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MERCOSUL: A DIMENSÃO ECONÔMICO-COMERCIAL KASSIUS DINIZ DA SILVA PONTES 2009

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MERCOSUL:

A DIMENSÃO ECONÔMICO-COMERCIAL

KASSIUS DINIZ DA SILVA PONTES

2009

Page 2: Mercosul PDF

2

Kassius Diniz da Silva Pontes, diplomata, é Bacharel e Mestre em Direito pela

Universidade de Brasília e Mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco.

Trabalhou na Divisão do Mercosul do Ministério das Relações Exteriores

entre 2005 e 2009. Atualmente é diplomata da Missão do Brasil junto à

Organização das Nações Unidas (ONU).

As opiniões emitidas no presente livro são de responsabilidade exclusiva do

autor, não refletindo necessariamente a opinião do governo brasileiro.

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3

SUMÁRIO

Lista de abreviaturas e siglas 06

Apresentação 07

1) Mercosul: conceito e história 10

1.1 Conceitos básicos 10

1.2 O Mercosul no contexto dos acordos comerciais multilaterais 14

1.3 Primeiras experiências de integração na América do Sul: ALALC e ALADI 18

1.4 Antecedentes imediatos do Mercosul 21

1.5 Fases do Mercosul 26

1.6 O “velho” e o “novo” regionalismo 29

1.7 Estrutura institucional do Mercosul 32

1.7 O papel da CAMEX 39

2) A Tarifa Externa Comum 41

2.1 O processo de liberalização comercial entre os Estados Partes. Evolução do

comércio intrazona

41

2.2 A Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) 47

2.3 Estrutura da TEC 49

2.4 Exceções ao comércio intrazona 56

a) O Regime de adequação final à união aduaneira 56

b) O setor automotivo 57

c) O setor açucareiro 59

2.5 Exceções à TEC 61

a) Bens de Capital (BKs) e Bens de Informática e Telecomunicações (BITs) 62

a.1) A política brasileira de “Ex-tarifários” 63

a.2) O debate sobre regimes comuns para BKs e BITs 66

b) As Listas Nacionais de Exceções à TEC 67

Page 4: Mercosul PDF

4

2.6 Os Regimes Especiais de Importação 69

2.7 O grau de cumprimento da TEC 72

2.8 Áreas Aduaneiras Especiais 76

2.9 Administração da TEC 78

2.10 Medidas Excepcionais no âmbito tarifário 80

2.11 O processo de eliminação da dupla cobrança da TEC 84

3) O Regime de Origem do Mercosul 90

4) A Comissão de Comércio do Mercosul 95

4.1 Os Comitês Técnicos 95

4.2 O Mecanismo de Consultas 99

4.3 O Procedimento Geral para Reclamações perante a Comissão de Comércio do

Mercosul

101

4.4 O Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul 104

5) Defesa Comercial e da Concorrência 113

5.1 Defesa Comercial Extrazona 113

5.2 Defesa Comercial Intrazona 118

5.3 Defesa da Concorrência 124

6) Investimentos e Serviços 128

6.1 Investimentos 128

6.2 Serviços 130

7) Outros temas relevantes da agenda do Mercosul 135

7.1 Tratamento de assimetrias 135

7.1.1 Ações pontuais 137

7.2.2 Ações estruturais: FOCEM 139

7.2 Coordenação de políticas macroeconômicas 141

7.3 Compras governamentais 146

7.4 Relacionamento Externo do Mercosul 149

7.5 A adesão da Venezuela ao Mercosul 155

Page 5: Mercosul PDF

5

Perspectivas para o futuro próximo 158

Bibliografia 162

Page 6: Mercosul PDF

6

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACE – Acordo de Complementação Econômica

ALADI – Associação Latino-Americana de Integração

ALALC – Associação Latino-Americana de Livre Comércio

CAMEX – Câmara de Comércio Exterior

CCM – Comissão de Comércio do Mercosul

CDC - Comitê de Defesa da Concorrência

CDCS - Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas

CMC – Conselho do Mercado Comum

CT – Comitê Técnico

FOCEM - Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul

GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio

GMC – Grupo Mercado Comum

MAC – Mecanismo de Adaptação Competitiva

MDIC – Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

NCM – Nomenclatura Comum do Mercosul

OMC – Organização Mundial do Comércio

PARLASUL – Parlamento do Mercosul

PCP – Protocolo de Compras Governamentais

PDC – Protocolo de Defesa da Concorrência

PICE - Programa de Integração e Cooperação Econômica

POP – Protocolo de Ouro Preto

SAT – Setor de Assessoria Técnica

SGT – Subgrupo de Trabalho

SM – Secretaria do Mercosul

STF – Supremo Tribunal Federal

TEC – Tarifa Externa Comum

TPR – Tribunal Permanente de Revisão

ZFM – Zona Franca de Manaus

ZLC – Zona de Livre Comércio

Page 7: Mercosul PDF

7

APRESENTAÇÃO

A presente obra tem o objetivo de oferecer ao leitor, de maneira introdutória e

panorâmica, os principais conceitos relacionados à dimensão econômico-comercial

do Mercosul.

O trabalho gira em torno de três eixos básicos. O primeiro deles é histórico-

conceitual, voltado para a apresentação dos objetivos e da importância do bloco, de

seus antecedentes e de sua relação com o sistema multilateral de comércio. Em

seguida discorreremos sobre a Tarifa Externa Comum (TEC), elemento

caracterizador da união aduaneira. O terceiro eixo é temático e direcionado para o

debate sobre temas específicos, tais como defesa comercial e da concorrência,

investimentos, serviços, tratamento de assimetrias e coordenação de políticas

macroeconômicas.

O primeiro segmento se justifica pela necessidade de interpretarmos o projeto

de integração à luz de seus objetivos iniciais e da própria história da região. Como

veremos, o Mercosul teve, desde sua gênese, um forte conteúdo político. Isso pode

explicar as ambiciosas metas estabelecidas em seu tratado fundacional, as quais não

puderam ser atingidas nos prazos estipulados. É necessário salientar, porém, que, a

despeito das dificuldades, o bloco também teve êxitos no campo econômico-

comercial, especialmente no que diz respeito ao incremento dos fluxos de comércio.

Ainda na primeira parte do trabalho, recuperaremos de maneira breve as

experiências anteriores de integração no continente – ALALC e ALADI – e como

elas prepararam o terreno para a posterior conformação do Mercosul.

Nenhuma exposição dos aspectos econômicos e comerciais do Mercosul pode

dispensar uma análise mais detida da TEC e da Nomenclatura Comum do Mercosul

(NCM), objeto da segunda parte do presente trabalho. A TEC é, paradoxalmente, a

principal virtude e a mais problemática ferramenta do bloco. Sua virtude é atestar o

compromisso dos Estados Partes em levar adiante um processo de integração

profunda, em que, por terem a mesma alíquota para o imposto de importação, os

países da região terão necessariamente de articular posições comuns em suas

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8

relações comerciais com terceiros. Por outro lado, são conhecidas as dificuldades

existentes na administração da TEC, dadas as discrepâncias entre as estruturas

produtivas de cada um dos sócios. Por essa razão, a TEC é, ainda hoje, um

“processo” negociador permanente, dotada de diversas exceções (“perfurações”) e

principal alvo dos críticos da integração. Nesta segunda parte da obra analisaremos a

estrutura, o funcionamento e as exceções à TEC, cuja relativa complexidade nos faz

lembrar as complicações envolvidas em sua negociação, haja vista a já referida

diversidade de interesses entre os Estados Partes: alguns mais, outros menos

protecionistas.

Além disso, trataremos do regime de origem do Mercosul e do trabalho

desenvolvido por um dos órgãos decisórios da estrutura institucional do bloco, a

Comissão de Comércio (CCM), bem como de seus foros subordinados. É no âmbito

da CCM que tem lugar o trabalho técnico de aperfeiçoamento das condições para o

livre comércio entre os Estados Partes. Compete a ela, ademais, dar

encaminhamento, especialmente por meio de um sistema de consultas, aos

problemas pontuais nas relações comerciais entre os países do bloco, bem como

administrar e atualizar a NCM e a TEC, promovendo ajustes permanentes ou

temporários em suas alíquotas.

Tendo como pano de fundo a história do bloco e o estágio atual da união

aduaneira, apresentaremos em seguida, de maneira genérica, alguns dos temas

fundamentais da agenda do Mercosul. A harmonização de políticas em diversos

setores é um dos pressupostos para a constituição do mercado comum. Os Estados

Partes têm avançado pouco nesse terreno, ao menos no que tange aos temas

fundamentais para a consecução dos objetivos traçados no Tratado de Assunção. Os

esforços de constituição de sistemas comuns de defesa comercial e da concorrência,

para a adoção de um marco jurídico comunitário de promoção e proteção de

investimentos, para a liberalização do comércio de serviços e para a coordenação de

políticas macroeconômicas não evoluíram de maneira satisfatória, dando corpo à

chamada “agenda não cumprida” do Mercosul. Em outras questões, como o

tratamento de assimetrias, houve alguns avanços concretos, o mais notável dos quais

Page 9: Mercosul PDF

9

a criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), experiência

que revela o compromisso político dos Estados Partes mais desenvolvidos com a

redução das disparidades econômicas e sociais na região.

Esperamos que, ao final da obra, o leitor possa ter em mente não apenas quais

são os obstáculos para o alcance dos objetivos enunciados no Tratado de Assunção,

mas também alguns dos benefícios trazidos pelo processo de integração a seus

Estados Partes. Aqui cabe um parêntese: o Mercosul extrapolou, há muito, a

dimensão estritamente mercantil, irradiando seus efeitos para diferentes áreas. As

iniciativas no campo social – saúde, educação, trabalho, cultura, turismo, justiça,

imigração, dentre outras – são muitas vezes mais palpáveis aos cidadãos do que os

resultados de um aumento das trocas comerciais. Tendo isso em vista, é fundamental

reiterar que a pretensão deste trabalho é mais modesta, restringindo-se, como

explicado anteriormente, apenas às questões mais prementes da união aduaneira. Por

sua história e seus resultados, não seria possível sintetizar de maneira eficaz, nos

limites estabelecidos para esta obra, as múltiplas e diferentes facetas do Mercosul.

O autor

Brasília, maio de 2009

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10

CAPÍTULO 1 – Conceito e história do Mercosul

1.1) Conceitos básicos

O Mercado Comum do Sul (Mercosul1) é uma iniciativa de integração

econômica regional que envolveu inicialmente Argentina, Brasil, Paraguai e

Uruguai e cujo marco jurídico fundamental é o Tratado de Assunção, celebrado em

1991. Como veremos mais adiante, a gênese do bloco remonta a meados dos anos

80, com o início do processo de aproximação entre Argentina e Brasil. No entanto, é

apenas no início da década de 90, num contexto histórico particular, que ganham

fôlego e acabam por se concretizar as iniciativas de criação de um espaço

econômico comum no Cone Sul.

O termo “integração” designa, de maneira genérica, a supressão de restrições

ao comércio entre os Estados Partes. Diferencia-se, nesse aspecto, de medidas mais

simples de cooperação econômica - como a simples concessão de reduções tarifárias

ou a adoção de medidas tendentes a reduzir a burocracia nas transações comerciais -

que envolvem geralmente uma diminuição de barreiras, mas não sua efetiva

eliminação. O desejo político de integrar-se denota, por conseguinte, uma

vinculação mais robusta entre os países envolvidos, gerando uma interdependência

entre suas economias e, conseqüentemente, uma diminuição de sua capacidade de

ditar, unilateralmente, medidas de natureza econômico-comercial.

Fica evidente, assim, que o envolvimento em projetos de integração implica,

em maior ou menor grau, uma perda de autonomia. Estar disposto a ceder parcelas

dessa autonomia em troca de benefícios políticos e econômicos é pressuposto

necessário para o sucesso de qualquer iniciativa de construção de um bloco

comercial.

O Mercosul tem como objetivo fundamental a constituição de um mercado

comum entre seus integrantes. Trata-se de uma forma bastante avançada de

1 Optamos pela utilização da grafia Mercosul, em letras minúsculas, em lugar da sigla MERCOSUL, a mais correta do ponto de vista formal, por entender que a popularização do termo permite sua utilização como se fosse um substantivo.

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11

integração, superada apenas por aquelas que prevêem uma a formação de uma união

econômica plena, com a adoção de uma moeda comum. Conforme a tipologia

clássica sobre a matéria, elaborada por Bela Balassa no início da década de 602,

seriam basicamente quatro os estágios de integração econômica, classificados de

acordo com o seu grau de aprofundamento:

a) Zona de Livre Comércio (ZLC): numa ZLC temos a eliminação de

barreiras tarifárias e não-tarifárias para os produtos originários dos países

que participam do processo de integração. Cada membro preserva, no

entanto, sua autonomia para ditar a política comercial com relação a

terceiros mercados. Não há, portanto, uma tarifa comum entre os países do

bloco. Um exemplo atual de ZLC é o NAFTA, iniciativa que envolve os

Estados Unidos, Canadá e México.

b) União Aduaneira: numa união aduaneira temos, além do livre comércio,

uma política comercial comum em face de terceiros países ou blocos.

Desse modo, o que a diferencia de uma ZLC é sobretudo a existência de

uma Tarifa Externa Comum (TEC), além da harmonização normativa e

coordenação de políticas em diversos setores.

c) Mercado Comum: o Mercado Comum, além do livre comércio e da

existência de uma tarifa comum, contempla também a livre circulação de

pessoas, serviços e capitais. Isto é, temos aqui a livre circulação dos

chamados “fatores produtivos”.

d) União Econômica: A União Econômica exige uma coordenação das

políticas econômicas dos países integrantes e substituição de certas

políticas econômicas nacionais por políticas comuns.

e) Integração Econômica Total: É possível que os arranjos de integração

evoluam para uma união monetária, ocasião em os países adotam uma

mesma moeda (como no caso do Euro). Essa unificação das políticas

2 Balassa, Bela. Teoria da Integração Econômica. 2ª edição. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1972, p. 13.

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12

monetárias e fiscais requer a constituição de uma autoridade

supranacional (um Banco Central comunitário, por exemplo).

A tabela a seguir apresenta, de maneira esquemática e simplificada (e,

portanto, com algum grau de imprecisão), a classificação desenvolvida por Balassa:

Etapas de integração econômica segundo Bela Balassa (1961)

Ausência de

tarifas ou

quotas

Tarifa

Externa

Comum

Livre

circulação

de fatores

Harmonizaçã

o de políticas

econômicas

Unificação

de políticas

e

instituições

econômicas

Área de

livre

comércio

X

União

Aduaneira

X

X

Mercado

Comum

X

X

X

União

econômica

X

X

X

X

Integração

econômica

total

X

X

X

X

X

Fonte: Coutinho, M., Hoffmann, A.R. et Kfuri, R. “Raio X da Integração Regional”. In: Estudos e

Cenários, OPSA/IUPERJ, maio de 2007, p. 17. Elaborada a partir do estudo de Joseph Nye,

“Comparing Common Markets: a revised neofuncionalist model”, In: International Organizations,

24:4, 1970, p. 860.

As definições de Balassa, embora dotadas de caráter ilustrativo, padecem de

falhas em razão de seu esquematismo. É o caso, por exemplo, do mercado comum:

Page 13: Mercosul PDF

13

conquanto se diga que sua constituição não depende, a priori, da coordenação de

políticas macroeconômicas, o fato é que a ausência dessa coordenação pode vir a

oferecer sérios obstáculos para a consecução dos objetivos do processo de

integração3. A experiência concreta indica que um determinado projeto pode

mesclar diferentes (ou incluir novos) elementos de cada uma das etapas, motivo pelo

qual a classificação é positiva do ponto de vista didático e ilustrativo, mas não

correspondente a um retrato exato da realidade.

Os objetivos fundamentais do Mercosul estão estabelecidos no artigo 1° do

Tratado de Assunção. Esse dispositivo, exemplo claro da elevada ambição que

movia os países que o negociaram, consagra a vontade dos Estados Partes de

constituírem um mercado comum em pouco mais de três anos (até 31 de dezembro

de 1994). O mercado comum, na linha da definição acima apresentada, contemplaria

a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, por meio da supressão de

direitos alfandegários e outras restrições de natureza não-tarifária. Além disso, o

documento fundador do Mercosul previu o estabelecimento da TEC, a coordenação

de políticas macroeconômicas e setoriais (ação que só se faria necessária, segundo a

tipologia de Balassa, numa união econômica) e o “compromisso dos Estados Partes

de harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do

processo de integração”.

Quase duas décadas após o estabelecimento do bloco, os países do Mercosul

não lograram, ainda, conformar um mercado comum. Embora tenha havido a adoção

da TEC e a eliminação de boa parte dos direitos alfandegários e de diversas barreiras

não-tarifárias, alguns dos objetivos enunciados no Tratado de Assunção, como a

livre circulação de fatores produtivos e a coordenação de políticas

macroeconômicas, ainda não puderam ser atingidos. De todo modo, em 1995 o

bloco tornou-se formalmente uma união aduaneira, já que nesse ano entrou a

vigência a TEC para seus quatro membros fundadores. Tendo em conta a existência

das chamadas “perfurações” da TEC, que examinaremos em ponto específico, é

comum a utilização da expressão “união aduaneira imperfeita” para designar o

3 Cf. Conzendey, Carlos M. Mercosul: União Aduaneira ?. Tese apresentada ao Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. Brasília, mimeo., 2005, p. 51.

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bloco: embora já estabelecida, a tarifa comum não chega a ser aplicada para todo o

universo de mercadorias, em virtude da existência de exceções transitórias.

A leitura do Tratado de Assunção e uma avaliação do contexto histórico em

que foi produzido revelam que inicialmente o Mercosul se apresentou

precipuamente como um projeto de natureza econômica e comercial. Seu propósito

era o de estimular o comércio entre os Estados Partes e colaborar para sua melhor

inserção na economia mundial. No entanto, o processo de integração regional

acabou tendo grande impacto nos campos político e social, propiciando a

coordenação de políticas em diversos setores: saúde, educação, trabalho, imigração,

justiça, energia, meio ambiente, agricultura familiar e outros. No plano institucional

houve, ao final de 2006, a instalação do Parlamento do Mercosul (Parlasul), o qual,

embora sem competências legislativas (suas funções são consultivas e de

acompanhamento das diferentes instâncias do bloco), contribui para o reforço da

transparência e da visibilidade do processo de integração.

Uma avaliação mais precisa dos resultados do processo de integração

demanda, portanto, a consideração dessa multidimensionalidade, embora o foco do

presente trabalho seja, como já assinalado, apenas os aspectos de ordem econômico-

comercial. Uma correta aferição dos benefícios trazidos pelo Mercosul deve ter em

perspectiva, não obstante, a irradiação do projeto de integração para os mais

diferentes setores, bem como sua progressiva apropriação por diversos atores

sociais, o que contribuirá, direta ou indiretamente, para aproximar as populações e,

naturalmente, estimular o alcance do objetivo central de se estabelecer um espaço

econômico comum entre os países-membros.

1.2) O Mercosul no contexto dos acordos comerciais multilaterais

Uma melhor compreensão das características e do contexto histórico em que

surgiu o Mercosul exige, antes, uma apresentação sumária e introdutória da

evolução e de alguns conceitos fundamentais de comércio internacional.

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15

O pós-Segunda Guerra Mundial é o momento que se revitalizam as ambições

de uma maior liberalização, no plano multilateral, das trocas comerciais. Essa

pretensão havia sido deixada de lado por nacionalismos de diversos tipos que

ganharam terreno especialmente nos anos 30, mas cujo início remonta ao início da

primeira Grande Guerra. Já no pós-45 o comércio internacional foi tomado como um

dos mais importantes instrumentos na promoção de maior cooperação entre as

nações, o que conduziu ao lançamento e à assinatura, em 1947, do Acordo Geral de

Tarifas e Comércio, mais conhecido pela sigla em inglês GATT (General Agreement

on Tariffs and Trade).

As negociações do GATT 1947 envolveram inicialmente apenas 23 países,

dentre os quais o Brasil. Esse acordo contribuiu para promover uma liberalização

progressiva do comércio de bens industriais, por meio de reduções tarifárias

crescentes. Sua base é a cláusula de nação mais favorecida, segundo a qual toda

concessão feita a um membro do acordo deverá ser estendida aos demais países.

Essa cláusula é a base do princípio da não-discriminação, consagrado no Artigo I do

acordo.

Cumpre assinalar que o GATT 1947 é apenas um acordo, e não uma

organização comercial. Apenas em 1994 é que os países signatários decidiram, por

meio dos acordos assinados em Marrakesh, criar a Organização Mundial do

Comércio (OMC). Com sua instalação em 1995, passamos a ter, pela primeira vez,

um foro no qual se discutem todas as questões relacionadas ao comércio

internacional. No entanto, devemos sublinhar que o GATT assinado em 1994 não

substituiu, mas apenas complementou, o GATT 1947, que continua vigente.

Ao buscar evitar concessões comerciais discriminatórias, o GATT 1947

ambicionava criar um ambiente propício à expansão do comércio em bases

multilaterais. Assim, sempre que uma das partes contratantes oferecesse a outra uma

redução na tarifa de seu imposto de importação, deveria estender esse mesmo

benefício aos demais signatários do acordo. Essas reduções no imposto de

importação são denominadas preferências tarifárias. Tomemos um exemplo: o

imposto de importação de um determinado país para automóveis é de 10%.

Page 16: Mercosul PDF

16

Celebrado um acordo com uma nação vizinha, foi-lhe concedida preferência tarifária

de 50% para esse produto. Isso significa que a tarifa de 10% sofrerá, para esse país

específico, uma redução de 50%: o imposto a ser cobrado será, por conseguinte, de

5%. As preferências tarifárias podem ser concedidas em qualquer escala, até mesmo

de 100%, o que significará, na prática, que nenhum imposto será pago.

O princípio da não-discriminação nos leva a um primeiro questionamento. O

Mercosul, como veremos, é um acordo de comércio regional, que envolveu, em seu

momento inicial, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Esses quatro países

comprometeram-se a efetuar uma crescente desgravação tarifária entre si, até se

atingir o livre comércio. Ora, essa prática – assim como a prática de todos os demais

acordos regionais – não se indisporia com o princípio da não-discriminação e com a

cláusula de nação mais favorecida, mostrando-se, por conseguinte, incompatível

com o GATT ?

Essa incompatibilidade não existe porque o próprio GATT 1947 estabelece

uma espécie de exceção ao princípio da não-discriminação, o que permite legitima a

celebração de acordos comerciais regionais. Consoante o Artigo XXIV do GATT

1947, a cláusula de nação mais favorecida não poderá constituir um empecilho para

a formação de áreas de livre comércio e de uniões aduaneiras. No entanto, certas

condições devem ser observadas: a união aduaneira resultante deverá promover a

eliminação das barreiras ao comércio para uma parte “substancial de todo o

comércio” (substantially all the trade) e os integrantes do acordo deverão manter a

mesma política comercial (especialmente a mesma tarifa) com relação a terceiros

países e blocos. No caso das áreas de livre comércio, o requisito fundamental é o de

que sejam eliminadas as barreiras ao comércio entre os países integrantes, já que,

como veremos, numa ALC os integrantes não são obrigado a dotar a mesma política

tarifária em face de outros países.

Além disso, não podem os países integrantes do acordo regional aproveitar a

ocasião para adotar práticas protecionistas que violem acordos já celebrados com

outros países, promovendo, por exemplo, a elevação das tarifas anteriormente

vigentes.

Page 17: Mercosul PDF

17

Um dos requisitos para a celebração dos acordos regionais é, desse modo, que

ele contemple substancialmente todo o comércio entre os países envolvidos. O que

significa essa expressão ? Ainda não existe, formalmente, uma definição unívoca

acerca da parcela mínima do comércio que deverá se beneficiar do livre comércio

entre os integrantes do acordo regional.

Em 1994, a fim de tornar mais claros os requisitos que devem atender os

acordos regionais para que sejam compatíveis com as regras do GATT, as partes

contratantes decidiram adotar o “Entendimento sobre a interpretação do Artigo

XXIV”. Esse documento legal tampouco brindou, todavia, um maior esclarecimento

acerca da amplitude da expressão “substancialmente todo o comércio”.

De acordo com documentos da OMC, duas análises da questão podem ser

efetuadas4. A primeira delas é de natureza quantitativa: um patamar mínimo - 85%,

90% ou 95% - do fluxo comercial entre os países deveria se desenrolar sem

enfrentar restrições comerciais. A crítica a esse primeiro critério assinala que um

setor importante (químico, por exemplo) - que represente, por exemplo, 10% das

transações - poderia ser excluído totalmente do livre comércio e ainda assim o bloco

atenderia aos requisitos do Artigo XXIV. A segunda análise é de natureza

qualitativa: nenhum setor deveria ser excluído dos benefícios do livre comércio.

Esse critério também é alvo de críticas, já que seria difícil definir o que é um setor e,

além disso, poder-se-ia abrir a possibilidade de que, para observar os requisitos

estabelecidos pelo GATT, apenas um pequeno número de produtos de um segmento

fosse objeto da eliminação de barreiras, sem, no entanto, que parcela significativa

das mercadorias tivesse o mesmo tratamento.

Ainda que não haja consenso a respeito, o fato é que a existência do Mercosul

e de outros acordos similares encontram apoio na exceção contida no Artigo XXIV

do GATT, possibilitando que as condições mais favoráveis negociadas entre seus

membros não sejam igualmente oferecidas aos demais membros da OMC.

4 WTO Secretariat. “Compendium of issues related do regional trade agreements” (Document TR/NL/W/8/Rev. 1). Genebra, 2002, p. 18.

Page 18: Mercosul PDF

18

1.3) Primeiras experiências de integração na América do Sul: ALALC e

ALADI

A formação de blocos econômicos regionais tem sua primeira fase no período

do pós-Guerra. Na América Latina, a primeira iniciativa foi a formação da

Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), constituída por meio

do Tratado de Montevidéu, celebrado em 1960. Seu escopo primordial era o de

promover a redução de tarifas no comércio entre os países do hemisfério,

fomentando uma maior integração entre seus sistemas produtivos.

Participaram do acordo, num primeiro momento, Argentina, Brasil, Chile,

México, Paraguai, Peru e Uruguai, aos quais se somaram, posteriormente, Colômbia,

Equador, Bolívia e Venezuela. O Tratado fixava que a zona de livre comércio seria

estabelecida num prazo não superior a doze anos. O Protocolo de Caracas, assinado

em 1969, estendeu esse prazo para vinte anos. Determinava, ainda, em seu artigo 3°,

que as partes contratantes eliminariam gradualmente “os gravames e as restrições de

toda ordem que incidam sobre a importação de produtos originários do território de

qualquer Parte Contratante”. A intensificação do comércio se daria por meio da

elaboração de listas nacionais, em que cada país incluiria produtos para os quais

concederia, aos seus sócios, tratamento tarifário preferencial. A ALALC

fundamentava-se na aplicação da cláusula de nação mais favorecida, segundo a qual

qualquer vantagem concedida a um produto originário de um dos países da

Associação seria estendida aos produtos similares dos demais signatários do Tratado

de Montevidéu.

Além das listas nacionais, as negociações envolviam também a elaboração de

listas comuns, que abrangiam produtos não constantes das listas de cada país. As

listas comuns eram negociadas multilateralmente a cada três anos.

Em sua primeira década a ALALC logrou êxitos, possibilitando um

incremento do comércio entre os países-membros. A partir de 1970, porém, houve

maior relutância dos Governos nacionais em conceder novas preferências tarifárias5,

5 Amaral Junior, Alberto do. MERCOSUL: características e perspectivas. In: Revista de Informação Legislativa. a. 37, n. 146, abr/jun 2000, p. 292.

Page 19: Mercosul PDF

19

o que significou, em última instância, a derrocada do objetivo de se constituir uma

área de livre comércio.

A utilização da cláusula de nação mais favorecida acabou revelando-se,

portanto, contraproducente para o objetivo de se promover uma maior integração

entre os países do continente. Isso porque a obrigatoriedade de estender aos demais

países signatários concessões eventualmente feitas a um parceiro considerado

prioritário era freqüentemente vista como inconveniente ou contrárias aos interesses

nacionais. Como assinala Sebastião do Rego Barros, “a pretensão multilateral

minava, neste caso, o lançamento de projetos de integração de alcance mais

limitado, como as iniciativas bilaterais e sub-regionais”6.

Dois outros fatores, que deitam raízes no contexto histórico dos anos 60 e 70,

também explicam o insucesso da ALALC. O primeiro deles diz respeito à aguda

instabilidade política que marcou a região, sob o influxo da polaridade ideológica

resultante da Guerra Fria. Em conseqüência, o continente testemunhou a

implantação de regimes autoritários em diversos países, favorecendo a consolidação

de posições nacionalistas. Além disso, o modelo econômico propugnado pelos

governos de então calcava-se no processo de substituição de importações, cujos

contornos protecionistas – elevação de tarifas de importação e subsídios à produção

interna – obstaculizou o progresso dos esquemas de integração regional então em

curso. A ALALC, em seus vinte anos de existência, não obteve êxito, assim, no

estabelecimento de preferências tarifárias mais amplas no continente.

O insucesso da ALALC na constituição de uma área de livre comércio deu

lugar ao surgimento de um organismo “sucessor”, a Associação Latino-Americana

de Integração (ALADI), cuja criação foi formalizada por intermédio do Tratado de

Montevidéu de 1980. Diferentemente da ALALC, a ALADI não se propunha a

conduzir o processo de criação de uma área de livre comércio num prazo prefixado.

Visava, antes, a fomentar a integração econômica por meio de um sistema

multilateral de concessão de preferências comerciais, embora mantivesse o objetivo

final de criar uma área de livre comércio na América Latina.

6 Barros Neto, Sebastião do Rego. “Eixos de Integração Sul-Americana”. In: Boletim de Integração Latino-Americana. Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1995, p . 03.

Page 20: Mercosul PDF

20

Na verdade, o Tratado de Montevidéu de 1980 alude, em seu artigo 1°, a um

processo de integração pautado pela harmonia e equilíbrio, tendo como propósito

maior, no longo prazo (sem indicar datas) e “de forma gradual e progressiva”, o

estabelecimento de um “mercado comum latino-americano”7. Além disso, o artigo

3° enuncia os princípios que deverão ser levados em conta na interpretação e

aplicação do Tratado, sobressaindo, dentre eles, o princípio da flexibilidade8, o que

abriu espaço para que os países negociassem entre si as preferências tarifárias que

julgavam capazes de oferecer num determinado momento.

O fato de o documento constitutivo da ALADI reportar-se expressamente às

idéias de gradualidade, progressividade e flexibilidade, tendo em mira a formação

no longo prazo de um mercado comum latino-americano, indica que o

estabelecimento de uma área de livre comércio no continente deveria se dar passo a

passo, sem a imposição de prazos peremptórios, e tendo em contas as

especificidades e sensibilidades de cada uma das economias da região.

De acordo com o disposto no capítulo II do Tratado de 1980, a ALADI opera

com base na concessão de preferências tarifárias regionais, lançando mão de dois

instrumentos: acordos de alcance regional (do qual participam todos os países-

membros) e acordos de alcance parcial (que contam com a participação de dois ou

mais países-membros). A possibilidade de celebrar acordos envolvendo apenas um

número limitado de países supriu uma das principais deficiências da ALALC: a

cláusula de nação mais favorecida, que, como visto, obstaculizava a formação de

blocos ou parcerias estratégicas, ao tornar obrigatório que benefícios acordados

entre alguns dos membros fossem estendidos, automaticamente, a todos os demais

integrantes da Associação.

Cumpre salientar que, como uma das subcategorias dos acordos de alcance

parcial, temos os chamados “acordos de complementação econômica”9 (ACE).

Diferentemente dos acordos comerciais, que têm como foco exclusivo a promoção

7 In: Mercosul: Legislação e Textos Básicos. 4ª ed. Brasília, Gráfica do Senado Federal, 2005, p. 104. 8 Ibidem, pp. 104-105. 9 De acordo com o artigo 8° do Tratado de Montevidéu, “os acordos de alcance parcial poderão ser comerciais, de complementação econômica, agropecuários, de promoção do comércio ou adotar outras

Page 21: Mercosul PDF

21

do comércio, os acordos de complementação econômica têm, teoriamente, escopo

mais amplo, visando a um máximo aproveitamento dos fatores de produção, a

condições eqüitativas de concorrência e à facilitação do acesso de produtos regionais

no mercado internacional. A base econômica-comercial do Mercosul é justamente

um acordo dessa natureza, o ACE n° 18, subscrito em 1991 por Argentina, Brasil,

Paraguai e Uruguai.

A ALADI ofereceu aos seus integrantes os marcos jurídicos necessários à

celebração de acordos comerciais de maior ou menos amplitude, amparados pelos

princípios da gradualidade e da flexibilidade. O aprofundamento do processo de

integração regional dependia, contudo, de outros fatores, tais como a vontade

política dos governos e a criação de um cenário econômico mais propício ao

desenvolvimento das trocas comerciais, condições que se fizeram presentes de

maneira mais clara somente a partir da segunda metade dos anos 80.

É importante destacar, à luz do exposto, que a ALADI não consubstancia, por

si só, um “bloco” econômico. Trata-se antes de uma instituição que oferece uma

arquitetura jurídica para a celebração de acordos comerciais entre seus integrantes,

tanto em bases bilaterais quanto multilaterais.

1.4) Antecedentes imediatos do Mercosul

A formação de blocos econômicos regionais depende não apenas de

condicionantes econômicos - como a disposição dos governos de abrir suas

economias, desmantelando barreiras ao comércio, e abandonar políticas autárquicas,

como a de substituição de importações -, mas também da presença de vontade

política capaz de impulsionar a intensificação das relações com os países vizinhos.

Essas condições favoráveis começaram a surgir, no caso específico do

Mercosul, com o processo de aproximação entre os governos da Argentina e do

Brasil. A partir dos anos 80 emergiram as condições - o processo de

redemocratização e a necessidade de superar o contexto de crise econômica que

modalidades”. Essas “outras modalidades” têm como objeto temas como cooperação científica e tecnológica, promoção do turismo e preservação do meio ambiente.

Page 22: Mercosul PDF

22

afetava a América do Sul - para que as relações entre os dois países evoluíssem

gradativamente de uma “cultura da rivalidade” para uma “cultura de amizade”.

Como ponderam Russell e Tokatlian, um dos fatores que impulsionaram o

estreitamento dos contatos foram as taxas de crescimento diferenciais em favor do

Brasil, que estimularam, no país vizinho, o desenvolvimento da percepção de que

uma associação bilateral seria fundamental para “consolidar o processo democrático

em ambos os países, resguardar a soberania nacional, impulsionar o

desenvolvimento argentino em complementaridade com o brasileiro e reunir massa

crítica para ampliar a capacidade de negociação internacional”10.

Essa concepção de que uma associação para o desenvolvimento econômico

seria mutuamente benéfica, especialmente num cenário em que tanto Argentina

quanto o Brasil enfrentavam crises decorrentes da dívida externa e da pouca

permeabilidade do mundo desenvolvido às suas demandas, foi decisiva para atenuar

as disputas geopolíticas que dificultavam, anteriormente, uma maior aproximação

econômica.

Alguns movimentos para uma maior integração bilateral já tinham sido,

porém, ensaiados em décadas anteriores. Nos anos 40 houve um esboço de

aproximação entre os dois países com vistas à constituição de uma união

alfandegária, nos moldes, ao menos em tese, do que o Mercosul é hoje. Em 1941 os

Chanceleres do Brasil e da Argentina assinaram um tratado comercial que fixava

expressamente esse objetivo, tendo, ainda, a pretensão de agregar os países vizinhos.

As diferentes posições adotadas pelos dois países durante a II Guerra Mundial

acabaram por impedir a concretização desse objetivo11. Mais adiante, no início dos

anos 60, os acordos de Uruguaiana, assinados entre os Presidentes Arturo Frondizi e

Jânio Quadros, tiveram importância no plano político, ao contemplarem uma maior

cooperação entre os dois países em foros internacionais, sem, contudo, prever um

aprofundamento da integração econômica bilateral12.

10 Russell, Roberto e Tokatlian, Juan Gabriel. “O lugar do Brasil na Política Externa da Argentina: a visão do outro”. In: Novos Estudos - CEBRAP, n. 65, março de 2003, p. 83. 11 Almeida, Paulo Roberto. MERCOSUL: fundamentos e perspectivas. Brasília, Grande Oriente do Brasil, 1998, p. 11. 12 Russell, Roberto e Tokatlian, Juan Gabriel, op. cit., p. 81.

Page 23: Mercosul PDF

23

É durante os Governos de José Sarney, no Brasil, e Raul Alfonsín, na

Argentina, no período inicial da redemocratização, que passou a se desenvolver de

maneira mais intensa uma política de aproximação bilateral. Superadas as

divergências relativas à construção da usina de Itaipu e estabelecida uma maior

cooperação no campo da energia nuclear, pavimentou-se o caminho para um

entendimento entre os dois países sobre possíveis pautas para uma maior integração

econômica. Deixados para trás os fatores básicos de desconfiança, podiam os dois

governos buscar, com maior desenvoltura, maneiras de aumentar os ganhos

econômicos recíprocos. Essa constatação abriu as portas para a adoção de estratégias

de integração que deveriam ir além dos esquemas tradicionais adotados ao amparo

da ALADI. Tratava-se de perseguir uma integração “profunda”, com vistas não

apenas a um aumento dos fluxos de comércio, mas também a uma maior integração

produtiva e industrial, de modo a gerar escala, atrair investimentos e maximizar os

recursos produtivos13.

Em 1985, Sarney e Alfonsín assinaram a “Declaração de Iguaçu”. No

documento, os dois mandatários expressaram a “firme vontade política de acelerar o

processo de integração bilateral”. Para atingir esse objetivo, decidiram criar uma

Comissão Mista de Alto Nível encarregada de apresentar, até junho de 1986,

propostas de integração econômica em diferentes setores.

Os trabalhos da Comissão Mista resultaram na assinatura, em julho de 1986,

da “Ata para a Integração e Cooperação Econômica”14. Esse documento consagrava

a pretensão dos dois países de intensificar e diversificar as trocas comerciais. Além

disso, estabelecia um Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE) com

medidas para a expansão das trocas comerciais bilaterais. É importante chamar a

atenção para os princípios que orientavam o PICE: gradualidade (seus objetivos

seriam implementados em etapas anuais); flexibilidade (sendo possível realizar

ajustes pontuais, quando necessário) e equilíbrio (de maneira simplificada, os dois

países deveriam ganhar, evitando-se, da mesma forma, uma excessiva especialização

13 Seixas Corrêa, Luiz Felipe. A Política Externa de José Sarney. Brasília, Senado Federal, 1997, p. 29. 14 In: Resenha de Política Exterior do Brasil, n. 50. Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1986, pp. 94-105.

Page 24: Mercosul PDF

24

em setores específicos). Uma Comissão de Execução foi encarregada de pôr em

prática o programa.

O PICE contemplava medidas em diferentes áreas. Anexos ao Programa

estavam doze protocolos. O primeiro deles referia-se a bens de capital,

estabelecendo uma lista de produtos que não estariam mais sujeitos a gravames

tarifários. Tal medida visava à promoção de uma maior integração produtiva entre

os dois países, num segmento vital para qualquer política de industrialização. Essa

lista de produtos deveria ser incrementada pouco a pouco, aumentando-se o número

de bens beneficiados pela remoção de barreiras tarifárias e não-tarifárias. Em

compasso com a preocupação de se manter o equilíbrio nas trocas bilaterais, o

Protocolo sobre Bens de Capital adotava expressamente o conceito de “equilíbrio

dinâmico”: o superávit acumulado num determinado quadrimestre não poderia

ultrapassar 10% dos valores de referência determinados no próprio programa. A

título ilustrativo, em 1990 esse valor de referência seria de US$ 750 milhões, de

modo que o superávit de um dos países no comércio dos bens de capital

compreendidos no programa não poderia exceder US$ 75 milhões.

