos deve ser encarada como um empreendimento sócio-histórico, em que a compreensão
de determinado fenômeno social exige uma aproximação especial do pesquisador ao contexto
sociocultural em que este se inscreve.
Outra dimensão mencionada e destacada por Spink e Medrado (2004), além da
linguagem e do tempo, é a noção de pessoa. Estes autores preferem adotar este termo em
contraposição às noções, mais amplamente assimiladas pela ciência moderna, de sujeito e
indivíduo. Isto porque há um explícito posicionamento, atribuído ao próprio referencial
construcionista, em relação à manutenção de velhas dicotomias a que estas noções estariam
associadas, tais como sujeito-objeto e indivíduo-sociedade. Assim, o foco sobre a noção de
pessoa tem o objetivo de enfatizar o caráter dialógico da produção humana. Em tal
posicionamento, não se trata de negar as noções de sujeito e/ou indivíduo tão adotadas pela
pesquisa psicológica, mas de ressignificá-las a partir da perspectiva construcionista.
Situamos, assim, as bases de que partimos para o processo de construção do
conhecimento que aqui empreendemos. Considerando as discussões epistemológicas e
teóricas apresentadas, nossa ênfase situa-se no próprio fazer pesquisa a partir da perspectiva
construcionista e com destaque às práticas discursivas produzidas por diferentes interlocutores
em seus movimentos cotidianos. Logo, ao adotarmos uma postura em pesquisa a partir destas
reflexões destacamos os jogos de posicionamento que desenvolvemos no nosso trabalho.
Isto implica em uma atitude crítica frente àquilo que produzimos. Lançamos mão de
um conjunto de aportes teóricos que sinalizam a construção de um modo de fazer ciência que
vem a romper com mitos e fetiches existentes no “mundo da ciência tradicional”, e apontam a
necessidade de refletir de que lugar o pesquisador precisa advir para efetivar compreensões
sobre o seu objeto de estudo. Ao nos posicionarmos dessa maneira estamos destacando o jogo
de (in)visibilidades que produzimos nos nossos movimentos cotidianos de aproximação e
67
distanciamento do objeto de estudo que focalizamos, a saber, a produção de cuidados à saúde
do homem.
Feitas estas considerações, no capítulo a seguir começaremos a detalhar de maneira
mais específica os modos de produção do objeto do qual fomos nos aproximando e
construindo nos últimos dois anos. Assim, nas páginas a seguir, tentaremos aprofundar
melhor nossos posicionamentos éticos-políticos sobre o fazer pesquisa e detalhar os
caminhos, as trajetórias, os tensionamentos e as questões que permearam a condução do nosso
estudo.
68
CAPÍTULO III
Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no Cotidiano de um
Serviço Público da Atenção Básica à Saúde
Neste capítulo pretendemos apresentar o processo de produção das informações nesta
pesquisa, processo este marcado por idas e vindas, caminhos e descaminhos, progressos e
retrocessos, recessos e retrogressos... Enfim, uma panacéia de trajetos e conexões que foram
acontecendo e se delineando durante o desenvolvimento do estudo proposto. Objetivamos
descrever de que modo a pesquisa foi sendo realizada à medida que fomos nos aproximando
do objeto – ainda que incerto a princípio – destacando os diversos momentos e situações que
foram vivenciados e que traçam, de uma maneira não-linear, uma história, a qual estamos
tentando contar ao longo desta dissertação.
Entre Objetos e Questões...
Aqui gostaria de retomar um ponto-chave da apresentação da minha pesquisa: o
surgimento de uma questão. Ora, penso talvez que isto ainda não tenha ficado claro, até
mesmo para mim, porque quase que como o movimento das marés as idéias vem e vão, vão e
vem, num indo e vindo infinito (como diz a música!). Digo isto, não por não possuir uma
questão que me oriente ou me mobilize a pesquisar, que me desperte a curiosidade de saber
sobre, que funde o desejo de compreender e mesmo de produzir compreensões. Não! Refiro-
me à dificuldade de circunscrever, de esgotar em apenas duas ou três linhas, em palavras
minimamente inteligíveis, de traduzir em uma única sentença um emaranhado de reflexões,
posicionamentos e questionamentos que não cessam em surgir. E estas vêm de todos os
69
lugares, numa espécie de rede heterogênea que lança, dentre os seus múltiplos vetores e
conexões, possibilidades infinitas de apreensões e, ao mesmo tempo, de compreensões sobre
este tal objeto.
Por que este “tal objeto”? Porque ele não existe de fato. Aliás, ele existe em sua
condição de possibilidade de existir. Existe enquanto ideia, mas não enquanto materialização.
Ou, por outro lado, penso que sua materialização não passa de uma ideia. Trago essa confusa
reflexão para tentar problematizar a minha própria idéia de objeto, o qual começo a pensar:
não seria este objeto apenas uma falácia? Porque não existe “o objeto”, mas uma
multiplicidade de objetos possíveis. Que não são, de modo algum, objetáveis. Não se pode
objetar o objeto. Não se pode estatizá-lo, apreendê-lo de fato, porque ele não se estabiliza,
pelo contrário, se modifica à medida que nos aproximamos dele. Prefiro, então, falar aqui de
“objeto potencial” e/ou “objeto possível”, porque é exatamente isto que este tal objeto vem a
ser: uma potencialidade e/ou uma possibilidade. Deste modo, neste tópico escolhi descrever
como parti de uma idéia inicial e toda a conjuntura que a sustentava (objeto potencial) a uma
produção teórico-prática sobre algo que, no presente, minimamente se estabiliza (objeto
possível).
Um exemplo: de início, havia uma grande questão (a “gestão em saúde”) que esteve
presente como uma grande incógnita. Na certa era isto que eu queria estudar, ou de fato,
discursivamente, para mim, isto parecia estar bastante claro, embora interpretações múltiplas
pudessem surgir dessa definição, que era mais uma nomeação que uma unidade de
significação.
Deste modo, já saliento, como uma lição, a importância dos descaminhos na trajetória
não-linear da produção científica. Uma dança metodológica! (como bem nos define Edna
Granja, 2008) Talvez seja isso mesmo que possa parecer. Penso, no entanto, que devo ser um
mau dançarino, ou que esteja desempenhando o meu número sem ter ainda desenvolvido as
habilidades necessárias para executar efetivamente as técnicas e movimentos corporais
necessários.
Entre compassos, ritmos e acordes, fui conduzindo um ensaio, e foi interessante
observar como as coisas iam se compondo. De fato, acho que é bem isto: dissertar é como
dançar! Acho que esta é uma boa metáfora, principalmente se estamos jogando com a idéia do
tempo de cada um, ou do estilo que cada pessoa possui de dar conta de suas apresentações. A
pesquisa é um ensaio, ensaiamos durante muito tempo para apresentar um produto final. A
platéia que nos prestigia são os convidados que nós mesmos convocamos a apreciar nossos
70
ensaios! Não esquecendo, é claro, daqueles que vão nos prestigiar sem que saibamos de sua
presença ali.
De tal modo, fui ensaiando. Entre questionamentos que iam surgindo tentava definir
em que meios de possibilidades poderia conduzir um estudo que me favorecesse uma
aproximação ao tema (e deste ao objeto possível) que havia escolhido trabalhar. Em certo
momento visualizava apenas palavras-chave, termos e expressões que funcionavam como
pistas para definir os demais elementos necessários à investigação científica. De certo modo
os objetivos começaram a ser traçados, mas materializá-los ainda se apresentava um tanto
incógnito.
Foi necessário então, um processo de “afinação”. Não refinação! Afinação mesmo! Na
inflexão utilizada pelos músicos. O processo pelo qual eles estabelecem minimamente uma
sintonia melódica entre os instrumentos tocados e as notas ecoadas, de modo a constituir um
tom harmônico, mesmo que de modo momentâneo. Então, foi bem isso! Era necessário afinar
o potencial objeto possível. E isto se deu de maneira paulatina em meio a eventos cotidianos e
corriqueiros, e também dentre aqueles raros e imediatos. Eventos povoados por locutores e
interlocutores, em seus respectivos textos, contextos e intertextos.
Aliás, no processo de produção científica é preciso dar voz aos diversos interlocutores
que participam e que não cessam em se fazer presentes nas nossas produções.
Particularmente, para circunscrever a questão (e o tal objeto) que apresento aqui neste
trabalho, cito as inúmeras contribuições de Benedito Medrado, meu orientador. Assim como
de Mary Jane Spink e Aécio Matos, que participaram do exame de qualificação do projeto
outrora apresentado, os quais de maneira bastante essencial me concederam novos olhares
sobre aquilo que pretendia investigar (a saúde pública, a produção de cuidados, os homens).
Como não citar também a importância do contato com Mariana Azevedo, Fernanda
Simião, Jéssica Noca, Sirley Vieira e Jorge Lyra na pesquisa “Homens nos Serviços Públicos
de Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais”, com os quais tive
momentos riquíssimos de aprendizado, e, ao mesmo tempo, que favoreceram minha
aproximação na discussão dos homens no campo da saúde pública? Como um divisor de
águas, não há como não mencionar a minha inserção no GEMA, o que não apenas me levou a
ter outra visão de homem e de mundo, de como lidar com a diversidade, bem como com as
adversidades, mas também me apresentou a pessoas únicas que muito me auxiliaram na
aproximação do meu objeto. Como não lembrar, por exemplo, de Márcio Valente, na sua
célebre pergunta: “O que você está chamando de cuidado?”. E eu vi ali como estava
encarando este importante conceito a partir de uma postura, talvez, banalizadora. Ou mesmo
71
de Ludmila Menezes, quando me pergunta: “Onde está o problema da sua questão?” Além de
muitas outras contribuições imensuráveis que poderiam ser inclusas aqui, mas que não
precisam ser situadas neste momento. Penso eu, escolha minha!
Daí uma coisa importante a se dizer aqui. Neste trabalho, compartilho das idéias de
Dona Haraway (1995), quando nos fala do conhecimento situado. De fato, fugimos de uma
noção de ciência totalizadora para inscrever a nossa prática naquilo que produzimos. Ao dizer
isso, estou mostrando que não pretendo mostrar uma suposta neutralidade naquilo que afirmo,
pelo contrário, a minha prática científica está povoada pelos meus desejos, pelas minhas
inquietações, e estou-me presentificando nela e a partir dela.
O Cotidiano da Pesquisa e a Pesquisa no Cotidiano: Aportes iniciais
Peter Spink (2008), no início do texto “O pesquisador conversador cotidiano”, lança o
seguinte questionamento: O que é o cotidiano? Em resposta a isto, a princípio, o próprio autor
argumenta que todos vivem no cotidiano: independente de quem seja ou onde esteja, toda e
qualquer pessoa vivencia uma série específica de situações e eventos corriqueiros que marcam
e são marcados por micro-lugares.
A perspectiva de micro-lugares diz respeito a uma tentativa de situar ao mesmo tempo
a fluidez e transitoriedade que marcam o cotidiano, bem como a materialidade contextual que
referencia a experiência. Dito de outro modo, os micro-lugares compõem elementos
constitutivos de um cotidiano que se estrutura a partir de sua própria imaterialidade. Significa
dizer que cada acontecimento produz e é produzido a partir de processos sociais singulares e
específicos que se sobrepõem. Como afirma Spink, P. (2008, p. 71) “os micro lugares, tal
como os lugares, somos nós; somos nós que os construímos e continuamos fazendo numa
tarefa coletiva permanente e sem fim”.
Dito isso, como Spink, P. (2008), compreendo o cotidiano como sendo o lugar em que
as coisas acontecem. O lugar privilegiado para a vida se desenrolar, para as trocas sociais se
desenvolverem. Como diz Ecléa Bosi (2003, p. 10, apud GUSMÃO e JOBIM E SOUZA,
2008) “é do cotidiano que brota a magia, a brincadeira que vai transformando uma coisa em
outra... Abra os olhos e apure os ouvidos. É só prestar atenção” (p. 26). O cotidiano
compreende o fazer coletivo que se materializa nos movimentos da existência que são
comuns, corriqueiros, que se repetem no dia-a-dia, mantendo-se estáveis e explícitos, e, ao
mesmo tempo, que passam despercebidos.
72
Seguindo este decalque, a pesquisa no cotidiano compreenderia certo modo de fazer
ciência que valoriza as vicissitudes da vida social, investindo nos modos de co-produção da
realidade por atores mutuamente implicados. Pesquisar no cotidiano possibilita a
compreensão de mecanismos diversos de organização do social que não podem ser acessíveis
pelos modos tradicionais, objetivos, de fazer ciência. Até mesmo porque, como sinaliza Vera
Menegon (2008, p.32) citando Law (1999) “o cotidiano constitui-se a partir de re-descrições
de situações relacionais que ocorrem no entrelaçamento de materialidades e socialidades”.
Assim, falar em cotidiano abrange as inúmeras materialidades e socialidades que o
compõem, e ao mesmo tempo, as teias de relacionamentos entre elas existentes. Portanto, o
cotidiano é constituído por pessoas, objetos, máquinas, ilustrações, trocas, conversas,
negociações entre outros inúmeros elementos que forjam o plano de partilha do dia-a-dia.
Na discussão sobre a pesquisa no cotidiano, o destaque dado ao “no” é, de fato,
intencional e pretende marcar a presença do pesquisador no cotidiano em que ele desenvolve
seu estudo, afinal ele é (co)partícipe deste processo. Como explica Mary Jane Spink (2007, p.
07) “fazemos parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartilhamos de
normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada dessas
interações” (p. 07).
Baseada em Garfinkel (1967/1987), M. J. Spink defende que, ao pesquisar no
cotidiano, nos posicionamos como membros da comunidade discursiva. Ou seja, nos
tornamos capazes de interpretar as práticas que se desenrolam nos espaços e lugares em que
acontece a pesquisa. Essa compreensão compartilhada repousa na noção de indexicalidade.
Estamos aptos a entender “os indícios de sentido”, frequentemente incompletos, que adquirem
sua plena capacidade na comunicação – porque somos capazes de considerar a parte (a
enunciação e a ação) em relação ao todo (o contexto em que se dá a ação/interação).
A Entrada em Campo (ou...) a Entrada do Campo?
Inicio o tópico com este trocadilho na intenção de balizar um pouco aquilo que
convencionalmente conhecemos por processo de “coleta de dados”. Tradicionalmente, a
ciência moderna postula um distanciamento do pesquisador do seu objeto de pesquisa,
mantendo com o “suposto campo” uma relação de subserviência, apenas coletando neste
campo o material necessário, a priori, disponível por ali, para responder a sua questão, ou
para aproximar-se do objeto desejado.
73
Na postura que assumimos nesta pesquisa, acreditamos que esta relação não se mostra
possível, nem mesmo se quiséssemos fazê-la. Prefiro mudar a relação linear que parece se
estabelecer nos modos de se conduzir a pesquisa com base na “pura coleta de dados”. Penso
que muito antes que entramos no campo propriamente dito, já estamos nele e nem nos damos
conta. Tal reflexão se ancora sem dúvidas das proposições de Peter Spink (2003) sobre o
campo-tema, quando postula a relação indissociável entre aquilo que pesquisamos e aquilo
que planejamos pesquisar.
De fato, nosso objeto de pesquisa começa a se constituir muito antes do nosso contato
supostamente materializado pela vivência. Pelo contrário, nós constituímo-los quando como
que por insight aquele primeiro fio de idéia vem à nossa cabeça, e a partir daí tecemos toda
uma rede de conexões relacionando-o com a realidade que produzimos para lhe dar forma.
Neste caso, o que seria o objeto de pesquisa senão uma construção singular de algo que nos
inquieta, e do qual usamos de nossos conhecimentos empíricos para circunscrever?
Assim, penso que é melhor subverter essa lógica, afinal não entramos no campo, mas
o campo que entra em nós... O campo que povoa nossas idéias, que nos faz construí-lo ao
nosso modo. Daí uma primeira consideração: O campo não pré-existe, ele se constrói na
dialética do pensamento orientado para a ação. Daí uma segunda consideração: O campo não
se esgota no plano da “realidade”, pelo contrário, ele nunca é apreendido pela materialidade
do cotidiano. Mais uma consideração: O campo é transcendental, ele ultrapassa o plano de sua
própria existência. E por fim: o campo é infinito, nunca cessa, sempre se produz, uma espécie
de retroalimentação inédita.
Essa discussão sobre o campo9 é fundamental para fecharmos este ciclo de
apresentação da nossa perspectiva epistemológica e subsidiar a compreensão do objeto
possível sobre o qual nos dedicamos na realização do estudo condutor desta dissertação. Até
aqui vimos como saímos de um objeto potencial a um objeto possível, como a nossa visão da
ciência e de nossas práticas de produção do conhecimento dialogam com a produção deste
incessante objeto, qual a postura que adotamos frente a ele e em que medida podemos falar de
seu campo/contexto de produção. A partir de agora, nos tópicos a seguir, serão detalhados os
trajetos, as linhas e os circuitos que percorremos nesta lida cotidiana com tal objeto.
9 Neste trabalho, sempre que referirmos a palavra “campo” ou a expressão “trabalho de campo” estamos
ancorados nessa reflexão, mesmo quando pretendemos falar do contexto in loco de produção das informações, de
forma a situar os diferentes lugares que este campo se produz e é produzido.
74
Onde realizamos a pesquisa? Seria esta uma definição do campo?
Tomando por base as reflexões teórico-epistemológicas apresentadas, o presente
estudo foi desenvolvido a partir de uma abordagem qualitativa, por meio da realização de uma
pesquisa exploratório-descritiva. Para Minayo (2007, p. 21) a pesquisa de natureza qualitativa
responde a questões muito particulares, preocupando-se com o “universo dos significados,
dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes”. Trata-se, portanto, de
um modo de fazer pesquisa que investe num tipo de objeto que dificilmente pode ser
traduzido em relações quantitativas ou numéricas. Como afirma a autora, “a abordagem
qualitativa se aprofunda no mundo dos significados. Este nível de realidade não é visível,
precisa ser exposta e interpretada” (p. 22).
O trabalho de campo procedeu em meio aos contextos institucionais destinados às
práticas públicas de produção da saúde, mais especificamente no âmbito da Atenção Básica à
Saúde. Tendo como foco os processos de produção do cuidado em saúde, optamos como
campo de investigação o espaço de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) referenciada ao
cuidado à Saúde do Homem, na região metropolitana de Recife-PE.
Cabe destacar aqui que o processo de definição do campo em que realizaríamos o
estudo passou por alguns momentos importantes. A princípio, havia o desejo, expresso em
nossos objetivos, de compreender de que modo o cuidado à saúde do homem é produzido no
cotidiano dos serviços de atenção básica. E isto nos parecia bem claro. No entanto, definir o
lugar “real” em que isto aconteceria foi um pouco complicado.
De início, centramos nossa idéia em buscar alguns lugares e obter informações, através
de visitas in loco, que pudessem nos auxiliar nessa escolha. Tínhamos como possibilidade
dois serviços localizados em cidades da região metropolitana de Recife. O primeiro deles
constituía um Centro de Saúde referenciado ao cuidado do homem, com funcionamento
noturno, e atendimento exclusivo a esta população com profissionais, em sua maioria
médicos, especializados. Este serviço acabou sendo descartado por se tratar de um dispositivo
componente da rede de média complexidade do município, tendo em vista o nosso intuito em
acessar serviços da Atenção Básica à Saúde.
Uma segunda alternativa localizava-se em outro município da região metropolitana do
Recife, situada ao litoral sul do estado de Pernambuco. A opção por este município centrava-
se na perspectiva de realização de um estudo maior que começava a se estruturar na região
portuária deste Estado, e que contemplava diversos campos de produção da saúde em nível
comunitário, sendo a Saúde do Homem um dos eixos norteadores. No entanto, no município
75
ainda não estavam sendo desenvolvidas ações referentes ao cuidado à população masculina, a
partir da publicação da PNAISH, o que nos foi comunicado por um informante privilegiado
do município. Deste modo, esta opção também acabou sendo por nós descartada.
Em outro momento, a partir do contato com um gestor em saúde da cidade de Recife,
favorecido pelo nosso envolvimento em outra pesquisa, tomamos o conhecimento de uma
unidade básica de saúde que desenvolvia um trabalho, tido como pioneiro, voltado à
população masculina. Este se tratava de um grupo de discussão que reunia homens/usuários
do serviço e profissionais/trabalhadores da atenção básica que mantinham uma proposta de
trabalho envolvendo processos de educação popular em saúde, e que se propunham a discutir
diferentes temas de interesse dos homens/usuários da comunidade frequentadores deste grupo.
Sabendo disto, nos propusemos a conhecer esta unidade de saúde, os profissionais da equipe,
bem como o próprio grupo, o que caracterizou desde este momento, as primeiras incursões no
campo, propriamente dito, desta pesquisa.
Cabe destacar que tivemos, ao nosso favor, contato com outros interlocutores. Agentes
humanos e não-humanos, actantes na terminologia da Teoria Ator-Rede (FREIRE, 2006;
LATOUR, 2000), que favoreceram nossa inserção. Primeiramente, este contato inicial no
campo da gestão, e em seguida com outras fontes de informações sobre este serviço, dentre
elas, várias referências on-line, vídeos, links, imagens e comentários. Além disso, no Instituto
PAPAI tivemos a informação de que já haviam sido desenvolvidos trabalhos naquela unidade
de saúde voltados à população masculina, o que fortaleceu nosso intuito em conhecer e
desenvolver nosso estudo naquele serviço.
Deste modo, como critérios que utilizamos para selecionar esta unidade de saúde,
citamos o desenvolvimento de alguma atividade voltada para o público masculino, bem como
o acesso e adesão de homens/usuários às atividades propostas.
O Espaço de Produção: Materialização e Estabilização do Campo – Contextualizando a
Unidade Básica de Saúde
A unidade de saúde que escolhemos cobre um território povoado por 2.000 famílias,
distribuídas em 15 micro-áreas, atendidas por duas equipes de saúde da família10
. A unidade
de saúde é bastante movimentada e costuma abrigar/acolher pesquisadores/visitantes,
10 Aqui nos isentamos de tecer maiores considerações sobre a estrutura de funcionamento da unidade de saúde,
bem como composição da equipe básica, tendo em vista já ter sido apresentada esta estrutura do funcionamento
da Atenção Básica à Saúde no primeiro capítulo dessa dissertação.
76
estagiários de diversas especialidades na saúde, profissionais residentes e desenvolve
parcerias com ONGs e outros equipamentos sociais do próprio bairro, e também de outras
localidades no município. Além disso, as ações da equipe de saúde nesta unidade são
potencializadas com a participação de uma equipe dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família,
que trabalha com matriciamento e suporte a casos identificados no território.
O espaço da unidade de saúde é bastante pequeno e apertado. Muitas vezes é difícil
transitar pelos corredores tendo em vista a quantidade de pessoas que busca atendimento,
principalmente nos primeiros dias da semana, quando ocorre o “acolhimento”, uma das
atividades desenvolvidas no dia-a-dia da unidade de saúde, a qual será discutida no próximo
capítulo desse trabalho.
A estrutura física da unidade é bastante precária e, na ocasião da pesquisa, acabava
tornando-se um grande empecilho para os profissionais no desempenho de suas atividades
cotidianas. O prédio possuía três salas para atendimento clínico (consultórios) que eram
revezados pelas três enfermeiras e três médicos/as da unidade (sendo uma das enfermeiras e
uma das médicas, residentes), além de ocasionalmente serem utilizadas para a prática do
acolhimento; um consultório odontológico usado por duas dentistas, o qual estava interditado
pela vigilância sanitária, devido condições insalubres de funcionamento; uma sala de
curativos, que também chegou a ficar interditada por um tempo devido à existência de mofo
no teto e paredes; uma sala de vacinas, que também parou de funcionar por um período
devido à falta de ar-condicionado (necessário à aplicação das vacinas); uma pequena sala de
recepção (com telefone, onde ficava o segurança); uma pequena sala de farmácia; uma sala de
arquivos, que servia tanto para armazenar documentos e prontuários quanto para o “encontro”
dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS); uma minúscula copa; duas pequenas salinhas
utilizadas para higienização de materiais e esterilização, e; dois banheiros (um para usuários e
um para profissionais).
A estrutura da unidade ficava sobre um canal de esgoto que exalava às vezes fortes
odores que acabavam tornando difícil estar dentro da unidade por muito tempo. Além de que,
segundo os usuários e profissionais/trabalhadores, era constante o aparecimento de animais
nocivos nas dependências da unidade, tais como ratos, baratas, aranhas, escorpiões e pombos.
Sobre este aspecto, durante a realização da pesquisa foram presenciadas reuniões e
discussões entre usuários e profissionais/trabalhadores, e entre estes e gestores tendo como
pauta mudanças estruturais na unidade de saúde. A solução visualizada pelos
profissionais/trabalhadores e usuários seria mudar a unidade de lugar: construir outra unidade
em local apropriado, espaçoso, adequado e acessível à comunidade.
77
Abaixo segue uma ilustração referente à planta da unidade de saúde por nós elaborada
(Figura 3):
Figura 3. Disposição Espacial da Unidade de Saúde Pesquisada
Construindo Compreensões sobre o Cotidiano: Instrumentos e Métodos para a
Produção de Informações
Neste trabalho, como procedimentos para a produção de informações, foram utilizadas
a observação no cotidiano, com registro e escritura em diários de bordo e a realização de
entrevistas/conversas com os atores do serviço. A observação no cotidiano nos permitiu uma
inserção maior nos contextos da pesquisa, levando-nos a perceber as dinâmicas de interação
entre os atores envolvidos (profissionais/trabalhadores, usuários e comunidade em geral), bem
como os modos de cuidado desenvolvidos cotidianamente no serviço de saúde.
Os incessantes momentos de observação foram registrados em diários de bordo,
terminologia utilizada por Benedito Medrado et al (2011) para referir-se a um posicionamento
do pesquisador em direção ao campo, de modo a permitir-se ser conduzido pelas
imprevisibilidades do contexto da pesquisa, num movimento que lembra o “navegar”, o
deixar-se levar pelas ondas sem, no entanto, perder-se da rota pré-determinada. Nesta
perspectiva, os diários de bordo, mais que meros instrumentos de registro dos dados do
78
campo, funcionaram como elementos co-construtores das informações, tendo em vista que é
desde o momento das escrituras dos textos que se vão produzindo os sentidos da experiência.
No tocante às conversas, partimos de um posicionamento crítico quanto ao uso da
entrevista como técnica legítima de “coleta de dados”, na perspectiva de problematizar os
modos como as predisposições estruturais subjacentes às definições metodológicas forjam
contextos apolíticos e dessubjetivados de produção de sentidos. Por isso, apresentamos aqui a
conversa no cotidiano como recurso à produção de informações em campo, em vias de
possibilitar reflexões para pensar uma possível desformalização da entrevista, superando as
concepções científicas tradicionais e reconhecendo-a como prática social.
Segundo Robert Farr (1982, apud GASKELL, 2002) a entrevista é “essencialmente
uma técnica, ou método para estabelecer ou descobrir que existem perspectivas, ou pontos de
vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa que inicia a entrevista” (p. 65). De modo geral, a
entrevista pode ser considerada uma maneira legítima e sistemática de produção de
informações em campo, que visa, ao conceder certa autonomia discursiva aos seus atores,
compreender pontos de vista e/ou argumentos específicos acerca de determinado tema ou
questão.
Em termos metodológicos, a finalidade maior da entrevista é o conhecimento
aprofundado de questões previamente levantadas, que dizem respeito aos modos de vida dos
sujeitos-alvo de investigação. Habitualmente, as entrevistas compreendem a produção de
narrativas sobre aspectos específicos das histórias de vida das pessoas, suas crenças,
costumes, atitudes, valores e comportamentos, entre outros, visando possibilitar a construção
de esquemas interpretativos que possam dar conta das possíveis relações existentes entre os
sujeitos e seu cotidiano.
Constituindo-se como técnica ou método bem estabelecido, como apontado por Farr
(1982) logo acima, a entrevista é atravessada por um rigor metodológico que a estrutura e a
orienta. De fato, a natureza da pesquisa científica moderna (para muitos a “boa ciência”)
reflete uma série de convenções epistemológicas e sistêmicas que exigem do
pesquisador/cientista certos cuidados procedimentais que devem ser obedecidos e
clarificados. Ser neutro, objetivo, racional e imparcial, são algumas dessas convenções, e
ilustram a imagem de uma ciência que busca verdades absolutas e incontestáveis, já que não
há a “presença” do pesquisador no produto da investigação.
