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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA
A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO
ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO
RODRIGO GOMES LEITE
RECIFE, 2006
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RODRIGO GOMES LEITE
A LUTA PELO RECONHECIMENTO: UMA CRÍTICA UNIVERSALISTA AO
ARGUMENTO MULTICULTURALISTA CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Ciência Política, do programa de pós-graduação em Ciência Política, do departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Pernambuco.
Orientador: Prof. Dr. Marcus André Barreto Campelo Melo.
RECIFE, 2006
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AGRADECIMENTO
Sempre achei difícil agradecer... Não por nunca ter recebido ajuda, mas
justamente por sempre ter recebido ajuda demais; por vezes mais do que julgo merecer.
Então, para não pagar o alto preço de esquecer nessa nota alguma das incontáveis pessoas
que estenderam seus braços nessa caminhada, dedico este trabalho a todos que se vejam
representados nele. Talvez baste lê-lo para fazer parte dele.
Muito Obrigado.
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EM SETE PONTOS REVISITEI
1- A emancipação humana 2- A racionalidade moderna 3- A existência que serei 4- Quando irreconheci 5- Colonizei a solidariedade 6- Das muitas culturas 7- Das quais, nada sei
Marco Aurélio da Silva Freire
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SUMÁRIO
RESUMO 8
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO I – BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO:
UMA APROXIMAÇÃO INICIAL
1.1 Charles Taylor e a Política do Reconhecimento; Universalismo e Relativismo
de Direitos na Modernidade
19
1.2 Rousseau e Kant: Afinidades (Ir)Reconhecidas 27
1.3 Taylor: O Debate Liberal-Comunitário 31
1.4 Inautenticidade e Autenticidade em Heidegger 40
1.4.1 A Ontologia de Ser e Tempo 40
1.5 Conclusão: Limites da Tese Tayloriana 45
CAPÍTULO II – A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL
2.1 Luta por Reconhecimento: Ética e Moral 51
2.2 Kant e a Teoria da Moral 53
2.3 Hegel e o Sistema Ético 57
2.3.1 Reconhecimento na Dialética do Senhor e do Escravo 62
2.4 Honneth e a Gramática Moral dos Conflitos Sociais 65
2.4.1 A Estrutura das Relações Sociais de Reconhecimento 66
2.5 Conclusão: Uma Concepção Formal de Eticidade 73
CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA
3.1 Nancy Fraser: Redistribuição e Reconhecimento 78
3.1.1 O Dilema Redistribuição-Reconhecimento 80
3.1.2 Coletividades Exploradas, Menosprezadas e Ambivalentes 82
3.1.3 Afirmação e Transformação 86
7
3.1.4 Escapando do Dilema? 88
3.2 Kymlicka: Multiculturalismos 92
3.2.1 Políticas de Identidade: Modelo Tradicional 92
3.2.2 Cinco Modelos de Multiculturalismo 102
3.2.2.1 Minorias Nacionais 103
3.2.2.2 Grupos Imigrantes 104
3.2.2.3 Grupos Etno-Religiosos Isolacionistas 104
3.2.2.4 Metecos 106
3.2.2.5 Afro-Americanos 106
3.3 Conclusão: Direcionando o Debate Multicultural 110
CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE
4.1 Multiculturalismo e Moralidade 115
4.2 Razão Pública como Princípio Normativo 126
4.3 Condições do Debate Multicultural 132
CONSIDERAÇÕES FINAIS 139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143
8
TÍTULO: TEORIA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: A CRÍTICA UNIVERSALISTA AO ARGUMENTO MULTICULTURALISTA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTADO E GOVERNO LINHA DE PESQUISA: TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
RESUMO:
Muitos trabalhos vindos da teoria política contemporânea dão atenção especial a políticas de reconhecimento. Esta tese tem como foco uma analise da relação entre teoria política e o argumento multiculturalista contemporâneo. Começo com uma análise do paradigma d’A Política do Reconhecimento de Charles Taylor e suas fontes teóricas e considero outros contemporâneos teóricos do reconhecimento com suas respectivas fontes teóricas como: Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls, e Jürgen Habermas. Posteriormente volto a analisar a interdependência entre reconhecimento, teoria crítica e universalismo de direitos. Em minha visão este é o único caminho rumo a um reconhecimento autêntico em sociedades democráticas, liberais e pluralistas.
PALAVRAS-CHAVES: reconhecimento, multiculturalismo, liberalismo, universalismo, teoria crítica, democracia, autenticidade, desenvolvimento moral.
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ABSTTRACT:
Many works from the contemporary political theory give a special attention to politics of recognition. The following thesis focuses the analysis away from political philosophy and towards the politics of multiculturalism, while continuing explore the links between them. I begin with an analyses of the paradigm of The Politics of Recognition from Charles Taylor and his theoretical sources, and consider others contemporary theories of recognition and theirs sources, namely those of Axel Honneth, Nancy Fraser, Will Kimlicka, John Rawls and Jürgen Habermas. After I turn to analyze the interdependence between recognition, critical theory and universalism of rights. In my view this is the unique way to an authentic recognition in democratic liberals and pluralistics societies.
KEYWORDS: Recognition, multiculturalism, liberalism, universalism, critical theory, democracy, authenticity, moral development.
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INTRODUÇÃO
Movimentos teóricos são estranhamente parecidos nas suas diferenças. Em
tempos já distantes, na década de 1860, Lord Acton1 considerava o nacionalismo como a
mais atraente das idéias subversivas modernas.2 Defendendo o princípio da legitimidade
universal, num período coincidente com o auge do poder imperialista britânico, Acton
considerava superiores os Estados que englobam várias nacionalidades sem, no entanto,
oprimi-las. Nesses Estados as nações esgotadas e decadentes são revigoradas pelo
contato com uma vitalidade mais jovem. As nações que perderam os elementos da
organização e a capacidade de governo, quer pela influência desmoralizante do
despotismo, quer pela ação desintegradora da democracia, são resgatadas e reeducadas
sob a disciplina de uma raça mais forte e menos corrompida.3
Descontando-se as diferenças entre a Europa neocolonialista e o mundo
contemporâneo, algumas afinidades eletivas podem ser traçadas entre o nacionalismo do
século XIX e o debate multiculturalista de nossos dias. Em suas reivindicações,
defensores de uma pauta de direitos multiculturais ressaltam a forte impregnação ética
dos ordenamentos jurídicos. Estes não seriam neutros, mas edificados a partir de valores
e símbolos culturais que beneficiam uma identidade cultural majoritária. Modelos
tradicionais de nacionalismo, como o de Acton, não reconheceriam o valor idêntico das
1 ACTON, Lord. Nacionalidade, in BALAKRISHNAN, Gopal. Um Mapa da Questão Nacional (org), Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p 37. 2 As outras duas eram o igualitarismo, crítico do princípio da aristocracia, e o socialismo de Babeuf, crítico da propriedade privada. 3 Acton, idem, pg 37
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diversas culturas que habitam um Estado, mas visariam seu englobamento a padrões de
conduta geralmente definidos como eurocêntricos. A rigidez procedimental de algumas
vertentes do liberalismo, seria ela mesma, um padrão ético eurocêntrico retoricamente
definido como neutro – e universal.
Por outro lado o argumento de Acton parece sustentar uma tese liberal.
Poderíamos reivindicar o princípio da legitimidade universal de direitos, não por motivos
de superioridade de raças ou de culturas (essas considerações axiológicas nunca foram o
foco da tradição liberal), mas concordaríamos com Acton por um motivo inverso do que
defende: a igualdade fundamental de direitos entre diferentes culturas no interior de um
Estado é a melhor e mais segura medida de assegurar que identidades minoritárias não
sejam perseguidas ou discriminadas.
Certo princípio da isonomia orienta: “tratar os iguais igualmente, e os desiguais
desigualmente”. Isso não responde absolutamente nada. Se a questão apresentada é como
reconhecer o direito à diferença respeitando o direito a igual cidadania, aquela
afirmativa oferece espaço a interpretações que podem variar ao infinito. Seguramente um
Estado pode se valer dessa assertiva para sanar injustiças cometidas sobre uma certa
categoria de cidadãos ou identidade cultural; mas existe o reverso dessa medalha. Sob a
égide da isonomia, o Estado nazista tratou desigualmente os desiguais judeus... Em
poucas palavras esta seria nossa problemática: como resolver do ponto de vista teórico o
dilema entre individualidade e universalidade de direitos no Estado contemporâneo no
que tange à cultura? Mas nosso trabalho não é, ainda, tão simples.
Poderíamos dar uma definição provisória de liberalismo como:
A essência do liberalismo reside em seu reconhecimento do desejo individual como fato básico de uma associação civil moderna. Não
12
há valores ou normas preponderantes a que o homem esteja completamente e permanentemente obrigado.4
Em seus escritos de juventude, Hegel afirmava que nossa identidade é formada
num movimento de luta por reconhecimento. A construção de nosso self não se daria
pacificamente num ambiente isento de contradições, mas numa atmosfera dialética,
caracterizada pelo conflito. O filósofo alemão aparentemente não perdeu a vitalidade,
pois a questão do reconhecimento ocupa cada vez mais espaço na teoria social. Desde sua
inserção definitiva no jargão teórico contemporâneo por Charles Taylor, ‘A Política do
Reconhecimento’ vem despertando a atenção de pensadores das mais variadas matizes
conceituais.
Numa sociedade permeada pela variedade cultural, identidades locais vêm
clamando como condição sine qua non de uma democracia substantiva, o reconhecimento
de sua diferença. O problema que se coloca é como o Estado deve reconhecer essa
diferença. Aqui dois argumentos ganham destaque: o multiculturalista e o liberal.
A despeito das significativas diferenças em seu interior, o argumento
multiculturalista pode ser resumido na seguinte fórmula: O Estado não é formado por um
só povo, mas por identidades culturais, distintas entre si. Os titulares dessas identidades
possuiriam maneiras peculiares de se relacionarem entre si e com o mundo que seriam
irredutíveis aos outros modos de vida; um ordenamento jurídico indivisível sobre um
território nacional não passaria de um artífice autoritário. O princípio da autonomia
cultural exigiria o reconhecimento da autonomia política em face da constituição como
4 OUTHWAITE, William & BOTTOMORE Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. Verbete liberalismo, Pg 422.
13
pré-requisito da sobrevivência desses grupos. Fariam parte desse grupo pensadores como
Will Kimlicka e Charles Taylor.
O argumento liberal, assumindo-se os riscos da sintetização, afirma que o dever
do estado é garantir os compromissos procedimentais, ou seja, assegurar a todos a
possibilidade de um igual tratamento e de desenvolverem seus planos de vida da forma
que melhor lhe aprouver. Garantem-se os direitos formais, mas os compromissos
substantivos, o que deve ser uma vida boa, fica a cargo do indivíduo. É o pensamento
comungado por Brian Barry e John Rawls, por exemplo.
Este é o objetivo deste trabalho, criticar o argumento multiculturalista a partir de
uma concepção de igualdade universal de direitos. Questão que evidencia sua
importância, num ambiente pautado pela variedade cultural, que em geral, exige um igual
reconhecimento de sua diferença.
Este trabalho é dividido em quatro capítulos. No primeiro investigamos a tradição
teórica que alimenta a “Política do Reconhecimento” e o debate liberal-comunitário na
visão de Charles Taylor. O influente filósofo canadense serve como espinha dorsal de
todo capítulo enquanto se identifica e analisa-se a tradição teórica que inspira o debate.
Analisamos a tensão entre universalidade e relativismo, que marca a pauta de direitos e o
teor cognitivo da moral na modernidade, contrapondo a tradição contratualista com uma
tradição expressivista e historicista fundada na figura de Herder. Posteriormente
investigamos Martin Heidegger em Ser e Tempo, uma obra que vai sedimentar todos o
debate em torno do sentido da identidade e o sentido do reconhecimento nos debates
teóricos contemporâneos.
14
No segundo capítulo abordamos a estrutura do desenvolvimento da moral. É a
aquilo que se compreende como moral que direciona a justificação e o teor normativo do
reconhecimento. Apresentamos ali a estrutura de desenvolvimento da moral na visão de
Axel Honneth em Luta por Reconhecimento. Este quadro no qual o reconhecimento se
realiza é divido por Honneth em três níveis. O primeiro modo de reconhecimento é a
dedicação emotiva que tem como forma de reconhecimento as relações primárias, onde
os seres humanos vivem as experiências do amor e da amizade, e que prepara o caminho
para uma espécie de auto-relação em que os sujeitos alcançam uma confiança elementar
em si mesmos,5 precedendo todas as outras formas e reconhecimento. Há um segundo
nível, o das relações jurídicas na qual os indivíduos se reconhecem como portadores de
direitos perante a sociedade e moralmente imputáveis desenvolvendo uma auto-relação
prática de auto-respeito. O modo de reconhecimento é o respeito cognitivo. Existe ainda
um terceiro modo de reconhecimento, o da estima social, que tem como forma de
reconhecimento a comunidade de valores marcada pela solidariedade. Aqui a
personalidade se realiza através do igual sentimento de honra e dignidade.
Posteriormente estudamos duas visões clássicas que vão lastrear a filosofia moral
na contemporaneidade; primeiramente Immanuel Kant, com a Metafísica dos Costumes e
A Crítica da Razão Prática (obras definitivas na fundamentação liberal de moralidade);
em seguida investigamos a visão hegeliana de razão, para ele compreendida como uma
construção a partir de um processo dialético. Depois retornamos a Axel Honneth, no
delineamento da gramática moral dos conflitos sociais. A moralidade nessa visão, só é
compreensível quando se estabelece um padrão da estrutura das relações práticas de
reconhecimento. A moral não é dada a priori, não é um imperativo universal, mas algo
5 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento, São Paulo: Ed 34, 2004, pg 177.
15
construído num ínterim de relações intersubjetivas diferenciadas. A moral só pode ser
compreendida e corretamente abordada quando situada a partir de padrões cambiantes de
vida humana.
O terceiro capítulo apresenta o argumento multiculturalista. Tem como
centro dois pensadores: Nancy Fraser e Will Kymlicka. Nancy Fraser equaciona as
questões de justiça que envolvem diversas coletividades dentro de um ambiente de lutas
pós-socialistas. Mostra que questões relativas à justiça requerem tanto redistribuição
quanto reconhecimento. A natureza da justiça política não se esgota nem no
reconhecimento legal dos problemas, nem numa redistribuição dos bens materiais. Fraser
identifica dois tipos de injustiças acompanhadas dos devidos remédios. Existe a injustiça
socioeconômica, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, esta injustiça
tem como marcas a exploração econômica (no sentido marxiano do termo), a
marginalização econômica (quando alguém é privado do trabalho, ou submetido a tarefas
degradantes) e a privação (quando é negado padrão material digno). Para esses tipos de
injustiça a solução é reestruturação político-econômica; e isso pode significar
redistribuição de renda, reorganização do trabalho, ou outras transformações na base da
sociedade que visem sanar essas deficiências. E existe a injustiça cultural ou simbólica.
Aqui a injustiça está arraigada a padrões de representação social, interpretação e
comunicação. Esse tipo de injustiça envolve dominação cultural, não-reconhecimento
(ser considerado invisível por outras representações sociais) e o desrespeito, que é ter sua
condição difamada ou estereotipada pela sociedade. Nesse caso o remédio é a reavaliação
dos padrões culturais da sociedade, a partir de uma política positiva de reconhecimento
dos direitos individuais e coletivos. Fraser trabalha com quatro tipos de coletividades
16
distribuídas entre os três tipos ideais apresentados: Classes exploradas, que precisam de
redistribuição de renda; coletividades como gênero e raça; que precisam de remédios
ambivalentes, ou seja, redistribuição e reconhecimento; e as sexualidades menosprezadas
que precisam de reconhecimento.
Em seguida apresentamos o argumento de Kymlicka. Este analisa que uma leitura
procedimental do liberalismo é incapaz de compreender a complexidade de culturas
societais como as que caracterizam as democracias ocidentais. Sociedades pluralistas
exigiriam uma compreensão multicultural de direitos que ao mesmo tempo em que
preservassem a autonomia e liberdades individuais também preservasse um espaço de
proteção às culturas minoritárias de uma sociedade. Kymlicka diferencia cinco tipos de
minorias: minorias nacionais; grupos imigrantes; grupos etno-religiosos isolacionistas;
‘méticos’ e afro-americanos. A partir dessa diferenciação, o debate multicultural pode
ser, segundo Kymlicka, redirecionado em dois sentidos: Não é mais sustentável a tese de
que justiça pode ser definida como rigidez procedimental. Afirma que a rigidez
procedimental causa desvantagens para grupos específicos. São necessárias regras
comuns a todos os indivíduos, mas que se garantam regras diferenciadas para diversos
grupos em casos isolados. Daí se conclui que o multiculturalismo da forma que foi
proposto, combate às injustiças, e não cria outras injustiças que beneficiam grupos
minoritários.
No capítulo IV expomos nossa tese central: do ponto de vista da afirmação dos
direitos, é imprescindível que se compreenda as reivindicações multiculturais como
situadas numa estrutura de desenvolvimento da moral como a apresentada por Axel
Honneth. Somente a partir do momento que se interpretem as demandas multiculturais
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como pertencentes ao rol das relações jurídicas ou de uma comunidade de valores, é
possível delimitar a responsabilidade jurídica na solução dos problemas culturais das
minorias.
A partir do momento que o multiculturalismo foi enquadrado numa estrutura
normativa da moral é possível estabelecer uma conexão entre o modelo de
reconhecimento de Axel Honneth e a idéia de razão pública como foi desenvolvida por
John Rawls em “O Direito dos Povos”. Rawls desenvolve um modelo de razão específico
para a abordagem de questões referentes ao espaço político público. São os princípios
morais e de aplicação prática da razão justamente no espaço caracterizado por Honneth
como Direito. É a aplicação da razão pública de Rawls no espaço das relações jurídicas.
Aqui há uma defesa de um núcleo entrelaçado entre o comunitarismo e o liberalismo.
Independentemente das concepções que aquelas duas tradições possuam do valor
cognitivo da moral é possível analisar conjuntamente o campo de ação de uma razão
pública na resolução de problemas do direito.
Muitas questões preconizadas pelo argumento multiculturalista são, ao nosso ver,
demandas relacionadas aos compromissos substantivos individuais, ou seja, são relativas
à forma de reconhecimento denominada por Axel Honneth de comunidade de valores.
Numa terminologia rawlsiana, poderíamos chamar esse espaço de cultura de fundo, ou
em termo característico de Jürgen Habermas, de esfera pública. A maneira mais
apropriada de organização da agenda de debates da esfera pública pela sociedade civil é,
na tese aqui defendida, a partir das condições de participação política estabelecidas por
Habermas.
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Ao se perceber o multiculturalismo como pertencente a um espectro de relações
críticas mutáveis, adotando o modelo de razão pública como princípio generalizante e
efetivo de direitos, temos então definido um modelo teórico capaz de identificar
habilmente as diferentes demandas que atingem sociedades complexas como são as
democracias constitucionais contemporâneas.
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CAPÍTULO I: BASES TEÓRICAS DA POLÍTICA DO RECONHECIMENTO (UMA
APROXIMAÇÃO INICIAL)
I.1 – CHARLES TAYLOR E A POLÍTICA DO RECONHECIMENTO: Universalismo e
Relativismo de Direitos na Modernidade
Identidade e reconhecimento são questões fundamentalmente modernas. A
preocupação em torno de como nossa autocompreensão é desenvolvida e como esse
processo é, pelo menos em parte, determinado pela ação do meio social sobre o indivíduo
é uma questão de nosso tempo. Não significa, em absoluto, afirmar que as pessoas da
Idade Média ou da Antiguidade não possuíam identidade, mas sim que a modernidade
transforma profundamente a compreensão desses fenômenos.
Seguindo a proposta apresentada por Charles Taylor em As Fontes do Self6 e em
Argumentos Filosóficos7 duas mudanças tornaram candente a discussão em torno da
identidade e do reconhecimento: a primeira é a substituição do paradigma da honra pelo
paradigma da igualdade; a segunda é o desenvolvimento da noção de identidade
individualizada.
Fala-se do paradigma da honra para exemplificar o tipo de sociedade
característico do Antigo Regime, o conceito de honra está intimamente ligado aos
privilégios sociais. A idéia de honra, característica das sociedades aristocráticas, é, com o
fim do Antigo Regime, substituída pela idéia de igualdade. Diferentemente da honra, a
6 TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. Loyola,1997. 7 TAYLOR, 2002.
20
igualdade é aqui tratada com um sentido universalista, não como direito de uma casta ou
elite política, mas como um elemento de pertencimento que possa enquadrar todos os
seres humanos numa idéia de igual respeito.
Essa transformação esconde um confronto ético que aborda a relação entre honra
e dignidade. Taylor apresenta dois modelos de ética que marcaram a articulação das
compreensões ocidentais de bem. Em primeiro lugar podemos citar a ética da honra.
Nesse modelo a preocupação com a honra é tida como a marca maior de um homem
honrado. Ela pode ser compreendida como a ética cavalheiresca. A vida do guerreiro, do
cidadão ou do cidadão- soldado é considerada superior à existência meramente privada,
dedicada as artes da paz e ao bem estar econômico.8 Um segundo modo de articulação
da compreensão do que é bom está inscrito na ética estóica; nessa visão (inspirada em
Platão) o orgulho é denunciado. A virtude não está na vida pública nem na excelência no
ágon guerreiro. A vida superior é aquela regida pela razão, sendo a própria razão
definida em termos de uma concepção de ordem, no cosmo e na alma. A vida superior é
aquela na qual a razão governa os desejos e sua inclinação para o excesso, a
insaciabilidade, e efemeridade, o conflito.9 Uma nova compreensão ética é inaugurada
com o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau articula as duas concepções
éticas anteriormente demonstradas. Concorda com a ética estóica ao denunciar que a ética
da honra torna os homens escravos da opinião do outros e vincula o respeito à
aquiescência desses valores dito honrados. Mas Rousseau não despreza completamente o
primeiro modelo de ética ao ressaltar que a honra é também importante. Rousseau realiza
essa operação articulando a igual estima de todos os cidadãos no interior de um governo
8 TAYLOR, 1997. pg 36. 9 Idem, pg 36.
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republicano que honre a todos igualmente. Sob a égide da vontade geral, todos os
cidadãos virtuosos devem ser igualmente honrados. Nasce a era da dignidade.10
A tradição política contratualista surge como um divisor de águas no que vem a
ser chamado de igual respeito. Ainda que se tenha em mente a miríade de autores
reunidos sob essa definição, poderíamos resumir esse campo como um horizonte político-
filosófico o qual reúne (como representantes mais significativos) pensadores como
Thomas Hobbes11, John Locke12, Jean-Jacques Rousseau13 e Immanuel Kant. Apesar das
diferenças entre esses pensadores (não raro abissais) alguns paralelos conceituais são
possíveis; entre eles: (1) Existe uma natureza humana comum, em todos os homens, de
todos os lugares e em todos os tempos (universalismo); (2) Essa natureza imanente e
imutável concerne ao homem certos direitos igualmente universais e inalienáveis
(jusnaturalismo14); (3) O Estado e a sociedade civil surgem a partir de um contrato entre
os homens visando à proteção daqueles direitos universais e inalienáveis.
Esse movimento teórico hegemônico no iluminismo favorece o desenvolvimento
de um ideário político jurídico identificado com o universalismo. A igualdade
fundamental entre os homens necessita de um ordenamento que equalize essa mesma
igualdade. Este é o cerne do contrato social, a articulação dos indivíduos visando à
proteção de direitos que fundamentam a concepção de Estado.
10 TAYLOR, 2002. pg 258. 11 HOBBES, Thomas. Leviatã. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural:1999. 12 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2002. 13 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. 14Segundo essa teoria, o poder do Estado tem um limite externo: que decorre do fato de que, além do direito proposto pela vontade do príncipe (direito positivo), existe um direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da sua participação desta ou daquela comunidade política. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. UNB, 1997, pg 15.
22
Thomas Hobbes deixa tal problemática evidente quando fala do bellum omnium
contra omnes, característica do estado de natureza15, onde o medo da morte violenta leva
os homens a traçarem um pacto de obediência, no qual cada um delega seus direitos
individuais, principalmente o direito de dispor da vida e dos corpos dos outros homens,
desde que tenha garantias de que seus iguais também o façam. Esses direitos são
delegados a um homem ou assembléia. Nesse pacto surge o Estado, esse deus mortal que
pacifica a sociedade, pondo em prática a única obrigação do soberano: garantir a sallus
populli (segurança do povo)16.
Hobbes realiza esse construto teórico baseado não numa pretensa desigualdade
fundamental entre súdito e soberano, mas ao contrário, fundamenta sua teoria numa
igualdade fundamental entre todos os homens:
A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto a força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação,
15 Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu futuro é incerto; conseqüentemente não há cultivo de terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da terra, nem computo do tempo, nem artes nem letras, não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo da morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1999:109). 16 Não tenho a intenção nem é o foco de meu estudo adentrar-me detalhadamente nos motivos de efetivação do contrato social para Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. A breve incursão teórica que se segue tem o objetivo de demonstrar o funcionamento e os desdobramentos teóricos ulteriores do paradigma universalista clássico.
23
quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados do mesmo perigo17.
Percebe-se que por mais que a biografia de Thomas Hobbes esteja aproximada
com o convencionalmente chamado Antigo Regime18, as premissas básicas da
fundamentação política são erigidas sobre princípios modernos, universais.