As medidas previstas para o setor de bens de capital explicitavam que

Argentina e Brasil buscavam conectar suas cadeias produtivas de maneira eqüitativa,

alavancando o intercâmbio de produtos fundamentais para o setor industrial. Tanto é

assim que, ao tempo em que estimulava a redução de obstáculos no comércio

bilateral, o programa previa medidas de proteção em face de terceiros mercados.

Outro Protocolo relevante do PICE tinha como objeto a previsão, de maneira

genérica, de ações para a expansão do comércio. Mais uma vez havia claras

referências à necessidade de um incremento equilibrado, “adotando-se mecanismos

que resultem mais adequados para estimular principalmente a exportação de

produtos originários do país deficitário”15. Esse mesmo Protocolo fixou a

necessidade de renegociação do acordo comercial então vigente entre os dois países

(Acordo de Complementação Econômica n° 1, celebrado no âmbito da ALADI).

15 Protocolo Número Quatro do PICE.

Page 25: Mercosul PDF

25

Por derradeiro, o PICE continha protocolos específicos sobre a criação de

empresas binacionais, assentando condições propícias para o seu surgimento; sobre

cooperação no campo aeronáutico (visando à produção de partes de aviões

brasileiros em território argentino) e na área de biotecnologia, energia, comércio de

trigo, investimentos e assuntos financeiros.

O PICE estabeleceu, por conseguinte, os alicerces para uma efetiva

integração econômica bilateral. Representava, na prática, uma passagem à ação,

fruto do acordo político consubstanciado na Declaração de Iguaçu. O processo

evoluía de maneira célere: num momento em que o Governo Sarney contava 1 ano e

3 meses, os primeiros frutos da aproximação com a Argentina começavam a ser

colhidos.

Deve-se ter em mente que em 1985 o Brasil era o destino de apenas 5,9% das

exportações argentinas. A progressiva redução de barreiras tarifárias decorrente dos

acordos bilaterais e, posteriormente, do estabelecimento do Mercosul, estimulou o

comércio de tal maneira que menos de uma década depois, já a partir de 1994, o

Brasil passou a ser o principal importador de produtos argentinos, absorvendo

22,4% das exportações do país vizinho. Esse fenômeno fez até com que se falasse,

na Argentina, no surgimento de uma “Brasildependência”16.

Os dois mandatários sublinharam, durante a visita oficial de Sarney à

Argentina, que o processo de integração era uma resposta à profunda crise

econômica vivida pela região nos anos 80, com a aceleração do processo

inflacionário e o crescimento do endividamento externo. A cooperação econômica

seria, nesse cenário, uma importante ferramenta para a retomada do crescimento. O

presidente Raúl Alfonsín afirmou, com razão, que “nunca na história de nossas

nações tivemos objetivos nacionais tão coincidentes”17.

Em 1988, Argentina e Brasil assinaram o “Tratado de Integração, Cooperação

e Desenvolvimento”18, o qual previa explicitamente que os dois países

16 Vargas, Everton Vieira. “Átomos na integração: a aproximação Brasil-Argentina no campo nuclear e a construção do Mercosul”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, 40 (1), 1997, p. 60. 17 Discurso do Presidente Raul Alfonsín na chegada do Presidente José Sarney a Buenos Aires, em 28 de julho de 1986. In: Resenha de Política Exterior do Brasil, n° 50, cit., p. 4. 18 In: Mercosul: Legislação e Textos Básicos. 4ª ed. Brasília, Gráfica do Senado Federal, 2005, pp. 125-128.

Page 26: Mercosul PDF

26

conformariam um “espaço econômico comum” no prazo máximo de dez anos. Mais

uma vez havia referência expressa aos princípios de gradualismo, flexibilidade,

equilíbrio e simetria. O Tratado estabelecia que a construção do mercado comum

dar-se-ia em duas etapas. Na primeira os dois países removeriam as barreiras

tarifárias e não-tarifárias ao comércio de bens e serviços, bem como promoveriam a

harmonização de procedimentos aduaneiros e definiriam políticas comuns nos

setores agrícola, industrial, de transportes, de comunicações e de ciência e

tecnologia. Da mesma forma, e atestando o elevado nível de ambição dos dois

mandatários, estabelecia-se como requisito básico para a constituição do mercado

comum a coordenação de políticas macroeconômicas. Na segunda etapa seriam

harmonizadas, por sua vez, as “demais políticas necessárias à formação do mercado

comum”.

Como salienta Paulo Vizentini, “o que estava por trás desta cooperação, a par

dos fatores já apontados, é a marginalização crescente da América Latina no sistema

mundial, a tentativa de formular respostas diplomáticas comuns aos desafios

internacionais, a busca de complementaridade comercial, a criação de fluxos de

comércio e um esforço conjunto no campo tecnológico e de projetos específicos”19.

1.5) Fases do Mercosul

Com o aprofundamento da aproximação bilateral entre Argentina e Brasil

foram estabelecidas as condições básicas para a criação de uma união aduaneira no

Cone Sul. Em 6 de julho de 1990, os dois governos assinaram mais um documento

relativo à integração: a ata de Buenos Aires, que fixou o prazo de 31 de dezembro de

1994 para o estabelecimento de um mercado comum entre os dois países. Os dois

governos decidiram criar, nessa mesma ocasião, o Grupo Mercado Comum (GMC),

órgão executivo que deveria operacionalizar a consecução dos objetivos previstos na

Ata. Pouco depois, em agosto 1990, Paraguai e Uruguai foram convidados a aderir

19 Vizentini, Paulo G.F. “Mercosul: dimensões estratégicas, geopolíticas e geoeconômicas”. In: Lima, Marcos Costa e Medeiros, Marcelo de Almeida. O Mercosul no limiar do século XXI. São Paulo: Cortez; Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 30.

Page 27: Mercosul PDF

27

ao projeto de integração. Um mês depois foi realizada a primeira reunião do GMC

no formato quadripartite, tendo se previsto, para Paraguai e Uruguai, ritmos

diferenciados de desgravação tarifária no “período de transição” (que se estenderia

até a plena formação do mercado comum).

A incorporação de Paraguai e Uruguai ao projeto permitiu que o GMC, a

partir de outubro de 1990, pudesse se dedicar à negociação do instrumento

internacional que marcaria a criação do Mercosul: o Tratado de Assunção. A

negociação do texto, concluído em janeiro de 1991, ocorreu em seis reuniões20.

O Tratado de Assunção tem metas ambiciosas no plano econômico-

comercial. Seu artigo 1° determina que o mercado comum esteja constituído até 31

de dezembro de 1994. Para isso, deveriam ser atingidos os seguintes objetivos:

a) livre circulação de bens, serviços e fatores de produção. Para isso os

Estados Partes teriam de abolir as barreiras tarifárias e não-tarifárias

existentes;

b) estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum e a conseqüente

coordenação de posições nos foros econômico-comerciais internacionais;

c) coordenação de políticas macroeconômicas;

d) harmonização das legislações nacionais em diferentes setores.

O lapso de tempo que vai da assinatura do Tratado até o dia 31 de dezembro

de 1994 é conhecido como “período de transição”. Nessa etapa os quatro países

deram início a um processo de desgravação tarifária consubstanciado num Programa

de Liberalização Comercial. Esse programa consistia em reduções tarifárias

progressivas, a fim de que o comércio intrazona pudesse, em sua totalidade, ser

realizado sem aplicação de tarifas a partir de 1995.

O programa de desgravação seria linear e automático. A primeira

desgravação, em 30 de junho de 1991, contemplava uma redução de 47% nas tarifas

vigentes à época. A partir daí teria início uma redução percentual à razão de 7% por

20 Vaz, Alcides Costa. Cooperação, Integração e Processo Negociador: a construção do Mercosul. Brasília, IBRI, 2002, p. 177.

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28

semestre (47%, 54%, 61%, 68%, etc.), até se atingir uma desgravação total de 100%

em 31 de dezembro de 199421. É no período de transição que tem início, portanto, a

promoção do livre comércio entre os Estados Partes do bloco.

Em junho de 1992 os Estados Partes aprovaram o “Cronograma de Las

Leñas”, que estabelecia uma série de ações e prazos para a consecução dos objetivos

enunciados no Tratado de Assunção. Esse documento previa, por exemplo, que entre

os anos de 1992 e 1993 os Estados Partes deveriam concluir a negociação de

instrumentos indispensáveis à constituição do mercado comum, tais como

regulamentos comuns de defesa comercial, harmonização das legislações nacionais

em diferentes setores e elaboração de políticas comunitárias em áreas como

tecnologia, agricultura e defesa da concorrência. Deveriam, ainda, ser finalizados os

trabalhos de estabelecimento da TEC. O cronograma de Las Leñas constitui, por

conseguinte, um primeiro inventário do conjunto de medidas que deveriam ser

tomadas a fim de que se lograsse, a contento, a formação de um mercado comum a

partir de 1995.

Como observam Florêncio e Araújo, o cronograma “permitiu visualizar de

forma orgânica tudo o que estava por ser feito. Muito mais do que uma simples

ferramenta burocrática, o Cronograma constituiu um importante sinal político, uma

prova de confiança no processo de integração, ao mesmo tempo que o confirmava

como um desafio de grandes proporções”22. É nessa fase que surgem, contudo, as

primeiras resistências mais efetivas ao processo em algumas frações do setor

privado brasileiro e argentino. No caso brasileiro, os segmentos que se beneficiavam

de elevadas tarifas (bens de capital, informática e automotivo, por exemplo), temiam

que a instituição da TEC reduzisse suas margens de proteção. No caso argentino,

havia preocupação com a concorrência das indústrias brasileiras23. A evolução do

comércio e a firme vontade política dos governos envolvidos acabaram, porém, por

mitigar (embora sem eliminar) os focos pontuais de oposição ao aprofundamento da

integração.

21 Cf. item 2.1, infra. 22 Florêncio, Sérgio A. e L. e Araújo, Ernesto H. F. Mercosul Hoje. São Paulo, Editora Alfa-Ômega/FUNAG, 1995, p. 43. 23 Ibidem, pp. 43-44.

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29

Em 1993, durante a reunião do Conselho do Mercado Comum realizada na

cidade de Colônia, no Uruguai, foram tomadas decisões adicionais acerca da

conformação da união aduaneira. Além dos dois Protocolos relativos à promoção e

proteção de investimentos, que serão examinados em tópico à parte, foram

discutidos os passos necessários para o estabelecimento da TEC. A Decisão CMC n°

13/93, aprovada naquela ocasião, enunciou uma série de tarefas que deveriam ser

cumpridas ao longo de 1994, como o estabelecimento da Nomenclatura Comum do

Mercosul (NCM), a definição dos níveis tarifários para setores sensíveis (bens de

capital, de informática e telecomunicações e químico) e número de exceções à TEC.

Além disso, enumerou as medidas que seriam necessárias para garantir um

“funcionamento adequado” da união aduaneira.

Os trabalhos para o estabelecimento da TEC prosseguiram ao longo de 1994.

Os detalhes serão examinados em capítulo específico24. Ao final desse ano, durante

a Cúpula de Ouro Preto, foram tomadas as decisões que viabilizaram a instituição da

união aduaneira a partir de janeiro de 1995. Dentre essas decisões merecem

destaque, além da própria aprovação da TEC, a assinatura do Protocolo de Ouro

Preto, que deu forma à estrutura institucional e ao sistema de tomada de decisões do

bloco.

1.6) O “velho” e o “novo regionalismo”

O processo de integração regional não é um fenômeno que se instaura

somente a partir do final dos anos 80, ao abrigo do processo de redemocratização

dos países da América Latina. No entanto, como vimos no caso da ALALC, as

primeiras experiências de liberalização comercial não lograram ser bem sucedidas,

tendo perdido parte de seu ímpeto inicial já em seus primórdios, seja em razão de

fatores políticos – a instalação de regimes nacionalistas e autoritários –, seja devido

a fatores econômicos, especialmente a implementação de políticas estatistas e

protecionistas vinculadas a processos de substituição de importações.

24 Cf. capítulo 2.

Page 30: Mercosul PDF

30

É por essa razão que se que fala da existência de um “velho” e de um “novo”

regionalismo, classificação que põe em relevo, além das distintas fases históricas, as

diferenças de substância entre os projetos de integração anteriores e posteriores

àqueles que se desenrolaram a partir de meados dos anos 80.

O “velho” regionalismo na América Latina é aquele que se estende do pós-

Segunda Guerra até a década de 70, quando encontra seu momento de refluxo.

Dentre suas características básicas poderíamos destacar três25:

a) trata-se de um processo, conforme já sublinhado a respeito da ALALC,

que se associa a políticas de substituição de importações. Um dos

empecilhos para o êxito de uma estratégia de substituição de importações

é o tamanho reduzido de mercados domésticos, o que pode vir a

desestimular investimentos e a produção interna. A opção estratégica pela

integração regional pode vir a contornar tais limitações, estimulando a

criação de um “mercado regional” capaz de dar sustentação às políticas

industriais de cada um dos países integrantes do processo;

b) no “velho regionalismo” os países-membros de um bloco econômico

concedem preferências comerciais recíprocas, mas mantêm elevados

níveis de proteção vis à vis o mercado externo. O protecionismo continua

sendo tomado, portanto, como uma “virtude”;

c) no que tange aos objetivos fundamentais do processo de integração, os

arranjos realizados sob a égide do “velho regionalismo” mostravam-se

menos ambiciosos, buscando essencialmente uma redução das barreiras ao

comércio, mas não necessariamente uma integração mais “profunda”

(política comercial comum; harmonização de políticas em diferentes

setores; criação de instituições comunitárias).

Por outro lado, o “novo regionalismo” se configura de maneira mais nítida a

partir dos anos 90. Seu nascimento representa uma espécie de mudança de estratégia

25 Devlin, R. et Estevadeordal, A. What´s new in the New Regionalism in the Americas ? Buenos Aires, INTAL-ITD-STA, 2001, p. 3.

Page 31: Mercosul PDF

31

dos países da região no que diz respeito a suas políticas de desenvolvimento. Se no

passado a presença do Estado na economia era marcante, buscando, como vimos,

incentivar a industrialização por meio do protecionismo e da substituição de

importações, a séria crise que se abateu sobre a América Latina nos anos 80 tornou

necessária a adoção de um novo rumo. Essa crise, conhecida como “crise da dívida”

em razão do agudo endividamento externo dos países do continente, tornou o Estado

incapaz de continuar se apresentando como investidor. Emergiu com intensidade,

nesse contexto, uma ideologia mais voltada para a liberalização dos fluxos de

comércio, calcada na abertura das economias nacionais e na progressiva redução do

intervencionismo estatal.

Como traços básicos do “novo regionalismo” poderíamos apontar os

seguintes elementos26:

a) abandono das políticas autárquicas, tendo início uma crescente abertura ao

comércio multilateral;

b) importância os investimentos estrangeiros diretos, considerados

fundamentais para o processo de desenvolvimento. O Estado deixa de ser,

assim, a mola propulsora fundamental da economia, passando a exercer o

papel de agente regulador das forças de mercado;

c) trata-se de uma integração de maior profundidade, como é o caso do

próprio Mercosul, cujo objetivo é o de se tornar um mercado comum.

O “novo regionalismo” insere-se no mesmo contexto histórico em que

emerge a globalização econômica. A relação entre essas duas forças tem despertado

questionamentos: os blocos regionais tendem a facilitar as trocas no plano

multilateral ou, ao contrário, acabam por estimular determinadas regiões a que se

fechem, dificultando uma maior integração em escala global ? Há divergências a

respeito, mas existem evidências empíricas de que tanto o “novo regionalismo”

quanto o sistema multilateral de comércio se alimentam mutuamente, contribuindo

26 Averbug, André. Abertura e Integração Comercial Brasileira na Década de 90. Rio de Janeiro, BNDES, 1999, pp. 53-54.

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32

para a expansão do comércio internacional27. Os acordos regionais muitas vezes vão

além do que prevêem as regras de comércio multilateral, engendrando uma espécie

de “minilateralismo” que pode ter conseqüências benéficas para o comércio global

em geral28. Em síntese, os acordos regionais constituem, na maior parte das vezes,

uma espécie de laboratório capaz de oferecer base adequada para a participação no

sistema multilateral de comércio.

O Mercosul constitui um dos exemplos desse “novo regionalismo”. Seus dois

maiores sócios, Argentina e Brasil, colocaram em prática no início dos anos 90

políticas de abertura comercial e de diminuição da presença do Estado na economia.

A crescente integração dos mercados dos Estados Partes poderia reforçar a

capacidade de cada um deles de se inserir numa economia mundial cada vez mais

integrada e competitiva.

1.7) Estrutura institucional do Mercosul

Os Estados Partes do Mercosul decidiram adotar uma estrutura

intergovernamental para as instituições do bloco. Desse modo, as deliberações dos

órgãos técnicos e decisórios devem contar com a aprovação de todos os Estados

Partes. Os delegados que comparecem às reuniões do bloco são, dessa maneira,

representantes dos Estados nacionais, e suas instruções emanam de seus governos,

não de uma autoridade comunitária29. O papel predominante desempenhado pelos

governos nacionais no processo de integração fez com que não se cogitasse, ao

menos inicialmente, em estabelecer instituições supranacionais na estrutura do

bloco. A construção institucional do Mercosul baseou-se, desse modo, em três

princípios básicos:

a) estrutura intergovernamental, e não supranacional;

27 Para uma análise geral dos argumentos nessa direção, cf. Värynen, Raimo. “Regionalism: old and new”. In: International Studies Review, 2003, vol. 5, n.1, pp. 32-33. 28 Siroën, Jean-Marc. “Accords préférentiels, régionalisme et multilatéralisme”. In: Cahiers Français, n. 341. Paris, nov-dez 2007, pp. 30-31.

Page 33: Mercosul PDF

33

b) tomada de decisões por consenso, e não por maioria; e

c) necessidade de que as normas aprovadas no âmbito do Mercosul sejam

incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais (ausência de

aplicabilidade direta das normas comunitárias).

O estrutura institucional permanente do Mercosul foi estabelecida pelo

Protocolo de Ouro Preto (POP), assinado em 1994. Esse Protocolo complementa o

Tratado de Assunção, definindo os órgãos que integram o bloco e estabelecendo

suas respectivas competências. Parte dos órgãos estabelecidos pelo POP já estavam

previstas no Tratado de Assunção, que instituiu, para o período de transição que se

estenderia até a conformação do mercado comum, uma estrutura provisória

encabeçada por um órgão superior, o Conselho do Mercado Comum (CMC), e um

órgão executivo, o Grupo Mercado Comum (GMC).

Além de manter o CMC e o GMC, o POP previu a criação de um terceiro

órgão decisório: a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM). Por órgãos

decisórios entendemos aqueles que têm capacidade de ditar normas de observância

obrigatória pelos Estados Partes30. A esses três órgãos decisórios vinculam-se

diversos outros foros técnicos.

Antes de procedermos à análise das competências de cada um dos órgãos

estabelecidos pelo POP, é necessário diferenciar, no ordenamento jurídico do

Mercosul, duas categorias de normas. A primeira seria constituída pelos

“documentos fundacionais” do bloco: o Tratado de Assunção e respectivos

protocolos adicionais (o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no

Mercosul, o Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias e o próprio POP).

Já a segunda seria integrada pelos atos normativos emanados dos órgãos decisórios

(atos derivados). Como se vê, no primeiro grupo situam-se os tratados internacionais

(acordos celebrados pelos Estados). Pertencem à segunda categoria, na linha da

29 Cançado Trindade, Otávio Augusto D.. O Mercosul no Direito Brasileiro. Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p. 46. 30 Nos termos do artigo 42 do POP, “as normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos previstos no Artigo 2° deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país”.

Page 34: Mercosul PDF

34

classificação das fontes tradicionais de Direito Internacional Público, os atos

organizações internacionais (decisões tomadas em nome da organização)31.

Como dissemos, todas as normas, sejam as fundacionais ou derivadas, têm

caráter obrigatório, cabendo ressaltar, no entanto, que sua efetiva entrada em

vigência depende, se for o caso32, de sua incorporação ao ordenamento jurídico dos

Estados Partes. Em muitos casos, a não-incorporação, mesmo que por apenas um

Estado Parte, impede que a norma entre em vigor e possa ser argüida contra o país

que não a internalizou. Na prática, portanto, as normas do Mercosul não produzem,

por si só (i.e., sem a incorporação), qualquer efeito na esfera jurídica nacional33.

O CMC é o órgão decisório máximo do Mercosul. De acordo com o disposto

no artigo 3° do Protocolo de Ouro Preto, cabe a ele a “condução política do processo

de integração”. É integrado pelos Ministros das Relações Exteriores e da Economia

(ou equivalentes). Na prática, porém, têm participado ativamente das reuniões do

CMC também os Ministros responsáveis pelo comércio e indústria, a exemplo, no

caso brasileiro, do Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior34. O

CMC reúne-se ordinariamente uma vez por semestre, em geral na véspera da Cúpula

Presidencial do bloco. É possível, porém, que ocorram reuniões extraordinárias para

deliberar acerca de assuntos específicos, que demandem um tratamento mais

expedito pelos Estados Partes.

As normas aprovadas pelo CMC são denominadas “Decisões”. Versam, em

geral, sobre temas de maior relevância política ou econômica, constituindo a base

fundamental do direito da integração. As decisões devem ser vistas como

instrumentos que complementam e buscam dar concretude aos objetivos fixados no

Tratado de Assunção.

31 Cançado Trindade, Otávio Augusto D., op. cit., pp. 55-57. 32 Em geral, não necessitam ser incorporadas as normas que digam respeito apenas à estrutura e ao funcionamento do Mercosul. 33 Andrade, Luciano Mazza. “O Fortalecimento Institucional do Mercosul e a Supranacionalidade: considerações sobre as prioridades da agenda institucional desde a perspectiva brasileira”. Tese apresentada ao Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. Brasília, mimeo., 2006, p. 77. 34 Em 2008, como decorrência natural da expansão do processo de integração para diferentes setores, formalizou-se a possibilidade, por meio da Decisão da CMC N° 14/08, de realização de uma sessão especial do Conselho envolvendo Ministros de outras áreas, inclusive a social, para discutir temas de sua competência (“CMC ampliado”).

Page 35: Mercosul PDF

35

As competências do CMC estão relacionadas no artigo 8° do Protocolo de

Ouro Preto. Dentre elas, destacam-se a capacidade de exercer a titularidade da

personalidade jurídica do Mercosul e o poder de criar os órgãos que julgar

necessários para a construção do mercado comum. É esse o caso das Reuniões de

Ministros, que constituem o espaço para encontros de alto nível entre as autoridades

nacionais responsáveis pela condução de diferentes temas. Em 2008 havia 14

reuniões de ministros em funcionamento (Agricultura; Cultura; Economia e

Presidentes de Bancos Centrais; Educação; Indústria; Interior; Justiça; Meio

Ambiente; Minas e Energia; Ciência e Tecnologia e Inovação; Desenvolvimento

Social; Saúde; Trabalho e Turismo). Ao CMC estão vinculados, ademais, o Foro de

Consulta e Concertação Política (FCCP), uma série de grupos de alto nível, a

Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM) e o Instituto Social

do Mercosul.

Dada a sua composição, o CMC discute em geral apenas as questões mais

sensíveis da esfera econômica-comercial, deixando seu tratamento técnico para

outras instâncias do bloco. Solicitações de modificações mais amplas da TEC, por

exemplo, podem ser debatidas no CMC, ao passo que demandas de alterações

pontuais são normalmente examinadas nos outros dois órgãos decisórios.

O GMC é, por sua vez, o órgão executivo do Mercosul. É integrado por

funcionários de alto nível dos Ministérios das Relações Exteriores, da Economia

(Fazenda, no caso brasileiro) e dos Bancos Centrais. Na prática, porém, e assim

como ocorre no caso do CMC, também os Ministérios da Indústria e Comércio

costumam ter representantes nas negociações realizadas no âmbito do GMC. Em

geral são duas as reuniões do GMC realizadas por semestre. A essas se soma uma

reunião extraordinária, em geral ao fim do semestre, com o propósito de finalizar o

exame dos projetos de normas que serão elevados à consideração do CMC.

As normas aprovadas pelo GMC são denominadas “resoluções”, tratando em

geral de aspectos técnicos relacionados ao processo de integração. Cabe ao GMC

sobretudo o acompanhamento dos Subgrupos de Trabalho (SGTs), instâncias que

tratam de temas específicos. O Anexo V do Tratado de Assunção já previa a

Page 36: Mercosul PDF

36

existência de 10 (dez) Subgrupos de Trabalho vinculados ao GMC, incumbidos de

tratar de temas de natureza eminente comercial, tais como assuntos aduaneiros,

normas técnicas, transporte terrestre e marítimo, política agrícola e coordenação de

políticas macroeconômicas. Esses Subgrupos foram posteriormente extintos ou

absorvidos por outros. Existem, hoje, quatorze foros dessa natureza em

funcionamento: telecomunicações (SGT n° 1); assuntos institucionais (SGT n° 2);

regulamentos técnicos e avaliação da conformidade (SGT n° 3); assuntos financeiros

(SGT n° 4); transportes (SGT n° 5); meio ambiente (SGT n° 6); indústria (SGT n°

7); agricultura (SGT n° 8); energia (SGT n° 9); assuntos laborais (SGT n° 10); saúde

(SGT n° 11); investimentos (SGT n° 12); comércio eletrônico (SGT n° 13) e

mineração (SGT n° 15). O SGT n° 14, que tratava do acompanhamento da

conjuntura econômica e comercial do Mercosul, foi extinto em 2006.

Como se pode notar, se nos estágios iniciais do bloco os Subgrupos

concentravam-se precipuamente em temas de natureza comercial, pouco a pouco

passaram a cuidar igualmente da temática social, como o demonstra a criação de

foros dedicados ao meio ambiente, assuntos laborais e saúde.

A breve menção aos temas que são da alçada dos subgrupos de trabalho

indica o conteúdo das normas produzidas pelo GMC. Boa parte das normas

aprovadas versa sobre diferentes tipos de regulamentos técnicos, desde a área de

qualidade industrial a questões agrícolas, de saúde, transportes e comunicações. As

atividades dos SGTs têm, por essa razão, relevante impacto no campo econômico,

ao harmonizar regulamentos atinentes a questões de comércio e facilitar (ou, na

ausência de harmonização, dificultar) o trânsito de mercadorias entre os países do

bloco.

Além dos SGTs, também compete ao GMC o acompanhamento de reuniões

especializadas. Essas reuniões foram criadas ainda durante a fase inicial do

Mercosul, em 1991, sob a justificativa de que alguns temas não examinados no

âmbito de Subgrupos de Trabalhos mereciam tratamento especial. A Decisão CMC

N° 09/91, que permitiu a criação de reuniões especializadas no âmbito bloco,

assinalou que o debate sobre esses temas especiais requereria “modalidades

Page 37: Mercosul PDF

37

operacionais” distintas daquelas dos Subgrupos de Trabalho. Na prática, as reuniões

especializadas têm produção normativa menos intensa do que aquela verificada nos

Subgrupos de Trabalho. Ao dedicar-se ao tratamento de temas específicos, têm

como meta coordenar ações e constituir um espaço para a troca de experiências entre

os Estados Partes, mesmo que esse trabalho não venha a ser plasmado em normas

específicas.

O número de reuniões especializadas no âmbito do Mercosul têm crescido

paulatinamente ao longo do tempo, à medida em que são incorporados novos atores

ao processo de integração. Essas reuniões podem ter como foco seja um tema

específico (caso das reuniões especializadas de agricultura familiar, ciência e

tecnologia e promoção comercial), seja possibilitar um maior contato entre

organismos ou instituições similares dos Estados Partes (têm reuniões próprias, por

exemplo, os ministérios públicos, defensores públicos e autoridades

cinematográficas e audiovisuais). Em dezembro de 2008 o Mercosul contava com 15

(quinze) reuniões especializadas.

Também estão vinculados ao GMC uma série de grupos permanentes (caso

do Grupo de Serviços e do Grupo de Contratações Públicas); de grupos “ad hoc”

(para tratar dos mais diferentes temas, tais como a redação do Código Aduaneiro do

Mercosul; relacionamento externo; consulta e coordenação no âmbito da OMC e do

SGPC e integração fronteiriça), além de fóruns, comitês, comissões e institutos,

encarregados do tratamento de temas específicos de maneira permanente ou

temporária.

Vale registrar que tanto o GMC quanto a CCM têm “seções nacionais”. Essas

seções constituem o espaço de coordenação entre os órgãos de cada país envolvidos

nas negociações dos temas que estão na agenda do Mercosul. Previamente à

realização de uma reunião do GMC ou da CCM deve haver, portanto, uma reunião

da seção nacional desses dois foros, a fim de coordenar a posição do país com

respeito aos temas que serão objeto de debate. No caso do Brasil, a última norma a

definir a composição da Seção Nacional do GMC foi o Decreto n° 5.080, de 12 de

Page 38: Mercosul PDF

38

maio de 2004, que atribuiu a coordenação nacional dessa instância ao Subsecretário-

Geral da América do Sul do Ministério das Relações Exteriores.

O Mercosul conta também com uma Secretaria, órgão ao qual compete

prestar o apoio administrativo e técnico necessário aos Estados Partes. O POP

atribuiu à Secretaria funções eminentemente operacionais, denominando-a de

Secretaria Administrativa do Mercosul (SAM). Posteriormente, em 2002, decidiu-se

dotar o bloco de um órgão com capacidade de realizar estudos e prestar a assessoria

necessária em temas substantivos relevantes para o processo de integração. Por maio

da Decisão CMC N° 30/02 a SAM passou a denominar-se simplesmente Secretaria

do Mercosul, contando, em seu âmbito, com um Setor de Assessoria Técnica (SAT),

integrado por quatro conselheiros, com as funções, dentre outras, de realizar estudos,

compilações, avaliar o andamento do processo de integração e verificar a

consistência jurídica dos atos e normas emanados dos órgãos decisórios do bloco.

Existe um debate corrente sobre uma suposta hipertrofia institucional do

Mercosul, com a proliferação de instâncias para tratar dos mais diferentes temas.

Mais do que “hipertrofia”, porém, estamos diante de um fenômeno que parece

inerente à expansão do processo de integração para os mais diferentes domínios.

Uma estrutura mais “enxuta” pareceria adequada no estágio em que o Mercosul se

dedicava basicamente a liberalizar o comércio e estabelecer a união aduaneira.

Atualmente, porém, a agenda do bloco foi sendo apropriada por diferentes setores do

governo e da sociedade civil, o que faz com que pareça irrealista, no presente

momento, a objeção à criação de novos foros de diálogo entre os Estados Partes.

Parece mais plausível, nesse contexto, questionar o grau de transparência ou de

efetividade das decisões do bloco, mas não impugnar, por si só, a expansão da

estrutura institucional do agrupamento. É certo, por outro lado, que

aperfeiçoamentos devem ser buscados, sobretudo no que tange ao sistema de

incorporação das normas comunitárias, já que a não-internalização de muitas delas

pode acabar por afetar a segurança jurídica e a efetividade das decisões tomadas

pelos Estados Partes35.

35 Andrade, Luciano Mazza, op. cit., p. 108.

Page 39: Mercosul PDF

39

1.8) O papel da CAMEX

A Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) é um órgão interministerial

brasileiro criado em 1995, com o objetivo central de coordenar e dar maior

eficiência às ações governamentais nessa matéria.

Têm assento na CAMEX os Ministros do Desenvolvimento, Indústria e

Comércio Exterior, a quem cabe a presidência do órgão; da Fazenda; das Relações

Exteriores; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Planejamento, Orçamento

e Gestão e do Desenvolvimento Agrário, além do Ministro-Chefe da Casa Civil da

Presidência da República. Outros órgãos da administração federal podem, porém,

ser convidados a participar das reuniões, caso haja tema de seu interesse na agenda.

O órgão deliberativo superior da CAMEX é o Conselho de Ministros. Já o Comitê

Executivo de Gestão (GECEX), integrado em sua maior parte por Secretários-

Executivos de diferentes pastas, tem como função deliberar de maneira prévia sobre

os temas e, eventualmente, tomar decisões ad referendum do Conselho de Ministros.

As competências da CAMEX são atualmente definidas pelo Decreto n°

4.372, de 10 de junho de 2003. Sua atribuição fundamental é a de “definir diretrizes

e procedimentos relativos à implementação da política de comércio exterior visando

à inserção competitiva do Brasil na economia internacional”. Dentre as

competências específicas do órgão, podemos sublinhar a fixação das alíquotas dos

impostos de importação e exportação, estabelecimento de salvaguardas, direitos

antidumping ou compensatórios e a alteração, a partir do que se decide no âmbito do

bloco, da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM).

Na prática, isso significa que as diferentes ações do Governo brasileiro no

âmbito do Mercosul são previamente debatidas na CAMEX ou no GECEX. Da

mesma forma, muitas normas aprovadas no âmbito comunitário, como aquelas

relativas à NCM e à TEC, devem ser incorporadas ao ordenamento jurídico

brasileiro por intermédio de Resoluções da CAMEX. Havendo uma alteração nas

alíquotas da TEC, seja em caráter definitivo, seja em caráter temporário (como no

Page 40: Mercosul PDF

40

caso das reduções tarifárias em razão de desabastecimento, como visto em tópico

anterior), compete à CAMEX editar resolução dando efeito, no Brasil, a essa

decisão. Muitas das Resoluções CAMEX versam sobre alterações, no Brasil, nas

alíquotas de bens de capital e bens de informática e telecomunicações, em razão do

regime de “Ex-tarifários”, que permitem reduções tarifárias para atrair investimentos

e incentivar a modernização do parque produtivo do país36.

Não existe, em verdade, uma definição rígida e excludente sobre quais os

temas que devem ser objeto de decisão no âmbito do GECEX e quais aqueles que

devem ser decididos exclusivamente pelo Conselho de Ministros. De todo modo, o

fato de o GECEX poder tomar decisões ad referendum do Conselho de Ministros

indica que ambas as instâncias tratam correntemente das mesmas questões, cabendo

ao Conselho, porém, deliberar sobre as matérias de maior sensibilidade política e de

maior impacto na política de comércio exterior do Brasil, bem como aprovar, em

definitivo, a edição de Resoluções (as Resoluções aprovadas no GECEX

permanecem ad referendum dos Ministros). Eventuais dissensos no âmbito do

GECEX também deve ser submetidos à análise do Conselho de Ministros.

A importância da CAMEX reside justamente no fato de se tratar de colegiado

em que têm assento os diferentes órgãos do governo brasileiro interessados nas

negociações internacionais em matéria comercial, o que possibilita uma efetiva

coordenação técnica e política sobre os temas em debate. Trata-se, do ponto de vista

institucional, de importante avanço na formulação da política de comércio exterior,

contribuindo para dar maior uniformidade às ações do governo brasileiro no que

tange ao processo de integração.

36 Cf item 2.5.

Page 41: Mercosul PDF

41

CAPÍTULO 2 – A Tarifa Externa Comum

2.1) O processo de liberalização comercial entre os Estados Partes. Evolução do

comércio intrazona.

Como assinalado anteriormente, o Mercosul é um projeto de integração

profunda, cujo objetivo final é a constituição de um mercado comum. Não se trata,

portanto, de um projeto voltado para a mera liberalização do comércio – como seria

o caso de uma zona de livre comércio. Em 1995 os Estados Partes conformaram a

união aduaneira, etapa imediatamente anterior ao estabelecimento de um mercado

comum. Vamos analisar, no presente capítulo, o elemento caracterizador desse tipo

de agrupamento: a Tarifa Externa Comum (TEC).

No entanto, antes de procedermos à análise dos principais aspectos da TEC, é

necessário que discorramos de maneira sucinta sobre a eliminação das barreiras

tarifárias ao comércio entre os Estados Partes do bloco. Como vimos em tópico

anterior, a constituição de uma união aduaneira só faz sentido num espaço

econômico comum, em que já exista o livre comércio. Ao estabelecer o ano de 1995

como momento para a adoção da TEC, os países do bloco se comprometeram

também a concluir, até 1994, o processo de eliminação das barreiras tarifárias em

seu comércio recíproco.

O Tratado de Assunção estabeleceu, em seu Anexo I, um cronograma de

desgravação tarifária a ser observado pelos Estados Partes. Por “desgravação”

entende-se uma redução progressiva das tarifas de importação, até que se atinja a

concessão de preferências tarifárias de 100% (o que significa, na prática, que não se

cobra qualquer tarifa). Conforme estabelecido no próprio Tratado, o cronograma de

desgravação seria progressivo (as preferências tarifárias seriam crescentes ao longo

do tempo), linear (a desgravação aplicar-se-ia a todos os produtos, exceto acordo em

contrário) e automático (a desgravação ocorreria nas datas estabelecidas, sem a

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42

necessidade de prévio consentimento das partes envolvidas). O art. 3° do Anexo I do

Tratado de Assunção estabeleceu o seguinte cronograma de desgravação tarifária:

Data / Percentual de Desgravação

30/06/91 47 31/12/91 54 30/06/92 61 31/12/92 68 30/06/93 75 31/12/93 82 30/06/94 89 31/12/94 100

Como se pode notar, a desgravação foi de 7 pontos percentuais a cada seis

meses, exceto no último semestre, quando se passou de uma preferência de 89%

para 100%. Os Estados Partes já iniciaram o cronograma concedendo-se

mutuamente uma preferência de 47%. Os produtos que já contavam com preferência

mais elevada, em razão de acordos bilaterais celebrados no âmbito da ALADI,

passaram a gozar de preferência ainda maior, de acordo com percentuais de

desgravação também estabelecidos art. 4° do Anexo I do Tratado de Assunção.

Houve acordo, porém, em se excetuar determinados produtos do cronograma

de desgravação. Isso se devia – o que ocorre ainda hoje no bloco, como veremos

mais adiante – às diferentes sensibilidades dos Estados Partes e à existência de

demandas de proteção de determinados setores econômicos. Por essa razão, o artigo

6° do Anexo I previu a elaboração de “listas de exceções”, fixando, ainda, o número

de itens tarifários que cada Estado Parte teria direito de excluir dos cronogramas de

desgravação: 394 itens para a Argentina; 324 para o Brasil; 439 para o Paraguai e

960 para o Uruguai. Os produtos incluídos nas listas nacionais não estariam sujeitos

ao cronograma de desgravação, mas o número de itens das listas deveria ser

reduzido em 20% a cada ano. Uma vez excluído da lista, o produto passaria a contar

com a preferência tarifária prevista no cronograma de desgravação.

A implementação do programa de liberalização comercial entre os Estados

Partes não tardou a surtir efeitos positivos no comércio intrabloco. Os números

indicam que em 2008 o comércio entre os países da região foi cerca de oito vezes

Page 43: Mercosul PDF

43

superior àquele verificado em 1991, quando da assinatura do Tratado de Assunção.

Esse crescimento foi interrompido apenas no contexto das crises cambiais

enfrentadas pelo Brasil, em 1999, e pela Argentina, entre os anos de 2001 e 2002.

