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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VILSON PEDRO NERY
FRONTEIRAS MERCOSULINAS: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA
LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES DO MERCOSUL
CUIABÁ-MT
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VILSON PEDRO NERY
FRONTEIRAS MERCOSULINAS: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA
LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES DO MERCOSUL
CUIABÁ-MT
2017
VILSON PEDRO NERY
FRONTEIRAS MERCOSULINAS: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA
LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES DO MERCOSUL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Educação na
Área de Concentração Educação, Linha de
Pesquisa Movimentos Sociais, Política e
Educação Popular.
Orientador: Professor Doutor Darci Secchi
CUIABÁ-MT
2017
RESUMO
A presente pesquisa tem por objeto estudar a educação escolar indígena em 7
países da América do Sul que se ligam por meio do Tratado do Mercosul,
verificar quais as normas escritas sobre esta política pública e desvendar o seu
alcance. A escolha dos países investigados teve por filtro a prévia existência de
laços culturais entre naçõesmercosulinas de modo a facilitar o estudo sobre os
textos das constituições e das leis gerais de educação. Foram buscadas as
expressões educação, indígena, bilíngue e educação indígena nos textos
normativos e interpretadas com base em regras de hermenêutica. Por medida de
adequação, primeiramente a pesquisa mostra o processo histórico de formação
das fronteiras geográficas e jurídicas entre as nações do subcontinente sul-
americano. Em seguida a própria elaboração e vigência do Tratado é objeto de
estudo, inclusive a sua importância do ponto de vista econômico e político. Para
limitar as investigações ao objeto “educação escolar indígena”, foram
selecionadas as palavras-chave referenciadas e suas localizações nos textos da
Constituição Federal e na respectiva Lei Geral de Educação da Argentina, Brasil,
Bolívia, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. O caminho da investigação
começa pela escolha das fontes de informação, e em obediência à forma foram
realizadas as pesquisas documental e bibliográfica. A fonte primária consiste na
análise da documentação oficial disponibilizada pelos órgãos dos governos e do
Mercosul sobre este Tratado, e também sobre as normas legais e constitucionais
pertinentes. Entre as fontes utilizadas estão os portais oficiais dos países
mercosulinos, dos parlamentos inclusive, e o “site” oficial do Mercosul
disponibilizados na rede mundial de computadores. Como fonte secundária, a
investigação bibliográfica se baseou em autores da etnografia, educação e
história. Foram colhidas as informações mais recentes disponíveis na academia
sobre a temática indígena. Nas três partes da pesquisa se busca apreender os
múltiplos conceitos de fronteiras, para entender os limites territoriais entre os
países e o processo de criação do Mercosul. Por fim conclui-se a existência de
base legal que permite a inserção dos povos indígenas na discussão sobre o
Mercosul, o que representa impacto na consolidação desta união de nações,
passando de um conjunto de interesses predominantemente econômicos para a
ressignificação das fronteiras territoriais.
Palavras chave: Mercosul. Indígena. Educação escolar.
ABSTRACT
The present study aims to study indigenous school education in 7 South
American countries that are linked through the Mercosur Treaty, to verify the
written norms about this public policy and to unveil its scope. The choice of the
countries investigated had the effect of filtering the prior existence of cultural ties
between Mercosuran nations in order to facilitate the study of the texts of
constitutions and general laws of education. The expressions education,
indigenous, bilingual and indigenous education were sought in normative texts
and interpreted based on rules of hermeneutics. As a measure of adequacy, the
research first shows the historical process of formation of the geographical and
juridical borders between the nations of the South American subcontinent.
Afterwards the very elaboration and validity of the Treaty is object of study,
including its importance from the economic and political point of view. In order
to limit research on the subject of "indigenous school education", the keywords
referenced and their locations in the texts of the Federal Constitution and in the
respective General Education Law of Argentina, Brazil, Bolivia, Paraguay, Peru,
Uruguay and Venezuela were selected. The way of the investigation begins with
the choice of sources of information, and in obedience to the form the
documentary and bibliographic researches were carried out. The primary source
is the analysis of the official documentation made available by the governments
and Mercosur bodies on this Treaty, as well as on the relevant legal and
constitutional rules. Among the sources used are the official portals of Mercosur
countries, including parliaments, and the official Mercosur website available on
the World Wide Web. As a secondary source, bibliographical research was based
on authors of ethnography, education, and history. The most recent information
available at the academy on indigenous issues was collected. In the three parts of
the research it is sought to understand the multiple concepts of borders, to
understand the territorial boundaries between the countries and the process of
creation of Mercosur. Finally, it is concluded that there is a legal basis that
allows the insertion of indigenous peoples in the discussion about Mercosur,
which has an impact on the consolidation of this union of nations, moving from a
set of predominantly economic interests to the re-signification of territorial
borders.
Keywords: Mercosur. Indigenous. Schooling.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I ....................................................................................................................................... 18
A CONFIGURAÇÃO DA FRONTEIRA OESTE BRASILEIRA E A COLONIALIDADE....... 18
Fronteiras: diversidade de significações.............................................................................. 28
A formação das fronteiras nos países do Mercosul ............................................................ 33
O TRATADO DO MERCOSUL ........................................................................................................ 53
Principais blocos econômicos em atividade......................................................................... 58
Os avanços do Mercosul ....................................................................................................... 64
NORMAS SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NOS PAÍSES
MERCOSULINOS .............................................................................................................................. 70
O indígena no Direito brasileiro .......................................................................................... 92
Estatuto do Índio ............................................................................................................... 99
Movimento Indígena ........................................................................................................... 100
A educação escolar indígena como estratégia de integração do Mercosul ..................... 102
A luta educacional dos Chiquitano, Terena e Kaiowa nos espaços fronteiriços ........ 103
Educação escolar indígena em Mato Grosso .................................................................... 109
CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 114
BILBIOGRAFIA ............................................................................................................................... 121
FONTES LEGISLATIVAS .............................................................................................................. 125
7
INTRODUÇÃO
Aceitar o desafio de desenvolver uma pesquisa que possui um objeto desta
magnitude é a submissão ao enfrentamento de um longo e tortuoso caminho, uma
vez que a temática exige percorrer roteiros com mudanças diárias, afetadas por
uma série de movimentos e jogos de poder do processo político e do embate
entre forças que se opõem de modo permanente. Buscamos aqui pesquisar sobre
as normas do sistema educacional destinadas aos povos indígenas pelos sistemas
jurídicos adotados por alguns dos países da América do Sul, subcontinente sob
constante tensão política. Como reflexo natural, as mudanças nos rumos das
gestões são efeitos das lutas partidárias e isso repercute na ordem jurídica. Tais
mudanças provocam alterações das opções sobre políticas públicas, inclusive
aquelas aplicadas à educação escolar indígena, objeto de nossa investigação.
O passo inicial foi compreender a configuração das fronteiras entre os
países do subcontinente sul americano, fenômeno que se desenrola ao longo do
tempo e que parece não ter sido pacífico. As fronteiras resultam de invasões,
ocupações, acordos, aquisições onerosas, entre tantas outras formas e causas, e
neste trabalho queremos demonstrar que também ocorre um roteiro inverso: a
aglutinação de países em blocos, resultante de interesses capitalistas comuns e
que levam à formação de tratados multilaterais.
Utilizaremos o termo “mercosulino”1 ao longo da pesquisa quando nos
referirmos aos sete países partícipes ao Tratado do Mercosul que selecionamos
para a nossa investigação por razões de proximidade fronteiriça: Argentina,
Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
Por fronteira mercosulina compreendemos os limites territoriais existentes
entre os países do subcontinente sul americano, juridicamente consolidadas ao
longo da linha do tempo, seja pelo processo de colonização intitulado
1 A palavra mercosulino foi utilizada pelo pesquisador Augusto Assad Luppi Ballalai em dissertação de Mestrado em Cooperação Judiciária Internacional pela UNISINOS/RS em 2012 (Concretizando direitos: a cooperação judicial internacional no cumprimento das cartas rogatórias no Mercosul). Aqui o termo possui o mesmo sentido.
8
“descobrimento”, seja pelas conquistas bélicas ou mesmo de acordo bilateral
celebrado entre as nações. De acordo com informações disponibilizadas no portal
do Mercado Comum do Sul, ou Mercosul, o acordo inicial envolvia apenas
quatro países: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que subscrevem o Tratado
de Assunção, em 26 de março de 1991, visando criar o Mercado Comum do Sul
(Mercosul)2.
Metodologicamente delimitamos a nossa pesquisa com a busca objetiva de
expressões existentes nas leis gerais da Educação e na Constituição dos sete
países signatários do acordo, e a presença - ou não -, de palavras-chave que
permitiriam deduzir as intenções dos legisladores acerca da educação escolar
indígena.
Uma breve avaliação sobre os documentos que embasam a criação do
Mercosul, conforme demonstrado nas publicações oficiais, não dão margem à
interpretação diversa. O objetivo primordial do Tratado de Assunção3 é a
integração dos Estados Partes por meio da livre circulação de bens, serviços e
fatores produtivos, do estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC), da
adoção de uma política comercial comum, da coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais, e da harmonização de legislações nas áreas
pertinentes.
Sendo assim, é possível crer que os objetivos dos países mercosulinos ao
configurar o tratado teriam como pano de fundo apenas atender aos interesses
capitalistas? Estaria, atualmente, ocorrendo um processo similar ao adotado por
Portugal e Espanha quando da ocupação do continente pelo modelo colonial?
Legalmente existem duas categorias jurídicas de países no Tratado do
Mercosul: os Estados Parte4, caso da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai,
nações que instituíram o tratado desde 26 de março de 1991; e Estados
Associados, aí compreendidas as nações que ingressaram no Mercosul após
aquela data, como a Venezuela (em 12 de agosto de 2012) e a Bolívia (desde 7 de
2 Disponível em: < http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 01 de out. de 2017. 3 Outra designação do Tratado do Mercosul. 4 Estados Parte são os países que pioneiramente assinaram o Tratado do Mercosul. As nações aderentes são tratadas como Estados Associados.
9
dezembro de 2012). Além dos países mencionados, também possuem o status de
Estado Associado o Chile (desde 1996), Peru (desde 2003), Colômbia e Equador
(desde 2004), Guiana e Suriname (desde 2013).
Uma pesquisa sobre como a educação escolar indígena se insere no
ordenamento jurídico de diversos países é uma tarefa que exige perseverança,
uma vez que a sucessão de governos provoca alterações constantes nas
legislações, exigindo atualização permanente das informações sobre os rumos do
acordo multilateral do Mercosul.
Em regra, os valores morais e as crenças espirituais dos povos indígenas
são bem diferentes daqueles defendidos pelos colonizadores. Isso pode explicar,
em muitos casos, o mal disfarçado desprezo destes últimos em relação aos povos
que habitavam primitivamente o continente. As diversas sociedades autóctones
que habitavam a América do Sul raramente foram sujeitos de direito durante o
processo de colonização. Ao contrário, se tornaram objeto do direito, cujo
principal interesse foi o de usurpar suas terras e riquezas minerais. Talvez resida
aí o motivo de terem desconsiderado totalmente a composição dos povos
indígenas quando da definição das fronteiras nacionais. Os países mercosulinos
se constituíram como unidades independentes por critérios de ordem econômica,
política e até topográfica, mas deixaram de considerar a sociodiversidade nativa
existente. Atualmente, só na fronteira Oeste-Norte brasileira existe quase uma
dezena de povos indígenas segmentados (unidos ou separados?) que habitam a
faixa de fronteira de dois ou mais países.
Outro fator limitador da sustentação do Mercosul é o de natureza política.
Quando os países decidiram pela formação de blocos para a defesa coletiva de
interesses que lhes são comuns, ocorreu um fenômeno que representou a perda
parcial de autonomia política e administrativa. As regras, as decisões e as
eventuais punições por violação a regulamentos que constam do Acordo
celebrado, sofrem os efeitos das mudanças dos governantes, que devem ser
eleitos de forma direta e secreta e com duração de mandatos pré-estabelecidos.
Num passado recente, o Paraguai foi suspenso do Mercosul por ter
cassado sumariamente o mandato de um presidente eleito de forma legítima, o
10
que teria violado a cláusula democrática5. Porém, um processo similar de quebra
de regras ocorreu no Brasil em 2016 e não se tem notícia de que o nosso país
tenha sido objeto de alguma sanção. Diante disso, podemos deduzir que nem
todos os interesses envolvidos nas tomadas das decisões são conhecidos, ou que
os aspectos políticos e ideológicos estejam marcadamente presentes nas decisões
adotadas.
O processo histórico de ocupação europeia do território da América do Sul
não deixou registros indicando que os povos indígenas tenham merecido
destaque nas decisões sobre a organização política dos países. Mas ao definir as
políticas de ocupação do chamado “Novo Mundo” as potências coloniais
optaram por buscar o apoio religioso para fomentar a escolarização,
evangelização e pacificação dos povos indígenas. Mas essa educação teria como
enfoque o respeito às culturas, tradições, religiosidade e interesses dos povos
colonizados? Ao formular a política escolar indígena, os religiosos mantiveram o
respeito à língua e às crenças espirituais dos povos? A história mostra que em
ambos os casos os ideários educacionais desconsideravam as culturas locais e
impunham um ementário assimilacionista.
Como nosso objeto da pesquisa é a educação escolar indígena no
Mercosul, a pergunta que advém, inevitavelmente, é: haveria base jurídica
permitindo a execução de políticas conjuntas de educação escolar indígena?
Como a resposta é negativa, dela deriva outra questão: pode o Mercosul se
consolidar como acordo multilateral sem a participação do contingente
populacional indígena no processo decisório?
Para responder a essa questão, vamos investigar quais são as propostas dos
países sul americanos para os programas de educação destinadas aos povos
indígenas, e por meio de fontes documentais, identificar a preocupação com os
povos indígenas que vivem nos respectivos países mercosulinos.
5O presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi destituído do cargo em 22 de junho de 2012, no contexto de uma crise político-institucional que resultou no impeachment do presidente e no isolamento político do Paraguai no relacionamento com a maioria das nações latino-americanas.
11
Uma linha de investigação para tal desafio seria o de identificar a presença
e o protagonismo indígenas neste processo, bem como na consolidação das leis
nacionais e no tratado mercosulino.
Para iniciar a abordagem, citaremos Ângelo (2009) para categorizar o que
se entende por protagonismo indígena. Para a autora,
Entende-se por protagonismo indígena a capacidade crescente
dessas sociedades estabelecerem relações dialógicas com a
sociedade nacional e de exercerem o controle do seu projeto de
vida no presente e no futuro. (ÂNGELO, 2009, p.15).
Como se percebe, o protagonismo remete a uma capacidade crescente de
estabelecer relações e de exercer o controle dos projetos de seu interesse.
Trazidos esses parâmetros para o interior do Mercosul, verifica-se que tal
capacidade é ainda muito incipiente (para não dizer inexistente), quer pela
ausência de representantes indígenas com assento nas decisões, quer pelos temas
prioritários lá discutidos (mormente relacionados ao mercado).
Os estudos de Geertz (2008) nos permitem observar a existência das teias
de relações entre os indivíduos e povos, e nesta última categoria estariam os
países juridicamente constituídos enquanto nações independentes e autônomas,
bem como os povos indígenas, que possuem traços e interesses próprios. No
estabelecimento histórico das fronteiras nacionais os povos indígenas não foram
consultados. A mesma sistemática ocorreu na definição dos marcos do Mercosul,
que desconsiderou os pleitos dos povos indígenas e ignorou sua presença como
um segmento social, econômico e cultural legítimo e qualificado. Mais uma vez,
o protagonista não foi verificado nem, tampouco, requerido.
Como já foi mencionado inicialmente, o nosso objeto de investigação é a
educação escolar indígena, e como os países mercosulinos abordam a questão
dentro de suas normas positivadas. Para tanto, abordaremos as noções de
educação indígena ou escola indígena a partir de experiências identificadas nos
processos educacionais tratados pela bibliografia disponível, especialmente de
natureza acadêmica.
12
As refletir sobre a temática indígena, Secchi (2009) dialoga com o
professor Antônio Brand para propor um perfil tipológico das escolas indígenas
bastante complexo, ancorado em três eixos. O primeiro é o que trata de escola
dirigida para a emergência do outro, que percebe os indígenas como povos de
tradições culturais e projetos societários próprios. Outro aspecto se refere à
autonomia, e cita a possibilidade da organização escolar própria. Por fim,
descreve a escola indígena como um centro de irradiação e de quebra do silêncio
histórico, mais presente nas escolas do “indigenismo alternativo”6.
Foi necessário conhecer a cultura dos povos indígenas e seus processos
educacionais, a partir de seus próprios standards, da sua compreensão de mundo
e da terra, para entender o embate destes conhecimentos tradicionais com a
imposição das políticas educacionais que não respeitam a interculturalidade. Ao
avançar sobre as terras indígenas e depois impor uma educação escolar feita sem
a oitiva do interessado não foram geradas boas experiências.
O choque seria inevitável em face da espécie de processo jurídico e
histórico de formação das fronteiras das nações, o colonizador exteriorizava o
interesse capitalista de acumulação e encontrou uma imensidão de terras
ricamente composta de florestas e minérios em abundância. Entender o objeto da
pesquisa, a educação escolar indígena e como os países a regulamentam em suas
normas domésticas impõem investigação das normas jurídicas sobre o tema,
existentes nos sistemas normativos de 7 países mercosulinos: Argentina, Bolívia,
Brasil, Peru, Paraguai, Venezuela e Uruguai.
Todas essas nações têm em comum a preocupação com a educação e a
interculturalidade, em maior ou menor extensão, de modo que previram em suas
constituições e nas regras da política educacional o sistema de proteção aos
povos indígenas, zelando pelo respeito de suas terras, cultura, tradições.
Almejando dar efetividade às normas, instituíram a educação bilíngue como uma
das modalidades de ensino destinado aos povos indígenas. São países com
ligações fronteiriças e que sofreram igualmente o processo histórico de avanço
6 A noção é devidamente tratada por Solange Pereira da Silva (2009) ao discutir as diversas iniciativas
indigenistas desenvolvidas no Brasil nas últimas décadas.
13
sobre as suas fronteiras, quando os “civilizados” se apoderaram de terras
indígenas, e tais territórios foram “divididos” entre os conquistadores. Como já
dissemos, o processo denominado “descobrimento” segmentou as populações
desses territórios, que agora integram mais de um país mercosulino. É o que
ocorre, por exemplo, na atualidade com os Chiquitano no Brasil a Bolívia e com
os Guarani no Brasil, Bolívia e Paraguai, com todas as implicações políticas,
culturais e sociais.
O povo Chiquitano habita a Bolívia e possui parentes no Brasil; os
Guarani estão presentes na Argentina, Brasil e Paraguai. Os diferentes países
instituíram seus instrumentos educacionais contendo diversas previsões comuns,
com fundamentos legais similares que asseguram a interculturalidade e a
organização primitiva dos povos indígenas. Mas a educação escolar indígena
posta em prática nos países mercosulinos estaria respeitando a interculturalidade?
As normas escritas são efetivas? A educação formal é educação indígena ou
educação para indígenas?
Sobre a educação indígena eis a lição de Melià (1979)
A educação, como processo, deve ser pensada como a maneira
pela qual os membros de uma dada sociedade socializam as
novas gerações, objetivando a continuidade dos valores e
instituições consideradas fundamentais. As sociedades tribais
possuem maneiras específicas para socializar seus membros
jovens, dentro dos padrões da cultura tradicional. A
diferenciação básica entre os procedimentos utilizados pelas
sociedades tribais e uma sociedade nacional qualquer, em
tempos do presente, está na não formação dos sistemas de
socialização tribais. Não há, assim, escolarização formal entre os
indígenas, em termos das culturas tradicionais. (MELIÀ, 1979,
p. 11).
Segundo esse mesmo autor, a educação pode dar-se sem alfabetização, e
esta nem sempre garante uma boa educação. Durante séculos diversas sociedades
se educaram sem recorrer à alfabetização, conseguindo transmitir conhecimentos
orais, mantendo uma rica herança cultural. Todavia, para algumas sociedades
indígenas, imediatamente após o contato com a chamada sociedade nacional
emergiu a “necessidade” da alfabetização.
14
A nossa investigação vincula-se mais à educação escolar indígena por
alguns motivos, dentre os quais pelo fato que o processo de integração do
Mercosul vem sendo tratado como uma forma de facilitar as relações capitalistas
de acumulação, sem levar em contas as culturas presentes nos territórios. Com
relação aos povos indígenas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
através da Convenção nº 169, internalizada no sistema jurídico de nosso país
(BRASIL, Decreto nº 5051, de 19 de abr. de 2004), definiu que essa parcela da
população deve ser ouvida nas políticas que afetem seus interesses. Há um
dispositivo específico, previsto no art. 327, dizendo que as populações indígenas
fronteiriças merecem a facilitação de contatos com os seus parentes através das
fronteiras.
O próprio instrumento de criação do Mercosul prevê que uma das formas
de facilitar a congregação entre os países mercosulinos seria a produção de leis
de conteúdo comum. A pesquisa revelou os 7 países investigados respeitam a
Convenção OIT nº 169 em grande parte, e reproduzem internamente algumas
dessas normas, o que, em tese facilitaria a integração do Mercosul com os povos
indígenas. Estariam demonstradas nos sistema normativo doméstico dos países
investigados as evidências de que a educação dos povos indígenas teriaatributos
de preocupação institucional?
Ao decidir pesquisar o processo de criação do Mercosul para entender a
educação escolar indígena e o protagonismo dos povos autóctones na produção
das diversas políticas a eles destinadas, iniciamos as investigações com o uso das
fontes primárias. Os documentos elaborados pelo Mercosul respeitariam as
opções feitas por esses países quanto à questão da educação escolar destinada aos
povos indígenas, observando suas culturas, religiosidade, mitos e línguas?
As informações acerca do Mercosul podem ser acessadas por um portal na
internet, em três idiomas: português, espanhol e guarani, e ali são
disponibilizados todos os seus documentos oficiais, a partir das atas de reuniões,
locus onde publica suas decisões internas e as normas dos países participantes do
7Os governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive mediante acordos internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio ambiente.
15
Tratado. Com relação às regras educacionais, pesquisamos os portais dos
ministérios da educação e dos parlamentos dos países mercosulinos, tendo o
cuidado para utilizar sempre a versão mais recente das leis, para dar atualidade
aos dados.
Além do uso da fonte documental, a pesquisa bibliográfica também foi
utilizada nos trabalhos, uma vez que a produção da academia oferece algumas
investigações já realizadas, e que colaboram com a conclusão buscada neste
arrazoado escrito. Neste particular há a contribuição da tese de doutoramento em
Antropologia de Pacini (2012) em que são investigados os povos da Chiquitania,
e a dissertação de mestrado de autoria de Soares (2003) que revelou a tentativa
de anexação do território Chiquitano ao Governo Provisório de Mato Grosso.
No primeiro capítulo fazemos uma interpretação histórica do processo de
criação de fronteiras na América do Sul a partir do Tratado de Tordesilhas, o
acordo bilateral celebrado entre Portugal e Espanha com mediação da Igreja
Católica, e a evolução desse processo acumulativo até os dias atuais.
Consultamos os documentos oficiais disponibilizados nos portais públicos da
rede mundial de computadores, realizamos a pesquisa bibliografia sobre a
temática e consultamos as produções já existentes na academia, visando entender
o grau de colonialidade no processo de definição dessas fronteiras.
No segundo capítulo apresentamos o processo de idealização e
concretização do Mercosul, fato jurídico ocorrido em 1991, e que tinha
inicialmente como objetivo principal a livre circulação de mercadorias e a
autonomia dos mercados, o que demonstra a necessidade de dirigir parte de nosso
estudo com visão marxista, ainda que as teias de relacionamentos se
sobreponham aos interesses meramente econômicos. As teias de países que se
formam em torno de determinados interesses é uma tendência de auto
preservação e tolerância, e as regras do Mercosul seguiram esse movimento
global.
Por fim, apresentamos no terceiro capítulo as normas sobre o processo
educacional destinado às populações indígenas existentes nas legislações de sete
países do Mercosul: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru, Venezuela e
16
Uruguai. Buscamos algumas palavras chave, como educação, bilíngue e
indígena, e com elas construímos um processo de busca, combinando os termos.
Deste modo foi possível interpretar quantitativamente e qualitativamente o
interesse dos governos mercosulinos pelo tema da educação escolar indígena,
uma vez que as leis não possuem palavras inúteis, todas elas possuem algum
significado e isso vai refletir de algum modo na vida dos destinatários dessas
normas.
Investigamos cada Constituição mercosulina visando identificar os
objetivos políticos dessas sete nações para o tema da educação, com o recorte da
política pública para os povos indígenas, sempre considerando os reflexos das
relações entre o Mercosul e o protagonismo indígena. A pesquisa é quantitativa8
porque são selecionadas palavras-chave nos textos das normas positivadas, e com
o uso de regras de hermenêutica queremos entender este conteúdo, e identificar a
intencionalidade quanto à educação escolar indígena.
Utilizamos uma abordagem qualitativa quando nos propomos a interpretar
os textos normativos que veiculam as palavras educação, indígena, bilíngue, e a
locução educação indígena. Conforme já mencionado, para essa tarefa,
utilizamos fontes oficiais que são os portais dos governos que veiculam os textos
das constituições e das leis educacionais, além do portal do Mercosul em língua
portuguesa disponível na internet9.
Todos os países pesquisados mantêm portais oficiais de seus respectivos
ministérios da educação, além dos portais legislativos dos parlamentos. De
acordo com as normas, os portais são considerados fontes primárias para a
pesquisa sobre normas legais.
A conclusão do trabalho pretende oferecer uma resposta satisfatória à
pergunta que move a pesquisa: é possível alcançar a integração plena dos países
por meio dos instrumentos pensados pelo Mercosul sem a presença e participação
indígena neste processo?
8 Utilizamos as teclas de atalho (Control + L) disponível no ambiente Office 2016 do sistema Operacional Windows 10 para selecionar as palavras-chave da pesquisa nos arquivos aberto no editor de texto. Para a busca nos arquivos em formato PDF as teclas de atalho são Ctrl+F. 9http://www.mercosul.gov.br/ na versão em língua portuguesa.
17
Estas são, em linhas gerais, as temáticas que nos propusemos a abordar no
presente estudo, retratando dentro das possibilidades do objeto, o espaço político
ocupado pela população ameríndia.
18
CAPÍTULO I
A CONFIGURAÇÃO DA FRONTEIRA OESTE BRASILEIRA E A
COLONIALIDADE.
É de notório conhecimento que a formação das fronteiras do continente
americano nasceu da disputa entre os reinos de Portugal e Espanha. O documento
mais contundente que procurou equacionar essa querela foi o Tratado de
Tordesilhas10 que veio a pacificar um litígio que remontava a décadas.
Neste capítulo inicial vamos discorrer sobre aspectos da geografia e da
política e sua ressignificação no processo de configuração das fronteiras
mercosulinas. Iniciaremos selecionando uma decisão tomada ainda no século
XIV, como acordo bilateral mediado pelo Papa Alexandre VI, que versava sobre
as terras ultramarinas e que parametrizava a fronteira oeste brasileira.11
Ainda que a maior parte do capítulo seja dedicada a tratar do processo de
formação as fronteiras entre os países mercosulinos, em alguns momentos são
necessárias imersões sobre as organizações indígenas e as ameaças à integridade
10 Considerado ajuste bilateral, o Tratado de Tordesilhas foi assinado na povoação castelhana de Tordesilhas em 7/06/1494, e foi um acordo celebrado entre os monarcas de Portugal e Espanha visando dividir as terras "descobertas e por descobrir" por ambas as Coroas fora da Europa, no chamado “Novo Mundo”. Em 1493, após ouvir os relatos de Cristóvão Colombo, os monarcas espanhóis Fernando e Isabel procuraram o apoio papal para garantir suas posses territoriais no Novo Mundo. Eles pretendiam inibir os portugueses e outros possíveis rivais. Em 1493, o papa Alexandre VI (que era espanhol) determinou a demarcação de uma linha que se localizaria 100 léguas (cerca de 885 quilômetros) a oeste de Cabo Verde. As expedições portuguesas deveriam manter-se a leste dessa linha. [...]O rei dom João II de Portugal também ficou insatisfeito com a decisão do papa Alexandre VI, não só porque os direitos de Portugal no Novo Mundo não haviam sido suficientemente afirmados, mas porque os navegantes portugueses não teriam espaço suficiente no mar para suas viagens à África. Para resolver esse conflito, embaixadores espanhóis e portugueses se encontraram na vila de Tordesilhas, na Espanha, em 1494. Um novo acordo foi assinado e a linha foi movida, passando a localizar-se 370 léguas (1.900 quilômetros) a oeste de Cabo Verde. Disponível em: < https://escola.britannica.com.br/levels/fundamental/article/Tratado-de-Tordesilhas/574522>. Acesso em 13 de out. 2017 11 Sobre a fronteira oeste do Brasil buscamos as pesquisas pioneiras de Pacini (2012) e Januário (2004),
que tratam, respectivamente do povo Chiquitano e da borda fronteiriça que vai de Cáceres a San
Mathias, ao longo da linha divisória entre Brasil e Bolívia. O primeiro autor pesquisou os Chiquitano que
habitam o território boliviano e, o segundo, enfocou as escolas chiquitanas do município de Cáceres,
Mato Grosso.
19
de seus territórios. A pesquisa é “departamentalizada”, mas o seu objetivo é
único, logo, a redação dos capítulos se interliga.
