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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO RODRIGO GOMES LEITE RECIFE, 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO

ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO

RODRIGO GOMES LEITE

RECIFE, 2006

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RODRIGO GOMES LEITE

A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO

ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Ciência Política, do programa de pós-graduação em Ciência Política, do departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Pernambuco.

Orientador: Prof. Dr. Marcus André Barreto Campelo Melo.

RECIFE, 2006

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AGRADECIMENTO

Sempre achei difícil agradecer... Não por nunca ter recebido ajuda, mas

justamente por sempre ter recebido ajuda demais; por vezes mais do que julgo merecer.

Então, para não pagar o alto preço de esquecer nessa nota alguma das incontáveis pessoas

que estenderam seus braços nessa caminhada, dedico este trabalho a todos que se vejam

representados nele. Talvez baste lê-lo para fazer parte dele.

Muito Obrigado.

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EM SETE PONTOS REVISITEI

1- A emancipação humana 2- A racionalidade moderna 3- A existência que serei 4- Quando irreconheci 5- Colonizei a solidariedade 6- Das muitas culturas 7- Das quais, nada sei

Marco Aurélio da Silva Freire

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SUMÁRIO

RESUMO 8

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I – BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO:

UMA APROXIMAÇÃO INICIAL

1.1 Charles Taylor e a Política do Reconhecimento; Universalismo e Relativismo

de Direitos na Modernidade

19

1.2 Rousseau e Kant: Afinidades (Ir)Reconhecidas 27

1.3 Taylor: O Debate Liberal-Comunitário 31

1.4 Inautenticidade e Autenticidade em Heidegger 40

1.4.1 A Ontologia de Ser e Tempo 40

1.5 Conclusão: Limites da Tese Tayloriana 45

CAPÍTULO II – A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL

2.1 Luta por Reconhecimento: Ética e Moral 51

2.2 Kant e a Teoria da Moral 53

2.3 Hegel e o Sistema Ético 57

2.3.1 Reconhecimento na Dialética do Senhor e do Escravo 62

2.4 Honneth e a Gramática Moral dos Conflitos Sociais 65

2.4.1 A Estrutura das Relações Sociais de Reconhecimento 66

2.5 Conclusão: Uma Concepção Formal de Eticidade 73

CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA

3.1 Nancy Fraser: Redistribuição e Reconhecimento 78

3.1.1 O Dilema Redistribuição-Reconhecimento 80

3.1.2 Coletividades Exploradas, Menosprezadas e Ambivalentes 82

3.1.3 Afirmação e Transformação 86

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3.1.4 Escapando do Dilema? 88

3.2 Kymlicka: Multiculturalismos 92

3.2.1 Políticas de Identidade: Modelo Tradicional 92

3.2.2 Cinco Modelos de Multiculturalismo 102

3.2.2.1 Minorias Nacionais 103

3.2.2.2 Grupos Imigrantes 104

3.2.2.3 Grupos Etno-Religiosos Isolacionistas 104

3.2.2.4 Metecos 106

3.2.2.5 Afro-Americanos 106

3.3 Conclusão: Direcionando o Debate Multicultural 110

CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE

4.1 Multiculturalismo e Moralidade 115

4.2 Razão Pública como Princípio Normativo 126

4.3 Condições do Debate Multicultural 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS 139

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143

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TÍTULO: TEORIA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: A CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTADO E GOVERNO LINHA DE PESQUISA: TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

RESUMO:

Muitos trabalhos vindos da teoria política contemporânea dão atenção especial a políticas de reconhecimento. Esta tese tem como foco uma analise da relação entre teoria política e o argumento multiculturalista contemporâneo. Começo com uma análise do paradigma d’A Política do Reconhecimento de Charles Taylor e suas fontes teóricas e considero outros contemporâneos teóricos do reconhecimento com suas respectivas fontes teóricas como: Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls, e Jürgen Habermas. Posteriormente volto a analisar a interdependência entre reconhecimento, teoria crítica e universalismo de direitos. Em minha visão este é o único caminho rumo a um reconhecimento autêntico em sociedades democráticas, liberais e pluralistas.

PALAVRAS-CHAVES: reconhecimento, multiculturalismo, liberalismo, universalismo, teoria crítica, democracia, autenticidade, desenvolvimento moral.

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ABSTTRACT:

Many works from the contemporary political theory give a special attention to politics of recognition. The following thesis focuses the analysis away from political philosophy and towards the politics of multiculturalism, while continuing explore the links between them. I begin with an analyses of the paradigm of The Politics of Recognition from Charles Taylor and his theoretical sources, and consider others contemporary theories of recognition and theirs sources, namely those of Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls and Jürgen Habermas. After I turn to analyze the interdependence between recognition, critical theory and universalism of rights. In my view this is the unique way to an authentic recognition in democratic liberals and pluralistics societies.

KEYWORDS: Recognition, multiculturalism, liberalism, universalism, critical theory, democracy, authenticity, moral development.

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INTRODUÇÃO

Movimentos teóricos são estranhamente parecidos nas suas diferenças. Em

tempos já distantes, na década de 1860, Lord Acton1 considerava o nacionalismo como a

mais atraente das idéias subversivas modernas.2 Defendendo o princípio da legitimidade

universal, num período coincidente com o auge do poder imperialista britânico, Acton

considerava superiores os Estados que englobam várias nacionalidades sem, no entanto,

oprimi-las. Nesses Estados as nações esgotadas e decadentes são revigoradas pelo

contato com uma vitalidade mais jovem. As nações que perderam os elementos da

organização e a capacidade de governo, quer pela influência desmoralizante do

despotismo, quer pela ação desintegradora da democracia, são resgatadas e reeducadas

sob a disciplina de uma raça mais forte e menos corrompida.3

Descontando-se as diferenças entre a Europa neocolonialista e o mundo

contemporâneo, algumas afinidades eletivas podem ser traçadas entre o nacionalismo do

século XIX e o debate multiculturalista de nossos dias. Em suas reivindicações,

defensores de uma pauta de direitos multiculturais ressaltam a forte impregnação ética

dos ordenamentos jurídicos. Estes não seriam neutros, mas edificados a partir de valores

e símbolos culturais que beneficiam uma identidade cultural majoritária. Modelos

tradicionais de nacionalismo, como o de Acton, não reconheceriam o valor idêntico das

1 ACTON, Lord. Nacionalidade, in BALAKRISHNAN, Gopal. Um Mapa da Questão Nacional (org), Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p 37. 2 As outras duas eram o igualitarismo, crítico do princípio da aristocracia, e o socialismo de Babeuf, crítico da propriedade privada. 3 Acton, idem, pg 37

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diversas culturas que habitam um Estado, mas visariam seu englobamento a padrões de

conduta geralmente definidos como eurocêntricos. A rigidez procedimental de algumas

vertentes do liberalismo, seria ela mesma, um padrão ético eurocêntrico retoricamente

definido como neutro – e universal.

Por outro lado o argumento de Acton parece sustentar uma tese liberal.

Poderíamos reivindicar o princípio da legitimidade universal de direitos, não por motivos

de superioridade de raças ou de culturas (essas considerações axiológicas nunca foram o

foco da tradição liberal), mas concordaríamos com Acton por um motivo inverso do que

defende: a igualdade fundamental de direitos entre diferentes culturas no interior de um

Estado é a melhor e mais segura medida de assegurar que identidades minoritárias não

sejam perseguidas ou discriminadas.

Certo princípio da isonomia orienta: “tratar os iguais igualmente, e os desiguais

desigualmente”. Isso não responde absolutamente nada. Se a questão apresentada é como

reconhecer o direito à diferença respeitando o direito a igual cidadania, aquela

afirmativa oferece espaço a interpretações que podem variar ao infinito. Seguramente um

Estado pode se valer dessa assertiva para sanar injustiças cometidas sobre uma certa

categoria de cidadãos ou identidade cultural; mas existe o reverso dessa medalha. Sob a

égide da isonomia, o Estado nazista tratou desigualmente os desiguais judeus... Em

poucas palavras esta seria nossa problemática: como resolver do ponto de vista teórico o

dilema entre individualidade e universalidade de direitos no Estado contemporâneo no

que tange à cultura? Mas nosso trabalho não é, ainda, tão simples.

Poderíamos dar uma definição provisória de liberalismo como:

A essência do liberalismo reside em seu reconhecimento do desejo individual como fato básico de uma associação civil moderna. Não

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há valores ou normas preponderantes a que o homem esteja completamente e permanentemente obrigado.4

Em seus escritos de juventude, Hegel afirmava que nossa identidade é formada

num movimento de luta por reconhecimento. A construção de nosso self não se daria

pacificamente num ambiente isento de contradições, mas numa atmosfera dialética,

caracterizada pelo conflito. O filósofo alemão aparentemente não perdeu a vitalidade,

pois a questão do reconhecimento ocupa cada vez mais espaço na teoria social. Desde sua

inserção definitiva no jargão teórico contemporâneo por Charles Taylor, ‘A Política do

Reconhecimento’ vem despertando a atenção de pensadores das mais variadas matizes

conceituais.

Numa sociedade permeada pela variedade cultural, identidades locais vêm

clamando como condição sine qua non de uma democracia substantiva, o reconhecimento

de sua diferença. O problema que se coloca é como o Estado deve reconhecer essa

diferença. Aqui dois argumentos ganham destaque: o multiculturalista e o liberal.

A despeito das significativas diferenças em seu interior, o argumento

multiculturalista pode ser resumido na seguinte fórmula: O Estado não é formado por um

só povo, mas por identidades culturais, distintas entre si. Os titulares dessas identidades

possuiriam maneiras peculiares de se relacionarem entre si e com o mundo que seriam

irredutíveis aos outros modos de vida; um ordenamento jurídico indivisível sobre um

território nacional não passaria de um artífice autoritário. O princípio da autonomia

cultural exigiria o reconhecimento da autonomia política em face da constituição como

4 OUTHWAITE, William & BOTTOMORE Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. Verbete liberalismo, Pg 422.

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pré-requisito da sobrevivência desses grupos. Fariam parte desse grupo pensadores como

Will Kimlicka e Charles Taylor.

O argumento liberal, assumindo-se os riscos da sintetização, afirma que o dever

do estado é garantir os compromissos procedimentais, ou seja, assegurar a todos a

possibilidade de um igual tratamento e de desenvolverem seus planos de vida da forma

que melhor lhe aprouver. Garantem-se os direitos formais, mas os compromissos

substantivos, o que deve ser uma vida boa, fica a cargo do indivíduo. É o pensamento

comungado por Brian Barry e John Rawls, por exemplo.

Este é o objetivo deste trabalho, criticar o argumento multiculturalista a partir de

uma concepção de igualdade universal de direitos. Questão que evidencia sua

importância, num ambiente pautado pela variedade cultural, que em geral, exige um igual

reconhecimento de sua diferença.

Este trabalho é dividido em quatro capítulos. No primeiro investigamos a tradição

teórica que alimenta a “Política do Reconhecimento” e o debate liberal-comunitário na

visão de Charles Taylor. O influente filósofo canadense serve como espinha dorsal de

todo capítulo enquanto se identifica e analisa-se a tradição teórica que inspira o debate.

Analisamos a tensão entre universalidade e relativismo, que marca a pauta de direitos e o

teor cognitivo da moral na modernidade, contrapondo a tradição contratualista com uma

tradição expressivista e historicista fundada na figura de Herder. Posteriormente

investigamos Martin Heidegger em Ser e Tempo, uma obra que vai sedimentar todos o

debate em torno do sentido da identidade e o sentido do reconhecimento nos debates

teóricos contemporâneos.

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No segundo capítulo abordamos a estrutura do desenvolvimento da moral. É a

aquilo que se compreende como moral que direciona a justificação e o teor normativo do

reconhecimento. Apresentamos ali a estrutura de desenvolvimento da moral na visão de

Axel Honneth em Luta por Reconhecimento. Este quadro no qual o reconhecimento se

realiza é divido por Honneth em três níveis. O primeiro modo de reconhecimento é a

dedicação emotiva que tem como forma de reconhecimento as relações primárias, onde

os seres humanos vivem as experiências do amor e da amizade, e que prepara o caminho

para uma espécie de auto-relação em que os sujeitos alcançam uma confiança elementar

em si mesmos,5 precedendo todas as outras formas e reconhecimento. Há um segundo

nível, o das relações jurídicas na qual os indivíduos se reconhecem como portadores de

direitos perante a sociedade e moralmente imputáveis desenvolvendo uma auto-relação

prática de auto-respeito. O modo de reconhecimento é o respeito cognitivo. Existe ainda

um terceiro modo de reconhecimento, o da estima social, que tem como forma de

reconhecimento a comunidade de valores marcada pela solidariedade. Aqui a

personalidade se realiza através do igual sentimento de honra e dignidade.

Posteriormente estudamos duas visões clássicas que vão lastrear a filosofia moral

na contemporaneidade; primeiramente Immanuel Kant, com a Metafísica dos Costumes e

A Crítica da Razão Prática (obras definitivas na fundamentação liberal de moralidade);

em seguida investigamos a visão hegeliana de razão, para ele compreendida como uma

construção a partir de um processo dialético. Depois retornamos a Axel Honneth, no

delineamento da gramática moral dos conflitos sociais. A moralidade nessa visão, só é

compreensível quando se estabelece um padrão da estrutura das relações práticas de

reconhecimento. A moral não é dada a priori, não é um imperativo universal, mas algo

5 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, São Paulo: Ed 34, 2004, pg 177.

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construído num ínterim de relações intersubjetivas diferenciadas. A moral só pode ser

compreendida e corretamente abordada quando situada a partir de padrões cambiantes de

vida humana.

O terceiro capítulo apresenta o argumento multiculturalista. Tem como

centro dois pensadores: Nancy Fraser e Will Kymlicka. Nancy Fraser equaciona as

questões de justiça que envolvem diversas coletividades dentro de um ambiente de lutas

pós-socialistas. Mostra que questões relativas à justiça requerem tanto redistribuição

quanto reconhecimento. A natureza da justiça política não se esgota nem no

reconhecimento legal dos problemas, nem numa redistribuição dos bens materiais. Fraser

identifica dois tipos de injustiças acompanhadas dos devidos remédios. Existe a injustiça

socioeconômica, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, esta injustiça

tem como marcas a exploração econômica (no sentido marxiano do termo), a

marginalização econômica (quando alguém é privado do trabalho, ou submetido a tarefas

degradantes) e a privação (quando é negado padrão material digno). Para esses tipos de

injustiça a solução é reestruturação político-econômica; e isso pode significar

redistribuição de renda, reorganização do trabalho, ou outras transformações na base da

sociedade que visem sanar essas deficiências. E existe a injustiça cultural ou simbólica.

Aqui a injustiça está arraigada a padrões de representação social, interpretação e

comunicação. Esse tipo de injustiça envolve dominação cultural, não-reconhecimento

(ser considerado invisível por outras representações sociais) e o desrespeito, que é ter sua

condição difamada ou estereotipada pela sociedade. Nesse caso o remédio é a reavaliação

dos padrões culturais da sociedade, a partir de uma política positiva de reconhecimento

dos direitos individuais e coletivos. Fraser trabalha com quatro tipos de coletividades

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distribuídas entre os três tipos ideais apresentados: Classes exploradas, que precisam de

redistribuição de renda; coletividades como gênero e raça; que precisam de remédios

ambivalentes, ou seja, redistribuição e reconhecimento; e as sexualidades menosprezadas

que precisam de reconhecimento.

Em seguida apresentamos o argumento de Kymlicka. Este analisa que uma leitura

procedimental do liberalismo é incapaz de compreender a complexidade de culturas

societais como as que caracterizam as democracias ocidentais. Sociedades pluralistas

exigiriam uma compreensão multicultural de direitos que ao mesmo tempo em que

preservassem a autonomia e liberdades individuais também preservasse um espaço de

proteção às culturas minoritárias de uma sociedade. Kymlicka diferencia cinco tipos de

minorias: minorias nacionais; grupos imigrantes; grupos etno-religiosos isolacionistas;

‘méticos’ e afro-americanos. A partir dessa diferenciação, o debate multicultural pode

ser, segundo Kymlicka, redirecionado em dois sentidos: Não é mais sustentável a tese de

que justiça pode ser definida como rigidez procedimental. Afirma que a rigidez

procedimental causa desvantagens para grupos específicos. São necessárias regras

comuns a todos os indivíduos, mas que se garantam regras diferenciadas para diversos

grupos em casos isolados. Daí se conclui que o multiculturalismo da forma que foi

proposto, combate às injustiças, e não cria outras injustiças que beneficiam grupos

minoritários.

No capítulo IV expomos nossa tese central: do ponto de vista da afirmação dos

direitos, é imprescindível que se compreenda as reivindicações multiculturais como

situadas numa estrutura de desenvolvimento da moral como a apresentada por Axel

Honneth. Somente a partir do momento que se interpretem as demandas multiculturais

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como pertencentes ao rol das relações jurídicas ou de uma comunidade de valores, é

possível delimitar a responsabilidade jurídica na solução dos problemas culturais das

minorias.

A partir do momento que o multiculturalismo foi enquadrado numa estrutura

normativa da moral é possível estabelecer uma conexão entre o modelo de

reconhecimento de Axel Honneth e a idéia de razão pública como foi desenvolvida por

John Rawls em “O Direito dos Povos”. Rawls desenvolve um modelo de razão específico

para a abordagem de questões referentes ao espaço político público. São os princípios

morais e de aplicação prática da razão justamente no espaço caracterizado por Honneth

como Direito. É a aplicação da razão pública de Rawls no espaço das relações jurídicas.

Aqui há uma defesa de um núcleo entrelaçado entre o comunitarismo e o liberalismo.

Independentemente das concepções que aquelas duas tradições possuam do valor

cognitivo da moral é possível analisar conjuntamente o campo de ação de uma razão

pública na resolução de problemas do direito.

Muitas questões preconizadas pelo argumento multiculturalista são, ao nosso ver,

demandas relacionadas aos compromissos substantivos individuais, ou seja, são relativas

à forma de reconhecimento denominada por Axel Honneth de comunidade de valores.

Numa terminologia rawlsiana, poderíamos chamar esse espaço de cultura de fundo, ou

em termo característico de Jürgen Habermas, de esfera pública. A maneira mais

apropriada de organização da agenda de debates da esfera pública pela sociedade civil é,

na tese aqui defendida, a partir das condições de participação política estabelecidas por

Habermas.

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Ao se perceber o multiculturalismo como pertencente a um espectro de relações

críticas mutáveis, adotando o modelo de razão pública como princípio generalizante e

efetivo de direitos, temos então definido um modelo teórico capaz de identificar

habilmente as diferentes demandas que atingem sociedades complexas como são as

democracias constitucionais contemporâneas.

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CAPÍTULO I: BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO (UMA

APROXIMAÇÃO INICIAL)

I.1 – CHARLES TAYLOR E A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: Universalismo e

Relativismo de Direitos na Modernidade

Identidade e reconhecimento são questões fundamentalmente modernas. A

preocupação em torno de como nossa autocompreensão é desenvolvida e como esse

processo é, pelo menos em parte, determinado pela ação do meio social sobre o indivíduo

é uma questão de nosso tempo. Não significa, em absoluto, afirmar que as pessoas da

Idade Média ou da Antiguidade não possuíam identidade, mas sim que a modernidade

transforma profundamente a compreensão desses fenômenos.

Seguindo a proposta apresentada por Charles Taylor em As Fontes do Self6 e em

Argumentos Filosóficos7 duas mudanças tornaram candente a discussão em torno da

identidade e do reconhecimento: a primeira é a substituição do paradigma da honra pelo

paradigma da igualdade; a segunda é o desenvolvimento da noção de identidade

individualizada.

Fala-se do paradigma da honra para exemplificar o tipo de sociedade

característico do Antigo Regime, o conceito de honra está intimamente ligado aos

privilégios sociais. A idéia de honra, característica das sociedades aristocráticas, é, com o

fim do Antigo Regime, substituída pela idéia de igualdade. Diferentemente da honra, a

6 TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. Loyola,1997. 7 TAYLOR, 2002.

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igualdade é aqui tratada com um sentido universalista, não como direito de uma casta ou

elite política, mas como um elemento de pertencimento que possa enquadrar todos os

seres humanos numa idéia de igual respeito.

Essa transformação esconde um confronto ético que aborda a relação entre honra

e dignidade. Taylor apresenta dois modelos de ética que marcaram a articulação das

compreensões ocidentais de bem. Em primeiro lugar podemos citar a ética da honra.

Nesse modelo a preocupação com a honra é tida como a marca maior de um homem

honrado. Ela pode ser compreendida como a ética cavalheiresca. A vida do guerreiro, do

cidadão ou do cidadão- soldado é considerada superior à existência meramente privada,

dedicada as artes da paz e ao bem estar econômico.8 Um segundo modo de articulação

da compreensão do que é bom está inscrito na ética estóica; nessa visão (inspirada em

Platão) o orgulho é denunciado. A virtude não está na vida pública nem na excelência no

ágon guerreiro. A vida superior é aquela regida pela razão, sendo a própria razão

definida em termos de uma concepção de ordem, no cosmo e na alma. A vida superior é

aquela na qual a razão governa os desejos e sua inclinação para o excesso, a

insaciabilidade, e efemeridade, o conflito.9 Uma nova compreensão ética é inaugurada

com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau articula as duas concepções

éticas anteriormente demonstradas. Concorda com a ética estóica ao denunciar que a ética

da honra torna os homens escravos da opinião do outros e vincula o respeito à

aquiescência desses valores dito honrados. Mas Rousseau não despreza completamente o

primeiro modelo de ética ao ressaltar que a honra é também importante. Rousseau realiza

essa operação articulando a igual estima de todos os cidadãos no interior de um governo

8 TAYLOR, 1997. pg 36. 9 Idem, pg 36.

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republicano que honre a todos igualmente. Sob a égide da vontade geral, todos os

cidadãos virtuosos devem ser igualmente honrados. Nasce a era da dignidade.10

A tradição política contratualista surge como um divisor de águas no que vem a

ser chamado de igual respeito. Ainda que se tenha em mente a miríade de autores

reunidos sob essa definição, poderíamos resumir esse campo como um horizonte político-

filosófico o qual reúne (como representantes mais significativos) pensadores como

Thomas Hobbes11, John Locke12, Jean-Jacques Rousseau13 e Immanuel Kant. Apesar das

diferenças entre esses pensadores (não raro abissais) alguns paralelos conceituais são

possíveis; entre eles: (1) Existe uma natureza humana comum, em todos os homens, de

todos os lugares e em todos os tempos (universalismo); (2) Essa natureza imanente e

imutável concerne ao homem certos direitos igualmente universais e inalienáveis

(jusnaturalismo14); (3) O Estado e a sociedade civil surgem a partir de um contrato entre

os homens visando à proteção daqueles direitos universais e inalienáveis.

Esse movimento teórico hegemônico no iluminismo favorece o desenvolvimento

de um ideário político jurídico identificado com o universalismo. A igualdade

fundamental entre os homens necessita de um ordenamento que equalize essa mesma

igualdade. Este é o cerne do contrato social, a articulação dos indivíduos visando à

proteção de direitos que fundamentam a concepção de Estado.

10 TAYLOR, 2002. pg 258. 11 HOBBES, Thomas. Leviatã. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural:1999. 12 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2002. 13 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. 14Segundo essa teoria, o poder do Estado tem um limite externo: que decorre do fato de que, além do direito proposto pela vontade do príncipe (direito positivo), existe um direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da sua participação desta ou daquela comunidade política. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. UNB, 1997, pg 15.

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Thomas Hobbes deixa tal problemática evidente quando fala do bellum omnium

contra omnes, característica do estado de natureza15, onde o medo da morte violenta leva

os homens a traçarem um pacto de obediência, no qual cada um delega seus direitos

individuais, principalmente o direito de dispor da vida e dos corpos dos outros homens,

desde que tenha garantias de que seus iguais também o façam. Esses direitos são

delegados a um homem ou assembléia. Nesse pacto surge o Estado, esse deus mortal que

pacifica a sociedade, pondo em prática a única obrigação do soberano: garantir a sallus

populli (segurança do povo)16.

Hobbes realiza esse construto teórico baseado não numa pretensa desigualdade

fundamental entre súdito e soberano, mas ao contrário, fundamenta sua teoria numa

igualdade fundamental entre todos os homens:

A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto a força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação,

15 Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é incerto; conseqüentemente não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da terra, nem computo do tempo, nem artes nem letras, não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo da morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1999:109). 16 Não tenho a intenção nem é o foco de meu estudo adentrar-me detalhadamente nos motivos de efetivação do contrato social para Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. A breve incursão teórica que se segue tem o objetivo de demonstrar o funcionamento e os desdobramentos teóricos ulteriores do paradigma universalista clássico.

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quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados do mesmo perigo17.

Percebe-se que por mais que a biografia de Thomas Hobbes esteja aproximada

com o convencionalmente chamado Antigo Regime18, as premissas básicas da

fundamentação política são erigidas sobre princípios modernos, universais.

John Locke também utiliza os conceitos de “estado de natureza”, “contrato”,

“Estado”, porém, faz um delineamento distinto do anteriormente demonstrado por

Thomas Hobbes. Para John Locke, o estado de natureza não é um estado de guerra, é um

estado de relativa paz, onde os homens desfrutam de direitos naturais mais amplos que os

anteriormente defendidos por Hobbes. Na hipótese lockiana, os cidadãos já dispõem do

direito à liberdade, à segurança e a propriedade;

Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; ainda que naquele estado o homem tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não possui, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples conservação. O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultam que sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses19.

