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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UFPE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA TÚLIO ROMÉRIO LOPES QUIRINO A PRODUÇÃO DE CUIDADOS NO COTIDIANO DE UM SERVIÇO DE ATENÇÃO À SAÚDE DO HOMEM RECIFE/PE 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TÚLIO ROMÉRIO LOPES QUIRINO

A PRODUÇÃO DE CUIDADOS NO

COTIDIANO DE UM SERVIÇO DE ATENÇÃO

À SAÚDE DO HOMEM

RECIFE/PE

2012

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TÚLIO ROMÉRIO LOPES QUIRINO

A PRODUÇÃO DE CUIDADOS NO COTIDIANO DE

UM SERVIÇO DE ATENÇÃO À SAÚDE DO HOMEM

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade

Federal de Pernambuco, como requisito parcial

para obtenção do Grau de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Benedito Medrado

RECIFE/PE

2012

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Divonete Tenório Ferraz |Gominho.CRB-4 985

Q8g Quirino,Túlio Romério Lopes.

A produção de cuidados no cotidiano de um serviço de atenção à

saúde do homem / Túlio Romério Lopes Quirino. – Recife: O autor, 2012.

165 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Benedito Medrado.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco,

CFCH. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2012.

Inclui bibliografia e apêndices.

1. Psicologia social. 2. Homem - Saúde. Produção – Cuidados médicos. I. Medrado, Benedito. (Orientador). II. Título.

150 CDD (22.ed.) UFPE (CFCH2013-09)

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À minha mãe e à vida...

...pela possibilidade de existir!

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AGRADECIMENTOS

Eu queria ser poeta, pra dizer tudo o que quero com rimas, palavras bonitas e

harmoniosas... Queria ser compositor, para escrever musicas e inscrever acordes, pensar em

encadeamentos melódicos e tecer palavras que ressoassem pelos ouvidos... Queria ter o poder

de brincar com as palavras, de dedilhar entre as letras e fazer surgir sílabas que minimamente

expressem os meus sentimentos quando escrevo esta dissertação, e especificamente esta seção

que a compõe...

Com os olhos marejados vou lembrando passo a passo das (milhares de) coisas que me

aconteceram nestes últimos dois anos, e até mesmo antes deles, quando decidi ingressar num

programa de mestrado... Eis que chega o momento de dizer “Obrigado” àquelas pessoas

especiais que estiveram presentes, de uma maneira ou de outra, me apoiando e possibilitando

que a minha vida (tenha sido) e seja mais bonita...

Agradeço à minha mãe, a responsável por eu estar aqui hoje... Minha amiga, meu

porto seguro, aquela que sempre acreditou em mim, e sempre me bancou! Sim! Ela foi meu

banco e minha banca! Quem apostou e me fez acreditar que é persistindo que a gente

alcança... Obrigado mãe! Amo você!

Ao meu irmão Thiago, meu mano, meu amigão! (BOM DIA!) Parece que te ouço

sempre dizer isso quando acordo, e é engraçado te ouvir repetir sempre que nos falamos...

Embora às vezes eu perca a paciência em meio a tanta repetição. Obrigado por me apoiar

mano! Saudades sempre de você! Também à minha família, àqueles que tem confiado e me

incentivado a buscar sempre mais...

A Bene e Jorge, este primeiro por ser mais que um orientador, um mentor para a vida.

Uma pessoa que admiro bastante e com quem aprendi muito durante estes poucos dois anos

de proximidade. A este último pelas palavras e conselhos, pelo afeto e acolhimento, por

mostrar-se sempre disponível a conversar e a compartilhar.

À minha eterna orientadora Molije, a grande responsável pelo despertar do meu

incessante desejo em fazer pesquisa. Juízo! A Aléssia por ser o exemplo de profissional que

um dia almejo ser. A Bárbara (Pró Babinha...) por ser sempre uma referência para mim de

profissionalismo e afeto. Amo o modo como você lida com a vida e a leveza com que conduz

o seu trabalho. Te admiro bastante!

À galera do GEMA pelo acolhimento desde os primeiros dias em que cheguei em

Recife. Foi importante reconhecer em vocês pontos de apoio que me possibilitassem “crescer”

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nesta grande cidade. Agradeço a Michael, meu coringa, a carta especial que parecia estar na

manga e foi importante sacar nesta reta final do mestrado. Obrigado por estar presente!

Obrigado por se dispor a me ajudar! Obrigado por se interessar pelo meu tema e obrigado por,

em muitos aspectos, iluminar este momento! Agradeço também às minhas flores, Alanna,

Ludmila e Symone, três pessoinhas que eu adorei conhecer e principalmente compartilhar

ótimos momentos... a gente bota pra quebrar! WOOOOOW! A Márcio pelos constantes

devaneios teóricos e também pelas inúmeras conversas mundanas. A Jéssica por desenvolver

comigo ótimas reflexões sobre a temática que escolhi estudar. A Tiago, Dara, Luisa,

Celestino, Clarissa, Fernanda, Aida, Camila, Laís... estar com vocês neste período também foi

uma oportunidade única de aprendizado, não apenas teórico, mas humano! Não sei se já disse

o quanto me orgulho de vocês...

À Prof. Dra Mary Jane Spink e ao Prof. Dr. Aécio Matos pelas ricas contribuições ao

meu projeto de pesquisa durante a banca de qualificação. Também ao Prof. Dr. Felipe Rios

pelas inquietações provocadas na banca de defesa dessa dissertação.

Às minhas queridas e inesquecíveis Rose, Leide, Luanna e Mona. Minha equipecão,

família de cartoon, “ralé juazeirense”. Também a Bruninha, Jayce, Lady, Gabi, Vanessa, Ju,

Bruno, Joana, Pitty, Flora, Ilka, Fran... Enfim, aos/às meus/minhas amigos/as de graduação na

UNIVASF, de quem tenho tanta saudade. Pessoas com quem compartilhei muitos momentos

hilários e gostosos, mas também grandes desafios e verdadeiras provações. Muito do que

conquistei nestes processos formativos devo a vocês, nas nossas constantes discussões (e

reclamações!)... Fomos pioneiros na (A)diversidade e, uma vez assim, carregamos as marcas

dos inúmeros obstáculos enfrentados. Às vezes me pego pensando no quão bons foram os

anos que (con)vivemos e, por isso, tão forte é o desejo de nos reencontrarmos... Adoro a todos

vocês!

Aos profissionais do Instituto PAPAI, Mariana, Ricardo, Sirley, Hemerson, Thiago...

pelos momentos que pudemos conversar e trocar idéias, pela oportunidade de conhecer novas

visões de mundo...

Às jóias raras que o mestrado me deu: Paloma, Karine e Rhutinha. Quem diria, quem

diria? Entre uma série de compromissos, conseguimos ser o melhor grupo dentre os melhores

grupos dos melhores mestrados de todos os tempos do mundo... UFA! Amo vocês!

Também a Joyce, Fernanda, Patrícia, Vivian, Pedro Paulo, Halline, Isabela, Júlia,

Selma, Creuza, Igor, Flávio, Érica... enfim, toda a minha turma do mestrado. Gente foi tão

bom conhecer vocês e poder compartilhar um pouquinho das delícias e angústias de ser

mestrando. Sabemos como é gostoso e também sofrido esse processo, e acredito que pudemos

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ser mais fortes quando estivemos juntos. Obrigado a vocês pelos diálogos que empreendemos,

pelas trocas de experiência, pelas nossas convergências e também pelos pontos de

discordância. Foi bom conhecer um pouquinho de vocês nestes dois anos.

À galera da ABRAPSO-PE, principalmente Raíssa, Adele, Mariana, Marília, Juliana,

Domitila, Patrícia e Mayara, pelos diálogos políticos, pelas risadas e preocupações, pelas

redes que construímos e pelas tantas outras que fortalecemos...

À família que encontrei em Recife e que passou, nestes dois anos, por algumas

(trans)formações... Renata, Patrícia Carvalho, Ana Patrícia... Principalmente a Leilane, minha

irmã, minha amiga, a pessoa com quem divido a maior parte das alegrias e tristezas do

cotidiano... Obrigado por estar sempre aqui e por compartilhar comigo um “lar”!

A João, secretário do programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE, por toda a

atenção, orientação e colaboração, principalmente, nos momentos de aperreio para o

cumprimento dos protocolos.

Aos profissionais e usuários do serviço de saúde com quem tive contato na realização

deste trabalho, sem vocês, finalizar esta etapa da minha formação seria impossível...

À CAPES por possibilitar que esta importante etapa na minha vida acontecesse.

Enfim, a todos/as vocês... MUITO OBRIGADO!

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Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples.

Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele

mesmo. É a curiosidade – em todo caso, a única espécie de

curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de

obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém

conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que

valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a

aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto

quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem

momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar

diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do

que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.

Talvez me digam que esses jogos consigo mesmo têm que

permanecer nos bastidores; e que no máximo eles fazem parte

desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós no

momento em que produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar

hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o

trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento?

Michel Foucault

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Quantidade de Municípios com ESF implantadas (de 1994 a agosto de

2011)..................................................................................................................................

Pág.

42

Figura 2. Quantitativos de ESF e ACS e cobertura populacional no Brasil (de 2001 a

agosto de 2011) .................................................................................................................

43

Figura 3. Disposição Espacial da Unidade de Saúde Pesquisada .................................... 77

Quadro 1. Taxa de Incidência de óbitos por todas as causas na faixa etária de 15-59

anos da população masculina (2005).................................................................................

49

Quadro 2. Homens/usuários entrevistados no cotidiano do serviço de saúde

pesquisado.........................................................................................................................

83

Quadro 3. Trabalhadores de saúde entrevistados na unidade básica de saúde

pesquisada. ........................................................................................................................

84

Quadro 4. Modelo do Quadro de Análise 1, elaborado para organizar as informações

produzidas com os interlocutores da pesquisa a partir das entrevistas. ............................

90

Quadro 5. Modelo do Quadro de Análise 2, elaborado para organizar as informações

produzidas com os interlocutores da pesquisa a partir das questões-eixo orientadoras....

90

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABS – Atenção Básica à Saúde

ACS – Agentes Comunitários de Saúde

AVEPSO – Associação Venezuelana de Psicologia Social

BVS – Biblioteca Virtual em Saúde

CISAM – Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros

DAB – Departamento da Atenção Básica

DGGT – Diretoria Geral de Gestão do Trabalho

ESF – Estratégia Saúde da Família

FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz

GEMA – Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IFF – Instituto Fernandes Figueira

MS – Ministério da Saúde

NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família

ONG – Organização Não-Governamental

PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde

PAPAI – Programa de Apoio ao Pai (atualmente Instituto Papai)

PNAB – Política Nacional da Atenção Básica

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNAISH – Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem

PSA – Antígeno Prostático Efetivo

PSF – Programa Saúde da Família

PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SBU – Sociedade Brasileira de Urologia

Scielo – Scientific Electronic Library Online

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SUS – Sistema Único de Saúde

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UBS – Unidade Básica de Saúde

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco

UNIVASF – Universidade Federal do Vale do São Francisco

UPA – Unidade de Pronto Atendimento

UPE – Universidade de Pernambuco

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SUMÁRIO

PRIMEIRAS PALAVRAS... 14

Alguns Pontos de Partida................................................................................................... 15

A Constituição de um Campo: Limites e Possibilidades................................................... 17

A Aproximação com o Objeto........................................................................................... 19

Esboçando um Processo de Pesquisa................................................................................. 23

Finalizando este começo.................................................................................................... 24

CAPÍTULO I

Saúde do Homem: A Produção de um Campo e um Sujeito

27

Homens, Gênero e Políticas Públicas de Saúde................................................................. 27

A Construção/Delimitação de Modos de Ser Homem e Cuidados à Saúde...................... 32

Sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem.................................. 35

A Organização da Atenção Básica à Saúde: Conceitos Fundamentais e Lógica de

Funcionamento...................................................................................................................

41

Homens e Acesso aos Serviços de Atenção Básica à Saúde............................................. 44

Números como Dispositivo de Criação de um Sujeito-Alvo das Políticas Públicas......... 48

CAPÍTULO II

Entre Reflexões Teóricas: A Produção da Pesquisa a partir de uma Postura

Construcionista

53

Pressupostos Construcionistas........................................................................................... 54

A Perspectiva Construcionista........................................................................................... 56

Trabalhando com a Produção de Sentidos: O Estudo das Práticas Discursivas em seus

Usos e Efeitos....................................................................................................................

62

CAPÍTULO III

Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no Cotidiano de um Serviço

Público da Atenção Básica à Saúde

68

Entre Objetos e Questões................................................................................................... 68

O Cotidiano da Pesquisa e a Pesquisa no Cotidiano: Aportes iniciais.............................. 71

A Entrada em Campo (ou...) a Entrada do Campo?.......................................................... 72

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Onde realizamos a pesquisa? Seria esta uma definição do campo?.................................. 74

O Espaço de Produção: Materialização e Estabilização do Campo – Contextualizando a

Unidade Básica de Saúde..................................................................................................

75

Construindo Compreensões sobre o Cotidiano: Instrumentos e Métodos para a

Produção de Informações...................................................................................................

77

Interlocutores...................................................................................................................... 82

Considerações Éticas.......................................................................................................... 85

CAPÍTULO IV

Quem disse que homem não se cuida? A Produção de Cuidados à Saúde do

Homem no Cotidiano de Usuários e Trabalhadores da Atenção Básica

87

Conhecendo a Unidade Básica de Saúde: Algumas Notas sobre o Funcionamento do

Serviço e as Práticas de Saúde voltadas ao Homem..........................................................

91

Práticas Discursivas sobre Saúde e Cuidado................................................................. 93

Conversando com Homens sobre Saúde e Cuidado........................................................... 94

Conversando com Trabalhadores sobre Saúde e Cuidado................................................. 97

Produção de Cuidados à Saúde com Homens/Usuários............................................... 101

Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?.................... 102

Como os homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?............ 111

Produção de Cuidados à Saúde com Trabalhadores de Saúde.................................... 117

Como os trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da

unidade básica de saúde?...................................................................................................

118

Como os trabalhadores de saúde operam a produção de cuidados à saúde dos homens

no cotidiano do serviço?.....................................................................................................

127

Outras Questões Relacionadas às Práticas de Cuidado...................................................... 141

CAPÍTULO FINAL: Algumas considerações... 147

Entre Controvérsias............................................................................................................ 148

Retomando Alguns Nós..................................................................................................... 150

REFERÊNCIAS 154

APÊNDICES 162

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RESUMO

Esta pesquisa se insere no campo de debates sobre gênero e produção de cuidados à saúde dos

homens, alinhando-se às discussões que vem orientando estudos em psicologia social sobre

práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano (SPINK, 2004), a partir de uma

perspectiva construcionista. Dialogando com usuários de um serviço de saúde voltado para os

homens e com trabalhadores/as deste serviço, buscou-se compreender como se constrói a

produção de cuidados em saúde neste contexto de implantação de uma política recente. O

campo de investigação escolhido compreendeu uma unidade básica de saúde que desenvolve

ações de cuidado à Saúde do Homem, em um distrito sanitário da região metropolitana de

Recife-PE. As informações produzidas neste trabalho resultam de entrevistas realizadas com

doze homens, seis profissionais e cinco agentes comunitários de saúde que interatuavam no

serviço pesquisado. Tais entrevistas foram audiogravadas e transcritas para análise. O trabalho

analítico desenvolveu-se a partir de questões-eixo que contemplavam os modos como

usuários do serviço e trabalhadores/as operavam a saúde do homem em seu dia-a-dia. Em

linhas gerais, as análises produzidas indicam que o cuidado à saúde do homem é permeado

por uma complexa rede de relações que, inegavelmente, produz-se em regimes de verdade e

jogos de poder. As falas dos/as trabalhadores/as acabam (de)marcando os corpos dos homens

e limitando suas possibilidades de existir ou de desenvolver práticas de cuidado. Algumas

falas indicam como as questões de gênero se implicam nos modos de cuidar e nas relações

dos sujeitos com os seus corpos. Observaram-se práticas discursivas marcadas pela negação:

homem não se cuida, não acessa o serviço de saúde, não é como a mulher, não participa etc.

Os/as interlocutores/as citam uma série de argumentos desfavoráveis à disponibilização de

ações voltadas à população masculina no serviço e, em consequência, algumas justificativas

para a menor presença dos homens se mantém, tais como a associação do hábito de cuidar ao

âmbito feminino e as diferenças de horário entre trabalho e funcionamento dos serviços. Além

disso, há uma noção de saúde marcada pela prevenção de agravos, medicalização e

normatização das práticas de cuidado. Entre os homens e trabalhadores/as esta produção

discursiva parece se alinhar, os quais apresentam uma noção de cuidado que algumas vezes

extrapola o processo saúde-doença, mas que acabam reproduzindo práticas orientadas por um

amplo tecnicismo médico centrado. Compreende-se que as atividades desenvolvidas no

serviço pesquisado têm efeitos positivos nas ações de cuidado dos homens, no entanto, estas

ainda apresentam tensões. Iniciativas têm sido feitas, embora elas ainda careçam de reflexões

e amadurecimento para tornarem-se mais efetivas e abrangentes, pois, desafios continuam a

surgir. Por fim, acredita-se que é necessário relativizar os modos como o cuidado à saúde do

homem se produz, bem como os saberes e as práticas que o norteiam. Ao mesmo tempo, é

necessária reflexão crítica sobre um dos princípios que sustentam a Política Nacional de

Atenção Integral aos Homens na Saúde, a saber, o pressuposto de que a demanda de serviços

de saúde por parte dos homens seria necessariamente um indicador de cuidado.

Palavras-chave: Saúde do Homem, Produção de Cuidados, Atenção Básica, Práticas

Discursivas, Práticas de Cuidado.

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ABSTRACT

This research is situated within debates about gender and the production of men’s health care,

it is also in line with discussions that have guided social psychology studies about discursive

practices and the production of meaning in every day life (SPINK, 2004) from a

constructionist perspective. In dialogue with users of health services designed specifically for

men and with service providers, we sought to understand how the provision of health care was

constructed in the context of the recent implementation of a health policy. The chosen

research area comprised a basic health service unit that develops men’s health care initiatives

in a public health district within the metropolitan region of Recife-Pernambuco. The

information produced in this work is the result of conversations/interviews with twelve men,

six professionals, and five community health agencies that were involved in the services

under consideration. These interviews were audio recorded and transcribed for subsequent

analysis. The analysis was developed from a series of questions about the ways in which

service users and providers operationalize men’s health on a daily basis. In general, the

analysis indicates that men’s health care is permeated by a complex network of relationships,

that are unquestionably produced in terms of regimes of truth and power dynamics. Health

workers’ statements marked men’s bodies and (de)limited their possibilities of existence or

their ability to develop care practices. Some of their statements reveal how gender issues are

implicated in the care of individuals and in the subjects’ relationships with their bodies.

Discursive practices of denial were observed: men do not take care of themselves, they do not

access health services, they are not like women, they do not participate, etc. Speakers cited a

series of unfavorable conditions to the provision of services targeted to men and, therefore,

some justifications for men’s higher rates of absence, such as the association of the habit of

care with women and the differences between men’s work schedules and the hours of

operation of health service providers, for example. Moreover, there is a notion of health

marked by the prevention of disease, medicalization, and the standardization of care. Among

men and health professionals, this discursive formulation seems to be aligned. It represents a

notion of care that sometimes stems from the health-disease process, but that ends up

reproducing practices guided by a broad medical-technical focus. It is evident that the

activities undertaken in the services surveyed have a positive effect on men’s health behavior.

However, tensions remain. While initiatives have been undertaken, they require further

reflection and development to make them more effective and far-reaching, since new

challenges continue to arise. Finally, we believe it is necessary to relativize the ways in

which men’s health care is produced, as well as the knowledge and practices that guide them.

At the same time, critical reflection is needed on the principles that underpin national policy

on men’s health, namely the presumption that men’s demand for health services would

necessarily be an indicator of care.

Key words: Men’s health, Production of care, Basic medical care, Discursive Practices, Care

practices.

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14

PRIMEIRAS PALAVRAS...

Gostaria de começar de maneira diferente esta dissertação. Não é que queira ser

subversivo, nem tenha a pretensão de conceder a ela um caráter de ineditismo, até mesmo

porque não acho que seja este o caso. Apenas não gostaria de conceder ao meu trabalho uma

dureza em sua construção, por preferir e considerar que os textos são mais agradáveis quando

fluidos e são mais palatáveis quando se constroem na simplicidade.

Preferi escrever este trabalho como se estivesse contando uma história. Uma história

de como um empreendimento imediato se estendeu por quase dois anos e resultou num

trabalho, por assim dizer, integral (ou parcialmente acabado). Os capítulos que escrevo ao

longo desta dissertação cumprem o papel definido a priori de situar, fundamentar, orientar e

direcionar o meu olhar sobre determinado objeto a que outrora decidi me dedicar, a saber: a

produção de cuidados à saúde do homem. Cumprindo minha posição de cientista, ou seja, de

pesquisador em constante formação, não fujo do dever de descrever e defender teórica e

metodologicamente minhas reflexões, mas ao mesmo tempo, busco tornar o fio condutor

dessa dissertação mais tênue e levemente embaçado, buscando me fazer presente ao longo do

texto... Implicação! É disto que estou falando! Ou, nas palavras de Donna Haraway (1995),

conhecimento situado.

De início, prefiro contar como parti de uma ideia inicial a um produto final, ou ainda

inicial, tendo em vista que a atividade científica nunca para, pelo contrário, é constantemente

alimentada pelas respostas que encontramos às perguntas de que partimos, as quais por sua

vez orientam outras questões que conduzirão a novas respostas... Ademais, outras respostas às

mesmas perguntas poderiam ser encontradas por outros em contextos distintos, ou por mim

mesmo, em momentos diversos.

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Nesta primeira seção da dissertação, a qual encaro como um capítulo introdutório,

apresentarei de onde estou partindo (ou o ponto que escolhi como tal), ao propor o meu

estudo, e para onde pretendo ir com ele. Como eu formulei minha questão de pesquisa, e mais

ainda como escolhi fazer para buscar respondê-la. Enfim, começo aqui a relatar o caminho

trilhado desde que entrei no curso do mestrado até o momento em que, afinal, tento chegar à

sua conclusão. Esta dissertação retrata bem isso: é o produto de um empreendimento

dinâmico e inconstante!

Antes de começar este relato, é importante fazer uma consideração: como não poderia

deixar de ser, o trabalho que apresento aqui é fruto de muitas reflexões e motivações pessoais,

no entanto, sua realização só foi possível graças a um incessante processo de produção

coletiva e negociada. Neste sentido, refiro-me a todas as pessoas que aqui se fazem presentes,

nomeadas ou não, que podem ser reconhecidas como co-construtoras das reflexões que aqui

estão escritas e inscritas. Cito desde meus/minhas companheiros/as de pesquisa, integrantes

do núcleo de estudos do qual faço parte, inclusive o meu orientador, até as pessoas que

construíram comigo informações relativas à temática que busquei investigar no cotidiano do

serviço assistencial escolhido, do qual falarei mais tarde. Assim sendo, embora esteja

escrevendo, em algumas vezes, na primeira pessoa do singular (presentificando-me e

posicionando-me ao longo do texto), estarei sempre remetendo as considerações que faço a

um contexto maior, em que tais pessoas também merecem e devem ser reconhecidas. Ao

mesmo tempo, quando estiver escrevendo na primeira pessoa do plural também estarei

considerando estas reflexões.

Alguns Pontos de Partida...

A seguir, descrevo algumas linhas de uma complexa rede, a partir das quais busco

apresentar o objeto de pesquisa dessa dissertação, construído ao longo do meu processo de

formação acadêmica. Tenho bacharelado em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do

São Francisco (UNIVASF), tendo concluído o curso em dezembro de 2009, na ênfase

“Desenvolvimento em Saúde”. Desde meu ingresso na universidade/graduação, demonstrei

grande interesse pela Saúde Pública/Coletiva, em especial, à Atenção Básica à Saúde (ABS) e

à Estratégia Saúde da Família (ESF). No que diz respeito à minha formação específica, tenho

particular interesse na Psicologia Social, e nos seus modos de produção do saber e de

construção coletiva.

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Diante das possibilidades formativas oferecidas pela universidade da qual fiz parte,

busquei ao longo dos anos enveredar por produções acadêmicas teóricas e práticas

problematizando a produção social cotidiana da saúde. Assim sendo, desde o primeiro ano da

graduação venho desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão, bem como estágios

curriculares, interessado em compreender os sentidos e significados produzidos pelas

pessoas/atores sociais em seus processos de subjetivação, em diferentes contextos.

Sempre acreditei que a Psicologia pode contribuir bastante à Saúde Pública/Coletiva,

oferecendo a possibilidade de repensar os processos de trabalho, com a reflexão e

problematização constante dos modos de intervir, apresentando uma postura crítica, criativa e

mais consoante às realidades locais. A Psicologia também pode auxiliar na potencialização de

espaços dialógicos, voltados à troca de saberes interdisciplinares, com a promoção de relações

mais horizontais e coletivas, numa perspectiva transdisciplinar. Desse modo, é possível citar a

articulação de processos interventivos diferenciados, com o desenvolvimento de trabalhos

integrados, intersetoriais e coletivos lançando outros modos de compreender e lidar com o

processo saúde-doença-cuidado.

Um dos temas que aparece como bastante caro nas discussões da Psicologia em

diálogo com a Saúde Pública é a questão do sujeito das/nas práticas em saúde e a produção de

subjetividades. Para Mary Jane Spink (2010), a Psicologia pode colaborar com os estudos

sobre a problemática do sujeito nas práticas em saúde, desde que mantenha um

posicionamento crítico frente às tendências universalizantes e biologizantes que

historicamente marcaram a Saúde Pública. Segundo esta autora, é a partir da crítica aos

saberes médicos tradicionais que a Psicologia foi/é convocada a estabelecer um diálogo

constante com a Saúde Coletiva.

No entanto, a autora salienta a presença de diversos desafios, não apenas dentro da

Psicologia, mas também em outros campos profissionais, na proposição de práticas que

estejam de acordo com as demandas do SUS. Paradoxalmente, a noção de sujeito que permeia

a produção das práticas psicológicas, uma das maiores contribuições da Psicologia para o

campo da saúde, aparece também como um dos seus principais desafios. Nas palavras de

Spink: “se a questão que nos mobiliza é a introdução de novas formas de atuação compatíveis

com os princípios do SUS, torna-se necessário romper com aquilo que foi historicamente

construído” (SPINK, 2010, p. 27).

Trabalhando com conceitos foucaultianos, Spink argumenta que as ciências humanas,

dentre elas a Psicologia, “são produtos da estruturação da sociedade disciplinar. Funcionam

como estratégias auxiliares de disciplina de corpos e almas” (2010, p. 33). Neste sentido, é

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sobre o saber-poder disciplinador das teorias e práticas psicológicas que está se discutindo

aqui. Ao constituir certa noção de sujeito, a Psicologia apresenta uma função normativa e

higienizadora, que precisa ser subvertida. Ao situar a Psicologia no campo da saúde, o que se

enfatiza é a compreensão dos processos de subjetivação que são forjados em cada contexto de

produção da saúde, segundo determinantes sócio-históricos e culturais, e não a partir de

práticas individualizantes que colocam sobre o sujeito prescrições normativas.

A Constituição de um Campo: Limites e Possibilidades

Zeidi Trindade e Ângela Andrade (2003), na introdução do livro “Psicologia e Saúde:

Um campo em construção”, fazem uma breve revisão histórica da área de estudos que

nomeiam como “Psicologia e Saúde”. Segundo estas autoras, esta área estabeleceu-se

formalmente em 1978, como uma parte da Psicologia que compartilhava de contribuições

teóricas advindas de diversos campos, tais como a Medicina, a Antropologia, a

Epidemiologia, a Sociologia, entre outros. No Brasil, desde a década de 80 observou-se um

grande crescimento nas produções científicas em saúde advindas da Psicologia, as quais se

voltavam principalmente à investigação e produção de maneiras de se lidar com as questões

de saúde. Ao mesmo tempo, também se foi observando paulatinamente uma crescente

inserção dos psicólogos em instituições e serviços de saúde públicos e privados, o que

possibilitou o desenvolvimento e consolidação da saúde como um promissor campo de

trabalho na Psicologia.

Para Magda Dimenstein (1998), esta inserção da Psicologia na saúde, em específico na

saúde pública, foi possível graças a um determinado contexto sócio-político-econômico que

favoreceu o reconhecimento cultural da profissão e sua importância para a sociedade. Neste

movimento, ela destaca quatro fatores que foram essenciais à entrada dos psicólogos nas

instituições de saúde:

1) O contexto das políticas públicas de saúde do final dos anos 70 e da década de 80,

em que se observava uma série de transformações nos modelos assistenciais bem

como nas próprias formas de se compreender e se lidar com a saúde, fruto das

reflexões proporcionadas pela redefinição e ampliação do conceito de saúde;

2) A crise econômica e social que o país enfrentou na década de 80, que fez com que

os profissionais de Psicologia, até então fortemente concentrados nos consultórios

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particulares, vissem as classes média e alta, suas consumidoras, reduzirem suas

despesas com os atendimentos psicológicos;

3) Diante disto, observou-se um movimento de redefinição da categoria, que envolveu

um processo de valorização do profissional de Psicologia no meio social e sua

migração cada vez mais frequente dos consultórios privados para os serviços públicos,

sendo as instituições de saúde (hospitais psiquiátricos, maternidades, postos de saúde

etc.) suas maiores receptoras, e;

4) A psicologização da sociedade, ou seja, a criação de uma cultura psicológica no

país, fortemente associada à difusão e fortalecimento da psicanálise no Brasil. Isto

proporcionou um aumento na busca pelas faculdades e cursos de Psicologia, na oferta

e disposição dos serviços, além da expansão do campo de atuação do psicólogo.

Atualmente, observa-se um grande número de publicações da Psicologia articuladas ao

campo da saúde, a qual se apresenta como uma área consolidada. Uma simples busca nas

principais bases de dados e indexadores virtuais, tais como Scielo (Scientific Electronic

Library Online) e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), por exemplo, é capaz de revelar uma

grande variedade de temáticas que tem sido alvo de reflexões pela Psicologia. No entanto,

como afirmam Trindade e Andrade (2003), há ainda um descompasso entre as demandas

apresentadas pelo setor saúde e as respostas dadas pela Psicologia, tendo em vista os

processos formativos dos profissionais para atuar na área e a complexidade de questões que

surgem neste setor, as quais solicitam constante reflexão crítica e inspiração por parte dos

psicólogos em sua atuação.

Assim, como dizem estas autoras, mesmo notando-se este grande crescimento nas

últimas décadas, a produção em Psicologia e Saúde ainda aparece bastante difusa em termos

de sistematização de conhecimentos, fazendo com que os profissionais e pesquisadores da

Psicologia tenham grande dificuldade em se inserir e desenvolver trabalhos neste campo.

Assim, apesar de promissora a área “Psicologia e Saúde” apresenta grandes desafios para seu

fortalecimento, principalmente se considerarmos os diálogos necessários de serem

estabelecidos entre o campo das práticas fortemente marcadas por modelos tradicionais de

fazer e conceber a saúde, bem como pelas incessantes reflexões impulsionadas pela

complexidade das demandas apresentadas no cotidiano dos serviços.

Quando se toma a Atenção Básica à Saúde em específico, as questões se ampliam.

Segundo Dimenstein (1998) existe uma série de problemas e insucessos relacionados às

práticas de psicólogos neste âmbito, o que acaba também se refletindo nas produções teóricas

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originadas da Psicologia sobre este contexto de atuação. Para ela, alguns elementos que

podem ser associados a estes desafios são: o relativamente pequeno tempo de inserção do

psicólogo nos serviços de atenção básica, o reduzido número de profissionais que ocupam

estes espaços, mesmo tendo-se percebido o seu crescimento nos últimos anos1, e o reduzido

número de pesquisas e publicações que investem na atuação do psicólogo na atenção básica,

ou mesmo que revelam uma preocupação da Psicologia com este campo/contexto de trabalho

em particular.

Além disso, se tomarmos os estudos sobre homens e masculinidades no campo da

saúde, ainda são incipientes os estudos que partem da Psicologia, principalmente aqueles que

buscam problematizar a relação “homens e produção de cuidados à saúde”, a partir de uma

perspectiva de gênero, como é o caso do trabalho que desenvolvemos aqui. Cabe ressaltar que

reconhecemos a Psicologia como uma das ciências humanas e sociais que mais tem se

dedicado aos estudos situados na intersecção gênero e saúde, no entanto, dentre as temáticas

mais contempladas pelos seus pesquisadores, a produção de cuidados à saúde voltada à

população masculina ainda é algo que carece de maior investimento.

Desse modo, começamos a situar a relevância do estudo para a construção desta

dissertação, o qual será mais bem detalhado nos tópicos a seguir.

A Aproximação com o Objeto

Munido das reflexões acima, bem como das experiências acadêmicas que tive,

principalmente no último ano de graduação, quando fui me inserindo no contexto da gestão

em saúde, comecei a me questionar sobre os modos de produção do cuidado à saúde no

cotidiano das Unidades Básicas de Saúde (UBS), a partir do prisma da disponibilização de

recursos e organização dos serviços assistenciais. Minha ideia na época situava-se na

discussão acerca das disposições políticas que inscreviam as práticas e, mais precisamente, as

inscrições práticas possíveis no dia-a-dia dos serviços a partir destas disposições. No meu

entender, havia aí uma controvérsia.

Começava a me questionar até que ponto as prescrições gerenciais possibilitavam o

cumprimento dos princípios políticos definidos pelo SUS, e ao mesmo tempo como tais

prescrições ressoavam no interior das unidades básicas. O que, afinal, produzia-se, a partir do

1 Pode-se citar, por exemplo, a publicação da Portaria nº 154/GM/MS, de 24 de janeiro de 2008, que institui os

Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), os quais têm a Psicologia como uma das categorias profissionais

indicadas para a composição das equipes.

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plano da gestão, neste dia-a-dia? Tais reflexões estiveram presentes em mim por algum

tempo, e ao término da graduação, ao decidir ingressar num curso de mestrado, resolvi

construir uma proposta de estudo tendo a gestão como foco.

As mobilizações provocadas pelas experiências na graduação começaram a tomar mais

forma e força quando participei do II Seminário Nacional de Humanização, promovido pelo

Ministério da Saúde, em agosto de 2009, momento em que de maneira mais acurada tive

acesso a outras discussões acerca da gestão e da produção de cuidados em saúde, que

enfatizavam a construção coletiva e a participação popular.

Ao ingressar no mestrado, estes questionamentos começaram a adquirir outros

contornos. Estar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE possibilitou, ao

mesmo tempo, a minha inserção e vinculação ao Núcleo de Pesquisas em Gênero e

Masculinidades (GEMA), que é coordenado pelo professor doutor Benedito Medrado,

orientador desta dissertação. A entrada no GEMA atuou como um divisor de águas na minha

formação acadêmica e profissional (e também pessoal).

No GEMA acabei participando de diversas ações de pesquisa e extensão, com foco

privilegiado na saúde pública e com destaque no contexto do controle social e da atenção

básica, além do contato com várias temáticas em estudos sobre violência de gênero,

diversidade sexual, paternidade e saúde da população masculina. Neste momento, observei

uma reorientação do meu olhar sobre o fazer pesquisa em Psicologia Social por meio da

aproximação com o movimento construcionista, bem como pelas discussões a partir de uma

perspectiva de gênero. Também tive acesso às discussões sobre homens e masculinidades, as

quais não apareciam a priori na minha proposta de pesquisa, e que acabou tornando-se um

dos seus eixos estruturantes.

Ao mesmo tempo, estar no GEMA possibilitou também o intercâmbio com outros

pesquisadores, de diferentes formações, e seus temas de interesse, proporcionando diálogos

que muito reverberaram nas minhas reflexões sobre o objeto que trabalharia. Cito, por

exemplo, minha aproximação com o trabalho de Noemi Jéssica Noca (2011) que na época,

estava escrevendo a sua dissertação relacionada às produções discursivas sobre homens e

masculinidades num serviço de saúde voltado à população masculina, oportunizando-me

participar deste momento e ir aos poucos instigando o desejo de trabalhar a relação “homens e

saúde”.

As articulações no GEMA me proporcionaram também uma aproximação aos

pesquisadores do Instituto PAPAI, Organização Não-Governamental (ONG) localizada em

Recife e que trabalha a temática de homens e masculinidades a partir de um enfoque feminista

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e de gênero, contemplando projetos que aliam ensino, pesquisa e extensão. Neste movimento

de aproximação com esta organização, tive a oportunidade de participar da pesquisa “Homens

nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais”, à

qual este trabalho de dissertação acabou estando vinculado como uma de suas ramificações,

mantendo, até certo ponto, o mesmo tom reflexivo.

Durante minha participação em atividades desta pesquisa, tive contato com diversas

discussões enfocando demandas e necessidades dos homens na saúde pública relacionadas à

atenção básica e as dificuldades apresentadas pelos profissionais em recepcionar estes homens

e responder a tais demandas. Isto começou a me fazer considerar uma reorientação no meu

objeto de pesquisa outrora definido. Ao mesmo tempo, acabei tendo a oportunidade de

realizar entrevistas com alguns gestores da saúde publica, nos níveis local e estadual, que me

possibilitaram acesso a informações sobre os contextos assistenciais e organização dos

serviços locais. Isto foi essencial para definir possíveis direções da pesquisa.

Em agosto de 2010, participei do II Encontro Estadual de Saúde do Homem, o que me

possibilitou o acesso ao processo de implementação da Política Nacional de Atenção Integral

à Saúde do Homem (PNAISH), publicada no ano anterior, 2009. Identifiquei naquele

momento que entre dificuldades e êxitos, começava a ocorrer no estado de Pernambuco um

movimento de busca e oferta de ações voltadas à população masculina, e isto foi despertando

a minha curiosidade sobre como os serviços estavam se organizando para atender este

público.

Foram estes eventos, em seu conjunto, que me fizeram optar por estudar a relação

homens, gênero e saúde. Ainda não havia, no entanto, um foco específico que definisse por

onde trilharia meu caminho e que orientaria a realização do meu estudo. Apenas sabia que

gostaria de discutir homens/masculinidades e saúde, a partir do contexto da atenção básica.

Como havia o desejo anterior de considerar o plano da gestão, resolvi definir uma questão

inicial considerando também estes novos elementos que me apareceram.

Escrevi então um projeto de pesquisa, o qual foi encaminhado para o exame de

qualificação, outro momento fundamental neste processo. Dentre as ponderações feitas pela

banca, a qual foi composta pela Prof. Dra. Mary Jane Spink, da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC/SP) e pelo professor Aécio Matos, do mestrado em Psicologia da

UFPE, além do meu orientador, o Prof. Dr. Benedito Medrado, destacou-se a necessidade de

definição de um foco. De fato, reconheci que algo ainda não me estava claro, e assim ficou

durante muito tempo, até que fui aos poucos materializando isto à medida que comecei a

desenvolver minhas reflexões sobre o campo-tema (SPINK, P., 2003).

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Foi durante o exame de qualificação que me veio a sugestão de investir na produção

de cuidados. Não necessariamente no cuidado, enquanto conceito, mas em como este cuidado

se produz ou é produzido no cotidiano de uma unidade básica de saúde, e em específico, para

a minha pesquisa, voltado para o homem. Logo, comecei a esboçar questionamentos que

considerassem a presença dos homens nas unidades básicas, de que modo estes homens

acessavam e utilizavam os serviços da atenção básica, como eram recebidos, como os

profissionais os acolhiam e respondiam às suas demandas, dentre muitas outras.

Desde o início foi minha intenção tentar fugir do plano da avaliação dos serviços de

saúde. Não era meu objetivo saber se tal prática ocorria ou não, se era benéfica ou não, se era

indicada ou não... Pelo contrário, minha ideia era compreender como práticas desenvolvidas

pelos atores do serviço, aí incluindo usuários e profissionais, eram produzidas sob “o prisma”

do cuidado.

Assim, meu objetivo neste trabalho passou a considerar a compreensão dos modos

como usuários/homens e trabalhadores de saúde produzem o cuidado à saúde do homem

no cotidiano da atenção básica. Neste caso, a partir de uma leitura psicossocial, estou me

referindo às produções discursivas destes atores que inscrevem modos de ser e de viver

dentro dos serviços assistenciais. Em específico, também busquei compreender de que modo

estes homens estão presentes no serviço, como chegam, como percebem o serviço, e ao

mesmo tempo como os profissionais os percebem no seu dia-a-dia.

Um último evento é ainda necessário de ser mencionado aqui. Em agosto de 2011, fui

ao Rio de Janeiro fazer um breve intercâmbio no Programa de Pós Graduação em Saúde da

Criança e da Mulher no Instituto Fernandes Figueira (IFF), vinculado à FIOCRUZ, sob

orientação do Prof Dr. Romeu Gomes. Estive com ele durante alguns meses e neste tempo

tive acesso a diversos temas, textos e pesquisadores/as, além de modos novos de enxergar o

meu próprio estudo.

Neste período, trabalhamos na organização, tratamento e análise das informações que

produzi no meu dia-a-dia na unidade de saúde, tendo sido, muitas vezes instigado a (re)pensar

meus posicionamentos e questionamentos frente àquilo que estava chamando de “produção de

cuidados”. Foi então que decidi não investir necessariamente numa discussão sobre o conceito

de cuidado.

Desse modo, prefiro, neste momento, considerar a expressão “produção de cuidados”,

como uma unidade semântica que diz respeito à disposição, disponibilização e utilização de

determinadas práticas, recursos, serviços e ações assistenciais em saúde pública e que tem por

objetivo prover a população diante das demandas de saúde que apresentam nos serviços de

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atenção. Assim, não pretendo discutir o conceito de cuidado em específico, mas como este

cuidado é produzido, a partir das tramas discursivas destas pessoas. Fazer esta diferenciação

aqui é necessário, principalmente para mim, que muitas vezes estive relacionando, de maneira

inadvertida, a noção de cuidado às práticas usualmente desenvolvidas no cotidiano dos

serviços de saúde, sem considerar os efeitos dessas práticas nas vidas das pessoas às quais

elas se direcionam. Logo, meu foco está nas práticas em saúde, nas práticas de cuidado, ou,

mais precisamente, nas práticas que “dizem cuidar”, nos usos do cuidado, independentemente

do que esse “cuidar” significa.

Esboçando um Processo de Pesquisa

Tentando circunscrever melhor a pesquisa que aqui apresento, este trabalho

dissertativo está vinculado à linha de pesquisa “Processos Psicossociais, Poder e Práticas

Coletivas” do curso de mestrado em Psicologia da UFPE. Nesta pesquisa, focalizei o contexto

de uma unidade básica de saúde que desenvolve ações de cuidado à Saúde do Homem, em um

distrito sanitário da região metropolitana de Recife-PE.

Para esta definição, ressalta-se o meu interesse, já mencionado acima, e aproximação

nas discussões sobre a relação “Homens e Saúde”, tendo em vista a minha inserção no Núcleo

de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (GEMA/UFPE) e, especificamente, a participação

na pesquisa multicêntrica “Homens nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras

culturais, institucionais e pessoais”, a qual a minha pesquisa está vinculada.

A pesquisa Homens nos Serviços Públicos de Saúde: rompendo barreiras culturais,

institucionais e pessoais, coordenada pelos professores Dr. Jorge Lyra e Dr. Benedito

Medrado, teve por objetivo geral promover a inserção dos homens nos serviços de saúde

sexual e reprodutiva, oferecidos no nível da atenção básica, através da capacitação de

profissionais, elaboração de estratégias de comunicação e avaliação. Esta pesquisa foi

desenvolvida em três cidades de diferentes estados brasileiros (Recife-PE, Campinas-SP e

Florianópolis-SC). Em Recife, a realização da pesquisa esteve sob responsabilidade do

Instituto PAPAI, em parceria com o GEMA/UFPE.

O recorte da pesquisa que apresento nesta dissertação deu-se a partir de algumas

considerações importantes, que já foram relatadas no tópico anterior, as quais levaram à

formulação do seu tema norteador. Para tanto, foi lançada a questão disparadora a seguir: De

que modo se produz o cuidado à saúde do homem no cotidiano dos serviços da Atenção

Básica? E a partir desta, questiona-se, também: Como o homem aparece nas práticas

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discursivas dos trabalhadores de saúde dos serviços da atenção básica, e qual o lugar que se

tem construído para ele no cotidiano destes serviços? Como estes homens/usuários chegam ao

serviço e de que modo são recebidos/acolhidos? Como os homens/usuários lidam com a

própria saúde e se reconhecem em suas práticas de cuidados? Foi a partir deste conjunto de

questionamentos que tentei organizar esta dissertação.

Para a realização da pesquisa, optamos por um desenho metodológico que contemplou

como contexto os cenários de produção da saúde em nível territorial e como sujeitos

trabalhadores/as e homens/usuários da saúde pública, que interatuam em um serviço da rede

básica de atenção referenciado ao cuidado à Saúde do Homem. Neste ínterim, definimos uma

proposta de estudo que utilizou como procedimentos para a produção de informações em

campo, a Observação no Cotidiano, a realização de conversas informais (com inspiração na

técnica de produção de entrevistas narrativas) e a construção de diários de bordo2.

Em sua realização, acreditamos que esta pesquisa pode vir a contribuir para o

desenvolvimento de estudos e intervenções sobre/nas práticas em vigor e construção de outros

saberes em saúde pública, auxiliando na articulação de ações que possam proporcionar

melhorias na produção de cuidado à saúde do homem no SUS. Neste sentido, partimos do

pressuposto de que o conhecimento das ações dos trabalhadores e usuários da atenção básica

pode colaborar no planejamento de estratégias coletivas de atenção à saúde em nível

comunitário, bem como ampliar as discussões sobre esta temática.

Com isto, citamos também a possibilidade de que este estudo venha a subsidiar a

(co)formação de profissionais de saúde atentos aos desafios e objetivos dos contextos de

trabalho em saúde, em específico à saúde do homem, antenados às demandas locais de

atenção e com vistas a promover uma maior articulação transdiscipinar, democrática e

intersetorial. Por fim, acreditamos que estudar a produção de cuidados à saúde do homem

pode possibilitar a construção de práticas coletivas pelos diversos atores, em consonância às

atuais recomendações políticas e os princípios éticos que as sustentam.

Finalizando este começo...