Quando se fala em colonialidade é natural descrever a forma como se deu
o contato entre os colonizadores e os povos indígenas, descritos como selvagens
incultos, arredios e com tendências à violência. Um traço bastante realista e que
mostra a crueldade evidenciada no processo de ocupação dos territórios
mercosulinos, bem demonstrando a colonialidade eurocêntrica e o desprezo pelas
culturas dos povos indígenas, vem das letras do autor Gilberto Freyre, em “Casa-
grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal”:
De modo que não é o encontro de uma cultura exuberante de
maturidade com outra já adolescente, que aqui se verifica; a
colonização europeia vem surpreender nesta parte da América
quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e
incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o
desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações
americanas. (FREYRE, 2003, p. 158).
Ainda que se questione a autenticidade das informações trazidas pela obra,
principalmente a ideia preconcebida que as mulheres “gentias” eram dadas às
libertinagens e que se entregavam aos europeus em troca de um pente ou caco de
espelho, é possível deduzir que ocorreu uma imposição colonialista com o uso da
força e da dominação. O fato de a colonização ter-se iniciado com o auxílio das
armas e o apoio da Igreja Católica, principalmente pela mediação papal no
Tratado de Tordesilhas, dá uma ideia do grau da submissão dos povos indígenas
aos invasores portugueses e espanhóis, e o uso das instituições como
superestrutura para os ideais capitalistas. Essas informações já oferecem alguma
pista de como se comportaram os colonizadores e os indígenas por ocasião dos
primeiros contatos, estes arredios e temerosos; e aqueles violentos e portadores
de armas letais.
A designação dos espaços territoriais e geográficos como “continentes” ou
um bloco que reúne determinados países, torna mais fácil a compreensão do
20
conceito abstrato de fronteira, pois se trata de linhas imaginárias a separar e a
unir locais e pessoas.
A palavra fronteira apresenta diversas significações e é bastante presente
na vida dos países. Ela engloba tanto as fronteiras materiais quanto as
metafóricas. Pode ser empregada em vários sentidos, desde os limites
geográficos entre países, quanto uma miríade de acepções: fronteira social,
fronteira de classe,fronteira política, fronteira moral, fronteira epistemológica,
fronteira militar, fronteira entre consciente e inconsciente, fronteira linguística,
fronteira ética etc. (Esta última em pleno processo revisacional no Brasil
atual!!!).
A fronteira geográfica é elemento que integra o processo de construção
sócio espacial humano. A história da geografia das fronteiras mostra que a partir
da pacificação do uso deste termo, as noções de fronteira adquiriram significados
diversos e passaram a responder às necessidades temporais e espaciais dos
diversos grupos. Ao longo do tempo o estudo das fronteiras sofreu modificações,
movimentos típicos da ciência, cujo avanço busca permanentes respostas aos
desafios, e que pode resultar em novas ressignificações.
Fronteiras são espaços não plenamente estruturados e, em face disso,
geradores de realidades novas, o que permite admiti-las como sendo
componentes especiais dentro de um determinado território, passíveis de
múltiplas transformações, sofrendo influências econômicas, sociais e culturais.
Há que se considerar também as dimensões ambientais que implicam diretamente
na caça, pesca e exploração de outros recursos naturais, e as alterações antrópicas
decorrentes de processos históricos de uso não planejado desses recursos
naturais, da ocupação espacial e da utilização dos ativos ambientais.
A formação das fronteiras territoriais do Brasil começa no século XV e
decorre das atividades de navegações e descobertas realizadas pelos aventureiros
espanhóis e portugueses. A República Federativa do Brasil, denominação oficial
21
atual de nosso país12, é a maior nação da América do Sul e da região da América
Latina, a quinta maior do mundo em área territorial (equivalente a 47% do
território sul americano) e possui uma população estimada em 206 milhões de
habitantes, segundo informações que consta do banco de dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)13.
Diferente de seus vizinhos, colonizados majoritariamente pela Espanha, o
Brasil é o único país na América onde se fala a língua portuguesa o que o torna o
maior país lusófono do planeta.
No caso da fronteira oeste brasileira, os movimentos humanos que mudam
as fronteiras são reconhecidos por Januário (2004) como instáveis, uma vez que
As fronteiras entre os domínios da coroa portuguesa e espanhola
estabelecidas nos Tratados nunca foram obedecidas na prática –
eram delimitadas, em sua maioria, por linhas imprecisas – os
conquistadores portugueses e espanhóis avançavam esses limites
à revelia dos Tratados, gerando conflitos, desentendimentos
diplomáticos, mortes, conquistas. (JANUÁRIO, 2004, p. 99).
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), organismo da ONU
que lida com as relações de trabalho, a utilização do termo “terras” deve incluir a
noção de territórios e isso abrange a totalidade do habitat das regiões que os
povos ocupam ou utilizam de algum modo.
Para Mazzuoli (2014), a palavra território possui vínculo com o povo:
São povos indígenas os vários grupos étnicos que habitam um
determinado território desde tempos imemoriais, ali se
encontrando milênios antes das invasões ou colonizações, e que
continuaram a se desenvolver de maneira tradicionalmente por
eles conhecida, com suas manifestações culturais e hábitos,
mantendo-se distinto dos outros setores da sociedade que
atualmente vive em tal território. (MAZZUOLI, 2014, p. 242).
Ao tratar da cultura, o autor também é enfático:
No que diz respeito à cultura e ao trato das questões indígenas
em plano internacional, merecem destaque as convenções
12Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos ... (Constituição Federal de 1.988). 13 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/>. Acesso em: 14 de jun. 2017.
22
internacionais do trabalho celebradas sob os auspícios da OIT,
fruto das reivindicações dos movimentos sindicais e operários
no final do século XIX e começo do século XX. Destaque-se
que desde 1919 (primeiro pós-guerra e antes da criação a ONU,
ocorrida em 1945) a OIT já tutelava questões concernentes ao
trabalho e sua proteção. (MAZZUOLI, 2014, p. 244).
Portanto,já temos um elemento político importante para a definição de
fronteira, e corrobora com tal assertiva o fato de que os limites convencionados
entre os países do Mercosul foram objeto de sucessivas disputas, a ponto de
terem sido celebrados tratados internacionais entre o Brasil e as nações vizinhas
para solucionar algumas controvérsias sobre a titularidade do domínio de
determinados territórios. Entre Portugal e Espanha sempre ocorreram conflitos
quanto à posse de terras no subcontinente sul americano, o que veio a ser
solucionado por concessões mútuas em acordos celebrados, e o mais abrangente
daquele assinado no povoado castelhano de Tordesilhas.
De acordo com FERRARI (2011), são muitos os fatores que influenciam
na definição das fronteiras. Dentre eles destacamos: a) existência de áreas
passíveis de ocupação, com recursos naturais ou humanos indispensáveis à
sustentação de atividades econômicas; b) possibilidade de ocupação espacial e
uso dos recursos necessários à produção ou captação de matéria-prima; c) grupos
populacionais humanos sujeitos a viverem, mesmo que por pouco tempo, em
condições insalubres, ante a carência de estruturas e serviços básicos; d)
incentivos políticos para a ocupação “pioneira” ou colonizadora, seja por ação
estatal (incentivos) ou por omissão (“vazios” de ações governamentais que geram
conflitos de uso e ocupação); e) momento histórico e econômico que concorre
para formatação de uma zona de produção em função de um mercado
consumidor.
Esses fatores, por vezes somados, geram as “zonas pioneiras” e também
um conjunto de processos sociais que criam territorialidades em cujos ambientes
as atividades econômicas podem ser as mais diversas, porém podem desencadear
posturas socioculturais muitas vezes degradantes, em que os direitos básicos do
cidadão são tolhidos ou colocados à prova.
23
É certo que as fronteiras do Brasil começam a ser desenhadas bem antes
do ingresso dos europeus aos territórios descobertos. O vínculo de submissão do
Brasil a Portugal foi de 1500 a 1822, e neste período a área de influência
portuguesa espalhou-se por todos os continentes, durando cerca de 6 séculos.
Começou com a conquista de Ceuta, no extremo norte da África, em 1415,
terminando apenas com a devolução de Macau à China, em dezembro de 1999. O
Império detinha supremacia no setor marítimo e grande influência comercial e
constituiu-se rapidamente, em 1517 os portugueses já estavam em Cantão, do
outro lado do mundo, mas também se desfigurou rapidamente. É que durante o
século XVII grande parte das possessões lusitanas passou para o domínio
holandês ou inglês, depois de viver sob controle espanhol durante 60 anos (1580-
1640).
Assim é possível admitir que diversos fatores políticos, jurídicos e sociais
colaboraram para a definição das fronteiras brasileiras, entre eles o Tratado de
Tordesilhas como já dito, a influência da Igreja Católica Apostólica Romana por
meio dos missionários salesianos e jesuítas, os acordos políticos entre as
monarquias portuguesa e espanhola, condições determinantes para a
configuração do território brasileiro, cujas dimensões sofreram poucas
modificações desde o período do “descobrimento”.
Para ser justo com a história, o Brasil agregou para si porções territoriais
pertencentes a países vizinhos e o fez de diversas formas, inclusive por aquisição
onerosa. É o caso por exemplo da “compra” do território do atual estado do Acre.
Mas em nenhum desses processos se verificou a consulta aos povos indígenas,
população que foi diretamente afetada pela delimitação e ressignificação de
fronteiras.
Em trabalho de pesquisa histórica sobre as relações sócio-políticas em
Mato Grosso após a independência brasileira em relação à Colônia, e a rivalidade
política local entre Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, Soares (2003)
trata do episódio da tentativa de anexação territorial proposta pelo governador da
Província de Chiquitos, que poderia ter sido território de Mato Grosso:
24
A tentativa do governador da província boliviana de Chiquitos,
em anexar esta Província ao Império brasileiro, é tomada por
alguns autores (Castilhos Goycochêa e Sérgio Buarque de
Holanda) como algo pitoresco e até anedótico. Contudo, há que
se considerar que mesmo a historiografia mostrando o fato
apenas como “curiosidade”, é possível perceber que mesmo a
“transação” tendo ocorrido entre o Governo Provisório de Mato
Grosso e D. Sebastião Ramos, não deixou de comprometer o
Império brasileiro, uma vez que provocou os ânimos dos
libertadores das colônias espanholas, que viram no fato uma
intenção monárquica ao estilo europeu. (SOARES, 2003, p.
101).
Esse não é o único documento que encontramos se referindo a Chiquitania
como uma Província, um conceito jurídico que revela uma parcela de autonomia
política e administrativa que possui relação com o espaço territorial dentro de um
Estado. Essa autonomia foi verificada, por exemplo, com os Incas, que se
transformaram em um império (1438/1533) com uma população estimada de 10
milhões de habitantes em próspero período (FAUSTO, 2005). Também os
Guarani permaneceram durante muito tempo organizados politicamente sob uma
república que compreende todo o território tradicional. A identificação de terras
chiquitanas no Brasil, e seu reconhecimento jurídico pelo Estado são importantes
para a afirmação ou negação da identidade.
Conforme registra a historiografia, nos idos de 1500 a Colônia considerou
todo o território brasileiro como sendo parte integrante do seu domínio, e sob
esse fundamento, durante praticamente os dois primeiros séculos da história do
Brasil não se registra considerações sobre a necessidade de assegurar aos povos
indígenas os seus direitos territoriais. É forçoso concluir que naquele tempo de
arrojadas e arrogantes “conquistas” simplesmente não se cogitava dar aos
“conquistados” nenhuma espécie de direito.
Araújo (2006) constata que somente com o Alvará Régio de 1º de abril de
1680, Portugal reconheceu a posse dos índios sobre suas terras, por serem eles os
seus primeiros ocupantes e os donos naturais. Todavia esse Alvará foi pouco
observado, uma vez que as terras indígenas se tornaram objeto de um continuado
e sistemático processo de esbulho por parte dos colonos que, via de regra,
25
contavam com o apoio e o estímulo das autoridades da época ou com sua
omissão.
Um exemplo foi a edição da Carta Régia de 02/12/1808, que declarava
como devolutas as terras que fossem “conquistadas” dos índios nas chamadas
“Guerras Justas”14, incursões violentas do governo português contra os povos
indígenas que resistiam à submissão.
A condição jurídica de “terra devoluta” permitia que os espaços indígenas
fossem concedidos a quem os portugueses discricionariamente entendessem ser
“merecedor”, visito que conceitualmente terra devoluta era aquele quadrante de
domínio público sem nenhuma destinação específica. A natureza jurídica do que
a norma compreende como sendo terra devoluta permanece com o mesmo
sentido até os dias atuais e isso é uma das fontes de conflitos agrários. Essa
definição ainda consta da Lei de Terras, a Lei nº 601/185015, instrumento jurídico
ainda em vigor no Brasil, e que prevê a possibilidade de que as terras devolutas
possam ser utilizadas para a colonização dos indígenas.
A norma contraditória, permitia que as terras dos povos indígenas fossem
arrecadadas com base na Lei de Terras e adicionadas ao acervo estatal.
Desconhecia que esses espaços possuíam um sentido de ancestralidade, ligados
aos indígenas por elementos místicos e culturais que a consideram como mãe e
não como propriedade. Por força da lei, essas terras poderiam ser utilizadas para
aldeamentos, para segregar indígenas em partes de territórios que eram seus por
posse antiga, pacífica e sem oposição, conceitos jurídicos civilistas propagados
pelo Direito Romano.
As decisões políticas do governo imperial não eram compreendidas pelos
povos indígenas, mas de acordo com a Lei de Terras, se houvesse reação do povo
14 A legislação sobre guerras justas, originária do direito de guerra medieval, foi instrumentalizada no séc. XIV em Portugal. Era uma doutrina que autorizava a Coroa e a Igreja a declararem guerra aos pagãos. Este direito foi limitado à autoridade real no séc. XVI. Nessa época, a existência de costumes bárbaros e o impedimento à propagação da fé já não bastavam para a declaração de uma guerra justa, decretada quando havia impedimentos ao comércio e à expansão do projeto territorial colonial. Os índios que se tornariam aliados (chamados de “mansos” ou “cristãos”) eram aqueles trazidos de suas aldeias através de descimentos, deslocamentos “forçados”, “compulsórios”, e novamente aldeados próximos a povoações coloniais. Aí eram catequizados e civilizados, tornando-se “vassalos d’El Rei”. 15 Dispõe sobre as terras devolutas do Império.
26
indígena com a subtração de suas terras, se fazia a “concessão” ou devolução de
parte do território espoliado, em forma de aldeamento16.
Portanto desde o período da colonização o estado considera os territórios
tomados dos povos indígenas como sendo terra devoluta e essa conceituação
prevalece até os dias atuais, e pode inclusive explicar alguns conflitos fundiários.
O Brasil não conseguiu sair do regime de sesmarias e migrar para um sistema
mais justo. Incrivelmente a Lei de Terras (BRASIL, 1850) é um dos poucos atos
normativos que tratam do tema e é parte integrante do arcabouço de normas que
regulamentam os processos de reforma agrária.
Pode-se dizer que todas as tentativas portuguesas de organizar a ocupação
territorial indígena serviram muito mais como uma forma de segregar os índios
em espaços territoriais ínfimos. Ao desonerar grandes extensões dessas terras de
ocupação tradicional, liberou-as ao processo de colonização, o que se contrapõe
frontalmente com a percepção dos povos indígenas. Foi o que ocorreu com os
chamados “aldeamentos”, a destinação de pequenas áreas onde eram reunidas
comunidades indígenas sob a administração de ordens religiosas, e seus
regimentos visavam especialmente facilitar a catequese, inclusive para debelar
costumes que eram “bárbaros” ao olhar eurocêntrico. Aos aldeamentos sucedeu o
chamado “Diretório dos Índios”, criados pelo Marquês de Pombal em 1757 e
extinto em 1798. Marcaram o processo de secularização dos aldeamentos com o
início da sua administração por laicos. Naquele primeiro momento já era possível
perceber a colonialidade no processo de educação formal, uma vez que a lei
proibia que o letramento se desse na língua dos povos indígenas. A
interculturalidade não era cogitada e os indígenas eram submetidos à modelação
colonial.
Iniciava naquela época uma prática que iria perdurar durante todo o
período imperial e por parte do período republicano: a política de confinar os
16 Uma curiosidade instigante é a semelhança da numeração das leis: a Lei de Terras do Império é a 601
e o Estatuto do Índio é a Lei 6001/1973. No Estatuto do Índio, (Lei nº 6.001/1973), havia inclusive a
previsão de que o indígena poderia ser contratado para trabalho, quando estivesse em processo de
integração, preferencialmente empregando suas forças em atividades agrícolas como mão de obra a
serviço de terceiros, laborando em terras que antes haviam sido suas.
27
indígenas em pequenas extensões de terras, não raro limitadas ao entorno de suas
aldeias, com pouca preocupação com a manutenção das condições necessárias à
sua reprodução sociocultural.
A despreocupação com a cultura indígena e seu desconhecimento, em
acontecido mais recente, foi assim revelado por Rezende (2009):
Um dos fatos que talvez mais esteja marcado na memória do
povo Xavante pode ser o ocorrido por volta da metade do século
XVIII, quando Tristão da Cunha era então o governador da
província de Goiás e submeteu os Xavante à governança da
coroa de Portugal. Ocorreu, então que os Xavante foram
convidados para celebrar o Tratado na capital da província,
numa tentativa de amenizar os conflitos no Planalto Central.
Para tal, Tristão da Cunha esperava algumas centenas de
indígenas, mas eles chegaram aos milhares. Sentindo-se
convidados, se alimentavam e tomavam para si o que tinha de
melhor, como era de sua cultura. Tristão da Cunha e os seus
ficaram apavorados e percebeu o acontecimento como sendo um
dos maiores saques ocorridos na província. [...] Depois disso,
Tristão da Cunha ordenou repelir os ataques constantes dos
Xavante e que levantasse uma única aldeia para aqueles que
fossem subjugados. (REZENDE, 2009, p. 25 e 26).
Superada esta fase, em que as fronteiras políticas do Brasil e seus vizinhos
foram definidas sem considerar a existência dos povos originários, os efeitos são
como aquele choque cultural havido entre Tristão da Cunha e os Xavante. Ainda
assim, os colonizadores raramente admitiram ou mitigaram seus erros, cujos atos
resultaram em passivos para com os povos indígenas.
Os aldeamentos indígenas e a subtração de hábitos culturais provocaram
danos que se prolongam através dos tempos, e uma das provas dessa afirmação é
a situação dos índios Terena, cuja numerosa população representa a segunda
maior do estado de Mato Grosso do Sul, todavia sobrevivendo em espaços
urbanos como população favelada. A decisão de aldear os Terena foi do antigo
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) nas primeiras décadas do século XX, e os
indígenas foram distribuídos nos municípios pantaneiros. Um grande número de
famílias Terena reside na capital do estado, Campo Grande, onde surgiram duas
aldeias urbanas: Marçal de Souza e Água Bonita. Além dessas aldeias, há Terena
28
vivendo isolados de grupos, e outros que preferem residir nos bairros periféricos
dos núcleos urbanos.
Todas essas decisões, de configurar a fronteira entre os países e instituir os
aldeamentos dos povos, incluída a alteração da estrutura do Serviço de Proteção
ao Índio (SPI), que foi substituída pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
foram tomadas por gestores não-índios. Não houve a participação dos povos
indígenas no processo de planejamento e execução dessas políticas, mesmo
sendo eles os destinatários finais das medidas administrativas.
A partir da publicação da Constituição Federal de 1988 o estado brasileiro
reconheceu a importância dos tratados internacionais que tratam dos Direitos
Humanos - a OIT nº 169 é um exemplo desta espécie normativa-, e o incorporou
no seu ordenamento jurídico constitucional. Esse novo tratamento legal da
República Federativa do Brasil permitiu maior liberdade de atuação em defesa da
política indígena. Porém, na prática, o governo brasileiro pouco tem feito para
dialogar com os povos indígenas, o que vem maculando o texto e o espírito da lei
maior. A responsabilidade estatal ainda permanece, uma vez que os indígenas
ainda são considerados tutelados pelo estado. Existe pouquíssima efetividade nas
políticas públicas e os conflitos entre índios e não-índios pela posse de terra
persistem e vêm se agravando ao longo dos últimos anos.
Fronteiras: diversidade de significações
A noção de fronteira, na percepção de Ferrari (2015), é todo e qualquer
limite entre duas ou mais nações, tendo como localização geopolítica as zonas de
potenciais conflitos de poder. Fronteira pode ser uma estratégia de ocupação,
investigação, monitoramento e controle de atividades; uma espécie de imposição
de “freios” aos países vizinhos, o que poderia estabelecer os limites da soberania
nacional.
Para Ferrari (2015) a palavra fronteira, como os seus correspondentes na
língua espanhola (frontera), na francesa (frontière) e na inglesa frontier derivam
do antigo latim para indicar a parte do território situada em frente. Na antiga
29
Germânia esse termo apresentava um significado bastante semelhante, indicando
ser referente à região periférica.
Os limites territoriais permitem a determinado país exercer plenamente a
sua soberania perante a comunidade internacional de nações, sendo este um
elemento formal de Estado. De acordo com Pinho (2012), a definição do limite
fronteiriço apresenta a possibilidade de compreensão de um elemento formal de
estado que se intitula soberania, ainda que a temática traga correntes de opinião
divergentes sobre o mesmo objeto:
Soberania. É o elemento formal do Estado. Alguns autores,
como Sahid Maluf, identificam esse terceiro elemento com o
governo, com o conjunto de órgãos públicos que presidem a
vida política do Estado. Outros, como Ataliba Nogueira,
denominam-no poder de império do Estado, caracterizando-o
como o poder jurídico de que são investidas as autoridades.
Entendemos que se pode caracterizá-lo como soberania, pois,
para a existência de um Estado, não basta a simples presença de
um governo. É indispensável que as autoridades constituídas
exerçam sobre as pessoas que residam em determinado território
um poder de natureza absoluta. Ensina Dalmo Dallari que a
palavra “soberania” possui dois sentidos. No sentido político, é
o “poder incontrastável de querer coercitivamente e fixar
competências”. No sentido jurídico, soberania seria “o poder de
decidir em última instância”. A soberania possui essa dupla face
de supremacia na ordem interna e independência na ordem
externa. (PINHO, 2012, p. 26/27).
Diferente de fronteira, o termo limite pode ser entendido como uma
menção a todo traço físico ou imaginário que divide duas ou mais áreas e que é
mais usual quando se busca definir divisas dentro de um mesmo país, de uma
mesma nação. De modo ilustrativo temos o limite que divide os estados de Mato
Grosso e Rondônia e os limites dos municípios de Cuiabá e Santo Antônio do
Leverger, em Mato Grosso.
Já o conceito econômico de fronteira passou a ser mais bem discutido e
empregado na Geografia a partir da aceitação do termo “Zona Pioneira”, o que
apresentara uma diferença de olhares para o mesmo objeto. Os europeus
concebiam fronteira apenas como o limite entre as nações, já em países como os
30
Estados Unidos a palavra fronteira passou a ter a significação econômica,
configurando os limites das áreas de povoamento. Assim, enquanto a fronteira
como limite político representa uma linha nitidamente demarcada, a fronteira no
sentido econômico é uma zona que se intercala entre a mata virgem e a região
civilizada, que se denomina zona pioneira.
Desta compreensão é que deriva a decisão dos países de se reunir em
blocos econômicos, a exemplo do Mercosul, pois há grande interesse comum a
todos porque viabiliza a troca de mercadorias, melhor ambiente legal para a livre
composição societária entre empresas (que independem de nacionalidade ou
domicílio, principalmente quanto os negócios de compra e venda de ações
ocorrem nas bolsas de valores), de modo que o a linha demarcada como sendo
fronteiriça tem menor importância.
Fronteira, território e territorialidade
As fronteiras dividem povos e culturas, separam nações e delimitam os
territórios. São barreiras imaginárias e, para a sua configuração, muitas vezes os
povos se submeteram a batalhas sangrentas para a sua manutenção ou na busca
de ampliar o domínio geográfico de nações. Desse simbolismo, surge a ideia de
fronteira como uma “linha vermelha”, o ingresso não autorizado em seu
quadrante pode se caracterizar como afronta e violação à soberania do território,
o que permite o revide com violência à intrusão17.
As noções de território e territorialidade, no sentido de espaço ou área
definida em que se estabelecem relações de poder, estão interligadas. A noção de
poder, domínio ou influência de vários agentes (políticos, econômicos e sociais)
no espaço geográfico expressa a territorialidade, daí a afirmação que "entrar em
território alheio" pode ser considerada uma afronta. O território é o espaço que
sofre o domínio desses agentes, e a forma como eles moldaram a organização
desse território chamamos territorialidade18.
17 Disponível em: <http://geopoliticatocolando.blogspot.com.br/2010/04/fronteira-territorio-e-territorialidade.html>. Acesso em: 5 de ago. 2017. 18Disponível em: <http://geopoliticatocolando.blogspot.com.br/2010/04/fronteira-territorio-e-territorialidade.html>. Acesso em: 5 de ago. 2017.
31
Território é um produto do trabalho de uma sociedade, com toda a sua
complexidade econômica e cultural, vinculado a uma determinada área, em
qualquer ponto do espaço geográfico, podendo ser definido por seu tipo de
governo, sua cultura, seu sistema econômico e outros agentes que influenciam a
sua organização e que a individualizam neste espaço.
Sob o aspecto jurídico, segundo Pinho (2012), território
É o elemento material do Estado, o espaço sobre o qual o Estado
exerce a sua supremacia sobre pessoas e bens. O conceito de
território é jurídico e não meramente geográfico. Abrange, além
do espaço delimitado entre as fronteiras do Estado, o mar
territorial, a plataforma continental, o espaço aéreo, navios e
aeronaves civis em alto-mar ou sobrevoando espaço aéreo
internacional e navios e aeronaves militares onde quer que
estejam. (PINHO, 2012, p. 26).
As fronteiras delimitam os lugares, os territórios e as paisagens e podem
ter um significado mais amplo do que umas simples linhas de separação entre
países.
As fronteiras político-administrativas são espaços em que os estados
nacionais exercem a sua soberania, lugar também chamado de “território”. Os
limites fronteiriços de origem política podem ser apenas uma rua ou “estrada
cabriteira”, conforme informação trazida por Januário (2004) ao tratar da extensa
divisa territorial de mais de 700 quilômetros de “fronteira seca” existente entre o
Brasil e a Bolívia, cuja linha imaginária atravessa o antigo território Chiquitano.
De todo modo, são divisas construídas e tais limites jurídicos foram estabelecidos
pelo costume, por negociação e tratados ou por imposição, após disputas ou
conquistas bélicas.
Se de um lado as fronteiras são elementos de separação de povos e
culturas, também podem significar um fator de aproximação entre nações
vizinhas, quando esta separação territorial não implicar em disputas e rivalidades.
Não é o caso das fronteiras jurídicas entre países que foram impostas sobre
territórios de povos indígenas, aí destacando a mencionada Província da
32
Chiquitania, fracionada pela configuração da fronteira entre Brasil e Bolívia, e a
fronteira brasileira com o Paraguai, que dividiu o território do povo Guarani.
Ao tratar das relações dos povos indígenas com o modelo colonial nas
Américas, Ribeiro (1978) destaca que:
As fazendas e as minas escravocratas, pondo em presença os
europeus, como senhores, e os africanos e índios, como
escravos, criaram condições para o advento maciço de mestiços
gerados por europeus e índias, e de mulatos, gerados por
europeus e negras, fazendo surgir, simultaneamente, um estrato
sócio-racial intermédio, igualmente distanciado das matrizes
originais. Esta operaria como um novo agente de caldeamento
racial e de entrecruzamento cultural para produzir novos
mestiços e a todos incorporar na etnia nascente. (RIBEIRO,
1979, p. 71).
E isso tem implicação direta na formação a identidade nacional brasileira,
e de acordo com os conceitos amplamente aceitos, o Estado constitui-se de
elementos essenciais: Povo que é o titular do poder; Território como base; Poder
como energia capaz de coordenar e impor decisões buscando os fins comuns e
finalidade. Deve se entender Estado como uma sociedade organizada
politicamente dentro de um determinado espaço geográfico. O Povo, Território e
Poder são elementos abstratos que se materializam na forma de Poder.
A forma de governo indica a maneira pela qual se dá a instituição do
poder na sociedade e a relação entre o povo e seus governantes. As mais comuns
são, de um lado a Monarquia cuja característica mais marcante é a ascensão
hereditária e vitalícia ao trono, de outro lado, a República, cujo poder é exercido
por dirigentes eleitos periodicamente para um mandato temporário conforme
previsto nos respectivos textos constitucionais.
As fronteiras naturais são elementos da natureza que delimitam marcos
nacionais e podem ser caracterizados por ecossistemas ou outros marcos
geográficos como rios, montanhas, vales, mares etc. No caso específico da
fronteira oeste brasileira, os limites territoriais nacionais foram definidos por
diferentes critérios, sendo que os de natureza econômica e política foram os mais
utilizados.
33
A formação das fronteiras nos países do Mercosul
Segundo Faoro (2012) a formação da Península Ibérica traz consigo o
peso de ter-se constituído em sociedade sob o império da guerra, a começar pelo
despertar de enfrentamento contra o domínio romano. A península foi teatro das
investidas dos exércitos de Aníbal, viveu a ocupação germânica, contestada
vitoriosamente pelos árabes, que eram tratados pelos lusitanos pelo adjetivo
“mouros”.
A narrativa do autor cita a existência dessas civilizações, que se
digladiaram dentro de suas fronteiras pela hegemonia da Europa e de das ruínas
do império visigótico, disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos,
nasceu um mundo novo que transmitiu sua fisionomia aos tempos modernos.O
reino de Portugal foi um dos primeiros estados nacionais. Tinha uma
territorialidade escassa e voltada para as praias do Atlântico.