Em 2008, a corrente de comércio entre o Brasil e os demais Estados Partes atingiu

um nível recorde, superando a barreira dos US$ 36 bilhões.

Evolução da corrente de comércio – Brasil-Mercosul

ANO CORRENTE DE COMÉRCIO

(Soma das exportações e importações) (US$ bilhões)

1991 4,5 1992 6,3 1993 8,7 1994 10,5 1995 12,9 1996 15,6 1997 18,4 1998 18,2 1999 13,4 2000 15,5 2001 13,3 2002 8,9 2003 11,3 2004 15,3 2005 18,7 2006 22,9 2007 28,9 2008 36,6

Fonte: MDIC

Conquanto positivos, e comprobatórios de que o Mercosul desempenhou

importante papel na criação de comércio, os números não podem ocultar a

persistência de alguns problemas na consolidação da união aduaneira. É o caso das

queixas com relação à existência de barreiras não-tarifárias ao comércio. De outra

parte, como veremos em detalhes mais adiante, ainda há setores – como o sucro-

alcooleiro – excluídos do processo de liberalização comercial.

Page 44: Mercosul PDF

44

Em termos qualitativos, a questão que se coloca é se o crescimento do

comércio intrazona é apenas um resultado natural da expansão do comércio do

Brasil com o mundo ou se possui uma força que lhe é própria. A tabela a seguir situa

o intercâmbio comercial do Brasil com o Mercosul dentro do total global do país:

Intercâmbio Comercial do Brasil (US$ bilhões)

COM O MERCOSUL TOTAIS GERAIS

Ano Exportações Importações Exportações Importações

1991 2,3 2,2 31,6 21,0

1995 6,1 6,8 46,5 49,9

2000 7,7 7,7 55,1 55,8

2005 11,7 7,0 118,5 73,6

2006 13,9 8,9 137,8 91,3

2007 17,3 11,6 160,6 120,6

2008 21,7 14,9 197,9 173,1

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do MDIC

Como se pode observar, o crescimento do comércio do Brasil com os sócios

do Mercosul é parte de um processo de crescimento geral do intercâmbio com o

exterior. A corrente de comércio (soma das exportações e importações) com os

demais Estados Partes era, em 1991, de US$ 4,5 bilhões, tendo saltado, em 2008,

como já assinalamos, para US$ 36,6 bilhões (crescimento da ordem de 813%). Já o

comércio com o resto do mundo aumentou, nesse mesmo período, cerca de 695%. A

despeito de o intercâmbio com o Mercosul ter sido maior, o fato é que as trocas com

outros países e blocos também se expandiram de forma significativa, mesmo sem as

condições mais favoráveis propiciadas pela proximidade geográfica e pelas

preferências tarifárias que caracterizam a união aduaneira.

Por outro lado, a análise da participação do Mercosul no comércio geral do

Brasil indica que o bloco, embora seja importante parceiro comercial, mantém a

mesma importância relativa da época em que foi criado, em 1991. Em 2008, a

Page 45: Mercosul PDF

45

corrente de comércio com os outros três Estados Partes representou cerca de 9,8%

da corrente de comércio total do país. Em 1991, o comércio com o bloco

correspondeu a 8,5% do total.

Esse panorama nos remete a um debate subjacente aos processos de

integração em geral: os acordos de comércio regional tendem a propiciar uma maior

criação ou um maior desvio de comércio ?37 Como vimos anteriormente, num

acordo de integração os países signatários reduzem tarifas entre si. Suponhamos que

o acordo envolva dois países, X e Y. Quando em vigor o acordo, os produtos de X

serão vendidos em Y a preços mais baixos, haja vista que não estarão mais sujeitos à

incidência de imposto de importação. Se o país X produz determinada mercadoria -

digamos que soja - a um custo menor que os produtores de Y, haverá um incremento

nas importações desse produto pelo país Y, verificando-se a criação de comércio,

uma vez que o intercâmbio entre os dois países aumentará e os consumidores de Y

poderão consumir soja a um preço menor, o que melhorará seu bem-estar.

No entanto, suponhamos que um terceiro país, Z, apresentava-se como o

principal fornecedor do país Y antes do acordo regional deste com X. Essa condição

de principal fornecedor decorria do fato de que Z é mais competitivo que X e capaz

de produzir a custos menores que seu concorrente. Com a celebração do acordo, a

soja produzida em Z continuará sujeita à incidência de tarifa, mas a soja produzida

em Y não. Essa circunstância estimulará a que Y importe mais de X, em detrimento

de Z. Aqui temos o desvio de comércio: deixa-se de importar de um país mais

competitivo para importar de um menos competitivo, o qual, porém, beneficia-se da

redução tarifária.

Na prática, portanto, o desvio de comércio é constatado quando um produtor

mais competitivo de extrazona perde mercado, não porque um dos países-membros

do acordo tornou-se mais competitivo, mas apenas porque a incidência de tarifas

acaba tornando o produto de extrazona mais caro do que aquele do país-membro

competidor.

37 Os conceitos de criação e desvio de comércio estão desenvolvidos em Viner, Jacob. The customs union issue. New York, Carnegie Endowment for International Peace, 1950, p. 43.

Page 46: Mercosul PDF

46

No caso do Mercosul, é difícil dizer, de maneira peremptória, se

prevaleceram os efeitos de criação ou de desvio de comércio. Há estudos

sustentando não ter havido criação de comércio, sendo difícil, porém, aferir se houve

desvio de comércio38. Afinal, como visto anteriormente, houve aumento do

comércio também com países de extrazona. Uma das explicações para isso

consistiria na “abertura comercial presenciada pelos países do bloco, na mesma

época em que o acordo foi assinado. Aberturas comerciais causam criação de

comércio com o mundo todo. Se ocorreu algum desvio, provavelmente ele foi

anulado pelos efeitos da abertura”39.

O desenvolvimento do comércio do Mercosul com outros países e blocos

atesta o caráter de “regionalismo aberto” do acordo40, o que não implica, porém,

nenhum tipo de análise de valor sobre possíveis efeitos positivos gerado pelo bloco

no bem-estar de seus cidadãos, exercício que se revelaria complexo e inconclusivo

para os propósitos do presente trabalho.

Outro fato que merece relevo é o importante crescimento da participação de

outros países sul-americanos no comércio brasileiro, em decorrência dos acordos

celebrados pelo Mercosul no âmbito da ALADI. Em 2008, por exemplo, as

exportações do Brasil para os países da ALADI representaram 21,8% do total41 –

número alcançado graças, em boa parte, aos acordos realizados pelo Mercosul. A

título comparativo, a União Européia absorveu 23,4% de nossas exportações, com

uma diferença qualitativa importante: parte substancial dos produtos exportados pelo

Brasil para seus parceiros da América Latina são dotados de maior valor agregado.

Em 2008, por exemplo, 88% das exportações para países da ALADI eram de

produtos manufaturados. No caso do Mercosul, essa cifra era ainda maior, atingindo

mais de 90% das exportações brasileiras:

38 Morais, Adriano Giacomini. Criação e Desvio de Comércio no Mercosul e no NAFTA. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP, 2005, p. 64. 39 Idem, ibidem. 40 Cozendey, Carlos M., op. cit., p. 57. 41 “Brasil – Comércio Exterior Global: Janeiro-Dezembro 2007-2008”. ALADI/SEC/DI 2210.1, 26 de janeiro de 2009. Disponível em www.aladi.org.

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47

Brasil – Exportações por fator agregado (2008)

Destino Manufaturados Básicos MERCOSUL 94,9% 4,9%

ALADI 88,2% 11,6%

EUA 76,8% 22,6%

UE 52,7% 46,7%

Fonte: Elaboração própria, a partir de dados do MDIC

A importância do Mercosul para o comércio brasileiro deve ser mensurada,

portanto, não apenas pelo volume total das exportações, mas também por sua

composição, que beneficia sobretudo os setores industriais, fazendo com que o

comércio com os países vizinhos tenha grande qualidade e gere importantes cadeias

de valor.

2.2) A Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM)

Os acordos de comércio têm como objetivo não apenas intensificar o

intercâmbio de bens e serviços, mas também agilizar o trânsito de mercadorias, seja

por meio da eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias, seja pela

harmonização de procedimentos aduaneiros.

Nesse quadro de simplificação de procedimentos, é de fundamental

importância que as partes contratantes de um determinado acordo tenham um

“linguajar” comum, isto é, que classifiquem e designem de forma idêntica um

determinado produto. Eventuais discordâncias a respeito poderiam representar um

óbice ao fluxo normal de mercadorias. Foi com a intenção de evitar esse tipo de

obstáculo que se elaborou, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas (OMA),

o Sistema Harmonizado de Classificação e Designação de Mercadorias. Esse

sistema, usualmente conhecido pela sigla SH, estabelece uma nomenclatura e uma

descrição comum para os diferentes tipos de bens. O SH é constituído por um

código de seis dígitos e pela correspondente descrição do bem. Mais de 5.000

Page 48: Mercosul PDF

48

mercadorias – o que representa praticamente a totalidade dos bens comercializados

no mundo – estão classificados no SH.

A NCM está baseada no SH. Isso quer dizer que as mercadorias são

classificadas no mesmo código e designadas da mesma maneira. A única diferença

existente diz respeito ao número de dígitos. Se no SH são seis os dígitos que

integram o código de uma mercadoria, no Mercosul são utilizados oito dígitos. Qual

a conseqüência concreta dessa diferença ? Apenas a de que no bloco sul-americano

uma mercadoria pode ser descrita com maiores detalhes. O exemplo abaixo ajuda a

esclarecer a questão:

Exemplo extraído do Sistema Harmonizado

Capítulo 87 Veículos Automóveis, Tratores, Ciclos e outros veículos terrestres, suas partes e

acessórios Código Descrição 8703 Automóveis de passageiros e outros veículos automóveis

principalmente concebidos para transporte de pessoas, incluídos os

veículos de uso misto (“station wagons”) e os automóveis de corrida.

8703.22 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a 1.500 cm3

Mesmo código na Nomenclatura Comum do Mercosul

8703 Automóveis de passageiros e outros veículos automóveis

principalmente concebidos para transporte de pessoas, incluídos os

veículos de uso misto (“station wagons”) e os automóveis de corrida.

8703.22 - De cilindrada superior a 1.000 cm3, mas não superior a 1.500 cm3

8703.22.10 - Com capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou

igual a 6, incluindo o condutor

Tanto o SH como a NCM são divididos em capítulos. O exemplo acima se

refere ao capítulo 87, que contempla automóveis, tratores e outros tipos de veículos.

Page 49: Mercosul PDF

49

Como se vê, há uma identidade entre o código e a descrição presentes no SH e na

NCM. No entanto, a NCM, por poder lançar mão de oito dígitos, pode apresentar um

código mais detalhado. No caso apresentado, além do código 8703.22, concernente a

veículos com cilindrada superior a 1000 cm3, a NCM apresenta o código

8703.22.10, que diz respeito a veículos com cilindrada superior a 1000 cm3 e

capacidade de transporte de pessoas sentadas inferior ou igual a 6. Houve, portanto,

um detalhamento ainda maior do que aquele existente no SH.

Em virtude de avanços tecnológicos e do surgimento de novas mercadorias, o

SH sofre revisões periódicas. Esse processo - que pode levar em torno de quatro ou

cinco anos - resulta em “emendas” ao SH. Essas emendas, uma vez aprovadas,

acabam por provocar também uma revisão da NCM, a fim de que se mantenha a

correlação entre esses dois sistemas de classificação e designação de mercadorias. A

primeira versão da NCM estava baseada na I Emenda ao SH. Em 1996 e 2002 a

NCM foi atualizada para ajustar-se, respectivamente, às II e III Emendas do SH. Por

fim, ao longo de 2006 os Estados Trabalhos trabalharam para atualizar a NCM à luz

da IV Emenda do Sistema Harmonizado, a qual passou a vigorar a partir de 2007.

Caso haja dúvidas acerca da classificação de algum produto, competirá ao

Comitê Técnico N° 1 da CCM (cujas competências serão examinadas mais adiante)

aprovar um “ditame de classificação tarifária”, que consiste numa definição sobre a

posição tarifária em que deverá enquadrar-se a mercadoria em apreço.

2.3 ) Estrutura da TEC

A TEC é, como assinalamos em diferentes oportunidades, o principal

elemento caracterizador das uniões aduaneiras. No Mercosul a tarifa comum foi

adotada oficialmente em 1° de janeiro de 1995.

A implementação da TEC se deu no mesmo contexto em que se verificava

uma sensível redução nos níveis de proteção tarifária dos dois principais sócios do

bloco, Argentina e Brasil. Em 1990, ano anterior à assinatura do Tratado de

Assunção – e momento em que se deu início ao processo de abertura comercial – a

Page 50: Mercosul PDF

50

alíquota média do imposto de importação brasileiro era de 32,20%. Em 2007, essa

cifra havia sido bastante reduzida, situando-se em torno de 10,61%42.

A tabela a seguir atesta a crescente abertura comercial do Brasil na esteira da

criação do Mercosul:

Evolução do imposto de importação no Brasil na fase inicial do MERCOSUL

(1991-1995)

Ano 1991 1992 1993 1994 1995 Média 25,3 20,8 16,5 14,0 12,6 Moda 20,0 20,0 20,0 20,0 2,0 Desvio padrão

17,4 14,2 10,7 8,3 9,0

Fonte: SECEX/MDIC Como se vê, os níveis tarifários do Brasil foram submetidos a uma drástica

redução a partir da assinatura do Tratado de Assunção. É importante salientar,

todavia, que se trata de um processo que antecede a criação do Mercosul: em 1991

as alíquotas de importação já estavam significativamente mais baixas do que cinco

anos antes, por exemplo. Em 1985, a alíquota média era de 51,3%, praticamente o

dobro daquela existente em 1991. Foi o processo de integração, no entanto, que

criou as condições para que esse processo de tornasse irreversível, engendrando um

incremento do intercâmbio comercial entre os países da região.

Os números indicados na tabela anterior devem ser objeto de uma

interpretação qualitativa. Não houve apenas uma redução da alíquota média, mas

também das tarifas “modais” – isto é, daquelas que aparecem com maior freqüência.

Os números indicam que a tarifa modal sofreu substancial redução após o

estabelecimento da união aduaneira, passando de 20% para 2%. Esse crescente grau

de abertura pavimentou o caminho para que o Brasil se engajasse no processo de

liberalização comercial com seus parceiros do Mercosul.

Essa liberalização no comércio entre os sócios e a negociação da TEC foram

os dois temas prioritários da agenda do bloco desde a assinatura do Tratado de

Assunção. Acordou-se então que a tarifa comum deveria cumprir uma dupla função:

42 Fonte: MDIC/SECEX/DEINT/CGIR. Disponível em

Page 51: Mercosul PDF

51

incentivar a competitividade externa dos Estados Partes e, por outro lado, conferir

preferência ao valor agregado regional43. A adoção desses princípios não deixou,

porém, de enfrentar dificuldades, notadamente em razão das diferenças entre as

estruturas produtivas das economias do bloco. Mesmo entre os dois sócios maiores

havia divergências: se de um lado o Brasil não deixava de buscar uma proteção

adequada para sua diversificada indústria, por outro a Argentina almejava

compatibilizar a TEC com seus interesses em importar insumos com custo reduzido

e modernizar seu parque produtivo44. No caso do tratamento a ser dispensado aos

bens de capital, por exemplo, o Brasil defendia um nível de proteção maior para os

itens que contassem com produção local, ao passo que a Argentina propugnava por

patamares tarifários reduzidos, independentemente da capacidade dos produtores

locais em atender à demanda dos países do bloco.

Essas discrepâncias de interesses afloraram já no início dos debates sobre a

estrutura da TEC. A proposta circulada pelo Brasil aos seus sócios previa sete

diferentes níveis tarifários (0%, 5%, 10%, 15%, 20%, 25% e 35%). Quanto maior o

valor agregado de um determinado produto, maior seria o seu nível de proteção. A

proposta argentina, embora contemplasse seis níveis, previa alíquota máxima de

20% (0%, 4%, 8%, 12%, 16% e 20%), no que se diferenciava de maneira

considerável do projeto brasileiro45. Uruguai e Paraguai também defendiam níveis

de proteção menores do que aqueles defendidos pelo Brasil. Em dezembro de 1992

acordou-se, como fórmula de consenso, que a TEC teria níveis entre 0% e 20%,

podendo, no entanto, contar com nível máximo de 35% para um número limitado de

produtos.

A TEC apresenta, portanto, uma estrutura escalonada, com alíquotas que vão

de 0% a 20%, com algumas exceções acima desse patamar. O aumento das alíquotas

se dá de acordo com o grau de elaboração produtiva, o que permite presumir que,

em princípio, quanto maior o valor que agrega de um determinado bem, maior será a

http://www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1386. Consulta em 16 de março de 2008. 43 Vaz, Alcides Costa. Cooperação, Integração e Processo Negociador: a construção do Mercosul. Brasília, IBRI, 2002, p. 227. 44 Ibidem, p. 227. 45 Ibidem, p. 229-230.

Page 52: Mercosul PDF

52

sua alíquota. Nesse quadro, bens com pouco grau de elaboração, como matérias

primas, teriam alíquotas mais baixas, ao passo que produtos finais mais elaborados,

como automóveis, teriam alíquotas mais elevadas.

Observando-se a estrutura da TEC, podemos perceber três níveis principais.

No primeiro deles, relativos a insumos, as alíquotas variam de 0% a 12%. No

segundo, referente a bens intermediários e bens de capital, esses patamar varia de

12% a 16%. Por fim, os bens finais têm alíquotas de 16% a 20%.

Embora formalmente a alíquota máxima seja de 20%, em alguns casos

excepcionais, especialmente em setores considerados sensíveis – seja pelo alto nível

de agregação de valor (que movimenta outras cadeias produtivas), seja pelo uso

intensivo de mão de obra -, como o automotivo, têxtil, calçadista e de confecções,

decidiu-se adotar alíquotas superiores a esse patamar, chegando até o nível de

35%46.

Os intervalos entre as alíquotas são de 2%. Assim sendo, são onze os níveis

de alíquotas da TEC, partindo de 0% e chegando a 20% (excetuados, como visto, os

produtos que cujas alíquotas foram situadas em patamares mais elevados). A tabela

a seguir indica a freqüência relativa de cada faixa tarifária em 1995 e 2005:

Fonte: Lalanne, Alvaro. “Arancel Externo Común 1995-2005: Estructura y Evolución”. Documento

de Trabalho n° 012/05, SAT/SM, dezembro de 2005, p. 13.

Pode-se notar que, no geral, houve uma ligeira redução dos níveis da TEC

nos dez anos posteriores à conformação da união aduaneira. O percentual de

0

5

10

15

20

25

30

0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20

alíquota (%)

freqüência (%) 1-jan-1995

31-dez-2005

Page 53: Mercosul PDF

53

produtos com alíquotas mais baixas (0% e 2%) cresceu, ao passo que houve redução

nas faixas mais elevadas, sobretudo no que se refere aos produtos com alíquota de

14%. A maior parte dos itens tarifários (91,3%) permaneceu, porém, com a mesma

alíquota. O número de códigos que passou por elevação tarifária correspondeu a

1,7% do total, ao passo que 6,7% sofreram redução47.

Essa estrutura tarifária com onze níveis, além dos produtos que contam com

alíquotas mais elevadas, é considerada por alguns críticos como excessivamente

complexa, o que militaria contra a simplificação da administração aduaneira48. Resta

claro, porém, que uma das razões para a existência dessa estrutura escalonada foi a

necessidade de acomodar interesses distintos dos quatro Estados Partes, tarefa

demasiadamente complexa na fase inicial de implementação da união aduaneira.

A existência de mais de mais de dez níveis de alíquotas aponta para a

existência, no Mercosul, de um elevado grau de dispersão tarifária. A redução

dessa dispersão é um dos desafios a serem enfrentados pelos países do bloco.

Reduzir o grau de dispersão significa diminuir o número de alíquotas e também – o

que veremos logo a seguir – o número de exceções autorizadas à política tarifária

comum. Quanto menor a quantidade de níveis tarifários e menor o número de

produtos para os quais os Estados Partes podem aplicar alíquotas distintas, mais

simples e mais eficiente será o sistema tarifário comum.

Como observamos há pouco, parte da complexidade da TEC deriva da

dificuldade em se conciliar interesses contrastantes dos sócios. A fim de acomodar

as divergências dos Estados Partes, decidiu-se que os países poderiam adotar para

um grupo de produtos alíquotas diferentes durante um período de tempo

determinado. Assim sendo, conquanto exista formalmente uma tarifa externa

comum para todo o universo tarifário, na prática os Estados Partes têm direito a uma

série de exceções.

46 Cf. Decisões CMC n° 70/00 e 37/07. 47 Lalanne, Alvaro. “Arancel Externo Común 1995-2005: Estructura y Evolución”. Documento de Trabalho n° 012/05, SAT/SM, dezembro de 2005, p. 14. 48 Kume, Honório e Piani, Guida. “Mercosul: o dilema entre união aduaneira e área de livre comércio”. In: Revista de Economia Política, vol. 25, n° 4 (100). São Paulo, outubro-dezembro 2005, p. 376.

Page 54: Mercosul PDF

54

Cabe ressaltar que essas exceções não constituem práticas unilaterais: os

países contam com autorização específica para aplicar alíquotas diferentes. A cada

grupo de exceções corresponde, por conseguinte, uma norma comunitária que lhe dá

amparo.

Com propósitos exclusivamente didáticos, podemos classificar as exceções

em dois grandes grupos: as exceções ao comércio intrazona e as exceções à TEC.

A primeira exceção ao comércio intrazona foi o “Regime de Adequação Final

à União Aduaneira”, que excluía do livre comércio entre os países do bloco um

determinado conjunto de produtos, considerados sensíveis pelos Estados Partes.

Esse regime permitiu a incidência do imposto de importação no comércio entre os

próprios Estados Partes. O regime de adequação, como veremos abaixo, já foi

extinto, tendo vigorado de 1995 a 1999.

Ainda existem, porém, dois setores que estão excluídos do livre comércio

intrazona: o setor automotivo e o setor açucareiro.

Existem, igualmente, exceções na aplicação da TEC, possibilitando aos

Estados Partes aplicar alíquotas diferentes nas importações efetuadas de terceiros

países ou blocos. São duas as principais categorias de exceções à TEC: as listas

nacionais de exceções e as exceções setoriais (Bens de Capital e Bens de

Informática e Telecomunicações).

A tabela a seguir relaciona as exceções atualmente existentes, tanto no que se

refere ao comércio intrazona quanto no tocante à TEC. As especificidades de cada

um dos itens serão analisadas em seguida.

EXCEÇÕES AO LIVRE COMÉRCIO INTRAZONA

País – número de itens

Prazo

“Regime de

Adequação”

Arg: 207 itens Bra: 29 itens Par: 435 itens Uru: 952 itens

Vigorou até janeiro de 1999 para Argentina e Brasil e até janeiro de 2000 para Paraguai e Uruguai, momento em que foi extinto

Page 55: Mercosul PDF

55

Setor automotivo

Junho de 2013, prazo para revisão dos acordos bilaterais ou adoção de nova Política Automotiva Comum do MERCOSUL (PAM)

Setor açucareiro

------------- Sem definição

EXCEÇÕES À TEC

País – número de itens

Prazo

Listas Nacionais

de Exceções à

TEC

Arg: 100 itens Bra: 100 itens Par: 100 Par: 150 Par: 399 Uru: 100 Uru: 125 Decisão CMC n° 59/07 (Listas Adicionais para PAR e URU: Dec. 07/94 e 31/03).

31/12/2010 31/12/2010 31/12/2015 31/12/2010 31/12/2010 31/12/2015 31/12/2010

Bens de capital

Não há número máximo de itens

Até 31/12/2010 os Estados Partes podem aplicar alíquotas distintas à da TEC. Paraguai e Uruguai poderão manter listas de BKs com alíquotas de 2% até 31/12/10. A Argentina possui “waiver” para BKs com tarifa de 0% até 31/12/08 (Decisão CMC n° 40/05).

Bens de

Informática e Telecomunicações

Não há número máximo de itens

Para Argentina e Brasil o regime deverá

entrar em vigor em 01/01/2011.

Para Paraguai e Uruguai deverá entrar em vigor em 01/01/2016

Matérias Primas

Permite-se ao Paraguai a importação de matérias primas com alíquota de 2% (art. 1° Decisão CMC n° 32/03).

Janeiro de 2011.

Insumos

agropecuários

Permite-se ao Paraguai e Uruguai a importação

Janeiro de 2011.

Page 56: Mercosul PDF

56

de insumos agropecuários com alíquota de 2% (art. 3° Decisão n° CMC 32/03).

Áreas Aduaneiras Especiais

------------------

Segundo a Decisão N° 08/94, deveriam ser extintas em 2013. Decisão deverá ser modificada. ZFM já foi prorrogada até 2023.

Drawback e admissão

temporária

Admite-se o drawback e a admissão temporária para o comércio intrazona (Decisão CMC n° 32/03).

Janeiro de 2011.

2.4) Exceções ao comércio intrazona

a) O Regime de Adequação Final à União Aduaneira

Já durante os debates para a constituição da TEC, em 1994, ficou patente a

dificuldade de os Estados Partes aplicarem, no ano seguinte, a mesma alíquota para

todo o universo tarifário. Decidiu-se, assim, que uma gama de produtos

considerados mais sensíveis teria prazos mais longos de desgravação tarifária. Esses

produtos faziam parte do “regime final de adequação à união aduaneira”, que

consistia basicamente num mecanismo de adaptação de setores específicos ao novo

estágio da integração entre os Estados Partes.

O regime de adequação, aprovado por meio da Decisão CMC n° 22/94,

previa que os produtos inicialmente excluídos do livre comércio teriam um prazo de

cinco anos para atingirem a alíquota de 0%, no caso de Argentina e Brasil (com a

data limite de 31/12/1998), e cinco anos no caso de Paraguai e Uruguai (data limite

de 31/12/1999).

Como se vê, a exceção representada pelo regime de adequação final consistiu

numa exceção ao livre comércio intrazona, permitindo que se prosseguisse com a

incidência do imposto de importação sobre produtos originários dos Estados Partes.

Page 57: Mercosul PDF

57

Cada sócio, amparado pelo que dispunha a Decisão CMC n° 22/94 - a qual não

estabeleceu uma quantidade máxima de itens, asseverando apenas que o regime se

aplicaria a um “número reduzido” de mercadorias - incluiu uma quantidade diferente

de produtos em suas listas de adequação49.

b) O Setor Automotivo

O setor automotivo permanece, até o momento, formalmente excluído do

livre comércio entre os Estados Partes. Essa exclusão decorre do fato de que ainda

não houve consenso para o estabelecimento de uma política automotiva comum

dentro do bloco. Trata-se de um dos itens mais importantes da chamada “agenda não

cumprida” do Mercosul. Cumpre lembrar que no universo do setor automotivo estão

incluídos não apenas veículos, mas também autopeças.

É fundamental ter em mente, da mesma forma, o peso que tem o comércio de

produtos desse setor na balança comercial bilateral entre Argentina e Brasil. Em

2007, por exemplo, o conjunto de produtos do setor automotivo respondeu por mais

de um terço das exportações brasileiras para a Argentina, segundo dados MDIC.

A situação do setor automotivo é peculiar: trata-se de um segmento em que o

comércio intrazona é administrado. Isso significa que os Estados Partes podem

estabelecer acordos bilaterais, definindo como se dará o comércio entre eles. Em

geral, são estabelecidas regras que almejam fundamentalmente evitar o desequilíbrio

nas trocas comerciais bilaterais. Acordos dessa natureza foram celebrados pelo

Brasil com a Argentina e o Uruguai. Cumpre notar que tais acordos, justamente por

serem bilaterais, não consubstanciam normas do Mercosul, integrando-se, do ponto

de vista jurídico, aos Acordos de Complementação Econômica n° 14 (Argentina –

Brasil) e n° 2 (Brasil – Uruguai), e não ao ACE n° 18 (o qual, como visto, constitui a

base jurídica das relações econômicas do bloco).

Em 2000 foram concluídas as negociações para o estabelecimento de uma

Política Automotiva do Mercosul (PAM), por meio da aprovação da Decisão CMC

49 As listas apresentadas pelos Estados Partes contaram com o seguinte número de itens: Argentina – 207; Brasil – 29; Paraguai – 435; Uruguai – 952.

Page 58: Mercosul PDF

58

n° 70/00. Segundo essa norma, o livre comércio para o setor automotivo teria início

em 2005, prazo que acabou não sendo cumprido, sobretudo em função dos

problemas econômicos que afetaram a economia argentina a partir do final de 2001.

A PAM encontra-se, no momento, em processo de revisão.

A Decisão CMC n° 70/00 previa que a alíquota da TEC para a importação de

veículos passaria a ser de 35%. Além disso, estabelecia que entre 2001 e 2005

haveria entre Brasil e Argentina um “regime de transição” baseado no comércio

regulado50: os produtos do setor automotivo poderiam ser comercializados sem

pagamento de tarifa (isto é, com preferência tarifária de 100%), desde que

cumpridas certas condições. Essas condições resumem-se essencialmente à

existência de um certo equilíbrio entre as importações e exportações de cada país.

Esse “equilíbrio” é determinado pelo chamado “coeficiente de flexibilidade” ou

“coeficiente de desvio”, conhecido simplesmente como flex. Segundo esse

instrumento, quanto mais um país importa do país vizinho, mais terá direito a

exportar sem pagar tarifas. Caso o Estado Parte exporte excessivamente, sem em

contrapartida importar um número mínimo de produtos de seu parceiro, uma parcela

dessas exportações estará sujeita à incidência de tarifa.

O flex é determinado por um coeficiente. Suponhamos um flex de 2 (dois).

Nesse caso, a cada 1 dólar exportado para a Argentina, o Brasil poderá importar 2

dólares sem pagar tarifa, e vice-versa. Se num determinado período o Brasil

exportou US$ 1 milhão, poderá importar até US$ 2 milhões com preferência de

100%. Caso as importações atinjam US$ 3 milhões, por exemplo, o US$ 1 milhão

excedente estará sujeito ao pagamento de tarifa, a qual, segundo o acordado na

Decisão CMC n° 70/00, corresponde a 70% da TEC no caso dos veículos e 75% da

TEC no caso de autopeças. O flex estabelece, como se vê, uma “margem controlada”

de desequilíbrio.

O acordo automotivo atualmente vigente entre Brasil e Argentina51 prevê um

flex assimétrico (de 1,95 para a Argentina e de 2,5 para o Brasil), de modo a

possibilitar uma maior equilíbrio no comércio entre os dois países (a Argentina

50 “Informe MERCOSUR” n° 10. Buenos Aires, BID-INTAL, 2006, p. 64. 51 38° Protocolo Adicional ao ACE-18.

Page 59: Mercosul PDF

59

poderá, em tese, exportar mais produtos com tarifa de 0% ad valorem). O acordo

mantém a determinação de que os dois países dotem uma política tarifária comum

para a importação de autopeças de terceiros países. A TEC para partes e peças oscila

entre 8% e 16%, mas o próprio acordo automotivo bilateral prevê a concessão de

reduções tarifárias a 2% para a importação desses itens, quando destinados à

produção.

Por fim, cabe lembrar que os países deverão pôr-se de acordo com relação ao

conteúdo regional mínimo de partes e peças para que os veículos comercializados no

âmbito do bloco se beneficiem do livre comércio. O acordo bilateral, assinado em

junho de 2008, terá validade até 30 de junho de 2014, na expectativa de que até essa

data os Estados Partes já terão acordado uma política automotiva comum.

O atual acordo bilateral com o Uruguai foi assinado em julho de 200852,

também com vigência prevista até 2014, e mantém a existência de quotas para o

comércio de produtos do setor. Dentro das quantidades estipuladas, os produtos

comercializados contarão com preferência tarifária de 100%.

Mais de quinze anos após a constituição do bloco ainda prosseguem, desse

modo, as conversações para a efetiva inclusão do setor automotivo na união

aduaneira. Cumpre lembrar que, apesar de não haver propriamente livre comércio

nesse segmento, parte do intercâmbio comercial se dá, como visto, sem o pagamento

de tarifa, haja vista os acordos bilaterais celebrados entre os países do bloco, com

exceção do Paraguai.

c) O setor açucareiro

O setor açucareiro também está excluído do livre comércio desde a

constituição do Mercosul. Trata-se de um produto sensível para os países vizinhos,

especialmente para a Argentina (cuja produção concentra-se no norte do país,

especialmente nas províncias de Tucumán, Salta e Jujuy), havendo grandes receios

com relação à possível competição com o Brasil. Por essa razão ainda persiste, nos

52 68° Protocolo Adicional ao ACE-2.

Page 60: Mercosul PDF

60

países vizinhos, um elevado grau de proteção tarifária para o açúcar e seus

derivados.

Ainda em 1994, na fase final dos debates para o estabelecimento da união

aduaneira, os Estados Partes decidiram aprovar a Decisão CMC n° 19/94. Essa

decisão incumbia um Grupo “Ad Hoc” de apresentar proposta para a inclusão do

setor açucareiro na união aduaneira, tendo presente basicamente dois elementos: a) a

liberalização gradual do comércio intrazona e b) a “neutralização de distorções que

possam resultar de assimetrias entre as políticas nacionais para o setor açucareiro”.

Trata-se, em verdade, de dois pontos correlatos: a efetiva liberação do comércio dos

produtos do setor açucareiro estaria vinculada à redução de possíveis efeitos

deletérios das políticas estatais de incentivo (como concessão de benefícios fiscais)

pelos Estados Partes do bloco.

A efetiva inclusão do setor açucareiro na união aduaneira deveria dar-se “até

2001”, no contexto da eliminação de todas as demais exceções ao livre comércio e à

TEC. Essa mesma Decisão autorizava os Estados Partes a manterem suas políticas

tarifárias nacionais, assinalando, porém, que o tratamento dado às importações dos

sócios não poderia ser mais gravoso que aquele aplicado às importações de terceiros

países.

As negociações levadas a cabo no âmbito do Grupo “Ad Hoc” não

avançaram, tendo em vista fundamentalmente as divergências entre Brasil e

Argentina sobre o tratamento a ser dispensado à matéria. O Governo argentino

ponderou, em síntese, considerar não existirem condições para uma competição

eqüitativa no âmbito do bloco, razão porque os Estados Partes deveriam preservar

sua liberdade para manter barreiras tarifárias ao comércio intrazona. Desde os anos

90 o Governo argentino impõe uma tarifa móvel às importações do açúcar, cujo piso

é de 20%, podendo atingir patamares mais elevados de acordo com a cotação do

produto no mercado internacional.

De maneira similar ao que acontece com o setor automotivo, é possível,

portanto, distinguir a existência de um interesse ofensivo do Brasil nesse tema,

propugnando pela implementação do livre comércio, e, de outro lado, um interesse

Page 61: Mercosul PDF

61

defensivo da Argentina (e, em menor escala, também dos demais sócios), baseado

na proteção de sua produção doméstica.

No final de 1999, o Brasil apresentou reclamação à Comissão de Comércio

do Mercosul contra a edição, pela Argentina, da Lei n° 24.822/97, que vedava a

redução de tarifas no comércio intrazona enquanto perdurassem as supostas

distorções resultantes das ajudas estatais brasileiras ao setor sucro-alcooleiro. Não

houve consenso dos dois Estados Partes com relação à revogação da medida, tendo a

Argentina manifestado novamente seu entendimento de que existem assimetrias de

políticas relativas ao setor que inviabilizariam sua efetiva incorporação à união

aduaneira.

Em 2000, no marco do “relançamento” do Mercosul, os Estados Partes

renovaram a ambição de promover a inclusão do setor sucro-alcooleiro na união

aduaneira. O Brasil chegou a apresentar proposta no âmbito do Grupo “Ad Hoc”,

segundo a qual teria início ainda em 2000 um cronograma de desgravação tarifária,

até o estabelecimento final do livre comércio em 2002. Os Estados Partes teriam, a

partir desse ano, uma tarifa externa comum de 16% para o setor. A Argentina e o

Paraguai acabaram explicitando discordâncias com relação à proposta brasileira53.

As negociações entre os países do bloco não evoluíram desde então.

A incorporação do açúcar à união aduaneira é particularmente importante

para o Brasil em virtude de sua tradicional demanda, em âmbito multilateral, pela

liberalização do comércio de produtos agrícolas. A exclusão desse importante

segmento do Mercosul pode ser vista, desse ponto de vista, como antagônico com os

objetivos brasileiros mais amplos no cenário das negociações econômicas

multilaterais.

2.5) Exceções à TEC

53 “Informe Mercosul” n° 6. Buenos Aires, BID-Intal, 2000, p.56.

Page 62: Mercosul PDF

62

As exceções à TEC permitem que os Estados Partes apliquem alíquotas do

imposto de importação diferentes daquelas formalmente acordadas e

consubstanciadas nas normas do bloco.

É importante salientar que no Mercosul todas as exceções autorizadas são

temporárias, no contexto do esforço de se eliminar as chamadas “perfurações” às

disciplinas da união aduaneira.

a) Bens de Capital e Bens de Informática e Telecomunicações

Além do regime de adequação final à união aduaneira, que permitia a

exclusão, durante um período de tempo limitado, de determinados produtos do

processo de liberalização do comércio, permitiu-se aos Estados Partes adotarem

alíquotas diferentes na TEC – situação que persiste até hoje, como veremos em

tópico posterior – para dois setores específicos: o de Bens de Capital (BKs) e o de

Bens de Informática e Telecomunicações (BITs). Nesses dois segmentos, a grande

diferença de interesses entre os Estados Partes impediu, inicialmente, a aplicação de

uma tarifa comum.

Esse contraste de interesses radica no fato de que a produção dessas duas

categorias de bens está concentrada no Brasil, levando-o a postular a adoção

alíquotas mais elevadas com o objetivo de aumentar a proteção à indústria

doméstica. Os demais sócios demandam, por sua vez, alíquotas mais reduzidas.

Essas divergências se explicitaram já durante a negociação inicial dos níveis da

TEC.

Acordou-se, então, que inicialmente os Estados Partes poderiam aplicar

tarifas diferentes, tendo que dar início, a partir de 1995, a um processo de

convergência de alíquotas, até que se atingisse, em 2001, uma tarifa comum de 14%

para o setor de BKs, e, em 2006, uma tarifa comum de 16% para o setor de BITs.

Esses prazos não foram cumpridos, tendo sido sucessivamente prorrogados, o que

Page 63: Mercosul PDF

63

significa, concretamente, que cada um dos membros do bloco está autorizado a

aplicar tarifas diferentes para produtos desses dois setores54.

a.1) A política brasileira de “Ex-tarifários”

Tendo em vista a possibilidade de que os Estados Partes pratiquem tarifas

distintas para BKs e BITs, o Brasil decidiu lançar mão de um mecanismo específico,

a política de “Ex-tarifários”55, a fim de reduzir as alíquotas - em geral a 2% -

incidentes sobre produtos desses setores que não são produzidos no país. Trata-se de

uma forma de estimular investimentos privados em seu parque produtivo. Na

hipótese de uma empresa apresentar projeto de investimento que exija a importação

de BKs ou BITs não produzidos no Brasil, a CAMEX, caso aprove o pleito, cria um

“Ex”, espécie de “destaque” no código da NCM que conta com uma descrição

específica.

