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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO MEMÓRIA E NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS SOBRE SUA FORMAÇÃO? BIANCA GONÇALVES DA SILVA Pelotas 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO

MEMÓRIA E NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS

SOBRE SUA FORMAÇÃO?

BIANCA GONÇALVES DA SILVA

Pelotas

2012

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BIANCA GONÇALVES DA SILVA

MEMÓRIA E NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS

SOBRE SUA FORMAÇÃO?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (PPGE/UFPEL) como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação na Linha de Pesquisa Currículo, Profissionalização e Trabalho Docente. Orientadora: Prof.ª Dr.ª. Madalena Klein

Pelotas

2012

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:

Bibliotecária Daiane Schramm – CRB-10/1881

S588m Silva, Bianca Gonçalves da

Memória e Narrativas Surdas: O que sinalizam as

professoras sobre sua formação?/ Bianca Gonçalves da

Silva; Orientadora: Madalena Klein. – Pelotas, 2012.

127f.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de

Educação – FaE. Programa de Pós-Graduação em Educação

-PPGE. Universidade Federal de Pelotas.

1. Professoras surdas. 2. Formação. 3. Identidade

docente. 4. Narrativas. I. Klein, Madalena, orient. II.

Título.

CDD 370

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BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Drª. Madalena Klein – UFPEL (orientadora)

Prof.ª Drª. Adriana Da Silva Thoma – UFRGS

Prof.ª Drª. Lúcia Maria Vaz Peres – UFPEL

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DEDICATÓRIA

Esse trabalho é dedicado a minha família e às professoras surdas que narraram

suas experiências para esta pesquisa.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, meu refúgio e fortaleza, por me suprir em todas as minhas

necessidades, por essa chance de vida!

Aos meus pais Dejair e Eva Marilene, meus exemplos de vida, que com muita

sabedoria e dedicação estiveram ao meu lado, me encorajando nas horas

difíceis e se alegrando com minhas conquistas diárias. Obrigado por me

ensinarem a nunca desistir de um sonho. Esse sonho acontece por vocês!

As minhas irmãs Adriana e Letiane e aos sobrinhos Fellipe e Emanuelle, por

entenderem minhas ausências e também me incentivarem nesta caminhada.

Vocês são meus amores.

A minha orientadora Profª Drª Madalena Klein, pelo apoio e incentivo durante

todo o processo, por sua eficiência, comprometimento profissional e também

pela confiança em mim depositada.

A Taiane Santos dos Santos, por tua amizade sincera, companheirismo de

todas as horas, pela cumplicidade e respeito que sempre tivemos uma com a

outra. Tu, desde o início, foste fundamental para a realização deste trabalho.

Amiga, se tu não existisses, pediria para Deus te inventar.

A Caroline Braga Michel, por todo carinho, pelo tempo que disponibilizou em ler

o meu trabalho, auxiliando-me com seu olhar.

A Israel Borba Silveira, por estar sempre presente nos momentos de choro ou

de riso, pelo ombro amigo, pela paciência em ouvir meus desabafos ao longo

deste processo. Quando tudo se tornava obscuro tu me levavas para

espairecer, minhas forças eram renovadas.

A todas as pessoas que de uma forma direta ou indireta contribuíram para a

conclusão desta dissertação.

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O que denominamos “nossas identidades”, poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, Histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente (HALL, 1997. p.26).

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SILVA, Bianca Gonçalves da. Memória e Narrativas surdas: o que sinalizam as professoras sobre sua formação? 2012. 128f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas.

RESUMO

Esta dissertação de Mestrado pretende contribuir para as discussões da educação de surdos, com base nos processos de formação de professoras surdas, abordando as Histórias de formação. Os objetivos da pesquisa consistem em compreender a constituição da identidade de professoras surdas e os aspectos de formação, mais especificamente analisar, a partir das narrativas, os processos formadores vivenciados ao longo de suas vidas que proporcionam a construção de uma identidade docente. Os dados dessa pesquisa foram buscados mediante a contribuição de três professoras surdas através de narrativas autobiográficas das Histórias de vida e formação docente. Assim, esse trabalho foi produzido e analisado, dialogando com autores que se aprofundam nos estudos relacionados à surdez, envolvendo os Estudos Surdos e suas interlocuções com os Estudos Culturais, como também autores que trabalham com o método (auto)biográfico e a formação, atrelado às narrativas de vida. Na coleta dos dados, desenvolve-se uma metodologia estratégica a fim de contemplar os objetivos centrais estipulados para a pesquisa. Foram organizados três encontros semi-estruturados, em grupo, filmados e realizados em Língua Brasileira de Sinais. Os encontros aconteceram através de uma metodologia estratégica contemplando as narrativas e tentando, contudo, estabelecer um clima informal, que deixasse à vontade as informantes. Com os relatos das professoras sobre suas Histórias de vida foram privilegiados alguns temas: oralização, a experiência visual como marcador cultural surdo, o letramento, a literatura infantil, a literatura surda, entre outras questões que apareceram nas narrativas e ao serem analisadas, apontaram para uma possível constituição das identidades docentes com base nas experiências vividas.Também foi possível constatar que na medida em que se produz cultura, também se produz identidade, ou seja, a partir dos relatos das professoras, que ao dizerem sobre suas experiências de vida, enfatizaram essas questões e apontaram para um comprometimento com o fazer pedagógico que atendesse as necessidades de aprendizagem de seus alunos surdos, constituindo uma Pedagogia surda.

Palavra chave: professoras surdas, formação, identidade docente, narrativas.

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SILVA, Bianca Gonçalves da. Memory and Deaf Narratives: what do the teachers sign about their formation? 2012. 128f. Dissertation (Master’s Degree) - Education Post-Graduation Program, Universidade Federal de Pelotas.

ABSTRACT

This Master’s degree dissertation intends to contribute to the debate

around deaf people education, based on the process of deaf teachers’

formation, taking into account their formation history. The research aims to

understand the constitution of the deaf teachers’ identity, more specifically, to

analyze, through the narratives, the constituent processes experienced

throughout their lives which have enabled the construction of a teaching

identity. The data collected in this research was searched through the

contribution of three deaf teachers, using autobiographical narratives of their life

and teaching formation history. Thus, this research was created and analyzed

dialoging with authors who deepen in the deaf related studies, involving the

Deaf Studies and their dialogues with the Cultural Studies, also, authors who

work with the (auto) biographical method and formation, tying to life narratives.

In the data collection, it was developed a strategic methodology aiming to

achieve the main goals of the research. Three semi-structured group meetings

were organized, recorded and in Brazilian Sign Language. With the teachers’

reports about their life histories some themes could be highlited: oralism, the

visual experience as a deaf cultural marker, literacy, child literature, deaf

literature, among other issues that were shown in the narratives. When

analyzed, they pointed to a possible constitution of teaching identities based on

their experiences. It was also possible to find that, as culture is produced, so is

identity, in other words, from the teachers’ reports, which showed their

experiences, emphasized such issues, showed a commitment to teaching

according to their deaf students’ needs, creating a pedagogy of the deaf.

Key Words: deaf teachers, formation, teaching identity, narratives.

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SUMÁRIO

RESUMO .................................................................................................................... 07

ABSTRACT ................................................................................................................ 08

Minha História em contexto: um exercício de conhecimento e autoformação ....................................................................................................... 10

Contextualizando a pesquisa ................................................................................. 13

PARTE1 – DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS ............................ 17

1. ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO .............................................................. 18

1.1 Um breve olhar sobre a trajetória dos movimentos surdos ............................. 20

1.2 Cultura e Identidade surda: discursos e problematizações ............................. 23

1.3 A formação docente no contexto da cultura surda .......................................... 27

2. A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E A FORMAÇÃO: ENTENDENDO O MÉTODO ........................................................................................................... 31

2.1 Narrativas de formação .................................................................................. 33

2.2 O contexto sócio-cultural das narrativas surdas ............................................. 35

3. CAMINHOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 40

3.1 O delineamento Metodológico ........................................................................ 41

PARTE2 – OLHARES SOBRE AS NARRATIVAS AUTOBIOGRAFICAS DE FORMAÇÃO .......................................................................................................... 46

4. IMAGENS E MEMÓRIAS: AS EXPERIÊNCIAS NA FORMAÇÃO ...................... 47

4.1 Tulipa: O letramento como experiência formadora ......................................... 48

4.2 Lírio: Infância, oralização e docência ............................................................. 53

4.3 Dália: A metáfora da flor ................................................................................. 58

5. ABRINDO A CAIXA DE MEMÓRIAS: REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DOCENTE ................................................................................... 65

5.1 Algumas reflexões sobre literatura infantil como construtora de identidade docente .......................................................................................... 65

5.2 Literatura surda, cultura visual: significando sua prática.............................. ................................................................................ 78

5.3 Construindo a identidade de professora: ressignificando a prática pedagógica ...................................................................................................... 83

6. NAS TRAMAS DAS NARRATIVAS: PÉTALAS, SEMENTES, VOOS ................. 89

6.1 Revendo as narrativas: ressignificando as experiências ................................ 89

6.2 Das costuras possíveis e da impossibilidade de uma conclusão final ............ 94

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 98

ANEXOS .................................................................................................................. 104

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MINHA HISTÓRIA EM CONTEXTO: UM EXERCÍCIO DE

CONHECIMENTO E AUTOFORMAÇÃO.

A experiência de si, historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas (LARROSA, 1994, p.43).

A capacidade de reflexão sobre o que fazemos, como fazemos e o que

deixamos de fazer conosco faz parte da nossa condição humana. Essa

capacidade se dá por meio da linguagem, que possibilita a constante

reinvenção de nós mesmos. A experiência da escrita é um exercício de

transformação, pois por meio dela organizamos e reorganizamos o

pensamento, afirmamos e reafirmamos conceitos, possibilitando

transformações de si. Nesse sentido, preciso narrar aqui um pouco sobre

minhas experiências, a fim de que minhas memórias me possibilitem a beleza

do processo autoformador.

Lembrar é refletir e refazer o momento que estamos vivenciando a partir

de fatos e situações históricas, as quais passaram ao longo de nossas vidas.

Podemos dizer que é um processo criativo que se desenvolve através das

memórias, e que, juntamente com as experiências do “hoje”, possibilitam o

entendimento de nossa subjetividade, singularidade e identidade. As muitas

Histórias que são contadas por nós fazem parte de um grande processo de

construção de nós mesmos, pois quando contamos algum acontecimento

outrora vivido, é como se voltássemos no tempo, criando novas possibilidades

de “ser” e “compreender” realidades. Isso se torna possível através do método

(auto)biográfico envolvendo práticas de narrativas que funcionam como

técnicas de conhecimento de si. Ora, esse instrumento é muito importante para

que os sujeitos se conheçam, permitindo experiências relacionadas ao “Eu”, na

busca de suas subjetividades através da autoformação. Segundo Finger:

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Esse saber apresenta-se assim não só como crítico, reflexivo e histórico, mas também implica uma investigação da parte da pessoa, uma pesquisa fundamentalmente formadora. Com efeito, esse saber reflexivo e critico insere-se num processo, e mais precisamente em processos de tomada de consciência. Esses últimos têm um objetivo emancipador para a pessoa e para a sociedade, pois é por intermédio deles que a pessoa atribui um sentido às suas próprias vivências e experiências, assim como as informações que lhe vem do exterior (FINGER, 2010, p.126).

Diante dessas reflexões, cabem duas problematizações que julgo

pertinentes para dar continuidade à escrita que proponho neste trabalho. São

elas1: Como estou me tornando o que sou? O que me levou a pesquisar o que

pesquiso? Por isso, não posso deixar de narrar um pouco do meu processo de

formação, pois assim me conecto com o vivido, tentando compreender os

acontecimentos que formaram meu ser. Falar sobre mim não é fácil, ainda mais

quando preciso refletir sobre vivências que deixaram marcas de crescimentos,

conhecimentos e experiências compartilhadas que servem como diretrizes ao

meu caminhar. Sendo assim, com simplicidade narro, nas próximas linhas, um

pouco das minhas experiências formadoras.

Inicialmente sou a Bianca, formada em Pedagogia, e dei seguimento aos

estudos através da conclusão do Curso de Especialização em Educação, no

qual participei do Núcleo de Educação de Surdos em 2009, e do ingresso no

Mestrado, no ano de 2010. Esses acontecimentos são marcados a partir de

uma trajetória de inserção em estudos relacionados à surdez, no campo

respectivo aos Estudos Surdos em Educação. Mas a indagação pessoal que

trago é por que a escolha desse caminho? Mesmo sabendo a resposta, contar

novamente aqui não é tarefa cansativa, nem tampouco sem significado, pois

acredito que sempre me reinvento e me possibilito novos olhares ao falar em

mim.

Quando pensei em prestar vestibular para ingressar no Ensino Superior

eu não possuía total convicção sobre que curso escolher. Isso acontece com

1A origem dessas questões tem base nos estudos realizados pela Suíça Marie-Christine Josso

(2010), que desenvolveu um método de pesquisa a partir das Histórias de vida das pessoas, o qual ela denominou de Narrativas (auto)formadoras. Essas questões foram o mote da Disciplina do Mestrado/ 2ª semestre 2010: S.A Histórias de vida e processos de autoformação, ministrada pela Professora Drª Lúcia Maria Vaz Peres (Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE -UFPel). Com base nas discussões por meio das leituras realizadas nessa disciplina, fui incorporando essa abordagem nesta dissertação.

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grande parte das pessoas que passam por essa fase, por ser uma escolha

muito importante que dará rumo aos caminhos que serão vivenciados.

Encontrava-me indecisa, não havia uma identificação com o perfil dos

candidatos, e não achava nenhum fator que me despertasse interesse.

Nessa fase de minha vida havia feito alguns cursos de Língua Brasileira

de Sinais – Libras - e mantinha relação de amizade com muitos surdos que

frequentavam minha casa. Também trabalhei como intérprete informalmente

em uma igreja por um determinado tempo e assim estabeleci contato com a

língua e cultura surda. Optei pela Pedagogia intencionando um possível

trabalho com alunos surdos. Só que aconteceu o que jamais poderia ter

imaginado, algo muito especial em minha trajetória na Universidade: o convívio

com uma colega surda que ingressou juntamente comigo no Curso de

Pedagogia. Posso afirmar que sua presença no curso mudou significativamente

minha forma de ver algumas coisas, aguçando meu olhar para as diferenças.

Os percursos de formação que trilhei e que ainda venho trilhando me

direcionaram na construção de uma identidade de pesquisadora, essa

identidade que, longe de estar pronta, é responsável por estabelecer diretrizes

nos caminhos investigativos que venho trilhando. Isso justifica o porquê das

pesquisas que venho desenvolvendo nesse período de vida acadêmica. Hoje,

através de um olhar reflexivo e formador sobre meu passado, compreendo que

a ideia de pesquisar sobre a formação de professores surdos nasceu a partir

da graduação, quando comecei a conviver com minha colega surda, podendo

presenciar o choque cultural que ela sofria por não estar em um ambiente

cultural significativo, que contemplasse os aspectos linguísticos e sociais de

formação do sujeito surdo. Ao olhar minha trajetória, percebo o quanto fui

atravessada por essas questões, ao ponto de desenvolver pesquisas que

buscam a valorização da formação de professores surdos dentro de seu

contexto linguístico cultural. Entendo que através das narrativas dos

professores surdos em formação vão se criando discursos sobre um fazer

docente, modos de agir e construir suas práticas. Isso é processo

autoformador, pois envolve Histórias de vida, memórias e todo o jogo de

significados que será utilizado em prol do sujeito que forma e que se forma.

Vejamos o que Adéle Chiené nos diz:

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É, portanto, passando pela narrativa, que a pessoa em formação pode reapropriar-se da sua experiência de formação. Em resumo, trata-se de utilizar a instancia do discurso por meio da qual o individuo pode introduzir a sua experiência, e depois, por meio da analise de nos colocarmos com ele no lugar de interprete, para sublinharmos o distanciamento do texto em relação à experiência [...] (CHIENÉ, 2010, p.133).

O sujeito da formação é aquele que consegue se colocar em um lugar

de destaque, assumindo o papel de ator nas aprendizagens realizadas através

de tomadas de consciência que o tornam independente e autônomo na forma

de aprender. Essa independência faz com que o ser em formação retome seus

valores culturais na luta por aprendizagens significativas, favorecendo-o no

papel de se autoformar para depois auxiliar na autoformação do outro. Para

subsidiar esse pensamento ainda cito Chiené:

[...] O formador favoreça a expressão do sentido que a pessoa em formação dá às suas aprendizagens, não só para que esse sentido seja mais claro para a consciência, como também para que ele ou ela adquiram um poder sobre ele (CHIENÉ, 2010, p.132).

Os processos de escolha profissional passam pelo viés das Histórias de

vida, por isso a biografia educativa2 que proponho aqui é tarefa na qual os

sujeitos se apropriam do processo de formação. Partindo desse principio,

utilizei esses conceitos na valorização das Histórias de vida dos sujeitos da

pesquisa através de narrativas para que assim reconhecessem a partir de suas

vivências, mecanismos formadores em suas práticas como professores.

Contextualizando a pesquisa

2A biografia educativa, tal como é encarada por G. Pineau, inscreve-se no objeto de

autoformação defendido pelo movimento de Educação Permanente. Portanto, ao mesmo tempo em que serve de revelador do grau de apropriação do processo de formação, contribui para reforçar as possibilidades de apreensão desse processo. A abordagem biográfica tem a sua origem em um processo educativo, não constituindo apenas uma orientação metodológica (DOMINICÉ, 2010, p.148).

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Esta dissertação justificou-se a partir dos caminhos investigativos

percorridos na pesquisa por mim desenvolvida no curso de especialização3,

visto que transitei por espaços de problematizações que envolveram as

expectativas dos professores surdos sobre as práticas desenvolvidas no ensino

da Libras como disciplina em cursos de formação universitária. Durante as

análises da pesquisa, confirmou-se que as práticas docentes que vêm sendo

desenvolvidas têm gerado um fazer diferenciado, possibilitando a constituição

da identidade de professora surda, tanto nos discursos que são produzidos,

quanto nas relações que se estabelecem nesse ambiente social. Partindo

dessas constatações, no decorrer do Mestrado4 pensei em dar um enfoque

diferente, mas ainda sim contemplando aspectos relacionados à docência, ou

seja, compreendendo como foi acontecendo a construção da identidade

docente a partir de narrativas de formação das professoras surdas.

A História dos seres humanos é construída por fases da vida, marcadas

pela infância e vida adulta. As experiências vividas e adquiridas nesses tempos

são fundamentais para a constituição de nossas identidades, valores e cultura.

Na medida em que relembramos acontecimentos passados, nos apropriamos

de vivencias através do exercício de contar os fatos como forma de capturar e

interpretar nossa História. Sobre isso, Souza nos diz:

Compreendo que as pesquisas pautadas nas narrativas de formação contribuem para a superação da racionalidade como principio único e modelo de formação. Também porque a pesquisa narrativa de formação funciona como colaborativa, na medida em que quem narra e reflete sobre sua trajetória abre possibilidades de teorização de sua própria experiência e

3 Trata-se da pesquisa O professor surdo e o espaço acadêmico: Desafios e conquistas no

exercício docente no ensino de Libras. Essa pesquisa foi realizada no curso de Especialização em Educação, da Faculdade de Educação - FAE – Universidade Federal de Pelotas - UFPel, sendo concluída no ano de 2009, sob orientação da Profª Draª Madalena Klein. 4 Durante o curso de Mestrado, fui bolsista pela CAPES, do projeto Prócultura: Produção,

Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira. Trata-se de uma pesquisa interinstitucional, que envolve três Universidades Federais do Rio Grande do Sul. São elas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Universidade Federal de Pelotas – UFPel e Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Os objetivos que têm centrado essa pesquisa (em andamento): mapear as produções culturais das comunidades surdas brasileiras; coletar as produções culturais nas diferentes regiões brasileiras, com ênfase nos espaços em que há um movimento surdo organizado, através de associações de surdos e espaços educacionais; analisar o conjunto dos processos sociais de significação envolvidas na produção, circulação e consumo dos artefatos pertencentes à cultura surda; dar visibilidade e contribuir com a divulgação das produções culturais das comunidades surdas brasileiras.

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amplia sua formação através da investigação-formação de si. Por outro lado, o pesquisador que trabalha com narrativas interroga-se sobre suas trajetórias e seu percurso de desenvolvimento pessoal e profissional, mediante a escuta e

leitura da narrativa de desenvolvimento do outro (SOUZA, 2006, p.98).

A investigação no contexto das Histórias de vida intenciona uma

autoformação por parte de quem reflete sobre suas experiências5, ou seja, o

pesquisador ou o sujeito informante da pesquisa, possibilitando a construção

de novos conhecimentos tanto sobre si como sobre os outros e sobre

diferentes realidades.

Para aqueles que são ou desejam se tornar professores é fundamental a

identificação de experiências autenticamente formativas na autobiografia, pois

promove a consciência de si, do lócus de formação pessoal e constitui um

exercício para que as vivências atinjam o status de experiência, na medida em

que se faz um trabalho de reflexão dessas vivências (Josso, 2010). As

experiências e as significações da vida não atuam de forma única consigo

mesmo, mas acontecem através das relações interindividuais que as tornam

válidas (Delory-Momberger, 2008).

A compreensão das aplicações das vivências dentro do processo da

formação docente construídas na trajetória de vida de cada um é importante

dentro de um processo de autoconhecimento. As diferentes experiências

possuem elementos formadores que participam da construção do sujeito e de

suas concepções.

Esses elementos influenciam no perfil profissional do docente. Levando

em consideração esses fatores, a pesquisa nasce do desejo e da necessidade

de melhor compreender a constituição da identidade de professoras surdas,

bem como os aspectos da formação das mesmas.

Os objetivos da pesquisa apresentada nesta dissertação consistiram em

analisar, a partir das narrativas de professoras surdas, os processos

formadores vivenciados ao longo de suas vidas que proporcionam a construção

5Proponho, pois, considerar o que designamos comumente por “experiências” como vivências

particulares. [...] vivemos em uma infinidade de transações, de vivências; essas vivências atingem o status de experiências a partir do momento que fazemos certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado, percebido e sentido (JOSSO, 2010, p.48).

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de uma identidade profissional, ou seja, como essas professoras articulam os

diferentes saberes gerados ao longo da vida na construção das identidades

docentes. Mais especificamente, meus objetivos são:

- compreender como as surdas tornaram-se professoras;

- a partir das narrativas de memórias que envolvem as Histórias de vida

pessoal, escolar e pratica docente, compreender como ocorre a construção da

identidade docente ao longo da vida;

- promover a socialização das Histórias de formação entre os informantes da

pesquisa, permitindo a autoformação.

No decorrer desta dissertação, aproximo-me de teorias que contemplam

os Estudos Surdos em Educação, estabelecendo relações com questões que

envolvem a construção da identidade de professora surda através do processo

de formação ao longo da vida, para melhor compreender como se constroem

essas identidades docentes.

Esta dissertação está dividida em duas partes. Na primeira parte são

abordadas questões referentes às teorias que embasam este trabalho, bem

como o delineamento metodológico da pesquisa. A segunda parte dedica-se a

olhar analiticamente para os dados da pesquisa, de modo a suscitar as

problematizações que compõem este estudo.

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PARTE 16

DAS FERRAMENTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

6A imagem da flor foi escolhida para representar esta dissertação, uma vez que uma das

professoras surdas, informantes da pesquisa, utilizou-a representativamente em suas narrativas. É importante frisar que a imagem aqui apresentada não é a mesma que foi utilizada pela professora e sim foi retirada da internet para compor este trabalho. Disponível em: http://images.search.conduit.com/ImagePreview/?q=dente+de+le%C3%A3o&ctid=CT3027459&SearchSource=13&FollowOn=true&PageSource=Results&start=35&pos=32

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1. ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO

Como podem ser relacionadas, dentro de um contexto educacional mais amplo, essas representações sobre a surdez? Pode-se dizer que a educação dos surdos parece se encontrar, hoje, diante de uma encruzilhada. Por um lado, manter-se, ou não, dentro dos paradigmas da educação especial reproduzindo o fracasso da ideologia dominante – movimento de tensão e ruptura entre a educação especial e a educação de surdos. Por outro lado, aprofundar as práticas e os estudos num novo campo conceitual, os Estudos Surdos, quebrando assim a sua dependência representacional com a educação especial, e se aproximando dos discursos, discussões e práticas próprias de outras linhas de pesquisa e estudo em educação (SKLIAR, 1998, p.11).

No presente capítulo trago alguns elementos sobre os Estudos Surdos

em Educação, campo teórico que, a partir de problematizações acerca da

surdez, tem gerado saberes sobre o universo dos surdos e investigações e

preposições educacionais que atentam para o contexto cultural e político dos

mesmos.

Segundo Carlos Skliar:

Os estudos surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a História, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizadas e entendidas a partir da diferença, a partir de seu reconhecimento político (SKLIAR, 1998, p.5). .

Esses estudos surgem no Brasil a partir dos movimentos surdos

organizados e com influência da perspectiva teórica dos Estudos Culturais, que

enfatizam questões como: culturas práticas discursivas, diferenças e lutas por

poderes e saberes. Os Estudos Culturais argumentam que a cultura é formada

por micro culturas, isto é, realizam estudos das culturas minoritárias que vivem

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às margens da sociedade, tais como os estudos sobre a sexualidade, gênero,

raça e surdez, entre outros.

Atentamos para a seguinte citação:

Os Estudos Culturais (EC) vão surgir em meio às movimentações de certos grupos sociais que buscam se apropriar de instrumentos, de ferramentas conceituais, de saberes que emergem de suas leituras do mundo, repudiando aqueles que se impõem, ao longo dos séculos, aos anseios por uma cultura pautada por oportunidades democráticas, assentada na educação de livre acesso. Uma educação que as pessoas comuns, o povo, pudessem ter seus saberes valorizados e seus interesses contemplados (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p.37).

Com esses estudos, começa a se travar uma luta contra a compreensão

da surdez como deficiência, levando-se em consideração a forma como os

surdos querem se narrar e serem narrados. A visão dos surdos como pessoas

deficientes, doentes e impossibilitadas de ser felizes - experiências que são

marcadas a partir de uma falta - não é a base para subsidiar os Estudos

Surdos. Em Lopes (2007) ficam evidenciados os tensionamentos permanentes

desse campo, no sentido de uma mudança epistemológica:

Com a ênfase colocada no caráter cultural da surdez e com a compreensão de que os surdos são sujeitos que pertencem a uma minoria linguística cultural, o debate da Educação de Surdos foi retirado do contexto da Educação Especial, fortemente marcada pela ênfase numa dimensão clínico-medicalizadora. Não quero dizer que a partir de 1960 os discursos clínicos tenham sido negados e excluídos da História surda, pois eles continuam até os dias de hoje fazendo investigações e ações de profilaxia. Entretanto, tais olhares médicos não entram no que chamamos hoje de Estudos Surdos (LOPES, 2007, p.26).

Segundo Skliar (1998, p.5) “A ambivalência desse discurso da

deficiência reside, justamente, no fato de que é um discurso mascarado pela

benevolência”. No entanto, para os Estudos Surdos o mais importante é frisar

as questões culturais, linguísticas e identitárias que definem as pessoas surdas

enquanto grupo diferente, dentro de um contexto sociocultural que apresenta

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vários grupos e comunidades específicas, cada um com suas peculiaridades,

sejam eles maiorias ou minorias7.

O que interessa, para este campo de estudo, é construir questões teóricas fundamentais nas comunidades surdas, nas escolas, com os interpretes de lingua de sinais, no processo de formação dos professores ouvintes e surdos etc. Ou seja, os projetos de pesquisa, nessa perspectiva, focam pontos como as identidades surdas, discursos hegemônicos sobre a surdez e os surdos, práticas discursivas e dispositivos pedagógicos, currículo, novos paradigmas etc (VIEIRA-MACHADO, 2010, p.48).

Assim os surdos, enquanto grupo culturalmente organizado, não se

definem como pessoas com deficiência auditiva, porque para eles o mais

importante não é focar a atenção sobre a falta da audição, mas sobre aspectos

linguísticos e de ordem cultural. Por isso os Estudos Surdos em Educação

ganham significado, pois por meio de suas pesquisas vêm problematizando

questões que envolvem o mundo dos surdos, possibilitando a criação de novos

discursos sobre a surdez e, consequentemente, conhecimentos sobre esse

campo de pesquisa.

1.1 Um breve olhar sobre a trajetória dos movimentos surdos

A trajetória dos movimentos surdos e a organização da comunidade

surda no Brasil foram e vêm sendo marcados por lutas e conquistas

relacionadas ao reconhecimento político e identitário desse grupo,

evidenciando a importância de se unirem e reivindicarem seus direitos frente à

sociedade. É fato que as lutas dessa comunidade permanecem acontecendo e

se multiplicando (THOMA; KLEIN, 2010). Por isso cabe destacar aqui um breve

histórico dos movimentos surdos e de suas contribuições em questões que

envolvem a valorização de políticas sociais que proporcionam a ascensão de

espaços com igualdade de direitos, como qualificação profissional e formação

acadêmica, entre outros.

7Na utilização do termo “minoria” não intenciono relacionar essa expressão com a quantidade

de sujeitos pertencentes aos grupos, mas sim salientar as relações de poder que definem os espaços desses grupos e suas condições de dizer de si na sociedade. De acordo com Skliar (2003b), não é o quantitativo que demarca o território do minoritário e do majoritário, mas sim, certo tipo de mecanismo de poder, aquele que outorga tal condição: um mecanismo de poder que a nossa tradição tentou traduzir em termos de uma relação entre dominantes e subordinados.

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Há algum tempo atrás, os estudos sobre os surdos eram entendidos a

partir da medicina e estavam ligados à falta de audição e à deficiência. Hoje

esses estudos ganharam um novo olhar com a possibilitade de ver o surdo

através de sua identidade, cultura e lingua de sinais.

No Brasil, a primeira escola para surdos foi o Instituto Nacional dos

Surdos Mudos8 (INSM), fundada no ano de 1857 pelo professor surdo E. Huet.