Tudo o que escrevemos acima tem o objetivo de traçar o processo que nos levou a

partir de uma ideia inicial de pesquisa, a um produto final, inscrito numa trajetória não linear,

que refere uma experiência situada. Reiteramos aqui que neste processo alguns marcos foram

2 Para maiores detalhes sobre o desenho metodológico deste estudo, ver o Capítulo III.

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importantes para a definição do objeto ao qual nos aproximamos, os quais já foram

mencionados anteriormente.

Dessa maneira, esta dissertação está organizada em cinco capítulos, os quais foram

construídos de maneira a tornar a compreensão do processo de pesquisa mais fácil. Em cada

capítulo situamos rapidamente, desde o seu início, nossa pretensão imediata e desenvolvemos

o texto a partir de subtópicos que se referem a temáticas ou discussões conceituais específicas.

O primeiro capítulo, que denominamos “Saúde do Homem: A Produção de um Campo

e um Sujeito”, constitui o momento no qual nos dedicamos a apresentar e discutir o tema da

nossa pesquisa, a saber, a produção de cuidados à saúde do homem na atenção básica, a partir

de textos (artigos, livros e documentos de políticas públicas) que problematizam e tensionam

este campo de estudos. Partimos de alguns autores e pesquisadores que têm se dedicado a este

campo, com o intuito de visibilizar o que tem sido abordado pelos mesmos em seus trabalhos,

que desafios e limitações tem se observado nas trajetórias particulares que empreendem e

também suas contribuições teórico-práticas e reflexivas sobre os campos produtivos da saúde

pública, considerando as possíveis ressonâncias de tais produções.

No capítulo seguinte, que intitulamos “Entre Reflexões Teóricas: A Produção da

Pesquisa a partir de uma Postura Construcionista”, fazemos uma apresentação da

perspectiva construcionista em Psicologia Social, base epistemológica e conceitual de que

partimos para a realização desta pesquisa. Neste momento da dissertação acreditamos ser

essencial elencar e discutir os pressupostos históricos e filosóficos que orientam este

movimento teórico, bem como os modos de fazer pesquisa a partir desta perspectiva. No

ultimo tópico, apresentamos o trabalho por meio do estudo das Práticas Discursivas e

Produção de Sentidos no Cotidiano (SPINK, 2004a), menos como um campo teórico fechado

e mais como uma tendência ético-política de inspiração construcionista que tem orientado o

trabalho de vários grupos de pesquisadores nacionais em Psicologia Social, e que

especificamente foi adotada por nós para a produção, análise e reflexão das informações

resultantes do nosso processo de pesquisa.

No terceiro capítulo, “Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no

Cotidiano de um Serviço Público da Atenção Básica à Saúde”, descrevemos de maneira mais

aprofundada os procedimentos, materiais, recursos e instrumentos que utilizamos para a

realização do nosso estudo. Ao mesmo tempo indicamos os caminhos percorridos para

definir nosso contexto de pesquisa e como nos posicionamos e atuamos em seu cotidiano,

como nos relacionamos com os atores e de que modo escolhemos e nos aproximamos

daqueles que atuaram como nossos interlocutores. Além disso, apresentamos no início do

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capítulo uma breve reflexão sobre o fazer ciência e retomamos, apresentando alguns

elementos novos, a discussão sobre a definição/aproximação do objeto de nossa investigação.

No quarto capítulo, que nomeamos “Quem disse que homem não se cuida? A

Produção de Cuidados à Saúde do Homem no Cotidiano de Usuários e Trabalhadores da

Atenção Básica”, dedicamo-nos a apresentar e discutir as informações que produzimos no

nosso campo. Cabe salientar que se trata de um processo situado e posicionado, e que,

portanto neste capítulo estão expressos aqueles componentes que nos pareceram mais

importantes segundo os recortes que demos a partir das informações produzidas. Além disso,

retomamos os objetivos de pesquisa e os autores/interlocutores com quem dialogamos no

primeiro capítulo da dissertação, de modo a problematizar e analisar alguns aspectos do nosso

objeto.

No capítulo posterior, “Algumas Considerações...”, traçamos nossas últimas reflexões

a partir do trabalho que realizamos. Trata-se de uma tentativa de finalizar esta dissertação,

embora não tenhamos a pretensão de esgotar nossos questionamentos. Assim, buscamos

apontar alguns tensionamentos e visibilizar outras perguntas que possam manter o diálogo

fluindo. Boa leitura!

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CAPÍTULO I

Saúde do Homem: A Produção de um Campo e um Sujeito

Neste capítulo pretendemos situar a discussão proposta na presente dissertação em um

contexto mais amplo de produção científica. Trata-se do momento de articular teoricamente a

temática da “saúde do homem” aos processos de cuidado construídos pelo Sistema Único de

Saúde brasileiro a partir de interlocutores privilegiados.

Abaixo construímos uma linha argumentativa que situa o interesse das ciências sociais

e da saúde nos estudos sobre homens e masculinidades. Além disso, trazemos uma breve

discussão de como o tema “saúde do homem” começa a ganhar destaque, principalmente, nos

últimos anos, no debate das políticas públicas no Brasil. Logo, mencionamos a construção de

um sujeito homem como alvo de atuação dessas políticas públicas no campo nacional,

lançando mão, para isso, de levantamentos epidemiológicos e sócio-demográficos.

Homens, Gênero e Políticas Públicas de Saúde

Para iniciar este tópico, preferimos adotar a iniciativa de Romeu Gomes (2003) no

início do seu texto “Sexualidade Masculina e Saúde do Homem: proposta para uma

discussão”, quando se pergunta: por que decidimos estudar aqui a masculinidade e a saúde

do homem? Recorrendo a este autor, consideramos importante e necessário visualizar os

sujeitos, homens e mulheres, de maneira singular. Neste caso, estamos considerando a

possibilidade de que os modos de construção de si são variados e se realizam segundo

processos particulares distintos que dialogam com marcações sociais, econômicas, políticas e

culturais.

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Outra possível postura, também mencionada pelo referido autor, diz da adoção de uma

perspectiva relacional e, neste caso, refere-se à construção social do gênero. O gênero, para

Gomes (2003), aparece como “uma forma de legitimar e construir as relações sociais” (p.

826). Sendo assim, ele menciona que o termo “gênero”, construído no bojo do movimento

feminista, teve papel preponderante para se pensar as relações entre homens e mulheres. Esta

perspectiva relacional de gênero concedeu deslocamentos importantes no campo dos papéis

masculinos, como diz este autor, possibilitando reflexões sobre a construção social das

masculinidades e favorecendo problematizações sobre matrizes hegemônicas. Desse modo,

seja por causa da desestabilização ou pela necessidade de se rever os papéis sexuais no

cenário atual, a discussão sobre masculinidade já é um movimento que vem preenchendo

diferentes espaços (GOMES, 1998).

Em linhas gerais, a noção de gênero compreende uma das contribuições das ciências

sociais aos estudos na saúde, sendo usada como referência para compreender e problematizar

a produção da saúde a partir de uma perspectiva multidimensional, englobando aspectos de

ordem social e histórico-cultural. Os estudos considerando a perspectiva de gênero começam

a ganhar força a partir da década de 70, com o movimento feminista e a luta contra a histórica

subordinação feminina no meio social, herança de uma organização política hegemonizada na

instituição patriarcal (FIGUEIREDO, 2008).

Como afirmam Thiago Pinheiro e Márcia Couto (2008), as mulheres organizavam suas

críticas sobre as forças políticas dominantes, dentre elas a classe médica, a Igreja e o próprio

Estado, que impunham, a partir do modelo biomédico, justificativas para a conformação de

seus corpos. Deste modo, questões sociais, como a desigualdade entre homens e mulheres,

estavam sustentadas biologicamente, sendo então alvo de questionamentos pelo movimento

feminista.

Neste sentido, Joan Scott (1995), fazendo uma crítica aos históricos usos errôneos de

termos gramaticais e linguísticos para definir traços de caráter e traços sexuais, afirma que a

palavra “gênero” foi adotada mais seriamente pelas feministas para referir-se à organização

social da relação entre os sexos, rejeitando, dessa forma, o determinismo biológico a ela

associado.

Inicialmente, a noção de gênero aparece como sinônimo de “mulheres”, apresentando

uma função política de busca de legitimidade. Como diz Scott (1995, p. 75) “o uso do termo

‘gênero’ visa sugerir a erudição e a seriedade de um trabalho, pois ‘gênero’ tem uma

conotação mais objetiva e neutra do que ‘mulheres’”, o que possibilitaria um maior

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reconhecimento das proposições teórico-analíticas do feminismo, aproximando-o das ciências

sociais. Nas palavras de Scott:

O termo gênero, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado

para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação

sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Esta utilização enfatiza o fato de

que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino (SCOTT, 1995, p. 75).

Scott (1995) toma o gênero como categoria analítica, apresentando um debate a partir

do questionamento de como este funciona nas relações sociais humanas e, mais ainda, como

possibilita a construção de sentidos à organização e percepção do conhecimento histórico.

Assim, para esta autora, o gênero adquire sempre uma perspectiva relacional: designando

como se dão as relações entre os sexos, o estudo das mulheres implicaria também considerar

as relações estabelecidas com os homens. A definição de gênero adotada por Scott (1995)

considera que “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas

diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às

relações de poder” (p. 86).

Para Pinheiro e Couto (2008) a perspectiva de gênero possibilita uma maior

visibilidade às condições sociais em que os sexos são construídos, configurando-se como uma

forma mais abrangente de se abordar as relações entre homens e mulheres. Desse modo, fazer

uma discussão na perspectiva de gênero no campo da saúde aqui é válido por considerarmos

relevante lançar um olhar de gênero sobre os modos cotidianos de produção da saúde em nível

comunitário, a partir da premissa de que as marcas de gênero, os modos de construção social

de homens e mulheres importam para a oferta de serviços e construção de processos de

cuidado que considerem as demandas singulares.

Ao partir de uma perspectiva relacional de gênero, acreditamos que os modos de

construção social das masculinidades estão intimamente relacionados às maneiras pelas quais

os homens lidam com sua própria saúde e cuidam de si e dos outros. Ao mesmo tempo,

compartilhamos das ideias de Benedito Medrado e Jorge Lyra (2008) quando situam a Saúde

Pública “como um campo de relações interpessoais e institucionais que se organizam em

dispositivos e relações de poder e que marcam posições de sujeito e modos de ser, de saber e

de fazer” (p. 810). Assim, pensar os homens e as masculinidades na saúde, a partir de uma

perspectiva de gênero, implica então, situar como histórica e socialmente homens se formam e

são formados em nossa cultura e os efeitos que tais processos (con)formativos tem sobre suas

relações consigo mesmo, com outros homens e com as mulheres.

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Tomando uma perspectiva histórica, pode-se citar que o marco dos estudos sobre a

temática “homens e saúde” deu-se a partir da segunda metade do século XX, especificamente

na década de 70. Estes estudos apresentavam a premissa de que a construção da

masculinidade tradicional atuava como produtora de déficits à saúde (SCHRAIBER, GOMES

e COUTO, 2005).

Segundo Lilian Schraiber, Romeu Gomes e Márcia Couto (2005), baseados em

Couternay (2000), esta perspectiva avançou de maneira mais consistente nos anos 80,

observando-se neste período uma mudança em sua nomeação, o que fez com que os estudos

dos homens passassem a ser compreendidos como estudos de masculinidades. Com isto, nos

anos 90, outras noções passam a ser incorporadas a estes estudos, tais como poder,

desigualdade, orientação sexual, classe, etnia, religião, geração etc. No Brasil e na América

Latina, os estudos com foco na relação homem-saúde começam a surgir no final da década de

80 e seguem o padrão dos estudos europeus e norte americanos (SCHRAIBER, GOMES e

COUTO, 2005).

No final da década de 90, como Benedito Medrado, Jorge Lyra, Karla Galvão e Pedro

Nascimento (2000) destacam, alguns pesquisadores de diversos lugares do mundo vinham se

dedicando a refletir sobre a construção social das masculinidades no intuito de problematizar

de que modo os homens atualizavam, ou não, no seu cotidiano, o modelo hegemônico de

masculinidade. Em território nacional, na segunda metade da década de 90, a publicação de

teses e dissertações sobre a temática concedeu fôlego a esta discussão, quando se observou

também a construção de uma rede de diálogos entre diversos estudiosos e interessados, bem

como investimentos por parte das agências de fomento. Na visão destes autores, conhecer as

práticas sociais dos homens poderia contribuir para diversos programas e ações de saúde,

podendo-se citar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, o enfrentamento da

violência de gênero, e melhorias na saúde das crianças, das mulheres e dos próprios homens.

Medrado et al (2000) enfatizam dois eventos sócio-políticos que podem ser tomados

como marcos no investimento e visibilidade no estudo de homens e saúde reprodutiva e

sexualidade: a IV Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no

Cairo, em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, em 1995.

Recomendações destes eventos abrangiam a necessidade de uma maior participação

masculina na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, envolvendo os homens em ações

relativas à “paternidade responsável” e ao uso de métodos anticoncepcionais.

É nesta direção que queremos situar a construção, nos últimos anos, de uma suposta

visibilidade dos homens no campo da saúde. Não estamos partindo de um ponto de

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argumentação que coloca os homens como desfavorecidos no campo dos direitos em saúde,

pelo contrário, compreendemos que a construção da “saúde do homem” parte de um

movimento que em muito difere do que ocorreu com a “saúde da mulher”, por exemplo, que

partiu de uma série de ações afirmativas com vistas ao fortalecimento de seus direitos. Do

mesmo modo, não estamos aqui compartilhando da ideia de uma separação necessária entre

os gêneros no campo da saúde, nem tampouco, estabelecendo privilégios entre um ou outro.

Pressupomos, como já afirmado, que é necessário considerar as demandas singulares e

relacionais, identificando as necessidades dos homens no campo da saúde.

Patrícia Bezerra e Itamar Lages (2011) fazem considerações importantes na discussão

que se assume entre homens e direitos de saúde. Nas palavras destes autores, quando se fala

em direito à saúde, é preferível abordar a acepção da “deliberação dos direitos de cidadania”,

concernindo à perspectiva de ultrapassar de uma noção estritamente jurídica (o direito

jurídico, de garantia de uma série de processos de cuidado, acolhimento, assistência clínica

etc.), para englobar também o “direito do homem a ser sujeito de si” (p. 274-275). Assim,

citando Paulo Henrique Martins (2009, p. 59) eles afirmam que “o entendimento

contemporâneo da cidadania exige considerar-se que o jurídico é apenas um dos termos

constituintes, devendo ser lembradas igualmente a moral e a política”.

Isto fica mais claro quando consideramos o texto da ainda recém-publicada Política

Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem – PNAISH (BRASIL, 2009a) que aborda,

desde a sua introdução, a necessidade de “mobilizar a população masculina brasileira pela luta

e garantia do direito social à saúde”, constituindo-se esta mobilização um dos seus desafios,

com vistas a “tornar os homens protagonistas de demandas que consolidem seus direitos de

cidadania” (p. 16). Assim, compreendemos que a convocação dos homens às ações de saúde,

e mais ainda, o reconhecimento dos homens como sujeitos alvos das políticas públicas em

saúde torna-se fundamental por considerarmos importante que homens e mulheres sejam

vistos como sujeitos de direitos.

Neste sentido, é mister considerar que a publicação da PNAISH é um importante passo

na consolidação deste objetivo. Ainda estamos começando a sentir seus efeitos e ressonâncias,

tanto no plano científico, com o grande e recente aumento de publicações relacionadas à

temática, quanto no campo das práticas em saúde, com a paulatina inserção de ações voltadas

à população masculina no cotidiano dos serviços assistenciais. Voltaremos a discutir melhor a

publicação da referida Política em outro tópico desta dissertação.

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A Construção/Delimitação de Modos de Ser Homem e Cuidados à Saúde

Neste tópico buscamos apresentar a intersecção homens-saúde a partir de discussões

que situam as relações de gênero como determinantes de modos específicos de

construção/produção de sujeitos da saúde. Para tanto partimos de interlocutores privilegiados,

que abordam em seus trabalhos um olhar sobre a produção da saúde da população masculina,

tomando como prisma a necessidade de se considerar o gênero a partir de uma perspectiva

relacional.

Dados epidemiológicos, que serão mais bem contemplados em outra seção deste

mesmo capítulo, acabam confluindo para a conclusão de que os homens apresentam riscos

diferenciados para diversas questões de saúde, demonstrando condições de saúde

desfavoráveis em comparação às mulheres, do ponto de vista da morbimortalidade

(FIGUEIREDO, 2008). Um exercício que podemos fazer diante desta constatação é

questionar os motivos que tornam os homens mais vulneráveis do que as mulheres no tocante

às questões relacionadas à sua própria saúde.

De antemão podemos responder, com base, inclusive, nos autores e autoras que

recorremos para dialogar neste capítulo, que homens e mulheres tem padrões de sociabilidade

diferenciados em nossa sociedade, e isto tem reflexos diretos e indiretos nos modos de

produção da saúde, seja em nível individual ou coletivo. Quando situamos ao menos estes

dois níveis, pretendemos considerar que a produção da saúde se realiza a partir de

movimentos existenciais, intrapessoais e interpessoais. Dentre aqueles podemos citar as

práticas de autocuidado, e dentre estes, a produção de cuidados que se realiza por outros,

estando aí contidas as práticas desenvolvidas no interior dos serviços de saúde

(institucionais).

O que queremos dizer especificamente é que a construção do que é ser homem e do

que é ser mulher condicionam necessariamente modos distintos de relacionamento dos

sujeitos com o cuidado de si e dos outros, e que tais modos de ser, acabam funcionando como

matrizes existenciais que direcionam, por sua vez, estes sujeitos a modos distintos de

produzirem e lidarem com sua própria saúde.

Destacamos que, em geral, homens e mulheres são educados para assumirem e

responderem a diferentes expectativas sociais que os situam em lugares pré-estabelecidos.

Considerando-se o modelo hegemônico de masculinidade a que os homens devem aceder,

diversos autores (FIGUEIREDO, 2008; MEDRADO et al, 2000) salientam que as

expectativas sociais do “ser homem”, per se, constituem fatores que tornam os homens

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vulneráveis por buscarem incessantemente responder a este ideal, em que a exposição a

fatores de risco não é algo a ser evitado e, pelo contrário, riscos precisam ser superados

cotidianamente. Esta atitude de superação dos riscos por parte dos homens acaba fazendo com

que os mesmos adquiram um estilo de vida autodestrutivo, deixando de lado a busca pelo

autocuidado (MEDRADO et al, 2000).

No entanto, como salienta R. Connell (1995) a “masculinidade hegemônica”

corresponde a um modelo cultural ideal, que não é alcançado praticamente por nenhum

homem. Esta subsunção dos homens ante o modelo hegemônico da masculinidade, além de

contribuir para a aquisição e exposição a comportamentos de risco, ao mesmo tempo,

compreende um fator de vulnerabilidade ao impedir que outros homens possam assumir este

modelo tendo em vista relações sociais hierárquicas, com desigualdades de poder, gênero, cor

e raça.

Pinheiro e Couto (2008), seguindo a mesma lógica de argumentação, consideram que

muitos comportamentos danosos à saúde dos homens podem ser atribuídos aos processos de

construção social das masculinidades. Estes autores, citando Couternay (2000), salientam que

os homens adotam certas práticas e comportamentos em saúde para responder aos padrões

hegemônicos de masculinidade necessários ao seu estabelecimento como homens. Deste

modo, para “ser homem”, acabam reprimindo questões importantes de saúde em suas

necessidades e demandas, recusam-se a admitir fraqueza, dor, sofrimento e vulnerabilidade e,

ao mesmo tempo, negam necessidades de cuidado à própria saúde. Tal posicionamento, leva-

nos a considerar a reiteração da noção de cuidado associada ao feminino, o qual deve ser

evitado (PINHEIRO e COUTO, 2008).

Roberto DaMatta (1997), ao tratar das inseguranças do “ser homem”, estabelece uma

separação entre “ser homem” e “sentir-se como homem”. Para ele “‘ser homem’ é receber de

uma mulher o atestado ou a prova de que se é verdadeiramente ‘homem’” (p. 827). A

diferença, neste caso, situa-se no saber relacionar-se, o que vai mais além que simplesmente

“ser equipado para funcionar como macho”.

Fernanda Simião (2010), em sua dissertação de mestrado, recorre a Elisabeth Badinter

(1993) para falar do processo de “tornar-se homem”. Num caminho semelhante ao

apresentado pelos autores acima citados, Badinter apresenta a premissa de que o “tornar-se

homem” exige esforços e trabalho diferentes do “tornar-se mulher”. No caso dos homens,

estes precisam “conquistar” a sua masculinidade, estando esta conquista relacionada à prova

de sua virilidade, construída socialmente. Logo, o “tornar-se homem”, tal qual apontado por

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DaMatta (1997), vai além de uma determinação biológica, envolvendo também fatores

sociais, psicológicos e culturais.

Em estudo realizado com homens com idade maior que 40 anos e de diferentes

escolaridades, Romeu Gomes, Elaine Nascimento e Fábio de Araujo (2007), encontraram

pistas, fornecidas pelos seus interlocutores, associadas ao “ser homem”. Na visão destes,

percebe-se uma lógica argumentativa que parece aproximar-se da noção relacional de gênero,

sendo o homem visto a partir de uma série de características que os diferenciam das mulheres.

Assim, os homens são viris, fortes, tem iniciativa sexual (são ativos) e são sexualmente

infiéis, enquanto as mulheres são mais frágeis, sensíveis, passivas e controladas (são menos

infiéis).

Além disso, os autores, baseados em outros estudiosos (WELZER-LANG, 2001;

BOZON, 2004), destacam que a educação dos meninos realiza-se desde a infância, a partir da

oposição entre os sexos e as atribuições de gênero: os meninos devem rejeitar os

comportamentos associados ao feminino para se constituírem como homens. Deste modo, a

construção do “ser homem” parece acontecer pela via contrária, não se realizando a partir do

desejo e identificação com a virilidade, mas pelo receio de terem esta suposta virilidade

negada, sendo vistos como efeminados (GOMES, NASCIMENTO e ARAÚJO, 2007).

A perspectiva da construção do “ser homem” a partir da oposição/evitação também

aparece nas palavras de Badinter (1993, citada por SIMIÃO, 2010, p. 33), ao mencionar que

“as negativas predominam”. Nestes termos, “ser homem” compreende não ser: “feminino,

homossexual, dócil, dependente, submisso, efeminado, impotente, entre outras”. Ainda, o “ser

homem” está amplamente relacionado à dificuldade em expressar sentimentos, à

supervalorização do pênis e à violência.

Neste sentido, a construção social da masculinidade tem reflexos sobre a saúde dos

homens, pois

O imaginário de ser homem pode aprisionar o masculino em amarras culturais,

dificultando a adoção de práticas de autocuidado, pois à medida que o homem é visto

como viril, invulnerável e forte, procurar o serviço de saúde, numa perspectiva preventiva, poderia associá-lo à fraqueza, medo e insegurança; portanto poderia

aproximá-lo das representações do universo feminino, o que implicaria possivelmente

desconfianças acerca dessa masculinidade socialmente construída (GOMES,

NASCIMENTO e ARAÚJO, 2007, p. 571)

No entanto, Gomes, Nascimento e Araújo (2007) destacam, entre os interlocutores do

seu estudo, alguns aspectos que podem ser compreendidos como mudanças nas formas de se

perceber e lidar com essa imagem de “ser homem”. Assim, começa-se a pensar, por exemplo,

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na existência de diversas formas de expressão da masculinidade e na atribuição de certos

comportamentos e sentimentos (mesmo contidos) ditos como femininos aos homens. É

importante considerar que, mesmo neste movimento de ruptura com a ideia de uma

masculinidade hegemônica, esta está ainda amplamente relacionada à heterossexualidade, a

qual funciona como eixo estruturador das formas de construção da masculinidade.

Sobre a relação homem-saúde, em outro trabalho, Romeu Gomes e Elaine Nascimento

(2006, p. 908) acabam apresentando duas conclusões importantes: 1) os modelos

hegemônicos de masculinidade acabam dificultando que homens adotem hábitos e convicções

mais saudáveis; e, 2) estes homens, quando influenciados por ideologias hegemônicas de

gênero, podem colocar em risco tanto a sua saúde e a de outros homens, quanto a das

mulheres.

Deste modo, os homens a partir dessa identificação com a ideia de uma masculinidade

hegemônica, acabam tornando-se vulneráveis pelo próprio senso de invulnerabilidade

socialmente compartilhado. As ideias dos autores acima apresentados acabam nos auxiliando

a compreender a importância de estudos em saúde que centram sua atenção nos processos de

cuidado ao homem, no tocante a práticas sensíveis de manutenção da própria saúde e

promoção de hábitos saudáveis. Este estudo, que apresentamos aqui, baseia-se então, na

premissa de que é necessário problematizar a produção cotidiana dos homens na saúde tendo

em vista ainda a invisibilidade dos mesmos nos serviços públicos, estando esta invisibilidade

intimamente relacionada aos modos cotidianos de construção do ser masculino.

Desde já não assumimos a invisibilidade masculina a partir de uma via de mão única,

pelo contrário, trata-se de uma complexa rede de relações que acaba por produzir efeitos

significativos nos modos de vida de determinados sujeitos, e por diversos fatores que estão

mutuamente implicados. Dentre eles, a falta de ações voltadas aos homens nos serviços, bem

como o descuido na atenção às demandas apresentadas por eles, a suposta “auto-

invisibilização” do homem ao não considerar sua própria vulnerabilidade e que o leva a não

praticar o autocuidado, e não acessar os serviços de saúde, e o próprio ambiente social que

reproduz modelos de masculinidade que situam os homens como grupo de risco.

Sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem

No presente tópico, dedicaremo-nos a discutir e apresentar a Política Nacional de

Atenção Integral à Saúde do Homem, publicada no ano de 2008. Não é nosso objetivo aqui

fazer uma análise crítica da política. Outros autores (MENDONÇA e ANDRADE, 2010;

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CARRARA, RUSSO e FARO, 2009) já se propuseram a isso e consideramos que, embora

tais análises correspondam a lugares distintos e com finalidades diferentes, este exercício

merece destaque e recomendamos a leitura destes trabalhos para maior aprofundamento neste

tipo de discussão.

A nossa intenção em resgatar o texto da política tem mais uma tentativa de auxiliar na

contextualização de um campo de estudos que se desenvolveu em meados à sua publicação,

ou seja: a política de certo modo organiza um processo histórico, não-linear, de fortalecimento

de uma área de estudos.

Fazendo uma breve reconstrução histórica da PNAISH, observa-se que embora seu

lançamento tenha sido anunciado no ano de 2005, isto só veio acontecer em 2008, quando foi

publicado o documento “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem:

Princípios e Diretrizes”. O contexto de articulação desta Política apresenta a premissa,

comentada pelo então ministro da saúde José Gomes Temporão, de que os homens adoecem

mais que as mulheres, morrem mais precocemente e utilizam menos os serviços de saúde.

Além do texto da Política, também é importante citar a existência do “Plano de Ação

Nacional (2009-2011)” (BRASIL, 2009b). Atualmente, as ações e estratégias referentes à

Política de Saúde do Homem no Brasil estão norteadas pelos referidos documentos.

Segundo seu texto, o objetivo da PNAISH é “promover a melhoria das condições de

saúde da população masculina do Brasil, contribuindo, de modo efetivo, para a redução da

morbidade e mortalidade dessa população, através do enfrentamento racional dos fatores de

risco e mediante a facilitação ao acesso, às ações e aos serviços de assistência integral à

saúde” (BRASIL, 2009a, p. 53).

Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo, Marcio Valente e Jéssica Noca

(2011), realizando uma leitura crítica desta Política, apontam algumas questões que merecem

destaque, a começar pela definição de saúde utilizada que “parece ainda atrelada à tradicional

oposição à enfermidade, na medida em que se enfatiza a redução da morbidade e mortalidade”

(p. 31). Além disso, segundo estes autores, “ao ressaltar o ‘enfrentamento racional dos fatores

de risco’, focaliza-se a resolução de problemas de saúde na dimensão da racionalidade e

exclusivamente em indivíduos” (p. 31).

Outro aspecto destacado pelos autores supracitados diz respeito “à importância do

olhar de gênero para compreensão dos agravos à saúde dos homens”, que apesar de no texto

da política aparecer em seus objetivos específicos da seguinte maneira: “incluir o enfoque de

gênero, orientação sexual, identidade de gênero e condição étnico-racial nas ações

educativas”, não é contemplado pelas ações descritas no Plano de Ação (idem, ibidem).

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O documento do Plano de Ação Nacional 2009-2011 (BRASIL, 2009b), apresenta o

planejamento das ações e estratégias que orientariam a implementação da PNAISH no triênio

referido e possui nove eixos norteadores, que apontam para a inserção de estratégias de ação

para a Saúde do Homem nos níveis municipal e estadual, tais como: a elaboração de

estratégias com intuito de aumentar a demanda dos homens nos serviços de saúde; a

sensibilização dos homens e de suas famílias, com incentivo ao autocuidado e

desenvolvimento de hábitos saudáveis; a elaboração de estratégia de educação permanente

junto aos trabalhadores do SUS; dentre outros.

O Plano ainda salienta que a implementação da política se dará de maneira sistemática,

ao longo dos três anos iniciais, começando pela escolha de um município em cada estado

(total de 26 municípios) que servirá de referência ao desenvolvimento local das ações à saúde

do homem. Por fim, é importante destacar que este documento não menciona, como salientam

Medrado et al (2011) “as instâncias de controle social na formulação da política ou do Plano

de Ação” (p. 33), o que chama bastante atenção, tendo em vista a organização do sistema de

saúde brasileiro, que tem como uma de suas prerrogativas a produção democrática da saúde,

tanto no planejamento, quanto na avaliação e acompanhamento das ações.

Em outro documento, Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo, Edna Granja

e Sirley Vieira (2009), mobilizados pelo contexto político de criação da PNAISH e

preocupando-se com o delineamento de princípios e diretrizes que possam orientar o

desenvolvimento de uma atenção integral aos homens na saúde, afirmam a necessidade de se

considerar “a complexa teia de significados e valores que orientam processos educativos e

institucionais mais amplos e conferem aos homens, ao mesmo tempo, privilégios e restrições”

(p. 30).

Neste documento, intitulado “Princípios, Diretrizes e Recomendações para uma

Atenção Integral aos Homens na Saúde”, é elaborada uma série de diretrizes necessárias à

discussão de ações e estratégias focadas na promoção da saúde da população masculina. São

16 diferentes proposições que abordam como uma Política Nacional, que se propõe a traçar

parâmetros de organização do cuidado à saúde, deve se estruturar para minimamente garantir

e efetivar uma maior participação masculina nas práticas de cuidado de si e dos outros. Dentre

estas proposições, podemos destacar: a necessidade de que uma política de saúde voltada para

os homens também contribua para a promoção dos direitos das mulheres; considerar a

ampliação do conceito de saúde, reconhecendo que cuidar da saúde dos homens, implica mais

que tratar de doenças específicas atribuídas à população masculina, levar em conta

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determinantes psicossociais e culturais associados; compreender que a atenção à saúde dos

homens deve se dar de maneira integral; entre outras (MEDRADO et al, 2009).

Tais recomendações também englobam a importância de se reconhecer e respeitar a

diversidade, compreendendo as diferentes formas de construção das masculinidades. Alguns

setores específicos também são destacados, funcionando como um chamamento político à

participação dos homens em atividades que, a princípio, não contam com a sua presença,

como o campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Um último destaque damos à premissa de

que os serviços de saúde precisam acolher as demandas apresentadas pelos homens, atraindo-

os e contemplando suas necessidades singulares (MEDRADO et al, 2009).

O documento citado também traz uma lista de recomendações que devem ser seguidas

por gestores e profissionais no tocante a promoção de cuidados à saúde do homem. Trata-se

de proposições que englobam processos de organização do cuidado à saúde nos diferentes

níveis de atenção, orientados pelas diretrizes já citadas acima. Dentre estas recomendações

podemos destacar a premissa de que a formulação e implementação de uma política de

atenção à saúde da população masculina precisa desenvolver-se considerando ações

territoriais, integrais e intersetoriais (MEDRADO et al, 2009).

Com relação ao texto da PNAISH, já nas suas palavras de apresentação, aparece a

premissa de que “cada homem pode manter-se saudável em qualquer idade” (BRASIL, 2009a,

p. 9), justificando assim que uma ênfase predominante na Política se relaciona às ações de

prevenção, proteção e promoção da saúde. Tal pressuposto também parece relacionar-se às

palavras do Ministro José Gomes Temporão quando salienta que o desenvolvimento da

Política deu-se de maneira a articular suas ações também e principalmente com a Política

Nacional da Atenção Básica (PNAB), porta de entrada do Sistema Único de Saúde, com

ênfase particular nas estratégias de humanização do atendimento e considerando-se a

necessidade de contemplar a população masculina nas realidades singulares, a partir de

contextos socioculturais e político-econômicos variados (BRASIL, 2009a).

Como nesta dissertação estamos tratando especificamente da produção de cuidados à

saúde do homem nos serviços da atenção básica, em outro momento nos dedicaremos a

discutir e apresentar este nível de complexidade do sistema de saúde brasileiro. Neste

momento importa considerar apenas que há uma prerrogativa na PNAISH de incluir na

atenção básica, ações e atividades voltadas à população masculina, de modo a garantir, não

apenas uma maior presença dos homens nestes serviços, mas também uma atenção integral

que contemple os três níveis de complexidade do SUS.

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Na nossa leitura, destacamos também no texto da PNAISH a consideração das

“questões do masculino” (no texto aparece como “agravos do sexo masculino”) tomando-as

como problemas de saúde pública, as quais não podem mais ser invisibilizadas. Cita-se, neste

contexto, que “o sistema de saúde deu-se conta de que o modelo básico de atenção aos quatro

grupos populacionais – crianças, adolescentes, mulheres e idosos – não é suficiente para

tornar o País mais saudável, principalmente por deixar de fora nada menos do que 27% da

população: os homens de 20 a 59 anos de idade” – os quais representavam, em 2009, 52

milhões de pessoas (BRASIL, 2009a, p. 08).

Outro aspecto merece ser mencionado aqui: por mais que o texto introdutório da

Política, bem como os argumentos que conduzem à definição de princípios e diretrizes para o

trabalho da saúde do homem, tragam uma visão ampliada da saúde da população masculina,

considerando determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais, principalmente no

tocante às questões geracionais, de idade e de gênero, a definição do objetivo geral da mesma

acaba centrando-se apenas nos aspectos morfofisiológicos, enfatizando as informações

epidemiológicas que tem por foco a redução da morbimortalidade masculina.

Na leitura crítica do texto da Política realizada por Medrado (et al, 2011), acima

disposta, já se discutia isto. Nesse caso, questionamos em que medida se pode avançar nas

discussões sobre a ampliação do acesso aos serviços de saúde, se a racionalidade

epidemiológica (insuficiente para dar conta da complexidade dos determinantes da saúde)

acaba direcionando na maioria das vezes a definição das estratégias e ações. Isto acaba se

refletindo no plano mais “prático”, ao tomarmos o Plano de Ação, em que há uma

predominância de ações orientadas por esta racionalidade.

Também chamamos a atenção a um aspecto, já mencionado por Jéssica Noca (2011),

em sua dissertação de mestrado, que diz respeito ao contexto mais amplo de criação da

Política, quando pontua a participação das sociedades médicas, como a Sociedade Brasileira

de Urologia (SBU) neste processo, à qual foi dado grande espaço e voz, ainda considerando a

centralidade na discussão biologicista, que encara o homem a partir de questões fisiológicas.

Neste caso, saúde do homem estaria relacionada à saúde da próstata e outras doenças, ou

questões da sexualidade. Na leitura de Noca (2011) isto vem “corroborar com a valorização

dada à saúde do homem no campo da ‘sexualidade medicalizada’, com ênfase na genitália e

nos agravos físicos à saúde sexual” (p. 39). Esta autora chama a atenção para a ênfase que tem

sido dada no incentivo ao consumo de medicamentos voltados às disfunções sexuais dos

homens, um movimento que parece indicar uma crescente medicalização dos corpos

masculinos.

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Cabe, neste sentido, destacar os interesses econômicos e corporativos relacionados a

esta participação das sociedades médicas, o que já foi comentado por Sérgio Carrara, Jane

Russo e Livi Faro (2009). Se junta a isto a ação da indústria farmacêutica, com mobilização

na medicalização dos corpos masculinos, que tem grande apoio da própria categoria médica, a

qual prescreve medicamentos e, consequentemente, legitima os benefícios à saúde do homem

associados ao consumo de remédios (NOCA, 2011). Na visão de Lilia Schraiber et al (2010),

a medicalização “é marca sócio-histórica que apaga a socialidade da doença e da medicina,

reduzindo-as a questões biomédicas e impedindo que sejam enunciados carecimentos que não

encontram possibilidade discursiva nessa linguagem” (p. 962).

Isto complementa o argumento anterior, quando mencionamos que a ênfase nas

questões biológicas acaba fazendo com que sejam deixados de lado aspectos de ordem

psicossocial e cultural que respondem em grande parte pelos problemas que acometem a

população masculina. Ademais, compreendemos que uma política que se propõe integral e

demanda ações em diversos campos, não pode nem deve centrar suas ações em setores

particulares, marcados por interesses econômicos e políticos, tendo em vista uma conjuntura

social mais ampla que estrutura demandas e necessidades específicas.

Como vimos, um dos objetivos da PNAISH é o fortalecimento e qualificação da

Atenção Básica à Saúde (ABS), de modo que esta esteja preparada para atrair e acolher as

demandas dos homens na saúde. Tal ênfase situa-se no fato de que os homens costumam

acessar o sistema único de saúde através dos serviços de média e alta complexidade (unidades

de urgência e emergência, e hospitais, por exemplo), que tem como consequência o agravo da

morbidade tendo em vista o retardamento da atenção (BRASIL, 2009a). Uma das razões para

isto relaciona-se ao fato de que os homens procuram mais os serviços de saúde por motivo de

doença, ao contrário das mulheres que os utilizam para a realização de exames de rotina e

prevenção (PINHEIRO et al, 2002).

Além disso, os homens preferem utilizar serviços que proporcionem resolubilidade

imediata ao seu problema, sendo a ABS rechaçada por eles em vista do tempo de espera entre

a marcação de consultas e a efetivação de uma resposta. Compreende-se que muitos dos

agravos à saúde dos homens poderiam ser evitados se estes realizassem, periodicamente, as

medidas de proteção primária, no entanto, percebe-se uma resistência da população masculina

na adesão a este tipo de cuidado com a própria saúde (BRASIL, 2009a). Dito isto, no próximo

tópico nos preocuparemos em abordar de maneira breve a organização e lógica de

funcionamento da ABS e, posteriormente, trazemos um panorama geral do uso e acesso dos

homens aos serviços de atenção básica à saúde no Brasil.

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A Organização da Atenção Básica à Saúde: Conceitos Fundamentais e Lógica de

Funcionamento

A Atenção Básica à Saúde compõe uma rede articulada de cuidados que tem como

objetivo maior contemplar o sujeito de modo integral, constituindo uma lógica territorial de

funcionamento voltada para as necessidades singulares e sociais, e compreendendo um

conjunto de ações de caráter individual e coletivo, com ênfase na promoção à saúde,

prevenção, tratamento e reabilitação (BRASIL, 2006a).

Neste modelo, a Atenção Básica se organiza a partir da atuação da Estratégia de Saúde

da Família (ESF), a qual se constitui por equipes básicas compostas por: um/a médico/a de

família, um/a enfermeiro/a, um/a auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários/as de

saúde, podendo ser ampliada com a participação de um/a dentista, um/a auxiliar de

consultório dentário e um/a técnico/a em higiene bucal. A ação das equipes da ESF ocorre nas

Unidades de Saúde da Família (USF) e nas residências da população atendida, configurando-

se como porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1998; 2006b).

Tomando uma perspectiva histórica, percebe-se que a implementação da ESF foi

gerada a partir da experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O

PACS foi criado em 1991, no Nordeste brasileiro, com o objetivo de atuar frente aos altos

índices de morbimortalidade materno-infantil existentes nessa região. Essa experiência

fornece importantes contribuições para a reorganização da assistência à saúde: a família passa

a ser o foco das ações, e não o indivíduo; introduz-se a noção de área adstrita; e promove a

adoção de uma postura ativa dos profissionais, os quais não devem mais basear suas

intervenções a partir das demandas apresentadas, mas agir sobre elas de maneira preventiva

(NASCIMENTO, 2007).

A partir disso, o Ministério da Saúde (MS) propõe a criação do Programa Saúde da

Família (PSF), em 1994, e o PACS é tomado como estratégia de transição do modelo de

saúde vigente para a proposta do PSF (atualmente ESF), o qual tem como objetivo principal:

“reorganizar a prática da atenção à saúde em novas bases e substituir o modelo tradicional

centrado no hospital, além de assumir o desafio de garantir o acesso igualitário de todos aos

serviços de saúde” (NASCIMENTO, 2007, p. 22).

Assim, a partir de 1998, observa-se uma grande expansão do PSF por todo o país,

consolidando-se como estratégia prioritária para a reorganização da Atenção Básica e

efetivação de novas práticas de saúde no Brasil (NASCIMENTO, 2007; PAIM, 2003). Em

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agosto de 2011, o número de ESFs no Brasil totalizou 32.079, distribuídas em 5.284

municípios, o que corresponde a 94,95% dos municípios do território nacional (Figura 1).

Figura 1: Quantidade de Municípios com ESF implantadas (de 1994 a agosto de 2011).

Fonte: DAB/MS. Dados atualizados até agosto/2011. (on line)3

No entanto, mesmo que a maioria dos municípios do país possua equipes de ESF, a

cobertura da população ainda é relativamente baixa, chegando a pouco mais de 53% (Figura

2). Uma das principais razões para isto é a baixa cobertura nos municípios mais populosos,

principalmente nas capitais, em que as disparidades comunitárias e desigualdades sociais

obstaculizam a gestão e organização dos serviços de saúde.

No que diz respeito à organização das práticas de saúde voltadas para a família, seus

pressupostos são: a saúde como um direito de cidadania e expressão da qualidade de vida; a

família como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde; a democratização do

conhecimento, organização e produção da saúde; a intervenção sobre os fatores de risco; a

prestação de atenção integral no domicílio, no ambulatório e no hospital; a humanização e

busca de satisfação do usuário; o estímulo à organização comunitária no intuito de

potencializar o controle social; e o estabelecimento de parcerias (CORDEIRO, 1996).

3 Figura reproduzida do Departamento da Atenção Básica – DAB/MS. Imagem disponível em:

http://dab.saude.gov.br/imgs/ graficos_abnumeros/dab_graph_sf_nro_municipio.jpg. Acesso: 12/01/2012

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Figura 2: Quantitativos de ESF e ACS e cobertura populacional no Brasil (de 2001 a agosto de 2011)

Fonte: DAB/MS. Dados atualizados até agosto/2011. (on line)4

A produção do cuidado, na ABS, aponta para outro direcionamento das práticas de

saúde, com a necessidade de uma vinculação cada vez maior destas com a análise e utilização

do território e da rede social. Esta articulação no território tem por finalidade o

desenvolvimento de uma clínica tal, que possibilite a constituição de sujeitos autônomos, mais

saudáveis em sua afetividade e em suas relações sociais, e mais potentes para transformar a

realidade (FIGUEIREDO e ONOCKO-CAMPOS, 2009). A noção de clínica ampliada é

fundamental para a efetivação dessas mudanças, nas formas de se produzir o cuidado e na

transformação dos modos de vida de cada sujeito.

O fortalecimento de vínculos entre usuários, famílias e comunidade com as equipes de

saúde aparece como um dos meios adequados para a prática da clínica ampliada no interior da

atenção básica. Vládia Jucá, Mônica Nunes e Suely Barreto (2009) salientam, no entanto, que

é preciso considerar que esta noção envolve a existência de uma postura incorporada

culturalmente e que demanda tempo e esforços de ambas as partes para ser construída. Neste

sentido, estas autoras afirmam que para iniciar esse processo, os profissionais precisam

negociar com a comunidade tendo, para isso, um direcionamento compartilhado em termos

das condutas a serem adotadas.

A ideia de vínculo remete a outro pressuposto, a saber, a questão da responsabilidade

pelo cuidado, entendida como co-gestão sobre os cuidados, do sujeito e do profissional sobre

4 Figura reproduzida do Departamento da Atenção Básica – DAB/MS. Imagem disponível em:

http://dab.saude.gov.br/imgs/ graficos_abnumeros/dab_graph_sf_acs_sb_cobertura.jpg. Acesso: 12/01/2012

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as ações em saúde, que pode se efetivar por meio de discussões conjuntas e intervenções junto

às famílias e comunidades. Na prática, aponta-se uma tendência para que a lógica da co-

responsabilização seja sobreposta à lógica do encaminhamento (FIGUEIREDO e ONOCKO-

CAMPOS, 2009).

Neste patamar, é perceptível uma modificação do foco da orientação da assistência

oferecida pelos dispositivos de saúde, que passa a se deslocar progressivamente do interior

dos serviços e de seus procedimentos pré-formatados, para ocorrer a partir das necessidades

dos sujeitos, das famílias, do território e da rede de relações que nele acontecem. Assim, a

construção de projetos terapêuticos arquitetados para cada situação singular ganha lugar no

fazer dos diversos profissionais da atenção básica.

Ademais, devemos considerar que as disposições que são promulgadas pelas políticas

públicas precisam ser trabalhadas junto às equipes, instalando-se espaços destinados à

reflexão e à análise crítica sobre o próprio trabalho, e que possam ser continentes aos

problemas cotidianos na relação entre profissionais e usuários dos serviços de saúde. No caso

especial da PNAISH, que prevê uma articulação intersetorial e fortalecimento de processos de

cuidado já existentes, de modo que estes possam contemplar os homens como sujeitos de suas

ações, compreende-se que algumas mudanças são necessárias.

Homens e Acesso aos Serviços de Atenção Básica à Saúde

Com relação à presença de homens no interior dos serviços da atenção básica, Wagner

Figueiredo (2005) elenca uma série de explicações e justificativas que responderiam à pouca

procura desses serviços pelos homens. Para ele, uma primeira consideração diz respeito a uma

característica da identidade masculina, relacionada ao seu processo de socialização. Neste

particular, os homens adotam uma postura de desvalorização do autocuidado e pouca

preocupação com a saúde. Uma segunda consideração relaciona-se à busca, pelos homens, de

outros serviços que apresentam respostas mais objetivas às suas questões de saúde, tais como

hospitais, unidades de urgência e emergência ou farmácias. Tal premissa, parte da ideia de

que nestes lugares o homem seria atendido com mais rapidez, sem tempo de espera e com

exposição e resolução dos seus problemas com maior facilidade.