Embora o processo habitual de realização das entrevistas compreenda uma etapa um
pouco mais fluida da investigação científica, até mesmo porque a situação de encontro entre
os atores sinaliza para a necessidade de mútua implicação, ela ainda é bastante marcada pelos
79
ideais científicos em termos de seu rigor e objetividade. Grosso modo, a entrevista realiza-se
mediante um roteiro de questões pré-definidas, que por sua vez referem-se a questões
hipotéticas mais gerais presentes no projeto de orientação do estudo científico. Em algumas
práticas de pesquisa a entrevista acaba realizando-se de uma maneira tão técnica e objetiva,
que mais se torna um bate-bola do tipo “pingue-pongue”, do que realmente uma entrevista, do
modo como a compreendemos: argumentativa, reflexiva, retórica.
É justamente sobre esse ponto que buscamos refletir: ora, a excessiva preocupação
com o rigor faz com que a prática científica crie um novo ambiente distinto daquele que
chamaríamos de “natural”, no entanto, torna-se um tanto contraditório pensar que esse novo
ambiente, que chamamos aqui de desnaturalizado, servirá de parâmetro para tecer explicações
e interpretações daquele ambiente (natural) que inicialmente tentou-se fugir para evitar
incoerências (ou interferências). E, no entanto, onde realmente situa-se a incoerência?
Trazendo para o plano da entrevista, tal preocupação se repete. A própria palavra
“entrevista” cria um ambiente totalmente distinto daquele que consideraríamos corriqueiro,
habitual. Um exemplo: se pararmos um homem na rua e perguntarmos como ele está se
sentindo em relação ao tempo, ele poderá dizer, “está frio”, ou “estou com calor”, ou mesmo
“acredito que irá chover amanhã”; se, no entanto, abordarmos esse mesmo homem e lhe
convidarmos para responder a uma entrevista acerca do tempo, muito provavelmente ele
manifestará outra postura discursiva.
Uma experiência desse tipo foi comunicada por Vera Menegon (2004, p. 238) e
relembrada por Peter Spink (2008, p. 73) do modo como se apresenta abaixo:
P11
: O tema da minha pesquisa é menopausa.
I12
: Menopausa? Que assunto horrível.
P: O que isso faz você lembrar?
I: Sei lá... mas fico pensando que a mulher deve sofrer muito... é como
se fosse um aleijão.
P: Aleijão? Não entendi.
I: É como alguém perder uma perna, um braço. A mulher perde a
capacidade de gerar um filho, fica como uma árvore seca.
11 P: Pesquisadora 12 I: Interlocutor
80
A título de contextualização, a pesquisadora estava em uma mesa de bar com um
amigo seu, psicólogo clínico, e esta foi a conversa entre eles. Se esta situação tivesse ocorrido
em outro lugar, ou com outra “pretensão”, do tipo, a pesquisadora marcar uma entrevista com
o mesmo homem em determinado local para tratar da sua pesquisa, as respostas dele
provavelmente seriam outras, talvez ele falasse de outro lugar (o do profissional psicólogo)
que não aquele em que se situava no momento (um amigo, companheiro de bar).
Enfim, estas ilustrações foram trazidas com a intenção de mostrar que a neutralidade
na ciência é apenas uma disposição negociada e consensual, e sua efetivação mais parece uma
utopia, um desejo inalcançável. Sobre a entrevista, esses exemplos mostram como ela cria um
ambiente desnaturalizado para tratar de eventos do mundo natural, e a partir disso traçar
verdades sobre este mundo. A entrevista cria um setting próprio, um espaço em que está
predefinida a intenção de coletar/colher informações de um lado, e de fornecer/ceder de outro.
O que estou ressaltando é a existência desse setting pré-formado que acompanha a
entrevista desde o seu prenúncio, qual seja a intenção do pesquisador. Sabe-se de antemão, até
mesmo da parte do pesquisado/entrevistado, que aquele é um momento de
“coleta/levantamento” de dados, de busca de informações que este possui, e que o outro quer
ter acesso. De que outra forma o pesquisador teria acesso a este conteúdo latente,
introspectivo e singular do entrevistado, senão pela via do questionamento?
Sabe-se então, que a entrevista compreende um momento em que questões serão
lançadas de um lado, e respondidas de outro. Ao mesmo tempo, está-se definindo neste
processo os papéis que cada um desses interlocutores envolvidos desempenharão durante a
realização da entrevista. Isto posto, papéis definidos, estrutura definida, a ação ocorre. E de
um modo, às vezes, variável, a dinâmica compreende em geral um movimento já previsto e
por isso mesmo condicionador. Entrevistado e entrevistador sabem em que momento tem que
falar, sabem como devem se expressar, às vezes mesmo o que dizer... e isto mostra como o
ambiente formal da entrevista tem efeitos sobre a forma como os enunciados se estruturam.
Portanto, ancorados nesta discussão, realizamos aqui um jogo de palavras. Partindo de
uma de(s)formalização, propomos uma deformação, para pensar uma nova formação. Talvez
seja uma “mera” tentativa de romper com a formalização da entrevista/prática científica,
pensando-a como prática social discursiva. Humana. Construída pelo diálogo, pela conversa.
Forjada no cotidiano. Os dados se colhem com a formalização, as informações se produzem
no rompimento destas disposições formais.
Como vimos, pesquisar no cotidiano implica inserir o cotidiano como prática
científica, investindo na rotina para dela produzir o improduzível. Conversar, por sua vez, é
81
uma maneira de materializar a construção disso que não se produz na neutralidade. E ademais,
já que estamos falando de conversas, que é a conversa se não uma prática discursiva? Se não
uma maneira utilizada pelas pessoas para produzir sentidos, e de se posicionarem nas relações
do cotidiano? (SPINK, 2004a)
As conversas povoam o cotidiano, tornam-no dinâmico, autêntico, vivente. Expressam
a realidade de cada mínimo detalhe da vida social, e refletem um conteúdo cultural (em seus
dialetos, gírias, trocadilhos, vícios linguísticos, regionalismos, gestos etc.) que a prática
científica formal é impedida de acessar, por estar preocupada em demasia com a higienização
do conhecimento, ao invés de valorizar as vicissitudes do que ocorre nos ambientes
corriqueiros de produção da vida.
Um adendo merece ser incluso aqui. Quando mencionamos as conversas como
estratégia metodológica para a produção de informações no cotidiano, não estamos
necessariamente nos referindo às conversas no cotidiano conforme citado e utilizado por Vera
Menegon no seu trabalho dissertativo. A postura adotada por nós quanto ao uso da conversa
ainda diz muito de uma prática de entrevista norteada por um roteiro de temas a serem
contemplados (não necessariamente perguntas), enquanto que esta autora “pinçava” do seu
cotidiano episódios isolados de conversas “propriamente ditas”, que presenciava ou
participava, sobre o seu tema de estudo.
Neste sentido, o “modelo” de entrevista que definimos como conversa assemelha-se à
“entrevista narrativa” (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002). Segundo esta modalidade de
entrevista o sujeito é convidado a falar de si como se contasse uma história, a qual vai sendo
construída a partir do compartilhar de seus pensamentos e opiniões. Nas palavras destes
autores “as entrevistas narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em
todo lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de contar;
contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana” (JOVCHELOVITCH e
BAUER, 2002, p. 91).
De tal modo, a utilização deste tipo de entrevista proporcionou uma maior abertura no
encontro entre nós (pesquisadores) e os nossos interlocutores (usuários e
profissionais/trabalhadores) possibilitando que a troca de informações se realizasse de
maneira mais informal. Por este motivo, como pontuam Morais e Paviani (2009), a entrevista
narrativa, ao utilizar uma estrutura de questionamentos mais abertos, vai se configurando
como uma forma de encorajar os entrevistados, e neste estudo serviu como possibilidade de
aprofundamento das informações produzidas nos momentos de interação em campo, a partir
da produção discursiva dos profissionais/trabalhadores e usuários do serviço.
82
Durante as entrevistas houve o registro integral das conversas realizadas, com a
utilização de aparelho digital (mp3). Tais entrevistas foram transcritas na íntegra de modo a
subsidiar o processo de análise das informações produzidas durante a pesquisa, o qual será
exposto no capítulo seguinte desta dissertação.
Interlocutores
O material que produzimos nesta pesquisa foi fruto de um rico processo de inserção no
cotidiano do serviço de saúde destacado, bem como no território existencial em que habitam
os/as usuários/as do mesmo e sobre o qual as equipes de saúde atuam. Frequentamos a
unidade de saúde diariamente por aproximadamente dois meses, o que possibilitou a
circulação no dia-a-dia em corredores e ruas da comunidade, nos espaços de atuação das
equipes e a participação nas diferentes atividades desenvolvidas no cotidiano do serviço.
Além disso, conforme já sinalizamos anteriormente foram realizadas e gravadas
entrevistas/conversas individuais e registros em diário de bordo, concernentes a anotações
sobre o dia-a-dia da pesquisa.
Ao longo do trabalho de campo, conseguimos registrar conversas/entrevistas com 23
interlocutores/as, sendo 12 homens/usuários e 11 profissionais/trabalhadores13
da equipe de
saúde (conforme mostram os quadros 2 e 3). Dentre os usuários, oito são
participantes/frequentadores do grupo de homens existente na unidade sobre o qual falaremos
no capítulo a seguir, e os demais (quatro) foram contatados no próprio dia-a-dia da unidade de
saúde, especificamente no corredor/sala de espera.
O contato com os homens entrevistados ocorreu de maneira diferente para os dois
grupos destacados no quadro. Os usuários que frequentavam o grupo de homens foram
contatados e convidados a conversar nos momentos posteriores às reuniões semanais do
próprio grupo. A minha aproximação destes deu-se de maneira tranquila, já que com o
período em que estive na unidade de saúde fui frequentando as reuniões e participando das
discussões, de modo que isto proporcionou a criação de certo vínculo com tais homens,
favorecendo a aceitação destes em participar da pesquisa em momento posterior.
13 A partir deste ponto, adotaremos sempre a terminologia “trabalhadores” (ou “trabalhadores da saúde”) para
nos referirmos tanto aos profissionais de nível técnico e superior componentes das equipes de saúde, bem como
aos agentes comunitários de saúde, por reconhecermos a existência de tensionamentos nos (des)usos de
diferentes terminologias para as referidas categorias profissionais. Do mesmo modo, o termo “trabalhadores”, no
plural, também estará sendo utilizado em alguns momentos para contemplar tanto os homens quanto as mulheres
que compõem as equipes de saúde pesquisadas, embora reconheçamos ser importante destacar os
posicionamentos e lugares ocupados por cada pessoa na produção de suas práticas discursivas, o que fazemos na
maior parte do texto.
83
Homens/Usuários14
Grupo de Homens Sala de Espera
Interlocutor Pseudônimo Idade Interlocutor Pseudônimo Idade
Homem 1 Marcelo 49 anos Homem 5 Felipe 33 anos
Homem 2 Roberto 66 anos Homem 6 Tomás 23 anos
Homem 3 Péricles 41 anos Homem 7 Vitor 22 anos
Homem 4 Vinícius 62 anos Homem 8 Romeu 26 anos
Homem 9 Santiago 48 anos
Homem 10 Luís 23 anos
Homem 11 Tarcísio 18 anos
Homem 12 Cristiano 52 anos Quadro 2. Homens/usuários entrevistados no cotidiano do serviço de saúde pesquisado.
Quanto aos homens da sala de espera, o contato deu-se após os atendimentos que os
mesmos iriam receber na unidade. Não houve em nenhum momento critério a priori para
definir quais homens seriam contatados e entrevistados. À medida que fui participando do
dia-a-dia da unidade de saúde, ia percebendo o fluxo de homens por ali, e tentando me
aproximar de alguns deles questionando os motivos que os traziam na unidade naquelas
ocasiões.
Não se tratava de uma pergunta tão bem estruturada, apenas um questionamento
qualquer de quem quer apenas “puxar conversa”, e se dava de maneira bem informal: “Olá,
tudo bem? Tá esperando pra ser atendido?”, ou “Opa! Vai passar pelo médico?” etc. E a partir
da resposta recebida e do modo como esta resposta chegava até mim, ia definindo se
continuaria a conversar com aquele homem ou não, já que às vezes estes não estavam
disponíveis a conversar.
Quando esta conversa inicial conseguia minimamente se estabelecer, era feito o
convite para que pudéssemos conversar melhor sobre o assunto. Neste momento, se já não o
tivesse feito, me apresentava como pesquisador, explicava ao homem/usuário em questão,
rapidamente, do que se tratava a pesquisa e pedia autorização para registrar (gravar) a
conversa que teríamos a partir daquele momento. Quando a resposta era positiva, buscava um
lugar mais reservado na unidade de saúde (uma sala vazia, por exemplo) e começava a
conversa/entrevista retomando o questionamento sobre quais motivos levavam sua ida até a
unidade de saúde naquele dia, e a partir desta ia discutindo outras questões. Cabe ressaltar que
na sala de espera nem sempre os homens abordados aceitaram gravar as conversas. Com estes
14 Para assegurar o sigilo e anonimato das informações produzidas pelos nossos interlocutores atribuímos,
aleatoriamente, pseudônimos.
84
apenas mencionei, de maneira geral, alguns pontos da pesquisa e registrei tais conversas nos
diários de bordo.
Quanto aos profissionais/trabalhadores de saúde, consegui realizar entrevistas/
conversas com ao menos um representante de cada categoria componente da equipe mínima
de Saúde da Família (médico/a, enfermeiro/a, dentista e técnicas), assim como com Agentes
Comunitários de Saúde. Como disse acima, esta unidade de saúde abrigava duas equipes de
saúde da família, de modo que os profissionais entrevistados não fazem parte necessariamente
de uma mesma equipe.
Trabalhadores de Saúde15
Pseudônimo Interlocutor/a
Regina Enfermeira
Mateus Médico
Priscila Médica
Ramona Dentista
Érica Técnica de Enfermagem 2
Sabrina Técnica de Enfermagem 1
Lívia ACS 1
Soraia ACS 2
Jéssica ACS 3
Cilene ACS 4
Sérgio ACS 5 Quadro 3. Trabalhadores de saúde entrevistados na unidade básica de saúde pesquisada.
O contato com estes trabalhadores e o convite para participarem/concederem
entrevistas também foi facilitado pelo vínculo que foi sendo construído à medida que fui
frequentando a unidade de saúde durante os meses destacados para a realização da pesquisa.
Houve uma pequena dificuldade, a princípio, para conseguirmos horários em que tais
interlocutores estivessem disponíveis a conversar tendo em vista a demanda de trabalho
cotidiana que lhes chegava no serviço. Por este motivo, outros trabalhadores acabaram
deixando de ser entrevistados por não terem conseguido definir horários disponíveis a este
fim.
As conversas com os trabalhadores iniciavam com um questionamento geral sobre
como estes percebiam o fluxo de homens no cotidiano da unidade. A partir das respostas
15 Assim como fizemos com os homens/usuários, para assegurar o sigilo e anonimato das informações
produzidas pelos trabalhadores também atribuímos pseudônimos.
85
destes a conversa ia fluindo e tomando direções diversas, embora tenhamos a início definido
alguns assuntos que mereciam, a nosso ver, ser contemplados16
.
As conversas ocorriam nas dependências da própria unidade de saúde em dias e
horários definidos pelos próprios profissionais. Houve momentos que acabamos fazendo tais
conversas em “sistema de encaixe”, ou seja, quando entre uma atividade ou outra havia a
identificação de um tempo satisfatório para estas conversas acontecerem. Algumas vezes tais
“encaixes” se deram pela ausência dos usuários às consultas marcadas.
Considerações Éticas
Este estudo se orientou na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que
dispõe sobre os cuidados e procedimentos que devem ser seguidos para a realização de
pesquisas com seres humanos. Desse modo, garantimos, desde o início da realização da
pesquisa, que não se tornariam/tornarão públicos quaisquer aspectos que pudessem/possam
causar danos pessoais aos participantes envolvidos no estudo.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do CISAM/UPE, tendo sido
aprovada sob o parecer final nº 084/2010. Cabe relembrar que o estudo a que esta dissertação
se refere, está vinculado a uma pesquisa maior, intitulada Homens nos Serviços Públicos de
Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais que tem por objetivo geral
promover a inserção dos homens nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, oferecidos no
nível da atenção básica, através da capacitação de profissionais, elaboração de estratégias de
comunicação e avaliação. Trata-se de uma pesquisa multicêntrica que foi desenvolvida em
três cidades de diferentes estados brasileiros (Recife-PE, Campinas-SP e Florianópolis-SC).
Em Recife, a realização da pesquisa esteve sob responsabilidade do Instituto PAPAI, em
parceria com GEMA/UFPE, tendo como coordenadores os professores Dr. Jorge Lyra e Dr.
Benedito Medrado.
No processo de definição da unidade de saúde em que realizaríamos o estudo,
solicitamos a anuência da Secretaria Municipal de Saúde de Recife, a qual foi concedida via
Diretoria Geral de Gestão do Trabalho – DGGT.
Por fim, previamente à realização das conversas/entrevistas procedemos à assinatura dos
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (segundo modelo na seção
Apêndices), pelos interlocutores. Com isto buscamos respeitar o mais alto sigilo no tocante à
16 Os temas/questões definidas a priori estão descritas no Roteiro de Conversas/Entrevistas, disponível na seção
“Apêndices” dessa dissertação.
86
identificação dos entrevistados, através de procedimentos que garantissem o anonimato e
preservação da identidade destes. Desta forma, nesta dissertação os nomes foram substituídos
por pseudônimos com esta finalidade. Ficou acordado também que as informações fornecidas
não seriam utilizadas para outros fins senão os comunicados, propondo-se assim, a
confidencialidade dos dados obtidos.
87
CAPÍTULO IV
Quem disse que homem não se cuida?
A Produção de Cuidados à Saúde do Homem no Cotidiano de Usuários e
Trabalhadores da Atenção Básica
Como vimos discutindo ao longo deste trabalho, compreendemos que o fazer pesquisa
é uma prática social, e como tal seu sucesso e legitimação estão amplamente relacionados aos
processos de divulgação dos seus resultados (SPINK e LIMA, 2004). Neste capítulo,
trataremos especificamente do nosso trabalho no cotidiano da pesquisa, a qual foi realizada
em uma unidade básica de saúde da família que desenvolve ações de cuidado voltadas
especificamente à população masculina. Como dissemos no capítulo anterior, lançamos mão
de diferentes estratégias e procedimentos metodológicos para produzir informações sobre o
nosso objeto de estudo. Este é o momento de visibilizar esta produção.
Trazer uma discussão para o plano da visibilização é uma tentativa de redefinição do
que tradicionalmente se concebe como rigor na pesquisa científica moderna, amplamente
associado às idéias de replicação, generalização e fidedignidade dos conhecimentos gerados.
Realizando uma re-leitura sobre esta noção, Mary Jane Spink e Helena Lima (2004), a partir
de uma perspectiva construcionista, preferem conceber o rigor na pesquisa científica como
uma “possibilidade de explicitar os passos da análise e da interpretação de modo a propiciar
o diálogo” (p. 102).
Desta forma, a noção de rigor deixa de ser algo garantido por métodos ou
procedimentos definidos a priori e diz respeito muito mais aos diferentes posicionamentos do
pesquisador no relacionamento com seu objeto de estudo. Abrange, portanto, as escolhas
realizadas ao longo da pesquisa, os instrumentos selecionados, os modos de produção das
88
informações e, mais ainda, na comunicação dos seus resultados. Trata-se de uma relação ética
do pesquisador com seus interlocutores, tendo sempre o cuidado de esclarecer as condições
em que foram produzidas as informações e possibilitar que o processo de análise e
interpretação possa ser compreendido.
Não é à toa que trazemos a palavra “visibilizar” neste trabalho, pois é exatamente esta
a nossa intenção aqui. Realizamos um processo de análise a partir de determinados lugares e
assumindo posicionamentos específicos. Assim, apresentamos os procedimentos que
utilizamos para visibilizar as informações que produzimos, bem como as análises
empreendidas.
É importante destacar que o processo de interpretação, do modo como o concebemos,
nada mais é do que um processo de produção de sentidos. Logo, o objetivo maior da nossa
atividade científica é produzir sentidos sobre aquilo que buscamos investigar. Assim,
situamos a interpretação como um elemento intrínseco ao processo de pesquisa, mas que não
se esgota no processo que se define como “análise”, uma vez que durante todo o percurso da
pesquisa estamos tecendo reflexões e redes interpretativas para lidar com o nosso objeto.
Disto podemos depreender duas coisas: primeiramente, considerar que o fazer ciência é um
exercício iminentemente interpretativo; e em segundo lugar, que não se pode separar a
atividade interpretativa dos contextos de produção – não existem momentos distintos entre o
levantamento e a interpretação das informações (SPINK e LIMA, 2004).
Em uma última reflexão, Spink e Lima (2004) situam a necessidade de se conceber a
noção de objetividade em ciência sob o prisma da intersubjetividade. Segundo estas autoras,
“cria-se um elo entre objetividade e intersubjetividade, sendo a objetividade ao mesmo tempo
o fundamento e a consequência da intersubjetividade” (p. 104). Vista desta maneira, a busca
pela objetividade constitui-se como um empreendimento dinâmico que não se pode constituir
de maneira apriorística.
Diante destas ponderações, reiteramos aqui nossa pretensão de construir compreensões
diversas sobre a produção de cuidados à saúde do homem. Não é, portanto, nosso intuito
chegar a uma homogeneidade, pelo contrário, pretendemos expor também pontos de
intersecção e separação dessa rede.
Retomando o objetivo desta pesquisa, pretendemos com o nosso trabalho compreender
de que modo homens/usuários e trabalhadores de saúde produzem cuidados voltados ao
homem no cotidiano de um serviço de atenção básica. Tendo em vista os procedimentos que
utilizamos para realizar esta pesquisa e produzir as informações necessárias que nos levassem
a responder aos questionamentos que levantamos na definição deste objetivo, desenvolvemos
89
algumas estratégias metodológicas para sistematizar, organizar, analisar e visibilizar as
informações de que dispúnhamos.
Considerando a multiplicidade de materiais produzidos, bem como sua riqueza,
tivemos que fazer algumas escolhas ao longo do processo de pesquisa, o que se estendeu
também, inevitavelmente, ao momento de reunir e analisar estas informações. De fato, cada
recurso metodológico utilizado (entrevistas/conversas, registros de campo, diários de bordo,
relatos dos grupos) resultou em uma ampla gama de informações que, em seu conjunto,
forneceria conteúdo capaz de subsidiar mais do que apenas um trabalho dissertativo.
Este rico conjunto de informações nos fornece certamente muitos elementos que
favorecem uma melhor compreensão do objeto que buscamos estudar. No entanto, à medida
que dispomos neste trabalho de uma limitação, optamos por focalizar aqui as análises das
entrevistas, considerando-as como pontos de uma rede complexa. Neste exercício
reconhecemos a importância dos relatos nos diários e demais materiais produzidos para a
leitura e compreensão destas entrevistas, muito embora também compreendamos que a análise
das informações, em particular, produzidas a partir destes instrumentos certamente possa
constituir objeto de estudo para outras publicações.
Para o processo de análise, as entrevistas/conversas foram transcritas e organizadas em
quadros previamente construídos, segundo estratégia metodológica inspirada no uso dos
Mapas, discutidos por Mary Jane Spink e Helena Lima (2004). A perspectiva dos Mapas nos
pareceu interessante tendo em vista que estes favorecem a construção dialógica e preservam o
contexto interativo em que as conversas operam. Segundo as referidas autoras, os Mapas “são
instrumentos de visualização do processo de interanimação que possibilitam, entre outras
coisas, mostrar o que acontece quando perguntamos certas coisas ou fazemos certos
comentários” (SPINK e LIMA, 2004, p. 53-54).
Construímos e trabalhamos com os nossos quadros analíticos partindo destes
princípios, embora tenhamos formulado uma formatação diferente da disposta inicialmente
por Spink e Lima (2004), com o material que possuíamos. Nosso intuito com essa adequação
foi tornar o processo de análise mais fluido e possibilitar que tivéssemos uma visualização do
“todo”.
O primeiro quadro foi construído a partir das questões que orientaram a pesquisa, e
constituiu-se numa espécie de painel temático que contemplava diferentes aspectos do nosso
objeto, os quais foram abordados durante as entrevistas/conversas mediante o roteiro
condutor. Assim, a construção deste primeiro quadro, disposto a seguir, acompanhou as linhas
90
narrativas produzidas pelos próprios interlocutores, à medida que a conversação fluía nos
encontros com o entrevistador mediados por elementos definidos ante as conversações.
Idéias/Aspectos do
roteiro
Interlocutor 1 Interlocutor 2 Interlocutor 3 Síntese (temas que emergiram)
Sobre as “práticas
de cuidado”
Sobre o “acesso ao
serviço da AB”
Quadro 4. Modelo do Quadro de Análise 1, elaborado para organizar as informações produzidas com os
interlocutores da pesquisa a partir das entrevistas.
A disposição deste quadro possibilitou o estabelecimento de comparações nas falas
entre diferentes interlocutores. Não era nosso intuito, cabe ressaltar, destacar possíveis
incoerências nos relatos ou apontar regularidades nos argumentos, mas partir destes para
encontrar pontos de convergência e dissonância que nos possibilitassem uma maior
compreensão dos modos como a produção de cuidados à saúde vai se construindo
discursivamente no cotidiano destas pessoas. Desta organização, partimos à produção de outro
quadro sintético, tomando por base questões-eixos orientadoras, em que os pontos em comum
favoreceram a construção de sínteses analíticas, e em contrapartida os dissonantes marcaram
as rupturas e ressignificações possíveis dos sentidos produzidos.
Interlocutores Questão-Eixo/Respostas Síntese (temas que emergiram)
Ex: Qual a compreensão de “saúde” e “cuidado à
saúde” dos profissionais?
Interlocutor 1
Interlocutor 2
Interlocutor 3
Quadro 5. Modelo do Quadro de Análise 2, elaborado para organizar as informações produzidas com os
interlocutores da pesquisa a partir das questões-eixo orientadoras.
As sínteses resultantes deste quadro foram importantes elos de condução da análise e
escrita do texto deste capítulo. A partir destas, optamos por organizar as nossas informações
considerando três segmentos: 1) Práticas Discursivas sobre Saúde e Cuidado; 2) Produção
de Cuidados à Saúde com Homens/Usuários; 3) Produção de Cuidados à Saúde com
Trabalhadores de Saúde. Por sua vez, estes segmentos estão subdivididos e estruturam-se por
meio de questões-eixos de análise.
91
As questões-eixos orientadoras são “respondidas” segundo as sínteses construídas.
Entre os homens/usuários, formulamos as seguintes questões: “Como os homens operam o
cuidado à própria saúde e a de outros homens?”, e “Como os homens acessam e percebem
os serviços de saúde da Atenção Básica?”. Dentre os trabalhadores, as perguntas-eixo
definidas foram: “(se e) como os trabalhadores percebem a presença de homens no interior
da unidade básica de saúde?”, e “ (se e) como operam a produção de cuidados à saúde dos
homens no cotidiano do serviço?”.
Os tópicos a seguir dedicam-se a apresentar e discutir estes eixos temáticos. Em sua
construção buscamos seguir uma linha argumentativa tal que possibilitasse uma maior
compreensão dos sentidos produzidos a partir do contato com as falas dos interlocutores
supracitados. Ao longo do texto fazemos algumas tentativas de amarração teórico-analítica
com base nos referenciais que apresentamos nos capítulos anteriores deste trabalho, bem
como buscamos em outros autores elementos que também favorecem a produção de outros
sentidos sobre o nosso objeto. Neste exercício de amarração trazemos como ilustração alguns
recortes de falas dos nossos interlocutores que, em certa medida, exemplificam cada aspecto
que pretendemos visibilizar.
Antes de fazer esta discussão dos eixos analíticos, no entanto, apresentamos no tópico
a seguir uma breve descrição do período de inserção no cotidiano da unidade de saúde. Fazer
este exercício nos parece importante para compreender o contexto em que a pesquisa foi se
desenvolvendo, situando alguns espaços de interação dos/com os interlocutores e as
atividades desenvolvidas por/com eles, e destacando algumas situações que consideramos
relevantes para a compreensão do contexto da pesquisa.