O instituto foi criado no Rio de Janeiro e a comunicação era realizada

principalmente em lingua de sinais, como acontecia em outras escolas de

surdos na Europa e nos Estados Unidos da América. Já no final do século XIX,

devido a um conjunto de acontecimentos que culminaram com o Congresso de

Milão (1881) e a determinação do oralismo como filosofia e método para a

educação de surdos, o ensino centrou-se na linguagem oral e escrita, não

valorizando um currículo surdo9.

Mesmo diante desses fatores, os movimentos surdos se mantiveram

dentro ou fora dos espaços escolares, em associações ou em espaços de

informalidade com o propósito de compartilhar experiências na formação e

constituição do sujeito em busca de novas oportunidades. As associações de

surdos, juntamente com o movimento de pessoas deficientes10 (cegos,

8A expressão “surdo-mudo” é uma forma antiga de identificar a pessoa surda. Essa forma de

denominação não está correta, mas ainda assim muitos meios de comunicação em nossa sociedade ainda a utilizam. O fato de uma pessoa ser surda não significa que ela seja muda. Muitos surdos foram oralizados ao longo da vida através de exercícios fonoaudiológicos e isso mostra que os surdos emitem sons. A surdez esta ligada à falta parcial ou total da audição, já a mudez está relacionada a problemas na voz. A cultura surda tem visto a utilização da termologia surdo-mudo como um erro social dado por desconhecerem os significados das duas palavras. Se pensarmos sobre o significado da palavra “mudez” entendendo-a como falta de comunicação, então podemos dizer que os surdos não devem ser nomeados dessa forma, pois a comunicação acontece através de sua lingua de sinais e sua cultura. Sendo assim, os surdos não são mudos. 9 Currículo surdo seria aquele que contempla os aspectos fundamentais da educação de

surdos. Os elementos necessários que devem ser respeitados para que se tenha um currículo que atenda a tais especificidades são: História da cultura; lingua de sinais; diferentes identidades; artes (literatura e poesia entre outras); o jeito surdo de ser, com todas as características culturais que os formam; o contato surdo-surdo; a política; os movimentos sociais etc. Ainda sobre as discussões relacionadas ao currículo surdo é pertinente dizer que: “[...] Ao longo da História dos surdos, várias denominações que contemplam uma essência surda foram surgindo: “jeito surdo”, experiência visual”, “coisas próprias do surdo”, que funcionam para descrever a diferença/essência surda. Porém, há cerca de, no máximo, 30 anos, surge no Brasil a ideia conceitual de “cultura surda”, que agrega esse essencialismo e que parece ter caráter mais científico e legítimo do que os termos anteriores, tanto nas discussões acadêmicas quanto na construção da identidade surda ( GOMES, 2011, p.123-124). 10

Segundo o Aurélio o termo deficiência se define por: falta, carência, insuficiência. Os surdos, por sua vez, não querem ser narrados pela falta ou incompletude, mas sim pelo campo da

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deficientes físicos e mentais) iniciaram campanhas intensas no sentido de

propagar os direitos desses cidadãos: direitos a atendimentos qualificados, à

educação, ao lazer, à profissionalização e ao emprego (KLEIN, 1998).

Na década de 90 do século XX os movimentos surdos ganharam

destaque, sendo fortalecidos através da organização dos surdos juntamente

com pesquisadores na luta pelo reconhecimento da lingua de sinais. No Rio

Grande do Sul, o Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos

(NUPPES) teve sua formação no ano de 1996, sendo composto por alunos e

professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cabe ressaltar que nesse Programa

formaram-se os primeiros mestres e doutores surdos do país. Esse Núcleo,

entre suas atividades, fez parcerias com a Secretaria de Educação do Estado,

assumindo a partir daí a elaboração dos currículos, bem como a formação de

professores nos cursos oferecidos pelo Estado. Além disso, o NUPPES

realizou diversos movimentos para que a comunidade surda se fizesse

presente no contexto acadêmico através da entrada de surdos na

Universidade. Ainda é importante destacar que esse mesmo grupo:

[...] sem duvida, contribuiu muito para alguns avanços sociais, educacionais e políticos no que concerne à causa surda, no Brasil. Tendo como aliada a Linha de Pesquisas Estudos Culturais em Educação, daquele mesmo programa de pós- graduação, o NUPPES, durante muitos anos, funcionou como um centro tanto produtor e irradiador de conhecimentos e formador de especialistas no campo dos Estudos Surdos quanto catalisador de ações políticas em prol dos direitos dos surdos (LOPES, 2007, p.31).

A partir da produção intelectual e da inserção de professores surdos em

espaços escolares e acadêmicos os surdos têm ocupado lugares de destaque.

Isso só foi possível devido ao processo de lutas por poderes e saberes que se

estabeleceram no decorrer da História. Com a oficialização da Língua Brasileira

de Sinais (Lei Federal nº 10.436 de 24 de abril de 2002) e a implementação do

Decreto nº 5.626 de 2005, o qual preconiza a inclusão da Libras nos cursos de

formação de professores, os surdos vêm conquistando diferentes espaços

identidade e da diferença, ou seja, a surdez pensada como diferença. Porém, nos espaços de luta pelos direitos de cidadania, lutam com os demais grupos nomeados deficientes e portadores de deficiência, dependendo do momento político e da especificidade das lutas.

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educacionais. Nesse contexto, muitas universidades federais e particulares no

nosso país vêm reconhecendo e inserindo esses profissionais como

professores responsáveis pelo ensino da Libras como disciplina11. Com isso,

muitas dessas instituições têm realizado concursos públicos e realizado

contratações para o suprimento das vagas desses profissionais. Porém, ainda

é pequeno o número de surdos com formação em pós-graduação (mestrado e

doutorado), sendo que muitas vagas para professor de Libras em instituições

públicas vêm sendo ocupadas por professores ouvintes com fluência

comprovada na língua12.

1.2 Cultura e Identidade surda: discursos e problematizações

Questões como o que é cultura surda e quais discursos vêm permeando

essa perspectiva cultural, entre outras, surgem diante de possibilidades de

análises que envolvem poder e significação. Analisando os diferentes

discursos, sabe-se que os mesmos criam verdades, que por sua vez definem

modos de ser, conviver em sociedade, experienciar e significar acontecimentos

na medida em que se aplicam a um determinado grupo ou comunidade.

Com isso, cabe aqui destacar que o termo “discurso” representa um dos

temas centrais dos estudos de Foucault, podendo encontrar uma de suas

definições como:

[...] um bem finito, limitado, desejável, útil, que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não somente em suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objetivo de uma luta, e de uma luta política (FOUCAULT, 1997, p. 139).

As análises aqui problematizadas sobre os discursos acerca da cultura

surda ganham destaque, pois os surdos são um grupo minoritário que vem

lutando para que sua cultura seja respeitada com legitimidade no contexto

11

A disciplina de Libras passa a ser obrigatória nos cursos de licenciatura no ano de 2005, com isso muitas instituições abrem concursos para profissionais surdos. 12

Essa proficiência vêm sendo atestada pelo PRO-LIBRAS, sob responsabilidade da UFSC, realizando provas de proficiência em Língua Brasileira de Sinais para exercício da atividade de docente em Libras, ou para a atividade de Tradutor/Interprete dessa língua. Essa prova está prevista no Decreto nº 5.626 de 2005, que regulamenta a oficialização da Lingua de sinais no país.

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político-social, por meio de discursos situados no campo da diferença. Perlin

nos ajuda a pensar sobre isso:

A escolha cultural do surdo pode parecer um processo anômalo para quem defende a normalidade. No entanto, a cultura surda, vista do nível das múltiplas culturas, ou da proliferação cultural ou das diferenças, faz com que transpareça com toda a sua excelência nas linguagens constitutivas das culturas. Entrar no lugar da cultura surda requer conhecimento da experiência do ser surdo com toda a transformação que o acompanha (PERLIN, 2004, p.73).

Ao falar sobre lugar, a autora refere-se às possibilidades de significar a

partir de uma cultura própria, através do compartilhar de experiências que são

vivenciadas dentro de um grupo cultural específico. Esse compartilhar só é

possível quando se rompe com padrões de normalização ditados pelos

discursos acerca da cultura ao longo dos tempos. Tais discursos hegemônicos,

baseados principalmente na cultura majoritária, fazem com que a surdez seja

vista a partir das lentes do ouvintismo13, a partir de experiências impostas por

um modelo que não valoriza as marcas surdas. Nesse embate por poder e

significação, os discursos “normalizadores” ganham força na medida em que

tentam enquadrar o surdo dentro de um modelo ideal a ser seguido. A

normalização imposta ganha padrões de verdade no exercício de

desconsiderar as outras identidades existentes, ou seja, diz que há uma

identidade considerada superior a todas as outras. Como argumenta Silva

(2000, p. 83):

A normalização é um dos processos mais sutis através dos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação a qual as

outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.

Sobre os processos de normalização impostos aos surdos, Skliar afirma

que:

13

O ouvintismo – as representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos – e o oralismo – a forma institucionalizada do ouvintismo – continuam sendo, ainda hoje, discursos hegemônicos em diferentes partes do mundo. O que é mais especificamente o ouvintismo? Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se a narrar-se como se fosse ouvinte (SKLIAR, 1998).

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Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e pela violência institucional; instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da lingua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos (SKLIAR, 1998, p.7).

O autor segue argumentando:

A configuração do ser ouvinte pode começar sendo uma simples referencia a uma hipotética normalidade, mas se associa rapidamente a uma normalidade referida à audição e, a partir desta, a toda uma sequência de traços de ordem discriminatória. Ser ouvinte é ser falante e é, também, ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado, etc. Ser surdo, portanto, significa não falar – surdo mudo – e não ser humano (SKLIAR, 1998, p. 21).

O discurso da normalização, ao narrar a surdez, coloca-a no campo da

deficiência e não no campo da diferença, produzindo-se o “anormal – surdo”

que, para ser aceito na sociedade, deve ser envolvido em processos de

normalização. Diante dessa ordem, a diferença cultural que existe entre cultura

surda e ouvinte não é valorizada, pelo contrário, nesse instante ganham força

técnicas de normalização como, por exemplo, o oralismo e a inclusão

educacional, entre outras. Por isso que as pessoas surdas têm muito a nos

dizer sobre suas realidades, sobre jeitos de ser desse povo, pois falam de um

lugar político em que as vivências surdas existem, no qual as identidades são

aceitas e as culturas são priorizadas e colocadas em prática por meio de

discursos que nascem e renascem embasados na alteridade e na diferença.

Falando desse lugar político e ressaltando tais afirmações, cito Perlin, que nos

diz:

A cultura surda é então a diferença que contêm a prática social dos surdos e que comunica um significado. É o caso de ser surdo homem, de ser surda mulher, deixando evidências de identidade, o predomínio da ordem, como, por exemplo, o jeito de usar sinais, o jeito de ensinar e de transmitir cultura, a nostalgia por algo que é dos surdos, o carinho para com os achados surdos do passado, o jeito de discutir a política, a pedagogia, etc. (PERLIN, 2004, p.77).

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Quando um grupo compartilha de uma cultura, ele cria mecanismos de

força de ordem subjetiva para lidar com as relações de poder. Esses

mecanismos se tornam mais fortes quando os surdos estão juntos, funcionando

como uma espécie de alavanca para o desenvolvimento da cultura surda14,

criando assim possibilidades de disputas por lugares de predominância do

poder da cultura dominante. Na tentativa de assumir tais locais, lutas em torno

da significação têm sido travadas há muitos anos, possibilitando a criação de

novos discursos situados no campo da diferença e não da deficiência.

As relações estabelecidas no cenário social, em seus diferentes locais,

através dos diferentes papéis que os sujeitos venham a ocupar, são de suma

importância para a constituição de identidades. Por esses motivos é

imprescindível compreender que os elementos da cultura surda são legítimos.

É através desse resgate cultural que se rompe com padrões de dominação,

buscando modificar através de ações, posicionamentos e discursos, a lógica

que a sociedade ouvinte impôs aos surdos. Afirmo aqui que todas essas

discussões são extremamente relevantes, visto que as lutas políticas sobre os

direitos dos surdos têm crescido satisfatoriamente, gerando novos frutos. O

fato de hoje existirem surdos como professores de lingua de sinais, a criação

do curso de Letras-Libras15 que vem formando professores no ensino superior,

a luta por políticas educacionais, enfim, todos esses fatores fazem com que os

sujeitos surdos, a partir de novos discursos, promovam sua cultura e identidade

com o propósito de torná-las respeitadas por todos16.

14

A educação de surdos, pensada dentro uma política educacional que respeita e valoriza a cultura dos mesmos, é vista como uma grande alavanca no processo de transformação desses sujeitos. 15

Em agosto do ano de 2006 ocorreu o primeiro vestibular para o curso de Licenciatura em Letras-Libras, desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O curso teve a participação de oito instituições de ensino superior, em diferentes regiões do nosso país na modalidade à distância, visando expressar o conhecimento em Língua Brasileira de Sinais e evidenciar as formas de ensinar e aprender dos surdos. As aulas presenciais aconteceram quinzenalmente, oportunizando o encontro dos surdos, quando compartilham de suas experiências. Nos primeiros meses de 2011 aconteceram as formaturas desses diferentes Polos, sendo que no dia 26 de fevereiro realizou-se, em Santa Maria/RS a formatura de 47 alunos deste Polo. Em 2008, outro vestibular proporcionou o ingresso de novas turmas tanto de Licenciatura (formação de professores para o ensino da lingua de sinais) quanto de Bacharelado (formação de tradutor intérprete Libras/Língua Portuguesa). 16

Cabe aqui registrar a atualidade das lutas surdas, uma vez que, por exemplo, no ano de 2012 ocorreu uma mobilização da comunidade surda brasileira, cujo ápice foi uma mobilização em Brasília (DF) nos dias 19 e 20 de maio de 2011, conforme divulgado em http://wn.com/MOVIMENTO_EDUCA%C3%87%C3%83O_DOS_SURDOS_E_CULTURA_SURDA__LIBRAS.

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Destaco as palavras de Perlin, quando diz:

Chega-se ao momento em que a cultura surda tem de ser negociada, em vez de negada, uma vez que se trata de um tema extremamente importante. Ela não está ai para uma subversão, mas como uma estratégia dos surdos para a sobrevivência. As narrativas surdas constantes à luz do dia estão cheias de exclusão, de opressão, de estereótipos. O problema histórico do povo surdo subsiste. O que é crucial para o ouvinte é simplesmente transformar essa noção de que há uma única cultura e aventurar-se pelo espaço do que significa viver no diferente, noutra cultura, do que significa a existência de uma fronteira de diferença cultural e o ser portador de outras linguagens, de outras culturas (PERLIN, 2004, p.80).

Ainda relacionada a essas discussões, a próxima seção apresenta

algumas considerações acerca da formação de professores surdos, tais como

a construção da identidade docente e a valorização de um contexto próprio,

que possibilite as trocas culturais e o fortalecimento do discurso surdo.

1.3 A formação docente no contexto da cultura surda

Atualmente, muitos fatores potencializadores da cultura surda vêm

transformando e reafirmando o cenário que envolve a educação de surdos. Um

exemplo a ser citado é a presença de surdos na universidade, rompendo com

uma territorialização cultural perpetuada ao longo de muito tempo, influenciada

pelo modelo ouvintista de educação. Cabe destacar também a importância dos

profissionais docentes surdos se inserirem em espaços acadêmicos de

predominância culturalmente ouvinte por meio do ensino da Libras. Isso se

torna relevante, porque com as práticas docentes desenvolvidas esses

profissionais podem se utilizar de mecanismos para narrar sua diferença e

propagar suas especificidades culturais.

O processo de formação de professores, juntamente com as questões

surdas, envolve a educação com todas as características, marcas e lutas

desses sujeitos. Ao pensar no processo formador, é preciso atentar-se para a

pluralidade de significados que se revelam através das vivências, tanto no

período escolar quanto no cotidiano de cada um ao longo da vida. Sabe-se que

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o histórico dos surdos é marcado por conflitos e rupturas. O embate entre

oralismo e lingua de sinais ao longo dos tempos deu a possibilidade de

redefinirem sua História, através de discursos sobre a surdez e sobre o ser

surdo.

O curso de Letras–Libras, dentro do contexto de formação cultural, é

visto como um novo e importante espaço de formação, no qual se produz

saberes que incluem os aspectos sociais, culturais e políticos presentes em

seu currículo.

Questões como cultura e poder são fundamentais para se pensar o

currículo As discussões sobre o currículo surdo estão atreladas a essas

questões. A possibilidade de elaboração de um currículo na educação dos

surdos precisa ser construída a partir da ideia de diferença como uma

construção cultural e histórica, permeada por relações de poder (LUNARDI,

1998 p.166).

Não podemos deixar de falar em currículo sem associarmos essas

questões à lingua de sinais. As experiências compartilhadas através da

Língua Brasileira de Sinais possibilitam aos surdos que a formação aconteça

dentro de um contexto linguístico compartilhado. Nesse sentido, Sá comenta

que:

Atribui-se importância ao uso de lingua de sinais na construção da(s) identidade(s) do surdo, pelo valor que a língua tem como instrumento de comunicação, de troca, de reflexão, de crítica, de posicionamento, pois, como se poderia imaginar uma significativa e natural interação entre surdos que utilizassem uma língua oral, uma língua oral sinalizada? O instrumento natural e habitual para sua interação não pode ser outro se não a lingua de sinais da comunidade surda local. Não há como negar que o uso de lingua de sinais é um dos principais elementos aglutinantes das comunidades surdas, sendo assim um dos elementos importantíssimos no processo de desenvolvimento da identidade surda/ de surdo e nos de identificação dos surdos entre si (SÁ, 2002, p. 105).

Entender a diferença lingüística da Lingua de sinais, que por muito

tempo foi desvalorizada, criando uma falsa ideia de que a Língua Portuguesa,

por ser a língua oficial do país, deveria ser utilizada por todas as pessoas como

primeira língua, ainda é um desafio nos dias de hoje. Mesmo diante de todos

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os progressos relacionados aos estudos referentes à cultura surda, mesmo

sabendo que o português não é puro e único e que sofre várias influências de

outras línguas, ainda assim existem resistências de aceitação e utilização da

lingua de sinais como primeira língua dos surdos em espaços sociais.

Afirmo, no entanto, que para a identidade docente surda ser construída

é necessário o envolvimento com a comunidade surda e com aspectos da

língua, a movimentação em prol dos ideais, o contato surdo-surdo e os

momentos de lazer e conviver, entre outros. Esses aspectos que fazem parte

da História de vida de cada sujeito, quando levados em consideração dentro de

um processo formativo possibilitam, a partir das vivências, um resgate de quem

fomos, de quem somos e de quem queremos ser.

Com isso, torna-se possível problematizar os processos de identificação

que se estabelecem na ação de rememorar acontecimentos e fatos que

marcaram a caminhada histórica de formação, partindo para uma

reapropriação de tais vivências, utilizando-as na construção da identidade de

professor surdo. A identificação acontece mediante a produção de significados

que se relacionam. Essa relação é estabelecida no contato com o outro igual

ou grupo. É importante entender o lugar a partir do qual se produz uma nova

identificação do professor surdo. É esse profissional que constrói sua cultura,

sua lingua de sinais, sua identidade e sua alteridade, a partir da qual vai

construído seu jeito de ser (REIS, 2007).

Flaviane Reis (2007) complementa, destacando que também é

importante afirmar a diferença, ou seja, a identidade do professor surdo,

entendendo melhor a sua formação e entendendo a afirmação da postura do

professor dentro do processo de identificação.

Procurando atender aos objetivos da pesquisa a que se refere esta

dissertação, abordo narrativas de formação de três professoras surdas, a fim

de possibilitar a elas contarem suas Histórias. Muitas dessas Histórias

emergiram através das lembranças das experiências vividas no tempo da

escola. Com as Histórias que envolvem os processos de escolarização, foi

possível compreender como a escolha pela docência foi acontecendo e

constituindo as identidades docentes de cada uma delas. As narrativas

biográficas foram sinalizadas pelas professoras surdas no decorrer de três

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encontros, contando com o auxilio de estratégias metodológicas, como o uso

de imagens e de caixa de memórias17.

No próximo capítulo aproximo-me das discussões referentes ao Método

(auto)biográfico, uma vez que o mesmo recorre a fontes como as Histórias de

vida a partir de memórias e narrativas de formação. Assim, através de um

recorte teórico-metodológico dessa perspectiva, subsidio a investigação que

proponho neste trabalho.

17

Essas estratégias metodológicas serão explicadas no decorrer da dissertação, na parte de metodologia.

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2. A ABORDAGEM BIOGRÁFICA E A FORMAÇÃO:

ENTENDENDO O MÉTODO

De que modo as nossas experiências nos formam? Como a nossa

trajetória de vida influencia no ser humano que somos hoje? Como as vivências

formadoras afetam as escolhas dos sujeitos no que diz respeito às decisões do

futuro, como por exemplo, a profissão? Desprezando os processos formativos

e todo o conjunto de crenças, ideologias, princípios e verdades que o

envolvem, é possível compreender o processo em totalidade e de forma

significativa?

É impossível pensar a educação sem levar em consideração os

processos formadores que constituíram a subjetividade do indivíduo ao longo

de sua vida. Suas vivências na infância, a cultura em que esteve inserido, o

modo como se deu sua escolarização, sua trajetória de relações sociais, enfim,

o sujeito tem em seu processo de formação uma gama de situações que atuam

de maneira significativa em sua trajetória.

Entender como se forma o individuo de hoje implica, intrinsecamente,

um trabalho de investigação de como ocorreu a formação do sujeito ao longo

de sua vida, que momentos foram marcantes em sua trajetória e decisivos nas

identidades do ser em questão. Para que isso ocorra, a abordagem utilizada

não pode ser engessada dentro de uma estrutura que não privilegia formas

subjetivas para desencadear essas vivências. Os processos de formação são

extremamente peculiares e particulares e se apresentam de forma diferente de

pessoa para pessoa.

Pode-se dizer que existem diferentes fatores que movimentam esses

processos e que precisam ser levados em consideração por estarem atuantes

na construção e constituição da identidades das pessoas. A estrutura social, o

meio em que está inserido e a cultura do sujeito são fatores que se apresentam

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muito variáveis para se estudar à luz de padrões considerados

metodologicamente enrijecidos, frente ao universo de diferenças multiculturais.

O desafio de se entender as questões relacionadas à formação docente

de surdos, tema na qual enfoco meu trabalho, implica necessariamente

compreender as subjetividades que permeiam a construção da identidade de

ser professor, atreladas à cultura surda. Sobre isso:

Para desenvolver tal tema, argumentamos que, além da lingua de sinais, da arte, do teatro e da poesia surda, a noção de luta, a necessidade de viver em grupo e a experiência do olhar são marcadores que nos permitem falar de identidades surdas fundadas em uma alteridade e uma forma de ser surdo. Longe de defender uma pretensa essência surda, nosso objetivo é mostrar que a expressão ser surdo abrange uma experiência de ser, de estar num mundo, que é vivida no coletivo, mas sentida de maneiras particulares. Embora tenhamos distintas formas de viver a condição de ser surdo, alguns elementos presentes nas narrativas surdas sobre si permitem-nos reconhecer, na dispersão dos enunciados, alguns elementos recorrentes que, ao serem agrupados, conectados e selecionados, nos indicam marcadores comuns dentro de um grupo cultural especifico (LOPES; VEIGA-NETO, 2010, p.116).

Em vista disso, a metodologia que utilizei no trabalho e que contempla

os aspectos abordados até aqui, é o método18 (auto)biográfico. Definindo19 um

pouco esse método, podemos dizer que o mesmo se mostra em caráter

subjetivo, qualitativo, alheio a todo o esquema de estudo enrijecido, e que tem

por foco as Histórias de vida de cada sujeito como processos de formação. Ele

apresenta como fundamento que a vida de cada um é uma apropriação

individual sobre as relações, saberes e vivências que se dão em um cenário

18

A partir dos anos 2000, observa-se nos estudos pós-graduados no Brasil um movimento que vem contribuindo para a fundação da pesquisa (auto)biográfica em Educação. Ele se expressa mediante a explosão de teses e de dissertações de mestrados que tomam como palavra-chave da investigação o termo (auto)biográfico: o êxito dos Congressos Internacionais sobre Pesquisa (Auto)Biografica (CIPA); A CRIAÇÃO DA Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biografica (BIOgraph); a existência de publicações nacionais e internacionais sob o titulo de Pesquisa (auto)biográfica. Esses fatos sinalizam uma forma de superar a flutuação terminológica gerada pela multiplicidade de denominações relativas ao uso de fontes (auto)biograficas: abordagem biográfica ou autobiográfica, método (auto)biográfico, narrativa de vida, relato de vida, Histórias de vida em formação, pesquisa narrativa, investigação biográfico-narrativa (PASSEGGI e SILVA, 2010, p.106). 19

O trabalho biográfico, nesta dissertação, centra-se na reconstrução de Histórias de formação,

proposto por estudiosos como: Marie-Christine Josso (2010), Christine Delory-Momberger (2008), Pierre Dominicé (2010) e Elizeu Clementino de Souza (2006). Esses pesquisadores têm contribuído relevantemente para que a metodologia que envolve as Histórias de vida faça parte do processo de formação do sujeito no mundo contemporâneo.

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social no qual está inserida. Com isso, acontece uma apropriação por parte do

sujeito em relação às experiências formadoras que se dão nesse meio, das

quais se utiliza na construção do seu “eu”. Existem territórios acessíveis aos

nossos sentidos que pertencem ao nosso ambiente humano e natural e

testemunham, com uma espécie de evidência, lugares de experiências

formadoras e fundadoras. Mas existem igualmente espaços invisíveis - ou não

tão tangíveis - nos quais as simbólicas do sentido, humanamente construídas

no singular-plural, se dão a conhecer como tipologias experiências (JOSSO,

2008).

Finger; Nóvoa (2010, p.23) descrevem o método biográfico assim

dizendo:

O método biográfico permite que seja concedida uma atenção muito particular e um grande respeito pelos processos das pessoas que se formam: nisso reside uma das suas principais qualidades, que o distinguem, aliás, da maior parte das outras metodologias de investigação em ciências sociais. Respeitando a natureza processual da formação, o método biográfico constitui uma abordagem que possibilita ir mais longe na investigação e na compreensão dos processos de formação e dos subprocessos que o compõem.

Partindo disso, é fundamental entender como ocorre a interiorização das

vivências e como atuaram e vêm atuando na constituição da docência. No

caso, entender como funciona os meios sociais e culturais surdos e como o

sujeito surdo absorve tais vivências, utilizando-as como a base que subsidiará

sua constituição e formação. Essas problematizações acerca da construção da

identidade docente surda serão abordadas no transcorrer das analises

desenvolvidas na pesquisa aqui apresentada.

2.1 Narrativas de formação

Atualmente, as pesquisas realizadas nas ciências sociais têm dado

maior atenção às pesquisas relacionadas à biografia e à História de vida. Na

educação, em especial, essas abordagens vêm ganhando um espaço de

discussões, privilegiando a narrativa pessoal e a utilizando na articulação de

saberes a partir do terreno político, cultural e social.

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As narrativas orais e, no caso do presente trabalho, gestuais20, provêm

de uma base epistemológica21 representada historicamente por fatos,

episódios, acontecimentos e experiências que influenciam a construção do

olhar que temos sobre nós mesmos e que estão intrincados a um conjunto de

valores, ideias e símbolos que representam a identidade de cada um. Partindo

desse pressuposto, sabemos que as identidades são construídas

permanentemente ao longo da vida, a partir de uma teia de relações que se

estabelece com o/no grupo cultural do qual fazemos parte. Por exemplo:

professores surdos relatam experiências22 que marcaram suas vidas pessoais

e que refletem nos seus cotidianos profissionais, como as ocorridas na infância,

quando ainda eram alunos e estavam inseridos em um sistema de ensino em

que privilegiava a língua falada, dentro de uma organização curricular ouvinte.

Lembrando esses momentos, eles podem trazer essas experiências para o

contexto atual e de forma ressignificada construir novas possibilidades de ação

docente.

A opção pelas narrativas (auto)biográficas corresponde neste trabalho

como instrumento de formação, pois permite que os sujeitos da formação

ressignifiquem suas aprendizagens. Através da prática dos relatos, o percurso

de sua vida é evidenciado, ou seja, os professores, no exercício de rememorar

sua trajetória, demarcam suas singularidades, possibilitando, a partir das

ressignificações entenderem os sentimentos e as representações dos sujeitos

no processo de autoformação. Para sustentar essa ideia, cito Chiené (2010,

p.132):

20

Os informantes da pesquisa realizarão as narrativas em Libras. 21

A palavra epistemologia refere-se ao estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas; Teoria da Ciência. Neste caso, a epistemologia está relacionada a um conjunto de princípios e valores que representam historicamente os surdos. 22

Pesquisas com essa abordagem já vem acontecendo no campo da Educação de Surdos, envolvendo memórias e narrativas. Um exemplo foi o curso de formação continuada Memórias, narrativas e experiências docentes na educação de surdos – desenvolvido como parte integrante da pesquisa intitulada: Lingua de sinais e Educação de surdos: políticas de inclusão e espaços para a diferença na escola sob a coordenação da professora Drª Adriana da Silva Thoma. O mesmo foi realizado no ano de 2008, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e contou com a participação de professores surdos e ouvintes que, através de suas escritas que se deram através de cartas, diários individuais e de um diário coletivo virtual – Blog. Assim, escolheram escrever sobre suas trajetórias na educação de surdos. Essa pesquisa resultou em alguns textos publicados em anais de eventos como também em livros da área. Alguns destes textos serviram como referencia nesta dissertação e constam das referencias bibliográgicas, tais como Thoma e Bandeira (2010a, 2010b), entre outros.

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Elaborada de forma descritiva, a narrativa de formação tem por objetivo principal, segundo o que é pedido, falar da experiência de formação. Relativamente à narrativa de vida, presume-se que a narrativa de formação apresente um segmento da vida: aquele durante o qual o individuo esteve implicado num projeto de formação.

Ainda nesta direção, Delory-Momberger (2008, p. 37) argumenta:

É a narrativa que confere papéis aos personagens de nossas vidas, que define posições e valores entre eles, é a narrativa que constrói, entre as circunstancias, os acontecimentos, as ações, as relações de causa, de meio, de finalidade; que polariza linhas de nossos enredos entre um começo e um fim e os leva para sua conclusão; que transforma a relação de sucessão dos acontecimentos e encadeamentos finalizados; que compõe uma totalidade significante, na qual cada evento encontra o seu lugar, segundo sua contribuição na realização da História contada.