Ao discorrer sobre a formação do patronato político brasileiro Faoro
(2012),revela que a “descoberta” do Brasil decorreu da ultramarina expansão
comercial portuguesa, e que dela não somente emergiu um mundo novo, mas
também um mundo diferente, que deveria, além da descoberta, suscitar a
invenção de modelos de pensamento e de ações.
Todavia, segundo o autor, o descobridor português antes mesmo de ver a
qualidade da terra, de estudar as gentes que por aqui habitavam e quais os seus
hábitos de vida e a sua religião, quis saber sobre a existência de ouro e prata. E a
exploração e a espoliação teriam sido identificadas durante os 200 anos que o
Brasil permaneceu sob o jugo de Portugal. Para o autor, parte dessa “tática” de
atuação a classe dominante assimilou e a utilizou nas relações entre o estado e
setores marginalizados e hipossuficientes da contemporaneidade, inclusive os
povos indígenas.
Alguns estudiosos do processo histórico da constituição das fronteiras nas
Américas ressaltam a importância do papel desenvolvido pelos agentes externos
tais como os governos de Portugal e Espanha, a Igreja Católica e as famílias
envolvidas no processo de povoamento. No curso da pesquisa,mesmo tendo
34
como objeto a educação escolar indígena, é possível identificar outros agentes
no processo de colonização, questionar suas ações, principalmente investigando
sobre os fundamentos de seus atos. É possível investigar quais os fatores que
impulsionaram as conquistas territoriais, quais os povos que habitavam o
subcontinente sul americano, como foi por eles percebida a divisão imaginária
determinada pelo Tratado de Tordesilhas e finalmente o que os estados
contemporâneos pensam nos seus textos legais sobre a educação escolar dos
povos indígenas.
Em 4 de maio de 1493 a Bula Papal Inter Coetera estabeleceu um acordo
bilateral em que as regiões de exploração de cada uma das nações ibéricas
estariam definidas, e pelo documento foi estabelecida uma linha imaginária a 100
léguas (aproximadamente 660 quilômetros) do Arquipélago de Cabo Verde, na
África, que dividiria o mundo, de modo que todas as terras a oeste desta linha
seriam de posse da Espanha, e nas terras a leste seriam fixados os territórios
portugueses. Todavia o rei português Dom João II divergiu e propôs mediação a
fim de que o acordo fosse revisto.
Em face disso, no ano de 1494 (7 de julho) foi celebrado o Tratado de
Tordesilhas e por meio dele as terras localizadas a 370 léguas (2500 quilômetros)
a oeste de Cabo Verde seriam possessão portuguesa, e as demais pertenceriam a
Espanha. Desse modo o reino português manteve sob seu domínio as terras
brasileiras, cuja “descoberta” seria anunciada logo em seguida, mesmo que
alguns navegadores, entre eles o marinheiro Diogo Cão, já tivessem navegado até
o litoral brasileiro bem antes de Pedro Álvares Cabral.
O espaço territorial do Brasil, e a transformação deste em nação, nasce
com o território delimitado e resulta de uma composição entre a burguesia
mercantil e a nobreza europeias, que ratearam os custos das navegações, para
logo depois pleitearem a divisão das riquezas, inclusive as terras “descobertas”,
ignorando por completo os interesses dos povos que já habitavam estes espaços,
com hábitos, cultura e modos próprios de vida. É possível identificar uma
confusão entre o que era interesse público estatal e o que era privado, no caso o
interesse mercantil da burguesia que financiava as navegações.
35
A fronteira oeste do Brasil
A multiplicidade de configurações das fronteiras existentes no Brasil é
bem representada pelo que se registra na Amazônia de um modo geral, e no
estado do Acre, em particular, tido como um exemplo do que se chama “fronteira
em movimento”. Essa área se caracteriza por constantes mudanças e
transformações, seja no que se refere às divisões político-administrativas, ou
ainda no tocante ao contingente populacional.
O espaço territorial daquilo que conhecemos como o estado do Acre já
pertenceu à Bolívia, e foi incorporado ao território brasileiro por meio da
celebração do Tratado de Petrópolis19.
Ainda no século XIX, com a chegada de seringueiros que vieram do
estado do Ceará, o Acre percebe transformações territoriais importantes, que
resultam no deslocamento forçado das populações indígenas e uma mutação da
própria fronteira, com o surgimento de um novo sistema econômico, social e
político sustentado na cultura da seringa. Os assentamentos foram condicionados
pelo interesse econômico que emergia dos seringais, que era a base da existência
da maior parte das cidades da área (Ibéria, Xapurí, Iñapari, Brasiléia, Assis
Brasil, Rio Branco etc.).
A expansão da produção da borracha ultrapassou os limites brasileiros e
deflagrou um período de fortes lutas e enfrentamentos entre a Bolívia e o Brasil,
sendo que a partir do Tratado de Petrópolis (1903) foi reconhecido politicamente
o que já era fato consumado do ponto de vista sócio econômico: o Acre se incluía
em território culturalmente vinculado aos limites brasileiros.
19O território do atual estado brasileiro do Acre era, no início do século XX, uma região pertencente à Bolívia, mas que vinha sendo ocupada por seringueiros brasileiros em plena época de expansão da economia de extração da borracha. A fim de evitar conflitos o governo brasileiro confiou ao Barão do Rio Branco as negociações que resultaram no Tratado de Petrópolis, firmado em 17 de novembro de 1903 na cidade brasileira Petrópolis, que formalizou a incorporação do Acre ao território brasileiro. Com esse acordo, o Brasil pagou à Bolívia a quantia de 2 milhões de libras esterlinas e indenizou o Bolivian Syndicate em 110 mil libras esterlinas pela rescisão do contrato de arrendamento, firmado em 1901 com o governo boliviano. Em contrapartida, cedia algumas terras no Amazonas e comprometia-se a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo rio Amazonas.
36
O povo Chiquitano na fronteira Brasil e Bolívia
Entre os povos que ainda buscam definir a sua identidade fortemente
atacada pela incursão colonialista estão os Chiquitano, naturais de um território
que vai da região oeste do estado de Mato Grosso até o centro do território da
vizinha Bolívia. De acordo com informações de Santana (2009) uma equipe da
FUNAI realizava um estudo ambiental na área de influência do Gasoduto
Bolívia/Mato Grosso, quando se deparou com este povo “esquecido” como
indígena mato-grossense. Conforme foi verificado, ao longo do tempo os
Chiquitano foram vítimas da própria ação do estado, por meio do Exército
Brasileiro, que os expulsou da área a pretexto de manter a integridade do
Destacamento Fortuna, e de que a presença de um povo não identificado como
brasileiro seria ameaça à segurança nacional.
A região da Chiquitania era habitada por mais de quarenta povos
indígenas, de culturas distintas, variando de grandes grupos sedentários de
agricultores seminômades, a pequenos grupos caçadores e coletores, pertencentes
a diversos grupos linguísticos. A primeira investida contra os Chiquitano teve
início com as Missões Jesuítas, sendo que em 1690 o governador de Santa Cruz,
Augustin de Arce, solicitou ao Colégio de Tarija a evangelização dos Chiquitos.
Ficou bem claro que a intenção era “pacificar” os indígenas e incorporar a
Província de Chiquitos ao governo de Santa Cruz.
A exemplo do que ocorreu com os Guarani, os Jesuítas foram bem-
sucedidos em reunir nas reduções os diversos povos indígenas que seriam
“unificados” como Chiquitano. Foram muitos os aldeamentos que compuseram
as missões chiquitanas e resultaram em cidades com o nome de santos da Igreja
Católica: San Xavier, San Rafael, San José, San Inácio de Zamucos, Santa Ana,
Santo Coración de Jesús, Santiago de Chiquitos, San Juán Bautista e Concepción
de Chiquitos. Estima-se um a população de 87.885 Chiquitano no lado boliviano
em 2012, segundo o governo local, e 473 Chiquitano no lado brasileiro no
mesmo período, segundo a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)20.
20 Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/chiquitano/413>. Acesso em 5 de ago. 2017.
37
Estudioso do povo Chiquitano, o antropólogo Aloir Pacini discorre sobre
as ameaças sofridas por este povo em ambos os lados da fronteira, e relata a
aproximação deles com os missionários Jesuítas, tudo demonstrado em trabalho
escrito apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os
dias 1º e04 de junho de 2008 na cidade de Porto Seguro (BA):
As histórias da conjugação de cerca de 40 etnias na Missão de
Chiquitos estão presentes nas pesquisas antropológicas. A
pressão externa dos bandeirantes e dos encomendeiros que
apareciam como inimigos fazia com que os povos autóctones
buscassem alguma segurança nas Missões. A ação missionária
jesuítica de 1691 a 1767 os sedentarizou nas cidades santuários
e em seus “ranchos” adjacentes. (PACINI, 2008, p. 3).
No espaço onde imperava o domínio lusitano e que viria a ser o território
do Brasil, a presença dos padres jesuítas também foi marcante e tinha como
objetivo “incorporar” os povos indígenas ao modelo eurocentrista de viver,
negando a história daqueles povos autônomos. Pesovento (2012) afirma que a
Capitania de Mato Grosso fora fundada no ano de 1748, tendo à frente da gestão
o fidalgo Dom Antonio Rolim de Moura e a influência dos Jesuítas não era tão
grande. Mas quando se aproximava o fim do modelo de regime missioneiro o
governo local despertou para o problema e resolveu buscar os religiosos para
fomentar a implantação do sistema de ensino com aspectos catequizantes dos
povos indígenas.
A Capitania de Mato Grosso era recém-criada em 1751 e havia somente
dois padres jesuítas, mas a estes dois missionários foi confiada a tarefa de
catequizar os indígenas que habitavam no imenso território. Em correspondência
enviada por Rolim de Moura a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do
Marques de Pombal, então governante do Grão-Pará Maranhão, é indicada com
clareza a modalidade de educação que se desejava implantar:
Uma das constatações é que deveriam ser os “silvícolas”
retirados dos convívios de seus pares, pois, assim, seria mais
fácil “educá-los” de acordo com os modelos de civilidade, que
para os lusitanos estava associado ao desejo de ambição e
aquisição de bens próprios da cultura ocidental e mesmo de sua
mentalidade eurocentrada. É importante destacar a percepção de
38
Rolim de Moura a respeito da capacidade intelectual dos
indígenas, marcada pela falta de raciocínio e brutalidade,
“qualidades” próprias dos povos indígenas imputadas por ele e
que deveriam ser suprimidas. Uma das medidas profiláticas
indicada era enviar indígenas à Europa a fim de se tornarem
“mestres naturais” do modelo ocidentalcêntrico de educação.
(PESOVENTO, 2012, p. 26/27).
Certo é que a configuração deste território na fronteira oeste exerceu
bastante influência no processo de educação escolar indígena pensado pelos
Jesuítas e estes também se adequaram às realidades locais, uma delas foi a
formação da missão com indígenas oriundos de diversos povos. No século XX os
programas oficias de educação escolar indígena também passariam por
reformulação com a mudança do enfoque, segundo Secchi (2009):
A partir de 1985, a própria FUNAI reformulou os seus cursos de
formação de indigenistas, substituindo o antigo enfoque
integracionista, por um debate aberto e ‘atualizado sobre o papel
dos agentes públicos como facilitadores do processo de
afirmação étnica e cultural dos povos indígenas’. Tal abordagem
predominou especialmente no Curso de Indigenismo, realizado
em Brasília em maio de 1985, destinado ao quadro de
funcionários que então ingressavam no órgão. (SECCHI, 2009,
p. 63).
A República Guarani recebera a influência dos padres Jesuítas no processo
de planejamento de sua arquitetura, como as construções de casas e escolas, e os
espaços predominantemente públicos, a exemplo das praças e igrejas. Secchi
(2009) diz que a educação salesiana como espaço territorial de afirmação de
identidades dos povos indígenas também se preocupava com este aspecto:
Um primeiro ‘agrupamento tipológico’ existente em Mato
Grosso foi o formado pelas chamadas “escolas das missões”
representadas predominantemente pelas escolas salesianas.
Encontravam-se instaladas em grandes aldeamentos xavantes e
bororos e compunham um conjunto arquitetônico característico
das missões tradicionais: as áreas centrais ocupadas pela igreja,
escola, farmácias, residências seletivas; as áreas circundantes
por galpões-oficina, residências não seletivas, depósitos e outro
serviços e, um pouco mais distantes, as demais instalações,
pomares, currais, roçados e aldeamentos. (Idem, p. 78).
39
Em relação ao trabalho realizado na Chiquitania, os missionários tinham
consciência da responsabilidade que estava em suas mãos e, movidos pelo desejo
de salvar índios pela fé, acreditavam que estavam diante de um trabalho inédito,
em que tudo estaria por fazer em nome de Deus e para a sua glória. Nos anos
seguintes ao início da “catequização” dos Chiquitano, os jesuítas fundaram 11
reduções na Chiquitania, e 10 consideradas Missões de Chiquitos, entre elas a
Missão San Francisco Xavier, San Rafael, San José, San Ignácio de Zamucos,
Santa Ana e Santo Corazón.
No lado brasileiro há registros da presença do povo Chiquitano desde a
decisão da Coroa Portuguesa em marcar presença no lado oriental dos rios
Paraguai e Guaporé, o que foi apressado pela notícia da existência das missões
San Rafael de Chiquitos e de San Miguel, em Moxos.
Fronteira com o Peru
Os conflitos fronteiriços surgiram em meados do século XIX e perduraram
até o momento em que foi celebrado o Tratado do Rio de Janeiro21 (1909)
quando se reconheceu que os conflitos entre Brasil e Peru eram rotineiros nos
territórios lindeiros. De um lado extração do látex definiu uma área de interesse
que ultrapassava os limites nacionais dos três países, mas a progressiva
decadência desta forma de exploração promoveu a desarticulação desse sistema
sócio-político.
O desenvolvimento da agropecuária no Brasil e a extração do ouro no
Peru possibilitaram a chegada de uma nova população no espaço fronteiriço. No
lado brasileiro os nordestinos são substituídos pelos paulistas, paranaenses, mato-
grossenses e trabalhadores de outras regiões. Os novos atores iniciam um
processo de desmatamento dos seringais nativos, em favor da atividade pecuária,
21 O Tratado do Rio de Janeiro, assinado em 8 de setembro de 1909, estabeleceu as fronteiras atuais do estado do Acre, ajustado entre a República dos Estados Unidos do Brasil e a República do Peru. Pelo Tratado foi reduzido em 40 000 km² o território do Acre estabelecido no Tratado de Petrópolis, que se estendia até as cabeceiras do rio Purus. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_do_Rio_de_Janeiro_(1909)>. Acesso em 13 de jun. 2017.
40
que resultaria em expulsão dos seringueiros de suas terras, os antigos
“colonizadores” agora se tornam “colonizados”.
Já no lado peruano da fronteira o desenvolvimento da atividade aurífera
modificou substancialmente a paisagem socioambiental tendo em vista que
milhares de migrantes andinos começam a se deslocar para o local em busca de
ouro. Esse movimento de pessoas implica em modificações que os governos
deveriam reconhecer e ajustar juridicamente como forma inclusive de inibir e
acabar com os conflitos então existentes.
De acordo com a narrativa de Fausto (2005), aquela região sofreu a
influência política do Império Inca, que conheceu seu apogeu durante um século,
e cujo declínio teve início com a chegada dos invasores espanhóis. Um dos
motivos da extinção do povo Inca, segundo o pesquisador, seria a decadência
econômica, provocada pelo sistema incaico que resultava na divisão das riquezas
que estavam sob o domínio do imperador sempre que ocorria a sucessão:
A razão estrutural atende pelo nome de herança dividida, um
sistema der transmissão de bens e direitos implantado pelo
imperador Pachakuti (1438-1471), que fora o motor das
conquistas. Segundo essa regra, quem herdava o poder não tinha
o legado material. Quando da morte do Inca, um de seus filhos
assumir a chefia do estado. Recebia o direito de governar, fazer
guerras, fazer a paz, cobrar impostos, mas não recebia qualquer
propriedade material. Tudo o que pertencera ao Inca morto
passava para seus outros descendentes em linha masculina, que
formavam um grupo social corporado denominado panaca. Eles
eram responsáveis pela preservação da Múmia do Inca e pela
manutenção de seu culto. [...] A regra da herança dividida
significava que tudo o que resultara na administração anterior –
em obras e conquistas – saíam da esfera do estado. A cada
sucessão era preciso começar tudo de novo: o rei recém-chegado
não tinha alternativa senão ampliar os limites do império,
conquistando novos povos e novas terras. (FAUSTO, 2005, p.
20).
Os territórios e os povos incaicos apresentavam uma característica
interessante: não possuía língua escrita, mas sua comunicação oral era na língua
quíchua, então falada na região central dos Andes bem antes do Império Inca, o
qual a adotou como língua oficial da administração imperial. A área de influência
Inca se estendia por cerca de 4.300 quilômetros, entre os atuais territórios da
41
Colômbia e do Chile. O quíchua é falado hoje por cerca de 10 milhões de
pessoas, sendo o idioma nativo mais falado na América do Sul, é língua
regularmente aceita no Peru, centro e sudoeste da Bolívia, sul da Colômbia e do
Equador, noroeste da Argentina e norte do Chile.
O império Inca conquistava e colonizava territórios, subjugando os
vencidos, e aqueles indivíduos que não ofereciam resistência eram escolhidos
para gestão do território conquistado, desde que demonstrassem lealdade ao
conquistador. Os filhos do novo “funcionário” eram levados a Cusco para
receber educação formal. O governador do novo território pertencia a nobreza, e
era nomeado pelo imperador Inca.
É importante evocar que a mesma motivação econômica que movia o
império incaico e que influenciou a configuração de suas fronteiras territoriais,
ora expandindo e ora se contraindo, é a mesma que fez se movimentar o
seringueiro que trabalha no processo exploratório na divisa entre Brasil, Peru e
Bolívia.
Não há registros de conflitos ou escravização de povos originários nessa
parte da fronteira (tríplice), mas até mesmo algumas ordens religiosas foram
utilizadas para “pacificação” dos indígenas no passado, afastando-os de sua
condição de “gentio” e o inserindo ao sistema de capitalista, tarefa na qual nem
sempre foram bem-sucedidos22. Nos locais onde se definiu e se ajustou a
configuração da fronteira o componente capitalista é que preponderou nas
escolhas feitas pelos estados.
Fronteira do Paraguai com Mato Grosso do Sul
Conforme consta dos anais da Associação Nacional e História e segundo o
professor Antonio Brand23, a luta dos povos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso
do Sul pelo reconhecimento de suas terras tem sido empreendido por meio de
22 Diversas ordens missionárias instalaram-se no Brasil, principalmente em regiões de fronteira onde havia disputa territorial e o governo brasileiro lutava pela posse efetiva dessas regiões. As migrações nordestinas para a Amazônia agravavam a exploração de povos indígenas na extração da borracha. O Imperador D. Pedro II estabeleceu então um acordo com a ordem franciscana para que esta instalasse missões pela Amazônia, controladas por uma sede em Manaus. Entretanto, conflitos regionais, a carência de recursos e a falta de quadros fizeram os missionários retornarem a Manaus em 1888 e, em seguida, abandonarem o trabalho franciscano na Amazônia. 23 Disponível em: <http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S22.077.pdf>. Acesso em: 13 de jun. 2017.
42
diversas frentes, entre elas a judicial, com a definição dos limites por meio de
processos em curso na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul (que é competente
para julgar ações que envolvem interesses de povos indígenas)24.
Pesquisamos dois laudos periciais que se referem a demandas de interesse
dos povos Kaiowá e Terena, os quais foram publicados e transformados em livro
pelos peritos nomeados judicialmente. As obras citadas, “Ñande Ru Marangatu:
Laudo antropológico e histórico sobre uma terra kaiowá na fronteira do Brasil
com o Paraguai, município de Antonio João, Mato Grosso do Sul”, escrita por
Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira, e “Os Terena de Buriti:
formas organizacionais, territorialização e representação da identidade étnica”, de
Levi Marques Pereira, têm como origem laudos periciais produzidos para instruir
ações judiciais em que um fazendeiro (autor da ação) busca adentrar nas terras
indígenas, alegando hipótese de serem territórios sem vínculos com os povos
indígenas.
Os povos Kaiowá, da terra Ñande Ru Marangatu, próxima ao município
de Antonio João, no estado de Mato Grosso do Sul, tiveram seus direitos
confirmados ante a conclusão do laudo antropológico produzido. Os peritos
levaram em consideração os aspectos históricos que remontam à Guerra da
Tríplice Aliança e comprovaram a temporalidade da posse Kaiowá.
Do mesmo modo, a obra citada sobre os Terena resulta de uma perícia
judicial vitoriosa porque seus argumentos foram aceitos pelo julgador, e naquele
caso o autor do laudo buscou as trilhas de Marcel Mauss para convencer o juiz de
que a área em questão era habitada há muito tempo pelo povo Terena. Retratou
elementos da cultura, forma de organização e as linhas de parentesco para atestar
o uso regular e antigo do território objeto da controvérsia.
O pesquisador Antonio Brand argumenta que os povos indígenas lutam
pela reocupação de territórios dos quais foram expulsos em épocas recentes ou
remotas, e enquanto aguardam o desfecho de suas demandas habitam reservas
criadas pela União através de suas autarquias. São pequenas extensões de terras
demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) entre os anos de 1915
24 Art. 109, inciso XI da Constituição Federal de 1988.
43
e 1928, para usufruto desta população, que somadas resultam em um total de
18.124 hectares.
Sobre o tamanho da população indígena no Brasil, diz Araújo (2006) que
O Brasil não tem ainda uma estimativa precisa sobre a
população indígena em seu território. Como até hoje nunca se
fez um censo indígena, as contagens variam e oscilam na
medida em que se baseiam em informações de diferentes e
heterogêneas fontes. Em todas as hipóteses, entretanto, trata-se
de uma população proporcionalmente pequena, se comparada à
totalidade da população nacional. Para efeitos desta publicação,
estaremos considerando os números utilizados pela FUNAI, que
informa existirem hoje no Brasil 215 povos indígenas, com uma
população de aproximadamente 345 mil índios, o que representa
cerca de 0,2% da população nacional. De acordo com a FUNAI,
estes números referem-se somente aos índios que vivem em
aldeias, estimando-se a existência de cerca de 100 a 190 mil
outros vivendo fora de terras indígenas, inclusive em cidades,
enquanto há ainda indícios de mais ou menos 53 grupos sem
qualquer contato com a sociedade (isolados), fora aqueles que
começam a reivindicar a condição de indígenas (denominados
“emergentes” ou “resistentes”). (ARAÚJO, 2006, p. 23).
Todavia o Censo Demográfico do IBGE em 2010 já apresenta uma
população em torno de 817 mil pessoas que se autodeclaram indígena, o que
alcança 0,4% do total dos habitantes brasileiros25.
No século XV a estimativa era de que existiriam 1.400 povos indígenas no
território colonizando, com uma população de 5 milhões de pessoas. Desse
mosaico dos povos indígenas no Brasil de 2012, com 896 mil indígenas segundo
o governo federal26, número diferente do Censo 2010 do IBGE, distribuídos em
215 povos falantes de 274 idiomas, o estado de Mato Grosso do Sul se apresenta
como região de grande diversidade demográfica, e com múltiplos aspectos
culturais.
Além de possuir a segunda maior população indígena do país, com
aproximadamente 70 mil índios, sendo superado pelo estado do Amazonas,e
deste total trinta mil indígenas seriam crianças na faixa etária de 0 a 14 anos, o
25 Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em: 5 de ago. 2017. 26 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-etnias-e-274-idiomas>. Acessado em: 14 de jun. 2017.
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espaço sul mato-grossense está encravado no coração da América do Sul,
recebendo fortes influências culturais de outras regiões brasileiras e dos países
fronteiriços.
Ao pesquisar sobre a percepção de alunos e professores visando o
desenvolvimento local na Aldeia Lagoinha, localizada no Distrito de Taunay, em
Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, Antonio Bento Pereira Paredes27, sob a
orientação do professor Antonio Brand, apresenta dados importantes sobre povos
indígenas identificados em Mato Grosso do Sul.
Destacam-se neste horizonte multicultural: os Guarani-Kaiowá e Guarani-
Ñandeva (habitantes da região sul do Mato Grosso do Sul), os Terena (subgrupo
Guanáque vivem na região centro-oeste do Estado); os Kadiwéu (identificados
no extremo oeste, na maior área indígena fora da Amazônia Legal, suas terras
estendem entre os municípios de Bodoquena e Porto Murtinho); os Guató
(antigos povos pescadores das margens do rio Paraguai, vivem no extremo norte
do Mato Grosso do Sul, fronteira Brasil/Bolívia); os Ofaie (localizados na região
sudeste do Estado) e os Kinikinau (subgrupo Guaná e que vivem atualmente na
Reserva Indígena Kadiwéu)28. Nesse cenário indígena estão presentes os Kamba
(encontrados em Corumbá, na fronteira com a Bolívia) e os Atikum, grupo étnico
oriundo de Pernambuco29.
27 Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp124577.pdf>. Acesso em: 14 de jun. 2017. 28 Disponível em: <http://jornalprincipia.blogspot.com.br/2012/09/povos-indigenas-em-situacao-de-fronteira.html>. Acesso em 01 de ago. 2017. 29Comunidade Atikum. Etnia indígena originária do sertão pernambucano, os atikum chegaram a MS na década de 1980, após serem expulsos de sua terra. Reconhecidos apenas em 1949 como etnia indígena, eles lutam agora pelo reconhecimento do direito à terra. Os indígenas Atikum são originários da Serra de Umã, município de Floresta, no sertão de Pernambuco. São 5.183 pessoas (Funasa/2010), a maioria concentrada na Área Indígena Atikum, demarcada em 1996 pelo governo federal. As primeiras menções aos índios Atikum datam da década de 1940, quando procuraram o Serviço de Proteção ao Índio em busca do reconhecimento oficial de sua etnia e suas terras. O reconhecimento como etnia deu-se em 1949. Suas terras foram demarcadas em 16.290 hectares em 1996. Os primeiros indígenas Atikum chegaram a MS no início da década de 1980. Atualmente, são 118 indivíduos, que habitam a aldeia Cabeceira, na Reserva Indígena Terena de Nioaque, no sudoeste do estado. Estão ali por generosidade dos índios terena, que os acolheram e permitiram que vivessem e produzissem em uma área desabitada da Reserva. Sem língua nem religião próprias, os Atikum mantêm apenas um traço cultural original, a dança ritual Toré, em que os dançarinos vestem-se com roupas de palha e executam canto e dança em roda, com versos em forma de exaltação. Fonte: http://www.prms.mpf.mp.br/servicos/sala-de-imprensa/noticias/2013/11/mpf-ms-acordo-inedito-no-pais-destina-area-para-indigenas-da-etnia-atikum, acesso em 24 nov. 2017.
45
Cada sociedade indígena possui suas características culturais próprias,
histórias de contato, resistências, negociações e alianças, constituindo grupos
com populações que variam de 50 indivíduos a 30.000 pessoas. Nesse contexto
os Guarani (Kaiowá, Mbyae Ñandeva) e os Terena possuem o maior contingente
populacional, somando 65 mil pessoas.
Para tratar da temática dos indígenas em situação de fronteira é de ter-se
como paradigma o exemplo do povo Guarani, atualmente presente em vários
estados das regiões sul, sudeste e centro oeste do Brasil, e que também são
encontrados em diversos outros países, como Argentina, Paraguai e Bolívia. Com
mais de 50 mil pessoas é a etnia mais numerosa no Brasil, cujo maior contingente
vive exatamente no estado de Mato Grosso do Sul. São descendentes de um povo
que já teve a sua república própria, com normas, cultura, arquitetura, território e
saberes típicos. Poucos desses valores restaram após o contato com os europeus,
principalmente porque o colonizador exterminou e escravizou o Guarani, e dele
espoliou a riqueza e os territórios.
Os estudos antropológicos distinguem no Brasil três grupos Guarani:
Kaiowá, Ñandeva e Mbya; em Mato Grosso do Sul, grande parte dos Guarani é
do grupo Kaiowá, povo que se submete a péssima condição de vida, mas
curiosamente os dados oficiais demonstram que a população Kaiowá vem
crescendo, o que indica um processo de resistência cultural30.
O povo Guarani vive nesta região de fronteira muito antes da chegada dos
europeus no século XV. No mesmo período da fundação de Assunção, a capital
do Paraguai, tiveram início as reduções jesuíticas no coração da nação Guarani.
30Apesar da ausência de recenseamentos ou pesquisas demográficas mais acuradas, há indícios, por amostragem de áreas onde foi possível censo bem aplicado, de que os Guarani apresentem, de um modo geral, altas taxas de fecundidade e crescimento populacional. No Brasil, tomando-se por base, sempre, cálculos aproximados, haveria, segundo os dados da Funasa e Funai em 2008, aproximadamente 51.000 indivíduos, sendo 31.000 Kaiowa, entre 13.000 Ñandeva e 7.000 Mbya, localizados principalmente no Mato Grosso do Sul. Na Argentina a população guarani é quase exclusivamente Mbya e concentra-se na província de Misiones em torno de 5.500 pessoas. A população Ñandeva na Argentina é estimada em cerca de 1000 pessoas. (CTI/G. Grünberg, 2008). A população Mbya atual estaria, segundo essas projeções, em torno de 27.380 pessoas. Cada subgrupo e cada região dentro dos territórios guarani apresentarão, no entanto, especificidades quanto a sua situação demográfica ou na relação entre espaço disponível a uma determinada comunidade e a extensão de terra existente. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/554>. Acesso em: 03 de mai. 2017.