Outro aspecto considerado por Figueiredo (2005) diz respeito à imagem que o homem

possui dos serviços de atenção básica, encarando estes como espaços feminilizados, seja pela

maior presença das mulheres no seu cotidiano, seja pelo fato de a equipe de profissionais ser

constituída, na maioria das vezes, também por mulheres. Além disso, pode-se citar a

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concentração de atendimentos voltados quase que exclusivamente para as mulheres, sem

atividades e programas que contemplem as especificidades dos homens, bem como a sua

formatação estética (cartazes, murais, quadros de avisos, decoração etc.) que enfatiza

programas de saúde com foco na população feminina. Para este autor, isto acaba fazendo com

que os homens tenham a sensação de que o serviço básico de saúde não constitui um espaço

do qual façam parte.

Romeu Gomes et al (2011), em estudo publicado recentemente, dedicaram-se a

analisar a satisfação de usuários homens de unidades básicas de saúde, de quatro diferentes

estados, no uso destes serviços. Trata-se de um estudo, de certo modo, inédito, tendo em vista

a inexistência de trabalhos no âmbito nacional que se preocupam em analisar a tríade homens-

satisfação-serviços de saúde, segundo revisão bibliográfica dos próprios autores.

Os resultados deste estudo indicam que de modo geral, os homens consideram que um

bom atendimento nos serviços destacados caracteriza-se pela “atenção” e “respeito”

(atendimento atencioso), pelo estabelecimento de diálogo entre profissional e usuário

(atendimento ancorado na comunicação), pela resolubilidade alcançada (atendimento que faz

algo) e pelo menor tempo necessário à efetivação do atendimento (prontidão do atendimento)

(GOMES et al, 2011). Os resultados deste estudo são importantes tendo em vista a

necessidade de se considerar como os usuários compreendem as ações em saúde

desenvolvidas pelos serviços de atenção básica, principalmente, se estes têm conseguido

atender às suas expectativas e necessidades.

Dentre os aspectos negativos relatados pelos homens-usuários entrevistados, citam-se

a necessidade de investimento político que proporcione um maior acesso destes aos serviços

de atenção, bem como questionamentos quanto à qualidade do acesso aos serviços e

acolhimento/resolução de suas demandas. Neste segundo aspecto, estão relacionadas as

queixas quanto à demora e espera nas filas para atendimento e ao intervalo de tempo

compreendido entre a marcação e a resolução do problema apresentado (GOMES et al, 2011),

o que também foi identificado por Figueiredo (2005), como já comentado.

Figueiredo (2005) afirma que há uma “dificuldade de interação entre as necessidades

de saúde da população masculina e a organização das práticas de saúde das unidades de

atenção primária” (p. 106). Uma primeira medida para a transformação deste descompasso

entre demanda e oferta de atendimentos na atenção básica, situa-se no conhecimento das

necessidades de saúde apresentadas pelos homens que acessam estes serviços. Neste caso, é

de particular importância considerar os levantamentos epidemiológicos (mas não apenas

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eles!) com vistas a identificar as principais questões de saúde apresentadas pela população

assistida, auxiliando na definição de ações preventivas e de promoção da saúde.

Além disso, para este autor, especificamente com relação aos homens, existem atitudes

e comportamentos adotados por estes que acabam se constituindo como questões de saúde,

que podem e devem ser trabalhadas no cotidiano das UBS. Neste caso, parte-se da dimensão

relacional do gênero compreendendo, como vimos, a construção social de homens e mulheres.

Vários autores (KORIN, 2001; SABO, 2000 e COURTENAY, 2000) citados por Figueiredo

(2005) indicam que, na construção do gênero, muitos homens acabam assumindo riscos que

interferem nas condições de sua saúde, e dessa forma, adotam comportamentos pouco

saudáveis, os quais estão amplamente relacionados às demandas sociais para assumirem um

modelo hegemônico de masculinidade.

Nesses modelos de masculinidade idealizada estão presentes as noções de

invulnerabilidade e de comportamento de risco – como valores da cultura masculina –

e a ideia de uma sexualidade instintiva e, portanto, incontrolável. Associadas a isso

encontram-se fortalecidas suas dificuldades de verbalizar as próprias necessidades de

saúde, pois falar de seus problemas de saúde pode significar uma possível demonstração de fraqueza, de feminilização perante os outros. Denota-se daí a ideia

de feminilização associada aos cuidados de saúde. (FIGUEIREDO, 2005, p. 107)

Outra recomendação de Figueiredo (2005) diz respeito às mudanças no espaço da

UBS, tendo como plano de fundo a perspectiva de gênero. Diante das queixas acima citadas

pelos homens sobre a percepção dos serviços como feminilizados, aponta-se a necessidade de

que a UBS passe por transformações que possam atender também às demandas trazidas pelos

homens. Tais transformações não se situam necessariamente na inserção de profissionais do

sexo masculino nas equipes ou na criação de serviços de saúde específicos para os homens,

mas na adoção de outra postura entre os profissionais destas equipes, de modo que estes

estejam sensibilizados e disponíveis para acolher as necessidades de saúde apresentadas pelos

homens no cotidiano dos serviços.

Sobre isto, os usuários/interlocutores do estudo de Gomes et al (2011) também fazem

algumas recomendações que poderiam, na sua ótica, minimizar os problemas existentes no

atendimento disponibilizado pelos serviços. Dentre as recomendações podem ser

mencionadas: o aumento da oferta de atendimentos, uma maior atenção por parte dos

profissionais de saúde, facilitação do processo de marcação de consultas e melhor

remuneração dos profissionais para que ofereçam uma assistência com mais qualidade. Além

disso, aparecem como ideias que poderiam melhorar o atendimento específico ao homem e

atraí-los aos serviços: a realização de campanhas e reuniões de esclarecimento sobre cuidados

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à saúde, a separação dos espaços de atendimento para homens, mulheres e crianças, e a

existência de uma assistência multiprofissional especializada. Ainda aparece, com certa

tensão, a ideia de que os atendimentos de homens devem ser realizados por profissionais

também homens, trazendo, contudo duas outras acepções que indicam que mulheres também

podem prestar assistência aos homens, ou mesmo que isto pode acontecer em alguns casos,

excetuando-se aqueles relacionados à exposição de determinadas partes íntimas do corpo

(GOMES et al, 2011).

Figueiredo (2005) argumenta que “a constatação da ausência dos indivíduos do sexo

masculino nas UBS não deve ser pensada exclusivamente como uma falta de responsabilidade

dos homens com sua saúde nem especificamente como uma falha na organização dos modelos

de atenção primária à saúde” (p. 106). Para este autor, é necessário compreender este

problema a partir de uma rede complexa de relações que acaba englobando três dimensões

que interagem entre si:

1) os homens na qualidade de sujeitos confrontados com as diferentes dimensões da

vida; 2) os serviços na maneira como eles se organizam para atender os usuários

considerando suas particularidades; e 3) os vínculos estabelecidos entre os homens e

os serviços (FIGUEIREDO, 2005, p. 106).

Desta forma, situamos que o desenvolvimento de ações preventivas e de promoção à

saúde no contexto da ABS deve estar vinculado às especificidades de cada local, às

potencialidades, características e práticas dos profissionais que compõem as equipes dos

serviços, bem como às demandas apresentadas pelos homens, de modo que haja o crescente

estabelecimento do vínculo entre profissionais e usuários, possibilitando o fortalecimento da

relação homem-saúde.

Além disso, de modo geral, diversos autores (GOMES e NASCIMENTO, 2006;

SCHRAIBER, GOMES e COUTO, 2005) acabam revelando uma grande associação entre a

manutenção de um certo modelo de masculinidade hegemônico e a existência de agravos à

saúde entre os homens. Disto depreende-se que a maior questão a ser considerada no tocante

aos determinantes da saúde da população masculina situa-se em questões culturais e de

gênero, ou, dito de outro modo, são os processos de ser e/ou tornar-se homem que atuam

como principal agravante das condições de saúde deste grupo.

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Números como Dispositivo de Criação de um Sujeito-Alvo das Políticas Públicas

Em relação aos aspectos demográficos, de acordo com levantamento feito pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, a população masculina no

Brasil compreendia um total de 90.671.019 homens, representando 49,2% da população total.

A maior concentração populacional entre os homens situa-se na faixa etária de 10 a 19 anos

(21,3%), seguida das crianças de 0 a 9 anos (20,1%) e dos adultos jovens de 20 a 29 anos

(17,9%). A partir daí há um decréscimo das taxas percentuais de acordo com o

envelhecimento das faixas etárias, sendo os homens com 60 anos ou mais apenas 7,7% da

população (BRASIL, 2009a). Nestes números destacamos aqui a ocorrência deste decréscimo

populacional progressivo na faixa etária que compreende dos 20 aos 59 anos, sendo sobre essa

população que a PNAISH pretende atuar (correspondendo a 27% do total da população

brasileira).

Um perfil epidemiológico de morbimortalidade masculina também foi discutido por

Ruy Laurenti, Maria Helena Prado de Mello Jorge e Sabina Léa Davidson Gotlieb (2005) que

salientam as diferenças, expressas em números, nas características e indicadores de saúde para

homens e mulheres.

Segundo estes autores há uma clara predominância dos indicadores de mortalidade da

população masculina em relação à feminina, o que aponta para uma maior vulnerabilidade

daqueles: em praticamente todas as idades e para a quase totalidade de causas os homens

morrem mais que as mulheres. Além disso, as taxas de esperança de vida ao nascer deles são

inferiores. Laurenti, Prado e Gotlieb (2005) ainda afirmam que houve um considerável

crescimento na diferença de sobrevida das mulheres em relação aos homens, passando de

cinco anos antes da década de 80 para oito anos na década de 2000.

Quando levantadas as principais causas de mortalidade na população masculina na

faixa de 15 a 59 anos, verifica-se que a maior parte (78%) destas situa-se em cinco grupos

principais, sendo o primeiro as causas externas, seguida das doenças do aparelho circulatório,

em terceiro lugar aparecem os tumores, em quarto, as doenças do aparelho digestivo e por

último as doenças do aparelho respiratório. Sobre estes dados, chama a atenção o fato de

ocorrerem modificações na incidência destes fatores com o passar da idade, quando as causas

externas são superadas pelas doenças do aparelho circulatório (a partir dos 45 anos) e pelos

tumores (após os 50 anos) (BRASIL, 2009a).

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Outro dado importante refere-se ao coeficiente de incidência de óbitos na população

masculina em todas as idades, em que se percebe um aumento progressivo de óbitos à medida

que se avança a faixa etária, como mostra o Quadro 1.

15 a 19 20 a 24 25 a 29 30 a 34 35 a 39 40 a 44 45 a 49 50 a 54 55 a 59 Total

Total de óbitos 14935 21496 20486 19818 22475 26845 32383 37130 40514 236082

% 6,33 9,11 8,68 8,39 9,52 11,37 13,72 15,73 17,16 100

Taxa de incidência

por 100 mil

homens

153 246 276 286 347 483 709 1006 1454

Quadro 1. Taxa de Incidência de óbitos por todas as causas, na faixa etária de 15-59 anos, da população

masculina (2005)5.

Dentre as causas externas, as quais são isoladamente as maiores responsáveis pelas

altas taxas de mortalidade na população masculina, encontram-se os acidentes de transporte,

as lesões autoprovocadas voluntariamente e as agressões. As agressões predominam como

principal responsável pela mortalidade masculina na faixa dos 15 a 40 anos. A partir desta

idade são os acidentes de transporte que aparecem em maior quantidade. As causas externas

também respondem por cerca de 80% dos internamentos hospitalares, preponderando a

ocorrência na faixa de 20 a 29 anos (BRASIL, 2009a).

Quanto às neoplasias, os tumores mais frequentes entre os homens acometem os

aparelhos digestivo, respiratório e urinário. Estima-se que dentre estes, os que se originam no

aparelho digestivo aparecem com maior incidência (43,2%), tendo como principais

representantes o câncer de estômago, seguido do câncer de boca e de esôfago (BRASIL,

2009a).

Dentre as neoplasias do sistema urinário, o câncer de próstata aparece como uma das

questões de saúde mais temidas pela população masculina, não apenas pela sua alta

incidência, mas também por aspectos culturais, principalmente, no tocante aos mecanismos

preventivos, o que acaba funcionando como uma barreira para a busca pelo cuidado por parte

dos homens (GOMES et al, 2008).

Também é relevante abordar o câncer de pênis que, embora seja raro, em algumas

regiões brasileiras sua incidência pode ultrapassar o câncer de próstata. Trata-se de uma

neoplasia relacionada a baixas condições socioeconômicas e pouca higiene íntima, que

5 Quadro disponível no texto da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil, 2009a). Não

foram encontradas informações mais recentes, a partir deste quadro, atualizadas pelo Ministério da Saúde (MS).

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merece, portanto, que se trabalhe a partir de processos de educação em saúde e estímulo ao

autocuidado às parcelas mais vulneráveis da população masculina.

Ao final do seu texto Laurenti, Prado e Gotlieb (2005) dão atenção especial a duas

questões de saúde que, na sua visão, merecem ser destacadas no levantamento epidemiológico

referente à saúde do homem. A primeira delas diz respeito à Aids, a qual desde que despontou

como questão de saúde pública esteve associada ao sexo masculino e seus comportamentos de

risco. Para estes autores, esta centralização em uma população específica, com consequente

direcionamento das ações preventivas, acabou por favorecer o aumento da incidência em

outros setores da sociedade, aos quais estas ações não estavam direcionadas. Sendo assim,

torna-se importante considerar as transformações no padrão epidemiológico deste agravo o

qual teve a proporção de casos diminuída entre homossexuais e bissexuais e um aumento

entre os heterossexuais, com a permanência das taxas de incidência entre os homens e

aumento da incidência entre as mulheres, apontando-se a necessidade de considerar tal

questão na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos.

A segunda questão destacada pelos autores supracitados é o alcoolismo, o qual ainda

carece de estudos e levantamentos mais consistentes. A questão do consumo abusivo de

álcool que acaba gerando, como uma das suas principais consequências a dependência e, a

partir dela, uma série de questões mais graves, aparece como problema multifacetado. Como

tal, tem reflexos diversos, tanto nos números de internações hospitalares, referentes a doenças

do aparelho digestivo, como nos casos de saúde mental. Além disso, podem-se citar questões

culturais associadas ao consumo de álcool, muitas vezes, visto como um padrão de

sociabilidade masculina e manutenção de um modelo hegemônico, o que acaba

potencializando episódios de violência de gênero. Neste sentido, aponta-se a necessidade de

lidar com esta questão de maneira a considerar os aspectos culturais e comportamentais

relacionados ao consumo abusivo a partir de um enfoque de gênero, de modo a problematizar

e desconstruir naturalizações existentes, bem como promover um maior autocuidado e

atenção entre os homens.

Sobre a questão do alcoolismo, outro aspecto que merece ser destacado, então, são as

diferenças nos padrões de consumo entre homens e mulheres, ocupando, deste modo, funções

sociais distintas. Em comparação, os homens acabam iniciando o consumo de álcool mais

cedo que as mulheres, apresentam tendência a beber mais e acabam tendo mais prejuízos à

saúde em decorrência deste consumo. No tocante à dependência, em termos numéricos

observa-se uma predominância dos homens (19,5%) em relação às mulheres (6,9%)

(BRASIL, 2009a).

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A expressividade destas informações ajuda-nos a compreender também os efeitos que

as questões de saúde da população masculina têm sobre o sistema único de saúde. Além das

questões sociais e do sofrimento físico, psíquico e familiar inerentes ao adoecimento, há de se

considerar também os impactos econômicos dos internamentos e demais gastos hospitalares,

que acabam exigindo um grande investimento por parte do Estado. Sendo assim, é importante

trabalhar na perspectiva da prevenção e promoção de saúde não apenas para evitar

acometimentos e agravamentos da situação de saúde da população masculina, mas também

para reduzir os custos estatais com demandas que poderiam ser evitadas.

Percorrendo o texto da PNAISH, identificamos um diagnóstico situacional referente a

levantamentos sócio-demográficos e epidemiológicos da população masculina no Brasil.

Trouxemos algumas destas informações aqui para demonstrar de que modo os levantamentos

epidemiológicos, em certa medida, acabam realizando para nós uma espécie de justificativa

para a criação de um sujeito-alvo das políticas públicas ao qual as ações em saúde necessitam

ser direcionadas. Para Medrado et al (2010), o uso retórico de informações como estas “não

apenas criou uma leitura vitimária sobre os homens, mas, antes de tudo, forjou um sujeito

para as políticas públicas”, produzindo-se “o homem que necessita de atenção especial” (p.

64).

Logo, as informações produzidas, na maioria das vezes, ilustradas em números,

acabam funcionando como dispositivos de produção e controle do Estado para construir uma

imagem/protótipo de sujeito alvo que lhe serve à definição de estratégias e mecanismos de

ação. No entanto, o que sabemos é que ao se criar um protótipo ou modelo de sujeito, está se

também correndo o risco de excluir outros sujeitos possíveis. Além de ignorar singularidades,

uma das consequências disto é a pouca relevância dada aos dados referentes a questões de

ordem sociocultural no referido levantamento epidemiológico. Não se verifica, por exemplo,

informações detalhadas sobre determinantes sociais e econômicos a partir da perspectiva de

raça/etnia e gênero, contemplando outras masculinidades.

Neste sentido, os números interagem para construir a imagem de que os homens são

aqueles que têm as maiores taxas de morbimortalidade e paradoxalmente são aqueles que

menos acessam os serviços públicos de saúde. Na nossa leitura, tais taxas funcionam como

uma justificativa para essa ausência dos mesmos nos serviços e, na direção contrária, como

estes procuram menos os serviços e supostamente não cuidam das questões da sua saúde

acabam acometidos em maior intensidade por doenças e óbito.

Não podemos perder de vista, no entanto, que, como salientam Medrado et al (2010),

os modos como são construídos os instrumentos que, por sua vez, viabilizam a produção de

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informações e análises de estatísticas especiais, não se dá de maneira neutra ou imparcial. Na

visão destes autores, as escolhas metodológicas acabam produzindo “um fenômeno

(problema, questão, demanda, necessidade, população) que justifica a necessidade de uma

política sustentada em estratégias de biopoder” (p. 71, grifo próprio dos autores).

Neste sentido, é preciso estar atentos ao uso de estratégias numéricas como

mecanismos de justificação de políticas públicas, assim como a sua presença nos debates

científicos, tendo em vista o grande poder retórico a elas associado, que supõe maior precisão

e objetividade das informações. Até mesmo porque, é preciso compreender, para além do uso

que se faz dos números, como, discursivamente, eles são tomados na legitimação e produção

de realidades e sujeitos (SPINK e MENEGON, 2004).

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CAPÍTULO II

Entre Reflexões Teóricas...

A Produção da Pesquisa a partir de uma Postura Construcionista

Neste capítulo tentaremos fazer uma breve apresentação da perspectiva construcionista

em Psicologia Social, lançando mão, para isto, de interlocutores privilegiados, que nos

auxiliam a compreender melhor seus fundamentos epistemológicos e características

principais. Neste sentido, recorremos a Mary Jane Spink (2004a; 2004b), Kenneth Gergen

(1985), Lupicinio Iñiguez (2003), Tomás Ibañez (2003), M. J. Spink e Rose Mary Frezza

(2004), M. J. Spink e Benedito Medrado (2004), M. J. Spink e Vera Menegon (2004),

Gustavo Castañon (2004) e Conceição Nogueira (2001), como autores que se dedicaram e/ou

tem se dedicado a discutir o Construcionismo Social em movimento, ou seja, tecendo

considerações históricas e epistemológicas que caracterizam esta perspectiva, mas também

fazendo críticas e situando seus limites.

Nosso intuito aqui, cabe destacar, não é apresentar as limitações e/ou potencialidades

de uma perspectiva teórica, embora saibamos o quanto isto é importante, nem tampouco situá-

la com posição de destaque dentre as diversas perspectivas que orientam a pesquisa em

Psicologia Social (e nas ciências humanas e sociais como um todo), mas demarcar de que

bases conceituais estamos partindo para contar a história da pesquisa que nos propomos a

realizar outrora, e que está sendo desenvolvida neste trabalho dissertativo. Trata-se, portanto,

de uma tentativa de ilustrar os princípios que utilizamos para desenvolver nosso estudo e de

que lentes lançamos mão para analisar e discutir as informações que produzimos no processo

da pesquisa.

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Pressupostos Construcionistas

Segundo Spink (2004b), para entender a perspectiva construcionista faz-se necessário

compreender os processos que tornaram a ciência moderna reflexiva. Esta compreensão da

reflexividade em ciência em muito resulta das próprias transformações que a sociedade

passou ao longo dos últimos séculos, processo este marcado pela transição do feudalismo à

modernidade, com a emergência dos Estados-nação e da economia capitalista.

Baseada em Ulrich Beck, Spink (2004b) refere que a Modernidade Tardia (para Beck,

Modernidade Reflexiva) desenvolve-se a partir de três estágios: a Pré-Modernidade,

correspondente à transição do feudalismo à sociedade moderna; a Modernidade Clássica, que

coincide com a sociedade industrial; e a Modernidade Tardia, que coexiste à sociedade de

risco. O que se ressalta nesse processo de desenvolvimento da Modernidade Tardia, é a

mudança no foco do governo das populações: se na Modernidade Clássica há a preocupação

na distribuição de bens e no bem-estar social, na Modernidade Tardia (atualmente) esta

preocupação volta-se ao controle dos riscos; riscos estes produzidos pela própria sociedade de

controle.

Ao mesmo tempo, Spink (2004b), ainda trazendo Beck como interlocutor, afirma que

a Modernidade implica sempre uma ideia de ruptura com a tradição, ainda que esta ruptura

não seja total, já que existem elementos que permanecem e são incorporados pela nova ordem

social. Neste sentido, a Modernidade Reflexiva, na perspectiva de Beck (citado por SPINK,

2004b), gera uma série de desmistificações, dentre as quais se citam: “a desmistificação da

ciência e a desmistificação dos modos de ser na sociedade” (SPINK, 2004b, p. 14). Por sua

vez, a desmistificação da ciência, implica dois importantes questionamentos: das bases do

conhecimento epistemológico e do conhecimento produzido pela ciência.

Esta leitura que Spink faz de Beck é importante para entendermos aqui porque a

discussão sobre a Modernidade nos interessa, ou é relevante ao debate construcionista na

ciência, o que aparece em três características da Modernidade Tardia ou Reflexiva que são

situadas por Beck (SPINK, 2004b): a Globalização, a Individualização e a Reflexividade.

A globalização, para Spink (baseada em GIDDENS, 1998), diz respeito ao

“entrelaçamento de relações sociais e eventos sociais que estão distantes dos contextos

locais”, ou, dito de outra forma, seria “a intersecção da ausência e presença” (2004b, p. 15). O

destaque a este conceito se dá pela aceitação de que a globalização provoca/provocou

mudanças nos relacionamentos interpessoais. A individualização relaciona-se ao processo de

destradicionalização, sendo esta uma das maiores características da Modernidade Tardia. Tal

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destradicionalização é marcada por processos de ruptura nos modos de vinculação e atuação,

principalmente, no plano das instituições da sociedade, tais como a família, a educação e o

trabalho. Por fim, a ideia de reflexividade – que mais nos interessa aqui, pois constitui, como

salienta Spink (2004b, p. 18), “a ponte para falar do Construcionismo” – remete à constante

revisão de práticas e conceitos instituídos, permitindo-nos propor novos conceitos munidos de

outras informações.

A reflexividade, para Spink, abrange duas facetas: por um lado, uma atitude que

possibilita à ciência olhar para si mesma e quebrar algumas hegemonias, e por outro uma

crítica de “fora da ciência” sobre os seus produtos. Para Spink (2004b) a reflexividade põe em

xeque o que Ibañez (1991) chama de “retórica da verdade”, inserindo a perspectiva da ciência

como Prática Social. Nas palavras dessa autora: “por muito tempo tivemos uma ciência

desenvolvida como prática ensimesmada, uma prática que não abria as portas do laboratório à

inspeção pública. (...) Hoje em dia todos esses processos estão abertos à inspeção” (SPINK,

2004b, p. 19).

Realizando uma leitura crítica do Construcionismo Social, Gustavo Castañon (2004)

vai apontá-lo como um movimento autêntico pós-moderno na Psicologia, o que, segundo este

autor, aparta esta disciplina da Ciência Moderna por romper com vários dos seus

fundamentos. Indo além, para ele os pressupostos construcionistas são incompatíveis com a

atividade científica, tendo em vista que não se pode abdicar do sentido moderno atribuído ao

termo “ciência”.

Como resume o autor, a ciência moderna apresenta como pressupostos básicos:

1) A crença de que o objeto existe independentemente da mente do observador, o

Realismo Ontológico; 2) a crença na estabilidade, pelo menos em alguns aspectos, do

objeto que se estuda, o princípio da Regularidade do Objeto; 3) a crença de que

através do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o objeto, o Otimismo

Epistemológico; e, por último e não menos importante, 4) a crença de que podemos

representar adequada e estavelmente o mundo através da linguagem, o

Representacionismo (CASTAÑON, 2004, p. 68). (grifos do próprio autor)

Por sua vez, o paradigma pós-moderno, sob o qual se assenta o Construcionismo

Social, apresenta como aspectos mais gerais o anti-racionalismo, o anti-individualismo e o

anti-universalismo. Caracteriza-se, em resumo, pela total rejeição ao projeto da modernidade

iluminista. Nesta direção, Castañon (2004) vai atribuir como principais referências à

emergência deste paradigma as teses epistemológicas relativistas e pessimistas de Thomas

Kuhn e Paul Feyerabend, o anti-realismo ontológico de Jacques Derrida e o anti-

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representacionismo de Richard Rorty e Ludwig Wittgesnstein, com a ênfase na construção

linguística da realidade.

Talvez consoantes com esta crítica apresentada por Castañon (2004), muitos autores

considerados como construcionistas (como Gergen, por exemplo) preferem nomeá-la como

“movimento” e não ciência construcionista. Assim, tendo feito esta breve apresentação de

conceitos que nos parecem caros ao entendimento e importância da perspectiva

construcionista na ciência, no tópico a seguir nos dedicaremos a apresentar o Construcionismo

Social, a partir de alguns interlocutores privilegiados, e algumas das principais características

que poderiam definir ou aproximar uma identificação à postura construcionista em Psicologia

Social.

A Perspectiva Construcionista

Como destacamos acima, neste trabalho desenvolvemos nossas reflexões a partir da

perspectiva construcionista em Psicologia Social. Ainda que consideremos as várias críticas

formuladas, esta perspectiva nos parece útil no processo de reflexão crítica sobre a produção

de modos de existir, sustentada na “familiarização de estranhos”, ou seja, na naturalização e

padronização de singularidades. Mary Jane Spink (2004b) refere-se ao Construcionismo

Social como um “movimento de contestação da ortodoxia em ciência” (p. 11). Logo, trata-se

de um movimento que visa, sobretudo, problematizar o fazer da ciência, inserindo elementos

que questionam o que usualmente e tradicionalmente se concebe como saber científico,

lançando para isto outro olhar sobre conceitos, métodos e procedimentos de coleta e análise

de dados, exigindo do pesquisador, mais que uma “devoção” metodológica, um

posicionamento crítico sobre o seu próprio fazer.

Segundo Spink (2004b) um dos autores que há mais tempo tem se dedicado à

discussão da perspectiva construcionista é Kenneth Gergen. A este autor é creditado o mérito

de ter publicado o texto “O Movimento do Construcionismo Social na Psicologia Moderna”

(do original em inglês, “The Social Constructionist Movement in Modern Psychology”), no

ano de 1985, o qual é considerando um clássico por ser um dos introdutores da postura

construcionista na Psicologia6. Neste texto, Gergen propõe-se a situar a perspectiva

construcionista, como movimento que instiga a produção científica na Psicologia, trazendo

seus contornos e esclarecendo elementos que favoreceram seu aparecimento.

6 É importante referir também uma publicação anterior de Gergen, no ano de 1973, “Social Psychology as

History”, considerado o marco inicial do Construcionismo Social.

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No texto, Gergen (1985) também faz um exercício que busca situar a perspectiva

construcionista em relação a duas formas de lidar tradicionalmente com a produção do

conhecimento. De um lado cita teóricos empiristas como Locke, Hume e Mills, que partem de

uma visão exogênica do conhecimento, tido como uma representação, uma cópia do mundo.

De outro, lista filósofos e fenomenologistas, como Spinoza, Kant e Niestche, para quem o

conhecimento depende de processos internos do organismo, uma espécie de tendência inata

do ser humano em organizar e processar informações. Gergen (1985) vai afirmar que é

exatamente em meio a estas duas perspectivas que o Construcionismo Social vai emergir, de

modo a questionar e transcender ao tradicional dualismo sujeito-objeto que estas duas visões

trazem, seja encarando o conhecimento localizado no interior ou no meio externo ao ser

humano.

Uma das principais críticas destacadas por Gergen (1985) é à noção de conhecimento

tomado como representação mental. Para este autor, “o conhecimento não é algo que as

pessoas possuem em algum lugar dentro da cabeça, mas sim algo que fazem juntas” (p. 269).

O conhecimento, portanto, se produz nos processos de intercâmbio social. O que está em

jogo, neste caso, é a contestação da tradicional concepção ocidental do conhecimento como

objetivo, individualista e a-histórico.

Spink (2004b) menciona também Tomás Ibañez como um autor que traz importantes

contribuições ao movimento construcionista na Psicologia Social. No seu texto “La

Construccion del Conocimiento desde una Perspectiva Socioconstrucionista”, publicado na

revista da Associação Venezuelana de Psicologia Social – AVEPSO, em 1994, este autor

propõe que a adoção de uma postura construcionista plena exige uma série de desconstruções.

A primeira problematização feita por Ibañez relaciona-se à dicotomia sujeito-objeto, o

que também foi discutido por Gergen, como vimos acima. Segundo Ibañez

el construccionismo disuelve la dicotomia sujeto-objeto afirmando que ninguna de

estas dos entidades existe propiamente com independência de la outra, y que no da

lugar a pensarlas como entidades separadas, cuestionando así el próprio concepto de

objetividad. De hecho, el construccionismo se presenta como uma postura fuertemente

des-reificante, des-naturalizante, y des-esencializante, que radicaliza al máximo tanto

la naturaleza social de nuestro mundo, como La historicidad de nuestras praticas e

nuestra existência (IBAÑEZ, 1994, p. 44)

Neste sentido, sujeito, objeto e conhecimento são vistos como socialmente

construídos, negando uma suposta essência existencial que possa lhes ser atribuída. Para

Ibañez (1994) esse processo de crítica à dicotomia sujeito-objeto envolve quatro pressupostos

básicos da atividade científica: a) ontológicos (não existem objetos naturais; os objetos não

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existem independentemente de nós, assim como nós não existimos independentemente dos

objetos que criamos); b) epistemológicos (não se pode distinguir entre o mundo que

conhecemos e o conhecimento que produzimos sobre o mundo); c) sobre a natureza humana

(o conhecimento é uma prática social, de modo que os objetos e verdades sobre tais objetos

são produzidos socialmente); e, d) metodológicos (adoção de uma postura desreificante,

desessencializadora e desnaturalizante). Tais pressupostos apontados por Ibañez serão mais

bem apresentados a seguir, ainda neste tópico, quando mencionarmos os elementos ou

características que, de certo modo, acabam definindo uma postura construcionista em

Psicologia Social.

Um segundo deslocamento proposto por Ibañez (1994) diz respeito ao que este autor

chama de “retórica da verdade”. A retórica da verdade, para ele, relaciona-se aos processos de

legitimação do conhecimento científico que estão intimamente embasados no pressuposto da

existência de uma verdade absoluta, transcendental (SPINK, 2004b). Neste caso, a perspectiva

construcionista considera que a verdade corresponde à verdade das nossas concepções, das

relações que desenvolvemos e dos acordos sociais e institucionais que fazemos em nosso

cotidiano.

Spink e Freeza (2004) consideram o Construcionismo como decorrente de três

movimentos: a reação à perspectiva representacionista, no âmbito da Filosofia, a

problematização e desconstrução da “retórica da verdade” na Sociologia do Conhecimento, e

a busca de empowerment por grupos socialmente marginalizados, na Política.

Lupicinio Iñiguez (2003), num exercício parecido, lista uma série de antecedentes

históricos, apresentando alguns movimentos intelectuais aos quais a perspectiva

construcionista se associa. Neste sentido, da parte da Sociologia cita o Interacionalismo

Simbólico de Mead, a Etnometodologia de Garfinkel, e o notável trabalho de Peter Berger e

Thomas Luckman, “A Construção Social da Realidade”. No interior da Psicologia, este autor

destaca o trabalho de Gergen (A Psicologia Social como História, de 1973), além de outras

produções que se situam no contexto do que vem a considerar como “crise da Psicologia

Social”. Castañon (2004), baseado em Henderikus Stam (1990) também menciona, como

influências da perspectiva construcionista, o feminismo, o pós-estruturalismo e alguns

trabalhos alinhados à Filosofia da Ciência pós-fundacionalista e pós-positivista, além das

contribuições de autores pós-modernos, já citados, como Derrida, Rorty e Wittgenstein.

Dentre os trabalhos atuais a partir da perspectiva construcionista, os quais são

diversos, Iñiguez (2003) cita vários autores que tem apresentado produções significativas,

com destaque aos Estudos Sociais da Ciência, que tem autores como Bruno Latour, Steve

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Woolgan e Karen Knorr-Cetina como referência; e a perspectiva da Psicologia Discursiva,

representada por Michael Billig, Jonathan Potter e Margareth Wetherell. A estes nomes

Castañon (2004) também adiciona os de Rom Harré e John Shotter como alguns dos mais

significativos representantes da perspectiva construcionista na atualidade.

Castañon (2004) afirma que há uma dificuldade de definir o que seria o

“Construcionismo Social”, sendo este muitas vezes encarado como um movimento, uma

posição, uma postura, uma teoria e/ou uma orientação teórica. Este autor, baseado em alguns

psicólogos, diz tratar-se de uma espécie de rótulo que reúne uma série de posições nem

sempre consonantes. Iñiguez (2003), seguindo a mesma direção, menciona que nunca se teve

verdadeiramente esclarecido o que é/seria e em que consiste/consistiria isto que se chama

“Construcionismo”. Para ele, é preferível adotar a noção de “perspectiva construcionista” ao

invés do termo “construcionismo” propriamente dito, tendo em vista os efeitos discursivos

que o sufixo “ismo” poderia provocar, fazendo com que esta vertente epistemológica chegue a

ser definida em termos de uma escola do pensamento ou mesmo uma teoria. Neste sentido,

adotar a nomeação “perspectiva construcionista” parece mais adequado, tendo em vista,

inclusive, a multiplicidade de matrizes e facetas apresentadas pelos seus adeptos.

De fato, como indicam vários autores, inclusive o próprio Iñiguez, não há uma única

definição de Construcionismo Social, nem mesmo uma demarcação específica do que vem a

ser um construcionista. Como diz Iñiguez, citando Vivian Burr (1997), “no se puede afirmar

que haya ningún elemento sine qua non que determine la adscripción de um autor o autora al

construccionismo social” (p. 3).

Apesar disso, parece ser consenso que há uma característica que se pode considerar

como principal da perspectiva construcionista: o constante questionamento das verdades

convencionalmente aceitas, negando sua obviedade, naturalidade e evidência (IÑIGUEZ,

2003). Do mesmo modo, M. J. Spink (2004b), baseada em Ian Hacking (1999) menciona

aquilo que parece ser a premissa fundamental da pesquisa construcionista: “o objetivo

subjacente de libertação daquilo que se tornou instituído ou essencializado” (p. 25). A partir

desta premissa, vários elementos são elencados por Iñiguez (2003), como sendo possíveis

definidores de uma postura construcionista em Psicologia Social, os quais estão situados a

seguir:

a) Antiessencialismo: A perspectiva construcionista parte do pressuposto de que as

pessoas e o mundo social resultam de processos sociais específicos, não possuindo,

portanto, uma natureza pré-determinada. Do mesmo modo, os objetos não são

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naturais, não são dados; as pessoas os produzem em suas relações cotidianas com

outras pessoas e com o próprio mundo. Disto implica uma coisa importante, já citada

acima: os objetos dependem das pessoas para existirem, assim como as pessoas são

também dependentes deles.

b) Relativismo/Anti-Realismo: Para o construcionismo, a realidade é definida em

termos de versões construídas coletivamente, segundo pressupostos históricos e

culturais, e varia, portanto, de sociedade para sociedade. Neste caso, nega-se a ideia do

conhecimento da realidade via percepção direta, ou representacionista. Como diz

Iñiguez (2003, p. 4), citando Rorty (1979), “la ‘realidad’ no existe con independência

del conocimiento que producimos sobre ella o con cualquier descripción que hagamos

de ella”.

c) Questionamento das Verdades: Uma postura construcionista exige um contínuo

exercício de problematização e questionamento daquilo que usualmente se concebe

como “verdade”. Tal exercício ancora-se na ideia de que o conhecimento se origina a

partir da observação direta e imparcial da realidade, sendo, então, a perspectiva

construcionista um convite à autorreflexão, à medida que põe em dúvida o nosso olhar

sobre o mundo e sobre nós mesmos.

d) Determinação Cultural e Histórica do Conhecimento: Aqui parte-se do princípio

de que toda compreensão do mundo ou do social, é social e culturalmente dependente.

Disto implica que diferentes grupos sociais tecem compreensões diferentes do seu

próprio meio social, tendo em vista que as formas de produção de conhecimento

variam segundo processos específicos de cada cultura e de acordo com momentos

históricos distintos.

e) O Papel da Linguagem: Como vimos acima, na perspectiva construcionista a

realidade é construída socialmente. Por sua vez, os elementos que a constroem são

discursivos. Disto depreende-se um papel preponderante da linguagem no movimento

construcionista: “el lenguaje no es unicamente expresivo o referencial sino una forma

de acción mediante la cual construímos el mundo” (IÑIGUEZ, 2003, p. 5). A

linguagem possui, portanto, uma capacidade performativa, o que implica que nossas

compreensões sobre o mundo não se originam da realidade objetiva, mas sim das

nossas interações cotidianas.

f) O Conhecimento como Produção Social: Para o Construcionismo o conhecimento é

tido como empreendimento coletivo que se produz nas práticas cotidianas. É

importante destacar a influencia recíproca existente entre conhecimento e prática

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social, tendo em vista que, se por um lado o conhecimento sobre o mundo se produz

no contexto das práticas sociais, por outro, as práticas sociais se mantém ou são

modificadas segundo estes conhecimentos produzidos na dinâmica interativa.

g) A Noção de “Construção Social”: Este último elemento remete aos demais citados

acima, e aponta para o risco de que a própria noção de “construção social” seja tomada

de maneira reificante. Considerar a noção de “construção social” implica em

compreender que a dinâmica construtiva é constante, ou seja, o que é socialmente

construído não apenas se constrói mediante processos determinados, mas se mantém

mediante a contínua atuação destes processos.

Iñiguez (2003), em seu texto, ainda destaca a importância de duas características

relacionadas às formas de se entender o ser humano que são associadas ao Construcionismo,

na manutenção da postura crítica tão valorizada pelo movimento: a historicidade do

conhecimento e o caráter interpretativo do ser humano.

Com relação a este primeiro aspecto Iñiguez (2003) destaca a necessidade de

considerar que os fenômenos e processos psicossociais são marcados pela historicidade, isto

significa que um fenômeno social, para ser compreendido, precisa que se considerem suas

condições de produção. Como implicação maior desta prerrogativa, tem-se que a realidade,

como socialmente construída, possui um caráter processual, ou seja, qualquer fenômeno é

resultante das práticas e relações sociais que historicamente o constituem.

O segundo aspecto ressaltado por Iñiguez (2003) refere-se à capacidade interpretativa

do ser humano. Na compreensão deste autor, é preciso levar em conta que nenhum processo

social nem mesmo o sujeito podem se constituir sem interpretação, uma vez que o nosso

conhecimento do mundo e de nós mesmos é perpassado pela interpretação que fazemos,

mediante os determinantes linguísticos e socioculturais em que nos desenvolvemos. Este

aspecto é importante para entendermos que, como diz Iñiguez (2003), citando Gadamer, as

pessoas não possuem outra forma de viver/ser no mundo a não ser a partir da produção de

sentidos.

Ainda na discussão sobre elementos que identificam uma postura construcionista,

Castañon (2004), também acaba elencando algumas características, de ordem epistemológica

e ontológica, que segundo ele podem ser atribuídas. Na verdade, tais características referem-

se aos mesmos pressupostos situados por Iñiguez (2003), mas são nomeadas e apresentadas

deveras de maneira diferente. Segundo Castañon (2004), são características da perspectiva

construcionista: o construtivismo social, o anti-realismo, o pessimismo epistemológico, o

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anti-fundacionismo, a irregularidade do objeto, o anti-representacionismo, a fragmentação, a

não-neutralidade, a retroalimentação teórica, o anti-metodologismo e o pragmatismo.

Por sua vez, Conceição Nogueira (2001), em artigo que aborda as contribuições do

Construcionismo à discussão da perspectiva de gênero na Psicologia, afirma, baseada em

Gergen (1994), que uma ciência construcionista social tem como pressupostos fundamentais:

a) a manutenção de uma postura crítica frente ao conhecimento tido como “verdadeiro”; b)

considerar que a compreensão do mundo se realiza mediante artefatos construídos

socialmente, segundo condições históricas e culturais específicas; c) compreender a

processualidade da construção social, em contraponto à validade objetiva das descrições do

mundo e de si; d) ter em conta que a linguagem tem seu significado derivado dos modos

como esta funciona nas interações sociais, e; e) avaliar as formas discursivas em determinado

meio social implica em avaliar seus padrões de vida cultural.

Nogueira (2004), nos pressupostos acima mencionados, enfatiza o importante papel

que Gergen (1985) confere à linguagem, sendo esta vista como uma precondição para o

pensamento. Para ele “as linguagens são essencialmente atividades compartilhadas” (p. 8), e

os estudos realizados sob orientação da perspectiva construcionista, em geral, demonstram

particular preocupação com “as formas de linguagem que permeiam a sociedade, os meios

pelos quais são negociadas, e suas implicações para outras gamas de atividades sociais” (p. 9).

Nestes termos, como diz Gergen (1985), uma pesquisa construcionista social tem a

preocupação de compreender os processos pelos quais as pessoas descrevem, tecem

explicações e dão conta do mundo em que vivem, e de si mesmas. Logo, volta-se

principalmente para as tramas discursivas que as pessoas constroem e se inserem em seu

cotidiano de modo a construir compreensões diversas sobre si e sobre o seu mundo. Assim, as

pesquisas construcionistas conferem especial atenção à linguagem, em específico, à

linguagem em uso, com interesse particular na produção de sentidos.

Trabalhando com a Produção de Sentidos: O Estudo das Práticas Discursivas em seus

Usos e Efeitos

O estudo que apresentamos nesta dissertação se alinha às discussões que vem

orientando as pesquisas sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano7,

definida por Spink (2004a), a partir de uma perspectiva construcionista em Psicologia Social.

7 Para um maior aprofundamento nesta discussão sugerimos a leitura do livro “Práticas Discursivas e Produção

de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas”, organizado por Mary Jane Spink (2004a).

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Os estudos sobre práticas discursivas têm como principal objetivo compreender as redes de

significados em que os sujeitos estão inseridos, visando identificar os processos que estão

vinculados à produção de sentidos. Assim, tal perspectiva envolve em sua análise as maneiras

a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em suas relações cotidianas

(SPINK, 2004a). Neste caso, optamos por este referencial por permitir momentos de

resignificações, de rupturas, de produção de sentidos, que forneçam subsídios para a

compreensão de determinados aspectos que compõem o objeto do qual buscamos nos

aproximar.

Conforme já situado, a perspectiva das Práticas Discursivas fundamenta-se em um

referencial construcionista (SPINK e MENEGON, 2004; SPINK e MEDRADO, 2004). Como

vimos nos tópicos anteriores deste capítulo, a perspectiva construcionista contrapõe-se às

epistemologias objetivistas, tratando o conhecimento como produto de processos históricos e

socioculturais específicos. A proposta construcionista também se apresenta contrária às

posturas essencialistas, criticando metodologias fundamentalistas e encarando a construção do

conhecimento a partir de processos singulares de produção de sentidos (GERGEN, 2007).

Assim sendo, este estudo, inspirado na perspectiva construcionista, situa-se especificamente

nas contribuições de Spink (2000; 2004a; 2007) e de diversos outros interlocutores

(ARENDT, 2008; MENEGON, 2008; MEDRADO & MÉLLO, 2008; SPINK, P., 2008), que

investem no cotidiano, como lócus privilegiado de produção de conhecimentos8.

Na abordagem teórico-epistemológica das práticas discursivas, a investigação focaliza,

sobretudo, os processos pelos quais as pessoas descrevem e explicam o mundo em que vivem

e a si mesmas (SPINK e MEDRADO, 2004). Deste modo, os sentidos e significados

atribuídos a certos fenômenos não são considerados ideias isoladas presentes na cabeça dos

sujeitos, mas sim, algo construído e elaborado através da relação com os outros e com o meio

social em que o sujeito está inserido.

Nesta perspectiva, parte-se do pressuposto de que “a produção de sentidos não é uma

atividade cognitiva intra-individual, nem pura e simples reprodução de modelos

predeterminados” (SPINK e MEDRADO, 2004, p.42), mas sim uma construção social, visto

que os diferentes sujeitos compartilham pensamentos e visões de mundo ao se posicionarem

nas diversas relações cotidianas. O sentido seria então “um empreendimento coletivo, mais

precisamente interativo, por meio do qual as pessoas constroem os termos a partir dos quais

compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta” (p. 41).

8 No próximo capítulo desta dissertação nos dedicaremos melhor a discutir e apresentar o modo de fazer pesquisa

a que nos referimos como “pesquisa no cotidiano”, conforme definido por Spink (2007).

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Como afirmam Medrado e Méllo (2008), a partir desta discussão, para compreender

esses movimentos de posicionamento e produção cotidianos, “torna-se imprescindível

compreender os recursos discursivos e não-discursivos que instauram, inauguram, constroem

e mantêm uma prática” (p. 79). Neste sentido, é sobre a linguagem, mais especificamente a

linguagem em uso, que se repousam as atenções do pesquisador que se situa neste modo de

fazer pesquisa. Logo, o foco está na “linguagem como prática social, historicamente datada e

contextualizada, que possibilita a circulação de conteúdos, produz efeitos e gera

posicionamentos. Nosso foco é na linguagem em uso, ou seja, nas práticas discursivas”

(SPINK, 2004a).