Pelo que foi argumentado até o momento, é pertinente afirmar que a

metodologia discutida até aqui privilegia, de forma ampla e significativa, a

compreensão dos diferentes modos como os professores surdos podem dar

sentido às vivencias e aos processos sócio-históricos que contribuíram para a

escolha da profissão de educador. É a narrativa que faz de nós o próprio

personagem de nossa vida; e é ela, enfim, que dá uma História à nossa vida:

não fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma História; temos uma

História porque fazemos a narrativa de nossa vida (DELORY-MOMBERGER,

2008).

2.2 O contexto sócio-cultural das narrativas surdas.

Pela razão de que as pessoas Surdas como um grupo não são caracteristicamente imaginadas como tendo sido criadas em algum tempo ou lugar, isto levou um longo tempo para que reconhecêssemos a História seguinte pelo o que ela é: o conto popular sobre as origens dos grupos. As Histórias contadas pelos membros de uma cultura sobre as suas origens, se elas possuem motivos religiosos ou fantásticos, são criações do significado a respeito da existência da cultura. Elas reafirmam o presente instilando seu significado no passado. Este conto popular em particular serve ao mesmo propósito — contar onde

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e como as pessoas Surdas começaram (PADDEN, 1988, p.22)23.

Entendendo que as Histórias do povo surdo são contadas de geração

em geração pelos membros dessa cultura, é interessante pensarmos algumas

questões: Como seriam as narrativas surdas? De que lugar essas pessoas

falam? Acredito que esses dois questionamentos são importantes para

compreensão de alguns pontos sobre as narrativas surdas.

No capitulo anterior foram mencionadas algumas discussões em torno

da lingua de sinais. Ainda é pertinente falar dentro de um contexto sócio

cultural que a lingua de sinais, por possuir características linguísticas próprias,

assim como as que caracterizam as línguas orais, também oferece

possibilidades de constituição de significados, cumprindo um papel

fundamental na educação das pessoas surdas e na constituição de suas

identidades.

Assim como as línguas orais, a Libras possui todos os níveis linguísticos:

fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático, alem de possuir

estrutura gramatical própria, sendo utilizada na comunicação.

Além disso, Quadros e Karnopp mencionam o seguinte:

As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela lingüística como línguas naturais ou como um sistema lingüístico legitimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua dos sinais atendia a todos os critérios lingüísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças [...] observou que os sinais não eram imagens, mas símbolos abstratos complexos, com uma complexa estrutura interior. Ele foi o primeiro, portanto, a procurar uma estrutura, a analisar os sinais, dissecá-los e a pesquisar suas partes constituintes (QUADROS; KARNOPP, 2004, p.30).

No entanto, a língua não é composta simplesmente pela gramática, mas

também é reconhecida como componente de uma cultura envolvida em um

jeito-surdo-de-ser e que, através dessa forma diferente, os surdos vão

23

Texto traduzido para uso em aula e seminários.

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constituindo sua subjetividade, com a valorização de suas vivências,

capacidades e experiências compartilhadas.

No caso dos ouvintes, as narrativas são orais, contadas dentro de uma

estrutura linguística que tem a fala como enfoque. Isso não ocorre com os

surdos, pois nesse caso, as narrativas são gestuais, contemplando os aspectos

representativos desse povo.

Nas últimas décadas foi bem estabelecido que as línguas de sinais dos surdos são sistemas linguísticos completamente desenvolvidos que se apóiam fortemente no uso do espaço e os movimentos das mãos- em lugar das modulações acústicas do trato vocal. As línguas de sinais mostram sistemas gramaticais complexos, mas diferentemente das línguas faladas, esses sistemas linguísticos fazem uso de padrões e contrastes espaciais (EMMOREY; BELLUGI; KLIMA, 1993, p. 19-20 apud PEREIRA, 2011 p.39).

As especificidades das narrativas surdas não estão unicamente

localizadas no uso da lingua de sinais. Outros aspectos da cultura surda

também ficaram evidenciados nas narrativas das professoras surdas que

participaram da pesquisa apresentada nesta dissertação e estão relacionados

com a pedagogia (jeito de ensinar), as narrativas das artes (teatro, piadas,

literatura), as narrativas sobre as lutas políticas, os processos de formação etc.

Hall (2003) ajuda-nos a pensar nisso quando diz que todos nós nos

localizamos em vocabulários culturais, e sem eles não conseguimos produzir

enunciações como sujeitos culturais.

Os surdos, por serem entendidos como grupo social que se diferencia

dos demais grupos, também utilizam de vocabulários culturais compartilhados

e que indicam características peculiares de formação. Tais características

estão diretamente relacionadas aos locais sociais por onde os mesmos

transitam. Por esses fatores, é correto afirmar que existem alguns locais

culturais de onde as pessoas surdas falam e que caracterizam uma tradição

dessas narrativas. A seguir veremos algumas características desses espaços

de significação.

A família é referida como o primeiro espaço primordial para que ocorra a

identificação, considerando que ela é a primeira referência que os sujeitos têm

para construir-se. A família é o núcleo social básico que promove relações

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interpessoais importantíssimas entre seus membros. Com base nessa

afirmação, cabe problematizar aqui as seguintes questões: como se dão as

relações interpessoais quando a criança surda nasce numa família de pais

ouvintes? E quando um casal surdo tem um filho ouvinte? A identidade surda,

de acordo com as discussões que vêm sendo realizadas ao logo deste trabalho

prioriza acontecer na família em que os pais são surdos, por apresentarem

elementos culturais que lhes constituem, favorecendo a interação entre todos.

As famílias de pais ouvintes que têm filhos surdos devem, no entanto,

proporcionar a esses sujeitos o convívio com pessoas surdas, para que através

de um referencial de identificação possam ter contato com a lingua de sinais e

direito a uma educação que se utilize da pedagogia surda. Infelizmente, ainda

são muitos os casos de famílias ouvintes que negam esses direitos aos seus

membros surdos, possibilitando a eles somente um modelo de identificação, no

caso, o modelo ouvinte. Em consequência disso, se nega também aos surdos

o direito de construírem suas subjetividades surdas.

O segundo espaço que defino aqui acontece no âmbito escolar, ou seja,

os surdos reunidos no mesmo espaço da escola, na troca de experiências e no

compartilhamento linguístico, em que todas as assimilações se identifiquem a

um jeito surdo de ser, viver e aprender. Em contrapartida, as Histórias de

escolarização de muitos surdos enfatizam o não compartilhamento da lingua de

sinais e a utilização de técnicas de ouvintização, a partir de práticas que

obstinavam a correção e a normalização dessas pessoas. Por isso as

narrativas surdas se tornam práticas necessárias para afirmarem o campo da

surdez como sendo o local no qual acontecem os processos de subjetivação. A

História dos surdos, como já foi discutido na seção anterior, foi marcada pela

medicalização da surdez, na qual a norma ouvintista se impunha sobre

qualquer outro modo de entender os surdos. As narrativas surdas pretendem

produzir outros padrões de identificação e de referência. Isso nas palavras de

Lopes e Veiga-Neto (2010) significa que:

Começaremos dentro de outro juízo de valor, a dar lugar com menos ênfase para tal enfoque. Neste outro enfoque, o ouvinte não é o outro do surdo; o próprio surdo é que passa a ser o outro do surdo. É na norma surda que deve ser gerada a medida para que possamos avaliar os surdos e determinar se estão enquadrados no que o grupo específico pensa ser

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normal, problemático, anormal, estranho, etc. (LOPES; VEIGA-NETO, 2010, p.121).

E o terceiro espaço é definido pelas associações de surdos, entendidas

como lugares potenciais de ressignificação de suas vivências e onde podem

refazer sua historia através dos movimentos sociais e políticos promovidos por

essas instituições. Além disso, esses locais proporcionam uma aproximação

entre os sujeitos surdos e os movimentos de lutas históricas de seus iguais,

que foram travadas para desmistificar todo o tipo de representações dos

surdos e da surdez ligadas a concepções clínicas e patológicas. Também

associações ou outros espaços de encontros informais entre surdos podem

proporcionar processos de identificação de Histórias não necessariamente

ligadas a um movimento político e de lutas, mas a possibilidade do

compartilhamento de língua e de experiências cotidianas comuns, não

enquadrando todas as possibilidades de identidades surdas em um modelo de

militância e engajamento.

As práticas de letramento dos surdos, as demarcações por territórios

simbólicos, as lutas pelo reconhecimento das especificidades culturais e todos

os componentes formadores constituem narrativas surdas, ou seja, uma

tradição que foi se estabelecendo ao longo da História, a partir das vivências

de cada sujeito surdo e que os autorizou a se narrarem e assim trazerem

novos sentidos para aquilo que denominamos surdez e entendemos por jeito-

surdo-de-ser.

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3. CAMINHOS METODOLOGICOS

No presente capítulo apresento os caminhos metodológicos percorridos

na pesquisa. Deterei-me aqui em traçar algumas diretrizes sobre como foram

realizadas as coletas de dados e possíveis análises. Os dados dessa pesquisa

foram buscados mediante a contribuição de informantes surdas, através de

narrativas autobiográficas das Histórias de vida e formação docente. A partir

das narrativas foi possível obter informações que contemplam os objetivos

iniciais propostos neste trabalho.

Com a pesquisa realizei problematizações acerca da formação de

professoras surdas. Abordei questões que envolveram a construção da

identidade profissional dessas professoras, através do processo de formação

ao longo da vida24. Essas contextualizações possibilitaram o reconhecimento

da História dos surdos para entendermos quais as relações que foram se

estabelecendo entre suas vivências pessoais e as aplicações dessas

experiências no desenvolver da identidade profissional.

Sendo assim, como já apresentados anteriormente, os objetivos dessa

pesquisa focaram-se em:

- compreender como as surdas tornaram-se professoras;

- a partir das narrativas de memórias que envolvem as Histórias de vida

pessoal, escolar e pratica docente, compreender como ocorreu a construção da

identidade docente ao longo da vida;

- promover a socialização das Histórias de formação entre os informantes da

pesquisa, permitindo a autoformação.

24

A formação ao longo da vida é uma categoria central para os estudiosos que preconizaram o

método (auto)biográfico.

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3.1 O delineamento metodológico

A proposta em questão constitui-se como uma pesquisa qualitativa, pois

se baseia nas vivências, crenças e percepções acumuladas ao longo da vida

dos sujeitos de pesquisa. Muitos estudos na área da educação, envolvendo os

aspectos sociais, vêm se utilizando desses métodos para desenvolver esses

tipos de investigações. Enquanto os estudos quantitativos preocupam-se

principalmente com o rigor preestabelecido e hipóteses geradas por

instrumentos estatísticos para análise dos dados, as pesquisas mais

conhecidas por “quali” buscam a descrição de dados a partir do contato direto

com os investigados ou situação de investigação. Quanto a isso vejamos:

A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento [...] a pesquisa qualitativa supõem o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regra através do trabalho intensivo de campo. [...] Como os problemas são estudados no ambiente que eles ocorrem naturalmente, sem qualquer manipulação intencional do pesquisador, esse tipo de estudo é também chamado de “naturalístico”. Para esses autores, portanto, todo estudo qualitativo é também naturalístico (BOGDAN e BIKLEN, 1982 apud LUDKE, 1986 p.11).

Na coleta dos dados, desenvolveram-se estratégias a fim de contemplar

os objetivos centrais estipulados para a pesquisa. Assim, este trabalho foi

produzido e analisado, dialogando com autores que se aprofundam nos

estudos relacionados à surdez, envolvendo os Estudos Surdos e suas

interlocuções com os Estudos Culturais, assim como autores que trabalham

com o método (auto)biográfico e a formação, atrelado às narrativas de vida.

Como estratégia na investigação foram organizados três encontros semi-

estruturadas (respeitando um roteiro que não é fechado) em grupo, filmadas e

realizadas em Língua Brasileira de Sinais, com a presença das três professoras

surdas e tradutor interprete25. Os encontros se embasaram nos relatos das

25

Somente no primeiro encontro contamos com a presença do tradutor interprete da Libras. Nos

demais encontros a própria pesquisadora conduziu as os mesmo em Língua Brasileira de Sinas. Isso se deu, devido a dificuldade de encontrar interpretes para atuarem no dia do encontro marcado. Posteriormente encaminharam-se os dois encontros filmados, para um profissional realizar a tradução para o português escrito.

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professoras surdas considerando suas narrativas como fonte significativa para

a coleta de dados. Assim, as mesmas puderam conversar sobre suas

experiências e compartilhar dessas Histórias. Os encontros aconteceram de

forma intencional26, através de estratégias metodológicas que estimulassem as

narrativas, tentando, contudo, estabelecer um clima informal, que deixasse à

vontade as informantes.

O público alvo ficou definido da seguinte forma: três professoras

surdas27 que atuam no Ensino Fundamental - séries iniciais e no ensino de

Língua Brasileira de Sinais - de uma escola específica para surdos.

Organização dos encontros

A coleta dos dados foi organizada em três encontros28 presenciais com

as informantes da pesquisa, registrados através de filmagens, contemplando as

seguintes atividades previstas:

Primeiro encontro: A pesquisa, seus objetivos e as atividades previstas foram

explicados às professoras surdas. Nesse momento, solicitou-se que as

informantes lessem e assinassem o termo de Consentimento Livre e

Informado, garantindo os aspectos éticos da pesquisa e assegurando a

participação voluntária das docentes. Logo em seguida foi proposto a elas a

realização de uma breve apresentação, na qual cada uma falou sobre si,

respeitando o seguinte tema: “O que é importante falar, neste momento, sobre

a minha vida, que represente a construção da minha identidade docente?”.

Conforme foi acontecendo os relatos das professoras, foram propostas outras

perguntas para motivar as narrativas.

26

Os encontros nesse caso, intencionaram, através das experiências narradas pelas

professoras, atingir os objetivos centrais deste trabalho. Contudo, procurei sempre desenvolver essas entrevistas deixar as professoras surdas livres, para interagirem e se expressarem considerando quaisquer vivências que elas viessem apresentar como sendo significativas no contexto de conversação que estava acontecendo. 27

Para as informantes da pesquisa, foram atribuídos os seguintes nomes: Tulipa, Dália e Lírio. Esses nomes foram escolhidos pelas próprias professoras surdas, para representá-las nessa dissertação. 28

Os encontros aconteceram, semanalmente de acordo com a disponibilidade dos informantes.

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Na sequência, e ainda no mesmo

dia, utilizou-se imagens como estratégia

para a coleta de dados, para permitir que a

memória reconstituísse com as

professoras surdas o percurso do que já foi

aprendido. A dinâmica ocorreu da

seguinte forma: espalhou-se pelo chão da

sala materiais para recorte como jornais e

revistas velhas. Esses materiais ficaram à disposição para serem manuseados.

As professoras puderam escolher uma ou mais imagens29 com as quais elas se

identificavam, ou seja, quais imagens - acontecimentos ali registrados -

combinavam com o que elas podem chamar - minha experiência de vida e

formação. As imagens fotográficas, em especial, agem como dispositivos que

estimulam a mente a sonhar, refletir, imaginar e produzir, a partir do repertório

simbólico interior (mental e do exterior o ambiental), sobre instigações que

trazem à tona um movimento de pensamentos e discussões internas a cada

indivíduo (PERES; BRANDÃO, 2009). Com a utilização dessa estratégia

metodológica envolvendo imagens, possibilitou-se a representação do universo

dos surdos, buscando, a partir de elementos visuais, fazer com que as

informantes da pesquisa narrassem suas Histórias de formação.

Logo após esse momento, foi entregue a cada uma das professoras

surdas, caixas simbólicas, denominadas “caixa de memórias”30. As respectivas

caixas vazias foram levadas pelas professoras, que ao longo do tempo em que

estiveram com as caixas puderam escolher objetos pessoais que foram

colocados para compor a mesma, qualquer objeto ou material que tivesse

significado e servisse como suporte para as memórias, representando assim a

construção da identidade de professora.

29

As imagens escolhidas pelas professoras serão apresentadas no decorrer desse trabalho. 30

Esse termo foi criado pela pesquisadora para denominar o local onde as professoras colocaram os objetos que escolheram para compor a caixa.

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CAIXA 1 CAIXA 2 CAIXA 3

Com o resgate das Histórias de vida e de formação, foi possível colocar

as memórias das professoras em movimento, ou seja, mostrar que os objetos

significativos podem subsidiar-nos a contar e ressignificar nossas Histórias de

formação.

Segundo encontro: Nesse momento as professoras surdas narraram suas

Histórias de formação docente, focadas na experiência de ser surda. Os relatos

autobiográficos são considerados um material importante para uma melhor

compreensão sobre o modo como vamos construindo a nossa docência. Por

isso, nesse momento, foi utilizada a caixa de memórias, com os objetos

escolhidos por elas para suscitar as narrativas sobre o processo de formação

docente. Os objetos trazidos pelas professoras foram os seguintes, conforme

constam na tabela a seguir:

Lista dos objetos que compuseram as caixas de memória31

Caixa 1 - Tulipa Caixa 2– Lírio Caixa 3 – Dália

- Livro didático de português;

- Livro didático de ciências;

- Quebra cabeça;

- Jogo da memória;

- Dominó;

- Gibi;

- Livro de literatura infantil;

- Foto de um aniversário

- Cartaz com imagens

- Livro – Mexa-se;

- Livro – Estudos Surdos II;

- DVD;

- Baralho de configuração de mãos;

- Caixa com vocabulário;

- Dado das configurações de mãos;

- saco com verbos;

31

Esses foram os objetos que apareceram na caixa de memórias de cada uma das professoras. Porém, no desenrolar das análises, alguns objetos se destacam mais.

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Terceiro encontro: Os vídeos com as narrativas filmadas nos encontros

anteriores foram assistidos pelas professoras surdas, para que pudessem ver

como se narraram ao longo do processo. Logo após a projeção do vídeo32 com

as narrativas, as professoras foram convidadas a se expressarem, comentando

as impressões que tiveram sobre o vídeo e sobre a experiência vivenciada

durante a pesquisa. Elas puderam acrescentar outras narrativas que não foram

evidenciadas nos encontros anteriores. Esse é um processo importante porque

proporcionou o exercício de olhar para si, possibilitando que as mesmas

ressignificassem o que foi dito e narrado.

A metodologia prevista com as professoras ancora-se em um “olhar para

si”. Para isso, como já foi mencionado ao longo da dissertação, utilizei o

método (auto)biográfico para que, através das narrativas sobre os processos

de formação, as professoras surdas pudessem apropriar-se dos conhecimentos

vivenciados ao longo de suas trajetórias de vida, a partir do resgate e da

compreensão de sua caminhada formadora.

Ao escolher esse método, foquei-me na prioridade de criar um espaço

no qual as surdas pudessem se expressar e, sobretudo, se autoformarem.

Através das narrativas dessas professoras, foi possível fazer com que as

mesmas trouxessem à memória vivências que foram importantes no processo

de formação e que possibilitaram a construção da identidade profissional

docente. Assim, com as narrativas dessas Histórias aconteceu a tomada de

consciência na qual se desencadeia um processo de reflexão desses sujeitos

sobre os conhecimentos e interações com o meio e consigo mesmo.

32

Foi elaborado um vídeo ilustrativo, com as etapas da pesquisa, editado a partir de alguns

recortes realizados pela pesquisadora, contendo as narrativas dos encontros anteriores. Uma copia desse vídeo foi entregue para cada uma das professoras.

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PARTE 2

OLHARES SOBRE AS NARRATIVAS AUTOBIOGRAFICAS

DE FORMAÇÃO

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4. IMAGENS E MEMÓRIAS: AS EXPERIÊNCIAS NA

FORMAÇÃO

A partir das narrativas de formação, evidenciadas nessa pesquisa

através de encontros, muitas Histórias foram contadas pelas professoras,

focadas na experiência de ser surda. Com base nessas Histórias, as análises

realizadas enfocam o processo de formação para compreender como ocorreu a

construção da identidade de professoras ao longo da vida. As análises a seguir

contemplam pontos que se destacaram nos encontros, por apresentarem

elementos que dizem sobre as identidades docentes.

Nesse sentido conduzo a escrita, explorando os temas que apareceram

nas narrativas, problematizando-os. Assim, na tentativa de olhar analiticamente

para os dados, trago acontecimentos, fatos e Histórias que foram relevantes

nos encontros realizados, marcando a trajetória de vida de cada professora,

refletindo sobre como ocorreu seu percurso de formação. Para a realização das

análises foi respeitada a singularidade de cada História, de modo que a

organização da escrita privilegia uma História por vez. É importante dizer que

os trechos das narrativas não serão apresentados por ordem cronológica dos

fatos, mas sim pelo encadeamento das reflexões dos professores sobre as

Histórias contadas. Serão apresentados através de uma aproximação de

temas33, organizados nesta dissertação a partir de uma espécie de costura das

Histórias e acontecimentos que, ao serem narrados pelas professoras,

proporcionam a compreensão do percurso de formação e da construção da

identidade docente. “No plano da interioridade, implica deixar-se levar pelas

associações livres para evocar recordações-referenciais e organizá-los numa

coerência narrativa, em torno do tema da formação (JOSSO, 2010, p.36)”.

33

Através da metodologia utilizada, que foi organizada a partir de três encontros, apareceram diferentes temas que compuseram as narrativas, como por exemplo: oralização, literatura

surda, experiência visual e relação professor aluno, entre outros.

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Com a transcrição dos encontros, deparei-me com um universo de

informações valiosas que iam ao encontro da proposta inicial deste trabalho

que era analisar, a partir das narrativas de professoras surdas, como ocorre a

construção das identidades docentes. Os relatos autobiográficos possibilitaram

inferir diferentes análises sobre o que foi dito, sob o olhar da pesquisadora.

Porém, é apenas um olhar, entre tantos que esse trabalho possa suscitar. É

com esse propósito que convido o leitor a conhecer essas Histórias de vida e

de formação.

Nos trechos a seguir, apresento algumas análises referentes às

narrativas que as professoras surdas relataram no primeiro encontro, através

da utilização de imagens. A estrutura da escrita tem base nas temáticas

abordadas por elas nesse primeiro encontro, ou seja, explorando o tema de

maior ênfase. O objetivo dessa estrutura é fazer com que o leitor conheça, de

um modo sintético, os caminhos que cada uma delas escolheu para começar a

falar sobre suas Histórias de formação.

4.1 Tulipa: O letramento como experiência formadora

Para dar início a sua narrativa, Tulipa utiliza-se da uma imagem

representada pelo desenho de um mundo. Com essa forma de representação,

ela aborda um trecho interessante, que faz pensar sobre o papel do professor

surdo frente a um fazer pedagógico que, problematizado, indica para as

questões de identidade docente.

Eu escolhi este desenho por que eu fiquei

imaginando que o mundo tem muita coisa, tem

variações, têm diferentes coisas, ele tem tudo. Se eu

quiser conhecer, saber alguma coisa, eu posso

procurar porque o mundo tem várias regiões, onde eu

procuro, então eu posso fazer uma busca, ir me

apropriando dessas regiões e buscar informações. As

coisas que eu quero saber, eu posso pesquisar,

buscar, me apropriar daquilo, assim posso dividir com

outra pessoa, por exemplo, eu sou professora, então

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tenho que estudar muito, para poder dividir com

meus alunos, posso explicar para eles, para que

conheçam e entendam como é o mundo, e depois

eles possam fazer as buscas deles, de acordo com

cada um, mas eu vou dar esse começo e depois eles

vão buscar, porque o mundo tem diferentes coisas

(Excerto - Entrevista Tulipa)34.

Com o excerto acima, percebe-se que Tulipa estabelece uma relação

com o mundo. Através da interação com o meio social, acontece o

desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano. Com os surdos não é

diferente, eles precisam estabelecer contato com o mundo, criando novas

formas de produção e apropriação dos saberes. Holcomb (2011, p. 139),

pesquisador surdo americano, salienta essa relação:

A cultura oferece aos membros da comunidade acesso a soluções criadas historicamente para um modo eficiente de vida. A cultura surda não é diferente. Para os surdos que vivem em um mundo ocupado basicamente por pessoas que ouvem, soluções são necessárias para viver de forma eficiente neste mundo (HOLCOMB, 2011, p.139).

Como vimos na narrativa ilustrada, a professora mostra um

comprometimento no exercer da docência. Quando diz sobre sua relação com

o mundo, na apropriação de saberes para seu fazer pedagógico, ela revela um

modo de realizar sua formação. Esse modo possibilita o fazer de uma prática

pedagógica que se constitui a partir de saberes de ordem cultural que podemos

pensar sobre a constituição de identidade de professor surdo. Nesse sentido

concordamos com o que Hall (2006, p.12) argumenta:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

34

Os trechos com as falas das professoras serão apresentados em Itálico, com fonte e recuo

diferenciado.

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Stuart Hall define muito bem essa capacidade de movimentação e

transformação que a identidade tem. Identidade e cultura são temas

intimamente relacionados, que não podem ser separados. Falar de Identidade

é pensar na cultura como algo que possibilita ao sujeito a construção e a

apropriação de jeitos de ser e de se relacionar com o meio no qual se insere.

Na pós-modernidade, o autor problematiza que o sujeito não é composto

apenas por uma única identidade fixa, mas que assume diferentes identidades

em diferentes momentos da vida, ou seja, ocorre um deslocamento conforme

as identificações que vamos fazendo. Ainda sobre isso, Hall nos diz:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada umas das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p.13).

Nessas condições a identidade surda é representada a partir de um

rompimento com outra identidade cultural existente, a de ser ouvinte. Com essa

ação, os surdos reafirmam o pertencimento a uma comunidade que

compartilha de uma cultura e de necessidades especificas que os definem

como grupo.

Ainda que neste trabalho as análises sejam direcionadas à construção

da identidade docente, as mesmas estão fundamentadas na compreensão de

que essa identidade está sujeita a transformações, pois não esta pronta,

acabada, mas sim passa por processos de deslocamentos através dos meios

sócio-culturais em que é gerada. É nesse sentido que as narrativas das

professoras surdas sobre suas vivências formadoras podem apontar para um

jeito de ser professora, para uma possível identidade que vem sendo

construída a partir das experiências que marcaram o decorrer de suas vidas.

A criança, desde o seu nascimento e inserção no mundo, passa a

integrar um universo composto por linguagem. É através da linguagem que ela

começa a se relacionar com o mundo a sua volta. Essa socialização é iniciada

primeiramente através da família, canal direto de comunicação. Essas relações

no cotidiano das atividades que acontecem na família, no dia a dia, estão

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conectadas às questões culturais, que dizem sobre o modo de ser, viver e estar

no mundo. Assim a criança vai se apropriando de valores, regras e

consequentemente adquirindo conhecimentos de uma cultura. Com o decorrer

do desenvolvimento, ela passa a adquirir um grau linguístico mais elevado. Por

isso, a escola tem uma função fundamental, pois com a socialização com

outras crianças que compartilham de uma mesma língua as aprendizagens vão

ocorrendo e é possibilitado o pertencimento a um grupo.

A criança surda filha de pais ouvintes pouco ou nada conhece sobre os

valores culturais que estão imersos na LS. Na maioria das vezes, a escola é o

único ambiente em que o surdo pode aprender e utilizar a LS e a se comunicar

de uma forma mais natural, visto que em suas famílias não desfrutam de uma

inserção linguística na LS, na maioria das vezes mantendo a comunicação

através da oralidade, ou através de um tipo de linguagem que é criada entre os

membros da família. Com isso, as experiências das crianças surdas ficam

restritas a acontecer no espaço escolar, que acaba assumindo o papel inicial

de inserir seus alunos surdos no contato direto com a lingua de sinais e, desse

modo, servindo de referência para a família, auxiliando nas relações entre pais

ouvintes e filhos surdos e principalmente divulgando a necessidade de a

comunicação acontecer através da LS.

Atualmente, com o entendimento da surdez a partir de uma diferença

linguística e cultural, é possível compreender a lingua de sinais com todas as

suas características estruturais. Por ser uma língua essencialmente visual, ela

precisa ser explorada, respeitando suas características peculiares. A

experiência a partir da visualidade torna-se uma marca surda, pois nela está

contida uma forma de aprendizagem que compõe a cultura surda.

Para identificar a marca “surdo” que apresentamos, preciso aproximar o que é fácil entender por sujeito surdo. É uma marca que identifica nós os surdos em crescente posição de termos próprios no sentido de gerar poder “para si e para os outros” Os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva (PERLIN, 1998, p.54).

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Vejamos algumas marcas surdas, deixadas através das práticas de

letramento35 na História de formação da professora surda Tulipa. Ela conta o

seguinte:

Eu lia gibi, livro didático, principalmente de ciências, gostava muito de ciências,

tinha curiosidade em saber sobre os animais, como eles nasciam, como eles

viviam, como era a natureza, essas coisas de ciências principalmente, porque

tinha muitos desenhos. Em geografia, por exemplo, tinha o desenho dos ciclos,

e era bem claro para mim, porque eu sou surda, a leitura era difícil, mas quando

tinha desenhos junto com a leitura eu entendia o contexto, então eu lia e

articulava com os desenhos. No gibi também, tinha desenhos com os textos,

assim eu conseguia me apropriar, aprender (Excerto - Entrevista Tulipa).

Tulipa fala sobre a prática de leitura que realizava. Ela conta que os livros

didáticos chamavam sua atenção por apresentarem muitos desenhos.

Comenta a presença das imagens nesses livros, como uma ferramenta que

facilitava a aprendizagem do português. Esses artefatos culturais contribuem

nos processo de significação revelando uma forma de ser e aprender

propriamente surda. Esse jeito de aprender está ligado ao uso das imagens –

do visual – que é apresentado frequentemente como marca surda. Lopes e

Veiga Neto (2010, p.116) em seus estudos enfatizam que “a expressão ser

surdo abrange uma experiência de ser, de estar no mundo [...]” Ao

problematizar essa questão esses autores comentam sobre essas experiências

que, mesmo sendo sentidas de maneiras particulares através dos elementos

presentes nas narrativas surdas sobre si, contêm alguns elementos recorrentes

que, quando conectados, indicam marcadores comuns dentro de um grupo

cultural. Assim a experiência visual36 para os surdos torna-se uma marca

surda, presente na vida e nos processos de ensino-aprendizagem, ou seja, os

surdos constituem um povo que possui marcas que os definem e que

constroem suas verdades pautadas em um partilhar cultural.