Por qual motivo, então, os cidadãos trocariam uma situação que aparentemente

não é má (estado de natureza), visando instituir outro arranjo que não parece ser bem

melhor (Estado)? Locke desfaz essa dúvida argumentando que a partir de um contrato

17 HOBBES, 1999: 107. 18 RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. São Paulo: Brasiliense, 1984. 19 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2002. Pg.91.

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entre os cidadãos o Estado surge como um árbitro para possíveis conflitos que possam

surgir. O Estado para John Locke não é a finalidade da sociedade, mas apenas um

instrumento que visa a proteção dos direitos naturais dos cidadãos através da manutenção

dos compromissos procedimentais entre eles. O Estado não é uma entidade superior à

sociedade civil, mas uma instituição que pode perder sua legitimidade tão logo

desrespeite qualquer dos direitos naturais citados.

Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.20

É a primeira grande formulação da teoria política liberal.

Uma outra transformação característica da modernidade é o florescimento da

compreensão de identidade individualizada no fim do século XVII, o ideal de

autenticidade. A concepção de uma unicidade identitária está ancorada numa visão de

que o certo e o errado não se restringem a conseqüências calculadas, mas que o bem está

relacionado a um conteúdo moral imanente ao sujeito. A moralidade tem, de certo modo,

uma voz interior21. Essa voz interior, inaugurada pela modernidade difere

qualitativamente da visão de bem dos antigos,

20 IDEM, pg. 96. 21 TAYLOR, 2002, pg. 243.

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A noção antiga do bem, quer ao modo platônico, como chave da ordem cósmica, quer na forma do bem viver a Aristóteles, estabelece um padrão para nós na natureza, independentemente de nossa vontade. A noção moderna de liberdade que se desenvolve no século XVII retrata isso como a independência do sujeito, sua determinação de seus próprios propósitos sem interferência da autoridade externa. A segunda veio a ser considerada incompatível com a primeira.22

Não se trata aqui de encontrar a fórmula do bem em si mesmo, objetivamente

perceptíveis e universalmente válidas, mas de ouvir a voz da moralidade que só é

palatável ao sujeito na sua originalidade autônoma. O igual respeito estaria atrelado ao

reconhecimento de todos em sua autenticidade.

O que o final do século XVIII acrescenta é a noção de originalidade. Isso ultrapassa o conjunto fixo de vocações, chegando a noção de que cada ser humano tem uma “medida” original e irrepetível. Somos todos chamados a viver de acordo com nossa originalidade. 23

A autenticidade faz parte de uma concepção iluminista segundo a qual os

indivíduos possuem um conteúdo moral interno imanente, uma idéia de Bem. Essa voz da

natureza dentro de nós, nos guia na direção ‘da coisa certa a fazer ’, o importante a ser

dito é que não fazemos devido a pressões externas, mas devido a nossa voz interior, que

Rousseau chamou de “sentimento de existência24”. Esse conceito ganha, porém sentido

crucial graças ao pensamento pós-Rousseau, ligado ao nome de Herder.

Herder apresentou a idéia de que cada um de nós tem um modo original de ser

humano: cada pessoa tem sua própria medida.25 O conceito de originalidade herderiano

atinge dois níveis; originalidade do indivíduo, e originalidade de um povo. Na mesma

22 TAYLOR, 1997, pg. 113. 23. Idem, 482. 24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do Caminhante Solitário. Brasília: UNB, 1986. pg76. 25 TAYLOR, 2002, Pg 244.

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intensidade que cada indivíduo possui sua própria medida cada povo possui também um

caráter peculiar, seu volksgeist, devendo ser fiel a ele. O desrespeito de um povo a sua

cultura autêntica gera, na melhor das hipóteses, um estrangeiro de segunda categoria.

A natureza humana seria como um projeto a ser expresso; cada ser humano, cada

geist, seria uma possibilidade expressão. A maneira pela qual este geist exprime-se,

determina sua autenticidade ou seu fracasso. Só há uma maneira de fugir do fracasso:

obedecendo a voz da natureza que só é passível de ser sentida quando entramos em

contato com o nosso ser interior. E é partir da fidelidade a essa voz interior que devemos

nos expressar:

A individuação expressiva tornou-se um dos pilares da cultura moderna. Tanto que mal a percebemos, e achamos difícil aceitar que seja uma idéia tão recente na história humana e que teria sido incompreensível em épocas anteriores. Além disso, essa noção de originalidade como vocação não se aplica somente aos indivíduos. Herder também a usou para formular uma noção de cultura nacional. Diferentes Völker têm sua forma própria de ser e não devem traí-la macaqueando os outros. (...) Essa é uma das idéias originadoras do nacionalismo moderno.26

O princípio do igual respeito, característica central da modernidade apóia o seguinte

conflito: uma primeira noção requer que tratemos o individuo de uma maneira avessa às

diferenças. Uma segunda noção afirma que devemos promover a particularidade. A partir desse

dilema que é lançado o desafio maior da política moderna: como reconhecer o direito à diferença

respeitando o direito a igual cidadania?

26 TAYLOR, 1997, 482.

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I.2 - ROUSSEAU E KANT: AFINIDADES (IR)RECONHECIDAS

A política do reconhecimento veio a significar duas coisas distintas, comumente

antagônicas, e inseparavelmente vinculadas. De um lado ressalta-se a política do

universalismo que enfatizou a igual dignidade de todos os cidadãos, política cujo

conteúdo tem sido a equalização de direitos e privilégios. Em contrapartida o

desenvolvimento da moderna noção de identidade, originou a política da diferença.

Todos devem ter tido reconhecido sua identidade peculiar. Eis a essência do problema e

que é talvez a maior contribuição de Charles Taylor em Argumentos Filosóficos; como

reconhecer politicamente as diferenças, a originalidade de cada identidade, numa mesma

constituição sem gerar discriminação ou favoritismos, e como universalizar a igualdade

sem suprimir as diferenças individuais?

Essa problemática se apóia em duas tradições distintas do liberalismo na teoria

política: Rousseau e Kant.

No modelo político rousseauneano três coisas são interligadas: a liberdade, a

ausência de papéis determinados, e o propósito comum. A liberdade dos cidadãos

permanece em consonância com sua igual dignidade, sem existir uma desigualdade

política fundamental. Esses cidadãos em conjunto deliberam o bem comum sob o signo

da Vontade Geral. O problema é que em nome da Vontade Geral, desde os jacobinos,

cometeram-se algumas das mais terríveis barbáries sociais. Segundo Taylor, mesmo onde

o terceiro elemento é descartado, a fusão entre liberdade igual com a ausência de

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diferenciação e papéis tem sido o motor da supressão das diferenças individuais, como no

feminismo27.

Outra vertente da tradição democrática é apresentada por Kant. Esses modelos não

reconhecem elementos como Vontade Geral, ou diferenciação de papéis, eles visam

apenas a uma igualdade de direitos concedidos aos cidadãos. Segundo Taylor, nessa

discussão se confrontam duas visões de liberalismo. A primeira, mais radical, defende

uma pauta de direitos, na qual todos os indivíduos são considerados igualmente, é o

modelo kantiano, criticado por não abarcar as diferenças. Outra perspectiva é a de um

liberalismo mais moderado que em casos extremos estabelece metas comuns, aceita

certas diferenciações entre os indivíduos, visando justamente o reconhecimento de sua

autenticidade. Charles Taylor filia sua teoria política à essa tese.

Os pensadores tipicamente idealizados por Taylor são Kant e Rousseau. Há

comumente na teoria política contemporânea uma contraposição dessas duas figuras,

onde Rousseau e seus sucessores são usados como representantes do comunitarismo

enquanto Kant e os seus, como símbolos do liberalismo. A despeito das idiossincrasias

das duas tradições, que não temos a intenção de debater aqui, há entre as bases das duas

colunas uma afinidade eletiva mais profunda do que se imagina.

Os conceitos que servem de base da ação política para Rousseau e Kant são

respectivamente os de “Vontade Geral” e “Imperativo Categórico”. Há uma identificação

de Rousseau com o modelo decisionístico de democracia (a marca central desse modelo

decisionístico é que a deliberação política ocorreria a partir da agregação da maioria dos

votos de uma dada comunidade). Esse é o ponto de partida para se acusar Rousseau de

teórico da tirania da maioria. Esta conclusão ocorre devido a um mal-entendido dos

27 Idem, Pg 259.

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conceitos rousseauneanos de Vontade de Todos e Vontade Geral. Para Rousseau existe

uma diferença substancial entre esses dois termos, que ele deixa bem claro nos cinco

primeiros capítulos do livro 2 de “O Contrato Social28”. Seguem-se duas citações

expressivas da diferenciação: Há comumente muita diferença entre Vontade de Todos e

Vontade Geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra ao interesse privado

e não passa de uma soma de vontades particulares29. E mais: deve-se compreender nesse

sentido que menos que o número de votos, aquilo que generaliza a Vontade é o interesse

comum que os une30. A vontade geral não é a vontade de todos ou da maioria, mas

também não pode ser caracterizada como vontade individual, seria então um substrato

ético que uniria o particular com o geral, a parte com o todo. E o que garantiria o sucesso

dessa operação? Resposta: Um elemento muito apreciado pelo iluminismo e quase

insuspeito no século XVIII; a razão. Há em Rousseau (como em todo seu contexto

histórico-filosófico) a crença de que no silêncio das paixões, pensando racionalmente, as

decisões corretas seriam alcançadas. O propósito comum existente no pensamento de

Rousseau, a partir da Vontade Geral e do bem comum, não deve ser confundido com a

quantificação de um horizonte coletivo, o conceito de Vontade Geral é o horizonte ético

compartilhado pela comunidade, e não o resultado prático.

Kant, como se sabe, possui como pedra angular de sua filosofia do direito e

política o imperativo categórico. Na “Crítica da Razão Prática” define o imperativo

categórico pela máxima: Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer

sempre como princípio de uma legislação universal.31 O imperativo categórico é um

28 In Os Pensadores, Abril Cultural. 29 Idem, Pg 91. 30 Idem, pg 97. 31 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Martin Claret, PG 40.

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dever moral a priori da razão, definido a partir dos princípios da razão prática pura. Isso

significa dizer que os seres humanos são moralmente impelidos a agir. Essa ação é

individualmente motivada e regulada subjetivamente. Se existe uma vontade, ela pertence

a um ator, e sua manifestação é regulada pelo que Kant denomina ‘autonomia’

(capacidade de agir racionalmente sozinho). Essa é a diferença entre leis morais e

jurídicas, as morais são interiormente reguladas, as jurídicas, por sua vez, externamente.

A despeito da carga de individualismo que este conceito carrega, não podemos

afirmar que o imperativo categórico autojustifica a ação particular. O imperativo

categórico apesar de motivado e regulado subjetivamente, só pode ser avaliado em

relação ao Outro. É a capacidade de universalização e convívio numa mesma atmosfera

de vontades distintas que define a validade da ação individual.

Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação geral da vontade, trazendo em si várias regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para sua vontade; são por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é válida para a vontade de todo ser racional32.

Tanto Rousseau quanto Kant tentam superar a dicotomia entre particular e

universal, a diferença é que Rousseau o faz a partir do geral, dando primazia a ele,

enquanto Kant realiza esta tarefa do particular. O que Charles Taylor faz é utilizar o

modelo rousseauneano para justificar uma submissão do indivíduo a uma decisão

coletiva, coisa que segundo Taylor o procedimentalismo kantiano não permitiria. Aí

32 Idem, Pg. 27.

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reside o engano conceitual de Taylor: em Rousseau quando o indivíduo obedece a uma

lei, obedece a si mesmo, pois participou legitimamente do processo de sua criação. Mais

que isso, a condição da liberdade é a obediência a essa lei, pois para Rousseau, ser livre é

obedecer às leis. No pensamento de Kant a liberdade também está sujeita a leis, haja vista

que define (como já dissemos) dois tipos de leis. A obediência às leis jurídicas também

seria condição de liberdade, pois na filosofia de Kant o Estado e o direito são a

positivação político-jurídica da lei moral, do imperativo categórico.

I.3 – TAYLOR: O DEBATE LIBERAL-COMUNITÁRIO – A questão dos Bens.

Em seu artigo “Propósitos Entrelaçados: o Debate Liberal-Comunitário”33,

Charles Taylor chama a atenção que as diferenças entre liberais e comunitários sobre a

teoria da justiça mais parece um debate entre dois “partidos”; de um lado estariam

pensadores como John Rawls e Ronald Dworkin (partido L) e do outro, pensadores como

Michael Sandel, Michael Walzer, e Alasdair MacIntyre (partido C). Apesar das

diferenças genuínas entre esses dois grupos Taylor afirma que existe também uma grande

quantidade de propósitos entrelaçados e mesmo confusão na apresentação dos termos do

debate. Segundo o autor, essa confusão ocorre porque duas questões distintas são

abordadas em conjunto, indistintamente. Taylor denomina essas questões de ‘questões

ontológicas’ e ‘questões de defesa’.

Por questões ontológicas Taylor compreende os fatores

reconhecidos e invocados para explicar a vida social. Fazem parte dos termos aceitados

33 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos, São Paulo: Loyola, 2000.

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como últimos na ordem de dessa explicação. É o debate existente entre ‘atomistas’ e

‘holistas’. Os atomistas podem ser entendidos como individualistas metodológicos; nessa

corrente duas coisas são relevantes: (a) a ordem de explicação, você pode e deve explicar

ações, estruturas e condições em termos das propriedades dos constituintes individuais;

e em (b) a ordem da deliberação, você pode e deve explicar as ações em termos das

propriedades dos constituintes individuais. 34

Questões de defesa, por sua vez, refere-se às posições morais ou políticas

adotadas. Dentro de uma ampla possibilidade de posições podemos identificar de um lado

os defensores de primazia das liberdades e direitos individuais, e de outro extremo

defensores da primazia da vida comunitária e do bem das comunidades.35 Aqui se

encontra o debate entre ‘individualistas’ e ‘coletivistas’. Aqui podemos encontrar as

diferenças entre liberais, como Dworkin, defensores da neutralidade do Estado em

relação às concepções de boa vida adotadas pelos cidadãos, e de outros pensadores que

acreditam que uma sociedade democrática precisa de alguma definição aceita em comum

de boa vida – esta é a posição a ser defendida por Taylor.

Para exemplificar essa questão, Taylor utiliza a obra “Liberalism and the Limits

of Justice” de Michael Sandel36. Segundo Taylor esse livro é ontológico, no sentido a

pouco descrito, enquanto que a resposta que a vertente liberal da teoria política tem dado

é sobretudo uma resposta de defesa. Nessa obra Sandel demonstra que diferentes formas

de engajamento social (atomistas e holistas) demandam diferentes concepções de

identidade e de self (selves ‘libertos’ e selves situados). Segundo Taylor esse trabalho é

uma contribuição à ontologia social, e ontologicamente essas teses devem ser

34 Idem, pg 197. 35 Idem, pg 198. 36 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge, Inglaterra, 1982.

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compreendidas. Assumir uma posição ontológica não equivale a defender coisa alguma.

Sua posição ontológica, se verdadeira, pode mostrar que a ordem social favorita de seu

vizinho é uma impossibilidade ou acarreta um preço que ele ou ela não leva em

conta.mas isso não deve nos induzir a pensar que a proposição equivalha à defesa de

alguma afirmativa.37

O que Sandel realiza, segundo Taylor, é um questionamento sobre a possibilidade

de edificar uma comunidade forte em torno da compreensão comum que faça da justiça a

principal virtude, ou se essa mesma comunidade deve definir algum outro bem que defina

a vida comunitária. Nesse ponto reside a fonte dos enganos da teoria política, quando

essas afirmações normativas são tomadas como recomendações38.

Cada posição do debate atomismo-holismo pode ser combinada com qualquer

posição da questão individualista coletivista. Há não apenas individualistas atomistas

(Nozick) e coletivistas holistas (Marx), mas também individualistas holistas (Humboldt)

– e até coletivistas atomistas.39

Taylor se considera um individualista holista. E considera surpreendente que um

posicionamento ontologicamente favorável ao holismo possa ser confundido com uma

defesa do coletivismo. Segundo o autor isso decorre de um preconceito atomista que

assola boa parte da teoria filosófica anglo-saxã. Esse liberalismo ontologicamente

desinteressado inclinar-se-ia à ignorância dessas diferenças.

Uma das explicações para essa ignorância se deve a predominância de concepções

identificadas com o liberalismo procedimental. Nessa corrente a sociedade é identificada

como uma associação de indivíduos cada um com seu ideal e com seu plano de boa vida.

A função da sociedade deve ser de facilitar esse plano e vida o máximo possível e seguir

37 TAYLOR, 2000, pg 199. 38 Idem, pg 201. 39 Idem, pg 201.

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um princípio de igualdade.40 As éticas das sociedades procedimentais são antes uma

ética do direito que uma ética do bem. O que importa nelas é a igualdade no tratamento

dos indivíduos e a maximização dos direitos e liberdades individuais. Ela não define

aprioristicamente os bens que devem ser promovidos, mas antes define que

procedimentos devem ser adotados na promoção das preferências individuais.

Essa vertente política é comumente definida como irrealista por, segundo Taylor,

não levar em consideração as impossibilidades ontológicas e comunitárias de uma

proposta procedimental. Essa crítica se deve a ausência de uma concepção compartilhada

de bem.

A viabilidade de bens socialmente endossados pela comunidade foi levantada por

pensadores filiados a vertente cívico-humanista. Essa vertente possui como um dos

principais eixos temáticos quais as condições para a existência de uma sociedade livre.

Para esta tradição, que conta com pensadores como Maquiavel, Montesquieu e

Tocqueville, toda sociedade política exige alguns sacrifícios e requer algumas

disciplinas de seus membros41. A diferença entre os sacrifícios e disciplinas exigidos

numa sociedade livre e as mesmas exigências feitas a partir de um regime despótico e

que, no despotismo a disciplina é mantida pela coerção, enquanto que numa sociedade

livre ela é mantida pela vertu dos cidadãos. Essa vertu pode ser alcançada quando os

cidadãos enxergam as leis como uma extensão deles mesmos, como um ato de sua

própria vontade. Nesse ponto reside o que Taylor define como patriotismo. Este

patriotismo se baseia numa identificação com os outros num empreendimento comum

40 Idem, pg 202. 41 Idem, pg 202.

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específico42. A república funciona como esse empreendimento comum que vincula os

cidadãos numa espécie de solidariedade vinculada a partir de uma história comum.

Em contraposição a esse ideário republicano, influenciado pela visão que

pensadores como Thomas Hobbes, John Locke, e Bentham ajudaram a construir, a

sociedade é compreendida como algo independente da ética republicana e dos objetivos

coletivos. Para essa visão as sociedades são estabelecidas como conjuntos de indivíduos

que objetivam benefícios individuais através da ação comum. A ação é comum, mas sua

meta permanece individual. O bem comum é obtido a partir de bens individuais, sem

deixar restos.43

Uma das raízes do pensamento atomista reside num equívoco ontológico que

ignora as diferenças entre questões para mim e para você e questões para nós. Para

Taylor uma questão pode ser para mim quando percebo algo individualmente; mas a

partir do momento que eu comunico essa percepção, ou seja, a partir do momento que eu

inicio um diálogo sobre essa percepção, ela passa a ser algo para nós. Uma conversação

não é a coordenação de ações de indivíduos diferentes, mas uma ação comum nesse

sentido forte, irredutível; ela é nossa ação.44

Mas a teoria da linguagem tayloriana ainda guarda uma outra mudança importante

que possui reflexos diretos em sua teoria política dos bens. É a passagem que a

comunicação realiza da intimidade para o espaço público. Num primeiro plano, quando

há uma comunicação, há um diálogo, uma partilha de informações que são relevantes.

Aqueles a quem comunicamos coisas fazem parte de nossa intimidade, são aqueles que

partilhamos o que é para nós. Mas a partir que essas informações relevantes tomam parte

42 Idem, pg 203. 43 Idem, pg 205. 44 Idem, pg 205.

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na mídia e ocupam um lugar no espaço público elas mudam sua natureza. Eles deixam de

ser para mim-e-você e se tornam para-nós45. Taylor diferencia as coisas que tem valor

para você e para mim e coisas que tem valor para nós. São eles

1- Bens ‘mediatamente’ comuns; esses compreendem aqueles bens que podem

ser fruídos individualmente ou compartilhadamente. Cada momento dessa

fruição conota uma valoração distinta. Uma piada, como exemplifica o próprio

Taylor, pode ter uma significação se a leio sozinho, como pode ter outra

significação se escuto alguém contando essa mesma piada.

2- Bens imediatamente comuns; essa categoria engloba aqueles bens que

pressupõe por si mesmos um significado comum, sendo por isso mesmo mais

valiosos. A amizade é um exemplo de um bem imediatamente comum.

3- Bens convergentes; daqui faz parte a ação instrumental coletiva. Como por

exemplo a economia, a defesa nacional, a segurança; são bens coletivamente

proporcionados que não podemos desfrutar de outra maneira. Podemos falar

normalmente desses bens como ‘comuns’ ou ‘públicos’.46

As repúblicas, na tradição cívico-humanista, seriam movidas a partir dos bens

imediatamente partilhados. O cidadão observa a lei como uma representação de sua

dignidade e da dignidade de seu concidadão, imediatamente. A lei não funcionaria apenas

como um bem convergente, como um mecanismo instrumental de persecução dos

45 Para ilustrar essa passagem do artigo de Taylor poderíamos utilizar um adágio popular que diz “Todo mundo sabe; todo mundo sabe que todo mundo sabe... mas ninguém comenta”. Seria como um segredo partilhado que as pessoas evitam falar publicamente, como por exemplo um comportamento ilícito de um político: existe um ‘conhecimento’ de seus atos, mas essa interpretação passa a ser qualitativamente diferenciada sua interpretação quando esse comportamento irrompe na mídia, ou em algum fórum que o torne público. 46 TAYLOR, 2000, pg 206-7.

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objetivos individuais. O vínculo de solidariedade com meus compatriotas numa

república que funcione se baseia num sentido de destino partilhado em que o próprio

partilhar tem valor.47

A definição do regime republicano requer uma ontologia distinta do atomismo.

Ela deve diferenciar a ação coletiva (convergente) da ação comum (imediata). A

disciplina subjacente de um regime republicano, segundo Taylor, seria a única capaz de

animar o patriotismo numa sociedade livre. A solidariedade republicana está na base da

liberdade48. A liberdade aqui é compreendida como liberdade de participação. As

instituições livres dependem da participação dos cidadãos. O modelo cívico-humanista

engloba as liberdades negativas em seu arranjo institucional, mas nesse modelo as

liberdades negativas estão comumente submetidas às liberdades republicanas de

participação. O patriotismo está associado à liberdade.

Aqui se inicia a crítica republicana ao liberalismo procedimental (críticas

endossadas por Charles Taylor): esse modelo é ontologicamente falho por entender os

indivíduos como possuidores de planos individualmente valorados e independentes uns

dos outros. E é falha quanto a uma questão de defesa por ser instrumentalmente projetada

unicamente para a busca de bens convergentes. Uma sociedade liberal pode excluir o bem

comum socialmente endossado, mas não pode excluir o direito como é comumente

compreendido. Aqui residiria outra falha do liberalismo na compreensão dos bens. O

conceito de bem pode ter duas interpretações: de um lado pode ser compreendido em

sentido amplo como o conjunto das coisas valiosas que buscamos; e pode ser

compreendido em sentido estrito como planos de vida ou modos de vida assim

47 Idem, pg 208. 48 Idem, pg 209.

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avaliados49. Uma sociedade liberal pode não possuir um bem no sentido estrito, mas não

pode se furtar de considerar o direito como um bem em sentido amplo.