John Locke também utiliza os conceitos de “estado de natureza”, “contrato”,
“Estado”, porém, faz um delineamento distinto do anteriormente demonstrado por
Thomas Hobbes. Para John Locke, o estado de natureza não é um estado de guerra, é um
estado de relativa paz, onde os homens desfrutam de direitos naturais mais amplos que os
anteriormente defendidos por Hobbes. Na hipótese lockiana, os cidadãos já dispõem do
direito à liberdade, à segurança e a propriedade;
Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; ainda que naquele estado o homem tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não possui, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples conservação. O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultam que sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses19.
Por qual motivo, então, os cidadãos trocariam uma situação que aparentemente
não é má (estado de natureza), visando instituir outro arranjo que não parece ser bem
melhor (Estado)? Locke desfaz essa dúvida argumentando que a partir de um contrato
17 HOBBES, 1999: 107. 18 RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. São Paulo: Brasiliense, 1984. 19 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2002. Pg.91.
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entre os cidadãos o Estado surge como um árbitro para possíveis conflitos que possam
surgir. O Estado para John Locke não é a finalidade da sociedade, mas apenas um
instrumento que visa a proteção dos direitos naturais dos cidadãos através da manutenção
dos compromissos procedimentais entre eles. O Estado não é uma entidade superior à
sociedade civil, mas uma instituição que pode perder sua legitimidade tão logo
desrespeite qualquer dos direitos naturais citados.
Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.20
É a primeira grande formulação da teoria política liberal.
Uma outra transformação característica da modernidade é o florescimento da
compreensão de identidade individualizada no fim do século XVII, o ideal de
autenticidade. A concepção de uma unicidade identitária está ancorada numa visão de
que o certo e o errado não se restringem a conseqüências calculadas, mas que o bem está
relacionado a um conteúdo moral imanente ao sujeito. A moralidade tem, de certo modo,
uma voz interior21. Essa voz interior, inaugurada pela modernidade difere
qualitativamente da visão de bem dos antigos,
20 IDEM, pg. 96. 21 TAYLOR, 2002, pg. 243.
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A noção antiga do bem, quer ao modo platônico, como chave da ordem cósmica, quer na forma do bem viver a Aristóteles, estabelece um padrão para nós na natureza, independentemente de nossa vontade. A noção moderna de liberdade que se desenvolve no século XVII retrata isso como a independência do sujeito, sua determinação de seus próprios propósitos sem interferência da autoridade externa. A segunda veio a ser considerada incompatível com a primeira.22
Não se trata aqui de encontrar a fórmula do bem em si mesmo, objetivamente
perceptíveis e universalmente válidas, mas de ouvir a voz da moralidade que só é
palatável ao sujeito na sua originalidade autônoma. O igual respeito estaria atrelado ao
reconhecimento de todos em sua autenticidade.
O que o final do século XVIII acrescenta é a noção de originalidade. Isso ultrapassa o conjunto fixo de vocações, chegando a noção de que cada ser humano tem uma “medida” original e irrepetível. Somos todos chamados a viver de acordo com nossa originalidade. 23
A autenticidade faz parte de uma concepção iluminista segundo a qual os
indivíduos possuem um conteúdo moral interno imanente, uma idéia de Bem. Essa voz da
natureza dentro de nós, nos guia na direção ‘da coisa certa a fazer ’, o importante a ser
dito é que não fazemos devido a pressões externas, mas devido a nossa voz interior, que
Rousseau chamou de “sentimento de existência24”. Esse conceito ganha, porém sentido
crucial graças ao pensamento pós-Rousseau, ligado ao nome de Herder.
Herder apresentou a idéia de que cada um de nós tem um modo original de ser
humano: cada pessoa tem sua própria medida.25 O conceito de originalidade herderiano
atinge dois níveis; originalidade do indivíduo, e originalidade de um povo. Na mesma
22 TAYLOR, 1997, pg. 113. 23. Idem, 482. 24 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Devaneios do Caminhante Solitário. Brasília: UNB, 1986. pg76. 25 TAYLOR, 2002, Pg 244.
26
intensidade que cada indivíduo possui sua própria medida cada povo possui também um
caráter peculiar, seu volksgeist, devendo ser fiel a ele. O desrespeito de um povo a sua
cultura autêntica gera, na melhor das hipóteses, um estrangeiro de segunda categoria.
A natureza humana seria como um projeto a ser expresso; cada ser humano, cada
geist, seria uma possibilidade expressão. A maneira pela qual este geist exprime-se,
determina sua autenticidade ou seu fracasso. Só há uma maneira de fugir do fracasso:
obedecendo a voz da natureza que só é passível de ser sentida quando entramos em
contato com o nosso ser interior. E é partir da fidelidade a essa voz interior que devemos
nos expressar:
A individuação expressiva tornou-se um dos pilares da cultura moderna. Tanto que mal a percebemos, e achamos difícil aceitar que seja uma idéia tão recente na história humana e que teria sido incompreensível em épocas anteriores. Além disso, essa noção de originalidade como vocação não se aplica somente aos indivíduos. Herder também a usou para formular uma noção de cultura nacional. Diferentes Völker têm sua forma própria de ser e não devem traí-la macaqueando os outros. (...) Essa é uma das idéias originadoras do nacionalismo moderno.26
O princípio do igual respeito, característica central da modernidade apóia o seguinte
conflito: uma primeira noção requer que tratemos o individuo de uma maneira avessa às
diferenças. Uma segunda noção afirma que devemos promover a particularidade. A partir desse
dilema que é lançado o desafio maior da política moderna: como reconhecer o direito à diferença
respeitando o direito a igual cidadania?
26 TAYLOR, 1997, 482.
27
I.2 - ROUSSEAU E KANT: AFINIDADES (IR)RECONHECIDAS
A política do reconhecimento veio a significar duas coisas distintas, comumente
antagônicas, e inseparavelmente vinculadas. De um lado ressalta-se a política do
universalismo que enfatizou a igual dignidade de todos os cidadãos, política cujo
conteúdo tem sido a equalização de direitos e privilégios. Em contrapartida o
desenvolvimento da moderna noção de identidade, originou a política da diferença.
Todos devem ter tido reconhecido sua identidade peculiar. Eis a essência do problema e
que é talvez a maior contribuição de Charles Taylor em Argumentos Filosóficos; como
reconhecer politicamente as diferenças, a originalidade de cada identidade, numa mesma
constituição sem gerar discriminação ou favoritismos, e como universalizar a igualdade
sem suprimir as diferenças individuais?
Essa problemática se apóia em duas tradições distintas do liberalismo na teoria
política: Rousseau e Kant.
No modelo político rousseauneano três coisas são interligadas: a liberdade, a
ausência de papéis determinados, e o propósito comum. A liberdade dos cidadãos
permanece em consonância com sua igual dignidade, sem existir uma desigualdade
política fundamental. Esses cidadãos em conjunto deliberam o bem comum sob o signo
da Vontade Geral. O problema é que em nome da Vontade Geral, desde os jacobinos,
cometeram-se algumas das mais terríveis barbáries sociais. Segundo Taylor, mesmo onde
o terceiro elemento é descartado, a fusão entre liberdade igual com a ausência de
28
diferenciação e papéis tem sido o motor da supressão das diferenças individuais, como no
feminismo27.
Outra vertente da tradição democrática é apresentada por Kant. Esses modelos não
reconhecem elementos como Vontade Geral, ou diferenciação de papéis, eles visam
apenas a uma igualdade de direitos concedidos aos cidadãos. Segundo Taylor, nessa
discussão se confrontam duas visões de liberalismo. A primeira, mais radical, defende
uma pauta de direitos, na qual todos os indivíduos são considerados igualmente, é o
modelo kantiano, criticado por não abarcar as diferenças. Outra perspectiva é a de um
liberalismo mais moderado que em casos extremos estabelece metas comuns, aceita
certas diferenciações entre os indivíduos, visando justamente o reconhecimento de sua
autenticidade. Charles Taylor filia sua teoria política à essa tese.
Os pensadores tipicamente idealizados por Taylor são Kant e Rousseau. Há
comumente na teoria política contemporânea uma contraposição dessas duas figuras,
onde Rousseau e seus sucessores são usados como representantes do comunitarismo
enquanto Kant e os seus, como símbolos do liberalismo. A despeito das idiossincrasias
das duas tradições, que não temos a intenção de debater aqui, há entre as bases das duas
colunas uma afinidade eletiva mais profunda do que se imagina.
Os conceitos que servem de base da ação política para Rousseau e Kant são
respectivamente os de “Vontade Geral” e “Imperativo Categórico”. Há uma identificação
de Rousseau com o modelo decisionístico de democracia (a marca central desse modelo
decisionístico é que a deliberação política ocorreria a partir da agregação da maioria dos
votos de uma dada comunidade). Esse é o ponto de partida para se acusar Rousseau de
teórico da tirania da maioria. Esta conclusão ocorre devido a um mal-entendido dos
27 Idem, Pg 259.
29
conceitos rousseauneanos de Vontade de Todos e Vontade Geral. Para Rousseau existe
uma diferença substancial entre esses dois termos, que ele deixa bem claro nos cinco
primeiros capítulos do livro 2 de “O Contrato Social28”. Seguem-se duas citações
expressivas da diferenciação: Há comumente muita diferença entre Vontade de Todos e
Vontade Geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra ao interesse privado
e não passa de uma soma de vontades particulares29. E mais: deve-se compreender nesse
sentido que menos que o número de votos, aquilo que generaliza a Vontade é o interesse
comum que os une30. A vontade geral não é a vontade de todos ou da maioria, mas
também não pode ser caracterizada como vontade individual, seria então um substrato
ético que uniria o particular com o geral, a parte com o todo. E o que garantiria o sucesso
dessa operação? Resposta: Um elemento muito apreciado pelo iluminismo e quase
insuspeito no século XVIII; a razão. Há em Rousseau (como em todo seu contexto
histórico-filosófico) a crença de que no silêncio das paixões, pensando racionalmente, as
decisões corretas seriam alcançadas. O propósito comum existente no pensamento de
Rousseau, a partir da Vontade Geral e do bem comum, não deve ser confundido com a
quantificação de um horizonte coletivo, o conceito de Vontade Geral é o horizonte ético
compartilhado pela comunidade, e não o resultado prático.
Kant, como se sabe, possui como pedra angular de sua filosofia do direito e
política o imperativo categórico. Na “Crítica da Razão Prática” define o imperativo
categórico pela máxima: Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer
sempre como princípio de uma legislação universal.31 O imperativo categórico é um
28 In Os Pensadores, Abril Cultural. 29 Idem, Pg 91. 30 Idem, pg 97. 31 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Martin Claret, PG 40.
30
dever moral a priori da razão, definido a partir dos princípios da razão prática pura. Isso
significa dizer que os seres humanos são moralmente impelidos a agir. Essa ação é
individualmente motivada e regulada subjetivamente. Se existe uma vontade, ela pertence
a um ator, e sua manifestação é regulada pelo que Kant denomina ‘autonomia’
(capacidade de agir racionalmente sozinho). Essa é a diferença entre leis morais e
jurídicas, as morais são interiormente reguladas, as jurídicas, por sua vez, externamente.
A despeito da carga de individualismo que este conceito carrega, não podemos
afirmar que o imperativo categórico autojustifica a ação particular. O imperativo
categórico apesar de motivado e regulado subjetivamente, só pode ser avaliado em
relação ao Outro. É a capacidade de universalização e convívio numa mesma atmosfera
de vontades distintas que define a validade da ação individual.
Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação geral da vontade, trazendo em si várias regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para sua vontade; são por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é válida para a vontade de todo ser racional32.
Tanto Rousseau quanto Kant tentam superar a dicotomia entre particular e
universal, a diferença é que Rousseau o faz a partir do geral, dando primazia a ele,
enquanto Kant realiza esta tarefa do particular. O que Charles Taylor faz é utilizar o
modelo rousseauneano para justificar uma submissão do indivíduo a uma decisão
coletiva, coisa que segundo Taylor o procedimentalismo kantiano não permitiria. Aí
32 Idem, Pg. 27.
31
reside o engano conceitual de Taylor: em Rousseau quando o indivíduo obedece a uma
lei, obedece a si mesmo, pois participou legitimamente do processo de sua criação. Mais
que isso, a condição da liberdade é a obediência a essa lei, pois para Rousseau, ser livre é
obedecer às leis. No pensamento de Kant a liberdade também está sujeita a leis, haja vista
que define (como já dissemos) dois tipos de leis. A obediência às leis jurídicas também
seria condição de liberdade, pois na filosofia de Kant o Estado e o direito são a
positivação político-jurídica da lei moral, do imperativo categórico.
I.3 – TAYLOR: O DEBATE LIBERAL-COMUNITÁRIO – A questão dos Bens.
Em seu artigo “Propósitos Entrelaçados: o Debate Liberal-Comunitário”33,
Charles Taylor chama a atenção que as diferenças entre liberais e comunitários sobre a
teoria da justiça mais parece um debate entre dois “partidos”; de um lado estariam
pensadores como John Rawls e Ronald Dworkin (partido L) e do outro, pensadores como
Michael Sandel, Michael Walzer, e Alasdair MacIntyre (partido C). Apesar das
diferenças genuínas entre esses dois grupos Taylor afirma que existe também uma grande
quantidade de propósitos entrelaçados e mesmo confusão na apresentação dos termos do
debate. Segundo o autor, essa confusão ocorre porque duas questões distintas são
abordadas em conjunto, indistintamente. Taylor denomina essas questões de ‘questões
ontológicas’ e ‘questões de defesa’.
Por questões ontológicas Taylor compreende os fatores
reconhecidos e invocados para explicar a vida social. Fazem parte dos termos aceitados
33 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos, São Paulo: Loyola, 2000.
32
como últimos na ordem de dessa explicação. É o debate existente entre ‘atomistas’ e
‘holistas’. Os atomistas podem ser entendidos como individualistas metodológicos; nessa
corrente duas coisas são relevantes: (a) a ordem de explicação, você pode e deve explicar
ações, estruturas e condições em termos das propriedades dos constituintes individuais;
e em (b) a ordem da deliberação, você pode e deve explicar as ações em termos das
propriedades dos constituintes individuais. 34
Questões de defesa, por sua vez, refere-se às posições morais ou políticas
adotadas. Dentro de uma ampla possibilidade de posições podemos identificar de um lado
os defensores de primazia das liberdades e direitos individuais, e de outro extremo
defensores da primazia da vida comunitária e do bem das comunidades.35 Aqui se
encontra o debate entre ‘individualistas’ e ‘coletivistas’. Aqui podemos encontrar as
diferenças entre liberais, como Dworkin, defensores da neutralidade do Estado em
relação às concepções de boa vida adotadas pelos cidadãos, e de outros pensadores que
acreditam que uma sociedade democrática precisa de alguma definição aceita em comum
de boa vida – esta é a posição a ser defendida por Taylor.
Para exemplificar essa questão, Taylor utiliza a obra “Liberalism and the Limits
of Justice” de Michael Sandel36. Segundo Taylor esse livro é ontológico, no sentido a
pouco descrito, enquanto que a resposta que a vertente liberal da teoria política tem dado
é sobretudo uma resposta de defesa. Nessa obra Sandel demonstra que diferentes formas
de engajamento social (atomistas e holistas) demandam diferentes concepções de
identidade e de self (selves ‘libertos’ e selves situados). Segundo Taylor esse trabalho é
uma contribuição à ontologia social, e ontologicamente essas teses devem ser
34 Idem, pg 197. 35 Idem, pg 198. 36 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge, Inglaterra, 1982.
33
compreendidas. Assumir uma posição ontológica não equivale a defender coisa alguma.
Sua posição ontológica, se verdadeira, pode mostrar que a ordem social favorita de seu
vizinho é uma impossibilidade ou acarreta um preço que ele ou ela não leva em
conta.mas isso não deve nos induzir a pensar que a proposição equivalha à defesa de
alguma afirmativa.37
O que Sandel realiza, segundo Taylor, é um questionamento sobre a possibilidade
de edificar uma comunidade forte em torno da compreensão comum que faça da justiça a
principal virtude, ou se essa mesma comunidade deve definir algum outro bem que defina
a vida comunitária. Nesse ponto reside a fonte dos enganos da teoria política, quando
essas afirmações normativas são tomadas como recomendações38.
Cada posição do debate atomismo-holismo pode ser combinada com qualquer
posição da questão individualista coletivista. Há não apenas individualistas atomistas
(Nozick) e coletivistas holistas (Marx), mas também individualistas holistas (Humboldt)
– e até coletivistas atomistas.39
Taylor se considera um individualista holista. E considera surpreendente que um
posicionamento ontologicamente favorável ao holismo possa ser confundido com uma
defesa do coletivismo. Segundo o autor isso decorre de um preconceito atomista que
assola boa parte da teoria filosófica anglo-saxã. Esse liberalismo ontologicamente
desinteressado inclinar-se-ia à ignorância dessas diferenças.
Uma das explicações para essa ignorância se deve a predominância de concepções
identificadas com o liberalismo procedimental. Nessa corrente a sociedade é identificada
como uma associação de indivíduos cada um com seu ideal e com seu plano de boa vida.
A função da sociedade deve ser de facilitar esse plano e vida o máximo possível e seguir
37 TAYLOR, 2000, pg 199. 38 Idem, pg 201. 39 Idem, pg 201.
34
um princípio de igualdade.40 As éticas das sociedades procedimentais são antes uma
ética do direito que uma ética do bem. O que importa nelas é a igualdade no tratamento
dos indivíduos e a maximização dos direitos e liberdades individuais. Ela não define
aprioristicamente os bens que devem ser promovidos, mas antes define que
procedimentos devem ser adotados na promoção das preferências individuais.
Essa vertente política é comumente definida como irrealista por, segundo Taylor,
não levar em consideração as impossibilidades ontológicas e comunitárias de uma
proposta procedimental. Essa crítica se deve a ausência de uma concepção compartilhada
de bem.
A viabilidade de bens socialmente endossados pela comunidade foi levantada por
pensadores filiados a vertente cívico-humanista. Essa vertente possui como um dos
principais eixos temáticos quais as condições para a existência de uma sociedade livre.
Para esta tradição, que conta com pensadores como Maquiavel, Montesquieu e
Tocqueville, toda sociedade política exige alguns sacrifícios e requer algumas
disciplinas de seus membros41. A diferença entre os sacrifícios e disciplinas exigidos
numa sociedade livre e as mesmas exigências feitas a partir de um regime despótico e
que, no despotismo a disciplina é mantida pela coerção, enquanto que numa sociedade
livre ela é mantida pela vertu dos cidadãos. Essa vertu pode ser alcançada quando os
cidadãos enxergam as leis como uma extensão deles mesmos, como um ato de sua
própria vontade. Nesse ponto reside o que Taylor define como patriotismo. Este
patriotismo se baseia numa identificação com os outros num empreendimento comum
40 Idem, pg 202. 41 Idem, pg 202.
35
específico42. A república funciona como esse empreendimento comum que vincula os
cidadãos numa espécie de solidariedade vinculada a partir de uma história comum.
Em contraposição a esse ideário republicano, influenciado pela visão que
pensadores como Thomas Hobbes, John Locke, e Bentham ajudaram a construir, a
sociedade é compreendida como algo independente da ética republicana e dos objetivos
coletivos. Para essa visão as sociedades são estabelecidas como conjuntos de indivíduos
que objetivam benefícios individuais através da ação comum. A ação é comum, mas sua
meta permanece individual. O bem comum é obtido a partir de bens individuais, sem
deixar restos.43
Uma das raízes do pensamento atomista reside num equívoco ontológico que
ignora as diferenças entre questões para mim e para você e questões para nós. Para
Taylor uma questão pode ser para mim quando percebo algo individualmente; mas a
partir do momento que eu comunico essa percepção, ou seja, a partir do momento que eu
inicio um diálogo sobre essa percepção, ela passa a ser algo para nós. Uma conversação
não é a coordenação de ações de indivíduos diferentes, mas uma ação comum nesse
sentido forte, irredutível; ela é nossa ação.44
Mas a teoria da linguagem tayloriana ainda guarda uma outra mudança importante
que possui reflexos diretos em sua teoria política dos bens. É a passagem que a
comunicação realiza da intimidade para o espaço público. Num primeiro plano, quando
há uma comunicação, há um diálogo, uma partilha de informações que são relevantes.
Aqueles a quem comunicamos coisas fazem parte de nossa intimidade, são aqueles que
partilhamos o que é para nós. Mas a partir que essas informações relevantes tomam parte
42 Idem, pg 203. 43 Idem, pg 205. 44 Idem, pg 205.
36
na mídia e ocupam um lugar no espaço público elas mudam sua natureza. Eles deixam de
ser para mim-e-você e se tornam para-nós45. Taylor diferencia as coisas que tem valor
para você e para mim e coisas que tem valor para nós. São eles
1- Bens ‘mediatamente’ comuns; esses compreendem aqueles bens que podem
ser fruídos individualmente ou compartilhadamente. Cada momento dessa
fruição conota uma valoração distinta. Uma piada, como exemplifica o próprio
Taylor, pode ter uma significação se a leio sozinho, como pode ter outra
significação se escuto alguém contando essa mesma piada.
2- Bens imediatamente comuns; essa categoria engloba aqueles bens que
pressupõe por si mesmos um significado comum, sendo por isso mesmo mais
valiosos. A amizade é um exemplo de um bem imediatamente comum.
3- Bens convergentes; daqui faz parte a ação instrumental coletiva. Como por
exemplo a economia, a defesa nacional, a segurança; são bens coletivamente
proporcionados que não podemos desfrutar de outra maneira. Podemos falar
normalmente desses bens como ‘comuns’ ou ‘públicos’.46
As repúblicas, na tradição cívico-humanista, seriam movidas a partir dos bens
imediatamente partilhados. O cidadão observa a lei como uma representação de sua
dignidade e da dignidade de seu concidadão, imediatamente. A lei não funcionaria apenas
como um bem convergente, como um mecanismo instrumental de persecução dos
45 Para ilustrar essa passagem do artigo de Taylor poderíamos utilizar um adágio popular que diz “Todo mundo sabe; todo mundo sabe que todo mundo sabe... mas ninguém comenta”. Seria como um segredo partilhado que as pessoas evitam falar publicamente, como por exemplo um comportamento ilícito de um político: existe um ‘conhecimento’ de seus atos, mas essa interpretação passa a ser qualitativamente diferenciada sua interpretação quando esse comportamento irrompe na mídia, ou em algum fórum que o torne público. 46 TAYLOR, 2000, pg 206-7.
37
objetivos individuais. O vínculo de solidariedade com meus compatriotas numa
república que funcione se baseia num sentido de destino partilhado em que o próprio
partilhar tem valor.47
A definição do regime republicano requer uma ontologia distinta do atomismo.
Ela deve diferenciar a ação coletiva (convergente) da ação comum (imediata). A
disciplina subjacente de um regime republicano, segundo Taylor, seria a única capaz de
animar o patriotismo numa sociedade livre. A solidariedade republicana está na base da
liberdade48. A liberdade aqui é compreendida como liberdade de participação. As
instituições livres dependem da participação dos cidadãos. O modelo cívico-humanista
engloba as liberdades negativas em seu arranjo institucional, mas nesse modelo as
liberdades negativas estão comumente submetidas às liberdades republicanas de
participação. O patriotismo está associado à liberdade.
Aqui se inicia a crítica republicana ao liberalismo procedimental (críticas
endossadas por Charles Taylor): esse modelo é ontologicamente falho por entender os
indivíduos como possuidores de planos individualmente valorados e independentes uns
dos outros. E é falha quanto a uma questão de defesa por ser instrumentalmente projetada
unicamente para a busca de bens convergentes. Uma sociedade liberal pode excluir o bem
comum socialmente endossado, mas não pode excluir o direito como é comumente
compreendido. Aqui residiria outra falha do liberalismo na compreensão dos bens. O
conceito de bem pode ter duas interpretações: de um lado pode ser compreendido em
sentido amplo como o conjunto das coisas valiosas que buscamos; e pode ser
compreendido em sentido estrito como planos de vida ou modos de vida assim
47 Idem, pg 208. 48 Idem, pg 209.
38
avaliados49. Uma sociedade liberal pode não possuir um bem no sentido estrito, mas não
pode se furtar de considerar o direito como um bem em sentido amplo.
