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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Doutorado em Educação Tese A Educação das Almas: o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita e a unificação do Movimento Espírita Brasileiro Marcelo Freitas Gil Pelotas, 2014.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Educao

Programa de Ps-Graduao em Educao Doutorado em Educao

Tese

A Educao das Almas: o Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita e a unificao do Movimento Esprita Brasileiro

Marcelo Freitas Gil

Pelotas, 2014.

http://www.ufpel.tche.br/

1

Marcelo Freitas Gil

A Educao das Almas: o Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita e a unificao do Movimento Esprita Brasileiro

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Educao.

Orientadora: Prof. Dr. Giana Lange do Amaral

Pelotas, 2014

2

3

Banca examinadora:

Prof. Dr. Giana Lange do Amaral

Prof. Dr. Elomar Antnio Callegaro Tambara

Prof. Dr. Lorena Almeida Gill

Prof. Dr. Maria Helena Cmara Bastos

Prof. Dr. Tania Maria Esperon Porto

4

Dedico:

G. D. G. A. D. U.

Aos meus pais, Gilmar e Luciara, pela educao que

me deram.

Aos filhos que a Vida me deu, Caio e Cassiano.

s minhas primeiras professoras, Valdvia Vieira e

Geci Vieira (in memoriam).

s pessoas que mais marcaram minha infncia: Tio

Renato, Tio Ivo, Tio Lau (in memoriam), Seu

Luizinho (in memoriam) e Padrinho Figueir (in

memoriam).

5

Agradecimentos

Em primeiro lugar a Deus, sem o qual nada se pode e nada se faz.

minha famlia, cujo apoio nesta trajetria de mais de quatro anos foi

fundamental.

Professora Giana Lange do Amaral, por sua amizade, compreenso,

dedicao e orientao.

Aos participantes de minha banca de qualificao, Professoras Dora Incontri,

Maria Helena Cmara Bastos, Lorena Almeida Gill, Tnia Porto e principalmente ao

Professor Elomar Tambara, que com suas positivas provocaes, ao longo destes

mais de quatro anos, me incentivou a ir alm do que propus inicialmente.

A todos os professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em

Educao da Universidade Federal de Pelotas, em especial aos professores e

colegas da Linha de Filosofia e Histria da Educao.

Aos colegas e alunos do Campus Visconde da Graa do Instituto Federal de

Educao, Cincia e Tecnologia Sul-rio-grandense, em especial do Curso Superior

Tecnolgico em Gesto de Cooperativas.

Aos colegas do Colgio Estadual Getlio Vargas de Pedro Osrio, onde eu

lecionava quando esta caminhada teve incio.

Aos amigos e colegas da Sociedade Esprita F, Esperana e Caridade e da

Liga Esprita Pelotense, pelo carinho e incentivo.

Aos meus depoentes, Antnio Alfredo Monteiro, Antnio Csar Perri de

Carvalho, Armando de Moura, Carlos Campetti, Luciano dos Anjos, Marta Antunes,

Milton Moreira, Salomo Benchaya e Veridiana Castro.

Ao colega pesquisador Joo Alessandro Muller.

6

Ao Brito e a Kak, da Biblioteca de Obras Raras da FEB, e a Clara Souza, do

setor de Documentos Patrimoniais do Livro da FEB.

Aos colegas da Liga de Pesquisadores Espritas.

Federao Esprita Brasileira, Federao Esprita do Rio Grande do Sul e

ao Centro Cultural Esprita de Porto Alegre.

Aos grandes amigos Andra Vieira Braga, Claudiomiro Machado Ferreira e

Clarice Ferreira, pelo apoio, amizade e incentivo de sempre.

Finalmente, aos amigos do Invisvel, que sempre se fizeram presentes,

apoiando a minha caminhada e at mesmo dirigindo os meus passos.

7

Naquele dia saindo Jesus de casa, sentou-se junto ao mar; chegaram-se a ele grandes multides, de modo que entrou numa barca e se assentou; e todo o povo ficou em p na praia. Muitas coisas lhes falou em parbolas, dizendo: O semeador saiu a semear. Quando semeava, uma parte da semente caiu beira do caminho, e vieram as aves e comeram-na. Outra parte caiu nos lugares pedregosos, onde no havia muita terra; logo nasceu, porque a terra no era profunda e tendo sado o sol, queimou-se; e porque no tinha raiz, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra caiu na boa terra e dava fruto, havendo gros que rendiam cem, outros sessenta, outros trinta por um. Quem tem ouvidos, oua (Mateus 13:1-9). Nos meios universitrios reina ainda completa incerteza sobre a soluo do mais importante problema com que o homem jamais se defronta em sua passagem pela Terra. Essa incerteza se reflete em todo o ensino. [] Da o desnimo precoce e o pessimismo dissolvente, molstias das sociedades decadentes, ameaas terrveis para o futuro

As teorias do alm-Reno, as doutrinas de Nietzsche, de Schopenhauer, de Haeckel, etc. muito contriburam, por sua parte, para determinar esse estado de coisas. Sua influncia por toda parte se derrama. Deve-se-lhes atribuir, em grande parte, esse lento trabalho, obra obscura de cepticismo e de desnimo, que se desenvolve na alma contempornea, essa desagregao de tudo o que fortificava a alegria, a confiana no futuro

tempo de reagir com vigor contra essas doutrinas funestas, e de procurar, fora da rbita oficial e das velhas crenas, novos mtodos de ensino que correspondam s imperiosas necessidades da hora presente. [] A educao, sabe-se, o mais poderoso fator de progresso, pois contm em grmen todo o futuro. Mas, para ser completa, deve inspirar-se no estudo da vida sob suas duas formas alternantes, visvel e invisvel, em sua plenitude, em sua evoluo ascendente para os cimos da natureza e do pensamento.

Os preceptores da Humanidade tm, pois, um dever imediato a cumprir. o de repor o Espiritualismo na base da educao, trabalhando para refazer o homem interior e a sade moral. necessrio despertar a alma humana adormecida por uma retrica funesta; mostrar-lhe seus poderes ocultos, obrig-la a ter conscincia de si mesma, a realizar seus gloriosos destinos.

Lon Denis Paris, 1908

http://pt.wikisource.org/wiki/Tradu%C3%A7%C3%A3o_Brasileira_da_B%C3%ADblia/Mateus/XIII#13:1

8

RESUMO

O presente estudo apresenta uma anlise das representaes contidas no material didtico do Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita (ESDE), programa de estudo doutrinrio da Federao Esprita Brasileira (FEB), surgido em 1978 no mbito da Federao Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS) e que se tornou um programa permanente da FEB em 1983. Com apoio nos pressupostos tericos e metodolgicos da Nova Histria Cultural e em autores como Bourdieu (1998; 2000), Certeau (2011), Chartier (1990, 2009) e Geertz (2011), buscou-se compreender o processo histrico de constituio e implantao nacional do Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita, bem como o seu significado e esfera de influncia junto ao Movimento Esprita Brasileiro, partindo de um horizonte cultural, isto , que privilegia o papel das representaes na criao, manuteno e recriao do universo social. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliogrfica e documental, com apoio tambm em fontes orais e em inseres etnogrficas junto Federao Esprita Brasileira e ao Centro Cultural Esprita de Porto Alegre, local em que surgiu a proposta original para a criao do ESDE. A pesquisa aqui descrita est organizada em trs eixos. No primeiro, apresentada uma contextualizao histria do surgimento do espiritismo na Frana, a partir de 1857, com a publicao de O Livro dos Espritos, pelo pedagogo Hyppolite Lon Denizard Rivail, que adotou o pseudnimo de Allan Kardec, pelo qual ficou conhecido. Nesta primeira parte analisada a proposta da doutrina esprita e os dilogos que manteve no ambiente cultural europeu de meados do sculo XIX. No segundo eixo abordado o processo de insero do espiritismo no Brasil e a releitura com base no Evangelho que a doutrina organizada por Allan Kardec sofreu ao penetrar no ambiente cultural brasileiro no ltimo quartel do sculo XIX. Ainda nesta segunda parte so analisadas as prticas e representaes formatadas entre os primeiros espritas brasileiros, divididos em trs correntes que divergiam na interpretao e caracterizao da doutrina esprita naquele momento histrico. Tambm discutido o processo de formao do Movimento Esprita Brasileiro, com suas tenses em torno da conceituao do carter do espiritismo e da definio de sua representao institucional. No terceiro eixo abordado o processo histrico em que o ESDE surgiu, bem como as representaes acerca do espiritismo e do Movimento Esprita Brasileiro que esto contidas neste programa de estudo doutrinrio, demonstrando-se que ele representa importante papel junto ao campo esprita no Brasil, na qualidade de veculo atravs do qual a viso febiana em torno do espiritismo e de seu carter religioso levada a todo o pas, transformando os centros espritas em ambientes educacionais, onde uma prtica didtico-pedaggica tem lugar, atravs da implantao de um programa que dotado, inclusive, de material didtico prprio. Desta forma, conclui-se que atualmente o ESDE o mais importante instrumento unificador do discurso e das prticas dos espritas que se renem em torno da Federao Esprita Brasileiro. Ele contm uma srie de representaes em torno do espiritismo e da prpria FEB que se formaram ao longo de vrias dcadas desde que o espiritismo inseriu-se no pas, servindo como meio para a disseminao e o fortalecimento dessas representaes entre os adeptos da doutrina esprita, contribuindo para a unificao do Movimento Esprita Brasileiro. Palavras-Chave: Espiritismo; Movimento Esprita Brasileiro; Federao Esprita

Brasileira; Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita.