Taylor realiza uma leitura ontológica do liberalismo. Nessa leitura, o patriotismo

poderia ser conciliado com o liberalismo, a partir do momento que os cidadãos

observassem o ordenamento jurídico como um bem a se defendido em comum. Ele quer

dizer que uma defesa política do liberalismo não obriga uma visão ontologicamente

atomista. Mas na prática um liberal procedimental pode ser holista; e, mais do que isso,

o holismo captura muito melhor a prática real de sociedades que se aproximam desse

modelo ... é essencial não confundir a questão ontológica do atomismo-holismo com

questões de defesa que opõe individualismo a coletivismo.50

Taylor durante toda sua exposição, contrapõe dois grandes modelos: de um lado o

modelo ‘A’, nesse modelo há uma concentração nos direitos individuais, e num

direcionamento das ações governamentais que seja movido a partir das preferências dos

cidadãos. Esse é o núcleo que deve ser protegido. De outro lado Taylor apresenta o

modelo ‘B’; para este modelo é na participação num autogoverno que reside a essência da

liberdade. É essa liberdade que deve ser assegurada. O autor percebe esses dois modelos

como incomensuráveis. Pessoas com uma visão atomista vão se inclinar ao modelo A,

enquanto holistas vão se inclinar ao modelo B. Não interessa ao autor, nesse momento

dizer qual o modelo correto, mas refletir sobre qual desses modelos pode servir de pano

de fundo ontológico que defina a dignidade do cidadão num patriotismo viável.51

Taylor exemplifica que certas sociedades além da democracia, possuem como

base de seu patriotismo uma cultura nacional que gira em torno de instituições livres, mas

49 Idem, pg 210. 50 Idem, pg 214. 51 Idem, pg 217.

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que também incorporam como elemento definidor de sua identidade uma língua ou

história comum. Taylor cita o exemplo do Quebec como destaque de seu argumento. Para

essa sociedade (e ele deixa claro que para muitas outras) o procedimentalismo liberal não

se adequa porque elas não podem se considerar neutra em relação a todas questões

consideradas virtuosas. Uma sociedade como o Quebec não pode deixar de se dedicar a

defesa e à promoção da língua e da cultura francesas, mesmo que isso envolva alguma

restrição às liberdades individuais. ... Um governo capaz de ignorar esse requisito ou

não estaria refletindo a vontade da maioria ou mostraria uma sociedade a tal ponto

desmoralizada que estaria próxima da dissolução.52

Taylor oferece o caso do Quebec como exemplo empírico de análise. Uma tensão

surgida quanto aos direitos naturais do Quebec quase gerou sua separação do resto do

Canadá. O Canadá estabeleceu uma pauta de direitos em 1982 (Carta de Direitos

Canadense) que alinhava todos os indivíduos do país na mesma condição jurídica. O

Quebec sentiu-se afetado, pois dispunha de uma agenda de reivindicações visando a

defesa da língua francesa. No fim das contas o Quebec conseguiu a aprovação de uma

carta de direitos especiais visando a proteção da língua francófona. Taylor avalia se essa

variação política é condizente com uma sociedade liberal. Indiscutivelmente, cada vez

mais sociedades se mostram hoje multiculturais, no sentido de incluir mais de uma

comunidade cultural que deseja sobreviver. A rigidez do liberalismo procedimental pode

rapidamente tornar-se impraticável no mundo de amanhã53.(...) Onde a natureza do bem

requer sua busca comum, essa é a razão para que ele seja uma questão de política

52 Idem, pg 220. 53 Idem, Pg 266.

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pública54. De acordo com Taylor, a sobrevivência cultural do Quebec dependia de certas

medidas restritivas quanto ao uso de outras línguas, que não a francesa. Essas medidas

diferenciadas, não se aplicariam a problemas como pena de morte, teriam um alcance

mais limitado. Uma sociedade liberal pode dispor desses métodos de contenção das

liberdades individuais desde que haja uma boa razão para isso.

I.4 – INAUTENTICIDADE E AUTENTICIDADE EM HEIDEGGER

I.4.1 – A ONTOLOGIA DE SER E TEMPO

Martin Heidegger tem um papel fundamental na teoria política do

reconhecimento. Sua obra Ser e Tempo55 exerce uma influência decisiva não só no tema

por este trabalho abordado mas em grande parte do programa filosófico do século XX.

Heidegger se debruça sobre um problema ontológico, ou seja, o objetivo

de trabalho é a investigação das questões que envolvem o significado do ser. O

significado do ser é aparentemente uma questão enfadonha, seja pela sua banalidade ou

pelo seu caráter deveras enigmático. O próprio Heidegger reconhece que este sempre foi

um dos temas mais importantes da história da filosofia, mas surpreendentemente a

tradição filosófica só nos oferece explicações gerais. Essa questão, fundamental em seu

valor, por envolver aquilo de que em última análise estamos falando em qualquer

54 Idem, Pg 264. 55 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, 1999.

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circunstância, foi, ao ver de Heidegger “trivializado” pela tradição filosófica que deveria

questioná-lo, aprofundar-se nele.

Sob outro aspecto um possível enfado diante da questão do ser se deve a alguns

intrigantes preconceitos. O primeiro deles vem do fato de supor o ser como o mais

universal dos conceitos que designa o que todos temos em comum, o que todas as coisas

possuem intrinsecamente. O segundo pressupõe o ser como indizível, haja vista que algo

universal como o ser que engloba todas as coisas teria um significado extremamente

vago, não havendo uma característica definitiva. Um terceiro preconceito advém que

todos já saberíamos o que é o ser, pela banalidade do verbo, que é utilizado com

naturalidade por qualquer criança.

Não se deve esquecer que esses preconceitos contra a ontologia não são

esclarecimentos, mas suposições sobre o ser, são o que Heidegger define como juízos

ontológicos, enraizados na filosofia antiga. Heidegger responde a esses juízos

ontológicos da seguinte maneira: em primeiro lugar, sobre a universalidade do conceito

do ser, o fato de ser universal não exime a característica da obscuridade, o que Heidegger

defende como o mais obscuro dos conceitos. Sobre o segundo juízo, o da indizibilidade, o

de ser indefinível, Heidegger aponta que se é indefinível é portanto diferente de todas as

entidades que interagimos na vida cotidiana, o que nos impele a diferenciar o que é ôntico

do que é ontológico. As questões ontológicas envolveriam questões sobre o ser enquanto

tal; questões ônticas diriam respeito, por seu turno a questões sobre entidades

particulares. Sobre o terceiro aspecto, se temos uma compreensão adequada do que é o

ser, não devemos esquecer que essa ‘compreensibilidade mediana’ merece um estudo

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mais aprofundado56. Porém esse simples (simples?) ato de perguntar suscita uma algo de

muito relevante na teoria heideggeriana,57 é sobre o ato de perguntar e retomar questões

que o ser se apóia. Podemos abordá-la em cinco dimensões: (1) Aquilo sobre que se

pergunta é o ser; (2) aquilo a que se pergunta é o ente; (3) aquilo a que se pergunta deve

ser encarado como entidades específicas, ou seja, ônticas, interrogadas em seu ser; (4) o

significado do ser, aquilo que deve ser encontrado. Outra questão de grande importância

quando se questiona é saber de onde a questão provém, qual a origem da questão, que é a

chave da questão ontológica, (5) quem nós somos quando fazemos a pergunta, qual a

essência de quem pergunta?58

É no quinto aspecto que reside o problema fundamental de Heidegger. A resposta

poderia esclarecer o que seria, ou é a natureza humana. É não é de estranhar que essa

questão define o sentido de nossa própria existência, haja vista que é uma questão

permanente, ainda que passe desapercebida. O conceito que Heidegger utiliza para definir

a essência do perguntador (frager) é dasein. A compreensão do dasein e da ontologia

requer uma metodologia apropriada. Compreender é ampliar o horizonte de quem

questiona, questionar o ser requer uma postura hermenêutica. A hermenêutica do

Dasein59 consiste nas interpretações, reinterpretações e assim sucessivamente de nossas

interpretações do ser.

A hermenêutica do Dasein é ôntica e ontológica. Ela parte da explicação de

entidades particulares rumo a explicação de entidades gerais como é ontológica, partindo

56 HEIDEGGER, 1999. Pg 29 – 30. 57 IDEM, Pg 30. 58 Somos aqui devedores da clareza da obra de Jonathan Rée, História e Verdade em Ser e Tempo. UNESP, 1999. 59 IDEM, pg 69.

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das premissas fundamentais do ser para o desvelamento de tipos particulares; ambas

entrelaçadas. Existir pressupõe ontologizar.

O Dasein não é apenas uma entidade que ocorre em meio a outras entidades. É antes uma entidade que se distingue onticamente pelo fato de que, em seu ser, é esse próprio ser que importa para ela. Mas então, a essa constituição do ser do Dasein pertence o fato de que, em seu ser, está presente uma relação dirigida para esse ser. E isso, por outro lado, significa que, de certa maneira e de forma em certa medida explícita, o Dasein entende-se a si mesmo em seu ser. É peculiar a essa entidade que, com e por meio de seu próprio ser, esse ser a ela se revele. A compreensão do ser é, ela própria, uma característica determinante do ser do Dasein. O que distingue onticamente o Dasein é que ele é ontológico60.

Quando investigamos questões ontológicas devemos lembrar que nós não

apenas investigamos o Dasein, nós não apenas temos um Dasein, mas nós também somos

um Dasein. Toda hermenêutica do Dasein também é uma hermenêutica sobre o Dasein. e

sobre o que se fundamentaria essa ontologia fundamental do Dasein segundo Heidegger?

A ontologia fundamental deve ser buscada na analítica existencial do Dasein61. A base

de análise do Dasein é a própria existência do Dasein. A existência, e a essência de quem

pergunta se desvela na existência de quem pergunta e não há outra base senão ela mesma.

Nós somos Dasein. Mas em absoluto nós produzimos seu significado livremente,

subjetivamente. Onticamente, é claro, o Dasein não é apenas o mais próximo, ou mesmo

mais próximo – nós próprios somos Dasein, cada um de nós. Apesar disso, ou

60 Idem, pg 38 61 Idem, pg 40.

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exatamente por isso, ontologicamente ele é o mais distante.62 O Dasein é produzido na

história, na tradição. E é, segundo Heidegger, numa compreensão equivocada de

historicidade que reside o erro na compreensão de nós mesmos.

Todos nascemos dentro de uma tradição. Essa tradição nos fornece uma

linguagem própria, fruto do desenvolvimento histórico. Quando nos expressamos,

utilizamos um legado de incontáveis gerações que nos antecederam. Cada tradição é

única, e seu legado um tesouro. A identificação com um historicismo herderiano para por

aqui. Pois se por um lado Heidegger reconhece que a tradição é um tesouro cultural, pois

revela o que cada povo possui em sua unicidade. É uma compreensão errônea dessa

mesma tradição que impede o Dasein de atingir sua autenticidade. Quando nós

investigamos uma tradição onticamente, apreendemos em relação a um determinado

modo temporal, o presente. Isso poderia ser traduzido como observar o desenvolvimento

da história linearmente, como se a fidelidade a um certo povo, a uma determinada

tradição cultural, obrigasse sua celebração. Essa celebração da tradição seria perniciosa

pois impediria o Dasein de se ampliar. Esqueceria o futuro celebrando o passado. O que a

primeira vista, ou mesmo sob a ótica do historicismo herderiano seria a marca da

autenticidade, aqui é justamente seu oposto. Herdar uma tradição não é o mesmo que

celebrá-la, muito menos negá-la. Consistiria em abri-la ao futuro.

O Dasein, explicitamente ou não, é seu passado. E não apenas no sentido de que seu passado está como que arrastando atrás dele, e que o que passou pertence ao Dasein como uma propriedade ainda existente que por vezes tem sobre ele efeitos posteriores. O Dasein “é” seu passado na maneira de seu ser que, falando grosso modo, a cada vez “acontece” a partir de seu futuro... Seu próprio passado – e

62 Idem, pg 42.

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isso significa sempre o de sua “geração” – não segue atrás do Dasein, mas já vai sempre à frente dele.63

1.5 – CONCLUSÃO: Limites da Tese Tayloriana

A política do reconhecimento tayloriana suscita uma série de críticas. A mais

candente delas é, talvez, a tensão existente entre ideal de autenticidade, universalismo de

direitos e as liberdades individuais que caracterizam o liberalismo. Esse problema, que

pensadores como Charles Taylor discutem, traz à tona um conflito teórico oriundo das

bases do pensamento moderno. A aqui não são apenas dois conceitos que se contrapõem,

e se refutam, mas duas tradições que exercem uma relação complexa de afinidades e

distanciamentos.

Charles Taylor argumenta que onde a natureza do bem requer sua busca comum,

essa é a razão para que ela seja uma questão de política pública64. Talvez este seja o

ponto mais controverso da tese de Taylor. Não exatamente pela declaração em si, mas

principalmente quando faz questão de conciliar liberalismo com afirmações do tipo

natureza do bem e busca comum.

O arcabouço teórico utilizado por Taylor é uma associação entre o pensamento

herderiano e o liberalismo político. Taylor evidencia a importância da autenticidade na

formação da identidade moderna, e esta autenticidade individual é colocada lado a lado

63 Idem, pg 48. 64 Taylor, Charles. Argumentos Filosóficos. Pg 264. Taylor faz essa afirmação visando justificar que a natureza do bem do Estado do Quebec dependia da proteção da língua francesa por um dispositivo constitucional. Vide sua classificação dos bens.

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com a autenticidade coletiva, como faz Herder. Enquadrar um indivíduo ou coletividade

em formas de vida que não sejam fiéis a sua originalidade única é como lançar o Dasein

numa existência inautêntica. A defesa da autenticidade de um “Dasein social” pode ser

considerada um bem comum, justificando inclusive, a subordinação dos direitos

individuais em nome de políticas públicas que visem a manutenção daquele objetivo.

O que torna o argumento de Taylor problemático não é exatamente a asserção

acima, mas sim sua conciliação com o que ele vem a chamar de liberalismo político. Já

vimos que Taylor expõe dois tipos de liberalismo; o liberalismo 1 que é rigidamente

procedimental, e o liberalismo 2, mais atenuado, defendido por Taylor. Segundo Taylor

aquele liberalismo de tipo 1, que universaliza direitos e deixa questões pertinentes a

identidade cultural, só para dar um exemplo, a cargo do indivíduo, seria ineficiente para

tratar os problemas de sociedades complexas como as contemporâneas.65

Quando Taylor utiliza conceitos como natureza do bem e busca comum ele não

apenas ressalta sua dívida com uma tradição historicista, mas acaba contradizendo

conceitos basilares de qualquer corrente que se diga liberal.

Bem comum é um conceito extremamente problemático na tradição do

liberalismo político desde que Schumpeter escreve Capitalismo, Socialismo e

65 Jürgen Habermas esclarece o texto de Taylor da seguinte maneira: Com isso não se deve permitir ao Estado (no sentido do liberalismo 1) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garantir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos. Ao contrário, o modelo alternativo (no sentido do liberalismo 2) espera do Estado que ele em geral garanta, sim, esses direitos fundamentais, mas que além disso também se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma “determinada nação, cultura, ou religião, ou então de um número limitado de nações culturas e religiões.” HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2001; pg 244.

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Democracia. 66 Seguindo um programa de forte matiz weberiana, feriu de morte o que

denominou de Doutrina Clássica da Democracia, assim resumida por Schumpeter:

A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição: o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo.67

Nesse modelo de democracia, há um pressuposto que os indivíduos são capazes

de chegar ao discernimento do que é socialmente bom, ou mal, através da razão. Esta

razão, por sua vez emanaria de cada consciência individual no silenciar das paixões, daí

extrair-se-ia um substrato ético, comum a todas as consciências. Todas as deliberações

fundadas nesse princípio resultariam no bem comum, ou pelo menos não seriam

contrárias a ele. Schumpeter apresenta três argumentos centrais visando a superação

dessa doutrina. O primeiro deles é que não existe algo que seja o bem comum unicamente

determinado,68 ou seja, não existe um bem que as pessoas concordem racionalmente.

Para pessoas diferentes o bem comum significa necessariamente coisas diferentes.

O segundo argumento consiste que ainda que o bem comum signifique o mesmo

para diferentes pessoas, isso não significaria respostas igualmente definidas para

questões isoladas69. Mesmo havendo certas concordâncias, em relação ao suprimento de

uma necessidade, a estratégia de solução variaria ad infinito.

66 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar, 1984. 67 Idem, 313. 68 Idem, pg 314. 69 Idem, pg 315.

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A terceira objeção, em face dos argumentos apresentados anteriormente, é que

não existe por assim dizer uma vontade geral que possa buscar esse bem comum. O bem

comum, não é algo simplesmente inexistente, mas não pode ser perseguido por que não

há uma vontade articulada que possa buscá-lo. Não existe, segundo Schumpeter uma

vontade geral articulada por parte dos cidadãos que pudesse buscar o bem comum.70

Mesmo atentando para a diferença entre posições ontológicas e questões de

defesa, Charles Taylor distancia sua posição ontológica e sua defesa política do

liberalismo. Um dos argumentos basilares do liberalismo é que na defesa dos direitos

individuais reside o cerne da democracia. Taylor foge dessa racionalidade; num artigo

intitulado Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade,71 Melo demonstra que a

argumentação tayloriana se afasta do liberalismo (Melo o compara ao liberalismo de

Rawls) tanto por questões ontológicas (Rawls seria um defensor do atomismo) quanto se

afastaria do liberalismo por seu posicionamento político. Melo argumenta que entre o

modelo da participação ativa e o da “cidadania via judicial” – centrado na proteção de

direitos – Taylor prefere o primeiro.

Taylor compreende a cultura, assim como Herder72, e, porquê não dizer,

Heidegger, como linguagem. A formação da linguagem se dá em meio a uma rede de

interlocução.

Este é o sentido em que não se ser um self por si só. Só sou um self em relação a certos interlocutores: de um lado, em relação aos parceiros

70 Idem, pg 313. 71 MELO, Marcus André. Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade. Lua Nova, 2002; n

55-56, pg 57-84. pg 68. 72 Taylor has been one of the principal exponents of this herderian vision of language in Anglo-American philosophy. BENHABIB, 2002; pg 55.

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de conversação que foram essenciais para que eu alcançasse minha auto-definição; de outro, em relação aos que hoje são cruciais para a continuidade da minha apreensão de linguagens de autocompreensão – e, como é natural, essas classes podem sobrepor-se. Só existe um self no âmbito do que denomino “redes de interlocução”.73

Não faz sentido falar de self fora de seu contexto lingüístico. Um self só pode ser

autêntico, só pode existir, dentro dessa rede de interlocução. A preservação dessa rede de

interlocução é por sua vez condição sine qua non da autenticidade individual. Defender a

comunidade lingüística é tão importante quanto defender os direitos subjetivos do

indivíduo. Esta é uma razão para que esta defesa seja passível de uma política pública que

a proteja. O bem comum, aqui compreendido, é a casa comum, é a defesa da rede de

interlocução, compartilhada por um povo ou grupo cultural, por conseguinte – como é a

língua francesa para o Quebec.

O que Taylor não atenta é que no seio daquelas redes de interlocução podem

existir conflitos individuais. A afirmação de uma política cultural ou nacional, pode

muito comumente, digladiar-se com políticas feministas por exemplo. Ou algo muito

mais elementar, não necessariamente organizado e gritante, mas que é um elemento

fundante do moderno Estado democrático de direito: Um indivíduo, ao mesmo tempo em

que possui o direito de perpetuar sua comunidade, sua tradição cultural, tem o direito de

sair dela, de negá-la – se assim o desejar74. A vinculação numa tradição cultural não é

73 TAYLOR, 1997, pg 55. 74 Seyla Benhabib em “The Claims of Culture”, por sua vez, questiona:It’s both theoretically wrong and politically dangerous to conflate the individual’s search for the expression of his/her unique identity with politics of identity/difference. The theoretical mistake comes from homology drawn between individual and collective claims, a homology facilitaded by the ambiguities of the term recognition. Politically such a

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perpetuada por uma obrigação jurídica, mas como Habermas salienta: Normalmente, as

tradições culturais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao convencer

do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em suas estruturas de

personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao motivar os indivíduos a uma apropriação

e continuação produtivas de si mesmas.75

move is dangerous because it subordinates moral autonomy to movements of collective identity; I would argue that the right of modern self to authentic self-expression derives from the moral right of the modern self to the autonomous pursuit of the good life, and not vice-versa. Princeton, 2002; pg 53.

75 HABERMAS, 2001, pg 250.

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CAPÍTULO II: A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL

II.1 – LUTA POR RECONHECIMENTO; Ética e Moral

Nancy Fraser observa que questões pertinentes à justiça dividem teóricos em dois

campos distintos, resultantes de variadas compreensões das relações entre moral e ética,

direito e bem76. Essa divisão reflete posicionamentos que preconizam uma visão ‘moral’

(tradição baseada em Kant), e outros que subsidiam uma visão ‘ética’ (de inspiração

hegeliana). Liberais, insistem que a justiça é sobretudo uma questão de direito, antes de

ser uma questão de bem. Comunitaristas ressaltam a incoerência de uma visão

universalmente válida de moral que independa de uma sistematização ética dos bens.

Immanuel Kant defende que a moral é uma atitude universalista que permite que tratemos

a todos de maneira igual, como se fossem seres em si mesmos. Diante dessa atitude

universalista da moral, a ética seria um comportamento específico, um ethos,

axiologicamente valorado a partir de sua proximidade com a razão prática universal.

Honneth realiza uma inversão desse princípio, afirmando que Kant falha ao não explicitar

a finalidade da moral concatenada aos objetivos práticos do ser humano. Isso significa

dizer que a realização moral estaria submetida a esferas de interação social. Os princípios

morais dependem das condições historicamente cambiantes da vida boa, isto é, das

atitudes éticas77.

76 FRASER, Nancy. Recognition Without Ethics? Theory Culture & Society 2001 (SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18(2-3) 21–43. 77 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. São Paulo: 34; Pg270.

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Honneth segue um programa analítico de matiz hegeliana, onde a identidade é

formada dentro de um processo de interação simbólica. Nosso self é definido em grande

parte, de acordo com as características que nosso meio nos condicionou a nos auto-

atribuir. Dentro dessa intersubjetividade, a luta por reconhecimento tem de ser entendida

como um quadro interpretativo crítico de processos de evolução social78.

Este quadro no qual o reconhecimento se realiza é divido por Honneth em três

níveis. O primeiro modo de reconhecimento é a dedicação emotiva que tem como forma

de reconhecimento as relações primárias, onde os seres humanos vivem as experiências

do amor e da amizade, e que prepara o caminho para uma espécie de auto-relação em

que os sujeitos alcançam uma confiança elementar em si mesmos,79 precedendo todas as

outras formas e reconhecimento.

Há um segundo nível, o das relações jurídicas na qual os indivíduos se

reconhecem como portadores de direitos perante a sociedade e moralmente imputáveis

desenvolvendo uma auto-relação prática de auto-respeito. O modo de reconhecimento é o

respeito cognitivo.

Há um terceiro modo de reconhecimento o da estima social, que tem como forma

de reconhecimento a comunidade de valores marcada pela solidariedade. Aqui a

personalidade se realiza através do igual sentimento de honra e dignidade.

Os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e como capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau de auto-realização positiva cresce com cada nova forma de

78 Idem, Pg 269. 79 Idem, Pg 177.

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reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir-se a si mesmo sujeito: desse modo, está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do auto-respeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da auto-estima80.

Essa luta por reconhecimento enquanto força moral enquadrada num sistema de

eticidade, não deve ser compreendida como um progresso linear. Enquanto teoria crítica,

esse processo se desenvolve também, a partir de um quadro de desrespeito. Nas relações

primárias se encontra ameaçada a integridade física pelos maus tratos e a violência; nas

relações jurídicas a integridade social se encontra ameaçada pela privação de direitos e

pela exclusão social; na solidariedade a honra e a dignidade pela degradação e pela

ofensa.

II.2 – KANT E A TEORIA MORAL

Kant afirma, na Crítica da Razão Pura81 que a razão não é constituída apenas de

uma dimensão teórica, mas também de uma dimensão prática que vem a ser seu objeto.

Desta feita, a razão criaria o mundo moral através de sua ação. Para dar conta desse

problema, ou seja, como a razão interage com o mundo prático circunscrito na moral

Kant escreve duas obras: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”82 e “A Crítica da

Razão Prática.”83

80 Idem, Pg 272. 81 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. 82 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002. 83 Kant Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martin Claret, 2003.

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Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant observa a necessidade de

formular uma teoria da moral que seja independente da ação empírica. Aqui é ressaltada a

necessidade de estabelecer um padrão de conduta que tenha como elemento fundante e

justificável por si só, o que ele define como imperativo categórico. A única necessidade

da razão seria obedecer ao comando de si mesma, levando em consideração a liberdade

como pressuposto da vida moral.

Devo agir sempre de tal maneira a que eu possa querer também que a minha máxima torne-se uma lei universal. Aqui, o que serve como princípio da vontade ... é a mera conformidade à lei universal enquanto tal (sem tomar por base qualquer lei determinada que prescreva ações particulares).84

O que está em jogo não é a demonstração empírica desse conceito, mas mostrar

como o imperativo categórico deve ser o móbil de toda ação moralmente impelida.

Em A Crítica da Razão Prática, Kant realiza uma inversão do método da obra

anterior85. Se na Fundamentação da Metafísica dos costumes a vida moral aparece como

um postulado para o desenvolvimento da liberdade, em A Crítica da Razão Prática, a

liberdade é analisada como o pressuposto da vida moral. Kant observa que a lei moral (o

imperativo categórico) é proveniente, ele mesmo da idéia de liberdade. A razão, em seu

estado mais puro, é, dessa maneira, fruto da razão prática. Mas não podemos confundir

razão prática com experiência sensível. O que existe de empírico na experiência moral, os

84Kant, 2002, pg 25. 85 CHAUÍ, Marilena. A obra de Kant (in) Kant, 1999, op cit.

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valores que são abstraídos da vivência cotidiana, não determinam o conteúdo da razão,

mas dependem dela. É a razão prática que valora os fatos cotidianos.

Esta razão prática funcionaria a partir do que Kant denomina princípios práticos.

Estes princípios práticos estariam divididos em máximas morais e leis morais (ou leis

práticas). As máximas morais seriam critérios subjetivos, de avaliação da realidade e só

dependem da vontade do indivíduo, só seriam válidas enquanto relacionadas à ação

individual. Poderiam ser identificadas com uma conduta ética particular. As leis morais,

contrariamente àquelas, teriam caráter universal, seriam objetivas, tendo então, validade

para qualquer ser racional.

São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para a sua vontade; são por outro lado, objetivos, ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser racional.86

Essas leis morais, devido ao seu caráter universal, não poderiam ser geradas por

fatos empíricos (são leis a priori). Portanto eximidos de seu caráter empírico elas só

poderiam existir no plano formal. A lei prática, assim é livre, não está determinada pela

existência física, o que faz com que lei prática e liberdade caminhem lado a lado.