Taylor realiza uma leitura ontológica do liberalismo. Nessa leitura, o patriotismo
poderia ser conciliado com o liberalismo, a partir do momento que os cidadãos
observassem o ordenamento jurídico como um bem a se defendido em comum. Ele quer
dizer que uma defesa política do liberalismo não obriga uma visão ontologicamente
atomista. Mas na prática um liberal procedimental pode ser holista; e, mais do que isso,
o holismo captura muito melhor a prática real de sociedades que se aproximam desse
modelo ... é essencial não confundir a questão ontológica do atomismo-holismo com
questões de defesa que opõe individualismo a coletivismo.50
Taylor durante toda sua exposição, contrapõe dois grandes modelos: de um lado o
modelo ‘A’, nesse modelo há uma concentração nos direitos individuais, e num
direcionamento das ações governamentais que seja movido a partir das preferências dos
cidadãos. Esse é o núcleo que deve ser protegido. De outro lado Taylor apresenta o
modelo ‘B’; para este modelo é na participação num autogoverno que reside a essência da
liberdade. É essa liberdade que deve ser assegurada. O autor percebe esses dois modelos
como incomensuráveis. Pessoas com uma visão atomista vão se inclinar ao modelo A,
enquanto holistas vão se inclinar ao modelo B. Não interessa ao autor, nesse momento
dizer qual o modelo correto, mas refletir sobre qual desses modelos pode servir de pano
de fundo ontológico que defina a dignidade do cidadão num patriotismo viável.51
Taylor exemplifica que certas sociedades além da democracia, possuem como
base de seu patriotismo uma cultura nacional que gira em torno de instituições livres, mas
49 Idem, pg 210. 50 Idem, pg 214. 51 Idem, pg 217.
39
que também incorporam como elemento definidor de sua identidade uma língua ou
história comum. Taylor cita o exemplo do Quebec como destaque de seu argumento. Para
essa sociedade (e ele deixa claro que para muitas outras) o procedimentalismo liberal não
se adequa porque elas não podem se considerar neutra em relação a todas questões
consideradas virtuosas. Uma sociedade como o Quebec não pode deixar de se dedicar a
defesa e à promoção da língua e da cultura francesas, mesmo que isso envolva alguma
restrição às liberdades individuais. ... Um governo capaz de ignorar esse requisito ou
não estaria refletindo a vontade da maioria ou mostraria uma sociedade a tal ponto
desmoralizada que estaria próxima da dissolução.52
Taylor oferece o caso do Quebec como exemplo empírico de análise. Uma tensão
surgida quanto aos direitos naturais do Quebec quase gerou sua separação do resto do
Canadá. O Canadá estabeleceu uma pauta de direitos em 1982 (Carta de Direitos
Canadense) que alinhava todos os indivíduos do país na mesma condição jurídica. O
Quebec sentiu-se afetado, pois dispunha de uma agenda de reivindicações visando a
defesa da língua francesa. No fim das contas o Quebec conseguiu a aprovação de uma
carta de direitos especiais visando a proteção da língua francófona. Taylor avalia se essa
variação política é condizente com uma sociedade liberal. Indiscutivelmente, cada vez
mais sociedades se mostram hoje multiculturais, no sentido de incluir mais de uma
comunidade cultural que deseja sobreviver. A rigidez do liberalismo procedimental pode
rapidamente tornar-se impraticável no mundo de amanhã53.(...) Onde a natureza do bem
requer sua busca comum, essa é a razão para que ele seja uma questão de política
52 Idem, pg 220. 53 Idem, Pg 266.
40
pública54. De acordo com Taylor, a sobrevivência cultural do Quebec dependia de certas
medidas restritivas quanto ao uso de outras línguas, que não a francesa. Essas medidas
diferenciadas, não se aplicariam a problemas como pena de morte, teriam um alcance
mais limitado. Uma sociedade liberal pode dispor desses métodos de contenção das
liberdades individuais desde que haja uma boa razão para isso.
I.4 – INAUTENTICIDADE E AUTENTICIDADE EM HEIDEGGER
I.4.1 – A ONTOLOGIA DE SER E TEMPO
Martin Heidegger tem um papel fundamental na teoria política do
reconhecimento. Sua obra Ser e Tempo55 exerce uma influência decisiva não só no tema
por este trabalho abordado mas em grande parte do programa filosófico do século XX.
Heidegger se debruça sobre um problema ontológico, ou seja, o objetivo
de trabalho é a investigação das questões que envolvem o significado do ser. O
significado do ser é aparentemente uma questão enfadonha, seja pela sua banalidade ou
pelo seu caráter deveras enigmático. O próprio Heidegger reconhece que este sempre foi
um dos temas mais importantes da história da filosofia, mas surpreendentemente a
tradição filosófica só nos oferece explicações gerais. Essa questão, fundamental em seu
valor, por envolver aquilo de que em última análise estamos falando em qualquer
54 Idem, Pg 264. 55 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, 1999.
41
circunstância, foi, ao ver de Heidegger “trivializado” pela tradição filosófica que deveria
questioná-lo, aprofundar-se nele.
Sob outro aspecto um possível enfado diante da questão do ser se deve a alguns
intrigantes preconceitos. O primeiro deles vem do fato de supor o ser como o mais
universal dos conceitos que designa o que todos temos em comum, o que todas as coisas
possuem intrinsecamente. O segundo pressupõe o ser como indizível, haja vista que algo
universal como o ser que engloba todas as coisas teria um significado extremamente
vago, não havendo uma característica definitiva. Um terceiro preconceito advém que
todos já saberíamos o que é o ser, pela banalidade do verbo, que é utilizado com
naturalidade por qualquer criança.
Não se deve esquecer que esses preconceitos contra a ontologia não são
esclarecimentos, mas suposições sobre o ser, são o que Heidegger define como juízos
ontológicos, enraizados na filosofia antiga. Heidegger responde a esses juízos
ontológicos da seguinte maneira: em primeiro lugar, sobre a universalidade do conceito
do ser, o fato de ser universal não exime a característica da obscuridade, o que Heidegger
defende como o mais obscuro dos conceitos. Sobre o segundo juízo, o da indizibilidade, o
de ser indefinível, Heidegger aponta que se é indefinível é portanto diferente de todas as
entidades que interagimos na vida cotidiana, o que nos impele a diferenciar o que é ôntico
do que é ontológico. As questões ontológicas envolveriam questões sobre o ser enquanto
tal; questões ônticas diriam respeito, por seu turno a questões sobre entidades
particulares. Sobre o terceiro aspecto, se temos uma compreensão adequada do que é o
ser, não devemos esquecer que essa ‘compreensibilidade mediana’ merece um estudo
42
mais aprofundado56. Porém esse simples (simples?) ato de perguntar suscita uma algo de
muito relevante na teoria heideggeriana,57 é sobre o ato de perguntar e retomar questões
que o ser se apóia. Podemos abordá-la em cinco dimensões: (1) Aquilo sobre que se
pergunta é o ser; (2) aquilo a que se pergunta é o ente; (3) aquilo a que se pergunta deve
ser encarado como entidades específicas, ou seja, ônticas, interrogadas em seu ser; (4) o
significado do ser, aquilo que deve ser encontrado. Outra questão de grande importância
quando se questiona é saber de onde a questão provém, qual a origem da questão, que é a
chave da questão ontológica, (5) quem nós somos quando fazemos a pergunta, qual a
essência de quem pergunta?58
É no quinto aspecto que reside o problema fundamental de Heidegger. A resposta
poderia esclarecer o que seria, ou é a natureza humana. É não é de estranhar que essa
questão define o sentido de nossa própria existência, haja vista que é uma questão
permanente, ainda que passe desapercebida. O conceito que Heidegger utiliza para definir
a essência do perguntador (frager) é dasein. A compreensão do dasein e da ontologia
requer uma metodologia apropriada. Compreender é ampliar o horizonte de quem
questiona, questionar o ser requer uma postura hermenêutica. A hermenêutica do
Dasein59 consiste nas interpretações, reinterpretações e assim sucessivamente de nossas
interpretações do ser.
A hermenêutica do Dasein é ôntica e ontológica. Ela parte da explicação de
entidades particulares rumo a explicação de entidades gerais como é ontológica, partindo
56 HEIDEGGER, 1999. Pg 29 – 30. 57 IDEM, Pg 30. 58 Somos aqui devedores da clareza da obra de Jonathan Rée, História e Verdade em Ser e Tempo. UNESP, 1999. 59 IDEM, pg 69.
43
das premissas fundamentais do ser para o desvelamento de tipos particulares; ambas
entrelaçadas. Existir pressupõe ontologizar.
O Dasein não é apenas uma entidade que ocorre em meio a outras entidades. É antes uma entidade que se distingue onticamente pelo fato de que, em seu ser, é esse próprio ser que importa para ela. Mas então, a essa constituição do ser do Dasein pertence o fato de que, em seu ser, está presente uma relação dirigida para esse ser. E isso, por outro lado, significa que, de certa maneira e de forma em certa medida explícita, o Dasein entende-se a si mesmo em seu ser. É peculiar a essa entidade que, com e por meio de seu próprio ser, esse ser a ela se revele. A compreensão do ser é, ela própria, uma característica determinante do ser do Dasein. O que distingue onticamente o Dasein é que ele é ontológico60.
Quando investigamos questões ontológicas devemos lembrar que nós não
apenas investigamos o Dasein, nós não apenas temos um Dasein, mas nós também somos
um Dasein. Toda hermenêutica do Dasein também é uma hermenêutica sobre o Dasein. e
sobre o que se fundamentaria essa ontologia fundamental do Dasein segundo Heidegger?
A ontologia fundamental deve ser buscada na analítica existencial do Dasein61. A base
de análise do Dasein é a própria existência do Dasein. A existência, e a essência de quem
pergunta se desvela na existência de quem pergunta e não há outra base senão ela mesma.
Nós somos Dasein. Mas em absoluto nós produzimos seu significado livremente,
subjetivamente. Onticamente, é claro, o Dasein não é apenas o mais próximo, ou mesmo
mais próximo – nós próprios somos Dasein, cada um de nós. Apesar disso, ou
60 Idem, pg 38 61 Idem, pg 40.
44
exatamente por isso, ontologicamente ele é o mais distante.62 O Dasein é produzido na
história, na tradição. E é, segundo Heidegger, numa compreensão equivocada de
historicidade que reside o erro na compreensão de nós mesmos.
Todos nascemos dentro de uma tradição. Essa tradição nos fornece uma
linguagem própria, fruto do desenvolvimento histórico. Quando nos expressamos,
utilizamos um legado de incontáveis gerações que nos antecederam. Cada tradição é
única, e seu legado um tesouro. A identificação com um historicismo herderiano para por
aqui. Pois se por um lado Heidegger reconhece que a tradição é um tesouro cultural, pois
revela o que cada povo possui em sua unicidade. É uma compreensão errônea dessa
mesma tradição que impede o Dasein de atingir sua autenticidade. Quando nós
investigamos uma tradição onticamente, apreendemos em relação a um determinado
modo temporal, o presente. Isso poderia ser traduzido como observar o desenvolvimento
da história linearmente, como se a fidelidade a um certo povo, a uma determinada
tradição cultural, obrigasse sua celebração. Essa celebração da tradição seria perniciosa
pois impediria o Dasein de se ampliar. Esqueceria o futuro celebrando o passado. O que a
primeira vista, ou mesmo sob a ótica do historicismo herderiano seria a marca da
autenticidade, aqui é justamente seu oposto. Herdar uma tradição não é o mesmo que
celebrá-la, muito menos negá-la. Consistiria em abri-la ao futuro.
O Dasein, explicitamente ou não, é seu passado. E não apenas no sentido de que seu passado está como que arrastando atrás dele, e que o que passou pertence ao Dasein como uma propriedade ainda existente que por vezes tem sobre ele efeitos posteriores. O Dasein “é” seu passado na maneira de seu ser que, falando grosso modo, a cada vez “acontece” a partir de seu futuro... Seu próprio passado – e
62 Idem, pg 42.
45
isso significa sempre o de sua “geração” – não segue atrás do Dasein, mas já vai sempre à frente dele.63
1.5 – CONCLUSÃO: Limites da Tese Tayloriana
A política do reconhecimento tayloriana suscita uma série de críticas. A mais
candente delas é, talvez, a tensão existente entre ideal de autenticidade, universalismo de
direitos e as liberdades individuais que caracterizam o liberalismo. Esse problema, que
pensadores como Charles Taylor discutem, traz à tona um conflito teórico oriundo das
bases do pensamento moderno. A aqui não são apenas dois conceitos que se contrapõem,
e se refutam, mas duas tradições que exercem uma relação complexa de afinidades e
distanciamentos.
Charles Taylor argumenta que onde a natureza do bem requer sua busca comum,
essa é a razão para que ela seja uma questão de política pública64. Talvez este seja o
ponto mais controverso da tese de Taylor. Não exatamente pela declaração em si, mas
principalmente quando faz questão de conciliar liberalismo com afirmações do tipo
natureza do bem e busca comum.
O arcabouço teórico utilizado por Taylor é uma associação entre o pensamento
herderiano e o liberalismo político. Taylor evidencia a importância da autenticidade na
formação da identidade moderna, e esta autenticidade individual é colocada lado a lado
63 Idem, pg 48. 64 Taylor, Charles. Argumentos Filosóficos. Pg 264. Taylor faz essa afirmação visando justificar que a natureza do bem do Estado do Quebec dependia da proteção da língua francesa por um dispositivo constitucional. Vide sua classificação dos bens.
46
com a autenticidade coletiva, como faz Herder. Enquadrar um indivíduo ou coletividade
em formas de vida que não sejam fiéis a sua originalidade única é como lançar o Dasein
numa existência inautêntica. A defesa da autenticidade de um “Dasein social” pode ser
considerada um bem comum, justificando inclusive, a subordinação dos direitos
individuais em nome de políticas públicas que visem a manutenção daquele objetivo.
O que torna o argumento de Taylor problemático não é exatamente a asserção
acima, mas sim sua conciliação com o que ele vem a chamar de liberalismo político. Já
vimos que Taylor expõe dois tipos de liberalismo; o liberalismo 1 que é rigidamente
procedimental, e o liberalismo 2, mais atenuado, defendido por Taylor. Segundo Taylor
aquele liberalismo de tipo 1, que universaliza direitos e deixa questões pertinentes a
identidade cultural, só para dar um exemplo, a cargo do indivíduo, seria ineficiente para
tratar os problemas de sociedades complexas como as contemporâneas.65
Quando Taylor utiliza conceitos como natureza do bem e busca comum ele não
apenas ressalta sua dívida com uma tradição historicista, mas acaba contradizendo
conceitos basilares de qualquer corrente que se diga liberal.
Bem comum é um conceito extremamente problemático na tradição do
liberalismo político desde que Schumpeter escreve Capitalismo, Socialismo e
65 Jürgen Habermas esclarece o texto de Taylor da seguinte maneira: Com isso não se deve permitir ao Estado (no sentido do liberalismo 1) que ele persiga quaisquer outros fins coletivos a não ser garantir a liberdade individual ou o bem-estar e segurança pessoal de seus cidadãos. Ao contrário, o modelo alternativo (no sentido do liberalismo 2) espera do Estado que ele em geral garanta, sim, esses direitos fundamentais, mas que além disso também se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma “determinada nação, cultura, ou religião, ou então de um número limitado de nações culturas e religiões.” HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2001; pg 244.
47
Democracia. 66 Seguindo um programa de forte matiz weberiana, feriu de morte o que
denominou de Doutrina Clássica da Democracia, assim resumida por Schumpeter:
A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição: o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo.67
Nesse modelo de democracia, há um pressuposto que os indivíduos são capazes
de chegar ao discernimento do que é socialmente bom, ou mal, através da razão. Esta
razão, por sua vez emanaria de cada consciência individual no silenciar das paixões, daí
extrair-se-ia um substrato ético, comum a todas as consciências. Todas as deliberações
fundadas nesse princípio resultariam no bem comum, ou pelo menos não seriam
contrárias a ele. Schumpeter apresenta três argumentos centrais visando a superação
dessa doutrina. O primeiro deles é que não existe algo que seja o bem comum unicamente
determinado,68 ou seja, não existe um bem que as pessoas concordem racionalmente.
Para pessoas diferentes o bem comum significa necessariamente coisas diferentes.
O segundo argumento consiste que ainda que o bem comum signifique o mesmo
para diferentes pessoas, isso não significaria respostas igualmente definidas para
questões isoladas69. Mesmo havendo certas concordâncias, em relação ao suprimento de
uma necessidade, a estratégia de solução variaria ad infinito.
66 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar, 1984. 67 Idem, 313. 68 Idem, pg 314. 69 Idem, pg 315.
48
A terceira objeção, em face dos argumentos apresentados anteriormente, é que
não existe por assim dizer uma vontade geral que possa buscar esse bem comum. O bem
comum, não é algo simplesmente inexistente, mas não pode ser perseguido por que não
há uma vontade articulada que possa buscá-lo. Não existe, segundo Schumpeter uma
vontade geral articulada por parte dos cidadãos que pudesse buscar o bem comum.70
Mesmo atentando para a diferença entre posições ontológicas e questões de
defesa, Charles Taylor distancia sua posição ontológica e sua defesa política do
liberalismo. Um dos argumentos basilares do liberalismo é que na defesa dos direitos
individuais reside o cerne da democracia. Taylor foge dessa racionalidade; num artigo
intitulado Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade,71 Melo demonstra que a
argumentação tayloriana se afasta do liberalismo (Melo o compara ao liberalismo de
Rawls) tanto por questões ontológicas (Rawls seria um defensor do atomismo) quanto se
afastaria do liberalismo por seu posicionamento político. Melo argumenta que entre o
modelo da participação ativa e o da “cidadania via judicial” – centrado na proteção de
direitos – Taylor prefere o primeiro.
Taylor compreende a cultura, assim como Herder72, e, porquê não dizer,
Heidegger, como linguagem. A formação da linguagem se dá em meio a uma rede de
interlocução.
Este é o sentido em que não se ser um self por si só. Só sou um self em relação a certos interlocutores: de um lado, em relação aos parceiros
70 Idem, pg 313. 71 MELO, Marcus André. Republicanismo, Liberalismo e Racionalidade. Lua Nova, 2002; n
55-56, pg 57-84. pg 68. 72 Taylor has been one of the principal exponents of this herderian vision of language in Anglo-American philosophy. BENHABIB, 2002; pg 55.
49
de conversação que foram essenciais para que eu alcançasse minha auto-definição; de outro, em relação aos que hoje são cruciais para a continuidade da minha apreensão de linguagens de autocompreensão – e, como é natural, essas classes podem sobrepor-se. Só existe um self no âmbito do que denomino “redes de interlocução”.73
Não faz sentido falar de self fora de seu contexto lingüístico. Um self só pode ser
autêntico, só pode existir, dentro dessa rede de interlocução. A preservação dessa rede de
interlocução é por sua vez condição sine qua non da autenticidade individual. Defender a
comunidade lingüística é tão importante quanto defender os direitos subjetivos do
indivíduo. Esta é uma razão para que esta defesa seja passível de uma política pública que
a proteja. O bem comum, aqui compreendido, é a casa comum, é a defesa da rede de
interlocução, compartilhada por um povo ou grupo cultural, por conseguinte – como é a
língua francesa para o Quebec.
O que Taylor não atenta é que no seio daquelas redes de interlocução podem
existir conflitos individuais. A afirmação de uma política cultural ou nacional, pode
muito comumente, digladiar-se com políticas feministas por exemplo. Ou algo muito
mais elementar, não necessariamente organizado e gritante, mas que é um elemento
fundante do moderno Estado democrático de direito: Um indivíduo, ao mesmo tempo em
que possui o direito de perpetuar sua comunidade, sua tradição cultural, tem o direito de
sair dela, de negá-la – se assim o desejar74. A vinculação numa tradição cultural não é
73 TAYLOR, 1997, pg 55. 74 Seyla Benhabib em “The Claims of Culture”, por sua vez, questiona:It’s both theoretically wrong and politically dangerous to conflate the individual’s search for the expression of his/her unique identity with politics of identity/difference. The theoretical mistake comes from homology drawn between individual and collective claims, a homology facilitaded by the ambiguities of the term recognition. Politically such a
50
perpetuada por uma obrigação jurídica, mas como Habermas salienta: Normalmente, as
tradições culturais e as formas de vida que aí se articulam reproduzem-se ao convencer
do valor de si mesmas os que as assumem e as internalizam em suas estruturas de
personalidade; ou seja, elas se reproduzem ao motivar os indivíduos a uma apropriação
e continuação produtivas de si mesmas.75
move is dangerous because it subordinates moral autonomy to movements of collective identity; I would argue that the right of modern self to authentic self-expression derives from the moral right of the modern self to the autonomous pursuit of the good life, and not vice-versa. Princeton, 2002; pg 53.
75 HABERMAS, 2001, pg 250.
51
CAPÍTULO II: A ESTRUTURA DE DESENVOLVIMENTO DA MORAL
II.1 – LUTA POR RECONHECIMENTO; Ética e Moral
Nancy Fraser observa que questões pertinentes à justiça dividem teóricos em dois
campos distintos, resultantes de variadas compreensões das relações entre moral e ética,
direito e bem76. Essa divisão reflete posicionamentos que preconizam uma visão ‘moral’
(tradição baseada em Kant), e outros que subsidiam uma visão ‘ética’ (de inspiração
hegeliana). Liberais, insistem que a justiça é sobretudo uma questão de direito, antes de
ser uma questão de bem. Comunitaristas ressaltam a incoerência de uma visão
universalmente válida de moral que independa de uma sistematização ética dos bens.
Immanuel Kant defende que a moral é uma atitude universalista que permite que tratemos
a todos de maneira igual, como se fossem seres em si mesmos. Diante dessa atitude
universalista da moral, a ética seria um comportamento específico, um ethos,
axiologicamente valorado a partir de sua proximidade com a razão prática universal.
Honneth realiza uma inversão desse princípio, afirmando que Kant falha ao não explicitar
a finalidade da moral concatenada aos objetivos práticos do ser humano. Isso significa
dizer que a realização moral estaria submetida a esferas de interação social. Os princípios
morais dependem das condições historicamente cambiantes da vida boa, isto é, das
atitudes éticas77.
76 FRASER, Nancy. Recognition Without Ethics? Theory Culture & Society 2001 (SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18(2-3) 21–43. 77 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. São Paulo: 34; Pg270.
52
Honneth segue um programa analítico de matiz hegeliana, onde a identidade é
formada dentro de um processo de interação simbólica. Nosso self é definido em grande
parte, de acordo com as características que nosso meio nos condicionou a nos auto-
atribuir. Dentro dessa intersubjetividade, a luta por reconhecimento tem de ser entendida
como um quadro interpretativo crítico de processos de evolução social78.
Este quadro no qual o reconhecimento se realiza é divido por Honneth em três
níveis. O primeiro modo de reconhecimento é a dedicação emotiva que tem como forma
de reconhecimento as relações primárias, onde os seres humanos vivem as experiências
do amor e da amizade, e que prepara o caminho para uma espécie de auto-relação em
que os sujeitos alcançam uma confiança elementar em si mesmos,79 precedendo todas as
outras formas e reconhecimento.
Há um segundo nível, o das relações jurídicas na qual os indivíduos se
reconhecem como portadores de direitos perante a sociedade e moralmente imputáveis
desenvolvendo uma auto-relação prática de auto-respeito. O modo de reconhecimento é o
respeito cognitivo.
Há um terceiro modo de reconhecimento o da estima social, que tem como forma
de reconhecimento a comunidade de valores marcada pela solidariedade. Aqui a
personalidade se realiza através do igual sentimento de honra e dignidade.
Os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e como capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau de auto-realização positiva cresce com cada nova forma de
78 Idem, Pg 269. 79 Idem, Pg 177.
53
reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir-se a si mesmo sujeito: desse modo, está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do auto-respeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da auto-estima80.
Essa luta por reconhecimento enquanto força moral enquadrada num sistema de
eticidade, não deve ser compreendida como um progresso linear. Enquanto teoria crítica,
esse processo se desenvolve também, a partir de um quadro de desrespeito. Nas relações
primárias se encontra ameaçada a integridade física pelos maus tratos e a violência; nas
relações jurídicas a integridade social se encontra ameaçada pela privação de direitos e
pela exclusão social; na solidariedade a honra e a dignidade pela degradação e pela
ofensa.
II.2 – KANT E A TEORIA MORAL
Kant afirma, na Crítica da Razão Pura81 que a razão não é constituída apenas de
uma dimensão teórica, mas também de uma dimensão prática que vem a ser seu objeto.
Desta feita, a razão criaria o mundo moral através de sua ação. Para dar conta desse
problema, ou seja, como a razão interage com o mundo prático circunscrito na moral
Kant escreve duas obras: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”82 e “A Crítica da
Razão Prática.”83
80 Idem, Pg 272. 81 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. 82 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002. 83 Kant Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martin Claret, 2003.
54
Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant observa a necessidade de
formular uma teoria da moral que seja independente da ação empírica. Aqui é ressaltada a
necessidade de estabelecer um padrão de conduta que tenha como elemento fundante e
justificável por si só, o que ele define como imperativo categórico. A única necessidade
da razão seria obedecer ao comando de si mesma, levando em consideração a liberdade
como pressuposto da vida moral.
Devo agir sempre de tal maneira a que eu possa querer também que a minha máxima torne-se uma lei universal. Aqui, o que serve como princípio da vontade ... é a mera conformidade à lei universal enquanto tal (sem tomar por base qualquer lei determinada que prescreva ações particulares).84
O que está em jogo não é a demonstração empírica desse conceito, mas mostrar
como o imperativo categórico deve ser o móbil de toda ação moralmente impelida.
Em A Crítica da Razão Prática, Kant realiza uma inversão do método da obra
anterior85. Se na Fundamentação da Metafísica dos costumes a vida moral aparece como
um postulado para o desenvolvimento da liberdade, em A Crítica da Razão Prática, a
liberdade é analisada como o pressuposto da vida moral. Kant observa que a lei moral (o
imperativo categórico) é proveniente, ele mesmo da idéia de liberdade. A razão, em seu
estado mais puro, é, dessa maneira, fruto da razão prática. Mas não podemos confundir
razão prática com experiência sensível. O que existe de empírico na experiência moral, os
84Kant, 2002, pg 25. 85 CHAUÍ, Marilena. A obra de Kant (in) Kant, 1999, op cit.
55
valores que são abstraídos da vivência cotidiana, não determinam o conteúdo da razão,
mas dependem dela. É a razão prática que valora os fatos cotidianos.
Esta razão prática funcionaria a partir do que Kant denomina princípios práticos.
Estes princípios práticos estariam divididos em máximas morais e leis morais (ou leis
práticas). As máximas morais seriam critérios subjetivos, de avaliação da realidade e só
dependem da vontade do indivíduo, só seriam válidas enquanto relacionadas à ação
individual. Poderiam ser identificadas com uma conduta ética particular. As leis morais,
contrariamente àquelas, teriam caráter universal, seriam objetivas, tendo então, validade
para qualquer ser racional.