Percebe-se que na História de formação de Tulipa, a mesma buscou

significar suas aprendizagens a partir de estratégias de leitura que facilitavam a

35

Aqui, o termo Letramento é entendido como o desenvolvimento de habilidades textuais como

leitura e escrita, através de diferentes tipologias textuais, na compreensão da escrita partindo das necessidades de aprendizagem e leitura de mundo dos surdos. 36

Sobre experiência visual, vou me deter mais adiante.

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compreensão do contexto. Essas estratégias de leitura possibilitam a

construção de conhecimentos a partir de suas subjetividades na medida em

que ela identifica a necessidade de aprender.

Na História dos surdos encontram-se experiências formadoras que hoje,

no cotidiano, quando são retomadas, demonstram muitos aspectos de como

esse sujeito sócio-histórico foi construído e afetado por suas vivências.

No campo da cultura, a partir das questões linguísticas, a lingua de

sinais é considerada uma minoria diante de uma língua majoritária, que é o

Português37. Por esse motivo, quando os surdos falam sobre suas experiências

de formação, das estratégias que foram utilizadas no período escolar e dos

saberes aplicados no cotidiano de professor, isso se torna relevante para

entendermos quais caminhos são possíveis para a formação docente.

4.2 Lírio: Infância, oralização e docência.

Uma parte significativa das narrativas da professora Lírio refere-se à

questão da oralização, a qual deixou marcas em sua História de formação.

Essas marcas são refletidas nas linhas a seguir, quando a mesma fala sobre

acontecimentos que marcaram sua vida, no período da infância:

37

Com as conquistas na educação de surdos, percebe-se uma mudança nas estratégias para o ensino do português para surdos, comprovadamente a L2 – segunda língua dos surdos. Historicamente o português foi ensinado através de técnicas de oralização, não considerando a lingua de sinais a L1. Hoje, com os professores surdos e as discussões no campo linguístico e cultural, criam-se novas estratégias para o ensino, que rompe com o modelo ouvinte de aprender.

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Eu escolhi essa foto! Quando eu era criança, por ser

surda, não conseguia me sentir em igualdade com

os ouvintes, as pessoas falavam, eram oralizadas,

daí eu fui crescendo e a escola dizia que eu

precisava oralizar, depois com a família, o contato

com os ouvintes era só oralização. Também tinha

lugares na escola que usavam a lingua de sinais

escondida. Sempre teve uma dominação, na

verdade. Depois eu fui crescendo e percebi: no

futuro eu não vou conseguir trabalhar? Eu posso

trabalhar? Meu pai respondeu que não, mas eu

disse que quero ser professora surda, quero

trabalhar, não tem surdo trabalhando (Excerto -

Entrevista Lírio).

É interessante notar que Lírio, ao dizer sobre suas experiências vividas

na escola, refere-se aos sentimentos que tinha sobre esse período. Ao

mencionar as questões sobre a oralização, ela evidencia uma forma de

aprender que lhe foi imposta, desde a infância, na qual começou seu processo

de alfabetização. É sabido que o oralismo38 consolidou-se na História dos

surdos como um método de ensino que privilegia a língua oral como forma

mais eficaz de ensinar os surdos.

Segundo Goldfeld (1998, p. 71):

O oralismo ou Filosofia Oralista caracteriza-se principalmente pela idéia que o deficiente auditivo necessita aprender a língua oral de seus pais para só assim se integrar à comunidade ouvinte; isto pelo fato da população não estar preparada para receber um individuo que se comunique apenas com a lingua de sinais. O oralismo acredita que a aquisição da lingua de sinais é prejudicial para esta criança [...].

Ao longo da História dos surdos, esse tema vem sendo abordado de

forma bastante polêmica. Assim como as vivências de Lírio sobre a oralização,

a grande maioria dos surdos passou por essas situações relatadas por ela.

Essa foi mais uma condição de padronização dada pela sociedade e exercida

38

A partir do Congresso de Milão, o oralismo foi o referencial assumido e as práticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e divulgadas.

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na escola, onde o modelo linguístico adotado tem o dever de desenvolver,

dentro dos princípios da sociedade, perfis aceitos e não deixar disseminar a

instabilidade e o caos originário das diferenças. “A escola não sabe trabalhar

com a instabilidade. Necessita de referências fixas para descrever e

educar/disciplinar os sujeitos desiguais” (LOPES, 1998, p.107). Assim, o papel

da escola na educação dos surdos foi se constituindo a partir de um modelo

hegemônico de se pensar a educação, privilegiando alguns grupos em relação

a outros. Com base em um modelo ouvinte, os surdos foram se educando.

A maioria dos surdos, em sua História, não desenvolveu satisfatoriamente

a aquisição da fala. A oralidade acontecia de forma desigual à dos ouvintes.

Com isso havia outras dificuldades, como por exemplo a realização da leitura e

escrita cheias de falhas, não correspondendo ao modelo ouvinte utilizado como

referência.

Com o modelo de escola historicamente constituído sob as referências

ouvintes, os surdos, como grupo cultural, necessitaram criar novas formas de

aprender através de referências que privilegiaram suas especificidades. Nesse

sentido buscaram estratégias para aprender, rompendo com uma forma que

não lhes tinha significado.

Nesse sentido, a abordagem que Lírio traz demonstra um impasse,

através da relação que a mesma estabelece entre, de um lado, o mundo de

aprendizagem dos ouvintes, do qual ela tentava se apropriar e de outro, o

mundo de aprendizagem dos surdos39, meio pelo qual encontrava sentido para

entender e interagir com o mundo. Mesmo cercada de referências ouvintes, ela

criou estratégicas para utilizar a lingua de sinais na escola, reafirmando um

39

Sobre o uso dessa designação “mundo dos ouvintes”, “mundo dos surdos”, encontramos muitas dessas referências em Histórias que surdos contam, sinalizando ou escrevendo. Em várias dessas narrativas usam da máxima binária, em que o mundo ouvinte representa a insatisfação, os limites, a opressão, e o encontro/entrada no mundo surdo indica o reinício, a possibilidade. Um exemplo a ser dado é o livro TIBI E JOCA – UMA HISTÓRIA DE DOIS MUNDOS, de Cláudia Bisol e Tibiriçá Maineri. Conforme argumenta Karnopp (2010, p. 167): “No desenvolvimento da História, observamos que o personagem é um menino surdo que nasceu em uma família com pais ouvintes. Todos passaram por momentos difíceis até que começam a usar a lingua de sinais. O texto é rico em ilustrações e, além da História registrada na língua portuguesa, há um boneco-tradutor que sinaliza as palavras-chave de cada página, que permitem ao usuário da Libras acompanhar a História”.

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jeito de aprender próprio de surdos utilizando a lingua de sinais, mesmo que

em locais escondidos.

O modo como nos tornamos sujeitos envolve uma série de saberes que

são historicamente constituídos. É possível dizer que esses saberes, que

compõem o cenário social, constroem os sujeitos e suas identidades. A forma

pelo qual o surdo vai subjetivar40 as identidades possibilita a busca por

estratégias de resistência. De acordo com WOODWARD (2000, p. 55):

[...] identidade e subjetividade não são intercambiáveis. A identidade constitui-se como uma ponte entre o eu e as dimensões cultural e social. A subjetividade, por sua vez, dá conta dos sentimentos, dos processos psíquicos mais íntimos, mais particulares. É no discurso dos sistemas sociais e culturais que essa particularidade é significada e se significa. Subjetividade e identidade dão lugar ao sujeito: “as posições que assumimos e pelas quais nos identificamos constituem nossa identidade”.

Problematizando as colocações de Lírio apresentadas no início desta

seção, quando ela fala sobre o contexto vivido na escola, precisou buscar

formas de resistir à imposição de uma cultura, e nessa ação estabelecer uma

batalha por uma reafirmação cultural. Como argumenta Silveira (2005, p. 131):

Como as identidades não se encontram fixadas, mas estão, sim, sempre em processo, construindo-se na e por meio da linguagem, resistências podem se desenvolver e favorecer a criação de contradiscursos em que novas posições se estabeleçam. Mudanças, portanto, são possíveis de serem incentivadas e catalisadas no espaço escolar, tanto pela critica de identidades dominantes, como pela compreensão do processo de construção das identidades presentes nesse espaço.

Resistir, nesse sentido, é pensar a formação de professoras atravessada

por essas experiências vivenciadas na escola, e ter a possibilidade de

constituição das identidades docentes com foco em um fazer diferente, que

atende os aspectos culturais que identificam os surdos entre si.

Dando sequência a sua narrativa, Lírio traz elementos de sua História

que merecem ser abordados:

40

De acordo com Larrosa (1994, p.55), a “ontologia do sujeito não é mais que a experiência de

si que Foucault chama de "subjetivação".

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Depois eu encontrei um professor surdo e perguntei: tem como ensinar Libras?

Um professor pode ensinar Libras? Ai eu comecei a imaginar, comecei a pensar

em ser igual a ele, perguntei para minha mãe: é verdade, uma pessoa pode

ensinar Libras? Ela respondeu, não adianta, não vai dar certo Lírio! Depois eu

conversei com outras pessoas, mães de surdos, então eu falei para minha mãe:

viu, é verdade, tu achaste que era mentira minha, mas eu tinha essa capacidade.

Eu tinha medo do futuro, das escolas de ouvintes, de rodar, por que o português

é bem difícil para nós surdos, e não tínhamos contato com outros surdos;

também precisamos de contato com outros surdos (Excerto - Entrevista Lírio).

Mesmo diante de sua História de oralização, o desejo por ser professora

superou as condições de formação às quais foi submetida. Lírio não se desfez

dessas experiências de formação, mas sim deu outro sentido a elas.

Falar das próprias experiências formadoras é, pois, de certa maneira, contar a si mesmo a própria História, as suas qualidades pessoais e socioculturais [...] Contudo é também, um modelo de dizermos que, nesse continuum temporal, algumas vivências têm uma intensidade particular que se impõe à nossa consciência e delas extrairemos as informações úteis às nossas transações conosco próprios e/ou com nosso ambiente humano e natural (JOSSO, 2010, p.47).

Tais afirmações relacionam-se com o que diz Lírio ao relatar seu

encontro com um professor surdo que ensinava Libras. Esse encontro foi

importante para ela, que viu nesse professor um modelo, em um momento de

sua vida quando ela precisava ter uma referência surda. Com essa referência,

ela percebeu que era possível o surdo trabalhar, nesse caso, ser uma

professora. Também foi preciso romper com a falta de credibilidade dos pais,

que não acreditavam na possibilidade de a filha ser professora.

Esse descrédito se dá por fatores como: a falta de interação

comunicativa entre pais ouvintes e filhos surdos; os discursos que enaltecem

modelos de normalização e a visão da medicina que trata a surdez como a

experiência de uma falta, incapacidade ou deficiência na busca de ajustes para

recuperar algo de que o surdo foi desprovido. Assim esses discursos

constroem a visão de muitos pais, que seus filhos são limitados e que não têm

as mesmas potencialidades dos ouvintes. Para Skliar (1997), no caso de pais

ouvintes e filhos surdos, as interações comunicativas podem ser muito

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deficitárias, dependendo do tipo de informação recebida após o diagnóstico dos

filhos e das modificações daí decorrentes, no curso natural das comunicações

familiares.

Muito são os discursos que circulam sobre os surdos e sua formação.

Os discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que

falam” (FOUCAULT, 1997). Historicamente, em nossa sociedade ocidental,

circularam discursos que foram criando uma forma de olhar para a surdez

inserida em uma lógica da deficiência, voltada para as práticas de reabilitação

desses sujeitos. Olhar pra os surdos a partir da lógica da deficiência leva-nos a

entender que o surdo pode conseguir fazer algumas coisas, mas em outras não

obterá êxito, pois lhes falta algo importante, que lhes coloca em desigualdade

nas relações sociais.

Ao ser afrontada por seus pais, quando não acreditaram que fosse

possível a filha se tornar uma professora, Lírio foi buscar estratégias para fugir

da condição de impossibilidade de não poder ser o que gostaria de ser: uma

professora de surdos. A busca por uma experiência com outros surdos foi de

fundamental importância para que ela conhecesse outras possibilidades e

outros modelos surdos que serviram de incentivo para que continuasse lutando

pelos seus propósitos. Assim, é possível dizer que essas estratégias de lutas

por ressignificações se tornam possíveis em um contexto de lutas

compartilhadas, de lutas junto com outros surdos.

4.3 Dália: A metáfora da flor

Eu peguei três imagens, a primeira uma flor, eu não sei o nome dessa flor, não é para assoprar, é para deixar no lugar, depois no futuro a

gente assopra41

. (Excerto entrevista Dália).

41

Trecho sinalizado pela professora surda, quando inicia sua narrativa a partir da imagem escolhida. No decorrer das narrativas apresentadas nesta dissertação, ela explicará o porquê da escolha, como faz menção nesse trecho, no qual cria uma representação com a imagem da flor, relacionando com sua História de vida.

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Como vimos no excerto aqui apresentado, ser professora é um processo

de construção que envolve uma série de acontecimentos que marcam a nossa

caminhada formadora. Dália, ao relatar alguns desses acontecimentos

importantes pelas quais passou, conta sobre a escolha de sua mãe, em um

determinado período de sua infância, que resultou em colocá-la em uma escola

de ouvintes. Lendo esse trecho percebe-se que a escolha partiu do desejo de

estimular Dália a continuar estudando, para que assim obtivesse um futuro

melhor. Segundo essa postura, se entende que a mãe de Dália acreditava que

na escola de ouvintes o aprendizado ocorreria de forma mais efetiva e por

consequência, o desenvolvimento de sua filha seria satisfatório, oportunizando

maiores oportunidades profissionais no futuro.

Essa ação da mãe, de utilizar uma estratégia para incentivá-la a estudar,

revela uma possibilidade analítica interessante. Dália, na sua infância, já

Bem, porque a escolha dessa flor. Quando eu era

criança, eu só tive escola oralista, e eu via a

professora, ela era bonita, jovem [...] eu via aquela

professora bonita e tinha ela como modelo. [...] Eu

lembro que na casa da minha vó tinha uma caixa,

onde ela guardava livros e cadernos velhos, então eu

olhei para caixa e disse para minha mãe: Meu Deus,

eu quero seguir esse modelo, quero usar meu

quadro, gostava de ser professora. Eu cresci, e na

terceira série, eu fui levada para uma escola de

ouvintes [...] eu aceitei, ela me aconselhou dizendo,

minha filha, tens capacidade, tu vais te alfabetizar lá,

vais passar por todas as etapas do ensino

fundamental, e depois o que tu vais fazer no futuro?

Ela me provocava perguntando: Vais trabalhar em

fabrica minha filha? Não, eu dizia, em fabrica eu não

vou trabalhar, respondia chorando, lá tem cheiro ruim,

prejudica as mãos. Então ela dizia: vai estudar então.

Aceitei estudar na escola oralista. (Excerto -

Entrevista Dália).

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mostrava o desejo de se constituir professora, através das brincadeiras que

realizava, do interesse que mantinha sobre essas questões. A bonita

professora que serviu de modelo e a caixa contendo materiais didáticos

encontrada na casa de sua avó foram elementos significados por ela, que

naquele contexto fizeram parte do processo de identificação. Essas vivências

foram fundamentais na escolha pela docência.

Uma das possíveis formas de problematização que o trecho instiga é a

postura mantida pela mãe de Dália em colocar sua filha em uma escola

oralista. No entanto, não é propósito desta análise defender a escola oralista,

nem mesmo a escola de surdos, mas sim direcionar um olhar para o processo

vivido por Dália, levando em consideração uma determinada época, quando a

educação de surdos era consolidada a partir de uma perspectiva oralista, e

também de pouco investimento na continuidade da vida acadêmica dos surdos.

Ou seja, pensar nas condições que existiam e que possibilitaram a formação

de mesma. Para prosseguir em seus estudos, teve que enfrentar situações de

não pertencimento e não identificação cultural. Essas situações vivenciadas

foram importantes porque Dália foi uma pioneira na luta pela educação de

surdos em sua cidade. Certamente suas experiências serviram para abrir

caminhos para outros surdos continuarem seus estudos.

Hoje, temos professores surdos, mas para se chegar a essa conquista,

muitos tiveram que pagar o preço de serem submetidos a um ensino que não

correspondia a suas especificidades. Ao olhar para sua História, Dália dá um

novo significado às vivências sobre o período de oralização pelo qual passou

na escola. Essas experiências fazem parte do processo de significação e a

construção de identidade de professora constitui-se através desses

atravessamentos.

Na perspectiva de construção de uma identidade docente, a professora

surda Dália continua sua narrativa relatando o seu processo de iniciação em

uma escola, como professora de lingua de sinais. Ela referiu-se a esse tempo

da seguinte forma:

[...] a direção da escola me chamou, perguntando o que eu estava fazendo. Eu

pensei que eles queriam que eu trabalhasse em fábrica, porque geralmente eles

ligavam para chamar os surdos para trabalharem. Mas eu fui torcendo para que

não fosse para trabalhar em fábrica. Então foi quando eles me disseram que era

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para trabalhar como professora de Libras. Eu fui tomada por uma felicidade, e eu

perguntei: como assim, professor de lingua de sinais? E eles disseram que sim,

e eu disse Ok! Foi à primeira vez que surgiu esse contrato, era só com o grupo

de “X”, não tinham pessoas de outros lugares. Era bem difícil o grupo, eles não

conheciam lingua de sinais, precisaram se desenvolver [...] (Excerto - Entrevista

Dália).

Há anos atrás, muitas empresas adotavam a filosofia de implantar a

contratação de deficientes para trabalharem na área de produção. Essa era

uma das poucas opções de emprego frente ao contexto existente da época, e

como muitos surdos não tinham a oportunidade de estudar, e às vezes não

recebiam incentivo da família, acabavam migrando unicamente para esse tipo

de emprego. Klein (1998, p.80) traz uma consideração relevante que se

relaciona com essa ideia:

O surgimento da escola moderna e o inicio da industrialização compartilham da organização dos saberes que vão dando sustentação a uma nova ordem nas relações sociais e econômicas. Nas escolas de surdos, podemos encontrar indícios de uma relação entre os objetivos das escolas e as necessidades emergentes de sujeitos preparados para ingressar nas fábricas.

Diante dessa condição, a escola de surdos preparava os sujeitos para

ingressar no mercado de trabalho, dentro de uma lógica que atendia às

exigências do mercado e produzia determinadas identidades de surdos

trabalhadores, que se naturalizavam a partir dos discursos da deficiência e da

benevolência (KLEIN, 1998). Naquele momento, pensar outras possibilidades

de profissões para os surdos era romper com essa lógica.

Em sua narrativa, Dália, ao saber sobre a contratação como professora

de Libras, demonstra surpresa por ser a primeira a atuar na escola no ensino

da lingua de sinais em sua cidade e região. A possibilidade de ser professora

nesse contexto oportunizou novas experiências de ensino e constituição de

uma prática pedagógica surda envolvendo a lingua de sinais, identidade,

alteridade. A partir daí ela inicia uma produção cultural surda, ou seja, produz

um jeito de ser professora, com todos os saberes que envolvem a cultura

surda, servindo como modelo para outros surdos.

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Reis (2007, p.97) argumenta em seus estudos sobre a necessidade de

esclarecer a importância da prática dos professores surdos que vem surgindo e

sendo vivenciada entre o povo surdo. Ela comenta ainda que: “Ser diferente

significa produzir a partir da História, do conhecimento próprio, e compartilhado

uns com os outros com o objetivo de ter mais experiência dessa prática

pedagógica”. A partir desse processo de identificação cultural, as inovações

começam a acontecer e ocorrem as transgressões fazendo acontecer múltiplas

experiências sobre o fazer pedagógico.

No seu percurso de formação, Dália teve muitas experiências que

marcaram sua trajetória. Em especial, uma dessas experiências demonstra ser

relevante tanto para ela como também para a comunidade surda de sua

cidade, servindo como incentivo e ampliação de uma visão cultural do mundo

dos surdos: Atentemos para o relato:

[...] no ano de 1999 eu viajei para o congresso bilíngue. Aqui em “X” não tinha

uma visão ampliada do mundo dos surdos, por isso eu escolhi a imagem da flor,

porque ela representa a ampliação dessa visão. Quando eu fui no congresso eu

vi que os surdos tinham capacidade, tinham direitos, e não via isso na cidade de

“X”. Então foram esses dois surdos ao congresso e passaram a acreditar na

liberdade e na capacidade que os surdos têm. Então quando eu voltei, passei a

divulgar isso para todos os surdos de “X” [...] (Excerto - Entrevista Dália).

Ao mencionar essas vivências, ela se utiliza de uma metáfora muito

interessante, na qual representa essa divulgação das informações à

comunidade surda. Ao escolher a imagem de uma flor42 no inicio de sua

narrativa, a professora surda frisa que a mesma não deveria ser assoprada,

mas sim que as sementes da flor deveriam permanecer no lugar. Dando

sequência, ela começa a sinalizar sua História de vida e formação.

42

Essa flor, mais conhecida por dente de leão, embora a maioria das pessoas a desconheça, nasce amarela e somente depois de um tempo perde suas pétalas e forma-se um fruto, que é aquela flor branca. Quando assoprada, o vento incumbe-se de espalhar suas sementes. “No Nordeste é conhecida por "esperança": abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa trazida pelo vento da tarde [...] Planta da família das compostas (como a serralha e muitas outras), tem inflorescências amarelo-brilhantes ou mesmo brancas. Tem um alto potencial biótico devido à facilidade com que suas sementes se disseminam: com a forma de pequenos paraquedas, são facilmente levadas pelo vento. Taraxacumofficinale é um indicador de solo fértil”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Dente-de-le%C3%A3o

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No Congresso Latino Americano de Educação Bilíngue para Surdos43,

vários surdos participaram e consequentemente obtiveram uma ampliação da

visão de mundo e também se manifestaram em relação a qual tipo de

educação almejavam. Esse congresso foi um marco na História dos surdos. Os

movimentos em prol da educação bilíngue foram sendo disseminados, de

forma que lutas foram travadas por surdos em suas diferentes comunidades,

modificando suas realidades.

Dália, ao participar do evento, teve uma fundamental importância na

divulgação para a comunidade surda da qual pertencia. Como ela informou,

foram apenas dois surdos de sua cidade que participaram desse evento. Por

isso, teve importância sua responsabilidade em espalhar para os surdos sobre

as aprendizagens realizadas, mostrando com isso que os surdos eram

capazes. Assim começa a divulgar à comunidade surda sobre a cultura surda e

o quanto os surdos poderiam se desenvolver e serem livres para buscar seus

sonhos, revelando seus potenciais. Essa ação foi essencial para que essa

comunidade se movimentasse.

Com essa relação, parece-me que Dália coloca a flor como uma espécie

de simbologia, representando a cultura surda. Com o pedido para que a flor

não fosse assoprada no início de sua narrativa, ela estabelece uma relação

simbólica entre a condição na qual os surdos se encontravam, sem

informações sobre o universo dos surdos e suas potencialidades (flor amarela)

e a participação no congresso, onde pôde fazer novas aprendizagens,

ampliando seu olhar para as questões referentes à cultura surda, ou seja, a

metamorfose da flor sendo representada como ampliação dessa visão. Na

ação de compartilhar essa visão com a sua comunidade, Dália simbolicamente

sopra a flor, espalhando esses saberes.

A flor escolhida ilustra também uma espécie de resistência de Dália

frente a uma História de educação que tinha se constituído dentro de um

modelo ouvinte, como se essa flor fosse a representação de uma identidade

surda que precisava ser afirmada em meio àquela situação de não

pertencimento a um grupo cultural. Sua História evidencia, entre tantos outros

43

O V Congresso Latino americano de Educação Bilíngue para Surdos aconteceu em Porto Alegre no ano de 1999, promovido pelo Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos – NUPPES/UFRGS - e Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos – FENEIS.

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pontos interessantes, que uma identidade docente já vinha se constituindo

desde sua infância, através de vivências que possibilitaram a busca por sua

cultura e a ressignificação de suas aprendizagens.

Nesse sentido percebe-se que a sua História, desde o período de

escolarização, direcionou-se para a constituição de uma identidade de

professora surda. Suas experiências impulsionaram-na a ser professora, a

desenvolver uma pedagogia surda, a ser um modelo para os outros surdos. Em

sua última imagem ela complementa sinalizando:

Nas narrativas que Dália apresenta fica enfatizada a importância da

lingua de sinais. A comunicação com a família e com o mundo só se dá quando

se está imerso em um contexto linguístico-cultural em que ensino e a

aprendizagem se efetivem em conformidade com as especificidades dos

surdos e propiciem que esses sujeitos se eduquem significativamente. A todo o

momento sua preocupação está em que as crianças desde pequenas possam

sentir-se inseridas no mundo e se compreenderem nas suas diferenças

linguísticas e culturais.

Dessa forma finalizo a apresentação das narrativas a partir de imagens

que envolveram o primeiro encontro, abordadas nesse capitulo. Na

continuidade das análises, o próximo capitulo trará reflexões sobre as

narrativas das professoras, referentemente ao segundo encontro da pesquisa,

com base nas caixas de memória.

[...] eu escolhi essa foto, porque o meu sonho é

que todos aprendam na escola, que todos saibam

Libras. Eu sou professora de alunos surdos, eu

quero ensinar, eu quero ser um modelo de vida

para eles, quero ensinar Libras para que possam

se comunicar com a família desde pequenos,

contribuir dessa forma para que eles construam a

identidade surda, aprendam sobre a cultura surda,

para que essas coisas façam parte do processo de

aprendizagem deles (Excerto - Entrevista Dália).

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5. ABRINDO A CAIXA DE MEMÓRIAS: REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE DOCENTE

Neste capítulo da dissertação, trago algumas análises com base nas

narrativas das professoras surdas através das caixas de memória,

apresentadas no segundo encontro. Com suas narrativas, elas apresentam as

representações que foram construindo sobre o ser professora. Para Hall

(1997), a representação através da linguagem é central para os processos

através dos quais é produzido o significado. Segundo o autor, damos

significado aos objetos, pessoas e eventos através da estrutura de

interpretação que trazemos, ou também através da forma como os utilizamos,

ou os integramos em nossas práticas do cotidiano. É justamente a investigação

sobre a forma como se constrói o significado que mobiliza a análise desse

autor sobre o conceito de representação. Assumindo a representação como

processo de significação das coisas, objetos e acontecimentos, é que as

análises a seguir focam nas representações das professoras sobre a

construção de suas identidades docentes: “[...] a moldagem e a remoldagem de

relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm

efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e

representadas” (HALL, 2006. p 71).

5.1 Algumas reflexões sobre a literatura infantil como construtora

de identidade docente

Nesta dissertação não tenho a intenção de

aprofundar os estudos sobre infância, mas considero

interessante trazer uma pequena contextualização

sobre esses campos de estudos, principalmente em

relação à literatura infantil, uma vez que nas

narrativas apresentadas pelas professoras

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entrevistadas, a materialidade da literatura infantil se fez presente.

Analisando a infância do ponto de vista histórico é possível dizer que a

mesma foi sendo reconhecida ao logo dos tempos, na medida em que se

produziu a necessidade de um período de maior atenção às crianças, um olhar

mais atento para essa fase da vida entendida como aquela em que as

aprendizagens ocorrem de forma intensa. A infância passa a ser foco da

literatura e essa se constitui em artefato pedagógico importante na constituição

das identidades infantis.

Sobre literatura infantil, Silveira (2000) comenta:

A literatura infantil, como produto cultural de contornos específicos, se constituiu no mundo ocidental no momento em que o conceito de infância também se consolidou, ou seja, quando a sociedade passou a representar as crianças como seres em perspectiva, a serem formados e educados para uma posterior vida adulta (p.175).

Com a valorização dessa etapa na vida dos sujeitos, iniciou-se uma

série de produções culturais para atender as especificidades desse período.

Livros literários começaram a ser produzidos com o propósito de ensinar as

crianças, passando informações para que elas interajam com o mundo. O ato

de ensinar as crianças se consolidou ao longo dos tempos como uma prática

cultural, produtora de significados. Nesse sentido, é interessante atentarmos ao

que afirma Silveira (2011, p.192), quando diz:

Colocar a literatura infantil a serviço de objetivos de informação e formação da infância tem sido prática corrente desde o seu surgimento e se concretiza sob formas diversas, que podem ir da doutrinação evidente e sem rodeios até a concepção de determinadas ideias e concepções através das tramas imaginativas e sedutoras.

A literatura na infância é ferramenta propulsora do poder imaginário na

tessitura das leituras de mundo. Ao construir imaginariamente uma História, a

criança constrói conhecimentos que falam de si [...] (CASARIN, 2008). Ao

abordarmos essa questão, podemos pensar sobre a formação de identidades

nesse período infantil, quando as aprendizagens começam a ser desenvolvidas

efetivamente através das relações com o meio social na qual se inserem. Por

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sabermos que as crianças encontram-se nesse período em pleno

desenvolvimento cognitivo e emocional, elas absorvem modos de ser, agir e

conviver em sociedade, de forma permanente. Podemos dizer que quando a

criança tem contato com o universo imaginário a partir da literatura infantil,

acontece uma identificação com personagens, de modo a ela apropriar-se de

elementos da História, entrando num mundo envolvente de fantasia. Isso

possibilita uma forma significativa de rememorar acontecimentos que são

ressignificados através da prática de interpretação literária. Essas Histórias

possibilitam formas de se constituírem sujeitos, com seus diferentes jeitos de

ser.

Ao abrir sua caixa de memórias, Tulipa começa a relatar algumas

experiências que vão ao encontro dessas problematizações. Em sua narrativa,

ela utiliza um livro de literatura infantil como um dos objetos que escolheu para

compor sua caixa de memórias. Vejamos, a seguir, o que ela relata, com base

nesse objeto.