9

ABSTRACT

The present study presents an analysis of the representations found in the teaching material of the Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita (Systematic Study of the Spiritist Doctrine) (ESDE), a program of doctrinal study of the Federao Esprita Brasileira (Brazilian Spiritist Federation) (FEB), arose in 1978 in the Federao Esprita do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul Spiritist Federation) (FERGS) and which became a permanent program in FEB in 1983. With the support in the theoretical and methodological assumptions of the Nova Histria Cultural (New Cultural History) and in authors like Bourdieu (1998; 2000), Certeau (2011), Chartier (1990, 2009) and Geertz (2011), we sought the understanding of the of the historical process of constitution and the national presence of the Systematic Study of the Spiritist Doctrine, as well as its meaning and sphere of influence with the Brazilian Spiritist Movement, starting from a cultural horizon, i.e., which privileges the role of the representations in the creation, maintenance and recreation of the social universe. To do so, a bibliographic and document research was carried out, with the support in oral sources and in ethnographic insertions with the Brazilian Spiritist Federation and the Centro Cultural Esprita de Porto Alegre (Spiritist Cultural Center from Porto Alegre), a place in which the original proposal for the creation of the ESDE arose. The research described here is organized in three axes. In the first one, a historical contextualization of the arising of spiritism in France after 1857 is presented, with the publication of The Book of Spirtis, by the pedagogue Hyppolite Lon Denizard Rivail, who adopted the pseudonym of Allan Kardec, by which he became famous. In this first part, the proposal of the spiritist doctrine and the dialogues it had in the European cultural environment in the mid-19th century is analyzed. In the second axis the approach is on the process of inserting the spiritism in Brazil and the rereading based on the Gospel the doctrine organized by Allan Kardec faced after entering the Brazilian cultural environment in the last quarter of the 19th century. Still in this second part, the practices and representations formatted among the first Brazilian spiritists, divided in three trends which diverged in the interpretation and characterization of the spiritist doctrine in that historical moment. The process by which the Brazilian Spiritist Movement was formed is also discussed, with its tensions about the conceptualization of the character of the spiritism and the definition of its institutional representation. In the third axis the historical process in which the ESDE arose is approached, as well as the representations concerning the spiritism and the Brazilian Spiritist Movement which are found in this program of doctrine study, showing that it represents an important role in the spiritist field in Brazil, by which the FEB view concerning the spiritism and its religious character is taken to the whole country, transforming the spiritist centers in educational environments, where a didactic and pedagogical practice occurs, through the presence of a program which also has its own didactic material. Thus, it is concluded that nowadays the ESDE is the most important uniting instrumento f the discourse and the spiritist practices which are found in the Brazilian Spiritist Federation. It has a series of representations on the spiritism and the FEB itself which were formed along several decades since the spiritism started in the country, serving as a way for the dissemination and the strengthening of these representations with the ones following the spiritist doctrine, contributing for the unification of the Brazilian Spiritist Movement. Key words: Spiritism; Brazilian Spritist Movement; Brazilian Spiritist Federation;

Systematic Study of the Spiritist Doctrine.

10

LISTA DE ANEXOS

ANEXO A Programa original do ESDE FERGS/1978 ....................... 566

ANEXO B Programa original do ESDE FEB/1983 ............................ 577

ANEXO C Programa atual do ESDE FEB .......................................... 586

11

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRAJEE Associao Brasileira de Jornalistas e Escritores Espritas

CCEPA Centro Cultural Esprita de Porto Alegre

CEB Comunho Esprita de Braslia

CELC Centro Esprita Luz e Caridade

CELE Centro Esprita Luz Eterna

CEPA Confederao Esprita Pan-Americana

CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

CFN Conselho Federativo Nacional

COEM Centro de Orientao e Educao Medinica

EADE Estudo Aprofundado da Doutrina Esprita

EPM Estudo e Prtica da Mediunidade

ESDE Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita

FEB Federao Esprita Brasileira

FEESP Federao Esprita do Estado de So Paulo

FEP Federao Esprita do Paran

FERGS Federao Esprita do Rio Grande do Sul

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

STF Supremo Tribunal Federal

SUIE Sociedade Unio e Instruo Esprita

UMES Unio Municipal Esprita de Santos

UMESP Unio das Mocidades Espritas de So Paulo

USE Unio das Sociedades Espritas de So Paulo

12

SUMRIO

1 Introduo ......................................................................................... 14

2 A pesquisa e sua trajetria .............................................................. 21

2.1 O espiritismo ..................................................................................... 21

2.2 O objeto de pesquisa e sua justificativa ......................................... 25

2.3 O referencial terico-metodolgico ................................................ 38

2.3.1 Uma breve reviso bibliogrfica ...................................................... 38

2.3.2 As fontes ............................................................................................ 49

2.3.3 Encaminhamentos terico-metodolgicos .................................... 59

3 O espiritismo na Europa .................................................................. 100

3.1 Allan Kardec: do educador ao organizador do espiritismo .......... 100

3.2 O surgimento do espiritismo: o intangvel luz da razo ............ 110

3.3 O espiritismo e o cenrio cultural europeu: dilogos e

aproximaes ....................................................................................

142..

4 O espiritismo no Brasil ..................................................................... 159

4.1 Cenrio cultural e insero doutrinria .......................................... 159

4.2 Os primeiros espritas brasileiros entre prticas e

representaes .................................................................................

........

194

5 O Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita e o Movimento

Esprita Brasileiro .............................................................................

........

219

5.1 A institucionalizao do estudo doutrinrio: a criao do ESDE

e a sua transformao em programa permanente da FEB ...........

.........

219

5.2 O ESDE e a representao do trplice aspecto do espiritismo .... 315

5.3 O ESDE e a representao do espiritismo como a rvore

transplantada ....................................................................................

.........

437

6 Concluso .......................................................................................... 531

7 Fontes e Referncias Bibliogrficas ............................................... 544

7.1 Entrevistas ......................................................................................... 544

13

7.2 Relatos por escrito ........................................................................... 544

7.3 Peridicos .......................................................................................... 544

7.4 Documentos: anais, atas, documentos, estatutos e normas ....... 545

7.5 Material do ESDE, EADE e Programa de Estudo e Prtica da

Mediunidade ......................................................................................

.........

547

7.6 Publicaes institucionais da FEB ................................................. 547

7.7 Artigos, livros, dissertaes e teses ............................................... 548

8 Anexos ............................................................................................... 565

14

1 Introduo

Este trabalho o resultado de uma pesquisa scio-histrica acerca do Estudo

Sistematizado da Doutrina Esprita (ESDE), programa de ensino adotado em

inmeros centros espritas do Brasil. Esse programa surgiu em 1978 no mbito da

Federao Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS) e foi modificado e adotado pela

Federao Esprita Brasileira (FEB) no incio da dcada de 1980. A partir desse

momento a FEB passou a preparar material didtico prprio para o ESDE,

divulgando-o em todo o territrio nacional. Graas a isso, os centros espritas filiados

FEB, e que adotam o seu programa de ensino da doutrina esprita, transformaram-

se em espaos onde o estudo do espiritismo ocorre de modo sistematizado, atravs

de encontros semanais, com a utilizao de material didtico no qual o contedo

determinado pela Federao distribudo ao longo de trs anos1.

Sustento aqui que esse programa de estudo, alm de objetivar dar incio na

preparao de mdiuns para as diversas atividades executadas em um centro

esprita2, depois de ter sido modificado e adotado pela Federao Esprita Brasileira,

adquiriu tambm um carter formativo e unificador em relao ao Movimento Esprita

Brasileiro. Ele divulga entre os seus participantes os ideais e a viso da doutrina

esprita sobre o homem e suas relaes com o universo fsico e espiritual3, bem

como o entendimento da FEB a respeito do espiritismo e do seu prprio papel, como

1 O currculo do ESDE distribui-se ao longo de trs anos. No entanto, existem dois outros programas

que lhe sucedem. Na sequencia do ESDE temos o Programa de Estudo e Prtica da Mediunidade (EEM), com durao de dois anos. Aps, temos o Programa de Estudo Aprofundado do Espiritismo (EADE), com durao de cinco anos.

2 Em geral, todos aqueles que participam das diversas atividades realizadas em um centro esprita,

tidos como seus trabalhadores, precisam antes realizar o estudo doutrinrio. Ao longo deste trabalho este ponto ser retomado e discutido em detalhes.

3 Conforme ser visto mais adiante em maiores detalhes, para os espritas, o universo se desdobra

em duas realidades, uma fsica e outra espiritual. A doutrina esprita, que se apresenta tambm como uma cincia, busca contemplar essas duas realidades.

15

entidade federativa nacional que se apresenta como a legtima representante dos

espritas brasileiros4.

O ESDE destina-se s pessoas que no querem apenas frequentar o centro

esprita e assistir as suas reunies pblicas, onde diversos temas so

esporadicamente tratados luz do espiritismo, atravs de palestras. O seu pblico

formado por indivduos regularmente matriculados no centro esprita, em turmas

fechadas. Entre eles temos aqueles que buscam o estudo interessados em

tornarem-se trabalhadores da instituio. Contudo, tambm possvel encontrar

entre os matriculados vrias pessoas que apenas tm interesse em compreender

mais aprofundadamente os preceitos da doutrina esprita, que, conforme veremos,

bastante complexa e versa sobre uma infinidade de temas.

Atravs da presente pesquisa, busco historiar o processo atravs do qual o

ESDE foi concebido no mbito da FERGS e depois modificado e encampado pela

FEB, com vistas a compreender o seu papel na formao de uma identidade esprita

no Brasil. Intento tambm desvelar algumas representaes contidas no Estudo

Sistematizado da Doutrina Esprita, procurando entender o seu significado e esfera

de influncia junto ao Movimento Esprita Brasileiro, na construo de uma viso

acerca da prpria doutrina esprita e do papel da FEB em relao a esse movimento.

Nesse sentido, importante que se diga que a Federao Esprita Brasileira no foi

ao longo do tempo, e nem atualmente, a nica instituio a se colocar na posio

de entidade representativa do espiritismo no Brasil, bem como o ESDE no o

nico modelo de estudo da doutrina esprita em prtica nos centros espritas

brasileiros, mesmo entre aqueles que so filiados FEB.

Sendo assim, esse processo que procuro historicizar repleto de tenses e

contradies, no havendo consenso nem mesmo quanto ao carter da doutrina

esprita, que ora apresentada como uma cincia/filosofia com consequncias

morais e em outros momentos e espaos vista e exposta como sendo uma

religio.

Com vistas a concretizar os meus objetivos, busco fundamentao na Nova

Histria Cultural, mantendo um intenso dilogo com a Sociologia e tambm com a

4 Apesar de o espiritismo j estar presente no Brasil h mais de cem anos, ainda no h consenso

sobre o seu carter e natureza, mesmo entre os espritas, havendo vises divergentes daquela apresentada pela FEB. Tambm h divergncias quanto ao prprio papel da FEB frente ao Movimento Espirita Brasileiro. Esse ponto ser discutido adiante.