Conhecendo a Unidade Básica de Saúde: Algumas Notas sobre o Funcionamento do
Serviço e as Práticas de Saúde voltadas ao Homem
Um dos motivos que nos levou a escolher a unidade de saúde em que desenvolvemos a
pesquisa foi o conhecimento de que nela havia atividades em saúde que eram voltadas
especificamente para o público masculino. Ficamos instigados em conhecer esse serviço por
compreender que, até certo ponto, ainda é inédito que os serviços da atenção básica
desenvolvam estratégias que busquem incluir os homens em suas ações.
Mobilizados pelas questões que elaboramos para esta pesquisa, decidimos que ir a
campo e conhecer um pouco do funcionamento desta unidade poderia constituir um exercício
interessante e necessário para as definições da nossa pesquisa. Assim, antes de começar a fase
92
da pesquisa “em específico”, resolvi conhecer a unidade, por meio de uma visita, e tentar
levantar o maior número de informações possíveis sobre a mesma.
A partir das minhas primeiras inserções no campo, fui aos poucos percebendo que no
cotidiano da unidade de saúde a presença de homens buscando atendimento não era uma
raridade, pelo contrário, pelo que observava em outros serviços, ou mesmo nos relatos de
pesquisa e outros trabalho acadêmicos, chamou-me a atenção o fato de, mesmo não sendo em
grande quantidade, os homens fazerem uso daquele serviço, e com finalidades diversas:
consulta médica, vacinação e orientações sobre sua saúde, acompanhar suas companheiras em
atendimentos, levar os filhos para vacinar, aferição de pressão, troca de curativos etc.
Pela minha observação, a grande maioria eram homens idosos ou já aposentados, o
que poderia sinalizar a centralidade das questões de trabalho como complicadoras a uma
maior presença dos homens nos serviços de saúde. No entanto, os homens jovens apareciam.
Raramente, mas apareciam. Vinham com queixas diversas e apresentavam certa urgência no
seu atendimento, quase que demandando uma consulta imediata. Alguns vinham por
intermédio de mulheres, mães, esposas, irmãs, filhas, ou devido a questões relacionadas ao
trabalho (exames de aptidão às funções que desempenhariam) ou decorrentes dele (acidentes
de trabalho). A grande maioria, no entanto, vinha para tratar de uma queixa já instalada, a ida
à unidade com foco na prevenção da saúde quase nunca ocorria.
Cabe ressaltar que o acesso físico à unidade, pela própria geografia da comunidade, é
bastante dificultoso. Por se localizar em uma região de relevo acidentado, sendo as casas
construídas sobre morros, deslocar-se para ir à unidade compreendia um esforço físico
considerável. São muitas escadarias, ladeiras, pequenas vielas, trechos apertados e
escorregadios, que além de serem de difícil locomoção, constituem um perigo à parte, até
mesmo porque em muitos locais não existe corrimão ou algum tipo de apoio a este
deslocamento.
Um aspecto que cabe destacar dessas impressões iniciais diz respeito ao recorrente
reconhecimento de que esta unidade de saúde tem, como diferencial das demais, iniciativas da
equipe de trabalhadores que buscam contemplar os homens no seu cotidiano. Dentre estas
iniciativas as mais citadas eram o Grupo de Homens, que consistia na realização de reuniões
semanais em espaço extra-serviço, nas quais homens da comunidade discutiam temáticas
diversas sob a mediação de algum trabalhador de saúde da unidade, e orientada nos princípios
da educação popular em saúde; e o Dia do Homem, atividade pontual realizada uma única
vez na própria unidade que teve por objetivo o atendimento exclusivo à população masculina,
com o oferecimento de ações habituais do serviço (exames, consultas médicas, vacinação,
93
orientações etc.). Outras também costumavam ser citadas, tais como o acolhimento e o grupo
hiperdia, embora com menor destaque.
Feitas estas considerações iniciais, nos tópicos a seguir nos dedicaremos a discutir
melhor como tais estratégias contribuem (ou não) para a produção de cuidados ao homem,
aqui nos preocupamos apenas em descrevê-las, com o intuito de situar melhor o leitor acerca
do funcionamento do serviço no tocante ao oferecimento de atividades voltadas à população
masculina.
PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE SAÚDE E CUIDADO
Neste tópico trabalharemos especificamente com as práticas discursivas utilizadas
pelos homens/usuários e trabalhadores de saúde para referir-se às ações de saúde e cuidado
que desenvolvem em seu cotidiano. Acreditamos que este exercício é necessário para
compreender de que modo os referidos atores sociais produzem sentidos no cotidiano do
serviço de atenção básica em que interatuam, e como, a partir disto, operam práticas de
cuidado.
Primeiramente, apresentaremos as práticas discursivas de homens/usuários e, em
seguida, as dos trabalhadores. Optamos por fazer esta separação para marcar os
posicionamentos assumidos por estes diferentes interlocutores. De fato, cada um produz
sentidos a partir de determinados lugares e com finalidades distintas.
É importante dizer, que nossa preocupação em demarcar tais posicionamentos também
se faz presente nos subtópicos. Assim, dentre os homens/usuários definimos dois grupos
distintos: a) participantes do grupo de homens; e b) homens encontrados na sala de
espera/recepção do serviço. Ao fazer esta diferença entre homens do grupo e homens da sala
de espera não estamos partindo do pressuposto que existem diferenças essenciais nos modos
como estes homens desenvolvem suas práticas de cuidado, mas achamos importante
posicioná-los a partir dos contextos de produção discursiva distintos, sendo as entrevistas
aqueles mais sistemáticos ou formais.
Ao mesmo tempo, entendemos que o “estar no grupo de homens” é um elemento que
merece ser destacado para a compreensão da maneira como estes homens desenvolvem o
cuidado à própria saúde, por levarmos em consideração os efeitos que sua participação num
grupo como estes pode possibilitar em suas vidas, tais como a produção de outras práticas de
cuidado, além de conhecimentos específicos sobre determinados temas que tenham sido
discutidos neste grupo. Assim, não estamos tomando a perspectiva de que homens do grupo
94
são mais favorecidos, ou conhecem melhor determinadas práticas, pelo contrário, nosso
intuito é compreender como o “conhecer” essas ações os possibilita (ou não) a produzir outras
práticas em suas formas de ser e se relacionar consigo mesmo e com os outros.
Quanto aos trabalhadores também fazemos separações mediante as categorias
profissionais específicas, destacando os posicionamentos adotados por médicos/as,
enfermeira, técnicas de enfermagem, dentista e agentes comunitários de saúde, pelas razões já
citadas anteriormente.
Conversando com Homens sobre Saúde e Cuidado
Com base nos procedimentos analíticos que utilizamos, já apresentados no início deste
capítulo, organizamos este subtópico mediante os temas que foram surgindo a partir da leitura
das entrevistas/conversas que tivemos com os nossos interlocutores. Consideramos, então, nas
nossas análises, as conversas/entrevistas realizadas com quatro homens/usuários que
encontramos na sala de espera do serviço, e oito homens/usuários com quem tivemos contato
no grupo de homens. Como dissemos no Capítulo III, os homens da sala de espera, na ocasião
das entrevistas haviam ido à unidade para atendimento médico (consulta) e foram convidados
a participar da pesquisa após terem recebido tais atendimentos. Por sua vez, os homens do
grupo eram convidados à entrevista nas ocasiões após os encontros semanais do grupo.
No nosso exercício analítico, alguns temas foram se estruturando por meio dos
questionamentos que iam sendo lançados nas ocasiões de encontro com estes homens e, por
questões, até mesmo, didáticas, resolvemos desenvolver nossos argumentos em vista destas
discussões. Assim, apresentaremos as práticas discursivas destes homens/usuários sobre
“saúde” e “cuidado” segundo algumas dimensões que contemplam: o modo como
compreendem saúde e cuidado, como desenvolvem práticas de cuidado de si, além de suas
compreensões sobre as práticas de cuidado adotadas por outros homens.
Para os homens do grupo a saúde é vista a partir de três perspectivas. A primeira
delas situa a saúde como um estado, relacionada a um sentido de bem estar. Nesta
compreensão, aparece o bem estar tanto corporal (trazendo a idéia do funcionamento
fisiológico), quanto em uma perspectiva subjetiva (“estar bem consigo e com o outro”, “bem
estar espiritual”). Esta forma de compreender a saúde pode ser ilustrada pelos fragmentos a
seguir:
95
Túlio: Eh, o que é saúde pra ti?
Cristiano: Assim, é estar bem! Ele estando bem, fisicamente, espiritualmente, ele
estando bem, ele está com saúde, né?!
Túlio: Então, ele estar bem fisicamente, espiritualmente...
Cristiano: Exatamente!
Túlio: Pra finalizar, eu queria saber o que tu entende por saúde...!
Santiago: Rapaz... (...) saúde é aquilo, é aquilo... Saúde é a... o seu bem estar físico,
manter o seu corpo bem, né, trabalhando cem por cento... pode ser que não seja cem
por cento, mas trabalhar pelo menos noventa por cento, ou oitenta por cento sadio, e o
restante vai melhorando aos pouquinhos!
Nesta acepção, a saúde também aparece relacionada ao “ter cuidado”, que remete à
idéia de evitar o desenvolvimento de algo que comprometa este bem estar, como uma doença
ou algum sintoma. Logo, a saúde também se compreende a partir da manutenção de um
estado tendo em vista a possibilidade de adoecimento.
Túlio: Eh, tu falou ai de que... que ele trouxe pra falar sobre saúde do homem, não sei,
o que é tu entende por saúde?
Vinícius: Oh, eu acho que a saúde é quando você está de bem consigo e com os
outros, levando-se em conta a própria, eh... você tar se cuidando pra não chegar a uma
doença ou como é que eu posso dizer, chegar aos sintomas, né, porque a partir dos
sintomas você vai ver o que é, aí é bom não chegar a... não chegar aos sintomas,
porque aí você acha que só aquele cuidado... A prevenção, você já... já lhe dá saúde!
Assim, o segundo sentido para a saúde, apresentado pelos homens do grupo, aponta
para uma perspectiva mais negativista, sendo esta vista como a ausência de alguma coisa
ruim, uma doença, por exemplo. No caso, enquanto na primeira a saúde se define
“afirmativamente”, neste outro sentido a noção de saúde se formula a partir do contraponto de
algo que possa comprometê-la.
Túlio: Hum... sim, sim... Eh, pra tu, o que é saúde? O que é que tu acha que é ter
saúde?
Tarcísio: Se sentir bem, não sentir nada...
Roberto: Eu entendo que é bom pra gente mesmo, né, saúde é uma coisa boa, né, a
saúde do homem...
Túlio: Ah... Como é que o senhor sabe que tá com saúde?
Roberto: Rapaz, agora mesmo eu me sinto com saúde, eu não tou sentindo nada, né!
[Risos]
Túlio: [Risos] Quando não tá sentindo nada, você tá com saúde!?
Roberto: É... tranquilo, né? [risos]
A última acepção de saúde acaba perpassando e sendo perpassada pelos dois sentidos
anteriormente citados, sendo vista, talvez, como uma complementação dos mesmos ou uma
maneira de confirmá-los. Para os homens a saúde também é compreendida como algo que é
atestado por outro, no caso, um médico (trabalhador de saúde). Assim, ter saúde ou sentir-se
96
com saúde depende do olhar do médico sobre o seu corpo, tendo ele o poder de atestar se o
mesmo está saudável ou não.
Péricles: Saúde... é a gente tá melhor, né?
Túlio: Saúde é tar melhor!?
Péricles: Tar melhor!
Túlio: Como é que a gente sabe que tá melhor?
Péricles: O médico vem, tira a pressão, bota a coisa no ouvido, vê se o coração tá
normal, tá assim... bota atrás...
Túlio: Certo! O médico vem, vê a pressão, vê se tá bem, aí a gente sabe que tá bem!? Péricles: É! Aí ele diz se a gente tá com diabetes, às vezes num tá...!
Entre os homens da sala de espera também podemos destacar três maneiras de se
encarar a saúde, as quais se aproximam bastante das formas apresentadas pelos homens do
grupo. Tais maneiras de compreender a saúde podem ser ilustradas pelos fragmentos a seguir:
Túlio: O que é que tu entende por saúde? Assim, o que tu acha que é saúde?
Tomás: Um bom... um bom funcionamento, né, do corpo!
Túlio: Quando diz que tu tá com saúde, tu tá com um bom funcionamento do corpo!?
Tomás: É, um bom rendimento! Você ser saudável, como um todo!
Túlio: Como é que tu sabe que tu tá com saúde?
Vitor: Saúde? Eu não sei nem como explicar, o que isso quer dizer assim, fica
difícil... Pra dizer que eu tou com saúde, é porque tou andando, tou trabalhando, me
movimentando sempre, mas... eu não vou dizer que eu tou cem por cento com saúde,
só o médico com o exame que pode dizer isso...
Assim, para estes homens, a saúde também é vista como um estado, sendo
compreendida por um “ser” ou “estar” saudável. Em uma segunda acepção, ela aparece sob
uma perspectiva dinâmica, como sinônimo de bom funcionamento do corpo, ou mesmo de
atividade. A saúde se situa então no rendimento fisiológico, ou na boa execução de ações pelo
corpo, tais como: andar, se movimentar, trabalhar. E a terceira reflete o poder atribuído ao
médico sobre as questões de sua saúde, uma vez que saber “cem por cento” da sua própria
saúde depende da análise do médico.
No tocante ao cuidado, tanto entre os homens do grupo, quanto da sala de espera,
compreendemos que a produção do cuidado segue uma lógica dualista, sendo este tido a partir
de dois sentidos que, até certo ponto, se complementam. O cuidado dependeria, para estes
homens, da própria pessoa e de algo externo. Ou seja, as práticas de cuidado dependem de um
movimento de cada um sobre a sua saúde, de ir buscar atendimento, de buscar fazer exames,
de buscar se medicar, e ao mesmo tempo de algo externo que o possibilita ter certeza sobre o
estado da sua saúde.
97
Nesta forma de posicionamento dos homens no tocante ao cuidado à saúde, podemos
nos remeter à compreensão do cuidado amplamente relacionada à produção técnica dos
trabalhadores de saúde. Assim, estes homens condicionam o saber de sua própria saúde e suas
ações de cuidado à busca pelo saber biomédico que supostamente lhes garantiria a certeza de
seu “estado saudável”.
Nesta perspectiva, como Denise Gutierrez e Maria Cecília Minayo (2010, p. 1498)
afirmam “os ‘cuidados à saúde’ têm sido tradicionalmente entendidos pelos usuários dos
serviços de saúde e também pelos profissionais da rede de um modo extremamente limitado”,
o que implica numa adesão de usuários e trabalhadores de saúde a uma dimensão do cuidado
extremamente técnica, perdendo de vista seu caráter relacional. Como estas autoras nos
lembram, uma observação mais atenta faz com que consideremos que o cuidado à saúde se
produz a partir de, ao menos, dois contextos distintos, que estão de certa maneira inter-
relacionados: a rede oficial de serviços, representada pelas unidades de saúde, e a rede
informal, representada pelo saber popular e familiar.
Ponderamos, no entanto, que em vista do reconhecido saber biomédico-científico no
qual a rede oficial se sustenta, na maioria das vezes a rede informal acaba ocupando um lugar
de pouco prestígio no meio social. Desta forma, outros componentes relacionados ao ato de
cuidar, tais como as interações afetivas, as relações sociais e a produção de conhecimentos na
cultura (incluindo-se também as maneiras particulares de se lidar com o processo saúde-
doença), acabam não sendo levados em conta quando usuários dos serviços de saúde relatam
suas práticas de cuidado de si.
Conversando com Trabalhadores sobre Saúde e Cuidado
Neste tópico, nos dedicamos a apresentar e discutir as práticas discursivas dos
trabalhadores de saúde que entrevistamos acerca de suas compreensões sobre a produção da
saúde e do cuidado no cotidiano do serviço de atenção básica. Consideramos aqui as
conversas/entrevistas que realizamos com dois médicos (um homem e uma mulher), uma
enfermeira, uma dentista, duas técnicas de enfermagem e cinco agentes comunitários de saúde
(um homem e quatro mulheres) que trabalham na unidade em que desenvolvemos a pesquisa.
Entre estes trabalhadores encontramos certa polissemia nos modos de se encarar e
compreender a saúde, enquanto que esta multiplicidade de formas de se definir pode ser vista
como uma maneira ampliada de se lidar com o cuidado. Em resposta ao nosso questionamento
“o que você compreende por cuidado à saúde?”, apareceram relatos como estes:
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Túlio: Pra finalizar, eu queria que tu dissesse o que tu acha que é cuidado...
Ramona (Dentista): Eu acho que cuidado com a saúde pra mim é você proporcionar
qualidade de vida. Eu acho que a saúde começa desde a moradia, o lazer. Aqui na
comunidade a gente sofre muito. Eles não tem área de lazer. A moradia você vê que
ainda é de morro. Então, eu acho que a saúde é isso. Você ter uma moradia, você ter
um saneamento básico, a água chegando todo dia, o lazer, oportunidades de empregos
– porque a gente ainda vê muitos jovens sem perspectivas.
Tulio: O que é cuidar?
Mateus (Médico): O cuidar eu acho que é você se sentir bem diariamente, mas sentir-
se bem quando você tá assim... bem de saúde, bem com a família, bem com a
comunidade. Em relação de se sentir bem com a saúde, que é o que nós, profissionais de saúde, lidamos mais... quando a gente não tem convivência com aquela pessoa,
com aquele homem, saber das possibilidades, às vezes é muito difícil conquistar a
pessoa no primeiro encontro, mas aos pouquinhos... a idéia da saúde da família é
justamente isso: você conviver com aquela pessoa, com aquela comunidade por toda a
vida e aí você não querer resolver tudo de imediato, porque senão cê vai quebrar a
cara, mas conquistar aos pouquinhas e isso envolve o cuidado também. O cuidado do
dia-a-dia, envolve o cuidado das relações familiares, de respeito, de saber até que
ponto ele tá certo ou tá errado...
Túlio: Pra finalizar... Eu queria que tu me dissesse, enfim, o que é que você entende
por cuidado em saúde? Érica (Téc. de Enfermagem 2): Eu acho assim que o cuidado da saúde da
comunidade é estar mais próximo, é criar vínculos com a comunidade, que muitas
vezes a gente criando certos vínculos, pra um outro profissional, ele chegar pra contar
coisas que passam na sua família, na sua casa (...) então a gente tem muito essa
questão do cuidado à família, não do cuidado só daquele indivíduo... eu acho que isso
é primordial na atenção primária, que a gente ta mais, assim, porque com a presença
do PSF, a gente não conhece só aquela pessoa que vem na unidade, a gente conhece a
família, a gente conhece a situação, vê com quem ele vive e termina que a gente tenta
ajudar de uma forma mais ampla, a gente tenta ajudar no cuidado da esposa, no
cuidado do filho, eu acho que é muito bom, a questão do vínculo, a questão da
confiança que a comunidade tem...
Deste modo, para alguns dos trabalhadores que entrevistamos, a saúde é encarada de
uma maneira ampla, sendo relacionada a uma série de fatores biológicos, sociais, psicológicos
e culturais, tais como: moradia, bem estar familiar, lazer, trabalho e saneamento básico. Em
consequência, cuidar da saúde teria como foco a promoção da qualidade de vida e, para isto,
envolve a construção de vínculos, a aproximação com o outro, a confiança e o respeito.
Considerando a noção de saúde compartilhada pelo Sistema Único de Saúde brasileiro,
que a define como “o resultado de vários fatores determinantes e condicionantes, como
alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação,
transporte, lazer, acesso a bens e serviços essenciais” (BRASIL, 2009c, p. 337), podemos
sugerir que o modo como estes trabalhadores vêem a saúde está de acordo com o que se
postula pelo tipo de racionalidade a que eles precisam aderir.
Diante disto, alguns questionamentos podem ser formulados: como estes trabalhadores
em suas ações cotidianas na unidade de saúde favorecem aos seus usuários que tais fatores
99
sejam minimamente contemplados? Há esta possibilidade? Quando os trabalhadores adotam
esta compreensão multidimensional da saúde, que ressonâncias têm sobre suas práticas? E
com que efeitos?
Retomando os documentos oficiais do SUS, observamos que a saúde aparece como
um “direito de todos e dever do Estado”, sendo garantida “mediante políticas sociais e
econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”
(BRASIL, 1988). O que por sua vez nos faz pensar que embora a saúde seja definida por uma
ampla gama de fatores de ordem diversa, as ações se estruturam em grande medida para a
manutenção ou submissão do corpo biológico ao controle externo, uma vez que a garantia do
que vem a ser a saúde se condiciona à redução do risco de doenças e agravos.
Quando consideramos as construções discursivas dos profissionais entrevistados,
entendemos que estes acabam vinculando, com frequência, o cuidado à saúde à busca pelo
atendimento médico, pela submissão aos procedimentos oferecidos pelo serviço e pela ida à
unidade de saúde, os quais, por excelência, teriam essa função. A fala da técnica de
enfermagem 1, ilustra isto:
Túlio: O que é cuidado pra ti? Cuidar do outro? Cuidar de si? Sabrina (Téc. de Enfermagem 1): Fazer um acompanhamento médico, de rotina,
vacinação, como tem aqui pra criança, idoso, adulto. É... procurar saber mais como...
Ai meu Deus. É complicado mesmo...
Isto também aparece quando alguns interlocutores relatam casos ou experiências
práticas desenvolvidas no seu cotidiano de trabalho, tal como afirma esta agente comunitária
de saúde:
Túlio: Tem algum caso que você achou interessante desde que você trabalha aqui de
homem que “não se cuidava” e começou a “se cuidar”?
Jéssica (ACS3): Eu conheço um que ele não vinha à unidade, só que devido ao
problema de CA de próstata... foi aí que ele veio, passou no acolhimento, contou o
caso dele, contou, as meninas passaram encaminhamento, foi ao médico, o médico
passou todos os exames, fez a cirurgia, ficou bom e foi a partir daí que ele procurou
cuidar mais da saúde dele e participar mais daqui do posto!... Todo ano ele vem, pede
o PSA, pede todos os exames que tem de rotina, pede ultrassonografia!... O medo dele
era uma única coisa: o exame do toque! Aquela coisa de antes que ele não sabia que
pra fazer um exame de toque tinha que fazer um exame de sangue e agora todo ano ele tá aqui pra fazer todos os exames dele... Ele não perde mais nenhum exame! Então,
isso é uma coisa muito boa...
Com estes recortes, questionamo-nos, então, se tais profissionais não estão partindo de
suas posições objetivadas ao cumprimento de um ideal maior, qual seja a racionalidade
100
biomédica dominante como estruturante das práticas de cuidado, para definir modos de
produzir a saúde da população que assistem, uma vez que destacamos nos argumentos
utilizados pelos trabalhadores, uma compreensão da saúde marcada pela prevenção de
doenças, medicalização do corpo e normatização das práticas de cuidado.
Assim, retomamos os questionamentos levantados outrora por Maria Juracy Toneli e
Rita Müller (2011, p. 89): “cuidar da saúde significa cuidar da doença quando ela se instala?
Ou cuidar da saúde exige uma relativização do que seja cuidado e do que seja saúde para cada
um dos sujeitos?”. Podemos refletir estes questionamentos a partir da fala da enfermeira,
sobre o cuidado à saúde do homem:
Regina (Enfermeira): O que eu falei no começo: ele só procura a unidade quando ele
adoece, ele não tem cuidado da prevenção. Saúde não é só remédios, saúde é a boa
alimentação, cuidado com a educação, exercício, né... E eu acho que não tem. O homem tem pouco cuidado com ele mesmo.
Embora esta profissional mencione que o cuidado à saúde é maior do que a busca
pelos medicamentos, citando a alimentação, os exercícios físicos e a educação, ainda o situa
como prática condicionada à busca pela unidade de saúde, uma vez que, como o homem só
busca a unidade quando está doente e não com finalidade preventiva, ele tem pouco cuidado
consigo mesmo.
Compreendemos, a partir deste argumento, que mesmo havendo um movimento de
rompimento com a lógica curativista, que a princípio orienta a busca do homem para cuidar
de sua saúde, esta profissional continua posicionando-se a partir de uma maneira prescritiva,
sem considerar outras formas de relacionamento do sujeito com sua própria saúde. Afinal, não
seria esta busca do homem pelo atendimento, via tratamento de sua condição de adoecimento,
apenas mais um modo de cuidar de si dentre outros que ela (enfermeira) desconhece?
Além disso, pelo argumento utilizado, o cuidar seria necessariamente sinônimo de
prevenção, o que também aparece nas palavras de outros trabalhadores, como neste trecho:
Túlio: Pra finalizar, essa era exatamente a questão: como é que tu vê como cuidado,
como é que tu vê (sic) o cuidado, o que é cuidar? Jésica (ACS3): Eu acho que o cuidar é não esperar a doença acontecer. Se prevenir
bem antes. Se cuidar, se pré, prevenir, né. Não esperar acontecer. “agora vou me
cuidar”, não. Aí você já passou o que tinha que passar, né?
Desta forma, para estas interlocutoras os homens buscam se cuidar depois que a
doença já está instalada e não preventivamente. No entanto, este cuidar preventivo se processa
a partir da submissão/obedecimento das orientações médicas sobre hábitos que se dizem
101
saudáveis (alimentação, exercícios físicos) ou por procedimentos (tomar vacina, seguir o
tratamento com a medicação corretamente, fazer exames). Logo, um cuidado que é prescrito e
prescritivo, que define modos de ser para estes homens, indicando o que devem comer, que
exercício devem fazer, que medicamentos tomar e que exames realizar.
Por fim, na falta de palavras melhor apropriadas, o cuidado parece se definir por si só,
como sendo algo implícito ao que o próprio ato de cuidar significa. Outra fala da enfermeira
nos traz essa reflexão:
Túlio: Pra fechar, aquela velha discussão: o que é cuidar?
Regina (Enfermeira): No final das contas, é se cuidar!...
Podemos pensar, a partir disto, que o ato de cuidar compõe-se de ampla subjetividade,
e aborda, portanto, o cuidar de si. Compreendemos que talvez este tipo de reflexão necessita
ser melhor amadurecida entre os próprios profissionais, até mesmo porque, como veremos a
seguir, eles parecem reconhecer que os homens se cuidam, e o ato de se cuidar, per se já seria
cuidar.
Em última reflexão, reconhecemos que ao situarmos questões como “o que é saúde?”
e/ou “o que é cuidado?”, provavelmente estaríamos induzindo a que nossos interlocutores
acabassem proferindo respostas prontas, de acordo com aquilo que os mesmos acreditassem
que gostaríamos de ouvir, ou mesmo condizentes a certo padrão normativo mais amplo. No
entanto, julgamos ser importante realizar tais questionamentos ao final das entrevistas, visto
que, tendo investido anteriormente em relatos sobre suas práticas cotidianas, pudemos
considerar de que modo suas compreensões sobre saúde e cuidado se atualizavam ou se
mantinham a partir dos diálogos que íamos estabelecendo, o que nos auxiliou na compreensão
das maneiras como o cuidado à saúde acaba sendo operado por estas pessoas. Discutiremos
isto nos tópicos seguintes.
PRODUÇÃO DE CUIDADOS À SAÚDE COM HOMENS/USUÁRIOS
Tendo discutido anteriormente acerca dos sentidos produzidos pelos nossos
interlocutores sobre “Saúde” e “Cuidado”, neste tópico nos dedicaremos a tentar compreender
de que maneira os homens cotidianamente lidam com a própria saúde, que práticas
desenvolvem para cuidar de si e de que modo fazem uso dos serviços da atenção básica.
Desse modo, estruturamos este tópico buscando responder aos seguintes questionamentos:
102
“Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?” e “Como estes
homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?”, tratados a seguir.
Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?
Ao realizar nossa pesquisa, pretendemos, como objetivo, conhecer as práticas
desenvolvidas por homens para cuidar da própria saúde, e para isto lançamos mão de algumas
estratégias discursivas. Para fugir um pouco da ideia de “idealização” das práticas, de modo a
não considerar que estes homens nos fornecessem as respostas que supostamente eles
avaliassem que gostaríamos de ouvir, acabamos investindo em maneiras de acessar suas
experiências a partir de questionamentos que os possibilitassem se presentificar nos próprios
argumentos, embora nem sempre isto tenha sido possível.
Muitas vezes estes homens falavam de lugares aos quais pareciam não advir, ou
situavam-se fora das próprias construções discursivas, utilizando-se, muitas vezes de
substantivos para referir qualificações que poderiam, em certa medida, (não) ser atribuídas a
si mesmos. Por exemplo, foi comum aparecerem argumentos do tipo: “o homem não se
cuida”, ou “o homem é isto ou aquilo”, o que nos fazia questionar até que ponto eles se
aproximavam ou se afastavam das próprias construções discursivas. Dito de outro modo,
como poderíamos saber se nossos interlocutores eram também sujeitos das ações de que
falavam?
