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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA MAURECI MOREIRA DE ALMEIDA IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO NAS TELENOVELAS BRASILEIRAS CUIABÁ-MT 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA

CONTEMPORÂNEA

MAURECI MOREIRA DE ALMEIDA

IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO NAS TELENOVELAS BRASILEIRAS

CUIABÁ-MT

2015

MAURECI MOREIRA DE ALMEIDA

IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO NAS TELENOVELAS BRASILEIRAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade

Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre.

Área de concentração: Comunicação e Mediações

Culturais.

Orientador: Prof. º Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues

CUIABÁ-MT

2015

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

A447i Almeida, Maureci Moreira de.

Ideologia do branqueamento nas telenovelas brasileiras / Maureci

Moreira de Almeida. – 2015.

159 f. ; 30 cm.

Orientador: Francisco Xavier Freire Rodrigues.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2015.

Inclui bibliografia.

1. Ideologia do branqueamento. 2. Racismo. 3. Telenovelas -

Racismo. 4. Telenovelas brasileiras - Negros. I. Título.

CDU 323.14(=414):792.097(81)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099

Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte

Dedico este trabalho à Cristina Peixoto e ao Arthur

Aparecido: razões de um viver.

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer primeiramente à minha esposa Cristina Peixoto, pois, sem sua

dedicação, apoio e incentivo esta pesquisa seria mais difícil de ser realizada. Além disso,

forneceu-me as bases matérias fundamentais do cotidiano, para que eu pudesse escrever com

concentração e com entusiasmo. Por outras inúmeras vezes, trocamos ideias sobre o tema que

estava pesquisando, revendo alguns conceitos ou argumentos em busca de um melhor

entendimento.

À minha Mãe, meus irmãos e, especialmente, minha irmã Divina Elecir e seu esposo

Antônio Silva, pelo amparo logístico durante o período de cumprimento dos créditos. Com as

idas e vindas de Pontes e Lacerda-Cuiabá, Cuiabá-Pontes e Lacerda, sempre contribuíram

com o meu deslocamento para a rodoviária durante às noites.

Aos meus familiares de Cáceres (minha sogra, sogro e as minhas cunhadas), pelo

incentivo e acolhimento no período em que estive hospedado na residência deles. Pois, parte

da escrita deste trabalho também foi realizada por lá, com o advento do nascimento de meu

filho Arthur Aparecido.

Ao meu orientador Prof. Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues, intelectual,

pesquisador da realidade brasileira e sociólogo do esporte de primeira grandeza. Sem

mencionar que é um colorado roxo e apaixonado pelo seu time de alma e coração: o

Internacional Futebol Clube. Obrigado, professor, pelas suas orientações, pelas conversas

instrutivas e por contribuir com minha formação intelectual. Quanto maiores as capacidades

intelectuais, maior é a responsabilidade social. Isso está expresso em sua atuação no mundo

acadêmico e científico.

À Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso - SEDUC/MT, por ter-me

concedido o afastamento para que eu pudesse realizar com dedicação esta pesquisa. Pois,

acredito que a mesma poderá contribuir com uma educação antirracista, no diagnóstico da

ideologia do branqueamento, bem como na reflexão da problemática racial existente em nossa

sociedade.

Aos meus colegas do CEFAPRO de Pontes e Lacerda, que contribuíram comigo

incentivando e destacando a importância da realização desta pesquisa na temática racial para a

educação.

À FAPEMAT – Fundação de amparo à pesquisa do Estado de Mato Grosso pela bolsa

concedida para a realização desta pesquisa.

Às professoras Dr.ª Maria Thereza de Oliveira Azevedo, Dr.ª Patricia Silva Osório

(UFMT) e ao professor Dr. José Jairo Vieira (UFRJ) pela avaliação precisa na qualificação de

minha dissertação, cujas as arguições contribuíram para enriquecimento deste trabalho.

Ao professor Dr. Paulo Alberto dos Santos Vieira pela avaliação e participação em

minha banca de defesa.

Aos professores do ECCO/UFMT, cujas aulas ministradas foram importantes para

pensar meu objeto de pesquisa e melhorar as argumentações e ampliando as referências

teóricas.

Aos meus colegas de estudo do ECCO/UFMT/2013, em especial a Lairce Aleluia

Campos, Elisana Alves, Jordan Antônio, Renata Vilela, meu amigo decolonial Daniel

Peligrini, Juliano Batista, Neemias Souza, grande designer gráfico, e Caroline Christine,

filósofa cuiabana.

Ao amigo Wuldson Marcelo, pelas conversas em torno da problemática racial e pela

revisão de meus textos.