Tal premissa inevitavelmente remete a Bakhtin (1997), quando menciona que a

finalidade maior da língua está na sua realização no social, qual seja a sua função

comunicativa, interativa, relacional. Ora, é na linguagem em uso, nos movimentos de

palavras, gestos, atitudes, que se processam as construções de significados e que são possíveis

os entrelaçamentos das inúmeras vozes que constituem e estruturam o que chamamos de

social.

A partir disso, Spink e Medrado (2004) mencionam três dimensões básicas para o

trabalho a partir das Práticas Discursivas: a linguagem, o tempo/história e a pessoa. Sobre a

linguagem, como vimos, a noção adotada pelos autores se baseia na linguagem em uso,

compreendendo-a como prática social. Nesta perspectiva há uma ênfase na interface entre os

aspectos performáticos da linguagem e suas condições de produção.

Na visão de Spink e Medrado (2004), faz-se necessário, primeiramente, distinguir as

noções de discurso e de práticas discursivas, tendo em vista as raízes epistemológicas e os

efeitos semânticos destas expressões. O discurso remete, para estes autores, baseados em

Bronwyn Davies e Rom Harré (1990), ao uso institucionalizado da linguagem, segundo

regularidades linguísticas e permanências temporais. Já a noção de práticas discursivas

envolve os momentos ativos de uso da linguagem, que consideram a persistência tanto da

ordem quanto da diversidade. No trabalho com as práticas discursivas é importante considerar

três elementos constitutivos: a dinâmica, as formas e os conteúdos.

A dinâmica relaciona-se aos enunciados, os quais são orientados por vozes. Os

enunciados são definidos por Bakhtin (apud SPINK e MEDRADO, 2004), como expressões

produzidas em ações situadas que adquirem seu caráter social quando associados às vozes.

Por sua vez, as vozes referem-se aos diálogos e negociações que se articulam na produção dos

enunciados, compreendendo os interlocutores que se presentificam num diálogo. Assim, na

abordagem Bakhtiniana, as noções de enunciados e vozes remetem ao processo de

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interanimação dialógica, característico na dinâmica de uma conversação. Isto implica, para

Bakhtin, que a linguagem é, por assim dizer, uma prática social: “a pessoa não existe

isoladamente, pois os sentidos são construídos quando duas ou mais vozes se confrontam”

(SPINK e MEDRADO, 2004, p. 46).

Spink e Medrado (2004) ainda destacam que é necessário compreender que a

linguagem, como ação, produz consequências. Estes autores ressaltam que quando falamos

estamos inevitavelmente realizando ações, produzindo um jogo de posicionamentos com os

nossos interlocutores. Esses posicionamentos, ao mesmo tempo, não se processam a partir de

um nada. A produção de um enunciado implica na utilização de um sistema linguístico e de

enunciações pré-existente; em outras palavras, os sentidos, produzidos nessa constante

interação dialógica, resultam dos usos que fazemos dos repertórios interpretativos à nossa

disposição.

Estes autores definem os repertórios interpretativos como as unidades de construção

das práticas discursivas, e consistem no “conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e

figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo

por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais

específicos” (p. 47). Situados em Jonathan Potter e Margareth Wetherell, Spink e Medrado

(2004), compreendem que é por meio dos repertórios interpretativos, como dispositivos

linguísticos, que construímos versões das nossas ações e dos fenômenos que nos rodeiam.

A noção de repertórios interpretativos é de particular importância para a pesquisa a

partir das práticas discursivas, tendo em vista que por meio deles se pode vislumbrar tanto a

variabilidade das produções linguísticas humanas, assim como seus pontos de estabilidade.

Logo, a adoção deste conceito possibilita ir mais além do regular, consensual e habitual, para

também considerar a polissemia das produções discursivas. Na pesquisa que apresentamos

nesta dissertação isto aparece de maneira essencial, tendo em vista o nosso intuito em

visibilizar as diferentes formas pelas quais o cuidado à saúde do homem é produzido no

cotidiano de um serviço de saúde de base territorial, a partir de vozes (interlocutores)

distintas, situadas e posicionadas em diferentes tramas/redes discursivas.

No trabalho com as práticas discursivas, e em específico com os repertórios

interpretativos, a questão do tempo, já mencionada acima, merece ser destacada, tendo em

conta que tais repertórios possuem inscrições históricas em variados contextos socioculturais.

No texto “A Produção de Sentidos na Perspectiva da Linguagem em Ação”, Spink (2004b)

situa, de maneira breve, a importância de se trabalhar o contexto discursivo a partir de três

tempos históricos: o tempo longo, que diz respeito à longa história de construção de

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repertórios linguísticos no meio social, destacando-se as suas condições de permanência e

reativação nas produções culturais da humanidade; o tempo vivido, que remete ao tempo de

socialização, ou de maneira mais específica, aos diferentes contextos de socialização (escola,

família etc.) em que nos inserimos e aos quais somos oportunizados, ao longo de nossa vida, a

acessar determinados repertórios linguísticos, e; o tempo curto, que seria o tempo do “aqui e

agora” (p. 47), o tempo das interações, o tempo em que a interanimação dialógica acontece e

conduz à produção de sentidos.

Para Spink, é necessário considerar estes três tempos para compreender os modos

como os sentidos circulam no cotidiano. Dessa forma, a pesquisa que focaliza a produção de

sentidos deve ser encarada como um empreendimento sócio-histórico, em que a compreensão

de determinado fenômeno social exige uma aproximação especial do pesquisador ao contexto

sociocultural em que este se inscreve.

Outra dimensão mencionada e destacada por Spink e Medrado (2004), além da

linguagem e do tempo, é a noção de pessoa. Estes autores preferem adotar este termo em

contraposição às noções, mais amplamente assimiladas pela ciência moderna, de sujeito e

indivíduo. Isto porque há um explícito posicionamento, atribuído ao próprio referencial

construcionista, em relação à manutenção de velhas dicotomias a que estas noções estariam

associadas, tais como sujeito-objeto e indivíduo-sociedade. Assim, o foco sobre a noção de

pessoa tem o objetivo de enfatizar o caráter dialógico da produção humana. Em tal

posicionamento, não se trata de negar as noções de sujeito e/ou indivíduo tão adotadas pela

pesquisa psicológica, mas de ressignificá-las a partir da perspectiva construcionista.

Situamos, assim, as bases de que partimos para o processo de construção do

conhecimento que aqui empreendemos. Considerando as discussões epistemológicas e

teóricas apresentadas, nossa ênfase situa-se no próprio fazer pesquisa a partir da perspectiva

construcionista e com destaque às práticas discursivas produzidas por diferentes interlocutores

em seus movimentos cotidianos. Logo, ao adotarmos uma postura em pesquisa a partir destas

reflexões destacamos os jogos de posicionamento que desenvolvemos no nosso trabalho.

Isto implica em uma atitude crítica frente àquilo que produzimos. Lançamos mão de

um conjunto de aportes teóricos que sinalizam a construção de um modo de fazer ciência que

vem a romper com mitos e fetiches existentes no “mundo da ciência tradicional”, e apontam a

necessidade de refletir de que lugar o pesquisador precisa advir para efetivar compreensões

sobre o seu objeto de estudo. Ao nos posicionarmos dessa maneira estamos destacando o jogo

de (in)visibilidades que produzimos nos nossos movimentos cotidianos de aproximação e

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distanciamento do objeto de estudo que focalizamos, a saber, a produção de cuidados à saúde

do homem.

Feitas estas considerações, no capítulo a seguir começaremos a detalhar de maneira

mais específica os modos de produção do objeto do qual fomos nos aproximando e

construindo nos últimos dois anos. Assim, nas páginas a seguir, tentaremos aprofundar

melhor nossos posicionamentos éticos-políticos sobre o fazer pesquisa e detalhar os

caminhos, as trajetórias, os tensionamentos e as questões que permearam a condução do nosso

estudo.

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CAPÍTULO III

Produzindo Caminhos: Trajetos, Linhas e Circuitos no Cotidiano de um

Serviço Público da Atenção Básica à Saúde

Neste capítulo pretendemos apresentar o processo de produção das informações nesta

pesquisa, processo este marcado por idas e vindas, caminhos e descaminhos, progressos e

retrocessos, recessos e retrogressos... Enfim, uma panacéia de trajetos e conexões que foram

acontecendo e se delineando durante o desenvolvimento do estudo proposto. Objetivamos

descrever de que modo a pesquisa foi sendo realizada à medida que fomos nos aproximando

do objeto – ainda que incerto a princípio – destacando os diversos momentos e situações que

foram vivenciados e que traçam, de uma maneira não-linear, uma história, a qual estamos

tentando contar ao longo desta dissertação.

Entre Objetos e Questões...

Aqui gostaria de retomar um ponto-chave da apresentação da minha pesquisa: o

surgimento de uma questão. Ora, penso talvez que isto ainda não tenha ficado claro, até

mesmo para mim, porque quase que como o movimento das marés as idéias vem e vão, vão e

vem, num indo e vindo infinito (como diz a música!). Digo isto, não por não possuir uma

questão que me oriente ou me mobilize a pesquisar, que me desperte a curiosidade de saber

sobre, que funde o desejo de compreender e mesmo de produzir compreensões. Não! Refiro-

me à dificuldade de circunscrever, de esgotar em apenas duas ou três linhas, em palavras

minimamente inteligíveis, de traduzir em uma única sentença um emaranhado de reflexões,

posicionamentos e questionamentos que não cessam em surgir. E estas vêm de todos os

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lugares, numa espécie de rede heterogênea que lança, dentre os seus múltiplos vetores e

conexões, possibilidades infinitas de apreensões e, ao mesmo tempo, de compreensões sobre

este tal objeto.

Por que este “tal objeto”? Porque ele não existe de fato. Aliás, ele existe em sua

condição de possibilidade de existir. Existe enquanto ideia, mas não enquanto materialização.

Ou, por outro lado, penso que sua materialização não passa de uma ideia. Trago essa confusa

reflexão para tentar problematizar a minha própria idéia de objeto, o qual começo a pensar:

não seria este objeto apenas uma falácia? Porque não existe “o objeto”, mas uma

multiplicidade de objetos possíveis. Que não são, de modo algum, objetáveis. Não se pode

objetar o objeto. Não se pode estatizá-lo, apreendê-lo de fato, porque ele não se estabiliza,

pelo contrário, se modifica à medida que nos aproximamos dele. Prefiro, então, falar aqui de

“objeto potencial” e/ou “objeto possível”, porque é exatamente isto que este tal objeto vem a

ser: uma potencialidade e/ou uma possibilidade. Deste modo, neste tópico escolhi descrever

como parti de uma idéia inicial e toda a conjuntura que a sustentava (objeto potencial) a uma

produção teórico-prática sobre algo que, no presente, minimamente se estabiliza (objeto

possível).

Um exemplo: de início, havia uma grande questão (a “gestão em saúde”) que esteve

presente como uma grande incógnita. Na certa era isto que eu queria estudar, ou de fato,

discursivamente, para mim, isto parecia estar bastante claro, embora interpretações múltiplas

pudessem surgir dessa definição, que era mais uma nomeação que uma unidade de

significação.

Deste modo, já saliento, como uma lição, a importância dos descaminhos na trajetória

não-linear da produção científica. Uma dança metodológica! (como bem nos define Edna

Granja, 2008) Talvez seja isso mesmo que possa parecer. Penso, no entanto, que devo ser um

mau dançarino, ou que esteja desempenhando o meu número sem ter ainda desenvolvido as

habilidades necessárias para executar efetivamente as técnicas e movimentos corporais

necessários.

Entre compassos, ritmos e acordes, fui conduzindo um ensaio, e foi interessante

observar como as coisas iam se compondo. De fato, acho que é bem isto: dissertar é como

dançar! Acho que esta é uma boa metáfora, principalmente se estamos jogando com a idéia do

tempo de cada um, ou do estilo que cada pessoa possui de dar conta de suas apresentações. A

pesquisa é um ensaio, ensaiamos durante muito tempo para apresentar um produto final. A

platéia que nos prestigia são os convidados que nós mesmos convocamos a apreciar nossos

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ensaios! Não esquecendo, é claro, daqueles que vão nos prestigiar sem que saibamos de sua

presença ali.

De tal modo, fui ensaiando. Entre questionamentos que iam surgindo tentava definir

em que meios de possibilidades poderia conduzir um estudo que me favorecesse uma

aproximação ao tema (e deste ao objeto possível) que havia escolhido trabalhar. Em certo

momento visualizava apenas palavras-chave, termos e expressões que funcionavam como

pistas para definir os demais elementos necessários à investigação científica. De certo modo

os objetivos começaram a ser traçados, mas materializá-los ainda se apresentava um tanto

incógnito.

Foi necessário então, um processo de “afinação”. Não refinação! Afinação mesmo! Na

inflexão utilizada pelos músicos. O processo pelo qual eles estabelecem minimamente uma

sintonia melódica entre os instrumentos tocados e as notas ecoadas, de modo a constituir um

tom harmônico, mesmo que de modo momentâneo. Então, foi bem isso! Era necessário afinar

o potencial objeto possível. E isto se deu de maneira paulatina em meio a eventos cotidianos e

corriqueiros, e também dentre aqueles raros e imediatos. Eventos povoados por locutores e

interlocutores, em seus respectivos textos, contextos e intertextos.

Aliás, no processo de produção científica é preciso dar voz aos diversos interlocutores

que participam e que não cessam em se fazer presentes nas nossas produções.

Particularmente, para circunscrever a questão (e o tal objeto) que apresento aqui neste

trabalho, cito as inúmeras contribuições de Benedito Medrado, meu orientador. Assim como

de Mary Jane Spink e Aécio Matos, que participaram do exame de qualificação do projeto

outrora apresentado, os quais de maneira bastante essencial me concederam novos olhares

sobre aquilo que pretendia investigar (a saúde pública, a produção de cuidados, os homens).

Como não citar também a importância do contato com Mariana Azevedo, Fernanda

Simião, Jéssica Noca, Sirley Vieira e Jorge Lyra na pesquisa “Homens nos Serviços Públicos

de Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais”, com os quais tive

momentos riquíssimos de aprendizado, e, ao mesmo tempo, que favoreceram minha

aproximação na discussão dos homens no campo da saúde pública? Como um divisor de

águas, não há como não mencionar a minha inserção no GEMA, o que não apenas me levou a

ter outra visão de homem e de mundo, de como lidar com a diversidade, bem como com as

adversidades, mas também me apresentou a pessoas únicas que muito me auxiliaram na

aproximação do meu objeto. Como não lembrar, por exemplo, de Márcio Valente, na sua

célebre pergunta: “O que você está chamando de cuidado?”. E eu vi ali como estava

encarando este importante conceito a partir de uma postura, talvez, banalizadora. Ou mesmo

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de Ludmila Menezes, quando me pergunta: “Onde está o problema da sua questão?” Além de

muitas outras contribuições imensuráveis que poderiam ser inclusas aqui, mas que não

precisam ser situadas neste momento. Penso eu, escolha minha!

Daí uma coisa importante a se dizer aqui. Neste trabalho, compartilho das idéias de

Dona Haraway (1995), quando nos fala do conhecimento situado. De fato, fugimos de uma

noção de ciência totalizadora para inscrever a nossa prática naquilo que produzimos. Ao dizer

isso, estou mostrando que não pretendo mostrar uma suposta neutralidade naquilo que afirmo,

pelo contrário, a minha prática científica está povoada pelos meus desejos, pelas minhas

inquietações, e estou-me presentificando nela e a partir dela.

O Cotidiano da Pesquisa e a Pesquisa no Cotidiano: Aportes iniciais

Peter Spink (2008), no início do texto “O pesquisador conversador cotidiano”, lança o

seguinte questionamento: O que é o cotidiano? Em resposta a isto, a princípio, o próprio autor

argumenta que todos vivem no cotidiano: independente de quem seja ou onde esteja, toda e

qualquer pessoa vivencia uma série específica de situações e eventos corriqueiros que marcam

e são marcados por micro-lugares.

A perspectiva de micro-lugares diz respeito a uma tentativa de situar ao mesmo tempo

a fluidez e transitoriedade que marcam o cotidiano, bem como a materialidade contextual que

referencia a experiência. Dito de outro modo, os micro-lugares compõem elementos

constitutivos de um cotidiano que se estrutura a partir de sua própria imaterialidade. Significa

dizer que cada acontecimento produz e é produzido a partir de processos sociais singulares e

específicos que se sobrepõem. Como afirma Spink, P. (2008, p. 71) “os micro lugares, tal

como os lugares, somos nós; somos nós que os construímos e continuamos fazendo numa

tarefa coletiva permanente e sem fim”.

Dito isso, como Spink, P. (2008), compreendo o cotidiano como sendo o lugar em que

as coisas acontecem. O lugar privilegiado para a vida se desenrolar, para as trocas sociais se

desenvolverem. Como diz Ecléa Bosi (2003, p. 10, apud GUSMÃO e JOBIM E SOUZA,

2008) “é do cotidiano que brota a magia, a brincadeira que vai transformando uma coisa em

outra... Abra os olhos e apure os ouvidos. É só prestar atenção” (p. 26). O cotidiano

compreende o fazer coletivo que se materializa nos movimentos da existência que são

comuns, corriqueiros, que se repetem no dia-a-dia, mantendo-se estáveis e explícitos, e, ao

mesmo tempo, que passam despercebidos.

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Seguindo este decalque, a pesquisa no cotidiano compreenderia certo modo de fazer

ciência que valoriza as vicissitudes da vida social, investindo nos modos de co-produção da

realidade por atores mutuamente implicados. Pesquisar no cotidiano possibilita a

compreensão de mecanismos diversos de organização do social que não podem ser acessíveis

pelos modos tradicionais, objetivos, de fazer ciência. Até mesmo porque, como sinaliza Vera

Menegon (2008, p.32) citando Law (1999) “o cotidiano constitui-se a partir de re-descrições

de situações relacionais que ocorrem no entrelaçamento de materialidades e socialidades”.

Assim, falar em cotidiano abrange as inúmeras materialidades e socialidades que o

compõem, e ao mesmo tempo, as teias de relacionamentos entre elas existentes. Portanto, o

cotidiano é constituído por pessoas, objetos, máquinas, ilustrações, trocas, conversas,

negociações entre outros inúmeros elementos que forjam o plano de partilha do dia-a-dia.

Na discussão sobre a pesquisa no cotidiano, o destaque dado ao “no” é, de fato,

intencional e pretende marcar a presença do pesquisador no cotidiano em que ele desenvolve

seu estudo, afinal ele é (co)partícipe deste processo. Como explica Mary Jane Spink (2007, p.

07) “fazemos parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartilhamos de

normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada dessas

interações” (p. 07).

Baseada em Garfinkel (1967/1987), M. J. Spink defende que, ao pesquisar no

cotidiano, nos posicionamos como membros da comunidade discursiva. Ou seja, nos

tornamos capazes de interpretar as práticas que se desenrolam nos espaços e lugares em que

acontece a pesquisa. Essa compreensão compartilhada repousa na noção de indexicalidade.

Estamos aptos a entender “os indícios de sentido”, frequentemente incompletos, que adquirem

sua plena capacidade na comunicação – porque somos capazes de considerar a parte (a

enunciação e a ação) em relação ao todo (o contexto em que se dá a ação/interação).

A Entrada em Campo (ou...) a Entrada do Campo?

Inicio o tópico com este trocadilho na intenção de balizar um pouco aquilo que

convencionalmente conhecemos por processo de “coleta de dados”. Tradicionalmente, a

ciência moderna postula um distanciamento do pesquisador do seu objeto de pesquisa,

mantendo com o “suposto campo” uma relação de subserviência, apenas coletando neste

campo o material necessário, a priori, disponível por ali, para responder a sua questão, ou

para aproximar-se do objeto desejado.

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Na postura que assumimos nesta pesquisa, acreditamos que esta relação não se mostra

possível, nem mesmo se quiséssemos fazê-la. Prefiro mudar a relação linear que parece se

estabelecer nos modos de se conduzir a pesquisa com base na “pura coleta de dados”. Penso

que muito antes que entramos no campo propriamente dito, já estamos nele e nem nos damos

conta. Tal reflexão se ancora sem dúvidas das proposições de Peter Spink (2003) sobre o

campo-tema, quando postula a relação indissociável entre aquilo que pesquisamos e aquilo

que planejamos pesquisar.

De fato, nosso objeto de pesquisa começa a se constituir muito antes do nosso contato

supostamente materializado pela vivência. Pelo contrário, nós constituímo-los quando como

que por insight aquele primeiro fio de idéia vem à nossa cabeça, e a partir daí tecemos toda

uma rede de conexões relacionando-o com a realidade que produzimos para lhe dar forma.

Neste caso, o que seria o objeto de pesquisa senão uma construção singular de algo que nos

inquieta, e do qual usamos de nossos conhecimentos empíricos para circunscrever?

Assim, penso que é melhor subverter essa lógica, afinal não entramos no campo, mas

o campo que entra em nós... O campo que povoa nossas idéias, que nos faz construí-lo ao

nosso modo. Daí uma primeira consideração: O campo não pré-existe, ele se constrói na

dialética do pensamento orientado para a ação. Daí uma segunda consideração: O campo não

se esgota no plano da “realidade”, pelo contrário, ele nunca é apreendido pela materialidade

do cotidiano. Mais uma consideração: O campo é transcendental, ele ultrapassa o plano de sua

própria existência. E por fim: o campo é infinito, nunca cessa, sempre se produz, uma espécie

de retroalimentação inédita.

Essa discussão sobre o campo9 é fundamental para fecharmos este ciclo de

apresentação da nossa perspectiva epistemológica e subsidiar a compreensão do objeto

possível sobre o qual nos dedicamos na realização do estudo condutor desta dissertação. Até

aqui vimos como saímos de um objeto potencial a um objeto possível, como a nossa visão da

ciência e de nossas práticas de produção do conhecimento dialogam com a produção deste

incessante objeto, qual a postura que adotamos frente a ele e em que medida podemos falar de

seu campo/contexto de produção. A partir de agora, nos tópicos a seguir, serão detalhados os

trajetos, as linhas e os circuitos que percorremos nesta lida cotidiana com tal objeto.

9 Neste trabalho, sempre que referirmos a palavra “campo” ou a expressão “trabalho de campo” estamos

ancorados nessa reflexão, mesmo quando pretendemos falar do contexto in loco de produção das informações, de

forma a situar os diferentes lugares que este campo se produz e é produzido.

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Onde realizamos a pesquisa? Seria esta uma definição do campo?

Tomando por base as reflexões teórico-epistemológicas apresentadas, o presente

estudo foi desenvolvido a partir de uma abordagem qualitativa, por meio da realização de uma

pesquisa exploratório-descritiva. Para Minayo (2007, p. 21) a pesquisa de natureza qualitativa

responde a questões muito particulares, preocupando-se com o “universo dos significados,

dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes”. Trata-se, portanto, de

um modo de fazer pesquisa que investe num tipo de objeto que dificilmente pode ser

traduzido em relações quantitativas ou numéricas. Como afirma a autora, “a abordagem

qualitativa se aprofunda no mundo dos significados. Este nível de realidade não é visível,

precisa ser exposta e interpretada” (p. 22).

O trabalho de campo procedeu em meio aos contextos institucionais destinados às

práticas públicas de produção da saúde, mais especificamente no âmbito da Atenção Básica à

Saúde. Tendo como foco os processos de produção do cuidado em saúde, optamos como

campo de investigação o espaço de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) referenciada ao

cuidado à Saúde do Homem, na região metropolitana de Recife-PE.

Cabe destacar aqui que o processo de definição do campo em que realizaríamos o

estudo passou por alguns momentos importantes. A princípio, havia o desejo, expresso em

nossos objetivos, de compreender de que modo o cuidado à saúde do homem é produzido no

cotidiano dos serviços de atenção básica. E isto nos parecia bem claro. No entanto, definir o

lugar “real” em que isto aconteceria foi um pouco complicado.

De início, centramos nossa idéia em buscar alguns lugares e obter informações, através

de visitas in loco, que pudessem nos auxiliar nessa escolha. Tínhamos como possibilidade

dois serviços localizados em cidades da região metropolitana de Recife. O primeiro deles

constituía um Centro de Saúde referenciado ao cuidado do homem, com funcionamento

noturno, e atendimento exclusivo a esta população com profissionais, em sua maioria

médicos, especializados. Este serviço acabou sendo descartado por se tratar de um dispositivo

componente da rede de média complexidade do município, tendo em vista o nosso intuito em

acessar serviços da Atenção Básica à Saúde.

Uma segunda alternativa localizava-se em outro município da região metropolitana do

Recife, situada ao litoral sul do estado de Pernambuco. A opção por este município centrava-

se na perspectiva de realização de um estudo maior que começava a se estruturar na região

portuária deste Estado, e que contemplava diversos campos de produção da saúde em nível

comunitário, sendo a Saúde do Homem um dos eixos norteadores. No entanto, no município

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ainda não estavam sendo desenvolvidas ações referentes ao cuidado à população masculina, a

partir da publicação da PNAISH, o que nos foi comunicado por um informante privilegiado

do município. Deste modo, esta opção também acabou sendo por nós descartada.

Em outro momento, a partir do contato com um gestor em saúde da cidade de Recife,

favorecido pelo nosso envolvimento em outra pesquisa, tomamos o conhecimento de uma

unidade básica de saúde que desenvolvia um trabalho, tido como pioneiro, voltado à

população masculina. Este se tratava de um grupo de discussão que reunia homens/usuários

do serviço e profissionais/trabalhadores da atenção básica que mantinham uma proposta de

trabalho envolvendo processos de educação popular em saúde, e que se propunham a discutir

diferentes temas de interesse dos homens/usuários da comunidade frequentadores deste grupo.

Sabendo disto, nos propusemos a conhecer esta unidade de saúde, os profissionais da equipe,

bem como o próprio grupo, o que caracterizou desde este momento, as primeiras incursões no

campo, propriamente dito, desta pesquisa.

Cabe destacar que tivemos, ao nosso favor, contato com outros interlocutores. Agentes

humanos e não-humanos, actantes na terminologia da Teoria Ator-Rede (FREIRE, 2006;

LATOUR, 2000), que favoreceram nossa inserção. Primeiramente, este contato inicial no

campo da gestão, e em seguida com outras fontes de informações sobre este serviço, dentre

elas, várias referências on-line, vídeos, links, imagens e comentários. Além disso, no Instituto

PAPAI tivemos a informação de que já haviam sido desenvolvidos trabalhos naquela unidade

de saúde voltados à população masculina, o que fortaleceu nosso intuito em conhecer e

desenvolver nosso estudo naquele serviço.

Deste modo, como critérios que utilizamos para selecionar esta unidade de saúde,

citamos o desenvolvimento de alguma atividade voltada para o público masculino, bem como

o acesso e adesão de homens/usuários às atividades propostas.

O Espaço de Produção: Materialização e Estabilização do Campo – Contextualizando a

Unidade Básica de Saúde

A unidade de saúde que escolhemos cobre um território povoado por 2.000 famílias,

distribuídas em 15 micro-áreas, atendidas por duas equipes de saúde da família10

. A unidade

de saúde é bastante movimentada e costuma abrigar/acolher pesquisadores/visitantes,

10 Aqui nos isentamos de tecer maiores considerações sobre a estrutura de funcionamento da unidade de saúde,

bem como composição da equipe básica, tendo em vista já ter sido apresentada esta estrutura do funcionamento

da Atenção Básica à Saúde no primeiro capítulo dessa dissertação.

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estagiários de diversas especialidades na saúde, profissionais residentes e desenvolve

parcerias com ONGs e outros equipamentos sociais do próprio bairro, e também de outras

localidades no município. Além disso, as ações da equipe de saúde nesta unidade são

potencializadas com a participação de uma equipe dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família,

que trabalha com matriciamento e suporte a casos identificados no território.

O espaço da unidade de saúde é bastante pequeno e apertado. Muitas vezes é difícil

transitar pelos corredores tendo em vista a quantidade de pessoas que busca atendimento,

principalmente nos primeiros dias da semana, quando ocorre o “acolhimento”, uma das

atividades desenvolvidas no dia-a-dia da unidade de saúde, a qual será discutida no próximo

capítulo desse trabalho.

A estrutura física da unidade é bastante precária e, na ocasião da pesquisa, acabava

tornando-se um grande empecilho para os profissionais no desempenho de suas atividades

cotidianas. O prédio possuía três salas para atendimento clínico (consultórios) que eram

revezados pelas três enfermeiras e três médicos/as da unidade (sendo uma das enfermeiras e

uma das médicas, residentes), além de ocasionalmente serem utilizadas para a prática do

acolhimento; um consultório odontológico usado por duas dentistas, o qual estava interditado

pela vigilância sanitária, devido condições insalubres de funcionamento; uma sala de

curativos, que também chegou a ficar interditada por um tempo devido à existência de mofo

no teto e paredes; uma sala de vacinas, que também parou de funcionar por um período

devido à falta de ar-condicionado (necessário à aplicação das vacinas); uma pequena sala de

recepção (com telefone, onde ficava o segurança); uma pequena sala de farmácia; uma sala de

arquivos, que servia tanto para armazenar documentos e prontuários quanto para o “encontro”

dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS); uma minúscula copa; duas pequenas salinhas

utilizadas para higienização de materiais e esterilização, e; dois banheiros (um para usuários e

um para profissionais).

A estrutura da unidade ficava sobre um canal de esgoto que exalava às vezes fortes

odores que acabavam tornando difícil estar dentro da unidade por muito tempo. Além de que,

segundo os usuários e profissionais/trabalhadores, era constante o aparecimento de animais

nocivos nas dependências da unidade, tais como ratos, baratas, aranhas, escorpiões e pombos.

Sobre este aspecto, durante a realização da pesquisa foram presenciadas reuniões e

discussões entre usuários e profissionais/trabalhadores, e entre estes e gestores tendo como

pauta mudanças estruturais na unidade de saúde. A solução visualizada pelos

profissionais/trabalhadores e usuários seria mudar a unidade de lugar: construir outra unidade

em local apropriado, espaçoso, adequado e acessível à comunidade.

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Abaixo segue uma ilustração referente à planta da unidade de saúde por nós elaborada

(Figura 3):

Figura 3. Disposição Espacial da Unidade de Saúde Pesquisada

Construindo Compreensões sobre o Cotidiano: Instrumentos e Métodos para a

Produção de Informações

Neste trabalho, como procedimentos para a produção de informações, foram utilizadas

a observação no cotidiano, com registro e escritura em diários de bordo e a realização de

entrevistas/conversas com os atores do serviço. A observação no cotidiano nos permitiu uma

inserção maior nos contextos da pesquisa, levando-nos a perceber as dinâmicas de interação

entre os atores envolvidos (profissionais/trabalhadores, usuários e comunidade em geral), bem

como os modos de cuidado desenvolvidos cotidianamente no serviço de saúde.

Os incessantes momentos de observação foram registrados em diários de bordo,

terminologia utilizada por Benedito Medrado et al (2011) para referir-se a um posicionamento

do pesquisador em direção ao campo, de modo a permitir-se ser conduzido pelas

imprevisibilidades do contexto da pesquisa, num movimento que lembra o “navegar”, o

deixar-se levar pelas ondas sem, no entanto, perder-se da rota pré-determinada. Nesta

perspectiva, os diários de bordo, mais que meros instrumentos de registro dos dados do

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campo, funcionaram como elementos co-construtores das informações, tendo em vista que é

desde o momento das escrituras dos textos que se vão produzindo os sentidos da experiência.

No tocante às conversas, partimos de um posicionamento crítico quanto ao uso da

entrevista como técnica legítima de “coleta de dados”, na perspectiva de problematizar os

modos como as predisposições estruturais subjacentes às definições metodológicas forjam

contextos apolíticos e dessubjetivados de produção de sentidos. Por isso, apresentamos aqui a

conversa no cotidiano como recurso à produção de informações em campo, em vias de

possibilitar reflexões para pensar uma possível desformalização da entrevista, superando as

concepções científicas tradicionais e reconhecendo-a como prática social.

Segundo Robert Farr (1982, apud GASKELL, 2002) a entrevista é “essencialmente

uma técnica, ou método para estabelecer ou descobrir que existem perspectivas, ou pontos de

vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa que inicia a entrevista” (p. 65). De modo geral, a

entrevista pode ser considerada uma maneira legítima e sistemática de produção de

informações em campo, que visa, ao conceder certa autonomia discursiva aos seus atores,

compreender pontos de vista e/ou argumentos específicos acerca de determinado tema ou

questão.

Em termos metodológicos, a finalidade maior da entrevista é o conhecimento

aprofundado de questões previamente levantadas, que dizem respeito aos modos de vida dos

sujeitos-alvo de investigação. Habitualmente, as entrevistas compreendem a produção de

narrativas sobre aspectos específicos das histórias de vida das pessoas, suas crenças,

costumes, atitudes, valores e comportamentos, entre outros, visando possibilitar a construção

de esquemas interpretativos que possam dar conta das possíveis relações existentes entre os

sujeitos e seu cotidiano.

Constituindo-se como técnica ou método bem estabelecido, como apontado por Farr

(1982) logo acima, a entrevista é atravessada por um rigor metodológico que a estrutura e a

orienta. De fato, a natureza da pesquisa científica moderna (para muitos a “boa ciência”)

reflete uma série de convenções epistemológicas e sistêmicas que exigem do

pesquisador/cientista certos cuidados procedimentais que devem ser obedecidos e

clarificados. Ser neutro, objetivo, racional e imparcial, são algumas dessas convenções, e

ilustram a imagem de uma ciência que busca verdades absolutas e incontestáveis, já que não

há a “presença” do pesquisador no produto da investigação.

Embora o processo habitual de realização das entrevistas compreenda uma etapa um

pouco mais fluida da investigação científica, até mesmo porque a situação de encontro entre

os atores sinaliza para a necessidade de mútua implicação, ela ainda é bastante marcada pelos

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ideais científicos em termos de seu rigor e objetividade. Grosso modo, a entrevista realiza-se

mediante um roteiro de questões pré-definidas, que por sua vez referem-se a questões

hipotéticas mais gerais presentes no projeto de orientação do estudo científico. Em algumas

práticas de pesquisa a entrevista acaba realizando-se de uma maneira tão técnica e objetiva,

que mais se torna um bate-bola do tipo “pingue-pongue”, do que realmente uma entrevista, do

modo como a compreendemos: argumentativa, reflexiva, retórica.

É justamente sobre esse ponto que buscamos refletir: ora, a excessiva preocupação

com o rigor faz com que a prática científica crie um novo ambiente distinto daquele que

chamaríamos de “natural”, no entanto, torna-se um tanto contraditório pensar que esse novo

ambiente, que chamamos aqui de desnaturalizado, servirá de parâmetro para tecer explicações

e interpretações daquele ambiente (natural) que inicialmente tentou-se fugir para evitar

incoerências (ou interferências). E, no entanto, onde realmente situa-se a incoerência?

Trazendo para o plano da entrevista, tal preocupação se repete. A própria palavra

“entrevista” cria um ambiente totalmente distinto daquele que consideraríamos corriqueiro,

habitual. Um exemplo: se pararmos um homem na rua e perguntarmos como ele está se

sentindo em relação ao tempo, ele poderá dizer, “está frio”, ou “estou com calor”, ou mesmo

“acredito que irá chover amanhã”; se, no entanto, abordarmos esse mesmo homem e lhe

convidarmos para responder a uma entrevista acerca do tempo, muito provavelmente ele

manifestará outra postura discursiva.

Uma experiência desse tipo foi comunicada por Vera Menegon (2004, p. 238) e

relembrada por Peter Spink (2008, p. 73) do modo como se apresenta abaixo:

P11

: O tema da minha pesquisa é menopausa.

I12

: Menopausa? Que assunto horrível.

P: O que isso faz você lembrar?

I: Sei lá... mas fico pensando que a mulher deve sofrer muito... é como

se fosse um aleijão.

P: Aleijão? Não entendi.

I: É como alguém perder uma perna, um braço. A mulher perde a

capacidade de gerar um filho, fica como uma árvore seca.

11 P: Pesquisadora 12 I: Interlocutor

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A título de contextualização, a pesquisadora estava em uma mesa de bar com um

amigo seu, psicólogo clínico, e esta foi a conversa entre eles. Se esta situação tivesse ocorrido

em outro lugar, ou com outra “pretensão”, do tipo, a pesquisadora marcar uma entrevista com

o mesmo homem em determinado local para tratar da sua pesquisa, as respostas dele

provavelmente seriam outras, talvez ele falasse de outro lugar (o do profissional psicólogo)

que não aquele em que se situava no momento (um amigo, companheiro de bar).

Enfim, estas ilustrações foram trazidas com a intenção de mostrar que a neutralidade

na ciência é apenas uma disposição negociada e consensual, e sua efetivação mais parece uma

utopia, um desejo inalcançável. Sobre a entrevista, esses exemplos mostram como ela cria um

ambiente desnaturalizado para tratar de eventos do mundo natural, e a partir disso traçar

verdades sobre este mundo. A entrevista cria um setting próprio, um espaço em que está

predefinida a intenção de coletar/colher informações de um lado, e de fornecer/ceder de outro.

O que estou ressaltando é a existência desse setting pré-formado que acompanha a

entrevista desde o seu prenúncio, qual seja a intenção do pesquisador. Sabe-se de antemão, até

mesmo da parte do pesquisado/entrevistado, que aquele é um momento de

“coleta/levantamento” de dados, de busca de informações que este possui, e que o outro quer

ter acesso. De que outra forma o pesquisador teria acesso a este conteúdo latente,

introspectivo e singular do entrevistado, senão pela via do questionamento?

Sabe-se então, que a entrevista compreende um momento em que questões serão

lançadas de um lado, e respondidas de outro. Ao mesmo tempo, está-se definindo neste

processo os papéis que cada um desses interlocutores envolvidos desempenharão durante a

realização da entrevista. Isto posto, papéis definidos, estrutura definida, a ação ocorre. E de

um modo, às vezes, variável, a dinâmica compreende em geral um movimento já previsto e

por isso mesmo condicionador. Entrevistado e entrevistador sabem em que momento tem que

falar, sabem como devem se expressar, às vezes mesmo o que dizer... e isto mostra como o

ambiente formal da entrevista tem efeitos sobre a forma como os enunciados se estruturam.

Portanto, ancorados nesta discussão, realizamos aqui um jogo de palavras. Partindo de

uma de(s)formalização, propomos uma deformação, para pensar uma nova formação. Talvez

seja uma “mera” tentativa de romper com a formalização da entrevista/prática científica,

pensando-a como prática social discursiva. Humana. Construída pelo diálogo, pela conversa.

Forjada no cotidiano. Os dados se colhem com a formalização, as informações se produzem

no rompimento destas disposições formais.

Como vimos, pesquisar no cotidiano implica inserir o cotidiano como prática

científica, investindo na rotina para dela produzir o improduzível. Conversar, por sua vez, é

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uma maneira de materializar a construção disso que não se produz na neutralidade. E ademais,

já que estamos falando de conversas, que é a conversa se não uma prática discursiva? Se não

uma maneira utilizada pelas pessoas para produzir sentidos, e de se posicionarem nas relações

do cotidiano? (SPINK, 2004a)

As conversas povoam o cotidiano, tornam-no dinâmico, autêntico, vivente. Expressam

a realidade de cada mínimo detalhe da vida social, e refletem um conteúdo cultural (em seus

dialetos, gírias, trocadilhos, vícios linguísticos, regionalismos, gestos etc.) que a prática

científica formal é impedida de acessar, por estar preocupada em demasia com a higienização

do conhecimento, ao invés de valorizar as vicissitudes do que ocorre nos ambientes

corriqueiros de produção da vida.

Um adendo merece ser incluso aqui. Quando mencionamos as conversas como

estratégia metodológica para a produção de informações no cotidiano, não estamos

necessariamente nos referindo às conversas no cotidiano conforme citado e utilizado por Vera

Menegon no seu trabalho dissertativo. A postura adotada por nós quanto ao uso da conversa

ainda diz muito de uma prática de entrevista norteada por um roteiro de temas a serem

contemplados (não necessariamente perguntas), enquanto que esta autora “pinçava” do seu

cotidiano episódios isolados de conversas “propriamente ditas”, que presenciava ou

participava, sobre o seu tema de estudo.

Neste sentido, o “modelo” de entrevista que definimos como conversa assemelha-se à

“entrevista narrativa” (JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002). Segundo esta modalidade de

entrevista o sujeito é convidado a falar de si como se contasse uma história, a qual vai sendo

construída a partir do compartilhar de seus pensamentos e opiniões. Nas palavras destes

autores “as entrevistas narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em

todo lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de contar;

contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana” (JOVCHELOVITCH e

BAUER, 2002, p. 91).

De tal modo, a utilização deste tipo de entrevista proporcionou uma maior abertura no

encontro entre nós (pesquisadores) e os nossos interlocutores (usuários e

profissionais/trabalhadores) possibilitando que a troca de informações se realizasse de

maneira mais informal. Por este motivo, como pontuam Morais e Paviani (2009), a entrevista

narrativa, ao utilizar uma estrutura de questionamentos mais abertos, vai se configurando

como uma forma de encorajar os entrevistados, e neste estudo serviu como possibilidade de

aprofundamento das informações produzidas nos momentos de interação em campo, a partir

da produção discursiva dos profissionais/trabalhadores e usuários do serviço.

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Durante as entrevistas houve o registro integral das conversas realizadas, com a

utilização de aparelho digital (mp3). Tais entrevistas foram transcritas na íntegra de modo a

subsidiar o processo de análise das informações produzidas durante a pesquisa, o qual será

exposto no capítulo seguinte desta dissertação.

Interlocutores

O material que produzimos nesta pesquisa foi fruto de um rico processo de inserção no

cotidiano do serviço de saúde destacado, bem como no território existencial em que habitam

os/as usuários/as do mesmo e sobre o qual as equipes de saúde atuam. Frequentamos a

unidade de saúde diariamente por aproximadamente dois meses, o que possibilitou a

circulação no dia-a-dia em corredores e ruas da comunidade, nos espaços de atuação das

equipes e a participação nas diferentes atividades desenvolvidas no cotidiano do serviço.

Além disso, conforme já sinalizamos anteriormente foram realizadas e gravadas

entrevistas/conversas individuais e registros em diário de bordo, concernentes a anotações

sobre o dia-a-dia da pesquisa.

Ao longo do trabalho de campo, conseguimos registrar conversas/entrevistas com 23

interlocutores/as, sendo 12 homens/usuários e 11 profissionais/trabalhadores13

da equipe de

saúde (conforme mostram os quadros 2 e 3). Dentre os usuários, oito são

participantes/frequentadores do grupo de homens existente na unidade sobre o qual falaremos

no capítulo a seguir, e os demais (quatro) foram contatados no próprio dia-a-dia da unidade de

saúde, especificamente no corredor/sala de espera.

O contato com os homens entrevistados ocorreu de maneira diferente para os dois

grupos destacados no quadro. Os usuários que frequentavam o grupo de homens foram

contatados e convidados a conversar nos momentos posteriores às reuniões semanais do

próprio grupo. A minha aproximação destes deu-se de maneira tranquila, já que com o

período em que estive na unidade de saúde fui frequentando as reuniões e participando das

discussões, de modo que isto proporcionou a criação de certo vínculo com tais homens,

favorecendo a aceitação destes em participar da pesquisa em momento posterior.

13 A partir deste ponto, adotaremos sempre a terminologia “trabalhadores” (ou “trabalhadores da saúde”) para

nos referirmos tanto aos profissionais de nível técnico e superior componentes das equipes de saúde, bem como

aos agentes comunitários de saúde, por reconhecermos a existência de tensionamentos nos (des)usos de

diferentes terminologias para as referidas categorias profissionais. Do mesmo modo, o termo “trabalhadores”, no

plural, também estará sendo utilizado em alguns momentos para contemplar tanto os homens quanto as mulheres

que compõem as equipes de saúde pesquisadas, embora reconheçamos ser importante destacar os

posicionamentos e lugares ocupados por cada pessoa na produção de suas práticas discursivas, o que fazemos na

maior parte do texto.

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Homens/Usuários14

Grupo de Homens Sala de Espera

Interlocutor Pseudônimo Idade Interlocutor Pseudônimo Idade

Homem 1 Marcelo 49 anos Homem 5 Felipe 33 anos

Homem 2 Roberto 66 anos Homem 6 Tomás 23 anos

Homem 3 Péricles 41 anos Homem 7 Vitor 22 anos

Homem 4 Vinícius 62 anos Homem 8 Romeu 26 anos

Homem 9 Santiago 48 anos

Homem 10 Luís 23 anos

Homem 11 Tarcísio 18 anos

Homem 12 Cristiano 52 anos Quadro 2. Homens/usuários entrevistados no cotidiano do serviço de saúde pesquisado.

Quanto aos homens da sala de espera, o contato deu-se após os atendimentos que os

mesmos iriam receber na unidade. Não houve em nenhum momento critério a priori para

definir quais homens seriam contatados e entrevistados. À medida que fui participando do

dia-a-dia da unidade de saúde, ia percebendo o fluxo de homens por ali, e tentando me

aproximar de alguns deles questionando os motivos que os traziam na unidade naquelas

ocasiões.

Não se tratava de uma pergunta tão bem estruturada, apenas um questionamento

qualquer de quem quer apenas “puxar conversa”, e se dava de maneira bem informal: “Olá,

tudo bem? Tá esperando pra ser atendido?”, ou “Opa! Vai passar pelo médico?” etc. E a partir

da resposta recebida e do modo como esta resposta chegava até mim, ia definindo se

continuaria a conversar com aquele homem ou não, já que às vezes estes não estavam

disponíveis a conversar.

Quando esta conversa inicial conseguia minimamente se estabelecer, era feito o

convite para que pudéssemos conversar melhor sobre o assunto. Neste momento, se já não o

tivesse feito, me apresentava como pesquisador, explicava ao homem/usuário em questão,

rapidamente, do que se tratava a pesquisa e pedia autorização para registrar (gravar) a

conversa que teríamos a partir daquele momento. Quando a resposta era positiva, buscava um

lugar mais reservado na unidade de saúde (uma sala vazia, por exemplo) e começava a

conversa/entrevista retomando o questionamento sobre quais motivos levavam sua ida até a

unidade de saúde naquele dia, e a partir desta ia discutindo outras questões. Cabe ressaltar que

na sala de espera nem sempre os homens abordados aceitaram gravar as conversas. Com estes

14 Para assegurar o sigilo e anonimato das informações produzidas pelos nossos interlocutores atribuímos,

aleatoriamente, pseudônimos.