O “Ex” é na verdade uma “exceção” à tarifa vigente para determinado

código. Essa “exceção” aplica-se apenas para um produto específico, com

especificações técnicas bem detalhadas. Isso deve à circunstância de que um código

da NCM pode ser bem genérico -como, por exemplo, o código 8408, que se refere a

“motores de pistão, de ignição por compressão”. Dentro dessa descrição enquadram-

se diferentes tipos de motores, cada um com características técnicas próprias. Mais

importante: nessa descrição podemos ter, a depender das especificações técnicas,

produtos fabricados e não fabricados no país. Para aqueles que contam com

produção nacional, o lógico é que seja observada a alíquota prevista na TEC (em

geral de 14%). Para os bens não produzidos (sem similar nacional) – e que sejam

importantes para a indústria nacional – é possível que se conceda, por meio de um

“ex” (exceção), uma redução tarifária.

O mecanismo de “Ex-tarifários” foi estabelecido em 1990, tendo aumentado

progressivamente de importância desde então. Durante um breve lapso de tempo, em

54 Em dezembro de 2008, o Conselho do Mercado Comum decidiu, por meio da Decisão n° 58/08, prorrogar até 31 de dezembro de 2010 a autorização para que os Estados Partes pratiquem tarifas distintas para os setores de BKs e BITs. 55 Atualmente regulamentada pela Resolução CAMEX N° 35, de 22 de novembro de 2006.

Page 64: Mercosul PDF

64

1997, foram revogadas os benefícios tarifários concedidos, tendo sido reintroduzidos

logo depois56.

Dentre os critérios que norteiam a análise técnica dos pedidos de “Ex-

tarifário”, destacam-se a relevância do investimento a ser feito para o incremento da

competitividade e da infra-estrutura da economia e para o aumento das exportações

brasileiras. Antes de ser submetida à aprovação da CAMEX, essa análise técnica é

levada a cabo no Comitê de Análise de “Ex-tarifários” (CAEX), que funciona no

âmbito do MDIC.

No exemplo abaixo, temos um exemplo de “Ex-tarifário” criado na NCM

8427.90.00, relativa ao BK “outros tipos de empilhadeiras; veículos para

movimentação de carga e semelhantes, equipados com dispositivos de elevação”. A

descrição desse código é ampla, contemplando uma grande diversidade de produtos.

O “Ex-tarifário” conta com uma descrição bem mais específica, explicitando as

especificações do equipamento (como sua altura, alcance e capacidade de carga) e

suas funções:

Exemplo de “Ex-tarifário”

84279000

- Outros (“empilhadeiras, veículos para movimentação de carga e semelhantes, equipados com dispositivos de elevação”)

14%

Ex 001

30/6/2009 Plataformas de elevação para trabalhos aéreos, autopropulsadas, sobre esteiras de borracha, dotadas de

braço telescópico com rotação de 360º, com altura máxima de trabalho compreendida entre 12,25 e 13,90m, alcance horizontal máximo de trabalho entre 5,42 e 6,76m

e capacidade de carga sobre a plataforma de trabalho compreendida entre 120 e 200kg

2%

Em geral, os “Ex tarifários” contam com alíquotas de 2%, que é aquela

aplicável, de maneira geral, a bens não produzidos. Alguns poucos – considerados

“Ex tarifários” especiais – contam com alíquota de 0% (é o caso, por exemplo, de

BKs relacionados ao setor de saúde ou de BITs relevantes para o setor de TV

digital).

56 Piani, Guida e Miranda, Pedro. “Regimes Especiais de importação e “Ex-tarifários”: o caso do Brasil”. Rio de Janeiro, IPEA, texto para discussão n° 1249, 2006.

Page 65: Mercosul PDF

65

Em 2009, havia no Brasil mais de 2000 “Ex-tarifários” vigentes. É importante

ressaltar que esse número não se refere à quantidade de NCMs, dado que um mesmo

código NCM pode conter diversos “Ex”. Além dos chamados “Ex-tarifários”

simples, que se referem a um BK ou BIT, existem também os “Sistemas

Integrados”, que consistem num conjunto de BKs e BITs que funcionam em

conjunto, como se constituíssem um único equipamento. A partir do que foi exposto,

podemos sintetizar as características principais desse instrumento:

Ex-tarifários: características

a) seu objetivo é o de promover reduções de alíquotas da TEC, geralmente a

2%, o que estimula importações Bens de Capital (BKs) e Bens de

Informática e Telecomunicações (BITs) não produzidos localmente e

associados a projetos de investimento que modernizam o parque produtivo

nacional;

b) essa redução tarifária por meio de uma política nacional só é possível em

virtude do fato de que ainda não existe, no Mercosul, um regime tarifário

comum para BKs e BITs;

c) consistem num “destaque” da NCM, com uma descrição mais detalhada;

d) a instituição de “Ex tarifários” ocorre por meio de Resolução da CAMEX

e toma em consideração critérios como a contribuição das importações

para a competividade do setor, para o aumento das exportações nacionais

e para a melhoria da infra-estrutura da economia;

e) seu prazo de vigência é normalmente de 2 (dois) anos.

Se de um lado o Brasil lança mão de sua política de “Ex-Tarifários”, por

outro os demais Estados Partes contam com uma gama de benefícios que lhes

permitem importar BKs e BITs com custo reduzido. A Argentina usufrui, desde

200157, de um “waiver” para a importação de uma série (cerca de 700 linhas

tarifárias) de BKs. Esse benefício lhe foi concedido na esteira da crise econômica

57 Cf. Decisão CMC N° 01/01.

Page 66: Mercosul PDF

66

que se abateu sobre o país no início da década e procurava atender às necessidades

do país de manter a competitividade de sua economia. Embora sua validade devesse

se estender apenas até o final de 2002, e foi sucessivamente prorrogado. A última

prorrogação, até o final de 2010, ocorreu em dezembro de 200858.

Já Paraguai e Uruguai também estão autorizados a praticar alíquotas

reduzidas, inclusive de 0%, para BKs, BITs e insumos agropecuários59.

Essas diferentes políticas nacionais para BKs e BITs são, à luz do que

dispõem as normas do Mercosul, temporárias. Espera-se, como veremos a seguir,

que haja uma harmonização de tarifas nesses segmentos. Caso esse objetivo se

concretize, a política brasileira de “Ex-tarifários” deverá ser substituída por um

mecanismo comunitário que permita redução de alíquotas para bens não produzidos

pelos países do bloco.

a.2) O debate sobre regimes comuns para BKs e BITs

A aplicação pelos Estados Partes de tarifas distintas para os setores de BKs e

BITs constitui, desde a criação do Mercosul, um dos principais obstáculos para a

consolidação da TEC. A despeito das dificuldades, os Estados Partes seguem

discutindo alternativas para o estabelecimento de regimes comuns nesses dois

segmentos.

As discussões tiveram lugar, a partir de 2001, no âmbito do “Grupo de Alto

Nível para Examinar a Consistência e Dispersão da TEC” (GANTEC). Esse Grupo,

criado por meio da Decisão CMC N° 05/01, tinha o mandato de rever a estrutura

tarifária, inclusive com vistas à redução dos “níveis de proteção” (ou seja,

diminuição de alíquotas), para BKs e BITs. A força motriz para a criação desse foro

foi a possibilidade de se atingir um consenso entre os Estados Partes a respeito a

redução, ainda que não substancial, da TEC para esses dois setores, o que poderia

levar a um acordo entre o Brasil, de um lado, e os três demais sócios, do outro.

Tendo se reunido poucas vezes desde aquele ano, o GANTEC acabou sendo, na

58 Cf. Decisão CMC N° 58/08. 59 Cf. Decisões CMC N° 32/03 e N° 58/05.

Page 67: Mercosul PDF

67

prática, desativado, já que em dezembro de 2008, por meio da Decisão CMC N°

58/08, foi criada nova instância - o Grupo “Ad Hoc” para os setores de Bens de

Capital e de Bens de Informática e Telecomunicações (GAH BK/BIT) - , com

mandato idêntico ao do GANTEC.

Tanto o GANTEC quanto o novo Grupo “Ad Hoc” têm como desafio

debruçar-se sobre duas questões que guardam estrita relação entre si: a) rever a

estrutura tarifária para BKs (cuja alíquota modal, tal como definida pela TEC de

1995, é de 14%) e para BITs (alíquota modal de 16%) e b) estabelecer regimes

comuns para a importação de bens desses dois setores.

No que se refere à primeira questão, os Estados Partes lograram aprovar, em

2003, um regime comum para a importação de bens de capital não produzidos no

âmbito do Mercosul (Decisão CMC N° 34/03). Esse regime previa a elaboração de

uma lista comum de produtos que não contam com produção em nenhum dos países

do bloco. Os BKs constantes dessa lista teriam alíquotas de 0%. Não havendo

consenso para a inclusão de determinado produto na lista, o país solicitante poderá

mantê-lo numa lista nacional de BKs não produzidos, com alíquota de 2%. Essa lista

nacional terá, em princípio, uma validade de apenas 2 (dois) anos. Decorrido esse

período, só poderão ser importados com redução tarifária os bens constantes das

listas nacionais. O regime comum para BKs não produzidos deveria estar

operacional em 2006, mas sua entrada em vigência foi postergada por duas vezes,

estando prevista atualmente para 1° de janeiro de 201160.

b) As Listas Nacionais de Exceções à TEC

As Listas Nacionais de Exceções constituem uma “perfuração” autorizada da

TEC. Cada Estado Parte tem a liberdade de estabelecer, para um número

determinado de produtos, alíquotas superiores ou inferiores à da tarifa comum. O

número de produtos que podem ser incluídos tem variado desde a criação do

60 Decisão CMC N° 59/08.

Page 68: Mercosul PDF

68

Mercosul. De 1995 a 2001 cada Estado Parte teve direito de manter listas com até

300 itens. A partir de então esse total foi reduzido para 100 itens.

É importante frisar que essas cifras se referem à chamada lista “comum”, a

que todos Estados Parte têm direito. Em virtude do tamanho de sua economia e das

características de seu setor produtivo, Paraguai e Uruguai têm direito a um número

adicional de exceções à TEC, além dos 100 itens comuns. Ao Paraguai foram

concedidos 399 itens adicionais, em virtude da Decisão CMC n° 07/94, e a outros

150 itens em decorrência da Decisão CMC n° 31/03. Já o Uruguai pode manter 125

itens adicionais, também em função do disposto na Decisão CMC n° 31/03. Essas

exceções adicionais são válidas atualmente até 31 de dezembro de 2010.

Como se verá em tópico à parte, as exceções adicionais atribuídas a Paraguai

e Uruguai têm como objetivo fundamental dar maior flexibilidade às duas

economias menores do bloco, permitindo-lhes atender às demandas de setores

específicos de seu parque produtivo.

As listas nacionais de exceções consubstanciam, na verdade, uma espécie de

“válvula de escape” para acomodar interesses conflitantes dos Estados Partes. Além

disso, há casos em que situações nacionais específicas tornam conveniente uma

redução ou elevação temporária do imposto de importação para produtos

específicos. Essa conjuntura especial, que não justifica uma modificação definitiva

da TEC por se referir às particularidades de apenas um Estado Parte, é atendida

normalmente pela lista de exceções. Embora a inclusão ou exclusão de produtos seja

atribuição exclusiva dos Estados Partes, é fundamental ter em mente, no entanto,

que as modificações nas listas nacionais devem atender a duas regras fundamentais:

a) as listas devem ser modificadas uma vez por semestre, nos meses de

janeiro e julho. Desse modo, dá-se maior previsibilidade e transparência

ao processo. Além disso, evita-se que os órgãos de governo responsáveis

pela questão estejam constantemente recebendo solicitações relativas à

inclusão e/ou exclusão de produtos;

Page 69: Mercosul PDF

69

b) as alterações semestrais devem observar um limite quantitativo: são

permitidas no máximo 20 modificações por semestre.

No caso do Mercosul, as Listas Nacionais de Exceções foram concebidas

como um instrumento temporário. Como se assinalou anteriormente, previa-se sua

extinção no ano de 2001, momento em que se esperava a eliminação de todas as

“perfurações” à TEC. Desde então houve prorrogações sucessivas. Consoante a

última norma aprovada sobre o tema - Decisão CMC n° 59/07 -, as listas de

Argentina e Brasil terão validade até 31 de dezembro de 2010. No entanto, deveria

ter início em 1° de fevereiro de 2009 um cronograma de redução do número itens

(93 itens a partir dessa data; 80 itens a partir de 1° de fevereiro de 2010 e 50 itens a

partir de 1° de agosto de 2010). Já Paraguai e Uruguai, na esteira das flexibilidades

já indicadas, poderão manter 100 itens até 31 de dezembro de 2015.

No Brasil a lista de exceções é confeccionada no âmbito de Grupo Técnico

Interministerial, cabendo a decisão final à CAMEX. O Grupo Técnico normalmente

recebe pleitos apresentados pelos setor privado ou por órgãos de governo e avalia a

sua pertinência. A lista final é publicada por meio de Resolução da CAMEX.

2.6) Os Regimes Especiais de Importação

Os regimes especiais de importação permitem que sejam realizadas

importações com isenção ou redução da TEC, desde que os produtos sejam

destinados a uma determinada categoria de beneficiários ou estejam vinculados a

uma finalidade específica. No primeiro caso se enquadram, a título de ilustração, as

isenções de imposto de importação para agentes diplomáticos. No segundo estão,

por exemplo, as isenções concedidas, no Brasil, à importação de equipamentos

destinados ao treinamento de atletas.

Os regimes especiais de importação constituem, desse modo, uma

modalidade de “perfuração” da TEC. É necessário, por essa razão, que haja uma

harmonização do tratamento do tema no âmbito do Mercosul, especialmente em face

Page 70: Mercosul PDF

70

da circunstância de que os regimes hoje existentes nos países do bloco são

estritamente nacionais, tendo sido estabelecidos por meio de ato legislativo interno

de cada um dos Estados Partes. Isso significa, na prática, que os países criaram, por

meio de legislações nacionais, “perfurações” à TEC, não havendo um controle

comunitário sobre esse processo.

Harmonizar os regimes de importação ou eliminar aqueles estabelecidos

unilateralmente fortaleceria a união aduaneira ao tornar iguais as condições de

competição entre as empresas de cada um dos Estados Partes. O fato de qualquer

dos países poder contar com uma gama maior de regimes especiais, concedendo

isenções tarifárias para determinadas atividades, acaba por desequilibrar as

condições de concorrência intrazona, fazendo com que bens importados

(especialmente insumos) tenham custos diferentes em cada um dos países do bloco.

Em segundo lugar, mas não menos importante, a existência dos regimes nacionais

fragiliza a observância da TEC, gerando uma série de “perfurações” e erodindo as

preferências que deveriam gozar os produtos de intrazona em face daqueles

importados de terceiros países ou blocos.

O fato de que os regimes especiais de importação contribuem para fragilizar

a TEC levou os Estados Partes a iniciarem discussões para sua progressiva

eliminação e/ou harmonização. Em 2000, no contexto da “agenda de relançamento”

do Mercosul, o CMC aprovou a Decisão N° 69/00, norma que se tornou referência

na matéria, determinando a eliminação, a partir de 1° de janeiro de 2006, de todos os

regimes especiais de importação adotados unilateralmente. Esse prazo não foi

cumprido, tendo sido sucessivamente prorrogado. A última norma aprovada sobre o

tema, a Decisão CMC N° 57/08, não dispõe que os Estados Partes deverão eliminar

os regimes unilaterais, mas apenas que o GMC deverá definir, até 31 de dezembro

de 2010, o tratamento a ser dado a eles.

Cabe registrar que a referência à eliminação se refere apenas aos regimes

unilaterais que não são expressamente tolerados. Em 2006, os Estados Partes

acordaram uma lista de regimes nacionais que, por sua pequena materialidade

econômica ou finalidade social, poderiam ser mantidos. Esse é o caso, que citamos

Page 71: Mercosul PDF

71

apenas para ilustrar, do regime brasileiro que isenta de tributação a importação de

bens destinados a urnas eletrônicas. A lista de regimes tolerados consta do anexo da

Decisão CMC N° 03/06 e pode ser modificada por meio de Diretriz da CCM.

Além da eliminação de regimes nacionais, as normas do Mercosul têm

previsto também a necessidade de harmonização desses mecanismos por meio da

criação de regimes comuns. A Decisão CMC N° 02/06 estabeleceu sete setores nos

quais os Estados Partes deveriam trabalhar para criar regimes comuns: naval,

aeronáutico, ciência e tecnologia, saúde, educação, bens integrantes de projetos de

investimento e comércio transfronteiriço terrestre. Até o final de 2008 apenas o

regime comum de ciência e tecnologia havia sido aprovado61. Os demais ainda se

encontravam em fase de discussão no âmbito da CCM.

Admissão temporária e Drawback

Outra espécie de regime especial de exportação ainda é aceita no Mercosul é

o regime de admissão temporária e, no Brasil, o chamado “drawback”. Ambas

modalidades de regimes continuarão sendo aceitas no Mercosul até 2010, nos termos

do que dispôs a Decisão CMC N° 32/03.

Os regimes de admissão temporária permitem a entrada, por um prazo

específico, de mercadorias que venham a cumprir uma finalidade determinada. Há,

nesse caso, suspensão total ou parcial de tributos aduaneiros incidentes na sua

importação, desde que observado o compromisso de que serão reexportadas no

prazo fixado pela legislação aplicável62. Dentre os regimes de admissão temporária

hoje vigentes no Brasil, caberia destacar, a título de ilustração, os referentes a bens

destinados a eventos culturais e científicos; à utilização em feiras, exposições,

congressos ou eventos de promoção comercial; de máquinas ou equipamentos

arrendados para utilização em linhas de produção e de bens necessários ao exercício

temporário de atividade profissional de não residente.

61 Decisão CMC N° 40/08. 62 Em geral de um ano, com possibilidade de prorrogação por igual período.

Page 72: Mercosul PDF

72

Já o “drawback” existente no Brasil constitui mecanismo que isenta ou

suspende a incidência de uma série de tributos (tais como o imposto de importação,

IPI e ICMS) sobre insumos de mercadorias que serão exportadas. Dessa forma, as

empresas estabelecidas na região podem, até o prazo estipulado, exportar para seus

sócios no bloco mercadorias cujos insumos contaram com isenção ou suspensão de

impostos.

Na prática, o mecanismo brasileiro de “drawback” é denominado nos

demais países do Mercosul de “regime de admissão temporária”. A diferença

terminológica não nos impede de afirmar, porém, que os dois regimes permitem a

suspensão de impostos incidentes sobre mercadorias que têm prazo de permanência

definido no país. Desse modo, as empresas voltadas para a exportação têm a

possibilidade de importar insumos e matérias-primas sem o pagamento de tarifas e

outros tributos, desde que se comprometam, num prazo determinado, a vender o

bem final no mercado externo63.

Dentre os principais produtos importados ao abrigo dos regimes de

admissão temporária e “drawback”, podemos destacar materiais de transporte,

máquinas e equipamentos (sobretudo nos dois países mais industrializados,

Argentina e Brasil), material plástico e produtos químicos.

O “drawback” é considerado ferramenta importante para a competitividade

da indústria nacional, ao propiciar redução de custos dos produtos, especialmente os

de maior agregado, que integram a pauta exportadora brasileira.

2.7) O grau de cumprimento da TEC

Como se vê, embora o Mercosul conte formalmente com uma TEC que

abarca todo o universo tarifário, ainda existem discrepâncias entre a TEC vigente e

a TEC efetivamente aplicada, diferença essa decorrente da autorização que têm os

63 Berlinski, Julio e Kume, Honorio. Regímenes Especiales de Importación en el Mercosur: evaluación y recomendaciones. Montevideo, Estudio n° 007/06 CE ES (a), Sector de Asesoría Técnica, Secretaria del Mercosur, mimeo., 2006, p. 5.

Page 73: Mercosul PDF

73

Estados Partes para lançar mão, em alguns casos (BKs, BITs e LETEC, além dos

regimes especiais de importação), de alíquotas distintas.

Essa situação traz à tona o debate acerca do grau de cumprimento da TEC.

Dados de 2004 da Secretaria do Mercosul e das autoridades nacionais dos Estados

Partes indicam que naquele ano cerca de 76% dos itens tarifários cumpriam com a

TEC. Esses itens correspondiam, à época, a aproximadamente 55% do valor total

das importações do Mercosul64.

Grau de cumprimento da TEC (Número de itens-2004)

Todos os bens

Bens de Capital

Bens de Informátic

a e Telecomuni

ca-ções

Listas

Nacionais de

Exceções

Outras fontes

- + - + - + - + - +

Argentina 1010 57 708 0 169 48 95 4 38 5

Brasil 91 314 1 3 19 284 68 27 3 0

Paraguai 1814 65 917 0 269 3 451 62 177 0

Uruguai 1262 15 899 3 259 1 86 10 18 1

Fonte: Baraibar, Mercedes. “Cumplimiento del AEC al 2004”. Documento de Trabalho n° 05/06. Montevidéu, SAT/SM, mimeo., abril de 2006, p. 12.

A tabela acima indica o número de linhas tarifárias em que cada país do bloco

se afasta da TEC. Os números constituem uma espécie de fotografia que explicita os

diferentes interesses dos Estados Partes em proteger sua indústria (elevando os

níveis da TEC) ou aumentar a competitividade de sua economia por meio da

redução de custos de produtos e insumos importados (redução dos níveis da TEC).

Dos países do bloco o Paraguai é o que mais se desvia da TEC, em geral de

forma negativa (redução), o que significa que as alíquotas fixadas no âmbito

comunitário são consideradas elevadas do seu ponto de vista. Por outro lado, o

64 Baraibar, Mercedes. “Cumplimiento del AEC al 2004”. SAT/SM, Documento de Trabalho n° 05/06. Montevidéu, mimeo., abril de 2006, p. 14.

Page 74: Mercosul PDF

74

Brasil é o país com o menor desvio, e, quando ocorrem diferenças, essas são em

geral positivas (alíquotas acima da TEC), o que permite concluir que em alguns

setores a proteção oferecida pela tarifa comum é considerada insuficiente. Já

Argentina e Uruguai constituiriam casos “intermediários”, apresentando desvio

negativo, embora não na mesma proporção que o verificado no caso paraguaio65.

Ilustrando essa situação com números, em 2004 o Paraguai apresentava

apenas 65 itens tarifários com alíquotas acima à da TEC, contando, por outro lado,

com 1814 produtos com alíquotas inferiores. No outro extremo estaria o Brasil, com

apenas 91 itens com desvio negativo e, no entanto, 314 itens com alíquotas

superiores66.

Além disso, os dados indicam que o setor em que se concentram o maior

número de exceções e desvios à TEC é o de Bens de Capital (BKs), representando

39% do total de itens, seguido pelas listas nacionais de exceções (35%) e pelo setor

de Bens de Informática e Telecomunicações (15%)67. No entanto, é necessário notar

que o volume total de importações referentes ao setor de BKs é elevado, o que

contribui para que sua categorização como “principal exceção” decorra não apenas

no número de itens, mas também de sua participação no volume total de

importações.

No segmento de BKs, apenas o Brasil cumpre estritamente as alíquotas

acordadas (4 exceções no total), havendo grande desvio – negativo – nos demais

Estados Partes. Por outro lado, no caso de BITs o Brasil é o país que mais se desvia

das alíquotas estabelecidas (303 exceções, sendo que 284 delas para estabelecer

alíquotas superiores à da TEC)68.

Um levantamento mais atualizado e preciso do grau de cumprimento da TEC

esbarra em alguns obstáculos, como a inexistência de intercâmbio permanente de

dados estatísticos de todos os Estados Partes. Essa troca de informações tende

ocorrer esporadicamente e em resposta a situações específicas, dependendo,

ademais, de que cada um dos membros do bloco forneça os dados relativos ao seu

65 Ibidem, pp. 9-13. 66 Ibidem, p. 12. 67 Ibidem, p. 17. 68 Ibidem, p. 12.

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75

conjunto de exceções. A existência de regimes especiais de importação de caráter

estritamente nacional, os quais em geral engendram diversas “perfurações” à TEC,

também obstaculizam um levantamento estatístico mais fidedigno.

No entanto, estudo realizado pela Secretaria do Mercosul em 2005 permite

que efetuemos uma aproximação panorâmica do grau de cumprimento global da

TEC no âmbito do bloco no período de 2003 a 2005:

Grau de cumprimento da TEC (2003-2005) (número de itens)

2003 2004 2005 Universo NCM Todos 9590 9750 9797 Cumpre 6840 7259 7462 Grau de cumprimento (%) 71,3% 74,5% 76,2%

Fonte: In: Baraibar, Mercedes. “Cumplimiento del AEC al 2005”. Documento de Trabalho n° 22/06. Montevidéu, SAT/SM, mimeo., novembro de 2006, p. 17.

Como vimos, as principais fontes de desvio do cumprimento da TEC são as

chamadas “exceções setoriais” (bens de capital e bens de informática e

telecomunicações) e as listas nacionais de exceções. Caso não incluíssemos essas

fontes de desvio no cálculo, o grau de cumprimento do Mercosul atingiria, em 2005,

99,6%69.

Os Estados Partes do Mercosul sempre reconheceram a necessidade de se

aproximarem, o máximo possível, dos patamares estabelecidos na TEC. É por essa

razão que não existem, no agrupamento, “exceções permanentes”: todas elas são

consideradas temporárias e excepcionais e contam com data de extinção. A curta

história do bloco tem demonstrado, no entanto, que algumas dessas exceções –

especialmente aquelas relativas aos setores de BITs e BKs – tendem a persistir ao

longo do tempo, haja vista o evidente desequilíbrio de interesses dos Estados Partes.

Uma projeção realista indica, portanto, que no futuro próximo talvez algumas

exceções sejam reduzidas ou eliminadas - o caso mais provável diz respeito às listas

69 Cf. Baraibar, Mercedes. “Cumplimiento del AEC al 2005”. Documento de Trabalho n° 22/06. Montevidéu, SAT/SM, mimeo., novembro de 2006, p. 17.

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76

nacionais de exceções -, mas outras deverão ter continuidade, a fim de acomodar

interesses conflitantes dos países do bloco.

2.8) Áreas Aduaneiras Especiais

O termo “áreas aduaneiras especiais” designa um conjunto de regimes

aduaneiros que objetivam fomentar o desenvolvimento econômico e industrial de

algumas das regiões de determinado país. Nesse conceito estão incluídas, por

exemplo, as Zonas Francas (ZFs) e as Zonas de Processamento de Exportações

(ZPEs).

No Mercosul, o tema foi tratado por meio da Decisão CMC n° 08/94. Essa

norma estabeleceu que os produtos provenientes de ZFs (comerciais e industriais),

ZPEs e demais áreas aduaneiras especiais sofrerão a incidência da TEC. Dessa

maneira, as mercadorias produzidas em áreas aduaneiras especiais não poderão,

salvo entendimento em contrário dos Estados Partes, usufruir dos benefícios do

livre comércio.

Isso se deve à natureza particular dessas áreas: a fim de atrair investimentos

produtivos, as empresas ali instaladas usufruem de uma série de benefícios fiscais.

Existem três grandes zonas francas no âmbito do Mercosul: a de Manaus, no Brasil;

a da Terra do Fogo, na Argentina, e a de Colônia, no Uruguai.

A Zona Franca de Manaus (ZFM) oferece um conjunto de incentivos fiscais

para as empresas ali instaladas, tais como redução do Imposto de Importação (II),

isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), redução do Imposto de

Renda e tratamento especial no que diz respeito às contribuições sociais (PIS e

COFINS). Na órbita estadual, são oferecidos créditos relativos ao Imposto sobre a

Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Amplos benefícios fiscais também

são aplicados nas Zonas Francas da Terra do Fogo e de Colônia.

A fim de evitar que os produtos fabricados nas áreas aduaneiras especiais

provocassem algum tipo de distorção no comércio, a solução contida na Decisão

CMC n° 08/94 – incidência da TEC, como se estivéssemos diante de uma

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77

mercadoria de extrazona – foi a que se apresentou mais factível às vésperas do

estabelecimento da união aduaneira. Essa norma admitiu, porém, a possibilidade de

que os Estados Partes pudessem celebrar acordos bilaterais concedendo isenção da

TEC para produtos de suas áreas aduaneiras especiais. O Brasil possui, hoje, acordos

com a Argentina e com o Uruguai.

No caso do acordo com a Argentina, negociou-se, no âmbito do ACE n° 14, a

isenção do pagamento da TEC para os produtos originários da ZFM e da Terra do

Fogo, desde que ostentem selo ou marca de identificação de seu local de produção.

No caso do Uruguai, existe, igualmente, acordo bilateral celebrado no âmbito do

ACE n° 1870, os quais beneficiam uma lista de produtos da ZFM e das ZFs de

Colônia e Nova Palmira. Os produtos deverão cumprir com o Regime de Origem do

Mercosul e ostentar, também, selo identificador de seu local de produção.

Como se vê, o tratamento da matéria no Mercosul ainda é assistemático. A

despeito da previsão contida na Decisão CMC n° 08/94, os Estados Partes têm

negociado, em bases bilaterais, acordos que permitem o não-pagamento da TEC. O

Paraguai tem-se mantido à margem desses entendimentos. O acordo celebrado com

a Argentina, por sua vez, é estritamente bilateral, não tendo relação com o acervo

normativo do Mercosul, já que não foi tratado em nenhum dos órgãos decisórios do

bloco. Cabe ressaltar que foram celebrados acordos também entre Argentina e

Uruguai, envolvendo as ZFs da Terra do Fogo e de Colônia71.

Esse tratamento fragmentário dificulta, inclusive, que se busque uma

harmonização desses regimes no âmbito comunitário. Cabe ressaltar que a Decisão

CMC n° 08/94 estabelecia que a ZFM poderia funcionar até 2013, prazo previsto à

época na Constituição brasileira, mas que veio a ser posteriormente prorrogado até

2023.

Seria conveniente, portanto, uma revisão da norma Mercosul sobre a matéria,

a fim de ajustá-la à realidade do comércio intrazona. Trata-se, porém, de tarefa

politicamente sensível, haja vista a resistência dos Estados Partes, sobretudo

70 Cf. Decisão CMC N° 60/07. 71 Cf. Decisão CMC N° 09/01. Essa decisão permite que o Uruguai venda à Argentina quota de 2.000 toneladas do produto “xarope”. A Argentina, por sua vez, poderá exportar até US$ 20 milhões de produtos originários da Área Especial da Terra do Fogo.

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78

Paraguai e Uruguai, em aceitar condições de acesso diferentes para produtos

fabricados nas duas maiores ZFs do bloco, Manaus e Terra do Fogo.

Um dos aspectos centrais da questão não é exatamente as exportações de

produtos das ZFs para os países vizinhos, a qual não chega a ser representativa (as

exportações de Manaus para o bloco representaram 4% do total em 200572), mas

sobretudo o fato de que essas áreas especiais abastecem também o mercado interno

dos países, o que pode gerar impactos na concorrência, ademais de levar à

persistência de “perfurações” à TEC.

Num cenário ideal, os Estados Partes deveriam negociar um acordo

quadrilateral estabelecendo novas condições de acesso para os produtos fabricados

nas áreas aduaneiras especiais, vinculando-se, por exemplo, a isenção de pagamento

da TEC ao cumprimento do regime de origem do Mercosul. Embora propostas

como essa já tenham sido discutidas entre os Estados Partes, ainda não se esboçou

um consenso para a modificação das condições de acesso de produtos provenientes

das ZFs e demais áreas aduaneiras especiais. Eventual harmonização da legislação

aplicável à criação e ao funcionamento desses regimes ainda parece ser trabalho de

longo prazo, dada a relação direta que mantêm com questões tributárias igualmente

pendentes de harmonização no âmbito do bloco.

2.9) Administração da TEC

Após a adoção da TEC, os Estados Partes do Mercosul perderam o direito de

efetuar modificações unilaterais em suas alíquotas de imposto de importação. As

políticas tarifárias nacionais deixaram de existir, dando lugar a uma política tarifária

comum, negociada com os demais sócios do bloco. Essa foi uma das mais

substanciais transformações produzidas pelo processo de integração.

Como ponderamos anteriormente, a TEC não é estática. As freqüentes

mudanças na conjuntura econômica e no setor produtivo tornam necessárias

modificações mais ou menos amplas em sua estrutura. As alterações podem ser

72 Palhares, Gustavo Horta. “Las Zonas Francas del Mercosur: Manaos, Tierra del Fuego y Colonia”. Documento de Trabalho n° 020/06. Montevidéu, SAT/SM, mimeo., 2006, p. 3.

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79

“pontuais” – assim chamadas por se referirem a um único ou a um pequeno grupo de

produtos – ou mais extensas, podendo, em algumas hipóteses, contemplar capítulos

inteiros da NCM. No caso de alterações mais significativas, não é incomum que o

tema seja, por sua sensibilidade política, tratado diretamente no âmbito do CMC73.

Em termos formais - e segundo disposto no Tratado de Assunção -, é o próprio

CMC que tem a competência para deliberar acerca de modificações na TEC. No

entanto, por intermédio da Decisão CMC n° 07/94 essa competência foi delegada

para o GMC (GMC).

De acordo com a prática estabelecida no bloco, cabe à CCM discutir apenas

aspectos técnicos relacionados a modificações pontuais da TEC, não tendo esse

órgão poder decisório nessa matéria. A alteração final, no caso dessas modificações

pontuais, deve ser aprovada por meio de Resolução do GMC, e, como dissemos, em

hipóteses excepcionais, a depender da amplitude das mudanças e de sua relevância

política, algumas alterações podem ter lugar no âmbito do próprio CMC.

As propostas de modificações pontuais na TEC são corriqueiras. Seu locus

inicial de exame é o Comitê Técnico N° 1 (CT N° 1), órgão subordinado à CCM

cujas competências serão descritas em capítulo à parte. O CT N° 1 discute não só

mudanças de alíquotas - tendo como critério norteador básico (embora não

formalizado oficialmente) a existência ou não de produção regional da mercadoria -,

mas também a abertura de novos códigos na NCM. O fato é que ainda não existem,

no Mercosul, critérios oficiais para apreciar os pedidos de modificação tarifária

muitas vezes dificulta as discussões, já que cada país utiliza argumentos ad hoc para

rechaçar ou acolher solicitações dos países vizinhos. A simples existência ou não de

produção local é critério genérico e sem força vinculante, uma vez que, em algumas

situações, pode-se alegar que o início da produção em outro país não seria motivo

suficiente para se acatar pleito de elevação tarifária, seja porque essa produção

supostamente não atende a determinadas especificações técnicas, seja porque sua

escala não seria capaz de satisfazer toda a demanda regional. Por trás desses

argumentos pode estar, ainda, o entendimento de que a aquisição do produto de

73 A elevação da TEC para produtos têxteis, calçados e confecções realizada em 2007 foi formalizada por intermédio de Decisão do CMC (N° 37/07).

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80

empresa da região pode acarretar elevação de custos, uma vez que o fornecedor de

extrazona pode ser capaz de vendê-lo a preços menores.

A administração da TEC pode ser, portanto, um exercício difícil também no

plano técnico. Alguns ensaios foram realizados nos últimos anos para se definir

critérios comuns para análise de pedidos de modificação tarifária. Para redução

tarifária, por exemplo, exigir-se-ia a inexistência de produção regional e um impacto

positivo para o consumidor ou para redução de custos na produção de outros bens.

Já para elevação tarifária exigir-se-ia o início efetivo de produção regional, bem

como a comprovação de que a empresa local tem capacidade de atender a um nível

mínimo do consumo dos Estados Partes. O debate para o estabelecimento desses

critérios acabou não prosperando no âmbito da CCM, haja vista as divergências de

visões entre os países do bloco.

Nos dez primeiros anos da união aduaneira foram efetuadas 766 modificações

nas alíquotas da TEC (585 reduções; 151 elevações e 30 modificações

“ambíguas”74). A maior parte dos itens da NCM não foi submetida a nenhum tipo de

mudança. Uma primeira e superficial leitura dos números indica ser mais difícil

haver uma elevação dos níveis tarifários, sobretudo pela dificuldade de se alcançar

consenso entre os Estados Partes, uma vez que Paraguai e Uruguai, as duas

economias menores, têm certa resistência a elevar ainda mais os patamares da TEC

hoje existentes, tendo em conta seus eventuais impactos na competitividade da

indústria local (especialmente daquelas que dependem de insumos importados).

2.10) Medidas Excepcionais no Âmbito Tarifário

Ademais das listas nacionais de exceções - cuja função central é, como visto,

oferecer aos Estados Partes a possibilidade de acomodar interesses nacionais em

matéria tarifária -, os Estados Partes do Mercosul também acordaram, em 1996, criar

74 Em alguns casos, um item da NCM pode passar por alterações para dar origem a dois ou mais novos itens, com alíquotas menores ou superiores ao original. Quando os novos itens têm tanto alíquotas superiores quanto inferiores, diz-se que a alteração foi ambígua. Os dados em tela foram extraídos de Lalanne, Alvaro. “Arancel Externo Común 1995-2005: Estructura y Evolución”. Documento de Trabalho n° 012/05, SAT/SM, dezembro de 2005, p. 14.

Page 81: Mercosul PDF

81

um mecanismo para possibilitar reduções tarifárias temporárias especificamente para

casos de desabastecimento.

A partir de 2000 o tema veio a ser disciplinado pela Resolução GMC n°

69/00. Essa norma estabelecia que as medidas pontuais deveriam ser adotadas num

contexto de “impossibilidade de abastecimento normal e fluido na região,

decorrentes de desequilíbrios de oferta e de demanda”75. Configurando-se a situação

de desabastecimento, pode o Estado Parte afetado pleitear a redução tarifária

temporária para o produto correspondente.

Em 2008 foi aprovada nova norma, a Resolução GMC n° 08/08, que ampliou

as hipóteses em que se poderá pleitear redução tarifária em razão de

desabastecimento. Essa norma reflete a experiência dos Estados Partes na matéria,

segundo a qual em diferentes circunstâncias a redução tarifária temporária é cabível,

mesmo que não se enquadre em casos clássicos de desabastecimento. Atendendo a

essas necessidades, a Resolução n° 08/08 passou a prever, além do desequilíbrio

entre oferta e demanda, que o benefício também poderá ser concedido nos casos em

que há produção regional do bem, mas este não atende às especificações técnicas

exigidas pelas empresas país demandante, ou, ainda, a sua produção é pequena e a

quantidade demandada não é capaz de justificar um incremento da quantidade

ofertada. Nesses casos, mesmo havendo produção regional poderá o Estado Parte

afetado solicitar a redução tarifária por tempo determinado.

O artigo 2° da Resolução n° 08/08 indica as cinco circunstâncias que podem

embasar a apresentação de pedido de redução tarifária temporária:

“1. Impossibilidade de abastecimento normal e fluido na região,

decorrentes de desequilíbrios de oferta e de demanda.

2. Existência de produção regional do bem, mas as características do

processo produtivo e/ou as quantidades solicitadas não justificam

economicamente a ampliação da produção.

75 Artigo 2°, item 1, da Resolução GMC n° 69/00.

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82

3. Existência de produção regional do bem, mas o Estado Parte

produtor não conta com excedentes exportáveis suficientes para

atender às necessidades demandadas.

4. Existência de produção regional de um bem similar, mas o mesmo

não possui as características exigidas pelo processo produtivo da

indústria do país solicitante.

5. Desabastecimento de produção regional de uma matéria-prima

para determinado insumo, ainda que exista produção regional de

outra matéria-prima para insumo similar mediante uma linha de

produção alternativa.”