Bem eu escolhi esse livro de Histórias infantis. Quando eu era pequena, minha

mãe utilizava livros de Histórias para contar para mim através da Libras. Eu

adorava essas Histórias e sempre ficava muito curiosa e atenta enquanto ela

estava contando. Sempre que as Histórias terminavam eu queria mais, mais,

muito mais! Então, após tanta insistência, minha mãe pegava outro livro de

História e contava para mim. Às vezes ela até repetia a mesma História, de tanto

que eu gostava. E quando eu continuava insistindo ela dizia: Agora tu vai ver as

Histórias sozinha, não comigo. Eu não gostava dessa forma, porque muitas

vezes eu não conseguia entender. Tinha que me esforçar muito para

compreender o que História queria dizer [...] Algumas vezes eu entendia o que a

palavra significava apenas pelo contexto da História, pois me lembrava de

quando a minha mãe havia me contado. Eu adorava essas Histórias. Eu queria

cada vez mais. Como se não bastasse minha mãe contar para mim e depois eu

também vê-las sozinha, eu começava a contar para outras crianças. (Excerto -

Entrevista Tulipa).

O interesse de Tulipa pelas Histórias infantis fica evidente nesse relato.

Com detalhes, ela descreve como era seu processo de leitura. Ao observamos

a relação estabelecida entre Tulipa e o universo literário, ela revela elementos

que envolveram sua prática de leitura, como por exemplo a importância de sua

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mãe contar Histórias, e também o ato de contar essas mesmas Histórias a

outras crianças. Será que é possível dizer que uma identidade de professora

estava sendo forjada nesse tempo? A partir das brincadeiras, do universo

lúdico, estava sendo constituído um desejo por ensinar? “As Histórias infantis

capacitam as crianças para traduzirem as experiências que fazem parte de sua

vida, bem como exprimirem seus anseios, aprendizagens e desejos”

(CASARIN, 2008, p.133). Considerando esses questionamentos, o trecho a

seguir evidencia que Tulipa, através das Histórias infantis, foi percebendo a

necessidade de construir uma prática pedagógica voltada para as crianças

surdas. Essas percepções apontam para um fazer diferente, que foi sendo

identificado como parte da cultura surda, na medida em que ela se apropriava

desse universo literário. Isso a fez pensar sobre como sinalizaria para as

crianças no futuro. Vejamos o que ela salienta sobre isso:

[...] eu ficava imaginando de que forma eu sinalizaria para contar aquelas

Histórias, que sinais eu utilizaria. E quando eu contava, as crianças adoravam

também! Eu adorava quando minha mãe sinalizava as Histórias para mim, mas

eu sei que eu sinalizava de uma forma muito melhor quando contava para as

crianças, até porque eu sou surda. E a relação entre eu e as crianças surdas é

muito melhor para o entendimento delas, pela forma como eu sinalizo. As

Histórias foram um grande auxílio para minha vida, elas ajudaram na construção

de quem eu sou. (Excerto - Entrevista Tulipa).

O principal traço que define os surdos como grupo cultural é sua lingua

de sinais, a Libras para os surdos brasileiros. O compartilhar dessa língua, no

contato surdo-surdo, é de fundamental importância para que a interação entre

esses sujeitos culturais proporcione a construção de conhecimentos através

dos elementos que os caracterizam como um grupo diferente. Essa fluência

linguística de plena interação indica que há uma pedagogia surda envolvida

nessa ação.

Quando Tulipa comenta sobre a forma que ela sinalizava para as

crianças surdas, ali está sendo representada uma maneira de ensinar e de

produzir Histórias para surdos. A produção dessas Histórias faz com que os

surdos identifiquem-se com a forma de contação das mesmas, ou seja, assim

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podem construir suas identidades surdas através de Histórias que são

experienciadas através de um contexto cultural de significação44.

O interessante a ser explorado dentro dessas problematizações é o fato

de que Tulipa, ao ser estimulada em seu período de infância a manter contato

com a literatura infantil, mesmo não se tratando de uma literatura voltada

especificamente para os surdos, fez com que ela percebesse, com a prática de

leitura que mantinha, uma necessidade de compartilhar com outras crianças o

universo literário de significação que envolve a cultura surda. É por isso que “a

literatura surda é significada um meio de referencia e cria uma aproximação

com a própria cultura e o aprendizado de sua primeira língua, que facilitará na

construção de sua identidade” (ROSA e KLEIN, 2011, p.94). Esse processo

formador foi significativo tanto para ela como também para as crianças para

quem ela fez as leituras, produzindo uma prática cultural de ensino naquele

contexto.

Assim, como salienta Tulipa, as Histórias foram fundamentais para a

constituição de sua identidade. Ela diz: “[...] ajudaram na construção de quem

eu sou”. Através de seu relato fica perceptível que sua identidade docente vem

sendo construída a partir da necessidade de se pensar a educação de surdos

articulada a uma concepção de uma pedagogia cultural.

As relações entre identidade surda e cultura surda estão imbricadas. Ao

falar sobre a cultura surda e suas produções, não podemos deixar de pensar

na produção e constituição das identidades surdas. A cultura surda é

socialmente construída tendo como uma das referências a contestação de uma

cultura majoritária ouvinte. Ao contestarem essa cultura ouvinte a partir de

movimentos de lutas e resistências, os surdos vão negociando suas

identidades na medida em que se colocam como sujeitos culturais diferentes

da cultura dominante. É por isso que quando falamos de cultura surda nos

referimos a tudo aquilo que diz respeito às formas pelas quais esses sujeitos

organizam suas vidas e suas maneiras de ser e estar no mundo através de

suas marcas culturais

Silva (2000, p.75), quando escreve sobre identidade e diferença, coloca

que entre elas existe uma relação de dependência. O autor comenta que

44

Sobre Literatura Surda e sua importância para as crianças surdas, ver Rosa (2010).

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quando expressamos a identidade, de forma afirmava, acabamos escondendo

essa relação. Exemplificando, ele argumenta a questão da identidade de ser

brasileiro. Quando falo, “sou brasileiro” não preciso dizer que “não sou”

argentina, japonesa entre outras. Assim quando afirmamos que existem

identidades surdas, a diferença está posta, mesmo não sendo dita. Por isso

que identidade e diferença não podem ser separadas, uma precisa da outra

para existir.

O campo dos Estudos Culturais nos ajuda a pensar sobre a questão da

produção das diferenças culturais. Nesse sentido, é relevante pensarmos em

termos dessa produção no que diz respeito à cultura surda, ou seja, a cultura

sendo abordada como produtora de identidades em uma arena de significados.

Assim, pensarmos na cultura como espaço de produção de identidades refere-

se à: “medida em que os sistemas de significação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos

identificar” (HALL, 2006, p. 13). Ao abordar essa questão, o autor quer dizer

que as identidades não são fixadas em algum lugar, mas passam por

transformações de acordo com os discursos de verdades aos quais são

submetidas. Esses discursos de verdades movimentam e circulam a cultura,

produzindo uma rede de significados. Ainda nessa lógica, é pertinente

atentarmos para o que Stuart Hall diz:

Eu uso “identidade” para me referir ao ponto de encontro, o ponto de sutura entre, de um lado, os discursos e práticas que tentam nos “interpelar”, dirigir-se a nós ou nos aclamar como sujeitos sociais de discursos particulares, e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, processos que nos constroem como sujeitos que podem ser nomeados. Assim, identidades são pontos temporários de ligação à posições de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 1997, p.26).

No caso aqui apresentado, a identidade docente de Tulipa vem sendo

constituída mediante a emergência de uma Pedagogia Cultural Surda, na qual

saberes específicos são ensinados e aprendidos de forma a constituir valores e

ideais, bem como modos de pensar e de interagir que representam o sujeito

surdo. Perlin (2011), quando comenta sobre a “Pedagogia dos surdos”

metaforiza dizendo que a mesma atua como um resgate ao cordão umbilical, e

relaciona isso ao fim da diáspora. Ainda sobre a Pedagogia surda continua

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dizendo que: “Se mostra presente [...] suavizando o hibridismo, a mistura,

a deficiência, o estereotipo. É como se algo moldasse a imaginação,

influenciasse as ações, convergindo, reapropriando a identidade” (PERLIN,

2011, p.9). Essas colocações dizem respeito ao sentido de representar as

possibilidades de os sujeitos surdos se constituírem como povo surdo.

Outro ponto que gostaria de destacar, ainda no campo da literatura, está

relacionado com a questão do ensino e da aprendizagem do português para

surdos. Considero oportuno problematizar essa questão para entendermos

quais mecanismos possibilitam as aprendizagens através de atividades de

letramento com livros infantis. Sobre isso, outro material trazido por Tulipa foi

um “gibi”. Ela comenta:

Outra coisa que eu adorava eram os gibis [...] era muito mais fácil de entender o

contexto, pois tem o texto juntamente com o desenho. Então os gibis foram

muito importantes para a construção do meu conhecimento do Português.

Auxiliou muito para que eu aprendesse o significado das palavras através dos

contextos (Excerto - Entrevista Tulipa).

Os surdos vêm sendo narrados ao longo dos tempos como sujeitos

visuais. Essa visualidade é entendida como um marcador45 cultural. Como

elementos da cultura surda presentes nos gibis, podemos mencionar os

desenhos, as expressões dos personagens e a organização das Histórias

através de uma sequência visual, representando uma narrativa. Tulipa

continua:

Outra coisa que eu me lembro também são as Histórias em sequência, de três

ou quatro quadrinhos [...] Estas Histórias também me ajudaram a aprender

muitas coisas. Tinha uma delas que mostrava o quadro de crianças jogando

ping-pong, logo após lavavam as mãos e depois faziam a refeição. Eu entendia

facilmente. Acho que este tipo de material é muito apropriado para os surdos,

para utilizar durante as aulas a fim de que eles entendam sobre diversos

45

Marcas, s, f.: “- traço, sinal, impressão deixada por alguém ou algo; - desenho, inscrição, nome, número, selo, símbolo, carimbo, etc. que se coloca sobre um artigo para distingui-lo de outros, ou como indicação de propriedade, qualidade, categoria, origem; - traço distintivo por que se reconhece alguém ou algo; estilo ou maneira pessoal; - conjunto de características fundamentais; - expressão reveladora de sentimentos, tendências ou estado físico ou mental, impressão, efeito de uma causa qualquer sobre o espírito, sobre os sentimentos; - limite, fronteira.” (LOPES, VEIGA-NETO, 2010, p.118).

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assuntos. Então hoje, eu como professora utilizo muito esse tipo de atividade

com meus alunos (Excerto - Entrevista Tulipa).

Essas Histórias contêm informações interpretativas que provocam a

imaginação dos leitores. Sobre isso, Canclini (2000, p.339) pontua:

Poderíamos lembrar que as Histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos, contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas.

As Histórias em quadrinhos são consideradas como o gênero literário

que articula as imagens com as palavras, representadas através de

simbologias que tornam a leitura bem mais sedutora e significativa. “[...] a

demanda da sociedade, por sua vez, pressiona a educação formal a modificar

ou criar novos conceitos ou denominações para a pedagogia visual”

(CAMPELL0, 2007, p.113). Na educação de surdos, dentro de uma pedagogia

visual, é muito importante que os professores se utilizem dessas estratégias

em sua prática.

Strobel (2009, p.40) refere-se à experiência visual como um marcador

cultural a ser considerado, pois é com ela que os surdos “percebem o mundo

de maneira diferente, a qual provoca as reflexões de suas subjetividades: De

onde viemos? O que somos? Para onde queremos ir? Qual é a nossa

identidade?”. Nesse sentido, para que o surdo tenha o entendimento de quem

ele é, precisa se perceber como sujeito que partilha de experiências visuais, as

quais estão ligadas a formas de ver e interpretar o mundo dentro de

singularidades específicas relacionadas à língua e à cultura.

Como essas leituras foram importantes para sua aprendizagem quando

criança, hoje, no cotidiano de suas práticas educativas e no exercício docente,

Tulipa ressignifica essas aprendizagens no desenvolver de uma Pedagogia

surda.

Neste trabalho é interessante analisarmos a questão da aprendizagem

dos surdos e o estímulo ao raciocínio lógico por meio de atividades lúdicas

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como a utilização de jogos. Tulipa narra a possibilidade do uso de jogos como

objetos que favorecem a aprendizagem.

Outro objeto que eu trouxe foi o dominó. Eu adorava jogar com a minha família e

também com crianças da vizinhança. Eu gostava tanto de jogar que estranhava

por que na escola não tinha este tipo de jogo. Eu adorava porque estimulava o

meu raciocínio. Eu gostava de completar as peças rapidamente. Eu acho muito

importante esse tipo de jogo na escola também [...] Outro jogo que eu me lembro

e gostava muito também é o jogo dos antônimos. Era preciso encontrar os pares:

magro, gordo etc. Eu gostava muito desse jogo e também do jogo da memória. E

o fato de não fazer esse tipo de jogos na escola me intrigava, pois eu sempre

queria mais, sempre achei que isso tinha que acontecer mais vezes na escola

também. Então eu prometia: No dia em que eu for professora, vou utilizar muito

esses jogos, pois eles me ajudavam muito a ficar ativa, mais esperta. Os surdos

geralmente apresentam mais dificuldade para perceber determinadas coisas. Por

exemplo, pergunta o antônimo de gordo. Depois de um longo tempo é que ele

vai responder magro. Por isso eu acho fundamental esse tipo de jogos para os

surdos para que possam ficar mais espertos, desenvolver o raciocínio. É

histórica a questão de os surdos não terem informações de mundo, mas esses

jogos e essas Histórias também podem servir para adquirir conhecimentos,

informações. Outro jogo que eu adorava quando criança era o quebra-cabeça. E

sobre eles eu pensava da mesma forma, que a escola poderia aproveitar muito

mais esses tipos de atividade (Excerto - Entrevista Tulipa).

Podemos observar que o brincar é uma atividade cotidiana na vida das

crianças. Através da brincadeira a criança desenvolve estratégias para resolver

problemas e também estimula o raciocínio, favorecendo a aprendizagem. No

caso das crianças surdas, por terem em sua cultura elementos visuais

característicos, elas necessitam de participação em diferentes atividades

lúdicas, que vão sendo desenvolvidas através de uma perspectiva da

percepção visual do mundo. Para os alunos surdos, a motivação deve partir de

suas experiências visuais, artefato cultural das comunidades surdas, o que vem

a constituir, segundo Strobel (2009), a base da Pedagogia Visual.

A dinâmica que implica os jogos desencadeia ações como:

comunicação, expressão, desafio, imaginação atenção e concentração entre

outras, desenvolvendo habilidades nas suas variadas formas. Nesse sentido,

os jogos podem ser entendidos como instrumentos na criação de estratégias

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do fazer docente. Essas estratégias tornam o processo de aprendizagem mais

interessante e significativo, pois os alunos, através das brincadeiras,

conseguem aprender sobre sua cultura.

Baseados em referências sociológicas, estudos na contemporaneidade

vêm analisando a função do brincar como um fenômeno cultural. De acordo

com o sociólogo Gilles Brougère (1995, p. 61) “o círculo humano e o ambiente

formado pelos objetos contribuem para a socialização da criança e isso através

das múltiplas interações, dentre as quais algumas tomam a forma de

brincadeira”. A cultura pode ser entendida como algo que é aprendido através

do brincar, na fase da infância. O ato de brincar proporciona um confronto entre

a criação e o mundo que a circunda, a brincadeira funciona como uma espécie

de mecanismo que vai fazer com que a criança se aproprie de saberes e

práticas sociais. As questões referentes ao uso de jogos como estratégia

didática na educação de surdos apresentam benefícios nos processos de

formação desses sujeitos.

Segundo Brougère (1997), o brincar exige uma aprendizagem; sendo

assim, o professor terá o papel fundamental de inserir a criança na brincadeira,

criando espaços, oportunidades e interagindo com ela. Assim, consideramos

que a prática pedagógica aliada ao uso de jogos é uma ferramenta na

formação de aprendizagens e deve ser explorada na educação de surdos.

Entre os objetos que compuseram a caixa de Tulipa, foram também

selecionados por ela alguns livros didáticos. Para justificar a escolha desses

materiais, ela referiu-se a suas vivências de aprendizagem.

Na minha casa sempre tinham muitos livros didáticos porque minha mãe era

professora. Minha mãe sempre me dizia que aqueles livros não eram somente

para uso dela, mas que eu poderia utilizá-los também para aprender. Então eu

adorava ver os livros dela, principalmente os de Ciências. Eu adorava! Eram

livros muito ricamente ilustrados, que chamavam a minha atenção, me

ensinavam coisas. Aprendi muito sobre a vida dos animais, sobre as plantas,

sobre diversos assuntos. Foi um grande aprendizado. Eu pensava: os surdos

precisam saber disso também [...] Então eu sempre prometia para mim mesma,

que quando eu fosse professora, eu utilizaria esses livros para ensinar muitas

coisas às crianças surdas (Excerto entrevista Tulipa).

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O contato que Tulipa teve com diferentes livros didáticos está

particularmente relacionado ao fato de sua mãe ser professora. Como ela bem

enfatiza no trecho acima, sua mãe a estimulava a usar os livros didáticos como

um recurso que favorecia as aprendizagens. A referência de sua mãe como

professora e as relações que ela estabelecia com os livros didáticos foram

presenciados por Tulipa, que ao ver essa relação, se apropriava desses

recursos.

Um dos pontos importantes que merece ser analisado é a

ressignificação que Tulipa faz na utilização desses livros, criando estratégias

que estão relacionadas à forma pela qual os surdos aprendem. Ela enfatiza

que gostava muito das imagens contidas nos livros e isso seria uma estratégia

que ela usaria no futuro, quando professora, ou seja, a visualidade se

reafirmando como marca cultural surda. Nessa lógica, a cultura surda vai sendo

significada cotidianamente, na medida em que vai produzindo identidades.

Essas identidades criam-se através do compartilhamento de experiências

visuais.

Nesse contexto, falar de identidade é falar de produção de cultura. A

identidade de professora surda, de acordo com a História de Tulipa, foi

produzida através das peculiaridades e necessidades de aprendizagem que

iam surgindo no decorrer de sua História de vida, ligadas ao pertencimento ao

povo surdo. O povo surdo tem uma cultura46 que possibilita a construção de

identidades próprias, que se inserem no contexto de práticas pelas quais esses

sujeitos significam e produzem tal cultura. É através dela que os surdos

buscam suas diferentes identidades e buscam significar as práticas vivenciadas

ao longo da vida, criando suas Histórias de vida, e produzindo cultura. Segundo

Canclini:

46

STROBEL (2009) apresenta oito artefatos culturais do povo surdo, que podem caracterizar a cultura surda, constituindo-os como sujeitos e construindo suas formas de olhar e se relacionar com o mundo. Seguem eles: a experiência visual, que constitui os surdos como indivíduos que percebem o mundo através de seus olhos; o linguístico que se refere à criação, utilização e difusão das línguas de sinais; o familiar que abrange a questão do nascimento de crianças surdas em lares ouvintes e de crianças ouvintes em famílias de surdos, sendo que na maioria dos casos, as crianças surdas são uma dádiva para famílias surdas e uma lástima para famílias ouvintes. A literatura surda que abrange criações, tais como poesia em lingua de sinais e livros publicados por autores surdos. As artes visuais que são consideradas os artefatos em que se localizam as artes plásticas e o teatro surdo. Existem ainda os artefatos compostos pela vida social e esportiva e o artefato político, destacado pelos lideres surdos, e as lutas sociais através de organizações e associações. Por último, a autora aponta as criações e transformações materiais, tais como telefones adaptados e campainhas luminosas, entre outras tecnologias criadas para melhorar as condições de acessibilidade.

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Pode-se afirmar que a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social (CANCLINI, 2007, p.41).

Para melhor compreendermos a produção desses significados culturais,

é interessante comentar sobre as marcas surdas, que definem esses sujeitos.

Lopes e Veiga-Neto (2010) comentam que a lingua de sinais, a arte

surda, teatro surdo, a poesia surda, a luta dos surdos, a necessidade de

compartilhar experiências com seus iguais e a experiência do olhar, tudo isso

pode ser entendido como marcadores que permitem falar sobre as identidades

surdas, baseadas em um jeito surdo de ser e se constituir sujeito. Strobel

conceitua a cultura como sendo:

[...] o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas. [...] Isso significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 27).

Os livros didáticos que foram citados por Tulipa no último excerto

tiveram uma importância significativa para as aprendizagens em sua infância.

Ao relembrar esses recursos didáticos, ela comenta que já naquele tempo,

intencionava utilizar esse tipo de recurso em sua prática, quando professora.

Tulipa também comenta sobre o livro didático de português. A questão do

português vem sendo narrado neste trabalho de forma reincidente, isso mostra

o quanto esse tema foi importante no processo de formação de Tulipa e das

demais professoras no que diz respeito ao letramento, como vimos até aqui.

Nesse sentido é possível dizer, a partir das narrativas de Tulipa, que há uma

produção cultural acontecendo através de práticas de ressignificação que

direcionam para a constituição de uma identidade de professora. No trecho a

seguir ela comenta sobre a questão do português em seu processo de

aprendizagem.

Eu trouxe também um livro didático de Português. Sempre preferi o de Ciências,

mas sabia que também precisava aprender o Português, pois eu tinha muito

problema com ele. Então eu utilizava esse livro para aprender mais palavras do

Português. E sempre pensava que um dia eu utilizaria isso com as crianças

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surdas. Apesar de ser um livro voltado especificamente para os ouvintes, eu

utilizo para adaptar ao ensino das crianças surdas, recortando as imagens,

colando, tirando algumas coisas desnecessárias. Então eu uso estratégias para

aproveitar esses livros didáticos voltados para os alunos surdos. (Excerto -

Entrevista Tulipa)

A linguagem escrita da língua portuguesa para surdos tem gerado

diversos estudos, com embasamento em perspectivas teóricas que envolvem

os Estudos Surdos e linguísticos. Pode-se dizer que em sua grande maioria, os

sujeitos surdos encontram dificuldades na utilização do português. Ao longo

dos tempos se pensou que os surdos não conseguiam aprender o português

devido à falta de audição. Por não ouvirem, as práticas de leitura e escrita eram

prejudicadas de modo a propiciar, consequentemente, erros de leitura e escrita.

Com os estudos atuais47, nos quais baseio este trabalho, começou-se a

entender o processo linguístico do surdo pelo viés do bilinguismo. O

bilinguismo48 se fundamenta, predominantemente, no ensino da lingua de

sinais como primeira língua para os surdos. Com a aquisição dessa primeira

língua os surdos passam a aprender a leitura escrita do português como sendo

sua segunda língua. O processo de aquisição da L149 deve ser desenvolvido a

partir de um contato direto com outros surdos usuários da lingua de sinais.

Quando eu era pequena, eu sonhava muito com as coisas que eu faria como

professora. Mas na prática é um pouco diferente. Algumas coisas que faziam

parte do meu sonho eu consegui aproveitar, como por exemplo, os jogos. A

questão do Português é muito complicada, muito difícil. Mas ainda não desisti.

Estou lutando para ver se consigo desenvolver algo melhor para o Português,

47

Entre alguns autores que vêm demarcando as discussões nesse campo, podemos citar, entre outros: Skliar (2009); Lodi e Lacerda (2009). A educação bilíngue tornou-se pauta nas discussões dos movimentos surdos junto ao Ministério da Educação desde o ano de 2011, quando várias manifestações vêm se organizando, sendo que a Federação Nacional de Educação e Inclusão dos Surdos – FENEIS - organiza uma manifestação para abril de 2012, em Brasília, para comemorar os 10 anos da oficialização da Libras, bem como entregar à presidenta Dilma Rousseff um documento sobre a proposta dos surdos para a Educação Bilíngue. 48

De forma geral, por bilinguismo entendemos a situação em que coexistem línguas de modalidades diferentes (LIBRAS e Língua Portuguesa, no caso do Brasil) como meio de comunicação num determinado espaço social, ou seja, um estado situacionalmente compartilhado de uso dessas duas línguas. A condição de bilíngue se modifica na trajetória de vida de pessoas surdas e assume diferentes contornos em relação ao domínio e à variação de uso de ambas as línguas. (KARNOPP, 2005, p.229). 49

Essa sigla é usada para identificar a lingua de sinais como sendo a primeira a ser adquirida pelas pessoas surdas.

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talvez a criação de alguma estratégia ou a adaptação de material no qual eu

possa ensinar melhor o Português para meus alunos. Atualmente eu percebo

que é mais importante eles entenderem o contexto e depois introduzir o

Português (Excerto - Entrevista Tulipa).

Tulipa apresenta no trecho acima que as praticas de professores

precisam estar sempre sendo adaptadas na busca por estratégias de ensino

que facilitem a compreensão do português. Por isso, os aperfeiçoamentos de

novos métodos de aprendizagem vêm sendo pensados por ela no cotidiano de

suas aulas. O letramento e o ensino do português são temas que preocupam

professores e pesquisadores na educação de surdos. Isso é evidenciado na

quantidade de trabalhos sobre esse assunto apresentados em eventos ou em

publicações. É interessante perceber que essa não é uma preocupação

somente dos professores ouvintes procurando inserir os surdos na língua

majoritária, mas também dos professores surdos, que entendem o acesso a

essa língua como uma estratégia de empoderamento frente aos desafios de

inserção social.

5.2 Literatura surda, cultura visual: significando sua prática.

Dando início a sua narrativa, a professora

Lírio, ao abrir a sua caixa de memórias, pega

um livro de literatura surda. Com base nesse

livro50 ela faz algumas colocações que

merecem ser destacadas.

Trouxe este livro de Histórias que é muito legal, é em Libras. Antigamente não

tínhamos o privilégio de ter a literatura surda, as Histórias diretamente em Libras.

Hoje elas existem. Como era difícil antigamente para termos acesso a Histórias,

gibis, livros de Histórias. Eram voltados apenas para os ouvintes. Agora é

50

“Um mistério a resolver: o mundo das bocas mexedeiras”. A História mostra, com sensibilidade e clareza, às crianças e adultos surdos e ouvintes como a descoberta da surdez e a prática da lingua de sinais representa um passo fundamental para a inclusão do surdo no mundo que o cerca. A imagem do livro de literatura infantil encontra-se em anexo, ao final desta dissertação.

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importantíssimo para os surdos ter essas Histórias, pois é um canal de

informação para eles. São Histórias que são facilmente entendidas pelas

crianças surdas (excerto da entrevista de Lírio).

Assim como Tulipa, Lírio também traz em suas memórias a importância

da literatura surda em sua formação. Partindo do contexto histórico da literatura

surda, sabe-se que ela já existe há muito tempo. São vários os surdos que há

muitas décadas têm contribuído com suas obras51 para o enriquecimento da

cultura surda. As diferentes Histórias que circulam representam as marcas

culturais dessas pessoas, privilegiando a lingua de sinais e a experiência

visual. Essas Histórias literárias vêm sendo produzidas e passadas à

comunidade surda no compartilhar de pais e filhos, como também na relação

estabelecida entre professores e alunos surdos nas escolas, associações e

espaços de lazer. Contudo, os estudos referentes à literatura surda e sua

produção têm se destacado no cenário investigativo recentemente52.

Esses estudos começaram a ser desenvolvidos a partir do

reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras), que por sua vez foi

sendo explorada através da literatura voltada aos surdos, tanto em matérias

digitais, como também em livros impressos53 que contemplam enredos que se

fundamentam na cultura surda. Assim a literatura é entendida como sendo uma

ferramenta na construção de identidades. Rosa e Klein (2011, p.94), nesse

sentido, contribuem dizendo:

A literatura surda constitui-se das Histórias que tem a Libras, a questão da identidade e da cultura surda presente nas narrativas. Mas porque precisamos de uma literatura surda? Muitos surdos não conhecem sua própria língua. Ao conhecer a Libras, estranham saber que existe uma cultura surda. A cultura surda auxilia no conhecimento da língua e cultura para os surdos que ainda não tem acesso a elas. Para as crianças surdas, a literatura surda é um meio de referencia e também

51

Refiro-me principalmente àquelas produções culturais surdas que vêm sendo produzidas ao longo dos tempos nas comunidades surdas, como por exemplo, o teatro, a contação de Histórias e as piadas, entre outras produções. 52

Nessa perspectiva podemos citar pesquisas de Lodenir Karnopp, Fabiano Souto Rosa e

Claudio Mourão, entre outros. 53

Esses materiais vêm sendo catalogados e analisados na pesquisa “Produção, circulação e

consumo da cultura surda brasileira. Essa pesquisa já foi mencionada anteriormente.

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cria uma aproximação com a própria cultura e o aprendizado da sua primeira língua, que facilitará na construção de sua identidade.

Há algum tempo os surdos não conseguiam encontrar matérias desse

gênero. Dessa forma, tinham como referência as obras voltadas para um

público em geral, não atendendo as suas especificidades. A leitura na língua

escrita, sem a representação do visual, tornava-se muitas vezes chata, o

entendimento não era claro e não tinha um significado contextual. Por isso Lírio

segue afirmando:

Ao ver este livro agora, consegui entender algumas coisas que antes não era

possível. Quando eu queria saber algo de alguma História, tinha que pedir

auxílio a alguém para compreender o que estava sendo narrado. Às vezes as

pessoas não tinham paciência para tantas perguntas que eu fazia. Então eu me

restringia a saber apenas o que as imagens me transmitiam (excerto - Entrevista

Lírio).

Em sua História de formação, Lírio teve dificuldades em relação a essa

apropriação do mundo da literatura. As aprendizagens não aconteciam

facilmente, por isso ela necessitava de um apoio na realização das leituras,

para que assim conseguisse entender as informações. Como ela diz, realizava

uma série de perguntas que objetivavam à compreensão sobre o que estava

sendo abordado no texto, que ia sendo desvelado com o auxilio de outra

pessoa. Como essas vivências foram marcando sua trajetória de formação e a

relação que ela manteve com o mundo literário e com o aprendizado? Como

que isso pode ter despertado nela o interesse pela busca de uma pedagogia

voltada para sua cultura, com todas as peculiaridades que a envolvem?

A partir dessas problematizações, podemos pensar que o docente surdo

vê a necessidade de ter os elementos da sua cultura sendo contemplados, no

sentido de ampliar as perspectivas de aprendizado dos seus alunos surdos. As

formas de aprender às quais Lírio foi submetida não condiziam com sua

necessidade de dar significado completo às experiências de aprendizado ao

longo de sua formação.