O conjunto daquelas leis práticas forma o que Kant chama de imperativo

categórico. Kant faz questão de diferenciar o imperativo categórico dos imperativos

hipotéticos. Os imperativos hipotéticos seriam mandamentos subordinados a ações

específicas, diferentemente dos imperativos categóricos que são universais. Os

86 KANT, 2003, pg 27.

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imperativos hipotéticos seriam como condições necessárias para se atingir um fim

específico (por exemplo: se queres passar de ano, estude).87 O imperativo categórico por

sua vez conteria apenas um enunciado formal da razão.

Nesse momento se permite possível delinear a noção kantiana de bem, que Kant

diferencia do agradável. O agradável é uma condição empírica, enquanto o bem seria

determinado aprioristicamente, de acordo com sua proximidade à lei moral, a imperativo

categórico.

O conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (para qual esse conceito aparentemente deveria servir de fundamento) mas apenas (como ocorre também aqui) segundo essa lei e por ela.88

Kant analisa então quais os motivos que levam a ação moral, ou seja, os motivos

subjetivos que fazem os indivíduos agirem de acordo com a lei moral. Kant argumenta

que, ainda que a ação seja empírica, ela não tem uma natureza empírica. A natureza da

ação moral seria a própria moral compreendida como observância à lei. O respeito à lei é

o principio da própria moralidade. O essencial de todo valor moral das ações consiste em

que a lei moral determina imediatamente a vontade.89

87 Idem, pg 28. 88 Idem, pg 72. 89Idem, pg 82.

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II.3 – HEGEL E O SISTEMA ÉTICO

Semelhantemente a Kant, Hegel é um racionalista. Este também acredita que a

razão, entendida como conjunto de normas e condições universalmente válidas, deve

governar a realidade. Mas, para Hegel, a razão não é um fato e sim uma tarefa.

Hegel defende que esse governo da razão sobre a realidade não é possível

enquanto a realidade não tenha se tornado racional. Essa racionalidade não é algo pré-

estabelecido a priori, como a razão prática kantiana, mas sim algo que só é possível

quando o sujeito irrompe na natureza e na história.

A substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só na medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou na mediação consigo mesmo tornar-se o outro.90

A realidade para Hegel é compreendida como um processo, onde o Ser é a

unificação dos processos contraditórios onde se desenvolve e no qual pode ser

compreendido. Algo interessante a ser notado é que, para Hegel, nem tudo que existe é

real. As coisas existentes só são reais quando se comportam como o a mesma coisa no

interior de suas relações contraditórias e no desenvolvimento de suas potencialidades.

Para citar um exemplo, podemos ter em nossas mãos uma semente de uma planta

qualquer; obviamente que essa semente existe, mas sua realidade não “é” nem a planta,

90 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. pg 35.

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nem a semente nem seus possíveis frutos isoladamente, ela é, sim, a totalidade do

movimento que vai desde a semente, passando pela planta até sua destruição.

Mas algo diferencia qualitativamente a planta do homem. O homem tem a

possibilidade de compreender esse processo de desenvolvimento. Só o homem tem a

consciência do movimento de transformação, daquilo que é e das possibilidades do que

pode vir a ser. Essa é a característica básica da existência humana, a percepção e

atualização de suas potencialidades à razão. O mundo real não é aquele que aparece

fenomenicamente, mas aquele que é compreendido pelo pensamento racional.

Ainda há outra diferença entre um homem e uma planta. A finalidade de ser

planta já está contida desde a semente. O homem por sua vez, além de compreender o

processo no qual sua vida se movimenta, tem a possibilidade de desenvolver suas

potencialidades livremente à luz da razão.

O homem é para si tão somente como razão formada, que a si mesma já fez o que

é em si: unicamente essa é a sua realidade efetiva. Mas tal resultado é, ele próprio,

imediatamente simples, pois é a liberdade consciente-de-si que repousa em si e não pôs

de lado a oposição para deixa-la abandonada, mas, ao contrário, reconciliou-se com ela.

O que acaba de ser dito pode também se exprimir da seguinte maneira: a razão é o agir de acordo com um fim.91

A razão passa a ser uma força significante quando aparece na realização das

potencialidades do sujeito. A razão é uma força histórica (Geist). Não existe para Hegel

91 HEGEL, G. W. F. Coleção Os Pensadores. Abril Cultural 1999. pg 304.

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uma unidade imediata entre razão e realidade. Isso só é possível quando o sujeito molda a

realidade pela razão, através da razão. Diferente da razão transcendental kantiana a razão

para Hegel só faz sentido quando enquadrada num processo histórico – que se desenvolve

no conflito, na contradição.

O mundo humano não começa com uma luta entre a natureza e o indivíduo. Para

Hegel o indivíduo, assim como a razão, não é algo a priori na existência, mas um produto

tardio na história.

No processo de desenvolvimento humano e de sua eticidade a primeira forma que

a consciência assume é a comunidade (Allgemeinheit), essa comunidade apesar de nutrir

uma união imediata entre o sujeito e objeto ainda não é racional. É essa união entre

sujeito e objeto que Hegel denomina consciência.

Nesse primeiro estágio, não há uma consciência individual, mas ao contrário, uma

consciência universal, encontrada no que Hegel denomina como consciência de grupo

primitivo. Aqui todas as individualidades (sensações, sentimentos, conceitos) são

determinadas pela consciência comum, pelo que é coletivo, e não pela individualidade. A

consciência é determinada pelo que é universal, e não pelo que é particular.

Mas mesmo nessa unidade continua a existir oposições. A própria consciência só

pode existir mediante a oposição aos objetos dessa consciência, ainda que essa oposição

só exista no plano da subjetividade.

O mundo humano se constrói a partir de uma serie de integração de opostos. O

segundo estágio é caracterizado pela oposição do individuo em relação aos outros

indivíduos. O terceiro estágio é marcado pela união destes opostos numa na integração

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entre o sujeito e o objeto. Esses três estágios possuem três diferentes meios de integração:

a linguagem, o trabalho e a propriedade.

SUJEITO MEIO OBJETO

1 CONSCIÊNCIA LINGUAGEM CONCEITOS

2 INDIVÍDUOS OU GRUPO

DE INDIVÍDUOS

TRABALHO NATUREZA

3 NAÇÃO; COMUNIDADE

DE INDIVÍDUOS

PROPRIEDADE NAÇÃO; COMUNIDADE

DE INDIVÍDUOS

(Fonte: MARCUSE, 2004, pg 75.)

A linguagem é o meio pelo qual se processa a primeira integração entre o sujeito e

o objeto. A linguagem é, portanto a primeira comunidade real, por ser objetiva e

compartilhada por todos os indivíduos. Mas se por um lado a linguagem é o primeiro

meio de integração entre o sujeito e o objeto, por outro também se mostra como o

primeiro meio de individuação. Ao nomear os objetos que o rodeiam, o ser também

determina seu território lingüístico. A linguagem permite uma tomada de posição do

indivíduo contra seus semelhantes, de seus desejos contra os desejos de seus semelhantes.

Os antagonismos resultantes da oposição entre os indivíduos são integrados no

processo de trabalho. O trabalho se torna o processo condicionante das formas de

comunidade subseqüentes: a família, a sociedade civil, e o estado.

A primeira forma de integração determinada pelo trabalho ocorre na família. O

trabalho une a família através da propriedade familiar dos objetos necessários à sua

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subsistência. Mas não existe apenas uma família proprietária, existe então um conflito

entre grupos de famílias proprietárias. Nesse estágio os objetos sofreram uma

apropriação por parte dos indivíduos, fazem parte de sua propriedade atual ou potencial.

Os objetos foram incorporados ao mundo subjetivo dos indivíduos. Quando os homens

fabricam os objetos, organizam-no como parte integrante de sua personalidade. Integrar

os objetos significa instalar a natureza na história. É a luta de vida e de morte em torno do

reconhecimento dos direitos à propriedade que marcam o segundo estágio do

desenvolvimento da sociedade. A história passa a ser história humana.

É o advento das diversas unidades familiares que inaugura a luta pelo

reconhecimento mútuo de seus direitos. Quando a propriedade passa a constituir parte da

personalidade humana, sua defesa passa a ser um elemento fundamental da manutenção

do indivíduo como indivíduo. Essa oposição só pode vir a ser superada quando os

indivíduos puderem ser integrados na comunidade da nação.

É nesse processo de instauração da propriedade privada que a unidade familiar se

converte na sociedade civil. Um dos objetivos do trabalho na sociedade civil é a produção

de mercadorias. Hegel ressalta o caráter do trabalho e da mercadoria no contexto de uma

sociedade capitalista e como isso pode degenerar e individualismo.92 Mas o efeito básico

92 Em muitos momentos Hegel se aproxima da compreensão marxiana desses fenômenos. Marx denominava por fetichismo o processo pelo qual uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a força fantasmagórica de uma relação entre coisas (ver O Capital. Bertrand Brasil, 1989. pg 81). A matéria é humanamente transformada pelo trabalho, e convertida em mercadoria. Ao se converter em mercadoria esta é valorada de acordo com outras mercadorias. O trabalho, individualmente produzido, é socialmente trocado. Mas essa troca não é protagonizada pelo indivíduo, é, antes de tudo, uma relação entre os objetos. São as relações entre mercadorias que moldam a estética do capitalismo para Marx. O valor de troca da mercadoria solapa seu valor de uso, reificando, portanto, as esferas de interação humana. O centro da sociedade deixa de ser o humano e se torna a mercadoria, a coisa. Antes de uma relação sujeito-sujeito, vemos uma relação entre mercadoria-indivíduo, objeto-sujeito e mercadoria-mercadoria, objeto-objeto.

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desse processo para a eticidade é que a sociedade civil inaugura um momento de direitos

individuais protegidos pelo estado. Esses direitos tem como primeiro caráter a

imputabilidade individual do indivíduo, defendem sua autonomia; mas por outro aspecto

são universais, pois fazem que, com esses direitos os indivíduos não sejam responsáveis

apenas perante si mesmos, mas por toda comunidade.

II.3.1 – RECONHECIMENTO NA DIALÉTICA DO SENHOR E DO

ESCRAVO

É nessa imputação dos indivíduos perante os outros indivíduos que reside a força

e a grande potencialidade do estado. É a idéia de razão, aliada à idéia de liberdade, que

podem integrar a universalidade com a individualidade. A integração racional e livre do

indivíduo na universalidade de sua individualidade só é possível no estado. Essa é a

ilustração presente na dialética do “Senhorio e da Escravidão”.

No capítulo sobre a dialética do senhor/escravo o autor alemão discorre a respeito

do processo de constituição da consciência de si, argumentando que nesse procedimento

a consciência termina por constituir os objetos para si, reconhecendo como seus.

Segundo Hegel:

A dissolução daquela unidade simples é o resultado da primeira experiência; mediante essa experiência se põem uma pura consciência-de-si, e uma consciência que não é puramente para si, mas para

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um outro, isto é, como consciência essente, ou consciência na figura da coisidade.93 (grifo do autor)

Mais adiante o arremate de Hegel é basicamente esclarecedor:

São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo.94

Neste ínterim, a dialética do senhor e do escravo é realizada porque o senhor só é

senhor porque é vitorioso e assim realiza seu desejo de ser reconhecido como tal pelo

escravo, sobre o qual tem o poder efetivo da vida e da morte.

Todavia, como boa relação dinâmica e dialética que é, o escravo não é um

elemento meramente passivo. É a consciência do escravo que reconhece o senhor como

tal; este, em virtude disso, necessita do outro para afirmar-se e se manter como o senhor.

O escravo, dependente em princípio do senhor, torna-se senhor da consciência de seu

próprio amo.

Ou seja, esta relação como nos infere Herbert Marcuse, “não é de modo algum

uma relação de cooperação harmoniosa entre indivíduos livres que na busca de seus

próprios interesses promovem o interesse comum.”95

93 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Vozes, 2002. pg.147. 94 Idem, ibidem. 95 MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Paz e Terra 5 ed, 2004. p. 107-8

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Muito pelo contrário, o que acontece é uma ‘luta de vida ou morte’entre

indivíduos em essência diferentes, sendo um deles o “senhor”, enquanto o “outro” o

escravo.

Como o indivíduo só pode realizar-se, tornar-se o que é, através de outro

indivíduo, sua existência consiste neste “ser-por-outro”. Para tanto, faz-se mister, vencer

esta luta, a qual é o único meio de chegar à autoconsciência, ou seja, ao conhecimento de

suas potencialidades e à liberdade de poder realizá-las.

O autor desenvolveu a relação entre a condição do senhor e do escravo como uma

relação em que cada um dos termos reconhece que tem sua essência no outro, só atinge

sua verdade por meio do outro.

Nas palavras hegelianas, temos:

O duplo sentido do diferente reside na [própria] essência da consciência-de-si: [pois tem a essência] de ser infinita, ou de ser imediatamente o contrário da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicação, nos apresenta o movimento do reconhecimento.96

Em sendo assim, ao tratar da autoconsciência, Hegel reassume a análise da relação

entre o indivíduo e o mundo, começada ainda no System der Sittlichkeit97 e na Filosofia

Jenense do Espírito.

O homem descobrira que sob a aparência das coisas sua própria

autoconsciência estava escondida. A partir disso, ele resolve realizar esta experiência,

96 HEGEL, G.W.F. Op. Cit., p.143. 97 Sistema de Eticidade.

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para provar a si mesmo que é senhor deste mundo. Contudo, a verdade da

autoconsciência não é o “Eu” mas o “Nós”, o eu que é um Nós e o Nós que é um eu.98

II.4 – HONNETH E A GRAMÁTICA MORAL DOS CONFLITOS SOCIAIS

Axel honneth afirma que há uma mudança significativa entre os escritos

hegelianos da fase de Jena, e seu escrito posterior, a Fenomenologia do Espírito. Na visão

de Honneth, Hegel deixa inacabado o modelo de luta por reconhecimento antes iniciado.

Hegel daria mais importância à denominada filosofia da consciência do que a um

programa acabado de eticidade. Hegel confere muito mais importância à relação dos

indivíduos com o estado do que a uma relação de intersubjetividade. Hegel estaria mais

centrado na análise da formação do espírito (Geist) do que na observação de como os

indivíduos interagem e se reconhecem entre si.

Hegel não pode senão desenvolver a esfera de eticidade com base na relação

positiva que os sujeitos socializados entretêm, não entre si precisamente, mas com o

Estado, na qualidade de corporificação do espírito; são os hábitos culturais fundados em

tal relação de autoridade que assumem inopinadamente em sua abordagem o papel que,

na verdade teriam de ser desempenhados por certas formas extremamente exigentes de

reconhecimento recíproco, num conceito de eticidade próprio da teoria do

reconhecimento.99

98 MARCUSE, Herbert. Op. Cit., p. 108. 99 HONNETH, 2003; pg 109.

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O conceito de eticidade torna-se uma forma do espírito e não um modelo exigente

de intersubjetividade. Hegel não compreende a esfera do estado enquanto lugar onde os

indivíduos exercem sua individualidade, mas antes como a finalidade do indivíduo. Os

cidadãos não exercem sua liberdade, ou seu reconhecimento mútuo no estado, mas o

estado que denota o que deve ser reconhecido e as formas quais os indivíduos devem

socializar-se.

A Fenomenologia do Espírito deixa para a luta por reconhecimento, visto antes

como força motriz da moral onde a consciência se realiza através de todas as etapas a

função única de formar a autoconsciência100. Essa ilustração é evidente na dialética do

Senhor e do Escravo, a luta entre sujeitos que pugnam por reconhecimento é ligada tão

intimamente à experiência da confirmação prática no trabalho que sua lógica específica

acabou quase saindo inteiramente de vista.101 Daí em diante, o papel da

intersubjetividade na formação da personalidade humana ou a idéia de um

desenvolvimento crítico da moral voltam a ter importância significativa em seus escritos.

II.4.1– A ESTRUTURA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE RECONHECIMENTO

Honneth adota os postulados da psicologia social de Mead como uma

possibilidade de dar uma inflexão materialista à tese hegeliana de reconhecimento. Na

100 Idem, pg 114. 101 Idem, pg 114.

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visão de Honneth, Mead e Hegel (nos escritos de juventude) coincidem quando

concebem que

A reprodução da vida social se efetua sob um imperativo de um reconhecimento

recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma auto-relação prática quando

aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como

seus destinatários sociais.102

Essa coerção normativa, impelida pelo meio social vai se delimitando

gradualmente, rumo a afirmação social da subjetividade do indivíduo. Na visão de

Honneth, são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais que vêm a afirmar cultural

e institucionalmente as transformações normativas da sociedade.

Para Honneth o padrão de reconhecimento social se desenvolve em três níveis:

amor, direito e solidariedade.

Honneth define o amor como âmbito das relações primárias, ou seja, ao quadro de

relações afetivas entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois

parceiros, de amizade e relações pais/filho.103 Esse momento consiste no primeiro

estágio de reconhecimento social, haja vista ser a primeira esfera de interação humana. É

a qualidade nas relações intersubjetivas do plano primário que vai conferir ao indivíduo a

primeira forma de reconhecimento, denominada por Honneth de autoconfiança. Essa

relação de reconhecimento primário que prepara a lógica de todas as formas de

reconhecimento posteriores.

102 HONNETH, 2003; pg 155. 103 Idem, pg 159.

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A forma de reconhecimento presente nas relações primárias é sucedida

pelas relações jurídicas, marcadas pela inserção do indivíduo na vida pública. Na medida

em que somos inseridos num meio social, este meio, já formado, nos ensina a reconhecer

nossos semelhantes como portadores de direitos. Ao reconhecermos nossos semelhantes

como portadores de direitos, nós também passamos a nos reconhecer como portadores

daqueles direitos.104

Quando somos inseridos nas relações jurídicas, ou seja, no direito, dois processos

de consciência são evidentes. De um lado existe um saber moral direcionado para o

universalismo, quando reconhecemos os indivíduos como autônomos. Mas esse saber

moral sobre as obrigações jurídicas é confrontado comum conteúdo particularista; só

podemos interpretar aqueles padrões universais mediante casos empíricos. A autonomia

da vontade, universalmente válida, só pode ser averiguada mediante casos específicos, a

saber a que indivíduo, ou círculo de indivíduos, a lei pode ser aplicada.105

Ao se definir essas características das relações jurídicas, uma outra questão se

apresenta: não adianta que os indivíduos tenham a posse da universalidade que marca o

direito; faz-se necessário garantir que os indivíduos tenham condição de respeitar e

exercer aqueles mesmos postulados. É o que vem a ser a imputabilidade moral, toda

comunidade jurídica moderna, unicamente porque sua legitimidade se torna dependente

da idéia de um acordo racional entre os indivíduos em pé de igualdade, está fundada na

assunção da imputabilidade moral de todos os seus membros.106

A atribuição da imputabilidade moral por si mesma, ainda não define sobre que

condições um sujeito está habilitado a agir racionalmente. Essa questão só pode ser

104 Idem, pg 179. 105 Idem, pg 186. 106 Idem, pg 188.

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respondida quando se estabelecem as bases do procedimento do acordo entre os

indivíduos. Dependendo de como o procedimento básico de participação e de legitimação

políticas for representado, existe também uma transformação nas propriedades que um

indivíduo precisa possuir para participar desse mesmo processo. Quanto mais se

desenvolve a luta por reconhecimento jurídico, mais se estendem aqueles princípios

universais que habilitam a participação no processo de legitimação política. A luta por

reconhecimento amplia os pressupostos de participação na formação racional das

vontades. As reivindicações em torno dos direitos formais abraçam as reivindicações em

torno dos direitos materiais.

Nas ciências do direito, tornou-se natural nesse meio tempo efetuar uma distinção dos direitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos sociais de bem-estar; a primeira categoria refere-se aos direitos negativos que protegem a pessoa de intervenções desautorizadas do Estado, com vista à sua liberdade, sua vida e sua propriedade; a segunda categoria, aos direitos positivos que lhe cabem com vista à participação em processos de formação pública da vontade; e a terceira categoria, finalmente àqueles direitos igualmente positivos que a fazem ter parte, de modo eqüitativo, na distribuição de bens básicos.107

O desenvolvimento das relações jurídicas leva os indivíduos a desenvolverem

uma segunda forma de auto-relação prática de reconhecimento. Ao se observarem como

sujeitos de direito, os indivíduos com seus direitos possuindo uma validade universal para

107 Idem, pg 189.

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todos os indivíduos (da mesma maneira que subjetivam sua imputabilidade moral perante

os outros), podem desenvolver o auto-respeito.108

Assim, possuir direitos individuais significa estar dotado da possibilidade de uma

participação autêntica, traduzida pela afirmação pública de seus direitos individuais. O

reconhecimento jurídico é a garante a constituição do auto-respeito, ao fornecer os meios

necessários de sua expressão universal como pessoa moralmente imputável.

A terceira relação de reconhecimento é definida por Axel Honneth como

solidariedade, traduzida pela auto-relação prática da estima social. Existem, portanto,

diferenças entre as relações de estima social e as relações jurídicas, por exemplo.

Enquanto o direito funciona como um catalisador do reconhecimento que expressa

propriedades universais do sujeito, a estima social representa uma mediação

intersubjetiva visando expressar as diferenças entre os sujeitos humanos

universalmente.109

Essa relação de estima está orientada dentro de um quadro simbólico que

representa uma orientação ética socialmente partilhada. Esses objetivos éticos funcionam

como padrões hegemônicos de valoração social, esse sistema pode funcionar como um

padrão de avaliação das personalidades individuais, de acordo com sua contribuição à

realização daqueles objetivos.

Mas se a estima social é determinada por concepções de objetivos éticos que predominam numa sociedade, as formas que ela pode assumir são uma grandeza não menos variável historicamente do que as do reconhecimento jurídico. 110

108 Idem, pg 195. 109 Idem, pg 199. 110 Idem, pg 200.

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A ascensão da estima social só se torna possível quando há uma mudança do

paradigma tradicional da honra rumo ao paradigma da dignidade do prestígio social. A

antiga ordem de valores estava ancorada em concepções religiosas e metafísicas a

respeito do valor que o indivíduo de vê possuir. Com o fim da sociedade estamental o

valor conferido ao indivíduo deixa de ser pré-estabelecido e se vincula a sua biografia

particular. Não há mais um ancoramento de valores em padrões metassociais de

comportamento, a ética, então, passa a ser concebida como resultados de processos

intramundanos111. É colocado em questão se o valor de um indivíduo deve ser medido

previamente pelas propriedades do grupo o qual faz parte. A universalização da honra faz

dela dignidade.

O direito, seguindo o argumento, seria incapaz de recolher em si estas relações

práticas de reconhecimento que caracterizam a estima social. Enquanto no direito uma

pessoa é reconhecida a partir do reconhecimento universal de seus direitos, e de suas

capacidades indistintas das capacidades das demais pessoas, na auto-estima se sustenta

justamente o reconhecimento daquilo que ela não partilha com os outros. O novo padrão

de relacionamento é marcado por dois processos:

... o da universalização jurídica da “honra” até tornar-se “dignidade”, por um lado, e o da privatização da “honra” até tornar-se integridade ... Daí a estima social não estar mais associada a quaisquer privilégios jurídicos nem incluir doravante, de forma constitutiva, a caracterização de qualidades morais da personalidade.112

111 Idem, pg 201. 112 Idem, pg 206.

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Essa forma de reconhecimento transforma a auto-relação dos indivíduos. Quando

o sujeito não precisa mais atribuir a um grupo o respeito que goza, faz-se possível a

eclosão de uma forma de solidariedade pós-tradicional, inscrita na experiência da auto-

estima. Assim, o sujeito não precisa mais atribuir ao grupo nenhuma modalidade de

respeito que não possa também atribuir a si próprio. Essa estima recíproca significa que

os valores individuais da outra pessoa não apenas nos desperta interesse e respeito, mas

também um desejo ativo na possibilidade dos desdobramentos das particularidades de

seus valores individuais.

Honneth faz questão de sublinhar que cada forma de reconhecimento no interior

do quadro da estrutura das relações sociais é acompanhada por respectivas formas de

desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação. Essas formas de

desrespeito são mensuradas a partir dos diversos graus em que podem abalar a auto-

relação prática dos sujeitos. A primeira forma de desrespeito está inscrita na experiência

dos maus tratos pessoais (como na tortura), pois destroem a autoconfiança.

A segunda forma de desrespeito se encontra em experiências que afetam o auto-

respeito moral. Podemos contar como “direitos”, grosso modo, aquelas pretensões

individuais com cuja satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legítima, já

que ela como membro de igual valor em uma coletividade, participa em pé de igualdade

de sua ordem institucional.113 Aqui formas de desrespeito são marcadas pela privação de

direitos e pela exclusão social. A experiência da privação numa dada sociedade é medida

em dois níveis: o primeiro pelo grau de universalização formal e segundo pelo alcance

material dos direitos positivados.

113 Idem, pg 216.

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A terceira forma de reconhecimento é pautada na ofensa à auto-relação prática da

estima a partir das experiências da degradação e da ofensa. Estas experiências são

perceptíveis no rebaixamento e na humilhação, onde as identidades individuais são

ameaçadas da mesma forma que sua integridade física nas relações primárias.