São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para a sua vontade; são por outro lado, objetivos, ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser racional.86
Essas leis morais, devido ao seu caráter universal, não poderiam ser geradas por
fatos empíricos (são leis a priori). Portanto eximidos de seu caráter empírico elas só
poderiam existir no plano formal. A lei prática, assim é livre, não está determinada pela
existência física, o que faz com que lei prática e liberdade caminhem lado a lado.
O conjunto daquelas leis práticas forma o que Kant chama de imperativo
categórico. Kant faz questão de diferenciar o imperativo categórico dos imperativos
hipotéticos. Os imperativos hipotéticos seriam mandamentos subordinados a ações
específicas, diferentemente dos imperativos categóricos que são universais. Os
86 KANT, 2003, pg 27.
56
imperativos hipotéticos seriam como condições necessárias para se atingir um fim
específico (por exemplo: se queres passar de ano, estude).87 O imperativo categórico por
sua vez conteria apenas um enunciado formal da razão.
Nesse momento se permite possível delinear a noção kantiana de bem, que Kant
diferencia do agradável. O agradável é uma condição empírica, enquanto o bem seria
determinado aprioristicamente, de acordo com sua proximidade à lei moral, a imperativo
categórico.
O conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (para qual esse conceito aparentemente deveria servir de fundamento) mas apenas (como ocorre também aqui) segundo essa lei e por ela.88
Kant analisa então quais os motivos que levam a ação moral, ou seja, os motivos
subjetivos que fazem os indivíduos agirem de acordo com a lei moral. Kant argumenta
que, ainda que a ação seja empírica, ela não tem uma natureza empírica. A natureza da
ação moral seria a própria moral compreendida como observância à lei. O respeito à lei é
o principio da própria moralidade. O essencial de todo valor moral das ações consiste em
que a lei moral determina imediatamente a vontade.89
87 Idem, pg 28. 88 Idem, pg 72. 89Idem, pg 82.
57
II.3 – HEGEL E O SISTEMA ÉTICO
Semelhantemente a Kant, Hegel é um racionalista. Este também acredita que a
razão, entendida como conjunto de normas e condições universalmente válidas, deve
governar a realidade. Mas, para Hegel, a razão não é um fato e sim uma tarefa.
Hegel defende que esse governo da razão sobre a realidade não é possível
enquanto a realidade não tenha se tornado racional. Essa racionalidade não é algo pré-
estabelecido a priori, como a razão prática kantiana, mas sim algo que só é possível
quando o sujeito irrompe na natureza e na história.
A substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só na medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou na mediação consigo mesmo tornar-se o outro.90
A realidade para Hegel é compreendida como um processo, onde o Ser é a
unificação dos processos contraditórios onde se desenvolve e no qual pode ser
compreendido. Algo interessante a ser notado é que, para Hegel, nem tudo que existe é
real. As coisas existentes só são reais quando se comportam como o a mesma coisa no
interior de suas relações contraditórias e no desenvolvimento de suas potencialidades.
Para citar um exemplo, podemos ter em nossas mãos uma semente de uma planta
qualquer; obviamente que essa semente existe, mas sua realidade não “é” nem a planta,
90 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. pg 35.
58
nem a semente nem seus possíveis frutos isoladamente, ela é, sim, a totalidade do
movimento que vai desde a semente, passando pela planta até sua destruição.
Mas algo diferencia qualitativamente a planta do homem. O homem tem a
possibilidade de compreender esse processo de desenvolvimento. Só o homem tem a
consciência do movimento de transformação, daquilo que é e das possibilidades do que
pode vir a ser. Essa é a característica básica da existência humana, a percepção e
atualização de suas potencialidades à razão. O mundo real não é aquele que aparece
fenomenicamente, mas aquele que é compreendido pelo pensamento racional.
Ainda há outra diferença entre um homem e uma planta. A finalidade de ser
planta já está contida desde a semente. O homem por sua vez, além de compreender o
processo no qual sua vida se movimenta, tem a possibilidade de desenvolver suas
potencialidades livremente à luz da razão.
O homem é para si tão somente como razão formada, que a si mesma já fez o que
é em si: unicamente essa é a sua realidade efetiva. Mas tal resultado é, ele próprio,
imediatamente simples, pois é a liberdade consciente-de-si que repousa em si e não pôs
de lado a oposição para deixa-la abandonada, mas, ao contrário, reconciliou-se com ela.
O que acaba de ser dito pode também se exprimir da seguinte maneira: a razão é o agir de acordo com um fim.91
A razão passa a ser uma força significante quando aparece na realização das
potencialidades do sujeito. A razão é uma força histórica (Geist). Não existe para Hegel
91 HEGEL, G. W. F. Coleção Os Pensadores. Abril Cultural 1999. pg 304.
59
uma unidade imediata entre razão e realidade. Isso só é possível quando o sujeito molda a
realidade pela razão, através da razão. Diferente da razão transcendental kantiana a razão
para Hegel só faz sentido quando enquadrada num processo histórico – que se desenvolve
no conflito, na contradição.
O mundo humano não começa com uma luta entre a natureza e o indivíduo. Para
Hegel o indivíduo, assim como a razão, não é algo a priori na existência, mas um produto
tardio na história.
No processo de desenvolvimento humano e de sua eticidade a primeira forma que
a consciência assume é a comunidade (Allgemeinheit), essa comunidade apesar de nutrir
uma união imediata entre o sujeito e objeto ainda não é racional. É essa união entre
sujeito e objeto que Hegel denomina consciência.
Nesse primeiro estágio, não há uma consciência individual, mas ao contrário, uma
consciência universal, encontrada no que Hegel denomina como consciência de grupo
primitivo. Aqui todas as individualidades (sensações, sentimentos, conceitos) são
determinadas pela consciência comum, pelo que é coletivo, e não pela individualidade. A
consciência é determinada pelo que é universal, e não pelo que é particular.
Mas mesmo nessa unidade continua a existir oposições. A própria consciência só
pode existir mediante a oposição aos objetos dessa consciência, ainda que essa oposição
só exista no plano da subjetividade.
O mundo humano se constrói a partir de uma serie de integração de opostos. O
segundo estágio é caracterizado pela oposição do individuo em relação aos outros
indivíduos. O terceiro estágio é marcado pela união destes opostos numa na integração
60
entre o sujeito e o objeto. Esses três estágios possuem três diferentes meios de integração:
a linguagem, o trabalho e a propriedade.
SUJEITO MEIO OBJETO
1 CONSCIÊNCIA LINGUAGEM CONCEITOS
2 INDIVÍDUOS OU GRUPO
DE INDIVÍDUOS
TRABALHO NATUREZA
3 NAÇÃO; COMUNIDADE
DE INDIVÍDUOS
PROPRIEDADE NAÇÃO; COMUNIDADE
DE INDIVÍDUOS
(Fonte: MARCUSE, 2004, pg 75.)
A linguagem é o meio pelo qual se processa a primeira integração entre o sujeito e
o objeto. A linguagem é, portanto a primeira comunidade real, por ser objetiva e
compartilhada por todos os indivíduos. Mas se por um lado a linguagem é o primeiro
meio de integração entre o sujeito e o objeto, por outro também se mostra como o
primeiro meio de individuação. Ao nomear os objetos que o rodeiam, o ser também
determina seu território lingüístico. A linguagem permite uma tomada de posição do
indivíduo contra seus semelhantes, de seus desejos contra os desejos de seus semelhantes.
Os antagonismos resultantes da oposição entre os indivíduos são integrados no
processo de trabalho. O trabalho se torna o processo condicionante das formas de
comunidade subseqüentes: a família, a sociedade civil, e o estado.
A primeira forma de integração determinada pelo trabalho ocorre na família. O
trabalho une a família através da propriedade familiar dos objetos necessários à sua
61
subsistência. Mas não existe apenas uma família proprietária, existe então um conflito
entre grupos de famílias proprietárias. Nesse estágio os objetos sofreram uma
apropriação por parte dos indivíduos, fazem parte de sua propriedade atual ou potencial.
Os objetos foram incorporados ao mundo subjetivo dos indivíduos. Quando os homens
fabricam os objetos, organizam-no como parte integrante de sua personalidade. Integrar
os objetos significa instalar a natureza na história. É a luta de vida e de morte em torno do
reconhecimento dos direitos à propriedade que marcam o segundo estágio do
desenvolvimento da sociedade. A história passa a ser história humana.
É o advento das diversas unidades familiares que inaugura a luta pelo
reconhecimento mútuo de seus direitos. Quando a propriedade passa a constituir parte da
personalidade humana, sua defesa passa a ser um elemento fundamental da manutenção
do indivíduo como indivíduo. Essa oposição só pode vir a ser superada quando os
indivíduos puderem ser integrados na comunidade da nação.
É nesse processo de instauração da propriedade privada que a unidade familiar se
converte na sociedade civil. Um dos objetivos do trabalho na sociedade civil é a produção
de mercadorias. Hegel ressalta o caráter do trabalho e da mercadoria no contexto de uma
sociedade capitalista e como isso pode degenerar e individualismo.92 Mas o efeito básico
92 Em muitos momentos Hegel se aproxima da compreensão marxiana desses fenômenos. Marx denominava por fetichismo o processo pelo qual uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a força fantasmagórica de uma relação entre coisas (ver O Capital. Bertrand Brasil, 1989. pg 81). A matéria é humanamente transformada pelo trabalho, e convertida em mercadoria. Ao se converter em mercadoria esta é valorada de acordo com outras mercadorias. O trabalho, individualmente produzido, é socialmente trocado. Mas essa troca não é protagonizada pelo indivíduo, é, antes de tudo, uma relação entre os objetos. São as relações entre mercadorias que moldam a estética do capitalismo para Marx. O valor de troca da mercadoria solapa seu valor de uso, reificando, portanto, as esferas de interação humana. O centro da sociedade deixa de ser o humano e se torna a mercadoria, a coisa. Antes de uma relação sujeito-sujeito, vemos uma relação entre mercadoria-indivíduo, objeto-sujeito e mercadoria-mercadoria, objeto-objeto.
62
desse processo para a eticidade é que a sociedade civil inaugura um momento de direitos
individuais protegidos pelo estado. Esses direitos tem como primeiro caráter a
imputabilidade individual do indivíduo, defendem sua autonomia; mas por outro aspecto
são universais, pois fazem que, com esses direitos os indivíduos não sejam responsáveis
apenas perante si mesmos, mas por toda comunidade.
II.3.1 – RECONHECIMENTO NA DIALÉTICA DO SENHOR E DO
ESCRAVO
É nessa imputação dos indivíduos perante os outros indivíduos que reside a força
e a grande potencialidade do estado. É a idéia de razão, aliada à idéia de liberdade, que
podem integrar a universalidade com a individualidade. A integração racional e livre do
indivíduo na universalidade de sua individualidade só é possível no estado. Essa é a
ilustração presente na dialética do “Senhorio e da Escravidão”.
No capítulo sobre a dialética do senhor/escravo o autor alemão discorre a respeito
do processo de constituição da consciência de si, argumentando que nesse procedimento
a consciência termina por constituir os objetos para si, reconhecendo como seus.
Segundo Hegel:
A dissolução daquela unidade simples é o resultado da primeira experiência; mediante essa experiência se põem uma pura consciência-de-si, e uma consciência que não é puramente para si, mas para
63
um outro, isto é, como consciência essente, ou consciência na figura da coisidade.93 (grifo do autor)
Mais adiante o arremate de Hegel é basicamente esclarecedor:
São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo.94
Neste ínterim, a dialética do senhor e do escravo é realizada porque o senhor só é
senhor porque é vitorioso e assim realiza seu desejo de ser reconhecido como tal pelo
escravo, sobre o qual tem o poder efetivo da vida e da morte.
Todavia, como boa relação dinâmica e dialética que é, o escravo não é um
elemento meramente passivo. É a consciência do escravo que reconhece o senhor como
tal; este, em virtude disso, necessita do outro para afirmar-se e se manter como o senhor.
O escravo, dependente em princípio do senhor, torna-se senhor da consciência de seu
próprio amo.
Ou seja, esta relação como nos infere Herbert Marcuse, “não é de modo algum
uma relação de cooperação harmoniosa entre indivíduos livres que na busca de seus
próprios interesses promovem o interesse comum.”95
93 HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Vozes, 2002. pg.147. 94 Idem, ibidem. 95 MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Paz e Terra 5 ed, 2004. p. 107-8
64
Muito pelo contrário, o que acontece é uma ‘luta de vida ou morte’entre
indivíduos em essência diferentes, sendo um deles o “senhor”, enquanto o “outro” o
escravo.
Como o indivíduo só pode realizar-se, tornar-se o que é, através de outro
indivíduo, sua existência consiste neste “ser-por-outro”. Para tanto, faz-se mister, vencer
esta luta, a qual é o único meio de chegar à autoconsciência, ou seja, ao conhecimento de
suas potencialidades e à liberdade de poder realizá-las.
O autor desenvolveu a relação entre a condição do senhor e do escravo como uma
relação em que cada um dos termos reconhece que tem sua essência no outro, só atinge
sua verdade por meio do outro.
Nas palavras hegelianas, temos:
O duplo sentido do diferente reside na [própria] essência da consciência-de-si: [pois tem a essência] de ser infinita, ou de ser imediatamente o contrário da determinidade na qual foi posta. O desdobramento do conceito dessa unidade espiritual, em sua duplicação, nos apresenta o movimento do reconhecimento.96
Em sendo assim, ao tratar da autoconsciência, Hegel reassume a análise da relação
entre o indivíduo e o mundo, começada ainda no System der Sittlichkeit97 e na Filosofia
Jenense do Espírito.
O homem descobrira que sob a aparência das coisas sua própria
autoconsciência estava escondida. A partir disso, ele resolve realizar esta experiência,
96 HEGEL, G.W.F. Op. Cit., p.143. 97 Sistema de Eticidade.
65
para provar a si mesmo que é senhor deste mundo. Contudo, a verdade da
autoconsciência não é o “Eu” mas o “Nós”, o eu que é um Nós e o Nós que é um eu.98
II.4 – HONNETH E A GRAMÁTICA MORAL DOS CONFLITOS SOCIAIS
Axel honneth afirma que há uma mudança significativa entre os escritos
hegelianos da fase de Jena, e seu escrito posterior, a Fenomenologia do Espírito. Na visão
de Honneth, Hegel deixa inacabado o modelo de luta por reconhecimento antes iniciado.
Hegel daria mais importância à denominada filosofia da consciência do que a um
programa acabado de eticidade. Hegel confere muito mais importância à relação dos
indivíduos com o estado do que a uma relação de intersubjetividade. Hegel estaria mais
centrado na análise da formação do espírito (Geist) do que na observação de como os
indivíduos interagem e se reconhecem entre si.
Hegel não pode senão desenvolver a esfera de eticidade com base na relação
positiva que os sujeitos socializados entretêm, não entre si precisamente, mas com o
Estado, na qualidade de corporificação do espírito; são os hábitos culturais fundados em
tal relação de autoridade que assumem inopinadamente em sua abordagem o papel que,
na verdade teriam de ser desempenhados por certas formas extremamente exigentes de
reconhecimento recíproco, num conceito de eticidade próprio da teoria do
reconhecimento.99
98 MARCUSE, Herbert. Op. Cit., p. 108. 99 HONNETH, 2003; pg 109.
66
O conceito de eticidade torna-se uma forma do espírito e não um modelo exigente
de intersubjetividade. Hegel não compreende a esfera do estado enquanto lugar onde os
indivíduos exercem sua individualidade, mas antes como a finalidade do indivíduo. Os
cidadãos não exercem sua liberdade, ou seu reconhecimento mútuo no estado, mas o
estado que denota o que deve ser reconhecido e as formas quais os indivíduos devem
socializar-se.
A Fenomenologia do Espírito deixa para a luta por reconhecimento, visto antes
como força motriz da moral onde a consciência se realiza através de todas as etapas a
função única de formar a autoconsciência100. Essa ilustração é evidente na dialética do
Senhor e do Escravo, a luta entre sujeitos que pugnam por reconhecimento é ligada tão
intimamente à experiência da confirmação prática no trabalho que sua lógica específica
acabou quase saindo inteiramente de vista.101 Daí em diante, o papel da
intersubjetividade na formação da personalidade humana ou a idéia de um
desenvolvimento crítico da moral voltam a ter importância significativa em seus escritos.
II.4.1– A ESTRUTURA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE RECONHECIMENTO
Honneth adota os postulados da psicologia social de Mead como uma
possibilidade de dar uma inflexão materialista à tese hegeliana de reconhecimento. Na
100 Idem, pg 114. 101 Idem, pg 114.
67
visão de Honneth, Mead e Hegel (nos escritos de juventude) coincidem quando
concebem que
A reprodução da vida social se efetua sob um imperativo de um reconhecimento
recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma auto-relação prática quando
aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como
seus destinatários sociais.102
Essa coerção normativa, impelida pelo meio social vai se delimitando
gradualmente, rumo a afirmação social da subjetividade do indivíduo. Na visão de
Honneth, são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais que vêm a afirmar cultural
e institucionalmente as transformações normativas da sociedade.
Para Honneth o padrão de reconhecimento social se desenvolve em três níveis:
amor, direito e solidariedade.
Honneth define o amor como âmbito das relações primárias, ou seja, ao quadro de
relações afetivas entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois
parceiros, de amizade e relações pais/filho.103 Esse momento consiste no primeiro
estágio de reconhecimento social, haja vista ser a primeira esfera de interação humana. É
a qualidade nas relações intersubjetivas do plano primário que vai conferir ao indivíduo a
primeira forma de reconhecimento, denominada por Honneth de autoconfiança. Essa
relação de reconhecimento primário que prepara a lógica de todas as formas de
reconhecimento posteriores.
102 HONNETH, 2003; pg 155. 103 Idem, pg 159.
68
A forma de reconhecimento presente nas relações primárias é sucedida
pelas relações jurídicas, marcadas pela inserção do indivíduo na vida pública. Na medida
em que somos inseridos num meio social, este meio, já formado, nos ensina a reconhecer
nossos semelhantes como portadores de direitos. Ao reconhecermos nossos semelhantes
como portadores de direitos, nós também passamos a nos reconhecer como portadores
daqueles direitos.104
Quando somos inseridos nas relações jurídicas, ou seja, no direito, dois processos
de consciência são evidentes. De um lado existe um saber moral direcionado para o
universalismo, quando reconhecemos os indivíduos como autônomos. Mas esse saber
moral sobre as obrigações jurídicas é confrontado comum conteúdo particularista; só
podemos interpretar aqueles padrões universais mediante casos empíricos. A autonomia
da vontade, universalmente válida, só pode ser averiguada mediante casos específicos, a
saber a que indivíduo, ou círculo de indivíduos, a lei pode ser aplicada.105
Ao se definir essas características das relações jurídicas, uma outra questão se
apresenta: não adianta que os indivíduos tenham a posse da universalidade que marca o
direito; faz-se necessário garantir que os indivíduos tenham condição de respeitar e
exercer aqueles mesmos postulados. É o que vem a ser a imputabilidade moral, toda
comunidade jurídica moderna, unicamente porque sua legitimidade se torna dependente
da idéia de um acordo racional entre os indivíduos em pé de igualdade, está fundada na
assunção da imputabilidade moral de todos os seus membros.106
A atribuição da imputabilidade moral por si mesma, ainda não define sobre que
condições um sujeito está habilitado a agir racionalmente. Essa questão só pode ser
104 Idem, pg 179. 105 Idem, pg 186. 106 Idem, pg 188.
69
respondida quando se estabelecem as bases do procedimento do acordo entre os
indivíduos. Dependendo de como o procedimento básico de participação e de legitimação
políticas for representado, existe também uma transformação nas propriedades que um
indivíduo precisa possuir para participar desse mesmo processo. Quanto mais se
desenvolve a luta por reconhecimento jurídico, mais se estendem aqueles princípios
universais que habilitam a participação no processo de legitimação política. A luta por
reconhecimento amplia os pressupostos de participação na formação racional das
vontades. As reivindicações em torno dos direitos formais abraçam as reivindicações em
torno dos direitos materiais.
Nas ciências do direito, tornou-se natural nesse meio tempo efetuar uma distinção dos direitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos sociais de bem-estar; a primeira categoria refere-se aos direitos negativos que protegem a pessoa de intervenções desautorizadas do Estado, com vista à sua liberdade, sua vida e sua propriedade; a segunda categoria, aos direitos positivos que lhe cabem com vista à participação em processos de formação pública da vontade; e a terceira categoria, finalmente àqueles direitos igualmente positivos que a fazem ter parte, de modo eqüitativo, na distribuição de bens básicos.107
O desenvolvimento das relações jurídicas leva os indivíduos a desenvolverem
uma segunda forma de auto-relação prática de reconhecimento. Ao se observarem como
sujeitos de direito, os indivíduos com seus direitos possuindo uma validade universal para
107 Idem, pg 189.
70
todos os indivíduos (da mesma maneira que subjetivam sua imputabilidade moral perante
os outros), podem desenvolver o auto-respeito.108
Assim, possuir direitos individuais significa estar dotado da possibilidade de uma
participação autêntica, traduzida pela afirmação pública de seus direitos individuais. O
reconhecimento jurídico é a garante a constituição do auto-respeito, ao fornecer os meios
necessários de sua expressão universal como pessoa moralmente imputável.
A terceira relação de reconhecimento é definida por Axel Honneth como
solidariedade, traduzida pela auto-relação prática da estima social. Existem, portanto,
diferenças entre as relações de estima social e as relações jurídicas, por exemplo.
Enquanto o direito funciona como um catalisador do reconhecimento que expressa
propriedades universais do sujeito, a estima social representa uma mediação
intersubjetiva visando expressar as diferenças entre os sujeitos humanos
universalmente.109
Essa relação de estima está orientada dentro de um quadro simbólico que
representa uma orientação ética socialmente partilhada. Esses objetivos éticos funcionam
como padrões hegemônicos de valoração social, esse sistema pode funcionar como um
padrão de avaliação das personalidades individuais, de acordo com sua contribuição à
realização daqueles objetivos.
Mas se a estima social é determinada por concepções de objetivos éticos que predominam numa sociedade, as formas que ela pode assumir são uma grandeza não menos variável historicamente do que as do reconhecimento jurídico. 110
108 Idem, pg 195. 109 Idem, pg 199. 110 Idem, pg 200.
71
A ascensão da estima social só se torna possível quando há uma mudança do
paradigma tradicional da honra rumo ao paradigma da dignidade do prestígio social. A
antiga ordem de valores estava ancorada em concepções religiosas e metafísicas a
respeito do valor que o indivíduo de vê possuir. Com o fim da sociedade estamental o
valor conferido ao indivíduo deixa de ser pré-estabelecido e se vincula a sua biografia
particular. Não há mais um ancoramento de valores em padrões metassociais de
comportamento, a ética, então, passa a ser concebida como resultados de processos
intramundanos111. É colocado em questão se o valor de um indivíduo deve ser medido
previamente pelas propriedades do grupo o qual faz parte. A universalização da honra faz
dela dignidade.
O direito, seguindo o argumento, seria incapaz de recolher em si estas relações
práticas de reconhecimento que caracterizam a estima social. Enquanto no direito uma
pessoa é reconhecida a partir do reconhecimento universal de seus direitos, e de suas
capacidades indistintas das capacidades das demais pessoas, na auto-estima se sustenta
justamente o reconhecimento daquilo que ela não partilha com os outros. O novo padrão
de relacionamento é marcado por dois processos:
... o da universalização jurídica da “honra” até tornar-se “dignidade”, por um lado, e o da privatização da “honra” até tornar-se integridade ... Daí a estima social não estar mais associada a quaisquer privilégios jurídicos nem incluir doravante, de forma constitutiva, a caracterização de qualidades morais da personalidade.112
111 Idem, pg 201. 112 Idem, pg 206.
72
Essa forma de reconhecimento transforma a auto-relação dos indivíduos. Quando
o sujeito não precisa mais atribuir a um grupo o respeito que goza, faz-se possível a
eclosão de uma forma de solidariedade pós-tradicional, inscrita na experiência da auto-
estima. Assim, o sujeito não precisa mais atribuir ao grupo nenhuma modalidade de
respeito que não possa também atribuir a si próprio. Essa estima recíproca significa que
os valores individuais da outra pessoa não apenas nos desperta interesse e respeito, mas
também um desejo ativo na possibilidade dos desdobramentos das particularidades de
seus valores individuais.
Honneth faz questão de sublinhar que cada forma de reconhecimento no interior
do quadro da estrutura das relações sociais é acompanhada por respectivas formas de
desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação. Essas formas de
desrespeito são mensuradas a partir dos diversos graus em que podem abalar a auto-
relação prática dos sujeitos. A primeira forma de desrespeito está inscrita na experiência
dos maus tratos pessoais (como na tortura), pois destroem a autoconfiança.
A segunda forma de desrespeito se encontra em experiências que afetam o auto-
respeito moral. Podemos contar como “direitos”, grosso modo, aquelas pretensões
individuais com cuja satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legítima, já
que ela como membro de igual valor em uma coletividade, participa em pé de igualdade
de sua ordem institucional.113 Aqui formas de desrespeito são marcadas pela privação de
direitos e pela exclusão social. A experiência da privação numa dada sociedade é medida
em dois níveis: o primeiro pelo grau de universalização formal e segundo pelo alcance
material dos direitos positivados.
113 Idem, pg 216.
73
A terceira forma de reconhecimento é pautada na ofensa à auto-relação prática da
estima a partir das experiências da degradação e da ofensa. Estas experiências são
perceptíveis no rebaixamento e na humilhação, onde as identidades individuais são
ameaçadas da mesma forma que sua integridade física nas relações primárias.