Ao trazer a materialidade de um livro de literatura surda e apontar em

seus relatos a falta que o mesmo fez em sua trajetória de formação, Lírio

apresenta a literatura como um dos elementos culturais que ela, como

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professora surda, entende ser necessário como ferramenta na formação de

seus alunos surdos

É importante considerarmos que o livro é um elemento necessário para

que as pessoas aprendam sobre a vida e tenham informações sobre o mundo.

No caso especifico dos surdos, como já salientamos no decorrer das análises,

a experiência visual é a forma pela qual eles significam suas aprendizagens.

Assim, a literatura é entendida como sendo uma ferramenta na construção de

identidades.

Ao encontro das problematizações que fizemos acima, Lírio ainda faz a

seguinte colocação:

Hoje é diferente, as crianças surdas têm acesso a Histórias sinalizadas. Se

qualquer criança pegar esse livro, vai conseguir entender sozinha o que significa,

pois não há barreiras para seu entendimento como era anteriormente. Ela tanto

pode utilizar o dvd quanto observar as imagens (excerto - Entrevista Lírio).

Direcionando um olhar analítico para mais um objeto54 que compôs a

caixa de memórias, é interessante nos atermos a um tipo de material

direcionado às pessoas ouvintes que Lírio conseguiu ressignificar a partir da

identificação de um artefato de sua cultura.

É um livro55 feito por ouvintes, mas eu gostava muito de observar as cores. Não

entendia as palavras que estavam escritas, mas gostava muito das cores.

Através das imagens eu conseguia entender o contexto da História, não

precisava pedir auxilio para ninguém. Mesmo não sendo para surdos, era uma

História bem visual, a exemplo do que já temos disponível para os surdos hoje.

Então esse livro foi muito importante para mim por causa do seu belo visual

(excerto - Entrevista Lírio).

Esse excerto enfatiza uma questão importante: mesmo não se tratando

de uma produção voltada para surdos, como as que são vinculadas

atualmente, foi possível encontrar nesse livro elementos que despertaram o

interesse de Lírio. Mais uma vez, a experiência visual ganha destaque. 54

Imagem do livro “Mexa-se” encontra-se em anexo, ao final desta dissertação 55

Nesse livro as ilustrações se mexem como se fosse um filme. Você pode ver vários animais

em ação, como o pinguim andando, o sapo pulando, o porco correndo, a cobra rastejando, o

beija-flor voando e o golfinho saltando. Na realização desse livro foi utilizada uma técnica

chamada scanimation, de RufusButlerSeder pela Editora Sextante Parece até mágica. É só

mexer as páginas para ver tudo ganhar movimento por trás do plástico.

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Podemos dizer que o pensamento dos surdos se articula através dessa

visualidade, tendo a visão como canal sensorial pelo qual se comunica e

significa o mundo a sua volta. Assim, os surdos conseguem construir seus

conhecimentos, superar limitações, criando possibilidades de aprender que

condizem com sua especificidade.

A lingua de sinais, por estar localizada dentro da modalidade visual-

gestual, é responsável pelo desenvolvimento cognitivo e emocional dos surdos.

Assim, através dos processos visuais, os surdos conseguem estruturar as

imagens com a lingua de sinais, possibilitando a comunicação e também a

apropriação de conhecimentos, conceitos e aprendizagens. Perlin e Miranda

(2003, p.218) comentam:

Experiência visual significa a utilização da visão, em (substituição total à audição), como meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela lingua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo [...].

Pensemos então a visualidade sendo explorada em termos de uso

pedagógico. Na educação de surdos é necessário ter referências de

professores surdos que possibilitem o acesso do aluno a estratégias visuais de

leitura e de escrita. Essas estratégias ganham significado quando esses

professores dão sentido às mesmas, ou seja, quando esses profissionais criam

essas estratégias com ênfase nos aspectos que revisam as lembranças de

suas experiências. Por consequência, vai se constituindo uma prática

pedagógica em conformidade com as necessidades e peculiaridades do ser

surdo.

No decorrer de sua narrativa, Lírio menciona sobre o uso de um recurso

didático relevante a ser utilizado com os surdos. Com seus relatos percebe-se

que em sua formação ela não teve acesso a esses recursos. Por isso em sua

prática vem utilizando tal material de apoio.

Trouxe algo que gosto muito, que é meu baralho das configurações de mãos. É

um material muito fácil de utilizar, que antigamente não existia. Não tínhamos

nada de material de apoio, mas hoje já existem. [...] São cartas, jogos, dvd’s

sinalizados e livros, entre outros. Muitas coisas que antigamente não existiam,

até porque era a época da obrigatoriedade do oralismo e da escrita. Os

professores utilizavam apenas o quadro e o giz. Só isso! Não havia nem

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imagens para apoiar o nosso aprendizado. As únicas coisas expostas nas

paredes eram as sílabas, como: fa-la-le, etc. (excerto - Entrevista de Lírio).

Muitos são os autores que com seus estudos reforçam, a partir da

experiência visual dos surdos, a necessidade de existirem práticas de

letramento que contemplem atividades estratégicas no processo educativo.

Contudo, ainda não se conhece de forma mais abrangente essas práticas

pedagógicas que vêm sendo produzidas no cenário sócio-educativo-cultural

dos surdos.

Com as narrativas de Lírio percebe-se que ela, ao dizer sobre si, retoma

os caminhos percorridos em sua formação, atribuindo às experiências novos

significados que, ao encontro de suas práticas atuais, reafirmam sua identidade

de professora. Assim, essa identidade continua sendo constituída. Tudo que

ela narrou naquela oportunidade possibilita um olhar para o seu processo e,

nessa ação, retomar sua historia continua criando essa identidade.

Lopes e Veiga-Neto (2010) nos ajuda a pensar a identidade surda e a

necessidade de defini-la, trazendo Bauman, que expressa a seguinte ideia:

Nós não sabemos quem somos e muito menos sabemos o que podemos nos tornar e o que ainda podemos aprender que somos. O impulso de saber e/ou tornar-nos o que somos nunca se aquieta, assim como nunca se desfaz a suspeita sobre o que ainda podemos nos tornar se nos guiarmos por esse impulso. (BAUMAN, 2006, p.17 apud, LOPES e VEIGA-NETO, 2010 p.127).

O professor surdo não é constituído somente de um jeito. Eles não são

constituídos por uma única identidade fixa, mas sim são sujeitos que estão

submetidos a uma ordem de acontecimentos culturais no meio da qual se

inserem mediante as lutas pelo seu reconhecimento político-identitário. Por isso

é possível problematizar que as identidades de professores surdos vêm sendo

constituídas e transformadas constantemente a partir das práticas culturais que

eles vivenciam, afirmando e reafirmando a cultura surda nas práticas sociais.

5.3 Construindo a identidade de professora: ressignificando a

prática pedagógica

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Para Perlin (2004, p. 81), a pedagogia surda

“assume o jeito surdo de ensinar, de propor o jeito

surdo de aprender, experiência vivida por aqueles

que são surdos”.

No decorrer desta dissertação, conhecemos

um pouco sobre a trajetória de vida de Dália. Sua

História foi marcada por experiências de oralização.

Essas vivências influenciaram sua caminhada de formação,

fazendo com que buscasse a docência como profissão. Na tentativa de olhar

analiticamente para esse processo, é interessante pensarmos a prática

docente como sendo produtora de identidades. pois em suas narrativas

evidenciaram-se as práticas que vêm sendo desenvolvidas por Dália junto aos

seus alunos surdos.

A pedagogia dos surdos é uma pedagogia que se difere de outras. Na

perspectiva da identidade e da diferença é que se localiza a Educação dos

Surdos. Ao longo da História dos surdos foram ignoradas suas diferenças e sua

cultura foi desvalorizada. Essa desvalorização representou-se na forma de

educação na qual os surdos tiveram que se sujeitar a uma formação com base

no oralismo. Sobre isso Dália diz:

Eu cresci oralizando, não havia a Libras. A cada série que eu estudava, repetia

dois anos, para que eu memorizasse melhor o Português. Por isso então eu

trouxe uma caixa56 cheia de vocabulários. São diversas palavras. Antes foi muito

sofrimento a questão da oralização, do treino vocal, era muito chato (excerto -

Entrevista Dália)

Atualmente outras narrativas têm tido destaque no campo da educação

e vêm possibilitando aos surdos se constituírem a partir de uma experiência

cultural que condiz com suas necessidades de aprendizagem, de comunicação

e de convívio social. Com as línguas de sinais a comunicação acontece de

forma efetiva entre os surdos e os usuários dessas línguas, possibilitando uma

inserção em sua cultura e a construção de subjetividades.

56

A imagem do material encontra-se em anexo, ao final desta dissertação.

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Entendemos que cultura e educação em geral estão envolvidas em

processos de transformação da identidade e da subjetividade. “[...] ao mesmo

tempo em que a cultura em geral é vista como uma pedagogia, a pedagogia é

vista como uma forma cultural: o cultural torna-se pedagógico e o pedagógico

torna-se cultural” (SILVA, 1999, p.139).

O desafio na construção de uma pedagogia surda tem como enfoque a

questão das representações sobre os surdos e suas identidades, considerando

as narrativas do povo surdo como uma ferramenta reconstrutora que possibilita

o surgimento de uma pedagogia surda, que faz com que as representações da

surdez sejam transformadas na medida em que os próprios surdos narrem sua

História educacional e suas práticas docentes.

Atualmente eu não obrigo que meus alunos tenham esse tipo de aprendizado.

Eu priorizo a Libras e faço isso através de muito visual. Eu coloco diversas

imagens na minha sala de aula com a palavra correspondente. Desta forma elas

podem aprender o sinal no contexto, bem como o significado. Eu não exijo que

elas memorizem as palavras, que internalizem aquilo, não! Por exemplo, elas

fazem o sinal de bola e eu obrigo a fazer a datilologia da palavra. Não, não é

assim que acontece. Antigamente era assim, mas agora eu os deixo mais livres.

E desta forma eu percebo que é melhor para a vida deles do que foi para a

minha. Agora que eu sou formada, posso oferecer algo melhor para eles.

Quando eu estudava, adorava matemática. Português era diferente, pois éramos

obrigados a memorizar o ba-be-bi-bo-bu. Era diariamente a mesma coisa [...]

(excerto - Entrevista Dália).

Quando nos atemos a olhar para trajetória de Dália, surgem alguns

questionamentos, como o significado de suas experiências na construção de

sua identidade docente ou ainda como essas vivências vêm sendo

resignificadas cotidianamente no exercício da docência.

Dália, ao ensinar seus alunos, revela-nos algumas estratégias que

fazem parte do seu cotidiano na sala de aula. Nesse sentido, cabe

destacarmos um pouco dessas práticas, que podem ser consideradas como

parte de uma Pedagogia Cultural Surda.

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Para isso é interessante nos apoiamos no conceito de Ladd e Gonçalves

(2011) sobre holismo57 cultural. Esse conceito se fundamenta a partir do

entendimento de que as crianças surdas são seres completos e não

deficientes, que podem se desenvolver de forma plena tanto afetivamente,

como social e academicamente, se suas bases educacionais estiverem

estruturadas na língua e na cultura surda. Assim, os educadores surdos terão

como utilizar em sala de aula perspectivas culturais holísticas, e assim

sustentarem sua pedagogia. Ainda, complementando esse conceito:

Ao ingressar em escolas surdas como educadores, esses surdos adultos possuem, portanto, uma noção ampla dos caminhos e destinos das crianças: de onde elas “vêm”, aonde elas precisam “chegar”, e o que tem de ser feito para que elas desenvolvam seu potencial. Com sua experiência como membros de uma minoria bastante mal compreendida, e com experiências do que havia ou não funcionado em sua própria educação, esses educadores podem analisar a si mesmos e elaborar estratégias para reduzir as experiências negativas pelas quais seus alunos surdos passarão no futuro. Eles também conseguem munir as crianças de habilidades que as ajudam a superar ou conviver com experiências negativas que não podem ser evitadas (LADD, e GONÇALVES 2011, p.304).

Na medida em que entendemos o percurso de formação de Dália,

marcado por experiências que não privilegiavam sua cultura, podemos analisar

seu depoimento em relação às atividades que vem desempenhando com seus

alunos. Um pensar pedagógico encontra-se em constante movimento, e esse

pensar gera novas práticas na produção de uma Pedagogia surda.

Quando ingressei no magistério e conheci a disciplina de Didática, percebi

quantas atividades e recursos diferentes existem e que minhas professoras

nunca utilizaram comigo. Era só a obrigatoriedade das palavras e da oralização.

Não existia nada de lúdico. Era um ensino muito tradicional. Por isso que meu

aprendizado era sempre tardio. Mas no magistério eu aprendi muitos auxílios

didáticos voltados para o lúdico, que agregados à prática podem ter um

resultado muito positivo. O magistério me trouxe muitas ideias e a partir dele

57Holismo, no dicionário (Michaelis) significa: “Compreensão da realidade em totalidades

integradas onde cada elemento de um campo considerado reflete e contém todas as dimensões do campo (…), evidenciando que a parte está no todo, assim como o todo está na parte, numa inter-relação constante, dinâmica e paradoxal“.

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comecei a ter muitas outras, pois eram atividades especificamente para ouvintes,

mas na minha mente eu prontamente fazia uma adaptação para alunos surdos.

Por exemplo, eu trouxe o dado das configurações de mãos. Com ele pode-se

criar diferentes jogos (excerto - Entrevista Dália).

O magistério foi destacado por Dália como muito importante em sua

formação. Por meio dele iniciou-se um processo de pensar a sua prática

atrelada a atividades mais lúdicas. Quando ela identifica essa necessidade, ao

mesmo tempo inicia-se o processo de significação. Como em sua História de

formação ela não teve acesso a essas atividades, buscou desenvolver essas

noções em sua prática pedagógica.

A criação dessas estratégias de ensino, a partir de adaptações para a

educação de seus alunos surdos, nos faz pensar sobre a produção de cultura.

Entendendo a cultura como campo onde a significação social acontece,

pensemos na constituição de identidades docentes na medida em que as

produções culturais de alunos e professores surdos ocorrem de forma

intensaquando são abordadas em um contexto cultural de significação. Para

Silva (1999, p.133):

[...] A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferentes de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nesta concepção, um campo contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos.

Com base no conceito de cultura aqui evidenciado, podemos pensar que

é a partir da identificação cultural que o surdo percebe seu mundo e faz

escolhas. O foco centra-se em o sujeito surdo apropriar-se de fatores sociais

de expressão de sua cultura a partir de seu universo. Parece-nos que Dália

vem organizando suas práticas de ensino e contribuindo para que isso

aconteça. Nessa lógica, ela não só proporciona a seus alunos essas

identificações, mas essas experiências vão sendo vivenciadas por ela, na

medida em que vai se apropriando de estratégias, estabelecendo significados e

produzindo cultura. A identidade e a docência vêm sendo construídas a partir

da necessidade de uma Pedagogia surda, envolvendo um jeito de ensinar.

Sobre esse jeito surdo, vejamos algumas estratégias ressignificadas por Dália:

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Trouxe o meu baralho das configurações de mãos. É baseado nas configurações

de mãos, como o dado, mas diferente. O aluno escolhe três cartas e precisam

criar um contexto a partir delas. Eles adoram! Quando faço essa brincadeira eles

me enchem de beijos. É uma atividade fundamental, pois estimula muito o

aprendizado dos alunos (excerto - Entrevista Dália).

E ainda:

Para os alunos surdos os verbos são muito difíceis. Então eu trouxe aqui este

saquinho que contêm diversos verbos, mas não em forma de palavras, pois para

eles não adianta, mas a ação em si, para que eles saibam o significado. Então

com os verbos vamos construindo os contextos. O verbo ‘precisar, eu preciso de

dinheiro. O verbo ‘gostar’, eu gosto de ter amigos. O verbo ‘comer’ etc. Então eu

escrevo o verbo ‘comer’ e a partir dele surgem diversas possibilidades para

complementar esse verbo, por exemplo: picolé, arroz, pão etc. Os alunos ficam

espantados com a infinidade de possibilidades com cada verbo. Com isso eles

entendem o significado do verbo. Dessa forma os alunos vão entendendo,

criando e ampliando os conhecimentos (excerto - Entrevista Dália).

Pensemos nessas práticas pedagógicas propostas por Dália, no sentido

de produção cultural. Canclini (2007, p.41) ao conceituar cultura diz que “a

cultura apresenta-se como processos sociais, e parte da dificuldade de falar

dela deriva do fato de que se produz, circula e se consome na História social”.

Esses recursos que vêm sendo utilizados em suas aulas evidenciam que uma

prática pedagógica surda vem sendo significada, através de materiais

reapropriados social e culturalmente. Ao pensar em estratégias de ensino no

seu cotidiano de professora, Dália traz esses saberes para o contexto atual e

produz novos sentidos para as aprendizagens, que ao serem colocadas em

prática criam um jeito de ensinar condizente com as necessidades culturais de

seus alunos surdos. Nesse constante processo de formação, a identidade

docente de Dália se constitui, nesses movimentos entre as experiências

vivenciadas e a emergência de uma Pedagogia surda, comunicam-se

significados que apontam para a constituição da identidade docente.

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6. NAS TRAMAS DAS NARRATIVAS: PÉTALAS, SEMENTES,

VOOS

Neste último capitulo da dissertação, apresento algumas

problematizações referentes ao último encontro com as professoras, quando

elas assistiram a um vídeo com suas narrativas ao longo dos encontros

realizados. Também realizarei as considerações finais referentes a este

trabalho, com o propósito de costurar alguns pontos que apareceram com

maior reincidência entre as narrativas das professoras surdas.

6.1 Revendo as narrativas: ressignificando as experiências.

Sabemos que todas as narrativas, sejam orais ou escritas, pessoais ou

coletivas, oficiais ou não-oficiais, são “narrativas de identidades” (Anderson

1991, apud Errante, 2000, p.142). Dada a especificidade do foco desta

pesquisa – narrativas de professoras surdas -, acrescento também as

narrativas sinalizadas. As pessoas surdas, através da lingua de sinais também

contam suas Histórias. Essas narrativas não têm a oralidade como enfoque,

mas são feitas a partir do ato de sinalizar. Contando sobre sua vida e

formação, as professoras que contribuíram para esta pesquisa puderam

apropriar-se de si. As trocas de experiência e “escuta dos sinais” identificaram

momentos na trajetória de vida umas das outras. Para Delory-Momberger

(2008, p. 56), “[...] a narração é o lugar pelo qual o individuo toma forma, no

qual ele elabora e experimenta a História de sua vida”.

As narrativas (auto)biográficas podem ser entendidas de acordo com

Josso (2010) como “biografias educativas”, pois permitem que essas

professoras possam refletir sobre o passado e propor novas ações, tanto no

presente quanto no futuro. Dessa forma, entendemos que através da utilização

de relatos autobiográficos podemos compreender os caminhos que as levaram

à docência e à constituição da identidade de professora.

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Esse campo de investigação tem procurado conhecer como cada um de

nós vem se tornando professor, e para isso se faz necessário pesquisar a vida

cotidiana, como também os efeitos das Histórias de vida, com suas emoções e

lutas que constituiem o processo identitário. Cada uma dessas professoras

surdas organiza suas aulas de uma forma particular, apropriando-se de meios

pedagógicos que possibilitam enfrentar o dia a dia de suas práticas. Nesse

fazer pedagógico e no olhar para os processos formadores que fizeram parte

de suas vidas, elas dão seguimento a esse continuo processo de formação.

Assim, no último encontro da pesquisa, propus uma dinâmica diferente,

na qual as professoras58 assistiram a um vídeo contendo suas narrativas

coletadas nos encontros anteriores. Sobre essa experiência de olhar para si,

vejamos o que elas relatam.

Primeiramente, Tulipa:

Ao rever o que foi sinalizado, eu pude relembrar meu passado novamente e

confirmar que realmente é verdade. Eu percebi que, se hoje eu sou uma

professora, é realmente em função dessas experiências que eu relatei nos

vídeos. Foi um resgate para mim. Eu me senti de volta ao passado. Deu vontade

de ver aquelas coisas novamente, de brincar novamente com meus primos e

vizinhos, de fazer tudo de novo. Ao ver os vídeos também senti vontade de

continuar buscando outros materiais, reforçou meu desejo de prosseguir minha

prática utilizando os textos e o visual (excerto - Entrevista Tulipa).

E, ainda, Lírio:

Quando eu me vi sinalizando achei muito diferente. Contei acontecimentos de

muitos anos atrás, não por serem fatos desde o meu nascimento, mas por se

tratarem de coisas que aconteceram como se fosse outro mundo diferente de

agora, um mundo cheio de marcas de proibições, de oralização, de diversas

coisas ruins. E hoje é muito diferente, é um mundo livre. [...] Ao visualizar o

vídeo, senti que estamos bem melhores agora, pois antes era uma época de

sofrimentos [...] antigamente não tínhamos nem livros para contar Histórias, não

tínhamos visual aliado às explicações dos professores [...] mas ao contrário

58

No último encontro a professora Dália, por motivos pessoais, não pôde permanecer até o final. Assistindo apenas ao vídeo, não ficou para a discussão. Solicitou-se que a mesma enviasse por escrito algum comentário sobre o que assistiu. Porém, até o momento da redação da dissertação, não obtive resposta. Sendo assim, os trechos das entrevistas desta parte das análises focam apenas as narrativas de Tulipa e Lírio.

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daquela época, hoje posso apresentar para meus alunos livros de históricas e

eles aprendem com isso (excerto - Entrevista Lírio).

Trazer as experiências formadoras é contar a si mesmo sobre sua

História de vida. Nas narrativas aqui apresentadas, observamos que ao trazer

essas Histórias de formação, ambas afirmam que foi um processo importante,

pois perceberam as mudanças ocorridas no tipo de educação que tiveram, e

hoje as coisas mudaram devido às conquistas que os surdos vêm realizando

no campo da educação. Josso (2010), ao explicitar sobre o evocar experiências

para entender a formação, diz:

Essas experiências são significativas em relação aos questionamentos que orienta a construção da narrativa, a saber: o que é a minha formação? Como me formei? Nesse sentido, não se esgota o conjunto das experiências que evocamos a propósito da nossa vida. Mas para que uma experiência seja considerada formadora, é necessário falarmos sobre o ângulo da aprendizagem; em outras palavras, essa experiência simboliza atitudes, comportamentos, pensamentos, o saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades (JOSSO, 2010, p.47).

Quando foi exibido o vídeo para as professoras foi muito interessante ver

o quanto elas se olharam ao se verem sinalizando sobre si mesmas, avaliando

as vivências e comentando as conquistas que obtiveram ao longo de sua

trajetória. Em suas narrativas frisaram o quanto essa dinâmica foi interessante,

pois descobriram muitas aprendizagens, estratégias e experiências que fizeram

parte de sua formação.

Como objeto de observação e objeto pensado, a formação, encarada do ponto de vista do aprendente, torna-se um conceito gerador em torno do qual vêm agrupar-se, progressivamente, conceitos descritivos: processos, temporalidade, experiência, aprendizagem, conhecimento e saber fazer, temática, tensão dialética, consciência, subjetividade, identidade (JOSSO, 2010, p.34).

As Histórias de vida e de formação marcam as aprendizagens tanto no

sentido pessoal como no profissional. Essas aprendizagens, como em uma

rede, possibilitam aos sujeitos tramar essas experiências vividas com as

possibilidades de ser e de se constituir no cotidiano, gerando novas

potencialidades formadoras. Podemos entender essas potencialidades como

sendo as narrativas das professoras. Ao narrarem-se, compartilharam suas

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Histórias umas com as outras, de modo que ao rever e pensar sobre essas

Histórias foram abrindo caminhos para compreender os processos identitários

e suas atuais realidades no exercício da docência. Quanto às narrativas

efetuadas em grupo, cada uma “permite que constatemos em que é que nesta

ou naquela semelhança há uma diferença e em que é que no próprio núcleo de

tal ou tal diferença há uma semelhança possível” (JOSSO, 2010, p.68).

Souza (2006) comenta sobre as narrativas de formação dizendo que as

mesmas são férteis, pois revelam experiências escolares e formadoras que

possibilitam superar os modelos construídos como aluna, e que implicam as

aprendizagens sobre a profissão.

As representações construídas pelas professoras através de suas

narrativas evidenciam-se através de “momentos-charneira”, como denominou

Josso (2010). As narrativas articulam vários fatos considerados formadores

vivenciados nos diferentes períodos da vida.

Nesses momentos-charneira, o sujeito confronta-se consigo mesmo. A descontinuidade que vive impõe-lhe transformações mais ou menos profundas e amplas. Surgem-lhe perda e ganhos e, nas nossas interações, interrogamos o que o sujeito fez consigo, ou o que mobilizou a si mesmo para se adaptar à mudança, evitá-la ou repetir-se na mudança (JOSSO, 2010, p.70).

Foi assim que as professoras, através de suas experiências escolares

marcadas por práticas de normalização com base no oralismo, refletiram sobre

a falta de possibilidades educacionais que atendessem às questões linguísticas

e culturais. Contestando essa forma de aprender, destacaram a importância

dessas questões e também a luta por uma educação desejada, que mobilizou-

as na busca de estratégias que condizem com suas necessidades educativas,

fazendo com que a docência seja constituída cotidianamente, no decorrer

dessas práticas. A busca por sua História de vida faz com que os sujeitos

entendam como suas identidades vão sendo forjadas.

O processo de formação tornou-se então, numa espécie de lugar de confluência de processos específicos, que interagem uns com os outros para se influenciarem e se reforçarem de tal maneira que a dinâmica designada pela noção de processo devia ser considerada como um conjunto em movimento (DOMINICÉ, 2010, p.197).

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A formação é um processo contínuo, que não para. Assim como foi

possível as professoras olharem para suas historias formadoras, na mesma

medida a retomada dessas Histórias possibilitou um olhar para frente, para

outras possibilidades de ser e de fazer, de ser professora e de construir sua

prática pedagógica. Como processo de ressignificação dessas Histórias, elas

tomam consciência de algumas coisas que ainda precisam ser transformadas.

Ao se manifestarem sobre isso, dizem:

Sinto que falta um trabalho mais focado nos pais, como se fosse uma disciplina

específica para eles, além do trabalho com os alunos surdos. Um momento que

permitisse esse encontro com os pais a fim de auxiliá-los a lidar, conviver, e

ensinar seus filhos surdos. Além disso, eu também gostaria de ensinar meus

colegas, os professores ouvintes, para que eu pudesse ajudá-los no ensino dos

surdos. Eu gostaria também de integrar os alunos surdos com ouvintes, para que

houvesse uma integração social muito maior. Outra coisa também é o fato de ter

para os ouvintes apenas a disciplina de Libras. Não deve ser assim. Deveríamos

criar uma nova disciplina que contemplasse também as teorias sobre os surdos,

sobre sua História, a linguística e todos os outros assuntos. Acredito que deveria

ser uma nova disciplina mais teórica. E também outro sonho muito grande meu é

que na escola fosse criado um laboratório de Libras e uma sala de filmagens. Os

surdos têm muita dificuldade de leitura das disciplinas que são mais teóricos,

como geografia, História, ciências etc. Com o laboratório de Libras, esses textos

poderiam ser filmados, traduzidos para Libras e distribuídos um dvd para cada

um dos alunos. São sonhos, sonhos que não param nunca. (Excerto - Entrevista

Tulipa)

E, ainda:

O meu sonho é que aqui na escola tenhamos também o ensino médio. Mas vai

ser uma luta. Não podemos parar, precisamos nos organizar e lutar para isso,

porque da maneira como é agora, quando concluem o ensino fundamental, cada

surdo vai para um lugar, para um lado, para uma escola e acabam sentindo

saudade, falta daqui [...] (excerto - Entrevista Lírio)

Olhar para si, dentro do contexto autobiográfico, produz significados e

identidades, mas também produz expectativas e sonhos. Ao relatarem suas

experiências, as professoras surdas foram percebendo o percurso de formação

que cada uma trilhou na construção de suas identidades docentes. Nesse

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caminho percorrido, muitos foram os desafios que se apresentaram a elas,

como os que conhecemos neste trabalho. Ao narrarem-se, entenderam os

caminhos que trilharam para ser o que são hoje, e com suas narrativas

percebemos como foi importante esse “olhar para si”, para que pensem outros

modos de constituírem-se professoras no cotidiano de suas práticas por uma

pedagogia surda.

6.2 Das costuras possíveis e da impossibilidade de uma conclusão

final

A pesquisa a que se refere esta dissertação teve como objetivo

compreender a constituição da identidade de professoras surdas e os aspectos

de sua formação, analisando, a partir das suas narrativas, os processos

formadores vivenciados ao longo de suas vidas e que proporcionaram a

construção da identidade profissional. Ou, dito de outro modo, como essas

professoras articulam os diferentes saberes gerados ao longo da vida na

construção das identidades docentes.

Dessa forma, pretendo contribuir no sentido de proporcionar um olhar

para as Histórias de vida, dando visibilidade ao processo de formação de cada

uma das professoras, de modo que elas possam se apropriar de suas

vivências, dando novos sentidos às experiências formadoras pelas quais

passaram. Com as narrativas deparei-me com informações que iam ao

encontro da proposta inicial deste trabalho. Os relatos autobiográficos

possibilitaram inferir diferentes análises sobre o que foi sinalizado, a partir do

olhar da pesquisadora. Porém, é apenas um olhar frente a tantos outros

olhares possíveis.

Essas Histórias ganham sentido ao serem compartilhadas, pois

proporcionam um entendimento sobre o processo de construção da identidade

de professoras surdas. Através do reconhecimento desses processos

formadores, vão se reafirmando as lutas surdas para pensar uma pedagogia

surda.

Neste momento, proponho uma releitura da metáfora da flor,

apresentada por Dália no primeiro encontro como possibilidade de estabelecer

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costuras entre cada uma das Histórias de vida e formação, construídas pelas

professoras surdas. Essas costuras só se tornam possíveis visto que muitas

das experiências, ao serem narradas, enfatizaram temáticas reincidentes.

Essas temáticas se fizeram presentes nos relados das professoras, que ao se

narrarem, puderam se identificar com as Histórias compartilhadas. Com base

nessas Histórias, as análises realizadas neste trabalho enfocam o processo de

formação para compreender como ocorreu a construção da identidade de

professoras ao longo da vida. As análises contemplam pontos que se

destacaram nas entrevistas por apresentarem elementos que dizem sobre as

identidades docentes.