Ao mesmo tempo, é importante considerar que não era nosso objetivo conhecer a
verdade sobre as práticas, ou as práticas de verdade adotadas pelos homens, mas apenas
situar, mediante nossos questionamentos, que sentidos estes homens produziam quando
falavam sobre suas práticas de cuidado e como compreendiam o cuidado à própria saúde.
Acreditamos que chegamos a algumas reflexões interessantes que nos possibilitam tecer
compreensões sobre os modos de construção destes homens num contexto mais amplo que é o
campo da saúde. Podemos começar a discutir isto agora.
De um modo geral, o cuidado à saúde dos nossos entrevistados, como vimos
anteriormente, parece seguir uma lógica de construção dual, em que este por um lado depende
de um movimento do homem em dispor-se a cuidar de si, e por outro de que este cuidado de
si depende do olhar do outro. Assim o cuidado à saúde do homem traduz-se, para os nossos
interlocutores, principalmente, na busca (ou não) dos homens pelos serviços de saúde e, em
específico, pelo atendimento médico.
103
Tal perspectiva parece se confirmar quando questionamos aos nossos interlocutores
sobre os modos como eles compreendem e operam os cuidados à própria saúde e a de outros
homens. No grupo de homens, os entrevistados acabam apresentando vários argumentos para
justificar o “não cuidado” por parte dos homens em geral. Para eles, o homem é relaxado,
relapso, acha que não adoece e é ocioso. Além disso, não vai ao serviço de saúde, e só vai ao
médico quando ta com uma doença grave. Isto pode ser exemplificado pelos fragmentos a
seguir:
Túlio: E com relação ao... que é que tu acha, como é que os homens cuidam da saúde?
Vinícius: Ó... eu acho que no geral, no geral, a gente é relapso, porque, vamos dizer...
os exercícios que seriam uma coisa, poderia ser uma coisa comum a gente vê
passando, ao caminhar na rua, você vê muitos... muitos homens sentados,
conversando... até pensando, mas não tem aquela atividade que poderia ser andando,
não, eh... são ociosos, né, e não ligam pra isso!
Túlio: O que é que os homens, em geral, fazem quando tão com algum problema de
saúde?
Marcelo: Os homens em geral? Os homens em geral ficam até com medo de ir ao
médico! Eu mesmo era um dos casos! Depois do grupo foi que eu comecei a ir ao
médico, mas eu não ia, mas os homens em geral, eu não sei se é medo ou se é
vergonha de ir ao médico... Túlio: Porque tu acha que eles tem... tu disse que, antes tinha, porque é que o senhor
tinha?
Marcelo: É... é... eu sei lá, eu acho que eu era tímido. Timidez, né?! Timidez! Eu acho
que era isso! Por o homem, o homem nunca... o homem só quer ser o... diz que nunca
adoece, nunca adoece, mas homem adoece, tem que ir ao médico, se ele soubesse... Eu
acho que o homem adoece mais do que a mulher!
Túlio: Por que será que o homem adoece... adoece mais que a mulher então?
Marcelo: É porque o homem, às vezes tem uma doença e guarda, né, às vezes tem
vergonha até de falar, até pra própria... pra esposa, pros filhos, ele mesmo tem
vergonha de falar, eu é muito... o machismo! O machismo é que faz ele ficar assim...
Como dissemos, nestes fragmentos vemos como os argumentos dos entrevistados se
entrelaçam para justificar a falta de cuidados dos homens à própria saúde. Enquanto Vinícius
ressalta características que atribuem ao homem certa atitude de negligência, Marcelo
apresenta elementos que definem motivos para a despreocupação do homem com a saúde e,
ao mesmo tempo, pela sua não busca ao atendimento médico. Entre tais motivos acaba
remetendo a possíveis sentimentos demonstrados pelos homens que o fazem adotar tal
postura, tais como vergonha, medo e timidez.
Podemos pensar que a compreensão deste interlocutor esteja relacionada ao fato de o
homem não ser historicamente educado para falar de si mesmo com os outros, atitude
necessária para se conduzir a busca pela atenção médica. Isto pode ser traduzido nas
expressões utilizadas por ele: “tem uma doença e guarda” e “tem vergonha de falar”. Outro
104
termo mencionado por Marcelo, também aborda uma maneira de explicar a ausência do
cuidado pelos homens, a qual se relaciona à construção social das masculinidades.
Para este interlocutor é o machismo que faz o homem demonstrar tal atitude quanto a
sua saúde. Este mesmo argumento também é utilizado por outros homens entrevistados, que
acabam associando a construção social do “ser homem” às relações de (não) cuidado dos
homens em geral. Luís, por exemplo, afirma que este “não cuidado” vem de berço, trazendo
também a ideia de que homem não chora, é forte, e aguenta:
Túlio: Porque tu acha que não há isso de não se cuidar?...
Luís: Rapaz, vem mais de berço, você ta entendendo? A questão daquele do pai...
“Não! Homem não chora! Homem é forte! Homem tem que aguenta... Homem tem que carregar peso!”...
Tarcísio: O homem, o homem, sei lá, não se cuida bem não! A mulher é mais... ela vai logo no médico, procura saber das coisas direito, né, pra fazer... Os homens não,
os homens vai pelo interesse dele mesmo!
Túlio: Tu acha, assim, porque? Porque é diferente?
Tarcísio: Sei lá, é machista o homem!... O homem é machista!
Estes argumentos nos remetem, como já mencionado, à noção presente na literatura
sobre masculinidades de como a construção social do gênero acaba condicionando o
desenvolvimento das práticas de saúde, sendo necessário, portanto, considerar os modos como
as relações de gênero se desenvolvem para condicionar ou inscrever práticas de cuidado entre
as pessoas. Sobre isto, Romeu Gomes (2008), assim como outros autores (COSTA, 2003;
SCHRAIBER, GOMES e COUTO, 2005; KORIN, 2001), tem enfatizado que os problemas
relacionados ao pouco envolvimento dos homens com a saúde decorrem dos modelos de
masculinidade.
Nesta direção, um argumento citado por Cristiano, acaba afirmando esta dimensão de
gênero, ao considerar que o homem só se cuida quando tem sua imagem ameaçada, ou seja,
quando está em jogo a manutenção de sua masculinidade, traduzida na sua fala pela iminência
de ficar impotente.
Túlio: Eh, ainda tem aquela, aquela coisa, né, de que homem não cuida da sua saúde,
tu acha? Tu concorda com isso?
Cristiano: Olha, veja só, o homem só vai cuidar da saúde quando... (...) Porque o
homem, vamos dizer assim, ele tem um negócio, um preconceito, de que ele só é
homem quando o ferro funciona, quando o ferro deixou de funcionar, cabou-se o
homem! Imagina um homem, com 52 anos de idade, que eu tenho... eu acredito que eu
tenho uma certa disposição, e deixar de ser homem sexualmente, como é que fica a
situação? É difícil, é ou não é?...
105
Assim, para o nosso entrevistado o homem só se preocupa com a sua saúde quando há
a possibilidade de o ferro deixar de funcionar, o que o faria deixar de ser homem. Isto nos
remete à recomendação de Romeu Gomes (2003) quando situa a necessidade de se encarar a
produção da saúde a partir de uma perspectiva relacional de gênero, em que é preciso
considerar os aspectos sócio-históricos e culturais que influenciam e podem comprometer a
saúde dos segmentos populacionais masculinos.
Quando consideramos os homens da sala de espera, as opiniões se aproximam da
perspectiva adotada pelos participantes do grupo quanto ao fato de o homem se cuidar ou não.
Em geral, os entrevistados mencionam que o homem não dá atenção a essas coisas, que ele
acha que não precisa fazer prevenção (prevenção que tem como finalidade descobrir se tem
algum problema), que não tem porque ir ao médico por qualquer coisinha, pois homem
aguenta mais. Argumentos estes que estão relacionados ao modelo de masculinidade
hegemônica, já abordado.
Quando questionamos aos nossos entrevistados “como eles costumam cuidar da
própria saúde?”, três aspectos se destacam como elementos que caracterizam o
relacionamento dos homens com a própria saúde. Primeiramente, os homens relatam que não
costumam procurar atendimento médico. Em segundo, problemas de saúde considerados leves
são resolvidos em casa, na maioria das vezes via automedicação. E em terceiro, ir ao médico
só é uma opção quando se trata de uma questão grave que não se resolve via automedicação,
ou quando o homem não sabe o que tem.
Nestas considerações, alguns pontos nos chamam a atenção. Em primeiro lugar,
parece-nos um tanto paradoxal o fato de os homens conferirem grande poder aos médicos em
“atestar” a sua saúde, como vimos anteriormente, sendo que eles mesmos afirmam não terem
o costume de ir ao médico. Assim, como/quando eles sabem que estão (ou não) com saúde?
Em segundo lugar, destacamos o fato de, dificilmente, estes homens mencionarem a
busca por práticas alternativas de cuidado, e quando o fazem acabam tomando-as sob uma
perspectiva de desvalorização, sendo o comportamento automedicado (ir à farmácia, tomar
algum remédio) a primeira solução. Como vemos no trecho a seguir:
Túlio: Hum! Quando o homem tá com um problema de saúde, o que é que ele faz pra
resolver, normalmente?
Vinícius: Só, na maioria, na maioria, só... pelo que a gente conversa, na maioria, só
quando vêm os sintomas de que remedinho caseiro não resolve! Porque, enquanto se
pode tomar um chá, tomar um comprimidozinho, só porque apresentou um
sintomazinho ele não procura o médico, só quando de fato, e às vezes até vem a
urgência aí é que se cuida!
Túlio: No caso, primeiro ele pega um remediozinho, um comprimido...
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Vinícius: Primeiro, aquele remediozinho caseiro, um comprimidozinho, ou um
chazinho disso... “Seu fulano tomou e ficou bom, eu vou tomar também...”
Assim, na fala deste homem parece haver um movimento de desvalorização do saber
popular, o que é observado a partir das construções discursivas “chazinho” ou “remediozinho
caseiro”. É provável que esta atitude esteja relacionada ao fato de que as práticas
alternativas/integrativas de cuidado acabam não obtendo grande respaldo entre os grupos
populacionais, justamente por não compartilharem do mesmo saber científico e tecnológico
que sustenta e define os padrões da ciência biomédica.
Desse modo, em terceiro lugar, e em consequência disto, vemos que embora o
movimento de ir ao médico seja algo difícil de acontecer, compreendemos que há a
manutenção do tradicional paradigma biomédico que salienta a busca pelo cuidado aos
agravos via ingestão medicamentosa. Logo, o cuidado à própria saúde é executado, mesmo
sem a figura do médico, a partir de suas orientações.
No grupo de homens estas reflexões acabam aparecendo, embora também possamos
traçar outras compreensões. É interessante notar a construção discursiva que alguns homens
fazem para justificar suas práticas de cuidado. Um deles, por exemplo, salienta que a sua
preferência pela automedicação decorre da demora em conseguir um atendimento médico nos
serviços, como mostra o seguinte fragmento:
Túlio: Ah. Entendi! Eh, como é que tu cuida, em geral, da tua saúde? Santiago: Rapaz, eu não vou dizer que eu sou um camarada que faço as coisas, que...
é como a gente tava discutindo aqui agora há pouco, né, que... a automedicação, que
se você chegar “Tou sentindo alguma coisa agora!”... aí, a gente só é atendido se for
na emergência, porque pra onde você for você tem que marcar! Se você ta doente
agora e você vai marcar, quando... quando você vai marcar, o que é que acontece?
Marca pra três, quatro dias depois... Você tá precisando agora, mas você não vai
conseguir!... E termina você se automedicando, como se falou aqui agora... E no meu
caso, eu também não fujo dessa regra, eu me automedico! Agora, eu sempre que posso
eu cuido... Tou há quase dois anos tentando fazer um canal, ali, puxa pra lá... já perdi
dois encaminhamentos, o terceiro já tou já perdendo a validade também, porque não
temos acesso, os CEPs são diferentes né, daqui pra li você não consegue... é a própria
burocracia!... Eu tento cuidar o máximo que eu posso né?
Neste sentido, a demora na efetivação do que ele considera como cuidado, a partir do
atendimento médico, o faz preferir escolher outro caminho que não seja o prescrito – seguir
orientações profissionais sobre a sua saúde. Embora, ainda assim, não podemos dizer que ele
rompe com a lógica da produção de saúde sob uma perspectiva biomédica.
Outro argumento colocado por este homem diz respeito ao trabalho, o qual seria um
complicador à busca pela sua saúde. Segundo o que afirma, o homem precisa trabalhar e por
107
isto os cuidados à saúde acabam ficando em segundo plano – “a gente fica adiando”. Nas suas
palavras ele “aguenta até quando dá, depois tem que ir”. Ao agir dessa maneira, acaba
justificando que ele se cuida sim, embora não o faça continuamente. E mais uma vez vemos a
reafirmação da ideia dos cuidados à saúde condicionada a ir ao médico e ser atendido por ele.
O trabalho acaba sendo um tema importante para definir o relacionamento dos homens
com a própria saúde, embora seja necessário relativizar as compreensões que usualmente o
situam como impeditivo das relações de cuidado. Não se pode negar que o trabalho é tido
como uma atribuição de destaque nos processos de construção social masculina, sendo ao
homem atribuído o papel de provedor. Como afirmam Ana Paula Portella et al (2004) “entre
todas as atribuições masculinas, a mais explícita, inegável e imediata se refere à sustentação
econômica da casa. Ser homem é ser provedor, função que se expande para todas as
dimensões da vida” (p. 128).
Muitas vezes, nos serviços de saúde se entende que é a rotina de trabalho que faz com
que os homens apareçam com menor frequência, uma vez que supostamente o horário em que
tais serviços funcionam coincide com seu horário de trabalho. No entanto, mesmo
reconhecendo que isto, em muitos casos, se constitua como uma barreira, é necessário levar
em conta que muitas mulheres também ocupam diferentes espaços no mercado de trabalho e,
mesmo assim, fazem uso frequente dos serviços (BRASIL, 2009a). Portanto, não se trata de
dizer que somente os homens trabalham, mas que talvez a relação que possuem com o
trabalho é diferente, a qual precisa ser pensada para a definição de estratégias de cuidado
voltadas para eles. Ao mesmo tempo é importante se repensar a discussão do acesso à saúde
pelos homens apenas pela via da busca desta população pelos serviços, sem considerar
também o papel pró-ativo que as equipes de saúde (como o caso da ESF) precisam adotar para
a assistência no território, contemplando as demandas e necessidades apresentadas por eles.
Além disso, a fala de Santiago traz à tona também outra explicação para o não
cuidado, que se relaciona ao “ser homem”, como discutimos acima. O “aguenta” está
relacionado à construção do que vem a ser a masculinidade hegemônica, em que o homem é
forte, é potente, aguenta mais, e, na via contrária, buscar atendimento médico imediato em
“casos leves” o tornaria menos homem por demonstrar uma suposta fraqueza.
Alguns entrevistados também mencionam outras formas de busca pelo cuidado à
saúde, tais como fazer exercícios físicos ou preocupar-se com a alimentação e higiene pessoal.
Tais ações podem ser encaradas como preventivas e estão centradas ainda numa perspectiva
biologicista, já que tem um fundamento de manutenção corporal e se aproximam ao que os
próprios trabalhadores de saúde descrevem como práticas saudáveis de autocuidado.
108
Outro argumento interessante aparece na fala de Cristiano ao dizer que “se cuida e
não se cuida” ao mesmo tempo. Reiteramos a noção de cuidado já apresentada, que associa-se
à busca pelo atendimento médico. Este homem diz que não vai ao médico por achar que não
está doente, o que reforça a ideia de que o homem vai mobilizado pelo sintoma, ou pela
doença já instalada. Por outro lado, em alguns casos específicos, diz ir ao médico para fazer
exames periódicos a partir de motivação particular, como é o caso da próstata. Assim, ele
refere que todos os anos, a tirar pela sua idade, faz o exame do PSA (Antígeno Prostático
Efetivo) para saber como está, uma vez que apresenta uma grande preocupação com a sua
saúde e desempenho sexual.
Justifica esta preocupação pelo medo de tornar-se “menos homem”, caso desenvolva
disfunção sexual. Ao mesmo tempo ele salienta não ter problemas em realizar o exame do
toque retal, caso necessário, o que parece haver aí, na nossa leitura, uma relação paradoxal, já
que os homens parecem compartilhar da ideia de que a submissão ao exame de próstata, no
caso o toque retal, per se já caracterizaria uma afronta à sua masculinidade.
Sobre este tema, resgatamos a interessante discussão realizada por Romeu Gomes,
Elaine Nascimento, Lúcia Rebello e Fábio Araújo (2008), os quais abordam que o exame de
próstata (toque retal), mais que tocar o homem, toca sua masculinidade. Assim, estes autores
mencionam que é preciso considerar os aspectos simbólicos relacionados à realização deste
exame, uma vez que estes podem atuar como barreiras para os homens, já que o toque pode
ser visto “como uma violação ou um comprometimento da masculinidade” (p. 1976).
Não é nossa intenção aqui discutir especificamente os sentidos produzidos pelos
homens sobre o exame de próstata, mas os modos como eles se relacionam com o cuidado à
própria saúde. Logo, para Cristiano, por exemplo, o exame de próstata aparece como a sua
maior preocupação por acabar atingindo outras questões que não apenas o plano biológico.
Não se trata apenas de desenvolver ou não uma doença no corpo, e sim dos efeitos que esta
doença pode provocar na vida deste homem e como ele lida com a iminência desta doença.
Assim, para ele, provavelmente, é melhor deixar de ser homem por um momento, enquanto
realiza o exame, do que a possibilidade de deixar de ser homem para sempre.
Outra forma de falar das práticas de cuidado dos homens é a partir do estabelecimento
de comparações dos mesmos com as mulheres. Segundo todos os entrevistados (tanto no
grupo de homens quanto na sala de espera) há uma diferença nítida nos modos como homens
e mulheres se cuidam.
Para os nossos interlocutores, o homem, em geral, se cuida menos que a mulher.
Dentre as razões para isto, mencionam que a mulher é “mais acostumada” e naturalizam a
109
suposta necessidade feminina de ter um cuidado com o seu próprio corpo, seja por ser mais
frágil e por isto ter mais propensão a adoecer, seja por questões biológicas, tal como ciclo
menstrual, além da preocupação com a higiene pessoal. O que nos faz pensar que seria uma
obrigação exclusiva da mulher manter-se limpa e bem cuidada. Em contrapartida o homem
seria mais desligado, desleixado, bruto, e por isso não liga para ir ao médico. Tal
comportamento acaba sendo justificado e legitimado socialmente, uma vez que o cuidado
consigo e com os outros são valores associados ao feminino, pois “homem que é homem, não
adoece”; desse modo a preocupação com a saúde acaba tornando-se uma atribuição da mulher
(DINIZ, 2004; COSTA, 2003)
Apesar desta ideia recorrente, Romeu afirma que, mesmo reconhecendo que a mulher
se cuida mais, não são todas que se cuidam, o que sugere um possível rompimento com as
cristalizações generificadas socialmente impostas. Neste sentido, a fala deste homem indica
que nem todos os homens nem todas as mulheres acedem literalmente às prescrições sociais
ou categorias analíticas que os condicionam a assumir determinados lugares e
posicionamentos (SCOTT, 1995), tal como a “mulher cuidadora” e o “homem descuidado”.
Para os homens do grupo a mulher se cuida mais, sendo este cuidado traduzido,
muitas vezes, por uma maior busca do atendimento médico e dos serviços de saúde. Dentre as
justificativas para isto, aparece a ideia de que a mulher tem uma tendência para se cuidar
mais, que é mais aberta, quer saber mais e se preocupa mais com a própria saúde. Ao
mesmo tempo aparece a noção de que obrigatoriamente a mulher precisa ir ao serviço pra
fazer prevenção, enquanto que o homem diz não precisar fazer isso.
Nesta discussão, Vinícius afirma que enquanto a mulher vai à unidade de saúde fazer
prevenção, o homem vai fazer correção, ou seja, já vai com alguma doença para tratar. Por
outro lado, Cristiano acredita que enquanto a mulher vai à unidade para manter-se saudável,
o homem vai para não detectar doenças. O que acaba reforçando a ideia de que “ir ao médico”
tem como consequência “arranjar doença”. Para eles, alguns homens, não vão ao médico por
dizer que “você vai com saúde e volta doente”. Tais argumentos são ilustrados a seguir:
Túlio: E tu acha que porque, assim, essa busca da mulher por procu... por cuidar mais
e do homem cuidar menos?
Vinícius: Eu num... eu acho que é uma tendência, é uma tendência de que a mulher,
pra esse lado ela é mais, já o homem... Tanto é que numa... no posto você olha a
quantidade de mulher é bem mais que a de homem, e os que estão lá, estão não pra
propor prevenção, tão ali pra... já pra cuidar,eh, da... da doença, já não é nem pra se
prevenir! Já não é como prevenção, já tá ali como correção!
Túlio: No caso, a mulher... Vinícius: A mulher vai...
Túlio: A mulher vai pra prevenir...
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Vinícius: Prevenir! Prevenção...
Túlio: E o homem vai pra cuidar... pra corrigir alguma coisa...
Vinícius: Pra uma correção... pra corrigir!
Túlio: Sim, tu acha então que os homens não costumam ir na unidade porque eles tem
medo de... de identificar se tem um problema...? Porque tu disse que o homem vai e
volta... “Fui bom e voltei doente!”
Cristiano: Justamente!
Túlio: Então, é como se eles tivessem medo de descobrir que estão doentes, ou...?
Cristiano: Exato! Exato!
Túlio: E a mulher não tem medo!?
Cristiano: A mulher, ela é diferente do homem, ela pensa totalmente diferente!... Ela
vai procurar se cuidar, se manter saudável, o homem tem medo de chegar lá e
encontrar uma coisa que vá piorar a situação dele! Túlio: Ah, então a mulher vai pra se cuidar, o homem não vai pra não detectar
doença!?
Cristiano: Exatamente!
Outro argumento apresentado por Cristiano relaciona-se ao tema do trabalho já
discutido acima. Para ele, supostamente é mais fácil para a mulher ir ao médico já que ela tem
mais tempo, ao contrário do homem que precisa trabalhar para manter a casa. Nesta
associação, vemos mais uma vez a ideia do homem enquanto provedor, que precisa trabalhar
para manter a família e por isso é impedido de cuidar da própria saúde.
Como dissemos no início deste tópico, alguns argumentos mencionados pelos
interlocutores nos fazem questionar até que ponto estes homens se localizam nas práticas
discursivas que produzem, se há ou não uma identificação dos mesmos com as justificativas
e/ou argumentos que apresentam para o (não) cuidado à saúde. Podemos discutir isto a partir
do diálogo abaixo:
Cristiano: Olha, por si mesmo a mulher, ela procura sempre o melhor pra ela, o
homem é mais relaxado em termos de saúde, entendeu? O homem é mais relaxado!
Porque a mulher tem mais... E tem outra coisa, ela tem mais tempo de ir ao médico do
que o homem, porque o homem, praticamente, é o que? É susteio da casa... o susteio
da casa é aquele que bota alimentação dentro de casa, analisando assim
financeiramente, né?! Então, ele se preocupa mais em trabalhar e a mulher se
preocupa... tem mais tempo de fazer as coisas em casa, quando a mulher não
trabalha!... Pra fazer as coisas, cuidar da saúde, então fica mais fácil pra mulher do que pro homem!
Túlio: Em tua casa acontece isso, por exemplo?
Cristiano: É porque quem trabalha em casa sou eu! Neste momento eu não tou
trabalhando! Então eu tou... eh, essa experiência, né?Porque ela tem mais tempo de ir
pro médico do que eu...
Túlio: Certo! No caso, pelo que tu poderia me falar então, tua mulher vai mais ao
médico e ela tem mais tempo porque ela não trabalha, então por isso que ela poderia ir
mais!?
Cristiano: Exato! Exato!
Túlio: Mas tipo, agora que tu ta sem trabalhar, aí tu não vai...?
Cristiano: (Risos) Mas eu não vou porque eu acho que eu não tou doente! Túlio: E ela acha que ela ta doente quando ela vai?
111
Cristiano: Não, é porque a mulher sempre tem uma dor de cabeça, tem isso, tem...
tem enxaqueca, tem isso aqui, tem aquilo outro... Até, eh, quando vem a menstruação,
às vezes ela passa sempre aquela... aquelas dores que não é normal sentir, aí tem que
procurar o médico, o homem não tem essa parte, né, o homem, sei lá... o homem se,
num liga mais nesses assuntos de... de saúde!
O argumento do “não trabalhar” parece não se aplicar à vivência particular desse
usuário, já que embora ele afirme que o homem não vai à unidade de saúde por causa do
trabalho, ele, mesmo estando sem trabalhar, não costuma ir ao serviço. Desta forma, parece-
nos que muitas vezes estes homens se colocam à parte de suas afirmações. Entretanto, como
dissemos, não tentamos aqui conhecer as verdades dos nossos interlocutores, mas
compreender os sentidos que produzem sobre as práticas que utilizam para cuidar da própria
saúde.
Como os homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?
Vários estudos têm indicado a pouca presença dos homens nos serviços de saúde da
atenção básica (GOMES e NASCIMENTO, 2006; SCHRAIBER et al, 2010; COUTO et al,
2010; GOMES et al, 2011), o nosso não foi diferente. Os homens que entrevistamos, apesar
de apresentarem a figura do médico como central para o cuidado à própria saúde, não
costumam buscá-lo ou acessar os serviços em busca deste atendimento.
Quando vão, “ir à unidade” tem como fundamento maior uma resposta ao
adoecimento. Estes homens só acessam os serviços de saúde quando estão sentindo alguma
coisa, ou quando tem alguma doença já instalada (diabetes, hipertensão etc.) e precisam
controlá-la. Além disso, na maioria das vezes, a unidade de saúde não é a sua primeira opção,
pois vários dos nossos entrevistados referem que são os serviços de urgência e emergência
que acessam primeiro (Hospitais, Unidades de Pronto Atendimento – UPA).
Dentre as explicações para isto pode-se destacar a própria situação de adoecimento,
que requer procedimentos imediatos, a agilidade no atendimento e a rapidez da resposta.
Coisas que não acontecem na unidade de saúde, visto que é necessário, segundo eles, aguardar
em filas enormes para marcar e ter que retornar outro dia para ser atendido. Este aspecto foi
abordado por Wagner Figueiredo (2005) que salienta a preferência dos homens em utilizar
farmácias ou prontos-socorros, uma vez que tais serviços apresentam respostas mais objetivas
às suas demandas. Para ele, nestes espaços os homens são atendidos de maneira rápida e mais
facilmente conseguem expor seus problemas.
112
Chama-nos a atenção, no entanto, o fato de, mesmo com estas queixas sobre os
serviços e de não frequentarem a unidade, a maioria dos homens tecerem elogios aos
atendimentos e à equipe de saúde, além de avaliarem, em geral, positivamente a unidade
básica de saúde. Como vemos nos diálogos abaixo:
Túlio: Certo! Eh, o que foi que tu, tipo, o que é que tu achou do atendimento do
médico daqui? Tu foi bem atendido? Felipe: Eu achei bom! Achei bom! Ele veio, atendeu, olhou... E assim, né, assim... eu,
assim... eh, deu esse... deu essa acolhida tão fácil, né, que às vezes a gente pensa que
vai ser aquela burocracia, vai num dia, vai “não sei o que”, e não faz... mas essa daqui
tá sendo mais rápido do que eu esperava, e aí passou um encaminhamento também pro
cardiologista, pra pedir os outros exames, tudinho, o médico já solicitou, foi bom!
Túlio: Tá! E quando o senhor chega na unidade, como é que o senhor é recebido?
Roberto: Rapaz, é tranquilo de todo modo! É porque a turma reclama muito, mas essa
é uma... uma das melhores equipes é essa agora! O povo num... num... num, nunca tá
satisfeito, né, sempre quer mais, né?! Desunião! Do jeito mesmo que a menina falou!
Doutor [diz o home do médico] passou o remédio caseiro, ela queria o antibiótico! Aí
é bronca!
Túlio: Hum...O senhor já, sempre que o senhor quis, eh, algum atendimento na
unidade, conseguiu tranquilamente?