46
Foram abrangidos pela área de influência dos religiosos o atual território de Mato
Grosso do Sul, o oeste do Paraná, e os estados de Santa Catarina, Rio Grande do
Sul e São Paulo. Lugon (2010) revela o nascer de uma república, a partir do
contato dos Guarani com os Jesuítas, que receberam destes a educação formal
que permitiu a criação de cidades politicamente organizadas e com regras
próprias, um sistema de educação cultural, liberdade para negócios e foram
pioneiros na ideia de estado de bem estar social.
Um dos exemplos: as reduções possuíam uma casa destinada a mulheres
viúvas, e os órfãos também mereciam tratamento diferenciado. Mas em
contrapartida as habilidades de guerreiro foram reprimidas, o que facilitou sua
destruição, provocada pela não oposição de resistência contra os belicosos
invasores espanhóis e bandeirantes paulistas.
O padre jesuíta Clovis Lugon considera ter existido uma República
Guarani, que ela seria comunista e seu povo inovou nas artes, nos sistemas de
defesa, na cultura, na arquitetura e teria resistido às invasões ocorridas entre os
anos de 1640 a 1750. Segundo narra o pesquisador, a chegada dos jesuítas teria
sido decisiva para que os Guarani se reunissem em reduções e ali recebessem a
educação que transformaria um povo rústico numa próspera nação, cujos
domínios se estenderiam por territórios futuramente tomados à força pelos
portugueses e espanhóis.
Para Lugon (2010) a inovação Guarani começava com a arquitetura:
Além das casas, outras belas avenidas atravessavam os campos
até findarem diante de capelas que podiam ser vistas,
minúsculas, no centro da praça. Essas capelas marcavam os
limites das procissões. Na própria redução, a partir das avenidas,
as ruas formavam um traçado regular, todas retas, largas como
nas cidades europeias, servindo o conjunto urbano. Ruas mais
estreitas, transversais, completavam a paisagem. Graças à
simplicidade do conjunto arquitetônico, o crescimento da cidade
acontecia de forma natural. Ao longo de uma das artérias
principais, em direção à periferia, abria-se simplesmente uma
nova rua ou se construía casas dos dois lados, segundo a
necessidade. O padre salienta que não existem becos, nem ruelas
sujas, escuras e mal-cheirosas. (LUGON, 2010, p. 53).
47
Voltando à localização dos territórios Guarani na atualidade, Antonio
Brand diz que as aldeias estão distribuídas em todo o Mato Grosso do Sul, numa
área que se estende até os rios Apa, Dourados e Ivinhema, ao norte, indo, em
sentido sul, até a serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejui, já em território do
Paraguai, alcançando aproximadamente 100 Km em sua extensão Leste-Oeste31.
Os Kaiowá habitam cerca de 100 Km de ambos os lados da cordilheira do
Amambaí, espaço que compõe a linha fronteiriça Paraguai-Brasil, inclusive todos
os afluentes dos rios Apa, Dourados, Ivinhema, Amambai e a margem esquerda
do Rio Iguatemi, que limita o sul do território Kaiowá e o norte do território
Ñandeva, além dos rios Aquidabán (Mberyvo), Ypane, Arroyo, Guasu, Aguaray
e Itanarã do lado paraguaio, alcançando perto de 40 mil quilômetros quadrados.
Esse território é do tamanho do “excesso” de área que o Brasil havia
somado ao Acre quando negociou a aquisição com a Bolívia, e que depois foi
obrigado a restituir ao Peru.
O atual território Guarani (Mbiá, Kaiowá e Ñandeva) adentra em parte dos
estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, se estende inclusive no lado oriental
paraguaio, tendo sido registradas migrações Ñandeva do início do século XX
oriundas do Paraguai e que se estabeleceram como assentamentos no estado de
São Paulo, regiões do interior e litoral, assim como em Santa Catarina, no
interior dos estados do Paraná e também no Rio Grande do Sul. No Paraguai, o
território atual dos Ñandeva compreende os rios Jejui Guasu, Corrientes e
Acaray32.
Após a Guerra da Tríplice Aliança, também conhecida como Guerra do
Paraguai, iniciou-se no sul do então estado de Mato Grosso a exploração da erva
mate nativa, produto de grande valor econômico, e cujo titular do negócio era a
Companhia Matte Laranjeira33. A era mate era abundante na região e foi
produzida em grande parte com a utilização da mão de obra dos índios Guarani.
31 Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/552>. Acesso em: 5 de ago. 2017. 32 Disponível em: <http://jornalprincipia.blogspot.com.br/2012/09/povos-indigenas-em-situacao-de-fronteira.html>. Acesso em 01 de ago. 2017. 33 COMPANHIA MATTE LARANJEIRA - Chegou a ser um Estado dentro do país, com concessão de terras de 5.000.000 de hectares para explorar erva mate nativa. Teve origem numa recompensa que o
48
A Companhia Mate Laranjeira recebera alguns “favores” do governo,
justamente por ter colaborado com as despesas da guerra, e um dos benefícios
recebidos em contrapartida foi a autorização para exploração dos territórios
Kaiowá. Quando venceu o prazo da permissão administrativa a área passou a ser
alvo de fazendeiros que se interessaram pela fertilidade e qualidade do
solo,começando então um pesadelo para os povos indígenas, fenômeno este que
perdura até os dias atuais e gera tantas dores aos povos indígenas.
Nos dias atuais, grande parte do povo Guarani vive confinada em áreas de
pequenas extensões de terras que são insuficientes para a sua sobrevivência, fato
que impede sua reprodução física e obsta a manutenção do modelo cultural que
mantém desde tempos imemoriais. Ao longo do tempo ocorreu um
confinamento, ou transferência sistemática e forçada da população indígena das
diversas aldeias Guarani para dentro das oito reservas demarcadas pelo Governo
Federal por meio do SPI entre 1915 e 1928.
Ao obrigar os povos indígenas a habitar em pequenas porções de terra
(reservas) o Estado acaba provocando alguns dos complexos problemas
identificados na atualidade: migração para as periferias das cidades, explosiva
densidade demográfica, acirramento das disputas territoriais, aumento das
práticas de violência, assalariamento compulsório dos homens com sua
Governo Imperial deu a Thomas Laranjeira por seu auxílio na Guerra do Paraguai. Teve sua primeira base em Concepción, no Paraguai e em 1882 um Decreto Imperial consolidou a concessão. A Companhia operava no Mato Grosso e Paraguai onde criou um porto especial para suas exportações de mate que iam também para a Argentina. Esse porto passa a ser a sede da empresa, conhecido como Porto Murtinho em homenagem a Joaquim Murtinho, que, já na República, era Ministro da Fazenda da Presidência Campos Salles. Os principais acionistas da Companhia eram o Banco Rio Branco, da família Correa da Costa, a família Murtinho e a família Mendes Gonçalves. A Companhia tinha ferrovia própria e a erva mate era puxada até a linha de trem por 800 carretas para cuja tração a empresa tinha 20.000 bois. Grande parte da mão de obra era indígena, especialmente Guaranis e Kaiowás. De 1926 a 1929 a Companhia era tão rica que emprestou dinheiro ao Estado de Mato Grosso, as exportações para a Argentina cresceram muito, passou a ter também acionistas argentinos. Em 1943, já no Estado Novo, Getúio Vargas cancelou as concessões da Mate Laranjeira criando os Territórios do Iguaçu e de Ponta Porã e o Serviço de Navegação da Bacia do Prata para concorrer com os navios da Companhia. A Companhia Matte Laranjeira foi uma típica empresa colonial de exploração de território, teve grande poder político no Mato Grosso e faz parte de todo o desenvolvimento daquela região, constituiu duas cidades que foram suas bases, Porto Murtinho e Guaíra, deixou sua marca na fase histórica do desbravamento do Oeste brasileiro. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/a-historia-da-companhia-matte-laranjeira>. Acesso em: 30 de abr. 2017. Obs.: a grafia do nome da empresa pode variar conforme a fonte pesquisada: Matte Laranjeira, Mate Laranjeira, Matte Laranjeira.
49
consequente ausência da família, assim como o aumento da dependência de
investimentos e gastos oriundos do governo.
Os problemas de violência contra indígenas, a migração destes para as
cidades e o envolvimento com bebidas alcoólicas ou subempregos é uma
realidade presente em outras áreas habitadas pelos indígenas. Em pesquisa
realizada no município de Campinápolis, na Terra Indígena Parabubure, criada
em 1974 e que possui uma área de 324.447,3367 hectares habitada pelos índios
Xavante, Rezende (2009) constatou a dificuldade de aceitação do outro:
Verifica-se que preconceitos e estereótipos dirigidos ao indígena
brasileiro são atitudes seculares que vêm passando e se
afirmando com o tempo e com o apoio de pessoas e instituições
que divulgam e toma atitudes etnocêntricas e preconceituosas.
(...). Houve nas últimas décadas, neste município, conflitos entre
esses dois povos, como demarcação de terras, a morte de um
vereador não–indígena, presumindo devendo ser devido a
negócios entre eles, a morte de dois pescadores não-indígenas
em área Xavante, a morte recentemente de um indígena Xavante
próximo ao Banco do Brasil, acidentes de trânsito e
corriqueiramente conflitos gerados, devido ao consumo de
bebida alcoólica pelos Xavantes, inclusive adolescentes.
(REZENDE, 2009, p. 29 e 36).
Conflito em Antonio João (MS) vitima os Kaiowá
Segundo informação que consta do banco de dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatísticas (IBGE) e se referem aos números consolidados ano de
201534, o município de Antonio João está localizado na região sudoeste do Mato
Grosso do Sul, e conta com uma população estimada em 8.679 habitantes,
distribuídos em uma área de 1.145,175 Km² resultando em densidade
demográfica de 7,17 hab/km².
De acordo com dados do ISA (socioambiental.org/pt/povo/guarani), na
região fronteiriça entre Paraguai e Brasil, o povo indígena mais numeroso é o
povo Guarani. Como já referenciado, os Guarani se dividem em alguns grupos,
34 Disponível em <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ms/antonio-joao/panorama>. Acesso em: 30 de abr. 2017.
50
dos quais, em território brasileiro, predominam os Mbya, os Kaiowá (conhecidos
no Paraguai como Pãi-Tavyterã) e os Ñandeva (conhecidos como Ava Guarani).
A utilização do território Guarani de tempos imemoriais, começou a ser
objeto de cobiça capitalista após o fim da guerra da Tríplice Aliança (1864-
1870).
Segundo Oliveira e Pereira (2009), a ocupação daquelas terras teve início
com a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, tendo à frente criadores de
gado.
O avanço contra os territórios dos Guarani e seus subgrupos é antiga
conforme relata Lugon (2010), e a ganância colonialista se defrontou com um
povo organizado, com estrutura e governos próprios, arquitetura avançada e
sistema de organização administrativa que superava a outras regiões que haviam
se submetido à força do colonizador, adotando modelos imposto por este:
Em 1750, a República Guarani parecia ter atingido seu máximo
de esplendor. Depois de dez anos, a população voltara a
aumentar regularmente, superando as perdas causadas pelas
epidemias. Começavam a desaparecer as angustias causadas
pela guerra contra o governador Antequera. Artes e ofícios
desenvolviam-se cada vez mais. A vida social estava em sua
plenitude. (LUGON, 2010, p. 193).
Sucessivas e belicosas investidas espanhola e portuguesa arrasaram os
Guarani, todavia o avanço sobre as fronteiras se valeu de outras táticas de poder,
em que até mesmo a burocracia foi utilizada para a dominação:
Por atos aparentemente legais, as melhores terras foram tomadas
dos índios, as lavouras saqueadas, as estâncias e armazéns de
viveres entregues à rapina de parentes de administradores. Para
explicar como essa pilhagem foi feita diante dos olhos de um
povo que sempre fora capaz de se defender, deve-se informar
que todas as armas tinham sido confiscadas pelos soldados
espanhóis. Até os sabres foram proibidos. Além disso, o novo
regime tinha instituído a pena de morte e a mutilação,
desconhecidas no tempo dos jesuítas. (LUGON, 2010, p. 213).
51
Retomando a história de ocupação, Oliveira e Pereira (2009) lembra que a
partir de 1870, ocorreu uma nova tentativa de expulsão dos Guarani, desta feita
pela Companhia Matte Laranjeiras35.
Seja em regime de arrendamento, com ônus, ou concessão sem encargos,
esse grupo econômico Matte Laranjeiras fora agraciado com terras indígenas em
razão dos “bons serviços” prestados na guerra do Paraguai.
Com o advento da modernidade e do fortalecimento da expulsão do capital
sobre áreas tidas como “desocupadas”, o estado brasileiro, passou a interceder na
defesa dos interesses dos grandes proprietários de terra. Tal conduta foi
intensificada com a criação do estado de Mato Grosso do Sul no ano de 197736,
resultando de na redução territorial e no confinamento de indígenas em pequenas
reservas insustentáveis ou em áreas periféricas das cidades.
Ocorreram diversas iniciativas tidas como absurdas para a escolha das
áreas reservadas para indígenas, cujo intuito era eram “legitimar” desocupação de
outras áreas e reunir no mesmo espaço povos indígenas de áreas dispersas, ainda
que houvesse diferenças culturais (e até inimizades capitais) entre eles.
35Inicialmente denominada Empresa Matte Laranjeira, a Companhia Matte Laranjeira foi uma empresa que surgiu de uma concessão imperial ao comerciante Thomaz Laranjeira, por serviços prestados na Guerra do Paraguai. O Decreto Imperial nº 8799, de 9 de dezembro de 1882, autorizava a Laranjeira a exploração da erva-mate nativa, por um período inicial de 10 anos. Atuou na exploração de erva-mate no Sul do então estado de Mato Grosso. Sua primeira sede foi em Concepción, no Paraguai, onde, em 1877, inicia a exploração de erva-mate. (Fonte: Wikipedia). 36 Art. 2º - A área desmembrada do Estado de Mato Grosso para constituir o território do Estado de Mato Grosso do Sul, situa-se ao sul da seguinte linha demarcatória: das nascentes mais altas do rio Araguaia, na divisa entre os Estados de Goiás e Mato Grosso, segue, em linha reta, limitando os Municípios de Alto Araguaia, ao norte, e Coxim, ao sul, até às nascentes do córrego das Furnas; continua pelo córrego das Furnas abaixo, limitando, ainda, os Municípios de Alto Araguaia, ao norte, e Coxim, ao sul, até sua foz no rio Taquari; sobe o rio Taquari até a barra do rio do Peixe, seu afluente da margem esquerda, continuando por este até sua nascente mais alta, tendo os Municípios de Alto Araguaia, ao leste, e Pedro Gomes, ao oeste; segue daí, em linha reta, às nascentes do rio Correntes, coincidindo com a linha divisória dos Municípios de Alto Araguaia e Pedro Gomes; desce o rio Correntes até a sua confluência com o rio Piquiri, coincidindo com os limites dos Municípios de Itiquira, ao norte, e Pedro Gomes, ao sul, continua pelo rio Correntes, coincidindo com os limites dos Municípios de Itiquira, ao norte, e Corumbá, ao sul, até sua junção com o rio Itiquira; da junção do rio Correntes com o rio Itiquira, segue coincidente com a divisa dos Municípios de Barão de Melgaço, ao norte, e Corumbá, ao sul, até a foz do rio Itiquira no rio Cuiabá; da foz do rio Itiquira no rio Cuiabá segue por este até a sua foz no rio Paraguai, coincidindo com a divisa entre os Municípios de Poconé, ao norte, e Corumbá, ao sul; da confluência dos rios Cuiabá e Paraguai sobe pelo rio Paraguai até o sangradouro da Lagoa Uberaba, coincidindo com os limites dos Municípios de Poconé, ao leste, e Corumbá, ao oeste; da boca do sangradouro da lagoa Uberaba segue sangradouro acima até a lagoa Uberaba, continuando, por sua margem sul, até o marco Sul Uberaba, na divisa do Brasil com Bolívia, coincidindo com os limites dos Municípios de Cáceres, ao norte, e Corumbá, ao sul.
52
Um exemplo desta política foi a criação da Reserva Indígena de Dourados,
na década de 1910, como Posto Indígena Francisco Horta Barbosa.A advogada e
historiadora Rosely Aparecida Stefanes Pacheco, docente do Curso de Direito da
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UFMS), em sua pesquisa de
Mestrado reuniu evidências que uma das origens dos conflitos fundiários naquela
região pode ser o viciado processo de regularização das terras indígenas, que
atrai a cobiça de setores do agronegócio.
Segundo a pesquisadora, a forma e o conteúdo das políticas formuladas e
aplicadas pelo SPI e mais recentemente pela FUNAI, acabaram por provocar o
aldeamento dos Kaiowá Guarani, gerando uma série de problemas que antes não
existiam37. De acordo com as conclusões de sua pesquisa o aldeamento indígena
em áreas próximas a núcleos de povoamentos emergentes atendeu aos interesses
de proprietários de terras, que avançaram sobre as áreas que ficaram fora dos
limites dos aldeamentos.
Entre os anos de 1915 e 1928 o Governo Federal demarcou oito pequenas
áreas para usufruto dos Guarani, perfazendo um total de 18.124 hectares
objetivando confinar os diversos núcleos populacionais dispersos em amplo
território ao sul do estado de Mato Grosso do Sul. A desocupação forçada das
antigas áreas demarcadas pelo SPI se constituíram em importante estratégia
governamental de liberação de terras para a colonização e para a atividade
pecuária. Os indígenas, por seu turno, passaram a viver em situação de extrema
carência de recursos naturais, o que os obrigou a perambular pelas cidades ou
engajar-se em atividades agropecuárias em fazendas da região.
Por esses breves relatos é possível perceber a relação assimétrica existente
entre as populações indígenas e o estado brasileiro. Ainda que com pequenos
ajustes, essa tem sido também a relação dos demais estados nacionais, do
Mercosul, à exceção do atual Estado Plurinacional da Bolívia, cuja Constituição
e governos vêm mitigando os danos causados por cinco séculos de colonialidade.
37Disponível em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:VWNVKwamjBgJ:www.neppi.org/gera_anexo.php%3Fid%3D500%2520target%3D+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 5 de ago. 2017.
53
CAPÍTULO II
O TRATADO DO MERCOSUL
Mesmo dando muita importância à independência, autonomia e soberania
nas relações internacionais, na atualidade, muitos países estão se organizando em
blocos homogêneos e com objetivos comuns, a maioria deles de natureza
econômica e capitalista, visando reforçar a competição comercial, principalmente
no embate contra os ditos países desenvolvidos.
Neste capítulo buscamos descrever o histórico de criação do Mercosul.
Entre as fontes utilizadas estão as informações oficiais dos documentos
disponibilizado no portal eletrônico do Mercosul, alguns deles apresentados nos
idiomas português, castelhano e guarani, conforme já mencionado em outra parte
neste trabalho. Algumas informações importantes para a pesquisa são buscadas
na bibliografia, principalmente na área do Direito Internacional, e na medida em
que fazemos o uso de fontes primárias para melhor compreender o tema, a
legislação será fartamente utilizada, o que confere coesão e confiabilidade aos
resultados da investigação.
A primeira referência contemporânea de bloco de países agindo pelo
interesse comum de seus membros foi a União Europeia (UE), criada pelo
Tratado de Mastrich no ano de 1992, por decisão multilateral que transformou a
Comunidade Econômica Europeia38 (CEE) em uma organização política que
representa a vontade coletiva. Seu principal objetivo inicial era a implantação da
moeda única, o Euro, e a integração dos mercados nacionais.
Da mesma forma que ocorre com o Mercosul, a UE sofreu influências no
decorrer do tempo, tendo em vista a diversidade de interesses existentes, O
primeiro ajuste significativo na organização da União Europeia ocorreu em 13 de
dezembro de 2007 por meio do Tratado de Lisboa, que aprovou a participação de
28 países como membros da UE. Mais recentemente, a tendência de redução do
número de adeptos foi protagonizada pela Grã-Bretanha, que declarou seu desejo
38A Comunidade Econômica Europeia (CEE) ou Mercado Comum Europeu foi o embrião da União Europeia. Formada em 1957, com o Tratado de Roma, a organização pretendia permitir a livre circulação de pessoas, mercadorias e serviços entre os países-membros.
54
de abandonar a União Europeia, após uma consulta popular formal, que ficou
conhecido como Brexit39.
Em 1975 cerca de dois terços da população do Reino Unido optara pelo
ingresso do país na UE e, no movimento contrário ocorrido em 2016, 51,9% dos
eleitores optaram por sair. De acordo com as normas que regem o Tratado da UE,
há uma regra de transição que deve ser observada em tais situações, de modo que
uma notificação premonitória foi entregue ao Conselho Europeu, iniciando o
prazo de dois anos para a retirada britânica definitiva da União Europeia, medida
esta que veio prevista no art. 50 do Tratado de Lisboa40.
Só para lembrar, o acordo multilateral que gerou o Mercosul foi
denominado Tratado de Assunção.
Segundo Reis (2008)
[...] tem como membros a Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai,
e foi criado com as seguintes pretensões: a) a livre circulação de
bens, serviços e fatores de produção entre os países, por meio,
entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários, restrições
não-tarifárias à circulação de mercadorias de qualquer outra
medida de efeito equivalente; b) o estabelecimento de uma tarifa
externa e a adoção de uma política comercial comum em relação
a terceiros Estados ou agrupamento de estados e a coordenação
de posições em foros econômico-comerciais regionais e
internacionais (Martins, 2006). O Mercosul (em português:
Mercado Comum do Sul, em espanhol Mercado Común Del Sur,
o Mercosur) é o programa de integração econômica de quatro
países da América do Sul: Argentina, Brasil, Paraguai e
39 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36555376>. Acesso em 1 de ago. 2017. 40ARTIGO 50.º 1. Qualquer Estado-Membro pode decidir, em conformidade com as respectivas normas constitucionais, retirar-se da União. 2. Qualquer Estado-Membro que decida retirar-se da União notifica a sua intenção ao Conselho Europeu. Em função das orientações do Conselho Europeu, a União negocia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União. Esse acordo é negociado nos termos do n.º 3 do artigo 218.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu. 3. Os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação referida no n.º 2, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado-Membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo. 4. Para efeitos dos nº 2 e 3, o membro do Conselho Europeu e do Conselho que representa o Estado-Membro que pretende retirar-se da União não participa nas deliberações nem nas decisões do Conselho Europeu e do Conselho que lhe digam respeito. A maioria qualificada é definida nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 238.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. 5. Se um Estado que se tenha retirado da União voltar a pedir a adesão, é aplicável a esse pedido o processo referido no artigo 49.º.
55
Uruguai. A Venezuela está em processo de adesão desde
dezembro de 2005. O bloco também é chamado de Cone Sul,
porque sua formação original abrangia as nações do sul do
continente, formando um cone. (REIS, 2008, p. 90).
Os vizinhos Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram o Tratado de
Assunção no dia 26 de março de 1991 e deram início ao processo de criação do
Mercado Comum do Sul (Mercosul ou Mercosur)41. O evento ocorreu após um
longo caminho diplomático e político que teve como marco inaugural a criação
da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) no ano de 1980. O
principal objetivo do Tratado de Assunção celebrado pelas nações mercosulinas
em 1991 foi a integração dos Estados Partes através da livre circulação de bens,
serviços e fatores produtivos, com o estabelecimento de uma Tarifa Externa
Comum (TEC). Propunha também a adoção de uma política comercial que fosse
interessante a todos os membros, que facilitasse a coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais e a harmonização das normas nas áreas de interesse
do bloco, principalmente aquelas pertinentes a livre circulação de bens e que
permitam a unificação tributária sem distinção dos mercados domésticos42.
Tratativas iniciais do acordo multilateral
Os planos iniciais do acordo comercial que deu origem ao Mercosul foram
registrados ainda na década dos anos 1980 do século passado quando a Argentina
e o Brasil assinaram diversos acordos de integração comercial. Mas eram
documentos bilaterais e seus efeitos e obrigações não se estendiam aos países
vizinhos. O bloco com diversos integrantes somente seria criado na década
seguinte por meio da celebração do Tratado de Assunção, no Paraguai, agora
envolvendo os governos dos quatro países sul americanos: Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai.
Outros países sul americanos como Chile, Equador, Bolívia, Peru e
Colômbia tornaram-se membros do Mercosul e já assinaram vários acordos
41 A Venezuela ingressou no Mercosul em 31 de julho de 2012 após a Reunião de Cúpula de Mendoza, ocorrida em 29 de junho de 2012. 42Revista de Direito Público, Londrina, v. 2, n. 3, p. 137-148, set./dez. 2007.
56
comerciais e organizam atualmente as suas economias para que a integração total
seja possível. Contudo até então participam das reuniões como países associados
ao bloco. São Estados Associados do Mercosul a Bolívia (em processo de
adesão), o Chile (desde 1996), o Peru (desde 2003), a Colômbia e o Equador
(desde 2004), e Guiana e Suriname já estão nessa condição desde 2013.
No ano de 1995 foi instalada a zona de livre comércio entre os países
membros do Mercosul, e deste modo quase todas as mercadorias produzidas
pelos mesmos (com exceção de alguns produtos que aguardam regulamentação
própria ou não são exportados por serem considerados estratégia comercial dos
países) podem ser comercializadas entre os associados sem que sejam cobradas
as tarifas comerciais, facilitando assim a relação econômica, com a circulação e
exportação de produtos diversos.
Seguindo o processo de evolução do bloco já foi pensada a uniformização
das taxas de juros, modos de cálculo de inflação e índices de déficit público, e
além disso o Mercosul pretende aderir a uma moeda única na expectativa de
simplificar ainda mais as transações monetárias entre os países, como ocorreu na
União Europeia com a adoção do Euro.
O Mercosul prevê em seu regimento a possibilidade de ampliação do
número de estados associados, mas o aderente necessita de aceitação unânime
dos membros signatários, bem como a manifestação dos parlamentos dos países
envolvidos43. Com o objetivo de mediar esse processo, foi criado o Parlamento
do Mercosul, passo importante no sentido de consolidação do bloco. Assim como
se viu na União Europeia, também no ambiente mercosulino a diferença
ideológica e política entre os diversos dirigentes dos países afeta o avanço das
negociações, como pode ser notado no processo de adesão da Bolívia e da
Venezuela. Atualmente o Mercosul vem sofrendo um refluxo provocado pelas
diferenças políticas e ideológicas dos diversos governantes das nações, o que tem
se mostrado como um entrave para o avanço das relações multilaterais.
43Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 01 de ago. 2017.
57
Temáticas importantes como os direitos humanos, a questão indígena e as
populações de fronteira não estavam presentes na fase inicial das tratativas do
Mercosul, e somente após a manifestação dos setores alijados do debate é que se
passou a discutir esses interesses até então invisibilizados. Em relação aos povos
indígenas a discussão se resume a poucas reuniões temáticas ocorridas no ano de
2015, assunto que trataremos mais adiante.
Segundo Mazzuoli (2014) a muito custo o tema dos Direitos Humanos se
converteu em pauta do Mercosul:
Sobre a proteção dos direitos humanos no Mercosul merecem
destaque três principais instrumentos, quais sejam: o protocolo
de Ushuaia sobre o compromisso democrático no Mercosul,
Bolívia e Chile (1998), o Protocolo de Assunção sobre
Compromisso com a Proteção e Promoção dos Direitos
Humanos no Mercosul (2005) e o Protocolo de Montevidéu
sobre compromisso com a Democracia no Mercosul, também
chamado de Ushuaia II (2011) [...] Pelo protocolo de Ushuaia de
1998, também conhecido como “Carta Democrática do
Mercosul”, reconheceu-se que a plena vigência das instituições
democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos
processos de integração entre os seus Estados-partes.
(MAZZUOLI, 2014, p.144/145).
Além de se caracterizar como um bloco econômico, o Mercosul estabelece
que algumas “regras de ouro” devem ser respeitadas por seus membros. A
manutenção da democracia é uma delas.
Pelas normas do Tratado, o Paraguai deveria ser parcialmente suspenso do
Mercosul em 2012 durante a realização da 43ª Cúpula do Mercosul por causa da
deposição sumária do presidente da república Fernando Lugo, fato político que
violaria cláusula do Protocolo de Ushuaia (compromisso democrático), conforme
justificaram os dirigentes. A sanção perduraria até o momento em que o país
restabelecesse a democracia com a realização de nova eleição presidencial ou
restituísse o regime democrático. A Venezuela seria incorporada ao bloco na
mesma data e a medida gerou protestos de alguns membros do bloco, pela
58
mesma razão avocada acima (compromisso democrático)44. A destituição pelo
parlamento brasileiro da presidente Dilma Rousseff também foi considerada por
alguns países um afronto à democracia. Nos três casos citados nenhum dos países
acusados foi expulso ou suspenso, o que indica uma certa tolerância com a
quebra das normas estabelecidas.
Principais blocos econômicos em atividade
MERCOSUL
A decisão dos países sul-americanos em instituir o Mercosul responde a
um movimento que se identifica em diversas partes do mundo, e que decorre da
necessidade das nações de se organizar em blocos econômicos. Efeito da
chamada “Nova Ordem Mundial”, conceito surgido em 1980 com o fim do bloco
soviético, e que objetiva primordialmente defender e potencializar os interesses
do poder financeiro e a livre circulação de moedas45.
À semelhança de outros blocos de nações já existentes, também o
Mercosul é o tipo de organização que serve para a disputa do mercado
internacional e almeja potencializar o poder de barganha dos países membros,
que assim negociariam em melhores condições.
Entre os objetivos do Mercosul é destacada a meta de formação de um
mercado comum entre seus Estados membros, uma vez que o artigo 1º do
Tratado de Assunção entende que a criação de um mercado comum implica na
livre circulação de bens, serviços e fatores de produção entre os países do bloco.