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apenas mencionei, de maneira geral, alguns pontos da pesquisa e registrei tais conversas nos

diários de bordo.

Quanto aos profissionais/trabalhadores de saúde, consegui realizar entrevistas/

conversas com ao menos um representante de cada categoria componente da equipe mínima

de Saúde da Família (médico/a, enfermeiro/a, dentista e técnicas), assim como com Agentes

Comunitários de Saúde. Como disse acima, esta unidade de saúde abrigava duas equipes de

saúde da família, de modo que os profissionais entrevistados não fazem parte necessariamente

de uma mesma equipe.

Trabalhadores de Saúde15

Pseudônimo Interlocutor/a

Regina Enfermeira

Mateus Médico

Priscila Médica

Ramona Dentista

Érica Técnica de Enfermagem 2

Sabrina Técnica de Enfermagem 1

Lívia ACS 1

Soraia ACS 2

Jéssica ACS 3

Cilene ACS 4

Sérgio ACS 5 Quadro 3. Trabalhadores de saúde entrevistados na unidade básica de saúde pesquisada.

O contato com estes trabalhadores e o convite para participarem/concederem

entrevistas também foi facilitado pelo vínculo que foi sendo construído à medida que fui

frequentando a unidade de saúde durante os meses destacados para a realização da pesquisa.

Houve uma pequena dificuldade, a princípio, para conseguirmos horários em que tais

interlocutores estivessem disponíveis a conversar tendo em vista a demanda de trabalho

cotidiana que lhes chegava no serviço. Por este motivo, outros trabalhadores acabaram

deixando de ser entrevistados por não terem conseguido definir horários disponíveis a este

fim.

As conversas com os trabalhadores iniciavam com um questionamento geral sobre

como estes percebiam o fluxo de homens no cotidiano da unidade. A partir das respostas

15 Assim como fizemos com os homens/usuários, para assegurar o sigilo e anonimato das informações

produzidas pelos trabalhadores também atribuímos pseudônimos.

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destes a conversa ia fluindo e tomando direções diversas, embora tenhamos a início definido

alguns assuntos que mereciam, a nosso ver, ser contemplados16

.

As conversas ocorriam nas dependências da própria unidade de saúde em dias e

horários definidos pelos próprios profissionais. Houve momentos que acabamos fazendo tais

conversas em “sistema de encaixe”, ou seja, quando entre uma atividade ou outra havia a

identificação de um tempo satisfatório para estas conversas acontecerem. Algumas vezes tais

“encaixes” se deram pela ausência dos usuários às consultas marcadas.

Considerações Éticas

Este estudo se orientou na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que

dispõe sobre os cuidados e procedimentos que devem ser seguidos para a realização de

pesquisas com seres humanos. Desse modo, garantimos, desde o início da realização da

pesquisa, que não se tornariam/tornarão públicos quaisquer aspectos que pudessem/possam

causar danos pessoais aos participantes envolvidos no estudo.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do CISAM/UPE, tendo sido

aprovada sob o parecer final nº 084/2010. Cabe relembrar que o estudo a que esta dissertação

se refere, está vinculado a uma pesquisa maior, intitulada Homens nos Serviços Públicos de

Saúde: rompendo barreiras culturais, institucionais e pessoais que tem por objetivo geral

promover a inserção dos homens nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, oferecidos no

nível da atenção básica, através da capacitação de profissionais, elaboração de estratégias de

comunicação e avaliação. Trata-se de uma pesquisa multicêntrica que foi desenvolvida em

três cidades de diferentes estados brasileiros (Recife-PE, Campinas-SP e Florianópolis-SC).

Em Recife, a realização da pesquisa esteve sob responsabilidade do Instituto PAPAI, em

parceria com GEMA/UFPE, tendo como coordenadores os professores Dr. Jorge Lyra e Dr.

Benedito Medrado.

No processo de definição da unidade de saúde em que realizaríamos o estudo,

solicitamos a anuência da Secretaria Municipal de Saúde de Recife, a qual foi concedida via

Diretoria Geral de Gestão do Trabalho – DGGT.

Por fim, previamente à realização das conversas/entrevistas procedemos à assinatura dos

Termos de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (segundo modelo na seção

Apêndices), pelos interlocutores. Com isto buscamos respeitar o mais alto sigilo no tocante à

16 Os temas/questões definidas a priori estão descritas no Roteiro de Conversas/Entrevistas, disponível na seção

“Apêndices” dessa dissertação.

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identificação dos entrevistados, através de procedimentos que garantissem o anonimato e

preservação da identidade destes. Desta forma, nesta dissertação os nomes foram substituídos

por pseudônimos com esta finalidade. Ficou acordado também que as informações fornecidas

não seriam utilizadas para outros fins senão os comunicados, propondo-se assim, a

confidencialidade dos dados obtidos.

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CAPÍTULO IV

Quem disse que homem não se cuida?

A Produção de Cuidados à Saúde do Homem no Cotidiano de Usuários e

Trabalhadores da Atenção Básica

Como vimos discutindo ao longo deste trabalho, compreendemos que o fazer pesquisa

é uma prática social, e como tal seu sucesso e legitimação estão amplamente relacionados aos

processos de divulgação dos seus resultados (SPINK e LIMA, 2004). Neste capítulo,

trataremos especificamente do nosso trabalho no cotidiano da pesquisa, a qual foi realizada

em uma unidade básica de saúde da família que desenvolve ações de cuidado voltadas

especificamente à população masculina. Como dissemos no capítulo anterior, lançamos mão

de diferentes estratégias e procedimentos metodológicos para produzir informações sobre o

nosso objeto de estudo. Este é o momento de visibilizar esta produção.

Trazer uma discussão para o plano da visibilização é uma tentativa de redefinição do

que tradicionalmente se concebe como rigor na pesquisa científica moderna, amplamente

associado às idéias de replicação, generalização e fidedignidade dos conhecimentos gerados.

Realizando uma re-leitura sobre esta noção, Mary Jane Spink e Helena Lima (2004), a partir

de uma perspectiva construcionista, preferem conceber o rigor na pesquisa científica como

uma “possibilidade de explicitar os passos da análise e da interpretação de modo a propiciar

o diálogo” (p. 102).

Desta forma, a noção de rigor deixa de ser algo garantido por métodos ou

procedimentos definidos a priori e diz respeito muito mais aos diferentes posicionamentos do

pesquisador no relacionamento com seu objeto de estudo. Abrange, portanto, as escolhas

realizadas ao longo da pesquisa, os instrumentos selecionados, os modos de produção das

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informações e, mais ainda, na comunicação dos seus resultados. Trata-se de uma relação ética

do pesquisador com seus interlocutores, tendo sempre o cuidado de esclarecer as condições

em que foram produzidas as informações e possibilitar que o processo de análise e

interpretação possa ser compreendido.

Não é à toa que trazemos a palavra “visibilizar” neste trabalho, pois é exatamente esta

a nossa intenção aqui. Realizamos um processo de análise a partir de determinados lugares e

assumindo posicionamentos específicos. Assim, apresentamos os procedimentos que

utilizamos para visibilizar as informações que produzimos, bem como as análises

empreendidas.

É importante destacar que o processo de interpretação, do modo como o concebemos,

nada mais é do que um processo de produção de sentidos. Logo, o objetivo maior da nossa

atividade científica é produzir sentidos sobre aquilo que buscamos investigar. Assim,

situamos a interpretação como um elemento intrínseco ao processo de pesquisa, mas que não

se esgota no processo que se define como “análise”, uma vez que durante todo o percurso da

pesquisa estamos tecendo reflexões e redes interpretativas para lidar com o nosso objeto.

Disto podemos depreender duas coisas: primeiramente, considerar que o fazer ciência é um

exercício iminentemente interpretativo; e em segundo lugar, que não se pode separar a

atividade interpretativa dos contextos de produção – não existem momentos distintos entre o

levantamento e a interpretação das informações (SPINK e LIMA, 2004).

Em uma última reflexão, Spink e Lima (2004) situam a necessidade de se conceber a

noção de objetividade em ciência sob o prisma da intersubjetividade. Segundo estas autoras,

“cria-se um elo entre objetividade e intersubjetividade, sendo a objetividade ao mesmo tempo

o fundamento e a consequência da intersubjetividade” (p. 104). Vista desta maneira, a busca

pela objetividade constitui-se como um empreendimento dinâmico que não se pode constituir

de maneira apriorística.

Diante destas ponderações, reiteramos aqui nossa pretensão de construir compreensões

diversas sobre a produção de cuidados à saúde do homem. Não é, portanto, nosso intuito

chegar a uma homogeneidade, pelo contrário, pretendemos expor também pontos de

intersecção e separação dessa rede.

Retomando o objetivo desta pesquisa, pretendemos com o nosso trabalho compreender

de que modo homens/usuários e trabalhadores de saúde produzem cuidados voltados ao

homem no cotidiano de um serviço de atenção básica. Tendo em vista os procedimentos que

utilizamos para realizar esta pesquisa e produzir as informações necessárias que nos levassem

a responder aos questionamentos que levantamos na definição deste objetivo, desenvolvemos

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algumas estratégias metodológicas para sistematizar, organizar, analisar e visibilizar as

informações de que dispúnhamos.

Considerando a multiplicidade de materiais produzidos, bem como sua riqueza,

tivemos que fazer algumas escolhas ao longo do processo de pesquisa, o que se estendeu

também, inevitavelmente, ao momento de reunir e analisar estas informações. De fato, cada

recurso metodológico utilizado (entrevistas/conversas, registros de campo, diários de bordo,

relatos dos grupos) resultou em uma ampla gama de informações que, em seu conjunto,

forneceria conteúdo capaz de subsidiar mais do que apenas um trabalho dissertativo.

Este rico conjunto de informações nos fornece certamente muitos elementos que

favorecem uma melhor compreensão do objeto que buscamos estudar. No entanto, à medida

que dispomos neste trabalho de uma limitação, optamos por focalizar aqui as análises das

entrevistas, considerando-as como pontos de uma rede complexa. Neste exercício

reconhecemos a importância dos relatos nos diários e demais materiais produzidos para a

leitura e compreensão destas entrevistas, muito embora também compreendamos que a análise

das informações, em particular, produzidas a partir destes instrumentos certamente possa

constituir objeto de estudo para outras publicações.

Para o processo de análise, as entrevistas/conversas foram transcritas e organizadas em

quadros previamente construídos, segundo estratégia metodológica inspirada no uso dos

Mapas, discutidos por Mary Jane Spink e Helena Lima (2004). A perspectiva dos Mapas nos

pareceu interessante tendo em vista que estes favorecem a construção dialógica e preservam o

contexto interativo em que as conversas operam. Segundo as referidas autoras, os Mapas “são

instrumentos de visualização do processo de interanimação que possibilitam, entre outras

coisas, mostrar o que acontece quando perguntamos certas coisas ou fazemos certos

comentários” (SPINK e LIMA, 2004, p. 53-54).

Construímos e trabalhamos com os nossos quadros analíticos partindo destes

princípios, embora tenhamos formulado uma formatação diferente da disposta inicialmente

por Spink e Lima (2004), com o material que possuíamos. Nosso intuito com essa adequação

foi tornar o processo de análise mais fluido e possibilitar que tivéssemos uma visualização do

“todo”.

O primeiro quadro foi construído a partir das questões que orientaram a pesquisa, e

constituiu-se numa espécie de painel temático que contemplava diferentes aspectos do nosso

objeto, os quais foram abordados durante as entrevistas/conversas mediante o roteiro

condutor. Assim, a construção deste primeiro quadro, disposto a seguir, acompanhou as linhas

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narrativas produzidas pelos próprios interlocutores, à medida que a conversação fluía nos

encontros com o entrevistador mediados por elementos definidos ante as conversações.

Idéias/Aspectos do

roteiro

Interlocutor 1 Interlocutor 2 Interlocutor 3 Síntese (temas que emergiram)

Sobre as “práticas

de cuidado”

Sobre o “acesso ao

serviço da AB”

Quadro 4. Modelo do Quadro de Análise 1, elaborado para organizar as informações produzidas com os

interlocutores da pesquisa a partir das entrevistas.

A disposição deste quadro possibilitou o estabelecimento de comparações nas falas

entre diferentes interlocutores. Não era nosso intuito, cabe ressaltar, destacar possíveis

incoerências nos relatos ou apontar regularidades nos argumentos, mas partir destes para

encontrar pontos de convergência e dissonância que nos possibilitassem uma maior

compreensão dos modos como a produção de cuidados à saúde vai se construindo

discursivamente no cotidiano destas pessoas. Desta organização, partimos à produção de outro

quadro sintético, tomando por base questões-eixos orientadoras, em que os pontos em comum

favoreceram a construção de sínteses analíticas, e em contrapartida os dissonantes marcaram

as rupturas e ressignificações possíveis dos sentidos produzidos.

Interlocutores Questão-Eixo/Respostas Síntese (temas que emergiram)

Ex: Qual a compreensão de “saúde” e “cuidado à

saúde” dos profissionais?

Interlocutor 1

Interlocutor 2

Interlocutor 3

Quadro 5. Modelo do Quadro de Análise 2, elaborado para organizar as informações produzidas com os

interlocutores da pesquisa a partir das questões-eixo orientadoras.

As sínteses resultantes deste quadro foram importantes elos de condução da análise e

escrita do texto deste capítulo. A partir destas, optamos por organizar as nossas informações

considerando três segmentos: 1) Práticas Discursivas sobre Saúde e Cuidado; 2) Produção

de Cuidados à Saúde com Homens/Usuários; 3) Produção de Cuidados à Saúde com

Trabalhadores de Saúde. Por sua vez, estes segmentos estão subdivididos e estruturam-se por

meio de questões-eixos de análise.

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As questões-eixos orientadoras são “respondidas” segundo as sínteses construídas.

Entre os homens/usuários, formulamos as seguintes questões: “Como os homens operam o

cuidado à própria saúde e a de outros homens?”, e “Como os homens acessam e percebem

os serviços de saúde da Atenção Básica?”. Dentre os trabalhadores, as perguntas-eixo

definidas foram: “(se e) como os trabalhadores percebem a presença de homens no interior

da unidade básica de saúde?”, e “ (se e) como operam a produção de cuidados à saúde dos

homens no cotidiano do serviço?”.

Os tópicos a seguir dedicam-se a apresentar e discutir estes eixos temáticos. Em sua

construção buscamos seguir uma linha argumentativa tal que possibilitasse uma maior

compreensão dos sentidos produzidos a partir do contato com as falas dos interlocutores

supracitados. Ao longo do texto fazemos algumas tentativas de amarração teórico-analítica

com base nos referenciais que apresentamos nos capítulos anteriores deste trabalho, bem

como buscamos em outros autores elementos que também favorecem a produção de outros

sentidos sobre o nosso objeto. Neste exercício de amarração trazemos como ilustração alguns

recortes de falas dos nossos interlocutores que, em certa medida, exemplificam cada aspecto

que pretendemos visibilizar.

Antes de fazer esta discussão dos eixos analíticos, no entanto, apresentamos no tópico

a seguir uma breve descrição do período de inserção no cotidiano da unidade de saúde. Fazer

este exercício nos parece importante para compreender o contexto em que a pesquisa foi se

desenvolvendo, situando alguns espaços de interação dos/com os interlocutores e as

atividades desenvolvidas por/com eles, e destacando algumas situações que consideramos

relevantes para a compreensão do contexto da pesquisa.

Conhecendo a Unidade Básica de Saúde: Algumas Notas sobre o Funcionamento do

Serviço e as Práticas de Saúde voltadas ao Homem

Um dos motivos que nos levou a escolher a unidade de saúde em que desenvolvemos a

pesquisa foi o conhecimento de que nela havia atividades em saúde que eram voltadas

especificamente para o público masculino. Ficamos instigados em conhecer esse serviço por

compreender que, até certo ponto, ainda é inédito que os serviços da atenção básica

desenvolvam estratégias que busquem incluir os homens em suas ações.

Mobilizados pelas questões que elaboramos para esta pesquisa, decidimos que ir a

campo e conhecer um pouco do funcionamento desta unidade poderia constituir um exercício

interessante e necessário para as definições da nossa pesquisa. Assim, antes de começar a fase

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da pesquisa “em específico”, resolvi conhecer a unidade, por meio de uma visita, e tentar

levantar o maior número de informações possíveis sobre a mesma.

A partir das minhas primeiras inserções no campo, fui aos poucos percebendo que no

cotidiano da unidade de saúde a presença de homens buscando atendimento não era uma

raridade, pelo contrário, pelo que observava em outros serviços, ou mesmo nos relatos de

pesquisa e outros trabalho acadêmicos, chamou-me a atenção o fato de, mesmo não sendo em

grande quantidade, os homens fazerem uso daquele serviço, e com finalidades diversas:

consulta médica, vacinação e orientações sobre sua saúde, acompanhar suas companheiras em

atendimentos, levar os filhos para vacinar, aferição de pressão, troca de curativos etc.

Pela minha observação, a grande maioria eram homens idosos ou já aposentados, o

que poderia sinalizar a centralidade das questões de trabalho como complicadoras a uma

maior presença dos homens nos serviços de saúde. No entanto, os homens jovens apareciam.

Raramente, mas apareciam. Vinham com queixas diversas e apresentavam certa urgência no

seu atendimento, quase que demandando uma consulta imediata. Alguns vinham por

intermédio de mulheres, mães, esposas, irmãs, filhas, ou devido a questões relacionadas ao

trabalho (exames de aptidão às funções que desempenhariam) ou decorrentes dele (acidentes

de trabalho). A grande maioria, no entanto, vinha para tratar de uma queixa já instalada, a ida

à unidade com foco na prevenção da saúde quase nunca ocorria.

Cabe ressaltar que o acesso físico à unidade, pela própria geografia da comunidade, é

bastante dificultoso. Por se localizar em uma região de relevo acidentado, sendo as casas

construídas sobre morros, deslocar-se para ir à unidade compreendia um esforço físico

considerável. São muitas escadarias, ladeiras, pequenas vielas, trechos apertados e

escorregadios, que além de serem de difícil locomoção, constituem um perigo à parte, até

mesmo porque em muitos locais não existe corrimão ou algum tipo de apoio a este

deslocamento.

Um aspecto que cabe destacar dessas impressões iniciais diz respeito ao recorrente

reconhecimento de que esta unidade de saúde tem, como diferencial das demais, iniciativas da

equipe de trabalhadores que buscam contemplar os homens no seu cotidiano. Dentre estas

iniciativas as mais citadas eram o Grupo de Homens, que consistia na realização de reuniões

semanais em espaço extra-serviço, nas quais homens da comunidade discutiam temáticas

diversas sob a mediação de algum trabalhador de saúde da unidade, e orientada nos princípios

da educação popular em saúde; e o Dia do Homem, atividade pontual realizada uma única

vez na própria unidade que teve por objetivo o atendimento exclusivo à população masculina,

com o oferecimento de ações habituais do serviço (exames, consultas médicas, vacinação,

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orientações etc.). Outras também costumavam ser citadas, tais como o acolhimento e o grupo

hiperdia, embora com menor destaque.

Feitas estas considerações iniciais, nos tópicos a seguir nos dedicaremos a discutir

melhor como tais estratégias contribuem (ou não) para a produção de cuidados ao homem,

aqui nos preocupamos apenas em descrevê-las, com o intuito de situar melhor o leitor acerca

do funcionamento do serviço no tocante ao oferecimento de atividades voltadas à população

masculina.

PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE SAÚDE E CUIDADO

Neste tópico trabalharemos especificamente com as práticas discursivas utilizadas

pelos homens/usuários e trabalhadores de saúde para referir-se às ações de saúde e cuidado

que desenvolvem em seu cotidiano. Acreditamos que este exercício é necessário para

compreender de que modo os referidos atores sociais produzem sentidos no cotidiano do

serviço de atenção básica em que interatuam, e como, a partir disto, operam práticas de

cuidado.

Primeiramente, apresentaremos as práticas discursivas de homens/usuários e, em

seguida, as dos trabalhadores. Optamos por fazer esta separação para marcar os

posicionamentos assumidos por estes diferentes interlocutores. De fato, cada um produz

sentidos a partir de determinados lugares e com finalidades distintas.

É importante dizer, que nossa preocupação em demarcar tais posicionamentos também

se faz presente nos subtópicos. Assim, dentre os homens/usuários definimos dois grupos

distintos: a) participantes do grupo de homens; e b) homens encontrados na sala de

espera/recepção do serviço. Ao fazer esta diferença entre homens do grupo e homens da sala

de espera não estamos partindo do pressuposto que existem diferenças essenciais nos modos

como estes homens desenvolvem suas práticas de cuidado, mas achamos importante

posicioná-los a partir dos contextos de produção discursiva distintos, sendo as entrevistas

aqueles mais sistemáticos ou formais.

Ao mesmo tempo, entendemos que o “estar no grupo de homens” é um elemento que

merece ser destacado para a compreensão da maneira como estes homens desenvolvem o

cuidado à própria saúde, por levarmos em consideração os efeitos que sua participação num

grupo como estes pode possibilitar em suas vidas, tais como a produção de outras práticas de

cuidado, além de conhecimentos específicos sobre determinados temas que tenham sido

discutidos neste grupo. Assim, não estamos tomando a perspectiva de que homens do grupo

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são mais favorecidos, ou conhecem melhor determinadas práticas, pelo contrário, nosso

intuito é compreender como o “conhecer” essas ações os possibilita (ou não) a produzir outras

práticas em suas formas de ser e se relacionar consigo mesmo e com os outros.

Quanto aos trabalhadores também fazemos separações mediante as categorias

profissionais específicas, destacando os posicionamentos adotados por médicos/as,

enfermeira, técnicas de enfermagem, dentista e agentes comunitários de saúde, pelas razões já

citadas anteriormente.

Conversando com Homens sobre Saúde e Cuidado

Com base nos procedimentos analíticos que utilizamos, já apresentados no início deste

capítulo, organizamos este subtópico mediante os temas que foram surgindo a partir da leitura

das entrevistas/conversas que tivemos com os nossos interlocutores. Consideramos, então, nas

nossas análises, as conversas/entrevistas realizadas com quatro homens/usuários que

encontramos na sala de espera do serviço, e oito homens/usuários com quem tivemos contato

no grupo de homens. Como dissemos no Capítulo III, os homens da sala de espera, na ocasião

das entrevistas haviam ido à unidade para atendimento médico (consulta) e foram convidados

a participar da pesquisa após terem recebido tais atendimentos. Por sua vez, os homens do

grupo eram convidados à entrevista nas ocasiões após os encontros semanais do grupo.

No nosso exercício analítico, alguns temas foram se estruturando por meio dos

questionamentos que iam sendo lançados nas ocasiões de encontro com estes homens e, por

questões, até mesmo, didáticas, resolvemos desenvolver nossos argumentos em vista destas

discussões. Assim, apresentaremos as práticas discursivas destes homens/usuários sobre

“saúde” e “cuidado” segundo algumas dimensões que contemplam: o modo como

compreendem saúde e cuidado, como desenvolvem práticas de cuidado de si, além de suas

compreensões sobre as práticas de cuidado adotadas por outros homens.

Para os homens do grupo a saúde é vista a partir de três perspectivas. A primeira

delas situa a saúde como um estado, relacionada a um sentido de bem estar. Nesta

compreensão, aparece o bem estar tanto corporal (trazendo a idéia do funcionamento

fisiológico), quanto em uma perspectiva subjetiva (“estar bem consigo e com o outro”, “bem

estar espiritual”). Esta forma de compreender a saúde pode ser ilustrada pelos fragmentos a

seguir:

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Túlio: Eh, o que é saúde pra ti?

Cristiano: Assim, é estar bem! Ele estando bem, fisicamente, espiritualmente, ele

estando bem, ele está com saúde, né?!

Túlio: Então, ele estar bem fisicamente, espiritualmente...

Cristiano: Exatamente!

Túlio: Pra finalizar, eu queria saber o que tu entende por saúde...!

Santiago: Rapaz... (...) saúde é aquilo, é aquilo... Saúde é a... o seu bem estar físico,

manter o seu corpo bem, né, trabalhando cem por cento... pode ser que não seja cem

por cento, mas trabalhar pelo menos noventa por cento, ou oitenta por cento sadio, e o

restante vai melhorando aos pouquinhos!

Nesta acepção, a saúde também aparece relacionada ao “ter cuidado”, que remete à

idéia de evitar o desenvolvimento de algo que comprometa este bem estar, como uma doença

ou algum sintoma. Logo, a saúde também se compreende a partir da manutenção de um

estado tendo em vista a possibilidade de adoecimento.

Túlio: Eh, tu falou ai de que... que ele trouxe pra falar sobre saúde do homem, não sei,

o que é tu entende por saúde?

Vinícius: Oh, eu acho que a saúde é quando você está de bem consigo e com os

outros, levando-se em conta a própria, eh... você tar se cuidando pra não chegar a uma

doença ou como é que eu posso dizer, chegar aos sintomas, né, porque a partir dos

sintomas você vai ver o que é, aí é bom não chegar a... não chegar aos sintomas,

porque aí você acha que só aquele cuidado... A prevenção, você já... já lhe dá saúde!

Assim, o segundo sentido para a saúde, apresentado pelos homens do grupo, aponta

para uma perspectiva mais negativista, sendo esta vista como a ausência de alguma coisa

ruim, uma doença, por exemplo. No caso, enquanto na primeira a saúde se define

“afirmativamente”, neste outro sentido a noção de saúde se formula a partir do contraponto de

algo que possa comprometê-la.

Túlio: Hum... sim, sim... Eh, pra tu, o que é saúde? O que é que tu acha que é ter

saúde?

Tarcísio: Se sentir bem, não sentir nada...

Roberto: Eu entendo que é bom pra gente mesmo, né, saúde é uma coisa boa, né, a

saúde do homem...

Túlio: Ah... Como é que o senhor sabe que tá com saúde?

Roberto: Rapaz, agora mesmo eu me sinto com saúde, eu não tou sentindo nada, né!

[Risos]

Túlio: [Risos] Quando não tá sentindo nada, você tá com saúde!?

Roberto: É... tranquilo, né? [risos]

A última acepção de saúde acaba perpassando e sendo perpassada pelos dois sentidos

anteriormente citados, sendo vista, talvez, como uma complementação dos mesmos ou uma

maneira de confirmá-los. Para os homens a saúde também é compreendida como algo que é

atestado por outro, no caso, um médico (trabalhador de saúde). Assim, ter saúde ou sentir-se

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com saúde depende do olhar do médico sobre o seu corpo, tendo ele o poder de atestar se o

mesmo está saudável ou não.

Péricles: Saúde... é a gente tá melhor, né?

Túlio: Saúde é tar melhor!?

Péricles: Tar melhor!

Túlio: Como é que a gente sabe que tá melhor?

Péricles: O médico vem, tira a pressão, bota a coisa no ouvido, vê se o coração tá

normal, tá assim... bota atrás...

Túlio: Certo! O médico vem, vê a pressão, vê se tá bem, aí a gente sabe que tá bem!? Péricles: É! Aí ele diz se a gente tá com diabetes, às vezes num tá...!

Entre os homens da sala de espera também podemos destacar três maneiras de se

encarar a saúde, as quais se aproximam bastante das formas apresentadas pelos homens do

grupo. Tais maneiras de compreender a saúde podem ser ilustradas pelos fragmentos a seguir:

Túlio: O que é que tu entende por saúde? Assim, o que tu acha que é saúde?

Tomás: Um bom... um bom funcionamento, né, do corpo!

Túlio: Quando diz que tu tá com saúde, tu tá com um bom funcionamento do corpo!?

Tomás: É, um bom rendimento! Você ser saudável, como um todo!

Túlio: Como é que tu sabe que tu tá com saúde?

Vitor: Saúde? Eu não sei nem como explicar, o que isso quer dizer assim, fica

difícil... Pra dizer que eu tou com saúde, é porque tou andando, tou trabalhando, me

movimentando sempre, mas... eu não vou dizer que eu tou cem por cento com saúde,

só o médico com o exame que pode dizer isso...

Assim, para estes homens, a saúde também é vista como um estado, sendo

compreendida por um “ser” ou “estar” saudável. Em uma segunda acepção, ela aparece sob

uma perspectiva dinâmica, como sinônimo de bom funcionamento do corpo, ou mesmo de

atividade. A saúde se situa então no rendimento fisiológico, ou na boa execução de ações pelo

corpo, tais como: andar, se movimentar, trabalhar. E a terceira reflete o poder atribuído ao

médico sobre as questões de sua saúde, uma vez que saber “cem por cento” da sua própria

saúde depende da análise do médico.

No tocante ao cuidado, tanto entre os homens do grupo, quanto da sala de espera,

compreendemos que a produção do cuidado segue uma lógica dualista, sendo este tido a partir

de dois sentidos que, até certo ponto, se complementam. O cuidado dependeria, para estes

homens, da própria pessoa e de algo externo. Ou seja, as práticas de cuidado dependem de um

movimento de cada um sobre a sua saúde, de ir buscar atendimento, de buscar fazer exames,

de buscar se medicar, e ao mesmo tempo de algo externo que o possibilita ter certeza sobre o

estado da sua saúde.

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Nesta forma de posicionamento dos homens no tocante ao cuidado à saúde, podemos

nos remeter à compreensão do cuidado amplamente relacionada à produção técnica dos

trabalhadores de saúde. Assim, estes homens condicionam o saber de sua própria saúde e suas

ações de cuidado à busca pelo saber biomédico que supostamente lhes garantiria a certeza de

seu “estado saudável”.

Nesta perspectiva, como Denise Gutierrez e Maria Cecília Minayo (2010, p. 1498)

afirmam “os ‘cuidados à saúde’ têm sido tradicionalmente entendidos pelos usuários dos

serviços de saúde e também pelos profissionais da rede de um modo extremamente limitado”,

o que implica numa adesão de usuários e trabalhadores de saúde a uma dimensão do cuidado

extremamente técnica, perdendo de vista seu caráter relacional. Como estas autoras nos

lembram, uma observação mais atenta faz com que consideremos que o cuidado à saúde se

produz a partir de, ao menos, dois contextos distintos, que estão de certa maneira inter-

relacionados: a rede oficial de serviços, representada pelas unidades de saúde, e a rede

informal, representada pelo saber popular e familiar.

Ponderamos, no entanto, que em vista do reconhecido saber biomédico-científico no

qual a rede oficial se sustenta, na maioria das vezes a rede informal acaba ocupando um lugar

de pouco prestígio no meio social. Desta forma, outros componentes relacionados ao ato de

cuidar, tais como as interações afetivas, as relações sociais e a produção de conhecimentos na

cultura (incluindo-se também as maneiras particulares de se lidar com o processo saúde-

doença), acabam não sendo levados em conta quando usuários dos serviços de saúde relatam

suas práticas de cuidado de si.

Conversando com Trabalhadores sobre Saúde e Cuidado

Neste tópico, nos dedicamos a apresentar e discutir as práticas discursivas dos

trabalhadores de saúde que entrevistamos acerca de suas compreensões sobre a produção da

saúde e do cuidado no cotidiano do serviço de atenção básica. Consideramos aqui as

conversas/entrevistas que realizamos com dois médicos (um homem e uma mulher), uma

enfermeira, uma dentista, duas técnicas de enfermagem e cinco agentes comunitários de saúde

(um homem e quatro mulheres) que trabalham na unidade em que desenvolvemos a pesquisa.

Entre estes trabalhadores encontramos certa polissemia nos modos de se encarar e

compreender a saúde, enquanto que esta multiplicidade de formas de se definir pode ser vista

como uma maneira ampliada de se lidar com o cuidado. Em resposta ao nosso questionamento

“o que você compreende por cuidado à saúde?”, apareceram relatos como estes:

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Túlio: Pra finalizar, eu queria que tu dissesse o que tu acha que é cuidado...

Ramona (Dentista): Eu acho que cuidado com a saúde pra mim é você proporcionar

qualidade de vida. Eu acho que a saúde começa desde a moradia, o lazer. Aqui na

comunidade a gente sofre muito. Eles não tem área de lazer. A moradia você vê que

ainda é de morro. Então, eu acho que a saúde é isso. Você ter uma moradia, você ter

um saneamento básico, a água chegando todo dia, o lazer, oportunidades de empregos

– porque a gente ainda vê muitos jovens sem perspectivas.

Tulio: O que é cuidar?

Mateus (Médico): O cuidar eu acho que é você se sentir bem diariamente, mas sentir-

se bem quando você tá assim... bem de saúde, bem com a família, bem com a

comunidade. Em relação de se sentir bem com a saúde, que é o que nós, profissionais de saúde, lidamos mais... quando a gente não tem convivência com aquela pessoa,

com aquele homem, saber das possibilidades, às vezes é muito difícil conquistar a

pessoa no primeiro encontro, mas aos pouquinhos... a idéia da saúde da família é

justamente isso: você conviver com aquela pessoa, com aquela comunidade por toda a

vida e aí você não querer resolver tudo de imediato, porque senão cê vai quebrar a

cara, mas conquistar aos pouquinhas e isso envolve o cuidado também. O cuidado do

dia-a-dia, envolve o cuidado das relações familiares, de respeito, de saber até que

ponto ele tá certo ou tá errado...

Túlio: Pra finalizar... Eu queria que tu me dissesse, enfim, o que é que você entende

por cuidado em saúde? Érica (Téc. de Enfermagem 2): Eu acho assim que o cuidado da saúde da

comunidade é estar mais próximo, é criar vínculos com a comunidade, que muitas

vezes a gente criando certos vínculos, pra um outro profissional, ele chegar pra contar

coisas que passam na sua família, na sua casa (...) então a gente tem muito essa

questão do cuidado à família, não do cuidado só daquele indivíduo... eu acho que isso

é primordial na atenção primária, que a gente ta mais, assim, porque com a presença

do PSF, a gente não conhece só aquela pessoa que vem na unidade, a gente conhece a

família, a gente conhece a situação, vê com quem ele vive e termina que a gente tenta

ajudar de uma forma mais ampla, a gente tenta ajudar no cuidado da esposa, no

cuidado do filho, eu acho que é muito bom, a questão do vínculo, a questão da

confiança que a comunidade tem...

Deste modo, para alguns dos trabalhadores que entrevistamos, a saúde é encarada de

uma maneira ampla, sendo relacionada a uma série de fatores biológicos, sociais, psicológicos

e culturais, tais como: moradia, bem estar familiar, lazer, trabalho e saneamento básico. Em

consequência, cuidar da saúde teria como foco a promoção da qualidade de vida e, para isto,

envolve a construção de vínculos, a aproximação com o outro, a confiança e o respeito.

Considerando a noção de saúde compartilhada pelo Sistema Único de Saúde brasileiro,

que a define como “o resultado de vários fatores determinantes e condicionantes, como

alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação,

transporte, lazer, acesso a bens e serviços essenciais” (BRASIL, 2009c, p. 337), podemos

sugerir que o modo como estes trabalhadores vêem a saúde está de acordo com o que se

postula pelo tipo de racionalidade a que eles precisam aderir.

Diante disto, alguns questionamentos podem ser formulados: como estes trabalhadores

em suas ações cotidianas na unidade de saúde favorecem aos seus usuários que tais fatores

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sejam minimamente contemplados? Há esta possibilidade? Quando os trabalhadores adotam

esta compreensão multidimensional da saúde, que ressonâncias têm sobre suas práticas? E

com que efeitos?

Retomando os documentos oficiais do SUS, observamos que a saúde aparece como

um “direito de todos e dever do Estado”, sendo garantida “mediante políticas sociais e

econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso

universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”

(BRASIL, 1988). O que por sua vez nos faz pensar que embora a saúde seja definida por uma

ampla gama de fatores de ordem diversa, as ações se estruturam em grande medida para a

manutenção ou submissão do corpo biológico ao controle externo, uma vez que a garantia do

que vem a ser a saúde se condiciona à redução do risco de doenças e agravos.

Quando consideramos as construções discursivas dos profissionais entrevistados,

entendemos que estes acabam vinculando, com frequência, o cuidado à saúde à busca pelo

atendimento médico, pela submissão aos procedimentos oferecidos pelo serviço e pela ida à

unidade de saúde, os quais, por excelência, teriam essa função. A fala da técnica de

enfermagem 1, ilustra isto:

Túlio: O que é cuidado pra ti? Cuidar do outro? Cuidar de si? Sabrina (Téc. de Enfermagem 1): Fazer um acompanhamento médico, de rotina,

vacinação, como tem aqui pra criança, idoso, adulto. É... procurar saber mais como...

Ai meu Deus. É complicado mesmo...

Isto também aparece quando alguns interlocutores relatam casos ou experiências

práticas desenvolvidas no seu cotidiano de trabalho, tal como afirma esta agente comunitária

de saúde:

Túlio: Tem algum caso que você achou interessante desde que você trabalha aqui de

homem que “não se cuidava” e começou a “se cuidar”?

Jéssica (ACS3): Eu conheço um que ele não vinha à unidade, só que devido ao

problema de CA de próstata... foi aí que ele veio, passou no acolhimento, contou o

caso dele, contou, as meninas passaram encaminhamento, foi ao médico, o médico

passou todos os exames, fez a cirurgia, ficou bom e foi a partir daí que ele procurou

cuidar mais da saúde dele e participar mais daqui do posto!... Todo ano ele vem, pede

o PSA, pede todos os exames que tem de rotina, pede ultrassonografia!... O medo dele

era uma única coisa: o exame do toque! Aquela coisa de antes que ele não sabia que

pra fazer um exame de toque tinha que fazer um exame de sangue e agora todo ano ele tá aqui pra fazer todos os exames dele... Ele não perde mais nenhum exame! Então,

isso é uma coisa muito boa...

Com estes recortes, questionamo-nos, então, se tais profissionais não estão partindo de

suas posições objetivadas ao cumprimento de um ideal maior, qual seja a racionalidade

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biomédica dominante como estruturante das práticas de cuidado, para definir modos de

produzir a saúde da população que assistem, uma vez que destacamos nos argumentos

utilizados pelos trabalhadores, uma compreensão da saúde marcada pela prevenção de

doenças, medicalização do corpo e normatização das práticas de cuidado.

Assim, retomamos os questionamentos levantados outrora por Maria Juracy Toneli e

Rita Müller (2011, p. 89): “cuidar da saúde significa cuidar da doença quando ela se instala?

Ou cuidar da saúde exige uma relativização do que seja cuidado e do que seja saúde para cada

um dos sujeitos?”. Podemos refletir estes questionamentos a partir da fala da enfermeira,

sobre o cuidado à saúde do homem:

Regina (Enfermeira): O que eu falei no começo: ele só procura a unidade quando ele

adoece, ele não tem cuidado da prevenção. Saúde não é só remédios, saúde é a boa

alimentação, cuidado com a educação, exercício, né... E eu acho que não tem. O homem tem pouco cuidado com ele mesmo.

Embora esta profissional mencione que o cuidado à saúde é maior do que a busca

pelos medicamentos, citando a alimentação, os exercícios físicos e a educação, ainda o situa

como prática condicionada à busca pela unidade de saúde, uma vez que, como o homem só

busca a unidade quando está doente e não com finalidade preventiva, ele tem pouco cuidado

consigo mesmo.

Compreendemos, a partir deste argumento, que mesmo havendo um movimento de

rompimento com a lógica curativista, que a princípio orienta a busca do homem para cuidar

de sua saúde, esta profissional continua posicionando-se a partir de uma maneira prescritiva,

sem considerar outras formas de relacionamento do sujeito com sua própria saúde. Afinal, não

seria esta busca do homem pelo atendimento, via tratamento de sua condição de adoecimento,

apenas mais um modo de cuidar de si dentre outros que ela (enfermeira) desconhece?

Além disso, pelo argumento utilizado, o cuidar seria necessariamente sinônimo de

prevenção, o que também aparece nas palavras de outros trabalhadores, como neste trecho:

Túlio: Pra finalizar, essa era exatamente a questão: como é que tu vê como cuidado,

como é que tu vê (sic) o cuidado, o que é cuidar? Jésica (ACS3): Eu acho que o cuidar é não esperar a doença acontecer. Se prevenir

bem antes. Se cuidar, se pré, prevenir, né. Não esperar acontecer. “agora vou me

cuidar”, não. Aí você já passou o que tinha que passar, né?

Desta forma, para estas interlocutoras os homens buscam se cuidar depois que a

doença já está instalada e não preventivamente. No entanto, este cuidar preventivo se processa

a partir da submissão/obedecimento das orientações médicas sobre hábitos que se dizem

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saudáveis (alimentação, exercícios físicos) ou por procedimentos (tomar vacina, seguir o

tratamento com a medicação corretamente, fazer exames). Logo, um cuidado que é prescrito e

prescritivo, que define modos de ser para estes homens, indicando o que devem comer, que

exercício devem fazer, que medicamentos tomar e que exames realizar.

Por fim, na falta de palavras melhor apropriadas, o cuidado parece se definir por si só,

como sendo algo implícito ao que o próprio ato de cuidar significa. Outra fala da enfermeira

nos traz essa reflexão:

Túlio: Pra fechar, aquela velha discussão: o que é cuidar?

Regina (Enfermeira): No final das contas, é se cuidar!...

Podemos pensar, a partir disto, que o ato de cuidar compõe-se de ampla subjetividade,

e aborda, portanto, o cuidar de si. Compreendemos que talvez este tipo de reflexão necessita

ser melhor amadurecida entre os próprios profissionais, até mesmo porque, como veremos a

seguir, eles parecem reconhecer que os homens se cuidam, e o ato de se cuidar, per se já seria

cuidar.

Em última reflexão, reconhecemos que ao situarmos questões como “o que é saúde?”

e/ou “o que é cuidado?”, provavelmente estaríamos induzindo a que nossos interlocutores

acabassem proferindo respostas prontas, de acordo com aquilo que os mesmos acreditassem

que gostaríamos de ouvir, ou mesmo condizentes a certo padrão normativo mais amplo. No

entanto, julgamos ser importante realizar tais questionamentos ao final das entrevistas, visto

que, tendo investido anteriormente em relatos sobre suas práticas cotidianas, pudemos

considerar de que modo suas compreensões sobre saúde e cuidado se atualizavam ou se

mantinham a partir dos diálogos que íamos estabelecendo, o que nos auxiliou na compreensão

das maneiras como o cuidado à saúde acaba sendo operado por estas pessoas. Discutiremos

isto nos tópicos seguintes.

PRODUÇÃO DE CUIDADOS À SAÚDE COM HOMENS/USUÁRIOS

Tendo discutido anteriormente acerca dos sentidos produzidos pelos nossos

interlocutores sobre “Saúde” e “Cuidado”, neste tópico nos dedicaremos a tentar compreender

de que maneira os homens cotidianamente lidam com a própria saúde, que práticas

desenvolvem para cuidar de si e de que modo fazem uso dos serviços da atenção básica.

Desse modo, estruturamos este tópico buscando responder aos seguintes questionamentos:

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“Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?” e “Como estes

homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?”, tratados a seguir.

Como os homens operam o cuidado à própria saúde e a de outros homens?

Ao realizar nossa pesquisa, pretendemos, como objetivo, conhecer as práticas

desenvolvidas por homens para cuidar da própria saúde, e para isto lançamos mão de algumas

estratégias discursivas. Para fugir um pouco da ideia de “idealização” das práticas, de modo a

não considerar que estes homens nos fornecessem as respostas que supostamente eles

avaliassem que gostaríamos de ouvir, acabamos investindo em maneiras de acessar suas

experiências a partir de questionamentos que os possibilitassem se presentificar nos próprios

argumentos, embora nem sempre isto tenha sido possível.

Muitas vezes estes homens falavam de lugares aos quais pareciam não advir, ou

situavam-se fora das próprias construções discursivas, utilizando-se, muitas vezes de

substantivos para referir qualificações que poderiam, em certa medida, (não) ser atribuídas a

si mesmos. Por exemplo, foi comum aparecerem argumentos do tipo: “o homem não se

cuida”, ou “o homem é isto ou aquilo”, o que nos fazia questionar até que ponto eles se

aproximavam ou se afastavam das próprias construções discursivas. Dito de outro modo,

como poderíamos saber se nossos interlocutores eram também sujeitos das ações de que

falavam?

Ao mesmo tempo, é importante considerar que não era nosso objetivo conhecer a

verdade sobre as práticas, ou as práticas de verdade adotadas pelos homens, mas apenas

situar, mediante nossos questionamentos, que sentidos estes homens produziam quando

falavam sobre suas práticas de cuidado e como compreendiam o cuidado à própria saúde.

Acreditamos que chegamos a algumas reflexões interessantes que nos possibilitam tecer

compreensões sobre os modos de construção destes homens num contexto mais amplo que é o

campo da saúde. Podemos começar a discutir isto agora.

De um modo geral, o cuidado à saúde dos nossos entrevistados, como vimos

anteriormente, parece seguir uma lógica de construção dual, em que este por um lado depende

de um movimento do homem em dispor-se a cuidar de si, e por outro de que este cuidado de

si depende do olhar do outro. Assim o cuidado à saúde do homem traduz-se, para os nossos

interlocutores, principalmente, na busca (ou não) dos homens pelos serviços de saúde e, em

específico, pelo atendimento médico.

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Tal perspectiva parece se confirmar quando questionamos aos nossos interlocutores

sobre os modos como eles compreendem e operam os cuidados à própria saúde e a de outros

homens. No grupo de homens, os entrevistados acabam apresentando vários argumentos para

justificar o “não cuidado” por parte dos homens em geral. Para eles, o homem é relaxado,

relapso, acha que não adoece e é ocioso. Além disso, não vai ao serviço de saúde, e só vai ao

médico quando ta com uma doença grave. Isto pode ser exemplificado pelos fragmentos a

seguir:

Túlio: E com relação ao... que é que tu acha, como é que os homens cuidam da saúde?

Vinícius: Ó... eu acho que no geral, no geral, a gente é relapso, porque, vamos dizer...

os exercícios que seriam uma coisa, poderia ser uma coisa comum a gente vê

passando, ao caminhar na rua, você vê muitos... muitos homens sentados,

conversando... até pensando, mas não tem aquela atividade que poderia ser andando,

não, eh... são ociosos, né, e não ligam pra isso!

Túlio: O que é que os homens, em geral, fazem quando tão com algum problema de

saúde?