16

Antropologia. A pesquisa aqui descrita encaixa-se nos domnios da Histria da

Educao, j que percebo o centro esprita, no mbito deste trabalho, no como um

espao de culto e sim como um ambiente educacional, onde a doutrina esprita

ensinada, recorrendo-se para isso a um modelo didtico-pedaggico concebido com

essa finalidade. Contudo, no trabalho com o que os autores chamam de ensino

formal ou instituies educacionais convencionais. Trata-se de observar o centro

esprita como um espao onde prticas didticas e pedaggicas tm lugar, no

apenas de maneira informal ou subintendidas nas aes dos indivduos que ali se

relacionam, mas sistematizadas e formatadas de modo a se atingir certos objetivos.

Na minha viso, alguns desses objetivos so explcitos e outros se encontram

implcitos no programa de estudos do ESDE e requerem uma anlise mais

aprofundada para a sua compreenso.

possvel que se objete aos meus argumentos o fato de que o centro esprita

no o nico espao religioso onde ocorrem prticas educacionais. Contudo, so as

singularidades do processo histrico atravs do qual o ESDE surgiu e depois foi

adotado pela FEB que busco compreender, bem como as suas particularidades

como modelo didtico-pedaggico, destinado ao estudo de uma doutrina que tem

milhes de adeptos e simpatizantes no Brasil. Portanto, embora o centro esprita no

seja uma instituio educacional convencional, ao menos no que diz respeito ao

ESDE, as prticas educacionais que nele tm lugar so institucionais e merecem ser

problematizadas luz da Histria e demais Cincias Sociais.

Para tanto, no captulo 1 deste trabalho procuro primeiro definir o espiritismo,

j que o termo ainda gera controvrsias, no s entre o pblico em geral, como

tambm dentro do contexto da Academia. Em seguida, busco cercar o objeto de

estudo, traando objetivos e firmando uma proposta de tese, com a qual trabalhei ao

longo da pesquisa, no intuito de comprov-la. Na sequncia, ainda no primeiro

captulo, discorro sobre o referencial terico-metodolgico, apontando teorias que

embasaram a pesquisa, bem como obras que me serviram de referncia, alm das

fontes utilizadas e tcnicas para a sua anlise e interpretao.

No captulo 2 o processo de surgimento do espiritismo na Europa

analisado. Num primeiro momento, dentro da estrutura do captulo, procuro

demonstrar que a trajetria pessoal de Allan Kardec, que antes de se ocupar com os

fenmenos espritas era importante pedagogo em Paris, marcou profundamente a

17

doutrina por ele organizada, onde a educao ocupa lugar central. Na sequncia,

busco evidenciar que o surgimento da doutrina esprita em meados do sculo XIX

no representou um retrocesso em relao aos valores da poca, mas sim uma

espcie de radicalizao do prprio Iluminismo, na medida em que Kardec props

submeter luz da razo e da experimentao o que at ento era visto como

sobrenatural.

Isso, na minha viso, de grande importncia para que se entenda a

proposta doutrinria de Allan Kardec, o seu contedo simblico e a sua releitura no

Brasil, que acabou por dar origem ao Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita.

Essa anlise histrica tambm importante para que se compreenda o processo

atravs do qual o ESDE foi apropriado pela FEB, quando ento os centros espritas

brasileiros a ela filiados e que adotaram o seu programa de ensino da doutrina

esprita passaram a fazer uso de prticas que so prprias da cultural escolar5. Isso

ocorreu com vistas no apenas formao de seus trabalhadores, mas tambm

para a doutrinao dos adeptos que queiram aprofundar-se no estudo do

espiritismo, no perdendo de vista que nesse programa de estudo a doutrina

organizada por Kardec apresentada de acordo com a viso da Federao Esprita

Brasileira.

Como trabalho com um referencial terico ancorado na Nova Histria Cultural,

sustento que compreender o processo de surgimento do espiritismo na Europa, os

dilogos que manteve com outras doutrinas e movimentos sociais e culturais de sua

poca, sua chegada ao Brasil e as tenses que isso aqui desencadeou, bem como a

sua viso a respeito da educao, so questes centrais para que se entenda a

minha tese, justificando a sua importncia. De igual modo, torna-se imperioso

compreender o projeto unificador da Federao Esprita Brasileira, na medida em

que ele se reflete no estudo doutrinrio que realizado nos centros espritas ligados

a ela e que adotaram o ESDE em todo o territrio nacional. Justamente por isso, no

captulo 3 procuro discutir esse processo de releitura que o espiritismo sofreu ao

chegar ao Brasil, onde assumiu caractersticas prprias, discorrendo sobre as

prticas e representaes sobre o espiritismo que se formataram no mbito da

Federao Esprita Brasileira.

5 Adiante a categoria cultura escolar descrita principalmente com base em Julia (2001), Faria Filho

et al. (2004) e Nvoa (1999). Tambm so analisadas as prticas a ela associadas no mbito dos centros espritas que adotam o ESDE.

18

Ao longo do captulo 4 busco demonstrar que o Estudo Sistematizado da

Doutrina Esprita uma proposta e um modelo educacional em curso no pas,

praticado em centenas de centros espritas brasileiros, procurando historicizar a sua

gnese e compreender o seu significado, discorrendo sobre as representaes que

esto nele contidas. Nesse sentido, afirmo que o ESDE fruto de uma

institucionalizao do estudo, levada a efeito pela Federao Esprita Brasileira

junto aos centros espritas com fins determinados.

Quando falo em institucionalizao6 me refiro a um processo atravs do qual

uma determinada prtica social passa a ser disciplinada e regulada por um

determinado grupo ou instituio, com vistas a se exercer sobre essa mesma prtica

um controle maior ou menor. Nesse sentido, a institucionalizao ocorre com o

objetivo de se atingir fins determinados e tende a formalizar a prtica que antes era

informal.

Conforme ser visto adiante, a tradio de se estudar as obras de Kardec e

os preceitos doutrinrios do espiritismo nos centros espritas algo que remonta s

origens da doutrina, na Frana. No entanto, esse estudo era feito de maneira

informal, de modo livre e no sistematizado, recorrendo-se s prprias obras

kardequianas para realiz-lo, bem como leitura de outros livros, considerados

subsidirios ao estudo.

Com a implantao do ESDE na rede federativa brasileira7, o estudo foi

institucionalizado, atravs de um programa construdo pela FEB, onde os contedos

so distribudos ao longo de um currculo de trs anos, fazendo-se uso de apostilas

preparadas com essa finalidade, alm de exigir-se a inscrio e a frequncia dos

participantes s aulas que ocorrem no espao do centro esprita. Essas aulas, ao

contrrio das palestras que acontecem nas sociedades espritas, no so abertas ao

pblico e destinam-se apenas aos inscritos no ESDE. Embora qualquer indivduo

possa inscrever-se no Estudo Sistematizado, para assistir s aulas necessrio

estar inscrito. Ou seja, diferente das palestras pblicas oferecidas pelos centros

6 Para analisar esse processo utilizo os conceitos de poder simblico e violncia simblica de

Bourdieu (1998; 2000), conforme ser visto adiante.

7 No captulo 4 explicado o longo e conturbado processo de formao dessa rede federativa

nacional, sob a liderana da FEB.

19

espritas, que os indivduos podem assistir esporadicamente, o ESDE requer um

compromisso de quem nele se inscreve, como num curso regular.

Sendo assim, na pesquisa aqui descrita busco compreender os contedos

simblicos e as representaes presentes no ESDE, como contribuio no apenas

para o melhor entendimento acerca do campo religioso brasileiro, mas tambm para

que se conhea as singularidades deste programa de ensino, como sistema que se

insere no campo educacional, pois entendo que as prticas educativas no se

limitam s escolas regulares8. Alis, como deixo claro adiante, penso que o estudo

que tem lugar no centro esprita no serve apenas para divulgar o espiritismo junto

aos seus seguidores. Na falta de um ritual de passagem9, que marque a efetiva

adeso do simpatizante doutrina esprita, ele se constitui em elemento central no

processo de formao de uma identidade esprita para aqueles que aderem ao

espiritismo.

Um dos fatores que motivou o meu interesse por esta pesquisa foi o fato de

que, a despeito da doutrina esprita ter milhes de adeptos no Brasil, que

frequentam milhares de centros espritas espalhados de norte a sul do pas, tal tema

ainda pouqussimo estudado na Academia. Hoje o Brasil responsvel por

exportar o espiritismo para diversos pases, inclusive para a prpria Frana, onde a

doutrina organizada por Kardec quase desapareceu depois das duas guerras

mundiais10. O modelo de estudo sistematizado em curso nos centros espritas

brasileiros, sob a orientao da FEB, tem servido para nortear associaes espritas

em outros continentes, embora permanea praticamente desconhecido no meio

acadmico, onde apenas se tem estudado a proposta educacional esprita colocada

em prtica em escolas regulares11. Contudo, o centro esprita, visto como espao

8 Procuro desenvolver esse tema com base em Bourdieu (1998; 2000), a fim de demonstrar que o

ESDE uma prtica educativa inserida em um local, o centro esprita, onde se cruzam campos especficos, como o religioso, o cientfico e o educacional.

9 Conforme ser visto no prximo captulo, no espiritismo no se admite qualquer cerimnia que

possa se configurar como ritual de adeso doutrina, como batismo, crisma e casamento.

10 Para maiores informaes sobre o tema, ver: LEWGOY, Bernardo. Uma Religio em Trnsito: o

papel das lideranas brasileiras na formao de redes espritas transnacionais. Cincias Sociais e Religio. Revista da UFRGS, Porto Alegre, ano 13, n 14, p. 93-117, set. 2011.