Roberto: Tranquilo! Toda vez que eu vou é tranquilo lá! Atendem bem eles... Túlio: Tem alguma coisa que o senhor gostaria que lá mudasse? Que mudasse na
unidade, pra melhorar?
Roberto: Rapaz, por enquanto, não!
Consideramos que uma das razões para a avaliação positiva pelos usuários está
centrada na efetivação de um atendimento imediato: quando ele ocorre, o serviço é bem
avaliado. Tal reflexão foi decorrente, principalmente, das falas dos homens que entrevistamos
na recepção (como Felipe), quando, após terem sido atendidos, virem suas necessidades,
naquele momento, respondidas. O que não aconteceu com Tomás, que acabou precisando ir a
outro serviço, via encaminhamento, para conseguir o que queria.
Túlio: Ok! Queria acrescentar mais alguma coisa? Você, livremente quer falar alguma coisa?
Tomás: Não, só... fiquei meio frustrado porque, eu como diabético, eu falei né,
fiquei... você tem que pegar a insulina, só tenho uma insulina em casa, um pouco, né,
então, eu encontrei o médico, ele... “Não, vá lá!”... quatro horas eu vim, mas ele só me
deu um encaminhamento pra o [cita o nome de um serviço de saúde da rede
municipal], né, só que eu não sei se eu chegar lá eu vou receber, como é que vai ser...
e se a que tá em casa acabar? É aquela questão, né, então eu acho que o posto de saúde
poderia fornecer, né, já que tem um médico aqui capacitado e tal, acho que podia ficar
sendo acompanhado por ele e também receber a insulina aqui quando realmente
precisasse, não que recebesse de um e de outro!
113
Dessa maneira, o atendimento recebido por este homem foi visto como “frustrante”,
uma vez que tinha a expectativa de resolução de seu problema de maneira imediata o que
acabou não acontecendo, logo, acaba apresentando uma avaliação negativa da unidade.
Outra explicação para a avaliação positiva do serviço pela maioria dos nossos
entrevistados, presente na fala de Roberto, citado anteriormente, relaciona-se a um
tradicional movimento assistencialista que marca o processo de construção do SUS, a partir
da incorporação da saúde como um direto, e da ideia de que se trata de um sistema voltado
“para o pobre”. Assim, ao mencionar “a turma reclama muito” ou “o povo nunca tá
satisfeito”, podemos pensar na existência de uma lógica clientelista que remete à ideia de que
“se ta ruim com ele, é pior sem ele”.
Desse modo, a existência de serviços voltados ao homem nesta unidade, per se acaba
sendo reconhecida positivamente como um ato de concessão benevolente do Estado e de
preocupação com o bem estar da população. Quanto a isto, Noca (2011) argumenta que a
assistência à saúde, tomada como um atendimento público universal, ainda não foi apropriada
pelos usuários dos serviços como um direito de cidadania e dever do Estado, o que faz com
que esta lógica assistencialista ainda seja um imperativo no interior destes serviços.
Assim, para Roberto, parece-nos que a existência de um atendimento público por si só
deve ser bem avaliada pela população, independente da sua qualidade. No caso do público
masculino isto aparece com maior destaque, uma vez que consideramos que as iniciativas
denotadas pelos serviços serão sempre bem avaliadas pelos homens, tendo em vista a
inexistência de ações anteriores em que estivessem inclusos. Além disso, como salienta Noca
(2011), em certa maneira tal reconhecimento se relaciona à ausência do controle social, pois o
desconhecimento, por parte da população, da saúde como um direito de cidadania pode fazer
com que esta não possua parâmetros para avaliar o que seria (ou não) um bom serviço de
saúde.
Outra ideia trazida na fala deste mesmo interlocutor (Roberto), já abordada
anteriormente, diz respeito à utilização dos saberes populares como alternativa ao cuidado, a
qual acaba sendo desvalorizada pelos próprios usuários. Como relata este interlocutor, o
médico “recomenda um remédio caseiro” e alguém reclama por preferir “antibiótico”. Isto nos
remete à ideia da tecnologização do cuidado, que faz com que este seja condicionado ao uso
de insumos da indústria biotecnológica, tais como produtos farmacêuticos e exames, como
substratos à produção da saúde. Isto está presente também no relato abaixo:
Túlio: E o que é que tu achou, assim, do atendimento daqui, das vezes que tu veio?
Vitor: Eu acho que foi bom, né?! Tirando a demora, o resto tá bom demais!
114
Túlio: Tu acha? O que é que tu mais gostou?
Vitor: Eu gostei porque eu contei um problema a ela, ela passou... a doutora passou
vários exames, fez um check-up geral, coisa que nunca mais eu tinha feito, aí... achei
o atendimento bom!
Se outrora exames e medicamentos eram utilizados como artefatos de apoio à prática
de saúde, auxiliando no combate aos sintomas e na elaboração de diagnósticos, atualmente
tais materiais são consumidos incessantemente pelos usuários dos serviços, sendo
demandados por estes. Tal prática faz com que, muitas vezes, um trabalhador de saúde, ou um
atendimento realizado sejam bem avaliados por tais usuários, a partir do uso ou recomendação
de tais recursos. Logo, um atendimento só é bom se houverem prescrições e
encaminhamentos, o que auxilia na manutenção de uma cultura de cuidado normatizado em
constante retroalimentação.
Além disso, há que se levar em consideração a relação econômica existente na
produção da saúde via tecnologização das práticas médicas, o que é referido por Maria Helena
Augusto (2000) como “economicina”. O estímulo cada vez maior à realização dos chamados
“exames de rotina”, por exemplo, constitui uma prática que reflete esta lógica. Neste caso,
utilizam-se recomendações médicas complementares para o cuidado, pautadas em processos
biotecnológicos, que, na verdade, pouco contribuem para a saúde das pessoas, mas que
constituem grande atividade lucrativa para seus propositores, sendo tais práticas
supervalorizadas pela população que a consome.
Sobre isto, concordamos com Noca (2011) quando afirma que a regularidade no uso e
produção da tecnologia em saúde, ao mesmo tempo em que contribui para a revelação de
alguns processos, acaba acelerando outros, como a crescente medicalização da saúde. Assim,
“o ‘direito à saúde’ é confundido com ‘direito à assistência médica’” (p. 100). Aspecto
bastante presente nas falas dos nossos entrevistados, como vimos, os quais associam, em larga
medida, a produção do cuidado à busca pelo atendimento médico.
Compreendemos que quando nossos interlocutores consideram o cuidado à saúde a
partir da produção e mediação biotecnológica, acabam perdendo de vista, por exemplo, a
importância de uma perspectiva mais relacional do cuidado como produção intersubjetiva. Tal
discussão nos remete a Ricardo Ayres (2001) quando vai discutir a intersubjetividade nas
práticas de saúde. Intersubjetividade esta, que como o próprio nome sugere, se constitui no
espaço das relações estabelecidas entre os sujeitos. Considerar este espaço intersubjetivo
aparece como essencial para as práticas de cuidado tendo em vista que, como postula Ayres
(2011), muitas vezes o êxito técnico acaba revestido de sucesso prático. Assim, a medicina
115
tecnificada que se propõe cuidar, muitas vezes, desenvolve práticas pouco comprometidas
com as necessidades apresentadas, por estar muito preocupada em oferecer respostas
normatizadas.
Ainda sobre o uso/acesso dos homens à unidade de saúde, os participantes do grupo
de homens parecem não compreender que o “estar” no grupo é também uma forma de acessar
e de utilizar as atividades oferecidas no serviço de saúde. Além disso, apesar de os mesmos
reconhecerem mudanças em suas práticas de autocuidado após começarem a frequentar o
grupo, vemos certa centralidade destas práticas na autoridade do trabalhador de saúde, uma
vez que “é ele quem supostamente sabe o que é certo ou errado para a minha saúde”. Assim,
pensamos que as atividades de educação em saúde, realizadas no grupo por alguns
trabalhadores, ainda parecem se realizar no plano da transmissão de informações e não na
aprendizagem e desenvolvimento de outras práticas pelos homens, os quais ainda parecem
tutelados pelas indicações destes trabalhadores.
Quando aparecem críticas ao funcionamento da unidade básica de saúde, estas
parecem se situar mais no sistema (atrasos, burocracia) e na estrutura física do serviço (lugar
onde a unidade está situada), nunca sendo referidas as relações entre usuários e trabalhadores,
ou os processos de trabalho e oferta de serviços específicos à população masculina. Há, de
modo geral, uma compreensão positivada dos trabalhadores de saúde e das relações (apesar de
poucas) estabelecidas com os usuários, os quais afirmam “não ter do que reclamar”.
Por outro lado, quando são solicitados a sugerirem mudanças na unidade para
melhorar e atrair mais o homem, mais uma vez a infraestrutura é bastante citada. Surge
também o desenvolvimento de atividades de lazer, as quais têm a sua ausência justificada
pelos próprios usuários devido à inexistência, na comunidade, de um espaço que possibilite
esta prática. Entre os homens da sala de espera, aparecem ainda a realização de campanhas
para atrair mais o homem, a ampliação das vagas de atendimento e a facilitação do acesso,
para a marcação de consultas, por exemplo.
Outra demanda apresentada por (apenas) um dos nossos entrevistados foi a
necessidade de um profissional especialista para o homem, no caso, o urologista, na unidade,
o que nos chamou a atenção tendo em vista a grande centralidade atribuída pelos
trabalhadores às questões da próstata para os homens. O que não significa, no entanto, que os
nossos entrevistados não tenham tal preocupação, mas que quando conversamos sobre a
produção da sua saúde em geral, nem sempre a próstata tenha tanto destaque.
Por fim, um aspecto merece ser destacado: os homens reconhecem que a unidade tem
feito ações voltadas para eles, citando, por exemplo, o próprio grupo de homens e o dia do
116
homem. Para eles, portanto, depende do homem ir mais ao serviço, pois já existem ações
direcionadas a ele, o que mais uma vez nos remete à percepção positivada do serviço em vias
de uma cultura assistencialista, sem que tais homens reflitam, por exemplo, se as atividades
oferecidas pela unidade estão de acordo com suas necessidades particulares.
Túlio: E tu acha que é... a unidade de saúde poderia fazer alguma coisa pra melhorar,
o cuidado ao homem? Tu acha que precisa de alguma coisa lá?
Marcelo: Precisa...
Túlio: O que, por exemplo? O que poderia...? Se fosse dizer... “ah, eh, pra melhorar o
atendimento ao homem na unidade eu queria que isso existisse”... uma sugestão, ou
poderia ter mais o que? Ou tu acha que talvez...
Marcelo: Rapaz se... se... se... melhorar o homem não vai, porque o homem não vai.
A gente vê, a gente conta a dedo. Se tiver vinte mulher, tem dois homens! A ocupação
é a mesma, a gente quer melhorar, mas a própria... o próprio homem num deixa!
Túlio: E tu acha que poderia fazer o que pra que o homem começasse a ir mais?
Marcelo: Não, ele mesmo... ele deve, ele mesmo... ele mesmo ir, que nem as
mulheres vão... Homem não, homem é... medroso, pra ir ao médico!
Túlio: O agente de saúde não podia fazer nada, com relação a isso...!?]
Marcelo: Não!... Eu creio que não!
A esse respeito uma discussão é realizada por Schraiber e Mendes Gonçalves (2000)
no tocante às necessidades e demandas apresentadas pelos homens na saúde. Uma
necessidade se configura no momento em que alguém tem diante de si um impedimento, que
dificulta o seu viver e gera sofrimento. Podemos compreender que as necessidades
encontram-se em todos os domínios da vida, no trabalho, na família, no meio sociocultural, no
lazer etc. Uma pessoa, quando apresenta determinada necessidade, recorre na coletividade a
um meio para a resolução da sua situação. Assim, acaba endereçando a outrem a possibilidade
de ter atendidos os seus desejos, legitimando-os como aqueles que podem intervir de modo a
responder aos seus carecimentos. A necessidade, então, se formula a partir do resultado das
intervenções sobre os carecimentos da população e a demanda, por sua vez, situa-se na busca
ativa pela intervenção (SCHRAIBER e MENDES GONÇALVES, 2000).
No caso das necessidades em saúde, as consideramos como resultado de uma
compreensão particular do aparelho social ao qual a pessoa recorre em busca de ajuda, neste
caso, trata-se de uma produção dialética que se realiza na compreensão de alguém sobre o seu
próprio sofrimento e nas respostas e recursos tecnológicos possíveis, situadas em códigos
culturais específicos e disponíveis para lidar com aquele sofrimento (CAMARGO JR, 2003).
Desse modo, como mencionam Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) as necessidades
são construções sociais. O que implica em que, as pessoas para reconhecer determinados
carecimentos como necessidades direcionadas pra um ou outro serviço dependem do
117
reconhecimento das potenciais respostas a estes carecimentos construídas, a partir dos
(des)usos possíveis, na correspondência entre as necessidades apresentadas e os serviços/bens
disponíveis. Dito de outro modo, “as necessidades podem corresponder a construções diversas
dos carecimentos, a depender do tipo de resposta proporcionada na produção dos bens ou
serviços” (NOCA, 2011, p. 89).
No caso desta unidade básica de saúde, as atividades oferecidas para os homens foram
construídas mediante certa maneira de encarar suas necessidades, assim, ao se definirem tais
atividades como formas de produzir o cuidado à população masculina, tem-se em conta quais
os carecimentos apresentados por estes, bem como as formas possíveis do serviço em ofertar
respostas aos mesmos. Nas falas dos nossos interlocutores, quando pontuam que são os
homens que devem ir mais ao serviço, vemos como os próprios serviços em suas proposições
acabam por criar também outras demandas, instaurando entre os sujeitos novas necessidades,
qual seja a necessidade da própria busca pelo serviço.
Assim, é importante considerar o movimento que, como aponta Schraiber (2005),
atribui à baixa frequência dos homens nos serviços sua suposta resistência aos cuidados à
saúde, não sendo reconhecida, muitas vezes entre eles mesmos, sua pouca inclusão em
propostas assistenciais ou em atividades específicas voltadas às suas reais necessidades.
Como pudemos ver acima, neste estudo, compreendemos haver também uma tendência à
responsabilização, por parte dos próprios usuários entrevistados, dos homens pela menor
busca dos serviços.
Desta forma, há que se considerar que os próprios usuários acabam reproduzindo
também tais ideias, sendo corresponsáveis pelos impasses na sua relação com os serviços
(COUTO et al, 2010). Quanto a isto, nos cabe questionar: ao assumirem a perspectiva de que
o acesso aos serviços de saúde depende deles, estes homens não estão assumindo um lugar a
eles imputado historicamente, naturalizando suas posições de não-cuidadores, por exemplo?
PRODUÇÃO DE CUIDADOS À SAÚDE COM TRABALHADORES DE SAÚDE
Tal qual fizemos no tópico anterior com os homens/usuários, neste momento nos
dedicaremos a compreender de que maneira os trabalhadores de saúde entrevistados lidam
cotidianamente com os homens no interior dos serviços de atenção, considerando as práticas
de cuidado que desenvolvem e as ressonâncias dessas práticas na vida destes homens.
Também estruturamos este tópico a partir de algumas questões, que abordam: (se e) como os
118
trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da unidade básica de
saúde?” e “(se e) como operam a produção de cuidados à saúde dos homens no cotidiano do
serviço?”, desenvolvidas a seguir.
Como os trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da unidade
básica de saúde?
Partindo para as entrevistas com os trabalhadores de saúde, vemos que muitos dos
argumentos situados pelos homens acerca dos cuidados à própria saúde e a de outros homens
acabam sendo utilizados também por estes trabalhadores, independentemente de sua função
no serviço ou formação. Uma das idéias mais recorrentes dentre aqueles que entrevistamos
refere-se ao menor fluxo de homens na unidade de saúde, principalmente quando comparado
à presença das mulheres.
Quando questionamos a estes trabalhadores “como você observa a presença de
homens no cotidiano da unidade básica de saúde?”, obtemos respostas como as expressas
nos fragmentos abaixo:
Túlio: Como é que tu avalia a presença de homens no cotidiano da unidade como
usuários?
Mateus (Médico): A contagem de homens que vem pra mim fica bem clara por conta
dessas fichas que eu tenho que preencher. E daí a gente vai colocando assim o código
1 para o sexo masculino, 2 para o sexo feminino. E daí quando a gente vai mexer aqui no (T.I), você vê que a maioria é 2. Alguns dias aqui dá mais homem, mas são poucos
os dias. A maioria é do sexo feminino mesmo que vem na unidade. Aí a unidade
termina por hoje... até agora por atender quatro pessoas. Das quatro, uma foi do sexo
masculino e três do sexo feminino...
Túlio: Como é que você percebe a presença de homens no cotidiano da unidade...
número de usuários?
Regina (Enfermeira): Homens é bem menor do que mulheres. Isso é empírico,
porque nunca a gente foi fazer uma medição. Mas eu acho que depois do grupo de
homens, tem um marco aí, antes e depois. A gente passou a ver mais homens na
unidade, mas se você contar o grupo de acolhimento é que fica mais visível: você tem mais mulheres do que homens. Eu acho que isso é em qualquer unidade, sempre tem
mais mulheres. Tem muita mulher que não trabalha na comunidade, então isso
também leva a ser ela que vem mais a unidade.
Nestes fragmentos observamos que a construção discursiva se realiza de maneira
diferente entre os dois profissionais. Enquanto o médico apresenta os registros das consultas
realizadas naquele dia para justificar seus argumentos, a enfermeira afirma que mesmo de
maneira empírica, observa que a unidade é mais acessada pelas mulheres e, enfim, ambos
concluem que o homem apresenta-se com menor frequência no serviço de saúde.
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Um argumento utilizado pela enfermeira para explicar a maior presença das mulheres
na unidade de saúde, refere-se ao fato de muitas delas não trabalharem, o que nos faz pensar
que, dessa forma, esta profissional acaba situando o homem como trabalhador, reafirmando a
sua posição de provedor, que supostamente o impede de acessar os serviços e, logo, de cuidar
da própria saúde por intermédio daquele espaço. Vimos que o trabalho também é uma
temática que aparece como eixo estruturador da relação que os homens dizem estabelecer com
o (não) cuidar da saúde, sendo este tido, na maioria das vezes, como um obstáculo ao cuidado.
Um aspecto que merece destaque na fala da enfermeira refere-se a uma suposta
mudança na unidade com relação à presença de homens. Segundo ela, os trabalhadores de
saúde passaram a ver mais usuários do sexo masculino a partir da criação do grupo de
homens. Este argumento também é compartilhado por outros trabalhadores da equipe, como
destacamos nas falas a seguir:
Túlio: Como que é a presença de homens aqui na unidade?
Jéssica (ACS3): Agora está sendo mais constante, porque antigamente você não via
tanto homem cuidando da saúde, vinha quando já tava muito doente... Mas agora
também como tem o grupo de homens que tá influenciando muito também e eles tão
participando muito agora...
Érica (Téc. de Enfermagem 2): O que a gente vê muito aqui no posto, diferente de
muitas unidades é a participação do homem, porque depois da... da... da... de, da
criação do grupo a gente viu um aumento maior do acesso do homem, normalmente era mais mulheres que vinham ao posto procurar, os homens quando vinham ao posto
era já doentes e, não assim, pra fazer um acompanhamento, tipo... aferição de pressão,
que é uma frequência aqui que eu tenho muito... Depois do grupo de homens, depois
da chegada do PSF aqui, a gente teve um aumento muito grande de homens vir pra o
posto pra aferir pressão, pra poder se tratar, pra fazer exame de sangue, PSA... que a
gente não tinha muito essa vivência, curativos também, a gente não tinha uma adesão,
quando a gente chegou não tinha uma adesão muito grande de curativos, hoje em dia a
gente vê, mais assim, eles tem mais uma credibilidade, procurando mais o posto, até a
questão do atendimento, a gente vê que no acolhimento, o gran... assim, uma grande
parte do atendimento também são homens, e homens idosos, é os que normalmente
tem mais acesso ao posto...
Para a técnica de enfermagem 2, o grupo de homens não apenas possibilitou um
aumento na presença de homens na unidade, mas também certa credibilidade ao serviço, o
que fez com que os mesmos tivessem aderido a determinados procedimentos a que não
acessavam anteriormente. Outro aspecto destacado pela técnica, diz respeito aos motivos que
tem levado os homens à unidade: se anteriormente eles já vinham doentes, em busca de
tratamento, após a criação do grupo, eles passaram a vir buscar acompanhamento,
exemplificado pela verificação das taxas de pressão arterial e realização de exames, como o
PSA.
120
No entanto, esta mudança referida pelos trabalhadores, atribuída ao grupo de homens,
nos parece um tanto controversa, uma vez que apenas um dos homens entrevistados,
participante do grupo, afirma fazer uso contínuo do serviço de saúde. Mesmo este usuário
tendo associado à sua participação no grupo algumas mudanças na sua forma de lidar com a
própria saúde, não se pode concluir que o grupo de homens possa ser visto como o único
responsável.
Santiago: Eu não vou dizer que eu antes não me encaixava mesmo não... Agora,
depois que eu tou frequentando o grupo, a gente vai vendo como é a necessidade que
você tem de... de buscar aquilo, porque a gente também precisa, né, é por isso que a
maioria morre, porque, tem um problema, não cuida, não cuida, não cuida, quando dá
fé, fica aquela bola de neve, não consegue mais... ta tarde!
Até mesmo porque, em outro momento, este mesmo usuário menciona que encontra
dificuldades para receber o atendimento que precisa no serviço e ter suas necessidades em
saúde supridas.
Túlio: Ah ta... me diz uma coisa, depois que tu começou a frequentar o grupo, tu viu
diferenças no modo como tu cuida da tua saúde? Santiago: Também! Agora, o problema é a dificuldade de a gente chegar ao que a
gente realmente precisa! Porque aqui no grupo é uma coisa, agora você... você toma
conhecimento do que você tem, agora pra cuidar é o trabalho... porque você vai aqui e
ali, aí marca pra cinquenta anos, aí você morre e não consegue fazer uma coisa
direito...
Dessa maneira, embora reconheçamos a importância que o grupo de homens tem para
a (com)unidade, significando mais que uma estratégia de acesso à população masculina, um
marco e diferencial no atendimento da população em geral, ainda é possível encontrar
algumas fragilidades em seu funcionamento. A primeira diz respeito à dificuldade encontrada
pelos trabalhadores e usuários na adesão de mais integrantes ao grupo, o que é referido pelos
nossos interlocutores. Em segundo lugar, cita-se a quase ausência da população masculina
mais jovem, uma vez que a maior parte dos integrantes possui acima de 40 anos. Em terceiro,
a efetiva aproximação e reconhecimento deste grupo, entre os homens, como estratégia de
cuidado à saúde que permita uma maior articulação dos mesmos com a unidade básica.
Por outro lado, pelas palavras dos trabalhadores, podemos pensar que talvez, não de
maneira direta, o grupo de homens possa ter atuado na construção de uma consciência
cuidadora entre os homens, mas que esta mudança tenha sido incorporada muito mais pelos
trabalhadores, os quais provavelmente passaram a desenvolver outras formas de se relacionar
com o homem da comunidade, anteriormente invisibilizado no serviço.
121
Ainda na discussão sobre a presença de homens na unidade de saúde, a médica que
entrevistamos posiciona-se da seguinte maneira:
Túlio: Ok! Eh... como que tu percebe o fluxo de homens na unidade?
Priscila (Médica): Eu acho que o fluxo de homens é diminuído, sim! Eu acho que não
é uma falácia! Eu acho que a gente tem uma dificuldade de trazer o homem por um
milhão de motivos! O primeiro dos motivos é que existe uma referência tanto... eu não
diria nem machista, mas masculinista, uma questão de gênero mas... do masculino, de
que o homem, ele, pra garantir a força, a sua virilidade, da sua, eh... da sua força, de...
e dessa referência de que o homem é mais forte, de que o homem precisa ter uma resistência melhor em determinadas coisas, isso vai respingando diretamente na saúde.
(...) essa construção de gênero masculina, ela vem respingando diretamente na saúde
desses homens, que precisam de... demonstrar uma força, demonstrar uma
autosuficiência, demonstrar uma resistência que por hora os corpos deles não tem
tanto quanto eles gostariam, ou quanto a sociedade gostaria que eles tivessem, então
isso, eu acho que diminui sim, e muito, o cuidado com a saúde... o cuidado dessas
pessoas, e eu acho que, eh... essa construção, ela vem dentro do SUS também, na
forma como ele teve de se autoafirmar como sistema de saúde. Então, a gente tem sim
uma feminilização das unidades de saúde, a gente vê aqui ó... [aponta para as paredes
do salão]... ao nosso redor, então são cartazes com mulheres, cartazes rosas, cartazes
femininos, então a gente tem... o movimento social das mulheres, o movimento
feminista ele vem afirmar o gênero feminino, e isso tem um pouco dessa contraposição também, de que... não existe um movimento de homens, mais histórico
e mais forte mundialmente como houve o movimento de mulheres, porque existe uma
hegemonia do sexo masculino na política, nas práticas de trabalho, enfim... nos
processos de história do mundo, então, normalmente quem se rebela é quem tá mais
oprimido, e de fato, historicamente quem se oprimiu mais foram as mulheres... Então,
as políticas públicas, na minha opinião, elas vem se formando por conta dessas
demandas, então, essa demanda e o movimento social que vai bater na porta é o
movimento das mulheres, é o movimento de feminilização, de fato, das unidades de
saúde, dessa mulher que historicamente é mais frágil, historicamente adoece mais,
historicamente não precisa ser tão autosuficiente, então ela acaba por dar o formato,
dar uma tônica nos serviços de saúdes, que acabam sendo hegemonicamente femininos...
O trecho destacado nos traz uma série de elementos que são usualmente atribuídos
como justificativas ao não uso dos serviços de atenção básica pelos homens, e ao mesmo
tempo auxiliam a construir uma imagem do serviço que acaba por afastá-los: a ausência dos
homens nos serviços, ao mesmo tempo, é uma causa e consequência da falta de cuidados
voltados para ele.
Como vemos na fala da médica, o fluxo de homens na unidade é diminuído e há uma
dificuldade em atraí-los. Como motivos, esta trabalhadora de saúde cita a questão de gênero
(há uma referência masculinista), o processo de construção do SUS, a feminilização das
unidades de saúde, fruto dos movimentos de renúncia à histórica opressão social feminina, e a
inexistência de um movimento de homens semelhante. Reconhece, então, que as políticas
públicas são gestadas a partir das demandas que se apresentam. Logo, se a mulher demanda
122
mais, ela dá a tônica dos serviços e, em contrapartida, a falta de reivindicações por parte dos
homens resulta numa invisibilidade masculina nestes espaços.
Por outro lado, esta mesma trabalhadora afirma haver um aumento na presença de
homens nas unidades, decorrente de uma contrapartida política, oriunda principalmente dos
movimentos sociais, e acadêmica, que vem investindo nesta pauta e puxando pro lado da
universalização, o cuidado com os homens:
Priscila (Médica): Existe uma melhora... Eu acho que da construção do SUS pra cá
existe uma melhora! Existe um olhar, eu acho que essa... esse teu olhar acadêmico, e o
olhar de tantas outras pessoas que vem trabalhando essa pauta, vem dando esse grito
de alerta pro próprio sistema, então eu acredito que existam... e aí existe o movimento
LGBT, né, o movimento de homossexuais, existem outras contrapartidas que vem
também bater nessa porta e que vem formatar, puxando também pro lado da universalização, o cuidado com os homens...
Sobre a feminilização dos serviços, outros trabalhadores também se posicionam,
reafirmando esta compreensão. Para o médico Mateus, por exemplo, a mulher ta mais atenta
pra saúde do que o homem. Ele justifica isto como uma questão cultural: a mulher se cuida
mais e se dedica aos filhos, enquanto que os homens se entendem como chefes da casa, que
precisam passar o dia fora, além do próprio machismo.
Entre os ACS, tal perspectiva também aparece, sendo a mulher mais cuidadosa com a
saúde por ser vaidosa, por gostar de estar bem e por gostar de se cuidar, como exemplificado
no trecho abaixo:
Túlio: Agora assim... Você falou em mulher, você acha que o modo que a mulher se
cuida é diferente do modo que o homem se cuida?
Lívia (ACS1): É diferente.
Túlio: Por quê? Lívia (ACS1): Ah, porque a mulher é mais vaidosa, ela gosta de se cuidar, gosta de
estar bem. Na verdade, antes, quando era (T.I), o número de mulheres que vinham
fazer prevenção é bem menor que agora. E agora não, tem dias que os (T.I) acabam,
não dá.
Túlio: Mais por vaidade que a mulher...