Os pedidos apresentados com fundamento na existência de desabastecimento

temporário devem ser analisados no âmbito da CCM. Diferentemente do que ocorre

com as modificações tarifárias definitivas, cuja aprovação compete ao GMC e se

aplicam, salvo entendimento em contrário, a todos os países-membros, as

modificações temporárias realizadas ao amparo da Resolução GMC n° 08/08 são

aprovadas por intermédio de Diretriz da própria CCM e terão validade apenas para o

Estado Parte que a solicitou. A redução tarifária será a 2%, e, em casos

excepcionais, admitir-se-á redução a 0%. No entanto, em observância à sua condição

de país de menor desenvolvimento relativo, aos pedidos do Paraguai será concedida

sempre redução a 0% (inovação também introduzida pela Resolução GMC N°

08/08).

Uma vez apresentado e aprovado no âmbito da CCM, o pedido de redução

tarifária que se baseia na existência de desequilíbrio entre oferta e demanda

(hipótese 1 indicada acima) terá validade de no máximo 12 (doze) meses. É possível

uma única renovação, de modo que o período total de vigência da medida não

ultrapasse 24 (vinte e quatro) meses consecutivos. Caso persistam as condições que

justificaram a redução tarifária, o Estado Parte afetado poderá solicitar a

modificação tarifária definitiva para o produto em tela.

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83

Caso o pleito se enquadre nas outras quatro hipóteses previstas no artigo 2°

da Resolução n° 08/08, a medida poderá ser aplicada inicialmente por 24 meses,

com a possibilidade de prorrogação por 12 meses adicionais.

Vale destacar que cada Estado Parte não poderá ter mais do que 15 (quinze)

produtos enquadrados na hipótese 1 (desequilíbrio entre oferta e demanda) e 30

outros produtos enquadrados nas 4 outras hipóteses indicadas no artigo 2° da

Resolução GMC n° 08/08.

Além disso, deve-se ter em conta que a redução é válida para uma quota,

estabelecida segundo as necessidades do Estado solicitante. A redução tarifária

beneficiará, portanto, apenas um quantum determinado, a não ser que haja a

aprovação de uma ampliação da quota por fatores supervenientes.

No caso brasileiro, o segmento do setor privado que se sentir afetado por

problemas de desabastecimento temporário deve apresentar sua demanda ao Grupo

Técnico Interministerial de Acompanhamento da Resolução GMC n° 69/00 (ou

08/08, assim que a nova norma entrar em vigor) (GTAR). Compete a esse Grupo –

cuja Presidência é exercida pela Secretaria Executiva da Câmara de Comércio

Exterior (CAMEX) – analisar, em nível técnico, os pedidos e avaliar a conveniência

de sua apresentação ou não à CCM. O GTAR foi criado pela Resolução CAMEX n°

09/2002.

Os pedidos apresentados à apreciação do GTAR devem estar fundamentados

e indicar com precisão o produto e as circunstâncias que caracterizam a ocorrência

de desabastecimento temporário. Caso o pedido conte com parecer favorável do

GTAR, seu encaminhamento aos demais Estados Partes dependerá de prévia

aprovação do Comitê de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX).

Além de analisar os pedidos do setor privado brasileiro, cabe ao GTAR

pronunciar-se sobre os pleitos encaminhados pelos demais Estados Partes. Suas

análises levam em conta fundamentalmente a existência ou não de produção

nacional capaz de fazer face à situação de desabastecimento na região. Assim sendo,

antes de emitir juízo sobre os pedidos de um outro Estado Parte, o GTAR realiza

consultas às empresas nacionais do setor, a fim de que comuniquem a possibilidade

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ou não de atender à demanda. Caso um produtor nacional se declare capaz de ofertar

a mercadoria, em geral são estabelecidos contatos diretos entre as empresas

envolvidas.

É importante frisar que os pedidos de redução tarifária por desabastecimento

devem contar com a aprovação dos demais Estados Partes do Mercosul. Requerem,

por conseguinte, um importante exercício de negociação no âmbito da CCM, que

envolve a consulta aos setores privados (a fim de verificar se há ou não produção

nacional do bem) e uma avaliação da razoabilidade dos termos do pedido (prazo e

quantidades solicitadas).

Por possuírem o parque industrial mais diversificado, Brasil e Argentina são

os países que mais têm recorrido ao mecanismo de redução tarifária temporária. A

quase totalidade dos pleitos se referem a insumos e matérias-primas (tais como

produtos químicos e siderúrgicos) essenciais a determinadas cadeias produtivas.

Entre 2003 e 2008, por exemplo, a Argentina teve 21 pleitos aprovados, e o Brasil,

34. O ano em que mais pedidos foram aprovados foi 2008 (9 argentinos e 18

brasileiros). A última vez em que um pleito de um dos outros dois Estados Partes foi

aprovado foi 1999, quando foi aprovado um pedido uruguaio.

2.11) O processo de eliminação da dupla cobrança da TEC

Numa união aduaneira, a simples existência de um mesmo imposto de

importação implica, em tese, que um produto originário de um terceiro país, após

sofrer a incidência da TEC, poderá transitar entre os países do bloco sem ser objeto

de novo gravame tarifário.

Mesmo após 1995, no entanto, persistiu no Mercosul a possibilidade de cada

Estado Parte cobrar a TEC em sua fronteira, mesmo daqueles produtos que já

pagaram esse imposto em outro integrante do bloco. Essa “dupla cobrança”

contraria os princípios básicos de qualquer união aduaneira e constitui um obstáculo

adicional a uma integração mais profunda, quando menos pelas seguintes razões:

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85

a) trata-se de elemento nocivo para o relacionamento externo do Mercosul.

Isso porque outros países e agrupamentos podem contestar a possibilidade

de que suas mercadorias, mesmo pagando a TEC uma vez, sejam

obrigadas a fazê-lo novamente ao circularem de um país do bloco para

outro. Trata-se de um tema importante, por exemplo, nos debates sobre

um possível acordo comercial com a União Européia (que possui um

território aduaneiro único);

b) a dupla cobrança da TEC dificulta, igualmente, uma maior cooperação

entre as autoridades aduaneiras nacionais. Sua eliminação poderá, pelo

contrário, estimular a troca de informações e o estreitamento das relações

nesse setor;

c) a dupla cobrança é, igualmente, um empecilho para uma efetiva

integração produtiva entre os países da região. Isso porque a possibilidade

de pagar múltiplas vezes a TEC pode desestimular uma empresa a

desconcentrar sua cadeia produtiva, estendendo suas atividades a dois ou

mais Estados Partes.

Foi apenas em 2004 que os Estados Partes do bloco decidiram formalmente

eliminar essa distorção, por meio da aprovação da Decisão CMC n° 54/04. Segundo

essa norma, todos os bens que cumpram com chamada “política tarifária comum”

terão livre circulação no âmbito do Mercosul, não sendo obrigados a pagar a TEC

mais de uma vez. Mas no que consiste o cumprimento da política tarifária comum ?

Trata-se do pagamento da TEC ou da alíquota resultante da aplicação, por todos os

Estados Partes, da mesma preferência tarifária, ou, ainda, da aplicação de medidas

comuns de defesa comercial76.

Tomemos um exemplo concreto para ilustrar no que consistiria o

cumprimento da política tarifária comum. Suponhamos que determinada empresa

76 “Entende-se por cumprimento da política tarifária comum, o pagamento da TEC, por ocasião da importação definitiva ou, quando for o caso, da tarifa resultante da aplicação da mesma preferência tarifária sobre a TEC, por todos os Estados Partes do Mercosul, em função dos acordos comerciais assinados com terceiros países, ou das medidas comuns resultantes da aplicação de instrumentos de defesa comercial” (Artigo 1° da Decisão CMC N° 54/04).

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86

instalada no Brasil utilize o produto “verniz” em seu processo produtivo.

Suponhamos, ainda, que por alguma razão essa mesma empresa opte por trazer esse

produto do mercado externo. No entanto, o Governo brasileiro, no uso de um direito

que lhe é dado pelas normas comunitárias, optou por incluir a mercadoria “vernizes”

em sua lista nacional de exceções. Em vez de pagar a alíquota da TEC, que é de

14%, essa linha tarifária passou a sofrer a incidência de um imposto de importação

de apenas 2%. O produto em tela, pagando a alíquota de 2%, não terá cumprido a

política tarifária comum. Isso porque a alíquota brasileira, em razão da utilização da

lista de exceções, é diferente daquela aplicada pelos demais Estados Partes. Inexiste,

portanto, uma política tarifária comum efetiva com relação a esse produto específico.

Como conseqüência prática, a empresa que utilizar o verniz importado num

de seus produtos não poderá contabilizar esse insumo para efeitos do cumprimento

do regime de origem. Para todos efeitos, tratar-se-á de um insumo importado,

incapaz de contribuir para o atendimento das regras de origem do Mercosul.

No entanto, caso o produto não constasse da lista de exceções brasileira e a

empresa tivesse efetivamente recolhido a TEC, na alíquota de 14%, o item “verniz”

seria considerado originário. Essa é um das principais conseqüências do disposto na

Decisão CMC n° 54/04: os produtos que cumprirem com a política tarifária comum

(pagamento da TEC ou da preferência tarifária concedida pelos quatro Estados

Partes) passarão a ser considerados como se fossem produtos originários do bloco,

podendo transitar livremente na região.

A Decisão CMC n° 54/04 também determinou que o fim da dupla cobrança

deveria ocorrer em duas etapas. A primeira, cujo início se deu em janeiro de 2006 e

foi regulamentada pela Decisão CMC N° 37/05, contemplaria apenas dois grupos

específicos de bens: aqueles cuja alíquota na TEC é de 0% e aqueles que gozam de

uma preferência tarifária de 100%. Estamos diante, por conseguinte, de mercadorias

que não geram renda aduaneira. Na prática, os países do bloco nada arrecadam

com a importação desses produtos.

O objetivo dessa primeira etapa foi fundamentalmente o de estabelecer as

bases para uma maior troca de informações entre as autoridades aduaneiras

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87

nacionais. Desde 2006, cabe a elas outorgar apenas a esses dois grupos de bens os

certificados que atestam o chamado “cumprimento da política tarifária comum”.

Trata-se de operação simples, uma vez que, como vimos, não há imposto a ser

recolhido. A Decisão CMC N° 37/05 previu a criação de dois documentos

comprobatórios de que o produto pode circular sem que esteja sujeito à nova

incidência da TEC:

a) Certificado de Cumprimento da Política Tarifária Comum (CCPTC): esse

certificado atesta que houve o recolhimento do imposto devido (TEC;

alíquota resultante da concessão de preferência tarifária comum ou da

aplicação, pelos quatro Estados Partes, de medidas de defesa comercial);

b) Certificado de Cumprimento do Regime de Origem do Mercosul

(CCROM): esse certificado é concedido aos bens dos Estados Partes que

cumprem com o Regime de Origem do Mercosul.

Esses dois certificados já são emitidos para os produtos incluídos na primeira

fase da eliminação da dupla cobrança. As Aduanas nacionais podem consultar, por

meio do sistema informático INDIRA (“Intercâmbio de Informações de Registro

Aduaneiro”), a veracidade das informações neles contidas.

Em sua segunda etapa, a eliminação da dupla cobrança beneficiará todo o

universo tarifário. Por envolver produtos que pagam imposto, sua implementação

exige o atendimento de três requisitos fundamentais, que estão relacionados no

artigo 4° da Decisão CMC n° 54/04. O primeiro deles é de natureza operacional: a

interconexão informática entre as Aduanas nacionais. Trata-se de exigência

fundamentalmente técnica, relacionada ao fato de que cada país deverá ter

condições, quando um produto chegar à sua fronteira, de consultar se houve ou não

o cumprimento da política tarifária comum (isto é, o pagamento do imposto em

outro dos países do bloco), por meio da verificação das informações contidas nos

certificados pertinentes (CCPAC e CCROM). Nesse caso, o sistema INDIRA, por

meio do qual é possível realizar apenas consultas pontuais, deverá ser reformulado

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88

ou substituído por outro com capacidade de processar e analisar informações em

volume maior.

O segundo requisito diz respeito à elaboração de um Código Aduaneiro do

Mercosul, que contenha as regras fundamentais – ainda que na forma de um

“marco” legal geral – necessárias à uma maior harmonização da legislação de cada

um dos Estados Partes. Cabe registrar que o Código aprovado em 1994 pelos

Estados Partes não chegou a entrar em vigor, razão por que os Estados Partes

decidiram proceder à sua revisão, trabalho que vem sendo desenvolvido desde 2006.

O último dos requisitos é mais complexo, dada a sua sensibilidade política.

Trata-se do estabelecimento de um mecanismo de distribuição da renda

aduaneira. Esse mecanismo é imprescindível para a plena eliminação da dupla

cobrança da TEC. Uma vez eliminada a possibilidade de um Estado Parte cobrar o

imposto sempre que um produto chegar às suas fronteiras, haverá, em algum grau,

renúncia a recursos fiscais que antes podiam ser auferidos. Essa perda deverá ser

compensada de alguma forma, especialmente no que diz respeito ao Paraguai, país

sem litoral marítimo e no qual os ingressos decorrentes do pagamento da TEC têm

grande importância na arrecadação fiscal total.

Os debates relativos à implementação de um mecanismo de redistribuição da

renda aduaneira são particularmente complexos. Dentre as questões que devem ser

respondidas, três revestem-se de maior importância. A primeira delas diz respeito ao

montante que deverá ser objeto de redistribuição. Em princípio, apenas os recursos

arrecadados com os produtos que cumprem a política tarifária comum é que deverão

ser objeto de redistribuição. Mas há nuances que devem ser consideradas,

relacionadas especialmente à existência de exceções à TEC. A consideração dessas

nuances é fundamental para a definição do alcance da Decisão CMC N° 54/04, já

que, em situações específicas, torna-se difícil determinar o que é o cumprimento da

política tarifária comum. Um determinado produto – ou, para utilizarmos o jargão

técnico, um determinado item da NCM – pode, por exemplo, estar sujeito à cobrança

da TEC em determinadas situações e em outras não (em virtude, suponhamos, da

existência de um regime especial de importação). Nesse caso, será necessário

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89

estabelecer com precisão se há, nesse caso, cumprimento da política tarifária

comum.

A segunda questão diz respeito aos critérios de redistribuição. Quais

parâmetros serão utilizados para se definir a parcela a que cada Estado Parte teria

direito ? Deverá ser acordada uma fórmula matemática que contemple variáveis

como o Produto Interno Bruto de cada país e sua participação no comércio intra e

extrazona ? Por fim, deverá ser definido o formato da administração dos recursos

que serão redistribuídos, em especial se haverá a criação, na estrutura institucional

do Mercosul, de um organismo encarregado especificamente dessa tarefa.

Essas questões estão sendo debatidas no âmbito do bloco, em diferentes

instâncias, desde a aprovação da Decisão CMC n° 54/04. Embora essa Decisão

tenha previsto a eliminação da dupla cobrança para todo o universo tarifário a partir

de 2009, a falta de consenso sobre aspectos fundamentais para a sua

operacionalização fez com que esse prazo fosse postergado.

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90

CAPÍTULO 3 - O Regime de Origem do Mercosul

Além de uma nomenclatura comum, é fundamental que os países integrantes

de uma zona de livre comércio – e também, por razões que explicaremos a seguir, de

uma união aduaneira como o Mercosul – tenham as mesmas “regras de origem”.

Essas regras têm como objetivo estabelecer as condições em que um determinado

produto poderá ser considerado como sendo um produto “Mercosul”, fabricado

substancialmente com insumos e processos produtivos da região. Comprovado esse

caráter de bem “originário”, a mercadoria poderá circular sem pagamento de tarifas

no âmbito do bloco.

Tomemos um exemplo para ilustrar o caso do Mercosul. Quando um produto

fabricado no Uruguai preenche as condições estabelecidas nas regras de origem,

poderá ser vendido para a Argentina, Brasil ou Paraguai sem pagar o imposto de

importação – ele é considerado como se fosse um produto argentino, brasileiro ou

paraguaio.

As regras de origem, ao outorgarem o benefício da livre circulação apenas

aos bens que atendam a requisitos básicos, acabam por resguardar a indústria

regional, estimulando o comércio e a integração produtiva entre os próprios países

integrantes do agrupamento.

No entanto, é importante salientar que a existência de regras de origem se

deve apenas ao fato de que ainda persistem, no Mercosul, as chamadas “exceções”

ou “perfurações” à TEC. Essas perfurações permitem que alguns produtos ingressem

em um ou mais Estados Partes sem pagar a alíquota que para eles foi definida. Um

determinado país poderá, valendo-se dessas exceções, importar matérias-primas ou

componentes com custo reduzido, obtendo, assim, um diferencial de

competitividade em seu favor. Para evitar que os países limitem-se a importar

insumos de extrazona, sem submetê-los a transformação substancial, torna-se

imprescindível, assim, que se exija dos bens que circulam no âmbito do bloco a

comprovação de que uma parcela mínima de seus insumos foram aqui produzidos,

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91

ou, pelo menos, de que os insumos importados tenham passado por um processo de

transformação significativo.

Além disso, caso não fossem observadas as regras de origem, as perfurações à

TEC permitiriam que um produto adquirido fora da região, sem o pagamento da

correspondente TEC, pudesse ser reexportado do país que o importou para outros da

região (“triangulação”), em detrimento da indústria local.

O Regime de Origem do Mercosul é atualmente disciplinado pela Decisão

CMC n° 01/04. De acordo com o art. 3° dessa norma, serão considerados originários

os produtos totalmente obtidos, como os produtos do reino vegetal colhidos no

território dos países do bloco, os animais vivos aqui nascidos e criados, produtos

obtidos de animais vivos, mercadorias obtidas da caça, minerais, peixes e outras

espécies marinhas, mercadorias produzidas a bordo de barcos fábrica, etc. Além dos

produtos totalmente obtidos, serão considerados originários os produtos elaborados

integralmente no território de qualquer um dos Estados Partes, quando em sua

produção forem utilizados, única e exclusivamente, materiais (matéria-prima, peças,

partes, componentes) originários dos Estados Partes.

Nos dois casos indicados acima não há dúvida quanto ao caráter originário

dos bens fabricados, uma vez que não houve, em nenhum grau, a utilização de

materiais importados. Ou os produtos foram totalmente obtidos, ou foram fabricados

a partir de matérias-primas da própria região.

Já no caso dos produtos que não são “totalmente obtidos” na região, são duas

as regras principais utilizadas para classificar um produto como sendo originário ou

não. A primeira delas é o chamado índice de valor agregado regional. De acordo

com esse critério, uma mercadoria será considerada originária se utilizar pelo menos

60% de insumos (matérias-primas) de um ou mais Estados Partes do bloco. Como se

vê, o objetivo primordial dessa regra é o de estimular que as indústrias se abasteçam

sobretudo de insumos locais. Os 60% são calculados sobre o valor total do bem final

(valor FOB77).

77 “Free on board”: sem considerar o valor do frete.

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O segundo critério fundamental é a chamada mudança de posição tarifária

ou salto tarifário. Nesse caso, quando um insumo sofre um processo de

transformação que permita que ele “salte” de sua NCM original e passe a ser

classificado em outra posição tarifária, considerar-se-á cumprido o regime de

origem. Por se tratar de uma mudança de posição tarifária, basta que ele haja

mudança num dos quatro primeiros dígitos da NCM para que esteja caracterizado o

cumprimento do regime de origem. Em síntese, “o produto acabado deverá estar

classificado numa posição (quatro primeiros dígitos do Sistema Harmonizado de

Classificação e Designação de Mercadorias – SH) diferente da posição em que se

classificam todos os insumos, matérias-primas, partes ou peças não originários

utilizados em sua fabricação”78.

Além dessas duas regras ditas “gerais”, por se aplicarem à maior parte das

mercadorias, existem também regras específicas cujo foco são determinadas

categorias de produtos. Esse é o caso do processo produtivo. Para algumas

mercadorias – no caso do Mercosul, especialmente aquelas relacionadas à indústria

de tecnologia, como bens de informática e telecomunicações – exige-se a

observância de certos procedimentos na cadeia de produção, sem os quais o bem não

poderá ser considerado originário. O exemplo abaixo, extraído do capítulo 84 da

NCM (“Reatores Nucleares, Caldeiras, Máquinas, Aparelhos e Instrumentos

Mecânicos e suas partes”) ilustra esse requisito:

Exemplo: processo produtivo 8470.50.

11 REQUISITO: Cumprir com o processo produtivo abaixo: A. Montagem e soldagem de todos os componentes nas placas de circuito impresso; B. Montagem das partes elétricas e mecânicas, totalmente desagregadas, em nível básico de componentes; e C. Integração das placas de circuito impresso e das partes elétricas e mecânicas na formação do produto final de acordo com os itens “A” e “B” anteriores. Ficam dispensados da montagem os seguintes módulos ou subconjuntos:

78 “Manual de Certificação de Origem”. 2ª ed. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Brasília, 2003, p. 6.

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1) Mecanismos do item 8473.30.22 para impressoras das subposições 8471.49.3 e 8471.60.2; 2) Mecanismos do item 8517.90.91 para aparelhos de "fac-símile" dos itens 8517.21.10 e 8517.21.20; e 3) Banco de martelos dos subitens 8473.30.23 e 8473.50.31 para impressoras de linha dos itens 8471.49.21 e 8471.60.11. Será admitida a utilização de subconjuntos montados nos Estados Partes por terceiros, sempre que a produção dos mesmos atenda o estabelecida nos itens “A” e “B”. Não descaracteriza o comprimento do regime de origem definido, a inclusão em um mesmo corpo ou gabinete de unidades de discos magnéticos, ópticos e fonte de alimentação.

Assim sendo, para o produto da NCM 8470.50.11 – “caixas registradores

eletrônicas com capacidade de comunicação bidirecional com computadores ou

outras máquinas digitais” – requer-se a observância de um processo produtivo

específico. A utilização de outros procedimentos impedirá que a mercadoria seja

considerada originária.

Para outros produtos também se pode exigir uma combinação dos requisitos

já indicados, como um mínimo de 60% de valor agregado regional mais salto

tarifário.

Além dos critérios acima mencionados, vale lembrar que a partir de 2007

adotou-se no Mercosul o de minimis, também conhecido como “regra de tolerância”.

O de minimis aplica-se aos produtos que devem, para serem considerados

originários, cumprir com o requisito de salto tarifário. O de minimis permite que

uma parcela dos insumos utilizados não passe pelo processo de mudança tarifária.

No caso do Mercosul, o de minimis é autorizado desde que o valor CIF79 do(s)

insumo(s) que não sofreu o salto não corresponda a mais de 10% do valor FOB do

produto final, conforme estabelecido no artigo 1° da Decisão CMC N° 16/07: “(...)

considerar-se-á que um produto cumpre com o requisito de salto tarifário se o valor

CIF de todos os materiais não originários dos Estados Partes utilizados em sua

produção que não estejam classificados em uma posição tarifária diferente à do

produto não excede 10% do valor FOB do produto exportado”.

O “de minimis” foi estabelecido para beneficiar sobretudo Paraguai e

Uruguai, países que já contavam com certas flexibilidades no cumprimento do

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regime de origem comunitário. Essas flexibilidades, concedidas no contexto das

políticas de tratamento de assimetrias na região, permitem que essas duas economias

observem um índice de valor agregado regional inferior aos 60% da regra geral do

bloco (40% no caso do Paraguai, em virtude das Decisões CMC N° 29/03 e N°

16/07, e 50% no caso do Uruguai, em função da Decisão CMC N° 37/04)80.

79 “Cost, Insurance and Freight”: valor que inclui despesas de seguro e frete. 80 Cf. item 7.1.1., infra.

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95

CAPÍTULO 4 - A Comissão de Comércio do Mercosul

A CCM é o órgão encarregado de administrar a política tarifária e comercial

do Mercosul. Como assinalado anteriormente, o Tratado de Assunção não previu sua

criação, que veio a acontecer apenas com a assinatura do POP, em 1994. Sua

primeira reunião foi realizada em outubro de 1994, no Rio de Janeiro.

As competências da CCM estão dispostas, de forma ampla, no artigo 16 do

POP, segundo o qual caberá ao órgão “velar pela aplicação dos instrumentos de

política comercial comum acordados pelos Estados Partes para o funcionamento da

união aduaneira, bem como acompanhar e revisar os temas e matérias relacionados

com as políticas comerciais comuns, com o comércio intra-Mercosul e com terceiros

países”.

Já o artigo 19 do POP relaciona de maneira mais específica as atribuições da

CCM. Pretendemos apresentar essas atribuições por meio da análise das

competências dos órgãos técnicos subordinados à CCM. Dessa apresentação

poderemos depreender de maneira panorâmica a natureza dos temas que serão

discutidos nesse órgão decisório do Mercosul.

4.1) Os Comitês Técnicos

Os foros subordinados à CCM denominam-se “Comitês Técnicos” (CTs),

sendo responsáveis pelo tratamento de diferentes temas relacionados à gestão da

política comercial e tarifária do Mercosul. Dada a natureza das discussões ali

realizadas, participam de suas reuniões especialistas de cada um dos Estados Partes.

As decisões dos Comitês, na linha do que sucede com os órgãos decisórios do bloco,

são tomadas por consenso. Havendo dissensos, a questão deverá ser elevada, em

princípio, à apreciação da CCM.

Os CTs podem apresentar à CCM Projetos de Diretriz ou Projetos de

Resolução sobre os temas de sua competência.

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O Comitê Técnico n° 1 é responsável pelos temas de nomenclatura e tarifa.

Cabe a ele, portanto, deliberar sobre modificações na NCM e na TEC, tais como a

alterações nos códigos e descrição de produtos ou modificações nas alíquotas da

TEC. No caso de modificações de alíquotas da TEC, o CT-1 toma suas decisões

tendo como base, de maneira geral, critérios como a existência ou não de produção

regional, tal como visto no item relativo à administração da TEC. A atualização da

NCM à luz da evolução do Sistema Harmonizado é realizada, por exemplo, nesse

CT. A Coordenação Nacional do Brasil no CT-1 tem sido tradicionalmente exercida

por representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

O Comitê Técnico n° 2 é responsável pelo tratamento de assuntos

aduaneiros. Dedica-se, dentre outros temas, a harmonizar os procedimentos

aduaneiros entre os países do bloco, de modo a facilitar o trânsito de mercadorias e

evitar o surgimento de barreiras não-tarifárias ao comércio. Discute, nesse contexto,

a uniformização de normas relacionadas a valoração aduaneira, ilícitos aduaneiros,

bagagens e outros. Um dos temas mais recorrentes na pauta recente do CT-2 tem

sido a adoção de sistemas informáticos que permitam uma melhor comunicação

entre as Aduanas e, conseqüentemente, um maior controle sobre as mercadorias em

trânsito. Já está em funcionamento entre os Estados Partes, por exemplo, o sistema

INDIRA (“Intercâmbio de Informações de Registro Aduaneiro”), o qual permite que

as Aduanas nacionais compartilhem informações sobre operações de importação e

exportação e verifiquem se as informações prestadas por um importador se

coadunam com aquelas registradas pelo exportador do produto. A Coordenação

Nacional do Brasil no CT-2 compete à Secretaria da Receita Federal.

O Comitê Técnico n° 3 tem a incumbência de tratar de normas e disciplinas

comerciais. Em outras palavras, compete a esse órgão deliberar sobre temas

vinculados ao Regime de Origem do Mercosul. Eventuais modificações nas regras

de origem – que, como vimos no capítulo 3, têm o objetivo de determinar que

produtos poderão ser considerados “produtos Mercosul” e, por esse motivo, circular

sem pagamento de tarifa – são discutidas tecnicamente no âmbito desse CT. O

MDIC também tem se ocupado da coordenação nacional do Brasil no CT-3.

Page 97: Mercosul PDF

97

O Comitê Técnico n° 4 foi criado para estudar medidas para disciplinar as

políticas que distorcem a concorrência (tais como incentivos fiscais). Embora não se

reúna, por razões políticas, há diversos anos, não chegou a ser formalmente extinto

em função do interesse de alguns dos Estados Partes em manter o tema na agenda de

discussões do Mercosul.

O Comitê Técnico n° 5 trata dos assuntos relacionados à defesa da

concorrência. Como veremos em tópico à parte, o estabelecimento de normas

comuns de defesa da concorrência é fundamental para o bom funcionamento da

união aduaneira, uma vez que permitirá que práticas lesivas como a formação de

cartéis sejam combatidas em nível regional. A Secretaria de Direito Econômico do

Ministério da Justiça, o CADE e a Secretaria de Acompanhamento do Ministério da

Fazenda têm coordenado, no lado brasileiro, as negociações na esfera do CT-5.

O Comitê Técnico n° 6 é a instância responsável por estatísticas de comércio

exterior. Criado por intermédio da Decisão CMC n° 31/06, esse Comitê tem como

tarefa fundamental a criação de condições necessárias (sobretudo a elaboração de

metodologia para coleta de dados) para a elaboração de uma base de estatísticas de

comércio do Mercosul. Ao longo de 2007, o CT reuniu-se e elaborou proposta de

harmonização de unidades de medida empregadas nos registros de comércio exterior

e sugeriu a estrutura básica da Unidade Técnica de Estatísticas (UTECE) que deverá

funcionar no âmbito da Secretaria do Mercosul.

O Comitê Técnico n° 7 é o responsável pelo tratamento de temas de defesa

do consumidor no âmbito do bloco. Esse foro reúne-se desde 1995 e tem envidado

esforços para a harmonização das normas de proteção ao consumidor nos Estados

Partes. As diferenças entre as legislações dos Estados Partes dificultou, nos últimos

anos, que se lograsse maiores avanços nesse campo. Os projetos de elaboração de

um regulamento comum de defesa do consumidor, impulsionadas sobretudo em

meados dos anos 90, não evoluíram81 e deram lugar à proposta, ainda em debate, de

81 Em 1997, o CT-7 elaborou Projeto de Protocolo sobre defesa do consumidor e o elevou à CCM. A delegação brasileira nesse foro acabou resistindo à aprovação do documento, por entender que ele reduziria os níveis de proteção ao consumidor no país, ao revogar dispositivos presentes no Código de Defesa do Consumidor. Cf. Leopardi, Maria Tereza. “A integração pela harmonização regulatória: defesa da regulação da concorrência”. In: Chudnovsky, D. et Fanelli, J.M. (orgs.). El desafío de integrarse para crecer – Balance

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98

aprovação de “cláusula de harmonização normativa”, consoante a qual os Estados

Partes estariam livres para adotar normas mais rigorosas do que aquelas aprovadas

no âmbito do Mercosul (o que impediria, sobretudo do ponto de vista brasileiro,

retrocessos já obtidos nas legislações nacionais mais avançadas). Em 2000 foi

aprovada a “Declaração Presidencial dos Direitos Fundamentais dos Consumidores

do Mercosul”, que contém uma lista não exaustiva de direitos do consumidor que

devem ser observados pelos Estados Partes. Os trabalhos do CT-7 têm permitido

mais recentemente um maior intercâmbio e cooperação entre as autoridades

nacionais responsáveis pela defesa dos direitos do consumidor.

Além dos sete Comitê Técnicos acima indicados, também está subordinado à

CCM o Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas (CDCS). Esse órgão foi

criado pela Decisão CMC n° 17/96 e suas competências vieram a ser estabelecidas

pela Diretriz CCM n° 13/98, segundo a qual cabe ao CDCS “assistir a CCM em

matéria de política de defesa contra práticas desleais de comércio e salvaguardas em

relação a terceiros países”. O CDCS desenvolveu trabalhos com vistas à adoção

pelos Estados Partes de regulamentos comuns em matéria de defesa comercial. Dada

a sensibilidade política do tema, seus trabalhos, porém, encontraram dificuldades em

prosseguir a partir de 2005. A partir de 2006 os trabalhos desse foro foram

virtualmente paralisados.

Como se vê, o leque de temas tratados no âmbito da CCM é diversificado,

tendo como nota característica o exame de matérias relacionadas à política

comercial comum do bloco. Embora não haja dúvida de que o trabalho central desse

órgão decisório diga respeito à administração da TEC e do regime de origem do

Mercosul, também cabe à CCM deliberar sobre questões relacionadas a assuntos

aduaneiros, estatísticas de comércio exterior, política de concorrência, defesa

comercial e defesa do consumidor.

Uma simples consulta ao conjunto de normas emanadas da CCM – que, como

vimos, denominam-se “Diretrizes” – revela que a maior parte delas diz respeito à

regulamentação de Decisões ou Resoluções de conteúdo econômico-comercial.

y perspectivas del Mercosur en su primera década. Buenos Aires, RED de Investigaciones Económicas del MERCOSUR/BID/Siglo XXI Editores, 2001, p. 125.

Page 99: Mercosul PDF

99

Trata-se de um corolário do fato de que as alterações pontuais na NCM e nas

alíquotas da TEC são aprovadas por intermédio de Resoluções do GMC, e não de

Diretrizes. As Diretrizes podem versar, por outro lado, sobre “medidas excepcionais

no âmbito tarifário” - caso da reduções temporárias da TEC em virtude de

desabastecimento -, sobre a regulamentação de procedimentos aduaneiros ou sobre o

controle de origem das mercadorias que circulam no bloco.

Cabe registrar, finalmente, que, nos termos do artigo 19, IX, do POP, a CCM

tem autonomia para criar ou extinguir os órgãos a ela subordinados. Todavia, o CT

estabelecido mais recentemente – CT N° 6, em dezembro de 2006 – foi criado por

meio de Decisão do CMC82, uma vez que o teor da norma continha previsões que

extrapolavam as competências estritas da CCM, ao prever, conforme observamos

anteriormente, a criação de uma Unidade Técnica de Estatísticas de Comércio

Exterior (UTECE) no âmbito da Secretaria do Mercosul e extinguir um dos

Subgrupos de Trabalho do GMC (SGT n° 14).

4.2) O Mecanismo de Consultas

No âmbito da CCM os Estados Partes podem apresentar consultas

relacionadas a questões de ordem econômico-comercial. Trata-se de um mecanismo

não-judicial que objetiva dar encaminhamento a temas pontuais, estimulando uma

solução conciliatória entre as partes envolvidas. Sua criação remonta a 199583.

O mecanismo de consultas é regulamentado pela Diretriz CCM n° 17/99. O

Estado Parte interessado deve apresentar a consulta por escrito, indicando a medida

impugnada e expondo as questões e dúvidas que julgar pertinentes. Já o Estado Parte

reclamado deve apresentar sua resposta até a segunda reunião da CCM posterior à

apresentação da consulta ou no prazo máximo de 60 (sessenta) dias. A partir daí,

podem os Estados Partes seguir apresentando argumentos por meio de “Notas

Técnicas”. A discussão se estenderá até que o Estado Parte que apresentou a

consulta decida dar por concluído o processo de forma satisfatória ou insatisfatória.

82 Decisão CMC N° 31/06. 83 Já na II CCM, em fevereiro de 1995, foram apresentadas 9 consultas pelos Estados Partes.

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100

O art. 8° Diretriz CCM n° 17/99 prevê ainda que a consulta será considerada

concluída – uma espécie de “extinção” por decurso de prazo – caso, após sua

apresentação, permaneça na agenda da CCM, sem solução, por quatro reuniões

consecutivas, salvo se os Estados Partes envolvidos decidirem mantê-la na agenda à

espera de novos desdobramentos.

Mecanismo de consultas

Apresentação da consulta Em qualquer momento, inclusive durante

a própria reunião da CCM.

Resposta

Até a segunda reunião da CCM posterior

à apresentação da Consulta ou em até 60

(sessenta) dias, caso a segunda reunião

seja realizada após esse prazo.

Nota Técnica O processo de consulta pode prosseguir,

após a apresentação da resposta, por

meio do intercâmbio de Notas Técnicas.

Conclusão

Apenas o Estado Parte que apresentou a

consulta pode concluir o processo, de

forma satisfatória ou insatisfatória.

Como salientado anteriormente, o mecanismo de consultas é um instrumento

de conciliação de caráter não-judicial. Sua eventual utilização não impede, por

conseguinte, que uma das partes recorra posteriormente ao mecanismo de solução de

controvérsias (tratando-se de duas formas distintas de resolver pendências, a

apresentação de consultas não é um requisito prévio para o acionamento do sistema

de solução de controvérsias).

Os Estados Partes têm se valido com regularidade do mecanismo de consultas

para sanar eventuais pendências comerciais. O tabela a seguir indica o número de

consultas apresentadas anualmente, de 1995 a 2008:

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Consultas apresentadas no âmbito da CCM (1995-2008)

1995 61 2002 17

1996 84 2003 21

1997 71 2004 11

1998 27 2005 13

1999 39 2006 13

2000 54 2007 11

2001 36 2008 06

Fonte: Elaboração própria, com base nas atas da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM).

Como os números indicam, o período de maior utilização do sistema de

consultas ocorreu durante a fase de consolidação da união aduaneira, entre os anos

de 1995 e 1997. Esse fenômeno refletia, em parte, o desconhecimento recíproco das

respectivas legislações nacionais. A paulatina adaptação dos Estados Partes aos

procedimentos exigidos por cada país e a crescente harmonização normativa no

âmbito do Mercosul acabaram por colaborar para a redução da quantidade de

consultas apresentadas na CCM. No entanto, há outras interpretações possíveis para

esse fenômeno. Uma delas tem relação com a criação de instâncias alternativas para

a discussão de temas comerciais, como as Comissões de Monitoramento do

Comércio Bilateral (que não fazem parte da estrutura institucional do bloco).

4.3) O Procedimento Geral para Reclamações perante a Comissão de Comércio

do Mercosul

Além do mecanismo de consultas, também compete à CCM pronunciar-se

sobre reclamações apresentadas pelos Estados Partes ou por particulares. Esse

procedimento está previsto no anexo do POP e veio a ser regulamentado pela

Decisão CMC n° 18/02.

Cumpre assinalar, inicialmente, que a referência que o POP faz a particulares

não significa que o setor privado poderá ter acesso ao procedimento de reclamações.

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102

Na mesma linha do que acontece com o processo de consultas, eventuais problemas

enfrentados pelo setor privado deverão ser apresentados primeiramente à Seção

Nacional da CCM. Caberá a essa instância – integrada por diferentes órgãos da

administração federal – dar ou não prosseguimento à queixa. Caso as ponderações

sejam consideradas plausíveis, a reclamação será apresentada, sempre pelos canais

governamentais, aos demais Estados Partes.

Diferentemente do processo de consultas, em que as partes envolvidas

buscam um entendimento mútuo por meio da troca de informações, o procedimento

geral de reclamações previsto no POP prevê que o Estado Parte apresente sua

reclamação à CCM, que deverá deliberar sobre o tema. A CCM está autorizada a, se

julgar conveniente, encaminhar o tema à análise de um Comitê Técnico (CT)

constituído por peritos governamentais de todos os Estados Partes. Esse Comitê não

se confunde com aqueles que integram a estrutura da CCM.

Caberá ao Comitê Técnico encaminhar à CCM um parecer sobre a questão,

dentro do prazo de 30 (trinta) dias. Segundo o art. 7° da Decisão CMC n° 18/02, o

CT poderá, a pedido de um dos Estados Partes envolvidos no procedimento, ouvir os

representantes do setor privado que tenham interesse na reclamação. Caso não haja

consenso no âmbito do CT quanto à elaboração do parecer, serão encaminhados à

CCM os diferentes relatórios dos especialistas que participaram dos debates. A

CCM deverá pronunciar-se sobre reclamação na primeira reunião seguinte ao

recebimento do parecer ou do relatório dos especialistas.

Não havendo consenso no âmbito da CCM, o tema será elevado à

consideração do GMC, que terá 30 (trinta) dias para apresentar sua decisão.