ESTRUTURA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE RECONHECIMENTO

Modos de reconhecimento

Dedicação emotiva Respeito cognitivo Estima social

Dimensões da personalidade

Natureza carencial e afetiva

Imputabilidade moral Capacidades e propriedades

Formas de reconhecimento

Relações primárias (amor, amizade)

Relações jurídicas (direitos)

Comunidade de valores (solidariedade)

Potencial evolutivo Generalização, materialização

Individualização, igualização

Auto-relação prática Autoconfiança Auto-respeito Auto-estima Formas de desrespeito Maus tratos e violação

Privação de direitos e exclusão

Degradação e ofensa

Componentes ameaçados da personalidade

Integridade física Integridade social “Honra”, dignidade

(Fonte: Idem, pg 211)

II.4.2 – CONCLUSÃO: Uma Concepção Formal de Eticidade

Vimos nessas páginas que honneth desenvolve uma teoria pós-tradicional de

reconhecimento que integra o padrão familial, jurídico e ético num quadro de evolução

social. Os sujeitos precisam encontrar reconhecimento com seres simultaneamente

autônomos e individualizados.

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Honneth defende a necessidade de uma compreensão consistente da moral. Ele

esclarece esse pensamento mediante a exposição de duas tradições da filosofia moral. A

primeira delas é a tradição kantiana, que permite demonstrar a todos os sujeitos o mesmo

respeito ou considerar seus respectivos interesses da mesma maneira de modo

eqüitativo.114 Essa tradição é tida como estreita por não incluir os aspectos diferenciados

do reconhecimento. Na tradição que remonta a Kant, todos os juízos normativos estão

relacionados às exigências dos princípios morais universais.

A essa corrente de inspiração kantiana contrapõe-se uma linha teórica baseada em

Hegel. Aqui é colocada a questão que a corrente kantiana falha ao não relacionar a moral

com as condições concretas da vida, que são, a partir de sua lógica, variáveis.

Honneth propõe uma argumentação que não se sujeite completamente a nenhuma

das tradições. Discorda de Kant afirmando que a autonomia moral do ser humano não é

suficiente para garantir o reconhecimento, mas deve tratar também das outras condições

práticas de auto-realização. A autonomia moral é um passo importante na luta por

reconhecimento, mas não é seu fim. Distancia-se da tradição hegeliana ao afirmar que o

reconhecimento não é a expressão de convicções axiológicas substanciais. Não se

defende a subordinação do indivíduo a padrões fechados de comunitarismo. Honneth se

considera num padrão mediano entre aqueles dois veios filosóficos:

Nesse sentido, a abordagem da teoria do reconhecimento, na medida em que desenvolvemos até agora na qualidade de uma concepção normativa, encontra-se no ponto mediano entre uma teoria da moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha

114 Idem, pg 269.

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com estas a orientação pelo fim da auto-realização humana.115

Os padrões de reconhecimento podem ser entendidos como padrões de

intersubjetividade no interior das quais os sujeitos chegam a novas formas de

reconhecimento. As formas de reconhecimento do amor, do direito e da solidariedade

criam as condições de garantia da liberdade interna e externa, onde se articulam as metas

individuais de vida com os horizontes éticos universalmente partilhados.

Honneth evidencia que os padrões de reconhecimento jurídico e de comunidade

de valores guardam um potencial amplo de desenvolvimento normativo, se comparados

com as relações familiares. As relações jurídicas e a comunidade de valores estão

constantemente abertas a processos de transformação que objetivem o crescimento da

universalização e da igualdade. Disso resulta que as concepções intersubjetivas do que

vem a ser uma boa vida são historicamente variáveis, dependem, em termos

hermenêuticos, de um presente sempre intransponível.

Honneth amplia a compreensão dos processos de conflito e de interação social ao

estabelecer um padrão normativo para a estrutura de reconhecimento. Supera Charles

Taylor116 ao demonstrar que só faz sentido falar em redes de interlocução ao se

preestabelecer que essas mesmas redes agem num quadro diferenciado de eticidade. Não

apenas diferentes culturas, ou diferentes grupos sociais são diferentes redes de

interlocução e de interação simbólica. Diferentes redes de interlocução no interior de um

115 Idem, pg 271. 116 Ver Conclusão, Capítulo 1

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mesmo grupo são características intrínsecas a uma teoria mais sofisticada de

reconhecimento.

Honneth também observa, que no quadro de reconhecimento social,

principalmente nas relações jurídicas, há uma primazia das liberdades individuais do

sujeito no que tange a sua autonomia moral. Não há uma política de reconhecimento que

possa ameaçar a integridade jurídica do sujeito em nome de políticas de bem comum. Um

indivíduo é livre, tanto para aderir, quanto para transformar, ou mesmo recusar seu

patrimônio cultural.

Mas Honneth apesar de defender um universalismo de direitos nas relações

jurídicas, e uma individualização das expressões individuais nas relações de auto-estima,

ele não deixa claro algo de muito importante: qual o papel do estado nas políticas de

reconhecimento? Ou, falando mais abertamente, qual o espectro legítimo de ação do

estado no combate à privação de direitos e à exclusão que não resulte em formas

distorcidas de reconhecimento?

Honneth não atenta que a forma de reconhecimento jurídico é tão ampla que ela

mesma carece de uma gramática de interpretação própria. Ao se distinguir (corretamente)

os direitos liberais de liberdades subjetivas, dos direitos políticos de participação, dos

direitos sociais de bem-estar, ele não salienta a postura mais apropriada de ação

governamental no combate às respectivas injustiças no leque desses direitos.117

Em épocas de reconhecimento e redistribuição é condição sine qua non

diferenciar os conflitos, que por conseguinte demandam diferentes estratégias de ação.

Até que ponto se faz necessária uma universalização dos direitos? Até que ponto os

conflitos carecem de universalização de direitos e não de uma efetivação dos direitos já

117 Nossa proposição a essa carência é apresentada no capítulo 4 e na conclusão dessa Dissertação.

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existentes? Ou, de outra forma, até que ponto os conflitos carecem de universalização dos

direitos e não da positivação das diferenças que marcam os grupos sociais em questão? O

estado pode interferir no desenvolvimento de um ethos de auto-estima, ou isso é uma

tarefa própria dos cidadãos individualmente?

Essas questões marcam o terceiro capítulo na apresentação do argumento

multiculturalista contemporâneo.

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CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA

A luta pelo reconhecimento é sobretudo uma reivindicação por justiça. Esclarecer

as bases do argumento multiculturalista requer, então, que se demonstre a base discursiva

das reivindicações contemporâneas por justiça. Na exposição dessa tese, dois

pensamentos são relevantes: Nancy Fraser, que realiza uma equalização extremamente

lúcida dos dilemas da compreensão da justiça em eras pós-socialistas, e Will Kymlicka,

dividindo sistematicamente as diferentes formas que o multiculturalismo assume.

III.1 – NANCY FRASER: REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO

Na contemporaneidade partes significativas da luta de grupos marginalizados

reclamam reconhecimento. Lutas em torno da etnia, do gênero, nacionalidade, sexo e raça

se agrupam em torno da necessidade de reconhecimento. Desde o colapso do socialismo

de modelo soviético, reivindicações por redistribuição perdem espaço para outro tipo de

demanda;

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Nesses conflitos pós-socialistas, identidades grupais substituem identidades de classe como principal incentivo para mobilização política. Dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental. E reconhecimento cultural desloca a redistribuição socioeconômica como remédio para injustiças e objetivo da luta política118.

Uma das conseqüências da perda da centralidade do conceito de classe foi gerar

uma certa confusão programática, esforços que deveriam ser identificados com a

redistribuição reivindicam reconhecimento e vice-versa. A questão é ainda mais

complexa quando se argumenta que muitas das reivindicações não se esgotam em

nenhum dos dois signos. Segundo Nancy Fraser, tanto os esforços por ‘reconhecimento’

quanto por ‘redistribuição’, são, quando considerados isoladamente, atacadistas e sem

nuanças. No entender de Fraser, em vez de endossar outra visão, deveríamos concentrar

esforços em construir uma teoria crítica do reconhecimento que consiga combinar os

esforços pela diferença juntamente com os esforços pela igualdade. Com isso quer dizer

que, hoje em dia, a maioria das reivindicações requer tanto redistribuição quanto

reconhecimento. Segundo Fraser, só por meio da integração dessas duas demandas é

possível equacionar as reivindicações de justiça da contemporaneidade.

Em seu estudo Fraser aborda uma a seguinte dimensão do problema: Em que

circunstância uma política de reconhecimento pode apoiar uma política de

redistribuição? Quando é provável que a enfraqueça ? Qual das variedades de política

da identidade mais se adequa a lutas por igualdade social?119

118 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia Hoje (org.). UNB, 2001. 119 Idem, pg 247.

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III.1.1 – O DILEMA REDISTRIBUIÇÃO-RECONHECIMENTO

A autora chama a atenção que após a queda do socialismo realmente existente

muitos movimentos sociais aglutinam-se em torno de demandas ligadas à identidade, ou

seja, este tipo de reivindicação tende a prevalecer sobre reivindicações redistributivas.

Um dos efeitos perceptíveis é a falta de coerência programática desse campo político.

Com o intuito de esclarecer esse assunto, Fraser demonstra que a injustiça pode ser

entendida de duas maneiras: socioeconômica e cultural ou simbólica120.

Como injustiça socioeconômica Fraser compreende as injustiças alicerçadas na

estrutura político-econômica da sociedade. Elas podem incluir exploração (ter os frutos

do trabalho apropriados por outrem121); marginalização econômica (ser limitado a

trabalhos menos remunerados, indesejáveis, ou não assalariado) e privação (ser

submetido a padrões inadequados de vida).122

Uma segunda compreensão de injustiça é a cultural ou simbólica. Aqui injustiça

está arraigada a padrões sociais de representação, interpretação e comunicação.123 Essa

injustiça pode incluir dominação cultural (submissão a formas inautênticas de

comunicação); não-reconhecimento (ser considerado “invisível” pelas representações

sociais) e desrespeito (estar submetido a difamações e estereótipos no convívio social).124

120 Idem, pg 249. 121 Mais-valia em linguagem marxiana. 122 FRASER, op cit, pg 249. 123 Idem, pg 250. 124 Idem, pg 250.

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Ao passo que Nancy Fraser distingue os dois tipos de injustiças, ela também

distingue dois tipos de remédios, respectivamente. O remédio para injustiças

socioeconômicas é a reestruturação político-econômica, o remédio para injustiças

culturais é a mudança cultural ou simbólica. O primeiro remédio envolveria algum tipo

de mudanças nas bases da economia e da política da sociedade, enquanto, por outro lado,

o segundo remédio envolve uma redefinição dos padrões de representação social

alicerçados na sociedade – mudanças valorativas e/ou simbólicas.

Há que se notar que as distinções entre injustiças socioeconômicas e culturais,

bem como seus respectivos remédios, é de cunho analítico. Da mesma maneira que as

injustiças culturais têm como raiz as bases socioeconômicas da sociedade, os remédios

para injustiças, ou seja, redistributivos, têm implicitamente uma perspectiva de

reconhecimento das camadas beneficiadas por tais de recursos. A redistribuição é,

também, reconhecimento, como o reconhecimento pleno pressupõe alguma estratégia

redistributiva. Mas diferentemente de Axel Honneth em Luta por Reconhecimento, Fraser

acredita que o conceito de reconhecimento não suporta a complexidade discursiva do

debate contemporâneo.

Essas distinções estabelecem outra questão: até que ponto as demandas

redistributivas se relacionam com as demandas de reconhecimento e como é possível

enquadrar os diferentes movimento sociais nesse padrão de análise? Fraser nos chama a

atenção para uma possível contradição entre as duas: onde a primeira tende a promover a

diferenciação a segunda tende a minar isso. Assim os dois tipos de reivindicação estão

em tensão; eles podem interferir, e até mesmo minar uma a outra.125

125 Idem, pg 254.

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III.1.2 – COLETIVIDADES EXPLORADAS, MENOSPREZADAS E

AMBIVALENTES.

Imagine-se um espectro conceitual de tipos

diferentes de coletividades sociais. Em um extremo

estão modos de coletividades que se ajustam ao

modelo redistributivo de justiça. No outro extremo

estão modos de coletividade relacionados ao modelo

de reconhecimento. No meio estão casos que se

mostram difíceis por se ajustarem simultaneamente

em ambos os modelos de justiça.126

Num extremo do espectro se encontram as classes exploradas. Elas diferem das

outras coletividades devido seus remédios serem de natureza exclusivamente

redistributiva.127 Aqui, as injustiças sofridas pelos seus membros têm uma solução ligada

a mudanças no arranjo político-econômico da sociedade, ou seja, redistribuição. É o tipo

de exploração sofrida pela classe trabalhadora (novamente em sentido marxiano). A

solução definitiva para a classe explorada seria então a abolição do proletariado como

classe. Pois só faz sentido, novamente em termos marxianos, falar em classe explorada,

126 Idem, pg 254. 127Fraser enfatiza novamente que a diferenciação é analítica, as classes só podem ser reconhecidas como tais dentro de uma relação cultural, discursiva, da mesma maneira que as outras coletividades necessitam, em último grau tanto de redistribuição, quanto de reconhecimento.

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em proletariado, no interior de uma ordem que a explore, a classe capitalista. A classe

explorada não pode então desejar o reconhecimento de sua diferença, isso é a

cristalização de sua desigualdade, a única forma de remediar a injustiça é extinguir o

proletariado como grupo.128

Do outro lado desse leque conceitual, teríamos coletividades que se ajustam ao

modelo de reconhecimento. Essas coletividades têm seus problemas ligados à ordem

cultural da sociedade. Por mais que elas possam sofrer injustiças de distribuição, isso se

deveria em último caso a um problema de reconhecimento. Aqui a solução não é a

redistribuição política-econômica, mas o reconhecimento cultural. Fraser utiliza o

exemplo das sexualidades menosprezadas, a questão da homossexualidade. Sexualidades

menosprezadas, não podem ser uma questão de redistribuição, pois, segundo a autora,

homossexuais distribuem-se ao longo de toda a estrutura da sociedade capitalista.129 A

injustiça por eles sofrida é de reconhecimento, heterossexismo; as normas sociais são

construídas para valorizar uma única forma de expressão sexual: a heterossexualidade. O

remédio então, para esse caso, é superar os padrões culturais autoritários da sociedade.

Os dois extremos do projeto teórico foram abordados. De um lado as classes

exploradas clamando redistribuição; de outro as sexualidades, clamando reconhecimento.

Mas é importante que se diga uma coisa: enquanto as classes exploradas necessitam de

remédios que suprimam sua diferenciação no interior da sociedade, as sexualidades

menosprezadas necessitam de soluções que, ao contrário da anterior, valorizem sua

especificidade.

128 FRASER, op cit, 256. 129 Idem, pg 257.

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Fraser apresenta uma terceira classe de coletividades: as coletividades

ambivalentes. As injustiças sofridas por essas coletividades não se restringem nem à

redistribuição nem ao reconhecimento, mas necessitam das duas formas de justiça.

Gênero e “raça” são aqui utilizados como exemplos de coletividades ambivalentes.

Gênero é uma coletividade ambivalente. Tem seus problemas sediados na

estrutura político-econômica da sociedade na medida em que o gênero marca a divisão

social do trabalho. As mulheres estão designadas (inicialmente) ao trabalho doméstico,

enquanto o trabalho assalariado está (também inicialmente) direcionado aos homens.

Mesmo no interior do trabalho assalariado existe o fato de que as mulheres ocupam

cargos menos remunerados que os homens. O resultado disso é um reflexo

socioeconômico, onde o gênero feminino ocupa um lugar de inferioridade se comparado

ao masculino. Nessa perspectiva temos a injustiça de gênero enquanto questão

redistributiva. A lógica do remédio é similar à lógica com respeito à classe social: é

eliminar a especificidade do gênero. Se gênero fosse nada mais que uma diferenciação

político-econômica, em suma, a justiça requereria sua abolição.130 Mas além de sofrer

uma injustiça de redistribuição, o gênero também sofre uma injustiça de reconhecimento,

no caso o androcentrismo: as normas sociais são construídas autoritariamente, de uma

maneira que beneficiem as características masculinas.

Além do androcentrismo as mulheres ainda estão submetidas à depreciação,

incluindo exploração doméstica, violências físicas, esteriotipização e marginalização das

esferas públicas deliberativas e de trabalho. Essas injustiças são injustiças de

reconhecimento, portanto exigem uma mudança nos padrões valorativos da cultura que

beneficiem as mulheres. Sendo uma coletividade ambivalente, o gênero contém uma

130 Idem, pg 260.

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dimensão que reclama redistribuição e outra dimensão que reclama reconhecimento.

Aqui se aponta um dilema na perseguição dos objetivos do gênero: se por um lado as

demandas de redistribuição eliminam as diferenças de gênero, as demandas por

reconhecimento valorizam a especificidade do grupo. Como perseguir esses dois

objetivos simultaneamente?

Uma outra coletividade ambivalente é a “raça”. A “raça” também apresenta

problemas de injustiça ligados a redistribuição, quanto problemas ligados ao

reconhecimento. Assemelha-se à classe quando parte de seus problemas estão ligados a

má distribuição do trabalho. Como legado histórico da escravidão, negros tendem a

ocupar cargos mal-pagos, insalubres, enquanto cargos de administração e chefia são

predominantemente ocupados por brancos. Vista dessa maneira, justiça racial requer a

transformação da economia política para eliminar sua racialização.131

Mas tal qual o gênero, a “raça” também sofre injustiças de reconhecimento. Uma

delas é o Eurocentrismo, o que quer dizer que a construção das normas sociais

privilegiam representações sociais ligadas a branquitude. Esta coletividade também está

submetida padrões estereotipados na mídia e marginalização nas deliberações públicas.

Aqui se apresenta o mesmo dilema das demandas de gênero: como a raça pode clamar ao

mesmo tempo por demandas de classe (redistributivas) que suprimem as diferenças e por

demandas de reconhecimento que visem valorizar a especificidade identitária?

131 Idem, pg 263.

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III.1.3 – AFIRMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

Nancy Fraser afirma que tipos diferenciados de injustiça demandam tipos

diferenciados de remédios. Injustiças político-econômicas exigem remédios

redistributivos enquanto injustiças culturais exigem reconhecimento. Desta feita,

redistribuição incidiria sobre grupos sociais específicos e reconhecimento aumentaria a

diferença entre os grupos sociais.

Nancy Fraser complexifica o problema ao analisar tipos diferentes de

redistribuição e de reconhecimento. O combate às injustiças tanto no nível da

redistribuição, quanto ao nível do reconhecimento pode girar em torno da afirmação ou

da transformação. Os remédios afirmativos têm como característica a solução das

injustiças através da correção dos arranjos sociais e de seus resultados sem, no entanto,

modificar a estrutura que os gera. Os remédios transformativos, por sua vez, não apenas

modificariam os resultados de arranjos sociais, mas reformulariam as bases produtoras de

injustiças, a estrutura social. 132

No caso das injustiças culturais podemos, então, utilizar remédios afirmativos ou

transformativos. Soluções afirmativas são aqui denominadas como multiculturalismo

dominante. Aqui as identidades injustiçadas são formalmente reavaliadas, mas não se

altera o conteúdo das identidades, bem como as diferenças entre os grupos. Remédios

transformativos teriam um sentido de desconstrução, seu objetivo é a transformação dos

padrões culturais e valorativos que edificam a sociedade. Um exemplo a ser demonstrado

é no caso das sexualidades desprezadas. Uma política afirmativa visaria a valorização da

identidade gay. Remédios transformativos teriam a meta, em contraste, desconstruir a

132Idem, pg 265.

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dicotomia entre identidades gay e identidades heterossexuais. Ambas são formas

legítimas e sexualidade. O ponto não é dissolver todas as diferenças sexuais em uma

única identidade universal humana, mas sim sustentar um campo sexual de diferenças

múltiplas, não polarizadas, fluidas e voláteis.133 Enquanto os remédios afirmativos

tendem a perpetuar as diferenças, os remédios transformativos tendem a desestabilizar as

diferenças para permitir uma inter-relação harmônica.

Essas distinções também podem ser aplicadas às injustiças econômicas. Fraser

identifica os remédios afirmativos para injustiças socioeconômicas com o Estado de

Bem-Estar liberal (como no modelo americano pós-New Deal). Aqui o estado tenta

redistribuir os recursos sem no entanto atacar o cerne da sociedade capitalista. O poder de

consumo das camadas desfavorecidas é reforçado, sem no entanto se modificar as bases

do modo de produção. Os remédios transformativos são identificados com o socialismo.

Aqui não haveria somente uma realocação de recursos, mas a alteração da divisão do

trabalho e das bases do sistema de propriedade privada dos meios de produção.134

Nancy fraser afirma que remédios redistributivos afirmativos têm como base um

reconhecimento universal do valor moral dos indivíduos, agindo afirmativamente para

atacar as injustiças que determinados grupos podem sofrer. Porém esses remédios

afirmativos tendem a perpetuar a desigualdade estigmatizando, ou beneficiando

injustamente determinados seguimentos sociais. Segundo Fraser, remédios afirmativos

distributivos reconhecem, mas geram desigualdades, enquanto os remédios

133 Idem, pg 268. 134 Idem, pg 268.

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transformativos redistributivos reconhecem visando minar todas as diferenciações de

classe.135

III.1.4 – ESCAPANDO DO DILEMA?

Nancy Fraser apresenta a seguinte tabela, desenvolvendo as possíveis

combinações entre reconhecimento e redistribuição em suas formas afirmativas e

redistributivas:

REDISTRIBUIÇÃO: ESTADO DE BEM-ESTAR LIBERAL: Realocações superficiais de bens existentes; apóia a diferenciação entre grupos; pode gerar não-reconhecimento.

SOCIALISMO: Reestruturação profunda das relações de produção; elimina diferenciações entre grupos; pode ajudar a curar algumas formas de não-reconhecimento.

RECONHECIMENTO: MULTICULTURALISMO DOMINANTE; Realocações superficiais de respeito às identidades de grupos; apóia a diferenciação entre grupos.

DESCONSTRUÇÃO; Reestruturação profunda das relações de reconhecimento; desestabiliza diferenciações entre grupos.

(Fonte: Idem, pg 273)

No primeiro eixo horizontal são demonstradas as duas formas de redistribuição; a

se dizer, o Estado de Bem-Estar Liberal e o socialismo. No segundo eixo horizontal são

demonstradas as duas formas de reconhecimento, o multiculturalismo dominante e a

desconstrução. Ao ver de Fraser, dois pares de remédios se complementam: o Estado de

135 Idem, pg 271.

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Bem-Estar Liberal pode se associar ao multiculturalismo dominante devido suas

características de sanar superficialmente as injustiças sem mexer nas bases da sociedade

que as geraram. Essa alternativa é tida como pouco promissora. Esses dois remédios

tendem a perpetuar as injustiças a princípio combatidas.

Por outro ângulo, o socialismo pode associar-se a desconstrução por não apenas

reconhecer universalmente o valor moral dos sujeitos que clamam por justiça, mas antes

de qualquer, coisa por atacar as estruturas socioeconômicas e culturais sobre as quais a

injustiça se assenta. Finalmente, nas palavras da autora: Tanto para gênero como para

“raça” o cenário que mais escapa do dilema de redistribuição/reconhecimento é o

socialismo na economia e a desconstrução na cultura.

“Raça” e gênero necessitam de remédios ambivalentes, ou seja, necessitam

de redistribuição e de reconhecimento. Aceitar essa assertiva não significa corroborar a

tese multiculturalista. Políticas universalistas de reconhecimento de direitos podem

conviver com políticas redistributivas. Aceitar uma redistribuição socioeconômica que

beneficie as coletividades ambivalentes não está condicionado ao fato que elas

necessitam de direitos especiais enquanto cultura.

Políticas, ou remédios distributivos devem ser aplicados a qualquer sujeito que

esteja abaixo dos padrões compreendidos como justos – universalmente (como na idéia

rawlsiana de justiça).

Fraser tenta superar o dilema redistribuição/reconhecimento. Não consideramos

necessário retornar à exposição desse problema, devidamente esclarecido. O que nos

chama a atenção é o fato que no afã de superar uma dicotomia, Nancy Fraser acaba

caindo em outro abismo: o dilema afirmação/transformação. Para Fraser qualquer

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tentativa de conciliar remédios afirmativos com remédios redistributivos parece pouco

promissora. Problemas ligados à injustiça socioeconômica só podem encontrar solução

satisfatória no socialismo, bem como problemas de reconhecimento têm como único

caminho promissor a desconstrução. Qualquer combinação híbrida é aparentemente

rejeitada por Fraser. Por exemplo, Fraser ataca a idéia que a injustiça sofrida por uma

coletividade ambivalente como “raça” possa ser sanada com a combinação de

reconhecimento cultural através da desconstrução e de redistribuição através do Estado

de Bem-Estar. A saída seria a combinação entre desconstrução e socialismo. Aqui reside

a dicotomia, que ao nosso ver prejudica a tese de Fraser: não há saída fora do socialismo

e da desconstrução! O que se coloca em xeque é a compreensão de remédio redistributivo

apresentada por Fraser. Quando a própria autora reconhece os atuais conflitos como

inerentes ao pós-socialismo e ainda apresenta que, apesar de epistemologicamente

compreensível o socialismo é experiencialmente raro136, as soluções redistributivas

seguem como uma utopia pós-apocalíptica, praticamente irrealizável.