Atua também no estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de
uma política comercial conjunta em relação a terceiros Estados ou agrupamentos
de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais
regionais e internacionais; na coordenação de políticas macroeconômicas e
setoriais entre os Estados Partes. Prevê o compromisso dos Estados Parte em
44 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-12/venezuela-nega-ter-sido-suspensa-do-mercosul>. Acesso em: 14 de jun. 2017. 45 Disponível em:<https://www.estudopratico.com.br/mercosul-caracteristicas-e-objetivos/>. Acesso em: 1 de ago. 2017.
59
harmonizar a legislação nas áreas pertinentes, a fim de fortalecer o processo de
integração.
ALCA (Área de Livre Comércio das Américas)
Sob o argumento de que a iniciativa favorece a integração comercial do
continente, o governo dos Estados Unidos propôs a criação de uma Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA), um grande bloco econômico que seria
integrado por 34 nações, excluindo apenas Cuba. A única razão conhecida para o
veto à ilha caribenha seria a posição ideológica do governo cubano, o que para os
Estados Unidos seria um entrave, mas está em curso um processo de
aproximação entre os dois países, e até já existem voos comerciais regulares
legalmente permitidos, partindo de Havana em direção aos EUA, em serviço
prestado por companhias aéreas estadunidenses46.
A maioria dos países da América Latina interpreta a criação da Alca como
uma manobra dos Estados Unidos para a expansão de suas empresas
transnacionais pelo continente, e que ela seria a grande beneficiária, já que possui
enorme competitividade. Todavia há opositores inclusive dentro dos EUA,
alegando que o bloco econômico diminuiria o número de empresas no país,
46 A empresa Jet Blue realizou nesta quarta-feira (31) o primeiro voo comercial entre Estados Unidos e Cuba, operação que não acontecia desde 1961. O voo comercial decolou de Fort Lauderdale, na Flórida num ambiente festivo. Diante da porta de embarque da JetBlue, uma banda de salsa ao vivo cantava clássicos como “Guantamera” e “Me voypa’Mayari”, encorajando os jornalistas e demais passageiros a dançar. O embaixador cubano nos EUA, José Ramón Cabañas, e o diretor-executivo da JetBlue, Robin Hayes, acompanharam o primeiro voo comercial. Com um batismo com um jato d’água e seus 150 assentos vendidos, o voo 387 da JetBlue partiu às 09h45 (10h45 de Brasília) e chegou ao aeroporto Abel Santamaría, na cidade de Santa Clara, a 280 km a leste de Havana, pouco mais de uma hora depois. Este é o primeiro voo regular entre os dois países desde 1961, quando o tráfego aéreo foi suspenso, vítima da Guerra Fria. A decolagem, que teve um atraso de 20 minutos, foi televisionada ao vivo tanto pelos principais canais americanos em inglês como em espanhol. Washington e Havana acordaram em fevereiro deste ano restabelecer os vôos comerciais, em um ponto de viragem no progressivo restabelecimento dos laços diplomáticos que começou em julho de 2015. Já existem inúmeros vôos regulares programados pelas companhias autorizadas a operar vôos para Cuba: American Airlines, Delta Air Lines, United Airlines, Southwest Airlines, a Alaska Airlines, Frontier Airlines, JetBlue Airways e Spirit Airlines. Dos 60 pedidos realizados para novas operações, apenas 20 serão atendidos. Esta investida só é possível após o restabelecimento diplomático das relações entre EUA e Cuba, que aconteceu em julho de 2015. Disponível em:<http://www.mercadoeeventos.com.br/noticias/aviacao/jet-blue-realiza-primeiro-voo-entre-cuba-e-eua-desde-1961/>. Acesso em 24 de nov. 2017.
60
porque haveria motivos para que algumas delas migrem para outras nações em
busca de mão de obra mais barata.
O 45º presidente estadunidense que tomou posse em janeiro de 2017 foi
eleito com um discurso antiglobalização que convenceu seus eleitores,
criticamente classificados como uma maioria branca e sem formação superior47.
Donald Trump demonstrou não apoiar a ALCA e mesmo o NAFTA, relação
econômica com vizinhos de fronteira que fornecem mão de obra para as
empresas capitalistas dos Estados Unidos.
NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio)
O Nafta foi criado em 1993 e começou com um acordo comercial
estabelecido entre três países do subcontinente da América do Norte: Estados
Unidos, México e Canadá. Em decorrência desse acordo foi implantado o livre
comércio entre as nações integrantes, e a meta inicial era fazer frente à União
Europeia, nascida um ano antes, e que era uma iniciativa bem-sucedida no
cenário mundial. Os críticos afirmaram que o México foi inserido no bloco
somente porque possui um enorme mercado consumidor e também por deter
grande potencial de riqueza em jazida de petróleo, recurso indispensável e cada
vez mais raro nos Estados Unidos e Canadá, além de ser fornecedor de mão de
obra barata aos “parceiros”.
APEC (Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico)
Bem antes do nascimento do Mercosul, da Alca e da conversão da
Comunidade Econômica Europeia (CEE) na União Europeia (UE) foi registrada
a criação da Apec, no ano de 1989, na Austrália. Os idealizadores pensaram na
criação de uma área de livre comércio entre os seus membros e Hong Kong, e no
início o bloco agregou os seguintes países: Austrália, Brunei, Canadá, Chile,
China, Indonésia, Japão, Coréia do Sul, Malásia, México, Nova Zelândia, Papua
47 Disponível em: <http://dicasdevestibular.blogosfera.uol.com.br/2017/06/05/a-era-trump-o-polemico-novo-presidente-dos-estados-unidos/> Acesso em: 27 de jul. 2017.
61
Nova Guiné, Peru, Filipinas, Rússia, Cingapura, Tailândia Vietnã e Estados
Unidos, além de Taiwan (Formosa) e Hong Kong.
Atualmente a Apec é o principal fórum de debates sobre o crescimento
econômico, a cooperação, o comércio e o investimento na região Ásia-Pacífico,
as decisões nesse bloco são tomadas por consenso, e mesmo que a Apec não
apresente nenhum tratado escrito de obrigações mútuas entre seus integrantes há
uma relação de respeito.
UE (União Europeia)
As informações adiante são veiculadas pela Comissão Parlamentar
conjunta do Mercosul e foram transportadas para este trabalho com mais
detalhamentos. A União Europeia (UE) é um bloco econômico, político e social
integrado por 27 países europeus interessados em um projeto de integração
política e econômica. São nações politicamente democráticas e em todos eles
vigora um Estado de direito em pleno vigor48. A UE é o bloco mais antigo em
atividade, surgiu após a segunda grande guerra com o nome de Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço, depois mudou para Mercado Comum Europeu.
Os acordos multilaterais que deram a origem e o formato para a União
Europeia são o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA); o
Tratado da Comunidade Econômica Europeia (CEE); o Tratado da Comunidade
Europeia da Energia Atômica (EURATOM) e o Tratado da União Europeia
(UE).
Desde os primeiros acordos veiculados pelo Tratado de Maastricht foram
estabelecidos fundamentos da futura integração política, os acordos de segurança
e os ajustes de política exterior, confirmando uma Constituição Política para a
União Europeia e a integração monetária através da moeda única, o Euro49.
O grande solavanco sofrido pela UE foi a saída do Reino Unido, associado
que recusou o Euro como moeda, e a decisão plebiscitária dos países do Reino
Unido optando pelo desembarque do seleto grupo de membros de países ficou
48 Disponível em:<http://www.camara.leg.br/mercosul/blocos/introd.htm>. Acesso em: 1 ago. 2017. 49 Disponível em:<http://www.suapesquisa.com/uniaoeuropeia>. Acesso em: 1 ago. 2017.
62
conhecido como Brexit, como já mostrado na pesquisa. A saída dos britânicos foi
impactante para os interesses dos parceiros, mas os maiores efeitos da decisão se
registrarão em médio prazo50. Isso se deve a uma regra de transição, que obriga a
manutenção do vínculo por dois anos após o protocolo da decisão de
desligamento do bloco, sendo que a comunicação oficial da decisão plebiscitária
foi feita em 2017. Nesse período o Reino Unido permanece formalmente
vinculada à UE.
PACTO ANDINO (Comunidade Andina de Nações)
Um outro bloco econômico formado na América do Sul é constituído pela
Bolívia, Colômbia, Equador e Peru e é bem mais antigo que o Mercosul, tendo
sido criado em 1969 para integrar economicamente os países membros. As
relações comerciais entre os associados representam valores importantes, e
embora não integre formalmente o bloco, os Estados Unidos se caracterizam
como o principal parceiro econômico da Comunidade Andina de Nações.
Do mesmo modo que a eleição e posse de Donald Trump em 2017
impacta na manutenção dos blocos criados por iniciativa estadunidense, também
o Pacto Andino deve sofrer a influência da nova orientação.
ALADI (Associação Latino Americana de Integração)
A Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) é um organismo
intergovernamental formado por 14 países latino-americanos, com sede
permanente em Montevidéu (capital do Uruguai). Ainda que seus principais
objetivos sejam econômicos, por isso é tratada por muitos como bloco
econômico, esta associação também busca favorecer a integração social e
tecnológica na região, logo sua meta é o fomento da igualdade entre os países
membros.
50 Disponível em:<http://meexplica.com/2016/06/entenda-a-saida-do-reino-unido-da-uniao-europeia/>. Acesso em: 1 de mai. 2017
63
A ALADI foi criada em 12 de agosto de 1980 por meio do Tratado de
Montevidéu, e desde então são Países membros: Brasil, Argentina, Paraguai,
Uruguai e Chile.
UNASUL (União de Nações Sul Americanas)
Após a criação do Mercosul, e enfrentando entraves para a ampliação do
número de participantes, as nações resolvem instituir a União de Nações Sul
Americanas (Unasul), coletivo formado pela totalidade das nações sul
americanas, em número de 12 países. O tratado constitutivo da organização foi
aprovado durante a Reunião Extraordinária de Chefes de Estado e de Governo
que ocorreu em Brasília, no dia 23 de maio de 200851. Cerca de 10 países já
depositaram seus instrumentos de ratificação (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile,
Equador, Guiana, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), completando o número
mínimo de ratificações necessárias para a entrada do Tratado em vigor, ocorrida
no dia 11 de março de 2011.
A ratificação, segundo Reis (2008):
É o ato pelo qual um Estado informa aos demais a sua
aprovação ao projeto de tratado concluído por seus
plenipotenciários, o que torna a sua observância por aquele
estado obrigatória perante a comunidade internacional. O poder
competente para a ratificação é fixado pelo Direito
Constitucional de cada Estado, sendo um ato do Poder
Executivo, ainda que este não possa prescindir da aprovação do
Legislativo. (REIS, 2008, p. 145).
A Unasul tem como objetivo construir coletivamente e em consenso, um
espaço de articulação no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus
povos. De acordo com seus atos constitutivos, a Unasul prioriza o diálogo
político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura, o
financiamento e o meio ambiente, entre outros objetivos, de modo a criar a paz e
a segurança entre as populações dos países membros, e fomentar políticas que
eliminem a desigualdade socioeconômica, buscar a inclusão social e a
51 Disponível em: http:<//sucupira-geo.blogspot.com.br/2014/>. Acesso em: 27 de jul. 2017.
64
participação cidadã, fortalecendo os processos democráticos e reduzir as
diferenças no marco do fortalecimento da soberania e independência dos estados
que a integram.
Os avanços do Mercosul
Conforme já consignado neste trabalho, o formato jurídico atual do
Mercosul encontra seu marco institucional no Protocolo de Ouro Preto,
idealizado em dezembro de 1994 com o sendo complemento do Tratado do
Mercosul, com as modificações que se sucederam, inclusive para a ampliação
temática e adesão de nações52. O Protocolo de Ouro Preto reconhece a
personalidade jurídica de direito internacional do bloco, atribuindo-lhe a
competência para negociar, em nome próprio, acordos com terceiros países,
grupos de países e organismos internacionais53.
O Mercosul se caracteriza pelo regionalismo aberto, o que significa uma
flexibilização que permite não só o aumento do comércio no interior do bloco,
mas o estímulo ao intercâmbio com outros parceiros comerciais54. Estão na
categoria de Estados Associados do Mercosul a Bolívia, o Chile (desde 1996), o
Peru (desde 2003), a Colômbia e o Equador (desde 2004). Guiana e Suriname
tornaram-se Estados Associados em 2013. O ingresso de novos membros no
bloco, independente da categoria, precisa ser ratificado pelo parlamento de todos
os integrantes conforme ajustado como princípio do acordo.
Na atualidade todos os países da América do Sul fazem parte do Mercosul,
seja como Estados Parte ou como Países Associados.
O aperfeiçoamento da união aduaneira é um dos objetivos basilares do
Mercosul, mostrando que a maioria dos tratados que organizam países em blocos
preferem ajustar os temas econômicos que interessam a todos, e nesse sentido os
52Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 1 de ago. 2017 53 Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017. 54Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017.
65
países membros do Mercosul concluíram no ano de 2010, as negociações para a
edição do Código Aduaneiro do Mercosul.
Outros avanços já identificados: criação do Tribunal Permanente de
Revisão (2002), o Parlamento do Mercosul (2005), o Instituto Social do
Mercosul(2007), o Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos (2009), a
aprovação do Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul (2010) e o
estabelecimento do cargo de Alto Representante-Geral do Mercosul (2010).
Outra medida que demonstra a busca dos objetivos do bloco foi a criação,
em 2005, do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul, instrumento por
meio do qual são financiados projetos de convergência estrutural e coesão social,
contribuindo para a mitigação das assimetrias entre os Estados membros. O
FOCEM começou a operar em 2007 e conta com uma carteira de projetos de
mais de US$ 1,5 bilhão, com particular benefício para as economias menores do
bloco (Paraguai e Uruguai), conforme consta do portal mercosulino na internet.
O Fundo colabora com a melhoria em setores como habitação, transportes,
incentivos à microempresa, biossegurança, capacitação tecnológica e aspectos
sanitários. Por meio dessa política o Mercosul pretende diminuir as diferenças
econômicas entre os seus membros e permitir o acesso das populações aos bens
de consumo.
Em sua origem o Tratado de Assunção permite a adesão dos demais Países
Membros da ALADI ao Mercosul e no ano de 2012 o bloco passou pela primeira
ampliação desde sua criação, com o ingresso definitivo da Venezuela como
Estado Parte. Também foi assinado o Protocolo de Adesão da Bolívia ao
Mercosul, que após a ratificação dos parlamentos dos Estados Partes, fará do país
andino o sexto membro pleno do bloco55.
A adesão da Venezuela
Com a incorporação da Venezuela ao Mercosul, o bloco passou a contar
com uma população de 270 milhões de habitantes (70% da população da
55Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017.
66
América do Sul), chegando a um PIB de US$ 3,2 trilhões (80% do PIB sul-
americano), alcançando um território de 12,7 milhões de km² (72% da área da
América do Sul) o que bem demonstra a sua grandeza56.
Em razão das particularidades de seus países membros, o Mercosul se
apresenta como um ator importante no tratamento de duas questões centrais para
o futuro da sociedade global: segurança energética e segurança alimentar.
Somada à importante produção agrícola (commodities) dos países
membros, que tem na Argentina e no Brasil grandes produtores de alimentos, o
Mercosul passa a ser o quarto produtor mundial de petróleo bruto, superado
apelas pela Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos. Contribuem nessa área o
petróleo venezuelano e o pré-sal brasileiro.
No mês de julho de 2013 a Venezuela recebeu do Uruguai a Presidência
pro tempore do bloco, e este fato possui um significado histórico: é que pela
primeira a presidência do Mercosul é desempenhada por Estado Parte não
fundador57. Na Cúpula de Caracas, ocorrida em julho de 2014, destacou-se a
criação da Reunião de Autoridades sobre Privacidade e Segurança da Informação
e Infraestrutura Tecnológica do Mercosul e da Reunião de Autoridades de Povos
Indígenas.
Uma das prioridades da presidência temporária venezuelana, o Foro
Indígena foi responsável por coordenar o início de discussões políticas e
iniciativas em benefício desses povos. Também foram adotadas as Diretrizes da
Política de Igualdade de Gênero do Mercosul, e o Plano de Funcionamento do
Sistema Integrado de Mobilidade do Mercosul (SIMERCOSUL). Instituído em
2012, durante a Presidência temporária brasileira, o SIMERCOSUL tem como
objetivo aperfeiçoar e ampliar as iniciativas de mobilidade acadêmica no âmbito
dos países do bloco58.
56Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017. 57 Disponível em: <http://www.classificadosmercosul.com.br/site/sobre_mercosul.php>. Acesso em: 1 de ago. 2017. 58 Disponível em: <http://www.mercosul.gov.br/o-mercosul-na-vida-do-cidadao/sistema-integrado-de-mobilidade-do-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017.
67
No ano de 2014 a Argentina assumiu a Presidência pro tempore do
Mercosul e entre os principais resultados alcançados pela Cúpula de Paraná
merecem destaque a assinatura de Memorando de Entendimento de Comércio e
Cooperação Econômica entre o Mercosul e o Líbano, a assinatura de acordo de
Comércio e Cooperação Econômica entre o Mercosul e a Tunísia, e a aprovação
do regulamento do Mecanismo de Fortalecimento Produtivo do bloco59.
No dia 17 de dezembro de 2014 o Brasil recebeu formalmente da
Argentina a Presidência pro tempore do Mercosul e o mandato se estendeu até o
primeiro semestre de 2015.
Antes, em 2013 houve uma “brecha política” para que a temática indígena
viesse a se tornar pauta do Mercosul, e isso só foi possível graças a um
desentendimento entre os países sobre uma manifestação de apoio à Gaza. Diante
da recusa do Paraguai em subscrever o libelo e acompanhar os demais países, o
apoio a Gaza foi descartado, mas com a condição de que a temática indígena
tivesse espaço no debate interno do bloco. Com isso, pelo menos um evento de
porte já foi realizado no ambiente institucional mercosulino, tendo como objeto a
debate sobre povos indígenas no Mercosul.
Saldo econômico e social do Tratado do Mercosul
De acordo com informações do governo brasileiro60, o Mercosul responde
por 71,8% (12.789.558 km²) do território da América do Sul, ou cerca de 3 vezes
a área da União Europeia. A população do Mercosul supera a marca de 275
milhões de habitantes e registra-se grande diversidade de etnias e origens
populacionais.
O Mercosul possui um PIB nominal de US$ 3,2 trilhões e ocuparia a
posição de quinta economia mundial se fosse considerado como um único país,
de acordo com parâmetros do World Economic Outlook Database (FMI)61.
59 Disponível em: http://portal.antaq.gov.br/index.php/internacional/mercosul-2/. Acesso em: 5 de ago. 2017. 60 Disponível em:<http://www.ibge.gov.br/paisesat/main.php>. Acesso em 01 de maio. 2017 61 Disponível em: <http://salesianodombosco.com.br/system/ckeditor_assets/attachments/14422/Aula_Mercosul_-_Eug_nio_-_Geografia_-_9__ano.pdf>. Acesso em: 27 de jul. 2017.
68
O comércio dentro do Mercosul multiplicou-se por mais de 12 vezes em
duas décadas, saltando de US$ 4,5 bilhões em 199162, para US$ 59,4 bilhões em
2013. Cerca de 87% das exportações brasileiras para o bloco é composta de
produtos industrializados63.
Já quanto à produção agrícola o Mercosul é uma potência mundial, graças
a capacidade de produção das cinco principais culturas alimentares globais: trigo,
milho, soja, açúcar e arroz. O Mercosul é o maior exportador líquido mundial de
açúcar, o maior produtor e exportador mundial de soja, 1º produtor e 2º maior
exportador mundial de carne bovina, o 4º produtor mundial de vinho, o 9º
produtor mundial de arroz, além de ser grande produtor e importador de trigo e
milho64.
Graças a união de seus membros, o Mercosul é uma das principais
potências energéticas do mundo, detendo 19,6% das reservas já provadas de
petróleo do planeta, possuindo 3,1% das reservas de gás natural e 16% das
reservas de gás recuperáveis de xisto. O Mercosul titulariza a maior reserva
mundial de petróleo, com mais de 310 bilhões de barris de petróleo em reservas
certificadas pela OPEP e deste montante a Venezuela concorre com uma reserva
de 296 milhões de barris.
Sozinha, a Venezuela domina 92,7% das reservas de petróleo do
Mercosul, mas o Brasil tenderá a ampliar sua participação nas reservas de
petróleo do bloco à medida que os trabalhos de certificação das reservas do pré-
sal brasileiro progridam, com estimativas de algo em torno de 50 bilhões de
barris65.
Assim podemos dizer que não existe discordância quanto aos aspectos
favoráveis em torno da união dos países mercosulinos, sob o prisma econômico
62 Disponível em:<http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Aceso em 1 de ago. 2017. 63Disponível em: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>. Acesso em: 27 de jul. 2017. 64Disponível em: <http://salesianodombosco.com.br/system/ckeditor_assets/attachments/14422/Aula_Mercosul_-_Eug_nio_-_Geografia_-_9__ano.pdf>. Acesso em: 27 de jul. 2017. 65 Disponível em: http://geofisicabrasil.com/noticias/clippings/4591-mercosul-ja-tem-a-maior-reserva-de-petroleo-do-mundo.html. Acesso em 27 de jul. 2017.
69
todos os números são positivos e a consolidação da união reforça o protagonismo
desta região dentro da macro política mundial.
Ancorados nessa breve retrospectiva histórica, jurídica e econômica, no
próximo capítulo trataremos dos aspectos sócio educacionais, considerando que a
integração efetiva das nações sul americanas, deve pautar-se também nas
questões educacionais, étnicas e sociais das populações envolvidas.
70
CAPÍTULO III
NORMAS SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NOS PAÍSES
MERCOSULINOS
Nesta fase da pesquisa trataremos dos sistemas normativos dos 7 países
investigados buscando palavras e terminologias que possam demonstrar, nas
respectivas legislações, as seguintes temáticas: educação, indígena, bilíngue. Para
isso vamos utilizar os atalhos do aplicativo Microsoft Word que está presente no
Office 2016, representados pelo acionamento simultâneo das teclas Control mais
a letra L. Quanto o texto estiver escrito e salvo em formato de arquivo PDF, a
busca se faz com as teclas de atalho Control mais o acionamento da letra F. Em
resumo, para localizar determinada palavra dentro de um texto escrito com o uso
do aplicativo Microsoft Word basta que sejam acionadas as teclas Control e L ao
mesmo. Além de ser encontrada, a quantidade de vezes em que ela aparece no
texto também é mostrada de plano.
Como se trata de uma análise jurídica que reclama um pouco mais de
profundidade sobre os sentidos e significados, nesta parte são utilizadas as
informações de Mazzuoli (2014) que estuda as questões de Direitos Humanos
com incursões dentro das normas do Mercosul. Também usamos a abordagem do
tema com o filtro doutrinário do Direito Internacional e Comunitário como é
tratado por Reis (2008). O estudo sobre os povos Guarani e sua formidável
República conforme narrativa de Lugon (2010) são bastante úteis e buscamos
interpretar as normas sob as regras de Hermenêutica Jurídica descritas por
Limongi França (2011).
Quanto aos textos normativos oficiais, as informações foram buscadas nos
bancos de dados consolidados e disponibilizados pelos portais do Mercosul,
veiculados em três línguas distintas (português, castelhano e guarani)66 e nos sites
dos governos dos 7 países pesquisados. O artigo 46 do Protocolo de Ouro Preto
indica que os idiomas oficiais do Mercosul são o espanhol e o português, e a
66 Disponível em: < http://www.mercosur.int/innovaportal/v/7989/12/innova.front/pagina-principal>. Acesso em 17 de out. 2017.
71
versão oficial dos documentos de trabalho será na língua oficial do país sede de
cada reunião. O parlamento do Mercosul inovou acolhendo o Guarani como mais
uma língua opcional para produção dos documentos do bloco.
Sobre a interpretação de normas escritas, segundo França (2011),
A interpretação da lei, conforme o ensinamento de Fiore, é a
operação que tem por fim “fixar uma determinada relação
jurídica, mediante a percepção clara e exata da norma
estabelecida pelo legislador”. Assim, como bem assinala Carlos
Maximiliano, ela não se confunde com a hermenêutica, parte da
ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização
dos processos, que devem ser utilizados para que a
interpretação se realize, de modo que seu escopo seja alcançado
da melhor maneira. (FRANÇA, 2011, p. 19).
Assim, de acordo com classificação defendida por França (2011), os
critérios para a classificação das espécies de interpretação das leis seria: (i)
quanto ao agente; (ii) quanto à natureza; (iii) quanto à extensão. Interessa-nos
saber que os critérios quanto à natureza da interpretação das normas seriam: 1)
gramatical; 2) lógica; 3) histórica; 4) sistemática. Gramatical toma como ponto
de partida o exame do significado e alcance das normas. Interpretação lógica
busca o sentido das locuções, historicamente quer significar um modo de
interpretação vinculado ao desenvolvimento e evolução da norma jurídica. E o
critério sistemático seria a descoberta onde a mens legis deve ser pesquisada em
conexão com as demais normas do estatuto onde se encontra.
Relembramos que uma decisão coletiva tomada em reunião realizada em
Brasília no dia 15 de dezembro de 2006 aceita a língua Guarani como um dos
idiomas do Mercosul, uma vez que reúne dez milhões de falantes, e desde o ano
de 2014 se tornou língua oficial de trabalho do Parlamento do Mercosul67. Outra
fonte primária usada nesta parte da pesquisa é o sitio dos parlamentos dos países
mercosulinos e os portais legislativos mantidos pelos respectivos governos.
Já narramos aqui o fato político ocorrido no ano de 2014,quando se
discutia a proposta de uma declaração conjunta do Mercosul, cujos debates
67 Disponível em: <https://www.parlamentomercosur.org/innovaportal/v/8222/2/parlasur/lingua-guarani-se-torna-idioma-oficial-de-trabalho-do-parlamento-do-mercosul.html>. Acesso em: 26 de jul. 2017.
72
tiveram alto impacto na temática indígena, e foi causado pela recusa do Paraguai
em subscrever um documento produzido em comum, o que violou a unidade do
grupo68. Como reflexo inusitado, ao final da reunião foi divulgada a decisão de
instituir o Mercosul Indígena. E a proposta brasileira de antecipar para aquele
ano a formação de uma área de livre comércio com a Colômbia e o Peru, prevista
para vigorar em 2019, foi rechaçada e nem chegou a ser examinada quanto ao
mérito.
Na mesma oportunidade foi rejeitada a celebração de um acordo com a
União Europeia (UE) e teve início a negociação de tratado para a criação de zona
econômica complementar com a Aliança Bolivariana (Alba) e a Petrocaribe. Isso
bem demonstra o embate de forças ideológicas dentro do ambiente decisório
mercosulino.
Assim, sob a presidência pro tempore da Venezuela em reunião que
ocorreu em Ciudad Bolívar nos dias 11 e 12 de outubro de 2013, aconteceu um
encontro de governos e povos indígenas para lançamento do Mercosul Indígena,
um espaço pensado para o debate das principais questões ligadas à promoção de
direitos e a defesa dos povos indígenas que habitam as diversas nações do
bloco69.
O encontro contou com a participação de lideranças indígenas de todos os
países do Mercosul e mais as delegações oficiais da Argentina, Bolívia, Uruguai
e Brasil. Além dos diplomatas brasileiros, a nossa delegação era formada por
representantes da FUNAI. A qualificação dos debatedores presentes contribuiu
68 Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, declarou que os demais presidentes do Mercado Comum do Sul (Mercosul) propuseram na reunião da terça-feira, dia 29, em reunião da cúpula do bloco, divulgação de um comunicado se posicionando contra os ataques de Israel à população palestina e exigindo imediato cessar-fogo na Faixa de Gaza. Segundo Maduro há um profundo sentimento de solidariedade com o povo palestino e consenso quanto à necessidade do cessar-fogo e reinício das conversações de paz. Maduro fez as declarações baseadas na reunião privada antes que tivessem início as deliberações públicas da Cúpula do Mercosul, que está sendo realizada na Casa Amarela, sede da Chancelaria venezuelana. Participam do encontro de Caracas, além de Maduro, os presidentes da Argentina, Cristina Kirchner; do Brasil, Dilma Rousseff; do Uruguai, José Mujica; do Paraguai, Horacio Cartes; e da Bolívia, Evo Morales. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/mercosul-posiciona-se-contra-situacao-na-faixa-de-gaza>. Acesso em 14 de jun. 2017. 69 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/530-funai-participa-de-lancamento-do-mercosul-indigena-na-venezuela?limitstart=0>. Acesso em: 14 de jun. 2017.
73
para que a presidência temporária da Venezuela encaminhasse o resultado das
discussões às instâncias oficiais do Mercosul.
A legislação doméstica dos países do Mercosul sobre Educação Indígena
Como preliminar para o ingresso na análise do objeto que move esta
pesquisa é necessário dizer que a Constituição Federal é o documento jurídico
mais relevante de uma nação. Por meio dele o país é criado, é definido o sistema
de governo, como se dá a divisão de poderes, o regime de eleições, os direitos e
garantias dos cidadãos nacionais e o sistema tributário, entre outros aspectos.
Ora, se a Constituição é o documento máximo que orienta a formação dos
países, se é o instrumento jurídico por meio do qual ele define a forma de acesso
e exercício dos poderes, a divisão de atribuições legislativas, jurisdicionais e
executivas, é certo que nenhuma palavra ali contida seja desnecessária. Como
norma jurídica que seleciona os direitos elevados à categoria máxima, os
chamados direitos constitucionais, o texto evidencia quais os interesses jurídicos
que terão tratamento prioritário naquele Estado. Ao obter o status de norma
constitucional, o bem jurídico adquire tutela diferenciada e é protegido inclusive
contra o legislador, que não pode criar qualquer espécie de lei ou regulamento
que venha a diminuir ou ofender direito ou interesse constitucionalmente
protegido.