Marcelo: Os homens em geral? Os homens em geral ficam até com medo de ir ao

médico! Eu mesmo era um dos casos! Depois do grupo foi que eu comecei a ir ao

médico, mas eu não ia, mas os homens em geral, eu não sei se é medo ou se é

vergonha de ir ao médico... Túlio: Porque tu acha que eles tem... tu disse que, antes tinha, porque é que o senhor

tinha?

Marcelo: É... é... eu sei lá, eu acho que eu era tímido. Timidez, né?! Timidez! Eu acho

que era isso! Por o homem, o homem nunca... o homem só quer ser o... diz que nunca

adoece, nunca adoece, mas homem adoece, tem que ir ao médico, se ele soubesse... Eu

acho que o homem adoece mais do que a mulher!

Túlio: Por que será que o homem adoece... adoece mais que a mulher então?

Marcelo: É porque o homem, às vezes tem uma doença e guarda, né, às vezes tem

vergonha até de falar, até pra própria... pra esposa, pros filhos, ele mesmo tem

vergonha de falar, eu é muito... o machismo! O machismo é que faz ele ficar assim...

Como dissemos, nestes fragmentos vemos como os argumentos dos entrevistados se

entrelaçam para justificar a falta de cuidados dos homens à própria saúde. Enquanto Vinícius

ressalta características que atribuem ao homem certa atitude de negligência, Marcelo

apresenta elementos que definem motivos para a despreocupação do homem com a saúde e,

ao mesmo tempo, pela sua não busca ao atendimento médico. Entre tais motivos acaba

remetendo a possíveis sentimentos demonstrados pelos homens que o fazem adotar tal

postura, tais como vergonha, medo e timidez.

Podemos pensar que a compreensão deste interlocutor esteja relacionada ao fato de o

homem não ser historicamente educado para falar de si mesmo com os outros, atitude

necessária para se conduzir a busca pela atenção médica. Isto pode ser traduzido nas

expressões utilizadas por ele: “tem uma doença e guarda” e “tem vergonha de falar”. Outro

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termo mencionado por Marcelo, também aborda uma maneira de explicar a ausência do

cuidado pelos homens, a qual se relaciona à construção social das masculinidades.

Para este interlocutor é o machismo que faz o homem demonstrar tal atitude quanto a

sua saúde. Este mesmo argumento também é utilizado por outros homens entrevistados, que

acabam associando a construção social do “ser homem” às relações de (não) cuidado dos

homens em geral. Luís, por exemplo, afirma que este “não cuidado” vem de berço, trazendo

também a ideia de que homem não chora, é forte, e aguenta:

Túlio: Porque tu acha que não há isso de não se cuidar?...

Luís: Rapaz, vem mais de berço, você ta entendendo? A questão daquele do pai...

“Não! Homem não chora! Homem é forte! Homem tem que aguenta... Homem tem que carregar peso!”...

Tarcísio: O homem, o homem, sei lá, não se cuida bem não! A mulher é mais... ela vai logo no médico, procura saber das coisas direito, né, pra fazer... Os homens não,

os homens vai pelo interesse dele mesmo!

Túlio: Tu acha, assim, porque? Porque é diferente?

Tarcísio: Sei lá, é machista o homem!... O homem é machista!

Estes argumentos nos remetem, como já mencionado, à noção presente na literatura

sobre masculinidades de como a construção social do gênero acaba condicionando o

desenvolvimento das práticas de saúde, sendo necessário, portanto, considerar os modos como

as relações de gênero se desenvolvem para condicionar ou inscrever práticas de cuidado entre

as pessoas. Sobre isto, Romeu Gomes (2008), assim como outros autores (COSTA, 2003;

SCHRAIBER, GOMES e COUTO, 2005; KORIN, 2001), tem enfatizado que os problemas

relacionados ao pouco envolvimento dos homens com a saúde decorrem dos modelos de

masculinidade.

Nesta direção, um argumento citado por Cristiano, acaba afirmando esta dimensão de

gênero, ao considerar que o homem só se cuida quando tem sua imagem ameaçada, ou seja,

quando está em jogo a manutenção de sua masculinidade, traduzida na sua fala pela iminência

de ficar impotente.

Túlio: Eh, ainda tem aquela, aquela coisa, né, de que homem não cuida da sua saúde,

tu acha? Tu concorda com isso?

Cristiano: Olha, veja só, o homem só vai cuidar da saúde quando... (...) Porque o

homem, vamos dizer assim, ele tem um negócio, um preconceito, de que ele só é

homem quando o ferro funciona, quando o ferro deixou de funcionar, cabou-se o

homem! Imagina um homem, com 52 anos de idade, que eu tenho... eu acredito que eu

tenho uma certa disposição, e deixar de ser homem sexualmente, como é que fica a

situação? É difícil, é ou não é?...

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Assim, para o nosso entrevistado o homem só se preocupa com a sua saúde quando há

a possibilidade de o ferro deixar de funcionar, o que o faria deixar de ser homem. Isto nos

remete à recomendação de Romeu Gomes (2003) quando situa a necessidade de se encarar a

produção da saúde a partir de uma perspectiva relacional de gênero, em que é preciso

considerar os aspectos sócio-históricos e culturais que influenciam e podem comprometer a

saúde dos segmentos populacionais masculinos.

Quando consideramos os homens da sala de espera, as opiniões se aproximam da

perspectiva adotada pelos participantes do grupo quanto ao fato de o homem se cuidar ou não.

Em geral, os entrevistados mencionam que o homem não dá atenção a essas coisas, que ele

acha que não precisa fazer prevenção (prevenção que tem como finalidade descobrir se tem

algum problema), que não tem porque ir ao médico por qualquer coisinha, pois homem

aguenta mais. Argumentos estes que estão relacionados ao modelo de masculinidade

hegemônica, já abordado.

Quando questionamos aos nossos entrevistados “como eles costumam cuidar da

própria saúde?”, três aspectos se destacam como elementos que caracterizam o

relacionamento dos homens com a própria saúde. Primeiramente, os homens relatam que não

costumam procurar atendimento médico. Em segundo, problemas de saúde considerados leves

são resolvidos em casa, na maioria das vezes via automedicação. E em terceiro, ir ao médico

só é uma opção quando se trata de uma questão grave que não se resolve via automedicação,

ou quando o homem não sabe o que tem.

Nestas considerações, alguns pontos nos chamam a atenção. Em primeiro lugar,

parece-nos um tanto paradoxal o fato de os homens conferirem grande poder aos médicos em

“atestar” a sua saúde, como vimos anteriormente, sendo que eles mesmos afirmam não terem

o costume de ir ao médico. Assim, como/quando eles sabem que estão (ou não) com saúde?

Em segundo lugar, destacamos o fato de, dificilmente, estes homens mencionarem a

busca por práticas alternativas de cuidado, e quando o fazem acabam tomando-as sob uma

perspectiva de desvalorização, sendo o comportamento automedicado (ir à farmácia, tomar

algum remédio) a primeira solução. Como vemos no trecho a seguir:

Túlio: Hum! Quando o homem tá com um problema de saúde, o que é que ele faz pra

resolver, normalmente?

Vinícius: Só, na maioria, na maioria, só... pelo que a gente conversa, na maioria, só

quando vêm os sintomas de que remedinho caseiro não resolve! Porque, enquanto se

pode tomar um chá, tomar um comprimidozinho, só porque apresentou um

sintomazinho ele não procura o médico, só quando de fato, e às vezes até vem a

urgência aí é que se cuida!

Túlio: No caso, primeiro ele pega um remediozinho, um comprimido...

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Vinícius: Primeiro, aquele remediozinho caseiro, um comprimidozinho, ou um

chazinho disso... “Seu fulano tomou e ficou bom, eu vou tomar também...”

Assim, na fala deste homem parece haver um movimento de desvalorização do saber

popular, o que é observado a partir das construções discursivas “chazinho” ou “remediozinho

caseiro”. É provável que esta atitude esteja relacionada ao fato de que as práticas

alternativas/integrativas de cuidado acabam não obtendo grande respaldo entre os grupos

populacionais, justamente por não compartilharem do mesmo saber científico e tecnológico

que sustenta e define os padrões da ciência biomédica.

Desse modo, em terceiro lugar, e em consequência disto, vemos que embora o

movimento de ir ao médico seja algo difícil de acontecer, compreendemos que há a

manutenção do tradicional paradigma biomédico que salienta a busca pelo cuidado aos

agravos via ingestão medicamentosa. Logo, o cuidado à própria saúde é executado, mesmo

sem a figura do médico, a partir de suas orientações.

No grupo de homens estas reflexões acabam aparecendo, embora também possamos

traçar outras compreensões. É interessante notar a construção discursiva que alguns homens

fazem para justificar suas práticas de cuidado. Um deles, por exemplo, salienta que a sua

preferência pela automedicação decorre da demora em conseguir um atendimento médico nos

serviços, como mostra o seguinte fragmento:

Túlio: Ah. Entendi! Eh, como é que tu cuida, em geral, da tua saúde? Santiago: Rapaz, eu não vou dizer que eu sou um camarada que faço as coisas, que...

é como a gente tava discutindo aqui agora há pouco, né, que... a automedicação, que

se você chegar “Tou sentindo alguma coisa agora!”... aí, a gente só é atendido se for

na emergência, porque pra onde você for você tem que marcar! Se você ta doente

agora e você vai marcar, quando... quando você vai marcar, o que é que acontece?

Marca pra três, quatro dias depois... Você tá precisando agora, mas você não vai

conseguir!... E termina você se automedicando, como se falou aqui agora... E no meu

caso, eu também não fujo dessa regra, eu me automedico! Agora, eu sempre que posso

eu cuido... Tou há quase dois anos tentando fazer um canal, ali, puxa pra lá... já perdi

dois encaminhamentos, o terceiro já tou já perdendo a validade também, porque não

temos acesso, os CEPs são diferentes né, daqui pra li você não consegue... é a própria

burocracia!... Eu tento cuidar o máximo que eu posso né?

Neste sentido, a demora na efetivação do que ele considera como cuidado, a partir do

atendimento médico, o faz preferir escolher outro caminho que não seja o prescrito – seguir

orientações profissionais sobre a sua saúde. Embora, ainda assim, não podemos dizer que ele

rompe com a lógica da produção de saúde sob uma perspectiva biomédica.

Outro argumento colocado por este homem diz respeito ao trabalho, o qual seria um

complicador à busca pela sua saúde. Segundo o que afirma, o homem precisa trabalhar e por

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isto os cuidados à saúde acabam ficando em segundo plano – “a gente fica adiando”. Nas suas

palavras ele “aguenta até quando dá, depois tem que ir”. Ao agir dessa maneira, acaba

justificando que ele se cuida sim, embora não o faça continuamente. E mais uma vez vemos a

reafirmação da ideia dos cuidados à saúde condicionada a ir ao médico e ser atendido por ele.

O trabalho acaba sendo um tema importante para definir o relacionamento dos homens

com a própria saúde, embora seja necessário relativizar as compreensões que usualmente o

situam como impeditivo das relações de cuidado. Não se pode negar que o trabalho é tido

como uma atribuição de destaque nos processos de construção social masculina, sendo ao

homem atribuído o papel de provedor. Como afirmam Ana Paula Portella et al (2004) “entre

todas as atribuições masculinas, a mais explícita, inegável e imediata se refere à sustentação

econômica da casa. Ser homem é ser provedor, função que se expande para todas as

dimensões da vida” (p. 128).

Muitas vezes, nos serviços de saúde se entende que é a rotina de trabalho que faz com

que os homens apareçam com menor frequência, uma vez que supostamente o horário em que

tais serviços funcionam coincide com seu horário de trabalho. No entanto, mesmo

reconhecendo que isto, em muitos casos, se constitua como uma barreira, é necessário levar

em conta que muitas mulheres também ocupam diferentes espaços no mercado de trabalho e,

mesmo assim, fazem uso frequente dos serviços (BRASIL, 2009a). Portanto, não se trata de

dizer que somente os homens trabalham, mas que talvez a relação que possuem com o

trabalho é diferente, a qual precisa ser pensada para a definição de estratégias de cuidado

voltadas para eles. Ao mesmo tempo é importante se repensar a discussão do acesso à saúde

pelos homens apenas pela via da busca desta população pelos serviços, sem considerar

também o papel pró-ativo que as equipes de saúde (como o caso da ESF) precisam adotar para

a assistência no território, contemplando as demandas e necessidades apresentadas por eles.

Além disso, a fala de Santiago traz à tona também outra explicação para o não

cuidado, que se relaciona ao “ser homem”, como discutimos acima. O “aguenta” está

relacionado à construção do que vem a ser a masculinidade hegemônica, em que o homem é

forte, é potente, aguenta mais, e, na via contrária, buscar atendimento médico imediato em

“casos leves” o tornaria menos homem por demonstrar uma suposta fraqueza.

Alguns entrevistados também mencionam outras formas de busca pelo cuidado à

saúde, tais como fazer exercícios físicos ou preocupar-se com a alimentação e higiene pessoal.

Tais ações podem ser encaradas como preventivas e estão centradas ainda numa perspectiva

biologicista, já que tem um fundamento de manutenção corporal e se aproximam ao que os

próprios trabalhadores de saúde descrevem como práticas saudáveis de autocuidado.

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Outro argumento interessante aparece na fala de Cristiano ao dizer que “se cuida e

não se cuida” ao mesmo tempo. Reiteramos a noção de cuidado já apresentada, que associa-se

à busca pelo atendimento médico. Este homem diz que não vai ao médico por achar que não

está doente, o que reforça a ideia de que o homem vai mobilizado pelo sintoma, ou pela

doença já instalada. Por outro lado, em alguns casos específicos, diz ir ao médico para fazer

exames periódicos a partir de motivação particular, como é o caso da próstata. Assim, ele

refere que todos os anos, a tirar pela sua idade, faz o exame do PSA (Antígeno Prostático

Efetivo) para saber como está, uma vez que apresenta uma grande preocupação com a sua

saúde e desempenho sexual.

Justifica esta preocupação pelo medo de tornar-se “menos homem”, caso desenvolva

disfunção sexual. Ao mesmo tempo ele salienta não ter problemas em realizar o exame do

toque retal, caso necessário, o que parece haver aí, na nossa leitura, uma relação paradoxal, já

que os homens parecem compartilhar da ideia de que a submissão ao exame de próstata, no

caso o toque retal, per se já caracterizaria uma afronta à sua masculinidade.

Sobre este tema, resgatamos a interessante discussão realizada por Romeu Gomes,

Elaine Nascimento, Lúcia Rebello e Fábio Araújo (2008), os quais abordam que o exame de

próstata (toque retal), mais que tocar o homem, toca sua masculinidade. Assim, estes autores

mencionam que é preciso considerar os aspectos simbólicos relacionados à realização deste

exame, uma vez que estes podem atuar como barreiras para os homens, já que o toque pode

ser visto “como uma violação ou um comprometimento da masculinidade” (p. 1976).

Não é nossa intenção aqui discutir especificamente os sentidos produzidos pelos

homens sobre o exame de próstata, mas os modos como eles se relacionam com o cuidado à

própria saúde. Logo, para Cristiano, por exemplo, o exame de próstata aparece como a sua

maior preocupação por acabar atingindo outras questões que não apenas o plano biológico.

Não se trata apenas de desenvolver ou não uma doença no corpo, e sim dos efeitos que esta

doença pode provocar na vida deste homem e como ele lida com a iminência desta doença.

Assim, para ele, provavelmente, é melhor deixar de ser homem por um momento, enquanto

realiza o exame, do que a possibilidade de deixar de ser homem para sempre.

Outra forma de falar das práticas de cuidado dos homens é a partir do estabelecimento

de comparações dos mesmos com as mulheres. Segundo todos os entrevistados (tanto no

grupo de homens quanto na sala de espera) há uma diferença nítida nos modos como homens

e mulheres se cuidam.

Para os nossos interlocutores, o homem, em geral, se cuida menos que a mulher.

Dentre as razões para isto, mencionam que a mulher é “mais acostumada” e naturalizam a

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suposta necessidade feminina de ter um cuidado com o seu próprio corpo, seja por ser mais

frágil e por isto ter mais propensão a adoecer, seja por questões biológicas, tal como ciclo

menstrual, além da preocupação com a higiene pessoal. O que nos faz pensar que seria uma

obrigação exclusiva da mulher manter-se limpa e bem cuidada. Em contrapartida o homem

seria mais desligado, desleixado, bruto, e por isso não liga para ir ao médico. Tal

comportamento acaba sendo justificado e legitimado socialmente, uma vez que o cuidado

consigo e com os outros são valores associados ao feminino, pois “homem que é homem, não

adoece”; desse modo a preocupação com a saúde acaba tornando-se uma atribuição da mulher

(DINIZ, 2004; COSTA, 2003)

Apesar desta ideia recorrente, Romeu afirma que, mesmo reconhecendo que a mulher

se cuida mais, não são todas que se cuidam, o que sugere um possível rompimento com as

cristalizações generificadas socialmente impostas. Neste sentido, a fala deste homem indica

que nem todos os homens nem todas as mulheres acedem literalmente às prescrições sociais

ou categorias analíticas que os condicionam a assumir determinados lugares e

posicionamentos (SCOTT, 1995), tal como a “mulher cuidadora” e o “homem descuidado”.

Para os homens do grupo a mulher se cuida mais, sendo este cuidado traduzido,

muitas vezes, por uma maior busca do atendimento médico e dos serviços de saúde. Dentre as

justificativas para isto, aparece a ideia de que a mulher tem uma tendência para se cuidar

mais, que é mais aberta, quer saber mais e se preocupa mais com a própria saúde. Ao

mesmo tempo aparece a noção de que obrigatoriamente a mulher precisa ir ao serviço pra

fazer prevenção, enquanto que o homem diz não precisar fazer isso.

Nesta discussão, Vinícius afirma que enquanto a mulher vai à unidade de saúde fazer

prevenção, o homem vai fazer correção, ou seja, já vai com alguma doença para tratar. Por

outro lado, Cristiano acredita que enquanto a mulher vai à unidade para manter-se saudável,

o homem vai para não detectar doenças. O que acaba reforçando a ideia de que “ir ao médico”

tem como consequência “arranjar doença”. Para eles, alguns homens, não vão ao médico por

dizer que “você vai com saúde e volta doente”. Tais argumentos são ilustrados a seguir:

Túlio: E tu acha que porque, assim, essa busca da mulher por procu... por cuidar mais

e do homem cuidar menos?

Vinícius: Eu num... eu acho que é uma tendência, é uma tendência de que a mulher,

pra esse lado ela é mais, já o homem... Tanto é que numa... no posto você olha a

quantidade de mulher é bem mais que a de homem, e os que estão lá, estão não pra

propor prevenção, tão ali pra... já pra cuidar,eh, da... da doença, já não é nem pra se

prevenir! Já não é como prevenção, já tá ali como correção!

Túlio: No caso, a mulher... Vinícius: A mulher vai...

Túlio: A mulher vai pra prevenir...

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Vinícius: Prevenir! Prevenção...

Túlio: E o homem vai pra cuidar... pra corrigir alguma coisa...

Vinícius: Pra uma correção... pra corrigir!

Túlio: Sim, tu acha então que os homens não costumam ir na unidade porque eles tem

medo de... de identificar se tem um problema...? Porque tu disse que o homem vai e

volta... “Fui bom e voltei doente!”

Cristiano: Justamente!

Túlio: Então, é como se eles tivessem medo de descobrir que estão doentes, ou...?

Cristiano: Exato! Exato!

Túlio: E a mulher não tem medo!?

Cristiano: A mulher, ela é diferente do homem, ela pensa totalmente diferente!... Ela

vai procurar se cuidar, se manter saudável, o homem tem medo de chegar lá e

encontrar uma coisa que vá piorar a situação dele! Túlio: Ah, então a mulher vai pra se cuidar, o homem não vai pra não detectar

doença!?

Cristiano: Exatamente!

Outro argumento apresentado por Cristiano relaciona-se ao tema do trabalho já

discutido acima. Para ele, supostamente é mais fácil para a mulher ir ao médico já que ela tem

mais tempo, ao contrário do homem que precisa trabalhar para manter a casa. Nesta

associação, vemos mais uma vez a ideia do homem enquanto provedor, que precisa trabalhar

para manter a família e por isso é impedido de cuidar da própria saúde.

Como dissemos no início deste tópico, alguns argumentos mencionados pelos

interlocutores nos fazem questionar até que ponto estes homens se localizam nas práticas

discursivas que produzem, se há ou não uma identificação dos mesmos com as justificativas

e/ou argumentos que apresentam para o (não) cuidado à saúde. Podemos discutir isto a partir

do diálogo abaixo:

Cristiano: Olha, por si mesmo a mulher, ela procura sempre o melhor pra ela, o

homem é mais relaxado em termos de saúde, entendeu? O homem é mais relaxado!

Porque a mulher tem mais... E tem outra coisa, ela tem mais tempo de ir ao médico do

que o homem, porque o homem, praticamente, é o que? É susteio da casa... o susteio

da casa é aquele que bota alimentação dentro de casa, analisando assim

financeiramente, né?! Então, ele se preocupa mais em trabalhar e a mulher se

preocupa... tem mais tempo de fazer as coisas em casa, quando a mulher não

trabalha!... Pra fazer as coisas, cuidar da saúde, então fica mais fácil pra mulher do que pro homem!

Túlio: Em tua casa acontece isso, por exemplo?

Cristiano: É porque quem trabalha em casa sou eu! Neste momento eu não tou

trabalhando! Então eu tou... eh, essa experiência, né?Porque ela tem mais tempo de ir

pro médico do que eu...

Túlio: Certo! No caso, pelo que tu poderia me falar então, tua mulher vai mais ao

médico e ela tem mais tempo porque ela não trabalha, então por isso que ela poderia ir

mais!?

Cristiano: Exato! Exato!

Túlio: Mas tipo, agora que tu ta sem trabalhar, aí tu não vai...?

Cristiano: (Risos) Mas eu não vou porque eu acho que eu não tou doente! Túlio: E ela acha que ela ta doente quando ela vai?

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Cristiano: Não, é porque a mulher sempre tem uma dor de cabeça, tem isso, tem...

tem enxaqueca, tem isso aqui, tem aquilo outro... Até, eh, quando vem a menstruação,

às vezes ela passa sempre aquela... aquelas dores que não é normal sentir, aí tem que

procurar o médico, o homem não tem essa parte, né, o homem, sei lá... o homem se,

num liga mais nesses assuntos de... de saúde!

O argumento do “não trabalhar” parece não se aplicar à vivência particular desse

usuário, já que embora ele afirme que o homem não vai à unidade de saúde por causa do

trabalho, ele, mesmo estando sem trabalhar, não costuma ir ao serviço. Desta forma, parece-

nos que muitas vezes estes homens se colocam à parte de suas afirmações. Entretanto, como

dissemos, não tentamos aqui conhecer as verdades dos nossos interlocutores, mas

compreender os sentidos que produzem sobre as práticas que utilizam para cuidar da própria

saúde.

Como os homens acessam e percebem os serviços de saúde da Atenção Básica?

Vários estudos têm indicado a pouca presença dos homens nos serviços de saúde da

atenção básica (GOMES e NASCIMENTO, 2006; SCHRAIBER et al, 2010; COUTO et al,

2010; GOMES et al, 2011), o nosso não foi diferente. Os homens que entrevistamos, apesar

de apresentarem a figura do médico como central para o cuidado à própria saúde, não

costumam buscá-lo ou acessar os serviços em busca deste atendimento.

Quando vão, “ir à unidade” tem como fundamento maior uma resposta ao

adoecimento. Estes homens só acessam os serviços de saúde quando estão sentindo alguma

coisa, ou quando tem alguma doença já instalada (diabetes, hipertensão etc.) e precisam

controlá-la. Além disso, na maioria das vezes, a unidade de saúde não é a sua primeira opção,

pois vários dos nossos entrevistados referem que são os serviços de urgência e emergência

que acessam primeiro (Hospitais, Unidades de Pronto Atendimento – UPA).

Dentre as explicações para isto pode-se destacar a própria situação de adoecimento,

que requer procedimentos imediatos, a agilidade no atendimento e a rapidez da resposta.

Coisas que não acontecem na unidade de saúde, visto que é necessário, segundo eles, aguardar

em filas enormes para marcar e ter que retornar outro dia para ser atendido. Este aspecto foi

abordado por Wagner Figueiredo (2005) que salienta a preferência dos homens em utilizar

farmácias ou prontos-socorros, uma vez que tais serviços apresentam respostas mais objetivas

às suas demandas. Para ele, nestes espaços os homens são atendidos de maneira rápida e mais

facilmente conseguem expor seus problemas.

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Chama-nos a atenção, no entanto, o fato de, mesmo com estas queixas sobre os

serviços e de não frequentarem a unidade, a maioria dos homens tecerem elogios aos

atendimentos e à equipe de saúde, além de avaliarem, em geral, positivamente a unidade

básica de saúde. Como vemos nos diálogos abaixo:

Túlio: Certo! Eh, o que foi que tu, tipo, o que é que tu achou do atendimento do

médico daqui? Tu foi bem atendido? Felipe: Eu achei bom! Achei bom! Ele veio, atendeu, olhou... E assim, né, assim... eu,

assim... eh, deu esse... deu essa acolhida tão fácil, né, que às vezes a gente pensa que

vai ser aquela burocracia, vai num dia, vai “não sei o que”, e não faz... mas essa daqui

tá sendo mais rápido do que eu esperava, e aí passou um encaminhamento também pro

cardiologista, pra pedir os outros exames, tudinho, o médico já solicitou, foi bom!

Túlio: Tá! E quando o senhor chega na unidade, como é que o senhor é recebido?

Roberto: Rapaz, é tranquilo de todo modo! É porque a turma reclama muito, mas essa

é uma... uma das melhores equipes é essa agora! O povo num... num... num, nunca tá

satisfeito, né, sempre quer mais, né?! Desunião! Do jeito mesmo que a menina falou!

Doutor [diz o home do médico] passou o remédio caseiro, ela queria o antibiótico! Aí

é bronca!

Túlio: Hum...O senhor já, sempre que o senhor quis, eh, algum atendimento na

unidade, conseguiu tranquilamente?

Roberto: Tranquilo! Toda vez que eu vou é tranquilo lá! Atendem bem eles... Túlio: Tem alguma coisa que o senhor gostaria que lá mudasse? Que mudasse na

unidade, pra melhorar?

Roberto: Rapaz, por enquanto, não!

Consideramos que uma das razões para a avaliação positiva pelos usuários está

centrada na efetivação de um atendimento imediato: quando ele ocorre, o serviço é bem

avaliado. Tal reflexão foi decorrente, principalmente, das falas dos homens que entrevistamos

na recepção (como Felipe), quando, após terem sido atendidos, virem suas necessidades,

naquele momento, respondidas. O que não aconteceu com Tomás, que acabou precisando ir a

outro serviço, via encaminhamento, para conseguir o que queria.

Túlio: Ok! Queria acrescentar mais alguma coisa? Você, livremente quer falar alguma coisa?

Tomás: Não, só... fiquei meio frustrado porque, eu como diabético, eu falei né,

fiquei... você tem que pegar a insulina, só tenho uma insulina em casa, um pouco, né,

então, eu encontrei o médico, ele... “Não, vá lá!”... quatro horas eu vim, mas ele só me

deu um encaminhamento pra o [cita o nome de um serviço de saúde da rede

municipal], né, só que eu não sei se eu chegar lá eu vou receber, como é que vai ser...

e se a que tá em casa acabar? É aquela questão, né, então eu acho que o posto de saúde

poderia fornecer, né, já que tem um médico aqui capacitado e tal, acho que podia ficar

sendo acompanhado por ele e também receber a insulina aqui quando realmente

precisasse, não que recebesse de um e de outro!

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Dessa maneira, o atendimento recebido por este homem foi visto como “frustrante”,

uma vez que tinha a expectativa de resolução de seu problema de maneira imediata o que

acabou não acontecendo, logo, acaba apresentando uma avaliação negativa da unidade.

Outra explicação para a avaliação positiva do serviço pela maioria dos nossos

entrevistados, presente na fala de Roberto, citado anteriormente, relaciona-se a um

tradicional movimento assistencialista que marca o processo de construção do SUS, a partir

da incorporação da saúde como um direto, e da ideia de que se trata de um sistema voltado

“para o pobre”. Assim, ao mencionar “a turma reclama muito” ou “o povo nunca tá

satisfeito”, podemos pensar na existência de uma lógica clientelista que remete à ideia de que

“se ta ruim com ele, é pior sem ele”.

Desse modo, a existência de serviços voltados ao homem nesta unidade, per se acaba

sendo reconhecida positivamente como um ato de concessão benevolente do Estado e de

preocupação com o bem estar da população. Quanto a isto, Noca (2011) argumenta que a

assistência à saúde, tomada como um atendimento público universal, ainda não foi apropriada

pelos usuários dos serviços como um direito de cidadania e dever do Estado, o que faz com

que esta lógica assistencialista ainda seja um imperativo no interior destes serviços.

Assim, para Roberto, parece-nos que a existência de um atendimento público por si só

deve ser bem avaliada pela população, independente da sua qualidade. No caso do público

masculino isto aparece com maior destaque, uma vez que consideramos que as iniciativas

denotadas pelos serviços serão sempre bem avaliadas pelos homens, tendo em vista a

inexistência de ações anteriores em que estivessem inclusos. Além disso, como salienta Noca

(2011), em certa maneira tal reconhecimento se relaciona à ausência do controle social, pois o

desconhecimento, por parte da população, da saúde como um direito de cidadania pode fazer

com que esta não possua parâmetros para avaliar o que seria (ou não) um bom serviço de

saúde.

Outra ideia trazida na fala deste mesmo interlocutor (Roberto), já abordada

anteriormente, diz respeito à utilização dos saberes populares como alternativa ao cuidado, a

qual acaba sendo desvalorizada pelos próprios usuários. Como relata este interlocutor, o

médico “recomenda um remédio caseiro” e alguém reclama por preferir “antibiótico”. Isto nos

remete à ideia da tecnologização do cuidado, que faz com que este seja condicionado ao uso

de insumos da indústria biotecnológica, tais como produtos farmacêuticos e exames, como

substratos à produção da saúde. Isto está presente também no relato abaixo:

Túlio: E o que é que tu achou, assim, do atendimento daqui, das vezes que tu veio?

Vitor: Eu acho que foi bom, né?! Tirando a demora, o resto tá bom demais!

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Túlio: Tu acha? O que é que tu mais gostou?

Vitor: Eu gostei porque eu contei um problema a ela, ela passou... a doutora passou

vários exames, fez um check-up geral, coisa que nunca mais eu tinha feito, aí... achei

o atendimento bom!

Se outrora exames e medicamentos eram utilizados como artefatos de apoio à prática

de saúde, auxiliando no combate aos sintomas e na elaboração de diagnósticos, atualmente

tais materiais são consumidos incessantemente pelos usuários dos serviços, sendo

demandados por estes. Tal prática faz com que, muitas vezes, um trabalhador de saúde, ou um

atendimento realizado sejam bem avaliados por tais usuários, a partir do uso ou recomendação

de tais recursos. Logo, um atendimento só é bom se houverem prescrições e

encaminhamentos, o que auxilia na manutenção de uma cultura de cuidado normatizado em

constante retroalimentação.

Além disso, há que se levar em consideração a relação econômica existente na

produção da saúde via tecnologização das práticas médicas, o que é referido por Maria Helena

Augusto (2000) como “economicina”. O estímulo cada vez maior à realização dos chamados

“exames de rotina”, por exemplo, constitui uma prática que reflete esta lógica. Neste caso,

utilizam-se recomendações médicas complementares para o cuidado, pautadas em processos

biotecnológicos, que, na verdade, pouco contribuem para a saúde das pessoas, mas que

constituem grande atividade lucrativa para seus propositores, sendo tais práticas

supervalorizadas pela população que a consome.

Sobre isto, concordamos com Noca (2011) quando afirma que a regularidade no uso e

produção da tecnologia em saúde, ao mesmo tempo em que contribui para a revelação de

alguns processos, acaba acelerando outros, como a crescente medicalização da saúde. Assim,

“o ‘direito à saúde’ é confundido com ‘direito à assistência médica’” (p. 100). Aspecto

bastante presente nas falas dos nossos entrevistados, como vimos, os quais associam, em larga

medida, a produção do cuidado à busca pelo atendimento médico.

Compreendemos que quando nossos interlocutores consideram o cuidado à saúde a

partir da produção e mediação biotecnológica, acabam perdendo de vista, por exemplo, a

importância de uma perspectiva mais relacional do cuidado como produção intersubjetiva. Tal

discussão nos remete a Ricardo Ayres (2001) quando vai discutir a intersubjetividade nas

práticas de saúde. Intersubjetividade esta, que como o próprio nome sugere, se constitui no

espaço das relações estabelecidas entre os sujeitos. Considerar este espaço intersubjetivo

aparece como essencial para as práticas de cuidado tendo em vista que, como postula Ayres

(2011), muitas vezes o êxito técnico acaba revestido de sucesso prático. Assim, a medicina

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tecnificada que se propõe cuidar, muitas vezes, desenvolve práticas pouco comprometidas

com as necessidades apresentadas, por estar muito preocupada em oferecer respostas

normatizadas.

Ainda sobre o uso/acesso dos homens à unidade de saúde, os participantes do grupo

de homens parecem não compreender que o “estar” no grupo é também uma forma de acessar

e de utilizar as atividades oferecidas no serviço de saúde. Além disso, apesar de os mesmos

reconhecerem mudanças em suas práticas de autocuidado após começarem a frequentar o

grupo, vemos certa centralidade destas práticas na autoridade do trabalhador de saúde, uma

vez que “é ele quem supostamente sabe o que é certo ou errado para a minha saúde”. Assim,

pensamos que as atividades de educação em saúde, realizadas no grupo por alguns

trabalhadores, ainda parecem se realizar no plano da transmissão de informações e não na

aprendizagem e desenvolvimento de outras práticas pelos homens, os quais ainda parecem

tutelados pelas indicações destes trabalhadores.

Quando aparecem críticas ao funcionamento da unidade básica de saúde, estas

parecem se situar mais no sistema (atrasos, burocracia) e na estrutura física do serviço (lugar

onde a unidade está situada), nunca sendo referidas as relações entre usuários e trabalhadores,

ou os processos de trabalho e oferta de serviços específicos à população masculina. Há, de

modo geral, uma compreensão positivada dos trabalhadores de saúde e das relações (apesar de

poucas) estabelecidas com os usuários, os quais afirmam “não ter do que reclamar”.

Por outro lado, quando são solicitados a sugerirem mudanças na unidade para

melhorar e atrair mais o homem, mais uma vez a infraestrutura é bastante citada. Surge

também o desenvolvimento de atividades de lazer, as quais têm a sua ausência justificada

pelos próprios usuários devido à inexistência, na comunidade, de um espaço que possibilite

esta prática. Entre os homens da sala de espera, aparecem ainda a realização de campanhas

para atrair mais o homem, a ampliação das vagas de atendimento e a facilitação do acesso,

para a marcação de consultas, por exemplo.

Outra demanda apresentada por (apenas) um dos nossos entrevistados foi a

necessidade de um profissional especialista para o homem, no caso, o urologista, na unidade,

o que nos chamou a atenção tendo em vista a grande centralidade atribuída pelos

trabalhadores às questões da próstata para os homens. O que não significa, no entanto, que os

nossos entrevistados não tenham tal preocupação, mas que quando conversamos sobre a

produção da sua saúde em geral, nem sempre a próstata tenha tanto destaque.

Por fim, um aspecto merece ser destacado: os homens reconhecem que a unidade tem

feito ações voltadas para eles, citando, por exemplo, o próprio grupo de homens e o dia do

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homem. Para eles, portanto, depende do homem ir mais ao serviço, pois já existem ações

direcionadas a ele, o que mais uma vez nos remete à percepção positivada do serviço em vias

de uma cultura assistencialista, sem que tais homens reflitam, por exemplo, se as atividades

oferecidas pela unidade estão de acordo com suas necessidades particulares.

Túlio: E tu acha que é... a unidade de saúde poderia fazer alguma coisa pra melhorar,

o cuidado ao homem? Tu acha que precisa de alguma coisa lá?

Marcelo: Precisa...

Túlio: O que, por exemplo? O que poderia...? Se fosse dizer... “ah, eh, pra melhorar o

atendimento ao homem na unidade eu queria que isso existisse”... uma sugestão, ou

poderia ter mais o que? Ou tu acha que talvez...

Marcelo: Rapaz se... se... se... melhorar o homem não vai, porque o homem não vai.

A gente vê, a gente conta a dedo. Se tiver vinte mulher, tem dois homens! A ocupação

é a mesma, a gente quer melhorar, mas a própria... o próprio homem num deixa!

Túlio: E tu acha que poderia fazer o que pra que o homem começasse a ir mais?

Marcelo: Não, ele mesmo... ele deve, ele mesmo... ele mesmo ir, que nem as

mulheres vão... Homem não, homem é... medroso, pra ir ao médico!

Túlio: O agente de saúde não podia fazer nada, com relação a isso...!?]

Marcelo: Não!... Eu creio que não!

A esse respeito uma discussão é realizada por Schraiber e Mendes Gonçalves (2000)

no tocante às necessidades e demandas apresentadas pelos homens na saúde. Uma

necessidade se configura no momento em que alguém tem diante de si um impedimento, que

dificulta o seu viver e gera sofrimento. Podemos compreender que as necessidades

encontram-se em todos os domínios da vida, no trabalho, na família, no meio sociocultural, no

lazer etc. Uma pessoa, quando apresenta determinada necessidade, recorre na coletividade a

um meio para a resolução da sua situação. Assim, acaba endereçando a outrem a possibilidade

de ter atendidos os seus desejos, legitimando-os como aqueles que podem intervir de modo a

responder aos seus carecimentos. A necessidade, então, se formula a partir do resultado das

intervenções sobre os carecimentos da população e a demanda, por sua vez, situa-se na busca

ativa pela intervenção (SCHRAIBER e MENDES GONÇALVES, 2000).

No caso das necessidades em saúde, as consideramos como resultado de uma

compreensão particular do aparelho social ao qual a pessoa recorre em busca de ajuda, neste

caso, trata-se de uma produção dialética que se realiza na compreensão de alguém sobre o seu

próprio sofrimento e nas respostas e recursos tecnológicos possíveis, situadas em códigos

culturais específicos e disponíveis para lidar com aquele sofrimento (CAMARGO JR, 2003).

Desse modo, como mencionam Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) as necessidades

são construções sociais. O que implica em que, as pessoas para reconhecer determinados

carecimentos como necessidades direcionadas pra um ou outro serviço dependem do

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reconhecimento das potenciais respostas a estes carecimentos construídas, a partir dos

(des)usos possíveis, na correspondência entre as necessidades apresentadas e os serviços/bens

disponíveis. Dito de outro modo, “as necessidades podem corresponder a construções diversas

dos carecimentos, a depender do tipo de resposta proporcionada na produção dos bens ou

serviços” (NOCA, 2011, p. 89).

No caso desta unidade básica de saúde, as atividades oferecidas para os homens foram

construídas mediante certa maneira de encarar suas necessidades, assim, ao se definirem tais

atividades como formas de produzir o cuidado à população masculina, tem-se em conta quais

os carecimentos apresentados por estes, bem como as formas possíveis do serviço em ofertar

respostas aos mesmos. Nas falas dos nossos interlocutores, quando pontuam que são os

homens que devem ir mais ao serviço, vemos como os próprios serviços em suas proposições

acabam por criar também outras demandas, instaurando entre os sujeitos novas necessidades,

qual seja a necessidade da própria busca pelo serviço.

Assim, é importante considerar o movimento que, como aponta Schraiber (2005),

atribui à baixa frequência dos homens nos serviços sua suposta resistência aos cuidados à

saúde, não sendo reconhecida, muitas vezes entre eles mesmos, sua pouca inclusão em

propostas assistenciais ou em atividades específicas voltadas às suas reais necessidades.

Como pudemos ver acima, neste estudo, compreendemos haver também uma tendência à

responsabilização, por parte dos próprios usuários entrevistados, dos homens pela menor

busca dos serviços.

Desta forma, há que se considerar que os próprios usuários acabam reproduzindo

também tais ideias, sendo corresponsáveis pelos impasses na sua relação com os serviços

(COUTO et al, 2010). Quanto a isto, nos cabe questionar: ao assumirem a perspectiva de que

o acesso aos serviços de saúde depende deles, estes homens não estão assumindo um lugar a

eles imputado historicamente, naturalizando suas posições de não-cuidadores, por exemplo?

PRODUÇÃO DE CUIDADOS À SAÚDE COM TRABALHADORES DE SAÚDE

Tal qual fizemos no tópico anterior com os homens/usuários, neste momento nos

dedicaremos a compreender de que maneira os trabalhadores de saúde entrevistados lidam

cotidianamente com os homens no interior dos serviços de atenção, considerando as práticas

de cuidado que desenvolvem e as ressonâncias dessas práticas na vida destes homens.

Também estruturamos este tópico a partir de algumas questões, que abordam: (se e) como os

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trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da unidade básica de

saúde?” e “(se e) como operam a produção de cuidados à saúde dos homens no cotidiano do

serviço?”, desenvolvidas a seguir.

Como os trabalhadores de saúde percebem a presença de homens no interior da unidade

básica de saúde?

Partindo para as entrevistas com os trabalhadores de saúde, vemos que muitos dos

argumentos situados pelos homens acerca dos cuidados à própria saúde e a de outros homens

acabam sendo utilizados também por estes trabalhadores, independentemente de sua função

no serviço ou formação. Uma das idéias mais recorrentes dentre aqueles que entrevistamos

refere-se ao menor fluxo de homens na unidade de saúde, principalmente quando comparado

à presença das mulheres.

Quando questionamos a estes trabalhadores “como você observa a presença de

homens no cotidiano da unidade básica de saúde?”, obtemos respostas como as expressas

nos fragmentos abaixo:

Túlio: Como é que tu avalia a presença de homens no cotidiano da unidade como

usuários?

Mateus (Médico): A contagem de homens que vem pra mim fica bem clara por conta

dessas fichas que eu tenho que preencher. E daí a gente vai colocando assim o código

1 para o sexo masculino, 2 para o sexo feminino. E daí quando a gente vai mexer aqui no (T.I), você vê que a maioria é 2. Alguns dias aqui dá mais homem, mas são poucos

os dias. A maioria é do sexo feminino mesmo que vem na unidade. Aí a unidade

termina por hoje... até agora por atender quatro pessoas. Das quatro, uma foi do sexo

masculino e três do sexo feminino...

Túlio: Como é que você percebe a presença de homens no cotidiano da unidade...

número de usuários?

Regina (Enfermeira): Homens é bem menor do que mulheres. Isso é empírico,

porque nunca a gente foi fazer uma medição. Mas eu acho que depois do grupo de

homens, tem um marco aí, antes e depois. A gente passou a ver mais homens na

unidade, mas se você contar o grupo de acolhimento é que fica mais visível: você tem mais mulheres do que homens. Eu acho que isso é em qualquer unidade, sempre tem

mais mulheres. Tem muita mulher que não trabalha na comunidade, então isso

também leva a ser ela que vem mais a unidade.

Nestes fragmentos observamos que a construção discursiva se realiza de maneira

diferente entre os dois profissionais. Enquanto o médico apresenta os registros das consultas

realizadas naquele dia para justificar seus argumentos, a enfermeira afirma que mesmo de

maneira empírica, observa que a unidade é mais acessada pelas mulheres e, enfim, ambos

concluem que o homem apresenta-se com menor frequência no serviço de saúde.

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Um argumento utilizado pela enfermeira para explicar a maior presença das mulheres

na unidade de saúde, refere-se ao fato de muitas delas não trabalharem, o que nos faz pensar

que, dessa forma, esta profissional acaba situando o homem como trabalhador, reafirmando a

sua posição de provedor, que supostamente o impede de acessar os serviços e, logo, de cuidar

da própria saúde por intermédio daquele espaço. Vimos que o trabalho também é uma

temática que aparece como eixo estruturador da relação que os homens dizem estabelecer com

o (não) cuidar da saúde, sendo este tido, na maioria das vezes, como um obstáculo ao cuidado.

Um aspecto que merece destaque na fala da enfermeira refere-se a uma suposta

mudança na unidade com relação à presença de homens. Segundo ela, os trabalhadores de

saúde passaram a ver mais usuários do sexo masculino a partir da criação do grupo de

homens. Este argumento também é compartilhado por outros trabalhadores da equipe, como

destacamos nas falas a seguir:

Túlio: Como que é a presença de homens aqui na unidade?

Jéssica (ACS3): Agora está sendo mais constante, porque antigamente você não via

tanto homem cuidando da saúde, vinha quando já tava muito doente... Mas agora

também como tem o grupo de homens que tá influenciando muito também e eles tão

participando muito agora...

Érica (Téc. de Enfermagem 2): O que a gente vê muito aqui no posto, diferente de

muitas unidades é a participação do homem, porque depois da... da... da... de, da

criação do grupo a gente viu um aumento maior do acesso do homem, normalmente era mais mulheres que vinham ao posto procurar, os homens quando vinham ao posto

era já doentes e, não assim, pra fazer um acompanhamento, tipo... aferição de pressão,

que é uma frequência aqui que eu tenho muito... Depois do grupo de homens, depois

da chegada do PSF aqui, a gente teve um aumento muito grande de homens vir pra o

posto pra aferir pressão, pra poder se tratar, pra fazer exame de sangue, PSA... que a

gente não tinha muito essa vivência, curativos também, a gente não tinha uma adesão,

quando a gente chegou não tinha uma adesão muito grande de curativos, hoje em dia a

gente vê, mais assim, eles tem mais uma credibilidade, procurando mais o posto, até a

questão do atendimento, a gente vê que no acolhimento, o gran... assim, uma grande

parte do atendimento também são homens, e homens idosos, é os que normalmente

tem mais acesso ao posto...

Para a técnica de enfermagem 2, o grupo de homens não apenas possibilitou um

aumento na presença de homens na unidade, mas também certa credibilidade ao serviço, o

que fez com que os mesmos tivessem aderido a determinados procedimentos a que não

acessavam anteriormente. Outro aspecto destacado pela técnica, diz respeito aos motivos que

tem levado os homens à unidade: se anteriormente eles já vinham doentes, em busca de

tratamento, após a criação do grupo, eles passaram a vir buscar acompanhamento,

exemplificado pela verificação das taxas de pressão arterial e realização de exames, como o

PSA.