Isso ainda não significa dizer que a tese de Fraser se demonstra incapaz de

esclarecer analiticamente os conflitos contemporâneos137. Mas para a compreensibilidade

136 Idem, pg 279. 137 Uma das mais candentes críticas ao argumento de Fraser é realizada por Axel Honneth: In my opinion this critique is based on a grave misunderstanding … she inevitable takes on board the false premise of a historical opposition: between a politics of material interests and legal concerns, and a ‘politics of identity’. In short, as a result of the misleading periodization of the aims of social movements, the struggles for recognition comes to be understood as a demand that has arisen as a moral issue only very recently; thus it can be reduced to the single aspect of cultural recognition so that all others dimensions of the struggles for recognition remain ignored. HONNETH, Axel. Recognition or Redistribution? Changing Perspectives On The Moral Order of Society. Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 43–55. pg 53.Nancy Fraser apresentaria pois, um falso dilema entre redistribuição e reconhecimento; esforços por redistribuição ao contrário do que Fraser argumenta estariam incluídos nos esforços por reconhecimento, e fazem parte do processo de generalização e efetivação de direitos das relações jurídicas. Em resposta a essa crítica, Fraser argumenta: Honneth, for example assumes a reductive culturalist view of distribution. Supposing that economics inequalities are rooted in a cultural order that privigies some kinds of labor of others, he believes that changes that cultural orders is sufficient to preclude

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de sua tese seja condizente tanto com os objetivos das coletividades em conflito quanto

com a realidade política contemporânea, ela precisa de uma ampliação no conceito de

redistribuição. O fato de as injustiças econômicas estarem fundamentadas em última

instância no surgimento da propriedade privada, não significar afirmar que a justiça

distributiva não será possível enquanto a propriedade privada existir, ou enquanto não for

edificado o reino messiânico do socialismo. Também não se trata de deslegitimar os

anseios socialistas, esse não é nem ao longe o objetivo desse trabalho; o que se apresenta

é que a incorporação dos princípios rawlsianos de como os defendidos em Uma Teoria da

Justiça parecem soar mais harmônica e realisticamente com as reivindicações de classes

exploradas e coletividades ambivalentes em épocas pós-socialistas. O princípio socialista

não precisaria ser descartado como objetivo para que se adote pragmaticamente a idéia

rawlsiana e ainda sim dentro dos limites de justiça propalados por Rawls a sociedade ser

considerada justa.

O que se afirma é que a desconstrução pode ser conciliada com um princípio

liberal de justiça e ainda sim ser factível. Vamos ainda mais longe: em face à derrocada

do socialismo de modelo soviético e a falta de um qualquer modelo de socialismo que

venha assumir seu posto como projeto realizável hoje, não há como corresponder às

expectativas contemporâneas por justiça redistributiva sem que se abra mão do

pragmatismo, para além do modelo rawlsiano.

all maldistribution. FRASER, Nancy. Recognition Without Ethics? Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 21–42.

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III.2 – KYMLICKA: MULTICULTURALISMOS

Will Kymlicka é um dos maiores estudiosos do multiculturalismo contemporâneo.

Sua posição, por vezes identificada com o argumento liberal (ao defender firmemente os

princípios como democracia, autonomia individual) ou mesmo com a visão

multiculturalista ao ressaltar a necessidade de um modelo jurídico diferenciado para

minorias que necessitam de proteção, constitui uma citação indispensável no atual

contexto do debate do reconhecimento.

III.2.1 – POLÍTICAS DE IDENTIDADE; MODELO TRADICIONAL

Em Contemporary Political Philosophy Kymlicka discute o cenário das

reivindicações contemporâneas em busca de “justiça”. No capítulo intitulado

Multiculturalismo138, ele vai debater em que termos o atual debate multicultural foi

edificado, bem como as diferentes vertentes entre quais as lutas multiculturais se

enveredam e quais soluções os diferentes governos tem adotado. Segundo Kymlicka, o

tradicional modelo de cidadania como direitos (citizenship as rights139) tem mudado em

duas direções: por um lado tem sido focada a importância das virtudes publicas e da

participação política; de outro lado tem se atentado à possibilidade de suplementação de

138 Kymlicka, Will. Contemporary Political Philosophy. Inglaterra: Oxford, 2000. 139 idem, pg 327.

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direitos comuns tendo como parâmetro o pluralismo cultural e grupos com direitos

especiais (group-differentiated rights).

No passado essas diferenças eram subordinadas a modelos autoritários de

representação cultural, essas diferenças eram portanto ignoradas sob normas de condutas

e direitos que turvavam essas diferenças em idéias de normalidade. Hoje não se consegue

mais definir os grupos previamente escondidos como desviantes, ou anormais

simplesmente por serem diferentes dos padrões de representação dominantes. Isso tem

demandado uma concepção mais inclusiva de cidadania.

Esse modelo tradicional de cidadania como direitos140, teria como objetivo

desenvolver uma espécie de identidade nacional comum entre os cidadãos. Seria uma

espécie de nacionalismo de inclusão a partir da ampla distribuição de bens primários

como direitos sociais básicos, saúde e educação. Essa distribuição não teria por base

alguma visão humanitária de direitos, mas sim desenvolver uma cultura comum que

soasse como um patrimônio nacional. A distribuição desses direitos, a partir da inclusão

de camadas socialmente excluídas, como a classe trabalhadora, seria a forma mais

simples de conseguir a unidade cultural e a lealdade daqueles grupos.

Esse modelo se refere à sociedade inglesa. Nesse modelo, os cidadãos teriam da

mesma maneira que tem direito à saúde, ou a educação, o direito de compartilhar uma

história e uma cultura comum com seus mitos e heróis. Não por razoes de altruísmo

também, mas sim pelo temor que a classe trabalhadora inglesa não se identificasse com

os padrões culturais britânicos e fosse seduzida por idéias “exógenas” (foreign ideas),

140 O tipo ideal de modelo tradicional de cidadania como direitos adotado por Kymlicka é a obra de T.H. Marshal.

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especialmente o comunismo soviético.141 É sem dúvida mais “fácil” governar quando se

compartilha uma visão comum de nacionalidade. Estender a cidadania a direitos sociais

comuns seria uma ferramenta da construção da nação (nation-building) para consolidar

um modelo nacional comum de cultura e de identidade.

Mas esse modelo tradicional de cidadania está sob forte ataque. Muitos

multiculturalistas ainda se sentem marginalizados no interior dessa cidadania comum.

Grupos como negros, mulheres, povos indígenas, minorias étnicas e religiosas, gays e

lésbicas, não se sentem satisfeitos com o citado modelo de cidadania. Sentem-se

marginalizados socioeconomicamente e sobretudo pelas identidades sociais e culturais.

Segundo esses grupos os padrões tradicionais de cidadania foram construídos de um

modo que privilegiassem as representações como “homem branco heterossexual”. Essas

representações seriam incapazes de acomodar democraticamente as diferenças grupais.

Esse problema demandaria formas de cidadanias diferenciadas (differentiated

citzenship142).

Não raro são os grupos que rejeitam a idéia de integração numa cultura comum.143

Exemplo disso são minorias nacionais como a Catalunha, ou o Quebec, que lutam por

manterem-se diferenciados de seus governos através de uma cadeia diferenciada de

direitos como alguma forma de autogestão territorial (self-governing region) e o direito

de estabelecer uma gama de instituições públicas legais, educacionais e políticas em suas

línguas específicas.

141 Kymlicka, pg 329. 142 Idem, pg 329. Esse conceito é extraído de Young, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford University Press, 2000. 143 Idem, pg 330.

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Outro exemplo de minorias que se sentem excluídas são os gays. Gays sentem-se

injustamente excluídos de sua própria cultura, sentem-se estigmatizados pelos símbolos

nacionais predominantemente ligados a heterossexualidade. Além disso, são privados de

uma cadeia de direitos e políticas que possam desenvolver o reconhecimento de sua

identidade sexual.

A mesma angústia é partilhada por certas minorias nacionais. Muitas minorias

percebem o Estado como construído de uma maneira que não respeita valores de suas

religiões, como feriados, práticas e rituais religiosos.

A questão central é: Como esses grupos lutam pela cidadania em adição ou contra

uma cultura comum, e por quê o modelo tradicional de cidadania não é suficiente para

integrar os diferentes grupos que reivindicam reconhecimento? Muitas respostas órbitam

em redor da credibilidade dos líderes de todos esses movimentos, que por vezes são

definidos como empresários étnicos, que incitam revolta e ressentimento nos grupos

minoritários contra a cultura dominante, mas que na verdade visam a autopromoção

política. Independentemente dessa hipótese (descredibilizada por Kymlicka) o fato é que

esses tipos de reivindicações crescem por democracias de todo ocidente.144

Kymlicka utiliza uma versão do modelo de Nancy Fraser145 para delinear esses

conflitos. Ao ver de Kymlicka, as democracias ocidentais possuem duas poderosas

hierarquias: Hierarquia econômica (economic hierarchy) e hierarquia de status (status

hierarchy)146

144 Idem, pg 331. 145 Op cit. 146 KYMLICKA op cit, pg 332. Não achamos necessário expor detalhadamente quais os sentidos conferidos por Kymlicka a cada um desses modelos. Basta saber que (como o próprio autor reconhece) o conceito de hierarquia econômica é análogo ao conceito de injustiça socioeconômica e que o conceito de hierarquia de status é análogo ao conceito de injustiça cultural ou simbólica nos padrões expostos por Nancy Fraser neste capítulo da presente dissertação.

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Segundo Kymlicka, o modelo tradicional de cidadania prezava pelo combate às

desigualdades econômicas mas não davam a atenção merecida às hierarquias de status.

Na visão ortodoxa de democracia, esta era vista como processualismo, onde todos os

indivíduos eram tratados com iguais direitos. Contraparte a isso, Kymlicka defende o

surgimento de visões diferenciadas de cidadania como um desenvolvimento da teoria da

cidadania. Pretende debater quais os argumentos morais são a favor ou contra uma gama

de direitos diferenciados de grupos e como essas reivindicações podem conviver com os

princípios da democracia liberal perseguindo a liberdade individual juntamente com a

igualdade social.

Kymlicka percebe a heterogeneidade dos grupos a serem abordados, mas antes de

tudo percebe que por mais diferenciados que sejam esses grupos possuem alguma

característica comum apesar das diferentes reivindicações.

However, their claims have two important features in common: (a) they go beyond the familiar set of common civil and political rights of individual citizenship which are protected in all liberal democracies; (b) they are adopted with the intention of recognizing and accommodating the distinctive identities and needs of ethnocultural groups. I will use the term ‘multiculturalism’ as an umbrella term for the claims of these ethnocultural groups. (Since these ethnocultural groups seeking recognition tend to be minorities … I also use the term ‘minority rights’.)147

Segundo Kymlicka, alguns fatores são decisivos para o desenvolvimento dos

debates multiculturais. O primeiro deles é o colapso do socialismo de tipo soviético que

147 Idem, pg 335.

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gerou uma série de conflitos no leste europeu em torno da nacionalidade e da afirmação

de vários povos perseguindo direitos de afirmação enquanto Estados nacionais. Um

segundo motivo foi a mobilização de povos indígenas na década de 1990, e de vários

movimentos de minorias nacionais do ocidente (Quebec, no Canadá, Catalunha na

Espanha, Escócia na Grã-Bretanha). Porém no interior da teoria política, Will Kymlicka

diferencia três níveis diferentes atingidos pelo debate multiculturalista e da cidadania

como direitos: Multiculturalismo como comunitarismo; multiculturalismo no interior de

uma estrutura liberal; e multiculturalismo como resposta à construção da nação.

O primeiro estágio precede 1989. É o conhecido debate entre liberais e

comunitaristas (ou individualistas e coletivistas). Aqui a questão fundamental é o espaço

que a autonomia individual deve ter na sociedade. Os individualistas insistem na primazia

da liberdade individual na escolha dos objetivos a serem perseguidos no interior de uma

sociedade livre. Liberais sustentam que a liberdade individual deve ser considerada

moralmente superior aos princípios coletivistas. Noutro campo, os comunitaristas

defendem que o indivíduo é um produto de práticas sociais. Privilegiar as práticas

individuais é uma maneira de destruir as comunidades.148 As minorias culturais então

identificavam o multiculturalismo como uma defesa contra os ataques externos de uma

sociedade. O multiculturalismo seria um meio de proteger essas comunidades (ou

minorias de direitos) contra possíveis ‘erosões’ culturais provocadas pelo individualismo

liberal.

O segundo estágio do debate percebe o multiculturalismo no interior de uma

estrutura liberal de política. Aqui o debate liberal/comunitário é questionado, como se

questiona também o ataque comunitário ao liberalismo, bem como a noção de minorias

148 Idem, 337.

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de direitos149. Kymlicka chama a atenção para algo muito interessante: a esmagadora

maioria dos debates em torno do multiculturalismo não é um debate entre liberais e

comunidades minoritárias, mas essencialmente um debate entre grupos individuais que

endossam os princípios básicos do liberalismo e da democracia liberal sobre o significado

do liberalismo em sociedades multiétnicas.

É aqui que se encontra o segundo estágio do debate multiculturalista: qual a

possibilidade de aplicação do multiculturalismo numa sociedade liberal? Como conciliar

os princípios das minorias com o liberalismo político? Um argumento é que a autonomia

individual está relacionada com a possibilidade do acesso do indivíduo a sua própria

cultura e com o respeito e florescimento de sua própria cultura. O multiculturalismo

então, ajudaria no florescimento de variadas culturas através da garantia de direitos

especiais. É o chamado culturalismo liberal (the ‘liberal culturalist’ position150), ao qual

Will Kymlicka se filia.

Os liberais culturalistas se colocam diante de um problema: da mesma maneira

que membros grupos culturais podem pedir direitos especiais visando proteger sua

identidade individual, outros direitos de minorias podem reivindicar a coerção da

liberdade individual de seus membros. Apesar da maioria dos grupos minoritários do

ocidente compartilharem os princípios básicos das liberdades individuais, alguns grupos

podem, em nome de seus princípios (isso é mais comum em certas minorias religiosas

não-liberais) reivindicar as limitações das liberdades femininas ou dos direitos de

crianças, por exemplo. Essa seria uma visão conservadora do multiculturalismo.

149 É bem verdade que minorias de direitos, compreendidas como grupos minoritários que visam a proteção contra a sociedade através de métodos isolacionistas (especialmente minorias religiosas como Huteritas ou Judeus Hassídicos) que se afastam voluntariamente da sociedade. Mas Kymlicka observa que a maioria dos grupos hoje, clama por integração social e não isolamento. Op cit, pg 339. 150 KYMLICKA, op cit, 339.

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Em resposta a essa possibilidade, Kymlicka distingue dois tipos de direitos de

minorias: ‘maus’ direitos de minorias (‘bad’ minority rights) e ‘bons’ direitos de minorias

(‘good’ minority rights). Os ‘maus’ direitos de minorias reivindicam restrições de direitos

individuais (restricting individual rights) enquanto os ‘bons’ direitos de minorias

reivindicam o suplemento de direitos individuais (supplementing individual rights).

Diante desse cenário são diferenciados dois tipos de direitos que as minorias podem

reivindicar: o primeiro envolve o direito de um grupo contra seus próprios membros, que

visam proteger o grupo contra os impactos de um dissenso interno (internal dissent). O

segundo tipo de direitos envolve o direito de um grupo contra o resto da sociedade, contra

pressões externas (como políticas ou decisões econômicas que prejudiquem o livre

desenvolvimento de um determinado grupo) (external pressures). O primeiro dos tipos de

direitos são chamados de restrições internas (internal restrictions), enquanto o segundo

dos tipos de direitos são chamados de proteções externas (external protections).151

Direitos de minorias podem reivindicar os direitos contra o dissenso interno

afirmando que a liberdade individual de seus membros, ou pelo menos de parte deles

pode ameaçar toda a estrutura sobre a qual a cultura está lastreada. São relações

sobretudo intragrupais na qual um grupo solicita a ajuda do Estado para manter esse ‘elo’

de união comunitária.

Se direitos de minorias envolvem proteções intragrupais, proteções externas

envolvem relações intergrupais.152 Aqui o que é reivindicado o direito de um grupo se

proteger contra os demais grupos de uma sociedade. Kymlicka não deixa de notar que as

proteções externas ainda sim podem ser perigosas, especialmente quando existe uma

151 Idem, pg 341. 152 Idem, pg 341.

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relação de injustiça entre os grupos envolvidos. É citado o caso do regime de apartheid,

quando a minoria branca utilizou-se de direitos especiais para submeter as demais etnias

negras na África do Sul.

Kymlicka se posiciona claramente cético em relação a restrições individuais, mas

concorda que o liberalismo culturalista é perfeitamente compatível com o acordo de

diversos grupos sobre as proteções externas. Para ele, os direitos das minorias são

consistentemente compatíveis com uma sociedade liberal se (a) they protect the freedom

of individuals within the group; and (b) they promote relations of equality (nom

dominance) between groups.153

O terceiro estágio que o debate multiculturalista assume é o multiculturalismo

como resposta à construção da nação (nation building). Aqui são diferenciadas duas

posturas axiológicas que um governo liberal pode assumir: a neutralidade liberal e a

negligência benigna (bening neglect).

Um dos princípios do liberalismo clássico afirma que o Estado deve deixar o

indivíduo livre na sua busca pelos ideais de boa vida. O Estado é neutro tanto na

consideração da origem étnica e cultura quanto na escolha de suas crenças e escolhas

individuais, desde que essas escolhas respeitem os direitos individuais dos outros

membros. Essa é a neutralidade liberal; dentro desse aspecto seria indiferente ao Estado

qual religião seria mais apropriada de ser seguida pelos cidadãos ou mesmo qual língua

deveria ser privilegiada. Não haveria uma diferenciação moral implícita em nenhum das

concepções de boa vida – e nem a valorização de nenhuma dessas concepções em

detrimento de outras.

153 Idem, pg 342.

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Kymlicka propõe a negligência benigna como uma forma superior da neutralidade

liberal. Segundo Kymlicka, a idéia de que Estados liberais democráticos são neutros é

absolutamente falsa.154 As normas sociais bem como o Estado, são construídos a partir de

concepções de bem que são qualitativamente consideradas preferíveis a outras. Essas

concepções de bem são eleitas não por serem verdadeiras, enquanto outras são falsas,

mas o são por serem as que melhor promovem a integração da sociedade. Um exemplo

disso é a adoção de uma língua oficial: o Estado pode adotar uma certa língua, não por

outras serem falsas, mas por que determinada língua é a mais comum e mais eficiente

para os objetivos de comunicação.

Esse modelo de negligência benigna é um objetivo que tem sido promovido

contemporaneamente com o intuito de promover a integração no que Kymlicka define

como uma cultura societal (societal culture). Ele define cultura societal como a

territorially concentrated culture, centred on a shared language which is used in a wide

range of societal institutions, in both public and private life (schools, media, law,

economy, government, etc.).155 Kymlicka enfatiza a existência de uma cultura societal

que possui um língua comum, instituições políticas comuns, mas no entanto não possui

concepções comuns de crenças religiosas, de valores familiares ou individuais. Essas

culturas societais têm como característica básica o pluralismo cultural. Mas uma outra

questão que é levantada é: como no interior de culturas hegemônicas, ainda que se adote

a negligência benigna, uma minoria de direitos pode se proteger contra injustiças

externas?

154 Idem, pg 345. 155 Idem, pg 346.

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III.2.2 – CINCO MODELOS DE MULTICULTURALISMO

O Estado-Nação afeta as minorias. A negligência de bens, inevitavelmente

afeta as minorias. O que faz, segundo Kymlicka, que as culturas minoritárias fiquem

diante de algumas escolhas. Mergulhadas num Estado com língua diferente, e

marginalizadas pelas instituições políticas e pela economia, resta as minorias, escolher

quatro opções básicas:

1- Podem emigrar em massa para um Estado que seja identificado com

seus anseios;

2- Podem aceitar a integração à cultura majoritária, negociando, no

entanto, os melhores termos dessa integração;

3- Elas podem perseguir uma gama de direitos e poderes de autogestão

necessários à manutenção de sua própria cultura. Tal como instituições

econômicas, políticas e educacionais próprias;

4- Podem aceitar a condição de marginalidade.156

Essas são estratégias que as minorias podem utilizar em frente ao Estado-

Nação. As diferentes minorias vão demandar diferentes estratégias na persecução

de seus objetivos. Nesse momento Kymlicka diferencia cinco tipos de minorias:

minorias nacionais; grupos imigrantes; grupos etno-religiosos isolacionistas;

‘metecos’; afro-americanos.

156 Idem, pg 348.

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III.2.2.1 – MINORIAS NACIONAIS

Kymlicka define minoria nacional (national minorities) como grupos que

foram completamente formados e funcionam dentro de sua terra natal, mas que

por alguma razão forma incorporados à outra sociedade. Essas minorias nacionais

podem ser subdivididas em duas categorias: nações sub-estatais (substate nations)

e povos indígenas (indigenous people).157

As nações sub-estatais são nações que não possuem um estado no qual

formem maioria, mas que o possuíram no passado e/ou podem perseguir a

construção de um estado próprio.

Povos indígenas são definidos como povos que tradicionalmente viviam

e suas terras mas foram colonizados por conquistadores que os forçaram a se

integrarem numa economia e cultura estranhas ao seu modo de vida. Enquanto as

nações sub-estatais almejam a construção de um Estado com economia e

instituições políticas muitas vezes formalmente idênticas ao resto da sociedade, os

povos indígenas clamam pelo direito de manter sua cultura e sua crença

tradicionais e participarem dentro de suas próprias condições do mundo

moderno.158

157 Idem, pg 349. 158 Idem, pg 349.

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III.2.2.2 – GRUPOS IMIGRANTES

Grupos imigrantes são formados por decisões de indivíduos e famílias que

deixa sua terra natal e imigram para outra sociedade, deixando parte significativa

de suas relações sociais para trás. Aqui, as reivindicações funcionam sobre quais

termos a integração desses imigrantes vai ser feita sobre a sociedade a qual agora

vivem. Se por um lado os imigrantes insistem em manter certas práticas culturais

no interior da ‘nova’ sociedade (culinária, vestimenta, religião, associações) o

Estado pode considerar certas práticas antipatrióticas e cercear os limites dessa

integração. O Estado pode impor algumas obrigações (como barreiras lingüísticas)

que de fato ou de direito impeçam a integração à nova sociedade.

Sobre os termos dessa integração Kymlicka afirma que dois elementos são

básicos no processo de integração: (a) we need recognize that integration does not

occur overnight, but is a difficult and long-term process that operates

intergenerationally. ... (b) We need ensure that common institutions into which

immigrants are pressured to integrate provide the same degree of respect,

recognition, and accommodation of immigrants as they traditionally have of the

identities and practices of the majority group.159

III.2.2.3 – GRUPOS ETNO-RELIGIOSOS ISOLACIONISTAS

Grupos etno-religiosos isolacionistas são grupos de imigrantes que

deliberadamente se isolam da sociedade e abrem mão da participação civil.

159 Idem, pg 354-5.

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Utilizando critérios teológicos tais grupos se afastam de uma sociedade e de

práticas políticas consideradas corruptas e preferindo manter-se isolados em seu

modelo tradicional de vida. Tais grupos possuem métodos não-liberais de

condutas por vezes recusando-se a adotar certas obrigações civis (serviço militar),

e cerceando direitos de partes de seus membros (como impedir crianças de

freqüentar escolas, ou mantendo as mulheres circunscritas ao espaço doméstico).

Kymlicka chama a atenção para o fato de que a maioria dos Estados

liberais conseguem conviver com esse tipo de grupos desde que eles respeitem as

liberdades individuais de seus membros não obrigando outros indivíduos a

corroborarem com seus princípios (especialmente se estes ainda não possuírem

idade legal de tomada de decisões).160

Os dois tipos que serão apresentados possuem uma característica distintiva

dos outros três que foram abordados. Enquanto os três primeiros tipos (minorias

nacionais, grupos imigrantes e grupos étnico religiosos isolacionistas) sofrem

espécies de pressão integradora do Estado-Nação, como integração territorial e

difusão cultural os dois grupos seguintes (metecos e afro-americanos) sofrem uma

pressão inversa; são, ou foram durante muito tempo limitados ou mesmo

proibidos de se integrar ao restante da sociedade.

160 Idem, pg 357.

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III.2.2.4 – METECOS161

Esse grupo é constituído por pessoas que há muito tempo vivem num dado

país mas que não possuem o direito de participação política. Apesar de estarem

vivendo, constituindo família e trabalhando, eles têm negado o acesso à cidadania.

Incluem imigrantes ilegais (exemplos claros são os mexicanos que vivem

legalmente nos Estados Unidos da América, ou Africanos ilegalmente residentes

na Espanha e Itália) e migrantes temporários (como refugiados ou trabalhadores

temporários). Generally speaking, the most basic claim of metics is to regularize

their status as permanent residents, and to gain access to citizenship.162

III.2.2.5 – AFRO-AMERICANOS

Aqui é abordada a importância que aos afro-americanos possuem na

construção do debate multiculturalista contemporâneo. Como se sabe a raiz das

injustiças cometidas com os afro-americanos é advinda do regime de escravidão

que marcou também a sociedade norte-americana até o ano de 1860. Mesmo

depois da abolição da escravatura, os negros não tiveram seus direito de cidadania

reconhecidos, sendo submetidos a segregações em diversas esferas do espaço

público, como serviço militar diferenciado, transporte público segregado. A

161Traduzido do inglês metics, que por seu turno é retirado da Antiga Grécia. Metecos eram pessoas que despeito de viverem a muito tempo na Grécia eram excluídas dos direitos políticos intrínsecos a polis. 162 Kymlicka, pg 359.