ESTRUTURA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE RECONHECIMENTO
Modos de reconhecimento
Dedicação emotiva Respeito cognitivo Estima social
Dimensões da personalidade
Natureza carencial e afetiva
Imputabilidade moral Capacidades e propriedades
Formas de reconhecimento
Relações primárias (amor, amizade)
Relações jurídicas (direitos)
Comunidade de valores (solidariedade)
Potencial evolutivo Generalização, materialização
Individualização, igualização
Auto-relação prática Autoconfiança Auto-respeito Auto-estima Formas de desrespeito Maus tratos e violação
Privação de direitos e exclusão
Degradação e ofensa
Componentes ameaçados da personalidade
Integridade física Integridade social “Honra”, dignidade
(Fonte: Idem, pg 211)
II.4.2 – CONCLUSÃO: Uma Concepção Formal de Eticidade
Vimos nessas páginas que honneth desenvolve uma teoria pós-tradicional de
reconhecimento que integra o padrão familial, jurídico e ético num quadro de evolução
social. Os sujeitos precisam encontrar reconhecimento com seres simultaneamente
autônomos e individualizados.
74
Honneth defende a necessidade de uma compreensão consistente da moral. Ele
esclarece esse pensamento mediante a exposição de duas tradições da filosofia moral. A
primeira delas é a tradição kantiana, que permite demonstrar a todos os sujeitos o mesmo
respeito ou considerar seus respectivos interesses da mesma maneira de modo
eqüitativo.114 Essa tradição é tida como estreita por não incluir os aspectos diferenciados
do reconhecimento. Na tradição que remonta a Kant, todos os juízos normativos estão
relacionados às exigências dos princípios morais universais.
A essa corrente de inspiração kantiana contrapõe-se uma linha teórica baseada em
Hegel. Aqui é colocada a questão que a corrente kantiana falha ao não relacionar a moral
com as condições concretas da vida, que são, a partir de sua lógica, variáveis.
Honneth propõe uma argumentação que não se sujeite completamente a nenhuma
das tradições. Discorda de Kant afirmando que a autonomia moral do ser humano não é
suficiente para garantir o reconhecimento, mas deve tratar também das outras condições
práticas de auto-realização. A autonomia moral é um passo importante na luta por
reconhecimento, mas não é seu fim. Distancia-se da tradição hegeliana ao afirmar que o
reconhecimento não é a expressão de convicções axiológicas substanciais. Não se
defende a subordinação do indivíduo a padrões fechados de comunitarismo. Honneth se
considera num padrão mediano entre aqueles dois veios filosóficos:
Nesse sentido, a abordagem da teoria do reconhecimento, na medida em que desenvolvemos até agora na qualidade de uma concepção normativa, encontra-se no ponto mediano entre uma teoria da moral que remonta a Kant e as éticas comunitaristas: ela partilha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibilidades, mas partilha
114 Idem, pg 269.
75
com estas a orientação pelo fim da auto-realização humana.115
Os padrões de reconhecimento podem ser entendidos como padrões de
intersubjetividade no interior das quais os sujeitos chegam a novas formas de
reconhecimento. As formas de reconhecimento do amor, do direito e da solidariedade
criam as condições de garantia da liberdade interna e externa, onde se articulam as metas
individuais de vida com os horizontes éticos universalmente partilhados.
Honneth evidencia que os padrões de reconhecimento jurídico e de comunidade
de valores guardam um potencial amplo de desenvolvimento normativo, se comparados
com as relações familiares. As relações jurídicas e a comunidade de valores estão
constantemente abertas a processos de transformação que objetivem o crescimento da
universalização e da igualdade. Disso resulta que as concepções intersubjetivas do que
vem a ser uma boa vida são historicamente variáveis, dependem, em termos
hermenêuticos, de um presente sempre intransponível.
Honneth amplia a compreensão dos processos de conflito e de interação social ao
estabelecer um padrão normativo para a estrutura de reconhecimento. Supera Charles
Taylor116 ao demonstrar que só faz sentido falar em redes de interlocução ao se
preestabelecer que essas mesmas redes agem num quadro diferenciado de eticidade. Não
apenas diferentes culturas, ou diferentes grupos sociais são diferentes redes de
interlocução e de interação simbólica. Diferentes redes de interlocução no interior de um
115 Idem, pg 271. 116 Ver Conclusão, Capítulo 1
76
mesmo grupo são características intrínsecas a uma teoria mais sofisticada de
reconhecimento.
Honneth também observa, que no quadro de reconhecimento social,
principalmente nas relações jurídicas, há uma primazia das liberdades individuais do
sujeito no que tange a sua autonomia moral. Não há uma política de reconhecimento que
possa ameaçar a integridade jurídica do sujeito em nome de políticas de bem comum. Um
indivíduo é livre, tanto para aderir, quanto para transformar, ou mesmo recusar seu
patrimônio cultural.
Mas Honneth apesar de defender um universalismo de direitos nas relações
jurídicas, e uma individualização das expressões individuais nas relações de auto-estima,
ele não deixa claro algo de muito importante: qual o papel do estado nas políticas de
reconhecimento? Ou, falando mais abertamente, qual o espectro legítimo de ação do
estado no combate à privação de direitos e à exclusão que não resulte em formas
distorcidas de reconhecimento?
Honneth não atenta que a forma de reconhecimento jurídico é tão ampla que ela
mesma carece de uma gramática de interpretação própria. Ao se distinguir (corretamente)
os direitos liberais de liberdades subjetivas, dos direitos políticos de participação, dos
direitos sociais de bem-estar, ele não salienta a postura mais apropriada de ação
governamental no combate às respectivas injustiças no leque desses direitos.117
Em épocas de reconhecimento e redistribuição é condição sine qua non
diferenciar os conflitos, que por conseguinte demandam diferentes estratégias de ação.
Até que ponto se faz necessária uma universalização dos direitos? Até que ponto os
conflitos carecem de universalização de direitos e não de uma efetivação dos direitos já
117 Nossa proposição a essa carência é apresentada no capítulo 4 e na conclusão dessa Dissertação.
77
existentes? Ou, de outra forma, até que ponto os conflitos carecem de universalização dos
direitos e não da positivação das diferenças que marcam os grupos sociais em questão? O
estado pode interferir no desenvolvimento de um ethos de auto-estima, ou isso é uma
tarefa própria dos cidadãos individualmente?
Essas questões marcam o terceiro capítulo na apresentação do argumento
multiculturalista contemporâneo.
78
CAPÍTULO III – O ARGUMENTO MULTICULTURALISTA
A luta pelo reconhecimento é sobretudo uma reivindicação por justiça. Esclarecer
as bases do argumento multiculturalista requer, então, que se demonstre a base discursiva
das reivindicações contemporâneas por justiça. Na exposição dessa tese, dois
pensamentos são relevantes: Nancy Fraser, que realiza uma equalização extremamente
lúcida dos dilemas da compreensão da justiça em eras pós-socialistas, e Will Kymlicka,
dividindo sistematicamente as diferentes formas que o multiculturalismo assume.
III.1 – NANCY FRASER: REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO
Na contemporaneidade partes significativas da luta de grupos marginalizados
reclamam reconhecimento. Lutas em torno da etnia, do gênero, nacionalidade, sexo e raça
se agrupam em torno da necessidade de reconhecimento. Desde o colapso do socialismo
de modelo soviético, reivindicações por redistribuição perdem espaço para outro tipo de
demanda;
79
Nesses conflitos pós-socialistas, identidades grupais substituem identidades de classe como principal incentivo para mobilização política. Dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental. E reconhecimento cultural desloca a redistribuição socioeconômica como remédio para injustiças e objetivo da luta política118.
Uma das conseqüências da perda da centralidade do conceito de classe foi gerar
uma certa confusão programática, esforços que deveriam ser identificados com a
redistribuição reivindicam reconhecimento e vice-versa. A questão é ainda mais
complexa quando se argumenta que muitas das reivindicações não se esgotam em
nenhum dos dois signos. Segundo Nancy Fraser, tanto os esforços por ‘reconhecimento’
quanto por ‘redistribuição’, são, quando considerados isoladamente, atacadistas e sem
nuanças. No entender de Fraser, em vez de endossar outra visão, deveríamos concentrar
esforços em construir uma teoria crítica do reconhecimento que consiga combinar os
esforços pela diferença juntamente com os esforços pela igualdade. Com isso quer dizer
que, hoje em dia, a maioria das reivindicações requer tanto redistribuição quanto
reconhecimento. Segundo Fraser, só por meio da integração dessas duas demandas é
possível equacionar as reivindicações de justiça da contemporaneidade.
Em seu estudo Fraser aborda uma a seguinte dimensão do problema: Em que
circunstância uma política de reconhecimento pode apoiar uma política de
redistribuição? Quando é provável que a enfraqueça ? Qual das variedades de política
da identidade mais se adequa a lutas por igualdade social?119
118 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia Hoje (org.). UNB, 2001. 119 Idem, pg 247.
80
III.1.1 – O DILEMA REDISTRIBUIÇÃO-RECONHECIMENTO
A autora chama a atenção que após a queda do socialismo realmente existente
muitos movimentos sociais aglutinam-se em torno de demandas ligadas à identidade, ou
seja, este tipo de reivindicação tende a prevalecer sobre reivindicações redistributivas.
Um dos efeitos perceptíveis é a falta de coerência programática desse campo político.
Com o intuito de esclarecer esse assunto, Fraser demonstra que a injustiça pode ser
entendida de duas maneiras: socioeconômica e cultural ou simbólica120.
Como injustiça socioeconômica Fraser compreende as injustiças alicerçadas na
estrutura político-econômica da sociedade. Elas podem incluir exploração (ter os frutos
do trabalho apropriados por outrem121); marginalização econômica (ser limitado a
trabalhos menos remunerados, indesejáveis, ou não assalariado) e privação (ser
submetido a padrões inadequados de vida).122
Uma segunda compreensão de injustiça é a cultural ou simbólica. Aqui injustiça
está arraigada a padrões sociais de representação, interpretação e comunicação.123 Essa
injustiça pode incluir dominação cultural (submissão a formas inautênticas de
comunicação); não-reconhecimento (ser considerado “invisível” pelas representações
sociais) e desrespeito (estar submetido a difamações e estereótipos no convívio social).124
120 Idem, pg 249. 121 Mais-valia em linguagem marxiana. 122 FRASER, op cit, pg 249. 123 Idem, pg 250. 124 Idem, pg 250.
81
Ao passo que Nancy Fraser distingue os dois tipos de injustiças, ela também
distingue dois tipos de remédios, respectivamente. O remédio para injustiças
socioeconômicas é a reestruturação político-econômica, o remédio para injustiças
culturais é a mudança cultural ou simbólica. O primeiro remédio envolveria algum tipo
de mudanças nas bases da economia e da política da sociedade, enquanto, por outro lado,
o segundo remédio envolve uma redefinição dos padrões de representação social
alicerçados na sociedade – mudanças valorativas e/ou simbólicas.
Há que se notar que as distinções entre injustiças socioeconômicas e culturais,
bem como seus respectivos remédios, é de cunho analítico. Da mesma maneira que as
injustiças culturais têm como raiz as bases socioeconômicas da sociedade, os remédios
para injustiças, ou seja, redistributivos, têm implicitamente uma perspectiva de
reconhecimento das camadas beneficiadas por tais de recursos. A redistribuição é,
também, reconhecimento, como o reconhecimento pleno pressupõe alguma estratégia
redistributiva. Mas diferentemente de Axel Honneth em Luta por Reconhecimento, Fraser
acredita que o conceito de reconhecimento não suporta a complexidade discursiva do
debate contemporâneo.
Essas distinções estabelecem outra questão: até que ponto as demandas
redistributivas se relacionam com as demandas de reconhecimento e como é possível
enquadrar os diferentes movimento sociais nesse padrão de análise? Fraser nos chama a
atenção para uma possível contradição entre as duas: onde a primeira tende a promover a
diferenciação a segunda tende a minar isso. Assim os dois tipos de reivindicação estão
em tensão; eles podem interferir, e até mesmo minar uma a outra.125
125 Idem, pg 254.
82
III.1.2 – COLETIVIDADES EXPLORADAS, MENOSPREZADAS E
AMBIVALENTES.
Imagine-se um espectro conceitual de tipos
diferentes de coletividades sociais. Em um extremo
estão modos de coletividades que se ajustam ao
modelo redistributivo de justiça. No outro extremo
estão modos de coletividade relacionados ao modelo
de reconhecimento. No meio estão casos que se
mostram difíceis por se ajustarem simultaneamente
em ambos os modelos de justiça.126
Num extremo do espectro se encontram as classes exploradas. Elas diferem das
outras coletividades devido seus remédios serem de natureza exclusivamente
redistributiva.127 Aqui, as injustiças sofridas pelos seus membros têm uma solução ligada
a mudanças no arranjo político-econômico da sociedade, ou seja, redistribuição. É o tipo
de exploração sofrida pela classe trabalhadora (novamente em sentido marxiano). A
solução definitiva para a classe explorada seria então a abolição do proletariado como
classe. Pois só faz sentido, novamente em termos marxianos, falar em classe explorada,
126 Idem, pg 254. 127Fraser enfatiza novamente que a diferenciação é analítica, as classes só podem ser reconhecidas como tais dentro de uma relação cultural, discursiva, da mesma maneira que as outras coletividades necessitam, em último grau tanto de redistribuição, quanto de reconhecimento.
83
em proletariado, no interior de uma ordem que a explore, a classe capitalista. A classe
explorada não pode então desejar o reconhecimento de sua diferença, isso é a
cristalização de sua desigualdade, a única forma de remediar a injustiça é extinguir o
proletariado como grupo.128
Do outro lado desse leque conceitual, teríamos coletividades que se ajustam ao
modelo de reconhecimento. Essas coletividades têm seus problemas ligados à ordem
cultural da sociedade. Por mais que elas possam sofrer injustiças de distribuição, isso se
deveria em último caso a um problema de reconhecimento. Aqui a solução não é a
redistribuição política-econômica, mas o reconhecimento cultural. Fraser utiliza o
exemplo das sexualidades menosprezadas, a questão da homossexualidade. Sexualidades
menosprezadas, não podem ser uma questão de redistribuição, pois, segundo a autora,
homossexuais distribuem-se ao longo de toda a estrutura da sociedade capitalista.129 A
injustiça por eles sofrida é de reconhecimento, heterossexismo; as normas sociais são
construídas para valorizar uma única forma de expressão sexual: a heterossexualidade. O
remédio então, para esse caso, é superar os padrões culturais autoritários da sociedade.
Os dois extremos do projeto teórico foram abordados. De um lado as classes
exploradas clamando redistribuição; de outro as sexualidades, clamando reconhecimento.
Mas é importante que se diga uma coisa: enquanto as classes exploradas necessitam de
remédios que suprimam sua diferenciação no interior da sociedade, as sexualidades
menosprezadas necessitam de soluções que, ao contrário da anterior, valorizem sua
especificidade.
128 FRASER, op cit, 256. 129 Idem, pg 257.
84
Fraser apresenta uma terceira classe de coletividades: as coletividades
ambivalentes. As injustiças sofridas por essas coletividades não se restringem nem à
redistribuição nem ao reconhecimento, mas necessitam das duas formas de justiça.
Gênero e “raça” são aqui utilizados como exemplos de coletividades ambivalentes.
Gênero é uma coletividade ambivalente. Tem seus problemas sediados na
estrutura político-econômica da sociedade na medida em que o gênero marca a divisão
social do trabalho. As mulheres estão designadas (inicialmente) ao trabalho doméstico,
enquanto o trabalho assalariado está (também inicialmente) direcionado aos homens.
Mesmo no interior do trabalho assalariado existe o fato de que as mulheres ocupam
cargos menos remunerados que os homens. O resultado disso é um reflexo
socioeconômico, onde o gênero feminino ocupa um lugar de inferioridade se comparado
ao masculino. Nessa perspectiva temos a injustiça de gênero enquanto questão
redistributiva. A lógica do remédio é similar à lógica com respeito à classe social: é
eliminar a especificidade do gênero. Se gênero fosse nada mais que uma diferenciação
político-econômica, em suma, a justiça requereria sua abolição.130 Mas além de sofrer
uma injustiça de redistribuição, o gênero também sofre uma injustiça de reconhecimento,
no caso o androcentrismo: as normas sociais são construídas autoritariamente, de uma
maneira que beneficiem as características masculinas.
Além do androcentrismo as mulheres ainda estão submetidas à depreciação,
incluindo exploração doméstica, violências físicas, esteriotipização e marginalização das
esferas públicas deliberativas e de trabalho. Essas injustiças são injustiças de
reconhecimento, portanto exigem uma mudança nos padrões valorativos da cultura que
beneficiem as mulheres. Sendo uma coletividade ambivalente, o gênero contém uma
130 Idem, pg 260.
85
dimensão que reclama redistribuição e outra dimensão que reclama reconhecimento.
Aqui se aponta um dilema na perseguição dos objetivos do gênero: se por um lado as
demandas de redistribuição eliminam as diferenças de gênero, as demandas por
reconhecimento valorizam a especificidade do grupo. Como perseguir esses dois
objetivos simultaneamente?
Uma outra coletividade ambivalente é a “raça”. A “raça” também apresenta
problemas de injustiça ligados a redistribuição, quanto problemas ligados ao
reconhecimento. Assemelha-se à classe quando parte de seus problemas estão ligados a
má distribuição do trabalho. Como legado histórico da escravidão, negros tendem a
ocupar cargos mal-pagos, insalubres, enquanto cargos de administração e chefia são
predominantemente ocupados por brancos. Vista dessa maneira, justiça racial requer a
transformação da economia política para eliminar sua racialização.131
Mas tal qual o gênero, a “raça” também sofre injustiças de reconhecimento. Uma
delas é o Eurocentrismo, o que quer dizer que a construção das normas sociais
privilegiam representações sociais ligadas a branquitude. Esta coletividade também está
submetida padrões estereotipados na mídia e marginalização nas deliberações públicas.
Aqui se apresenta o mesmo dilema das demandas de gênero: como a raça pode clamar ao
mesmo tempo por demandas de classe (redistributivas) que suprimem as diferenças e por
demandas de reconhecimento que visem valorizar a especificidade identitária?
131 Idem, pg 263.
86
III.1.3 – AFIRMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
Nancy Fraser afirma que tipos diferenciados de injustiça demandam tipos
diferenciados de remédios. Injustiças político-econômicas exigem remédios
redistributivos enquanto injustiças culturais exigem reconhecimento. Desta feita,
redistribuição incidiria sobre grupos sociais específicos e reconhecimento aumentaria a
diferença entre os grupos sociais.
Nancy Fraser complexifica o problema ao analisar tipos diferentes de
redistribuição e de reconhecimento. O combate às injustiças tanto no nível da
redistribuição, quanto ao nível do reconhecimento pode girar em torno da afirmação ou
da transformação. Os remédios afirmativos têm como característica a solução das
injustiças através da correção dos arranjos sociais e de seus resultados sem, no entanto,
modificar a estrutura que os gera. Os remédios transformativos, por sua vez, não apenas
modificariam os resultados de arranjos sociais, mas reformulariam as bases produtoras de
injustiças, a estrutura social. 132
No caso das injustiças culturais podemos, então, utilizar remédios afirmativos ou
transformativos. Soluções afirmativas são aqui denominadas como multiculturalismo
dominante. Aqui as identidades injustiçadas são formalmente reavaliadas, mas não se
altera o conteúdo das identidades, bem como as diferenças entre os grupos. Remédios
transformativos teriam um sentido de desconstrução, seu objetivo é a transformação dos
padrões culturais e valorativos que edificam a sociedade. Um exemplo a ser demonstrado
é no caso das sexualidades desprezadas. Uma política afirmativa visaria a valorização da
identidade gay. Remédios transformativos teriam a meta, em contraste, desconstruir a
132Idem, pg 265.
87
dicotomia entre identidades gay e identidades heterossexuais. Ambas são formas
legítimas e sexualidade. O ponto não é dissolver todas as diferenças sexuais em uma
única identidade universal humana, mas sim sustentar um campo sexual de diferenças
múltiplas, não polarizadas, fluidas e voláteis.133 Enquanto os remédios afirmativos
tendem a perpetuar as diferenças, os remédios transformativos tendem a desestabilizar as
diferenças para permitir uma inter-relação harmônica.
Essas distinções também podem ser aplicadas às injustiças econômicas. Fraser
identifica os remédios afirmativos para injustiças socioeconômicas com o Estado de
Bem-Estar liberal (como no modelo americano pós-New Deal). Aqui o estado tenta
redistribuir os recursos sem no entanto atacar o cerne da sociedade capitalista. O poder de
consumo das camadas desfavorecidas é reforçado, sem no entanto se modificar as bases
do modo de produção. Os remédios transformativos são identificados com o socialismo.
Aqui não haveria somente uma realocação de recursos, mas a alteração da divisão do
trabalho e das bases do sistema de propriedade privada dos meios de produção.134
Nancy fraser afirma que remédios redistributivos afirmativos têm como base um
reconhecimento universal do valor moral dos indivíduos, agindo afirmativamente para
atacar as injustiças que determinados grupos podem sofrer. Porém esses remédios
afirmativos tendem a perpetuar a desigualdade estigmatizando, ou beneficiando
injustamente determinados seguimentos sociais. Segundo Fraser, remédios afirmativos
distributivos reconhecem, mas geram desigualdades, enquanto os remédios
133 Idem, pg 268. 134 Idem, pg 268.
88
transformativos redistributivos reconhecem visando minar todas as diferenciações de
classe.135
III.1.4 – ESCAPANDO DO DILEMA?
Nancy Fraser apresenta a seguinte tabela, desenvolvendo as possíveis
combinações entre reconhecimento e redistribuição em suas formas afirmativas e
redistributivas:
REDISTRIBUIÇÃO: ESTADO DE BEM-ESTAR LIBERAL: Realocações superficiais de bens existentes; apóia a diferenciação entre grupos; pode gerar não-reconhecimento.
SOCIALISMO: Reestruturação profunda das relações de produção; elimina diferenciações entre grupos; pode ajudar a curar algumas formas de não-reconhecimento.
RECONHECIMENTO: MULTICULTURALISMO DOMINANTE; Realocações superficiais de respeito às identidades de grupos; apóia a diferenciação entre grupos.
DESCONSTRUÇÃO; Reestruturação profunda das relações de reconhecimento; desestabiliza diferenciações entre grupos.
(Fonte: Idem, pg 273)
No primeiro eixo horizontal são demonstradas as duas formas de redistribuição; a
se dizer, o Estado de Bem-Estar Liberal e o socialismo. No segundo eixo horizontal são
demonstradas as duas formas de reconhecimento, o multiculturalismo dominante e a
desconstrução. Ao ver de Fraser, dois pares de remédios se complementam: o Estado de
135 Idem, pg 271.
89
Bem-Estar Liberal pode se associar ao multiculturalismo dominante devido suas
características de sanar superficialmente as injustiças sem mexer nas bases da sociedade
que as geraram. Essa alternativa é tida como pouco promissora. Esses dois remédios
tendem a perpetuar as injustiças a princípio combatidas.
Por outro ângulo, o socialismo pode associar-se a desconstrução por não apenas
reconhecer universalmente o valor moral dos sujeitos que clamam por justiça, mas antes
de qualquer, coisa por atacar as estruturas socioeconômicas e culturais sobre as quais a
injustiça se assenta. Finalmente, nas palavras da autora: Tanto para gênero como para
“raça” o cenário que mais escapa do dilema de redistribuição/reconhecimento é o
socialismo na economia e a desconstrução na cultura.
“Raça” e gênero necessitam de remédios ambivalentes, ou seja, necessitam
de redistribuição e de reconhecimento. Aceitar essa assertiva não significa corroborar a
tese multiculturalista. Políticas universalistas de reconhecimento de direitos podem
conviver com políticas redistributivas. Aceitar uma redistribuição socioeconômica que
beneficie as coletividades ambivalentes não está condicionado ao fato que elas
necessitam de direitos especiais enquanto cultura.
Políticas, ou remédios distributivos devem ser aplicados a qualquer sujeito que
esteja abaixo dos padrões compreendidos como justos – universalmente (como na idéia
rawlsiana de justiça).
Fraser tenta superar o dilema redistribuição/reconhecimento. Não consideramos
necessário retornar à exposição desse problema, devidamente esclarecido. O que nos
chama a atenção é o fato que no afã de superar uma dicotomia, Nancy Fraser acaba
caindo em outro abismo: o dilema afirmação/transformação. Para Fraser qualquer
90
tentativa de conciliar remédios afirmativos com remédios redistributivos parece pouco
promissora. Problemas ligados à injustiça socioeconômica só podem encontrar solução
satisfatória no socialismo, bem como problemas de reconhecimento têm como único
caminho promissor a desconstrução. Qualquer combinação híbrida é aparentemente
rejeitada por Fraser. Por exemplo, Fraser ataca a idéia que a injustiça sofrida por uma
coletividade ambivalente como “raça” possa ser sanada com a combinação de
reconhecimento cultural através da desconstrução e de redistribuição através do Estado
de Bem-Estar. A saída seria a combinação entre desconstrução e socialismo. Aqui reside
a dicotomia, que ao nosso ver prejudica a tese de Fraser: não há saída fora do socialismo
e da desconstrução! O que se coloca em xeque é a compreensão de remédio redistributivo
apresentada por Fraser. Quando a própria autora reconhece os atuais conflitos como
inerentes ao pós-socialismo e ainda apresenta que, apesar de epistemologicamente
compreensível o socialismo é experiencialmente raro136, as soluções redistributivas
seguem como uma utopia pós-apocalíptica, praticamente irrealizável.