Tanto a CCM quanto o GMC poderão, se julgarem procedente a reclamação,

determinar as “medidas corretivas” que deverão ser adotadas pelo Estado reclamado,

estabelecendo um prazo razoável para tanto. No caso de não haver consenso quanto

à procedência da reclamação ou na hipótese de o Estado reclamado não adotar as

medidas eventualmente acordadas, caberá ao Estado reclamante recorrer ao

mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul.

Page 103: Mercosul PDF

103

Como se vê, existem claras diferenças de procedimento entre o mecanismo de

consultas e o procedimento de reclamações. O quadro a seguir objetiva sintetizar,

comparativamente, os traços característicos principais desses dois instrumentos:

Consultas Reclamações

Os Estados Partes envolvidos deliberam

entre si

sobre a questão.

Cabe à Comissão de Comércio

reconhecer ou não a procedência da

reclamação.

Não há parecer técnico ou relatório de

especialistas.

Pode ser encomendado a um Comitês

Técnico a elaboração de parecer.

As discussões se esgotam no âmbito da

CCM.

O tema pode ser levado à consideração

do GMC, caso não haja consenso na

CCM.

O intercâmbio de informações entre os

envolvidos pode prosseguir ao longo de

meses, por meio do intercâmbio de Notas

Técnicas, caso haja concordância dos

Estados Partes em manter

o tema na agenda.

A CCM e/ou o GMC têm prazo definido

para decidir a questão.

Não são ouvidos particulares. Há a possibilidade, por solicitação de um

dos Estados Partes, de que o CT ouça os

particulares interessados.

Cumpre notar que, em ambos os procedimentos, o Estado Parte que apresenta

a consulta ou a reclamação mantém seu direito de recorrer ao sistema de solução de

controvérsias do Mercosul, caso entenda que a pendência não encontrou solução

satisfatória.

O procedimento geral de reclamações perante a CCM não tem sido utilizado

com freqüência no passado recente. Isso se deve, como podemos depreender das

Page 104: Mercosul PDF

104

diferenças anteriormente indicadas, de suas características intrínsecas: não se trata

de um recurso voltado precipuamente para a conciliação das partes, mas de um

sistema “quase-judicial”, em que um dos órgãos decisórios do Mercosul (CCM ou

GMC) deve buscar proferir uma decisão de consenso sobre a questão.

A maneira como foi configurado o procedimento de reclamações faz com que

esteja no meio do caminho entre os instrumentos precipuamente conciliatórios,

como as consultas, e o mecanismo judicial de solução de controvérsias. Por estar no

“meio do caminho”, não conta nem com a flexibilidade do primeiro (mais apto a

lidar com pendências pontuais, de menor impacto), nem com o formalismo e maior

grau de eficácia do segundo, capaz de ditar medidas de observância obrigatória

pelos Estados Partes. Constitui, na verdade, “uma segunda via para a arbitragem, de

tramitação mais lenta, pois prevê uma pré-avaliação do contencioso realizada por

peritos governamentais em representação dos quatro sócios, e não apenas das

partes”84.

A última vez em que um Estado lançou mão do procedimento de reclamações

remonta a 200285. Até esse ano, 15 (quinze) reclamações haviam sido apresentadas,

das quais oito pela Argentina, três pelo Brasil, uma pelo Paraguai e três pelo

Uruguai. Dessas, 10 (dez) já haviam sido objeto de consultas no âmbito da CCM e

três foram levadas à fase arbitral do sistema de soluções de controvérsias86. A

existência do mecanismo de consultas no âmbito da CCM, sem prazos rígidos e sem

a intervenção do GMC, é uma possível explicação para o baixo recurso a esse

instrumento.

4.4) O Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul

84 Chagas, Liliam. “A consolidação da Arbitragem no Mercosul: o Sistema de Solução de Controvérsias após oito laudos arbitrais”. In: Solução de Controvérsias no Mercosul. Brasília, Câmara dos Deputados, 2003, p. 91. 85 Em 2002, o GMC examinou reclamação do Uruguai contra o Brasil sobre “Medidas restritivas ao acesso a mercado no setor de cigarros”. Não houve, naquela ocasião, acordo entre as partes. O mesmo aconteceu em 2000, quando o GMC apreciou as reclamações sobre “Adequação do Setor Açucareiro à União Aduaneira do MERCOSUL” (apresentada pelo Brasil à Argentina) e sobre “Direitos de Importação Específicos Mínimos no comércio intrazona” (apresentada pelo Brasil ao Paraguai). 86 Chagas, Liliam, op. cit., p. 90.

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105

As divergências entre os Estados Partes no campo econômico-comercial

podem desaguar no acionamento do sistema de solução de controvérsias do

Mercosul. Para isso não é necessário que sejam observados passos prévios, tais

como a apresentação de consultas ou utilização do procedimentos de reclamações no

âmbito da CCM. Cabe apenas à parte interessada, portanto, o juízo sobre a

conveniência de abrir mão da utilização dos mecanismos extrajudiciais para solução

da pendência.

Essa possibilidade de se passar diretamente à fase arbitral, sem que seja

indispensável a observância de passos prévios, confere aos Estados Partes do

Mercosul maior flexibilidade para dirimir suas divergências, oferecendo-lhes duas

opções distintas: a político-diplomática, que pode ser levada a cabo nas instâncias

decisórias do bloco (CCM e GMC), e a judicial, a ser levada adiante por meio do

sistema comunitário de solução de controvérsias.

O sistema de solução de controvérsias hoje existente no Mercosul foi

estabelecido pelo Protocolo de Olivos, aprovado em 2002 e em vigor desde 2004.

Essa norma veio a substituir o Protocolo de Brasília, assinado pelos Estados Partes

ainda na fase inicial de constituição do Mercosul, em 1991. O texto de Olivos não

chega, porém, a trazer alterações fundamentais na sistemática adotada pelo

Protocolo de Brasília, preservando algumas de suas características basilares, tais

como as etapas procedimentais (negociações diretas, mediação e, por fim,

arbitragem) e o fato de a apresentação de demandas por particulares ainda depender

de aprovação prévia por parte dos governos nacionais87. Sua principal inovação é a

criação do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (TPR), que funciona como

uma instância recursal, com poderes para reexaminar as decisões proferida pelos

Tribunais Arbitrais “Ad Hoc”. Além disso, o Protocolo de Olivos abriu a

possibilidade de que os tribunais nacionais apresentem ao TPR “opiniões

consultivas” sobre temas relacionados ao acervo normativo do Mercosul88.

87 Barral, Welber. “As inovações processuais do Protocolo de Olivos”. In: Solução de Controvérsias no Mercosul. Brasília, Câmara dos Deputados, 2003, p. 233. 88 A apresentação de opiniões consultivas veio a ser regulamentada pela Decisão CMC n° 02/07. Segundo essa norma, os tribunais nacionais podem apresentar ao TPR consultas sobre a interpretação jurídica do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro Preto, dos protocolos e acordos celebrados no âmbito do Tratado

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106

A despeito das inovações propiciadas pelo Protocolo de Olivos, o sistema por

ele estabelecido, assim como já acontecera com o Protocolo de Brasília, possui

caráter provisório. Seu artigo 53 estabelece que antes de “culminar o processo de

convergência da tarifa externa comum” os Estados Partes deverão negociar o

estabelecimento de um sistema permanente de solução de controvérsias. É difícil

antecipar, hoje, o formato que assumiria um sistema permanente, em substituição

aos tribunais “ad hoc” atualmente estabelecidos para se pronunciar acerca das

controvérsias apresentadas pelos Estados Partes. Trata-se de debate que remonta aos

primórdios do Mercosul, antagonizando os que defendem uma posição mais

“institucionalista”, com a eventual criação de tribunais supranacionais, e os que

propugnam pela manutenção do “pragmatismo” atual, de acordo com os quais uma

estrutura judicial permanente poderia afetar a flexibilidade hoje existente para a

solução de litígios entre os Estados Partes89.

Procedimentos

De acordo com o Protocolo de Olivos, uma vez iniciada a controvérsia por

solicitação de um dos Estados Partes, têm início negociações diretas entre os países

envolvidos. Essas negociações devem ser realizadas ao longo de 15 (quinze) dias,

podendo ser estendidas indefinidamente por decisão das partes. Não havendo êxito

nas negociações diretas, qualquer das partes poderá apresentar, opcionalmente,

recurso ao GMC, que convocará especialistas para examinar o diferendo e

apresentar suas conclusões. A intervenção opcional ao GMC consubstancia, na

verdade, um processo de mediação, último esforço para evitar que se passe à fase de

arbitragem. Não havendo consenso acerca do parecer apresentado no âmbito do

GMC, poder-se-á dar início à fase propriamente arbitral da controvérsia, com a

constituição de um Tribunal “Ad Hoc”.

de Assunção, das Decisões do CMC, das Resoluções do GMC e das Diretrizes da CCM. As opiniões devem ter como base um caso em apreciação no Poder Judiciário nacional. 89 Para uma análise dos diferentes argumentos, cf. Barral, Welber, op. cit, pp. 236-237.

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107

O laudo proferido pelo Tribunal Arbitral estará sujeito à apresentação de dois

tipos de recursos: recurso de esclarecimento, caso uma das partes tenha dúvidas

sobre a decisão ou entenda que esta padece de alguma obscuridade ou omissão, e

recurso de revisão, por meio do qual se solicita o reexame do laudo por uma

instância superior (TPR). O recurso de revisão deve ser apresentado ao TPR em até

15 (quinze) dias após o recebimento da notificação do laudo do Tribunal “Ad Hoc” .

Na hipótese de não ser apresentado recurso de revisão, a parte perdedora deverá

anunciar, em até 15 dias após a notificação, as medidas que adotará para cumprir

com as determinações. Caso a parte beneficiada entenda que as medidas adotadas

pela parte perdedora são insuficientes, poderá manifestar-se em até 30 (trinta) dias

(prazo contado a partir da adoção das medidas), cabendo ao Tribunal Arbitral

pronunciar-se a respeito. Por fim, se a parte perdedora não cumprir total ou

parcialmente o laudo, a outra parte na controvérsia poderá, dentro do prazo de 1

(um) ano, aplicar “medidas compensatórias”, suspendendo concessões ou outras

obrigações equivalentes, de preferência no mesmo setor ou setores afetados.

Solução de Controvérsias – Procedimentos

Reclamações de particulares

Negociações Diretas

Tribunal Arbitral “Ad Hoc”

Intervenção do GMC (opcional)

Tribunal Permanente de Revisão

Parecer do grupo de especialistas

Recurso de revisão

Recurso de esclarecimento

Cumprimento do laudo ou divergência sobre o cumprimento do laudo

Aplicação de medidas compensatórias

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108

O Protocolo de Olivos manteve uma das inovações do Protocolo de Brasília:

a existência de procedimento específico para a apresentação de reclamações de

particulares, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Essas reclamações devem ter

como base medidas legais ou administrativas que violem o Tratado de Assunção, o

Protocolo de Ouro Preto e demais normas do Mercosul.

A possibilidade de que particulares contestem medidas que afetem os

objetivos previstos nas normas do Mercosul é vista como um instrumento a mais

para assegurar a liberalização do comércio. Há até mesmo acordos comerciais, como

o NAFTA, que outorgam aos particulares a possibilidade de apresentar reclamações

diretas90, sem a necessidade de que sejam submetidas ao crivo prévio dos governos

nacionais, como ocorre, como veremos abaixo, no Mercosul.

A reclamação apresentada por um particular que se julgar afetado por tais

medidas deverão ser inicialmente apresentadas à Seção Nacional do GMC do Estado

Parte em que tem residência. Caberá à Seção Nacional avaliar os argumentos

apresentados e verificar a existência ou não de eventual prejuízo. Constatando-se a

pertinência dos argumentos apresentados, deverão ter início consultas entre os

Estados Partes envolvidos. Não havendo consenso, o tema será levado à

consideração do GMC, que poderá, caso admita a reclamação, convocar um grupo

de especialistas, composto por 3 (três) membros (dos quais 1 não poderá ser

nacional dos Estados Partes envolvidos), para emitir um parecer no prazo de 30

(trinta) dias. Os especialistas serão escolhidos a partir de listas indicadas por cada

Estado Parte.

O grupo de especialistas deverá pronunciar-se, por meio de parecer

fundamentado, sobre a procedência da reclamação. O Estado Parte afetado poderá,

então, solicitar medidas corretivas à outra parte. Caso os especialistas considerem

improcedente a reclamação ou caso não haja unanimidade a respeito, o GMC a dará

por concluída em seu âmbito. Em qualquer das duas hipóteses (procedência ou

improcedência da reclamação), poderá o Estado Parte interessado dar início a uma

90 Barral, Welber, op. cit., pp. 237-238.

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109

controvérsia propriamente dita, com o início de negociações diretas e eventual

constituição de um Tribunal Arbitral “Ad Hoc”.

Laudos arbitrais

Durante a vigência do Protocolo de Brasília foram 22 (vinte e duas) as

controvérsias iniciadas pelos Estados Partes. Dessas, três foram originadas em

reclamações de particulares, todas apresentadas pelo Uruguai. Alguns dados

ilustrarão melhor a evolução do sistema sob a égide do Protocolo de Brasília91:

• 10 (dez) controvérsias resultaram na emissão de laudos por parte de Tribunais

“Ad Hoc”. As demais foram concluídas após intervenção do GMC, durante as

negociações diretas ou chegaram à fase arbitral, mas o Tribunal “Ad Hoc” não

foi constituído, porquanto os Estados Partes não indicaram os árbitros.

• A Argentina foi o país que mais acionou o sistema, tendo dado início a 10

controvérsias, seguida pelo Uruguai (6), Brasil (4) e Paraguai (2). Nem todas

essas controvérsias chegaram à fase arbitral.

• O Brasil foi o país mais demandado (10 controvérsias), seguido pela

Argentina (6), Uruguai (4) e Paraguai (2).

Todas as controvérsias iniciadas ao amparo do Protocolo de Brasília versaram

sobre temas de natureza econômico-comercial, sobretudo medidas de restrição ao

comércio. A primeira delas foi apresentada em 1998 e a última em 200492, ano em

que entrou em vigência o Protocolo de Olivos:

Laudos emitidos durante a vigência do Protocolo de Brasília (1993 a 2004)

Objeto da controvérsia Partes Período

1) Licenciamento de Argentina x Brasil Novembro de 1998 a Abril

91 Para dados até 2002, cf. Chagas, Liliam, op. cit., p. 92. 92 Os oito primeiros laudos emitidos por Tribunais “Ad Hoc” durante a vigência do Protocolo de Brasília podem ser consultados em Valinotti, Inés Martínez. Laudos arbitrales de los Tribunales Ad Hoc del Mercosur. Asunción, MRE/BID, 2003.

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110

Importações: Comunicado

DECEX 37/97 e 7/98

de 1999

2) Subsídios à produção e

exportação de carne de porco

Argentina x Brasil Julho de 1998 a Setembro de

1999

3) Salvaguardas a produtos

têxteis

Brasil x Argentina Outubro de 1999 a março de

2000

4) Imposição de direitos

antidumping contra

importações de frangos

inteiros do Brasil

Brasil x Argentina Janeiro a Maio de 2001

5) Restrições às importações

de bicicletas uruguaias

Uruguai x Argentina Maio a Setembro de 2001

6) Obstáculos ao ingresso de

produtos fitossanitários no

mercado brasileiro

Argentina x Brasil Novembro de 2001 a Abril

de 2002

7) Proibição de importação

de pneus remoldados

Uruguai x Brasil Agosto de 2001 a Janeiro de

2002

8) Aplicação do Imposto

Específico Interno (IMESI) à

comercialização de cigarros

Paraguai x Uruguai Novembro de 2001 a Maio

de 2002

9) Incentivos uruguaios à

industrialização de lã

Argentina x Uruguai Abril de 2002 a Abril de

2003

10) Medidas restritivas e

discriminatórias ao comércio

de tabaco e produtos

derivados do tabaco

Uruguai x Brasil Dezembro de 2004 a Agosto

de 2005

Durante a vigência do Protocolo de Olivos, foram emitidos, de 2004 a 2008,

dois laudos arbitrais por Tribunais “Ad Hoc” e um laudo por parte do Tribunal

Permanente de Revisão:

Laudos emitidos durante a vigência do Protocolo de Olivos (2004 a 2008)

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111

Objeto da controvérsia Partes Período

1) Proibição de importação

de pneus remoldados

(descumprimento do laudo

arbitral VII)

Uruguai x Argentina Julho a outubro de 2005

2) Omissão da Argentina em adotar medidas para prevenir e/ou fazer parar os impedimentos impostos à livre circulação pelas barreiras em território argentino de vias de acesso às pontes internacionais que unem a Argentina com o Uruguai

Uruguai x Argentina Junho a Setembro de 2006

Laudo emitido pelo Tribunal Permanente de Revisão (2004 a 2008)

Objeto da controvérsia Partes Período

1) Solicitação de pronunciamento sobre excesso na aplicação de medidas compensatórias - controvérsia entre Uruguai e Argentina sobre proibição de importação de pneus remoldados procedentes do Uruguai.

Argentina x Uruguai Julho a outubro de 2005

Os laudos dos diferentes Tribunais “Ad Hoc” contribuíram para o fenômeno

da “construção jurídica” do Mercosul, enunciando uma “série de princípios e

interpretações relativos aos compromissos assumidos pelos Estados Partes no

âmbito do processo de integração”93. Essa gama de interpretações desempenhou

importante papel na consolidação de um espaço econômico comum. Analisando o

alcance do princípio do livre comércio estabelecido no Tratado de Assunção, por

93 Cozendey, C.M. e Benjamin, D.A. Laudos arbitrais no marco do Protocolo de Brasília: a construção jurídica do processo de integração. In: Solução de Controvérsias no Mercosul. Brasília, Câmara dos Deputados, 2003, p. 37.

Page 112: Mercosul PDF

112

exemplo, diferentes laudos arbitrais destacaram a proibição de se impor restrições às

trocas comerciais, seja no plano tarifário, seja no campo de barreiras não-tarifárias.

Da mesma forma, os laudos contribuíram para uma melhor definição, à luz dos

compromissos assumidos pelos Estados Partes, sobre temas como subsídios, defesa

comercial, licenciamentos automáticos e não-automáticos, regime de origem e

princípio do tratamento nacional94.

O sistema de solução de controvérsias do Mercosul tem sido, por outro lado,

pouco acionado pelos Estados Partes, o que indica sua preferência pela resolução

dos atritos pelos canais políticos. Tendo sido emitidos 12 (doze) laudos “ad hoc” e 1

(um) laudo pelo TPR desde a entrada em vigor do Protocolo de Brasília, em 1993,

resta claro que há uma opção em se privilegiar mecanismos não-judiciais. Como já

dissemos, além do mecanismo de consultas em funcionamento do âmbito da CCM,

foram criadas, nos anos recentes, Comissões de Monitoramento do Comércio

Bilateral entre os diferentes Estados Partes (alheias à estrutura institucional do

Mercosul), as quais constituem mais uma esfera para a discussão de problemas que

afetam o intercâmbio comercial intrabloco.

94 Para uma análise da orientação estabelecida pelos laudos para cada um desses temas, cf. Cozendey, C.M e Benjamin, D.A., op. cit., pp.38-48.

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113

CAPÍTULO 5 – DEFESA COMERCIAL E DA CONCORRÊNCIA

5.1) Defesa Comercial Extrazona

As medidas de defesa comercial têm como objetivo primordial coibir práticas

desleais de comércio. Numa união aduaneira é fundamental que haja uma

coordenação dos Estados Partes com relação à matéria, de modo a evitar eventuais

distorções na circulação de mercadorias no mercado ampliado95. O artigo 4° Tratado

de Assunção estabeleceu as diretrizes fundamentais para o tratamento da questão no

âmbito do MERCOSUL, ao dispor que “nas relações com terceiros países, os

Estados Partes assegurarão condições equivalentes de comércio”. Para isso,

deveriam, inicialmente, aplicar medidas de defesa comercial com base em suas

próprias legislações. Paralelamente, deveriam elaborar normas comuns sobre a

matéria.

São três as principais medidas de defesa comercial: direitos antidumping,

medidas compensatórias e salvaguardas. Os direitos antidumping incidem sobre

produtos cujo preço de exportação é inferior àquele praticado no mercado doméstico

do próprio país exportador (preços artificialmente baixos). Essa é a definição dada

no artigo 2° do Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GATT 199496. As

investigações devem comprovar a ocorrência de dano à indústria nacional. Já os

direitos compensatórios têm por objeto mercadorias produzidas com o auxílio

estatal, por meio, por exemplo, da concessão de subsídios97. Por fim, as

salvaguardas são medidas adotadas com o objetivo de conter um súbito crescimento

das importações capaz de provocar prejuízos aos produtores domésticos. São

95 A principal distorção consistiria na possibilidade de um produto que é objeto de medida de defesa comercial em apenas um dos Estados Partes ingressar nesse mesmo país por intermédio de um dos sócios (“triangulação”), uma vez que produtos provenientes de um outro Estado Parte não podem, ao menos numa união aduaneira perfeita (sem exceções), estar sujeitos a medidas de defesa comercial. 96 “Agreement on Implementation of Article VI of the General Agreement on Tariffs and Trade 1994”. In: The Results of the Uruguay Round of Multilateral Trade Negotiations – The Legal Texts. Geneve, WTO, 1995, p. 168.

Page 114: Mercosul PDF

114

consideradas medidas excepcionais, temporárias e decrescentes ao longo do tempo,

tendo como objetivo permitir que a indústria nacional se ajuste às novas condições

de competição98.

No caso de uma união aduaneira, é fundamental que haja uma harmonização

normativa entre os Estados Partes e a criação de uma instância capaz de decidir

acerca da aplicação ou não dessas medidas, uma vez que a imposição de uma

medida de defesa comercial constitui, na prática, uma “perfuração” da TEC99.

O objetivo de elaborar uma política de defesa comercial comum frente a

terceiros mercados não foi atingido até o momento, a despeito dos trabalhos

desenvolvidos sobretudo na fase de criação e consolidação do Mercosul. Esperava-

se que uma vez superada a “fase de transição”, que ia da assinatura do Tratado de

Assunção até a constituição da união aduaneira, em 1995, os Estados Partes

pudessem aplicar medidas de defesa comercial de forma conjunta. No entanto, as

dificuldades encontradas para o estabelecimento de normas e instituições comuns

acabaram fazendo com que, ainda hoje, o tema seja tratado de maneira individual

por cada um dos países do bloco.

Salvaguardas

Em meados dos anos 90 foram realizados os movimentos mais significativos

em matéria de defesa comercial. Em 1996, foi aprovado o “Regulamento relativo à

Aplicação de Medidas de Salvaguarda às Importações Provenientes de Países Não-

Membros do Mercosul” (Decisão CMC n° 17/96). Esse regulamento previa a adoção

de medidas de salvaguarda pelo bloco (e não individualmente pelos Estados Partes),

desde que caracterizado prejuízo ou ameaça de prejuízo à “produção doméstica do

Mercosul ou de um de seus Estados Partes”, entendida como o “conjunto dos

97 De acordo com o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC, são considerados subsídios tanto a contribuição financeira dada por um governo ou entidade pública quanto a existência de políticas de sustentação de preços ou de renda. 98 Naidin, L.C. e Bertoni, R. (orgs.). Defesa Comercial e Medidas de Salvaguarda no Mercosul – Uma avaliação Institucional. Montevidéu, Red Mercosur, 2007, p. 7. 99 Ao acarretar um acréscimo da tarifa incidente sobre determinado produto, uma medida de defesa comercial acaba por representar um “desvio” da TEC acordada entre os Estados Partes.

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115

produtores de produtos similares ou diretamente concorrentes que operem no

Mercosul ou em um de seus Estados Partes, ou aqueles cuja produção conjunta de

produtos similares ou diretamente concorrentes constitua uma proporção importante

da produção total de tais produtos no Mercosul ou em um de seus Estados Partes”.

Uma das inovações do Regulamento Comum para a aplicação de medidas de

Salvaguardas foi a criação do “Comitê de Defesa Comercial e Salvaguardas”

(CDCS) do bloco, instituição a quem competiria conduzir as investigações para

confirmar a ocorrência de um súbito aumento das importações e o conseqüente

prejuízo aos produtores do bloco. O CDCS não possui, todavia, poderes de decisão.

Suas competências são de natureza eminentemente técnica, competindo a ele

submeter os pareceres sobre as investigações à CCM. Caberia à CCM, por sua vez,

decidir pela abertura e encerramento das investigações e pela adoção ou não das

medidas cabíveis.

Havendo consenso, no âmbito da CCM, com relação à necessidade de se

aplicar uma medida de salvaguarda (consistente numa alíquota ad valorem, numa

alíquota específica ou uma combinação de ambas), deverá ser aprovada Diretriz

nesse sentido, a ser incorporada ao ordenamento jurídico dos Estados Partes.

A norma previu, ainda, um período de transição, que iria até 31 de dezembro

1998, no qual os Estados Partes poderiam aplicar medidas de salvaguardas de

maneira individual, com a observância da legislação nacional.

O Regulamento Comum para a Aplicação de Medidas de Salvaguarda nunca

chegou a entrar em vigor, por não haver sido incorporado ao ordenamento jurídico

da Argentina100.

Antidumping e Medidas Compensatórias

Em 1997 houve novo esforço dos Estados Partes no sentido de se aprovar um

regulamento comum, desta vez relativo à aplicação de medidas antidumping.

Diversamente do que ocorreu com as medidas de salvaguarda, porém, não houve

100 No Brasil o regulamento comum foi incorporado por meio do Decreto n° 2.667/98.

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116

consenso a respeito de sua aprovação como um “regulamento”, notadamente em

razão de indefinições sobre a criação ou não de órgão comunitário para aplicação de

medidas. Acabou-se por aprovar, dessa forma, apenas um “Marco Normativo”

(Decisão CMC n° 11/97). Caberia aos Estados Partes continuar aplicando as

medidas antidumping de acordo com suas legislações nacionais. Além disso, essas

mesmas legislações deveriam, se necessário, passar pelos ajustes necessários para

estar em harmonia com o Marco Normativo.

As dificuldades para a elaboração de um regulamento comum naquele

momento se deviam essencialmente às diferentes experiências dos Estados Partes

em matéria de defesa comercial. Se de um lado Argentina e Brasil já contavam com

órgãos e legislação para tratar da matéria, o mesmo não acontecia com Paraguai e

Uruguai. Daí a decisão de se elaborar, numa primeira etapa, apenas um marco

normativo que consagrasse o entendimento comum dos países do bloco sobre

questões envolvendo antidumping e subsídios101.

O marco normativo para a aplicação de medidas antidumping estabelece

regras comuns sobre o tema, adotando, assim como o regulamento sobre

salvaguardas, o conceito de “indústria doméstica do Mercosul” (“conjunto de

produtores regionais de produtos similares, ou aqueles dentre eles cuja produção

constitua uma proporção importante da produção total de referidos produtos no

Mercosul”). Uma vez caracterizado o dumping e a existência de dano aos produtores

da região, caberia aos Estados Partes aplicar as medidas cabíveis, na forma de

direitos ad valorem, específicos ou numa combinação de ambos.

Se o regulamento sobre salvaguardas foi mais claro ao estabelecer os

contornos institucionais necessários para sua aplicação - criando o CDCS e

atribuindo à CCM o poder de decisão para a aplicação de medidas -, o marco

normativo sobre medidas antidumping deixou um grande vazio. Seu texto alude,

genericamente, à existência de uma “instância técnica”, à qual competiria conduzir

as investigações, e à uma “instância política”, à qual caberia decidir sobre a

101 Naidin, L. C. et alii. “Defesa comercial e medidas de salvaguarda no Mercosul: uma avaliação institucional”. In: Kume, Honório (org.). Crecimiento económico, instituciones, política comercial y defensa de la competencia en el Mercosur. Montevideo, Red Mercosur, 2008, p. 311.

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117

aplicação ou não das medidas. Não há, porém, qualquer indicação dos órgãos que

desempenhariam tais funções. Caberia à CCM negociar o preenchimento dessa

lacuna posteriormente, por meio da elaboração de um regulamento comum com base

no marco normativo.

Em 2000 foi aprovado marco normativo similar para medidas compensatórias

(Decisão CMC n° 29/00), também sem nenhum tipo de definição acerca dos

aspectos institucionais necessários. Nesse mesmo ano, no contexto do

“relançamento do Mercosul”, os Estados Partes reiteraram o compromisso de

elaborar regulamentos comuns sobre antidumping e medidas compensatórias. O

tema voltou a ser debatido, sem maiores resultados, no âmbito do CDCS, persistindo

as divergências sobre diferentes aspectos técnicos (relacionados, em sua maioria, a

prazos e procedimentos), não havendo, tampouco, qualquer definição no tocante a

aspectos de ordem institucional. Em junho de 2006, o CDCS considerou seus

trabalhos concluídos e decidiu elevar as questões pendentes à consideração dos

órgãos decisórios do Mercosul. De 2006 até o presente não se verificou nenhum

avanço nas discussões sobre a matéria.

Como se pode verificar do exposto, um dos principais óbices para que as

negociações relativas aos regulamentos comuns em matéria de defesa comercial

dêem resultado são as divergências em torno de questões institucionais. A efetiva

implementação dos regulamentos dependeria de uma série de decisões conjuntas,

desde a abertura de investigações até a tomada de decisões sobre os casos em

exame. Torna-se difícil, assim, concluir as negociações se há divergências sobre

quais seriam as competências das autoridades nacionais e sobre até onde poderiam ir

os órgãos comunitários. Da mesma forma, a necessidade de haja consenso dos

quatro países para a aplicação de medidas poderá, em alguns casos, inviabilizar a

implementação das normas do bloco. A definição de aspectos institucionais

relevantes do Mercosul – especialmente se haverá, em algum momento, a evolução

do sistema intergovernamental para uma estrutura com elementos, ainda que

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118

atenuados, de supranacionalidade – é questão importante para a futura definição das

políticas comuns em matéria de defesa comercial102.

5.2) Defesa Comercial Intrazona

Em projetos de integração profunda, a possibilidade de aplicação de

instrumentos de defesa comercial entre os Estados Partes é tema controverso. No

caso específico do Mercosul, tem-se buscado, desde a assinatura do Tratado de

Assunção, eliminar essa prática no comércio intrazona, por atentar contra o princípio

basilar da união aduaneira: o desmantelamento de barreiras ao comércio. Nesse

quadro, eventuais práticas desleais de comércio deveriam ser combatidas não por

meio da aplicação unilateral de medidas antidumping, compensatórias ou de

salvaguardas, mas sim por intermédio da adoção de políticas comuns que

disciplinem o ambiente concorrencial na região (substituição de medidas de defesa

comercial por medidas de defesa da concorrência).

Desse modo, e tratando da questão de um ponto de vista teórico, a expectativa

é que numa união aduaneira sejam observados, na relação comercial entre os

Estados Partes, os seguintes passos103:

(a) substituição dos instrumentos antidumping por uma política de defesa

concorrência capaz de assegurar uma competição justa entre as empresas

da região;

(b) eliminação da aplicação de medidas compensatórias por meio de um

efetivo disciplinamento das chamadas “ajudas de Estado” (como

incentivos fiscais);

(c) adoção de políticas de reconversão estrutural capazes de tornar mais

competitivos determinados setores econômicos sensíveis, o que permitiria

eliminar a aplicação de medidas de salvaguarda.

102 Cf. Andrade, Luciano Mazza, op. cit., pp. 138-142. 103 Naidin, L.C. e Bertoni, R. (orgs.), op. cit., p. 11.

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119

O Mercosul ainda não logrou atingir os objetivos indicados. A aplicação de

instrumentos de defesa comercial no comércio intrazona continua sendo uma das

principais imperfeições da união aduaneira. Embora formalmente não sejam

aplicadas salvaguardas104 - substituídas, na prática, por restrições voluntárias ao

comércio105, especialmente entre Argentina e Brasil -, os Estados Partes ainda

lançam mão de investigações antidumping, o que em alguns casos pode conduzir a

controvérsias no âmbito da OMC, como a que envolveu os dois maiores países do

bloco, em 2007, em virtude da aplicação, pelo Brasil, de medidas de defesa

comercial contra as importações de certas resinas PET da Argentina106.

Antidumping e Medidas Compensatórias

Não há menção explícita no Tratado de Assunção à eliminação do

antidumping e de medidas compensatórias intrazona. Não obstante, como já

sublinhamos, depreende-se que numa união aduaneira esse instrumento deve ser

abolido ao lado de todas as demais barreiras não-tarifárias.

O Mercosul ainda não conta com nenhuma norma comum que harmonize os

procedimentos de investigação antidumping e preveja sua eliminação, em conjunto

com os direitos compensatórios, no comércio intrazona. Os diferentes prazos

previstos para se atingir esse objetivo – como o ano de 2000 – não foram

observados. A Decisão CMC n° 64/00, que contemplava regras específicas para as

investigações entre países do agrupamento (facilitando o acesso à informação e

estabelecendo prazos e procedimentos comuns) e reiterava a necessidade de os

Estados Partes negociarem propostas com vistas à eliminação gradual da aplicação

de medidas antidumping entre os sócios, nunca entrou em vigor por não haver sido

incorporada ao ordenamento jurídico de todos os países do bloco.

104 Exceto para produtos originários de Zonas Francas, os quais recebem, como veremos em ponto específico, o mesmo tratamento dispensado a produtos de extrazona. 105 Na forma de acordos voluntários entre os setores privados. Não se trata, portanto, de medidas adotadas a partir de negociações entre os governos. 106 Por solicitação da Argentina, e em virtude de acordo entre os dois países, a controvérsia foi suspensa no final de janeiro de 2008.

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120

A Argentina suscitou, posteriormente, obstáculos para a efetiva incorporação

e aplicação da Decisão CMC N° 64/00. Sua principal alegação era a de que a adoção

da norma poderia ser interpretada como uma substituição, no acervo normativo do

Mercosul, das normas pertinentes da OMC sobre antidumping e medidas

compensatórias, o que impediria, por exemplo, que, nas controvérsias entre si, os

Estados Partes pudessem recorrer ao órgão de solução de controvérsias daquela

organização107.

Esse questionamento acabou por ser superado em julho de 2002, com a

aprovação das Decisões CMC N° 13/02 e N° 14/02, que incorporavam ao acervo

normativo comunitário, respectivamente, o Acordo Antidumping e o Acordo sobre

Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC. Essas normas haviam sido

internalizadas individualmente pelos Estados Partes, mas formalmente não faziam

parte do ordenamento jurídico do Mercosul.

Embora a incorporação ao acervo normativo do Mercosul tenha sido um

importante passo para o tratamento da matéria, não era o suficiente, já que os

Estados Partes deveriam continuar trabalhando para eliminar a aplicação de medidas

de defesa comercial no comércio intrazona. Tendo em vista o impasse com relação à

incorporação da Decisão CMC N° 64/00, que estabelecia as disciplinas para a

investigação entre os sócios, aprovou-se nova Decisão, de N° 22/02, também

aplicável aos processos de defesa comercial intrazona. Na prática, essa norma vinha

a complementar, no plano das relações entre os países-membros, as normas

multilaterais da OMC108. Essa norma tampouco chegou a entrar em vigor, tendo sido

travadas discussões sobre ajustes já nos anos de 2005 e 2006, momento em que o

Brasil chegou a defender, sem sucesso, que se adotasse o prazo de 2010 para a

eliminação de medidas antidumping e compensatórias no comércio intrazona. Não

houve progressos nos debates realizados desde então.

Uma das razões que contribuíram para solapar os esforços negociadores

realizados desde o estabelecimento do Mercosul é a vinculação desse tema com

outros fundamentais para a consolidação da união aduaneira, tais como a concessão

107 Naidin, L.C. et alii, op. cit., p. 315. 108 Ibidem, p. 316.

Page 121: Mercosul PDF

121

de incentivos (“ajudas de Estado”) e adoção de uma política comum de defesa

comercial. O impasse na discussão de um dos temas acaba por impedir progressos

na negociação das matérias correlatas. Desse modo, os debates sobre o tema não

evoluíram sequer no âmbito técnico, especialmente na CCM e foros vinculados.

No período 1995-2005 a Argentina foi o país que mais lançou mão de

medidas antidumping no comércio intrazona. Das 36 investigações iniciadas contra

o Brasil, 20 resultaram na aplicação de medidas. Já o Brasil iniciou 7 investigações

contra a Argentina, das quais 4 resultaram na aplicação de medidas. Nesse mesmo

período, o Uruguai aplicou 3 medidas antidumping contra a Argentina e o Paraguai

aplicou 1 medida contra a Argentina e 1 contra o Brasil109.

Na falta de um instrumento comum para regulamentar a investigação e a

aplicação de direitos antidumping, os Estados Partes devem observar os acordos

pertinentes da OMC, incorporados ao acervo normativo do bloco por meio das já

referidas Decisões CMC N° 13/02 e N° 14/02.

Salvaguardas

A eliminação das salvaguardas no comércio intrazona é passo fundamental

para a consolidação da união aduaneira. O Anexo IV do Tratado de Assunção

estabeleceu que os Estados Partes só poderiam lançar mão desse instrumento no

comércio recíproco até 31 de dezembro de 1994. Assinalou, ainda, que somente

deveriam recorrer à prática de salvaguardas em “casos excepcionais” e após a

realização de consultas prévias. As salvaguardas deveriam ser aplicadas uma única

vez para cada produto e seu prazo não poderia exceder um ano.

No entanto, a Decisão CMC n° 05/94, que estabeleceu o “Regime de

Adequação Final à União Aduaneira”, fixou um prazo mais dilatado para a abolição

desse mecanismo no comércio intrazona. Em seu artigo 3°, alínea “b”, essa norma

determina que os produtos sujeitos ao regime de salvaguardas poderiam gozar de um

109 Naidin, L.C. e Bertoni, R. (orgs.). Defesa Comercial e Medidas de Salvaguarda no Mercosul – Uma avaliação Institucional. In: Kume, Honorio. Crecimiento económico, instituciones, política comercial y defensa de la competencia en el Mercosur. Montevidéu, Red Mercosur, 2008, p. 293.

Page 122: Mercosul PDF

122

prazo final de desgravação de quatro anos, “contados a partir de 1° de janeiro de

1995”. Isso significou, na prática, a persistência de salvaguardas até o dia 1° de

janeiro de 1999.

A conjuntura econômica da época dificultou, porém, o abandono completo

dos debates sobre a manutenção de salvaguardas no bloco. Ainda em janeiro de

1999, a desvalorização do real tornou os produtos brasileiros mais competitivos, o

que despertou reações no setor privado argentino, que passou a demandar de seu

governo a adoção de medidas de restrição ao comércio. Nesse mesmo ano o governo

argentino manifestou a intenção de regulamentar um sistema de salvaguardas com

base na Resolução CR 70 da ALADI. Esse projeto foi posteriormente

abandonado110.

Do ponto de vista legal, no entanto, a aplicação de salvaguardas já não

encontra mais respaldo nas normas comunitárias. Na prática, as salvaguardas têm

sido aplicadas, especialmente pela Argentina, apenas contra produtos originários de

Zonas Francas, os quais, de acordo com o Decisão CMC N° 8/94, devem receber

tratamento de produtos de extrazona, salvo acordo em contrário entre os Estados

Partes.