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igualdade formal só veio nos Estados unidos após as lutas pelos direitos civis das

décadas de 1950 e 1960.

Como resultado dessa segregação, e de séculos de escravidão os afro-

americanos acabaram por ocupar um lugar desvantajoso na economia que se

reflete até os dias atuais. Em combate a essa injustiça uma série de ações

afirmativas foram realizadas, como exemplos: assistência especial de integração,

cotas de representação política, e estímulo de várias formas de associativismo

político (subsídios a colégios tradicionalmente negros, currículos educacionais

focados em uma identidade negra).163 Ao ver de Kymlicka, remediar essas

injustiças é uma obrigação moral do governo americano.

Para Kymlicka, a combinação dessas diferentes demandas (minorias

nacionais, grupos imigrantes, grupos religiosos isolacionistas, metecos e afro-

americanos) numa concepção cultural de justiça exige que os seguintes princípios

sejam observados. O Construção da nação não pode atender as necessidades da

democracia contemporânea sem que atente as seguintes condições:

1- Nenhum grupo residente a longo período num Estado pode ser

permanentemente excluído da nação. Qualquer um que viva num

Estado é capaz de se tornar cidadão;

2- Na medida em que imigrantes e outras minorias são integrados a

nação, essa integração deve ser entendida em sentido mínimo,

integração lingüística e institucional, e não como integração em torno

163 Idem, pg 361.

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de crenças religiosas ou qualquer interferência nas identidades

culturais;

3- Devem ser permitidos às minorias nacionais os direitos de perseguirem

seu próprio Estado nacional, e de manterem suas distinções sociais.164

Kymlicka atenta que a relação estabelecida entre as políticas do Estado

nacional e as reivindicações das minorias de direitos têm um caráter dialético. Se

por um lado o Estado nacional pressiona as minorias rumo a integração, ou rumo

a não integração (como nos casos dos metecos e dos afro-americanos) as lutas

multiculturais podem servir como uma reposta as injustiças cometidas pelo Estado

Nacional. Will Kymlicka representa dessa maneira a relação entre Estado nacional

e as minorias de direitos:

164 Idem, pg 362.

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FERRAMENTAS DO ESTADO-NAÇÃO:

- Política de cidadania - Centralização de poder - Leis de linguagem - Políticas educacionais - Prestação de serviços público - Símbolos, feriados e mídia nacional - Serviço militar

POLÍTICAS DO ESTADO-NAÇÃO

ESTADO MINORIAS

REIVINDICAÇÕES DAS MINORIAS DE DIREITOS

REIVINDICAÇÕES DAS MINORIAS NACIONAIS:

- Multiculturalismo para imigrantes - Federalismo multinacional - Inclusão de metecos - Isenção religiosa

(Fonte: Kymlicka, op cit, pg 364)

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III.3 – CONCLUSÃO: Direcionando o Debate Multicultural

Kymlicka chega a conclusão que a neutralidade liberal é falha e causadora de

varias injustiças. Segundo o autor, um modelo político capaz de sustentar a

democraticamente a pluralidade cultural da contemporaneidade deve levar em conta as

seguintes questões: (a) As principais instituições políticas de uma sociedade não são

culturalmente neutras, mas carregam implícita ou explicitamente os interesses das

identidades e grupos majoritários; (b) deve levar em consideração a importância de certos

interesses de grupos minoritários que normalmente são ignorados pelas teorias da justiça.

A partir desse momento o debate multicultural pode ser, segundo Kymlicka,

redirecionado em dois sentidos: (a) Não é mais sustentável a tese de que justiça pode ser

definida como rigidez procedimental. Daí ser possível de se afirmar que a rigidez

procedimental pode causar desvantagens para grupos específicos. É então, necessário que

se criem regras comuns a todos os indivíduos, mas que se garantam regras diferenciadas

para diversos grupos em casos isolados. (b) daí se conclui que o multiculturalismo da

forma que foi proposto, combate às injustiças, e não cria outras injustiças que beneficiam

grupos minoritários.165

Vimos que, segundo Kymlicka, o multiculturalismo é perfeitamente compatível

com os princípios de uma sociedade liberal. E até mais que isso, a sustentação da

democracia depende do reconhecimento de direitos especiais aos grupos minoritários.

Mas Kymlicka deixa alguns pontos em questão. Kymlicka realiza um favorecimento de

algumas coletividades em detrimento a outras: há uma espécie de primazia no trato de

165 Idem, pg 367.

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questões pertinentes a identidades nacionais e grupos étnicos, sobre questões intragrupais,

como por exemplo questões de gênero.166 Kymlicka não percebe que uma série de

reconhecimento de direitos de proteção externa pode se chocar fortemente contra as

liberdades individuais por ele mesmo defendidas.

Além disso o conceito de cultura societal é problemático. Há uma confusão entre

o que é cultura com formas institucionalizadas de identidades coletivas. O fato de as

instituições sociais terem sua origem na cultura não significa que elas podem ser

analogamente tratadas. As instituições sociais são estruturas organizacionais e não fazem

parte na sua constituição histórica de um legado multicultural. O fato de um Estado,

como por exemplo os Estados Unidos da América, serem constituídos por identidades

afro-americanas, esquimós, havaianas, chinesas... não significa ainda e existência de uma

cultura societal, mas a existência de um Estado com uma cultura dominante que

determina os símbolos e normas majoritários na sociedade que é habitado por uma

miríade de povos. Não faz sentido falar culturas societais, mas sim em nações e

sociedades que são agrupadas no interior de um Estado.

Uma observação crítica, nesse sentido em que vimos falando, ao argumento

multiculturalista pode ser encontrada na obra de Brian Barry167 e em Álvaro de Vita168.

Segundo Barry o conceito de multiculturalismo assumiu dois usos distintos. O

multiculturalismo pode ter um uso descritivo ou um uso normativo. Ele pode ser utilizado

descritivamente para designar ‘pluralismo’ (ou seja, sociedades que englobam uma

quantidade variada de comportamentos e de culturas diferentes); como pode ter um uso

166 Parte das críticas que se seguem são devedoras a BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture. Priceton, 2002. 167 BARRY, Brian. Culture and Equality. Inglaterra: Polity, 2001. 168 Vita, Álvaro. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo. Lua Nova, 2002. n 55-56, pg 5-27.

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descritivo para designar uma postura política específica no tratamento de sociedades

pluralistas. Nesse caso o multiculturalismo invocaria o poder do Estado visando a defesa

de formas culturais que se sintam ameaçadas. Poderíamos afirmar que o

multiculturalismo no sentido de Kymlicka confunde os usos descritivos e normativos do

multiculturalismo. Ao perceber que a maioria das sociedades contemporâneas são

pluralistas (e são mesmo), ele argumenta como se isso per se fosse um argumento

suficiente para a defesa do multiculturalismo em sentido normativo.

Barry contra o argumento multiculturalista afirma que a solução para a exclusão

de grupos sociais não se encontra na cultura. O multiculturalismo erraria ao culturalizar

problemas que são de outra natureza. Grupos como mulheres, idosos ou negros são

excluídos, não pelo fato de terem uma cultura distinta, mas sim por estarem prejudicados

na realização de objetivos que são compartilhados em geral, como uma educação de

qualidade, bons empregos, renda169... nos termos de Nancy Fraser significaria afirmar que

a solução desses problemas estaria dada em termos de justiça socioeconômica.

Mesmo no caso das minorias nacionais e dos grupos étnicos Barry afirma que não

existe uma teoria claramente liberal para lidar com problemas de fronteiras ou de unidade

nacional. O trato a esse tipo e questão não tem como fugir a uma abordagem pragmática.

Como bem colocou Vita, lembrando Robert Dahl:

Para Dahl, assim como para Barry, a teoria democrática não oferece nenhuma solução para essas questões no âmbito dos princípios. Só é possível avaliar as diferentes alternativas de unidade política propostas com base nas perspectivas que

169 BARRY, 2001. pg 306.

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cada uma delas oferece para a sobrevivência da democracia.170

Kymlicka apresenta uma idéia estática de cultura. Quando divide o que são

minorias nacionais ou o que são grupos de imigrantes não percebem que suas

reivindicações podem se transformar com o tempo. Grupos de imigrantes podem ao

ingressar numa sociedade aceitar certas regras básicas. Mas não se atenta que com o

tempo esses mesmos grupos étnicos podem reivindicar direitos equivalentes a uma

minoria nacional. Minorias nacionais podem, perseguir não o reconhecimento de seus

direitos no interiro de uma sociedade mais ampla, porém a sua organização estatal

enquanto sociedade específica. Kymlicka não percebe a fluidez de seu próprio conceito.

Sobre os limites da tese de Kymlicka, Seyla Benhabib argumenta:

(1) The drawing of too rigid and firm boundaries around cultural identities; (2) the acceptance of the need to “police” these boundaries to regulate internal membership and authentic life-forms; (3) the privileging of the continuity and preservation of cultures over time as opposed to their reinvention, reapropriation, and even subversion; and (4) the legitimation of culture-controling elites through a lack of open confrontation with their cultures inegalitarian and exclusionary practices.171

Outra coisa que não é dita: Como grupos minoritários sem ‘peso’ político podem

ter seus direitos reconhecidos no interior de uma ‘cultura societal’, ou melhor dizendo

num Estado majoritariamente formado por uma etnia diversa das suas? Como tais grupos

170 Vita, 2002. pg 19. A obra de Dahl, que Vita tem em mente é: DAHL, Robert. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press, 1989. 171 BENHABIB 2002, pg 68.

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podem ter seus direitos respeitados sem que necessitem recorrer a princípios subjetivos

do tipo ‘obrigações morais’ do Estado?

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CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE

IV.1 – MULTICULTURALISMO E MORALIDADE

É razoável afirmar que a identidade é formada numa relação de intersubjetividade.

Dessa perspectiva somos claros em defender a crítica tipicamente comunitarista em

relação a doutrinas que analisam a identidade humana como algo fechado em si mesmo.

Charles Taylor talvez seja um dos que mais abertamente criticaram essa visão naturalista

de identidade como self pontual.

Para Taylor a identidade moderna e suas concepções de bem estão

intrinsecamente situadas num espaço moral. Minha identidade é definida pelos

compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo

âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria

fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se de um

horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição.172 É o espaço sócio-cultural

no qual fomos formados que define e posiciona nossa linguagem, nossas interpretações

do mundo, nossos pré-conceitos e ideais de boa vida.

Da mesma maneira é bem verdade que somente somos no interior de nossa teia de

interlocução. Obviamente que não se diz que essa teia de interlocução seja um território

em seu sentido geográfico onde o sujeito deve respeitar as barreiras, é justamente isso

172 TAYLOR, 1997, Pg 44.

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que Taylor combate. Só podemos conferir significação a entes que se encontram em

nosso campo lingüístico. Não há pensamento fora da linguagem. E não há compreensão

de realidade que antes não passe pelo pensamento.

Norbert Elias foi muito bem sucedido em demonstrar (com um tanto de simpatia,

é bem verdade) como os padrões de conduta (civilizados), disseminam-se no interior de

uma sociedade a partir das classes mais altas em direção as classes mais baixas. Após

serem incorporados no interior de sua sociedade, os valores das “mães-pátrias do homem

branco ” (termo dele) são transmitidos para além do próprio ocidente.

A partir da sociedade ocidental – como se ela fosse uma espécie de classe alta – padrões de conduta ocidentais “civilizados” hoje estão se disseminando por vastas áreas fora do Ocidente, seja através do assentamento de ocidentais ou através da assimilação pelos estratos mais altos de outras nações, da mesma forma que modelos de conduta antes se espalharam no interior do próprio Ocidente a partir desse ou daquele estrato mais alto.173

Os padrões de conduta e de avaliação social seriam erigidos a partir da fórmula

homem-branco-europeu-heterossexual174, submetendo então uma série de coletividades a

normas de conduta exógenas, inautênticas. Essas normas privilegiariam aqueles

indivíduos e coletividades que mais se aproximassem desse tipo idealizado.

É perfeitamente possível, então, aceitar a tese de que a subjetividade pode ser

vítima de injustiças ou violências simbólicas, e que a teia de interlocução na qual a

identidade é formada está exposta a elementos autoritários. Esses elementos autoritários

173 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.Vol 2. pg 212. 174 Sobre essa questão leia-se também David Harvey, A Condição Pós-Moderna, especialmente a parte I.

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simbólicos e socioeconômicos aprisionam muitas identidades em formas má-

reconhecidas ou não-reconhecidas de existência. Tem um lugar respeitável na teoria

democrática contemporânea a preocupação com formas errôneas de reconhecimento,

desrespeito, injustiças culturais. São essas injustiças as responsáveis pela identidade

inautêntica, são eles, os outros (das mann) verdugos da identidade alheia, que lançam o

dasein em seu inferno.175

É então pré-condição da justiça que o indivíduo possa desenvolver sua identidade

autenticamente, seja a nível individual, como também ao nível de sua cultura. Quando

aquiescemos que a formação subjetiva depende, pelo menos em parte, da qualidade do

contexto cultural no interior do qual a identidade se desenvolve, é compreensível

defender a necessidade do respeito e da valorização intercultural. Culturas segregadas,

vítimas de perseguição ou estereotipadas não são a possibilidade de não-reconhecimento,

mas sim o não-reconhecimento atuando na sociedade. O não-reconhecimento gera a

inautenticidade.

Mas a identidade é formada dentro de um quadro crítico de reconhecimento. Não

é um processo estático que envolve selves pontuais, que como mônadas somadas formam

sua cultura, que por seu turno interage pontualmente com outras culturas e a partir disso

reclamam seus direitos. O reconhecimento é intersubjetivo e possui uma gramática moral

de desenvolvimento própria. Assim Axel Honneth demonstrou em Luta por

Reconhecimento. O ser humano é um projeto, esse projeto possui chances de realizações

e ruínas.

Honneth estabelece padrões de reconhecimento intersubjetivo calcado em três

estágios: o amor, que gera a autoconfiança; o direito que desenvolve o auto-respeito; e a

175 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Rio de Janeiro: Loyola, 1995.

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solidariedade que desenvolve a auto-estima. Dialeticamente Honneth também estabelece

as formas de desrespeito características a cada estágio do reconhecimento: o desrespeito

das relações primárias, marcado pelos maus tratos e pela violação física; o desrespeito

das relações jurídicas, exemplificado na privação de direitos e na exclusão; e o

desrespeito da comunidade de valores calcado na degradação e na ofensa.

Vimos que a tese multiculturalista (como a defendida por Will Kymlicka)

reivindica uma gama de direitos especiais que permita o livre florescimento de

identidades culturais variadas. O argumento é sagaz: ainda que se parta do pressuposto da

equidade formal de direitos, da imputabilidade moral universal do indivíduo dentro de

um ordenamento jurídico, a manutenção dessa juridicidade depende muitas vezes que o

estado conceda um upgrade normativo para coletividades ou grupos de indivíduos que

são ameaçados, privados de direitos e excluídos por uma cultura dominante. Nesse

momento a justiça reclamaria o princípio da isonomia (Tratar os iguais igualmente e os

desiguais desigualmente) para manter aquela mesma juridicidade. Desigualmente

posicionados na sociedade, as minorias culturais necessitariam de ações afirmativas, ou

de proteções externas que protegessem sua existência autêntica e, por conseguinte a

autenticidade de seus membros – Uma relativização normativa.

Apoiando-se no quadro de reconhecimento desenvolvido por Honneth, é possível

situar o conjunto de reivindicações multiculturais num padrão formal de eticidade. O

segundo estágio do modo de reconhecimento, o respeito cognitivo, dimensionado na

imputabilidade moral do indivíduo marca as relações jurídicas. É a forma de

reconhecimento caracterizada pelo direito.

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O direito parte do pressuposto que um ordenamento jurídico só pode ser

considerado válido se puder contar aprioristicamente com a disposição de todos os

indivíduos em obedecer às leis. Essa obediência é valida na medida em que a lei é capaz

de submeter-se ao livre assentimento de todos os indivíduos que são abarcados por ela,

decidindo racional e autonomamente, sobre questões morais.176 O direito tem como

pressuposto a universalidade da imputabilidade moral de seus membros, e sua

participação na formação do corpo de direito como criador e beneficiário.

Todas as formas de reconhecimento possuem um potencial evolutivo. No caso do

direito esse potencial evolutivo se encontra na ampliação da compreensão das

capacidades morais dos indivíduos e (a partir das lutas sociais que ampliam esses

direitos), no aumento gradual dos pressupostos básicos de sua participação no corpo

político. Daí a distinção entre direitos liberais de liberdade, direitos políticos de

participação e direitos sociais de bem estar.177 O potencial evolutivo do direito é a

generalização dos direitos e a sua materialização. O móbil do direito é a sua

universalização e efetivação.

O direito, na visão de Honneth, tem como potencial evolutivo a generalização de

direitos e sua materialização. Que saída adotar, dessa maneira, no combate a injustiças

culturais e socioeconômicas (nos termos apresentados por Nancy Fraser) ou hierarquia

econômica e de status (nas palavras de Will Kymlicka)?178

Temos aqui um problema de relações jurídicas. Ao ver de Kymlicka, as injustiças

provenientes da hierarquia econômica imiscui minorias de direitos numa situação de

176 HONNETH, 2OO3, pg 188. 177 Idem, pg 189. 178 Há que se fazer uma breve clarificação conceitual. Honneth não utiliza o dístico ‘redistribuição’ e ‘reconhecimento’. Para ele, a redistribuição socioeconômica está inserida no reconhecimento. Ela faz parte do segundo estágio evolutivo da luta por reconhecimento: as relações jurídicas.

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desvantagem que só pode ser combatida ao se conferirem direitos especiais aquelas

identidades culturais. O combate à hierarquia de status é fundamental para que elas

possam participar da vida social em situação de equidade com outras identidades.

Nancy Fraser, como vimos, é cética em relação a esse tipo de remédio por ela

denominado multiculturalismo dominante. No seu entender esse tipo de remédio somente

prolongaria a injustiça cultural ao positivar legalmente aquilo que deveria ser combatido.

Do ponto de vista teórico, nós também acordamos com Axel Honneth, que os direitos

sociais e políticos devem caminhar rumo a universalização. Todos os indivíduos

independentemente de identidade cultural devem ser beneficiados pela generalização e

efetivação dos direitos.

Mas isso talvez ainda não seja suficiente para defender a universalização do

tratamento cultural. Uma posição sobre isso é que as políticas redistributivas ainda sim

são seletivas, elas selecionam um segmento a ser beneficiado por elas. Os

multiculturalistas reclamam então que muitas culturas têm como raiz do seu mau

posicionamento na hierarquia de status, a má distribuição socioeconômica. Requerem

assim, garantias que membros de suas identidades culturais sejam contemplados com

direitos especiais nas políticas públicas como forma de inclusão social. Um exemplo

disso são leis que concedem benefícios educacionais a estudantes negros. Nesse ponto

concordamos com Brian Barry:

Segundo Barry, o argumento proposto pelos multiculturalistas tende a diagnosticar

erradamente o problema das minorias. Geralmente os problemas levantados por esses

teóricos não estão enraizados na cultura, e a solução seria em torno de políticas

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universalistas, ao contrário do relativismo político jurídico tão comum ao

multiculturalismo.

The other class of demands made in the name of culture that I claim should be rejected consists of demands for the incorporation into the law of the land of systems of personal law that offend against fundamental principles of equality before the law179.

Aqui não cabe ao estado definir metas do que é boa vida, ma sim prezar que

todos os indivíduos tenham a igual possibilidade de desenvolver sua identidade. Os

compromissos substantivos ficariam a cargo do indivíduo, o estado cuidaria que os

compromissos procedimentais fossem respeitados, a partir de uma equalização, de um

igual tratamento.

É a condição social do individuo e não o pertencimento a uma determinada

cultura ou etnia que deve legitimar a política pública. Como Barry salienta no caso das

políticas afirmativas educacionais para negros:

(...) it is doubtful that under-inclusive policy is good politics. It is bound to create resentment – which cannot be dismissed as unjustified – among others similarly placed who cannot see why they should be denied the same benefits. And it builds the policy on a perilously small constituency, which does not even punch its weight politically in accordance with its numbers. Universalistic policies that track individual deprivation are not only more equitable than group-based policies; they may well also be a good deal better able to attract and sustain political support, despite their greater total cost. For example, a

179 Idem, Pg 319.

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federal program that puts extra resource into every school that has any number of children in it who suffer from deprivation will benefit hundreds of thousands of school all over the country. In contrast, only ghetto schools, so extra resources for such schools will not directly benefit anybody outside the ghetto180.

Essa é a base de nosso argumento da crítica universalista ao multiculturalismo. As

políticas redistributivas possuem diferenças em relação às políticas de afirmação de

direitos, com sua importância própria, mas o caminho da equidade está na

universalização dos direitos, e não em sua relativização.

Retornando a tese honnethiana, percebemos a eleição do argumento universalista

no combate as injustiças socioeconômicas e culturais. Mesmo as políticas redistributivas

ao elegerem um seguimento da sociedade a ser beneficiado, o fazem mediante critérios

imparciais do ponto de vista cultural e tem como objetivo, como força motriz a

generalização do direito e não sua relativização.

Mas ainda resta uma dúvida: mesmo livres da hierarquia de direitos (marcada

pela privação e pela exclusão) minorias culturais podem ser vítimas da hierarquia de

status. Isto é, culturas historicamente marginalizadas, tendem a continuar sofrendo pré-

conceitos e injustiças culturais mesmo quando possuem direitos civis, políticos e sociais

reconhecidos pelo Estado. Identidades afro-descendentes, por exemplo, são por vezes

estereotipadas no interior da sociedade e submetidas a normas sociais identificadas com o

homem-branco-europeu-heterossexual. Que tipo de caminhos o Estado deve adotar no

180 BARRY, 2001; Pg 113.

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combate a esse mal. Até que ponto são bem vindas leis que garantam a sobrevivência e

estimule o desenvolvimento de uma identidade cultural específica?

Nancy Fraser demonstra as limitações que uma política de afirmação de

reconhecimento pode ter no combate à injustiça cultural ou simbólica. Ela é partidária de

uma saída ligada a desconstrução dos símbolos hegemônicos que vise a transformação

profunda dos padrões valorativos que regem a sociedade. Mas Fraser não toca em qual

seria o papel do Estado na Reparação desse mal.

A interpretação de Luta por Reconhecimento nos oferece uma resposta

interessante. Questões relativas a identidades culturais fariam parte do terceiro estágio do

modo de reconhecimento: a estima social, dimensionada nas capacidades e propriedades

da identidade individual, marca da comunidade de valores. É a forma de reconhecimento

caracterizada pela solidariedade.

Enquanto no reconhecimento jurídico, o direito age como um intermediário entre

os indivíduos representando suas características universais, a comunidade de valores

calcada na estima social vai enfatizar as diferenças individuais num contexto

intersubjetivo. Ela não se dá somente na obediência a um ordenamento jurídico comum,

ela se dá no convívio sob um horizonte ético compartilhado. Esses objetivos éticos são

claramente variáveis, como variáveis também são as relações jurídicas. A forma de

reconhecimento da comunidade de valores marcada pela solidariedade é possível quando

se não apenas se garante ao outro o direito de desenvolver sua individualidade ou a

particularidade de sua cultura. A solidariedade é desenvolvida sobretudo quando o

desenvolvimento livre da identidade do outro é considerado como algo valioso para mim

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e para toda sociedade. Significa que todo o sujeito recebe a chance de experiênciar a si

mesmo, em suas próprias relações e capacidades como valioso para a sociedade.181

Muito esclarecedor nesse tema é o trabalho de Dominique Vidal sobre a

Linguagem do Respeito.182 Nesse artigo Vidal aborda analisa a reivindicação de respeito

como elemento central no discurso político das camadas populares urbanas no Brasil.183

Aqui o desejo do respeito é visto como direito de ser reconhecido legítimo pela

sociedade. Para o brasileiro citadino pobre, o sentimento de pertencer à humanidade é

muito mais importante que a redução da desigualdade social.184 O brasileiro pobre em

seu discurso raramente condena sua condição social, o que comumente reclamado é o

modo como as camadas socialmente superiores o fazem se sentir inferiorizado. Essa

interiorização ocorre através de palavras ou atos que gerem humilhação ao lembrar uma

situação de inferioridade.

Esse desrespeito, segundo Vidal, é mais comum no ambiente de trabalho, quando

nas palavras do brasileiro o patrão trata seus funcionários como cachorro, com as

instituições do estado, como a truculência da polícia ou desprezo de outros funcionários

públicos. A humilhação é compreendida como a ausência de formas específicas de vida

pelas quais os seres humanos exprimem sua humanidade.185

Segundo Vidal no discurso político do brasileiro citadino pobre o indivíduo não

busca imediatamente a satisfação de interesses materiais, mas o respeito de ser

181 HONNETH, 2003, pg 210. 182 VIDAL, Dominique. A Linguagem do Respeito. A Experiência Brasileira e o Sentido da Cidadania nas Democracias Modernas. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol 46, n. 2, 2003. 183 Vidal utiliza um programa claramente influenciado por Axel Honneth para demonstrar a gramática moral da luta pelo reconhecimento no Brasil. Porém o termo ‘respeito’ tem um sentido mais amplo que o utilizado por Honneth. Enquanto para Honneth o respeito faz parte das relações jurídicas, para Vidal esse termo plana entre as relações jurídicas de respeito e a comunidade de valores com a auto-relação prática da auto-estima. 184 Idem, pg267. 185 Idem, pg 270.