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No entanto, esta mudança referida pelos trabalhadores, atribuída ao grupo de homens,

nos parece um tanto controversa, uma vez que apenas um dos homens entrevistados,

participante do grupo, afirma fazer uso contínuo do serviço de saúde. Mesmo este usuário

tendo associado à sua participação no grupo algumas mudanças na sua forma de lidar com a

própria saúde, não se pode concluir que o grupo de homens possa ser visto como o único

responsável.

Santiago: Eu não vou dizer que eu antes não me encaixava mesmo não... Agora,

depois que eu tou frequentando o grupo, a gente vai vendo como é a necessidade que

você tem de... de buscar aquilo, porque a gente também precisa, né, é por isso que a

maioria morre, porque, tem um problema, não cuida, não cuida, não cuida, quando dá

fé, fica aquela bola de neve, não consegue mais... ta tarde!

Até mesmo porque, em outro momento, este mesmo usuário menciona que encontra

dificuldades para receber o atendimento que precisa no serviço e ter suas necessidades em

saúde supridas.

Túlio: Ah ta... me diz uma coisa, depois que tu começou a frequentar o grupo, tu viu

diferenças no modo como tu cuida da tua saúde? Santiago: Também! Agora, o problema é a dificuldade de a gente chegar ao que a

gente realmente precisa! Porque aqui no grupo é uma coisa, agora você... você toma

conhecimento do que você tem, agora pra cuidar é o trabalho... porque você vai aqui e

ali, aí marca pra cinquenta anos, aí você morre e não consegue fazer uma coisa

direito...

Dessa maneira, embora reconheçamos a importância que o grupo de homens tem para

a (com)unidade, significando mais que uma estratégia de acesso à população masculina, um

marco e diferencial no atendimento da população em geral, ainda é possível encontrar

algumas fragilidades em seu funcionamento. A primeira diz respeito à dificuldade encontrada

pelos trabalhadores e usuários na adesão de mais integrantes ao grupo, o que é referido pelos

nossos interlocutores. Em segundo lugar, cita-se a quase ausência da população masculina

mais jovem, uma vez que a maior parte dos integrantes possui acima de 40 anos. Em terceiro,

a efetiva aproximação e reconhecimento deste grupo, entre os homens, como estratégia de

cuidado à saúde que permita uma maior articulação dos mesmos com a unidade básica.

Por outro lado, pelas palavras dos trabalhadores, podemos pensar que talvez, não de

maneira direta, o grupo de homens possa ter atuado na construção de uma consciência

cuidadora entre os homens, mas que esta mudança tenha sido incorporada muito mais pelos

trabalhadores, os quais provavelmente passaram a desenvolver outras formas de se relacionar

com o homem da comunidade, anteriormente invisibilizado no serviço.

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Ainda na discussão sobre a presença de homens na unidade de saúde, a médica que

entrevistamos posiciona-se da seguinte maneira:

Túlio: Ok! Eh... como que tu percebe o fluxo de homens na unidade?

Priscila (Médica): Eu acho que o fluxo de homens é diminuído, sim! Eu acho que não

é uma falácia! Eu acho que a gente tem uma dificuldade de trazer o homem por um

milhão de motivos! O primeiro dos motivos é que existe uma referência tanto... eu não

diria nem machista, mas masculinista, uma questão de gênero mas... do masculino, de

que o homem, ele, pra garantir a força, a sua virilidade, da sua, eh... da sua força, de...

e dessa referência de que o homem é mais forte, de que o homem precisa ter uma resistência melhor em determinadas coisas, isso vai respingando diretamente na saúde.

(...) essa construção de gênero masculina, ela vem respingando diretamente na saúde

desses homens, que precisam de... demonstrar uma força, demonstrar uma

autosuficiência, demonstrar uma resistência que por hora os corpos deles não tem

tanto quanto eles gostariam, ou quanto a sociedade gostaria que eles tivessem, então

isso, eu acho que diminui sim, e muito, o cuidado com a saúde... o cuidado dessas

pessoas, e eu acho que, eh... essa construção, ela vem dentro do SUS também, na

forma como ele teve de se autoafirmar como sistema de saúde. Então, a gente tem sim

uma feminilização das unidades de saúde, a gente vê aqui ó... [aponta para as paredes

do salão]... ao nosso redor, então são cartazes com mulheres, cartazes rosas, cartazes

femininos, então a gente tem... o movimento social das mulheres, o movimento

feminista ele vem afirmar o gênero feminino, e isso tem um pouco dessa contraposição também, de que... não existe um movimento de homens, mais histórico

e mais forte mundialmente como houve o movimento de mulheres, porque existe uma

hegemonia do sexo masculino na política, nas práticas de trabalho, enfim... nos

processos de história do mundo, então, normalmente quem se rebela é quem tá mais

oprimido, e de fato, historicamente quem se oprimiu mais foram as mulheres... Então,

as políticas públicas, na minha opinião, elas vem se formando por conta dessas

demandas, então, essa demanda e o movimento social que vai bater na porta é o

movimento das mulheres, é o movimento de feminilização, de fato, das unidades de

saúde, dessa mulher que historicamente é mais frágil, historicamente adoece mais,

historicamente não precisa ser tão autosuficiente, então ela acaba por dar o formato,

dar uma tônica nos serviços de saúdes, que acabam sendo hegemonicamente femininos...

O trecho destacado nos traz uma série de elementos que são usualmente atribuídos

como justificativas ao não uso dos serviços de atenção básica pelos homens, e ao mesmo

tempo auxiliam a construir uma imagem do serviço que acaba por afastá-los: a ausência dos

homens nos serviços, ao mesmo tempo, é uma causa e consequência da falta de cuidados

voltados para ele.

Como vemos na fala da médica, o fluxo de homens na unidade é diminuído e há uma

dificuldade em atraí-los. Como motivos, esta trabalhadora de saúde cita a questão de gênero

(há uma referência masculinista), o processo de construção do SUS, a feminilização das

unidades de saúde, fruto dos movimentos de renúncia à histórica opressão social feminina, e a

inexistência de um movimento de homens semelhante. Reconhece, então, que as políticas

públicas são gestadas a partir das demandas que se apresentam. Logo, se a mulher demanda

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mais, ela dá a tônica dos serviços e, em contrapartida, a falta de reivindicações por parte dos

homens resulta numa invisibilidade masculina nestes espaços.

Por outro lado, esta mesma trabalhadora afirma haver um aumento na presença de

homens nas unidades, decorrente de uma contrapartida política, oriunda principalmente dos

movimentos sociais, e acadêmica, que vem investindo nesta pauta e puxando pro lado da

universalização, o cuidado com os homens:

Priscila (Médica): Existe uma melhora... Eu acho que da construção do SUS pra cá

existe uma melhora! Existe um olhar, eu acho que essa... esse teu olhar acadêmico, e o

olhar de tantas outras pessoas que vem trabalhando essa pauta, vem dando esse grito

de alerta pro próprio sistema, então eu acredito que existam... e aí existe o movimento

LGBT, né, o movimento de homossexuais, existem outras contrapartidas que vem

também bater nessa porta e que vem formatar, puxando também pro lado da universalização, o cuidado com os homens...

Sobre a feminilização dos serviços, outros trabalhadores também se posicionam,

reafirmando esta compreensão. Para o médico Mateus, por exemplo, a mulher ta mais atenta

pra saúde do que o homem. Ele justifica isto como uma questão cultural: a mulher se cuida

mais e se dedica aos filhos, enquanto que os homens se entendem como chefes da casa, que

precisam passar o dia fora, além do próprio machismo.

Entre os ACS, tal perspectiva também aparece, sendo a mulher mais cuidadosa com a

saúde por ser vaidosa, por gostar de estar bem e por gostar de se cuidar, como exemplificado

no trecho abaixo:

Túlio: Agora assim... Você falou em mulher, você acha que o modo que a mulher se

cuida é diferente do modo que o homem se cuida?

Lívia (ACS1): É diferente.

Túlio: Por quê? Lívia (ACS1): Ah, porque a mulher é mais vaidosa, ela gosta de se cuidar, gosta de

estar bem. Na verdade, antes, quando era (T.I), o número de mulheres que vinham

fazer prevenção é bem menor que agora. E agora não, tem dias que os (T.I) acabam,

não dá.

Túlio: Mais por vaidade que a mulher...

Lívia (ACS1): Não, pra se cuidar mesmo. É pra se cuidar mesmo. Ela gosta de tá bem

mesmo, consigo mesmo. Ela procura fazer o preventivo anualmente. O de mama não é

tanto assim por conta das dificuldades, mas hemograma...

Esta suposta maior atenção da mulher com a própria saúde foi discutida por Simone

Diniz (2004) em trabalho oriundo de pesquisa realizada com homens e mulheres com foco na

saúde sexual e reprodutiva, no contexto da atenção básica, e que tinha como um de seus

objetivos compreender como estas pessoas cuidavam da própria saúde. Para ela, as mulheres

parecem estar mais atentas às mudanças relativas à sua saúde e se mostram mais dispostas a

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buscar orientações com os profissionais. Além disso, a submissão delas à medicalização

aparece como uma rotina encarada com tranquilidade.

Um aspecto interessante destacado por Diniz (2004) diz respeito ao que ela refere

como “testagem indireta”: o fato de as mulheres excessivamente utilizarem os serviços de

saúde acaba funcionando para que os homens já se sintam examinados por estes. Assim, os

homens não precisam ir à unidade de saúde, uma vez que suas mulheres já vão. Mesmo

considerando que a pesquisa de Diniz (2004) se refere a um campo específico de ações em

saúde, podemos extrapolar estas considerações para outros contextos, uma vez que,

indiretamente, questões de saúde dos homens acabam sendo tratadas pelos profissionais

intermediados pelas mulheres.

Alguns autores referem como a presença das mulheres nos serviços acaba sendo

utilizada como uma forma de possibilitar uma maior adesão dos homens aos cuidados à

própria saúde (COUTO et al, 2010; MARCHIN et al, 2011), o que também é referido pelos

trabalhadores que entrevistamos. Quando questionamos a estes “como os homens chegam à

unidade de saúde?”, uma das principais formas se relaciona à participação feminina:

Túlio: Certo! Mas, esse homem que vem na unidade, eh... tem... como é esse homem?

Como ele vem? Como ele tem acesso?

Priscila (Médica): Esse homem muitas... em muitas situações, a gente percebe que

ele vem por conta... por intermédio e por conta de uma mulher, ou que seja sua mãe,

ou que seja sua irmã, quer seja seu, eh, sua esposa, enfim, que abre esse canal para que

ele se permita cuidar, né, ele se permita entender que precisa ser cuidado, e aí se

permita cuidar, né?!...

Túlio: Quando eles vêm pra cá, eles vêm de forma espontânea, são convidados, é marcado?

Sabrina (Téc de Enfermagem 1): Eu acho assim... As esposas é que vem pra marcar

porque eles não têm coragem de vim...

Túlio: Quando eles vem, eles marcam consulta ou pede pra alguém marcar pra ele?

Soraia (ACS2): Esse é o problema, eles ficam falando que quem tem que falar é a

esposa... Eles querem vim, mas pra eles mesmos vim marcar, não sei se eles vem fazer isso... A não ser que assim... que tenha algum problema com ela... que ela trava

mesmo e aí o marido tem que vim... (T.I)

É importante destacar nestes trechos, a explicação dada pela técnica de enfermagem

1 para a atuação das mulheres na marcação do atendimento para o homem: “eles não tem

coragem de vim”. Podemos tencionar tal argumento tendo em vista um dos principais motivos

apontados para o homem não frequentar os serviços: a manutenção da imagem masculina. A

“coragem” mencionada pela profissional acima pode não estar relacionada necessariamente a

um suposto “medo” de saber da sua saúde, mas que isto venha a fazer com que ele tenha

questionada a sua masculinidade.

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Como argumenta Diniz (2004), “a ida ao serviço é às vezes percebida como uma

forma de desonra masculina, por se mostrar vulnerável a doenças ou à influência feminina”.

Desta forma, “a ida ao médico é considerada como uma exposição de vulnerabilidade e da

fraqueza diante dos pares, pondo em dúvidas sobre a masculinidade de quem procurar ajuda, a

ser evitada a todo custo” (p. 68).

Além do intermédio feminino, os trabalhadores referem também outras formas de

acesso do homem à unidade básica de saúde. A enfermeira Regina, por exemplo, afirma que

dificilmente ele busca o serviço por si mesmo, quando não vêm através de uma mulher, vem

indicado por outra pessoa ou mesmo encaminhado pelos serviços de emergência, os quais são

tidos como uma das principais vias de acesso dos homens ao Sistema Único de Saúde

(BRASIL, 2009a).

Quanto aos motivos que levam o homem a ir à unidade, os trabalhadores acabam

elencando uma série de questões de saúde, mas que tem em comum o fato de serem queixas

de adoecimento. Os homens só vão ao médico “quando estão doentes”, “quando não tem mais

jeito”, “quando estão morrendo”, premissas compartilhadas pelos homens/usuários com quem

conversamos, como já mencionamos anteriormente.

A dentista Ramona defende que os homens têm medo de ir ao atendimento

odontológico e só vão à unidade quando estão com dor. Para a enfermeira a ida deles à

unidade é motivada por uma questão já instalada (“vem para tratar de um mal que estão

sentindo”, “já no processo de adoecimento”), nunca para fazer prevenção, ao contrário da

mulher que “já tem mais essa visão”, o que também é referido pelo médico Mateus.

Ainda sobre este aspecto, um elemento importante é relatado pela médica:

Priscila (Médica): (...) E esse homem, ele é fruto também desse despertar também da

cultura do check-up, né, de que “eu preciso me cuidar, porque se não vou morrer, e aí

eu preciso me entupir de exames, e me entupir de remédios para que eu consiga

chegar”, né?! Então esse homem chega ou com essa... com essa questão, né, do check-up, do olhar, ou com essa questão do intermédio feminino... minha opinião é...

Esta fala da médica além de reforçar uma noção de cuidado que se associa à

racionalidade biomédica, ao mesmo tempo, remete a um crescente movimento de

medicalização do corpo masculino. Sabe-se que historicamente, diferente do homem, a

mulher é quem sempre foi mais acostumada a ter o seu corpo como alvo da medicina,

principalmente com advento da ginecologia, como lembra Gomes (2008, p. 55, citando

ROHDEN, 2001), quando “teve o seu corpo mais medicalizado em diferentes ciclos de vida”.

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Com a crescente visibilização dada aos homens a partir dos estudos sobre

masculinidades no campo da saúde, também tem sido crescentes as tentativas de intervenção

biomédica sobre os seus corpos, principalmente no tocante à saúde sexual e reprodutiva, o que

tem tornado o homem alvo de produtos farmacêuticos e investimentos biotecnológicos de

controle, que instituem formas de conduzir sua relação com o próprio corpo e com a própria

saúde. Reflexão parecida foi realizada por Jéssica Noca (2011), a partir de Clarke (1993), ao

referir este processo de biomedicalização como produtor de transformações do corpo, da

saúde e da vida.

Diante das falas dos trabalhadores, e também resgatando um pouco do que já foi

discutido entre os homens, compreendemos que não é uma falácia o argumento de que as

mulheres utilizam mais os serviços de saúde do que os homens. De fato, uma simples ida a

uma unidade básica de saúde pode nos levar a observar como nestes espaços a presença

feminina é praticamente uma hegemonia. Isto também aparece em estudos acadêmicos e

pesquisas científicas nacionais e internacionais que atestam a pouca presença dos homens nos

serviços de saúde, exceto os de urgência e emergência.

No Brasil, especificamente, uma pesquisa realizada por Pinheiro et al (2002), a partir

de dados da PNAD/IBGE, de 1998, apontou que o percentual de mulheres que realizaram

consultas médicas neste período foi de 62,3%, cabendo 47,7% aos homens. Quanto aos

motivos para a utilização dos serviços de saúde, o estudo de Pinheiro et al (2002) concluiu

que as mulheres buscam mais os serviços de saúde para exames de rotina e prevenção

(mulheres 40,3%; homens 28,4%) e os homens vão por motivo de doenças (36,3%; mulheres

33,4%).

É importante destacar que mesmo reconhecendo a pouca presença masculina na

unidade básica de saúde, a maioria dos trabalhadores que entrevistamos, não compartilha da

idéia de que os homens são descuidados da própria saúde, como exemplificado no trecho a

seguir:

Túlio: Eu queria te perguntar, se tu concorda que homem não se cuida?

Soraia (ACS2): Eles se cuidam sim, acho que só falta um empurrãozinho. Alguém

que oriente, que esclareça... Tem alguns quando sente algo termina comentando, quer

dizer que eles não estão perdidos, se preocupam sim, só precisam perder o medo, o

tabu de falar alguma coisa... Túlio: Seria, tipo, eles se cuidam... um cuidado tardio ou um cuidado diferente?

Soraia (ACS2): É um cuidado tardio, infelizmente. Alguns não. Alguns eu sei que

vem mesmo e participam, mas a maioria é um cuidado tardio...

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No entanto, alguns trabalhadores, mesmo reconhecendo haver uma mudança nos

hábitos de cuidado (relacionados à busca pelo atendimento médico) por parte dos homens que

atendem na comunidade, ainda compartilham da perspectiva de que os homens são mais

descuidados, como diz a ACS Lívia citada abaixo

Túlio: Normalmente, as pessoas dizem que homem não se cuida. Tu concorda (sic)

com isso? Lívia (ACS1): Eu acho que sim.

Túlio: Que homem não se cuida? Por quê?

Lívia (ACS1): É. Porque ele acha que é forte, nada vai atingir. Se acha o Todo

Poderoso, é o leão da floresta. Aí não precisa não, porque se ele tiver algum tipo de

cuidado com a saúde, pelo menos uma vez no mês, no ano, procuraria a unidade de

saúde pra fazer uma avaliação.

(...)

Túlio: Pelo que tu vê (sic) aqui na unidade, o que é que você acha assim?

Lívia (ACS1): Bem, pelo menos aqui na unidade eles tão (sic) se cuidando mais. Aí

se você quiser ver como eles estão se cuidando mais e como eles gostam muito de se

agrupar, vem no Dia Azul. Aí você vê que é completamente diferente.

Diante deste trecho, destacamos que embora a ACS1 acredite que os homens, em

geral, não costumam cuidar da saúde, em sua opinião está havendo uma mudança, e eles têm

buscado se cuidar mais, pelo menos na unidade de saúde. Premissa que, como vimos, também

é compartilhada por outros trabalhadores.

Ainda sobre este assunto, a dentista Ramona afirma que os homens se cuidam sim,

mas ainda lhes falta conhecimento. Para ela, eles não se cuidam por reconhecerem a unidade

como espaço destinado ao cuidado das mulheres, além do machismo que os coloca numa

situação de suposto não adoecimento. Por fim, situa a responsabilização que os homens

atribuem à mulher sobre as questões da saúde (ela engravida, ela adoece), enquanto que ele

nunca adoece, razões estas que já foram abordadas anteriormente.

É importante, neste caso, atentar que, como afirmam Márcia Couto et al (2010):

Atributos relacionados ao masculino – como invulnerabilidade, baixos autocuidado e

adesão às práticas de saúde (especialmente de prevenção), impaciência, entre outros –

atualizados no cotidiano dos serviços pelos profissionais e pelos próprios usuários,

tornam estes espaços ‘generificados’ e potencializam desigualdades sociais,

invisibilizando necessidades e demandas dos homens e reforçando o estereótipo de

que os serviços de APS são espaços feminilizados (p. 267).

Desta forma, retomamos nossa ideia de que a compreensão do cuidado à saúde

necessita ser relativizada tendo em vista os modos particulares com que cada pessoa lida com

sua própria vida. As comparações feitas entre os cuidados de homens e mulheres precisam ser

tensionadas, uma vez que muitas vezes se investe uma espécie de feminilização dos homens,

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tendo por parâmetro a adoção por estes de práticas de cuidado de acordo com aquela que por

excelência sabe o que é cuidar: a mulher.

Do mesmo modo, podemos questionar o quanto não é difícil para o homem dispor-se a

assumir esse lugar de cuidador, o que supostamente o equipararia à figura feminina da qual

tenta se diferenciar. Sobre isto retomamos o argumento mencionado por Romeu Gomes

(2003) ao dizer que a masculinidade não é algo com que se nasce, mas que se busca

conquistar, que se adquire e se reconhece socialmente, de modo que perder esta posição pode

não estar nos planos dos homens.

Como os trabalhadores de saúde operam a produção de cuidados à saúde dos homens no

cotidiano do serviço?

No primeiro tópico que compõe este capítulo mencionamos brevemente as atividades

desenvolvidas pelos trabalhadores de saúde da referida unidade básica que são aludidas ao

cuidado do homem. Neste momento, retomaremos tais atividades, a partir dos relatos dos

trabalhadores entrevistados, de modo a destacar como nossos interlocutores operam a

produção de cuidados à saúde do homem no cotidiano da atenção básica, a partir destas

práticas que dizem, ou permitem, “cuidar”.

Em geral, nesta unidade, algumas estratégias definidas pela equipe são vistas como

favorecedoras da aproximação dos homens à unidade. Para ilustrar isto, trazemos abaixo o

relato de Érica, técnica de enfermagem, que, em certa medida, resume a posição da equipe

de saúde:

Túlio: Tá, que atividades vocês costumam desenvolver aqui com o homem?

Érica (Téc. de Enfermagem): Eu acho, assim, que.... com o homem, o grupo de

homens, assim, a gente teve o dia do homem, né, que a gente tem o dia da mulher e o

dia do homem, que a gente comemora... O dia do homem, foi até o dia azul, eu não me

recordo agora quando foi, se foi esse ano, se foi ano passado... não, foi esse ano, que a

adesão foi maior que a das mulheres, aí a gente fez... Túlio: O dia do homem foi maior que o da mulher?...

Érica (Téc. de Enfermagem): Foi maior que o da mulher! Quando a gente fez o dia

do homem, aí tiveram as esposas deles pra poder participar... A gente... “Não, hoje é o

dia só voltado pra eles...”... Eh, aferição de pressão, com, eh, consulta médica, a parte

odontológica, então, assim, foi um dia especial, até a gente colocou: dia do homem,

dia azul! Aí a adesão foi maior que a adesão das mulheres. A gente tem dia que tem

dia da mulher aqui, que não tem uma adesão muito boa! E, assim, fora isso tem a

questão do hiperdia que eles tem participado, fora isso a gente teve também, eh, o

grupo de homens, deixa eu ver mais que a gente tem que tem sempre participado o

homem... grupo de homens, o hiperdia, o dia do homem... o grupo de emagrecimento

eu não sei se tem muita adesão de homens não...

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A partir deste recorte, uma primeira estratégia citada por esta profissional é o grupo

de homens. Este grupo é visto como um marco na história da unidade, tendo em conta as

potenciais mudanças provocadas por ele por meio de um maior contato com os homens na

comunidade. Para os homens/usuários que participam, o grupo é um lugar de encontro com

amigos, de conversar e de se informar. Para os trabalhadores de saúde é uma forma de

participação dos homens do cotidiano do serviço.

Trata-se de uma reunião semanal, organizada pelos trabalhadores da unidade, que em

geral é conduzida por dois agentes comunitários de saúde, um homem e uma mulher, sendo

estes dois reconhecidos como responsáveis pela fundação e manutenção do grupo. As

reuniões se organizam mediante temas previamente definidos em conjunto com os homens

que o frequentam. A cada encontro lança-se a temática escolhida e os integrantes começam a

falar sobre a mesma, numa espécie de roda de conversas. Algumas vezes, alguns

trabalhadores da unidade de saúde (nem todos) ou das equipes do NASF participam deste

grupo, discutindo assuntos que a princípio remetem à sua especialização.

Nesta lógica de funcionamento, o grupo acaba se aproximando da estratégia de

educação em saúde, amplamente divulgada e valorizada como forma de trabalho condizente

aos princípios orientadores do SUS e da organização da atenção básica à saúde. É importante

destacar que o modo como expomos, trata-se de uma descrição ideal de como o grupo

funciona, existem, inevitavelmente, tensionamentos nesta atividade, alguns dos quais já

destacamos anteriormente nesta dissertação, quando consideramos as produções discursivas

de homens/usuários e trabalhadores sobre o mesmo.

Outra forma de trabalhar com os homens, mencionada largamente pelos nossos

interlocutores é o Dia do Homem. Um evento realizado pelos trabalhadores da unidade que

compreendeu uma série de ações em saúde voltadas exclusivamente para a população

masculina. Pelas descrições que obtivemos deste dia (já que ocorreu em um momento anterior

à realização desta pesquisa), parece se assemelhar às tradicionais feiras de saúde, em que são

ofertadas diversas atividades focais a uma determinada população, no estilo mutirão. Assim,

foram oferecidas consultas médicas e odontológicas, exames e orientações em saúde para a

população masculina em um dia em que a unidade dedicou-se exclusivamente a atender ao

homem.

Um dos motivos que fez com que esta atividade fosse bem avaliada pelos

trabalhadores da unidade foi a grande presença dos homens neste momento. Tal avaliação se

amplia quando consideramos os argumentos utilizados para comparar a adesão dos homens à

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das mulheres em evento semelhante a este, que também é realizado na unidade, em sua

dedicação.

Ramona (Dentista): Na medida que eles foram divulgando, a gente fez o dia do

homem aqui, deu mais homens do que no dia da mulher. Quando eles começaram a

divulgar que ia ter vários atendimentos pra eles, a gente via os comerciantes fechar o

bar, pra vim aqui. Ia ter a aferição de pressão, ia ter uma oficina... A gente vê o

pessoal falando sobre sexualidade... Então eles se interessaram. Na associação mesmo

teve um grande número de homens. Teve uma participação tão grande que eu acho

que até o pessoal do [menciona ONG que atuou como parceira da unidade] ficou impressionado. Tanto que a gente vai fazer agora a semana do homem e não vai mais

fazer a semana da mulher não, vai ser o dia da mulher. A gente tá tendo realmente

uma boa participação e nisso quando você trabalha promoção, aí começa ter um

aumento de exames, de PSA pra homens, eles tão começando a se cuidar, o aumento

de homens na consulta odontológica e médica, porque eles tão tendo a consciência que

eles tem que se cuidar também, não só vim quando tá com uma dor. (...)

Regina (Enfermeira): (...) Tanto que ano passado quando fizemos o dia do homem as

mulheres estranharam. Acharam esquisito, inclusive algumas que não sabiam que a

gente faz... Da mulher a gente faz, sempre faz. (...)

(...)

Túlio: E aí, como foi a adesão? (Sobre o Dia Do Homem)

Regina (Enfermeira): Foi enorme, foi mais que o dia da mulher, os homens

participaram. Foi uma surpresa da gente assim do Córrego dessa participação primeiro no grupo de homens porque normalmente não vê eles por aqui, então a gente achava

que o grupo de homens não ia rolar. A gente achava assim... como o da mulher, tá

dando um tempo pra conseguir mudar porque apesar delas estarem aqui, de grupo elas

não se interessam muito. Aí o grupo já tá há 2 anos, né, o grupo no dia do homem,

muitos homens apareceram. A gente tem o que a gente chama de chamariz pra

participar do evento, é a abelha no mel, mas foi grande a participação.

Lívia (ACS1): (...) Na verdade, o que o homem realmente gosta é do Dia Azul, que é

o dia do homem, que a gente fez ano passado e vai repetir esse ano. Aí você vê a fila

de aferição de pressão, fazer glicose, pegar exame de hemograma completo. Aí sim,

quando eles estão num grupo maior eles se sentem mais solidários um com o outro. Agora assim, sozinho é bem complicado.

Nestes relatos vemos como estas trabalhadoras acabam destacando o sucesso desta

estratégia em conseguir trazer os homens à unidade, e reconhecemos a importância desta

iniciativa da equipe no estabelecimento de outras relações. No entanto, podemos pensar que

talvez a maior adesão dos homens neste dia em específico deve-se, em parte, à inexistência no

cotidiano do serviço de horários ou programas voltados para eles, o que faz com que não

percebam a unidade como um espaço também para o seu cuidado. Tal reflexão também é

possibilitada pela fala da ACS Lívia, a qual afirma que “em grupo eles se sentem mais

solidários um com o outro”, a qual justifica isto como sendo algo culturalmente construído:

Lívia (ACS1): É, mas tem alguma coisa da cultura passada mesmo de só fazerem as

coisas quando estão juntos, né? A mulher não! A mulher é mais individual, ela mete a

cara e faz, mas homem não, quando ele tá sozinho não é tão forte não...

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Neste caso, sendo a unidade um espaço mais frequentado por mulheres, a ausência de

outros homens também seria um impeditivo para a sua aproximação, uma vez que o homem

“ir sozinho é complicado”, além de que ele “só faz as coisas junto”. Assim, ao reconhecerem

o dia do homem, como um dia que se dedica a eles, e que possibilita identificar os seus pares

na unidade, os homens passam a frequentá-lo.

Outra explicação, também relacionada a isso, poderia ser a idéia de que, não havendo

ofertas de serviços cotidianamente para o homem, como há para as mulheres, não há porque o

homem ir à unidade, já que não há nada ali voltado para ele. Por fim, uma explicação para a

pouca adesão das mulheres ao “seu Dia”, pode ser decorrente também dessa lógica de

funcionamento, afinal, se todos os dias tem atendimentos voltados à mulher, em que este Dia

especial se diferenciaria dos demais?

Outra atividade vista como favorável à aproximação dos homens à comunidade é o

grupo hiperdia. O hiperdia é uma atividade recorrente nas unidades básicas de saúde, que tem

por objetivo o atendimento de promoção e prevenção com pacientes hipertensos e diabéticos.

As ações que compõem o hiperdia compreendem informações sobre cuidados com a

alimentação, manutenção da saúde física e mental, além da realização de procedimentos

avaliativos, tais como aferição de pressão, verificação da taxa de glicose, medição de peso e

dimensões corporais.

Na unidade de saúde em que fizemos a pesquisa, o hiperdia se realizava semanalmente

segundo um calendário definido pela equipe. Como dissemos no Capítulo III, a unidade

possuía duas equipes de saúde, as quais se subdividiam como responsáveis ao atendimento da

comunidade, assim, cada equipe possuía um calendário particular de atividades, embora tais

atividades fossem as mesmas para cada equipe. Logo, semanalmente ocorriam dois grupos

hiperdia, um por equipe.

Ao mesmo tempo, cada equipe organizava os grupos hiperdia por micro-áreas, as

quais tinham acompanhamento pelos ACS. A cada semana um ACS era responsável por

comunicar aos seus comunitários sobre a ocorrência do grupo para que os mesmos

participassem desse momento. Particularmente em uma das equipes, os grupos realizavam-se

em espaços próximos às micro-áreas, na casa de algum morador, por exemplo, o que acabava

facilitando a ida das pessoas ao grupo, incluindo os homens.

Embora não tenha sido citado inicialmente pela técnica de enfermagem, alguns

trabalhadores também reconhecem o acolhimento, atividade de recepção e organização das

ações no serviço, como algo que favorece a aproximação do homem, tendo em vista que

facilita o atendimento. O acolhimento é visto como uma estratégia efetiva de atenção à saúde

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da população adstrita, a partir do oferecimento de breves atendimentos clínicos orientados

para a resolução das demandas apresentadas, via relato verbal, pelos usuários potenciais.

Trata-se de um importante dispositivo dentro da unidade de saúde que organiza o fluxo da

assistência, direciona o atendimento em vias das demandas singulares e otimiza, em certa

medida, o espaço-tempo disponível pelas equipes para o seu trabalho cotidiano.

É importante destacar que a atividade desenvolvida nesta unidade não deve ser

confundida com a diretriz do “acolhimento”, dispositivo tecnológico bastante difundido pelas

ações de humanização em saúde, que, segundo cartilha específica do Ministério da Saúde,

É uma ação tecno-assistencial que pressupõe a mudança da relação

profissional/usuário e sua rede social através de parâmetros técnicos, éticos,

humanitários e de solidariedade, reconhecendo o usuário como sujeito e participante

ativo no processo de produção da saúde. O acolhimento é um modo de operar os

processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços

de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher,

escutar e pactuar respostas mais adequadas aos usuários. Implica prestar um

atendimento com resolutividade e responsabilização, orientando, quando for o caso, o

paciente e a família em relação a outros serviços de saúde para a continuidade da assistência e estabelecendo articulações com esses serviços para garantir a eficácia

desses encaminhamentos (BRASIL, 2004, p. 5).

Operacionalmente, a atividade nomeada como acolhimento nesta unidade de saúde

ocorre da forma como descreveremos a seguir. Nos três primeiros dias úteis de cada semana

(segundas, terças e quartas-feiras) um/a trabalhador/a de saúde da equipe (no caso desta

unidade, um/a enfermeiro/a ou dentista) torna-se responsável por realizar a atividade. Este/a

permanece em uma sala/consultório realizando os atendimentos com os usuários que chegam,

os quais vão entrando um a um. Um primeiro aspecto merece ser destacado aqui: de certo

modo, quase todos os usuários atendidos na unidade acabam passando por este momento.

A entrada dos usuários é organizada mediante uma lista preparada de acordo com a

ordem de chegada dos mesmos na unidade de saúde. Do lado de fora do consultório, no

corredor/recepção, uma ACS (na função de auxiliar administrativa) vai anotando os nomes

dos usuários, acompanhado do número do prontuário da família a que este usuário pertence.

Este número corresponde a uma codificação que abrange: a) a equipe de saúde responsável

pela área; b) a micro-área de cobertura, sobre a qual há um ACS responsável, e; c) o número

da família, definido de acordo com a organização da própria comunidade (em ruas, travessas,

becos etc.). Esta codificação facilita bastante o trabalho dentro do consultório, uma vez que se

faz necessária a identificação dos prontuários para os encaminhamentos posteriores.

A lista previamente organizada é entregue ao trabalhador responsável (dentro do

consultório), que vai chamando os usuários segundo a ordem ali estabelecida. Cabe destacar

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que estes trabalhadores, mediante um acordo já existente na unidade, inclusive com os

próprios usuários, estabelecem uma “lista paralela”, priorizando alguns atendimentos (os

quais já estão sinalizados na lista), para idosos, mulheres com crianças de colo, deficientes

físicos, e casos urgentes (intercorrências).

Quando o usuário entra no consultório, o trabalhador de saúde pergunta-lhe seu nome

completo, sua idade e data de nascimento, anota as informações referentes ao seu prontuário

(código da família) e em seguida pergunta qual o motivo o levou a buscar a unidade de saúde

naquele dia. A partir do relato do usuário, o trabalhador vai conversando e, não sem variações,

realizando algumas orientações. Por fim, faz o encaminhamento necessário – qual seja, a

marcação de um atendimento médico, atendimento com algum profissional especialista de

referência, encaminhamento para consulta odontológica, e/ou direcionamento para um grupo,

dentre outras possibilidades –, o que também é anotado numa espécie de livro-ata em que

todos os atendimentos são registrados. Um atendimento como estes dura, em média, 10

minutos, podendo estender-se um pouco ou, pelo contrário, ser mais rápido, a depender da

questão apresentada.

Nas palavras dos trabalhadores de saúde, o acolhimento proporciona uma maior

aproximação dos homens à unidade por dois motivos. Primeiramente pela facilidade na

marcação das consultas ou dos encaminhamentos demandados pelos homens, já que todos os

usuários acabam sendo atendidos, desde que cheguem no período estabelecido. Assim, não é

necessário que cheguem muito cedo e esperem em longas filas para atendimento e com

resultado incerto. Em segundo, pela possibilidade de que outras pessoas possam fazer a

marcação do atendimento solicitado por eles, o que faz com que alguém, na maioria das vezes

uma mulher (esposa, irmã, mãe etc.), possa representá-lo e fazer a marcação. Desse modo, ele

só precisará ir à unidade no dia e horário marcados.

É importante destacar, no entanto, que não se trata de uma facilidade específica para

os homens. O acolhimento se realiza de modo a otimizar o atendimento a toda a comunidade,

logo, tanto homens, quanto mulheres, independente de faixa etária podem ser atendidos neste

serviço e nas mesmas condições.

O acolhimento nos permite pensar em várias coisas, principalmente se tomamos por

base as reflexões de Alves (1993) e Helman (2003), que se localizam em conhecimentos da

Antropologia da Saúde. O primeiro aspecto que podemos destacar diz respeito ao que

poderíamos nomear como o “compartilhamento da experiência da doença e da enfermidade”,

uma vez que, na maioria das vezes, no caso dos homens, a sua presença no acolhimento

baseia-se em uma demanda de atendimento clínico, motivado por sintomas de adoecimento.

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Estamos nos referindo, neste caso, à queixa trazida pelo usuário em seu relato, seguida

da interpretação do trabalhador de saúde, e consequente ao direcionamento que este procederá

como possível resposta à questão. Aqui está em jogo não apenas a enfermidade ou, mais

especificamente, à manifestação fisiológica subjacente à busca pelo cuidado, mas também aos

modos como esta enfermidade é compreendida pelo usuário. Aliás, a própria busca pelo

atendimento na unidade de saúde já diz muito desta compreensão da doença pelo usuário, o

qual poderia buscar outras maneiras de cuidar de sua saúde.

Como afirma Alves (1993, p. 267) “a interpretação que as pessoas elaboram para uma

dada experiência de enfermidade é o resultado dos diferentes meios pelos quais elas adquirem

seus conhecimentos médicos”. Deste modo, muitas vezes o paciente já vem com um pedido

pronto para o acolhimento: “Quero um encaminhamento!”. O profissional, do seu lado, pode

questionar: “Por quê?”. Ao que o usuário, apoderado de uma série de argumentos fisiológicos

(e também sócio-culturalmente construídos em suas tramas familiares, comunitárias,

cotidianas...) justificará seu pedido a partir de sinais expressos no corpo sob a forma de

sintomas bem delineados (“Oftalmologista! Porque estou com dificuldades para ver. E por

isso não consigo ler nada!”; “Ortopedista! Porque estou com dores na coluna. E por isso não

consigo andar direito!”).

Outro aspecto que gostaríamos de destacar, no tocante ao acolhimento, diz respeito à

“diversidade de compreensões do cuidado à saúde e racionalidades médicas”, se assim

podemos chamar, entre usuários e trabalhadores. Neste particular, estamos nos referindo às

questões culturais que se presentificam nas consultas, mescladas aos saberes populares e

práticas alternativas de cuidado que já foram acionadas mediantes itinerários terapêuticos

previamente construídos e que, em alguns casos, confrontam com o saber biomédico que

orienta a prática do trabalhador de saúde, uma vez que ele “ frente aos sintomas de um

paciente, tenta, em primeiro lugar, relacioná-los a algum processo físico subjacente”

(HELMAN, 2003, p. 101).

É importante, neste caso, observar de que modo acontece a comunicação no encontro

clínico, pressuposto no acolhimento, e quais os encaminhamentos tomados. Até mesmo

porque, como afirma Alves (1993, p. 267), “o conhecimento médico de um indivíduo tem

sempre uma história particular, pois é constituído de e por experiências diversas”, além disso,

este conhecimento está “continuamente sendo reformulado e reestruturado em decorrência de

processos interativos específicos”. Ao mesmo tempo, é importante considerar que, muitas

vezes, o usuário já vem de outros atendimentos anteriores, o que faz com que a sua queixa já

venha, de certo modo, orientada.

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Por fim, como terceiro aspecto, gostaríamos de abordar a questão dos “valores

culturais e da compreensão singular do adoecimento”, que diz respeito às variações nos

modos como cada pessoa compreende e lida com a própria experiência de adoecimento. No

caso da experiência do acolhimento, destacamos o atendimento à população masculina, que

segundo os trabalhadores entrevistados: os homens buscam pouco este serviço, e quando vêm,

trazem um discurso carregado por valores machistas de força, resistência, de não

adoecimento. Ao mesmo tempo, muitas vezes são as mulheres que vêm buscar este

atendimento para os homens, os quais não “acham que estão doentes”, ou por mais que sintam

sinais ou sintomas indicativos, a idéia de mal-estar, ou de adoecimento só vem ocorrer algum

tempo depois, quando tais sintomas se agravam. Assim, como vimos, nas palavras dos

trabalhadores: “Os homens só vêm quando estão morrendo!”.

É importante considerar que como argumenta Helman (2003) “o fato de um indivíduo

apresentar um ou mais sintomas anormais pode, não ser suficiente para que ele seja

considerado doente” (p. 106), isto porque o processo de autoreconhecimento como doente é

variável e bastante singular, baseado nas compreensões de cada um sobre si mesmo, nas

compreensões dos outros e/ou nas duas. Adoecer, assim, pode ser visto também como um

“processo social que envolve outras pessoas além do paciente”. Neste caso, “a cooperação dos

outros é necessária para que a pessoa adote os direitos e os benefícios do papel de doente – ou

seja, do papel socialmente aceito de ‘pessoa doente’.” (p. 107). Entre os homens, por

exemplo, a doença aparece bastante relacionada à perda da força para o trabalho ou à

impossibilidade de desenvolver suas atividades cotidianas. Logo, a presença de um sintoma

fisiológico, para o homem, pode não lhe caracterizar como doente, mas os efeitos que este

sintoma produz nos seus processos de socialização podem ser decisivos para isto.

Outro evento importante, também mencionado pelos trabalhadores, que favoreceu a

aproximação dos homens foi a mudança na lógica de funcionamento do serviço. A adesão à

Estratégia Saúde da Família (antes, o serviço funcionava como unidade tradicional de saúde)

também é vista como um diferencial. Nisto, uma série de ações anteriormente não

desenvolvidas pelo serviço começaram um movimento de aproximação maior dos

trabalhadores da unidade com a comunidade, fazendo com que estes desenvolvessem um

maior reconhecimento dos potenciais usuários do serviço, entre eles, os homens.

Como apresentamos no primeiro capítulo desta dissertação, a Atenção Básica à Saúde

se define em termos de ações voltadas ao território, não devendo a atuação das equipes

esgotar-se no interior dos serviços de saúde. Com isto, a realização de visitas domiciliares e o

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desenvolvimento de articulações na comunidade, por exemplo, são maneiras de

operacionalizar o cuidado a partir de uma perspectiva clínica que se diz ampliada.

Considerando isto, enquanto estava na unidade de saúde, tive a oportunidade de

acompanhar algumas visitas às casas dos moradores, realizadas pelos trabalhadores da

unidade. As visitas ocorrem mediante interlocução dos agentes comunitários de saúde, que

identificam nas suas áreas de atuação, alguns casos que demandam atenção mais específica, e

que ao mesmo tempo são impossibilitados de chegar à unidade de saúde.

Além destas atividades também é importante considerar os habituais atendimentos

realizados nas unidades de saúde, que também contemplam a população masculina, de modo

geral, tais como: atendimentos e consultas médicas e odontológicas, procedimentos de

enfermagem e vacinação, fornecimento de medicamentos e preservativos, por exemplo.

Acima destacamos apenas as atividades que se dizem favorecedoras da presença dos homens,

o que não significa que o uso que eles fazem da unidade se restrinja à sua participação nas

atividades citadas. Logo, é importante considerar também os modos como cada trabalhador

compreende seu fazer no cotidiano de trabalho a partir da presença dos homens, que

corresponde em parte à maneira particular como operam o cuidado à saúde dos homens na

unidade de saúde.

Sobre as suas funções particulares na unidade, vemos compreensões diferentes dos

modos como estes trabalhadores lidam com o homem cotidianamente. A dentista Ramona,

por exemplo, relata as experiências exitosas das práticas desenvolvidas coletivamente pelos

trabalhadores, tais como o dia do homem e o grupo de homens, uma vez que ela costuma

participar das mesmas.

Esta trabalhadora menciona também o estímulo à participação dos homens na

Conferência Municipal de Saúde, que segundo ela, trata-se de um importante dispositivo

sócio-político para a garantia dos direitos dos usuários do sistema de saúde, tendo referido que

a partir de discussões com os homens/usuários do grupo de homens conseguiu fazer com que

alguns deles fossem ao referido evento. Além disto, salienta a importância do trabalho que

desenvolve com foco na “promoção à saúde”, levando informação aos homens sobre cuidados

à saúde bucal, sobre o exame do PSA, entre outras.

A enfermeira Regina, por sua vez, refere a ausência de homens nos atendimentos que

realiza sobre planejamento familiar e saúde reprodutiva. Segundo ela, é raro ver homens em

pré-natal, puericultura e em grupo de gestantes, por exemplo. Ao mesmo tempo ela justifica

que não costuma lidar com homens na unidade, tendo em vista que, por se tratar “de saúde do

adulto, quem pega mais esses homens são os médicos”. Nos questionamos o porque de a

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enfermeira, dentre suas atribuições na unidade, não costumar realizar atendimento a homens.

Podemos considerar que uma resposta para isto se localize no foco dado pelos serviços da

atenção básica a determinados programas de saúde, bem como a grupos prioritários para o

atendimento cotidiano, como é o caso de mulheres e crianças, o que acaba fazendo com o que

os trabalhos voltados para o homem sejam deixados em segundo plano.

Tal argumento também se faz presente nos relatos dos/as ACS, ao afirmarem que

definem prioridades para o seu trabalho no dia-a-dia da comunidade, nas quais os homens não

estão incluídos:

Lívia (ACS1): (...) Na verdade, a gente nem se organiza aqui, né? Quando a gente sai de casa, a gente tem um cronograma a seguir. A gente tem as ruas que a gente vai

visitar, mas também, quando a gente vai pra campo, a gente vai vendo as

necessidades, aí então a gente vai dando prioridade a quem foi internado, a quem tá

com a (?). Aí a gente vai dando prioridade a esses. Às crianças que nasceram, as que

crianças que tão com infecção respiratório. Aí a gente vai dando prioridade a essas

pessoas desse modo.

Túlio: Eu queria que tu me falasse um pouco do teu cotidiano de trabalho na unidade

de saúde... O que é que tu faz? Como é que tu organiza tua semana?

Cilene (ACS4): (...) a minha rotina de serviço, eu faço... eu me programo por ruas,

então cada semana eu escolho uma rua pra trabalhar nela, então, uma prioridade do

trabalho, do meu trabalho é gestantes, crianças menores de dois anos, hipertensos e

diabéticos, né, e um cuidado bem especial com os domiciliados e acamados...

Nesta mesma linha, o médico Mateus também reconhece que provavelmente os

agentes comunitários não estão atentos às questões de saúde do homem na comunidade, sendo

uma das explicações o direcionamento de seu trabalho para outros programas e questões de

saúde prioritárias para a atenção básica:

Túlio: Tu acha que essa busca é realizada no dia-a-dia pelos ACS que tão mais

presentes na comunidade?