11 J foram feitos estudos sobre o que Dora Incontri (2004a) denomina de pedagogia esprita,

colocada em prtica em escolas regulares, fundadas por espritas em vrios locais do Brasil. No entanto, minha inteno ao realizar a pesquisa aqui descrita, foi a de trabalhar com outro foco,

20

educacional, onde se desenvolvem prticas educativas sistematizadas e institudas

com fins determinados, mantem-se como um rico objeto de estudo, praticamente

inexplorado.

nesse terreno que busquei penetrar, no apenas como

pesquisador/historiador que sou, mas tambm como algum que conhece o campo

de estudo no qual se inseriu, j que tenho uma vivncia de mais de vinte anos no

movimento esprita, atuando, inclusive, como presidente da Sociedade Esprita F,

Esperana e Caridade, na cidade de Pedro Osrio/RS. Creio que essa experincia,

ao invs de comprometer a pretensa neutralidade axiolgica do pesquisador, to

cara aos positivistas do sculo passado (e tambm deste sculo), foi fator decisivo

para a realizao da pesquisa e em nada a comprometeu, j que busquei, acima de

tudo, problematizar corretamente o objeto de estudo, seguindo um planejamento

rigoroso, com base em um referencial terico slido, construdo com esta finalidade.

Aps discorrer sobre o surgimento do ESDE e a respeito das representaes

que esto nele contidas, encerro o presente trabalho procurando demonstrar que

este programa atualmente um dos mais importantes instrumentos de unificao

utilizados pela Federao Esprita Brasileira na perspectiva no apenas de unificar

os espritas no Brasil, mas tambm de constituir uma identidade para o Movimento

Esprita Brasileiro. Neste sentido, ele o resultado de um esforo sempre renovado

em busca de legitimao e do estabelecimento do significado em torno do que

representa ser esprita em meio a um campo historicamente assinalado por tenses

internas e conflitos com diversos outros campos.

elegendo como objeto de pesquisa o processo de institucionalizao do estudo que ocorre nos centros espritas, transformados em verdadeiras escolas para o ensino regular do espiritismo quando da implantao do ESDE, promovida pela FEB.

21

2 A pesquisa e sua trajetria

2.1 O espiritismo

Para efeito deste estudo, considero o espiritismo como sendo a doutrina

surgida na Frana a partir de 1857 com a publicao de O Livro dos Espritos,

organizado pelo o pedagogo, discpulo de Pestalozzi12 e 13, Hyppolite Lon Denizard

Rivail, que adotou o pseudnimo de Allan Kardec, pelo qual ficou conhecido.

Segundo o seu autor, O Livro dos Espritos contm mensagens atribudas a

diversos espritos, que se utilizaram de inmeros mdiuns para ditar essas

mensagens (KARDEC, 2013a [185714]).

Graas s suas pesquisas sobre o magnetismo, Allan Kardec teve a sua

ateno voltada para o fenmeno das mesas girantes15, verdadeira mania em Paris

entre os anos de 1853 e 1856. Em 1857, aps vrios meses de estudos sobre esse

fenmeno, ele publicou O Livro dos Espritos, onde afirma que a fora inteligente

que produzia o movimento das mesas a ao dos espritos e apresenta os

princpios bsicos do espiritismo, que so a crena em Deus, na sobrevivncia da

alma aps a morte, na reencarnao, na pluralidade dos mundos habitados e na

possibilidade de haver comunicao entre os homens e os espritos, atravs de

indivduos por ele denominados de mdiuns (KARDEC, 2013a [1857]).

12

Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827): Pedagogo suo que se notabilizou como um dos pais da educao popular.

13 Todos os dados biogrficos relativos a personagens histricos aqui apresentados, quando so

apenas informativos e no visam problematizao, foram retirados da Enciclopdia Larousse Cultural.

14 A primeira edio de O Livro dos Espritos de 1857. Contudo, a edio de 1860 considerada a

definitiva, tendo em vista que o seu autor reorganizou a obra e a complementou, praticamente dobrando o seu contedo.

15 Fenmeno magntico descrito por vrios estudiosos e que consiste em magnetizar-se uma mesa e

em faz-la girar. O fenmeno chegou a chamar a ateno de diversos cientistas importantes ao longo da segunda metade do sculo XIX, como Michael Faraday (1791-1867), formulador da teoria eletromagntica, considerado um dos fsicos mais influentes de todos os tempos.

22

Logo aps a publicao de O Livro dos Espritos Kardec editou vrias outras

obras, alm de criar uma revista mensal para divulgao da nova doutrina, a

Revista Esprita Jornal de Estudos Psicolgicos, fundada em 1858. Entre os livros

doutrinrios publicados por Kardec na sequencia de O Livro dos Espritos esto, em

ordem cronolgica: O Livro dos Mdiuns (1861); O Evangelho Segundo o

Espiritismo (1864); O Cu e o Inferno ou a Justia Divina Segundo o Espiritismo

(1865) e A Gnese, os Milagres e as Predies Segundo o Espiritismo (1868).

Essas cinco obras formam o que os espritas denominam obras bsicas de

sua doutrina. Alm delas, Kardec publicou outros livros, como: Instrues Prticas

sobre as Manifestaes Espritas (1858); O Que o Espiritismo (1859); O

Espiritismo na sua mais simples expresso (1862) e Viagem Esprita (1862).

Depois de sua morte, ocorrida em 1869, os seus seguidores organizaram um outro

volume, contendo uma srie de textos seus ento inditos, que publicaram com o

ttulo de Obras Pstumas (1890).

Alm de editar obras doutrinrias e empreender viagens pelo interior da

Frana para divulgar a doutrina esprita, em abril de 1858 Kardec fundou a

Sociedade Parisiense de Estudos Espritas (SPEE), ao lado de uma srie de

colaboradores. Com o tempo a SPEE passou a congregar inmeros estudiosos da

doutrina esprita, entre eles alguns cientistas que comeavam a se interessar pelo

estudo do espiritismo e que se tornariam famosos nos anos a seguir, como Camille

Flammarion16.

Foi o prprio Allan Kardec (2013a [1857], p. 13), na introduo de O Livro dos

Espritos, quem utilizou pela primeira vez o termo espiritismo para designar a nova

doutrina, da qual ele no se diz o criador e sim, meramente, o organizador:

Para se designarem coisas novas so precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confuso inerente variedade de sentidos das mesmas palavras. Os vocbulos espiritual, espiritualista, espiritualismo tm acepo bem definida. Dar-lhes outra, para aplic-los a doutrina dos espritos, fora multiplicar as causas j numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matria, espiritualista.

16

Nicolas Camille Flammarion, mais conhecido como Camille Flammarion (1842-1925). Clebre astrnomo francs, fundador e patrono da Sociedade Astronmica da Frana e um dos astrnomos mais prestigiados de sua poca, principalmente pelo seu trabalho de divulgao popular da Astronomia.

23

No se segue dai, porm, que creia na existncia dos espritos ou em suas comunicaes com o mundo visvel. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crena a que vimos de referir-nos, os termos esprita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligveis, deixando ao vocbulo espiritualismo a acepo que lhe e prpria. Diremos, pois, que a doutrina esprita ou o espiritismo tem por principio as relaes do mundo material com os espritos ou seres do mundo invisvel. Os adeptos do espiritismo sero os espritas, ou, se quiserem, os espiritistas17.

Ainda na introduo de O Livros dos Espritos, ao se referir sobre o seu

contedo e acerca de sua misso pessoal, Kardec (2013a [1857], p. 49) assevera:

Este livro o repositrio de seus ensinos [dos espritos]. Foi escrito por ordem e mediante ditado de Espritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espirito de sistema. Nada contm que no seja a expresso do pensamento deles e que no tenha sido por eles examinado. S a ordem e a distribuio metdica das matrias, assim como as notas e a forma de algumas partes da redao, constituem obra daquele que recebeu a misso de os publicar.

No se pode afirmar com absoluta certeza que o termo espiritismo seja um

neologismo e creio mesmo que a questo central dessa discusso no est a e sim

no que diz respeito ao conceito ao qual o termo se refere, conceito este que foi

construdo por Allan Kardec. Ora, quando um autor cria um conceito, seja no campo

da filosofia ou da cincia, ele lhe atribui um sentido, da forma mais precisa possvel.

exatamente isso que Kardec (2013a [1857]) faz na introduo de O Livro dos

Espritos, particularmente no trecho referido acima. O termo espiritismo remete,

portanto, a um conceito que de sua autoria e que possui um significado especfico.

Por outro lado, apesar de Allan Kardec no se dizer o criador do espiritismo,

possvel notar que a sua participao no processo de elaborao da doutrina esprita

vai muito alm da de um simples codificador, que como ele chamado no meio

esprita e apresentado no ESDE (FEB, 2012). Adiante, em item especfico deste

trabalho, analiso o contexto histrico em que o termo codificador surgiu,

17

Na primeira edio de O Livro dos Espritos, de 1857, Allan Kardec grafou as expresses esprito, espiritismo, doutrina dos espritos e doutrina esprita com iniciais minsculas. A partir da segunda edio, de 1860, considerada definitiva, essas expresses passaram a ser escritas com iniciais maisculas. Tanto no meio esprita, quanto no meio acadmico, so comuns as duas formas de grafia. Sendo assim, para evitar ter de mesclar as duas formas de grafia ao longo deste trabalho, j que utilizei fontes de pesquisa em que elas se alternam, optei pela primeira.

24

demonstrando que ele encerra uma representao presente no discurso

hegemnico no Movimento Esprita Brasileiro sobre a figura de Allan Kardec.

Tambm procuro compreender o seu papel no processo de organizao da doutrina

esprita.

Contudo, sem discutir a veracidade das informaes apresentadas por Allan

Kardec a respeito da organizao de sua obra, quanto influncia dos espritos na

sua elaborao, o que no o objetivo deste trabalho, adoto, no mbito desta

pesquisa, a sua definio de espiritismo. Pelo mesmo motivo trato Kardec como ele

se apresenta na introduo de O Livro dos Espritos, ou seja, como o organizador

da doutrina.

bem verdade que ao longo do tempo, particularmente no Brasil, ocorreu

uma associao entre mediunismo e espiritismo e uma consequente

generalizao do uso do vocbulo empregado por Kardec para designar vrias

outras religies medinicas, como, por exemplo, a umbanda.

Isso se deve, na minha viso, a vrios fatores. Entre eles est o fato de que

dentro do contexto espiritualista foi Allan Kardec, sem dvidas, quem melhor

estudou a mediunidade e suas particularidades, o que explica a adoo de O Livro

dos Mdiuns por outras correntes espiritualistas, como a prpria umbanda. Com

base nisso surgiam expresses como espiritismo kardecista, espiritismo de mesa,

espiritismo de linha branca e alto espiritismo para designar a doutrina organizada

por Kardec e espiritismo de umbanda, espiritismo de terreiro e baixo espiritismo

para designar outras prticas medinicas, que tambm lidam com os espritos

durante os seus rituais.