Os documentos de países do Mercosul que foram analisados nesta
pesquisa guardam um todo orgânico e sistematizado, as normas constitucionais
estão agrupadas em títulos, capítulos e seções, com conteúdo, origem e finalidade
diversos. Todavia notamos uma semelhança interessante nos diversos textos
constitucionais dos 7 países, alguns bens jurídicos e direitos são protegidos
igualmente em todas as nações mercosulinas pesquisadas.
Lenza (2012) classifica os elementos da Constituição Federal do Brasil
vigente e assim os descreve:
■ elementos orgânicos: normas que regulam a estrutura do
Estado e do Poder. Exemplos: a ) Título III (Da organização do
74
Estado); b ) Título IV (Da organização dos Poderes e do Sistema
de Governo); c ) Capítulos II e III do Título V (Das Forças
Armadas e da segurança pública); d ) Título VI (Da Tributação e
do Orçamento);
■ elementos limitativos: manifestam-se nas normas que
compõem o elenco dos direitos e garantias fundamentais
(direitos individuais e suas garantias, direitos de nacionalidade e
direitos políticos e democráticos), limitando a atuação dos
poderes estatais. Exemplo: Título II (Dos Direitos e Garantias
Fundamentais), excetuando o Capítulo II do referido Título II
(Dos Direitos Sociais), estes últimos definidos como elementos
socioideológicos;
■ elementos socioideológicos: revelam o compromisso da
Constituição entre o Estado individualista e o Estado social,
intervencionista. Exemplos: a) Capítulo II do Título II (Dos
Direitos Sociais); b ) Título VII (Da Ordem Econômica e
Financeira); c ) Título VIII (Da Ordem Social);
■ elementos de estabilização constitucional: consubstanciados
nas normas constitucionais destinadas a assegurar a solução de
conflitos constitucionais, a defesa da Constituição, do Estado e
das instituições democráticas. Constituem instrumentos de
defesa do Estado e buscam garantir a paz social. (LENZA, 2012,
p. 238/241).
Para buscar os dados que interessam a este ponto da pesquisa foi
necessário eleger como alvo o sistema normativo de 7 países, no caso os textos
das constituições em vigor e as leis que tratam sobre as políticas de educação.
Pode-se classificar esta parte como pesquisa quantitativa, porque se busca nos
textos das normas a quantidade em que são apresentadas as seguintes palavras-
chave: educação, indígena, bilíngue e a locução educação indígena. Conforme já
referenciado, foram investigados os textos constitucionais e legais da Argentina,
Brasil, Bolívia, Paraguai, Peru, Venezuela e Uruguai.
Como demonstrado em nossa pesquisa, a América Latina é um espaço em
permanente ebulição política e social cujos movimentos são gerados em parte
pelos interesses capitalistas que cobiçam as riquezas naturais do território. A área
é rica em agricultura, produção agropecuária, produção mineral, petróleo
incluído, além do potencial de consumo.
Essa informação foi recuperada como forma de entender as modificações
legislativas que se sucedem com muita frequência nesses países, impondo ao
75
pesquisador um compromisso com a atualização constante sob pena de adicionar
informação que não possua mais validade.
A base de dados pesquisada consta dos sistemas de publicação de leis de
cada um dos países mantidos nos portais da internet e foi buscada a versão mais
recente da norma, incluídas as Constituições de cada um dos membros do
Mercosul. Essas Constituições sofreram modificações importantes nos anos 90
do século XX como reflexo das mudanças políticas havidas na região. Foram
investigados os textos da Lei Geral de Educação ou o texto equivalente
atualmente em vigor na Argentina, Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai, Venezuela e
Uruguai. A primeira fonte de busca dos textos constitucionais foi o portal
brasileiro do Mercosul70 e mesmo neste espaço oficial existem documentos
públicos desatualizadas e contraditórios.
A importância do texto da constituição, segundo Pinho (2012):
A Constituição é a lei fundamental de organização do Estado, ao
estruturar e delimitar os seus poderes políticos. Dispõe sobre os
principais aspectos da sua estrutura. Trata das formas de Estado
e de governo, do sistema de governo, do modo de aquisição,
exercício e perda do poder político e dos principais postulados
da ordem econômica e social. Estabelece os limites da atuação
do Estado, ao assegurar respeito aos direitos individuais. O
Estado, assim como seus agentes, não possui poderes ilimitados.
Devem exercê-los na medida em que lhes foram conferidos
pelas normas jurídicas, respondendo por eventuais abusos a
direitos individuais. (PINHO, 2012, p. 47).
Nas Constituições dos 7 países filtramos as palavras-chave para saber a
“intenção” do país com a educação escolar indígena, identificando a data da
mais recente atualização dos textos no momento em que elaboramos a Tabela 1,
e a quantidade que são repetidos os termos que nos interessam:
70http://www.mercosul.gov.br/
76
Tabela 1 – Constituição em vigor nos países pesquisados
Fonte: Dados coletados pelo pesquisador
O mesmo processo nós utilizamos para compreender as leis gerais de
educação de cada um dos países pesquisados, tendo o mesmo cuidado de buscar
o texto mais atualizado e eventualmente o contexto em que foram elaboradas as
modificações, porque o critério da temporalidade guarda seus significados:
Tabela 2: Leis gerais de educação dos sete países
Fonte: Dados coletados pelo pesquisador
Após esta abordagem é possível interpretar a presença da educação
escolar indígena no planejamento e execução de políticas nos países
pesquisados, a localização topográfica da norma dentro de um sistema de
princípios e regras, e a sua relação com a política pública institucionalmente
prevista. Identificar a repetição das palavras é importante porque bem demonstra
Bilingue
Argentina 1
Bolívia 0
Brasil 0
Paraguai 1
Peru 1
Uruguai 0
Venezuela 1
PAÍSPromulgação
Quantas vezes se repetem os termos
Indígena
17 022/08/1994
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Educação Educação Indígena
040
01/03/1967 5 00
24/03/2000 24
0
29/12/1993 28 0
07/02/2009 46 0
15/10/1988 58 0
256
11
11
1
17/01/2002 22
Bilingue
Argentina 1
Bolívia 0
Brasil 0
Paraguai 1
Peru 2
Uruguai 0
Venezuela 6Ley 5929E, de 15/08/2009, Ley Organica de Educacion 174 12 0
Ley 28044, de 17/07/2003, Ley General de Educacion 233 5 0
Ley 18437, de 12/12/2008, Ley General de Educacion 429 1 0
Lei nº 9.394, de 20/12/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação 243 15 0
Ley 1264, de 26/05/1998,Ley General de Educacion 303 1 0
Ley nº 26206, de 14/12/2006, Ley de Educacion Nacional 291 8 0
Ley nº 70, de 20/12/2010, Ley Avelino Sinani e Elizardo Peres 331 36 0
PAÍS
LEI DE DIRETRIZES DA EDUCAÇÃO
A lei de educação, seu numero e a data da publicação Quantas vezes se repetem os termos
Educação Indígena Educação Indígena
77
a intencionalidade dos governos para determinada política pública, sempre
considerando que a lei não traz palavras inúteis.
Educação escolar indígena na Argentina
A quantidade em que uma palavra tratando sobre uma determinada
política pública é repetida no texto da norma, guarda relação com o compromisso
estatal com aquele direito ou interesse jurídico. Diferente dos outros países
investigados, na Argentina a Constituição é antiga e é alterada com alguma
regularidade, todavia mantém o texto originalmente aprovado em 1853. A Ley nº
24.430 ordena a publicação da Constituição da Nação Argentina e informa na
ementa que o texto original é de 1853, com modificações aprovadas em 1860,
1866, 1957 e 1994. É um formato diferente daquele em vigor nos demais países,
que não adotam uma lei ordinária para publicar a Constituição federal, mas a
diferença se restringe à forma, mas não ao conteúdo.
No texto argentino a palavra educação aparece escrita 7 vezes e no
principal dispositivo ela tem relação com a competência do Congresso argentino
que pode sancionar leis de base educacional (competência que geralmente é do
executivo), mas respeitando as diferenças locais, e que a norma aprovada deva
promover os valores democráticos:
Art. 75[...] 19 [...]
Sancionar leyes de organización y de base de la educación que
consoliden la unidad nacional respetando las particularidades
provinciales y locales; que aseguren la responsabilidad
indelegable del Estado, la participación de la familia y la
sociedad, la promoción de los valores democráticos y la
igualdad de oportunidades y posibilidades sin discriminación
alguna; y que garanticen los principios de gratuidad y equidad
de la educación pública estatal y la autonomía y autarquía de las
universidades nacionales.
Destacamos o fundamento de educação para estabelecer a unidade
nacional, a vedação à discriminação e a garantia da gratuidade da educação e a
autonomia universitária.
No texto constitucional não existe a locução educação indígena, mas
quando discorre sobre a competência congressual para legislar sobre a política de
78
educação, a Constituição argentina exige que o ensino seja bilíngue,
reconhecendo a pré-existência étnica e cultural dos povos indígenas, inclusive
declarando serem legítimas as suas instituições de representações coletivas:
Art. 75(...)
17. Reconocer la preexistencia étnica y cultural de los pueblos
indígenas argentinos.
Garantizar El respeto a su identidad y El derecho a una
educación bilingüe e intercultural; reconocer la personería
Jurídica de sus comunidades, y la posesión y propiedad
comunitarias de lãs tierras que tradicionalmente ocupan; y
regular la entrega de otras aptas y suficientes para El desarrollo
humano; ninguna de ellas será enajenable, transmisible ni
susceptible de gravámenes o embargos. Asegurar su
participación en la gestión referida a sus recursos naturales y a
los demás intereses que los afecten. Las províncias pueden
ejercer concurrentemente estas atribuciones.
A regulamentação da política educacional da Argentina veio por meio da
Ley nº 26.206, de 14/12/2006, a Ley de Educación Nacional, que baliza essa
política governamental internamente e repete a palavra educação 291 vezes, o
que é natural. Já a palavra indígena é mencionada uma única vez e não há
registros da locução educação indígena, ainda que o termo bilíngue seja
apresentado em uma oportunidade.
A previsão expressa da educação intercultural e bilíngue é veiculada no
dispositivo do artigo 17 da lei, na parte em que são descritos funcionamento e
estrutura do sistema educativo nacional argentino:
ARTÍCULO 17.- La estructura del Sistema Educativo Nacional
comprende cuatro (4) niveles –la Educación Inicial, la
Educación Primaria, la Educación Secundaria y la Educación
Superior-, y ocho (8) modalidades.
A los efectos de la presente ley, constituyen modalidades del
Sistema Educativo Nacional aquellas opciones organizativas y/o
curriculares de la educación común,dentro de uno o más niveles
educativos, que procuran dar respuesta a requerimientos
específicos de formación y atender particularidades de carácter
permanente o temporal, personales y/o contextuales, com el
propósito de garantizar la igualdade nel derecho a la educación y
cumplir com lãs exigências legales, técnicas y pedagógicas de
los diferentes niveles educativos. Son modalidades: la
Educación Técnico Profesional, la Educación Artística, la
79
Educación Especial, la Educación Permanente de Jóvenes y
Adultos, la Educación Rural, la Educación Intercultural
Bilingüe, la Educación en Contextos de Privación de Libertad y
la Educación Domiciliaria y Hospitalaria.
Las jurisdicciones podrán definir, con carácter excepcional,
otras modalidades dela educación común, cuando
requerimientos específicos de carácter permanente y contextual
así lo justifiquen.
Educação escolar indígena na Bolívia
O Estado Plurinacional da Bolívia apresenta algumas características que o
difere dos vizinhos de território, entre elas o fato de ser o país com o maior
contingente indígena do Mercosul. Cerca de 70% da população boliviana se
autodeclara pertencer a um dos povos indígenas existentes no território, o que
bem demonstra ser a Bolívia um país onde impera a cultura de respeito aos
diferentes e às múltiplas heranças.
A Constitucion Política Del Estado Plurinacional de Bolívia foi votada
pelos congressistas em 2007 e submetida à confirmação popular por meio de
referendo que ocorreu no ano de 2009, revelando outra diferença institucional
com os seus vizinhos mercosulinos.
Consta no preâmbulo da Constituição boliviana que
“Dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y
neoliberal. Asumimos el reto histórico de construir
colectivamente el Estado Unitario Social de Derecho
Plurinacional Comunitario, que integra y articula los propósitos
de avanzar hacia una Bolivia democrática, productiva, portadora
e inspiradora de la paz, comprometida con el desarrollo integral
y con la libre determinación de los pueblos.”.
Tradicionalmente o texto constitucional é um documento jurídico, mas
também possui natureza política, a votação da Constituição é o momento no qual
o legislador permite ver revelada a influência ideológica daquele continente de
eleitores que tenha lhe proporcionado a assunção do mandato no parlamento. No
documento boliviano a política adotada pelo país é de reação contra a
colonialidade, uma vez que historicamente os povos indígenas estiveram fora das
decisões políticas, ainda que representassem a esmagadora maioria da população.
80
O Estado Plurinacional da Bolívia é formado por 9 Departamentos, o que
se equipara às unidades federadas “estados”, no Brasil. E os departamentos se
subdividem em Províncias, com a respectiva capital. No que interessa à pesquisa,
a Província de Chiquitos, cuja capital é San Jose, se localiza no Departamento de
Santa Cruz, onde se encontra a maior parte da população Chiquitana.
No texto constitucional da Estado Plurinacional da Bolívia a palavra
educação é mencionada 46 vezes e o termo indígena é escrito 256 vezes, não
existindo a locução educação indígena e nem foi identificado o termo bilíngue.
Diferente das demais constituições dos países mercosulinos, o Estado
Plurinacional da Bolívia possui dois preâmbulos, um deles apenas para veicular a
mensagem do presidente Juan Evo Morales Ayma, o indígena Aymara que
liderou o processo de elaboração da nova configuração constitucional.
Interessante dizer que a política de educação que consta da Constitucion
Política Del Estado Plurinacional de Bolívia revela que ela é um fim e uma
função essencial do Estado:
Artículo 9. Son fines y funciones esenciales del Estado, además
de los que establece la Constitución y la ley: (..)
5. Garantizar el acceso de las personas a la educación, a la salud
yal trabajo.
Ainda que não trate de educação indígena e bilíngue de modo estanque, a
Constitucion Política Del Estado Plurinacional de Bolívia dispõe sobre a
autonomia dos diversos povos inclusive para manter seu próprio sistema
judicial71 (artigo 179), e dispõe que sua organização administrativa se divide em
departamentos, províncias, municípios e territórios indígenas originários
campesinos.
Já a Ley 70, Ley de la educacion boliviana, homenageia dois professores
indígenas que são pioneiros no processo educacional dos povos originários:
Avelino Siñani e Elizardo Pérez. Os dois estudaram clandestinamente na infância
uma vez que esse direito era vedado aos indígenas, ambos foram alfabetizados
num momento em que o espaço escolar era negado indígena, a quem o ingresso
71jurisdicción indígena originaria campesina
81
nas salas de aula se constituía em infração. Indignados com tal proibição
discriminatória e como forma de auxiliar a população indígena, Avelino Siñani e
Elizardo Pérez se dedicaram à causa educacional, e sua luta permitiu aos
indígenas o direito de frequentar livremente escolas e obter a educação formal.
No artigo 7 dispõe a Ley 70 que a língua originária será utilizada desde a
alfabetização:
Artículo 7. (Uso de Idiomas oficiales y lengua extranjera). La
educación debe iniciarse en la lengua materna, y su uso es una
necesidad pedagógica en todos los aspectos de su formación.
Por la diversidad lingüística existente en el Estado Plurinacional,
se adoptan los siguientes principios obligatorios de uso de las
lenguas por constituirse en instrumentos de comunicación,
desarrollo y producción de saberes y conocimientos en el
Sistema Educativo Plurinacional.
1. En poblaciones o comunidades monolingües y de predominio
de la lengua originaria, la lengua originaria como primera
lengua y el castellano como segunda lengua. 2. En poblaciones o
comunidades monolingües y de predominio del castellano, el
castellano como primera lengua y la originaria como segunda.
O governo boliviano destinou recursos a programas educacionais para a
erradicação do analfabetismo, e por meio de estudos ficou demonstrado que o
programa “Yo Sí Puedo”, importado de Cuba, conseguiu reduzir a taxa nacional
de analfabetismo de 13,28% em 2011 para 3,8% em julho de 2014 o que
aproxima a Bolívia da erradicação do analfabetismo72.
Educação escolar indígena no Brasil
A Constituição Federal foi promulgada em 05/10/1988, é tratada como
Constituição Cidadã porque teria elevado à categoria de norma constitucional
uma série de direitos civis e sociais. Sobre o tema indígena a chamada Carta
Magna possui dois dispositivos importantes e que estão balizando a elaboração
de leis para essas populações. Para indicar o valor dado à questão indígena o
texto constitucional criou um capítulo específico onde apresenta o desejo do
72 Disponível em: < http://www.revistaeducacao.com.br/programa-de-alfabetizacao-boliviano-ensinou-mais-de-um-milhao-de-adultos-a-ler-e-escrever/>. Acesso em 17 de out. 2017.
82
estado brasileiro de proteger os seus povos indígenas, distribuindo direitos em
dois artigos com diversos incisos:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por
eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias
a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-
se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo
das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os
potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas
minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da
lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e
indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras,
salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de
catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato
logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os
atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das
terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado
relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei,
quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º
e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do
processo.
Ainda que não seja tema de nossa pesquisa, mas tratando aqui como
registro de um fenômeno que ocorre no Brasil no final do ano de 2017, no
83
momento de fechamento desta pesquisa estava em discussão na Câmara dos
Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 215, que praticamente revoga
o artigo 231 da Constituição Federal. Em artigo de nossa lavra, publicado em
alguns jornais regionais73, argumentamos que a proposta legislativa contém
vícios de constitucionalidade e fere a Convenção nº 169 da OIT, além de atentar
contra dispositivos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Ao retomar o raciocínio da pesquisa e a análise da Constituição da
República Federativa do Brasil constamos que o texto normativo veicula a
palavra educação em 58 passagens, o termo indígena é citado 11 vezes, a palavra
bilíngue é ignorada e a locução educação indígena não aparece neste documento.
Isso bem demonstra o tamanho dos compromissos aceitos pelo estado brasileiro
em benefício desta parcela da população, e diferentemente de outros países
pesquisados, no Brasil a Constituição não veicula dispositivos que se refiram à
educação escolar indígena de forma especial, isso não seria objetivo estatal.
Os artigos 231 e 232 traduzem o interesse do estado brasileiro pela
questão da terra, dizendo que a posse territorial é do povo indígena e que está
vedada a exploração econômica deste bem sem a devida autorização estatal. O
texto constitucional trata sobre os recursos hídricos existentes em territórios
indígenas e sobre a exploração dos recursos minerais, ressalvando que a União
Federal por meio de lei pode tratar da exploração do subsolo se isso for de seu
interesse. Como se vê o legislador constituinte fez uma opção em privilegiar as
questões materiais e capitalistas, pouco se referindo quanto aos direitos imateriais
e culturais dos povos indígenas.
Na qualidade de norma geral que trata da educação escolar brasileira, a
Lei nº 9.394, de 20/12/1996, também conhecida como LDB (Lei de Diretrizes e
Base da Educação) se refere à educação em 253 passagens e trata de indígena em
15 momentos, mencionando o termo bilíngue em uma única oportunidade e
ignorando a locução educação indígena.
Sobre educação destinada aos povos indígenas:
73Artigo “A PEC 2015 e os povos indígenas” - Vilson Pedro Nery. Disponível em: <http://www.folhamax.com.br/opiniao/a-inconstitucional-pec-215-ameaca-de-extincao-os-povos-indigenas/133987>> Acesso em: 5 de ago. 2017.
84
Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das
agências federais de fomento à cultura e de assistência aos
índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa,
para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos
povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a
recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas
identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às
informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade
nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas
de ensino no provimento da educação intercultural às
comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de
ensino e pesquisa.
§ 1º Os programas serão planejados com audiência das
comunidades indígenas.
§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos
Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:
I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de
cada comunidade indígena;
II - manter programas de formação de pessoal especializado,
destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles
incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas
comunidades;
IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático
específico e diferenciado.
A LDB sofreu modificação recente para a incluir nos currículos do ensino
fundamental e ensino médio a obrigatoriedade do estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.Avaliando o mérito da legislação sobre a matéria o
pesquisador Darci Secchi74 entende que a legislação deixou de contemplar duas
premissas para a superação do modelo integracionista: iniciativa e controle das
sociedades indígenas sobre o processo de produção dos programas educacionais.
O indígena continua como ouvinte e não de debatedor das políticas que lhe
afetam.
74 Anais do Simpósio sobre “Legislação escolar indígena, “Apontamentos acerca da regularização das escolas indígenas”, página 137.
85
Educação escolar indígena no Paraguai
Seguindo a mesma metodologia válida para buscar palavras nos textos
legais de outros países sobre o tema da pesquisa, ampliamos o nosso acervo com
dados coletados em normas positivadas pelo estado paraguaio. A palavra
educação é mencionada no texto da Constitución de la República de Paraguay
por 22 vezes e o termo indígena é citado 11 vezes, enquanto que bilíngue aparece
uma única vez.
A informação que aqui merece destaque é que o artigo 66 da Constituição
do Paraguai dispõe que o Estado respeitará as peculiaridades culturais dos povos
indígenas no processo de educação formal, e protegerá essa população contra a
regressão demográfica e a alienação cultural:
No que interessa:
Artículo 66 - DE LA EDUCACIÓN Y LA ASISTENCIA
El Estado respetará las peculiaridades culturales de los pueblos
indígenas especialmente em lo relativo a la educación formal. Se
atenderá, además, a su defensa contra la regresión demográfica,
la depredación de su hábitat, la contaminación ambiental, la
explotación económica y la alienación cultural.
No entanto a mesma opinião veiculada no texto mais importante para a
formação do sistema jurídico não encontra a adequada repercussão na lei
educacional, que tem por objeto a regulamentação das políticas oficiais de
educação, mas não encarta muitas inovações. A Ley 1.264, de 26/05/1998,
conhecida como Ley General de Educacion, grafa o termo educação em 303
passagens e as palavras indígena e bilíngue uma única vez cada uma, e um dos
exemplos de dispositivo protetivo aos interesses dos povos indígenas remete
exatamente ao texto constitucional:
Artículo 2º. - El sistema educativo nacional esta formulado para
beneficiar a todos los habitantes de la República. Los pueblos
indígenas gozan al respecto de los derechos que les son
reconocidos por la Constitución Nacional y esta ley.
86
Com muita precariedade há outra menção da lei de educação sobre a
educação escolar de grupos étnicos, e a integração destes à sociedade paraguaia
com respeito aos valores culturais seria uma de suas finalidades:
Artículo 78.- La educación em los grupos étnicos tendrá como
finalidad afianzar los procesos de identidad, e integración em la
sociedad paraguaya, respetando sus valores culturales.
Educação escolar indígena no Peru
Segundo informa o portal do parlamento peruano a Constituição foi
“Aprobada por El Congreso Constituyente Democrático, bajo la presidencia de
Jaime Yoshiyama Tanaka. Ratificada em El referendum del 31 de octubre de
1993. Promulgada por Alberto Fujimori Fujimori, Presidente Constitucional de la
República. Contiene: 206 artículos, 16 disposiciones finales y transitorias y 2
disposiciones transitórias especiales. Vigencia: 29-12-1993 a la actualidad”75.
A exemplo da maioria das constituições investigadas neste trabalho, a
Constitucion Politica Del Peru também tem pouca idade, tendo sido promulgada
em 1993, logo seus dispositivos guardam harmonia com a orientação da
Convenção nº 169 da OIT. Por força desse dispositivo de Direito Internacional e
sob a influência dos documentos legais dos vizinhos mercosulinos, também no
Peru há uma tendência governamental de harmonizar as políticas destinadas a
minorias e com esse viés o texto reproduz a palavra educação 28 vezes, ainda
que a palavra indígena apareça em uma única oportunidade.
Eis o dispositivo:
Artículo 1.- Defensa de la persona humana
La defensa de la persona humana y el respeto de su dignidad son
el fin supremo de la sociedad y del Estado.
CONCORDANCIAS: Ley Nº 28736 (Ley para la protección de
pueblos indígenas u organismos en situación de aislamiento y en
situación de contacto inicial)
75 Disponível em: < http://www.leyes.congreso.gob.pe/constituciones.aspx>. Acesso em: 23 de nov. 2017.
87
Todo peruano tiene derecho a usar su propio idioma ante
cualquier autoridad mediante un intérprete. Los extranjeros
tienen este mismo derecho cuando son citados por cualquier
autoridad.
Analisando o teor do artigo 1º, que trata dos direitos fundamentais, pode-
se ver que ele se refere ao direito que o indígena peruano possui de usar
livremente o seu idioma perante as autoridades estatais. É a face visível do
declínio e da sucumbência, visto que antes da invasão ibérica o Império Inca
ocupava o território do atual Peru, tendo ali a sua sede administrativa e exercia
poderes que se estendiam a parcela dos atuais domínios da Argentina, Chile,
Equador e Bolívia. O Inca conquistou e exerceu os atributos da colonialidade
sobre muitos dos povos conquistados, mas na atualidade os descendentes teriam
apenas o “direito” de se expressar na língua mãe diante da autoridade estatal.
E é exatamente por essa razão que uma doutoranda fazer a defesa de seu
trabalho na língua quéchua, que era falada por seus antepassados e na atualidade
por dez milhões de pessoas, parece uma notícia com bastante relevância sob o
ponto de vista da resistência cultural76.
Quanto à oferta de educação bilíngue a previsão está no artigo 17 da
Constituição Peruana e ali consta expressamente que a obrigatoriedade da oferta
da educação e a gratuidade aos necessitados existe, desde que o aluno possua
bom rendimento escolar. A erradicação do analfabetismo é uma política de
estado e uma das formas é o fomento à educação bilíngue e multicultural:
Articulo 17 - Obligatoriedad de la educación inicial,
primaria y secundaria.
La educación inicial, primaria y secundaria son obligatorias. En
las instituciones del Estado, la educación es gratuita. En las
universidades públicas el Estado garantiza el derecho a educarse
gratuitamente a los alumnos que mantengan un rendimiento
satisfactorio y no cuenten con los recursos económicos
necesarios para cubrir los costos de educación.
El Estado garantiza la erradicación del analfabetismo. Asimismo
fomenta la educación bilingüe e intercultural, según las
76 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/03/cultura/1501793917_804712.html. Acesso em: 6 de ago. 2017.
88
características de cada zona. Preserva las diversas
manifestaciones culturales y lingüísticas del país.
Promueve la integración nacional.
A Ley General de Educación, Ley nº 28044, foi publicada em 17/07/2003
e só não é mais antiga que a similar do Brasil, que foi aprovada e sancionada no
ano de 1996, e a Ley General de Educación do Paraguay. A palavra educação
foi grafada 233 vezes, o termo indígena foi escrito cinco vezes e a palavra
bilíngue é mencionada duas vezes.
O que interessa à pesquisa:
Artículo 20°.- Educación Bilingüe Intercultural
La Educación Bilingüe intercultural se ofrece en todo el sistema
educativo:a) Promueve la valoración y enriquecimiento de la
propia cultura, el respeto a la diversidad cultural, el diálogo
intercultural y la toma de conciencia de los derechos de los
pueblos indígenas, y de otras comunidades nacionales y
extranjeras. Incorpora la historia de los pueblos, sus
conocimientos y tecnologías, sistemas de valores y aspiraciones
sociales y económicas.
Portanto o estado peruano reconhece a educação escolar como um direito
universal de seus cidadãos e é disponibilizada a todos indistintamente, todavia a
gratuidade depende do rendimento individual do aluno. A oferta de educação
bilíngue em todos os níveis também é legalmente prevista e esta medida tem por
objetivo conscientizar o aluno sobre “los derechos de los pueblos indígenas, y de
otras comunidades nacionales y extranjeras”.
Educação escolar indígena na Venezuela
Do ponto de vista econômico a República Bolivariana de Venezuela
possui uma importância incomum ao Mercosul graças às suas imensas reservas
de petróleo que atraem os interesses das empresas petroleiras internacionais.
Numa das oportunidades que exercia a presidência pro tempore do bloco
mercosulino, os venezuelanos fizeram a inserção da questão indígena como uma
de suas pautas.
89
A Constitución de la República Bolivariana de Venezuela é recente, foi
promulgada em 24/03/2003 e seu texto prevê aspectos da política de educação
em 24 artigos, traz a palavra indígena escrita 40 vezes, e cita o termo bilíngue em
uma passagem.
Tratando as línguas indígenas como um patrimônio da nação bolivariana e
da humanidade, o texto exige que elas sejam respeitadas em todo o território do
país, e enquadra as línguas dos povos indígenas na categoria de idioma oficial do
estado venezuelano:
Artículo 9. El idioma oficial es el castellano. Los idiomas
indígenas también son de uso oficial para los pueblos indígenas
y deben ser respetados en todo el territorio de la República, por
constituir patrimonio cultural de la Nación y de la humanidad.