Mateus (Médico): Olhe, eu não sei... Eu acho que pode ter um ou outro que faça, mas

eu acho que não. Eu acho que pelos programas, programas de algumas doenças, outras

ficam à parte, que só tomam conta as pessoas que ficam na unidade mesmo... pessoal

que sempre tá na área, tá mais prestando atenção a hipertensos, diabéticos, hanseníase

e, às vezes, nem isso...

Desta forma, como dissemos anteriormente, as prioridades definidas pelos

profissionais da ABS, de acordo com a própria organização do sistema de saúde, também

constituem um dos fatores que acabam fazendo com que o homem seja invisibilizado no

cotidiano dos serviços de atenção. De fato, a ênfase nos cuidados à saúde da criança e da

mulher, além da atenção a acamados, hipertensos e diabéticos, de acordo com os protocolos e

diretrizes de ação da ABS, faz com que trabalhadores não demonstrem tanta preocupação com

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outras demandas apresentadas pela comunidade, o que constitui mais uma dificuldade a que

estes trabalhadores incorporem ações direcionadas à saúde do homem.

Outro ponto de argumentação é levantado pela médica Priscila, que entende, pelos

atendimentos clínicos que realiza, haver uma dificuldade dos homens em lhe comunicar suas

queixas, principalmente com relação à disfunção sexual. Relaciona o fato de ser mulher e

jovem como um dos motivos que levariam a uma suposta resistência entre os homens, embora

não considere que isto seja impeditivo ao desenvolvimento do seu trabalho com a população

masculina.

Priscila (Médica): (...) E esse homem vem também com muitas queixas de... de disfunção sexual, que geralmente vem no segundo momento, que eles tem essa

dificuldade, e eu entendo que essa dificuldade tem a ver sobretudo com minha pessoa,

com o fato de eu ser mulher, o fato de eu ser mais jovem, isso tem uma dificuldade

inicial, então a gente precisa fazer um trabalho de construção de vínculo, um trabalho

de discussão sincera sobre esses problemas, para que ele possa se sentir aos poucos

com tranquilidade pra apresentar algumas outras queixas, porque às vezes, são as

queixas principais!

Túlio: E... uma das maiores questões que a gente identifica, em estudos sobre homens

nos serviços de saúde, é essa questão de... talvez seja necessário homens para atender

homens, então, meio que essa tua fala, é um exemplo disso? Tu acha que, por

exemplo, se fosse um homem, eles se sentiriam mais à vontade...?

Priscila (Médica): Eu acho, que em algumas poucas situações sim, mas eu acho que a gente precisa de preparo, eu acho isso, porque se não a gente vai estar trabalhando

numa especialização de gênero para a saúde, então, mulheres vão atender mulheres e

homens vão atender homens, e não funciona assim... Eu conheço vários profissionais

mulheres, que tem um alcance muito melhor de homens do que alguns homens! Eu

acho que não é prioritariamente a questão do gênero que vai determinar se você vai ou

não vincular com essa... com esse usuário, se você vai ou não deixá-lo à vontade, em

relação à questão das queixas! Eu acho que tem muito a ver mais com... com a

execução de uma clínica ampliada, de vínculo, de responsabilização, de você deixar

essa pessoa à vontade pra que ela se coloque, pra que ela esteja tranquila, e pra que ela

esteja segura de que aquilo ali não vai ser reproduzido para outra pessoa, que é uma

relação de confiabilidade, né, que é uma relação de trabalho, de... uma boa relação profissional, uma boa relação médico-paciente, eu acho que isso, mais... é mais eh...

eh, dispara muito mais ações positivas em saúde do que propriamente o gênero em si.

É claro que numa primeira situação, isso vai contar, mas eu acredito que a partir da

formação do vínculo e de uma outra situação, isso não vai passar a contar tão

fortemente

Uma questão importante trazida por esta médica situa-se no (des)preparo dos

profissionais de saúde da atenção básica para lidar com as questões de saúde do homem, o que

também acaba sendo referido por outros trabalhadores. Uma das explicações para isto se situa

no argumento que já apresentamos acima sobre a ênfase que é dada a grupos prioritários na

própria lógica de funcionamento dos serviços de saúde da atenção básica, o que faz com que

os trabalhadores acabem justificando seu suposto despreparo para atender os homens por

estarem mais acostumados a lidar com a mulher.

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Regina (Enfermeira): Eu acho que é menos (T.I) sabe, lidar com a mulher, mas eu

acho que com a chegada desse grupo de homens, faz a gente pensar, torna aquilo mais

fácil, mais natural você ter o homem... Eu, enfermeira, trabalhei mais tempo com as

mulheres. Hoje eu sinto que eu tenho mais facilidade, eu acho que a equipe como um

todo a gente sabe lidar mais com a mulher. Quando a gente bate na porta é a mulher

que vem e responde as coisas, raramente é o homem que vem e responde. Eu vejo que

teve uma melhoria, mas ainda tá muito longe. A gente enquanto profissional tá mais

acostumado com a mulher mesmo...

Além do costume em lidar com as mulheres, o médico apresenta outros argumentos

para justificar este despreparo, tais como a existência de preconceito tanto entre os

trabalhadores quanto entre as pessoas que acessam a unidade e algumas questões culturais.

Túlio: Tu acha que os profissionais dessa unidade estão preparados para lidar com os problemas do homem, com o homem, com a saúde do homem?

Mateus (Médico): Todos não. Não porque ainda... assim... às vezes, ainda rola um

pouco de preconceito tanto pelos profissionais quanto pra quem vem na unidade. A

queixa quando o homem vem a... queixa é particular desses, a maioria das (T.I) são

coisas particulares do sexo masculino e acho que pelo costume, pela cultura das

pessoas da unidade, eu acho que algumas pessoas ainda não estão preparadas por

conta disso...

Retomando a fala de Priscila (a médica), destacamos o argumento utilizado para

justificar a necessidade de preparo dos trabalhadores, uma vez que esta se posiciona de

maneira crítica quanto à idéia de uma possível especialização de gênero na saúde: seria

necessário homens para atender homens e mulheres para atender mulheres? Segundo o que

ela nos coloca, não é necessariamente o fato de ser um homem ou uma mulher que vai fazer

com que um atendimento seja realizado de maneira satisfatória, visto que é o vínculo

desenvolvido entre trabalhador e usuário o que permitirá que a relação de cuidado se

estabeleça.

Podemos considerar então que este argumento dado pela referida trabalhadora diz de

um movimento que se aproxima dos princípios orientadores do próprio Sistema Único de

Saúde, tais como a Integralidade e a Universalização das práticas de saúde. Ao mesmo tempo,

podemos supor a problematização de certa cultura machista ainda presente no interior dos

serviços de atenção, como situado acima pelo médico, ao afirmar que alguns trabalhadores

ainda se mantém resistentes e com preconceito, muitas vezes, em não saberem lidar com os

homens, pelo simples fato de serem homens.

Na tentativa de finalizar este tópico, gostaríamos de fazer algumas breves

considerações, a partir dos relatos trazidos acima pelos nossos interlocutores, tendo por base

as reflexões sobre o cuidado em saúde realizadas por Ricardo Ayres (2004). Para este autor o

cuidado compreende “a designação de uma atenção à saúde imediatamente interessada no

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sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte,

também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde” (p. 22). Para ele:

Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para

cuidar há que se considerar e construir projetos; há que se sustentar, ao longo do

tempo, uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, moldados a

partir de uma forma que o sujeito quer opor à dissolução, inerte e amorfa, de sua

presença no mundo. Então é forçoso saber qual é o projeto de felicidade que está ali

em questão, no ato assistencial, mediato ou imediato (Ayres, 2001, p. 71).

Trazemos as reflexões deste autor para discutir o cuidado à saúde do modo como o

entendemos, uma vez que, muitas vezes a expressão “cuidar da saúde” se refere em modo

estrito à disponibilização ou adoção de determinadas práticas ou procedimentos técnicos

normatizados direcionados a resolver questões específicas de saúde. Como vimos entre nossos

interlocutores, a produção de práticas em saúde que cuidam, ou dizem cuidar, em grande

medida está voltada para a resolução das demandas apresentadas por usuários em suas

questões específicas trazidas para os serviços. No caso dos homens, tendo em vista a sua

busca amplamente relacionada à condição de adoecimento, cuidar passa a ser sinônimo de

curar, tratar, controlar, combater.

Assim, recorremos a Ayres para trazer outra forma de se compreender o cuidado na

saúde, tomando-o a partir de uma perspectiva relacional, implicada com o outro e destacando

sua função potencializadora de outros modos de ser e existir, que o situa, além do fazer

técnico biomedicamente orientado, em condição de inventividade. É nesta condição de

inventividade que situamos a produção de cuidados do modo como acreditamos que deve ser

construído numa relação entre trabalhador de saúde e usuário, a partir de uma dimensão

relacional, que implica em tentar compreender, numa consulta clínica, por exemplo, o

significado da presença de um diante do outro.

Ayres (2004) destaca a importância da reconstrução da relação terapêutica, não a partir

de uma técnica ou de um conceito, mas a partir de um saber prático. Entre a técnica e a prática

existe um distanciamento que é necessário ser considerado. A prática não necessariamente

pressupõe a existência de uma técnica, mas a técnica necessita de uma prática que a produza.

Se tomamos, por exemplo, a produção do cuidado a partir das intervenções médicas em vias

de prescrições formais vemos uma prática submissa a uma normatização técnica, uma forma

de produzir o cuidado a partir de certos métodos pré-definidos que condicionam os sujeitos

em determinados modos de viver. Deste modo, a submissão dos usuários ao atendimento nada

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mais é que uma disposição a um movimento de disciplinarização do cuidado de si, mediante

um saber poder mais amplo que se reitera nas ações que prescreve e inscreve.

De acordo com Ayres (2004) “no plano operativo das práticas de saúde é possível

designar por Cuidado uma atitude terapêutica que busque ativamente seu sentido existencial”

(p. 22). Podemos pensar então que, para Ayres (2004), a produção do cuidado situa-se mais

próximo daquilo que ele chama de sucesso prático. Ou seja, em detrimento do êxito técnico,

ou do saber executar com efetividade processos tecnológicos previamente formatados, a

produção de cuidados se relacionaria muito mais à capacidade dos trabalhadores de saúde em

se responsabilizar pelos projetos de vida do outro, não a partir de uma perspectiva tutelada,

mas potencializando modos de ser e viver e cuidando de si e dos outros. Envolveria, portanto,

um componente ético.

Responsabilidade é aqui uma noção importante, uma vez que é necessário que os

trabalhadores de saúde estejam eticamente preocupados não apenas com as queixas objetivas

trazidas pelos usuários, mas que considerem seus projetos de felicidade, como diz Ayres

(2004). Assim, entre os nossos interlocutores, vemos muitas vezes que relatam uma

preocupação, expressa nas suas compreensões sobre saúde e cuidado, com as condições de

vida e oportunidades, questões familiares e de lazer dos usuários que assistem, mas que

operacionalmente em seu cotidiano, na maioria das vezes, é a centralidade sobre as suas

condições de adoecimento que direcionam os atos terapêuticos.

Por fim, não se pode deixar de considerar as condições de produção em que as práticas

de saúde, que cuidam ou dizem cuidar, acontecem. De fato sua construção e efeitos dependem

de determinantes sócio-culturais mais amplos que dialogam não apenas com a provisão de

recursos e tecnologias assistenciais, mas também com os valores culturais e processos de

compreensão da vida das pessoas às quais elas se destinam. Assim, compreendemos que a

produção de práticas de cuidado à saúde, tanto por parte dos trabalhadores quanto dos

usuários dos serviços, deve considerar seus modos particulares de conduzir suas vidas.

É importante dedicar-se a compreender as práticas sociais relacionadas à produção de

sentidos sobre as questões de saúde apresentadas por cada um, tendo em vista a articulação

das possibilidades práticas de resposta disponíveis nos serviços. Enfim, trata-se de ter em

vista as necessidades e demandas apresentadas pelos usuários aos trabalhadores dos serviços,

e as condições apresentadas por estes em mobilizar ações que possam, ao menos, acolhê-las.

Já isto talvez, por si, seria cuidar.

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Outras Questões Relacionadas às Práticas de Cuidado

Nas conversas/entrevistas que realizamos com os trabalhadores de saúde observamos

emergirem alguns temas, provocados ou não por nós, que se relacionam à produção do

cuidado à saúde do homem, e que acabam, a nosso ver, qualificando e/ou justificando a

presença/ausência de práticas de saúde voltadas à população masculina, os quais, acreditamos,

precisam ser visibilizados.

Um primeiro aspecto que gostaríamos de destacar, diz respeito às relações de poder

presentes no desenvolvimento das práticas de saúde no cotidiano da unidade básica. Para

tentar estruturar melhor nossos questionamentos, recorremos a Foucault (2009), em suas

discussões sobre o poder. Situando as questões que lançamos nesta pesquisa a partir das

palavras de Foucault, cremos que é importante considerar os jogos discursivos e materiais

(jogos de verdade e, portanto, jogos de poder) utilizados pelos trabalhadores de saúde no

cotidiano dos serviços, que orientam e inscrevem as práticas de cuidado, práticas estas que

engendram modos de fazer e de viver e que se materializam nos jogos de verdade e de poder

que permeiam o agir em saúde.

Quando se põe em discussão a produção de cuidados, parecem-nos bastante claras as

tensões que povoam este campo, o qual é marcado por certa assimetria conceitual. Como

vimos, para além das prescrições burocráticas, o cuidado em saúde é operacionalizado no dia-

a-dia, e é fundador e fundado por práticas cotidianas que perpassam por relações de poder.

Como salienta Foucault “onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu

titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e

outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”

(FOUCAULT, 2009, p. 75). Dito de outro modo, o poder circula no cotidiano, e se exerce de

alguma maneira, sempre orientado de um lugar para outro, mesmo não sabendo “nas mãos de

quem está”.

Transpondo isto para os serviços de saúde, este poder se presentifica, por exemplo, nas

relações estabelecidas entre os próprios trabalhadores de saúde, quando estes tem

questionados seus lugares de saber-poder diante daquilo que compreendem ser o melhor para

a população que atendem; entre trabalhadores e usuários, quando estes primeiros orientam

estes últimos sobre que práticas de saúde devem desenvolver para ser ou continuar saudáveis;

nas prescrições burocráticas sobre os funcionamentos dos programas de saúde, quando estas

orientam as práticas dos trabalhadores a partir de princípios bem delimitados e mecanismos de

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ação que tem por foco populações específicas; nas disposições políticas gerenciais que

incidem sobre a organização dos sistemas locais de saúde etc.

Desse modo, os serviços assistenciais dispõem/são dispostos por estratégias que visam

controlar, organizar e instrumentalizar a produção da saúde (o que remete ao conceito de

Governamentalidade foucaultiano). E ao mesmo tempo, em se tratando de pessoas e das

tecnologias de controle da vida, estamos nos referindo a práticas de Biopoder. Assim, não se

pode ignorar que tais relações perpassam estes serviços, e na atenção básica isto se

presentifica cotidianamente. Podemos destacar isto na fala da dentista, a seguir:

Ramona (Dentista): (...) Aí é uma maneira da gente realmente trabalhar isso porque

quando o ACS fala às vezes não consegue sensibilizar. Muitas conseguem, mas outras

não. E aí quando ela vê a dentista justamente falar sobre aquilo... eu acho que muita

gente ainda tá atrelado a aquela coisa que o doutor é que sabe, a gente tenta

desconstruir isso, mas é difícil... então, quando a ACS fala a mesma coisa que eu falo

e às vezes não consegue convencer... E aí quando eu falo com as meninas, elas falam

“ó, Ramona, eu falei a mesma coisa, mas ela não acreditou em mim. Quando você

falou, ela acreditou e veio pra consulta”...

Assim, percebemos que há aí uma assimetria nas relações (de poder) que se

estabelecem no cotidiano desta unidade, que se relacionam aos lugares ocupados pelos

trabalhadores de acordo com os saberes que se supõem ter, os quais são legitimados ou não

pela população a que assistem – como é o caso da ACS que tem questionado o seu saber pela

usuária, em detrimento do suposto maior saber da dentista, e ao mesmo tempo da dentista em

exercer seu saber-poder para convencer a usuária do que ela precisa fazer para se cuidar. Tal

exemplo nos aparece de maneira determinante para subverter a idéia de como as práticas

parecem ser definidas mediante um saber prévio, quando na verdade é, talvez, no campo das

práticas que se fundam (ou se materializam) e se legitimam os saberes, entendendo, deste

modo, também a produção deste saber como uma prática, como bem o argumenta Foucault

(2009).

Outro destaque que fazemos neste tópico refere-se à Política Nacional de Atenção

Integral à Saúde do Homem. Os trabalhadores de nível técnico e superior, de modo geral,

afirmaram ter conhecimento da publicação da PNAISH, exceto uma das técnicas de

enfermagem.

Túlio: Tu já teve contato com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do

Homem, publicada recentemente?

Priscila (Médica): Tive contato, pouco, mas tive contato... passei o... passei o olho,

fiz uma leitura, discuti com algumas pessoas...

Túlio: Qual o teu olhar dela?

Priscila (Médica): Não eu acho que ela é uma vitória...! É o que eu coloquei

anteriormente, eu acho que a gente precisa dessas demandas que... oriundas dos

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movimentos sociais organizados, a sociedade civil organizada de forma geral, para

que esses elementos e essas especificidades elas venham à tona e elas se transformem

em políticas! Então, eu acho que a política é um avanço, do jeito que... foi um avanço

histórico, o que se conquistou hoje em relação à saúde da mulher, né, com todos os

desafios que ainda nos restam, mas assim, acho que é uma coisa importante sim, mas

eu acho que é limitada ainda e eu acho que demanda mais discussão, demanda mais

amadurecimento, tanto por parte de quem propõe, de quem discute essa política, como

por parte de quem executa a política que somos nós da ponta, né...?!

Túlio: Você já teve algum contato com a política de saúde do homem?

Mateus (Médico): Eu tive contato com a política no ministério da (?), eu fui lá em alguns setores de departamento de atenção básica de saúde do homem. Aí ela entregou

alguns (?), alguns papéis, mas ela disse, teve uma coisa que foi bem importante, ela

disse que quem tá construindo a saúde do homem pras ruas é a gente que tá na

unidade de saúde e ela deu contato que é justamente pra isso, que é pra gente construir

essa política de saúde do homem. Mas às vezes fica complicado, não só (?), essa

questão mais política por conta da demanda que a gente tem. A gente tem essa...

assim... mas não é o que eu gostaria que... sabe... assim.... não é o máximo que eu tô

me dando pra isso por conta de questões do dia-a-dia mesmo. Mas o máximo que a

gente consegue fazer, a gente faz, eu acho que é o mínimo.

Túlio: Tem a política agora, né, que é recente. Tu conhece (sic) a política, tu já entrou em contato com ela?

Sabrina (Téc de Enfermagem 1): Não!

Isto aponta que, embora estes trabalhadores estejam de certa maneira informados sobre

a publicação deste importante documento e dispositivo político, ainda carecem de maiores

aprofundamentos sobre suas proposições, tendo em vista as dificuldades apresentadas para o

trabalho com os homens numa perspectiva integral. Entre os ACS, poucos afirmaram ter

conhecimento da referida Política.

Chama-nos a atenção o fato de apenas os dois ACS (um homem e uma mulher) que

são mais próximos do grupo de homens referirem conhecer e ter tido algum contato com este

documento, embora não refiram ter aprofundamento em suas proposições. Desse modo,

acreditamos que é necessário um maior trabalho com a PNAISH, de modo que esta seja mais

bem divulgada e discutida entre os trabalhadores da atenção básica, para que os mesmos

possam incorporar ou incrementar em seu cotidiano de trabalho iniciativas para incluir os

homens nas suas ações de saúde.

Outro aspecto que é bastante comentado por quase todos os trabalhadores de saúde diz

respeito à falta de incentivos da gestão local no estabelecimento de protocolos para ações

voltadas à saúde do homem. Acreditamos que este aspecto está bastante relacionado ao que

citamos anteriormente, visto que alguns dos nossos interlocutores, apesar de reconhecerem a

publicação da PNAISH, salientam que inexistem recomendações formais da administração

pública local (prefeitura, secretaria municipal de saúde) em definir atividades que possam

contemplar o cuidado à saúde dos homens na unidade básica de saúde.

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Regina (Enfermeira): A gente eu acho que foi pioneira assim... Ela nunca foi tema

anteriormente da gestão. A gestão ainda não tem dentro do (?) a pessoa que

representa, pelo menos eu não conheço, pode ser que tenha uma pessoazinha que seja

responsável pela do homem. A da mulher tem, tem sempre uma pessoa que aparece.

Mas a do homem até agora... (...)

Túlio: Mas pelo menos hoje não existe um projeto da prefeitura que tenha chegado na

unidade formalmente?

Regina (Enfermeira): Não, não, não tem não. Pelo menos que eu saiba não tem não.

Túlio: Tu sabe se a prefeitura, se a Secretaria de Saúde tem alguma coisa, eh, alguma

ação, pra que as unidades de saúde possam aderir a essa política? Sérgio (ACS5): Eu acredito que não... mas seria muito bom se pudesse ter essa ação!

Ramona (Dentista): O que a gente tá percebendo é que o distrito ainda não definiu o

protocolo. (...) Aqui a gente não tem nada que venha da gestão. A gente sempre tem

trabalhos que cada comunidade faz por experiência que outros PSF traz pra Recife,

mas não tem uma política, um protocolo da gestão e eu acho que Recife tá muito

atrasada em algumas coisas em relação a outros municípios. (...) A gente não viu da

gestão a cobrança de um protocolo, porque quando tem o protocolo, aí que aqueles

profissionais que antes nem tinham se alertado a fazer nada, aí eles começam a fazer.

Diante destes fragmentos, vemos que os trabalhadores apontam a falta de um estímulo

da gestão à inclusão de ações específicas, e de diretrizes ou protocolos para o trabalho da

saúde do homem na atenção básica, o que para nós chama bastante a atenção, tendo em vista a

ênfase que a PNAISH concede à incorporação de ações destinadas à população masculina nos

serviços da rede básica, de modo a organizar o seu fluxo de acesso no SUS, bastante

concentrado nos serviços de média e alta complexidade (BRASIL, 2009a). Desta forma, as

ações desenvolvidas para os homens, na unidade, acabam sendo fruto de iniciativas

particulares das equipes.

Por outro lado, também nos cabe questionar até que ponto a ausência de uma

disposição formal (como um protocolo da gestão) é, por si só, impeditivo para o

desenvolvimento de ações com foco em determinado grupo populacional, uma vez que,

consideramos que as ações da atenção básica, a partir da ESF, têm como núcleo estruturante a

família, que numa concepção tradicional, envolve tanto homens, quanto mulheres, sejam

crianças, adolescentes, adultos ou idosos.

De qualquer modo, neste serviço, a falta de articulação da gestão quanto à temática da

saúde do homem faz/fez com que eles busquem/buscassem outros meios para contemplar a

população masculina em seu cotidiano, como a articulação com os movimentos sociais

(especificamente, uma ONG), como diz o médico

Túlio: Existe alguma coisa formalizada, sei lá, incentivo da prefeitura...? (?)

Mateus (Médico): (...) Pela prefeitura o maior incentivo é a saúde da criança e saúde

da mulher. Saúde do homem é pouco, embora existam outros órgãos que façam este

trabalho. Desde que eu cheguei na comunidade, eu não sei se eles ainda estão por

aqui, que é a ONG do [Diz o nome da ONG]. Mas eu não sei se eles ainda estão aqui,

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acho que eles já devem ter migrado pra outra comunidade. E daí a maioria do material

que a gente tem aqui na unidade de saúde do homem é dessa ONG, não é da

prefeitura.

Ao mesmo tempo, é importante citar as iniciativas, que acabam sendo executadas via

vontade própria dos trabalhadores de saúde, que se dão a partir do compartilhar de

experiências tidas como exitosas e do desejo de se trabalhar tal temática dentre alguns

trabalhadores interessados. Destacamos também a importância do estabelecimento de

parcerias como outros profissionais, estudantes, estagiários e pesquisadores que vão à unidade

e que contribuem para o despertar desta vontade de fazer.

Tomando o caso específico do grupo de homens, por exemplo, a história de sua

gestação se monta a partir de diferentes eventos: o contato com a referida ONG, inicialmente

em outro grupo realizado na comunidade; a experiência de dois agentes comunitários de saúde

e seu desejo particular em trabalhar com os homens, além do seu contato e vínculo com os

homens moradores da comunidade que possibilitaram a presença e adesão de alguns destes ao

grupo; o apoio de trabalhadores, estudantes estagiários, pesquisadores e residentes presentes

na unidade que auxiliaram no amadurecimento das discussões no grupo; a participação de

diferentes trabalhadores no dia-a-dia dos encontros, e por fim; a própria dedicação dos

homens/usuários em frequentar o grupo.

Assim, é importante reconhecer que com a experiência e iniciativas observadas no

cotidiano desta unidade, bem como a partir dos relatos de trabalhadores e usuários, podemos

considerar que, como mencionam Couto et al (2010, p. 266)

uma visibilidade dos homens como potenciais cuidadores e usuários dos serviços

parece estar em desenvolvimento, embora ainda de modo tímido. Não podem passar

despercebidos alguns discursos e ações de profissionais que dão visibilidade aos

homens usuários e os estimulam à prática do cuidado de si e dos outros. Assim, podem ser citadas tanto fissuras nas tendências apontadas, quanto ações inovadoras

como estratégias para atender aos homens e inseri-los no contexto dos serviços

(COUTO et al, 2010, p. 266).

Para finalizar este tópico, concordamos com Benedito Medrado et al (2009), quando

afirmam que os gestores e profissionais de saúde precisam rever práticas, conceitos e valores

para o trabalho com a população masculina. Para estes autores é necessário lançar mão de

ações educativas que possam favorecer a compreensão da importância e necessidade de ações

dirigidas aos homens, além de que possam auxiliar na definição coletiva de prioridades e

estratégias de ação a serem implementadas nos serviços. É desta maneira que tais

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trabalhadores e gestores poderão perceber que a população masculina também possui

necessidades específicas em saúde.

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CAPÍTULO FINAL

Algumas considerações...

Contrário àquilo que poderia ser esperado de um trabalho científico (para falar de

certo paradigma modernista em ciência) propriamente dito, preferi trabalhar a partir de dois

verbos – aproximar e compreender, me distanciando do que se espera, a priori, de um

empreendimento de pesquisa: definições, apreensões, declarações, verdades,

aprisionamentos, (talvez até) esgotamentos.

Mas por que evitar o esgotamento? Por que posicionar-se contrário a essa noção?

Meu posicionamento deve-se, simplesmente, pela noção de terminalidade, conclusividade a

que esta palavra me remete. Ora, entendo as coisas como dinâmicas e processuais, marcadas

pelas suas condições de existência, pelos contextos em que emergem e pelos elementos que as

mantém viventes, ou ativas. Prefiro encarar a vida dessa maneira, ou, melhor dizendo, uma

tentativa de tomar a vida como construcionista (para tomar emprestado a nomeação das

bases teórico-conceituais de que me utilizei para desenvolver este trabalho): abrir-se à

construção de si a partir do diálogo com outro... Afinal, a vida é assim! Do mesmo modo,

nossas ações se dão assim.

Como diz o poeta Raul Seixas: “Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter

aquela velha opinião formada sobre tudo!”. Disto implica encarar a vida como processo,

como condição de possibilidade, como um vir a ser constante... Logo, um trabalho como este,

que se constrói a partir de múltiplos movimentos da vida não poderia ser diferente, e reflete

vários momentos, e ao mesmo tempo um só, o momento em que busquei me debruçar sobre

um tema que me despertou curiosidade, que me instigou a construir ferramentas e

mecanismos de me aproximar e me distanciar dele. Ao mesmo tempo, como disse, nele fujo do

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esgotamento. Sei que não é possível, e nem é a minha pretensão, esgotar a temática a que me

dediquei nestes anos... Acho que falei sobre muita coisa, mas muita coisa ainda há a se falar,

afinal, o diálogo nunca se esgota!

Assim, este trabalho dissertativo mais que um produto teórico, é um produto de

existência. É um produto que significa muito mais que palavras estruturadas, declarações

coerentes e argumentos fundamentados. Trata-se de um produto marcado por afetos e

desejos, acertos e erros, caminhos e descaminhos. Expressa uma relação de cuidado! Sim,

CUIDADO! Afinal, é o cuidado que nos possibilita crescer, a ser mais, a ser melhores... É ele

que nos conduz a cada dia, em busca dos nossos objetivos, qual seja ele, escrever uma

dissertação!

Entre Controvérsias...

Para um último exercício reflexivo neste trabalho, preferimos recorrer às contribuições

de Bruno Latour (2000; 2001; 2002) e suas ponderações sobre o fazer ciência. Destacamos de

antemão três grandes pilares que estruturam o trabalho deste autor: a noção de simetria, o

trabalho a partir da teoria ator-rede e a discussão sobre as controvérsias na ciência, sendo este

último o que nos chama a atenção aqui, principalmente, se tomamos a perspectiva da

reflexividade do fazer científico.

Primeiramente, ao considerarmos o princípio da simetria, ao qual se refere Latour, no

nosso trabalho, não nos importamos em saber quem está certo e quem está errado. “O que

está em jogo é a visão de mundo” (COLACIOS, 2009). Assim, não estivemos/estamos

interessados na verdade dos nossos interlocutores, não buscamos saber qual/quais deles

estava/está mais certo ou mais errado, buscamos apenas visibilizar diferentes maneiras de se

compreender e lidar com um determinado objeto. Como viemos apontando ao longo dessa

dissertação, é necessário relativizar os modos como o cuidado à saúde do homem se produz,

bem como os saberes e as práticas que o norteiam.

Ao mesmo tempo, mais uma vez recorremos a Latour (2000) para compreender que as

práticas do cotidiano nada mais são que componentes de uma complexa rede de atores

humanos e não-humanos mutuamente implicados. Compreender seu funcionamento só é

possível quando seguimos suas possibilidades de articulação, os “seus nós”. Trazer a noção de

rede para nós é importante por considerar que no plano do cotidiano é necessário

compreender as relações complexas e heterogêneas que se desenvolvem entre estes diferentes

atores, fugindo de uma possível postura determinista que possa situar posicionamentos ou

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argumentações em compartimentos bem delimitados. Pelo contrário, em nosso exercício de

pesquisa buscamos dar visibilidade aos diferentes lugares acedidos por nossos atores,

considerando que nosso olhar também se situa em um determinado lugar.

Assim, ao tentarmos seguir a produção de cuidados à saúde do homem num serviço

público de atenção básica, percebemos a existência de diversos atores humanos

(homens/usuários, mulheres que os acompanham, agente de saúde, profissionais de formação

diversa etc) e não-humanos (medicamentos, exames, prescrições, documentos políticos,

protocolos etc) que possibilitam ou não que práticas sejam desenvolvidas sob determinadas

inscrições, as quais, por sua vez, produzem efeitos variados que seguem essas redes e tem

ressonâncias diversas (seja, por exemplo, reproduzir velhas noções ou produzir novos

conceitos).

Em seguida, é no tom das controvérsias que este trabalho se estrutura, apresentando as

diferentes tensões e desafios que ainda permeiam os campos teórico-práticos da produção da

saúde, principalmente no tocante à saúde do homem. Para Latour (2000), as controvérsias

constituem o lado mais oculto das ciências, e ao mesmo tempo, a oportunidade de se manter a

atividade científica em pleno funcionamento, uma vez que, ao tomar a ciência como produção

social, compreende que é a manutenção deste diálogo com o social que possibilita que

argumentações e debates sustentem, ou não, uma teoria ainda não consolidada.

A idéia de controvérsias na prática científica remete à adesão ao mundo científico de

atores que outrora não estavam presentes, tais como aqueles para os quais a própria atividade

científica se volta, quais sejam as pessoas às quais seus efeitos se destinam (LATOUR, 2000).

Deste modo, o fazer pesquisa, mais que uma atividade científica, é uma atividade política e é

neste movimento de tradução das práticas científicas em práticas sociais legitimadas que

surgem as controvérsias.

É em meio a este emaranhado teórico-reflexivo que se desenham os questionamentos

que surgem, afinal, da realização do nosso estudo. Reconhecemos que discutir a saúde do

homem ainda é um campo controverso e, como tal, compõe uma série de interrogações.

Assim, ao concluir o nosso estudo, ainda nos questionamos: afinal, como os homens se

posicionam nesse debate? Onde se localizam? Não estaria na sua suposta reclusão ao debate

uma maneira de assumir os lugares a eles imputados historicamente? E ao mesmo tempo

quais seriam as reais necessidades dos homens na saúde? Será que os serviços de saúde

reconhecem, de fato, que tais homens precisam de cuidados?

Trazendo para a situação específica da nossa pesquisa, podemos pensar: não nos

parece controverso que embora tenhamos um documento político específico, trabalhadores

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que se dizem pioneiros na produção de ações à saúde do homem ainda tenham tão pouca

aproximação dele? Não nos parece controverso que embora esta mesma política tenha grande

ênfase nos serviços da atenção básica, decorridos três anos do início de sua implantação,

ainda se observe pouca repercussão nos serviços de saúde, principalmente neste, indicado

como referência por ter um elemento diferencial que seja já o trabalho com homens? Não nos

parece um tanto controverso, trabalhadores afirmarem ter percebido grande aumento da

procura de homens na unidade de saúde, a partir de uma atividade grupal por eles

desenvolvida, e, no entanto, dentro do referido grupo, tão poucos homens referirem fazer este

uso frequente? Não nos parece controverso ter esses homens tecido tão grandes comentários

avaliando a unidade de saúde positivamente, mesmo tendo revelado problemas estruturais e

não a conhecerem bem por não terem acesso? E, por fim, não nos parece ainda mais

controverso tais homens não imputarem a si mesmos uma imagem de não cuidadores e, ao

mesmo tempo, reconhecerem os poucos cuidados à própria saúde como dependentes de si?

Assim, é mantendo o tom das controvérsias que seguimos dialogando. Não seriam

elas, em último caso, o que nos mobiliza a querer buscar outras formas de compreensão? E ao

mesmo tempo, não seria esta mesma possibilidade de busca de outras maneiras de

compreensão, uma atitude controversa? Compreendemos que é desta maneira que a ciência se

desenha: entre controvérsias, as quais seriam as molas da atividade científica, embora seja a

prática científica um incessante exercício anti-controvérsias, já que se busca a verdade (isto

não seria uma controvérsia?). Como gostaríamos de manter esta rede em circulação, nos

deparamos ao fim deste trabalho produzindo mais controvérsias.

Retomando Alguns Nós...

Neste trabalho buscamos compreender como homens/usuários e trabalhadores de um

serviço público da atenção básica à saúde produzem cuidados à população masculina no seu

cotidiano. Nossa intenção maior, com a realização desta pesquisa, era situar alguns pontos,

por nós visibilizados, que pudessem contribuir para as discussões que tem aproximado os

homens da produção de cuidados à saúde, um campo até algumas décadas atrás ainda carente

de produções e que, nos últimos anos, tem ganhado grande destaque. Ao chegar ao momento

de refletir sobre o trabalho aqui empreendido, acreditamos que conseguimos avançar em

alguns pontos e contribuir com tais discussões. Certamente ainda há muito a avançar.

Munidos das reflexões apresentadas acima, chegamos ao momento de tentar, em certa

medida, finalizar este trabalho, embora reconheçamos que este final acabe indicando novos

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começos. Retomando um pouco do que discutimos ao longo desta dissertação, vimos que o

cuidado à saúde do homem, no cotidiano do serviço de atenção básica que pesquisamos, é

permeado por uma complexa rede de relações, que inegavelmente, se produz em termos de

jogos de verdade e de poder. De um lado, o saber-poder dos trabalhadores de saúde em

prescreverem formas de cuidar e ser cuidados, e por outro das resistências demonstradas (ou

não) pelos homens em se submeterem a estas formas.

As falas dos trabalhadores acabam (de)marcando em certa medida os corpos dos

homens e limitando suas possibilidades de existir ou de desenvolver práticas de cuidado.

Vimos uma discursividade masculina marcada pela negação: homem não se cuida, não acessa

o serviço de saúde, não é como a mulher, não participa etc. Se os homens não se cuidam,

podemos pensar então se não estaríamos diante uma tentativa de medicalização do corpo

masculino, sob o rótulo do cuidar? Cuidar seria, então, uma forma de aceder à normatização

das práticas regulatórias que incidem sobre o corpo modos de ser e de agir?

Algumas falas representam bem como as questões de gênero se implicam nos modos

de cuidar e nas relações dos sujeitos com os seus corpos. Além disso, vimos uma noção de

saúde marcada pela prevenção de agravos, medicalização e normatização das práticas de

cuidado. Entre os homens e trabalhadores tal discursividade parece se alinhar, os quais

apresentam uma noção de cuidado que algumas vezes extrapola o processo saúde-doença, mas

que acabam reproduzindo práticas orientadas por um amplo tecnicismo. Além do legitimado

poder biomédico que prescreve formas de existência e um discurso que aprisiona o cuidado e

o orienta segundo tecnologias de biopoder. Neste sentido, cabe-nos questionar: não haveria

para os homens outras formas possíveis de se definir esse cuidar a não ser a partir da ótica

biomédica dominante?

Não podemos perder de vista, no entanto, que estamos nos referindo ao funcionamento

de um serviço de saúde, e que, há uma racionalidade médica mais ampla ao qual ele deve

aceder. O que pontuamos neste trabalho seria o diálogo possível entre diferentes modos de se

encarar o processo saúde-doença-cuidado, tendo este último como objetivo maior dos

serviços. Assim, não questionamos aqui a adoção das “ditas” práticas mais saudáveis, pelo

contrário, reconhecemos a importância dos hábitos de vida para a manutenção da saúde física

e mental. O que apontamos são os nós de uma rede que não se constrói sem efeitos. Ou seja, o

que significa dizer que tal hábito é saudável ou não? Que efeitos isto produz na vida de uma

pessoa? E como a pessoa lida com estes efeitos?

Acreditamos que é necessário que os trabalhadores de saúde possam investir no

desenvolvimento de atividades centradas nos processos de prevenção e promoção da saúde de

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maneira a incluir os homens que ainda não estão presentes nos serviços. É importante

considerar também a valorização dos saberes populares e estabelecer diálogo entre as práticas

de cuidado disponíveis na comunidade de maneira complementar, de modo a se fugir mais da

centralidade do conhecimento biomédico.

Reconhecemos que as atividades propostas no cotidiano do serviço pesquisado têm

efeitos positivos nas ações de cuidado dos homens, no entanto vemos que elas apresentam

tensões. Falta, por exemplo, uma continuidade: o que é tido como sucesso para eles no dia do

homem é apenas mais um ilustrativo de que os homens têm necessidades em saúde e é preciso

que os serviços se disponham a acolhê-las e respondê-las.

Gostaríamos de visibilizar também o (des)preparo dos trabalhadores na lida com os

homens. Como motivos, podemos citar os próprios processos formativos particulares que não

investem em discussões de gênero, a suposta falta de costume em atender homens em seu

cotidiano, a posição de saber-poder ocupada pelos trabalhadores que pode encontrar

resistências frente ao suposto poder do masculino, além dos próprios preconceitos existentes

com relação ao homem: homem não se cuida, homem não quer se cuidar, homem é difícil. Ao

mesmo tempo, o despreparo também acaba funcionando como uma explicação para não

incluir ações voltadas ao homem no serviço

Do mesmo modo, podemos elencar alguns pontos de justificativa que supostamente

fazem com que os homens não busquem os serviços de saúde, o que é encarado pelos nossos

interlocutores como um indicativo de descuido de si: a associação do hábito de cuidar ao

âmbito feminino, as diferenças de horário entre trabalho e funcionamento dos serviços, a

precarização dos serviços – no caso a infra-estrutura, falta de materiais e recursos para

promover outras ações de atenção –, em menor grau, o medo de descobrir que está doente e ao

mesmo tempo o medo de ter a sua masculinidade questionada, a vergonha de ficar exposto a

um profissional, a falta de serviços específicos e, em consequência, o não reconhecimento dos

serviços existentes como espaço para o cuidado à sua própria saúde.

É importante destacar que com a realização desta pesquisa não tínhamos o intuito de

levantar responsáveis pelas dificuldades apresentadas pelos serviços em desenvolver práticas

de cuidado que atendam às necessidades dos homens na saúde. Não apoiamos ou legitimamos

uma lógica de culpabilização, mas reconhecemos a existência de uma série de argumentos

desfavoráveis que compõem uma ampla rede de elementos dificultores. Assim, da parte dos

usuários vemos algumas reclamações sobre o atendimento dos trabalhadores, sobre a

burocratização da rede, sobre as demoras nos atendimentos médicos e na falta de especialistas

nas unidades. Pelos trabalhadores a falta de infra-estrutura adequada para o trabalho que

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impede o desenvolvimento de ações sob o foco da promoção da saúde, por exemplo, a falta de

protocolos e de incentivos por parte da gestão, o excesso de casos que precisam dar conta na

comunidade, o despreparo em lidar com o homem reforçado pela própria ênfase da unidade

em trabalhar com outros grupos populacionais (mulheres, crianças e idosos; hipertensos e

diabéticos), e o suposto descuido do homem em não se atentar para as questões de sua própria

saúde, sendo isto justificado por questões sociais, culturais e econômicas mais amplas.

Temos em mente que não basta dedicar-se à realização de estudos para afirmar que

temos dificuldades, que os homens são menos presentes nos serviços, ou mesmo, que as

diferenças de gênero tornam a população masculina vulnerável: afinal, o que fazemos a partir

daqui? Deste modo, reconhecemos que iniciativas tem sido feitas, embora elas ainda careçam

de reflexões e amadurecimento para tornarem-se ainda mais efetivas e abrangentes, pois,

como vimos há tensões, há desafios, as questões continuam a surgir... e que bom que isto

acontece, assim conseguiremos seguir tentando, pesquisando, refletindo, atuando... é assim

que se faz a ciência, e é dessa forma que as coisas acontecem!

Neste sentido, embora reconheçamos que a atividade científica constitua uma busca

incessante por respostas, compreendemos que lançamos as respostas possíveis em meio a

novos questionamentos que vão surgindo de maneira inevitável. Como vimos, na maior parte

das vezes o cuidar da saúde se confunde com o “ir ao serviço”, mas até que ponto o acesso

aos serviços de saúde pode ser considerado como indicador para avaliação e qualidade destes

serviços? Não seria esta ênfase na produção de cuidados condicionada à busca dos serviços

uma possibilidade para que repensemos a noção do cuidado como um valor da vida? Ao

mesmo tempo, reconhecendo o Estado como instituição de governo e gestão da vida, é

possível promover uma leitura crítica sobre o masculino a partir dele, tendo em vista que este

mesmo Estado, muitas vezes, ainda se (re)produz em meio a valores machistas/sexistas?

Assim, não pretendendo pôr um ponto final nesta dissertação, optamos pelas

reticências para ter sempre em mente a idéia de continuarmos dialogando. Afinal, não

buscando responder a estas questões, acabamos delineando tantas mais possíveis que nos

possibilitem continuar pensando...

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APÊNDICES

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APÊNDICE I

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Pelo presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, eu,

__________________________________________________ me disponho a participar da pesquisa

intitulada “A GESTÃO NO COTIDIANO: Processos de Produção do Cuidado à Saúde do Homem na

Atenção Básica”, realizada por Túlio Romério Lopes Quirino, estudante de mestrado, regularmente

matriculado no Curso de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, da Universidade Federal de

Pernambuco – UFPE, sob orientação do Prof. Dr. Benedito Medrado, vinculado ao Departamento de

Psicologia desta instituição.

O meu consentimento em participar da pesquisa deve-se ao fato de ter sido informado (a) pelo

pesquisador que:

a) O objetivo do estudo é compreender de que modo a gestão do cuidado à saúde do homem acontece no cotidiano de um serviço de atenção primária à saúde.

b) A coleta do material será realizada pelo próprio estudante/pesquisador e se dará por meio de

observações no cotidiano do serviço e eventuais entrevistas em campo, as quais serão

gravadas em aparelho digital para posterior transcrição. Os dados coletados serão utilizados exclusivamente para este estudo, com finalidade de pesquisa.

A participação no estudo é voluntária. Assim, há liberdade para desistência em qualquer fase

da pesquisa, inclusive durante ou após a coleta de dados, sem qualquer risco de penalização ao/a

entrevistado/a. Será garantido o anonimato dos sujeitos do estudo na divulgação dos resultados e

guardado sigilo dos dados confidenciais.

Havendo interesse, os dados obtidos pela pesquisa serão disponibilizados aos sujeitos do

estudo, ao término do mesmo.

Caso necessário, posso entrar em contato com o pesquisador pelo telefone (81) 9807.0148 ou

pelo e-mail: [email protected].

Nome do (a) entrevistado (a):

Assinatura:

Data:

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Curso de Mestrado

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APÊNDICE II

QUESTÕES NORTEADORAS PARA CONVERSAS/ENTREVISTAS

1. Para Trabalhadores de Saúde

a. Os homens da comunidade costumam buscar atendimento nesta unidade de saúde?

Com que frequência? Quais os principais motivos para a busca?

b. De que modo os homens chegam a esta unidade de saúde (demanda espontânea, são

convidados, encaminhamento, etc)?

c. Em geral, como ocorrem os atendimentos aos homens na unidade? Você poderia

relatar um exemplo de atendimento realizado recentemente?

d. Você acha importante que os homens sejam atendidos nos serviços da atenção

básica? Por quê? Em quê?

e. Que serviços/atividades esta unidade de saúde oferece para o cuidado à saúde do

homem? Como você participa destes?

f. Você acha que, em geral, os profissionais de saúde estão preparados para atender às

necessidades dos homens? Porque?

g. Na sua opinião, existem especificidades para o cuidado ao homem na atenção

básica? Quais? Que diferenças você percebe no cuidado à saúde do homem e da

mulher, por exemplo?

h. O que você mudaria neste serviço para atender melhor às necessidades dos

homens?

2. Para Homens/Usuários do Serviço

a. Como você cuida da própria saúde?

b. O que os homens em geral fazem quando estão com algum problema de saúde?

c. Você vê diferenças no cuidado à saúde do homem e da mulher? Por quê?

d. Existem especificidades para o cuidado à saúde do homem? Que tipo de

especificidades?

e. Você costuma visitar a unidade básica de saúde? Com que frequência?

f. Como você percebe o atendimento recebido na unidade básica de saúde?

g. A unidade de saúde oferece atendimentos específicos para você/os homens?

h. O que a unidade de saúde poderia/deveria fazer para atender às suas necessidades?

i. Como você entende a saúde?

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Curso de Mestrado