Vejo essas expresses como preconceituosas, principalmente na medida em

que estabelecem uma relao hierrquica entre diferentes sistemas de crena, muito

embora algumas sejam at mesmo adotadas na Academia. Quando chamamos a

doutrina organizada por Kardec de alto espiritismo e a umbanda, que surgiu no

Brasil como o resultado de um longo processo sincrtico em que se mesclaram

elementos do candombl, do catolicismo e da prpria doutrina esprita, de baixo

25

espiritismo, estamos emitindo um juzo de valor depreciativo que no se sustenta

diante do quadro atual das Cincias Humanas e Sociais18.

Por outro lado, a apropriao que feita do termo empregado por Kardec

demonstra a legitimidade que o espiritismo ganhou no campo cultural-religioso

brasileiro, na medida em que o uso do vocbulo disputado19 por diversos grupos

religiosos e motivo de controvrsias entre eles20.

Desta forma, acredito que o correto chamarmos de espiritismo a doutrina

organizada por Allan Kardec na Frana a partir de 1857 e que se encontra

substanciada no que os espritas chamam de obras bsicas do seu organizador e

de umbanda a religio surgida no Brasil no incio do sculo XX, a partir de

elementos do candombl, do catolicismo e do prprio espiritismo. No corpo deste

trabalho essas so, portanto, as definies adotadas.

2.2 O objeto de pesquisa e sua justificativa

Uma das sentenas mais expressivas de O Evangelho Segundo o

Espiritismo, uma conclamao atribuda ao Esprito de Verdade, entidade

espiritual21 que orientou Allan Kardec no processo de organizao do espiritismo, em

que se l: Espritas! Amai-vos, este o primeiro ensinamento; instrui-vos, este o

segundo (KARDEC, 2013c [1864], p. 107). Esta frase resume a proposta dessa

doutrina, ou seja, incentivar a prtica da caridade atravs do amor ao prximo e a

instruo dos indivduos luz dos ensinamentos dos espritos.

18

Um dos autores que utiliza essas expresses Gilberto Freire (1974;1988) em Assombraes no Recife Velho e Casa-Grande e Senzala.

19 Em um dos prximos captulos abordo, com base principalmente em Bourdieu (1998, 2000) e

Chartier (1990, 2002), tais disputas e suas representaes para esses grupos, de acordo com o referencial terico que ser proposto adiante.

20 Sobre o assunto ver: AMORIM, Deolindo. O espiritismo e as doutrinas espiritualistas. So

Paulo: Livraria Chignone, 1949.

21 Segundo o prprio Kardec (2013a [1857]), na apresentao de O Livro dos Espritos, seu trabalho

de organizao do espiritismo teria sido orientado por diversos espritos superiores, entidades espirituais evoludas que teriam por misso auxiliar o processo de evoluo espiritual e intelectual da humanidade. Essa pliade de espritos superiores seria capitaneada por uma entidade que se autodenominava Esprito de Verdade. Sua identidade no fica clara, mas em diversas mensagens a ela atribudas em O Evangelho Segundo o Espiritismo (KARDEC, 2013c [1864]), parece se tratar de Jesus, em razo de sua linguagem.

26

Fruto do trabalho sistematizador de um pedagogo, a doutrina esprita aposta

na educao como meio de superar as mazelas sociais e se constitui, ela mesma,

em uma proposta educacional, onde se pretende unificar a educao moral e a

educao intelectual. Conforme assevera Kardec (2013a [1857], p. 320), a

desordem e a imprevidncia so duas chagas que s uma educao bem entendida

pode curar. Esse o ponto de partida, o elemento real do bem estar, a garantia da

segurana de todos.

Em vrias passagens de suas obras, Kardec afirma que a evoluo do

esprito ocorre atravs de dois caminhos, ou de dois eixos que se interligam

constantemente atravs da reencarnao: o moral e o intelectual. Em outras

palavras, preciso que o espirito progrida em virtudes e conhecimentos para que

atinja a perfeio, que o destino de todos ns. Da o conselho do Esprito de

Verdade reproduzido acima.

Para tanto, ao longo do corpo doutrinrio esprita, Allan Kardec constri uma

verdadeira proposta pedaggica, onde o valor da educao est permanentemente

subentendido, sendo o espiritismo apresentado como uma espcie de chave no

apenas para o perfeito entendimento dos ensinamentos evanglicos e para a prtica

da mediunidade, mas tambm para a compreenso do mundo que nos cerca, em

suas dimenses fsica e espiritual22.

Ao mesmo tempo, Kardec apresenta uma espcie de plano didtico para a

apreenso da prpria doutrina por ele organizada, que pode ser facilmente notado

no sumrio de O Livro dos Espritos (KARDEC, 2013a [1857]): passa-se do estudo

sobre Deus e a natureza fsica do universo para a compreenso do mundo espiritual

e suas relaes com o mundo fsico, seguindo-se o estudo das leis morais e suas

consequncias para a evoluo espiritual do homem, bem como o seu destino aps

a morte23. As demais obras que vieram na sequncia de O Livros dos Espritos

22

De acordo com a doutrina esprita, o universo se desdobra em dois planos que se interpenetram, o fsico, onde vivem os espritos encarnados, e o espiritual, onde vivem os espritos desencarnados. Assim, os mdiuns seriam os indivduos capazes de estabelecer a ponte entre os dois planos. Contudo, na viso de Kardec (2013b [1861]), todos os homens so mdiuns, sendo preciso que a mediunidade seja educada para ser posta a servio da humanidade. Este seria um dos papis que a doutrina esprita teria a cumprir, ou seja, educar os mdiuns, para que esses possam exercer a sua mediunidade com segurana e de uma forma moralmente correta, isto , sem nada receber em troca.

23 Reitera-se que, na viso de Kardec, a evoluo espiritual do homem s pode ser realizada

harmonizando-se o progresso moral com o progresso intelectual. Sendo assim, para atingir a perfeio, o esprito precisa buscar esse equilbrio atravs de vrias encarnaes. possvel,

27

confirmam isso, na medida em que desdobram os pontos abordados na primeira

obra publicada por Allan Kardec.

O Livro dos Mdiuns pretende ser, como afirma o seu subttulo, um guia dos

mdiuns e dos evocadores, onde o autor descreve a natureza do mundo espiritual e

suas relaes com o mundo fsico, contendo o ensinamento especial dos espritos

sobre a teoria de todos os gneros de manifestaes, os meios de comunicao

com o Mundo Invisvel, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os

tropeos que se podem encontrar na prtica do Espiritismo (KARDEC, 2013b

[1861]).

No livro O Evangelho Segundo o Espiritismo (KARDEC, 2013c [1864]), o

autor interpreta os ensinamentos de Jesus e disserta sobre as suas consequncias

para o aprimoramento moral da humanidade.

Em O Cu e o Inferno, Kardec (2013d [1865]) retoma a questo relativa

natureza do mundo espiritual e busca desmistificar a sua essncia, apresentando o

cu e o inferno como metforas da condio humana aps a morte e no como

lugares destinados a recompensas e suplcios eternos. Tambm nessa obra as

figuras dos anjos e demnios so reinterpretadas: os demnios seriam apenas

espritos ainda imperfeitos, ao passo que os anjos seriam aqueles que j alcanaram

a perfeio, pelos seus prprios esforos, atravs da reencarnao.

Por fim, em A Gnese, os Milagres e as Predies Segundo o Espiritismo o

autor busca explicar o processo de criao do universo atravs da evoluo, no

admitindo a existncia do sobrenatural. Assim, os milagres e as profecias seriam

apenas fatos naturais, inexplicveis para a cincia acadmica e para as prprias

religies antes do surgimento do espiritismo, mas a partir de ento plenamente

explicados pelas leis reveladas pela doutrina esprita:

No sendo necessrios os milagres para a glorificao de Deus, nada no universo se produz fora do mbito das leis gerais. Deus no faz milagres, porque sendo, como so, perfeitas as suas leis, no lhe necessrio derrog-las. Se h fatos que no compreendemos, que ainda nos faltam os conhecimentos necessrios (KARDEC, 2013e [1868], p. 238).

portanto, que o esprito progrida muito em termos de moralidade, negligenciando o aspecto intelectual, ou vice-versa. Nesse caso, haveria um descompasso que impossibilitaria a esse esprito atingir o destino que estaria reservado a todos, ou seja, a perfeio. Oportunamente esse tema ser retomando.

28

O espiritismo, pois, vem, a seu turno, fazer o que cada cincia fez em seu advento: revelar novas leis e explicar, conseguintemente, os fenmenos compreendido na alada dessas leis (KARDEC, 2013e [1868], p. 232-233).

Os fatos que o Evangelho relata e que foram at hoje considerados milagrosos pertencem, na sua maioria, ordem dos fenmenos psquicos, isto , dos que tm como causa primria as faculdades e os atributos da alma (KARDEC, 2013e [1868], p. 274, sem grifos no original)24.

Por outro lado, Kardec (2013a [1857], p. 30-31) traa um perfil necessrio

para que o espiritismo possa ser estudado com seriedade e profundidade:

Acrescentemos que o estudo de uma doutrina, qual a doutrina esprita, que nos lana de sbito numa ordem de coisas to nova quo grande, s pode ser feito com utilidade por homens srios, perseverantes, livres de prevenes e animados de firme e sincera vontade de chegar a um resultado. [...] O que caracteriza um estudo srio a continuidade que se lhe d.

Segundo Aubre e Laplantine (2009, p. 103), em um dos maiores estudos j

realizados na Academia sobre o espiritismo, o cerne dessa doutrina, a exemplo de

outras doutrinas de natureza moral, seria a moralizao do comportamento humano,

segundo uma tica formatada atravs dos ensinamentos dos espritos. Da a

importncia da educao dentro do contexto da doutrina esprita:

A educao o ponto central do espiritismo. Por isso, em suas explicaes aos grupos de provncia, Allan Kardec encoraja a leitura e o estudo do livro (dos espritos) como sendo primordial, e considera os fenmenos das mesas no final das contas como acessrios25.