Lívia (ACS1): Não, pra se cuidar mesmo. É pra se cuidar mesmo. Ela gosta de tá bem
mesmo, consigo mesmo. Ela procura fazer o preventivo anualmente. O de mama não é
tanto assim por conta das dificuldades, mas hemograma...
Esta suposta maior atenção da mulher com a própria saúde foi discutida por Simone
Diniz (2004) em trabalho oriundo de pesquisa realizada com homens e mulheres com foco na
saúde sexual e reprodutiva, no contexto da atenção básica, e que tinha como um de seus
objetivos compreender como estas pessoas cuidavam da própria saúde. Para ela, as mulheres
parecem estar mais atentas às mudanças relativas à sua saúde e se mostram mais dispostas a
123
buscar orientações com os profissionais. Além disso, a submissão delas à medicalização
aparece como uma rotina encarada com tranquilidade.
Um aspecto interessante destacado por Diniz (2004) diz respeito ao que ela refere
como “testagem indireta”: o fato de as mulheres excessivamente utilizarem os serviços de
saúde acaba funcionando para que os homens já se sintam examinados por estes. Assim, os
homens não precisam ir à unidade de saúde, uma vez que suas mulheres já vão. Mesmo
considerando que a pesquisa de Diniz (2004) se refere a um campo específico de ações em
saúde, podemos extrapolar estas considerações para outros contextos, uma vez que,
indiretamente, questões de saúde dos homens acabam sendo tratadas pelos profissionais
intermediados pelas mulheres.
Alguns autores referem como a presença das mulheres nos serviços acaba sendo
utilizada como uma forma de possibilitar uma maior adesão dos homens aos cuidados à
própria saúde (COUTO et al, 2010; MARCHIN et al, 2011), o que também é referido pelos
trabalhadores que entrevistamos. Quando questionamos a estes “como os homens chegam à
unidade de saúde?”, uma das principais formas se relaciona à participação feminina:
Túlio: Certo! Mas, esse homem que vem na unidade, eh... tem... como é esse homem?
Como ele vem? Como ele tem acesso?
Priscila (Médica): Esse homem muitas... em muitas situações, a gente percebe que
ele vem por conta... por intermédio e por conta de uma mulher, ou que seja sua mãe,
ou que seja sua irmã, quer seja seu, eh, sua esposa, enfim, que abre esse canal para que
ele se permita cuidar, né, ele se permita entender que precisa ser cuidado, e aí se
permita cuidar, né?!...
Túlio: Quando eles vêm pra cá, eles vêm de forma espontânea, são convidados, é marcado?
Sabrina (Téc de Enfermagem 1): Eu acho assim... As esposas é que vem pra marcar
porque eles não têm coragem de vim...
Túlio: Quando eles vem, eles marcam consulta ou pede pra alguém marcar pra ele?
Soraia (ACS2): Esse é o problema, eles ficam falando que quem tem que falar é a
esposa... Eles querem vim, mas pra eles mesmos vim marcar, não sei se eles vem fazer isso... A não ser que assim... que tenha algum problema com ela... que ela trava
mesmo e aí o marido tem que vim... (T.I)
É importante destacar nestes trechos, a explicação dada pela técnica de enfermagem
1 para a atuação das mulheres na marcação do atendimento para o homem: “eles não tem
coragem de vim”. Podemos tencionar tal argumento tendo em vista um dos principais motivos
apontados para o homem não frequentar os serviços: a manutenção da imagem masculina. A
“coragem” mencionada pela profissional acima pode não estar relacionada necessariamente a
um suposto “medo” de saber da sua saúde, mas que isto venha a fazer com que ele tenha
questionada a sua masculinidade.
124
Como argumenta Diniz (2004), “a ida ao serviço é às vezes percebida como uma
forma de desonra masculina, por se mostrar vulnerável a doenças ou à influência feminina”.
Desta forma, “a ida ao médico é considerada como uma exposição de vulnerabilidade e da
fraqueza diante dos pares, pondo em dúvidas sobre a masculinidade de quem procurar ajuda, a
ser evitada a todo custo” (p. 68).
Além do intermédio feminino, os trabalhadores referem também outras formas de
acesso do homem à unidade básica de saúde. A enfermeira Regina, por exemplo, afirma que
dificilmente ele busca o serviço por si mesmo, quando não vêm através de uma mulher, vem
indicado por outra pessoa ou mesmo encaminhado pelos serviços de emergência, os quais são
tidos como uma das principais vias de acesso dos homens ao Sistema Único de Saúde
(BRASIL, 2009a).
Quanto aos motivos que levam o homem a ir à unidade, os trabalhadores acabam
elencando uma série de questões de saúde, mas que tem em comum o fato de serem queixas
de adoecimento. Os homens só vão ao médico “quando estão doentes”, “quando não tem mais
jeito”, “quando estão morrendo”, premissas compartilhadas pelos homens/usuários com quem
conversamos, como já mencionamos anteriormente.
A dentista Ramona defende que os homens têm medo de ir ao atendimento
odontológico e só vão à unidade quando estão com dor. Para a enfermeira a ida deles à
unidade é motivada por uma questão já instalada (“vem para tratar de um mal que estão
sentindo”, “já no processo de adoecimento”), nunca para fazer prevenção, ao contrário da
mulher que “já tem mais essa visão”, o que também é referido pelo médico Mateus.
Ainda sobre este aspecto, um elemento importante é relatado pela médica:
Priscila (Médica): (...) E esse homem, ele é fruto também desse despertar também da
cultura do check-up, né, de que “eu preciso me cuidar, porque se não vou morrer, e aí
eu preciso me entupir de exames, e me entupir de remédios para que eu consiga
chegar”, né?! Então esse homem chega ou com essa... com essa questão, né, do check-up, do olhar, ou com essa questão do intermédio feminino... minha opinião é...
Esta fala da médica além de reforçar uma noção de cuidado que se associa à
racionalidade biomédica, ao mesmo tempo, remete a um crescente movimento de
medicalização do corpo masculino. Sabe-se que historicamente, diferente do homem, a
mulher é quem sempre foi mais acostumada a ter o seu corpo como alvo da medicina,
principalmente com advento da ginecologia, como lembra Gomes (2008, p. 55, citando
ROHDEN, 2001), quando “teve o seu corpo mais medicalizado em diferentes ciclos de vida”.
125
Com a crescente visibilização dada aos homens a partir dos estudos sobre
masculinidades no campo da saúde, também tem sido crescentes as tentativas de intervenção
biomédica sobre os seus corpos, principalmente no tocante à saúde sexual e reprodutiva, o que
tem tornado o homem alvo de produtos farmacêuticos e investimentos biotecnológicos de
controle, que instituem formas de conduzir sua relação com o próprio corpo e com a própria
saúde. Reflexão parecida foi realizada por Jéssica Noca (2011), a partir de Clarke (1993), ao
referir este processo de biomedicalização como produtor de transformações do corpo, da
saúde e da vida.
Diante das falas dos trabalhadores, e também resgatando um pouco do que já foi
discutido entre os homens, compreendemos que não é uma falácia o argumento de que as
mulheres utilizam mais os serviços de saúde do que os homens. De fato, uma simples ida a
uma unidade básica de saúde pode nos levar a observar como nestes espaços a presença
feminina é praticamente uma hegemonia. Isto também aparece em estudos acadêmicos e
pesquisas científicas nacionais e internacionais que atestam a pouca presença dos homens nos
serviços de saúde, exceto os de urgência e emergência.
No Brasil, especificamente, uma pesquisa realizada por Pinheiro et al (2002), a partir
de dados da PNAD/IBGE, de 1998, apontou que o percentual de mulheres que realizaram
consultas médicas neste período foi de 62,3%, cabendo 47,7% aos homens. Quanto aos
motivos para a utilização dos serviços de saúde, o estudo de Pinheiro et al (2002) concluiu
que as mulheres buscam mais os serviços de saúde para exames de rotina e prevenção
(mulheres 40,3%; homens 28,4%) e os homens vão por motivo de doenças (36,3%; mulheres
33,4%).
É importante destacar que mesmo reconhecendo a pouca presença masculina na
unidade básica de saúde, a maioria dos trabalhadores que entrevistamos, não compartilha da
idéia de que os homens são descuidados da própria saúde, como exemplificado no trecho a
seguir:
Túlio: Eu queria te perguntar, se tu concorda que homem não se cuida?
Soraia (ACS2): Eles se cuidam sim, acho que só falta um empurrãozinho. Alguém
que oriente, que esclareça... Tem alguns quando sente algo termina comentando, quer
dizer que eles não estão perdidos, se preocupam sim, só precisam perder o medo, o
tabu de falar alguma coisa... Túlio: Seria, tipo, eles se cuidam... um cuidado tardio ou um cuidado diferente?
Soraia (ACS2): É um cuidado tardio, infelizmente. Alguns não. Alguns eu sei que
vem mesmo e participam, mas a maioria é um cuidado tardio...
126
No entanto, alguns trabalhadores, mesmo reconhecendo haver uma mudança nos
hábitos de cuidado (relacionados à busca pelo atendimento médico) por parte dos homens que
atendem na comunidade, ainda compartilham da perspectiva de que os homens são mais
descuidados, como diz a ACS Lívia citada abaixo
Túlio: Normalmente, as pessoas dizem que homem não se cuida. Tu concorda (sic)
com isso? Lívia (ACS1): Eu acho que sim.
Túlio: Que homem não se cuida? Por quê?
Lívia (ACS1): É. Porque ele acha que é forte, nada vai atingir. Se acha o Todo
Poderoso, é o leão da floresta. Aí não precisa não, porque se ele tiver algum tipo de
cuidado com a saúde, pelo menos uma vez no mês, no ano, procuraria a unidade de
saúde pra fazer uma avaliação.
(...)
Túlio: Pelo que tu vê (sic) aqui na unidade, o que é que você acha assim?
Lívia (ACS1): Bem, pelo menos aqui na unidade eles tão (sic) se cuidando mais. Aí
se você quiser ver como eles estão se cuidando mais e como eles gostam muito de se
agrupar, vem no Dia Azul. Aí você vê que é completamente diferente.
Diante deste trecho, destacamos que embora a ACS1 acredite que os homens, em
geral, não costumam cuidar da saúde, em sua opinião está havendo uma mudança, e eles têm
buscado se cuidar mais, pelo menos na unidade de saúde. Premissa que, como vimos, também
é compartilhada por outros trabalhadores.
Ainda sobre este assunto, a dentista Ramona afirma que os homens se cuidam sim,
mas ainda lhes falta conhecimento. Para ela, eles não se cuidam por reconhecerem a unidade
como espaço destinado ao cuidado das mulheres, além do machismo que os coloca numa
situação de suposto não adoecimento. Por fim, situa a responsabilização que os homens
atribuem à mulher sobre as questões da saúde (ela engravida, ela adoece), enquanto que ele
nunca adoece, razões estas que já foram abordadas anteriormente.
É importante, neste caso, atentar que, como afirmam Márcia Couto et al (2010):
Atributos relacionados ao masculino – como invulnerabilidade, baixos autocuidado e
adesão às práticas de saúde (especialmente de prevenção), impaciência, entre outros –
atualizados no cotidiano dos serviços pelos profissionais e pelos próprios usuários,
tornam estes espaços ‘generificados’ e potencializam desigualdades sociais,
invisibilizando necessidades e demandas dos homens e reforçando o estereótipo de
que os serviços de APS são espaços feminilizados (p. 267).
Desta forma, retomamos nossa ideia de que a compreensão do cuidado à saúde
necessita ser relativizada tendo em vista os modos particulares com que cada pessoa lida com
sua própria vida. As comparações feitas entre os cuidados de homens e mulheres precisam ser
tensionadas, uma vez que muitas vezes se investe uma espécie de feminilização dos homens,
127
tendo por parâmetro a adoção por estes de práticas de cuidado de acordo com aquela que por
excelência sabe o que é cuidar: a mulher.
Do mesmo modo, podemos questionar o quanto não é difícil para o homem dispor-se a
assumir esse lugar de cuidador, o que supostamente o equipararia à figura feminina da qual
tenta se diferenciar. Sobre isto retomamos o argumento mencionado por Romeu Gomes
(2003) ao dizer que a masculinidade não é algo com que se nasce, mas que se busca
conquistar, que se adquire e se reconhece socialmente, de modo que perder esta posição pode
não estar nos planos dos homens.
Como os trabalhadores de saúde operam a produção de cuidados à saúde dos homens no
cotidiano do serviço?
No primeiro tópico que compõe este capítulo mencionamos brevemente as atividades
desenvolvidas pelos trabalhadores de saúde da referida unidade básica que são aludidas ao
cuidado do homem. Neste momento, retomaremos tais atividades, a partir dos relatos dos
trabalhadores entrevistados, de modo a destacar como nossos interlocutores operam a
produção de cuidados à saúde do homem no cotidiano da atenção básica, a partir destas
práticas que dizem, ou permitem, “cuidar”.
Em geral, nesta unidade, algumas estratégias definidas pela equipe são vistas como
favorecedoras da aproximação dos homens à unidade. Para ilustrar isto, trazemos abaixo o
relato de Érica, técnica de enfermagem, que, em certa medida, resume a posição da equipe
de saúde:
Túlio: Tá, que atividades vocês costumam desenvolver aqui com o homem?
Érica (Téc. de Enfermagem): Eu acho, assim, que.... com o homem, o grupo de
homens, assim, a gente teve o dia do homem, né, que a gente tem o dia da mulher e o
dia do homem, que a gente comemora... O dia do homem, foi até o dia azul, eu não me
recordo agora quando foi, se foi esse ano, se foi ano passado... não, foi esse ano, que a
adesão foi maior que a das mulheres, aí a gente fez... Túlio: O dia do homem foi maior que o da mulher?...
Érica (Téc. de Enfermagem): Foi maior que o da mulher! Quando a gente fez o dia
do homem, aí tiveram as esposas deles pra poder participar... A gente... “Não, hoje é o
dia só voltado pra eles...”... Eh, aferição de pressão, com, eh, consulta médica, a parte
odontológica, então, assim, foi um dia especial, até a gente colocou: dia do homem,
dia azul! Aí a adesão foi maior que a adesão das mulheres. A gente tem dia que tem
dia da mulher aqui, que não tem uma adesão muito boa! E, assim, fora isso tem a
questão do hiperdia que eles tem participado, fora isso a gente teve também, eh, o
grupo de homens, deixa eu ver mais que a gente tem que tem sempre participado o
homem... grupo de homens, o hiperdia, o dia do homem... o grupo de emagrecimento
eu não sei se tem muita adesão de homens não...
128
A partir deste recorte, uma primeira estratégia citada por esta profissional é o grupo
de homens. Este grupo é visto como um marco na história da unidade, tendo em conta as
potenciais mudanças provocadas por ele por meio de um maior contato com os homens na
comunidade. Para os homens/usuários que participam, o grupo é um lugar de encontro com
amigos, de conversar e de se informar. Para os trabalhadores de saúde é uma forma de
participação dos homens do cotidiano do serviço.
Trata-se de uma reunião semanal, organizada pelos trabalhadores da unidade, que em
geral é conduzida por dois agentes comunitários de saúde, um homem e uma mulher, sendo
estes dois reconhecidos como responsáveis pela fundação e manutenção do grupo. As
reuniões se organizam mediante temas previamente definidos em conjunto com os homens
que o frequentam. A cada encontro lança-se a temática escolhida e os integrantes começam a
falar sobre a mesma, numa espécie de roda de conversas. Algumas vezes, alguns
trabalhadores da unidade de saúde (nem todos) ou das equipes do NASF participam deste
grupo, discutindo assuntos que a princípio remetem à sua especialização.
Nesta lógica de funcionamento, o grupo acaba se aproximando da estratégia de
educação em saúde, amplamente divulgada e valorizada como forma de trabalho condizente
aos princípios orientadores do SUS e da organização da atenção básica à saúde. É importante
destacar que o modo como expomos, trata-se de uma descrição ideal de como o grupo
funciona, existem, inevitavelmente, tensionamentos nesta atividade, alguns dos quais já
destacamos anteriormente nesta dissertação, quando consideramos as produções discursivas
de homens/usuários e trabalhadores sobre o mesmo.
Outra forma de trabalhar com os homens, mencionada largamente pelos nossos
interlocutores é o Dia do Homem. Um evento realizado pelos trabalhadores da unidade que
compreendeu uma série de ações em saúde voltadas exclusivamente para a população
masculina. Pelas descrições que obtivemos deste dia (já que ocorreu em um momento anterior
à realização desta pesquisa), parece se assemelhar às tradicionais feiras de saúde, em que são
ofertadas diversas atividades focais a uma determinada população, no estilo mutirão. Assim,
foram oferecidas consultas médicas e odontológicas, exames e orientações em saúde para a
população masculina em um dia em que a unidade dedicou-se exclusivamente a atender ao
homem.
Um dos motivos que fez com que esta atividade fosse bem avaliada pelos
trabalhadores da unidade foi a grande presença dos homens neste momento. Tal avaliação se
amplia quando consideramos os argumentos utilizados para comparar a adesão dos homens à
129
das mulheres em evento semelhante a este, que também é realizado na unidade, em sua
dedicação.
Ramona (Dentista): Na medida que eles foram divulgando, a gente fez o dia do
homem aqui, deu mais homens do que no dia da mulher. Quando eles começaram a
divulgar que ia ter vários atendimentos pra eles, a gente via os comerciantes fechar o
bar, pra vim aqui. Ia ter a aferição de pressão, ia ter uma oficina... A gente vê o
pessoal falando sobre sexualidade... Então eles se interessaram. Na associação mesmo
teve um grande número de homens. Teve uma participação tão grande que eu acho
que até o pessoal do [menciona ONG que atuou como parceira da unidade] ficou impressionado. Tanto que a gente vai fazer agora a semana do homem e não vai mais
fazer a semana da mulher não, vai ser o dia da mulher. A gente tá tendo realmente
uma boa participação e nisso quando você trabalha promoção, aí começa ter um
aumento de exames, de PSA pra homens, eles tão começando a se cuidar, o aumento
de homens na consulta odontológica e médica, porque eles tão tendo a consciência que
eles tem que se cuidar também, não só vim quando tá com uma dor. (...)
Regina (Enfermeira): (...) Tanto que ano passado quando fizemos o dia do homem as
mulheres estranharam. Acharam esquisito, inclusive algumas que não sabiam que a
gente faz... Da mulher a gente faz, sempre faz. (...)
(...)
Túlio: E aí, como foi a adesão? (Sobre o Dia Do Homem)
Regina (Enfermeira): Foi enorme, foi mais que o dia da mulher, os homens
participaram. Foi uma surpresa da gente assim do Córrego dessa participação primeiro no grupo de homens porque normalmente não vê eles por aqui, então a gente achava
que o grupo de homens não ia rolar. A gente achava assim... como o da mulher, tá
dando um tempo pra conseguir mudar porque apesar delas estarem aqui, de grupo elas
não se interessam muito. Aí o grupo já tá há 2 anos, né, o grupo no dia do homem,
muitos homens apareceram. A gente tem o que a gente chama de chamariz pra
participar do evento, é a abelha no mel, mas foi grande a participação.
Lívia (ACS1): (...) Na verdade, o que o homem realmente gosta é do Dia Azul, que é
o dia do homem, que a gente fez ano passado e vai repetir esse ano. Aí você vê a fila
de aferição de pressão, fazer glicose, pegar exame de hemograma completo. Aí sim,
quando eles estão num grupo maior eles se sentem mais solidários um com o outro. Agora assim, sozinho é bem complicado.
Nestes relatos vemos como estas trabalhadoras acabam destacando o sucesso desta
estratégia em conseguir trazer os homens à unidade, e reconhecemos a importância desta
iniciativa da equipe no estabelecimento de outras relações. No entanto, podemos pensar que
talvez a maior adesão dos homens neste dia em específico deve-se, em parte, à inexistência no
cotidiano do serviço de horários ou programas voltados para eles, o que faz com que não
percebam a unidade como um espaço também para o seu cuidado. Tal reflexão também é
possibilitada pela fala da ACS Lívia, a qual afirma que “em grupo eles se sentem mais
solidários um com o outro”, a qual justifica isto como sendo algo culturalmente construído:
Lívia (ACS1): É, mas tem alguma coisa da cultura passada mesmo de só fazerem as
coisas quando estão juntos, né? A mulher não! A mulher é mais individual, ela mete a
cara e faz, mas homem não, quando ele tá sozinho não é tão forte não...
130
Neste caso, sendo a unidade um espaço mais frequentado por mulheres, a ausência de
outros homens também seria um impeditivo para a sua aproximação, uma vez que o homem
“ir sozinho é complicado”, além de que ele “só faz as coisas junto”. Assim, ao reconhecerem
o dia do homem, como um dia que se dedica a eles, e que possibilita identificar os seus pares
na unidade, os homens passam a frequentá-lo.
Outra explicação, também relacionada a isso, poderia ser a idéia de que, não havendo
ofertas de serviços cotidianamente para o homem, como há para as mulheres, não há porque o
homem ir à unidade, já que não há nada ali voltado para ele. Por fim, uma explicação para a
pouca adesão das mulheres ao “seu Dia”, pode ser decorrente também dessa lógica de
funcionamento, afinal, se todos os dias tem atendimentos voltados à mulher, em que este Dia
especial se diferenciaria dos demais?
Outra atividade vista como favorável à aproximação dos homens à comunidade é o
grupo hiperdia. O hiperdia é uma atividade recorrente nas unidades básicas de saúde, que tem
por objetivo o atendimento de promoção e prevenção com pacientes hipertensos e diabéticos.
As ações que compõem o hiperdia compreendem informações sobre cuidados com a
alimentação, manutenção da saúde física e mental, além da realização de procedimentos
avaliativos, tais como aferição de pressão, verificação da taxa de glicose, medição de peso e
dimensões corporais.
Na unidade de saúde em que fizemos a pesquisa, o hiperdia se realizava semanalmente
segundo um calendário definido pela equipe. Como dissemos no Capítulo III, a unidade
possuía duas equipes de saúde, as quais se subdividiam como responsáveis ao atendimento da
comunidade, assim, cada equipe possuía um calendário particular de atividades, embora tais
atividades fossem as mesmas para cada equipe. Logo, semanalmente ocorriam dois grupos
hiperdia, um por equipe.
Ao mesmo tempo, cada equipe organizava os grupos hiperdia por micro-áreas, as
quais tinham acompanhamento pelos ACS. A cada semana um ACS era responsável por
comunicar aos seus comunitários sobre a ocorrência do grupo para que os mesmos
participassem desse momento. Particularmente em uma das equipes, os grupos realizavam-se
em espaços próximos às micro-áreas, na casa de algum morador, por exemplo, o que acabava
facilitando a ida das pessoas ao grupo, incluindo os homens.
Embora não tenha sido citado inicialmente pela técnica de enfermagem, alguns
trabalhadores também reconhecem o acolhimento, atividade de recepção e organização das
ações no serviço, como algo que favorece a aproximação do homem, tendo em vista que
facilita o atendimento. O acolhimento é visto como uma estratégia efetiva de atenção à saúde
131
da população adstrita, a partir do oferecimento de breves atendimentos clínicos orientados
para a resolução das demandas apresentadas, via relato verbal, pelos usuários potenciais.
Trata-se de um importante dispositivo dentro da unidade de saúde que organiza o fluxo da
assistência, direciona o atendimento em vias das demandas singulares e otimiza, em certa
medida, o espaço-tempo disponível pelas equipes para o seu trabalho cotidiano.
É importante destacar que a atividade desenvolvida nesta unidade não deve ser
confundida com a diretriz do “acolhimento”, dispositivo tecnológico bastante difundido pelas
ações de humanização em saúde, que, segundo cartilha específica do Ministério da Saúde,
É uma ação tecno-assistencial que pressupõe a mudança da relação
profissional/usuário e sua rede social através de parâmetros técnicos, éticos,
humanitários e de solidariedade, reconhecendo o usuário como sujeito e participante
ativo no processo de produção da saúde. O acolhimento é um modo de operar os
processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços
de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher,
escutar e pactuar respostas mais adequadas aos usuários. Implica prestar um
atendimento com resolutividade e responsabilização, orientando, quando for o caso, o
paciente e a família em relação a outros serviços de saúde para a continuidade da assistência e estabelecendo articulações com esses serviços para garantir a eficácia
desses encaminhamentos (BRASIL, 2004, p. 5).
Operacionalmente, a atividade nomeada como acolhimento nesta unidade de saúde
ocorre da forma como descreveremos a seguir. Nos três primeiros dias úteis de cada semana
(segundas, terças e quartas-feiras) um/a trabalhador/a de saúde da equipe (no caso desta
unidade, um/a enfermeiro/a ou dentista) torna-se responsável por realizar a atividade. Este/a
permanece em uma sala/consultório realizando os atendimentos com os usuários que chegam,
os quais vão entrando um a um. Um primeiro aspecto merece ser destacado aqui: de certo
modo, quase todos os usuários atendidos na unidade acabam passando por este momento.
A entrada dos usuários é organizada mediante uma lista preparada de acordo com a
ordem de chegada dos mesmos na unidade de saúde. Do lado de fora do consultório, no
corredor/recepção, uma ACS (na função de auxiliar administrativa) vai anotando os nomes
dos usuários, acompanhado do número do prontuário da família a que este usuário pertence.
Este número corresponde a uma codificação que abrange: a) a equipe de saúde responsável
pela área; b) a micro-área de cobertura, sobre a qual há um ACS responsável, e; c) o número
da família, definido de acordo com a organização da própria comunidade (em ruas, travessas,
becos etc.). Esta codificação facilita bastante o trabalho dentro do consultório, uma vez que se
faz necessária a identificação dos prontuários para os encaminhamentos posteriores.
A lista previamente organizada é entregue ao trabalhador responsável (dentro do
consultório), que vai chamando os usuários segundo a ordem ali estabelecida. Cabe destacar
132
que estes trabalhadores, mediante um acordo já existente na unidade, inclusive com os
próprios usuários, estabelecem uma “lista paralela”, priorizando alguns atendimentos (os
quais já estão sinalizados na lista), para idosos, mulheres com crianças de colo, deficientes
físicos, e casos urgentes (intercorrências).
Quando o usuário entra no consultório, o trabalhador de saúde pergunta-lhe seu nome
completo, sua idade e data de nascimento, anota as informações referentes ao seu prontuário
(código da família) e em seguida pergunta qual o motivo o levou a buscar a unidade de saúde
naquele dia. A partir do relato do usuário, o trabalhador vai conversando e, não sem variações,
realizando algumas orientações. Por fim, faz o encaminhamento necessário – qual seja, a
marcação de um atendimento médico, atendimento com algum profissional especialista de
referência, encaminhamento para consulta odontológica, e/ou direcionamento para um grupo,
dentre outras possibilidades –, o que também é anotado numa espécie de livro-ata em que
todos os atendimentos são registrados. Um atendimento como estes dura, em média, 10
minutos, podendo estender-se um pouco ou, pelo contrário, ser mais rápido, a depender da
questão apresentada.
Nas palavras dos trabalhadores de saúde, o acolhimento proporciona uma maior
aproximação dos homens à unidade por dois motivos. Primeiramente pela facilidade na
marcação das consultas ou dos encaminhamentos demandados pelos homens, já que todos os
usuários acabam sendo atendidos, desde que cheguem no período estabelecido. Assim, não é
necessário que cheguem muito cedo e esperem em longas filas para atendimento e com
resultado incerto. Em segundo, pela possibilidade de que outras pessoas possam fazer a
marcação do atendimento solicitado por eles, o que faz com que alguém, na maioria das vezes
uma mulher (esposa, irmã, mãe etc.), possa representá-lo e fazer a marcação. Desse modo, ele
só precisará ir à unidade no dia e horário marcados.
É importante destacar, no entanto, que não se trata de uma facilidade específica para
os homens. O acolhimento se realiza de modo a otimizar o atendimento a toda a comunidade,
logo, tanto homens, quanto mulheres, independente de faixa etária podem ser atendidos neste
serviço e nas mesmas condições.
O acolhimento nos permite pensar em várias coisas, principalmente se tomamos por
base as reflexões de Alves (1993) e Helman (2003), que se localizam em conhecimentos da
Antropologia da Saúde. O primeiro aspecto que podemos destacar diz respeito ao que
poderíamos nomear como o “compartilhamento da experiência da doença e da enfermidade”,
uma vez que, na maioria das vezes, no caso dos homens, a sua presença no acolhimento
baseia-se em uma demanda de atendimento clínico, motivado por sintomas de adoecimento.