A proteção da Constituição vai além da educação formal e exige a
preservação da cultura, cosmovisão, espiritualidade e locais sagrados, a medicina
tradicional e terapias complementares, um regime educacional de caráter
intercultural e bilíngue atendendo suas particularidades e os valores consagrados
pelos diversos povos indígenas:
Artículo 121. Los pueblos indígenas tienen derecho a mantener
y desarrollar su identidad étnica y cultural, cosmovisión,
valores, espiritualidad y sus lugares sagrados y de culto. El
Estado fomentará la valoración y difusión de las
manifestaciones culturales de los pueblos indígenas, los cuales
tienen derecho a una educación propia y a un régimen educativo
de carácter intercultural y bilingüe, atendiendo a sus
particularidades socioculturales, valores y tradiciones.
Artículo 122. Los pueblos indígenas tienen derecho a una salud
integral que considere sus prácticas y culturas. El Estado
reconocerá su medicina tradicional y las terapias
complementarias, con sujeción a principios bioéticos.
Fiel ao nosso método de busca de palavras para identificar a intenção do
legislador constamos que a Ley Organica de Educación, publicada em
15/08/2009, veicula a palavra educação por 174 vezes, o termo indígena é
mencionado 12 vezes e bilíngue se repete 6 vezes no texto legal.
90
O artigo 26 da Ley Organiza de Educación torna a educação bilíngue
multicultural como uma das modalidades de educação oficial oferecidas pelo
estado venezuelano:
Artículo 26. Las modalidades del Sistema Educativo son
variantes educativas para la atención de las personas que por sus
características y condiciones específicas de su desarrollo
integral, cultural, étnico, lingüístico y otras, requieren
adaptaciones curriculares de forma permanente o temporal con
el fin de responder a las exigencias de los diferentes niveles
educativos.
Son modalidades: La educación especial, la educación de
jóvenes, adultos y adultas, la educación en fronteras, la
educación rural, la educación para las artes, la educación militar,
la educación intercultural, la educación intercultural bilingüe, y
otras que sean determinadas por reglamento o por ley. La
duración, requisitos, certificados y títulos de las modalidades del
Sistema Educativo estarán definidas en la ley especial de
educación básica y de educación universitaria.
Essa norma geral transfere para outras, de natureza especial, os poderes
para tratar especificamente da duração de cada etapa do ensino, dos requisitos,
emissão de certificados e titulação das diversas modalidades do sistema
educativo. Desse modo a educação básica teria uma lei específica para definir a
forma de emissão de certificados e a educação universitária também exige lei
especial.
Educação escolar indígena no Uruguai
A República Oriental Del Uruguay é uma associação política de todos os
habitantes compreendidos dentro de seu território conforme a dicção do artigo 1º
daquele documento fundamental.
Aqui se observa uma semelhança com a lei peruana com a inclusão de
populações carentes como destinatárias de políticas compensatórias que
permitam a famílias numerosas a manutenção da prole na instituição escolar. A
norma prevê a educação em todos os níveis como um dever dos pais em relação
aos filhos e um direito dos pais em relação ao estado.
Isso amplia o compromisso coletivo com a educação:
91
Artículo 41. El cuidado y educación de los hijos para que éstos
alcancen su plena capacidad corporal, intelectual y social, es un
deber y un derecho de los padres. Quienes tengan a su cargo
numerosa prole tienen derecho a auxilios compensatorios,
siempre que los necesiten.
A falta de tratamento sobre educação escolar indígena na Constituição do
Uruguai se repete na Lei Geral de Educação, que também se omite em estender a
discussão sobre esta política. A Ley nº 18437, de 12/12/2008, conhecida como
Ley General de Educacion, menciona o seu objeto principal, a educação em 429
oportunidades e cita o termo indígena uma única vez, exatamente quando
argumenta que o sistema deve oferecer educação multicultural:
Artículo 13. (Fines).- La política educativa nacional tendrá en
cuenta los siguientes fines: (...)
D) Propender al desarrollo de la identidad nacional desde una
perspectiva democrática, sobre la base del reconocimiento de la
diversidad de aportes que han contribuido a su desarrollo, a
partir de la presencia indígena y criolla, la inmigración europea
y afrodescendiente, así como la pluralidad de expresiones
culturales que enriquecen su permanente evolución.
Todavia o Uruguai apresenta uma novidade e insere em seu texto um
dispositivo que trata de regras de hermenêutica, visando oferecer parâmetros para
interpretação da norma, tendo-a como parte integrante de um sistema e não uma
lei estanque. A lei geral de educação se difere das similares dos países
mercosulinos porque traz este dispositivo no artigo 120, com a função de
interpretação e integração das normas educacionais com outras regras escritas. E
por isso é firme ao dizer que educação é um direito da pessoa humana:
Artículo 120. (Principio específico de interpretación e
integración).- Para la interpretación e integración de la presente
ley se deberá tener en cuenta el interés superior del educando,
que consiste en el reconocimiento y respeto de los derechos
inherentes a su calidad de persona humana. En consecuencia,
este principio no se podrá invocar para menoscabo de tales
derechos.
92
Concluindo esse sobrevôo pelas normas constitucionais e legais sobre
educação escolar indígena em vigor nos países mercosulinos pode-se perceber
que as 7 nações investigadas possuem igual preocupação com essa temática,
ainda que em graus variados. Os textos das constituições e das leis gerais de
educação veiculam a necessidade da educação multicultural, ainda que a
colonialidade esteja evidenciada em grande parte desses documentos. A
influência positiva do texto da OIT é visível e isso revela uma garantia
importante, porque se a norma doméstica se harmoniza com regras aceitas por
todos países, o legislador não as pode suprimir.
A importância de se analisar e interpretar os textos das normas, a partir da
Constituição que se situa no topo do ordenamento jurídico segundo a teoria
kelseniana77, é que se tem a verdadeira intenção de determinado estado para com
uma temática em especial. Ora, quando não existe a previsão de política de
educação escolar indígena no texto está claramente demonstrado que não existe
uma modalidade de ensino com essas características e com as especificidades
reclamadas pela camada populacional.
E por outro lado existem diversos dispositivos que em combinação
indicam que nos diversos países mercosulinos a proteção da cultura e dos
interesses dos povos indígenas possuem salvaguarda.
O indígena no Direito brasileiro
Um trabalho que pesquisa os povos indígenas deve apresentar as normas
que regulam o sistema de proteção desta população, mesmo que em diversas
passagens tenham sido feitas críticas à escassez de regras a proteger os interesse
e direitos desta parcela populacional. Já foi relatado sobre o conjunto das regras
jurídicas que tratam dos sistemas de educação, mas é importante dedicar um
tempo para mencionar o sistema de Direito indígena em vigor no Brasil no ano
de 2017.
77 Segundo Hans Kelsen o sistema normativo é uma pirâmide e a Constituição Federal está situada no topo.
93
Por obviedade a grande fonte do Direito Indígena no Brasil é a
Constituição Federal no capítulo que trata dos direitos desses povos, ainda que
haja outros institutos jurídicos de menor hierarquia, como as próprias normas que
criaram a Funai, o antigo SPI acima mencionado, e as normas inseridas na LDB
sobre educação escolar indígena. Além da Convenção nº169, da OIT, existe a
Lei de Terras, de 1850, que atingiu frontalmente os direitos dos povos indígenas,
pois regula a posse e propriedade de terras que os indígenas ocuparam desde
antes do advento da “descoberta” atribuída a navegadores portugueses.
Começamos com a Convenção nº 169 da OIT que estaria no topo do
sistema protetivo, e na condição de tratado é um acordo entre países e cujo teor
seria impositivo aos governos que subscreveram o Tratado, ou Acordo
multilateral. Segundo Reis (2008) entende-se por Tratado como sendo o gênero
em que espécies são o próprio Tratado, stricto sensu, Pactos, Acordos,
Protocolos, e tal instrumento se basta como um acordo entre sujeitos do Direito
Internacional, destinado a produzir efeitos jurídicos na órbita internacional. A
OIT nº169, ratificada pelo estado brasileiro no ano de 2003, prevê
especificamente a espécie de tratamento que deve ser dispensada aos povos
indígenas em situação de fronteira:
PARTE VII - CONTATOS E COOPERAÇÃO ATRAVÉS DAS
FRONTEIRAS
Artigo 32
Os governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive
mediante acordos internacionais, para facilitar os contatos e a
cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras,
inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural,
espiritual e do meio ambiente.
A Convenção nº 169 da OIT veio para substituir a Convenção nº 107, de
05 de junho de 1957, cujo texto nem chegou a ser ratificado pelo Brasil. O
Decreto nº 5.051, de 19/04/2004, promulgou a Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais e com isso a
94
norma passou a ser exigível no âmbito externo e de obrigação imposta no âmbito
das relações internacionais78.
A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho foi
convocada em Genebra pelo Conselho Administrativo da Repartição
Internacional do Trabalho, e ocorreu em 7 de junho de 1989. O texto observou as
normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação sobre
populações indígenas e tribais de 1957, e buscou inspiração na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e em numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da
discriminação contra minorias.
A Convenção nº 169 reconhece as aspirações dos povos indígenas em
assumir o controle de suas próprias instituições, definir suas formas de vida e seu
desenvolvimento econômico, de modo a manter e fortalecer suas identidades,
línguas e religiões, inclusive uma educação libertadora e multilinguística, dentro
do âmbito dos países onde moram.
Conforme o documento, em diversas partes do mundo os povos indígenas
não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o
restante da população e as suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido
erosão frequentemente.
A OIT reconhece também a contribuição dos povos indígenas e tribais à
diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e a
cooperação e compreensão internacionais. A Convenção nº 169 foi proposta para
dar concretude à revisão parcial da Convenção sobre populações Indígenas e
Tribais (Convenção 107, de 1957).
A Parte VI da Convenção trata do tema da educação indígena e traz
algumas obrigações aos países membros, visando manter a integridade da cultura
dos povos indígenas, com a criação e manutenção de instituições que visam o
ensino preferencialmente na língua de origem.
78 Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 1 de ago. 2017.
95
Uma das inovações é a necessidade de adoção de medidas para garantir
aos membros dos povos interessados a possibilidade de obtenção de políticas de
educação em todos os níveis, em condições de igualdade com o restante da
comunidade nacional, e que o ensino seja preferencialmente bilíngue.
Parte disso já foi incorporado pelo estado brasileiro por meio da
Resolução CNE/CEB nº 3/199979. Os programas e os serviços de educação
destinados aos povos indígenas devem ser desenvolvidos e aplicados em
cooperação com estes, visando responder às suas expectativas e necessidades
particulares, abrangendo no currículo a sua história, os conhecimentos
tradicionais e técnicas, os sistemas de valores e todas as demais aspirações
sociais, econômicas e culturais.
Quanto à preparação dos professores indígenas, de acordo com a
Convenção nº 169, a autoridade do país membro deverá assegurar a formação e
capacitação de profissionais e a sua participação na formulação e execução de
programas de educação, visando transferir progressivamente aos povos indígenas
a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado. Esse
dispositivo vincula a educação a uma emancipação do povo indígena.
Os governos deverão reconhecer o direito dos povos indígenas à criação
de suas próprias instituições e meios de educação, satisfazendo as normas
mínimas estabelecidas pela autoridade competente, e os orçamentos públicos
deverão dispor dos recursos apropriados para tal finalidade.
Com relação ao letramento e alfabetização, as crianças devem aprender a
ler e escrever na própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no
grupo a que pertençam. Quando inviável, deverão ser feitas consultas a esses
povos visando a adoção de medidas que permitam o atingimento deste objetivo.
Outra imposição convencional é a adoção de medidas que assegurem a esses
povos a oportunidade de dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais
do país, faladas pelos não-índios.
79Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/1999/pceb014_99.pdf>. Acesso em: 06 de ago. 2017.
96
Do mesmo modo, deverão ser preservadas as línguas das populações
indígenas e prestigiada a promoção e desenvolvimento de práticas para a
preservação das raízes linguísticas.
No que tange aos preconceitos, torna-se obrigação dos países a formatação
de programas de caráter educativo destinado a todos os setores da comunidade
nacional, especialmente naqueles espaços que estejam em contato mais direto
com os povos indígenas, objetivando a eliminação de preconceitos em relação a
esta população. Como parte do esforço, os livros de história e demais materiais
didáticos devem oferecer uma descrição equitativa, exata e instrutiva das
sociedades e culturas dos povos indígenas.
Um passo importante dado pelo Brasil foi a edição da Lei nº 11.645, de
10/03/2008, que trata da inclusão da história e cultura indígena no currículo
escolar da rede de ensino, alterando assim da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, Lei nº 9.394, de 20/12/199680.
Por fim, o artigo 32 do da OIT nº 169 dispõe que os povos indígenas que
habitam nas fronteiras dos países, tendo sido inclusive atingidos pela criação
desses “limites”, possam obter a sua unidade independente das fronteiras
políticas entre os países que subscreveram o tratado internacional.
Segundo o texto convencional, os governos deverão adotar medidas
apropriadas, inclusive por acordos internacionais, para facilitar os contatos e a
cooperação entre os povos indígenas e tribais através das fronteiras, envolvendo
também as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio
ambiente.
Mas uma verificação despretensiosa no sistema normativo brasileiro já é
suficiente para se deduzir que o estado nacional não prioriza a elaboração de
políticas públicas destinadas a atender aos povos indígenas, o que não é novo,
pois o costume omissivo vem deste o período colonial e passou pelos Brasil
imperial. É possível identificar que as poucas leis a tratar dos povos indígenas
80 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 6 de ago. 2017.
97
são limitadoras de direitos, e os decretos e normas regulamentares pesquisados
não apresentam evolução protetiva.
Também incidem sobre os direitos dos povos indígenas as mudanças na
Constituição Federal decorrentes da Emenda Constitucional nº 95/2016, que
manteve para o exercício de 2017 o montante de despesa primária paga no
exercício de 2016 a setores como saúde e educação, acrescido de 7,2%, e estende
a restrição pelo período de 20 (vinte) anos, com um orçamento público de valores
idênticos, apenas com a correção do Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA), números consolidados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Essa emenda ficou conhecida como o “Teto de Gastos” do
Governo Federal.
E tem a ameaça advinda da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215
que quer modificar os artigos 49 e 231 da Constituição Federal, criando uma
nova competência exclusiva do Congresso Nacional: a demarcação das terras
tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Esta proposta havia sido arquivada
por ser inconstitucional segundo o então relator, deputado federal Luiz Couto,
mas foi reapresentada em 2012, e na condição de Emenda à Constituição a PEC
depende apenas da vontade de deputados e senadores para sua aprovação.
A primeira norma jurídica formal nacional a tratar dos interesses indígenas
é a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que dispunha sobre as terras
reconhecidas como devolutas pelo Governo Imperial, e que ficou conhecida
como a Lei de Terras, em vigor até a atualidade. O artigo 12 prevê que as terras
abandonadas ou desocupadas seriam tratadas como “devolutas”, aí incluídas as
porções de territórios de nações indígenas, que passariam deste modo ao domínio
imperial.
Em poder das terras, o governo imperial as destinava para três finalidades
distintas: a) colonização dos indígenas; b) fundação de povoações, abertura de
estradas, e quaisquer outras servidões, e assento de estabelecimentos públicos; c)
para a construção naval.
Logo em seguida e sob o regime republicano, o presidente da república
Nilo Peçanha instituiria o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e o fez por meio do
98
Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910. Consta da ementa, a finalidade: “Crêa
o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de Trabalhadores Nacionaes e
approva o respectivo regulamento”.
Sob a ótica da proteção da integridade cultural dos povos indígenas, a obra
de maior relevância foi a criação do Parque Indígena do Xingu (PIX), no estado
de Mato Grosso. No bojo do texto do Decreto nº 50.455, de 14 de abril de 1961,
as justificativas para a criação do PIX mencionavam a ideia de que o Vale do Rio
Xingu se constitui de terras que devem ser resguardadas de exploração e era
urgente a necessidade de preservação da área como reserva florestal e laboratório
natural. Ainda destaca que uma grande parte do quadrante se refere a terras
pertencentes aos índios, portanto insuscetíveis de alienação.
O Parque Indígena do Xingu é subordinado diretamente à Presidência da
República e é formado por um polígono irregular, com a área aproximada de
22.000 quilômetros quadrados. Inicialmente a área prevista era maior, e além das
reservas destinadas aos povos indígenas, outro objetivo então buscado seria a
criação de um parque que recebesse tratamento de área de preservação ambiental.
A convivência de povos historicamente diferentes, dentro dos mesmos
limites, participando eventualmente dos mesmos cerimoniais e tradições dão a
ideia de que esse exemplo poderia ser referenciado para fomentar o
desenvolvimento do Mercosul.
E nesse mesmo sentido é bom lembrar que a língua quéchua, falada pelo
povo Inca é viva, e possui dez milhões de falantes, em diversos países do
Mercosul, e os índios Guarani, que integraram no passado uma nação chamada
República Guarani, estão presentes também em diversas nações mercosulinas.
Logo, ainda que sem formalização, há uma espécie de organização regional
indígena no interior do subcontinente sul americano e o PIX é um bom exemplo.
A promulgação da Lei de Terras no ano de 1850 (Lei nº 601, de
18/9/1850) e sua regulamentação no ano de 1854 (Decreto 1.318, de 30/1/1854)
tinha por objetivos declarados a regularização das posses de terras utilizadas por
particulares e o estabelecimento de uma política pública para as terras tidas como
devolutas. De acordo com o texto, a lei surgiu para reger os conflitos de interesse
99
entre o Estado brasileiro e os proprietários de terras, defensores do sistema
colonial, que agiam para impedir medidas modernizadoras (antiescravagistas).
No entanto esta norma iria apressar a espoliação das terras dos povos
indígenas, uma vez que o artigo 12 da Lei nº 601 reservava as terras devolutas
para a colonização dos indígenas, o que permite deduzir que o estado já se
apropriara de todas as terras e as “devolveria” (uma parte, apenas) aos povos
indígenas, se houvesse concordância destes com o aldeamento81.
Estatuto do Índio
A Lei federal nº 6.001, de 19/12/1973 instituiu o Estatuto do Índio82.Ao
contrário do que percebe o senso comum, com a edição do estatuto a questão
relativa à política indígena passa a ser uma responsabilidade de todos os entes
federados, municípios, estados e Distrito federal, e não somente da União83.
Assim, as obrigações assumidas pelo Brasil no plano internacional, inclusive a
eliminação das fronteiras que dividem os povos indígenas que habitam o país,
são também estendidas aos demais entes republicanos.
O Estatuto do Índio impõe no artigo 2° a responsabilidade da União,
Estados e Municípios, e ainda que não conste neste rol o Distrito Federal (DF),
isso se deve ao fato de que a norma foi editada antes da Constituição Federal de
1988, a obrigação se alcança o DF, bem como aos órgãos das respectivas
administrações indiretas, de oferecer proteção às comunidades indígenas e
preservar seus direitos.
É desejo estatal estender aos índios os benefícios da legislação comum,
sempre que possível a sua aplicação, prestar assistência aos indígenas e às
81Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos públicos: 3º, para a construção naval (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império). 82 Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6001.htm>. Acesso em: 1 de ago. 2017. 83 Durante o período imperial a Lei nº 3.348, de 20/10/1887, passou para os municípios os foros dos terrenos das extintas aldeias de índios. Estes perderam o pleno direito a essas terras, garantindo apenas o reconhecimento de alguns lotes. As terras dessas aldeias extintas, assim como as terras devolutas nas Províncias passaram, com a Constituição republicana de 1891, à alçada dos estados, de cujos governos os índios dependeram a partir de então para garantir sua sobrevivência nos territórios ancestrais.
100
comunidades indígenas ainda não integradas à comunhão nacional, respeitar as
peculiaridades inerentes à sua condição, assegurar aos índios a possibilidade de
livre escolha dos seus meios de vida e subsistência, garantir a permanência
voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu
desenvolvimento e progresso.
E ainda respeitar a coesão das comunidades indígenas, os seus valores
culturais, tradições, usos e costumes, executar, sempre que possível com a
colaboração dos índios, os programas e projetos tendentes a beneficiar as
comunidades indígenas, utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as
qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de
vida e a sua integração no processo de desenvolvimento.
E vai além, garantindo aos povos indígenas a posse permanente das terras
que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas
naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes, e permitir aos índios o
pleno exercício dos direitos civis e políticos que lhes couberem.
Movimento Indígena
Em outro tópico neste capítulo foi apresentado um conjunto de normas
constitucionais que atendem ao indígena na questão da educação escolar, e agora
apresentamos os fundamentos de fato dos direitos dos povos indígenas que
funcionam como uma espécie de roteiro para a implementação de um catálogo de
direitos.
Certamente contribuiu para o processo de dominação e de quase
extermínio dos povos indígenas do Brasil a habilidade com que os colonizadores
ou invasores portugueses usaram a seu favor os desentendimentos ocorridos entre
os diferentes grupos étnicos, e o fazia de dois modos: fomentando querelas entre
grupos sabidamente rivais, ou os utilizando em seus exércitos de não-índios para
atacarem grupos rivais dos povos originários.
Diante de tão trágica experiência, os povos indígenas resolveram superar
as rivalidades e passaram a se unir para lutar em conjunto por seus direitos, em
101
período bem recente. No sentido de consolidar essa nova estratégia, a partir da
década de 70 do século XX diversos povos indígenas começaram a criar suas
organizações representativas para fazer frente às articulações com outros povos e
com os não-índios, e essa tendência se estendeu à busca de contatos
internacionais.
A conjunção e a articulação entre tais organizações se constituíram em um
movimento indígena tal como hoje se conhece, e de fato é um movimento
indígena organizado.
O apoio de entidades coletivamente organizadas fora do universo indígena
é tratado por Silva (2009) como movimento indigenista alternativo:
Esta nova perspectiva de ação indigenista passaria a ser
conhecida como indigenismo alternativo. Para Schroeder (1995,
p. 136) “[...] aqui se entende como alternativo aquele
indigenismo praticado desvinculado da e, muitas vezes, em
oposição à política indigenista oficial e da Missão Tradicional”.
A situação dos indígenas no Brasil, entre as décadas de 1960 e
1980, era de crescentes casos de violência física e perdas de
território, o que resultava em decréscimo populacional, inclusive
pela fome. (SILVA, 2009, p. 84).
Esse movimento tem como diretriz fazer frente aos mecanismos de
dominação impostos aos povos indígenas pelos colonizadores, e despertar os
sinais da urgente necessidade de organização do movimento entre os indígenas, e
de articulações com as entidades apoiadoras.
Os povos indígenas sempre resistiram ao processo de dominação,
massacre e colonização europeia por meio de diferentes estratégias, e isso se
deve ao fato de que a própria tática dominadora teve diversas faces. Houve a
tentativa de dominação pela força e pela escravatura num primeiro contato entre
os povos e os invasores europeus, e depois o uso da religião e da escola, com a
educação dos povos indígenas sendo entregues aos Jesuítas.
Na atualidade a tática de luta do movimento indígena contra as forças
dominantes usa instrumentos jurídicos que permitem a união de esforços gerados
pela criação de entidades coletivas como federações e confederações de diversos
102
povos indígenas para dar eficácia à defesa de seus direitos. Uma prática remota,
mas ainda não extinta, são os suicídios coletivos como forma de insurreição.
Foi bastante eficaz a estratégia do fortalecimento e consolidação do
movimento indígena organizado quando os diversos povos buscaram amainar as
diferenças históricas entre os rivais, os sentimentos de repulsa foram afastados e
deram lugar ao diálogo entre iguais. No passado a rivalidade colaborou para que
os povos indígenas fossem dominados e a população reduzida a menos de 10%
daquela existente quando da chegada das caravelas no litoral brasileiro, há pouco
mais de 500 anos.
Ao apreender o acúmulo histórico das lutas vividas pelos indígenas é fácil
deduzir que as táticas de resistência antes adotadas não permitiram avanços e
com isso diversos povos foram dizimados. Isso significa que a mudança da tática
de atuação, agora bem mais coletivizada e agregadora pode ser bem mais
eficiente, e o indício desta bem-sucedida reviravolta é o aumento da população
indígena no Brasil, o ressurgimento do movimento indígena no Uruguai, onde
5% da população já se autodeclara indígena, e a ascensão de um representante
Aimará na presidência da Bolívia.
A educação escolar indígena como estratégia de integração do
Mercosul
Da comparação entre os diversos textos normativos dos países
mercosulinos que interessam à educação escolar indígena pode-se notar que não
existe uma padronização quanto ao catálogo de direitos, mas é possível conferir
que a inspiração da Convenção nº 169 da OIT influenciou todo o sistema. A
grande evidência dessa conclusão é a repetição de dispositivos de proteção à
interculturalidade que existem nas leis educacionais e nas constituições dos 7
países que aqui pesquisamos. As poucas experiências existentes mostram que a
política educacional dos povos indígenas pode ser um fator de incremento do
Mercosul.
Os números que resultam da unidade mercosulina em torno do Tratado é
uma demonstração de que o esforço para reconhecer os povos indígenas,
103
devolver-lhes o status e identidades que foram retirados após séculos de
dominação, reconhecer a educação intercultural e o direito ao ensino bilíngue, é
uma das formas de dar concretude à união das nações sul americanas e evidencia
que a inclusão do indígena no Tratado seria estrategicamente interessante.
A partir dos anos 70 do século XX a luta dos povos indígenas ganhou
novas dimensões, e o grau de desenvolvimento demonstra que o índio tem
vínculo com o solo que habita e não o rejeita, e não dá à terra o sentido de
propriedade que se verifica no seio da sociedade não-índia. E não abre mão de
cobrar respeito por sua história e a de seus ancestrais, atitude que se choca com
as fronteiras políticas criadas pelos não-índios após séculos de exploração e
dominação, o que gera uma fonte de embates e dissensos sem fim.
O Mercosul precisa reconhecer o passivo dos países membros para com os
povos indígenas, e garantir-lhes as adequadas condições sócio-jurídicas e de
cidadania, permitindo o avanço em espaços na sociedade contemporânea, sem
necessidade de dispor do que lhe é próprio: as culturas, as tradições, os
conhecimentos e os valores. Quando o mínimo, as nações devem aplicar
integralmente o artigo 32 da Convenção nº 169 da OIT.
Algumas experiências educacionais demonstram que mesmo em espaços
separados e sem nenhuma estratégia de rede os diversos atores que atuam na
educação escolar indígena apresentam sugestões inovadoras. São escolas
indígenas feitas pelos próprios interessados, escolas para indígenas preparados
pelos setores burocráticos, mas que os diversos estudos apontam para soluções
que poderiam ser replicadas nos diversos países do Mercosul.
A luta educacional dos Chiquitano, Terena e Kaiowa nos espaços
fronteiriços
Há exemplos de como a ausência de diálogo com as populações indígenas
implicou na proliferação de demandas e na criação de dificuldades para as
populações fronteiriças, que ao longo do tempo foram “objeto” do Direito e não
“sujeitos de direito”.
104
De acordo com Secchi (2009), o primeiro contato havido entre indígenas
de Mato Grosso com os exploradores escravagistas e mineradores se deu ainda
no século XVIII, mas foi somente em 1890 que se instalaram as primeiras
escolas destinadas exclusivamente aos índios. Primeiramente as missões
salesianas atenderam aos Bororo, e em seguida os militares de Rondon tiveram
acesso ao povo Paresi. Foi o próprio Marechal Rondon que criou um internato
para atender os Paresi, que funcionou primeiro na ponte telegráfica da Ponte de
Pedra, e depois seria transferida para a estação telegráfica de Utiariti.
Para o pesquisador
Outras agencias chegaram a Mato Grosso com o propósito de
atuar direta ou indiretamente coma educação indígena. Os
salesianos ampliaram o atendimento aos índios Xavante, e os
jesuítas instalaram-se na região Médio-Norte do estado, onde
fizeram renascer o internato de Utiariti (abandonado pelos
militares), onde fundaram o que viria a ser a última missão
jesuítica junto aos índios, no Brasil. (SECCHI, 2009, p. 56).
Quando Mato Grosso se tornou capitania independente e com Vila Bela da
Santíssima Trindade, a sua capital, fixada à margem do rio Guaporé, foi
necessário utilizar-se de grande contingente indígena para as funções de colono,
de modo a ocupar aquelas terras. É que o Tratado de Madri84, de 1750, previa a
posse uti possidetis, ou seja, era a ocupação humana de território para garantir
terras a Portugal, no embate contra a Espanha.
Na pesquisa realizada por Januário (2004) entre os estudantes Chiquitano
foi constatado que
O Tratado de Madri foi o mais importante tratado firmado entre
Portugal e Espanha que, durante quase três séculos, dirimiu as
contendas entre ambas as cortes, celebrado em Madri, em 13 de
maio de 1750 (Cf. Leite, p. 34). Através do Tratado de Madri,
algumas concessões foram feitas entre as duas coroas no que
tange às povoações ocupadas e regiões de navegação. Através
deste tratado a Colônia do Sacramento ficou pertencendo à
Espanha. Portugal receberia em troca o território dos Sete Povos
84O Tratado de Madrid foi um tratado firmado na capital espanhola entre os reis João V de Portugal e Fernando VI de Espanha, em 13 de janeiro de 1750, para definir os limites entre as respectivas colônias sul americanas, pondo fim assim às disputas.
105
das Missões, situado no atual estado do Rio Grande do Sul.
(JANUÁRIO, 2004, p. 77).
E também foi nesse contexto que seria criada a colônia Thereza Cristina,
cuja conformação variou de colônia militar a colônia indígena, e foi uma
tentativa de implantar a educação indígena naquela região, com uma visão
eurocêntrica. A colônia foi criada em 1887, e primeiramente a missão de
educação foi entregue aos militares, e depois aos Salesianos. Houve um fracasso
fragoroso nessa tentativa de evangelização, os povos indígenas não aceitaram os
signos e valores que lhe eram apresentados, rejeitando qualquer espécie de
evangelização.