Por isso, pensei em várias formas de como realizar as últimas

considerações nesta dissertação, mas a forma pela qual fui seduzida a retomar

alguns pontos importantes foi metaforizando a própria metáfora da flor. Através

desse “empréstimo metafórico” direciono uma das possíveis formas de olhar

essas narrativas, procurando pontos de convergência em direção à construção

de suas identidades docentes, visto que muitas das narrativas se

entrecruzaram, apresentando elementos que foram problematizados no

transcorrer deste estudo. Talvez em alguns pontos desta dissertação as

temáticas problematizadas se tornaram repetitivas. Mas as escolhas por mim

realizadas em olhar para essas narrativas, valorizando cada História em sua

particularidade, eram justamente pelo fato de, ao final deste trabalho, buscar o

que de mais forte se sobressaiu entre as experiências que foram sendo

compartilhadas.

Convido o leitor neste momento a pensar na flor “dente de leão” como

forma de representar as Histórias de vida e formação que foram narradas neste

trabalho pelas professoras, e o sopro na flor representando o ato de

compartilhar essas Histórias umas com as outras.

Ao relatarem suas Histórias, algumas marcas em suas trajetórias foram

evidenciadas de forma relacional: a questão da oralização nos processos

escolares; a experiência visual como sendo um marcador cultural surdo a ser

abordado nas práticas de ensino; o letramento na História das professoras

surdas sendo entendido a partir de um contexto cultural de significação; a

literatura infantil como construtora de identidades e a literatura surda

significada como artefato cultural; entre outras questões que apareceram nas

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narrativas e foram problematizadas, apontando para uma possível constituição

das identidades docentes.

Tulipa, em sua História de formação, buscou significar suas

aprendizagens a partir de estratégias de leitura que facilitavam sua

compreensão sobre os variados assuntos. Ao mencionar essas estratégias ela

demonstra que as mesmas favoreceram na construção de sua subjetividade. A

experiência a partir da visualidade torna-se uma marca surda evidenciada em

suas narrativas. Tulipa, através das Histórias infantis, foi percebendo a

necessidade de construir uma prática pedagógica voltada para as crianças

surdas. O contato com a literatura infantil desde pequena, fez com que ela

percebesse a necessidade de compartilhar com outras crianças o universo

literário de significação que envolve a cultura surda, a partir da experiência

visual.

Lírio, ao dar ênfase ao contexto de oralização vivido na escola, comenta

que foi preciso buscar formas de resistir à imposição de uma cultura, na luta

por uma reafirmação cultural. O desejo por ser professora superou as

condições pelas quais passou em sua formação, e hoje, ao falar de sua

identidade docente, ela atribui novos significados para as experiências

passadas, mas com foco em um fazer diferente, que atenda os aspectos

culturais dos surdos. Isso é frisado na medida em que ela aborda em suas

narrativas a literatura surda como um artefato cultural necessário a ser utilizado

na formação de seus alunos surdos. Em seu fazer pedagógico, as práticas de

letramento para surdos contemplam atividades estratégicas que privilegiam a

experiência visual. No exercício de olhar para suas experiências, atribui novos

significados que reafirmam sua identidade de professora surda.

Dália, em suas narrativas, comenta sobre uma determinada época em

que a educação de surdos era consolidada a partir de uma perspectiva oralista.

Ao olhar para sua História, ressignifica suas experiências como parte do

processo de formação docente. Na medida em que suas narrativas foram

ganhando força, ela salientava algumas estratégias que hoje fazem parte do

seu cotidiano na sala de aula. A criação dessas estratégias de ensino, a partir

de adaptações para a educação de seus alunos surdos, nos faz pensar sobre a

produção de cultura e, consequentemente, sobre a construção de uma

identidade docente, que além de ser formada ao longo das experiências

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vivenciadas ao longo da vida, também continua sendo construída na medida

em que se produz cultura pedagogia e identidade docente surda.

É interessante destacar que todas essas questões apareceram de uma

forma ou de outra nas narrativas das professoras, e que as mesmas

compartilharam experiências que, embora singulares, estavam imbricadas de

forma intensa e foram evidenciadas na reincidência dessas temáticas.

As produções culturais dos surdos vêm se ampliado. Algumas, como a

lingua de sinais, a poesia, a literatura e o letramento têm se destacado no

cenário de estudos e pesquisas que envolvem a educação de surdos. Nesse

sentido é possível afirmar que, na medida em que se produz cultura, também

se produz identidade e diferença. A partir dos relatos das professoras, que

enfatizaram essas questões, observamos um comprometimento com o fazer

pedagógico para atender as necessidades de aprendizagem de seus alunos

surdos. Ao ressignificarem suas Histórias de formação, evidenciam a

pedagogia surda. Mais do que entender o processo de construção da

identidade docente, acredito que este trabalho possibilitou a essas professoras

perceberem que essas identidades estão sendo produzidas culturalmente, e

que essa produção acontece na medida em que elas, no cotidiano de suas

práticas, criam uma pedagogia surda.

Gostaria de me referir novamente à metáfora da flor. Assim como a flor

mencionada, as nossas identidades também sofrem metamorfoses. A cada

vivência e a partir das diferentes relações que vão sendo traçadas

continuamente, é que as identidades docentes vão sendo constituídas, ou seja,

não existe uma forma única, ideal de ser professora surda, mas assim como a

flor passa por uma metamorfose, as identidades das professoras surdas

também vão passando por transformações que acontecem através de suas

experiências.

Então, pensemos a formação como a metamorfose da flor, as pétalas

transformam-se em pequenas sementes que, ao serem levadas pelo vento,

misturam-se e germinam em novas terras.

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Anexos

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Anexo 1: Termo de Consentimento Informado, Livre e Esclarecido

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

Termo de Consentimento Informado, Livre e Esclarecido

Prezado(a)Senhor(a):__________________________________________

Solicito sua participação voluntária no projeto de pesquisa intitulado "MEMÓRIA E

NARRATIVAS SURDAS: O QUE SINALIZAM AS PROFESSORAS SOBRE SUA

FORMAÇÃO?", de autoria da Mestranda Bianca Gonçalves da Silva, sob orientação

da Profª Drª. Madalena Klein. Os objetivos da pesquisa consistem em analisar a partir

das narrativas de professoras surdas, os processos formadores vivenciados ao longo

de suas vidas que proporcionam a construção de uma identidade profissional, ou seja,

como articulam os diferentes saberes gerados ao longo da vida na construção da

identidade de professoras. A técnica de investigação utilizada será precedida por três

encontros biográficos semi-estruturados, em grupo. Os encontros serão filmados e

realizados em Língua Brasileira de Sinais, com a presença de tradutor interprete. O

interprete dará a garantia que não se percam informações pela diferença linguística.

As ações previstas para os encontros envolvem dinâmicas que implicam

desenvolver atividades como utilização de imagens extraídas de jornais, revistas e

internet, como também a utilização de caixas simbólicas, que serão entregues a cada

uma das professoras como suporte para as memórias, representando assim a

construção da identidade de professora.

Espera-se, com esta pesquisa, que os aspectos que fazem parte da História de

vida de cada uma das professoras surdas envolvidas, que serão levados em

consideração dentro de um processo formativo possibilitem um resgate da História de

vida e formação. Com isso, torna-se possível problematizar os processos de

identificação que se estabelecem na ação de rememorar acontecimentos e fatos que

marcaram a caminhada histórica de formação, partindo para uma ressignificação de

tais vivências, utilizando-as na construção da identidade de professora surda.

Também foi assegurado que os resultados da pesquisa serão divulgados em eventos

científicos da área da educação e afins, bem como publicados em revistas de

interesse da área, e que todas e quaisquer identificações e informações fornecidas

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pelas informantes da pesquisa, serão mantidas em absoluto sigilo, caso seja solicitado

pelas mesmas aoassinarem esse termo. Qualquer informação adicional, ou dúvida

referentes à pesquisa poderá ser obtida através do e-mail [email protected] ou

pelo telefone (53) 91542654.

A qualquer momento, o Senhor (a) poderá solicitar esclarecimentos sobre o

trabalho que está sendo realizado.A participação na pesquisa é voluntária, sendo

assegurado o direito de desistência a qualquer momento, comprometendo-me a

comunicar a pesquisadora quando isso ocorrer. Para tanto, fui informado do nome e

telefone do responsável pela pesquisa.

Aceite de Participação Voluntária

Eu, ___________________________________ (nome legível), declaro que fui

informado/a dos objetivos da pesquisa acima, e concordo em participar

voluntariamente da mesma. Sei que a qualquer momento posso revogar este aceite e

desistir de minha participação, sem a necessidade de prestar qualquer informação

adicional. Declaro, também, que não recebi ou receberei qualquer tipo de pagamento

por esta participação voluntária.

__________________________ __________________________

Pesquisador Voluntário

_________________________

Orientador

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Anexo 2 – Transcrição dos encontros.

NARRATIVAS PRIMEIRO ENCONTRO

TULIPA: Eu escolhi este desenho porque eu fiquei imaginando que o mundo tem

muita coisa, tem variações, tem diferentes coisas, ele tem tudo. Se eu quiser

conhecer, saber alguma coisa, eu posso procurar porque o mundo tem várias regiões,

onde eu procuro, então eu posso fazer uma busca, ir me apropriando dessas regiões e

buscar informações. As coisas que eu quero saber, eu posso pesquisar, buscar, me

apropriar daquilo, assim posso dividir com outra pessoa, por exemplo, eu sou

professora, então tenho que estudar muito, para poder dividir com meus alunos, posso

explicar para eles, para que conheçam e entendam como é o mundo, e depois eles

possam fazer as buscas deles, de acordo com cada um, mas eu vou dar esse começo

e depois eles vão buscar, porque o mundo tem diferentes coisas.

Antes, quando eu era criança, eu não tinha computador, internet, mas eu pegava gibis,

porque gibis tem muita informação visual, e eu tinha bastante interesse. Eu perguntava

para minha mãe as coisas que eu queria saber, como é tal coisa? Então ela me

explicava. Assim eu ia me apropriando das coisas. Também conversava com as

pessoas, batia papo com os ouvintes, e assim trocávamos informações. Eu tive a Dália

como professora, então fazia várias perguntas e ela me ensinava, me dava muita

informação. Ela dava aula de Libras e tinha muitos temas importantes e então eu me

apropriava. Eu lia gibi, livro didático, principalmente de ciências, gostava muito de

ciências, tinha curiosidade em saber sobre os animais, como eles nasciam, como eles

viviam, como era a natureza, essas coisas de ciências principalmente, porque tinha

muitos desenhos. Em geografia, por exemplo, tinha o desenho dos ciclos, e era bem

claro para mim, porque eu sou surda, a leitura era difícil, mas quando tinha desenhos

junto com a leitura eu entendia o contexto, então eu lia e articulava com os desenhos.

No gibi também, tinha desenhos com os textos, assim eu conseguia me apropriar,

aprender. Hoje eu venho desenvolvendo, fazendo varias aquisições com o livro

didático, pesquisei com várias pessoas, depois fui para o magistério, as professoras

explicavam e eu passei a entender. Agora é mais fácil porque tem internet, pois ela

propicia essa procura. Também desde criança até agora venho participando de

palestras, seminários, congressos, eu ia a vários lugares, fazendo essa aquisição e

agora eu passo para os alunos.

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108 Quando eu era criança sempre gostei de ser professora, sempre quis ser professora

na verdade, na minha casa, com meus vizinhos, sempre brincava de professora, de

dar aula e eu sempre falava, eu vou ser a professora, e eles pediam também, pois eu

era a mais velha e eles eram menores do que eu, então eu dizia que queria ser

professora, eu queria dar aula, eu queria ensinar. Às vezes a professora era minha

prima, ela era maior do que eu, mas ela era professora dos meus primos, eu era

professora dos meus vizinhos, então havia essa divisão, Mas não era só brincar de

aula, tinha outras coisas também. Muitas vezes eu brincava na aula, quando era dia

de chuva, e não podia brincar na rua, eu ficava brincando de ser professora e dar aula.

Também quando eu vi a Dália como a única professora surda, explicando, eu comecei

a aprender um monte de coisas, ela foi um modelo, eu gostei muito de ver ela, ela me

passava muitas informações, eu ficava imaginado, imagina eu fazendo essas

aquisições e passando para os meus alunos, ensinando as coisas que estava

aprendendo com ela.

Letras-Libras te ajudou a ser professora? Sim, por isso que eu fiz magistério e me

ajudou a ser professora, no Pelotense tinha interprete, então eu fui fazer magistério lá,

também fiz o curso de capacitação da prefeitura e foi muito importante. Depois fui para

o Letras-Libras, que me ajudou muito sim, na questão da lingua de sinais, eu

aprofundei as questões linguísticas. A metodologia, a didática eu aprendi no

magistério, o Letras Libras também me ajudou, mas focou mais na língua.

LÍRIO: Eu escolhi essa foto... Quando eu era criança, por ser surda, não conseguia

me sentir em igualdade com os ouvintes, as pessoas falavam, eram oralizadas, daí eu

fui crescendo e a escola dizia que eu precisava oralizar, depois com a família o

contato com os ouvintes era só oralização. Também tinha lugares na escola em que

eu usava a lingua de sinais escondida, sempre teve uma dominação na verdade.

Depois eu fui crescendo e percebi, no futuro eu não vou conseguir trabalhar? Eu

posso trabalhar? Meu pai respondeu que não, mas eu disse que quero ser professora

surda, quero trabalhar, não tem surdo trabalhando. Eu nunca tinha ido para fora de

Pelotas, então me avisaram tem sim, eu nunca tinha ido para fora, sempre vivi em

Pelotas, então eu tinha esses pensamentos. Depois eu encontrei um professor surdo,

e perguntei, tem como ensinar Libras? Um professor pode ensinar Libras? Aí eu

comecei a imaginar, comecei a pensar em ser igual a ele, perguntei para minha mãe, é

verdade que uma pessoa pode ensinar Libras? Ela respondeu, não adianta, não vai

dar certo, Lírio! Depois eu conversei com outras pessoas, mães de surdos, então eu

falei para minha mãe, viu, é verdade, tu achaste que era mentira minha, mas eu tinha

essa capacidade. Eu tinha medo do futuro, das escolas de ouvintes, de rodar, por que

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109 o português é bem difícil para nós surdos, e não tínhamos contato com outros surdos,

também precisamos de contato com outros surdos. Depois eu fiz até a oitava e fiquei

muito feliz, pois eu sofri muito fora da escola. Depois eu me formei e tinha medo de

estudar novamente em outra escola, por exemplo, o Pelotense não tinha intérprete,

mas então começaram a surgir novos cursos de intérprete, mas eu tinha medo de

sofrer como eu tinha sofrido lá no começo, tinha várias dúvidas. Começou o trabalho

dos intérpretes de evangelismo, mas eu tinha muita dificuldade porque a didática era

diferente, parece que o surdo era diferente, os surdos começaram a ter didática para

ensinar, ter vários conselhos, discussões de como era a didática para surdos, eu

pegava os dicionários para ler e adaptar. Também em 1999 eu viajei para o congresso

bilíngue e trouxe varias informações, eu precisava sair para fora, não adiantava ficar

só nesse grupo de Pelotas, fomos de excursão e eu fiquei admirada, não acreditava

que era possível, que tinha cursos para surdos, me senti emocionada e fortalecida

também, comecei a dar os primeiros passos para desenvolver, comecei a me

apropriar, a ter mais conhecimentos, a procurar ter novas amizades fora da cidade, foi

então que comecei a me desenvolver, e aí surgiu o Letras-Libras. Eu tinha um pouco

de dúvida, eu estudar, eu tinha um bebê, uma filha, como eu vou, eu vou poder cuidar

do minha filha? Bem, mas resolvi me inscrever e tentar, fui fazer a prova e passei,

fiquei muito feliz, foram o meus primeiros passos e agora tenho que aprender mais, a

diversidade da língua e agora eu sei que não posso parar, que tenho que continuar

caminhando para um futuro, que farei novas aquisições Eu passei no pós, e agora vou

torcer para que venham novas conquistas.

DÁLIA: Eu peguei três imagens, a primeira uma flor, eu não sei o nome dessa flor,

não é para assoprar, é para deixar no lugar, depois no futuro a gente assopra. Bem,

porque a escolha dessa flor? Quando eu era criança eu só tive escola oralista, e eu via

a professora, ela era bonita, jovem, agora já esta velha, e eu via aquela professora

bonita e tinha ela como modelo. Mas fiquei triste porque os meus materiais ficaram

guardados... Eu pedia para mãe, por favor eu quero um quadro, giz, mas a mãe dizia

que era difícil, porque éramos pobres, tínhamos pouco dinheiro, meu pai era pedreiro,

mas ele procurou trabalho para procurar esse quadro para eu poder ficar brincando. Aí

depois passaram esses anos, e não estava mais a pasta, e sim uma mochila, daí

fiquei muito feliz porque... Eu tinha muito interesse porque ali tinha meus cadernos,

meus brinquedos minha boneca, que andava sempre junto. Depois, nos finais de

semana eu visitava os amigos, nós fazíamos várias trocas, eu tinha um quadro que

usava bastante. Eu lembro que na casa da minha avó tinha uma caixa onde ela

guardava livros e cadernos velhos, então eu olhei para caixa e disse para minha

mãe... Meu Deus, eu quero seguir esse modelo, quero usar meu quadro, gostava de

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110 ser professora. Eu cresci, e na terceira série fui levada para uma escola de ouvintes,

porque aqui (no Dub) tinha um limite, terceira e quarta série não tinha, porque havia a

primeira, e eram três anos na primeira por causa da oralização com base para ampliar

a questão da fala, na segunda série também tinha que ter muita paciência, eu era a

menor da classe, tinha 4 anos de idade, e aí minha mãe reclamou que eu era

pequena, a professora disse que estava me estimulando, mas minha mãe disse que

eu tinha dificuldade, o que vou fazer com ela, ela é inteligente, tem vontade de

aprender, é curiosa. Então minha mãe resolveu me colocar nessa escola de ouvintes,

e eu aceitei, ela me aconselhou dizendo, minha filha, tens capacidade, tu vais te

alfabetizar lá, vais passar por todas as etapas do ensino fundamental, e depois o que

tu vais fazer no futuro? Ela me provocava perguntando: Vais trabalhar em fábrica,

minha filha? Não eu dizia, em fábrica eu não vou trabalhar, respondia chorando, lá tem

cheiro ruim, prejudica as mãos, então ela dizia, vai estudar. Então aceitei estudar na

escola oralista. Nessa escola não tinha intérprete, a escola era muito antiga, eu tinha

que ficar fazendo leitura labial, olhando para as professoras, as pessoas escreviam e

me mostravam, eu não aceitava falar, minha voz era muito ruim, as pessoas riam de

mim, então eu me mantinha calada, não emitia som. Dentro do Alfredo Dub era

permitido oralizar, mas lá fora não, era muito alta a voz. Na oitava série eu não

consegui passar, eu rodei, então fui estudar na escola de ouvintes e a escola e Alfredo

Dub me apoiava, estudava de manhã, e à tarde tinha esse apoio. Me apoiavam com

palavras, os professores me aconselhavam, até a oitava série, quando me formei.

Antes eu aprendi Libras com um homem surdo que chegou, e comecei a me apropriar

da lingua de sinais, e comecei a gostar da lingua de sinais. Depois na oitava série

outro professor me chamou e me leu um texto e pediu que eu explicasse em sinais,

depois fiquei trabalhando de monitora. Ok, terminei a oitava série e fui para casa.

Comecei o ensino médio no Pelotense, tinha prova, eu me saí mal, valia 40 e eu tirei

16, não lembro muito bem. Depois fiquei esperando em casa e em abril a direção me

chamou, perguntando o que eu estava fazendo. Eu pensei que eles queriam que eu

trabalhasse em fábrica, porque geralmente eles ligavam para chamar os surdos para

trabalharem. Mas eu fui, torcendo para que não fosse para trabalhar em fábrica. Então

foi quando eles me disseram que era para trabalhar como professora de Libras. Eu fui

tomada por uma felicidade, e eu perguntei, como assim, professora de lingua de

sinais? E eles disseram que sim, e eu disse Ok, foi a primeira vez que surgiu esse

contrato, era só com o grupo de Pelotas, não tinha pessoas de outros lugares. Era

bem difícil o grupo, eles não conheciam lingua de sinais, precisaram se desenvolver,

foi no ano de 1992 que começou, fui trabalhando até 1997. Na escola Santa

Margarida, eu consegui uma bolsa para cursar o magistério e a Bete era minha

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111 intérprete. Eles não conheciam uma adaptação, uma didática para os surdos, era uma

didática ouvinte. Antes, na oitava série, eu fiz algumas aquisições, adquiri

conhecimentos, mas eu não tinha como opinar, então a Bete começou a me

aconselhar, e eu fui indo me desenvolvendo ao longo dos três anos. Depois no ano de

1999 eu viajei para o congresso bilíngue. Aqui em Pelotas não tinha uma visão

ampliada do mundo dos surdos, por isso eu escolhi a imagem da flor, porque ela

representa a ampliação dessa visão. Quando eu fui ao congresso eu vi que os surdos

tinham capacidade, tinham direitos, e não via isso na cidade de Pelotas, então foram

esses dois surdos ao congresso e passaram a acreditar na liberdade e na capacidade

que os surdos têm. Então quando eu voltei, passei a divulgar isso para todos os

surdos de Pelotas. Viajei para São Paulo, depois foi fundada a associação de surdos,

fui a Santa Maria. Eu fui fazer estágio, mas antes disso eu fiquei grávida. Antes, em

fevereiro, um colega meu começou a me provocar a fazer Pedagogia na Católica, fazia

um mês que minha filia havia nascido, mas aceitei fazer vestibular e passei. No curso

começou muita teoria e eu tinha feito magistério e tinha visto a parte da didática, mas

na pedagogia era muita teoria, era tudo novo, não tinha muita experiência, então

comecei a me assustar um pouco. Quando completou três meses de aula, nasceu

minha filha. Comecei a estudar e fazer estágio, estudava na católica e fazia o estágio.

Bem difícil estudar ali, eu lutei bastante. Depois de formada, os professores não

acreditavam na cultura surda, na capacidade dos surdos. Tive bastante paciência, me

formei, e hoje tenho meu certificado. Depois, dentro da escola, comecei a fazer muitas

mudanças, adaptações, começou uma vontade de ensinar de primeira até a quarta

série, só que não tinha ninguém que ensinasse Lingua de sinais. Mas eu queria

ensinar outras coisas, era formada em Pedagogia e não queria ensinar só Libras.

Então fomos tentando, tentando e então em 2006 eu comecei a trabalhar dentro da

escola como professora da primeira série, a primeira no Rio Grande do Sul. Depois fui

vestibular para o Letras-Libras, passei, me formei, e agora estou na Pós-Graduação. A

segunda imagem apresenta muitos e muitos livros, isso é próprio de ouvinte. Antes

não havia internet, então agora é mais fácil, você procura no Google e consegue os

mesmos livros, é mais fácil de fazer a aquisição, então os surdos podem se apropriar

com mais facilidade, ver qual didática pode ser utilizada. A terceira foto traz uma

professora e um aluno, eu escolhi essa foto porque o meu sonho é que todos

aprendam na escola, que todos saibam Libras. Eu sou professora de alunos surdos,

eu quero ensinar, eu quero ser um modelo de vida para eles, quero ensinar Libras,

para que possam se comunicar com a família desde pequenos, contribuindo dessa

forma para que eles construam a identidade surda, aprendendo sobre a cultura surda,

para que essas coisas façam parte do processo de aprendizagem deles.

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112 O Letras-Libras ajudou na parte da didática? Sim, ajudou, porque eu comecei a

comparar o português, comecei a conhecer a estrutura, e assim adaptar para a

estrutura da Libras. Eu fiquei curiosa, na comparação entre essas duas estruturas

linguísticas.

No Letras-Libras eu aprendi a ensinar a Lingua de sinais para ouvintes. Tem a

estrutura, a gramática, as expressões. Mas no segundo ano da pedagogia, era mais a

questão visual, as disciplinas, a interdisciplinaridade, mais informações em relação ao

visual, depois escrever o português. Pedagogia é diferente.

Lírio: Tem muita diferença na configuração de mão, teatro... No Letras-Libras teve

bastante História, Literatura Surda, varias questões foram abordadas.

Tulipa: Letras-Libras me ajudou a ensinar os meus alunos ouvintes, na disciplina de

Libras, os alunos ouvintes, troquei a didática, porque antes do Letras-Libras eu tinha

curso de instrutora, e tem diferença entre uma graduação e o curso de instrutora, e na

verdade eu não aprendi a ensinar no curso de instrutora e sim no magistério, mas

quando entrei no Letras-Libras eu pensei, nossa, eu comecei a mudar o ensino com

ouvintes. Com as crianças surdas também, como a Dália falou, o jeito como vou

bordar essa gramática, a questão do visual, como vão se expressar, usando

ferramentas nesse processo.

Dália: Isso é bem importante, por exemplo, eu estou explicando, gênero, natureza, e

também estudos sociais, porque são muitas informações que precisam ser passadas e

não é no Letras-Libras que é ensinado.

NARRATIVAS SEGUNDO ENCONTRO

BIANCA – Peço que agora iniciem a contar alguns episódios da vida de vocês que

foram significantes na escolha profissional de vocês como professoras. Para narrar

estas Histórias vocês podem utilizar objetos que desejarem, como brinquedos, livros

de Histórias etc. Lembram que anteriormente eu já havia explicado sobre isso. Esses

objetos vão auxiliá-las a reativar as lembranças daquela época.

TULIPA: Bem, eu escolhi um livro de História infantil. Quando eu era pequena, minha

mãe utilizava livros de Histórias para contar para mim através da Libras. Eu adorava

estas Histórias e sempre ficava muito curiosa e atenta enquanto ela estava contando.

Sempre que as Histórias terminavam eu queria mais, mais, muito mais! Então, após

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113 tanta insistência, minha mãe pegava outro livro de História e contava para mim. Às

vezes ela até repetia mesma História, de tanto que eu gostava. E quando eu

continuava insistindo ela dizia: Agora tu vais ver as Histórias sozinha, não comigo. Eu

não gostava dessa forma, porque muitas vezes eu não conseguia entender. Tinha que

me esforçar muito para compreender o que a História queria dizer. Além das imagens,

as Histórias também tinham frases e quando eu não conhecia alguma palavra, eu

perguntava o significado para minha mãe. Algumas vezes eu entendia o que a palavra

significava apenas pelo contexto da História, pois me lembrava de quando a minha

mãe havia me contado. Eu adorava estas Histórias. Eu queria cada vez mais. Como

se não bastasse minha mãe contar para mim e depois eu também vê-las sozinha, eu

começava a contar para outras crianças. E isso me fez pensar no meu futuro, sobre eu

sinalizando para crianças, eu ficava imaginando de que forma eu sinalizaria para

contar aquelas Histórias, que sinais eu utilizaria. E quando eu contava, as crianças

adoravam também! Eu gostava muito quando minha mãe sinalizava as Histórias para

mim, mas eu sei que eu sinalizava de uma forma muito melhor quando contava para

as crianças, até porque eu sou surda. E a relação entre eu surda e as crianças surdas,

é muito melhor para o entendimento delas, pela forma como eu sinalizo. As Histórias

foram um grande auxílio para minha vida, elas ajudaram na construção de quem eu

sou. Por exemplo, tinha uma História que falava sobre a importância de cuidar dos

dentes, de escovar sempre depois das refeições, passar fio dental etc. As Histórias

tinham muito a me ensinar, a auxiliar para a minha vida. Outra coisa que eu adorava

eram os gibis. Eu gosto muito!!! Eu gostava principalmente da Turma da Mônica. Era

muito mais fácil de entender o contexto, pois tem o texto juntamente com o desenho.

Então os gibis foram muito importantes para a construção do meu conhecimento do

Português. Auxiliou muito para que eu aprendesse o significado das palavras através

dos contextos. Realmente eu gostava muito dos gibis. E de fato eu pensava que no

futuro eu iria dar esses gibis para meus alunos lerem para que pudessem aprender o

Português. Outra coisa que eu me lembro também são as Histórias em sequência, de

três ou quatro quadrinhos. São quadrinhos que contam uma História em três ou quatro

partes. Essas Histórias também me ajudaram a aprender muitas coisas. Tinha uma

delas que mostrava o quadro de crianças jogando pingpong, logo após lavavam as

mãos e depois faziam a refeição. Eu entendia facilmente. Acho que este tipo de

material é muito apropriado para os surdos, para utilizar durante as aulas a fim de que

eles entendam sobre diversos assuntos. Então, hoje, eu como professora, utilizo muito

este tipo de atividade com meus alunos. Outro objeto que eu trouxe foi o dominó. Eu

adorava jogar com a minha família e também com crianças da vizinhança. Eu gostava

tanto de jogar que estranhava porque na escola não tinha este tipo de jogo. Eu

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114 adorava porque estimulava o meu raciocínio. Eu gostava de completar as peças

rapidamente. E eu acho muito importante este tipo de jogo na escola também. Até

acontecem alguns momentos em que se joga, mas é um tempo muito reduzido. É

necessário mais tempo. Outro jogo que eu me lembro e gostava muito também é o

jogo dos antônimos. Era preciso encontrar os pares: magro, gordo etc. Eu gostava

muito deste jogo e também do jogo da memória. E o fato de não fazer esse tipo de

jogos na escola me intrigava, pois eu sempre queria mais, sempre achei que isto tinha

que acontecer mais vezes na escola também. Então eu prometia: No dia em que for

professora, vou utilizar muito esses jogos, pois eles me ajudavam muito a ficar ativa,

mais esperta. Os surdos geralmente apresentam mais dificuldade para perceber

determinadas coisas. Por exemplo, pergunta o antônimo de gordo. Depois de um

longo tempo é que ele vai responder magro. Por isso eu acho fundamental esse tipo

de jogos para os surdos para que possam ficar mais espertos, desenvolver o

raciocínio. É histórica a questão de os surdos não terem informações de mundo, mas

esses jogos e essas Histórias também podem servir para adquirir conhecimentos,

informações. Outro jogo que eu adorava quando criança era o quebra-cabeça. E sobre

eles eu pensava da mesma forma, que a escola poderia aproveitar muito mais esse

tipo de atividade. Na minha casa sempre tinham muitos livros didáticos porque minha

mãe era professora. Minha mãe sempre me dizia que aqueles livros não eram só para

uso dela, mas que eu poderia utilizá-los também para aprender. Então eu adorava ver

os livros dela, principalmente o de Ciências. Eu adorava! Eram livros muito ricamente

ilustrados, que chamavam a minha atenção, me ensinava coisas. Aprendi muito sobre

a vida dos animais, sobre as plantas, sobre diversos assuntos. Foi um grande

aprendizado. Eu pensava: os surdos precisam saber disso também, eles precisam

saber! Então eu sempre prometia para mim mesma, que quando eu fosse professora,

eu utilizaria esses livros para ensinar tantas coisas às crianças surdas. Eu trouxe

também um livro didático de Português. Sempre preferi o de Ciências, mas sabia que

também precisava aprender o Português, pois eu tinha muito problema com ele. Então

eu utilizava este livro para aprender mais palavras do Português. E sempre pensava

que um dia eu utilizaria isso com as crianças surdas. Apesar de ser um livro voltado

especificamente para os ouvintes, eu utilizo para adaptar ao ensino das crianças

surdas, recortando as imagens, colando, tirando algumas coisas desnecessárias.