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considerado autônomo e individualizado. Essa luta por reconhecimento avança em duas

direções: (a) primeiro no reconhecimento a partir das lutas sindicais e das mudanças

constitucionais de 1988 que incorpora certos direitos aos trabalhadores desenvolvendo

assim a auto-relação prática do respeito. (b) Essas reivindicações expressam a

necessidade do respeito à dignidade e de ser reconhecido como indivíduo nas diferentes

modalidades de existência da vida humana.186

Nós podemos deduzir o seguinte da análise de Honneth em relação ao

multiculturalismo. (a) O Estado, enquanto organismo universalizante e generalizador do

direito não se refere a minorias de direitos ou grupos étnicos, mas sim a indivíduos

considerados universalmente na sua imputabilidade moral. (b) O reconhecimento

comunidade de valores é um integrante legítimo da gramática de desenvolvimento das

relações de reconhecimento, mas não faz parte das relações jurídicas entendidas no

sentido estrito apresentado por Honneth.

O desenvolvimento da auto-estima é indubitavelmente favorecido pela efetivação

das garantias jurídicas. Somente cidadãos que possuem a auto-relação prática do auto-

respeito desenvolvida têm totais condições de desenvolverem a auto-relação prática da

auto-estima. Mas a auto-estima não se desenvolve mediante a positivação de direitos

especiais de solidariedade, em termos liberais faz parte dos compromissos substantivos

do cidadão que compartilham um horizonte ético comum. Em termos rawlsianos

poderíamos defini-la como cultura de fundo.187

186 Idem, pg 281. 187 A cultura de fundo inclui, então, a cultura de igrejas e associações de todos os tipos e de instituições de aprendizado em todos os níveis, especialmente universidades, escolas profissionais, sociedades científicas e outras. Além disso a cultura política não-pública faz a mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo. Esta abrange os adequadamente denominados meios de comunicação de todos os tipos.

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Um passo importante na compreensão do multiculturalismo foi dado: suas

demandas foram examinadas de acordo com um padrão crítico de moralidade. As lutas

sociais só fazem sentido dentro de um panorama mais amplo de compreensão das

relações intersubjetivas. Agora resta um outro passo igualmente importante: estabelecido

os padrões morais de análise dos comportamentos éticos, é necessário agora estabelecer

as pré-condições procedimentais de acordo com as quais essas relações serão debatidas.

IV.2 – RAZÃO PÚBLICA COMO PRINCÍPIO NORMATIVO

O argumento multiculturalista deixa importantes questões em aberto: Que

garantias uma cultura tem de que seus direitos serão respeitados mediante um fórum de

debates públicos, especialmente quando é minoritária? E antes mesmo da possibilidade

do êxito de suas reivindicações num debate público, em que termos esse debate deve ser

travado? Quais as justificações morais e procedimentos adotados para que possa garantir

o igual respeito a diferentes demandas?

Diante da complexidade das demandas em sociedades pluralistas, adotamos um

modelo formal de democracia que possa servir como um minimun ético nos debates

multiculturais. Ao nosso ver duas posições teóricas, se analisadas em conjunto, guardam

os mais promissores esforços da teoria política contemporânea no tratamento de questões

como as que vimos nos referindo. De um lado, o conceito de ‘razão pública’ de John

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Rawls, como é abordado na segunda parte de O Direito dos Povos,188 apresenta uma

vigorosa justificação moral da democracia moderna. Ali é demonstrado como a

democracia constitucional de uma perspectiva liberal, pode ser considerada justificável

por cidadãos razoáveis mesmo que não aceitem uma doutrina abrangente do liberalismo.

De outro lado o modelo de ‘política deliberativa’ como é desenvolvido Jürgen

Habermas189 mostra como interesses divergentes e não-institucionalizados podem

estabelecer acordos e chegar a uma coerência jurídica moralmente fundamentada.

A razão pública, nos termos que foi desenvolvida por John Rawls é um elemento

característico de sociedades democráticas constitucionais. Ela explicita os valores morais

e políticos que direcionam o comportamento dos governos com os cidadãos e dos

cidadãos entre si.

Uma das principais características da democracia é o que Rawls vem chamar de

pluralismo razoável, ou seja, as sociedades são permeadas por uma série de doutrinas

abrangentes razoáveis que podem ser conflitantes. A razão pública não ataca nenhuma

doutrina abrangente desde que ela não seja incompatível com os princípios de uma

sociedade política democrática.190

A razão pública possui cinco aspectos diferentes:

(1) As questões de políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a

quem se aplica (funcionários e candidatos a cargos públicos); (3) seu conteúdo como

dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas

188 RAWLS, John. O Direito dos Povos. Martins Fontes, 2004. 189 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre a facticidade a validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. e A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2002. 190 RAWLS, 2004, pg 175.

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concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma da lei

legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios

derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério da reciprocidade.191

Essa razão é pública de três maneiras distintas: ela é a razão do público, por ser a

razão de cidadãos autônomos, seu tema é o bem público, por envolver questões referentes

a justiça política, como questões constitucionais ou de justiça distributiva, e sua natureza

e conteúdos são públicos devido ao fato de se expressarem de acordo com critérios de

justiça política que respeitem o princípio da reciprocidade.192

Note-se que a razão pública não se envolve em todas as questões de justiça

fundamental mas somente naquelas que são abordadas dentro de um espaço político

público. É o espaço de ação de funcionários de governo, juízes em grau supremo,

legisladores e candidatos a cargos públicos. É necessária essa distinção para que se separe

o que, de um lado espaço político público, e o que é, de outro, cultura de fundo a razão

pública não se aplica a esta última.193 A manutenção da razão é concretizada por

cidadãos que não são funcionários do governo, ou candidatos a cargos públicos através

dos instrumentos da democracia formal. Já que os cidadãos não podem votar em leis (a

não ser mais raramente em referendos ou plebiscitos), a razão pública é efetivada no voto

em representantes políticos. A vigilância sobre os funcionários públicos é, segundo

191 Idem, pg 175. 192 Idem, pg 176. 193 Idem, pg 177. Como o próprio Rawls reconhece, o conceito de cultura de fundo é semelhante ao conceito de esfera pública desenvolvido por Habermas e que será abordado por nós mais adiante.

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Rawls, o esteio da razão pública. Mas ele salienta que isso é um princípio moral; se fosse

uma obrigação jurídica não seria compatível com a idéia de liberdade aqui defendida.194

Como foi afirmado, a idéia de razão pública se origina da combinação da

cidadania com um regime democrático constitucional. Esse fundamento da cidadania

política tem duas características: (a) é uma relação dos cidadãos com a estrutura básica da

sociedade. (b) É uma relação de cidadãos formalmente livres e formalmente iguais que

estabelecem as normas e exercem o poder no interior do corpo político. Aqui se apresenta

a questão de como os cidadãos podem compartilhar simetricamente o poder político e em

nome de que princípios eles podem justificar razoavelmente suas decisões perante o

corpo social.

Os cidadãos são considerados razoáveis quando oferecem uns aos outros termos e

justos de cooperação de acordo com posições de justiça por eles consideradas razoáveis,

ou seja, quando se consideram livres e iguais, e quando concordam em agir mediante as

decisões adotadas. Essas decisões podem afetar certos interesses particulares, mas ainda

assim podem ser consideradas razoáveis desde que os outros cidadãos envolvidos no

processo concordem e aceitem esses termos como válidos também para si.195 Esse é o

critério da reciprocidade. Os cidadãos podem, e irão naturalmente divergir sobre quais as

concepções de justiça são consideradas mais razoáveis, mas vão concordar que todas elas,

desde que atendam aqueles pré-requisitos, são minimamente razoáveis.

Um cidadão participa da razão pública quando delibera a partir de concepções

consideradas razoáveis, quando delibera a partir de concepções que os outros cidadãos,

tão livres e iguais quanto ele também possam aquiescer como razoáveis. Dentro de uma

194 Idem, pg 179. 195 Idem, pg 180.

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sociedade democrática todos os cidadãos devem possuir esses princípios, de acordo com

os quais se guiem. Segundo Rawls, esses princípios de liberdades básicas são ancorados

naquilo que o liberalismo define como ‘posição original’. Esse princípio afirma que cada

pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais

que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.196 Essa

forma de justiça, definida por Rawls como justiça como equidade é apenas uma das

formas que o liberalismo pode assumir. Tendo como elemento imanente o princípio da

reciprocidade, o liberalismo pode assumir três formas: (a) uma lista de direitos, tais como

liberdades e oportunidades básicas; (b) uma atribuição especial essas garantias (direitos,

liberdades e oportunidades) no que diz respeito à persecução do bem geral; e (c) medidas

que assegurem aos cidadãos os meios adequados para que possam perseguir seus

propósitos e que possam desfrutar de suas liberdades.197

Todos esses liberalismos expressam conteúdos diferenciados do que seja

liberalismo e dos conteúdos do que vem a ser a razão pública. O debate liberal se dá em

torno das interpretações desses princípios. O liberalismo não fixa uma definição do que

se pretende que seja o liberalismo correto. Uma visão pode ser considerada válida ainda

que seja minoritária durante muito tempo, o que define sua legitimidade é a adesão aos

princípios da reciprocidade.

Ainda há uma diferença entre a razão pública e a razão secular e valores seculares.

A razão em seu sentido secular tem como objeto doutrinas abrangentes de bem, que não

são religiosas. Como se sabe, o debate sobre doutrinas abrangentes ainda é muito amplo

para os objetivos da razão pública. Mesmo o debate em torno de questões morais

196 Rawls, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes, 2003. pg 64. 197 Rawls, 2004, pg 186.

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seculares ainda é amplo para a razão pública. Mesmo Rawls reconhecendo que o

liberalismo tem um conteúdo moral imanente, ressalta que esse conteúdo faz parte da

alçada da política e dos valores políticos da concepção liberal. Essas concepções políticas

possuem três características básicas:

Primeiro, os seus princípios aplicam-se a instituições

políticas e sociais básicas (a estrutura básica da sociedade);

Segundo, elas podem ser apresentadas independentemente da doutrinas abrangentes de qualquer tipo (embora possam ser, naturalmente, sustentadas por um consenso de sobreposição razoável de tais doutrinas); e Finalmente podem ser elaboradas a partir de idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de um regime constitucional, tais como as concepções dos cidadãos como pessoas iguais e livres, e da sociedade como um sistema justo de cooperação. 198

Um exemplo do campo de ação da razão pública dentro dos valores

políticos pode ser observado, a partir do valor da autonomia: ela pode ser

encarada de duas maneiras: autonomia política, a independência jurídica, a

igualdade formal de direitos; como pode ser entendida como autonomia moral, ou

seja, o corpo de valores que conferem sentido ao que o individuo define como

concepções de boa vida, suas crenças e ideais variados. Como a autonomia moral

pode muitas vezes defender valores que não satisfaçam o princípio da

reciprocidade , ela deixa de ser objeto da razão pública. A autonomia moral não é

não é um valor político, no sentido apresentado por Rawls, enquanto a autonomia

política, por satisfazer aqueles critérios é.

198 Idem, pg 189.

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A razão pública, poderia então, analisar a questão das identidades culturais

de duas maneiras: por um lado seria um problema de generalização de direitos

individuais, a partir do momento que se considerassem os membros dessas

identidades como desprovidas daqueles elementos que caracterizam a autonomia

política. Por outro lado seria uma questão moral, onde seus membros defenderiam

a legitimidade de suas crenças no interior de uma cultura de fundo. Mas observe-

se em relação à primeira dimensão do problema, que a razão pública não se

direciona a identidades culturais, ela se dirige sobretudo a indivíduos que não

possuem seus direitos, sua participação política, enfim, sua autonomia política

respeitada. Como se refere também as instituições públicas que são objetivo da

razão política pública. Questões referentes ao valor moral intrínseco de culturas,

tomadas individualmente, não fazem parte do escopo da razão pública, não fazem

parte do espaço político público, mas da cultura de fundo.

IV.3 – CONDIÇÕES DO DEBATE MULTICULTURAL

Vimos que questões pertinentes à cultura de fundo não fazem parte da

alçada da razão pública. Porém isso não encerra a questão. Sabemos que

reivindicações vindas da cultura de fundo refletem quase que diretamente no

arranjo institucional que caracteriza o espaço político público, e nem sempre rumo

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a justiça. Diante da possível minoria numérica de várias identidades culturais, é

necessário que se desenvolva uma metodologia de debate inclusiva. Nesse modelo

deliberativo, diferentes indivíduos e grupos devem estar aptos a tecer debates em

ambientes não institucionalizados e ainda sim, suas reivindicações devem ser

reconhecidas simetricamente. Outro desafio que se apresenta é o reconhecimento

pelos canais institucionalizados dessas reivindicações.

Jürgen Habermas apresenta uma proposta interessante a essa questão.

Vamos iniciar a partir da concepção habermasiana de esfera pública:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede

adequada para a comunicação de conteúdos, tomada de

posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são

filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em

opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.199

Essa rede comunicativa não é institucionalizada, os temas nela debatidos

são fluidos, as opiniões adstringidas daí não possuem validade estatística. Não há uma

forma de mensuração das vontades individuais como pode ser verificada em votações

eleitorais por exemplo. Mas ainda assim existe uma luta pela construção de influência

entre os atores da esfera pública em torno da construção de uma opinião pública (ainda

que seja fluida). É essa opinião que vai estimular posteriormente a pauta de debates da

sociedade civil, e suas pressões sobre as instituições políticas.

199 HABERMAS, 1997. pg 92.

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É também importante nesse momento, uma breve alusão ao conceito

habermasiano de sociedade civil. Habermas discorda, por exemplo, da conceituação

hegeliana de sociedade civil como ‘sistema de necessidades200’ para Habermas o conceito

de sociedade civil não engloba apenas o regime de direito privado e as relações de

trabalho e de troca de mercadorias. O seu núcleo é formado por associações e

organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de

comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.201 A

sociedade civil tem como uma de suas funções a institucionalização dos discursos tecidos

na esfera pública. A sociedade civil ‘organiza’ os discursos capazes de resolverem seus

problemas como pauta relevante dos debates da esfera pública. A sociedade civil se

organiza de certa forma, independentemente dos sistemas estatais e econômicos. As

liberdades fundamentais, como as liberdades negativas (aí incluídas todo o rol de direitos

de primeira geração202), servem como uma espécie de proteção contra a influência que o

Estado pode exercer na imposição da pauta de discussões que vêm a se tornar relevantes

para a esfera pública.

Poderíamos levantar esses conceitos de esfera pública e de sociedade civil e

perguntarmo-nos como eles poderiam ser instrumentalizados no debate multiculturalista.

Quais espaços teriam os grupos individuais na formação da agenda da sociedade civil, e

quais seriam as justificativas morais para o engajamento do indivíduo no debate público.

Habermas oferece o seguinte modelo para a assegurar a aceitabilidade de um argumento

no interior de um processo argumentativo:

200 Ver capítulo II, desta dissertação. 201 HABERMAS, 1997. pg 99. 202 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: UNESP, 1999.

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(a) Ninguém que possa dar uma contribuição relevante pode ser excluído da participação; (b) a todos se dará a mesma chance de dar contribuições; (c) os participantes devem pensar naquilo que dizem; (d) a comunicação deve ser isenta de coações internas ou externas, de tal forma que os posicionamentos de ‘sim’ e de ‘não’ ante reivindicações de validação criticáveis sejam motivados tão somente pela força de convencimento das melhores razões.203

Essa é a justificação moral do debate. Sabemos que nessa esfera de debates, não

existe uma positivação jurídica de como o debate deve ocorrer, mas sim uma justificação

moral que caracteriza a formação da opinião pública, bem como o posterior

encaminhamento dos termos desse debate rumo a institucionalização (ou pelo menos

pressão) sobre os círculos estatais e jurídicos.

Percebemos que o modelo discursivo apresentado por Habermas é radicalmente

democrático, já que abre a possibilidade do debate a qualquer individuo que possa dar

uma contribuição relevante ao tema abordado. Esse modelo deliberativo de política não

se restringe ao procedimentalismo característico do liberalismo, pois não se mostra como

uma relação entre indivíduos mas, para além disso, como uma relação intersubjetiva,

onde a consideração recíproca de direitos e deveres, em proporções simétricas de

reconhecimento.204

Habermas apresenta o modelo deliberativo, como uma suprassunção aos modelos

republicanos e liberais de democracia. A visão liberal de direitos, enxerga a ordem

jurídica como legitimada de acordo com a individualidade da imputação do direito

através de direitos individuais e da analise individual de sua juridicidade. A visão

203 HABERMAS, 2002. pg 58. 204 Idem, pg 273.

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republicana fundamenta o direito num padrão objetivo de integração social e respeito

mútuo. É sobre essas visões de direito que habermas apresenta o padrão da

intersubjetividade; a política deliberativa conserva o conteúdo liberal de direitos

fundamentais, ao passo que conserva o conteúdo radicalmente democrático de uma

organização social que leve em conta a resolução de conflitos por uma via comunicativa.

É dentro da variedade das formas que esfera pública assume, e dos fluidos

contornos que a sociedade civil pode conferir às suas demandas (não mensuráveis num

escopo institucional) que a política deliberativa ganha visibilidade empírica. Ela pode

constituir uma vontade comum não apenas pelo auto-entendimento mútuo de caráter

ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do

estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, da escolhas de

instrumentos racional e voltada para um fim específico e por meio, enfim, de uma

fundamentação moral.205

Percebemos que Habermas desenvolve um raciocínio inclusivo. Diferentes

demandas podem ser consideradas em conjunto, sem que precisem depender da virtude

dos cidadãos (como o faz muitas vezes o republicanismo, nos moldes apresentados por

Habermas). Mas imaginemos o direcionamento desse debate diante de um cenário

multicultural. Será que o modelo habermasiano de política deliberativa, ao se considerar

sensível às diferenças admitiria um rol de direitos especiais de minorias (como aqueles

defendidos por Will Kymlicka) desde que aqueles direitos antes de integrados ao sistema

passassem pelo crivo da legitimação discursiva?

205 Idem, pg 277.

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O fato de ser radicalmente democrático quanto à fluidez das configurações

discursivas características à esfera pública, não significa ainda, afirmar que Habermas é

um asceta do multiculturalismo de direitos.

Habermas, assim como Charles Taylor206 expõe o debate a partir de duas

compreensões de liberalismo: o liberalismo 1 que não permite ao Estado perseguir

qualquer objetivo que esteja além das liberdades e bem estar individuais de seus

membros; e o liberalismo 2 que deve garantir aqueles direitos fundamentais, mas deve,

além disso preservar uma forma cultural, uma tradição e religião, ou um número limitado

delas. Habermas reconhece que o direito é um reflexo de uma formação cultural

específica, que um ordenamento jurídico é impregnado de valores morais característicos

de regiões específicas. Mas em sociedades plurais, nenhum Estado é constituído por uma

nação, mas por uma miríade de culturas. Criar barreiras jurídicas de proteção cultural não

resolve a questão das identidades, com novas fronteiras para o Estado certamente

também surgem outras minorias nacionais; e o problema não desaparece a não ser à

custa de “purificação étnica’’- o que é injustificável do ponto de vista político-moral”.207

De acordo com Habermas, um Estado pode garantir eqüitativamente a

coexistência de vários grupos culturais a partir da efetivação dos direitos individuais. Não

seria necessária nenhuma fundamentação especial de direitos, mas a sobrevivência

cultural se daria numa relação intersubjetiva a partir da preservação da integridade

individual, no respeito à identidade individual.

A existência eqüitativa das culturas não pode ser garantida através de concessões

de direitos especiais considerados além da gama de direitos individuais. Ainda que

206 Ver capítulo I desta dissertação. 207 HABERMAS, 2002. pg 247.

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aquelas doutrinas abrangentes respeitassem os princípios de uma democracia

constitucional nos moldes do liberalismo ela seria normativamente falha. O direito deve

servir para ao reconhecimento de seus membros; ele não tem de forma alguma o sentido

de preservação administrativa das espécies.208

As tradições culturais se reproduzem ao convencer os indivíduos do valor de si

mesmas,209 ao se articularem nas experiências de vida cotidianas internalizadas e

constantemente reinterpretadas como uma hermenêutica do dasein. A positivação jurídica

não pode, não deve fazer nada além de possibilitar ao indivíduo o desenvolvimento de

seu universo autônomo. Permitam-me citar Habermas mais uma vez:

As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem se apoiar sobre o fato de cada indivíduo, em seu meio cultural, detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pessoas estrangeiras, mas nasce também – e pelo menos em igual medida – do intercâmbio com eles.210

208 Idem, pg 250. 209 GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich, LASCH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997. 210 Idem, pg 252.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Will Kymlicka tem muita razão quando afirma que o atual estágio do debate

multiculturalista é um debate entre liberais acerca dos princípios do liberalismo211. Por

maiores que sejam as divergências e antagonismos, a aquiescência em relação à

democracia constitucional funciona como um horizonte ético compartilhado pela

esmagadora maioria das coletividades integrantes das discussões políticas

contemporâneas .

Modelos de reconhecimento como os propostos por Charles Taylor, Will

Kymlicka, John Rawls e Jürgen Habermas são unânimes na defesa das liberdades

fundamentais do indivíduo como pressuposto de qualquer sociedade decente.212

Equiparada a essa defesa, aqueles pensadores concordam que somente a igual estima às

diferentes identidades culturais e à pluralidade de concepções de boa vida podem conferir

ao reconhecimento o status de autenticidade.213

Tendo-se em vista a igual importância das liberdades individuais e a consideração

de diferentes ideais de vida como e de comunidade como formas autênticas de realização

do dasein, coloca-se a questão sobre a responsabilidade que uma teoria da justiça deve ter

sobre a preservação desses modelos de reconhecimento. Nossa tese afirma que a igual

relevância dos compromissos procedimentais e substantivos no desenvolvimento da

identidade humana, não impede que eles sejam abordados como qualitativamente

diferenciados.

211 Ver o capítulo 3 desta dissertação. 212 RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 213 SOUZA, Jessé. Ver seu conceito de modernidade inautêntica. In SOUZA, Jessé. Modernidade Seletiva. Brasília: UNB, 2000.

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Se o escopo conceitual por nós demonstrado, que vai de Kymlicka a Rawls parece

concordar que o debate multiculturalista pressupõe a adesão aos princípios do Estado

democrático de direito, por dedução lógica podemos desenhar o campo discursivo onde

esse consenso sobreposto214 é deflagrado.

Obviamente as discussões na esfera pública podem ter como objeto problemas

referentes a interesses particulares, a vida privada, a esfera da intimidade,215 ou mesmo a

questões que mobilizem o uso da razão pública pela sociedade civil. Mas a partir do

momento que o argumento multiculturalista põe em pauta a envergadura da ação jurídica

institucional em torno do atendimento às demandas daquelas coletividades injustiçadas

(sejam essas injustiças de redistribuição ou de reconhecimento216) o espaço comunicativo

mais apropriado para a solução dessas contendas é o espaço político público. Essa

definição nos leva a assumir as seguintes posturas no trato das questões acima

mencionadas:

1- O espaço político público é o campo discursivo referente às relações jurídicas

e tem como forma de reconhecimento o direito;

2- A razão pública é a única razão compatível com a sistematização e

cumprimento das demandas do espaço político público;

3- Sendo a razão pública a razão do espaço político público, é por conseguinte a

razão apropriada dos debates pertinentes ao direito;

214 RAWLS, 2000. 215 GIDDENS et alli , 1997. 216 FRASER, 2001.

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4- O direito tem por base a afirmação da imputabilidade moral do sujeito e visa a

generalização e efetivação da autonomia individual no corpo conhecido como

direito, liberais, direitos políticos, e direitos sociais.

Kymlicka afirma que as instituições políticas de uma sociedade não são neutras,

mas carregam as cores das culturas majoritárias. Baseado nessa assertiva, expressa que a

rigidez procedimental desconsidera os interesses dos grupos minoritários causando assim

prejuízos a eles. A justiça não poderia ser restringida à rigidez procedimental configurada

no universalismo de direitos, pois esta seria a razão de muitas injustiças que acometem as

minorias.

Concordamos que a justiça não pode ser restringida à rigidez procedimental. Mas

essa concordância, não significa, ainda assim uma concordância com o argumento

multiculturalista. Afirmar que uma teoria da justiça não possa se resumir ao

procedimentalismo jurídico significa dizer que o universalismo de direitos reflete um

momento da teoria da justiça no interior de uma estrutura de relações sociais de

reconhecimento. O universalismo não esvai o reconhecimento, podendo em muitos casos

ser nocivo a ele, se aplicado fora de seu contexto moral. O universalismo não pode ser

universalmente aplicado em todo espaço de desenvolvimento crítico da moral.

Se o universalismo de direitos não pode ser utilizado em todas as esferas de

interação humana, isso não significa de modo algum invalidá-lo. Mas significa dizer,

justamente contra o argumento multiculturalista, que o universalismo é não apenas

válido, mas a única postura hermenêutica justa no espaço das relações jurídicas. Isso

também não significa uma tentativa de mascaramento das fontes morais do liberalismo,

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mas, outra vez o seu inverso: é o uso da razão pública num contexto político deliberativo

que vai possibilitar a todos os sujeitos o espaço político autêntico de sua individualidade

na tomada de decisões autônomas sobre o sentido existencialmente construído de suas

identidades, de seus selves e sobretudo – de suas culturas.

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