133
Estamos nos referindo, neste caso, à queixa trazida pelo usuário em seu relato, seguida
da interpretação do trabalhador de saúde, e consequente ao direcionamento que este procederá
como possível resposta à questão. Aqui está em jogo não apenas a enfermidade ou, mais
especificamente, à manifestação fisiológica subjacente à busca pelo cuidado, mas também aos
modos como esta enfermidade é compreendida pelo usuário. Aliás, a própria busca pelo
atendimento na unidade de saúde já diz muito desta compreensão da doença pelo usuário, o
qual poderia buscar outras maneiras de cuidar de sua saúde.
Como afirma Alves (1993, p. 267) “a interpretação que as pessoas elaboram para uma
dada experiência de enfermidade é o resultado dos diferentes meios pelos quais elas adquirem
seus conhecimentos médicos”. Deste modo, muitas vezes o paciente já vem com um pedido
pronto para o acolhimento: “Quero um encaminhamento!”. O profissional, do seu lado, pode
questionar: “Por quê?”. Ao que o usuário, apoderado de uma série de argumentos fisiológicos
(e também sócio-culturalmente construídos em suas tramas familiares, comunitárias,
cotidianas...) justificará seu pedido a partir de sinais expressos no corpo sob a forma de
sintomas bem delineados (“Oftalmologista! Porque estou com dificuldades para ver. E por
isso não consigo ler nada!”; “Ortopedista! Porque estou com dores na coluna. E por isso não
consigo andar direito!”).
Outro aspecto que gostaríamos de destacar, no tocante ao acolhimento, diz respeito à
“diversidade de compreensões do cuidado à saúde e racionalidades médicas”, se assim
podemos chamar, entre usuários e trabalhadores. Neste particular, estamos nos referindo às
questões culturais que se presentificam nas consultas, mescladas aos saberes populares e
práticas alternativas de cuidado que já foram acionadas mediantes itinerários terapêuticos
previamente construídos e que, em alguns casos, confrontam com o saber biomédico que
orienta a prática do trabalhador de saúde, uma vez que ele “ frente aos sintomas de um
paciente, tenta, em primeiro lugar, relacioná-los a algum processo físico subjacente”
(HELMAN, 2003, p. 101).
É importante, neste caso, observar de que modo acontece a comunicação no encontro
clínico, pressuposto no acolhimento, e quais os encaminhamentos tomados. Até mesmo
porque, como afirma Alves (1993, p. 267), “o conhecimento médico de um indivíduo tem
sempre uma história particular, pois é constituído de e por experiências diversas”, além disso,
este conhecimento está “continuamente sendo reformulado e reestruturado em decorrência de
processos interativos específicos”. Ao mesmo tempo, é importante considerar que, muitas
vezes, o usuário já vem de outros atendimentos anteriores, o que faz com que a sua queixa já
venha, de certo modo, orientada.
134
Por fim, como terceiro aspecto, gostaríamos de abordar a questão dos “valores
culturais e da compreensão singular do adoecimento”, que diz respeito às variações nos
modos como cada pessoa compreende e lida com a própria experiência de adoecimento. No
caso da experiência do acolhimento, destacamos o atendimento à população masculina, que
segundo os trabalhadores entrevistados: os homens buscam pouco este serviço, e quando vêm,
trazem um discurso carregado por valores machistas de força, resistência, de não
adoecimento. Ao mesmo tempo, muitas vezes são as mulheres que vêm buscar este
atendimento para os homens, os quais não “acham que estão doentes”, ou por mais que sintam
sinais ou sintomas indicativos, a idéia de mal-estar, ou de adoecimento só vem ocorrer algum
tempo depois, quando tais sintomas se agravam. Assim, como vimos, nas palavras dos
trabalhadores: “Os homens só vêm quando estão morrendo!”.
É importante considerar que como argumenta Helman (2003) “o fato de um indivíduo
apresentar um ou mais sintomas anormais pode, não ser suficiente para que ele seja
considerado doente” (p. 106), isto porque o processo de autoreconhecimento como doente é
variável e bastante singular, baseado nas compreensões de cada um sobre si mesmo, nas
compreensões dos outros e/ou nas duas. Adoecer, assim, pode ser visto também como um
“processo social que envolve outras pessoas além do paciente”. Neste caso, “a cooperação dos
outros é necessária para que a pessoa adote os direitos e os benefícios do papel de doente – ou
seja, do papel socialmente aceito de ‘pessoa doente’.” (p. 107). Entre os homens, por
exemplo, a doença aparece bastante relacionada à perda da força para o trabalho ou à
impossibilidade de desenvolver suas atividades cotidianas. Logo, a presença de um sintoma
fisiológico, para o homem, pode não lhe caracterizar como doente, mas os efeitos que este
sintoma produz nos seus processos de socialização podem ser decisivos para isto.
Outro evento importante, também mencionado pelos trabalhadores, que favoreceu a
aproximação dos homens foi a mudança na lógica de funcionamento do serviço. A adesão à
Estratégia Saúde da Família (antes, o serviço funcionava como unidade tradicional de saúde)
também é vista como um diferencial. Nisto, uma série de ações anteriormente não
desenvolvidas pelo serviço começaram um movimento de aproximação maior dos
trabalhadores da unidade com a comunidade, fazendo com que estes desenvolvessem um
maior reconhecimento dos potenciais usuários do serviço, entre eles, os homens.
Como apresentamos no primeiro capítulo desta dissertação, a Atenção Básica à Saúde
se define em termos de ações voltadas ao território, não devendo a atuação das equipes
esgotar-se no interior dos serviços de saúde. Com isto, a realização de visitas domiciliares e o
135
desenvolvimento de articulações na comunidade, por exemplo, são maneiras de
operacionalizar o cuidado a partir de uma perspectiva clínica que se diz ampliada.
Considerando isto, enquanto estava na unidade de saúde, tive a oportunidade de
acompanhar algumas visitas às casas dos moradores, realizadas pelos trabalhadores da
unidade. As visitas ocorrem mediante interlocução dos agentes comunitários de saúde, que
identificam nas suas áreas de atuação, alguns casos que demandam atenção mais específica, e
que ao mesmo tempo são impossibilitados de chegar à unidade de saúde.
Além destas atividades também é importante considerar os habituais atendimentos
realizados nas unidades de saúde, que também contemplam a população masculina, de modo
geral, tais como: atendimentos e consultas médicas e odontológicas, procedimentos de
enfermagem e vacinação, fornecimento de medicamentos e preservativos, por exemplo.
Acima destacamos apenas as atividades que se dizem favorecedoras da presença dos homens,
o que não significa que o uso que eles fazem da unidade se restrinja à sua participação nas
atividades citadas. Logo, é importante considerar também os modos como cada trabalhador
compreende seu fazer no cotidiano de trabalho a partir da presença dos homens, que
corresponde em parte à maneira particular como operam o cuidado à saúde dos homens na
unidade de saúde.
Sobre as suas funções particulares na unidade, vemos compreensões diferentes dos
modos como estes trabalhadores lidam com o homem cotidianamente. A dentista Ramona,
por exemplo, relata as experiências exitosas das práticas desenvolvidas coletivamente pelos
trabalhadores, tais como o dia do homem e o grupo de homens, uma vez que ela costuma
participar das mesmas.
Esta trabalhadora menciona também o estímulo à participação dos homens na
Conferência Municipal de Saúde, que segundo ela, trata-se de um importante dispositivo
sócio-político para a garantia dos direitos dos usuários do sistema de saúde, tendo referido que
a partir de discussões com os homens/usuários do grupo de homens conseguiu fazer com que
alguns deles fossem ao referido evento. Além disto, salienta a importância do trabalho que
desenvolve com foco na “promoção à saúde”, levando informação aos homens sobre cuidados
à saúde bucal, sobre o exame do PSA, entre outras.
A enfermeira Regina, por sua vez, refere a ausência de homens nos atendimentos que
realiza sobre planejamento familiar e saúde reprodutiva. Segundo ela, é raro ver homens em
pré-natal, puericultura e em grupo de gestantes, por exemplo. Ao mesmo tempo ela justifica
que não costuma lidar com homens na unidade, tendo em vista que, por se tratar “de saúde do
adulto, quem pega mais esses homens são os médicos”. Nos questionamos o porque de a
136
enfermeira, dentre suas atribuições na unidade, não costumar realizar atendimento a homens.
Podemos considerar que uma resposta para isto se localize no foco dado pelos serviços da
atenção básica a determinados programas de saúde, bem como a grupos prioritários para o
atendimento cotidiano, como é o caso de mulheres e crianças, o que acaba fazendo com o que
os trabalhos voltados para o homem sejam deixados em segundo plano.
Tal argumento também se faz presente nos relatos dos/as ACS, ao afirmarem que
definem prioridades para o seu trabalho no dia-a-dia da comunidade, nas quais os homens não
estão incluídos:
Lívia (ACS1): (...) Na verdade, a gente nem se organiza aqui, né? Quando a gente sai de casa, a gente tem um cronograma a seguir. A gente tem as ruas que a gente vai
visitar, mas também, quando a gente vai pra campo, a gente vai vendo as
necessidades, aí então a gente vai dando prioridade a quem foi internado, a quem tá
com a (?). Aí a gente vai dando prioridade a esses. Às crianças que nasceram, as que
crianças que tão com infecção respiratório. Aí a gente vai dando prioridade a essas
pessoas desse modo.
Túlio: Eu queria que tu me falasse um pouco do teu cotidiano de trabalho na unidade
de saúde... O que é que tu faz? Como é que tu organiza tua semana?
Cilene (ACS4): (...) a minha rotina de serviço, eu faço... eu me programo por ruas,
então cada semana eu escolho uma rua pra trabalhar nela, então, uma prioridade do
trabalho, do meu trabalho é gestantes, crianças menores de dois anos, hipertensos e
diabéticos, né, e um cuidado bem especial com os domiciliados e acamados...
Nesta mesma linha, o médico Mateus também reconhece que provavelmente os
agentes comunitários não estão atentos às questões de saúde do homem na comunidade, sendo
uma das explicações o direcionamento de seu trabalho para outros programas e questões de
saúde prioritárias para a atenção básica:
Túlio: Tu acha que essa busca é realizada no dia-a-dia pelos ACS que tão mais
presentes na comunidade?
Mateus (Médico): Olhe, eu não sei... Eu acho que pode ter um ou outro que faça, mas
eu acho que não. Eu acho que pelos programas, programas de algumas doenças, outras
ficam à parte, que só tomam conta as pessoas que ficam na unidade mesmo... pessoal
que sempre tá na área, tá mais prestando atenção a hipertensos, diabéticos, hanseníase
e, às vezes, nem isso...
Desta forma, como dissemos anteriormente, as prioridades definidas pelos
profissionais da ABS, de acordo com a própria organização do sistema de saúde, também
constituem um dos fatores que acabam fazendo com que o homem seja invisibilizado no
cotidiano dos serviços de atenção. De fato, a ênfase nos cuidados à saúde da criança e da
mulher, além da atenção a acamados, hipertensos e diabéticos, de acordo com os protocolos e
diretrizes de ação da ABS, faz com que trabalhadores não demonstrem tanta preocupação com
137
outras demandas apresentadas pela comunidade, o que constitui mais uma dificuldade a que
estes trabalhadores incorporem ações direcionadas à saúde do homem.
Outro ponto de argumentação é levantado pela médica Priscila, que entende, pelos
atendimentos clínicos que realiza, haver uma dificuldade dos homens em lhe comunicar suas
queixas, principalmente com relação à disfunção sexual. Relaciona o fato de ser mulher e
jovem como um dos motivos que levariam a uma suposta resistência entre os homens, embora
não considere que isto seja impeditivo ao desenvolvimento do seu trabalho com a população
masculina.
Priscila (Médica): (...) E esse homem vem também com muitas queixas de... de disfunção sexual, que geralmente vem no segundo momento, que eles tem essa
dificuldade, e eu entendo que essa dificuldade tem a ver sobretudo com minha pessoa,
com o fato de eu ser mulher, o fato de eu ser mais jovem, isso tem uma dificuldade
inicial, então a gente precisa fazer um trabalho de construção de vínculo, um trabalho
de discussão sincera sobre esses problemas, para que ele possa se sentir aos poucos
com tranquilidade pra apresentar algumas outras queixas, porque às vezes, são as
queixas principais!
Túlio: E... uma das maiores questões que a gente identifica, em estudos sobre homens
nos serviços de saúde, é essa questão de... talvez seja necessário homens para atender
homens, então, meio que essa tua fala, é um exemplo disso? Tu acha que, por
exemplo, se fosse um homem, eles se sentiriam mais à vontade...?
Priscila (Médica): Eu acho, que em algumas poucas situações sim, mas eu acho que a gente precisa de preparo, eu acho isso, porque se não a gente vai estar trabalhando
numa especialização de gênero para a saúde, então, mulheres vão atender mulheres e
homens vão atender homens, e não funciona assim... Eu conheço vários profissionais
mulheres, que tem um alcance muito melhor de homens do que alguns homens! Eu
acho que não é prioritariamente a questão do gênero que vai determinar se você vai ou
não vincular com essa... com esse usuário, se você vai ou não deixá-lo à vontade, em
relação à questão das queixas! Eu acho que tem muito a ver mais com... com a
execução de uma clínica ampliada, de vínculo, de responsabilização, de você deixar
essa pessoa à vontade pra que ela se coloque, pra que ela esteja tranquila, e pra que ela
esteja segura de que aquilo ali não vai ser reproduzido para outra pessoa, que é uma
relação de confiabilidade, né, que é uma relação de trabalho, de... uma boa relação profissional, uma boa relação médico-paciente, eu acho que isso, mais... é mais eh...
eh, dispara muito mais ações positivas em saúde do que propriamente o gênero em si.
É claro que numa primeira situação, isso vai contar, mas eu acredito que a partir da
formação do vínculo e de uma outra situação, isso não vai passar a contar tão
fortemente
Uma questão importante trazida por esta médica situa-se no (des)preparo dos
profissionais de saúde da atenção básica para lidar com as questões de saúde do homem, o que
também acaba sendo referido por outros trabalhadores. Uma das explicações para isto se situa
no argumento que já apresentamos acima sobre a ênfase que é dada a grupos prioritários na
própria lógica de funcionamento dos serviços de saúde da atenção básica, o que faz com que
os trabalhadores acabem justificando seu suposto despreparo para atender os homens por
estarem mais acostumados a lidar com a mulher.
138
Regina (Enfermeira): Eu acho que é menos (T.I) sabe, lidar com a mulher, mas eu
acho que com a chegada desse grupo de homens, faz a gente pensar, torna aquilo mais
fácil, mais natural você ter o homem... Eu, enfermeira, trabalhei mais tempo com as
mulheres. Hoje eu sinto que eu tenho mais facilidade, eu acho que a equipe como um
todo a gente sabe lidar mais com a mulher. Quando a gente bate na porta é a mulher
que vem e responde as coisas, raramente é o homem que vem e responde. Eu vejo que
teve uma melhoria, mas ainda tá muito longe. A gente enquanto profissional tá mais
acostumado com a mulher mesmo...
Além do costume em lidar com as mulheres, o médico apresenta outros argumentos
para justificar este despreparo, tais como a existência de preconceito tanto entre os
trabalhadores quanto entre as pessoas que acessam a unidade e algumas questões culturais.
Túlio: Tu acha que os profissionais dessa unidade estão preparados para lidar com os problemas do homem, com o homem, com a saúde do homem?
Mateus (Médico): Todos não. Não porque ainda... assim... às vezes, ainda rola um
pouco de preconceito tanto pelos profissionais quanto pra quem vem na unidade. A
queixa quando o homem vem a... queixa é particular desses, a maioria das (T.I) são
coisas particulares do sexo masculino e acho que pelo costume, pela cultura das
pessoas da unidade, eu acho que algumas pessoas ainda não estão preparadas por
conta disso...
Retomando a fala de Priscila (a médica), destacamos o argumento utilizado para
justificar a necessidade de preparo dos trabalhadores, uma vez que esta se posiciona de
maneira crítica quanto à idéia de uma possível especialização de gênero na saúde: seria
necessário homens para atender homens e mulheres para atender mulheres? Segundo o que
ela nos coloca, não é necessariamente o fato de ser um homem ou uma mulher que vai fazer
com que um atendimento seja realizado de maneira satisfatória, visto que é o vínculo
desenvolvido entre trabalhador e usuário o que permitirá que a relação de cuidado se
estabeleça.
Podemos considerar então que este argumento dado pela referida trabalhadora diz de
um movimento que se aproxima dos princípios orientadores do próprio Sistema Único de
Saúde, tais como a Integralidade e a Universalização das práticas de saúde. Ao mesmo tempo,
podemos supor a problematização de certa cultura machista ainda presente no interior dos
serviços de atenção, como situado acima pelo médico, ao afirmar que alguns trabalhadores
ainda se mantém resistentes e com preconceito, muitas vezes, em não saberem lidar com os
homens, pelo simples fato de serem homens.
Na tentativa de finalizar este tópico, gostaríamos de fazer algumas breves
considerações, a partir dos relatos trazidos acima pelos nossos interlocutores, tendo por base
as reflexões sobre o cuidado em saúde realizadas por Ricardo Ayres (2004). Para este autor o
cuidado compreende “a designação de uma atenção à saúde imediatamente interessada no
139
sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte,
também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde” (p. 22). Para ele:
Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para
cuidar há que se considerar e construir projetos; há que se sustentar, ao longo do
tempo, uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, moldados a
partir de uma forma que o sujeito quer opor à dissolução, inerte e amorfa, de sua
presença no mundo. Então é forçoso saber qual é o projeto de felicidade que está ali
em questão, no ato assistencial, mediato ou imediato (Ayres, 2001, p. 71).
Trazemos as reflexões deste autor para discutir o cuidado à saúde do modo como o
entendemos, uma vez que, muitas vezes a expressão “cuidar da saúde” se refere em modo
estrito à disponibilização ou adoção de determinadas práticas ou procedimentos técnicos
normatizados direcionados a resolver questões específicas de saúde. Como vimos entre nossos
interlocutores, a produção de práticas em saúde que cuidam, ou dizem cuidar, em grande
medida está voltada para a resolução das demandas apresentadas por usuários em suas
questões específicas trazidas para os serviços. No caso dos homens, tendo em vista a sua
busca amplamente relacionada à condição de adoecimento, cuidar passa a ser sinônimo de
curar, tratar, controlar, combater.
Assim, recorremos a Ayres para trazer outra forma de se compreender o cuidado na
saúde, tomando-o a partir de uma perspectiva relacional, implicada com o outro e destacando
sua função potencializadora de outros modos de ser e existir, que o situa, além do fazer
técnico biomedicamente orientado, em condição de inventividade. É nesta condição de
inventividade que situamos a produção de cuidados do modo como acreditamos que deve ser
construído numa relação entre trabalhador de saúde e usuário, a partir de uma dimensão
relacional, que implica em tentar compreender, numa consulta clínica, por exemplo, o
significado da presença de um diante do outro.
Ayres (2004) destaca a importância da reconstrução da relação terapêutica, não a partir
de uma técnica ou de um conceito, mas a partir de um saber prático. Entre a técnica e a prática
existe um distanciamento que é necessário ser considerado. A prática não necessariamente
pressupõe a existência de uma técnica, mas a técnica necessita de uma prática que a produza.
Se tomamos, por exemplo, a produção do cuidado a partir das intervenções médicas em vias
de prescrições formais vemos uma prática submissa a uma normatização técnica, uma forma
de produzir o cuidado a partir de certos métodos pré-definidos que condicionam os sujeitos
em determinados modos de viver. Deste modo, a submissão dos usuários ao atendimento nada
140
mais é que uma disposição a um movimento de disciplinarização do cuidado de si, mediante
um saber poder mais amplo que se reitera nas ações que prescreve e inscreve.
De acordo com Ayres (2004) “no plano operativo das práticas de saúde é possível
designar por Cuidado uma atitude terapêutica que busque ativamente seu sentido existencial”
(p. 22). Podemos pensar então que, para Ayres (2004), a produção do cuidado situa-se mais
próximo daquilo que ele chama de sucesso prático. Ou seja, em detrimento do êxito técnico,
ou do saber executar com efetividade processos tecnológicos previamente formatados, a
produção de cuidados se relacionaria muito mais à capacidade dos trabalhadores de saúde em
se responsabilizar pelos projetos de vida do outro, não a partir de uma perspectiva tutelada,
mas potencializando modos de ser e viver e cuidando de si e dos outros. Envolveria, portanto,
um componente ético.
Responsabilidade é aqui uma noção importante, uma vez que é necessário que os
trabalhadores de saúde estejam eticamente preocupados não apenas com as queixas objetivas
trazidas pelos usuários, mas que considerem seus projetos de felicidade, como diz Ayres
(2004). Assim, entre os nossos interlocutores, vemos muitas vezes que relatam uma
preocupação, expressa nas suas compreensões sobre saúde e cuidado, com as condições de
vida e oportunidades, questões familiares e de lazer dos usuários que assistem, mas que
operacionalmente em seu cotidiano, na maioria das vezes, é a centralidade sobre as suas
condições de adoecimento que direcionam os atos terapêuticos.
Por fim, não se pode deixar de considerar as condições de produção em que as práticas
de saúde, que cuidam ou dizem cuidar, acontecem. De fato sua construção e efeitos dependem
de determinantes sócio-culturais mais amplos que dialogam não apenas com a provisão de
recursos e tecnologias assistenciais, mas também com os valores culturais e processos de
compreensão da vida das pessoas às quais elas se destinam. Assim, compreendemos que a
produção de práticas de cuidado à saúde, tanto por parte dos trabalhadores quanto dos
usuários dos serviços, deve considerar seus modos particulares de conduzir suas vidas.
É importante dedicar-se a compreender as práticas sociais relacionadas à produção de
sentidos sobre as questões de saúde apresentadas por cada um, tendo em vista a articulação
das possibilidades práticas de resposta disponíveis nos serviços. Enfim, trata-se de ter em
vista as necessidades e demandas apresentadas pelos usuários aos trabalhadores dos serviços,
e as condições apresentadas por estes em mobilizar ações que possam, ao menos, acolhê-las.
Já isto talvez, por si, seria cuidar.
141
Outras Questões Relacionadas às Práticas de Cuidado
Nas conversas/entrevistas que realizamos com os trabalhadores de saúde observamos
emergirem alguns temas, provocados ou não por nós, que se relacionam à produção do
cuidado à saúde do homem, e que acabam, a nosso ver, qualificando e/ou justificando a
presença/ausência de práticas de saúde voltadas à população masculina, os quais, acreditamos,
precisam ser visibilizados.
Um primeiro aspecto que gostaríamos de destacar, diz respeito às relações de poder
presentes no desenvolvimento das práticas de saúde no cotidiano da unidade básica. Para
tentar estruturar melhor nossos questionamentos, recorremos a Foucault (2009), em suas
discussões sobre o poder. Situando as questões que lançamos nesta pesquisa a partir das
palavras de Foucault, cremos que é importante considerar os jogos discursivos e materiais
(jogos de verdade e, portanto, jogos de poder) utilizados pelos trabalhadores de saúde no
cotidiano dos serviços, que orientam e inscrevem as práticas de cuidado, práticas estas que
engendram modos de fazer e de viver e que se materializam nos jogos de verdade e de poder
que permeiam o agir em saúde.
Quando se põe em discussão a produção de cuidados, parecem-nos bastante claras as
tensões que povoam este campo, o qual é marcado por certa assimetria conceitual. Como
vimos, para além das prescrições burocráticas, o cuidado em saúde é operacionalizado no dia-
a-dia, e é fundador e fundado por práticas cotidianas que perpassam por relações de poder.
Como salienta Foucault “onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu
titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e
outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”
(FOUCAULT, 2009, p. 75). Dito de outro modo, o poder circula no cotidiano, e se exerce de
alguma maneira, sempre orientado de um lugar para outro, mesmo não sabendo “nas mãos de
quem está”.
Transpondo isto para os serviços de saúde, este poder se presentifica, por exemplo, nas
relações estabelecidas entre os próprios trabalhadores de saúde, quando estes tem
questionados seus lugares de saber-poder diante daquilo que compreendem ser o melhor para
a população que atendem; entre trabalhadores e usuários, quando estes primeiros orientam
estes últimos sobre que práticas de saúde devem desenvolver para ser ou continuar saudáveis;
nas prescrições burocráticas sobre os funcionamentos dos programas de saúde, quando estas
orientam as práticas dos trabalhadores a partir de princípios bem delimitados e mecanismos de
142
ação que tem por foco populações específicas; nas disposições políticas gerenciais que
incidem sobre a organização dos sistemas locais de saúde etc.
Desse modo, os serviços assistenciais dispõem/são dispostos por estratégias que visam
controlar, organizar e instrumentalizar a produção da saúde (o que remete ao conceito de
Governamentalidade foucaultiano). E ao mesmo tempo, em se tratando de pessoas e das
tecnologias de controle da vida, estamos nos referindo a práticas de Biopoder. Assim, não se
pode ignorar que tais relações perpassam estes serviços, e na atenção básica isto se
presentifica cotidianamente. Podemos destacar isto na fala da dentista, a seguir:
Ramona (Dentista): (...) Aí é uma maneira da gente realmente trabalhar isso porque
quando o ACS fala às vezes não consegue sensibilizar. Muitas conseguem, mas outras
não. E aí quando ela vê a dentista justamente falar sobre aquilo... eu acho que muita
gente ainda tá atrelado a aquela coisa que o doutor é que sabe, a gente tenta
desconstruir isso, mas é difícil... então, quando a ACS fala a mesma coisa que eu falo
e às vezes não consegue convencer... E aí quando eu falo com as meninas, elas falam
“ó, Ramona, eu falei a mesma coisa, mas ela não acreditou em mim. Quando você
falou, ela acreditou e veio pra consulta”...
Assim, percebemos que há aí uma assimetria nas relações (de poder) que se
estabelecem no cotidiano desta unidade, que se relacionam aos lugares ocupados pelos
trabalhadores de acordo com os saberes que se supõem ter, os quais são legitimados ou não
pela população a que assistem – como é o caso da ACS que tem questionado o seu saber pela
usuária, em detrimento do suposto maior saber da dentista, e ao mesmo tempo da dentista em
exercer seu saber-poder para convencer a usuária do que ela precisa fazer para se cuidar. Tal
exemplo nos aparece de maneira determinante para subverter a idéia de como as práticas
parecem ser definidas mediante um saber prévio, quando na verdade é, talvez, no campo das
práticas que se fundam (ou se materializam) e se legitimam os saberes, entendendo, deste
modo, também a produção deste saber como uma prática, como bem o argumenta Foucault
(2009).
Outro destaque que fazemos neste tópico refere-se à Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde do Homem. Os trabalhadores de nível técnico e superior, de modo geral,
afirmaram ter conhecimento da publicação da PNAISH, exceto uma das técnicas de
enfermagem.
Túlio: Tu já teve contato com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do
Homem, publicada recentemente?
Priscila (Médica): Tive contato, pouco, mas tive contato... passei o... passei o olho,
fiz uma leitura, discuti com algumas pessoas...
Túlio: Qual o teu olhar dela?
Priscila (Médica): Não eu acho que ela é uma vitória...! É o que eu coloquei
anteriormente, eu acho que a gente precisa dessas demandas que... oriundas dos
143
movimentos sociais organizados, a sociedade civil organizada de forma geral, para
que esses elementos e essas especificidades elas venham à tona e elas se transformem
em políticas! Então, eu acho que a política é um avanço, do jeito que... foi um avanço
histórico, o que se conquistou hoje em relação à saúde da mulher, né, com todos os
desafios que ainda nos restam, mas assim, acho que é uma coisa importante sim, mas
eu acho que é limitada ainda e eu acho que demanda mais discussão, demanda mais
amadurecimento, tanto por parte de quem propõe, de quem discute essa política, como
por parte de quem executa a política que somos nós da ponta, né...?!
Túlio: Você já teve algum contato com a política de saúde do homem?
Mateus (Médico): Eu tive contato com a política no ministério da (?), eu fui lá em alguns setores de departamento de atenção básica de saúde do homem. Aí ela entregou
alguns (?), alguns papéis, mas ela disse, teve uma coisa que foi bem importante, ela
disse que quem tá construindo a saúde do homem pras ruas é a gente que tá na
unidade de saúde e ela deu contato que é justamente pra isso, que é pra gente construir
essa política de saúde do homem. Mas às vezes fica complicado, não só (?), essa
questão mais política por conta da demanda que a gente tem. A gente tem essa...
assim... mas não é o que eu gostaria que... sabe... assim.... não é o máximo que eu tô
me dando pra isso por conta de questões do dia-a-dia mesmo. Mas o máximo que a
gente consegue fazer, a gente faz, eu acho que é o mínimo.