Então eu uso de estratégias para aproveitar esses livros didáticos voltados para os

alunos surdos. Quando chovia, eu aproveitava para brincar de aula com meus primos.

Eu trouxe, então, um foto para relembrar esse momento. Eram muitos primos. Eles

sempre queriam brincar de aula comigo, adoravam! E eu me sentia muito bem com

essa brincadeira. Eu queria muito ter trazido uma foto com meus vizinhos, mas não

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115 tenho. Quando eu brincava de escola com meus primos, sempre a professora era a

minha prima mais velha. Mas quando a brincadeira era com a vizinhança, eu era a

professora e sempre usava esses livros didáticos da minha mãe. Também aproveitava

para usar meus cadernos de aula de anos anteriores, que não usava mais, para que

eles pudessem usar. Esses dois materiais que eu trouxe não fazem parte do meu

passado, são atuais. Quando eu era pequena, eu sonhava muito com as coisas que

eu faria como professora. Mas na prática é um pouco diferente. Algumas coisas que

faziam parte do meu sonho eu consegui aproveitar, como por exemplo os jogos. A

questão do Português é muito complicada, muito difícil. Mas ainda não desisti. Estou

lutando para ver se consigo desenvolver algo melhor para o Português, talvez a

criação de alguma estratégia ou adaptação de material no qual eu possa ensinar

melhor o Português para meus alunos. Atualmente eu percebo que é mais importante

eles entenderem o contexto e depois introduzir o Português. Eu trabalho agora

utilizando muitas imagens. Por exemplo, estas aqui. Nesta mostra dinheiro. E nesta

outra mostra alguém sem dinheiro. Então através destas imagens eu aproveito para

explicar o que é dinheiro, o que eu posso fazer com dinheiro, que posso comprar um

carro, bolacha, bicicleta, o que eu quiser. Mas para isso precisa de dinheiro. E então

eu mostro a imagem do sem dinheiro e explico que sem dinheiro não pode comprar

nada. Acho importante explicar todas essas coisas, pois a família não dá esse tipo de

informação, até porque muitas famílias não sabem Libras, então não ensinam muitas

coisas, não explicam coisas simples. Então depois que eu apresento o contexto,

aproveito para ensinar os sinais, como por exemplo: tem/não tem e todos os outros

que fazem parte do contexto.

LÍRIO: Não pode rir, pois peguei diversas bobagens e fui colocando na caixa. Trouxe

este livro de Histórias que é muito legal, é em Libras. Antigamente não tínhamos o

privilégio de ter a literatura surda, as Histórias diretamente em Libras. Hoje elas

existem. Como era difícil antigamente para termos acesso a Histórias, os gibis, livros

de Histórias eram voltados apenas para os ouvintes. Agora é importantíssimo para os

surdos ter esstas Histórias, pois é um canal de informação para eles. São Histórias

que são facilmente entendidas pelas crianças surdas. Além da sinalização, as imagens

são bem atrativas, estão de acordo com a necessidade visual das crianças surdas. Ao

ver este livro agora, consegui entender algumas coisas que antes não era possível.

Quando eu queria saber algo de alguma História, tinha que pedir auxílio a alguém para

compreender o que estava sendo narrado. Às vezes as pessoas não tinham paciência

para tantas perguntas que eu fazia. Então eu me restringia a saber apenas o que as

imagens me transmitiam. Hoje é diferente, as crianças surdas tem acesso a Histórias

sinalizadas. Se qualquer criança pegar este livro, vai conseguir entender sozinha o

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116 que significa, pois não há barreiras para seu entendimento como era anteriormente.

Ela tanto pode utilizar o dvd quanto observar as imagens. Acredito que foi na década

de 90 que começou a produção deste tipo de material, pois anteriormente não existia.

Mas eu gostaria de saber exatamente quando começou a produção desses materiais.

Outro objeto que eu trouxe foi este livro. É um livro feito por ouvintes. Mas eu gostava

muito de observar as cores. Não entendia as palavras que estavam escritas, mas

gostava muito das cores. Através das imagens eu conseguia entender o contexto da

História, não precisava pedir auxílio para ninguém. Mesmo não sendo para surdos, era

uma História bem visual, a exemplo do que já temos disponível para os surdos hoje.

Então este livro foi muito importante para mim por causa do seu belo visual. Eu trouxe

também um dvd que é muito antigo, mas que gosto muito. Ele não tem legenda.

Infelizmente não são livros destinados ao público surdo, pois não tem legenda. Há

apenas os personagens mexendo a boca e nós sem entender nada. Eu gosto muito de

assistir filmes, mas que sejam específicos para surdos, como por exemplo, Filhos do

Silêncio. Tem uma sequência que é mais fácil de entender por causa das expressões.

Antigamente não havia tantos filmes, mas felizmente hoje temos muitos mais. Trouxe

algo que gosto muito que é meu baralho das configurações de mãos. É um material

muito fácil de utilizar, que antigamente não existia. Não tínhamos nada de material de

apoio, mas hoje já existem. Eu escolho uma configuração de mão e posso fazer

diversos sinais com ela, como por exemplo esta, com a qual eu posso fazer coelho,

cavalo, etc. Através deste baralho podemos tanto ensinar sinais, como contextos para

nossos alunos surdos. São diversas coisas a serem feitas. Posso dar as palavras e

eles mostrarem o sinal. Diversas coisas. E eu fico muito feliz por hoje ter diversos

materiais didáticos para nos apoiar, pois antigamente eles não existiam. São cartas,

jogos, dvd’s sinalizados e livros, entre outros. Muitas coisas que antigamente não

existiam, até porque era a época da obrigatoriedade do oralismo e da escrita. Os

professores utilizavam apenas o quadro e o giz. Só isso! Não havia nem imagens para

apoiar o nosso aprendizado. As únicas coisas expostas nas paredes eram as sílabas,

como :fa-la-le etc. Algumas coisas que eu trouxe foram enganadas, então não vou

apresentar. Este livro para mim é muito importante. Ele é resultado de discussões,

pesquisas, palestras. Nele são tratados diversos assuntos em relação aos surdos,

como o oralismo, o implante coclear, etc. E um material novo que eu ganhei no

Letras/Libras. Antigamente também não tinha este tipo de material. Não havia livros,

divulgação destas informações, nada! Então vivemos em um momento muito melhor

agora. E estão sempre surgindo bibliografias novas. Agora no Festival da Cultura

Surda havia diversos livros novos que eu queria adquirir, mas infelizmente não tive

condições para comprar. Vou ter que esperar um pouco mais, até porque é R$ 60,00.

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117 Então às vezes eu peço emprestado para alguém que tenho e faço cópia, porque é

muito importante esse tipo de leitura. Tem algumas outras coisa que eu trouxe, mas

foram erradas, não era para ter trazido. Trouxe uma foto da minha filha que é algo que

muito me alegra. Sou feliz por ela já saber Libras, por ela ser bilíngue, por ter contato

tanto com surdos quanto com ouvintes. Já perguntei para ela se quer ser intérprete no

futuro, mas ela disse que não, que quer escolher outra profissão. Libras para ela serve

para comunicação com a família, apenas isso. E eu não posso obrigar ela a nada, até

porque desejo que ela escolha o que for melhor para a felicidade dela. Ela sabe se

comunicar com os pais, com amigos surdos, com todos. Não tenho problemas com

ela. Mas no futuro, quando ela crescer e tiver um filho, não sei se não vai ser surdo.

Pode ser.

DÁLIA: Eu cresci oralizando, não havia a Libras. A cada série que eu estudava,

repetia dois anos, para que eu memorizasse melhor o Português. Por isso então eu

trouxe uma caixa cheia de vocabulários. São diversas palavras. Antes foi muito

sofrimento a questão da oralização, do treino vocal, era muito chato. Atualmente eu

não obrigo que meus alunos tenham esse tipo de aprendizado. Eu priorizo a Libras e

faço isso através de muito visual. Eu coloco diversas imagens na minha sala de aula

com a palavra correspondente. Desta forma elas podem aprender o sinal no contexto,

bem como o significado. Eu não exijo que elas memorizem as palavras, que

internalizem aquilo, não! Por exemplo, elas fazem o sinal de bola e eu obrigo a fazer a

datilologia da palavra. Não, não é assim que acontece. Antigamente era assim, mas

agora eu os deixo mais livres. E desta forma eu percebo que é melhor para a vida

deles do que foi para a minha. Agora que eu sou formada posso oferecer algo melhor

para eles. Quando eu estudava, adorava matemática. Português era diferente, pois

éramos obrigados a memorizar o ba-be-bi-bo-bu. Era diariamente a mesma coisa. E

isso eu via por dois anos, pois, como mencionei, fiz cada série em dois anos. Agora

em apenas um ano ensinamos rapidamente de A até Z, mas antes precisávamos

aprender com base nas sílabas. Então ensino as palavras a partir de cada letra, algo

mais simples, pois não adianta fazer como era antigamente, com esta caixa cheia de

vocabulário que não era possível memorizar. Eu aprendi desta forma, mas meus

alunos agora não. Como já mencionei, eu adorava matemática. Para mim foi muito

fácil o aprendizado da matemática e é o que procuro transmitir para eles agora. Por

exemplo, motro para eles a conta 2+3= e ao lado do número 2 desenho duas bolas e

ao lado do número 3 desenho três bolas. Então chamo um aluno e peço para ele

somar. Rapidamente ele conta cada uma das bolas e obtém o resultado 5. Se é conta

de subtrair, eu mostro para eles que significa comer. Apresento a conta 6-3= faço o

desenho das bolas correspondentes ao lado de cada número e digo que risquem o

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118 número de bolas correspondentes, o que é o ‘comer’. E então se obtém o resultado 3.

E isto eu utilizo até hoje, não só com meus alunos surdos, mas também com meus

filhos que são ouvintes. Meus filhos contam nos dedos, mas como? Antigamente eu

contava também oralmente, mas as crianças surdas não fazem isso. Elas contam as

bolas. E eu faço desta forma porque é visual e se torna mais fácil. Quando eu era

pequena sonhava em ser professora. Mas naquela época eu pensava apenas em

passar coisas no quadro para que os alunos copiassem. Quando ingressei no

magistério e conheci a disciplina de Didática, percebi quantas atividades e recursos

diferentes existem e que minhas professoras nunca utilizaram comigo. Era só a

obrigatoriedade das palavras e da oralização. Não existia nada de lúdico. Era um

ensino muito tradicional. Por isso que meu aprendizado era sempre tardio. Mas no

magistério eu aprendi muitos auxílios didáticos voltados para o lúdico e que agregados

à prática podem ter um resultado muito positivo. O magistério me trouxe muitas ideias

e a partir dele comecei a ter muitas outras, pois eram atividades especificamente para

ouvintes, mas na minha mente eu prontamente fazia uma adaptação para alunos

surdos. Por exemplo, eu trouxe o dado das configurações de mãos. Com ele pode-se

criar diferentes jogos. Por exemplo, ao cair a configuração de mão em L, o aluno

precisa fazer diversos sinais com esta configuração. Um outro jogo que pode ser feito

é criar uma frase que utilize apenas esta configuração de mão, não sendo permitido

nenhum outro sinal com configuração de mão diferente. Por exemplo, com esta

configuração de mão eu posso criar o contexto: eu gosto muito me olhar no espelho e

pentear meu cabelo, pois fico muito bonita. Pronto, criou-se o contexto. E isto se faz

apenas com uma configuração de mão, adaptando o sinal de eu, gostar, pentear,

espelho, etc. Cria-se um contexto utilizando apenas uma configuração de mãos, não

sendo permitido usar nenhuma outra. Então os alunos se esforçam ao máximo para

criar este contexto sem desrespeitar a regra. Isso estimula a criatividade e o

pensamento dos alunos. Trouxe o meu baralho das configurações de mãos. E

baseado nas configurações de mãos, como o dado, mas diferente. O aluno escolhe

três cartas e precisam criar um contexto a partir delas. Eles adoram! Quando faço

essa brincadeira eles me enchem de beijos. É uma atividade fundamental, pois

estimula muito o aprendizado dos alunos. Para os alunos surdos os verbos são muito

difíceis. Então eu trouxe aqui este saquinho que contém diversos verbos, mas não em

forma de palavras, pois para eles não adianta. Mas a ação em si, para que eles

saibam o significado. Então com os verbos vamos construindo os contextos. O verbo

precisar: Eu preciso de dinheiro. O verbo gostar: Eu gosto de ter amigos. O verbo

comer etc. Então eu escrevo o verbo comer e a partir dele surgem diversas

possibilidades para complementar esse verbo, por exemplo: picolé, arroz, pão etc. Os

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119 alunos ficam espantados com a infinidade de possibilidades com cada verbo. Com

isso eles entendem o significado do verbo. Outro verbo, por exemplo, comprar e

desencadeamos todas as coisas que podem vir com esse verbo. Desta forma os

alunos vão entendendo, criando e ampliando os conhecimentos. Também gosto de

fazer outro jogo com os verbos, onde eles sorteiam três verbos diferentes e precisam

criar um contexto utilizando os três. E não podem ser frases de qualquer jeito, mas

que tenham um contexto coerente. E depois vai aumentando a dificuldade ao pegar

quatro verbos. Em outro momento posso aumentar o grau de dificuldade da atividade,

ao sortear três verbos e três palavras e eles precisam construir um contexto com eles.

Por exemplo, se sortear pato e canoa eles podem criar a frase: “Eu fui passear de

canoa, vi um lindo pato nadando na lagoa. Então eu peguei um caju da árvore e comi”.

Então eles vão aprendendo e trocando a partir do contexto.

BIANCA: Eu adorei todas as coisas que vocês colocaram. Apresentaram diversas

coisas que eu nem imaginava. Agora se vocês quiserem podem colocar mais alguma

coisa ou perguntar mais alguma coisa. Não é obrigatório.

TULIPA: Eu queria mencionar apenas que é muito legal esta interação, pois quando

eu era pequena eu aprendia muitas coisas com a Dália e hoje nós duas temos a

oportunidade de trabalhar juntas e compartilhar experiências. Por exemplo, este

material que eu apresentei anteriormente para explicar sobre o ter e não ter dinheiro,

eu lembro que a Rejane fazia conosco e agora eu utilizo com os meus alunos. E essas

coisas eu aprendi com a Rejane. O outro exemplo que ela deu sobre o vocabulário e a

criação de contextos, às vezes eu também faço. Aprendi com ela.

DÁLIA: Essa questão do livro de Ciências que a Aline colocou, assim como os outros

livros didáticos são antigos. Estes livros mais antigos são mais apropriados para os

surdos, pois são mais visuais. Os livros didáticos a partir do ano 2000 são muito

pesados, baseados em textos extensos, impossíveis para se entender o contexto. São

livros totalmente diferentes dos antigos, como por exemplo, as cartilhas, onde nós

tínhamos a apresentação de cada uma das letras. Ao utilizar esses livros menos

complexos os alunos são capazes de entender com clareza o que é ensinado. Nas

cartilhas também tinham textos de, no máximo, quatro ou cinco linhas, que aliados à

ilustração, era bem fácil de entender o contexto da História. E para fazer os exercícios

também se tornava bem fácil, pois as frases eram bem próximas, parecidas. Mas os

livros de agora são totalmente diferentes. Torna-se impossível fazer os exercícios que

v^wm a seguir, pois dificilmente iremos encontrar as respostas naquele imenso texto.

Podemos ler, ler, ler, mas não conseguimos entender o que o texto quer dizer. Quando

recebi os novos livros didáticos, logo percebi que seria impossível utilizá-los com os

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120 surdos, pois são, de fato, muito diferentes dos anteriores, são apenas textos enormes.

Como pode se perceber neste aqui, há uma infinidade de imagens e pouco texto. Os

alunos gostam muito. Se eu for ensinar o conteúdo sobre a germinação das plantas,

primeiro eu explico o conteúdo em Libras e depois apresento no livro e então eles

fazem a ligação. Apresentar apenas no livro ou apenas na Libras não dá para eles o

entendimento completo. Um complementa o outro e o aprendizado acontece.

TULIPA/LÍRIO/DÁLIA: Este livro é antigo, não fazem mais deste tipo.

LÍRIO: Este livro é antigo, tinha textos pequenos. Mas os de agora apresentam textos

enormes, não é possível de entender. Já estes são bem visuais.

TULIPA: Este livro é para ouvintes, mas é possível ser usado para surdos porque a

maior parte deste material é visual e tem poucas legendas.

DÁLIA: Por exemplo, explica o nascimento dos animais através de imagens e não de

textos. E assim é com todos os livros didáticos antigos, como o de Estudos Sociais,

Matemática etc. São livros para ouvintes, mas utilizam muito visual. Já o de Português

não é tanto assim.

TULIPA: Sim, o de Português não é tão claro. É necessário fazer algumas

adaptações.

DÁLIA: Eu gosto mais dos livros antigos, pois tem uma ampla variedade de imagens,

de visual. Muitas pessoas reclamam que são livros tradicionais. Para mim isso não

importa, pois tem a vantagem das imagens. Eu prefiro esses livros. Assim eu posso

sinalizar e apresentar para eles as imagens. Se não, fica uma explicação baseada em

cópia do quadro. Então eu faço cópias desse livro e dou para os alunos, pois os textos

não chamam atenção. O que chama atenção dos surdos são as imagens. Através das

imagens, então, eu explico o conteúdo para eles. Após, oriento para que procurem em

revistas algumas coisas específicas do conteúdo e assim confeccionamos o painel

sobre o assunto. Por isto esses livros são mais apropriados. No livro de Estudos

Sociais é muito bom, pois apresenta as cidades, os tipos de casas, ricas ou pobres ou

favelas. Também apresenta imagens dos meios de transportes, que após serem

apresentados, construímos o painel diferenciando os meios de transportes terrestres,

aquáticos e aéreos. É um trabalho muito mais fácil. Se fosse tudo isso em forma de

texto, não adiantaria. Mas baseado no visual é muito mais fácil.

BIANCA: Através do relato de vocês agora, percebi como de fato os surdos têm uma

identidade construída de modo diferente, pois tem um jeito próprio, diferente. Tudo

precisa ser adaptado, pois não há nada específico. Como tu, Dália, explicaste, e vocês

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121 também. Vocês comentaram a questão do texto em Português. Isso é uma

característica do ensino de e para ouvintes. Como tu comentaste, Dália, algumas

pessoas criticam o fato de utilizar livros antigos, mas é toda uma necessidade que

envolve os surdos e se torna mais fácil utilizando o visual que há nesstes livros. Eu

agradeço muito o que vocês colocaram hoje para mim, pois mostra um pouco de como

foi a constituição de vocês como professoras.

DÁLIA: Se eu quero ensinar algo sobre, por exemplo, Meio Ambiente e não tenho um

livro que sirva de apoio, eu faço em minha casa, no computador, algum material que

me possibilite trabalhar esse tema. Então vou utilizar imagens diferentes, como por

exemplo, lugar poluído ou lugar limpo. Então eu vou explicar a partir daquelas imagens

que organizei em um PowerPoint.

NARRATIVAS TERCEIRO ENCONTRO

TULIPA: Eu assisti ao vídeo anterior onde eu sinalizava sobre algumas questões que

são bem reais do meu passado. Mas tem algumas coisas que eu estava explicando,

como os livros didáticos de Ciências e também sobre os gibis. Eu gostava muito

destes dois materiais porque não eram apenas textos, mas tinham ilustrações

também. E isto facilitava meu aprendizado. Além disso, eu comentei sobre os alunos

surdos quando eles querem aprender o Português podem utilizar o gibi, pois também

possui o texto junto com a imagem. Mas fiquei pensando sobre isso e não precisa ser

apenas o gibi em si, podem ser outros materiais, mas também a mídia visual, como

por exemplo, vídeos, onde tem a imagem e a legenda junto. Enfim, qualquer tipo de

História, filme que tenha a imagem e também a legenda em Português pode ser

utilizado. Esses materiais vão ajudar o aluno surdo na construção da escrita do

Português, e certamente irao contribuir para seu aprendizado e desenvolvimento. Mas

sempre lembrando que é o Português juntamente com o visual. No início do

aprendizado dessa língua há, sim, uma dependência do visual para compreensão do

texto. Com o tempo começa um desprendimento do visual, até ele se tornar autônomo

na leitura do Português. E a partir desse momento, o aluno poderá ler qualquer coisa

escrita em Português.

BIANCA: Como tu te sentes após esses três encontros, revendo tudo o que tu

apresentaste? Como te sentes ao relembrar fatos da tua experiência, que é única?

Explica para nós.

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122 TULIPA: Ao rever o que foi sinalizado eu pude relembrar meu passado novamente e

confirmar que realmente é verdade. Eu percebi que, se hoje eu sou uma professora, é

realmente em função dessas experiências que eu relatei nos vídeos. Foi um resgate

para mim. Eu me senti de volta ao passado. Deu vontade de ver aquelas coisas

novamente, de brincar novamente com meus primos e vizinhos, de fazer tudo de novo.

Ao ver os vídeos também senti vontade de continuar buscando outros materiais,

reforçou meu desejo de prosseguir minha prática utilizando os textos e o visual.

LÍRIO: Quando eu me vi sinalizando achei muito diferente. Contei acontecimentos de

muitos anos atrás, não por serem fatos desde o meu nascimento, mas por se tratar de

coisas que aconteceram como se fosse um outro mundo diferente de agora, um

mundo cheio de marcas, de proibições, de oralização, de diversas coisas ruins. E hoje

é muito diferente, é um mundo livre. Posso demarcar essa liberdade a partir de 2010,

quando tivemos o Letras/Libras e diversos outros avanços para os surdos. Ao

visualizar o vídeo senti que estamos bem melhor agora, pois antes era uma época de

sofrimentos. Agora não temos sofrimentos, angústias, está tudo bem, muito melhor.

Percebo a escola Alfredo Dub aberta, livre. Antigamente não tínhamos nem livros para

contar Histórias, não tinha o visual aliado às explicações dos professores, o enfoque

era apenas na oralização e na escrita. Não tínhamos nenhum material que os

professores nos dessem para apoiar, nada. Mas ao contrário daquela época, hoje

posso apresentar para meus alunos livros de Histórias e eles aprendem com isso,

como por exemplo, Chapeuzinho Vermelho etc. Eu dou esses livros para eles

manusearem e sei que vão crescer com esse aprendizado. Mas na minha época isso

não existia e hoje aproveito para apresentar para ele esses diversos materiais. O que

foi sinalizado realmente é verdade, pude constatar.

BIANCA: E analisando tua prática, vocês duas têm uma identidade de professoras.

Mas como essa identidade foi construída? Vocês não decidiram que seriam

professoras e pronto. Não! Teve influência de algumas coisas, fatos, pessoas. Desde

criança, os contatos, os contextos, fatos que influenciaram na constituição como

professora. E revendo o vídeo, tu te sentes bem? Tu sentes que hoje alcançaste o que

querias? Conseguiste estabelecer uma ligação entre as coisas que colocaste no vídeo

e a tua realidade e realizações de hoje?

LÍRIO: Antigamente o ensino era muito tradicional, totalmente diferente do ensino que

temos hoje. Naquela época era um momento de proibições e hoje é um momento de

empoderamento. Antigamente apenas copiávamos e hoje não temos mais isso. Hoje

também temos a grande diferença de possuir professores surdos atuando nas escolas,

coisa que antigamente nem se pensava. Hoje o surdo pode ser um professor e utilizar

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123 na sua prática sua própria experiência, a contação de Histórias, o visual. Hoje os

professores surdos são também alfabetizadores, como temos aqui a Dália. E o que eu

sinto ao ver o vídeo é que antes era um sofrimento, não tínhamos todas essas coisas,

até porque os professores não conheciam as especificidades didáticas para os surdos.

Eram diversas as dificuldades. Mas hoje há o conhecimento da questão cultural dos

surdos, da comunidade surda e de como o ensino deve ser diferenciado. Hoje é muito

melhor!

BIANCA: Vocês se sentem felizes por serem professoras surdas hoje?

TULIPA: Sinto muito feliz, sim, pois meu sonho era exatamente isto que estou fazendo

agora. Antes fazia apenas parte dos meus sonhos e eu concretizava parte dele

quando brincava com meus vizinhos, mas não era real. E eu segui sonhando e

perseguindo esse sonho quando ingressei no magistério, fui estudando, me formei. E

quando me chamaram para atuar de verdade eu sinto a realização do meu sonho, que

ele se tornou real. E hoje eu desejo que os surdos cresçam, desenvolvam-se, vão

adiante! Mas eu me sinto feliz trabalhando tanto com alunos surdos quanto ouvintes.

Eu gostei deste trabalho com ouvintes. Mas o interessante é que atuar com alunos

ouvintes não fazia parte do meu sonho. Nos meus sonhos eu queria ser professora de

alunos surdos, até mesmo em função das necessidades que tínhamos naquela época.

Mas quando eu me dividi entre o trabalho com surdos e ouvintes, foi uma experiência

muito boa para mim, eu gostei. Hoje gosto muito de atuar com os dois, mas o trabalho

com alunos surdos tem mais o sentido de realização, pois é o que fez parte dos meus

sonhos por muitos anos.

LÍRIO: Quando eu pensava que queria ser uma professora, não me sentia capaz para

isso. Hoje eu sei que sou capaz! Não sinto da forma como eu pensava antigamente,

sobre essa incapacidade. Sinto-me como uma professora constituída, pronta para

atuar. Eu vislumbrava, sonhava com meu futuro e não conseguia me ver como uma

professora, até porque não existiam professores surdos na minha época, então eu não

achava que seria capaz disto. E hoje eu posso e sou uma professora surda. Quando

viajamos para o congresso em 1999 e vimos professores surdos ensinando através da

Libras, foi uma surpresa muito grande para nós. Foi um susto e uma alegria. E no ano

2000 ingressei no curso do Magistério, tudo em função daquela realidade e também

das orientações que nos deram naquele momento. E esse congresso em São Paulo

foi um marco para mim, pois eu vi que os surdos realmente poderiam ser professores.

BIANCA: Agora prometo que é a última pergunta. Falta alguma coisa para que vocês

tenham um futuro ainda mais feliz? Falta algo que vocês ainda queiram que aconteça?

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124 Hoje vocês são professoras, alcançaram o sonho que tinham, mas falta alguma coisa?

Tem algo mais que vocês desejam?

TULIPA: Hoje sou uma professora, mas faltam algumas coisas sim. Ao mesmo tempo

em que eu trabalho na escola com alunos surdos, sinto que para a sociedade esse

trabalho ainda não é claro, que ainda faltam mais coisas. Sinto que falta um trabalho

mais focado nos pais, como se fosse uma disciplina específica para eles, além do

trabalho com os alunos surdos. Um momento que permitisse esse encontro com os

pais a fim de auxiliá-los a como lidar, conviver, ensinar seus filhos surdos. Além disso,

eu também gostaria de ensinar meus colegas, os professores ouvintes, para que eu

pudesse ajuda-los no ensino dos surdos. Eu gostaria também de poder integrar os

alunos surdos com ouvintes, para que houvesse uma integração social muito maior.

Outra coisa também é o fato de ter para os ouvintes apenas a disciplina de Libras. E

não deve ser assim. Deveríamos criar uma nova disciplina que contemplasse também

as teorias sobre os surdos, sobre sua História, a linguística e todos os outros

assuntos. Acredito que deveria ser uma nova disciplina mais teórica. E também um

outro sonho muito grande meu é que aqui na escola Alfredo Dub fosse criado um

laboratório de Libras e uma sala de filmagens. Os surdos têm muita dificuldade de

leitura das disciplinas que são mais teóricas, como Geografia, História, Ciências etc.

Com o laboratório de Libras, esses textos poderiam ser filmados, traduzidos para

Libras e distribuidos em um dvd das disciplinas para cada um dos alunos. São sonhos,

sonhos que não param nunca.

LÍRIO: O meu sonho é que aqui no Alfredo Dub tenhamos também o Ensino médio.

Mas vai ser uma luta. E não podemos parar. Precisamos nos organizar e lutar para

isso, para o futuro. Porque da maneira como é agora, quando concluem o Ensino

Fundamental, cada surdo vai para um lugar, para um lado, para uma escola e acabam

sentindo saudade, falta daqui, pois já estavam acostumados. Tanto que muitos deles

geralmente voltam para visitar, a fim de matar as saudades e relatam como está sendo

difícil em outros lugares. E na medida do possível nós os auxiliamos.

TULIPA: Já que hoje nós temos a tecnologia, temos que usá-la a nosso favor e

realizar diversas coisas com ela que venham a auxiliar os surdos. Claro que para os

ouvintes também, como os pais e a família. Nesse laboratório poderiam ser filmados

os vocabulários em Libras e gravados em um DVD. Ou então quando nascem filhos

surdos de pais ouvintes que não sabem nada sobre o que isso significa, poderíamos

dar a ele um DVD com explicações sobre o que e como fazer. Eu sinto que falta esse

tipo de material

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Anexo 3: Fotos dos objetos da Caixa de Memórias – segundo encontro

Fotos dos objetos da Caixa de Memória 1 (TULIPA)

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126

Fotos dos objetos da Caixa de Memória 2 (Lírio)

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127

Fotos dos objetos da Caixa de Memória 3 (Dália)