Como “solução de compromisso” para o tema, Argentina e Brasil criaram, em

2003, a Comissão de Monitoramento do Comércio Bilateral. Esse foro constitui um

canal de negociação para diferentes temas, inclusive daqueles relativos a restrições

quantitativas ao comércio em setores considerados assimétricos111. É no âmbito da

Comissão que têm sido celebrados acordos, inclusive de restrição voluntária de

exportações, entre os setores privados dos dois países.

No final de 2005 e início de 2006 os Governos da Argentina e Brasil

negociaram um instrumento destinado a disciplinar, ainda que de forma imperfeita, a

aplicação de medidas de defesa comercial pelos dois países. As negociações

resultaram na adoção do Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC). É

importante ressaltar que o MAC é um acordo bilateral, não fazendo parte, por

conseguinte, do acervo normativo do Mercosul.

110 “Informe MERCOSUR” n° 11. Buenos Aires, BID-INTAL, janeiro de 2007, pp. 56-57. 111 Ibid., p. 57.

Page 123: Mercosul PDF

123

O MAC prevê, na prática, a possibilidade de adoção de salvaguardas –

embora esse termo não seja utilizado no texto do acordo, plasmado no 34° Protocolo

Adicional ao ACE N° 14 – caso as importações originárias de um dos países tenham

um “aumento substancial” e possam, por essa razão, representar uma ameaça de

dano à indústria do país vizinho. A aplicação do MAC deve necessariamente ser

antecedida de negociações entre os setores privados dos dois países. Apenas na

hipótese de não haver acordo é que o Governo do país que se julgar afetado poderá,

se constatar a existência de “dano importante” (ou ameaça de dano) e a relação de

causalidade com o surto de importações, aplicar as medidas correspondentes. Tais

medidas consistirão no estabelecimento de um limite quantitativo para as

importações do produto em questão com preferência tarifária plena. As mercadorias

que ultrapassarem o limite fixado deverão pagar a TEC como se fossem produtos

originários de extrazona, usufruindo, porém, de uma pequena margem de

preferência de 10%. As medidas aplicadas sob a égide do MAC terão, em princípio,

duração de 3 anos, prorrogáveis por um ano adicional.

O MAC deverá se fazer acompanhar por um Programa de Adaptação

Competitiva (PAC). O PAC tem como função primordial modernizar e dar melhores

condições de competitividade para o setor afetado pelo aumento de importações, de

modo a capacitá-lo a enfrentar a concorrência externa uma vez encerrada a aplicação

das medidas de proteção. Para isso, o setor deverá comprometer-se a realizar

investimentos e implementar ações de desenvolvimento científico e tecnológico.

Do ponto de vista político, a adoção do MAC representou uma resposta às

preocupações do governo argentino com o alegado risco à indústria doméstica

provocado pelo crescimento das exportações de produtos brasileiros. Um dos

argumentos utilizados para defender o mecanismo é o de que constituiu um

disciplinamento para medidas até então implementadas de forma assistemática e de

maneira unilateral pelos governos nacionais.

O fato de o MAC, cujo texto foi acordado no início de 2006, não haver

entrado em vigência até o início de 2009112 indica não ter havido, pelo menos nesse

112 O Protocolo Adicional ao ACE n° 14 correspondente ao MAC foi internalizado pela Argentina apenas em outubro de 2008, na esteira dos efeitos gerados pela crise financeira mundial e num momento em que o

Page 124: Mercosul PDF

124

período, um interesse concreto de Argentina e Brasil em adotar medidas sob sua

égide. É importante notar que a negociação do instrumento foi objeto de críticas por

parte de Paraguai e Uruguai, que contestavam a negociação, em bases bilaterais, de

medidas que supostamente representariam, na prática, travas ao comércio intrazona.

5.3) Defesa da Concorrência

A adoção de normas e políticas comuns de defesa da concorrência também é

requisito fundamental para o estabelecimento de um mercado comum. Num

contexto de crescente integração das economias dos Estados Partes, é provável que

se tornem mais freqüentes as práticas lesivas à concorrência, como a formação de

cartéis. Com o estabelecimento de um mercado ampliado, torna-se indispensável que

eventuais sanções a grupos econômicos tenham escala regional, uma vez que uma

ação praticada em determinado país poderá, não raras vezes, afetar empresas nos

países vizinhos. A elaboração de um Protocolo de Defesa da Concorrência tornou-

se, por isso, um dos pontos fundamentais da agenda do Mercosul no terreno

econômico-comercial.

O trabalho conjunto das autoridades dos quatro Estados Partes resultou na

aprovação, em 1996, do Protocolo de Defesa da Concorrência (PDC), por meio da

Decisão CMC n° 18/96 (“Protocolo de Fortaleza”). O PDC entrou em vigor em

2000 apenas para Brasil e Paraguai, os dois únicos países a procederem à sua

internalização. Não chegou, por essa razão, a ser aplicado como um instrumento

comunitário. Contribuiu para isso o fato de apenas Brasil e Argentina possuírem

órgãos nacionais de defesa da concorrência efetivamente estruturados - como

veremos a seguir, a aplicação do Protocolo dependia em grande parte da existência

de instituições nacionais aptas a lidar com questões concorrenciais.

Araújo Júnior assinala que o fato de o PDC haver sido aprovado sem que

todos os países do bloco contassem com instituições capazes de aplicá-lo de maneira

eficaz revelou a inexistência de preocupação de seus negociadores com o estado das

governo do país vizinho encontrava-se pressionado pelo setor privado a adotar medidas protecionistas. No início de 2009 o Brasil ainda não havia incorporado o instrumento ao seu ordenamento jurídico.

Page 125: Mercosul PDF

125

instituições antitruste da região. As inconsistências do Protocolo de Fortaleza

decorreriam justamente dessa dicotomia entre seu escopo normativo e o estado das

instituições nacionais, indispensáveis para a correta aplicação de seus

dispositivos113.

O PDC foi concebido para ser aplicado a atos praticados por pessoas físicas e

jurídicas que tenham impacto no ambiente concorrencial e no comércio de bens e

serviços entre os Estados Partes do Mercosul. Ficaram excluídos de seu âmbito de

aplicação, portanto, aqueles atos cujas conseqüências restrinjam-se ao território de

apenas um dos Estados Partes. Vale destacar também que o Protocolo versou apenas

sobre condutas anticompetitivas, relacionadas em seu capítulo II, deixando para uma

etapa posterior a elaboração de normas comunitárias sobre atos de concentração que

“possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou resultar na

dominação de mercado relevante de bens e serviços”.

O Protocolo cria o Comitê de Defesa da Concorrência (CDC), órgão

intergovernamental integrado pelos representantes de cada Estado Parte. Por se

tratar se uma instituição intergovernamental - e não supranacional, o que faz com

que suas decisões dependam necessariamente da anuência de todos os Estados

Partes -, o CDC teria, segundo alguns de seus críticos, atribuições limitadas. Isso

porque caberia aos órgãos nacionais efetuar as investigações sobre os atos que

alegadamente atentem contra a livre concorrência. Uma vez concluído o processo

investigatório levado a cabo pelas autoridades nacionais, as conclusões seriam então

remetidas ao CDC, cuja competência restringir-se-ia a definir as sanções

(basicamente multas) cabíveis e demais medidas aplicáveis.

Além disso, e ainda consoante o PDC, as decisões do CDC teriam

necessariamente de ser aprovadas pela CCM, à qual competiria pronunciar-se

favorável ou contrariamente à adoção de sanções, por meio de Diretriz. Eventuais

sanções seriam, da mesma forma, aplicadas pelas autoridades nacionais do Estado

Parte em que estiver domiciliada a parte infratora.

113 Araujo Jr., José Tavares. “Política de Concorrência no MERCOSUL: uma agenda mínima”. In: Chudnovsky, D. et Fanelli, J.M. (orgs.). El desafío de integrarse para crecer – Balance y perspectivas del Mercosur en su primera década. Buenos Aires, RED de Investigaciones Económicas del MERCOSUR/BID/Siglo XXI Editores, 2001, p. 153.

Page 126: Mercosul PDF

126

O fato de as sanções estabelecidas pelo CDC terem de ser aprovadas pela

CCM faria com que o órgão, segundo os críticos do Protocolo, assumisse a posição

de simples “conselheiro” daquela instância decisória, ademais de fazer com o que os

conflitos de natureza concorrencial fossem tratados a partir de um enfoque

meramente “mercantilista”114.

Num esquema de integração intergovernamental como o Mercosul esse foi o

arranjo institucional possível de se alcançar à época da negociação do PDC. A

possibilidade de se atribuir maiores poderes ao CDC não se afigurou possível

naquele momento, tendo em vista especialmente o fato de que se trata de um órgão

sobretudo técnico, que poderia eventualmente não tomar em conta eventuais

sensibilidades políticas dos Estados Partes – daí a necessidade de que suas decisões

viessem a ser submetidas ao crivo da CCM.

Outro problema que gera óbices para a adoção de uma política comum de

defesa da concorrência no Mercosul é a vinculação desse tema à questão das ajudas

de Estado (basicamente incentivos fiscais), representadas por medidas dos Governos

nacionais que visam a atrair e facilitar investimentos. A inexistência de uma

disciplina comum para a concessão de incentivos pelos países do bloco é muitas

vezes apresentada como um argumento para que não se adote uma política comum

de defesa concorrência, a partir do raciocínio de que apenas quando “equalizadas” as

condições de outorga desses benefícios a empresas privadas é que o Mercosul terá

um ambiente concorrencial mais equilibrado, sem distorções engendradas por ações

do Estado.

A preocupação com as ajudas de Estado esteve presente no PDC. Seu artigo

32 estabelece que “os Estados Partes comprometem-se, dentro do prazo de dois anos

a contar da entrada em vigência do presente Protocolo, e para fins de incorporação a

este instrumento, a elaborar normas e instrumentos comuns que disciplinem as

ajudas de Estado que possam limitar, restringir, falsear ou distorcer a concorrência e

sejam suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados Partes”. Todavia, a

discussão sobre o disciplinamento da concessão de incentivos não avançou no nível

114 Ibidem, p. 153.

Page 127: Mercosul PDF

127

comunitário, o que também acabou afetando os trabalhos de implementação da

política de defesa da concorrência comum no âmbito do Mercosul.

A questão das ajudas de Estado (incentivos) é complexa e marcada por

diferenças de visões entre os países-membros do Mercosul. O primeiro passo a ser

tomado pelos Estados Partes seria o de definir quais incentivos estatais deveriam ser

permitidos, uma vez que se reconhece que nem toda ajuda deve ser proibida115.

Vale ressaltar que a adoção de instrumentos de defesa da concorrência é

importante ferramenta para a eliminação de outras distorções da união aduaneira,

como a aplicação de medidas antidumping, as quais são muitas vezes utilizadas

como forma de oferecer proteção temporária para setores que enfrentam a

concorrência de produtos importados116. Ao estabelecer as bases para uma

concorrência saudável entre as empresas, a cooperação comunitária entre as

autoridades antitruste pode ser elemento fundamental para a futura abolição da

aplicação de medidas de defesa comercial entre os Estados Partes.

A não-internalização do PDC levou os Estados Partes a darem início à sua

revisão. As discussões, porém, não têm evoluído de forma satisfatória, não sendo

possível vislumbrar, ainda, em que momento poderá ser adotada uma nova versão do

Protocolo.

As questões de defesa da concorrência no MERCOSUL têm sido tratadas, em

nível técnico, pelo Comitê Técnico n° 5, vinculado à CCM. Também é no âmbito

desse CT, conforme visto anteriormente, que têm tido lugar o intercâmbio de

experiências entre as autoridades nacionais de defesa da concorrência.

115 Leopardi, Maria Tereza, op. cit., p. 131. 116 Araújo Júnior, José Tavares, op. cit., p. 154.

Page 128: Mercosul PDF

128

CAPÍTULO 6 – INVESTIMENTOS E SERVIÇOS

6.1) Investimentos

A negociação de um marco jurídico comum em matéria de investimentos fez

parte da agenda de construção do Mercosul. Já nos primeiros anos do bloco foram

aprovadas as primeiras normas comunitárias sobre o tema.

São dois os instrumento jurídicos negociados pelos Estados Partes. O

primeiro é o Protocolo de Colônia para a Promoção e a Proteção Recíproca de

Investimentos no Mercosul (Decisão CMC n° 11/93). Esse Protocolo assegura aos

investidores dos Estados Partes tratamento “não menos favorável” àquele

dispensado aos investidores nacionais. Estabelece, desse modo, um quadro jurídico

de proteção mínima à propriedade, ações e demais direitos econômicos dos

investidores da região, limitando as hipóteses de desapropriação a razões de

utilidade pública e ao pagamento de compensação “prévia, adequada e efetiva”.

O Protocolo de Colônia também determina que o surgimento de controvérsias

entre um investidor e um dos Estados Partes deverá ser dirimida por meio de recurso

aos tribunais do país em que se realizou o investimento, à arbitragem internacional

ou, eventualmente, ao sistema de solução de controvérsias do bloco.

Essa norma nunca entrou em vigor entre os Estados Partes, uma vez que

apenas a Argentina a incorporou ao seu ordenamento jurídico, em 1997. Embora

tenha havido a determinação de efetuar uma revisão de seu texto, já que o Protocolo

foi negociado em 1993, antes mesmo da assinatura do Protocolo de Ouro Preto e da

implementação da união aduaneira, os trabalhos nesse sentido não têm evoluído nos

últimos anos.

Além do Protocolo de Colônia, os Estados Partes aprovaram também o

“Protocolo sobre Promoção e Proteção de Investimentos Provenientes de Estados

não-membros do Mercosul” (Decisão CMC N° 11/94), também conhecido como

Protocolo de Buenos Aires. Esse instrumento objetivava harmonizar, dentro o bloco,

o tratamento concedido por cada Estado Parte aos investimentos provenientes de

Page 129: Mercosul PDF

129

terceiros países. Seu artigo primeiro estabelece uma espécie de “cláusula de

harmonização mínima”, segundo a qual os Estados Partes comprometer-se-iam a

conceder a investidores estrangeiros um tratamento “não mais favorável” àquele

estabelecido nas disposições do Protocolo. Estaria resguardada, assim, a liberdade

de adoção de medidas mais restritivas.

No mais, o Protocolo de Buenos Aires prevê que os Estados Partes, uma vez

admitido o investimento estrangeiro, garantirão “tratamento justo e eqüitativo”, sem

assegurar, no entanto, tratamento idêntico àquele conferido aos investidores

nacionais e originários do Mercosul. Assim como o Protocolo de Colônia, permite

nacionalizações ou desapropriações apenas quando assim o exija o interesse público

ou social, após o pagamento de indenização “justa, adequada, imediata ou

oportuna”. Da mesma forma, eventuais controvérsias entre um investidor estrangeiro

e um dos Estados Partes deverão ser resolvidas ou nos tribunais nacionais do

território em que foi realizado o investimento ou mediante recurso à arbitragem

internacional.

O Protocolo de Buenos também não entrou em vigor, por não haver sido

internalizado no Brasil. Por determinação do CMC, ambos os documentos

encontram-se, desde 2004, em processo de revisão no âmbito do Subgrupo de

Trabalho N° 12 “Investimentos”. No caso brasileiro, a discussão sobre a proteção e

promoção de investimentos intra e extrazona insere-se no quadro mais amplo do

debate sobre os chamados “Acordos de Proteção e Promoção de Investimentos”

(APPIs), negociados bilateralmente entre diversos países. O Governo brasileiro tem

adotado o entendimento de que tais acordos trazem dispositivos nocivos à soberania

nacional, inclusive por propiciar aos investidores estrangeiros tratamento, em alguns

casos, mais favorável do que aquele oferecido aos investidores locais. A

possibilidade de que haja recurso à arbitragem internacional sem que antes sejam

esgotados os recursos internos – previsão que está presente tanto no Protocolo de

Colônia (art. 9°) quanto no Protocolo de Buenos Aires (art. 2°, item “h”) também é

considerada problemática e contrária à Constituição brasileira.

Page 130: Mercosul PDF

130

Outro elemento que torna imperiosa a revisão dos textos dos dois Protocolos

é a circunstância que outros Estados Partes, como Argentina e Paraguai, assinaram

APPIs com outros países, o que gera obstáculos adicionais para a harmonização de

políticas de investimentos no Mercosul.

6.2) Serviços

O “Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços no Mercosul”,

aprovado em 1997, é a norma que estabelece os parâmetros básicos para a

liberalização desse setor entre os Estados Partes. O comércio de serviços possui

características próprias que o diferenciam do comércio de bens, tratando-se de um

segmento em que a abertura dos mercados é mais lenta, por envolver

regulamentações e interesses nacionais de diferentes tipos. Embora não exista uma

definição unívoca de serviços, podemos dizer que, diversamente do que ocorre com

o comércio de mercadorias, sua característica básica é a intangibilidade117. Fazem

parte do universo de prestação de serviços, dentre outros, setores como o de turismo,

telecomunicações, informática, transportes, serviços financeiros (seguros, por

exemplo), atividades culturais e serviços prestados por profissionais liberais.

O comércio de serviços têm adquirido crescente importância no cenário

internacional. No caso brasileiro, por exemplo, esse segmento respondeu, em 2007,

por 14% das exportações totais do país, segundo dados do MDIC. Esse número deve

ser interpretado à luz do fato de que as exportações brasileiras de serviços, embora

ainda inferiores às importações, têm aumentado a um ritmo superior ao da

exportação de bens, mantendo crescimento anual superior a 20% (em 2007,

atingiram o patamar de US$ 22,5 bilhões)118.

O Protocolo de Montevidéu entrou em vigor em dezembro de 2005, depois da

terceira ratificação, que foi efetuada pelo Brasil. Até o momento, o Paraguai é o

único país que ainda não incorporou o texto ao seu ordenamento jurídico. A partir da

117 WTO. Manual on Statistics of International Trade in Services. Geneva, 2002, p. 7. 118 Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. “Panorama do Comércio Internacional de Serviços 2007 – Dados consolidados”. Ano 3, n.1. Brasília, 2008, p. 7.

Page 131: Mercosul PDF

131

entrada em vigor do instrumento teve início a contagem do prazo de 10 (dez) anos

para a conclusão do processo de liberalização do comércio de serviços no âmbito do

Mercosul.

Nos termos do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços da OMC (AGCS),

e conforme estabelecido no artigo 2 do Protocolo de Montevidéu, a prestação de

serviços pode ser realizada por meio de quatro diferentes modalidades:

(i) modo 1 (serviços transfronteiriços): prestação de um serviço do território

de um Estado Parte ao território de outro Estado Parte. Não há, nesse caso,

necessidade de que o prestador de serviços se desloque ou se instale no país

importador. Um exemplo seria o de uma empresa de consultoria que elabora

um estudo e o remete, pelos correios ou por meio eletrônico, para o cliente

domiciliado no exterior;

(ii) modo 2 (consumo no exterior): prestação de um serviço no território de um

Estado Parte a um consumidor de serviços de qualquer outro Estado Parte. É

o caso de turistas que consomem serviços no país que estão visitando;

(iii) modo 3 (presença comercial): prestação de um serviço de um Estado Parte

por meio da presença comercial no território de qualquer outro Estado Parte.

Um exemplo desse modo de prestação seria o de um escritório de advocacia

brasileiro que se instala em outro país a fim de prestar consultoria sobre

negócios no Brasil;

(iv) modo 4 (movimento temporário de pessoas físicas prestadoras de

serviços): prestação de um serviço por meio da presença de pessoas físicas de

um Estado Parte no território de qualquer outro Estado Parte.

A maior parte do comércio de serviços concentra-se nos modos 1 e 3. O

modo 4 responde por parcela pouco significativa do total.

Quando da assinatura do Protocolo de Montevidéu os Estados Partes

apresentaram suas listas de compromissos específicos iniciais. Essas listas iniciais

são progressivamente incrementadas por meio de rodadas negociadoras, nas quais os

Page 132: Mercosul PDF

132

países do bloco assumem novos compromissos de abertura de seus mercados em

diferentes setores. Desde a assinatura do Protocolo foram realizadas, até 2007, seis

rodadas negociadoras.

A Decisão CMC n° 01/06, que aprova as listas de compromissos resultantes

da sexta rodada negociadora, consolida todos os compromissos de abertura

negociados anteriormente. Dentre os setores que se beneficiaram com a

liberalização, podemos mencionar os de telecomunicações, serviços profissionais,

financeiros, de educação, saúde, turismo e transportes.

Na linha do que estabelece o AGCS, um dos pilares do Protocolo de

Montevidéu é o chamado “tratamento nacional”. Segundo esse princípio, os Estados

Partes outorgarão aos serviços e aos prestadores de serviços dos países do bloco

tratamento não menos favorável do que aquele concedido a seus próprios serviços

ou prestadores de serviços similares. No entanto, ao longo das negociações podem

ser negociadas limitações expressas a esse princípio. No caso de serviços jurídicos,

por exemplo, a lista de compromissos do Brasil prevê, como limitação ao princípio

do tratamento nacional no que diz respeito ao modo 3 (presença comercial, como a

instalação de um escritório no país vizinho), que a sociedade de advogados

estrangeira “apenas poderá prestar consultoria em direito estrangeiro”.

Além das limitações ao princípio do tratamento nacional podem ser previstas

também limitações ao acesso a mercados. Essas limitações consistem na imposição

de regulamentos que devem ser observados pelo prestador de serviço. Podem referir-

se à limitação do número de prestadores de serviços (quota) ou à imposição de

restrições específicas para sua operação. Retomando o exemplo utilizado

anteriormente, no caso de serviços jurídicos no modo 3, o Brasil estabeleceu, em sua

lista de compromissos, que “toda sociedade de advogados deve constituir-se sob a

forma de Sociedade Civil”, acrescentando que “fica expressamente vedado o

exercício do procuratório judicial por estrangeiros”.

É importante ressaltar que os Estados Partes podem assumir compromissos

adicionais, que versam normalmente sobre temas de natureza regulatória (como a

edição de normas nacionais sobre o setor objeto de liberalização). No caso de

Page 133: Mercosul PDF

133

serviços de seguro de saúde, a lista brasileira prevê, como compromisso adicional,

que “o Brasil se compromete a permitir o acesso a investidores estrangeiros de

acordo com regulamentação futura”.

As listas dos países do Mercosul apresentam também “compromissos

horizontais”, assim denominados por dizerem a respeito a todos os setores. No caso

brasileiro, por exemplo, exige-se, para toda empresa estrangeira que decidir prestar

serviços no território nacional, organização “sob uma das formas societárias

previstas em lei no Brasil”, inclusive com o respectivo registro do contrato social

junto ao registro público competente.

É facultado aos países não assumir compromissos num dos modos específicos

de prestação de serviços. O jargão técnico “não consolidado” é utilizado para indicar

que o país se escusa de assumir compromissos de abertura num determinado modo

de prestação.

As listas de compromissos dos Estados Partes do Mercosul são organizadas

em forma de colunas. A primeira coluna indica o setor ou sub-setor em que se

assume um compromisso. No exemplo dado a seguir, o setor é o de “serviços

prestados às empresas”. A segunda coluna aponta as limitações de acesso a

mercados e a terceira as limitações ao tratamento nacional. A última coluna é

reservada para os compromissos adicionais:

Protocolo de Montevidéu sobre o Comércio de Serviços

Brasil – VI Rodada de Negociações

Modos de prestação: 1) Prestação Transfronteiriça 2) Consumo no Exterior 3) Presença

Comercial 4) Presença de Pessoas Físicas

SETOR UM SUB-

SETOR

LIMITAÇÕES AO

ACESSO A

MERCADOS

LIMITAÇÕES AO

TRATAMENTO

NACIONAL

COMPROMISS

OS

ADICIONAIS

II. COMPROMISSOS SETORIAIS

1. SERVIÇOS

PRESTADOS

ÀS EMPRESAS

1) Nenhuma

2) Nenhuma

3) Toda sociedade

1) Nenhuma

2) Nenhuma

3) A sociedade de

Page 134: Mercosul PDF

134

A. Serviços

profissionais

a. Serviços

Jurídicos

(CPC 861)

de advogados

deve constituir-se

sob a forma de

Sociedade Civil.

Fica

expressamente

vedado o

exercício do

procuratório

judicial por

estrangeiros.

4) Não consolidado,

exceto pelo

indicado na seção

horizontal.

advogados

estrangeira apenas

poderá prestar

consultoria em

direito estrangeiro

4) Não consolidado,

exceto pelo indicado

na seção horizontal

Como se vê, as limitações ao acesso a mercados e ao tratamento nacional são

indicadas de acordo com o modo de prestação do serviço. No exemplo acima,

relativo a serviços jurídicos, não existem limitações de nenhum tipo para os modos 1

e 2. Já para o modo 3 (presença comercial) são impostas limitações tanto de acesso a

mercados quanto de tratamento nacional. Por fim, o modo 4 (movimento temporário

de pessoas físicas prestadoras de serviços) não foi consolidado, o que significa,

como vimos, que não se assumiu nenhum compromisso de liberalização.

Page 135: Mercosul PDF

135

CAPÍTULO 7 – OUTROS TEMAS RELEVANTES DA AGENDA DO

MERCOSUL

7. 1) Tratamento de Assimetrias

O tratamento de assimetrias entre os Estados Partes do Mercosul é um dos

principais temas da agenda mais recente do bloco. Embora desde o início as normas

comunitárias tenham previsto políticas diferenciadas para as duas economias

menores, tais como a adoção de prazos mais elásticos para a implementação da TEC

para algumas categorias de produtos e a manutenção de um número maior de itens

em listas de exceções, apenas mais recentemente surgiram iniciativas no sentido de

se elaborar estratégias mais amplas visando à atenuação das diferenças nos níveis de

desenvolvimento entre os países da região.

O Tratado de Assunção, sensível aos contrastes existentes, estabeleceu, em

seu artigo 6°, que os “Estados Partes reconhecem diferenças pontuais de ritmo para

a República do Paraguai e para a República Oriental do Uruguai”. No entanto, no

caso específico do TA, essas “diferenças de ritmo” permitiam apenas que os dois

países menores pudessem excluir, por mais tempo, produtos do cronograma de

desgravação tarifária, de forma a proteger setores mais sensíveis de suas economias.

O fato é que não havia, no documento que estabeleceu o Mercosul, preocupação

explícita com as disparidades entre os Estados Partes. Como assinala Salgado, “o

texto de Assunção não coloca explicitamente a redução de desequilíbrios entre as

preocupações centrais do processo de integração, reconhecendo apenas de forma

implícita a existência de assimetrias, através das referidas disposições temporárias

que beneficiavam os sócios menores”119.

As razões para que o Mercosul iniciasse sua trajetória sem atentar para a

criação de dispositivos que minorassem os efeitos das assimetrias entre seus

participantes é fruto do contexto político vivido pelos países da região no início da

década de 90. A circunstância de que os dois maiores países do bloco, Argentina e

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136

Brasil, estavam implementando políticas de corte liberal, com acelerada abertura de

suas economias, deixava pouco espaço para a discussão do tema120, especialmente

em função da crença de que a liberalização das trocas poderia, por si só, ter efeito

positivo na redução das desigualdades entre os Estados Partes.

O decorrer dos anos acabou por impor a visão, mais realista, de que o

enfrentamento de assimetrias é requisito indispensável para o aprofundamento do

processo de integração. A manutenção de desequilíbrios entre as partes envolvidas

poderia gerar um sério obstáculo à manutenção do projeto integracionista: o desnível

de benefícios121. A percepção de que a integração não traz os resultados esperados é

fenômeno capaz de afetar diretamente o engajamento e a disposição em seguir os

objetivos previamente estabelecidos. Essa interpretação de que o Mercosul tardava

em gerar resultados positivos levou Paraguai e Uruguai a pleitearem, sobretudo a

partir de 2003, a concepção de políticas específicas para as economias menores.

As assimetrias são geralmente classificadas em duas espécies122: estruturais e

de políticas. No primeiro caso agrupam-se diferenças de tamanho entre as

economias, dotação de fatores, grau de desenvolvimento e níveis de pobreza e

exclusão social. Já as assimetrias de políticas dizem respeito a diferenças existentes

entre as políticas públicas dos Estados Partes e em sua capacidade de intervir na

economia por meio, por exemplo, de estímulos para a atração de investimentos. Em

função de sua natureza, a correção de assimetrias estruturais tende a se revelar mais

difícil, ao passo que, em tese, as assimetrias de políticas podem ser objeto de

tratamento específico, por meio de sua paulatina harmonização.

O exame das assimetrias existentes no âmbito do Mercosul é, porém,

complexa. Embora o Brasil seja a maior economia da região, é apenas o terceiro país

em termos de PIB per capita, situando-se à frente apenas do Paraguai. Já Argentina

119 Salgado, Reinaldo J. A.. “Fundos Estruturais para o MERCOSUL: Lições da Experiência Européia”. Tese apresentada ao Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. Brasília, mimeo., 2006, p. 134. 120 Ibidem, p. 135. 121 Arriola, Salvador. “Economia e Política Externa na América Latina, Política Externa e processos de integração. As assimetrias e a integração: o começo de uma resposta”. In: Política Externa, vol. 11, n° 2, set-dez 2002, p. 105. 122 Cf. Terra , Maria Inés. Asimetrías en el Mercosur: ¿ Un obstáculo para el crecimiento ?. In: Massi, F. e Terra, M.I. (orgs.). Asimetrías en el Mercosur: ¿impedimento para el crecimiento? Montevideo, Red Mercosur de Investigaciones Económicas, 2008, p. 6.

Page 137: Mercosul PDF

137

e Uruguai, cujas economias são menores que a brasileira, possuem indicadores

sociais melhores123. Qualquer enfoque a ser dado ao tema, portanto, deve ter a

cautela de considerar que as assimetrias estruturais podem ser analisadas a partir de

diferentes ângulos. Além disso, regiões de um mesmo país podem apresentar

distintos níveis de desenvolvimento, o que caracterizaria, para além da assimetrias

entre países, a existência de assimetrias internas.

O tratamento de assimetrias no Mercosul têm se desdobrado em ações de dois

tipos: implementação de medidas pontuais e temporárias e a concepção de políticas

mais amplas e estruturais.

7.1.1) Ações pontuais

Na primeira categoria enquadram-se as flexibilidades outorgadas a Paraguai e

Uruguai no cumprimento de normas comerciais do bloco, especialmente no que diz

respeito à observância da TEC e do Regime de Origem do Mercosul. Por

“flexibilidades” devemos entender a autorização para que esses dois países não

observem, dentro de certos limites, as disciplinas comuns. A idéia é a de que tenham

uma margem de liberdade para acomodar seus interesses mais sensíveis e aumentar

a competitividade de suas economias.

Essas flexibilidades foram concedidas desde a implementação da união

aduaneira, consistindo, como já assinalamos anteriormente, em prazos mais

dilatados para a adoção da TEC e na possibilidade de manter listas de exceções

adicionais. No entanto, é a partir de 2003 que as duas economias menores passaram

a demandar mais ativamente maiores flexibilidades no cumprimento das regras

comunitárias. Nesse ano foi aprovada a Decisão CMC n° 31/03, a qual se outorgou

ao Paraguai 150 itens adicionais em suas listas de exceções (sem prejuízo de lista

anterior, de 399 itens, que lhe foi concedida por meio da Decisão CMC n° 07/94,

bem como dos 100 itens a que têm direito todos os Estados Partes). O Uruguai

passou a usufruir de benefício similar, passando a contar com nova lista de

123 Uma ampla análise das assimetrias no Mercosul a partir de diferentes indicadores pode ser consultada em Salgado, Reinaldo, op. cit., pp. 115-132.

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138

exceções, composta por 125 itens adicionais. Além disso, a Decisão CMC n° 32/03

concedeu ao Paraguai a possibilidade de importar com alíquota reduzida de 2% uma

série de matérias-primas. A mesma norma deu a Paraguai e Uruguai o direito de

importar, também com alíquota de 2%, insumos agropecuários. Todos esses

benefícios aprovados em 2003 são válidos até 2010, ressalvada a possibilidade de

nova decisão dos Estados Partes estendendo esse prazo.

Ademais, Paraguai e Uruguai poderão manter suas listas de exceções de 100

itens até 2015, ao passo que as listas brasileiras são válidas apenas até 2011,

conforme a norma atualmente vigente (Decisão CMC n° 59/07). Como se pode

observar, as duas economias menores do bloco estão autorizadas a praticarem tarifas

diferentes para uma gama maior de produtos e em prazos mais amplos que aqueles

concedidos a Argentina e Brasil.

Também em 2003 Paraguai e Uruguai passaram a gozar de benefícios no

cumprimento das regras de origem do Mercosul. A partir desse ano o índice de

conteúdo regional exigido dos produtos paraguaios passou a ser de 40%,

flexibilidade que foi estendida, por meio da Decisão CMC n° 16/07, até 2022. Já os

produtos uruguaios passaram, a partir da aprovação da Resolução GMC n° 37/04, a

ter de observar um índice de conteúdo regional de 50% (o mesmo concedido pelo

Mercosul em seu acordo com os países andinos), lembrando que a regra geral do

bloco, aplicável a Argentina e Brasil, é de 60%.

Em tese, as medidas pontuais mencionadas têm como objetivo principal

permitir que Paraguai e Uruguai possam manter e incrementar a competitividade de

suas economias por meio da importação de insumos com custo reduzido,

abastecendo-se, quando julgarem conveniente, de produtos de fora do bloco. Da

mesma forma, a maior flexibilidade no cumprimento do regime de origem poderia

incitar o surgimento de unidades produtivas nesses dois países, porquanto os

empresários que ali se instalem poderão, ao menos numa fase inicial, ter maior

liberdade na escolha de seus fornecedores de matérias-primas.

As flexibilidades mencionadas consubstanciam, no entanto, novas

perfurações à TEC. Devem ser vistas, por essa razão, como medidas excepcionais. A

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139

realidade tem apontado, porém, as dificuldades dos Estados Partes em abandonar

esse tratamento excepcional, como revela a sucessiva prorrogação dos prazos de

vigência dos benefícios (inclusive daqueles que beneficiam também as economias

maiores). Como indicamos há pouco, existem listas de exceções com validade pelo

menos até 2015. Da mesma forma, existem flexibilidades na observância das regras

de origem asseguradas até 2022. Se por um lado essas medidas podem ser vistas

como contraproducentes no esforço de consolidação da união aduaneira, deve-se ter

em conta, por outro, que são necessárias para responder a demandas específicas dos

sócios, resultando da conciliação política de diferentes interesses dos Estados Partes.

7.1.2) Ações estruturais: FOCEM

O Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) é a mais

relevante ferramenta hoje existente no bloco para tratar as assimetrias de uma

maneira mais sistemática124. Em funcionamento desde 2006, esse Fundo (cujo

funcionamento deverá ser reavaliado pelos Estados Partes após 10 anos) tem o

objetivo de financiar projetos que dêem suporte e aprofundem o processo de

integração. De acordo com o disposto na Decisão CMC n° 18/05, que versa sobre a

integração e o funcionamento do FOCEM, são quatro as vertentes principais desse

instrumento:

(i) convergência estrutural: as ações relativas à convergência estrutural devem

enfatizar a infra-estrutura de integração física e os sistemas de comunicações

entre os Estados Partes;

(ii) desenvolvimento da competitividade dos Estados Partes: tem por objeto

ações que propiciem a criação de comércio intra-Mercosul, incentivando,

ademais, projetos de integração produtiva e de fortalecimento da qualidade

124 Todavia, como assinala Reinaldo Salgado, a própria Decisão que instituiu o Fundo foi cautelosa ao “evitar uma formulação que explicitasse uma caracterização do FOCEM como principal instrumento” para o tratamento de assimetrias. Resta implícito, no texto, que o FOCEM existe para “contribuir”, “promover” ou “desenvolver” esses objetivos, que deveriam ser igualmente buscados por outros meios. A cautela seria

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140

da produção, bem como a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e

processos produtivos;

(iii) promoção da coesão social (especialmente nas economias menores e regiões

menos desenvolvidas): os projetos dessa vertente devem colaborar para o

desenvolvimento social, notadamente em regiões de fronteira, incluindo

ações no campo da saúde humana, redução da pobreza e combate ao

desemprego.

(iv) fortalecimento da estrutura institucional do bloco: nesta vertente deverão ser

financiados projetos de aperfeiçoamento da estrutura institucional do

Mercosul.

O FOCEM é integrado por contribuições não-reembolsáveis dos Estados

Partes. Seu orçamento anual é de US$ 100 milhões e as contribuições são

diferenciadas, em montantes estabelecidos de acordo com a média histórica do PIB

de cada um dos países. O Brasil aporta 70% dos recursos; a Argentina, 27%; o

Uruguai, 2% e o Paraguai, 1%. Tendo em vista o propósito de minorar as

assimetrias entre os Estados Partes, a distribuição dos recursos foi definida de

maneira a beneficiar sobretudo as economias menores. Dessa forma, o total de US$

100 milhões deverá financiar projetos na seguinte proporção: Paraguai, 48%;

Uruguai, 32%; Argentina, 10% e Brasil, 10%.

Embora os US$ 100 milhões possam à primeira vista parecer um montante

insuficiente para redução de disparidades, é importante notar que os recursos

alocados ao Paraguai representam, por si só, 0,85% do PIB daquele país em 2003,

quantia significativa quando se considera que se trata de financiamento a fundo

perdido125.

Os projetos apresentados pelos Estados Partes devem passar por uma

avaliação técnica antes de sua aprovação final pelo CMC. Essa análise técnica é

efetuada por duas instâncias distintas: num primeiro momento o projeto deve ser

justificada pelo fato de que “objetivos excessivamente ambiciosos são freqüentemente receita certa para a frustração das expectativas e para perda de credibilidade”. Cf. Salgado, Reinaldo, op. cit., p. 157. 125 Salgado, Reinaldo, op. cit., p. 157.

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141

submetido, no próprio país que tenciona apresentá-lo, à Unidade Técnica Nacional

FOCEM (UTNF) e, numa segunda etapa, pela Unidade Técnica FOCEM

estabelecida no âmbito da Secretaria do Mercosul (UTF/SM). O procedimento para

a apresentação de projetos é estabelecido no Regulamento do FOCEM, aprovado

por meio da Decisão CMC n° 24/05.

Os primeiros projetos financiados com recursos do FOCEM foram aprovados

a partir de janeiro de 2007, permitindo ações em diferentes áreas, como habitação,

questões sanitárias, transportes e biossegurança. Como já assinalado, todos os

projetos devem ser aprovados por meio de Decisão do CMC. Embora ainda esteja

em sua fase inicial de implementação, os Estados Partes, em especial o Brasil, já

manifestaram seu propósito de fortalecer o FOCEM e incrementar os seus recursos,

de maneira a ampliar seu impacto no processo de integração.

O Fundo é uma experiência pioneira em processos de integração envolvendo

apenas países em desenvolvimento. Do ponto de vista político, explicita o claro

compromisso das economias maiores do bloco com a atenuação das assimetrias. O

Mercosul pode, porém, ir além, adotando ações e políticas de maior impacto ao

longo do tempo. Algumas iniciativas nesse sentido - algumas das quais já estão

presentes, ainda que de forma embrionária, no âmbito do bloco - poderiam ser

mencionadas: ampliação de financiamentos para infra-estrutura; estabelecimento de

canais de financiamento para estimular exportações para os países mais

desenvolvidos; realização de estudos de oferta exportável; cooperação técnica para

reconversão industrial e melhoria da qualidade da produção126. Parte dessas ações

pode ser contemplada com recursos do próprio FOCEM.