Isso ainda não significa dizer que a tese de Fraser se demonstra incapaz de
esclarecer analiticamente os conflitos contemporâneos137. Mas para a compreensibilidade
136 Idem, pg 279. 137 Uma das mais candentes críticas ao argumento de Fraser é realizada por Axel Honneth: In my opinion this critique is based on a grave misunderstanding … she inevitable takes on board the false premise of a historical opposition: between a politics of material interests and legal concerns, and a ‘politics of identity’. In short, as a result of the misleading periodization of the aims of social movements, the struggles for recognition comes to be understood as a demand that has arisen as a moral issue only very recently; thus it can be reduced to the single aspect of cultural recognition so that all others dimensions of the struggles for recognition remain ignored. HONNETH, Axel. Recognition or Redistribution? Changing Perspectives On The Moral Order of Society. Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 43–55. pg 53.Nancy Fraser apresentaria pois, um falso dilema entre redistribuição e reconhecimento; esforços por redistribuição ao contrário do que Fraser argumenta estariam incluídos nos esforços por reconhecimento, e fazem parte do processo de generalização e efetivação de direitos das relações jurídicas. Em resposta a essa crítica, Fraser argumenta: Honneth, for example assumes a reductive culturalist view of distribution. Supposing that economics inequalities are rooted in a cultural order that privigies some kinds of labor of others, he believes that changes that cultural orders is sufficient to preclude
91
de sua tese seja condizente tanto com os objetivos das coletividades em conflito quanto
com a realidade política contemporânea, ela precisa de uma ampliação no conceito de
redistribuição. O fato de as injustiças econômicas estarem fundamentadas em última
instância no surgimento da propriedade privada, não significar afirmar que a justiça
distributiva não será possível enquanto a propriedade privada existir, ou enquanto não for
edificado o reino messiânico do socialismo. Também não se trata de deslegitimar os
anseios socialistas, esse não é nem ao longe o objetivo desse trabalho; o que se apresenta
é que a incorporação dos princípios rawlsianos de como os defendidos em Uma Teoria da
Justiça parecem soar mais harmônica e realisticamente com as reivindicações de classes
exploradas e coletividades ambivalentes em épocas pós-socialistas. O princípio socialista
não precisaria ser descartado como objetivo para que se adote pragmaticamente a idéia
rawlsiana e ainda sim dentro dos limites de justiça propalados por Rawls a sociedade ser
considerada justa.
O que se afirma é que a desconstrução pode ser conciliada com um princípio
liberal de justiça e ainda sim ser factível. Vamos ainda mais longe: em face à derrocada
do socialismo de modelo soviético e a falta de um qualquer modelo de socialismo que
venha assumir seu posto como projeto realizável hoje, não há como corresponder às
expectativas contemporâneas por justiça redistributiva sem que se abra mão do
pragmatismo, para além do modelo rawlsiano.
all maldistribution. FRASER, Nancy. Recognition Without Ethics? Theory Culture & Society 2001(SAGE, London. Thousands Oaks and New Delhi), Vol. 18 (2-3): 21–42.
92
III.2 – KYMLICKA: MULTICULTURALISMOS
Will Kymlicka é um dos maiores estudiosos do multiculturalismo contemporâneo.
Sua posição, por vezes identificada com o argumento liberal (ao defender firmemente os
princípios como democracia, autonomia individual) ou mesmo com a visão
multiculturalista ao ressaltar a necessidade de um modelo jurídico diferenciado para
minorias que necessitam de proteção, constitui uma citação indispensável no atual
contexto do debate do reconhecimento.
III.2.1 – POLÍTICAS DE IDENTIDADE; MODELO TRADICIONAL
Em Contemporary Political Philosophy Kymlicka discute o cenário das
reivindicações contemporâneas em busca de “justiça”. No capítulo intitulado
Multiculturalismo138, ele vai debater em que termos o atual debate multicultural foi
edificado, bem como as diferentes vertentes entre quais as lutas multiculturais se
enveredam e quais soluções os diferentes governos tem adotado. Segundo Kymlicka, o
tradicional modelo de cidadania como direitos (citizenship as rights139) tem mudado em
duas direções: por um lado tem sido focada a importância das virtudes publicas e da
participação política; de outro lado tem se atentado à possibilidade de suplementação de
138 Kymlicka, Will. Contemporary Political Philosophy. Inglaterra: Oxford, 2000. 139 idem, pg 327.
93
direitos comuns tendo como parâmetro o pluralismo cultural e grupos com direitos
especiais (group-differentiated rights).
No passado essas diferenças eram subordinadas a modelos autoritários de
representação cultural, essas diferenças eram portanto ignoradas sob normas de condutas
e direitos que turvavam essas diferenças em idéias de normalidade. Hoje não se consegue
mais definir os grupos previamente escondidos como desviantes, ou anormais
simplesmente por serem diferentes dos padrões de representação dominantes. Isso tem
demandado uma concepção mais inclusiva de cidadania.
Esse modelo tradicional de cidadania como direitos140, teria como objetivo
desenvolver uma espécie de identidade nacional comum entre os cidadãos. Seria uma
espécie de nacionalismo de inclusão a partir da ampla distribuição de bens primários
como direitos sociais básicos, saúde e educação. Essa distribuição não teria por base
alguma visão humanitária de direitos, mas sim desenvolver uma cultura comum que
soasse como um patrimônio nacional. A distribuição desses direitos, a partir da inclusão
de camadas socialmente excluídas, como a classe trabalhadora, seria a forma mais
simples de conseguir a unidade cultural e a lealdade daqueles grupos.
Esse modelo se refere à sociedade inglesa. Nesse modelo, os cidadãos teriam da
mesma maneira que tem direito à saúde, ou a educação, o direito de compartilhar uma
história e uma cultura comum com seus mitos e heróis. Não por razoes de altruísmo
também, mas sim pelo temor que a classe trabalhadora inglesa não se identificasse com
os padrões culturais britânicos e fosse seduzida por idéias “exógenas” (foreign ideas),
140 O tipo ideal de modelo tradicional de cidadania como direitos adotado por Kymlicka é a obra de T.H. Marshal.
94
especialmente o comunismo soviético.141 É sem dúvida mais “fácil” governar quando se
compartilha uma visão comum de nacionalidade. Estender a cidadania a direitos sociais
comuns seria uma ferramenta da construção da nação (nation-building) para consolidar
um modelo nacional comum de cultura e de identidade.
Mas esse modelo tradicional de cidadania está sob forte ataque. Muitos
multiculturalistas ainda se sentem marginalizados no interior dessa cidadania comum.
Grupos como negros, mulheres, povos indígenas, minorias étnicas e religiosas, gays e
lésbicas, não se sentem satisfeitos com o citado modelo de cidadania. Sentem-se
marginalizados socioeconomicamente e sobretudo pelas identidades sociais e culturais.
Segundo esses grupos os padrões tradicionais de cidadania foram construídos de um
modo que privilegiassem as representações como “homem branco heterossexual”. Essas
representações seriam incapazes de acomodar democraticamente as diferenças grupais.
Esse problema demandaria formas de cidadanias diferenciadas (differentiated
citzenship142).
Não raro são os grupos que rejeitam a idéia de integração numa cultura comum.143
Exemplo disso são minorias nacionais como a Catalunha, ou o Quebec, que lutam por
manterem-se diferenciados de seus governos através de uma cadeia diferenciada de
direitos como alguma forma de autogestão territorial (self-governing region) e o direito
de estabelecer uma gama de instituições públicas legais, educacionais e políticas em suas
línguas específicas.
141 Kymlicka, pg 329. 142 Idem, pg 329. Esse conceito é extraído de Young, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford University Press, 2000. 143 Idem, pg 330.
95
Outro exemplo de minorias que se sentem excluídas são os gays. Gays sentem-se
injustamente excluídos de sua própria cultura, sentem-se estigmatizados pelos símbolos
nacionais predominantemente ligados a heterossexualidade. Além disso, são privados de
uma cadeia de direitos e políticas que possam desenvolver o reconhecimento de sua
identidade sexual.
A mesma angústia é partilhada por certas minorias nacionais. Muitas minorias
percebem o Estado como construído de uma maneira que não respeita valores de suas
religiões, como feriados, práticas e rituais religiosos.
A questão central é: Como esses grupos lutam pela cidadania em adição ou contra
uma cultura comum, e por quê o modelo tradicional de cidadania não é suficiente para
integrar os diferentes grupos que reivindicam reconhecimento? Muitas respostas órbitam
em redor da credibilidade dos líderes de todos esses movimentos, que por vezes são
definidos como empresários étnicos, que incitam revolta e ressentimento nos grupos
minoritários contra a cultura dominante, mas que na verdade visam a autopromoção
política. Independentemente dessa hipótese (descredibilizada por Kymlicka) o fato é que
esses tipos de reivindicações crescem por democracias de todo ocidente.144
Kymlicka utiliza uma versão do modelo de Nancy Fraser145 para delinear esses
conflitos. Ao ver de Kymlicka, as democracias ocidentais possuem duas poderosas
hierarquias: Hierarquia econômica (economic hierarchy) e hierarquia de status (status
hierarchy)146
144 Idem, pg 331. 145 Op cit. 146 KYMLICKA op cit, pg 332. Não achamos necessário expor detalhadamente quais os sentidos conferidos por Kymlicka a cada um desses modelos. Basta saber que (como o próprio autor reconhece) o conceito de hierarquia econômica é análogo ao conceito de injustiça socioeconômica e que o conceito de hierarquia de status é análogo ao conceito de injustiça cultural ou simbólica nos padrões expostos por Nancy Fraser neste capítulo da presente dissertação.
96
Segundo Kymlicka, o modelo tradicional de cidadania prezava pelo combate às
desigualdades econômicas mas não davam a atenção merecida às hierarquias de status.
Na visão ortodoxa de democracia, esta era vista como processualismo, onde todos os
indivíduos eram tratados com iguais direitos. Contraparte a isso, Kymlicka defende o
surgimento de visões diferenciadas de cidadania como um desenvolvimento da teoria da
cidadania. Pretende debater quais os argumentos morais são a favor ou contra uma gama
de direitos diferenciados de grupos e como essas reivindicações podem conviver com os
princípios da democracia liberal perseguindo a liberdade individual juntamente com a
igualdade social.
Kymlicka percebe a heterogeneidade dos grupos a serem abordados, mas antes de
tudo percebe que por mais diferenciados que sejam esses grupos possuem alguma
característica comum apesar das diferentes reivindicações.
However, their claims have two important features in common: (a) they go beyond the familiar set of common civil and political rights of individual citizenship which are protected in all liberal democracies; (b) they are adopted with the intention of recognizing and accommodating the distinctive identities and needs of ethnocultural groups. I will use the term ‘multiculturalism’ as an umbrella term for the claims of these ethnocultural groups. (Since these ethnocultural groups seeking recognition tend to be minorities … I also use the term ‘minority rights’.)147
Segundo Kymlicka, alguns fatores são decisivos para o desenvolvimento dos
debates multiculturais. O primeiro deles é o colapso do socialismo de tipo soviético que
147 Idem, pg 335.
97
gerou uma série de conflitos no leste europeu em torno da nacionalidade e da afirmação
de vários povos perseguindo direitos de afirmação enquanto Estados nacionais. Um
segundo motivo foi a mobilização de povos indígenas na década de 1990, e de vários
movimentos de minorias nacionais do ocidente (Quebec, no Canadá, Catalunha na
Espanha, Escócia na Grã-Bretanha). Porém no interior da teoria política, Will Kymlicka
diferencia três níveis diferentes atingidos pelo debate multiculturalista e da cidadania
como direitos: Multiculturalismo como comunitarismo; multiculturalismo no interior de
uma estrutura liberal; e multiculturalismo como resposta à construção da nação.
O primeiro estágio precede 1989. É o conhecido debate entre liberais e
comunitaristas (ou individualistas e coletivistas). Aqui a questão fundamental é o espaço
que a autonomia individual deve ter na sociedade. Os individualistas insistem na primazia
da liberdade individual na escolha dos objetivos a serem perseguidos no interior de uma
sociedade livre. Liberais sustentam que a liberdade individual deve ser considerada
moralmente superior aos princípios coletivistas. Noutro campo, os comunitaristas
defendem que o indivíduo é um produto de práticas sociais. Privilegiar as práticas
individuais é uma maneira de destruir as comunidades.148 As minorias culturais então
identificavam o multiculturalismo como uma defesa contra os ataques externos de uma
sociedade. O multiculturalismo seria um meio de proteger essas comunidades (ou
minorias de direitos) contra possíveis ‘erosões’ culturais provocadas pelo individualismo
liberal.
O segundo estágio do debate percebe o multiculturalismo no interior de uma
estrutura liberal de política. Aqui o debate liberal/comunitário é questionado, como se
questiona também o ataque comunitário ao liberalismo, bem como a noção de minorias
148 Idem, 337.
98
de direitos149. Kymlicka chama a atenção para algo muito interessante: a esmagadora
maioria dos debates em torno do multiculturalismo não é um debate entre liberais e
comunidades minoritárias, mas essencialmente um debate entre grupos individuais que
endossam os princípios básicos do liberalismo e da democracia liberal sobre o significado
do liberalismo em sociedades multiétnicas.
É aqui que se encontra o segundo estágio do debate multiculturalista: qual a
possibilidade de aplicação do multiculturalismo numa sociedade liberal? Como conciliar
os princípios das minorias com o liberalismo político? Um argumento é que a autonomia
individual está relacionada com a possibilidade do acesso do indivíduo a sua própria
cultura e com o respeito e florescimento de sua própria cultura. O multiculturalismo
então, ajudaria no florescimento de variadas culturas através da garantia de direitos
especiais. É o chamado culturalismo liberal (the ‘liberal culturalist’ position150), ao qual
Will Kymlicka se filia.
Os liberais culturalistas se colocam diante de um problema: da mesma maneira
que membros grupos culturais podem pedir direitos especiais visando proteger sua
identidade individual, outros direitos de minorias podem reivindicar a coerção da
liberdade individual de seus membros. Apesar da maioria dos grupos minoritários do
ocidente compartilharem os princípios básicos das liberdades individuais, alguns grupos
podem, em nome de seus princípios (isso é mais comum em certas minorias religiosas
não-liberais) reivindicar as limitações das liberdades femininas ou dos direitos de
crianças, por exemplo. Essa seria uma visão conservadora do multiculturalismo.
149 É bem verdade que minorias de direitos, compreendidas como grupos minoritários que visam a proteção contra a sociedade através de métodos isolacionistas (especialmente minorias religiosas como Huteritas ou Judeus Hassídicos) que se afastam voluntariamente da sociedade. Mas Kymlicka observa que a maioria dos grupos hoje, clama por integração social e não isolamento. Op cit, pg 339. 150 KYMLICKA, op cit, 339.
99
Em resposta a essa possibilidade, Kymlicka distingue dois tipos de direitos de
minorias: ‘maus’ direitos de minorias (‘bad’ minority rights) e ‘bons’ direitos de minorias
(‘good’ minority rights). Os ‘maus’ direitos de minorias reivindicam restrições de direitos
individuais (restricting individual rights) enquanto os ‘bons’ direitos de minorias
reivindicam o suplemento de direitos individuais (supplementing individual rights).
Diante desse cenário são diferenciados dois tipos de direitos que as minorias podem
reivindicar: o primeiro envolve o direito de um grupo contra seus próprios membros, que
visam proteger o grupo contra os impactos de um dissenso interno (internal dissent). O
segundo tipo de direitos envolve o direito de um grupo contra o resto da sociedade, contra
pressões externas (como políticas ou decisões econômicas que prejudiquem o livre
desenvolvimento de um determinado grupo) (external pressures). O primeiro dos tipos de
direitos são chamados de restrições internas (internal restrictions), enquanto o segundo
dos tipos de direitos são chamados de proteções externas (external protections).151
Direitos de minorias podem reivindicar os direitos contra o dissenso interno
afirmando que a liberdade individual de seus membros, ou pelo menos de parte deles
pode ameaçar toda a estrutura sobre a qual a cultura está lastreada. São relações
sobretudo intragrupais na qual um grupo solicita a ajuda do Estado para manter esse ‘elo’
de união comunitária.
Se direitos de minorias envolvem proteções intragrupais, proteções externas
envolvem relações intergrupais.152 Aqui o que é reivindicado o direito de um grupo se
proteger contra os demais grupos de uma sociedade. Kymlicka não deixa de notar que as
proteções externas ainda sim podem ser perigosas, especialmente quando existe uma
151 Idem, pg 341. 152 Idem, pg 341.
100
relação de injustiça entre os grupos envolvidos. É citado o caso do regime de apartheid,
quando a minoria branca utilizou-se de direitos especiais para submeter as demais etnias
negras na África do Sul.
Kymlicka se posiciona claramente cético em relação a restrições individuais, mas
concorda que o liberalismo culturalista é perfeitamente compatível com o acordo de
diversos grupos sobre as proteções externas. Para ele, os direitos das minorias são
consistentemente compatíveis com uma sociedade liberal se (a) they protect the freedom
of individuals within the group; and (b) they promote relations of equality (nom
dominance) between groups.153
O terceiro estágio que o debate multiculturalista assume é o multiculturalismo
como resposta à construção da nação (nation building). Aqui são diferenciadas duas
posturas axiológicas que um governo liberal pode assumir: a neutralidade liberal e a
negligência benigna (bening neglect).
Um dos princípios do liberalismo clássico afirma que o Estado deve deixar o
indivíduo livre na sua busca pelos ideais de boa vida. O Estado é neutro tanto na
consideração da origem étnica e cultura quanto na escolha de suas crenças e escolhas
individuais, desde que essas escolhas respeitem os direitos individuais dos outros
membros. Essa é a neutralidade liberal; dentro desse aspecto seria indiferente ao Estado
qual religião seria mais apropriada de ser seguida pelos cidadãos ou mesmo qual língua
deveria ser privilegiada. Não haveria uma diferenciação moral implícita em nenhum das
concepções de boa vida – e nem a valorização de nenhuma dessas concepções em
detrimento de outras.
153 Idem, pg 342.
101
Kymlicka propõe a negligência benigna como uma forma superior da neutralidade
liberal. Segundo Kymlicka, a idéia de que Estados liberais democráticos são neutros é
absolutamente falsa.154 As normas sociais bem como o Estado, são construídos a partir de
concepções de bem que são qualitativamente consideradas preferíveis a outras. Essas
concepções de bem são eleitas não por serem verdadeiras, enquanto outras são falsas,
mas o são por serem as que melhor promovem a integração da sociedade. Um exemplo
disso é a adoção de uma língua oficial: o Estado pode adotar uma certa língua, não por
outras serem falsas, mas por que determinada língua é a mais comum e mais eficiente
para os objetivos de comunicação.
Esse modelo de negligência benigna é um objetivo que tem sido promovido
contemporaneamente com o intuito de promover a integração no que Kymlicka define
como uma cultura societal (societal culture). Ele define cultura societal como a
territorially concentrated culture, centred on a shared language which is used in a wide
range of societal institutions, in both public and private life (schools, media, law,
economy, government, etc.).155 Kymlicka enfatiza a existência de uma cultura societal
que possui um língua comum, instituições políticas comuns, mas no entanto não possui
concepções comuns de crenças religiosas, de valores familiares ou individuais. Essas
culturas societais têm como característica básica o pluralismo cultural. Mas uma outra
questão que é levantada é: como no interior de culturas hegemônicas, ainda que se adote
a negligência benigna, uma minoria de direitos pode se proteger contra injustiças
externas?
154 Idem, pg 345. 155 Idem, pg 346.
102
III.2.2 – CINCO MODELOS DE MULTICULTURALISMO
O Estado-Nação afeta as minorias. A negligência de bens, inevitavelmente
afeta as minorias. O que faz, segundo Kymlicka, que as culturas minoritárias fiquem
diante de algumas escolhas. Mergulhadas num Estado com língua diferente, e
marginalizadas pelas instituições políticas e pela economia, resta as minorias, escolher
quatro opções básicas:
1- Podem emigrar em massa para um Estado que seja identificado com
seus anseios;
2- Podem aceitar a integração à cultura majoritária, negociando, no
entanto, os melhores termos dessa integração;
3- Elas podem perseguir uma gama de direitos e poderes de autogestão
necessários à manutenção de sua própria cultura. Tal como instituições
econômicas, políticas e educacionais próprias;
4- Podem aceitar a condição de marginalidade.156
Essas são estratégias que as minorias podem utilizar em frente ao Estado-
Nação. As diferentes minorias vão demandar diferentes estratégias na persecução
de seus objetivos. Nesse momento Kymlicka diferencia cinco tipos de minorias:
minorias nacionais; grupos imigrantes; grupos etno-religiosos isolacionistas;
‘metecos’; afro-americanos.
156 Idem, pg 348.
103
III.2.2.1 – MINORIAS NACIONAIS
Kymlicka define minoria nacional (national minorities) como grupos que
foram completamente formados e funcionam dentro de sua terra natal, mas que
por alguma razão forma incorporados à outra sociedade. Essas minorias nacionais
podem ser subdivididas em duas categorias: nações sub-estatais (substate nations)
e povos indígenas (indigenous people).157
As nações sub-estatais são nações que não possuem um estado no qual
formem maioria, mas que o possuíram no passado e/ou podem perseguir a
construção de um estado próprio.
Povos indígenas são definidos como povos que tradicionalmente viviam
e suas terras mas foram colonizados por conquistadores que os forçaram a se
integrarem numa economia e cultura estranhas ao seu modo de vida. Enquanto as
nações sub-estatais almejam a construção de um Estado com economia e
instituições políticas muitas vezes formalmente idênticas ao resto da sociedade, os
povos indígenas clamam pelo direito de manter sua cultura e sua crença
tradicionais e participarem dentro de suas próprias condições do mundo
moderno.158
157 Idem, pg 349. 158 Idem, pg 349.
104
III.2.2.2 – GRUPOS IMIGRANTES
Grupos imigrantes são formados por decisões de indivíduos e famílias que
deixa sua terra natal e imigram para outra sociedade, deixando parte significativa
de suas relações sociais para trás. Aqui, as reivindicações funcionam sobre quais
termos a integração desses imigrantes vai ser feita sobre a sociedade a qual agora
vivem. Se por um lado os imigrantes insistem em manter certas práticas culturais
no interior da ‘nova’ sociedade (culinária, vestimenta, religião, associações) o
Estado pode considerar certas práticas antipatrióticas e cercear os limites dessa
integração. O Estado pode impor algumas obrigações (como barreiras lingüísticas)
que de fato ou de direito impeçam a integração à nova sociedade.
Sobre os termos dessa integração Kymlicka afirma que dois elementos são
básicos no processo de integração: (a) we need recognize that integration does not
occur overnight, but is a difficult and long-term process that operates
intergenerationally. ... (b) We need ensure that common institutions into which
immigrants are pressured to integrate provide the same degree of respect,
recognition, and accommodation of immigrants as they traditionally have of the
identities and practices of the majority group.159
III.2.2.3 – GRUPOS ETNO-RELIGIOSOS ISOLACIONISTAS
Grupos etno-religiosos isolacionistas são grupos de imigrantes que
deliberadamente se isolam da sociedade e abrem mão da participação civil.
159 Idem, pg 354-5.
105
Utilizando critérios teológicos tais grupos se afastam de uma sociedade e de
práticas políticas consideradas corruptas e preferindo manter-se isolados em seu
modelo tradicional de vida. Tais grupos possuem métodos não-liberais de
condutas por vezes recusando-se a adotar certas obrigações civis (serviço militar),
e cerceando direitos de partes de seus membros (como impedir crianças de
freqüentar escolas, ou mantendo as mulheres circunscritas ao espaço doméstico).
Kymlicka chama a atenção para o fato de que a maioria dos Estados
liberais conseguem conviver com esse tipo de grupos desde que eles respeitem as
liberdades individuais de seus membros não obrigando outros indivíduos a
corroborarem com seus princípios (especialmente se estes ainda não possuírem
idade legal de tomada de decisões).160
Os dois tipos que serão apresentados possuem uma característica distintiva
dos outros três que foram abordados. Enquanto os três primeiros tipos (minorias
nacionais, grupos imigrantes e grupos étnico religiosos isolacionistas) sofrem
espécies de pressão integradora do Estado-Nação, como integração territorial e
difusão cultural os dois grupos seguintes (metecos e afro-americanos) sofrem uma
pressão inversa; são, ou foram durante muito tempo limitados ou mesmo
proibidos de se integrar ao restante da sociedade.
160 Idem, pg 357.
106
III.2.2.4 – METECOS161
Esse grupo é constituído por pessoas que há muito tempo vivem num dado
país mas que não possuem o direito de participação política. Apesar de estarem
vivendo, constituindo família e trabalhando, eles têm negado o acesso à cidadania.
Incluem imigrantes ilegais (exemplos claros são os mexicanos que vivem
legalmente nos Estados Unidos da América, ou Africanos ilegalmente residentes
na Espanha e Itália) e migrantes temporários (como refugiados ou trabalhadores
temporários). Generally speaking, the most basic claim of metics is to regularize
their status as permanent residents, and to gain access to citizenship.162
III.2.2.5 – AFRO-AMERICANOS
Aqui é abordada a importância que aos afro-americanos possuem na
construção do debate multiculturalista contemporâneo. Como se sabe a raiz das
injustiças cometidas com os afro-americanos é advinda do regime de escravidão
que marcou também a sociedade norte-americana até o ano de 1860. Mesmo
depois da abolição da escravatura, os negros não tiveram seus direito de cidadania
reconhecidos, sendo submetidos a segregações em diversas esferas do espaço
público, como serviço militar diferenciado, transporte público segregado. A
161Traduzido do inglês metics, que por seu turno é retirado da Antiga Grécia. Metecos eram pessoas que despeito de viverem a muito tempo na Grécia eram excluídas dos direitos políticos intrínsecos a polis. 162 Kymlicka, pg 359.