Sendo assim, para o espiritismo a melhoria do mundo passa,

necessariamente, pela evoluo dos espritos, que, por sua vez, passa pela

educao, no apenas moral, como vimos anteriormente na citao do Esprito de

Verdade, mas tambm intelectual. Nesse ltimo aspecto a doutrina esprita

igualmente teria a contribuir, na medida em que revela uma srie de leis naturais

que regulariam o universo fsico e espiritual, enriquecendo com isso o prprio

24

Em todas as citaes em que palavras ou trechos foram grifados no corpo deste trabalho isso informado nas referncias. Onde houver grifo e nada constar na referncia da citao, isso porque o grifo est no original.

25 Aqui os autores esto se referindo s vrias viagens que Allan Kardec fez pelo interior da Frana

para divulgar o espiritismo. Eles tambm se referem ao fenmeno das mesas girantes, que deu incio ao espiritismo, conforme j explicado e sobre o qual se voltar a seguir.

29

conhecimento cientfico do mundo, trazendo luzes sobre fatos antes desconhecidos

e que precisariam ser apreendidos para o progresso geral.

Alis, ao discutir o carter da doutrina esprita, Allan Kardec se manifesta

desta forma:

O espiritismo a cincia nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusveis, a existncia e a natureza do mundo espiritual e as suas relaes com o mundo corpreo. Ele no-lo mostra, no mais como coisa sobrenatural, porm, ao contrrio, como uma das foras vivas e sem cessar atuantes da natureza, como a fonte de uma imensidade de fenmenos at hoje incompreendidos e, por isso, relegados ao domnio do fantstico e do maravilhoso. [...] O espiritismo a chave com a ajuda da qual tudo se explica de modo fcil (KARDEC, 2013c [1864], p. 44).

O espiritismo , ao mesmo tempo, uma cincia de observao e uma doutrina filosfica. Como cincia prtica ele consiste nas relaes que se estabelecem entre ns e os espritos; como filosofia, ele compreende todas as consequncias morais que dimanam dessas mesmas relaes. Podemos defini-lo assim: o espiritismo uma cincia que trata da natureza, origem e destino dos espritos, bem como de suas relaes com o mundo corporal (KARDEC, 1991 [1859], p. 50).

Assim, ao apresentar o espiritismo como sendo uma cincia e uma doutrina

filosfica de consequncias morais, Allan Kardec reitera a importncia do estudo

para a sua compreenso, para a sua prtica e para a sua divulgao:

Um curso regular de espiritismo seria professado com o objetivo de desenvolver os princpios da cincia e de difundir o gosto pelos estudos srios. Esse curso teria a vantagem de fundar a unidade de princpios, de fazer adeptos esclarecidos, capazes de espalhar as ideias espritas e de desenvolver um grande nmero de mdiuns. Considero esse curso como de natureza a exercer capital influncia sobre o futuro do espiritismo e sobre as suas consequncias (KARDEC, 2005 [1890], p. 412-413).

O texto onde Kardec faz essa ltima anlise est inserido em Obras

Pstumas, livro que contm uma coletnea de textos de sua autoria publicados

aps a sua morte, ocorrida em 1869. O escrito, na verdade, faz parte de um projeto

que ele havia concebido em 1868 para facilitar a divulgao do espiritismo, evitando

qualquer distoro doutrinria e que s foi publicado em Obras Pstumas. Nesse

projeto, Kardec (2005 [1890]) escreve sobre a necessidade de estabelecer um local

central para coordenar as atividades de divulgao doutrinria, sobre a convenincia

de incrementar a Revista Esprita, peridico que ele havia fundado em 1858, sobre a

30

possibilidade de poder viajar mais para divulgar a doutrina e sobre a necessidade da

criao de um curso regular de espiritismo, no apenas como meio de divulgao,

mas tambm como forma de preparar mdiuns para o trabalho.

Quando morreu, em 31 de maro de 1869, ele estava preparando uma

mudana de endereo para uma casa maior, onde de fato pudesse estabelecer um

local adequado para coordenar a divulgao do espiritismo, redigir a Revista Esprita

e responder farta correspondncia que na poca mantinha em razo da divulgao

doutrinria. Preparava-se tambm para empreender uma nova srie de viagens de

divulgao pelo interior da Frana e estrangeiro (WANTUIL; THIESEN, 1999).

Contudo, no teve tempo de preparar e organizar um curso regular de espiritismo,

conforme havia planejado fazer.

Foi no Brasil, mais de um sculo depois, que essa ideia do organizador do

espiritismo tomou corpo, com a criao do Estudo Sistematizado da Doutrina

Esprita (ESDE), no mbito da Federao Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS)

em 1978, modelo depois adotado pela Federao Esprita Brasileira (FEB) em 1983.

Conforme ser discutido em detalhes em prximo captulo, a doutrina esprita

inseriu-se no Brasil durante a dcada de 1860, dando incio a um conturbado

processo de legitimao, marcado por tenses internas e disputas em diversos

campos. Ao longo desse percurso a prtica do espiritismo com o objetivo de cura

chegou a ser criminalizada pelo Cdigo Penal de 1890, como sinnimo de

curandeirismo e de superstio.

O carter do espiritismo foi objeto de longa e tensa discusso entre os

primeiros espritas brasileiros. Enquanto uns viam na doutrina organizada por Allan

Kardec apenas uma cincia com consequncias filosficas, outros passaram a

interpret-la como uma nova religio, sendo preciso definir a quem caberia

representar institucionalmente a nova crena.

Foi no interior do Grupo Confcio, primeira sociedade esprita do Rio de

Janeiro, fundada em 1873, que ocorreram as primeiras cises entre os espritas

brasileiros, formando-se trs faces que durante muitas dcadas disputaram

espao dentro do movimento esprita, divergindo quanto ao carter do espiritismo.

Os chamados cientficos consideravam a doutrina esprita como cincia e no

admitiam que ela pudesse ser vista como uma religio. Os puros advogavam a tese

31

de que o espiritismo era essencialmente uma filosofia. J os msticos viam na

doutrina esprita uma nova religio, uma continuidade histrica do cristianismo

primitivo. Essa diviso assinalou fortemente a histria do espiritismo no Brasil e at

hoje apresenta desdobramentos.

Entre os msticos havia tambm uma ciso que marcou profundamente o

campo esprita brasileiro, com consequncias que se estendem aos dias atuais. Em

seus estudos de natureza moral, alguns msticos adotavam O Evangelho Segundo o

Espiritismo, de Allan Kardec (2013c [1864]), enquanto a maioria preferia a obra

Espiritismo Cristo ou Revelao da Revelao: Os Quatro Evangelhos, de Jean

Batist Roustaing (1983 [1866]). Em razo disso, os primeiros eram chamados de

kardecistas, enquanto os outros eram denominados roustainguistas, ou

rustenistas. Ocorre que Allan Kardec e Roustaing divergem em relao a vrios

pontos doutrinrios, principalmente no que diz respeito possibilidade do esprito

evoluir em linha reta, sem a necessidade da encarnao e isso provocou fortes

disputas entre kardecistas e rustenistas26.

Por outro lado, ao inserir-se em um pas marcadamente catlico, que vivia

sob a gide do Padroado Rgio, o espiritismo sofreu forte oposio da Igreja. Ao

clero catlico juntaram-se os materialistas e crticos dos fenmenos medinicos,

identificados por muitos mdicos e outros estudiosos como produtos de estados

patolgicos da mente humana. Mediunismo e espiritismo foram assim identificados,

tornando-se necessrio aos espritas marcar a fronteira entre a sua doutrina e as

demais prticas medinicas.

Em 1894 surgiu a Federao Esprita Brasileira, instituio fundada com o

objetivo de congregar as correntes divergentes no nascente Movimento Esprita

Brasileiro, com o objetivo de unir foras para melhor defender e difundir o espiritismo

no pas. No interior desta entidade, que somente aos poucos assumiu o papel de

instituio orientadora e representativa dos espritas brasileiros, constituram-se

praticas e representaes acerca do espiritismo e do movimento esprita que

conformaram a identidade da doutrina esprita no Brasil e tambm a de seus

seguidores.

26

As divergncias entre Kardec e Roustaing no se esgotam neste tema e versam tambm sobre a natureza do corpo de Jesus e a virgindade de Maria. Nos prximos captulo essa questo retomada e aprofundada, na medida em que de grande importncia para se compreender as representaes em torno do espiritismo que se formaram no Brasil e que esto hoje contidas no ESDE.

32

Desta forma, desde a sua insero no Brasil e no decorrer de boa parte do

sculo XX, a luta do espiritismo em busca de legitimidade traduz um tenso processo

de constituio identitria, marcado por diversos embates, tanto no campo interno,

quanto externo. Internamente as faces que divergiam em relao ao carter da

doutrina disputaram a hegemonia no campo esprita. No mbito externo as disputas

ocorreram junto ao campo religioso, ao campo mdico e esfera estatal. Ao mesmo

tempo em que os espritas precisaram firmar-se no campo religioso, marcando as

diferenas do espiritismo em relao ao catolicismo e s demais religies

medinicas, foi necessrio defender a doutrina frente aos ataques emitidos por

aqueles que consideravam o espiritismo como sinnimo de superstio e loucura.

Por outro lado, tornou-se imperioso defender as prticas espritas diante das

sanes impostas pelo Cdigo Penal de 1890.

Esses embates estenderam-se ao longo de praticamente todo o sculo XX.

Muito embora o espiritismo tenha sido removido do Cdigo Penal com a

promulgao de um novo diploma legal em 1940, diversas obras publicadas depois

disso atestam a tentativa dos crticos de associar o espiritismo com os demais cultos

medinicos e dos espritas em se defender, apelando para a feio cientfica de sua

doutrina e para a seriedade de seus estudos em torno da mediunidade, realizados

nos centros espritas27.

Nas dcadas de 1960 e 1970 o espiritismo experimentou no Brasil uma

popularizao extraordinria, graas ao fenmeno Chico Xavier. O mdium mineiro,

que j vinha despertando a curiosidade de muitos desde a dcada de 1930, tornou-

se extremamente conhecido nesse perodo. Em 1971 participou ao vivo do programa

televisivo Pinga-Fogo, com enorme sucesso, tanto que o episdio que contou com a

sua participao permanece at hoje como sendo o programa de maior audincia da

televiso brasileira (SOUTO MAIOR, 1995).