RESUMO

Esta investigação tem como foco a questão do racismo no Brasil que ressoa nas telenovelas

brasileiras, por meio da ideologia do branqueamento. Procuramos compreender o porquê da

pouca presença negra no contexto e no enredo das telenovelas brasileiras. À vista disso, esta

pesquisa busca discutir como as telenovelas representam os negros, e quais as possíveis

consequências disso no processo de identificação racial desse grupo. Uma vez que, sempre se

acreditou na ideia de que não haveria problemas raciais no Brasil. Por outro lado,

reconhecemos que a cultura afro-brasileira, mesmo que muitas vezes negada e tratada de forma

estereotipada, está presente nas telenovelas, mas sem o problema do racismo ser abordado

abertamente. De acordo com isso, imaginamos que a ideologia do branqueamento seja um mote

necessário de discussão na educação escolar, sobretudo no ensino médio. Nesse sentido, a

presente pesquisa busca, a partir do que é veiculado pelas telenovelas, refletir sobre o alcance

do mito da democracia racial. Este último, ao longo da história social do Brasil, fora usado

como artimanha de manutenção dos privilégios e status quo das elites brancas. A realização

dessa pesquisa teve como metodologia uma revisão bibliográfica na temática racial, na

ideologia do branqueamento e na Lei 10.639/2003. Analisamos também a novela da Rede

Globo “Lado a Lado”, de 2012, como uma produção que destacou a história do negro na

cultura brasileira. Mesmo assim, esta produção não deixou de ser branqueada. Percebemos,

desse modo, que a ideologia do branqueamento talvez seja uma das principais características do

racismo à brasileira difundido pela televisão, sendo veiculada pelo principal produto

audiovisual incorporado à cultura nacional, que são as telenovelas. Com isso, suspeitamos que

as novelas sejam uma das formas de manutenção dessa ideologia, que, fragiliza a consciência

de pertencimento racial da população negra telespectadora das telenovelas nacionais.

PALAVRAS-CHAVE: Ideologia do Branqueamento. Racismo. Telenovelas. Educação.

RÉSUMÉ

Cette recherche porte sur la question du racisme au Brésil, qui résonne dans les feuilletons

brésiliens, par l'idéologie du blanchiment. Chercher à comprendre le peu de présence noire dans

le contexte et l'intrigue des téléromans brésiliens. Nous cherchons également à étudier

comment se produit la prédominance de l'idéologie de blanchiment dans la consolidation du

mythe brésilien de la démocratie raciale. En outre, cette recherche discute comment feuilletons

télévisés représentent les Noirs, et quelles sont les conséquences possibles dans les processus

d'identification raciale de ce groupe. Depuis, toujours cru en l'idée qu'il n'y aurait pas de

problèmes raciaux au Brésil. D'autre part, nous reconnaissons que la culture afro-brésilienne,

même si souvent nié et traités de manière stéréotypée, est présent dans les feuilletons, mais sans

le problème du racisme être abordée ouvertement. Ainsi, nous proposons une réflexion sur

l'image des Noirs dans les feuilletons, et savoir la raison de sa rare présence en eux, il serait

peut-être l'un des effets de blanchiment, qui valorise plus l’esthétiques et les valeurs morales

des personnages phénotypiquement blancs. De cette façon, nous imaginons que l'idéologie de

blanchiment peut être une devise de discussion dans l'éducation par l'intermédiaire de l'école,

en particulier à l'école secondaire. Par conséquent, cette recherche vise, à partir de ce qui est

véhiculé par les feuilletons, réfléchir un peu sur l'étendue du mythe de la démocratie raciale. Ce

dernier, le long de l'histoire sociale du Brésil, a été utilisée comme une ruse pour maintenir le

statu quo et privilèges des élites blanches. Pour la production de cette recherche, a été adoptée

comme méthode une revue de la littérature sur la question raciale, l'idéologie du blanchimentet

et la Loi 10.639 / 2003. Nous analysons également le téléroman "Lado a Lado" de chaîne Rede

Globo, produit en 2012, comme une production qui soulignait l'histoire des Noirs dans la

culture brésilienne. Cependant, cette production n'a pas manqué d’être blanchi. Nous nous

rendons, par consequente, que l'idéologie de blanchiment, peut-être soi une des principales

caractéristiques de le racisme brésilienne diffusé à la télévision. Cette idéologie est véhiculée

par le principale produit audiovisuel intégrée dans la culture nationale, qui sont les feuilletons.

Nous pensons qu'il ya un processus de maintenance, qui peut être intentionnelle ou non, qui

affaiblit la conscience de l'origine raciale des hommes et des femmes noires téléspectateurs des

feuilletons télévisés nationaux.