107
igualdade formal só veio nos Estados unidos após as lutas pelos direitos civis das
décadas de 1950 e 1960.
Como resultado dessa segregação, e de séculos de escravidão os afro-
americanos acabaram por ocupar um lugar desvantajoso na economia que se
reflete até os dias atuais. Em combate a essa injustiça uma série de ações
afirmativas foram realizadas, como exemplos: assistência especial de integração,
cotas de representação política, e estímulo de várias formas de associativismo
político (subsídios a colégios tradicionalmente negros, currículos educacionais
focados em uma identidade negra).163 Ao ver de Kymlicka, remediar essas
injustiças é uma obrigação moral do governo americano.
Para Kymlicka, a combinação dessas diferentes demandas (minorias
nacionais, grupos imigrantes, grupos religiosos isolacionistas, metecos e afro-
americanos) numa concepção cultural de justiça exige que os seguintes princípios
sejam observados. O Construção da nação não pode atender as necessidades da
democracia contemporânea sem que atente as seguintes condições:
1- Nenhum grupo residente a longo período num Estado pode ser
permanentemente excluído da nação. Qualquer um que viva num
Estado é capaz de se tornar cidadão;
2- Na medida em que imigrantes e outras minorias são integrados a
nação, essa integração deve ser entendida em sentido mínimo,
integração lingüística e institucional, e não como integração em torno
163 Idem, pg 361.
108
de crenças religiosas ou qualquer interferência nas identidades
culturais;
3- Devem ser permitidos às minorias nacionais os direitos de perseguirem
seu próprio Estado nacional, e de manterem suas distinções sociais.164
Kymlicka atenta que a relação estabelecida entre as políticas do Estado
nacional e as reivindicações das minorias de direitos têm um caráter dialético. Se
por um lado o Estado nacional pressiona as minorias rumo a integração, ou rumo
a não integração (como nos casos dos metecos e dos afro-americanos) as lutas
multiculturais podem servir como uma reposta as injustiças cometidas pelo Estado
Nacional. Will Kymlicka representa dessa maneira a relação entre Estado nacional
e as minorias de direitos:
164 Idem, pg 362.
109
FERRAMENTAS DO ESTADO-NAÇÃO:
- Política de cidadania - Centralização de poder - Leis de linguagem - Políticas educacionais - Prestação de serviços público - Símbolos, feriados e mídia nacional - Serviço militar
POLÍTICAS DO ESTADO-NAÇÃO
ESTADO MINORIAS
REIVINDICAÇÕES DAS MINORIAS DE DIREITOS
REIVINDICAÇÕES DAS MINORIAS NACIONAIS:
- Multiculturalismo para imigrantes - Federalismo multinacional - Inclusão de metecos - Isenção religiosa
(Fonte: Kymlicka, op cit, pg 364)
110
III.3 – CONCLUSÃO: Direcionando o Debate Multicultural
Kymlicka chega a conclusão que a neutralidade liberal é falha e causadora de
varias injustiças. Segundo o autor, um modelo político capaz de sustentar a
democraticamente a pluralidade cultural da contemporaneidade deve levar em conta as
seguintes questões: (a) As principais instituições políticas de uma sociedade não são
culturalmente neutras, mas carregam implícita ou explicitamente os interesses das
identidades e grupos majoritários; (b) deve levar em consideração a importância de certos
interesses de grupos minoritários que normalmente são ignorados pelas teorias da justiça.
A partir desse momento o debate multicultural pode ser, segundo Kymlicka,
redirecionado em dois sentidos: (a) Não é mais sustentável a tese de que justiça pode ser
definida como rigidez procedimental. Daí ser possível de se afirmar que a rigidez
procedimental pode causar desvantagens para grupos específicos. É então, necessário que
se criem regras comuns a todos os indivíduos, mas que se garantam regras diferenciadas
para diversos grupos em casos isolados. (b) daí se conclui que o multiculturalismo da
forma que foi proposto, combate às injustiças, e não cria outras injustiças que beneficiam
grupos minoritários.165
Vimos que, segundo Kymlicka, o multiculturalismo é perfeitamente compatível
com os princípios de uma sociedade liberal. E até mais que isso, a sustentação da
democracia depende do reconhecimento de direitos especiais aos grupos minoritários.
Mas Kymlicka deixa alguns pontos em questão. Kymlicka realiza um favorecimento de
algumas coletividades em detrimento a outras: há uma espécie de primazia no trato de
165 Idem, pg 367.
111
questões pertinentes a identidades nacionais e grupos étnicos, sobre questões intragrupais,
como por exemplo questões de gênero.166 Kymlicka não percebe que uma série de
reconhecimento de direitos de proteção externa pode se chocar fortemente contra as
liberdades individuais por ele mesmo defendidas.
Além disso o conceito de cultura societal é problemático. Há uma confusão entre
o que é cultura com formas institucionalizadas de identidades coletivas. O fato de as
instituições sociais terem sua origem na cultura não significa que elas podem ser
analogamente tratadas. As instituições sociais são estruturas organizacionais e não fazem
parte na sua constituição histórica de um legado multicultural. O fato de um Estado,
como por exemplo os Estados Unidos da América, serem constituídos por identidades
afro-americanas, esquimós, havaianas, chinesas... não significa ainda e existência de uma
cultura societal, mas a existência de um Estado com uma cultura dominante que
determina os símbolos e normas majoritários na sociedade que é habitado por uma
miríade de povos. Não faz sentido falar culturas societais, mas sim em nações e
sociedades que são agrupadas no interior de um Estado.
Uma observação crítica, nesse sentido em que vimos falando, ao argumento
multiculturalista pode ser encontrada na obra de Brian Barry167 e em Álvaro de Vita168.
Segundo Barry o conceito de multiculturalismo assumiu dois usos distintos. O
multiculturalismo pode ter um uso descritivo ou um uso normativo. Ele pode ser utilizado
descritivamente para designar ‘pluralismo’ (ou seja, sociedades que englobam uma
quantidade variada de comportamentos e de culturas diferentes); como pode ter um uso
166 Parte das críticas que se seguem são devedoras a BENHABIB, Seyla. The Claims of Culture. Priceton, 2002. 167 BARRY, Brian. Culture and Equality. Inglaterra: Polity, 2001. 168 Vita, Álvaro. Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo. Lua Nova, 2002. n 55-56, pg 5-27.
112
descritivo para designar uma postura política específica no tratamento de sociedades
pluralistas. Nesse caso o multiculturalismo invocaria o poder do Estado visando a defesa
de formas culturais que se sintam ameaçadas. Poderíamos afirmar que o
multiculturalismo no sentido de Kymlicka confunde os usos descritivos e normativos do
multiculturalismo. Ao perceber que a maioria das sociedades contemporâneas são
pluralistas (e são mesmo), ele argumenta como se isso per se fosse um argumento
suficiente para a defesa do multiculturalismo em sentido normativo.
Barry contra o argumento multiculturalista afirma que a solução para a exclusão
de grupos sociais não se encontra na cultura. O multiculturalismo erraria ao culturalizar
problemas que são de outra natureza. Grupos como mulheres, idosos ou negros são
excluídos, não pelo fato de terem uma cultura distinta, mas sim por estarem prejudicados
na realização de objetivos que são compartilhados em geral, como uma educação de
qualidade, bons empregos, renda169... nos termos de Nancy Fraser significaria afirmar que
a solução desses problemas estaria dada em termos de justiça socioeconômica.
Mesmo no caso das minorias nacionais e dos grupos étnicos Barry afirma que não
existe uma teoria claramente liberal para lidar com problemas de fronteiras ou de unidade
nacional. O trato a esse tipo e questão não tem como fugir a uma abordagem pragmática.
Como bem colocou Vita, lembrando Robert Dahl:
Para Dahl, assim como para Barry, a teoria democrática não oferece nenhuma solução para essas questões no âmbito dos princípios. Só é possível avaliar as diferentes alternativas de unidade política propostas com base nas perspectivas que
169 BARRY, 2001. pg 306.
113
cada uma delas oferece para a sobrevivência da democracia.170
Kymlicka apresenta uma idéia estática de cultura. Quando divide o que são
minorias nacionais ou o que são grupos de imigrantes não percebem que suas
reivindicações podem se transformar com o tempo. Grupos de imigrantes podem ao
ingressar numa sociedade aceitar certas regras básicas. Mas não se atenta que com o
tempo esses mesmos grupos étnicos podem reivindicar direitos equivalentes a uma
minoria nacional. Minorias nacionais podem, perseguir não o reconhecimento de seus
direitos no interiro de uma sociedade mais ampla, porém a sua organização estatal
enquanto sociedade específica. Kymlicka não percebe a fluidez de seu próprio conceito.
Sobre os limites da tese de Kymlicka, Seyla Benhabib argumenta:
(1) The drawing of too rigid and firm boundaries around cultural identities; (2) the acceptance of the need to “police” these boundaries to regulate internal membership and authentic life-forms; (3) the privileging of the continuity and preservation of cultures over time as opposed to their reinvention, reapropriation, and even subversion; and (4) the legitimation of culture-controling elites through a lack of open confrontation with their cultures inegalitarian and exclusionary practices.171
Outra coisa que não é dita: Como grupos minoritários sem ‘peso’ político podem
ter seus direitos reconhecidos no interior de uma ‘cultura societal’, ou melhor dizendo
num Estado majoritariamente formado por uma etnia diversa das suas? Como tais grupos
170 Vita, 2002. pg 19. A obra de Dahl, que Vita tem em mente é: DAHL, Robert. Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press, 1989. 171 BENHABIB 2002, pg 68.
114
podem ter seus direitos respeitados sem que necessitem recorrer a princípios subjetivos
do tipo ‘obrigações morais’ do Estado?
115
CAPÍTULO IV – LIBERALISMO, DIREITOS E MORALIDADE
IV.1 – MULTICULTURALISMO E MORALIDADE
É razoável afirmar que a identidade é formada numa relação de intersubjetividade.
Dessa perspectiva somos claros em defender a crítica tipicamente comunitarista em
relação a doutrinas que analisam a identidade humana como algo fechado em si mesmo.
Charles Taylor talvez seja um dos que mais abertamente criticaram essa visão naturalista
de identidade como self pontual.
Para Taylor a identidade moderna e suas concepções de bem estão
intrinsecamente situadas num espaço moral. Minha identidade é definida pelos
compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo
âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria
fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se de um
horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição.172 É o espaço sócio-cultural
no qual fomos formados que define e posiciona nossa linguagem, nossas interpretações
do mundo, nossos pré-conceitos e ideais de boa vida.
Da mesma maneira é bem verdade que somente somos no interior de nossa teia de
interlocução. Obviamente que não se diz que essa teia de interlocução seja um território
em seu sentido geográfico onde o sujeito deve respeitar as barreiras, é justamente isso
172 TAYLOR, 1997, Pg 44.
116
que Taylor combate. Só podemos conferir significação a entes que se encontram em
nosso campo lingüístico. Não há pensamento fora da linguagem. E não há compreensão
de realidade que antes não passe pelo pensamento.
Norbert Elias foi muito bem sucedido em demonstrar (com um tanto de simpatia,
é bem verdade) como os padrões de conduta (civilizados), disseminam-se no interior de
uma sociedade a partir das classes mais altas em direção as classes mais baixas. Após
serem incorporados no interior de sua sociedade, os valores das “mães-pátrias do homem
branco ” (termo dele) são transmitidos para além do próprio ocidente.
A partir da sociedade ocidental – como se ela fosse uma espécie de classe alta – padrões de conduta ocidentais “civilizados” hoje estão se disseminando por vastas áreas fora do Ocidente, seja através do assentamento de ocidentais ou através da assimilação pelos estratos mais altos de outras nações, da mesma forma que modelos de conduta antes se espalharam no interior do próprio Ocidente a partir desse ou daquele estrato mais alto.173
Os padrões de conduta e de avaliação social seriam erigidos a partir da fórmula
homem-branco-europeu-heterossexual174, submetendo então uma série de coletividades a
normas de conduta exógenas, inautênticas. Essas normas privilegiariam aqueles
indivíduos e coletividades que mais se aproximassem desse tipo idealizado.
É perfeitamente possível, então, aceitar a tese de que a subjetividade pode ser
vítima de injustiças ou violências simbólicas, e que a teia de interlocução na qual a
identidade é formada está exposta a elementos autoritários. Esses elementos autoritários
173 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.Vol 2. pg 212. 174 Sobre essa questão leia-se também David Harvey, A Condição Pós-Moderna, especialmente a parte I.
117
simbólicos e socioeconômicos aprisionam muitas identidades em formas má-
reconhecidas ou não-reconhecidas de existência. Tem um lugar respeitável na teoria
democrática contemporânea a preocupação com formas errôneas de reconhecimento,
desrespeito, injustiças culturais. São essas injustiças as responsáveis pela identidade
inautêntica, são eles, os outros (das mann) verdugos da identidade alheia, que lançam o
dasein em seu inferno.175
É então pré-condição da justiça que o indivíduo possa desenvolver sua identidade
autenticamente, seja a nível individual, como também ao nível de sua cultura. Quando
aquiescemos que a formação subjetiva depende, pelo menos em parte, da qualidade do
contexto cultural no interior do qual a identidade se desenvolve, é compreensível
defender a necessidade do respeito e da valorização intercultural. Culturas segregadas,
vítimas de perseguição ou estereotipadas não são a possibilidade de não-reconhecimento,
mas sim o não-reconhecimento atuando na sociedade. O não-reconhecimento gera a
inautenticidade.
Mas a identidade é formada dentro de um quadro crítico de reconhecimento. Não
é um processo estático que envolve selves pontuais, que como mônadas somadas formam
sua cultura, que por seu turno interage pontualmente com outras culturas e a partir disso
reclamam seus direitos. O reconhecimento é intersubjetivo e possui uma gramática moral
de desenvolvimento própria. Assim Axel Honneth demonstrou em Luta por
Reconhecimento. O ser humano é um projeto, esse projeto possui chances de realizações
e ruínas.
Honneth estabelece padrões de reconhecimento intersubjetivo calcado em três
estágios: o amor, que gera a autoconfiança; o direito que desenvolve o auto-respeito; e a
175 SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Rio de Janeiro: Loyola, 1995.
118
solidariedade que desenvolve a auto-estima. Dialeticamente Honneth também estabelece
as formas de desrespeito características a cada estágio do reconhecimento: o desrespeito
das relações primárias, marcado pelos maus tratos e pela violação física; o desrespeito
das relações jurídicas, exemplificado na privação de direitos e na exclusão; e o
desrespeito da comunidade de valores calcado na degradação e na ofensa.
Vimos que a tese multiculturalista (como a defendida por Will Kymlicka)
reivindica uma gama de direitos especiais que permita o livre florescimento de
identidades culturais variadas. O argumento é sagaz: ainda que se parta do pressuposto da
equidade formal de direitos, da imputabilidade moral universal do indivíduo dentro de
um ordenamento jurídico, a manutenção dessa juridicidade depende muitas vezes que o
estado conceda um upgrade normativo para coletividades ou grupos de indivíduos que
são ameaçados, privados de direitos e excluídos por uma cultura dominante. Nesse
momento a justiça reclamaria o princípio da isonomia (Tratar os iguais igualmente e os
desiguais desigualmente) para manter aquela mesma juridicidade. Desigualmente
posicionados na sociedade, as minorias culturais necessitariam de ações afirmativas, ou
de proteções externas que protegessem sua existência autêntica e, por conseguinte a
autenticidade de seus membros – Uma relativização normativa.
Apoiando-se no quadro de reconhecimento desenvolvido por Honneth, é possível
situar o conjunto de reivindicações multiculturais num padrão formal de eticidade. O
segundo estágio do modo de reconhecimento, o respeito cognitivo, dimensionado na
imputabilidade moral do indivíduo marca as relações jurídicas. É a forma de
reconhecimento caracterizada pelo direito.
119
O direito parte do pressuposto que um ordenamento jurídico só pode ser
considerado válido se puder contar aprioristicamente com a disposição de todos os
indivíduos em obedecer às leis. Essa obediência é valida na medida em que a lei é capaz
de submeter-se ao livre assentimento de todos os indivíduos que são abarcados por ela,
decidindo racional e autonomamente, sobre questões morais.176 O direito tem como
pressuposto a universalidade da imputabilidade moral de seus membros, e sua
participação na formação do corpo de direito como criador e beneficiário.
Todas as formas de reconhecimento possuem um potencial evolutivo. No caso do
direito esse potencial evolutivo se encontra na ampliação da compreensão das
capacidades morais dos indivíduos e (a partir das lutas sociais que ampliam esses
direitos), no aumento gradual dos pressupostos básicos de sua participação no corpo
político. Daí a distinção entre direitos liberais de liberdade, direitos políticos de
participação e direitos sociais de bem estar.177 O potencial evolutivo do direito é a
generalização dos direitos e a sua materialização. O móbil do direito é a sua
universalização e efetivação.
O direito, na visão de Honneth, tem como potencial evolutivo a generalização de
direitos e sua materialização. Que saída adotar, dessa maneira, no combate a injustiças
culturais e socioeconômicas (nos termos apresentados por Nancy Fraser) ou hierarquia
econômica e de status (nas palavras de Will Kymlicka)?178
Temos aqui um problema de relações jurídicas. Ao ver de Kymlicka, as injustiças
provenientes da hierarquia econômica imiscui minorias de direitos numa situação de
176 HONNETH, 2OO3, pg 188. 177 Idem, pg 189. 178 Há que se fazer uma breve clarificação conceitual. Honneth não utiliza o dístico ‘redistribuição’ e ‘reconhecimento’. Para ele, a redistribuição socioeconômica está inserida no reconhecimento. Ela faz parte do segundo estágio evolutivo da luta por reconhecimento: as relações jurídicas.
120
desvantagem que só pode ser combatida ao se conferirem direitos especiais aquelas
identidades culturais. O combate à hierarquia de status é fundamental para que elas
possam participar da vida social em situação de equidade com outras identidades.
Nancy Fraser, como vimos, é cética em relação a esse tipo de remédio por ela
denominado multiculturalismo dominante. No seu entender esse tipo de remédio somente
prolongaria a injustiça cultural ao positivar legalmente aquilo que deveria ser combatido.
Do ponto de vista teórico, nós também acordamos com Axel Honneth, que os direitos
sociais e políticos devem caminhar rumo a universalização. Todos os indivíduos
independentemente de identidade cultural devem ser beneficiados pela generalização e
efetivação dos direitos.
Mas isso talvez ainda não seja suficiente para defender a universalização do
tratamento cultural. Uma posição sobre isso é que as políticas redistributivas ainda sim
são seletivas, elas selecionam um segmento a ser beneficiado por elas. Os
multiculturalistas reclamam então que muitas culturas têm como raiz do seu mau
posicionamento na hierarquia de status, a má distribuição socioeconômica. Requerem
assim, garantias que membros de suas identidades culturais sejam contemplados com
direitos especiais nas políticas públicas como forma de inclusão social. Um exemplo
disso são leis que concedem benefícios educacionais a estudantes negros. Nesse ponto
concordamos com Brian Barry:
Segundo Barry, o argumento proposto pelos multiculturalistas tende a diagnosticar
erradamente o problema das minorias. Geralmente os problemas levantados por esses
teóricos não estão enraizados na cultura, e a solução seria em torno de políticas
121
universalistas, ao contrário do relativismo político jurídico tão comum ao
multiculturalismo.
The other class of demands made in the name of culture that I claim should be rejected consists of demands for the incorporation into the law of the land of systems of personal law that offend against fundamental principles of equality before the law179.
Aqui não cabe ao estado definir metas do que é boa vida, ma sim prezar que
todos os indivíduos tenham a igual possibilidade de desenvolver sua identidade. Os
compromissos substantivos ficariam a cargo do indivíduo, o estado cuidaria que os
compromissos procedimentais fossem respeitados, a partir de uma equalização, de um
igual tratamento.
É a condição social do individuo e não o pertencimento a uma determinada
cultura ou etnia que deve legitimar a política pública. Como Barry salienta no caso das
políticas afirmativas educacionais para negros:
(...) it is doubtful that under-inclusive policy is good politics. It is bound to create resentment – which cannot be dismissed as unjustified – among others similarly placed who cannot see why they should be denied the same benefits. And it builds the policy on a perilously small constituency, which does not even punch its weight politically in accordance with its numbers. Universalistic policies that track individual deprivation are not only more equitable than group-based policies; they may well also be a good deal better able to attract and sustain political support, despite their greater total cost. For example, a
179 Idem, Pg 319.
122
federal program that puts extra resource into every school that has any number of children in it who suffer from deprivation will benefit hundreds of thousands of school all over the country. In contrast, only ghetto schools, so extra resources for such schools will not directly benefit anybody outside the ghetto180.
Essa é a base de nosso argumento da crítica universalista ao multiculturalismo. As
políticas redistributivas possuem diferenças em relação às políticas de afirmação de
direitos, com sua importância própria, mas o caminho da equidade está na
universalização dos direitos, e não em sua relativização.
Retornando a tese honnethiana, percebemos a eleição do argumento universalista
no combate as injustiças socioeconômicas e culturais. Mesmo as políticas redistributivas
ao elegerem um seguimento da sociedade a ser beneficiado, o fazem mediante critérios
imparciais do ponto de vista cultural e tem como objetivo, como força motriz a
generalização do direito e não sua relativização.
Mas ainda resta uma dúvida: mesmo livres da hierarquia de direitos (marcada
pela privação e pela exclusão) minorias culturais podem ser vítimas da hierarquia de
status. Isto é, culturas historicamente marginalizadas, tendem a continuar sofrendo pré-
conceitos e injustiças culturais mesmo quando possuem direitos civis, políticos e sociais
reconhecidos pelo Estado. Identidades afro-descendentes, por exemplo, são por vezes
estereotipadas no interior da sociedade e submetidas a normas sociais identificadas com o
homem-branco-europeu-heterossexual. Que tipo de caminhos o Estado deve adotar no
180 BARRY, 2001; Pg 113.
123
combate a esse mal. Até que ponto são bem vindas leis que garantam a sobrevivência e
estimule o desenvolvimento de uma identidade cultural específica?
Nancy Fraser demonstra as limitações que uma política de afirmação de
reconhecimento pode ter no combate à injustiça cultural ou simbólica. Ela é partidária de
uma saída ligada a desconstrução dos símbolos hegemônicos que vise a transformação
profunda dos padrões valorativos que regem a sociedade. Mas Fraser não toca em qual
seria o papel do Estado na Reparação desse mal.
A interpretação de Luta por Reconhecimento nos oferece uma resposta
interessante. Questões relativas a identidades culturais fariam parte do terceiro estágio do
modo de reconhecimento: a estima social, dimensionada nas capacidades e propriedades
da identidade individual, marca da comunidade de valores. É a forma de reconhecimento
caracterizada pela solidariedade.
Enquanto no reconhecimento jurídico, o direito age como um intermediário entre
os indivíduos representando suas características universais, a comunidade de valores
calcada na estima social vai enfatizar as diferenças individuais num contexto
intersubjetivo. Ela não se dá somente na obediência a um ordenamento jurídico comum,
ela se dá no convívio sob um horizonte ético compartilhado. Esses objetivos éticos são
claramente variáveis, como variáveis também são as relações jurídicas. A forma de
reconhecimento da comunidade de valores marcada pela solidariedade é possível quando
se não apenas se garante ao outro o direito de desenvolver sua individualidade ou a
particularidade de sua cultura. A solidariedade é desenvolvida sobretudo quando o
desenvolvimento livre da identidade do outro é considerado como algo valioso para mim
124
e para toda sociedade. Significa que todo o sujeito recebe a chance de experiênciar a si
mesmo, em suas próprias relações e capacidades como valioso para a sociedade.181
Muito esclarecedor nesse tema é o trabalho de Dominique Vidal sobre a
Linguagem do Respeito.182 Nesse artigo Vidal aborda analisa a reivindicação de respeito
como elemento central no discurso político das camadas populares urbanas no Brasil.183
Aqui o desejo do respeito é visto como direito de ser reconhecido legítimo pela
sociedade. Para o brasileiro citadino pobre, o sentimento de pertencer à humanidade é
muito mais importante que a redução da desigualdade social.184 O brasileiro pobre em
seu discurso raramente condena sua condição social, o que comumente reclamado é o
modo como as camadas socialmente superiores o fazem se sentir inferiorizado. Essa
interiorização ocorre através de palavras ou atos que gerem humilhação ao lembrar uma
situação de inferioridade.
Esse desrespeito, segundo Vidal, é mais comum no ambiente de trabalho, quando
nas palavras do brasileiro o patrão trata seus funcionários como cachorro, com as
instituições do estado, como a truculência da polícia ou desprezo de outros funcionários
públicos. A humilhação é compreendida como a ausência de formas específicas de vida
pelas quais os seres humanos exprimem sua humanidade.185
Segundo Vidal no discurso político do brasileiro citadino pobre o indivíduo não
busca imediatamente a satisfação de interesses materiais, mas o respeito de ser
181 HONNETH, 2003, pg 210. 182 VIDAL, Dominique. A Linguagem do Respeito. A Experiência Brasileira e o Sentido da Cidadania nas Democracias Modernas. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol 46, n. 2, 2003. 183 Vidal utiliza um programa claramente influenciado por Axel Honneth para demonstrar a gramática moral da luta pelo reconhecimento no Brasil. Porém o termo ‘respeito’ tem um sentido mais amplo que o utilizado por Honneth. Enquanto para Honneth o respeito faz parte das relações jurídicas, para Vidal esse termo plana entre as relações jurídicas de respeito e a comunidade de valores com a auto-relação prática da auto-estima. 184 Idem, pg267. 185 Idem, pg 270.