27

Um exemplo disso so as obras do padre Kloppenburg (1957a; 1957b; 1960; 1961; 1986, 1997; 1999), cujas primeiras edies foram publicadas ao longo das dcadas de 1950 a 1970. Por outro lado, os espritas defendem-se atravs da publicao de vrios livros que buscam ressaltar o carter cientfico da doutrina, alguns deles escritos ainda no sculo XIX e cujas primeiras edies brasileiras tambm vieram a lume no mesmo perodo, como Cincia e Espiritismo de Antnio Freire (1991), conceituado cientista portugus, Fatos Espritas de Willian Crookes (1991), famoso qumico e fsico ingls, Hipnotismo e Espiritismo de Jos Lapponi (1988), mdico italiano, chefe da Clnica Mdica do Vaticano.

33

Renovou-se, ento, para os espritas, a necessidade de afirmao de sua

identidade. Ao mesmo tempo permanecia para muitos o questionamento em torno

do carter religioso da doutrina organizada por Allan Kardec28.

neste contexto que surge a proposta de sistematizar o estudo doutrinrio

que j existia nos centros espritas, apelando-se para o carter pedaggico do

espiritismo, discutido acima.

Vrios empreendimentos educacionais j haviam sido postos em prtica em

escolas do Brasil, ancorados na pedagogia esprita29. Contudo, no se tratava

agora de apenas criar escolas espritas, mas sim de transformar os centros espritas

ento existentes no pas em verdadeiras escolas, formalizando o estudo doutrinrio

que j ocorria neles de modo absolutamente informal.

As sociedades espritas deixaram ento de ser meros espaos religiosos, de

intercmbio medinico e de estudo informal da doutrina esprita e passaram a se

organizar como ambientes educacionais, onde o espiritismo e a sua viso de mundo

so ensinados atravs de um conjunto de prticas didtico-pedaggicas formatadas

com essa finalidade.

Em tais espaos, no bastava que se ensinasse a mediunidade, a sua prtica

e o seu domnio. Era preciso ir alm. Fez-se necessrio ensinar o homem a ver o

mundo atravs da tica esprita e isso no poderia ser feito apenas atravs de

palestras publicas e explanaes doutrinrias, como antes. Era preciso que o

estudo ocorresse de forma organizada, sistematizada, por meio de material e

tcnicas preparadas com esse fim. Surgiu, enfim, o Estudo Sistematizado da

Doutrina Esprita (ESDE). O vislumbre de Kardec na Frana em 1868 tornou-se uma

realidade no outro lado do Atlntico, porm, com caractersticas prprias.

Ora, desde o momento em que o espiritismo brasileiro precisou se diferenciar

das outras prticas medinicas o estudo vinha sendo apontado como elemento

caracterizador da doutrina. Em geral, nos centros espritas brasileiros, mesmo

havendo uma predominncia do aspecto religioso do espiritismo, realizavam-se

28

Mais adiante ser discutido o quanto essa questo ainda motivo de discusses acaloradas entre os espritas brasileiros. Aquilo que vimos acima quando da primeira ciso entre os espritas em nosso pas continuou a ser pretexto para novas rupturas ao longo do sculo XX, ao lado da discusso em torno da legitimidade da FEB como rgo unificador e representativo do espiritismo no Brasil.

29 So vrias as escolas espritas regulares criadas no Brasil a partir da primeira dcada do sculo

XX. Para maiores informaes ver Incontri (2004a) e Bigheto (2006).

34

estudos sobre os mais diversos pontos doutrinrios, principalmente no intuito de

preparar os mdiuns para o exerccio da mediunidade. Contudo, conforme ser

discutido adiante em detalhes, esse estudo era informal e acontecia basicamente

atravs da leitura e discusso das obras de Kardec entre os frequentadores,

interessados em um maior aprofundamento no tema.

Penso que no decorrer do sculo XX o estudo tornou-se to importante que

acabou por se constituir em elemento central no processo de construo de uma

identidade esprita no Brasil, juntamente com a prtica da caridade e com o

exerccio da mediunidade.

Mesmo tendo se transformado em uma verdadeira religio no Brasil, o

espiritismo no admite qualquer cerimnia de iniciao, como batismo, crisma e

casamento, que so comuns nas religies crists. Na falta de um ritual de

passagem, creio que o estudo da doutrina, aliado prtica da caridade e ao

exerccio da mediunidade no centro esprita, marca a efetiva adeso para a maioria

daqueles que se consideram espritas.

Os dados dos recenseamentos realizados pelo IBGE mostram que um

pequeno contingente da populao brasileira se declara esprita, algo que gira

sempre em torno de 2%, apesar dos centros espritas acharem-se lotados por todo o

pas. Isso vem gerando sucessivos protestos da FEB, que alega que os nmeros

dos censos no refletem a realidade (BETARELLO, 2010).

Contudo, creio que a frequncia ao centro esprita, mesmo que de maneira

constante, muitas vezes no suficiente para que o indivduo atribua a si mesmo a

identidade de esprita. Penso que na maioria dos casos o fato de estar estudando

ou de ter estudado no centro esprita que leva o indivduo a se reconhecer como

esprita e se apresentar como tal.

No entanto, a partir da dcada de 1970, com essa renovao da necessidade

de demarcar fronteira entre o espiritismo e as demais prticas medinicas e de

melhor divulga-lo, o que ocorreu em razo da grande popularizao da doutrina,

graas ao fenmeno Chico Xavier, passaram a surgir projetos de sistematizao

desse estudo.

Esse processo teve incio na Unio das Sociedades Espritas do Estado de

So Paulo (USE), em 1975, atravs da campanha Comece pelo comeo, que

35

incentivava o estudo regular das obras bsicas de Kardec. Em seguida surgiu no

Paran o Centro de Orientao e Educao Medinica (COEM), com o objetivo de

sistematizar o estudo da doutrina esprita.

Contudo, foi na Federao Esprita do Rio Grande do Sul (FERGS) que

surgiu, em 1978, o Estudo Sistematizado da Doutrina Esprita (ESDE), programa

que propunha o estudo constante e organizado das obras bsicas em todos os

centros espritas do Rio Grande do Sul, atravs de material didtico especialmente

preparado para tanto, como o objetivo no apenas de formar mdiuns para as

diversas atividades realizadas nas casas espritas30, mas, tambm, difundir os

ensinamentos e a viso de mundo da doutrina esprita.

Em 1983 a Federao Esprita Brasileira, percebendo o potencial do

programa para a difuso doutrinria e para a efetiva unificao do movimento

esprita em torno de sua liderana, encampou o projeto, que passou a ser divulgado

e incentivado em todo o pas, inclusive com a preparao de material didtico

adequado, com base nas obras de Kardec e em outras, consideradas

complementares.

A partir da o ESDE tornou-se um curso regular de espiritismo, que se

desenvolve nos centros espritas que o implantaram atravs de um programa

apresentado pela FEB, ao longo de trs anos, em horrios especficos e com um

cronograma prprio. Aos estudantes, que precisam estar regularmente inscritos,

exige-se uma frequncia mnima e a execuo de vrias tarefas para que possam

progredir no decorrer do curso. Ou seja, com a implantao do ESDE31 em toda a

30

Conforme ser visto adiante em maiores detalhes, em um centro esprita realizam-se vrias atividades envolvendo a mediunidade, como a comunicao com os espritos, o passe, a desobsesso, a irradiao (passes aplicados distncia). Para o exerccio de todas essas atividades, em geral, requer-se que o mdium se prepare, atravs do estudo. Alm disso, importante que se compreenda que, para o espiritismo, a prtica da mediunidade, no mbito do centro esprita, um exerccio de caridade, na medida em que o mdium est se doando (KARDEC, 2013c [1864]). justamente nesse ponto que se fundem os trs elementos que sustento serem os formatadores de uma identidade esprita no Brasil: o estudo, a mediunidade e a caridade. Tal tema ser retomado adiante.

31 importante frisar que a expresso Estudo Sistematizado acabou por assumir no Brasil um duplo

significado: ora utilizada para se referir ao programa permanente da FEB, chamado genericamente de ESDE, e em outras circunstncias usada para designar o estudo realizado em vrios centros espritas que no adotam o programa da Federao Esprita Brasileira. Ou seja, comum um centro esprita promover o estudo doutrinrio atravs de um sistema prprio de organizao didtica e chamar esse sistema de Estudo Sistematizado. Neste caso, no se trata do programa febiano, que tem caractersticas prprias. Sendo assim, no mbito deste trabalho, as expresses ESDE e Estudo Sistematizado so utilizadas para designar o programa da FEB.

36

rede federativa, sob o comando da FEB, o estudo doutrinrio no foi apenas

sistematizado, ele foi tambm institucionalizado.

Sendo assim, muito embora no Brasil o espiritismo tenha se desenvolvido

ancorado muito mais em sua feio moral, resultando em uma verdadeira religio,

defendo que o centro espirita acabou por constituiu-se como um espao educacional

e no meramente religioso, onde tm lugar prticas educacionais que foram

institucionalizadas pela FEB com fins determinados.

Por consequncia, sustento a seguinte tese:

A transformao do ESDE em um programa permanente da Federao

Esprita Brasileira representou a institucionalizao da prtica do estudo que

j acontecia nos centros espritas brasileiros de maneira informal. Essa

institucionalizao contribui para unificar o Movimento Esprita Brasileiro em

torno da FEB, na medida em que difunde entre os centros espritas que aderem

a este programa a viso desta federao a respeito do espiritismo e de seu

prprio papel institucional, que seria orientar, coordenar e representar esse

mesmo movimento.

Assim, segundo a minha tese, o ESDE tem motivaes explcitas e implcitas.

Entre as primeiras est:

a) O interesse em difundir a doutrina;

b) O desejo de levar o pleno conhecimento das obras bsicas totalidade

dos trabalhadores dos centros espritas, nem todos acostumados leitura

de livros que exigem certo grau de instruo para a sua apreenso;

c) A preocupao em dar incio formao de mdiuns para a execuo das

diversas tarefas realizadas nos centros espritas;

d) A inteno de divulgar a viso de mundo da doutrina esprita e suas

concepes acerca da vida humana e das relaes do homem com o

universo fsico e espiritual.