Superada essa tentativa, reconhece-se que a educação escolar indígena
imposta na perspectiva da colonialidade encontrou resistências e lutas, pois havia
o desejo candente na manutenção de valores e saberes reproduzidos por gerações
no interior daqueles povos indígenas, atingidos e divididos em seu território por
uma razão que lhe era desconhecida: a luta por ampliação de conquistas travada
por dois impérios, o português e o espanhol.
Pesquisando o tema, Pesovento (2012) conclui que
A educação destinada aos povos indígenas naquele contexto,
obviamente, difere da praticada na atualidade, ao menos em
tese. Nem mesmo essa expressão aparecia nos registros
históricos composto de relatórios de presidentes de província,
cartas, memórias, correspondência avulsa, dentre outros.
Todavia, o modelo que se colocava, não estava livre do modo de
produzir conhecimentos criados pelo padrão mundial de poder:
colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. (PESOVENTO,
2012, p. 78).
A iniciativa dos aldeamentos que se seguiria depois tinha como
justificativa que os “silvícolas” deveriam ser retirados do convício de seus pares,
pois desse modo seria mais fácil o processo educacional e inserção dos valores de
“civilidade” de acordo com a visão eurocêntrica. Isso significava que deveria ser
desenvolvido o desejo de ambição e de aquisição de bens, tais quais os valores
defendidos pela mentalidade dos invasores.
106
Para os “descobridores” os povos originários tinham escassa capacidade
intelectual, falta de raciocínio e excesso de brutalidades, o que seria próprio do
índio e que deveria ser combatido por meio do processo educacional.
Ainda no período colonial, logo após a expulsão dos Jesuítas, o regime de
Missões seria substituído pelo Diretório dos Índios, em 1757, e havia neste
instrumento jurídico a preocupação de conservar os domínios sobre as terras
brasileiras, especialmente na região de fronteira, como era o caso de Mato
Grosso, que no século XX viria a ser desmembrado, com a criação do estado de
Mato Grosso do Sul.
Na pesquisa acima citada narra Pesovento (2012) que
Depois de “pacificados”, os índios eram levados até a Colônia e,
em alguns casos, encaminhados a outras aldeias da província. O
período em que permaneciam na Colônia era até alcançarem os
hábitos dos “civilizados”, apreendendo os exemplos e os modos
de vida para o trabalho. Inculcar-lhes o desejo e a vontade de
participar de uma realidade que não lhes era familiar
culturalmente, era uma das funções do diretor do
estabelecimento. (PESOVENTO, 2009, p. 49).
Semelhantes forças incidiram sobre os povos da Chiquitania, inclusive a
denominação a eles dada foi criada pelo colonizador/invasor. O povo Chiquito ou
Chiquitano surgiu das muitas etnias submetidas ao sistema de reduções
missionárias. A criação das Missões atendia a diversos interesses, entre eles a
necessidade do governador de manter os indígenas sob controle, e de outro
servindo de fortaleza contra incursão dos bandeirantes a partir do território
brasileiro.
Os Chiquitano teriam recebido esse nome dos espanhóis, no século XVI,
quando eram tratados por “los chiquitos” por habitarem casas pequenas e de
portas tão baixas que era necessário se agachar para adentrar em seu interior.
Outra versão a explicar o nome é que o termo “chiquito” seria derivado de
taipiomiri ou tapuymiri, que quer dizer “escravos de coisas pequenas”.
Na pesquisa levada a cabo por Santana (2009) é evidenciado que no atual
território boliviano onde habitava o povo Chiquitano foram fundadas 11 reduções
107
e a Missão San Inácio de Zamucos (1717/1723), e 10 iniciativas consideradas
missões de Chiquitos: San Inacio Javier (1692), San Rafael (1696), San José
(1698), San Juan Bautista (1699), Concepción (1699), San Miguel (1721), San
Ignácio (1748), Santiago (1454), Santa Ana (1755) e Santo Corazón (1760).
Com isso,
Os missionários estavam conscientes da enorme
responsabilidade que tinham nas mãos. Imbuídos pelo desejo de
salvação e pela fé, acreditavam ter pela frente trabalho inédito,
em que tudo estaria por se fazer em nome e para a glória de
Deus. (SANTANA, 2009, p. 17).
No lado brasileiro o governo também desejava o auxílio dos Jesuítas,
ainda que houvesse contradição em seus propósitos, conforme revela a carta do
governador Rolim de Moura85 pedindo a vinda dos missioneiros, segundo
reprodução de Pesovento (2012):
[..] Companhia de Jesus ao Brazil vos mande missionários para
lhes administrarem a doutrinação e sacramentos. Igualmente
lhes [...] para administração e qualquer aldeam ou nação que
novamente os descubra, não consentindo que os dissipam os
índios [...] não lhe façam donos ou violência alguma antes se
apliquem todos os meios de suavidade e indústria para a
civilização, doutrinação e tratem em tudo como pede a caridade
christã. (PESOVENTO, 2012, p. 28).
No entanto ao final de 1767 os trabalhos dos Jesuítas foram encerrados,
uma vez que a Companhia de Jesus foi proibida de atuar em Portugal, pois Carlos
III, então Rei da Espanha ordenou a expulsão dos Jesuítas da América. Mesmo
com a saída dos religiosos as missões continuaram funcionando, passando a ser
administradas por outros sacerdotes, formalmente subordinados a um
governador. Não tinham o espírito missionário, por isso lhe foi impossível dar
prosseguimento aos trabalhos.
Atualmente o povo Chiquitano se agrupa em torno das antigas missões e
seringais bolivianos, e com a nova divisão administrativa da Bolívia, em
85Dom Antônio Rolim de Moura Tavares (12 de março de 1709 - 8 de dezembro de 1782) foi governador de Mato Grosso, de 17 de janeiro de 1751 a 1º de dezembro de 1765. Conseguiu nomeação para governador de Mato Grosso em 1749, mas só tomou posse em 1751, após tormentosa a viagem. Expulsou os missionários espanhóis e celebrou alianças com os indígenas.
108
Departamentos, Províncias, Municípios e Território Indígena Originário
Campesino, a maior parcela da população pode ser encontrada no Departamento
de Santa Cruz, sendo que a Província de Chiquitos tem como capital o município
de San Jose. Os Chiquitano possuem uma tradição de luta e resistência, pela
capacidade de sobreviver e recriar a sua própria história, ainda que no Brasil não
se registre essa mesma resiliência entre os povos Chiquitano. A divisão e
demarcação desse território remonta à disputa de terras entre Portugal e Espanha,
resolvida pelo Tratado de Madri. Assim, em ambos os lados da fronteira, os
povos indígenas foram utilizados para a garantia e expansão de posses de terras,
e nesse contexto os índios só tiveram importância enquanto havia o risco de
perda de territórios.
O espaço de disputa entre dois impérios colocava os indígenas contidos e
prensados de oeste para leste pelos espanhóis e de leste para oeste pelos
bandeirantes paulistas.
Superado esse momento em que foram instrumentalizados, os Chiquitano
passaram a sofrer perseguição, lhes foram suprimidos territórios e garantias, a
invasão e chegada de colonos com interesses pastoris encurralaram os índios e
diminuíram seus territórios, além da ameaça que passou a lhes representar a
presença das forças do exército.
Em um primeiro momento os Chiquitano foram cooptados e podiam
inclusive frequentar o interior do Destacamento Fortuna, do Exército Brasileiro,
alguns dos jovens eram recrutados porque havia o interesse na proteção e
preservação das fronteiras com o auxílio desta população e de seus
conhecimentos tradicionais. Para assumir as posições dentro do exército os
jovens Chiquitano tiveram que efetuar o registro civil e para alguns deles este é o
único registro de vínculo Chiquitano que restou, uma vez que o sobrenome
tradicional foi inserido na certidão de nascimento.
Ao longo do tempo os Chiquitano foram se tornando invisíveis, tratados
como apátridas em seu próprio solo, sendo tratado como “bugre”, porque não era
completamente índio e nem 100% não-índio.
109
Internamente a própria estrutura governamental entrou em contradição,
quanto o Estado de Mato Grosso tinha uma pretensão contrária à União Federal,
que desejava reconhecer o direito dos Chiquitano ao seu território fomentando a
criação da Terra Indígena (TI) Portal do Encantado. Descreve Grando (2012) que
no processo de audiências públicas levados a efeito por autoridades estaduais que
tinham interesse econômico na região e eram contrários à demarcação e criação
da TI, os deputados estaduais promoveram audiência pública visando convencer
a população da região que a FUNAI desejava criar reserva em território brasileiro
para descendentes de indígenas bolivianos.
De acordo com a autora, foi expedida comunicação oficial do governo
estadual de Mato Grosso contrária à criação da Terra Indígena, e segundo de
acordo com as informações existentes os moradores da fronteira e as autoridades
deveriam extravasar “o descontentamento com a proposta da criação a reserva
[...]”. Na citada audiência pública não se fizeram presentes os representantes da
FUNAI, e nem foram convidados indigenistas defensores das propostas.
Educação escolar indígena em Mato Grosso
Não é objeto desta pesquisa recuperar essas importantes informações, mas
não se pode esquecer que o Estado de Mato Grosso teve uma preocupação em
criar uma política de educação escolar para os povos indígenas, e nesse sentido
diversas experiências de formação de professores foram pioneiras e
fundamentais, culminando com a criação de curso superior para formação de
professores indígenas. Esse período de discussão e planejamento foi riquíssimo
porque permitiu ampliação de enfoques do conceito de educação indígena e a
ressignificação desse objeto de política pública.
Buscamos em Secchi (2009) algumas informações compiladas na tese de
doutoramento “Professor Indígena: a formação docente como estratégia de
controle da educação escolar em Mato Grosso”, e que indicam com bastante
precisão o momento em que se deu essa ressignificação do objeto.
De acordo com o pesquisador, o processo resultou na construção de um
novo ator social, o professor indígena, e a oficialização das escolas indígenas,
110
com novas relações econômicas, sociais e culturais advindas com o processo de
regularização da instituição escolar no interior das comunidades tradicionais.
Como já mencionado nesta pesquisa, a primeira experiência de educação
indígena em Mato Grosso se deu com as escolas das missões, dirigidas pelos
Jesuítas e depois os Salesianos. Foram instituídas a partir do início do século XX
como política de governo, em parte sustentada pelos orçamentos públicos, e
mantidas com o apoio dos religiosos. Nesse modelo de escola, os professores
eram selecionados a partir de critérios como a competência individual, a
dedicação, a assiduidade e os princípios éticos cristãos.
Na atualidade já se fala na existência de um novo ator social, o professor
indígena, e Secchi (2009) explica argumentando que, no convívio diário nas
aldeias, os professores indígenas acumulavam a condição de membros da
comunidade e de auxiliares educacionais. E em outro momento discorre, em
outra pesquisa, sobre a existência de “educação escolar sem escola”:
Por fim, uma realidade escolar ainda não estruturada
formalmente como escola. Trata-se do processo de aquisição da
leitura e da escrita entre os Enawene-Nawe da região Médio-
Norte de Mato Grosso. Representa, na verdade, um modelo
escolar bastante específico por duas razões peculiares.
Primeiramente, porque a sociedade Enawene-Nawe é uma das
poucas sociedades no mundo, senão a única, que conheceu e
utilizou a produção de filmes e vídeos antes da técnica de leitura
escrita. Em segundo lugar porque é um dos poucos povos do
Brasil que (ainda) não associou a leitura e a escrita à escola,
isso é, aprendeu o código escrito por sua magia, exotismo,
utilidade, ou qualquer outro motivo, mas sempre dissociado da
instituição escolar existente no mundo contemporâneo. [...] o
professor-daraitare não está vinculado oficialmente a nenhuma
instituição externa e, mesmo nas relações internas, o seu
trabalho terá algum significado na medida em que seus saberes
forem coletivamente reconhecidos. (SECCHI, 2009, p. 80).
De acordo com o pesquisador, a segunda modalidade de escola indígena
foi instituída a partir de 1910 junto aos postos indígenas do SPI e depois sob a
entidade sucessora, a FUNAI, se popularizou como “escolas dos postos”. Mesmo
com instalações assemelhadas com aquelas escolas das missões, as condições de
funcionamento eram bastante distintas.
111
Naquele período ocorrera decisão da Coroa portuguesa de romper com as
ordens religiosas, de modo que os primeiros professores eram funcionários do
próprio órgão tutor, seus cônjuges ou algum pesquisador que transitava na região
por algum tempo. Essa rotatividade docente limitou a regularidade das atividades
escolares e acarretou frequentes interrupções no processo de ensino-
aprendizagem. Alguns professores indígenas assumiram as escolas e passaram a
cobrar do poder público a oferta de cursos de formação específicos.
A terceira modalidade se refere às escolas das aldeias, agrupamento
composto pelas escolas de pequeno porte, multisseriadas e unidocentes,
localizadas em aldeias com pequeno contingente populacional. Possuem
instalações simples, restringindo-se a uma ou duas salas de aula. Geralmente são
atendidas por professores indígenas locais ou professores de outras etnias e
aldeias vizinhas. São docentes formados ou em formação nas missões, ou em
cursos como o Projeto Tucum, o Projeto Pedra Brilhante-Urucum e as
Licenciaturas Indígenas.
São profissionais contratados a título precário (contrato temporário),
enquanto concluem o ensino médio ou o Curso superior indígena, sendo que na
atualidade alguns já se efetivaram no quadro funcional por meio de aprovação
em concurso público. Esta realidade escolar predominou, especialmente, junto ao
povo Nambikwara. São escolas cuja localização real coincide com os diferentes
locais de residência ou paradeiro do seu professor, tratando-se de modalidade de
ensino adequada ao estilo de dezenas de grupos familiares que se movimentam
no interior de um território, obedecendo a um calendário sazonal ou a situações
emergenciais decorrentes do convívio com o entorno regional.
Há também as “escolas sem escolas”, se tratando do mencionado processo
de aquisição da leitura e da escrita entre o povo Enawene-Nawe, um modelo
escolar bastante específico, pela sua excentricidade, se apreciada com o olhar
eurocêntrico. A formação de professores indígenas para a diversidade,
estabelecida pelo próprio interesse de quem assim queira ser reconhecido,
recebendo o nome de “daraitare”. O interessado informa que pretende se dedicar
ao trabalho docente e é aceito pela comunidade com um rotineiro “awê” (sim,
112
está bem) e a partir de então passa a se envolver informalmente com o ensino de
leitura e escrita em aulas informais em residências, acampamentos, ou no centro
da aldeia.
É fácil perceber, apreciadas as modalidades de escolas indígenas em Mato
Grosso, que a pluralidade do perfil de seus professores, o conteúdo dos currículos
e as especificidades de cada um dos povos indígenas reclamam a necessidade de
rever a noção de escola indígena. O professor Darci Secchi entende ser impróprio
referir-se a eles (professores) e a ela (escola) no singular, ante tamanha
diversidade.
Para ele, falar das atuais escolas indígenas sem este cuidado é
desconsiderar os processos instituintes específicos de uma escola salesiana, de
uma escola jesuítica, de uma escola positivista do SPI e da FUNAI, de uma
escola pública do estado e dos municípios, de escolas bíblicas evangélicas, de
escolas autônomas, de escolas alternativas, e assim por diante. Omitir a
diversidade escolar e dos seus professores, tratando-os de modo genérico é
reprisar um passado que suprimiu a identidade de centenas de povos e lhes
impingiu o carimbo de índios, aborígines, silvícolas, bugres, caboclos etc.
A luta pela educação diferenciada representa uma resistência articulada e
inteligente aos modelos até então impostos aos povos indígenas e tem como
marco inicial o movimento indígena dos anos 70 e as inserções havidas no
processo constituinte de 1988, fato que se repete também nos países lindeiros ao
Brasil. As nações mercosulinas passaram por modificações em seus textos
constitucionais em passado recente, no fim do século XX, decorrentes dos
resultados de confrontos políticos e ideológicos, com exceção do Uruguai, cujo
texto constitucional é mais longevo. Todas essas alterações evidenciam um
reconhecimento da necessidade de implantação de um sistema educacional
indígena que prestigie as culturas, tradições e religiosidade desses povos. E que
respeite as diferenças existentes, inclusive no que diga às relações com a terra, à
vida no seio de seus iguais, e à liberdade de expressar livremente a sua
existência. Isso poderia ser sistematizado por meio de um processo educacional
diferenciado, tal como demonstrado por algumas experiências relatadas,
113
respeitando a interculturalidade e o processo cultural de educação dos diversos
povos.
Para finalizar, trago a percepção da líder paresi e professora Francisca
Novantino Pinto de Ângelo acerca da educação escolar indígena. Ela pode
sinalizar os caminhos a serem imprimidos nas relações entre países e entre povos
sul americanos que procuram na escola mais um instrumento de luta e de
conquista dos seus projetos de futuro.
A nova educação indígena específica e diferenciada está no
processo de construção cotidiana. A escola que ajuda a conhecer
‘o jeito dos brancos’; a ‘transitar pelas culturas’; a defender o
território’; a ‘pleitear novos espaços’ e a ‘reconstruir o futuro’ é
vista por muitos professores, lideranças e comunidades
indígenas de Mato Grosso como um espaço de liberdade, de
autonomia e de afirmação de seus projetos societários”.
(ÂNGELO, 2009, p. 97).
114
CONCLUSÃO
No desenrolar do nosso plano de estudos a pesquisa foi se adequando às
novas informações apreendidas nas disciplinas regulares do Curso de Mestrado,
nas orientações e nos seminários temáticos desenvolvidos pelo Programa de Pós
Graduação. Após a produção de uma versão preliminar do estudo tivemos uma
importante contribuição dos membros da banca de qualificação, que
proporcionaram a generosa oportunidade de fazer a correção dos equívocos que
foram detectados.
A investigação científica se parece com uma paciente análise de material
produzido na pesquisa, a começar pelos resultados das consultas aos trabalhos
publicados pela academia, pois prestigiamos também os saberes já postos ao
crivo de orientações e debates entre os estudiosos da temática indígena.
Passamos pelos textos acerca da educação intercultural e das normas vigentes no
âmbito do Mercosul e, finalmente, nos foi possível apresentar uma versão do
trabalho a ser avaliado pela banca de defesa. Esta ofereceu parecer de aprovação
e finalmente logramos a aprovação.
Superada a imersão para a compreensão dos conceitos antropológicos, de
filosofia e geografia humana, aplicados aos processos de educação escolar
indígena, após a consulta à produção bibliográfica, documental, das
investigações acadêmicas e da produção legislativa, cremos que é possível chegar
a algumas conclusões acerca da pergunta que moveu esta pesquisa: “é possível a
integração do Mercosul sem que haja a participação e o protagonismo dos povos
indígenas?”.
Tudo indica que os impérios coloniais, via de regra, foram movidos pelo
desejo de conquista de terras e outros bens tangíveis, pois ali imperavam os
interesses mercantis e capitalistas, os conquistadores buscavam territórios
desconhecidos e desabitados, onde pudessem explorar as riquezas florestais e
minerais, e avançavam contra as forças que resistiam às suas pretensões
capitalistas. Primeiramente a sedução do uso da força das armas para a conquista
dos incautos indígenas, e em decorrência do fracasso, a dominação usou táticas
115
de escravização, seja por meio da força ou com o uso da dominação ideológica
pela fé ou pela educação assimilacionista.
Não foram somente os navegadores europeus que adotaram a tática da
conquista de coisas, de homens e de almas com o uso da força, eliminando os
resistentes ou reduzindo-as à escravização. Aqui demonstramos que o império
Inca também atuava com semelhante modus operandi, subjugando seus
conquistados e lhes impondo seus modos de vida e organização política, além do
sistema legal, protegendo a integridade apenas daqueles que lhe deviam
obediência nos primeiros momentos da tomada de poder. A atuação dos Jesuítas
e Salesianos foi importante na defesa da integridade dos povos indígenas e suas
marcas existem até os dias atuais, as Missões e Reduções foram fundamentais
para a proteção contra as investidas espanhola e portuguesa, como no caso
Chiquitano. E a resistência Guarani, sob a orientação jesuíta, permitiu a
existência longeva de um povo que viveu em sistema político republicano, com
estrutura de gestão, de educação, e uma arquitetura que lhe eram próprias.
De outra parte, as “reduções” e aldeamentos dirigidos pelos religiosos,
bem como a “domesticação” linguística e religiosa tornaram os Guarani em
presas fáceis. Muitos sucumbiram ante a ganância e o interesse de portugueses e
espanhóis, que utilizaram da força das armas para subtrair-lhes o território, as
terras e os metais preciosos.
As fontes bibliográficas confrontadas apontam que a celebração do
Tratado de Tordesilhas em 1494 teria um momento difícil para os povos Guarani
e Chiquitano, cujos territórios se localizavam exatamente na linha imaginária que
dividia a partilha feita pelo tratado entre Espanha e Portugal. Sua segmentação
perdura até os dias atuais.
Com relação à formação dos territórios dos países mercosulinos podemos
concluir que a divisão das fronteiras foi um ajuste de interesses políticos entre as
classes dominantes, se trata de um plano colonial de acumulação de bens e
territórios, em que os governos protegiam o enriquecimento dos coronéis e da
burguesia. Ainda que atualmente se procura construir uma teia de relações
(GEERTZ, 1989) entre países baseados em interesses comuns e unidades de
116
objetivos, uma análise mais apurada identifica ávidos interesses capitalistas
nessas iniciativas de integração de mercados que não prevêem a integração das
pessoas e povos que compõem os tais mercados.
O processo de aceitação e tolerância de povos que foram historicamente
rivais demonstra que preexistem experiências indígenas exitosas em táticas de
negociação e mediação que devem ser considerados no Mercosul. A própria
Convenção nº 169 da OIT determina e incentiva o contato e a cooperação dos
povos através das fronteiras, dizendo que os governos locais devem adotar as
medidas apropriadas, os acordos internacionais incluídos, para facilitar essa
cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive para
as atividades nos setores econômico, social, cultural, espiritual e do meio
ambiente.
As experiências dos povos Guarani, que já viveram sob uma república
“comunista-cristã” e hoje se espalham por diversos países, demonstra que
informalmente já existem contatos entre nacionais de diversas nações
mercosulinas. A Chiquitania, amplo território que foi grande no seu tempo e
cujos remanescentes estão distribuídos em pelo menos dois países, oferece uma
opção e uma estratégia para fomentar o Mercosul, ainda que esses povos
indígenas nunca tenham sido consultados quando a nenhum tratado histórico, e
nem, tampouco, quanto ao Mercosul. Ignorou-se os mais de 817 mil indígenas
brasileiros, ou os 7 milhões de falantes Guarani espalhados pela Argentina,
Bolívia, Paraguai e Brasil. Não foram ouvidos os 10 milhões de falantes
Quéchua, que ocupam territórios da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia,
Equador e Peru. Se percebe que o interesse desses povos não foi objeto relevante
no processo de criação do Tratado de Ouro Preto em 1994, que instituiu o
Mercosul.
Utilizando a interpretação do Direito comparado, percebemos que há
semelhanças na forma de organização administrativa e política dos 7 países
investigados na pesquisa: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru, Venezuela e
Uruguai. Em todos os países as Leis gerais de educação fazem menção às
populações indígenas como sujeitos de direitos, merecedores de uma educação
117
diferenciada. É certo que em alguns deles, Bolívia e Venezuela, por exemplo, é
demonstrada maior aderência aos ditames da OIT nº 169. O Brasil também
possui algumas garantias revolucionárias na Constituição Federal para a defesa
dos povos indígenas, previstas nos artigos 231 e 232, mas que estão seriamente
ameaçadas pela Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC 215)86.
É certo que no plano constitucional algumas nações possuem sistemas de
proteção bastante avançados, zelando pela proteção dos costumes e educação dos
povos indígenas, como, por exemplo, a Constitución Política Del Estado
Plurinacional de Bolívia e a Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela que elevaram a língua indígena à categoria de idioma oficial em seus
territórios. Além da OIT nº 169 pesa a densidade populacional de povos
indígenas nestes países, os quais alcançaram representação política nas esferas de
decisão do governo.
Em direção oposta estão países como o Uruguai, cujo texto normativo é
escasso no que se refere à atenção para com os povos indígenas, ainda que
naquele país tenha sido identificado o fenômeno dos “índios ressurgidos” em
tempos recentes, materializado em pesquisa demográfica onde cerca de 5% da
população já se auto identifica como indígena. Isso dá razão a Ribeiro (1978)
quando classifica o Uruguai como uma nação de Povos Transplantados, assim
como o é a Argentina, em decorrência de serem esses países formados por grande
contingente migratório europeu, cuja massa humana manteve os hábitos e
costumes originais no território mercosulino aonde se acomodariam. Curioso
constatar que no Peru a educação é gratuita para os alunos desafortunados, mas
se exige bom rendimento escolar para fazer jus à gratuidade, e quanto à
interculturalidade a norma interna prevê o “direito” dos povos indígenas de se
expressarem em seu próprio idioma.
Os pontos de convergência nas normas que tratam sobre educação
indígena são infinitamente mais numerosos e relevantes do que as divergências
que impedem os avanços dos acordos do Mercosul, eis que estes se basearam
massivamente em interesses capitalistas, tratando da livre circulação de coisas,
86Disponível em: <http://www.cimi.org.br/pec2015/cartilha.pdf>. Acesso em: 01 de jun. 2017.
118
primeiramente, e de pessoas com interesses negociais em seguida, como pilares
do bloco mercosulino. No entanto entre as ações previstas pelo Tratado do
Mercosul está a unificação de legislação para proteger o que se entende por
segurança jurídica, e no tange à educação escolar indígena inadvertidamente
isso já foi feito.
As experiências exitosas nos programas de educação escolar de povos
indígenas em todo o Brasil, bem como as dificuldades apresentadas no dia-a-dia
do ensino bilíngue, demonstram ser possível a aproximação entre os países
mercosulinos com a ampliação dos debates sobre os interesses indígenas, a partir
da educação escolar intercultural. Ficou evidente que o Estado de Mato Grosso,
no Brasil, e a Província de Chiquitos no Departamento de Santa Cruz, na Bolívia,
possuem interesses comuns, dadas às características da população Chiquitana. Já
os Guarani estão espalhados pelos territórios de diversos países mercosulinos e
uma integração entre essas nações passaria por atender aos desejos desta parcela
societária.
Ainda quanto ao povo Chiquitano que vive no Brasil e seus parentes
domiciliados na Bolívia, resta claro que são atores da mesma história, possuem
identidade de raízes, culturas e interesses, e esta conclusão pode ser aplicada aos
demais países e povos indígenas pesquisados. Os povos indígenas não foram
ouvidos no processo de criação do Mercosul, mas o protagonismo indígena é
identificado no debate de processos de criação dos sistemas de educação, ainda
que timidamente. Nesse sentido, as estratégias adotadas pelos povos xinguanos
para organizarem seu sistema de educação escolar pode servir de exemplo de
como o protagonismo indígena e a tolerância na convivência entre povos
diferentes, podem trazer resultados promissores também para o Mercosul.
O fato de haver indício de preocupação governamental com educação
indígena, demonstrado no espaço mercosulino em alguns momentos, permite um
protagonismo indígena tendo por eixo as Relações Interculturais do Cone Sul, a
Educação Libertadora do Cone Sul ou a instituição de uma Câmara Temática
Indígena do Cone Sul. O lançamento do debate sobre um Mercosul Indígena já
demonstrou que isso é possível, e seria um “rito de passagem” para objetivos
119
maiores e mais ousados, onde os povos indígenas influenciariam nas decisões
sobre o seu futuro, e contribuiriam com Mercosul com suas tradições e
conhecimentos.
Por fim, cremos que é imprescindível o protagonismo indígena no
processo de discussão do Mercosul, sob risco de se tornar apenas um Tratado
sobre mercados e mercadorias, não levando em consideração os valores humanos
presentes nesses países. Ao não incorporar ao debate os povos indígenas, que são
titulares de conhecimentos sobre território, florestas, medicina e nas relações
entre os diferentes, o Mercosul perde em informações e conteúdos que poderiam
ser socializados entre os países parceiros.
Considerando que nos 7 países pesquisados há muita semelhança nos
textos das normas internas que tratam de educação e de educação para o
indígena, o marco inicial para a agregação de mais interesses e assuntos ao
Mercosul já existe, e a consagração do espaço mercosulino como um locus de
tolerância e respeito à multiculturalidade pode se tornar algo tangível, havendo
vontade política dos gestores públicos e dos governos mercosulinos.
Portanto é forçoso concluir que a consolidação do Mercosul poderá
ocorrer com muito mais legitimidade quando as nações e seus governantes
aceitarem o indígena mercosulino como um ator a mais no processo de
consolidação do Tratado, e internamente as normas domésticas sobre educação
escolar indígena sejam efetivamente implantadas, e implementadas as políticas
de valorização dos saberes, cultura e da visão cosmológica dos povos indígenas.
É possível a consolidação do Mercosul sem o protagonismo indígena? A
resposta é negativa. Cremos que a consolidação do espaço mercosulino se
viabiliza a partir do momento em que os estados nacionais decidirem reconhecer
os povos indígenas como sujeitos de direitos. Isso inclusive pode compensar em
parte o longo processo de invisibilização, marginalização e violência que vitimou
a população indígena. Na medida em que as leis de educação dos 7 países
pesquisados já veiculam regras que lhes são comuns, deduz-se que o
protagonismo indígena facilita a consolidação do Tratado do Mercosul. A
coincidência da legislação sobre educação escolar indígena é o primeiro passo.
120
Quiçá, novos atores surgirão nesse caminhar e apontarão sendeiros com
integração econômica e política, mas também cultural, étnica humanitária entre
os povos ameríndios.
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