7.2) Coordenação de políticas macroeconômicas

A coordenação de políticas macroeconômicas é um dos requisitos

fundamentais para a constituição do mercado comum, tal como enunciado no artigo

1° do Tratado de Assunção. Os resultados concretos nessa matéria ainda se revelam

126 Arriola, Salvador, op. cit., pp. 105-109.

Page 142: Mercosul PDF

142

tímidos, embora, sobretudo na primeira década do bloco, tenham sido apresentadas

declarações e cartas de intenções relativamente ambiciosas.

Esse nível de ambição inicial era uma decorrência natural do fato de que o

estabelecimento e o posterior bom funcionamento do espaço econômico comum

dependem da estabilidade das políticas econômicas de cada um dos sócios. Afinal, a

instabilidade de um dos parceiros é claramente nociva ao processo de integração

(por afetar negativamente os fluxos de comércio e a capacidade de atrair

investimentos), além do que a maior interdependência engendrada pela integração

faz com que os problemas macroeconômicos enfrentados por um dos integrantes se

estenda aos demais (efeito de “derrame”)127.

A coordenação de políticas macroeconômicas exige que os países do bloco

concertem posições em matéria de câmbio, política monetária e política fiscal. Além

disso, como trabalho de base, deverá haver uma harmonização de indicadores

estatísticos, a fim de se evitar discrepâncias nas mensurações de dados relevantes

para a convergência macroeconômica. Em seguida, é importante que os Estados

Partes tenham metas comuns de dívida pública e inflação e, numa última e mais

difícil etapa, estabeleçam as condições necessárias, se assim o desejarem, para a

adoção de uma moeda comum.

Nos anos 90, a implementação pela Argentina do regime de conversibilidade

(currency board) e sua manutenção ao longo daquela década veio a constituir

“obstáculo quase intransponível”128 a uma maior coordenação de políticas

macroeconômicas no âmbito do Mercosul. Conquanto o Brasil tenha, a partir da

implementação do Real, em 1994, observado uma política artificial de valorização

da moeda nacional frente ao dólar (com a adoção de um sistema de “bandas

cambiais” que estabeleciam os patamares de oscilação do dólar), a situação tornou-

se insustentável em 1999, ano em que se passou ao regime de câmbio flutuante. A

abrupta desvalorização do real daí decorrente acabou desencadeando problemas no

127 Fanelli, José María. “Coordinación macroeconómica en el Mercosur: balance y perspectivas”. In: Chudnovsky, D. et Fanelli, J.M. (orgs.). El desafío de integrarse para crecer – Balance y perspectivas del Mercosur en su primera década. Buenos Aires, RED de Investigaciones Económicas del MERCOSUR/BID/Siglo XXI Editores, 2001, p. 3.

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143

relacionamento comercial com os demais países do bloco, já que a depreciação da

moeda brasileira reduziu o valor dos produtos locais e impulsionou, por outro lado,

as exportações brasileiras. Essa conjuntura acarretou, na prática, dificuldades para

qualquer negociação mais ambiciosa com vistas a uma maior harmonização das

políticas econômicas, já que os dois principais sócios do Mercosul, Argentina e

Brasil, passaram a ter regimes cambiais distintos: a “semelhança das respostas

macroeconômicas de Brasil e Argentina aos choques externos – que já não era

grande sob o regime de bandas cambiais brasileiro – tornou-se nula após 1999”129.

Às instabilidades enfrentadas pelos dos maiores países do bloco em meados

dos anos 90 somaram-se as crescentes reticências com relação aos custos que

resultariam da decisão de se promover, de maneira concreta, maior coordenação

macroeconômica. Essa decisão requereria não apenas uma perda de parte da

autonomia dos Estados nacionais no campo econômico, mas também a concepção de

instituições comunitárias que gerissem sua efetiva observância, inclusive com

mecanismos de incentivo e de enforcement. Renunciar a essa autonomia e conceber

instituições comuns tornaram-se, na prática, objetivos difíceis de se atingir na

década inicial do Mercosul, seja porque os países da região se caracterizavam por

uma marcada discricionariedade econômica, seja pela volatidade e vulnerabilidade

enfrentadas em face de choques externos130.

Paradoxalmente, em julho de 1998, poucos meses antes da crise cambial que

comprometeria, a partir do início de 1999, os diferentes esforços de coordenação

macroeconômica, os Presidentes dos Estados Partes reafirmaram, em Ushuaia, a

necessidade de iniciativas que permitissem estabelecer disciplinas comuns em

matéria fiscal e de investimentos, de modo a avançar na harmonização de políticas

macroeconômicas e facilitar “o futuro estabelecimento de uma moeda única no

Mercosul”131.

128 Enge, Leonardo A. C. A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina: Regimes Alternativos e Fragilidade Externa. Brasília, IRBr/FUNAG, 2004, p. 108. 129 Ibidem, p. 109. 130 Cf. Fanelli, op. cit., p. 7. 131 Comunicado Conjunto dos Presidentes dos Estados Partes do Mercosul. Ushuaia, 24 de julho de 1998.

Page 144: Mercosul PDF

144

Os empecilhos que surgiram para uma efetiva coordenação explicam por que

o principal ponto da agenda de “relançamento” do Mercosul em 2000 na matéria

dizia respeito à harmonização de indicadores macroeconômicos, ação que é

considerada apenas um passo prévio, embora fundamental, para avanços futuros em

questões macroeconômicas. O estabelecimento e publicação de indicadores

estatísticos comuns é visto como ferramenta indispensável para que os Estados

Partes possam vir a dialogar sobre suas políticas econômicas. É por essa razão que

se decidiu, em junho de 2000, criar, no âmbito da Reunião de Ministros da

Economia e Presidentes dos Bancos Centrais, o Grupo de Monitoramento

Macroeconômico (GMM), órgão responsável por avançar nas discussões sobre a

harmonização de indicadores.

Em dezembro de 2000 os Estados Partes aprovaram a “Declaração

Presidencial sobre Convergência Macroeconômica”. Trata-se do último documento

em que os países do bloco manifestam, em alto nível, o compromisso de atingir

metas específicas comuns em matéria macroeconômica. A Declaração indicou 2001

como “ano de transição”, no qual os Estados Partes anunciariam seus objetivos

específicos de inflação e de dívida do setor público. Já a partir de 2002 deveriam ser

buscadas metas comuns para os seguintes indicadores: inflação (máximo de 5% nos

anos de 2002 a 2005, exceto para o Brasil, em 2002, e para o Paraguai); variável de

fluxo fiscal (3% em 2002 e 3,5% em 2003 e 2004); dívida pública (40% do PIB a

partir de 2010). O país que se desviasse das metas deveria apontar ao GMM as

medidas corretivas pertinentes. Não houve, na prática, preocupação em se observar

ou revisar as metas estabelecidas.

Os anos recentes indicam uma diminuição do nível de ambição dos Estados

Partes em matéria de coordenação de políticas macroeconômicas. Desde a

Declaração Presidencial de 2000 que os países do bloco não ousam falar em metas

comuns. Esse afastamento dos projetos iniciais demonstra a conveniência de se

adotar, inicialmente, objetivos mais modestos. Como observa Martín Redrado, entre

uma postura minimalista, voltada para a manutenção do “status quo”, e uma

Page 145: Mercosul PDF

145

maximalista, como a que defende a adoção de uma moeda comum, os Estados Partes

têm amplo espaço para cooperar132.

Como visto, superada a fase em que os Estados Partes buscavam objetivos

“maximalistas” - tendo se aventado até mesmo a adoção de uma moeda comum -,

existe atualmente uma maior cautela no estabelecimento de objetivos de

coordenação macroeconômica. Isso explica a quase que exclusiva concentração em

tarefas básicas como a harmonização de indicadores macroeconômicos, em

detrimento da precoce indicação de metas a serem cumpridas pelos países do bloco.

Alguns estudiosos da questão ponderam mesmo que a coordenação de

políticas macroeconômicas constituiria um esforço político desnecessário, não

justificado seja pelo peso do comércio intrazona na atividade econômica geral dos

países do bloco, seja pelas assimetrias entre os seus integrantes133. Por outro lado, os

que defendem uma coordenação macroeconômica mais profunda sublinham alguns

fatores que poderiam contrabalançar os custos políticos envolvidos, tais como a

geração de economias de escala, decorrentes da inexistência de incertezas

decorrentes de oscilações cambiais, e a diminuição dos riscos de retrocessos no

processo de integração, haja vista o fortalecimento de interdependência dos países

do bloco134.

Na verdade, a coordenação de políticas macroeconômicas é um instrumento

importante em qualquer projeto de integração mais profunda, como a união

aduaneira ou o mercado comum. A experiência recente tem demonstrado que as

diferenças entre os modelos cambiais podem ter, em cenários de crise internacional,

considerável impacto no comércio intrazona. Não obstante, é possível, no atual

estágio do processo de integração - em que os objetivos originalmente enunciados

no Tratado de Assunção são tomados como projetos de longo prazo -, buscar, ao

menos por ora, apenas um maior diálogo entre as autoridades econômicas de cada

132 Redrado, Martin. “La cooperación macroeconómica como requisito de la integración”. In: Hugueney, C. e Cardim, C.H. Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o Mercosul. Brasília, IPRI/FUNAG/SGIE/BID, 2003, p. 10. 133 Guimarães, Samuel Pinheiro. “Aspectos econômicos do Mercosul”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 39, n° 1, 1996, p. 30. 134 Giambiagi, Fábio. Moeda única do Mercosul: notas para o debate. In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 41, n° 1, 1998, pp. 34-36.

Page 146: Mercosul PDF

146

um dos países, de forma a que se adotem progressivamente medidas de integração

financeira, por exemplo.

Um dos exemplos desse enfoque foi dado recentemente pela decisão dos

Bancos Centrais da região de implementar o Sistema de Pagamentos em Moedas

Locais (SML). Esse mecanismo, que entrou em vigor em outubro de 2008

inicialmente apenas entre Argentina e Brasil, permite a realização de transações

comerciais em moeda local (real ou peso). Ao dispensar a utilização do dólar, acaba

diminuindo os custos das operações, propiciando, além disso, uma maior integração

entre os mercados financeiros dos dois países. Muito embora os mais otimistas

tenham mencionado que o sistema poderia constituir um “embrião” para a posterior

adoção de uma moeda única, o fato é que seus objetivos são menos ambiciosos,

visando primordialmente a reduzir custos e a facilitar as operações comerciais entre

empresas do bloco.

Apesar de estar em funcionamento apenas entre Argentina e Brasil, o SML é

um formalmente um instrumento comunitário, porquanto aprovado por meio de

normas do Mercosul135. A decisão de Paraguai e Uruguai de não participar do

sistema não foi definitiva, já estando em curso entendimentos com autoridades

desses dois países para a adoção do mecanismo. A operacionalização do SML

depende, porém, do cumprimento de algumas exigências técnicas e do

estabelecimento de convênios entre os Bancos Centrais participantes.

7.3) Compras Governamentais

O Protocolo de Compras Governamentais do Mercosul (PCP), aprovado por

meio da Decisão CMC N° 23/06, tem como objetivo central possibilitar aos

fornecedores de bens e prestadores de serviços estabelecidos da região acesso às

compras realizadas pelas entidades públicas dos Estados Partes.

O mercado de compras públicas pode desempenhar relevante papel no

processo de integração. Ao lado do aspecto simbólico, concernente à progressiva

135 Cf. Decisões CMC N° 38/06 e N° 25/07.

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147

redução da discriminação entre as empresas nacionais e aquelas dos países vizinhos,

um sistema de compras de abrangência regional poderá colaborar para uma maior

concorrência e uma melhor eficiência nas aquisições realizadas pelas entidades

públicas.

Ao longo da Rodada Uruguai foi negociado o Acordo sobre Contratações

Públicas (ACP), assinado em 1994 e em vigor desde 1996. Trata-se de um acordo

plurilateral, o que significa que apenas os membros da OMC que assim o desejarem

estarão a ele vinculados. Esse acordo incorpora princípios que vieram a ser

posteriormente consagrados também no Protocolo de Compras Governamentais do

Mercosul, tais como o de tratamento nacional136, não-discriminação e transparência

nas informações e procedimentos relativos às contratações.

A cobertura do Protocolo não é, porém, irrestrita, podendo os Estados Partes

restringirem o acesso a seu mercado de diversas maneiras, excluindo do alcance do

acordo entidades públicas, bens, serviços e obras. Essas exceções figuram nos

anexos do PCP, os quais apresentam:

• lista positiva de entidades públicas;

• lista negativa de bens;

• lista positiva de serviços;

• lista positiva de obras públicas;

• patamares (valores acima dos quais as contratações públicas estarão

sujeitas às disciplinas do Protocolo).

O Protocolo aplica-se, em princípio, às contratações públicas de entidades de

todos os níveis de governo (federais e subfederais). No entanto, como assinalado,

podem os Estados Partes, em suas listas positivas de ofertas, excluir as entidades de

algum dos níveis de Governo. Este é o caso do Brasil, que inseriu em sua lista

apenas entidades vinculadas ao Governo Federal, incluindo a maior parte dos

136 Artigo 5° do Protocolo: “Com relação a todas as leis, regulamentos, medidas e práticas que afetem as contratações públicas cobertas por este Protocolo, cada Estado Parte outorgará aos bens e serviços e obras

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148

Ministérios e órgãos como a Advocacia Geral da União, o Ministério Público da

União e diferentes instâncias do Poder Judiciário. Cumpre notar que a retirada de

uma entidade da lista positiva poderá engendrar pedido de compensações por parte

do Estado Parte interessado.

Além disso, o Protocolo estabelece “patamares” para o regime de

contratações públicas do Mercosul. Os patamares (constantes do Anexo V do

Protocolo) definem o valor acima do qual as empresas de outros Estados Partes

poderão participar do processo de compras governamentais. O patamar do Brasil

tanto para bens quanto para serviços é de US$ 75.000, inferior ao dos demais

Estados Partes (US$ 200.000 para Paraguai e Uruguai e US$ 150.000 para a

Argentina) e de US$ 3 milhões para obras públicas (o patamar dos demais Estados

Partes para obras públicas será objeto de negociação futura). Isso significa, em

consonância com o reconhecimento das assimetrias entre os Estados Partes, que há

maior possibilidade de que uma empresa de Paraguai e Uruguai participem de uma

contratação pública no Brasil do que o oposto. Esses valores deverão ser reajustados

anualmente pela CCM, em sua primeira reunião ordinária do ano.

O Anexo II apresenta a lista de bens que não estarão sujeitos às disposições

do Protocolo (lista negativa). O Brasil foi o único país que não apresentou nenhum

tipo de restrição. O Anexo III apresenta a lista positiva de serviços que se

beneficiam dos dispositivos do Protocolo. A lista brasileira contempla, por exemplo,

abertura na área de comunicações, distribuição, turismo e educação. Por fim, o

Anexo IV contém a lista positiva de obras públicas cobertas pela norma. O Brasil foi

o único país que indicou sua lista, contemplando serviços de construção e serviços

relacionados à engenharia. Os demais Estados Partes comprometeram-se a negociar

suas listas futuramente.

O PCP ainda não está em vigor, por depender de aprovação parlamentar nos

Estados Partes. Sua entrada em vigência ocorrerá assim que pelos menos dois países

concluírem os procedimentos de internalização. Os trâmites para a incorporação

dessa norma aos ordenamentos jurídicos nacionais vêm se desenrolando desde 2006.

públicas e aos fornecedores e prestadores de qualquer Estado Parte (...) um tratamento não menos favorável do que o que outorgue aos seus próprios bens, serviços, obras públicas, fornecedores e prestadores (...)”.

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149

Uma vez em vigor, os Estados Partes deverão dar início a negociações para

completar a liberalização do mercado de contratações públicas do bloco, reduzindo,

progressivamente, as restrições impostas pelas listas e patamares. As rodadas de

negociações deverão ser realizadas pelo menos a cada dois anos, a fim de aumentar

de maneira paulatina a cobertura do Protocolo.

O PCP poderá, quando estiver em vigor, representar mais um importante

instrumento para o fortalecimento do Mercosul, contribuindo para o incremento das

trocas comerciais entre os Estados Partes e para a consolidação do espaço

econômico comum. Poderá exercer, além disso, importante papel na atenuação das

assimetrias, o que justifica, por exemplo, o fato de a oferta brasileira ser mais ampla

do que aquela dos demais Estados Partes, abrindo um vasto leque de oportunidades

para empresas dos países vizinhos. A paulatina liberalização do mercado de compras

públicas – pode-se cogitar, no caso brasileiro, da futura incorporação de governos

subnacionais, o que beneficiará diretamente regiões de fronteira – terá efeito salutar

também para o Poder Público, permitindo, como salientamos anteriormente, uma

redução de custos resultante da crescente competição entre empresas da região.

7.4) Relacionamento Externo do Mercosul

O Mercosul tem procurado obter acesso a novos mercados e diversificar o

destino de suas exportações, consolidando-se como um importante ator

internacional. Para isso, estabeleceu, desde sua gênese, uma ambiciosa agenda de

negociações com outros países e blocos. Essa atuação externa do bloco teve início

quase que simultaneamente à sua criação137: em abril de 1991 realizou-se a primeira

reunião de Chanceleres Mercosul-União Européia e em junho de 1991 foi assinado

com os Estados Unidos o Rose Garden Agreement, ou Acordo 4+1, com o objetivo

de incrementar o comércio entre as duas partes.

Os entendimentos com dois dos principais pólos do comércio internacional

não ocorreu por acaso. Para o Mercosul, o estreitamento do relacionamento

137 Araújo, Ernesto H. F. O Mercosul: negociações extra-regionais. Brasília, FUNAG, 2007, p. 39.

Page 150: Mercosul PDF

150

comercial com a UE contribuía para contrabalançar o peso dos EUA no hemisfério.

Almejava-se, dessa forma, “um equilíbrio com seus dois principais parceiros”,

estratégia similar àquela tradicionalmente adotada pela diplomacia brasileira, motivo

pelo qual o relacionamento externo do bloco consubstanciava-se, à época, “em torno

de um raciocínio de natureza muito mais política e estratégica do que propriamente

comercial”138.

Em se tratando de uma união aduaneira, dotada de uma tarifa comum, é

natural que as negociações externas sejam levadas a cabo pelo bloco como um todo,

e não pelos países-membros individualmente. Caso um dos Estados Partes

negociasse, isoladamente, preferências tarifárias com parceiros de outras regiões,

acabaria por criar, na prática, diversas “perfurações” na TEC. Além disso, a

negociação em bloco confere, ao menos em tese, maior peso negociador a cada um

dos membros, que poderão, assim, ter maior influência no rumo das conversações.

Em contrapartida, não se pode esquecer que a exigência de coordenação impõe

dificuldades relacionadas à conciliação dos diferentes interesses e visões dos

integrantes do bloco.

Para além do aspecto propriamente econômico, as negociações em conjunto

são corolário da própria personalidade jurídica de direito internacional do Mercosul,

consagrada no POP. O Tratado de Assunção já deixava evidente a necessidade de

que o Mercosul atuasse, em matéria comercial, como um ator único, ao referir-se,

em seu artigo 1°, ao estabelecimento da TEC e à “adoção de uma política comercial

comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados”. A partir de

Ouro Preto, o CMC adquiriu a competência para assinar acordos em nome do bloco,

em substituição de cada um dos membros individualmente.

Em síntese, o fato de o Mercosul ter-se estabelecido, a partir de 1995, como

uma união aduaneira, tornou imprescindível que suas negociações externas fossem

empreendidas pelo bloco como um todo, e não por suas partes individualmente. Esse

138 Ibidem, p. 40.

Page 151: Mercosul PDF

151

“status” de união aduaneira dotou o Mercosul da unicidade necessária para se

manifestar, no plano comercial, como um sujeito de Direito Internacional Público139.

Em 2000, por meio da Decisão CMC N° 32/00, o Mercosul reiterou a

obrigatoriedade de que os Estados Partes negociem em conjunto acordos com

terceiros países ou blocos de países em que se outorguem preferências tarifárias.

Essa norma contém duas determinações básicas. A primeira delas diz respeito ao

fato de que os Estados Partes “reafirmam” seu compromisso de negociar acordos

comerciais com terceiros países ou blocos apenas de forma integrada. Temos uma

“reafirmação” porque o compromisso de negociar conjunto antecede, na verdade, a

própria Decisão CMC N° 32/00, remontando à constituição da união aduaneira: com

a TEC, tornava-se inviável negociar concessões tarifárias de maneira unilateral.

A segunda determinação diz respeito à esfera das negociações comerciais

regionais, no âmbito da ALADI. O art. 2° da Decisão n° 32/00 prescreve que os

acordos celebrados bilateralmente com outros parceiros no âmbito da ALADI antes

do estabelecimento da união aduaneira continuariam válidos. No entanto, a partir de

30 de junho de 2001 novos acordos no âmbito da ALADI que envolvessem

concessões comerciais só poderiam ser celebrados de maneira conjunta. Dessa

forma, ficou claro que tanto negociações regionais quanto extra-regionais só

poderiam ser levadas a cabo pelo bloco como um todo, e não por seus integrantes

individualmente.

À luz do que consta da Decisão CMC N° 32/00, podemos, por conseguinte,

distinguir duas categorias de parceiros. Na primeira estão incluídos os países do

âmbito da ALADI. Esse organismo, como vimos no início do presente trabalho,

oferece um “guarda-chuva” para uma série de acordos comerciais entre diferentes

países da América Latina. Por este motivo e também pela proximidade geográfica, é

natural que os parceiros privilegiados do Mercosul sejam os membros da ALADI,

com os quais os países do bloco já tinham, antes mesmo de se associarem, diferentes

acordos comerciais. Foi no marco da ALADI que o Mercosul estabeleceu seus

139 Silva, Marcos Rector Toledo. Mercosul e Personalidade Jurídica Internacional: as Relações Externas do Bloco Sub-Regional Pós-Ouro Preto. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 1999, pp. 54-55.

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152

primeiros acordos na condição de bloco econômico. Em ordem cronológica, foram

celebrados acordos com os seguintes países:

a) Chile: em 1996 o Mercosul celebrou acordo de livre comércio com o

Chile. Trata-se do Acordo de Complementação Econômica n° 35 (ACE-

35). O acordo previu que se estabeleceria uma área de livre comércio

entre as partes no prazo de 10 (dez) anos, por meio de um cronograma de

desgravação tarifária progressiva. Por essa razão, desde 2006 praticamente

todo o universo tarifário já se beneficia do livre comércio (a exceção são

alguns produtos considerados “sensíveis”). O acordo com o Chile tem

avançado progressivamente para diversos setores, incluindo o comércio de

serviços e de produtos originários de zonas francas.

b) Bolívia: Foi o segundo país da região a celebrar um ALC com o Mercosul,

também em 1996 (ACE-36). A exemplo do acordo com o Chile, previu a

conformação de uma ALC no prazo de dez anos. Desde 2006, apenas

alguns poucos produtos de maior sensibilidade para as partes ainda não

contam com 100% de margem de preferência.

c) Países Andinos (Colômbia, Equador e Venezuela): Em 2004, os Estados

Partes do Mercosul assinaram com Colômbia, Equador e Venezuela

(integrantes da “Comunidade Andina de Nações” - CAN) o ACE-59,

acordo de livre comércio que prevê cronograma de desgravação

diferenciado, em benefício dos países andinos e das duas economias

menores do bloco, Paraguai e Uruguai. O cronograma geral prevê

desgravações em até 12 anos.

d) Peru: Assinou ALC com o Mercosul em 2005, por meio da aprovação do

ACE-58. Os produtos exportados pelo Peru para Argentina e Brasil terão

desgravação total até 2012. Já os produtos exportados do Mercosul para o

Peru terão prazos de desgravação mais amplos, alongando-se até 2014.

Prevê-se também listas de produtos sensíveis, cujas tabelas de

desgravação vão além dos prazos indicados.

Page 153: Mercosul PDF

153

O êxito do Mercosul em negociar acordos comerciais com quase todos os

países da América do Sul permitiu que houvesse uma “multilateralização” de

acordos que antes se delimitavam ao plano bilateral. O bloco acabou, desse modo,

absorvendo compromissos que cada um dos Estados Partes mantinha

individualmente com diferentes parceiros do continente.

Além dos indicados, o Mercosul também mantém acordos de

complementação econômica com o México e Cuba, sem, porém, a mesma cobertura

daqueles mantidos com países sul-americanos. Neste caso, trata-se de “acordos-

quadro”, com marcos normativos gerais para a expansão das trocas bilaterais e com

a previsão de que as partes negociem, periodicamente, o aprofundamento de

preferências tarifárias recíprocas, a fim de que se alcance, no futuro, o livre

comércio. Na prática, isso resulta num processo de liberalização comercial menos

célere.

No caso do México, além de um acordo-quadro propriamente dito (ACE-54),

há acordo específico (ACE-55) exclusivo para o setor automotivo, estabelecido com

o objetivo de que se atinja, até 30 de junho de 2011, o livre comércio para esse

segmento. Ambos foram assinados em 2002. Como o México é integrante do

NAFTA, o encaminhamento de um acordo de livre comércio com o Mercosul

envolve complicações adicionais, razão por que o aprofundamento das preferências

tarifárias é mais lento. Com Cuba o Mercosul tem apenas um acordo-quadro (ACE-

62), cujo objetivo é o de impulsionar o comércio entre as partes por meio da redução

ou eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias. O acordo contém um programa

de liberalização comercial com um cronograma de desgravações tarifárias

recíprocas.

Ademais dos acordos no âmbito regional, isto é, daqueles envolvendo países-

membros da ALADI, o Mercosul possui vasta agenda negociadora com países e

blocos de outras regiões do globo. No entanto, até 2009 apenas três acordos de

maior amplitude foram assinados. O primeiro deles foi celebrado com a Índia, em

janeiro de 2004. Trata-se de um Acordo de Comércio Preferencial (ACP), espécie de

Page 154: Mercosul PDF

154

passo intermediário entre um Acordo-Quadro e um Acordo de Livre Comércio. O

ACP contempla apenas cerca de 10% das linhas tarifárias, distribuídas em setores

específicos. Acordaram-se, ademais, normas comuns sobre diferentes temas, tais

como defesa comercial, barreiras técnicas, solução de controvérsias e medidas

sanitárias e fitossanitárias.

O segundo – e mais relevante do ponto de vista simbólico, por se tratar de um

Acordo de Livre Comércio – foi assinado com Israel, em dezembro de 2007, após

dois anos de negociações. O acordo prevê “cestas de desgravação” em diferentes

categorias. Há produtos para os quais houve concessão de desgravação imediata e

outros para os quais a desgravação de prolongará durante até 10 anos. Para algumas

categorias de produto prevê-se, inclusive, a existência de quotas.

Em junho de 2008 o Mercosul já assinou Acordo-Quadro com a Turquia. No

documento, ambas as partes manifestam o interesse em encetar o diálogo, por meio

da criação de um Comitê Negociador encarregado de discutir o estabelecimento de

uma área de livre comércio.

Por fim, o Mercosul logrou assinar, em dezembro de 2008, ACP com a União

Aduaneira da África Austral (SACU), bloco que reúne África do Sul, Botsuana,

Lesoto, Namíbia e Suazilândia. A idéia é que este acordo sirva de base para o

gradativo aprofundamento da relação entre os blocos (seu artigo 2° estabelece que as

partes “acordam estabelecer margens de preferências tarifárias fixas como um

primeiro passo para a criação de uma Área de Livre Comércio”) ou, ainda, para a

celebração de acordo trilateral entre Mercosul, SACU e Índia. A exemplo do acordo

com a Índia, o ACP com a SACU contempla, além de preferências tarifárias fixas,

disciplinas sobre diferentes matérias comerciais, tais como regras de origem,

salvaguardas, valoração aduaneira e barreiras técnicas ao comércio.

Afora os acordos já concluídos, o Mercosul têm empreendido negociações,

que ainda estão em curso, com diversos outros países e blocos, tais como com a

União Européia (com a qual o Mercosul tem negociado, desde 1995, um “Acordo de

Associação”), Conselho de Cooperação do Golfo, Marrocos, Rússia, Paquistão e

Egito.

Page 155: Mercosul PDF

155

7.5) A adesão da Venezuela ao Mercosul

Em julho de 2006 foi assinado o Protocolo de Adesão da Venezuela ao

Mercosul. A iniciativa foi saudada pelos governos dos países envolvidos como um

importante passo tanto para o fortalecimento do bloco quanto para a progressiva

constituição de uma área de livre comércio no âmbito da América do Sul.

A adesão da Venezuela representou um desafio inédito. Uma vez

manifestado, no segundo semestre de 2005, o interesse do país vizinho em deixar o

“status” de Estado Associado para tornar-se membro pleno, tiveram início as

negociações sobre os procedimentos necessários para a aquisição da nova condição.

Em dezembro de 2005, durante a reunião do CMC realizada em Montevidéu, foi

aprovada, especificamente em resposta à solicitação venezuelana, a Decisão CMC

N° 28/05, que regulamenta o artigo 20 do Tratado de Assunção. Esse dispositivo é

genérico, limitando-se a estabelecer que o Mercosul está aberto à adesão dos demais

membros da ALADI. Sua regulamentação consubstanciava passo necessário para o

desenvolvimento do processo de adesão.

A Decisão CMC N° 28/05 determina que as solicitações de adesão ao Tratado

de Assunção devem ser aprovadas por meio de Decisão do CMC. Caso sejam

aprovadas, os procedimentos específicos serão negociados no âmbito de um Grupo

“Ad Hoc”, sendo necessário o atendimento de seis requisitos básicos:

a) adesão aos três instrumentos jurídicos fundamentais do Mercosul:

Tratado de Assunção, Protocolo de Ouro Preto e Protocolo de Olivos para

Solução de Controvérsias;

b) adoção da TEC, por meio da definição de um cronograma de

convergência;

c) adesão ao ACE Nº 18 e seus Protocolos Adicionais, por meio da

negociação de um programa de liberalização comercial;

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156

d) adoção do acervo normativo do Mercosul, inclusive das normas em

processo de incorporação;

e) adoção dos instrumentos internacionais celebrados no marco do

Tratado de Assunção; e

f) negociação da incorporação aos acordos celebrados no âmbito do

Mercosul com terceiros países ou grupos de países.

O Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul estabeleceu o prazo de 4

(quatro) anos para a incorporação do acervo normativo do Mercosul, da NCM e da

TEC, a contar a partir de sua entrada em vigência. O Protocolo estabeleceu,

ademais, prazos para a liberalização do comércio entre a Venezuela e os Estados

Partes do bloco. A Venezuela deixaria de gravar as importações dos países do

Mercosul até 2012. Por outro lado, Argentina e Brasil deixariam de cobrar o imposto

de importação dos produtos venezuelanos a partir de 2010. Paraguai e Uruguai o

fariam a partir de 2013.

Embora tenha havido progressos na negociação de cronogramas para a

incorporação do acervo normativo do bloco, da NCM e da TEC, permaneciam, até o

início de 2009, pendências na negociação do programa de liberalização comercial -

uma das condições, como vimos, para a conclusão do processo de adesão - do Brasil

e da Argentina com a Venezuela. A principal delas referia-se a divergências em

torno da elaboração, pelo lado venezuelano, de listas de “produtos sensíveis” que

estariam excluídos do livre comércio. De todo modo, o Protocolo de Adesão ainda

não havia, até a data indicada, entrado em vigor, por ainda aguardar aprovação

parlamentar no Brasil e no Paraguai, razão por que a contagem dos prazos nele

estabelecidos ainda não fora iniciada.

Ademais do interesse político em torno da incorporação de um novo membro

ao Mercosul, há um evidente interesse econômico nas negociações entre as partes. O

comércio bilateral com a Venezuela passou a representar, nos últimos anos, parcela

crescente do superávit comercial brasileiro. Segundo dados do MDIC, em 2008 o

saldo comercial brasileiro com o país vizinho atingiu a cifra de US$ 4,6 bilhões,

Page 157: Mercosul PDF

157

superior, por exemplo, àquele obtido com a Argentina. O comércio bilateral cresceu,

entre 2002 e 2008, mais de 297%. Esses números explicam o grande interesse de

parte do setor privado brasileiro em concretizar a adesão da Venezuela ao bloco, o

que poderá aumentar os fluxos de trocas por meio da redução das barreiras tarifárias

e não-tarifárias.

Acresça-se a isso o argumento de que a incorporação de um país da porção

setentrional do continente poderia ter efeitos positivos no comércio com a região

Norte do Brasil. O setor empresarial de estados como o Amazonas (especialmente

em função da Zona Franca de Manaus, cujo “status” no comércio com a Venezuela

deverá ser discutido) e Roraima têm grande interesse em integrar suas cadeias

produtivas à do país vizinho.

Enquanto prosseguem as discussões técnicas para a incorporação da

Venezuela ao bloco, esse país têm participado das reuniões dos diferentes foros do

Mercosul com direito a voz (mas não a voto), na condição de “Estado em processo

de adesão”.

Page 158: Mercosul PDF

158

PERSPECTIVAS PARA O FUTURO PRÓXIMO

As dificuldades encontradas pelo Mercosul no plano econômico-comercial

são hoje bastante conhecidas e objeto de discussão pública. As assimetrias entre as

economias dos Estados Partes se mostram determinantes para a persistência das

chamadas “exceções” à TEC, para a exclusão de importantes setores, como o

automobilístico, do livre comércio, e para a estagnação das discussões em torno da

adoção de políticas comuns em diferentes setores, especialmente em matéria de

defesa comercial, da concorrência e coordenação de políticas macroeconômicas.

Consideradas as vicissitudes do bloco, podemos fazer um balanço a partir de

duas perspectivas distintas. Do ponto de vista dos ambiciosos objetivos traçados no

Tratado de Assunção, o Mercosul teve um êxito apenas parcial e ainda corre riscos

de retrocesso, tais as dificuldades existentes na administração de suas mais

importantes ferramentas, como a TEC. Por outro lado, e deixando de lado uma

leitura estrita dos objetivos e prazos iniciais fixados no tratado que institui o bloco,

não foram poucas as conquistas obtidas nesse período. Além da expansão do

comércio, que oscilou de acordo com as instabilidades econômicas enfrentadas pelos

países do bloco, notadamente no final dos anos 90 e início da presente década, foram

criados também diferentes mecanismos de encaminhamento para as pendências

entre os países do bloco. Embora ainda haja espaço para avançar, pôde-se obter,

igualmente, uma crescente harmonização de normas e regulamentos técnicos, o que

contribuiu, a despeito das dificuldades ainda existentes, para facilitar o comércio.

Para além de questionar os resultados do bloco, seria o caso de indagar em

que ponto estaríamos sem ele. Contabilizados os problemas, fica claro que o

Mercosul engendrou a criação de uma institucionalidade que é útil na resolução de

problemas concretos e propiciou, ademais, uma aproximação jamais vista entre seus

Estados Partes. Cabe aqui retomar a idéia de parceria estratégica: o cálculo que se

deve fazer é não apenas mercantilista, mas também político. No longo prazo, a

crescente interdependência entre as economias do Cone Sul trará também

dividendos positivos – o principal deles é a apropriação, pela sociedade civil, de

Page 159: Mercosul PDF

159

parte da agenda do bloco. Existe hoje um diálogo e um conhecimento entre as

autoridades de cada um dos países que não seria possível caso não existisse o

Mercosul. A cooperação em distintos setores, que vão da previdência social até a

agricultura familiar, não pode ser menosprezada, tendo repercussões positivas

também no domínio econômico-comercial.

Passados 18 anos, os dois problemas centrais que se colocam para os Estados

Partes ainda fazem parte da agenda inicial do bloco: a consolidação do livre

comércio e a integridade da TEC. No primeiro caso, a existência de algumas

barreiras não-tarifárias, justificadas ou não, acaba gerando ceticismo nos operadores

econômicos com relação à efetiva capacidade do Mercosul de liberalizar as trocas.

As crises econômicas internacionais (final de década de 90, e, mais recentemente, a

partir de 2008) têm contribuído, periodicamente, para afetar o livre comércio

intrazona. Ainda há um trabalho a se fazer nesse terreno, o que depende, sobretudo,

de uma maior cooperação entre os Estados Partes no sentido de aperfeiçoar a

qualidade da produção e gerar uma maior sinergia entre as entidades nacionais

responsáveis pela regulamentação técnica e por controles de natureza sanitária e

fitossanitária, por exemplo.

Uma maior integração produtiva e associação entre as empresas da região é

elemento fundamental nessa estratégia. Como vimos no início deste trabalho, o

interesse em cooperar em setores estratégicos e de elevado valor agregado – como o

de bens de capital ou naval, para mencionar dois exemplos – foi uma das forças que

impulsionaram a constituição do Mercosul. Mais uma vez, as crises econômicas

enfrentadas pelos países do bloco nos anos 90 acabaram por debilitar esse projeto.

Esse objetivo não pode, porém ser abandonado. Afinal, o estabelecimento de um

espaço econômico comum sempre foi visto como um meio para aumentar a

competitividade das empresas da região no cenário internacional – e o

aproveitamento de complementaridades é instrumento indispensável para a

consecução desse objetivo. A maior integração entre os setores privados é

fundamental não apenas para alavancar o comércio intra-Mercosul, mas também

Page 160: Mercosul PDF

160

para criar melhores condições de inserção dos países do bloco no cenário

internacional.

O cenário de curto e médio prazo de administração da TEC continuará

provavelmente oferecendo dificuldades. O caso mais complexo é aquele relativo aos

setores de bens de capital e de bens de informática e telecomunicações. Como

vimos, os interesses brasileiros em proteger sua indústria doméstica chocam-se,

desde o início do bloco, com a aspiração dos demais países em reduzir os custos de

importação de máquinas e equipamentos necessários para suas economias. Os

diversos cronogramas de convergência tarifária para esses segmentos não foram

cumpridos, não se verificando indícios consistentes de que isso venha a ocorrer em

futuro próximo, muito embora tenha sido criado, em dezembro de 2008, um Grupo

“Ad Hoc” específico para tratar do tema e discutir o estabelecimento de um

cronograma de convergência tarifária entre os Estados Partes.

O fortalecimento institucional do bloco também é passo importante para que

se avance na consolidação da união aduaneira. Ferramentas básicas para um

processo de integração – como a criação de uma base de dados comum com

estatísticas de comércio – ainda não estão disponíveis no âmbito do Mercosul, o que

resulta em pouca transparência e menor conhecimento recíproco. Essas deficiências

pontuais acabam dificultando, por outro lado, avanços na concepção de políticas

comuns sem setores fundamentais, tais como no campo da defesa comercial e da

concorrência.

Não se pode deixar de ter em conta, além disso, que o sucesso ou insucesso

de qualquer projeto de integração econômica dependem de fatores de ordem política.

A vontade dos governos de ir adiante, ainda que isso acarrete algum tipo de ônus

junto a setores internos, é indispensável para evitar paralisia e impasses nas

negociações. É natural, portanto, que em determindas conjunturas haja, conforme o

grau de afinidade política dos governos da região, maior ou menor entusiasmo com

as políticas de integração,

Como já pudemos observar, o Mercosul ainda tem um longo caminho a ser

percorrer. Não é possível estimar em que prazo e condições poderá ele atingir seus

Page 161: Mercosul PDF

161

objetivos iniciais. Os desafios existentes devem ser vistos, contudo, como um

estímulo adicional para que os Estados Partes continuem trabalhando para o

fortalecimento do bloco e de sua institucionalidade, a partir do pressuposto de que a

integração gera benefícios permanentes não apenas no terreno econômico, mas

também em diversos outros campos, ao aproximar, de maneira irreversível, as

sociedades dos países da região.

Page 162: Mercosul PDF

162

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