J entre as motivaes implcitas, temos:

a) A necessidade de diferenciao da doutrina esprita das demais religies

medinicas;

37

b) O interesse em associar a prtica da mediunidade caridade, enfatizando

que o mdium deve educar-se moralmente com base no Evangelho, a fim

de fazer da mediunidade, sobretudo, um instrumento para a prtica da

caridade;

c) A inteno de unificar O Movimento Esprita Brasileiro, sob a direo da

FEB;

d) O interesse em combater nos centros espritas as prticas consideradas

supersticiosas pelas lideranas espritas;

e) A consolidao da liderana da FEB frente do Movimento Esprita

Brasileiro;

f) Afirmao do espiritismo como sendo efetivamente uma doutrina com um

trplice aspecto: cincia, filosofia e religio;

g) Consolidao da viso segundo a qual o espiritismo brasileiro representa o

cristianismo redivivo, transplantado para o Brasil segundo o planejamento

da espiritualidade;

h) Afirmao da ideia segundo a qual Allan Kardec o codificador do

espiritismo e no o seu criador ou fundador.

Com vistas a comprovar a referida tese, em minha pesquisa busquei

compreender o processo histrico de constituio e implantao nacional do Estudo

Sistematizado da Doutrina Esprita, bem como o seu significado e esfera de

influncia para os espritas, partindo de um horizonte cultural, isto , que privilegia o

papel das representaes na criao, manuteno e recriao do universo social.

Nesse sentido, procurei alcanar os seguintes objetivos especficos:

1) Historiar o processo de surgimento do espiritismo na Europa, buscando

compreender o cenrio cultural que possibilitou o seu aparecimento, bem

como os dilogos que a doutrina esprita manteve com outras doutrinas e

movimentos sociais e culturais de sua poca, com os quais compartilhou

ideais e tambm divergiu em relao a vrios temas;

2) Compreender os aspectos ideolgico-educacionais e culturais presentes na

doutrina esprita no que diz respeito sua proposta filosfica;

38

3) Delinear um esboo histrico sobre a chegada das ideias espritas no Brasil,

sua receptividade, aceitao e contextualizao no meio scio-cultural;

4) Historiar as tenses resultantes do processo de insero do espiritismo no

Brasil, bem como as cises que da resultaram;

5) Entender o processo de formao da Federao Esprita Brasileira e de sua

legitimao frente ao Movimento Esprita Brasileiro, como entidade

representativa e coordenadora desse movimento;

6) Historiar o processo de constituio do ESDE e dos programas de estudo

doutrinrio que o antecederam;

7) Evidenciar e analisar as representaes relativas ao espiritismo e ao

Movimento Esprita Brasileiro contidas no ESDE, bem como o seu significado

e influncia na definio de uma identidade esprita no Brasil;

8) Compreender a importncia do ESDE como instrumento de unificao para o

Movimento Esprita Brasileiro.

2.3 O referencial terico-metodolgico

2.3.1 Uma breve reviso bibliogrfica

Os antroplogos franceses Aubre e Laplantine (2009) realizaram o seu

importante estudo sobre o espiritismo no final da dcada de 1980. Nele os autores

manifestam a sua admirao diante da pouqussima quantidade de estudos

cientficos realizados a respeito da trajetria e presena dessa doutrina no Brasil:

Interessa aqui observar que ficamos impressionados, ao comear este trabalho com o fato de existir, no domnio das cincias humanas, apenas um nmero nfimo de estudos acerca desse universo simblico particular. [...] Ora, as religies em geral so muito estudadas tanto pelos antroplogos quanto pelos socilogos brasileiros; por que o espiritismo no se beneficia do mesmo interesse? Fizemos a pergunta a alguns de nossos colegas e a resposta quase geral, meio risonha, meio acanhada, foi Mexe comigo! (AUBRE; LAPLANTINE, 2009, p. 238).

Do final da dcada de 1980 at hoje essa realidade mudou muito pouco.

Apesar de o espiritismo ter uma forte presena na sociedade brasileira, a ponto de

39

influenciar, inclusive, os meios de comunicao32, ainda temos relativamente poucos

estudos acadmicos realizados sobre o tema, quando os comparamos s pesquisas

que versam sobre outros universos religiosos.

Contudo, por meio de um levantamento detalhado possvel elencar um

conjunto de importantes trabalhos lanados sobre o espiritismo no Brasil e na

Europa desde o seu surgimento em 1857, capazes de servir como referencial para

compreender o campo religioso esprita no Brasil, suas particularidades e tenses. A

exemplo do que j fiz em minha dissertao de mestrado33, divido essas obras em

dois campos bsicos: a literatura engajada e a literatura acadmica.

Por literatura engajada entendo as obras de teor histrico e analtico sobre o

espiritismo, produzidas com o objetivo de condenar ou de defender essa doutrina,

alm daquelas que discutem o seu carter. Para tanto, traam o seu percurso

histrico e fazem uma anlise do seu contedo doutrinrio.

Nesse campo destacam-se os livros do Frei Boaventura Kloppenburg (1957a;

1957b; 1960; 1961; 1986, 1997; 1999), atravs dos quais esse sacerdote catlico

procura combater a doutrina esprita, cujo desenvolvimento, no momento histrico

em que ele comeou a escrever sobre o tema, j preocupava as autoridades

catlicas. So eles: Por que a Igreja condenou o Espiritismo; Material para

Instrues sobre a Heresia Esprita; Espiritismo no Brasil: orientao para os

catlicos; O Reencarnacionismo no Brasil; Espiritismo e F; Espiritismo:

Orientao para os catlicos34 e Reencarnao?.

As referidas obras foram escritas ao longo de cinco dcadas e nelas o seu

autor confronta incessantemente o espiritismo com a doutrina catlica, com vistas a

comprovar que a doutrina esprita est em desacordo com os ensinamentos bblicos,

aceitos como verdade incontestvel pela Igreja. Ao dedicar-se a essa tarefa, frei

Boaventura traa o percurso histrico do espiritismo na Europa e no Brasil,

32

Atualmente so vrias as novelas e filmes que abordam essa temtica. Recentemente os filmes Chico Xavier e Nosso Lar estrearam no cinema brasileiro com estrondoso sucesso, batendo recordes de bilheteria. Este ltimo figura, inclusive, como a mais cara produo nacional. Para maiores detalhes ver: . Acesso em 10 de abril de 2013. 33

Ver: GIL, Marcelo Freitas. O Movimento esprita Pelotense e suas razes scio-histricas e culturais. Franca: UNIFRAN, 2011.

34 Embora as denominaes sejam semelhantes, no se deve confundir as obras Espiritismo no

Brasil: orientao para os catlicos e Espiritismo: orientao para os catlicos. O primeiro livro bem mais complexo e aborda uma srie de temas que no so tratados no segundo.

40

evidenciando particularidades a esse respeito, principalmente no que se refere s

tenses ocasionadas no campo religioso brasileiro com a insero da doutrina

esprita em nossa sociedade.

Diverso o contedo de outra importante obra, o livro Os segredos do

espiritismo, do padre Jlio Maria de Lombaerde (1938 [1931]). Nele o autor busca

deslegitimar o espiritismo como sistema de crenas, lanando mo de toda uma

literatura psiquitrica, com base principalmente nos trabalhos de Charcot35. Ao fazer

isso, o sacerdote nos d ideia clara das representaes construdas a respeito do

espiritismo entre aqueles que o relacionavam com a loucura nas primeiras dcadas

do sculo XX. Nesse sentido, com um contedo muito semelhante, temos o livro O

Espiritismo no Brasil: contribuio ao seu estudo clnico e mdico-legal, dos

professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Leondio Ribeiro e Murillo

de Campos (1931).

Em um lado oposto, mas dentro do mesmo campo, podemos citar a obra

paradigmtica intitulada Histria do Espiritismo, de Arthur Conan Doyle36 (1998).

Aqui importante esclarecer que a obra de Conan Doyle chama-se, na verdade,

Histria do Moderno Espiritualismo. No Brasil o livro foi traduzido por Histria do

Espiritismo. De acordo com o pensamento original do autor, o moderno

espiritualismo um movimento mais amplo em que o espiritismo est includo e que

ser abordado no prximo captulo deste trabalho.

Alis, em lngua inglesa, o movimento aludido muito mais conhecido com a

denominao dada por Doyle (moderno espiritualismo), sendo o termo espiritismo

muito pouco usado e mesmo conhecido. Conan Doyle (1996) igualmente contribui

com o livro A Nova Revelao, em que, do mesmo modo, aborda o movimento

espiritualista no qual a doutrina esprita est inclusa.

Obras de autores brasileiros tambm trazem grandes contribuies nesse

campo, como os livros de autoria de Zeus Wantuil (1976;1978), Grandes espritas

35

Jean-Martin Charcot (1825 - 1893), cientista francs nascido em Paris e falecido em Morvan, Frana. Alcanou fama no terreno da psiquiatria na Frana e em todo o mundo, na segunda metade do sculo XIX, principalmente por seus estudos em torno do hipnotismo e da histeria. Foi professor de Freud e influenciou no apenas a sua formao, mas tambm a sua produo intelectual.

36 Apenas a ttulo de registro creio que importante mencionar que Arthur Conan Doyle (1859

1930), historiador e importante propagandista esprita do final do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX, foi tambm o criador do personagem Sherlock Holmes, das famosas histrias policiais que escreveu.

41

do Brasil e As mesas girantes e o Espiritismo, alm de seu livro em parceria com

Francisco Thiesen (Wantuil; Thiesen, 1999), que se trata de uma extensa biografia

do organizador da doutrina esprita, em trs volumes, denominada Allan Kardec: o

educador e o codificador. Da mesma forma temos o livro de Jlio Abreu Filho

(1996), Biografia de Allan Kardec e a obra Bezerra de Menezes: subsdios para a

histria do Espiritismo no Brasil at o ano de 1895, que foi escrita por Slvio Canuto

Abreu (2008 [1950]). Este ltimo livro de suma importncia para o entendimento

acerca dos primrdios do movimento esprita no Brasil, pois o seu autor conheceu

pessoalmente muitas das principais lideranas espritas do final do sculo XIX e