Túlio: Tem a política agora, né, que é recente. Tu conhece (sic) a política, tu já entrou em contato com ela?
Sabrina (Téc de Enfermagem 1): Não!
Isto aponta que, embora estes trabalhadores estejam de certa maneira informados sobre
a publicação deste importante documento e dispositivo político, ainda carecem de maiores
aprofundamentos sobre suas proposições, tendo em vista as dificuldades apresentadas para o
trabalho com os homens numa perspectiva integral. Entre os ACS, poucos afirmaram ter
conhecimento da referida Política.
Chama-nos a atenção o fato de apenas os dois ACS (um homem e uma mulher) que
são mais próximos do grupo de homens referirem conhecer e ter tido algum contato com este
documento, embora não refiram ter aprofundamento em suas proposições. Desse modo,
acreditamos que é necessário um maior trabalho com a PNAISH, de modo que esta seja mais
bem divulgada e discutida entre os trabalhadores da atenção básica, para que os mesmos
possam incorporar ou incrementar em seu cotidiano de trabalho iniciativas para incluir os
homens nas suas ações de saúde.
Outro aspecto que é bastante comentado por quase todos os trabalhadores de saúde diz
respeito à falta de incentivos da gestão local no estabelecimento de protocolos para ações
voltadas à saúde do homem. Acreditamos que este aspecto está bastante relacionado ao que
citamos anteriormente, visto que alguns dos nossos interlocutores, apesar de reconhecerem a
publicação da PNAISH, salientam que inexistem recomendações formais da administração
pública local (prefeitura, secretaria municipal de saúde) em definir atividades que possam
contemplar o cuidado à saúde dos homens na unidade básica de saúde.
144
Regina (Enfermeira): A gente eu acho que foi pioneira assim... Ela nunca foi tema
anteriormente da gestão. A gestão ainda não tem dentro do (?) a pessoa que
representa, pelo menos eu não conheço, pode ser que tenha uma pessoazinha que seja
responsável pela do homem. A da mulher tem, tem sempre uma pessoa que aparece.
Mas a do homem até agora... (...)
Túlio: Mas pelo menos hoje não existe um projeto da prefeitura que tenha chegado na
unidade formalmente?
Regina (Enfermeira): Não, não, não tem não. Pelo menos que eu saiba não tem não.
Túlio: Tu sabe se a prefeitura, se a Secretaria de Saúde tem alguma coisa, eh, alguma
ação, pra que as unidades de saúde possam aderir a essa política? Sérgio (ACS5): Eu acredito que não... mas seria muito bom se pudesse ter essa ação!
Ramona (Dentista): O que a gente tá percebendo é que o distrito ainda não definiu o
protocolo. (...) Aqui a gente não tem nada que venha da gestão. A gente sempre tem
trabalhos que cada comunidade faz por experiência que outros PSF traz pra Recife,
mas não tem uma política, um protocolo da gestão e eu acho que Recife tá muito
atrasada em algumas coisas em relação a outros municípios. (...) A gente não viu da
gestão a cobrança de um protocolo, porque quando tem o protocolo, aí que aqueles
profissionais que antes nem tinham se alertado a fazer nada, aí eles começam a fazer.
Diante destes fragmentos, vemos que os trabalhadores apontam a falta de um estímulo
da gestão à inclusão de ações específicas, e de diretrizes ou protocolos para o trabalho da
saúde do homem na atenção básica, o que para nós chama bastante a atenção, tendo em vista a
ênfase que a PNAISH concede à incorporação de ações destinadas à população masculina nos
serviços da rede básica, de modo a organizar o seu fluxo de acesso no SUS, bastante
concentrado nos serviços de média e alta complexidade (BRASIL, 2009a). Desta forma, as
ações desenvolvidas para os homens, na unidade, acabam sendo fruto de iniciativas
particulares das equipes.
Por outro lado, também nos cabe questionar até que ponto a ausência de uma
disposição formal (como um protocolo da gestão) é, por si só, impeditivo para o
desenvolvimento de ações com foco em determinado grupo populacional, uma vez que,
consideramos que as ações da atenção básica, a partir da ESF, têm como núcleo estruturante a
família, que numa concepção tradicional, envolve tanto homens, quanto mulheres, sejam
crianças, adolescentes, adultos ou idosos.
De qualquer modo, neste serviço, a falta de articulação da gestão quanto à temática da
saúde do homem faz/fez com que eles busquem/buscassem outros meios para contemplar a
população masculina em seu cotidiano, como a articulação com os movimentos sociais
(especificamente, uma ONG), como diz o médico
Túlio: Existe alguma coisa formalizada, sei lá, incentivo da prefeitura...? (?)
Mateus (Médico): (...) Pela prefeitura o maior incentivo é a saúde da criança e saúde
da mulher. Saúde do homem é pouco, embora existam outros órgãos que façam este
trabalho. Desde que eu cheguei na comunidade, eu não sei se eles ainda estão por
aqui, que é a ONG do [Diz o nome da ONG]. Mas eu não sei se eles ainda estão aqui,
145
acho que eles já devem ter migrado pra outra comunidade. E daí a maioria do material
que a gente tem aqui na unidade de saúde do homem é dessa ONG, não é da
prefeitura.
Ao mesmo tempo, é importante citar as iniciativas, que acabam sendo executadas via
vontade própria dos trabalhadores de saúde, que se dão a partir do compartilhar de
experiências tidas como exitosas e do desejo de se trabalhar tal temática dentre alguns
trabalhadores interessados. Destacamos também a importância do estabelecimento de
parcerias como outros profissionais, estudantes, estagiários e pesquisadores que vão à unidade
e que contribuem para o despertar desta vontade de fazer.
Tomando o caso específico do grupo de homens, por exemplo, a história de sua
gestação se monta a partir de diferentes eventos: o contato com a referida ONG, inicialmente
em outro grupo realizado na comunidade; a experiência de dois agentes comunitários de saúde
e seu desejo particular em trabalhar com os homens, além do seu contato e vínculo com os
homens moradores da comunidade que possibilitaram a presença e adesão de alguns destes ao
grupo; o apoio de trabalhadores, estudantes estagiários, pesquisadores e residentes presentes
na unidade que auxiliaram no amadurecimento das discussões no grupo; a participação de
diferentes trabalhadores no dia-a-dia dos encontros, e por fim; a própria dedicação dos
homens/usuários em frequentar o grupo.
Assim, é importante reconhecer que com a experiência e iniciativas observadas no
cotidiano desta unidade, bem como a partir dos relatos de trabalhadores e usuários, podemos
considerar que, como mencionam Couto et al (2010, p. 266)
uma visibilidade dos homens como potenciais cuidadores e usuários dos serviços
parece estar em desenvolvimento, embora ainda de modo tímido. Não podem passar
despercebidos alguns discursos e ações de profissionais que dão visibilidade aos
homens usuários e os estimulam à prática do cuidado de si e dos outros. Assim, podem ser citadas tanto fissuras nas tendências apontadas, quanto ações inovadoras
como estratégias para atender aos homens e inseri-los no contexto dos serviços
(COUTO et al, 2010, p. 266).
Para finalizar este tópico, concordamos com Benedito Medrado et al (2009), quando
afirmam que os gestores e profissionais de saúde precisam rever práticas, conceitos e valores
para o trabalho com a população masculina. Para estes autores é necessário lançar mão de
ações educativas que possam favorecer a compreensão da importância e necessidade de ações
dirigidas aos homens, além de que possam auxiliar na definição coletiva de prioridades e
estratégias de ação a serem implementadas nos serviços. É desta maneira que tais
146
trabalhadores e gestores poderão perceber que a população masculina também possui
necessidades específicas em saúde.
147
CAPÍTULO FINAL
Algumas considerações...
Contrário àquilo que poderia ser esperado de um trabalho científico (para falar de
certo paradigma modernista em ciência) propriamente dito, preferi trabalhar a partir de dois
verbos – aproximar e compreender, me distanciando do que se espera, a priori, de um
empreendimento de pesquisa: definições, apreensões, declarações, verdades,
aprisionamentos, (talvez até) esgotamentos.
Mas por que evitar o esgotamento? Por que posicionar-se contrário a essa noção?
Meu posicionamento deve-se, simplesmente, pela noção de terminalidade, conclusividade a
que esta palavra me remete. Ora, entendo as coisas como dinâmicas e processuais, marcadas
pelas suas condições de existência, pelos contextos em que emergem e pelos elementos que as
mantém viventes, ou ativas. Prefiro encarar a vida dessa maneira, ou, melhor dizendo, uma
tentativa de tomar a vida como construcionista (para tomar emprestado a nomeação das
bases teórico-conceituais de que me utilizei para desenvolver este trabalho): abrir-se à
construção de si a partir do diálogo com outro... Afinal, a vida é assim! Do mesmo modo,
nossas ações se dão assim.
Como diz o poeta Raul Seixas: “Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter
aquela velha opinião formada sobre tudo!”. Disto implica encarar a vida como processo,
como condição de possibilidade, como um vir a ser constante... Logo, um trabalho como este,
que se constrói a partir de múltiplos movimentos da vida não poderia ser diferente, e reflete
vários momentos, e ao mesmo tempo um só, o momento em que busquei me debruçar sobre
um tema que me despertou curiosidade, que me instigou a construir ferramentas e
mecanismos de me aproximar e me distanciar dele. Ao mesmo tempo, como disse, nele fujo do
148
esgotamento. Sei que não é possível, e nem é a minha pretensão, esgotar a temática a que me
dediquei nestes anos... Acho que falei sobre muita coisa, mas muita coisa ainda há a se falar,
afinal, o diálogo nunca se esgota!
Assim, este trabalho dissertativo mais que um produto teórico, é um produto de
existência. É um produto que significa muito mais que palavras estruturadas, declarações
coerentes e argumentos fundamentados. Trata-se de um produto marcado por afetos e
desejos, acertos e erros, caminhos e descaminhos. Expressa uma relação de cuidado! Sim,
CUIDADO! Afinal, é o cuidado que nos possibilita crescer, a ser mais, a ser melhores... É ele
que nos conduz a cada dia, em busca dos nossos objetivos, qual seja ele, escrever uma
dissertação!
Entre Controvérsias...
Para um último exercício reflexivo neste trabalho, preferimos recorrer às contribuições
de Bruno Latour (2000; 2001; 2002) e suas ponderações sobre o fazer ciência. Destacamos de
antemão três grandes pilares que estruturam o trabalho deste autor: a noção de simetria, o
trabalho a partir da teoria ator-rede e a discussão sobre as controvérsias na ciência, sendo este
último o que nos chama a atenção aqui, principalmente, se tomamos a perspectiva da
reflexividade do fazer científico.
Primeiramente, ao considerarmos o princípio da simetria, ao qual se refere Latour, no
nosso trabalho, não nos importamos em saber quem está certo e quem está errado. “O que
está em jogo é a visão de mundo” (COLACIOS, 2009). Assim, não estivemos/estamos
interessados na verdade dos nossos interlocutores, não buscamos saber qual/quais deles
estava/está mais certo ou mais errado, buscamos apenas visibilizar diferentes maneiras de se
compreender e lidar com um determinado objeto. Como viemos apontando ao longo dessa
dissertação, é necessário relativizar os modos como o cuidado à saúde do homem se produz,
bem como os saberes e as práticas que o norteiam.
Ao mesmo tempo, mais uma vez recorremos a Latour (2000) para compreender que as
práticas do cotidiano nada mais são que componentes de uma complexa rede de atores
humanos e não-humanos mutuamente implicados. Compreender seu funcionamento só é
possível quando seguimos suas possibilidades de articulação, os “seus nós”. Trazer a noção de
rede para nós é importante por considerar que no plano do cotidiano é necessário
compreender as relações complexas e heterogêneas que se desenvolvem entre estes diferentes
atores, fugindo de uma possível postura determinista que possa situar posicionamentos ou
149
argumentações em compartimentos bem delimitados. Pelo contrário, em nosso exercício de
pesquisa buscamos dar visibilidade aos diferentes lugares acedidos por nossos atores,
considerando que nosso olhar também se situa em um determinado lugar.
Assim, ao tentarmos seguir a produção de cuidados à saúde do homem num serviço
público de atenção básica, percebemos a existência de diversos atores humanos
(homens/usuários, mulheres que os acompanham, agente de saúde, profissionais de formação
diversa etc) e não-humanos (medicamentos, exames, prescrições, documentos políticos,
protocolos etc) que possibilitam ou não que práticas sejam desenvolvidas sob determinadas
inscrições, as quais, por sua vez, produzem efeitos variados que seguem essas redes e tem
ressonâncias diversas (seja, por exemplo, reproduzir velhas noções ou produzir novos
conceitos).
Em seguida, é no tom das controvérsias que este trabalho se estrutura, apresentando as
diferentes tensões e desafios que ainda permeiam os campos teórico-práticos da produção da
saúde, principalmente no tocante à saúde do homem. Para Latour (2000), as controvérsias
constituem o lado mais oculto das ciências, e ao mesmo tempo, a oportunidade de se manter a
atividade científica em pleno funcionamento, uma vez que, ao tomar a ciência como produção
social, compreende que é a manutenção deste diálogo com o social que possibilita que
argumentações e debates sustentem, ou não, uma teoria ainda não consolidada.
A idéia de controvérsias na prática científica remete à adesão ao mundo científico de
atores que outrora não estavam presentes, tais como aqueles para os quais a própria atividade
científica se volta, quais sejam as pessoas às quais seus efeitos se destinam (LATOUR, 2000).
Deste modo, o fazer pesquisa, mais que uma atividade científica, é uma atividade política e é
neste movimento de tradução das práticas científicas em práticas sociais legitimadas que
surgem as controvérsias.
É em meio a este emaranhado teórico-reflexivo que se desenham os questionamentos
que surgem, afinal, da realização do nosso estudo. Reconhecemos que discutir a saúde do
homem ainda é um campo controverso e, como tal, compõe uma série de interrogações.
Assim, ao concluir o nosso estudo, ainda nos questionamos: afinal, como os homens se
posicionam nesse debate? Onde se localizam? Não estaria na sua suposta reclusão ao debate
uma maneira de assumir os lugares a eles imputados historicamente? E ao mesmo tempo
quais seriam as reais necessidades dos homens na saúde? Será que os serviços de saúde
reconhecem, de fato, que tais homens precisam de cuidados?
Trazendo para a situação específica da nossa pesquisa, podemos pensar: não nos
parece controverso que embora tenhamos um documento político específico, trabalhadores
150
que se dizem pioneiros na produção de ações à saúde do homem ainda tenham tão pouca
aproximação dele? Não nos parece controverso que embora esta mesma política tenha grande
ênfase nos serviços da atenção básica, decorridos três anos do início de sua implantação,
ainda se observe pouca repercussão nos serviços de saúde, principalmente neste, indicado
como referência por ter um elemento diferencial que seja já o trabalho com homens? Não nos
parece um tanto controverso, trabalhadores afirmarem ter percebido grande aumento da
procura de homens na unidade de saúde, a partir de uma atividade grupal por eles
desenvolvida, e, no entanto, dentro do referido grupo, tão poucos homens referirem fazer este
uso frequente? Não nos parece controverso ter esses homens tecido tão grandes comentários
avaliando a unidade de saúde positivamente, mesmo tendo revelado problemas estruturais e
não a conhecerem bem por não terem acesso? E, por fim, não nos parece ainda mais
controverso tais homens não imputarem a si mesmos uma imagem de não cuidadores e, ao
mesmo tempo, reconhecerem os poucos cuidados à própria saúde como dependentes de si?
Assim, é mantendo o tom das controvérsias que seguimos dialogando. Não seriam
elas, em último caso, o que nos mobiliza a querer buscar outras formas de compreensão? E ao
mesmo tempo, não seria esta mesma possibilidade de busca de outras maneiras de
compreensão, uma atitude controversa? Compreendemos que é desta maneira que a ciência se
desenha: entre controvérsias, as quais seriam as molas da atividade científica, embora seja a
prática científica um incessante exercício anti-controvérsias, já que se busca a verdade (isto
não seria uma controvérsia?). Como gostaríamos de manter esta rede em circulação, nos
deparamos ao fim deste trabalho produzindo mais controvérsias.
Retomando Alguns Nós...
Neste trabalho buscamos compreender como homens/usuários e trabalhadores de um
serviço público da atenção básica à saúde produzem cuidados à população masculina no seu
cotidiano. Nossa intenção maior, com a realização desta pesquisa, era situar alguns pontos,
por nós visibilizados, que pudessem contribuir para as discussões que tem aproximado os
homens da produção de cuidados à saúde, um campo até algumas décadas atrás ainda carente
de produções e que, nos últimos anos, tem ganhado grande destaque. Ao chegar ao momento
de refletir sobre o trabalho aqui empreendido, acreditamos que conseguimos avançar em
alguns pontos e contribuir com tais discussões. Certamente ainda há muito a avançar.
Munidos das reflexões apresentadas acima, chegamos ao momento de tentar, em certa
medida, finalizar este trabalho, embora reconheçamos que este final acabe indicando novos
151
começos. Retomando um pouco do que discutimos ao longo desta dissertação, vimos que o
cuidado à saúde do homem, no cotidiano do serviço de atenção básica que pesquisamos, é
permeado por uma complexa rede de relações, que inegavelmente, se produz em termos de
jogos de verdade e de poder. De um lado, o saber-poder dos trabalhadores de saúde em
prescreverem formas de cuidar e ser cuidados, e por outro das resistências demonstradas (ou
não) pelos homens em se submeterem a estas formas.
As falas dos trabalhadores acabam (de)marcando em certa medida os corpos dos
homens e limitando suas possibilidades de existir ou de desenvolver práticas de cuidado.
Vimos uma discursividade masculina marcada pela negação: homem não se cuida, não acessa
o serviço de saúde, não é como a mulher, não participa etc. Se os homens não se cuidam,
podemos pensar então se não estaríamos diante uma tentativa de medicalização do corpo
masculino, sob o rótulo do cuidar? Cuidar seria, então, uma forma de aceder à normatização
das práticas regulatórias que incidem sobre o corpo modos de ser e de agir?
Algumas falas representam bem como as questões de gênero se implicam nos modos
de cuidar e nas relações dos sujeitos com os seus corpos. Além disso, vimos uma noção de
saúde marcada pela prevenção de agravos, medicalização e normatização das práticas de
cuidado. Entre os homens e trabalhadores tal discursividade parece se alinhar, os quais
apresentam uma noção de cuidado que algumas vezes extrapola o processo saúde-doença, mas
que acabam reproduzindo práticas orientadas por um amplo tecnicismo. Além do legitimado
poder biomédico que prescreve formas de existência e um discurso que aprisiona o cuidado e
o orienta segundo tecnologias de biopoder. Neste sentido, cabe-nos questionar: não haveria
para os homens outras formas possíveis de se definir esse cuidar a não ser a partir da ótica
biomédica dominante?
Não podemos perder de vista, no entanto, que estamos nos referindo ao funcionamento
de um serviço de saúde, e que, há uma racionalidade médica mais ampla ao qual ele deve
aceder. O que pontuamos neste trabalho seria o diálogo possível entre diferentes modos de se
encarar o processo saúde-doença-cuidado, tendo este último como objetivo maior dos
serviços. Assim, não questionamos aqui a adoção das “ditas” práticas mais saudáveis, pelo
contrário, reconhecemos a importância dos hábitos de vida para a manutenção da saúde física
e mental. O que apontamos são os nós de uma rede que não se constrói sem efeitos. Ou seja, o
que significa dizer que tal hábito é saudável ou não? Que efeitos isto produz na vida de uma
pessoa? E como a pessoa lida com estes efeitos?
Acreditamos que é necessário que os trabalhadores de saúde possam investir no
desenvolvimento de atividades centradas nos processos de prevenção e promoção da saúde de
152
maneira a incluir os homens que ainda não estão presentes nos serviços. É importante
considerar também a valorização dos saberes populares e estabelecer diálogo entre as práticas
de cuidado disponíveis na comunidade de maneira complementar, de modo a se fugir mais da
centralidade do conhecimento biomédico.
Reconhecemos que as atividades propostas no cotidiano do serviço pesquisado têm
efeitos positivos nas ações de cuidado dos homens, no entanto vemos que elas apresentam
tensões. Falta, por exemplo, uma continuidade: o que é tido como sucesso para eles no dia do
homem é apenas mais um ilustrativo de que os homens têm necessidades em saúde e é preciso
que os serviços se disponham a acolhê-las e respondê-las.
Gostaríamos de visibilizar também o (des)preparo dos trabalhadores na lida com os
homens. Como motivos, podemos citar os próprios processos formativos particulares que não
investem em discussões de gênero, a suposta falta de costume em atender homens em seu
cotidiano, a posição de saber-poder ocupada pelos trabalhadores que pode encontrar
resistências frente ao suposto poder do masculino, além dos próprios preconceitos existentes
com relação ao homem: homem não se cuida, homem não quer se cuidar, homem é difícil. Ao
mesmo tempo, o despreparo também acaba funcionando como uma explicação para não
incluir ações voltadas ao homem no serviço
Do mesmo modo, podemos elencar alguns pontos de justificativa que supostamente
fazem com que os homens não busquem os serviços de saúde, o que é encarado pelos nossos
interlocutores como um indicativo de descuido de si: a associação do hábito de cuidar ao
âmbito feminino, as diferenças de horário entre trabalho e funcionamento dos serviços, a
precarização dos serviços – no caso a infra-estrutura, falta de materiais e recursos para
promover outras ações de atenção –, em menor grau, o medo de descobrir que está doente e ao
mesmo tempo o medo de ter a sua masculinidade questionada, a vergonha de ficar exposto a
um profissional, a falta de serviços específicos e, em consequência, o não reconhecimento dos
serviços existentes como espaço para o cuidado à sua própria saúde.
É importante destacar que com a realização desta pesquisa não tínhamos o intuito de
levantar responsáveis pelas dificuldades apresentadas pelos serviços em desenvolver práticas
de cuidado que atendam às necessidades dos homens na saúde. Não apoiamos ou legitimamos
uma lógica de culpabilização, mas reconhecemos a existência de uma série de argumentos
desfavoráveis que compõem uma ampla rede de elementos dificultores. Assim, da parte dos
usuários vemos algumas reclamações sobre o atendimento dos trabalhadores, sobre a
burocratização da rede, sobre as demoras nos atendimentos médicos e na falta de especialistas
nas unidades. Pelos trabalhadores a falta de infra-estrutura adequada para o trabalho que
153
impede o desenvolvimento de ações sob o foco da promoção da saúde, por exemplo, a falta de
protocolos e de incentivos por parte da gestão, o excesso de casos que precisam dar conta na
comunidade, o despreparo em lidar com o homem reforçado pela própria ênfase da unidade
em trabalhar com outros grupos populacionais (mulheres, crianças e idosos; hipertensos e
diabéticos), e o suposto descuido do homem em não se atentar para as questões de sua própria
saúde, sendo isto justificado por questões sociais, culturais e econômicas mais amplas.
Temos em mente que não basta dedicar-se à realização de estudos para afirmar que
temos dificuldades, que os homens são menos presentes nos serviços, ou mesmo, que as
diferenças de gênero tornam a população masculina vulnerável: afinal, o que fazemos a partir
daqui? Deste modo, reconhecemos que iniciativas tem sido feitas, embora elas ainda careçam
de reflexões e amadurecimento para tornarem-se ainda mais efetivas e abrangentes, pois,
como vimos há tensões, há desafios, as questões continuam a surgir... e que bom que isto
acontece, assim conseguiremos seguir tentando, pesquisando, refletindo, atuando... é assim
que se faz a ciência, e é dessa forma que as coisas acontecem!
Neste sentido, embora reconheçamos que a atividade científica constitua uma busca
incessante por respostas, compreendemos que lançamos as respostas possíveis em meio a
novos questionamentos que vão surgindo de maneira inevitável. Como vimos, na maior parte
das vezes o cuidar da saúde se confunde com o “ir ao serviço”, mas até que ponto o acesso
aos serviços de saúde pode ser considerado como indicador para avaliação e qualidade destes
serviços? Não seria esta ênfase na produção de cuidados condicionada à busca dos serviços
uma possibilidade para que repensemos a noção do cuidado como um valor da vida? Ao
mesmo tempo, reconhecendo o Estado como instituição de governo e gestão da vida, é
possível promover uma leitura crítica sobre o masculino a partir dele, tendo em vista que este
mesmo Estado, muitas vezes, ainda se (re)produz em meio a valores machistas/sexistas?
Assim, não pretendendo pôr um ponto final nesta dissertação, optamos pelas
reticências para ter sempre em mente a idéia de continuarmos dialogando. Afinal, não
buscando responder a estas questões, acabamos delineando tantas mais possíveis que nos
possibilitem continuar pensando...
154
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APÊNDICES
APÊNDICE I
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Pelo presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, eu,
__________________________________________________ me disponho a participar da pesquisa
intitulada “A GESTÃO NO COTIDIANO: Processos de Produção do Cuidado à Saúde do Homem na
Atenção Básica”, realizada por Túlio Romério Lopes Quirino, estudante de mestrado, regularmente
matriculado no Curso de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, da Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE, sob orientação do Prof. Dr. Benedito Medrado, vinculado ao Departamento de
Psicologia desta instituição.
O meu consentimento em participar da pesquisa deve-se ao fato de ter sido informado (a) pelo
pesquisador que:
a) O objetivo do estudo é compreender de que modo a gestão do cuidado à saúde do homem acontece no cotidiano de um serviço de atenção primária à saúde.
b) A coleta do material será realizada pelo próprio estudante/pesquisador e se dará por meio de
observações no cotidiano do serviço e eventuais entrevistas em campo, as quais serão
gravadas em aparelho digital para posterior transcrição. Os dados coletados serão utilizados exclusivamente para este estudo, com finalidade de pesquisa.
A participação no estudo é voluntária. Assim, há liberdade para desistência em qualquer fase
da pesquisa, inclusive durante ou após a coleta de dados, sem qualquer risco de penalização ao/a
entrevistado/a. Será garantido o anonimato dos sujeitos do estudo na divulgação dos resultados e
guardado sigilo dos dados confidenciais.
Havendo interesse, os dados obtidos pela pesquisa serão disponibilizados aos sujeitos do
estudo, ao término do mesmo.
Caso necessário, posso entrar em contato com o pesquisador pelo telefone (81) 9807.0148 ou
pelo e-mail: [email protected].
Nome do (a) entrevistado (a):
Assinatura:
Data:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Curso de Mestrado
APÊNDICE II
QUESTÕES NORTEADORAS PARA CONVERSAS/ENTREVISTAS
1. Para Trabalhadores de Saúde
a. Os homens da comunidade costumam buscar atendimento nesta unidade de saúde?
Com que frequência? Quais os principais motivos para a busca?
b. De que modo os homens chegam a esta unidade de saúde (demanda espontânea, são
convidados, encaminhamento, etc)?
c. Em geral, como ocorrem os atendimentos aos homens na unidade? Você poderia
relatar um exemplo de atendimento realizado recentemente?
d. Você acha importante que os homens sejam atendidos nos serviços da atenção
básica? Por quê? Em quê?
e. Que serviços/atividades esta unidade de saúde oferece para o cuidado à saúde do
homem? Como você participa destes?
f. Você acha que, em geral, os profissionais de saúde estão preparados para atender às
necessidades dos homens? Porque?
g. Na sua opinião, existem especificidades para o cuidado ao homem na atenção
básica? Quais? Que diferenças você percebe no cuidado à saúde do homem e da
mulher, por exemplo?
h. O que você mudaria neste serviço para atender melhor às necessidades dos
homens?
2. Para Homens/Usuários do Serviço
a. Como você cuida da própria saúde?
b. O que os homens em geral fazem quando estão com algum problema de saúde?
c. Você vê diferenças no cuidado à saúde do homem e da mulher? Por quê?
d. Existem especificidades para o cuidado à saúde do homem? Que tipo de
especificidades?
e. Você costuma visitar a unidade básica de saúde? Com que frequência?
f. Como você percebe o atendimento recebido na unidade básica de saúde?
g. A unidade de saúde oferece atendimentos específicos para você/os homens?
h. O que a unidade de saúde poderia/deveria fazer para atender às suas necessidades?
i. Como você entende a saúde?
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Curso de Mestrado