125
considerado autônomo e individualizado. Essa luta por reconhecimento avança em duas
direções: (a) primeiro no reconhecimento a partir das lutas sindicais e das mudanças
constitucionais de 1988 que incorpora certos direitos aos trabalhadores desenvolvendo
assim a auto-relação prática do respeito. (b) Essas reivindicações expressam a
necessidade do respeito à dignidade e de ser reconhecido como indivíduo nas diferentes
modalidades de existência da vida humana.186
Nós podemos deduzir o seguinte da análise de Honneth em relação ao
multiculturalismo. (a) O Estado, enquanto organismo universalizante e generalizador do
direito não se refere a minorias de direitos ou grupos étnicos, mas sim a indivíduos
considerados universalmente na sua imputabilidade moral. (b) O reconhecimento
comunidade de valores é um integrante legítimo da gramática de desenvolvimento das
relações de reconhecimento, mas não faz parte das relações jurídicas entendidas no
sentido estrito apresentado por Honneth.
O desenvolvimento da auto-estima é indubitavelmente favorecido pela efetivação
das garantias jurídicas. Somente cidadãos que possuem a auto-relação prática do auto-
respeito desenvolvida têm totais condições de desenvolverem a auto-relação prática da
auto-estima. Mas a auto-estima não se desenvolve mediante a positivação de direitos
especiais de solidariedade, em termos liberais faz parte dos compromissos substantivos
do cidadão que compartilham um horizonte ético comum. Em termos rawlsianos
poderíamos defini-la como cultura de fundo.187
186 Idem, pg 281. 187 A cultura de fundo inclui, então, a cultura de igrejas e associações de todos os tipos e de instituições de aprendizado em todos os níveis, especialmente universidades, escolas profissionais, sociedades científicas e outras. Além disso a cultura política não-pública faz a mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo. Esta abrange os adequadamente denominados meios de comunicação de todos os tipos.
126
Um passo importante na compreensão do multiculturalismo foi dado: suas
demandas foram examinadas de acordo com um padrão crítico de moralidade. As lutas
sociais só fazem sentido dentro de um panorama mais amplo de compreensão das
relações intersubjetivas. Agora resta um outro passo igualmente importante: estabelecido
os padrões morais de análise dos comportamentos éticos, é necessário agora estabelecer
as pré-condições procedimentais de acordo com as quais essas relações serão debatidas.
IV.2 – RAZÃO PÚBLICA COMO PRINCÍPIO NORMATIVO
O argumento multiculturalista deixa importantes questões em aberto: Que
garantias uma cultura tem de que seus direitos serão respeitados mediante um fórum de
debates públicos, especialmente quando é minoritária? E antes mesmo da possibilidade
do êxito de suas reivindicações num debate público, em que termos esse debate deve ser
travado? Quais as justificações morais e procedimentos adotados para que possa garantir
o igual respeito a diferentes demandas?
Diante da complexidade das demandas em sociedades pluralistas, adotamos um
modelo formal de democracia que possa servir como um minimun ético nos debates
multiculturais. Ao nosso ver duas posições teóricas, se analisadas em conjunto, guardam
os mais promissores esforços da teoria política contemporânea no tratamento de questões
como as que vimos nos referindo. De um lado, o conceito de ‘razão pública’ de John
127
Rawls, como é abordado na segunda parte de O Direito dos Povos,188 apresenta uma
vigorosa justificação moral da democracia moderna. Ali é demonstrado como a
democracia constitucional de uma perspectiva liberal, pode ser considerada justificável
por cidadãos razoáveis mesmo que não aceitem uma doutrina abrangente do liberalismo.
De outro lado o modelo de ‘política deliberativa’ como é desenvolvido Jürgen
Habermas189 mostra como interesses divergentes e não-institucionalizados podem
estabelecer acordos e chegar a uma coerência jurídica moralmente fundamentada.
A razão pública, nos termos que foi desenvolvida por John Rawls é um elemento
característico de sociedades democráticas constitucionais. Ela explicita os valores morais
e políticos que direcionam o comportamento dos governos com os cidadãos e dos
cidadãos entre si.
Uma das principais características da democracia é o que Rawls vem chamar de
pluralismo razoável, ou seja, as sociedades são permeadas por uma série de doutrinas
abrangentes razoáveis que podem ser conflitantes. A razão pública não ataca nenhuma
doutrina abrangente desde que ela não seja incompatível com os princípios de uma
sociedade política democrática.190
A razão pública possui cinco aspectos diferentes:
(1) As questões de políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a
quem se aplica (funcionários e candidatos a cargos públicos); (3) seu conteúdo como
dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas
188 RAWLS, John. O Direito dos Povos. Martins Fontes, 2004. 189 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre a facticidade a validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. e A Inclusão do Outro. Rio de Janeiro: Loyola, 2002. 190 RAWLS, 2004, pg 175.
128
concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma da lei
legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios
derivados das suas concepções de justiça satisfazem o critério da reciprocidade.191
Essa razão é pública de três maneiras distintas: ela é a razão do público, por ser a
razão de cidadãos autônomos, seu tema é o bem público, por envolver questões referentes
a justiça política, como questões constitucionais ou de justiça distributiva, e sua natureza
e conteúdos são públicos devido ao fato de se expressarem de acordo com critérios de
justiça política que respeitem o princípio da reciprocidade.192
Note-se que a razão pública não se envolve em todas as questões de justiça
fundamental mas somente naquelas que são abordadas dentro de um espaço político
público. É o espaço de ação de funcionários de governo, juízes em grau supremo,
legisladores e candidatos a cargos públicos. É necessária essa distinção para que se separe
o que, de um lado espaço político público, e o que é, de outro, cultura de fundo a razão
pública não se aplica a esta última.193 A manutenção da razão é concretizada por
cidadãos que não são funcionários do governo, ou candidatos a cargos públicos através
dos instrumentos da democracia formal. Já que os cidadãos não podem votar em leis (a
não ser mais raramente em referendos ou plebiscitos), a razão pública é efetivada no voto
em representantes políticos. A vigilância sobre os funcionários públicos é, segundo
191 Idem, pg 175. 192 Idem, pg 176. 193 Idem, pg 177. Como o próprio Rawls reconhece, o conceito de cultura de fundo é semelhante ao conceito de esfera pública desenvolvido por Habermas e que será abordado por nós mais adiante.
129
Rawls, o esteio da razão pública. Mas ele salienta que isso é um princípio moral; se fosse
uma obrigação jurídica não seria compatível com a idéia de liberdade aqui defendida.194
Como foi afirmado, a idéia de razão pública se origina da combinação da
cidadania com um regime democrático constitucional. Esse fundamento da cidadania
política tem duas características: (a) é uma relação dos cidadãos com a estrutura básica da
sociedade. (b) É uma relação de cidadãos formalmente livres e formalmente iguais que
estabelecem as normas e exercem o poder no interior do corpo político. Aqui se apresenta
a questão de como os cidadãos podem compartilhar simetricamente o poder político e em
nome de que princípios eles podem justificar razoavelmente suas decisões perante o
corpo social.
Os cidadãos são considerados razoáveis quando oferecem uns aos outros termos e
justos de cooperação de acordo com posições de justiça por eles consideradas razoáveis,
ou seja, quando se consideram livres e iguais, e quando concordam em agir mediante as
decisões adotadas. Essas decisões podem afetar certos interesses particulares, mas ainda
assim podem ser consideradas razoáveis desde que os outros cidadãos envolvidos no
processo concordem e aceitem esses termos como válidos também para si.195 Esse é o
critério da reciprocidade. Os cidadãos podem, e irão naturalmente divergir sobre quais as
concepções de justiça são consideradas mais razoáveis, mas vão concordar que todas elas,
desde que atendam aqueles pré-requisitos, são minimamente razoáveis.
Um cidadão participa da razão pública quando delibera a partir de concepções
consideradas razoáveis, quando delibera a partir de concepções que os outros cidadãos,
tão livres e iguais quanto ele também possam aquiescer como razoáveis. Dentro de uma
194 Idem, pg 179. 195 Idem, pg 180.
130
sociedade democrática todos os cidadãos devem possuir esses princípios, de acordo com
os quais se guiem. Segundo Rawls, esses princípios de liberdades básicas são ancorados
naquilo que o liberalismo define como ‘posição original’. Esse princípio afirma que cada
pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais
que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.196 Essa
forma de justiça, definida por Rawls como justiça como equidade é apenas uma das
formas que o liberalismo pode assumir. Tendo como elemento imanente o princípio da
reciprocidade, o liberalismo pode assumir três formas: (a) uma lista de direitos, tais como
liberdades e oportunidades básicas; (b) uma atribuição especial essas garantias (direitos,
liberdades e oportunidades) no que diz respeito à persecução do bem geral; e (c) medidas
que assegurem aos cidadãos os meios adequados para que possam perseguir seus
propósitos e que possam desfrutar de suas liberdades.197
Todos esses liberalismos expressam conteúdos diferenciados do que seja
liberalismo e dos conteúdos do que vem a ser a razão pública. O debate liberal se dá em
torno das interpretações desses princípios. O liberalismo não fixa uma definição do que
se pretende que seja o liberalismo correto. Uma visão pode ser considerada válida ainda
que seja minoritária durante muito tempo, o que define sua legitimidade é a adesão aos
princípios da reciprocidade.
Ainda há uma diferença entre a razão pública e a razão secular e valores seculares.
A razão em seu sentido secular tem como objeto doutrinas abrangentes de bem, que não
são religiosas. Como se sabe, o debate sobre doutrinas abrangentes ainda é muito amplo
para os objetivos da razão pública. Mesmo o debate em torno de questões morais
196 Rawls, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes, 2003. pg 64. 197 Rawls, 2004, pg 186.
131
seculares ainda é amplo para a razão pública. Mesmo Rawls reconhecendo que o
liberalismo tem um conteúdo moral imanente, ressalta que esse conteúdo faz parte da
alçada da política e dos valores políticos da concepção liberal. Essas concepções políticas
possuem três características básicas:
Primeiro, os seus princípios aplicam-se a instituições
políticas e sociais básicas (a estrutura básica da sociedade);
Segundo, elas podem ser apresentadas independentemente da doutrinas abrangentes de qualquer tipo (embora possam ser, naturalmente, sustentadas por um consenso de sobreposição razoável de tais doutrinas); e Finalmente podem ser elaboradas a partir de idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de um regime constitucional, tais como as concepções dos cidadãos como pessoas iguais e livres, e da sociedade como um sistema justo de cooperação. 198
Um exemplo do campo de ação da razão pública dentro dos valores
políticos pode ser observado, a partir do valor da autonomia: ela pode ser
encarada de duas maneiras: autonomia política, a independência jurídica, a
igualdade formal de direitos; como pode ser entendida como autonomia moral, ou
seja, o corpo de valores que conferem sentido ao que o individuo define como
concepções de boa vida, suas crenças e ideais variados. Como a autonomia moral
pode muitas vezes defender valores que não satisfaçam o princípio da
reciprocidade , ela deixa de ser objeto da razão pública. A autonomia moral não é
não é um valor político, no sentido apresentado por Rawls, enquanto a autonomia
política, por satisfazer aqueles critérios é.
198 Idem, pg 189.
132
A razão pública, poderia então, analisar a questão das identidades culturais
de duas maneiras: por um lado seria um problema de generalização de direitos
individuais, a partir do momento que se considerassem os membros dessas
identidades como desprovidas daqueles elementos que caracterizam a autonomia
política. Por outro lado seria uma questão moral, onde seus membros defenderiam
a legitimidade de suas crenças no interior de uma cultura de fundo. Mas observe-
se em relação à primeira dimensão do problema, que a razão pública não se
direciona a identidades culturais, ela se dirige sobretudo a indivíduos que não
possuem seus direitos, sua participação política, enfim, sua autonomia política
respeitada. Como se refere também as instituições públicas que são objetivo da
razão política pública. Questões referentes ao valor moral intrínseco de culturas,
tomadas individualmente, não fazem parte do escopo da razão pública, não fazem
parte do espaço político público, mas da cultura de fundo.
IV.3 – CONDIÇÕES DO DEBATE MULTICULTURAL
Vimos que questões pertinentes à cultura de fundo não fazem parte da
alçada da razão pública. Porém isso não encerra a questão. Sabemos que
reivindicações vindas da cultura de fundo refletem quase que diretamente no
arranjo institucional que caracteriza o espaço político público, e nem sempre rumo
133
a justiça. Diante da possível minoria numérica de várias identidades culturais, é
necessário que se desenvolva uma metodologia de debate inclusiva. Nesse modelo
deliberativo, diferentes indivíduos e grupos devem estar aptos a tecer debates em
ambientes não institucionalizados e ainda sim, suas reivindicações devem ser
reconhecidas simetricamente. Outro desafio que se apresenta é o reconhecimento
pelos canais institucionalizados dessas reivindicações.
Jürgen Habermas apresenta uma proposta interessante a essa questão.
Vamos iniciar a partir da concepção habermasiana de esfera pública:
A esfera pública pode ser descrita como uma rede
adequada para a comunicação de conteúdos, tomada de
posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.199
Essa rede comunicativa não é institucionalizada, os temas nela debatidos
são fluidos, as opiniões adstringidas daí não possuem validade estatística. Não há uma
forma de mensuração das vontades individuais como pode ser verificada em votações
eleitorais por exemplo. Mas ainda assim existe uma luta pela construção de influência
entre os atores da esfera pública em torno da construção de uma opinião pública (ainda
que seja fluida). É essa opinião que vai estimular posteriormente a pauta de debates da
sociedade civil, e suas pressões sobre as instituições políticas.
199 HABERMAS, 1997. pg 92.
134
É também importante nesse momento, uma breve alusão ao conceito
habermasiano de sociedade civil. Habermas discorda, por exemplo, da conceituação
hegeliana de sociedade civil como ‘sistema de necessidades200’ para Habermas o conceito
de sociedade civil não engloba apenas o regime de direito privado e as relações de
trabalho e de troca de mercadorias. O seu núcleo é formado por associações e
organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de
comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.201 A
sociedade civil tem como uma de suas funções a institucionalização dos discursos tecidos
na esfera pública. A sociedade civil ‘organiza’ os discursos capazes de resolverem seus
problemas como pauta relevante dos debates da esfera pública. A sociedade civil se
organiza de certa forma, independentemente dos sistemas estatais e econômicos. As
liberdades fundamentais, como as liberdades negativas (aí incluídas todo o rol de direitos
de primeira geração202), servem como uma espécie de proteção contra a influência que o
Estado pode exercer na imposição da pauta de discussões que vêm a se tornar relevantes
para a esfera pública.
Poderíamos levantar esses conceitos de esfera pública e de sociedade civil e
perguntarmo-nos como eles poderiam ser instrumentalizados no debate multiculturalista.
Quais espaços teriam os grupos individuais na formação da agenda da sociedade civil, e
quais seriam as justificativas morais para o engajamento do indivíduo no debate público.
Habermas oferece o seguinte modelo para a assegurar a aceitabilidade de um argumento
no interior de um processo argumentativo:
200 Ver capítulo II, desta dissertação. 201 HABERMAS, 1997. pg 99. 202 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: UNESP, 1999.
135
(a) Ninguém que possa dar uma contribuição relevante pode ser excluído da participação; (b) a todos se dará a mesma chance de dar contribuições; (c) os participantes devem pensar naquilo que dizem; (d) a comunicação deve ser isenta de coações internas ou externas, de tal forma que os posicionamentos de ‘sim’ e de ‘não’ ante reivindicações de validação criticáveis sejam motivados tão somente pela força de convencimento das melhores razões.203
Essa é a justificação moral do debate. Sabemos que nessa esfera de debates, não
existe uma positivação jurídica de como o debate deve ocorrer, mas sim uma justificação
moral que caracteriza a formação da opinião pública, bem como o posterior
encaminhamento dos termos desse debate rumo a institucionalização (ou pelo menos
pressão) sobre os círculos estatais e jurídicos.
Percebemos que o modelo discursivo apresentado por Habermas é radicalmente
democrático, já que abre a possibilidade do debate a qualquer individuo que possa dar
uma contribuição relevante ao tema abordado. Esse modelo deliberativo de política não
se restringe ao procedimentalismo característico do liberalismo, pois não se mostra como
uma relação entre indivíduos mas, para além disso, como uma relação intersubjetiva,
onde a consideração recíproca de direitos e deveres, em proporções simétricas de
reconhecimento.204
Habermas apresenta o modelo deliberativo, como uma suprassunção aos modelos
republicanos e liberais de democracia. A visão liberal de direitos, enxerga a ordem
jurídica como legitimada de acordo com a individualidade da imputação do direito
através de direitos individuais e da analise individual de sua juridicidade. A visão
203 HABERMAS, 2002. pg 58. 204 Idem, pg 273.
136
republicana fundamenta o direito num padrão objetivo de integração social e respeito
mútuo. É sobre essas visões de direito que habermas apresenta o padrão da
intersubjetividade; a política deliberativa conserva o conteúdo liberal de direitos
fundamentais, ao passo que conserva o conteúdo radicalmente democrático de uma
organização social que leve em conta a resolução de conflitos por uma via comunicativa.
É dentro da variedade das formas que esfera pública assume, e dos fluidos
contornos que a sociedade civil pode conferir às suas demandas (não mensuráveis num
escopo institucional) que a política deliberativa ganha visibilidade empírica. Ela pode
constituir uma vontade comum não apenas pelo auto-entendimento mútuo de caráter
ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do
estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, da escolhas de
instrumentos racional e voltada para um fim específico e por meio, enfim, de uma
fundamentação moral.205
Percebemos que Habermas desenvolve um raciocínio inclusivo. Diferentes
demandas podem ser consideradas em conjunto, sem que precisem depender da virtude
dos cidadãos (como o faz muitas vezes o republicanismo, nos moldes apresentados por
Habermas). Mas imaginemos o direcionamento desse debate diante de um cenário
multicultural. Será que o modelo habermasiano de política deliberativa, ao se considerar
sensível às diferenças admitiria um rol de direitos especiais de minorias (como aqueles
defendidos por Will Kymlicka) desde que aqueles direitos antes de integrados ao sistema
passassem pelo crivo da legitimação discursiva?
205 Idem, pg 277.
137
O fato de ser radicalmente democrático quanto à fluidez das configurações
discursivas características à esfera pública, não significa ainda, afirmar que Habermas é
um asceta do multiculturalismo de direitos.
Habermas, assim como Charles Taylor206 expõe o debate a partir de duas
compreensões de liberalismo: o liberalismo 1 que não permite ao Estado perseguir
qualquer objetivo que esteja além das liberdades e bem estar individuais de seus
membros; e o liberalismo 2 que deve garantir aqueles direitos fundamentais, mas deve,
além disso preservar uma forma cultural, uma tradição e religião, ou um número limitado
delas. Habermas reconhece que o direito é um reflexo de uma formação cultural
específica, que um ordenamento jurídico é impregnado de valores morais característicos
de regiões específicas. Mas em sociedades plurais, nenhum Estado é constituído por uma
nação, mas por uma miríade de culturas. Criar barreiras jurídicas de proteção cultural não
resolve a questão das identidades, com novas fronteiras para o Estado certamente
também surgem outras minorias nacionais; e o problema não desaparece a não ser à
custa de “purificação étnica’’- o que é injustificável do ponto de vista político-moral”.207
De acordo com Habermas, um Estado pode garantir eqüitativamente a
coexistência de vários grupos culturais a partir da efetivação dos direitos individuais. Não
seria necessária nenhuma fundamentação especial de direitos, mas a sobrevivência
cultural se daria numa relação intersubjetiva a partir da preservação da integridade
individual, no respeito à identidade individual.
A existência eqüitativa das culturas não pode ser garantida através de concessões
de direitos especiais considerados além da gama de direitos individuais. Ainda que
206 Ver capítulo I desta dissertação. 207 HABERMAS, 2002. pg 247.
138
aquelas doutrinas abrangentes respeitassem os princípios de uma democracia
constitucional nos moldes do liberalismo ela seria normativamente falha. O direito deve
servir para ao reconhecimento de seus membros; ele não tem de forma alguma o sentido
de preservação administrativa das espécies.208
As tradições culturais se reproduzem ao convencer os indivíduos do valor de si
mesmas,209 ao se articularem nas experiências de vida cotidianas internalizadas e
constantemente reinterpretadas como uma hermenêutica do dasein. A positivação jurídica
não pode, não deve fazer nada além de possibilitar ao indivíduo o desenvolvimento de
seu universo autônomo. Permitam-me citar Habermas mais uma vez:
As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem se apoiar sobre o fato de cada indivíduo, em seu meio cultural, detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pessoas estrangeiras, mas nasce também – e pelo menos em igual medida – do intercâmbio com eles.210
208 Idem, pg 250. 209 GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich, LASCH, Scott. Modernização Reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997. 210 Idem, pg 252.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Will Kymlicka tem muita razão quando afirma que o atual estágio do debate
multiculturalista é um debate entre liberais acerca dos princípios do liberalismo211. Por
maiores que sejam as divergências e antagonismos, a aquiescência em relação à
democracia constitucional funciona como um horizonte ético compartilhado pela
esmagadora maioria das coletividades integrantes das discussões políticas
contemporâneas .
Modelos de reconhecimento como os propostos por Charles Taylor, Will
Kymlicka, John Rawls e Jürgen Habermas são unânimes na defesa das liberdades
fundamentais do indivíduo como pressuposto de qualquer sociedade decente.212
Equiparada a essa defesa, aqueles pensadores concordam que somente a igual estima às
diferentes identidades culturais e à pluralidade de concepções de boa vida podem conferir
ao reconhecimento o status de autenticidade.213
Tendo-se em vista a igual importância das liberdades individuais e a consideração
de diferentes ideais de vida como e de comunidade como formas autênticas de realização
do dasein, coloca-se a questão sobre a responsabilidade que uma teoria da justiça deve ter
sobre a preservação desses modelos de reconhecimento. Nossa tese afirma que a igual
relevância dos compromissos procedimentais e substantivos no desenvolvimento da
identidade humana, não impede que eles sejam abordados como qualitativamente
diferenciados.
211 Ver o capítulo 3 desta dissertação. 212 RAWLS, John. Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 213 SOUZA, Jessé. Ver seu conceito de modernidade inautêntica. In SOUZA, Jessé. Modernidade Seletiva. Brasília: UNB, 2000.
140
Se o escopo conceitual por nós demonstrado, que vai de Kymlicka a Rawls parece
concordar que o debate multiculturalista pressupõe a adesão aos princípios do Estado
democrático de direito, por dedução lógica podemos desenhar o campo discursivo onde
esse consenso sobreposto214 é deflagrado.
Obviamente as discussões na esfera pública podem ter como objeto problemas
referentes a interesses particulares, a vida privada, a esfera da intimidade,215 ou mesmo a
questões que mobilizem o uso da razão pública pela sociedade civil. Mas a partir do
momento que o argumento multiculturalista põe em pauta a envergadura da ação jurídica
institucional em torno do atendimento às demandas daquelas coletividades injustiçadas
(sejam essas injustiças de redistribuição ou de reconhecimento216) o espaço comunicativo
mais apropriado para a solução dessas contendas é o espaço político público. Essa
definição nos leva a assumir as seguintes posturas no trato das questões acima
mencionadas:
1- O espaço político público é o campo discursivo referente às relações jurídicas
e tem como forma de reconhecimento o direito;
2- A razão pública é a única razão compatível com a sistematização e
cumprimento das demandas do espaço político público;
3- Sendo a razão pública a razão do espaço político público, é por conseguinte a
razão apropriada dos debates pertinentes ao direito;
214 RAWLS, 2000. 215 GIDDENS et alli , 1997. 216 FRASER, 2001.
141
4- O direito tem por base a afirmação da imputabilidade moral do sujeito e visa a
generalização e efetivação da autonomia individual no corpo conhecido como
direito, liberais, direitos políticos, e direitos sociais.
Kymlicka afirma que as instituições políticas de uma sociedade não são neutras,
mas carregam as cores das culturas majoritárias. Baseado nessa assertiva, expressa que a
rigidez procedimental desconsidera os interesses dos grupos minoritários causando assim
prejuízos a eles. A justiça não poderia ser restringida à rigidez procedimental configurada
no universalismo de direitos, pois esta seria a razão de muitas injustiças que acometem as
minorias.
Concordamos que a justiça não pode ser restringida à rigidez procedimental. Mas
essa concordância, não significa, ainda assim uma concordância com o argumento
multiculturalista. Afirmar que uma teoria da justiça não possa se resumir ao
procedimentalismo jurídico significa dizer que o universalismo de direitos reflete um
momento da teoria da justiça no interior de uma estrutura de relações sociais de
reconhecimento. O universalismo não esvai o reconhecimento, podendo em muitos casos
ser nocivo a ele, se aplicado fora de seu contexto moral. O universalismo não pode ser
universalmente aplicado em todo espaço de desenvolvimento crítico da moral.
Se o universalismo de direitos não pode ser utilizado em todas as esferas de
interação humana, isso não significa de modo algum invalidá-lo. Mas significa dizer,
justamente contra o argumento multiculturalista, que o universalismo é não apenas
válido, mas a única postura hermenêutica justa no espaço das relações jurídicas. Isso
também não significa uma tentativa de mascaramento das fontes morais do liberalismo,
142
mas, outra vez o seu inverso: é o uso da razão pública num contexto político deliberativo
que vai possibilitar a todos os sujeitos o espaço político autêntico de sua individualidade
na tomada de decisões autônomas sobre o sentido existencialmente construído de suas
identidades, de seus selves e sobretudo – de suas culturas.
143
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