MOTS-CLÉS: Idéologie de Banchiment; Racisme; Feuilletons Télévisés; Éducation.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................10

CAPÍTULO I - Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça .......................20

1.1 A ideia de classe social como justificativa das desigualdades e hierarquias

raciais........................................................................................................................................20

1.2 Raça: um conceito controverso ..........................................................................................35

CAPÍTULO II - Televisão e telenovelas: breve introdução teórica ..................................54

2.1 A Escola de Frankfurt ........................................................................................................54

2.2 Os Estudos Culturais ..........................................................................................................57

2.3 A televisão: efeitos sociais .................................................................................................60

2.4 A telenovela brasileira e sua origem ..................................................................................70

2.5. Radionovela como precursora das telenovelas ...............................................................................74

2.6. As telenovelas e as temáticas sociais ................................................................................76

2.7. Ideologia do branqueamento: teorias raciais e as telenovelas .........................................88

2.8. Branqueamento: entre os dados oficiais e a influência ideológica-moral....

.................................................................................................................................................100

CAPÍTULO III - Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela “Lado a Lado”

como um caso emblemático .................................................................................................107

3.1. Especificações e breve resumo da novela “Lado a Lado” ..............................................108

3.2. Ideologia do branqueamento e a telenovela “Lado a Lado”: expressões da cultura afro-

brasileira .................................................................................................................................115

CAPÍTULO IV – Lei 10.639/2003 ......................................................................................141

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................151

10

INTRODUÇÃO

O Brasil é considerado o país com maior população negra fora do continente africano

(PEREIRA e WHITE, 2001), sendo que a Nigéria é o único país da África a comportar uma

população de mais de 170 milhões de habitantes. Mesmo assim, o racismo contra a população

negra e a problemática racial sempre marcaram o desenvolvimento, a formação histórica e as

dinâmicas sociais no Brasil. As interpretações e os diversos estudos envolvendo essa

problemática, apesar de antigos, pautaram-se, com raras exceções, na crença e no discurso

proferido por muitos estudiosos do assunto, embora conservadores e racistas, de que por aqui

não haveria conflitos raciais (SANTOS, 1984) tão graves que merecessem cuidados

específicos. Em conformidade com esta crença, grande parte da sociedade brasileira parece

acreditar que as “raças” existentes em solo nacional interagem harmonicamente, mantendo

contatos sociais tranquilos e sem hostilidades. Desse modo, estabelecendo um “verdadeiro”

exemplo positivo das relações raciais para outros lugares no mundo, onde o problema racial é

aberto, conflituoso e declarado. Segundo Santos, “[...] a ideia de que ‘aqui não temos desses

problemas’ está profundamente enraizada em nossas cabeças” (SANTOS, 1984, p. 42 [grifos

do autor]). Para sustentar esta negação, foi introjetado na mentalidade dos brasileiros, ao

longo da história, o mito de que imperava uma fantástica democracia racial no país. No

entanto, parece-nos, de acordo com os estudos dos autores e especialistas no assunto que

analisamos, a democracia racial nunca existiu de fato. Sugerindo assim, que nada mais era do

que (e continua sendo) uma artimanha de manutenção por parte das elites brancas em fazer

permanecer o status quo, os inúmeros privilégios e os muitos interesses econômicos, políticos

e sociais vinculados, desde sempre, ao segmento racial branco no Brasil.

Inteiramente ligada ao mito da democracia racial está a ideologia do branqueamento,

que se desenvolveu no final do século XIX e início do século XX, configurando-se como

fonte de desejo das elites de branquear a nação brasileira, e livrá-la do problema negro,

principal obstáculo, segundo alguns políticos e intelectuais da época, a impedir o país de

alavancar-se em seu projeto econômico e de modernidade.

Assim, a ideologia do branqueamento é a mais contundente marca do racismo à

brasileira. Apesar de transcorrido todo esse tempo, o desejo de branqueamento do brasileiro

ainda não se apagou. Parece estar expresso e representado, agora de maneira mais perspicaz e

contagiante, nos meios de comunicação de massa, em especial na programação da televisão

brasileira e difundido pelo principal produto audiovisual incorporado à cultura nacional, que

são as telenovelas.

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Pelo que aparentam, as telenovelas brasileiras talvez sejam, ao menos no campo da

cultura audiovisual, as principais inspiradoras do atual desejo de branqueamento junto à

população telespectadora. A plausibilidade da afirmação tem por base o destaque que as

exibições novelísticas oferecem ao fenótipo branco, associando-o a ideia de beleza, de

riqueza, de prosperidade e de comportamento virtuoso, e relacionando o negro quase sempre a

pobreza, ao insucesso, a criminalidade, a sensualidade e ao aspecto estético depreciativo. Isso

parece desfavorecer a percepção identitária dos afro-brasileiros de forma mais afirmativa,

induzindo-os a acreditar ideologicamente na supremacia branca. Em decorrência disso,

sugerimos que podem suceder dois fatos: a dificuldade do reconhecimento de muitos

afrodescendentes como negro e o desprestigio do fenótipo negro por esse próprio segmento

racial, que assiste e se entretém com as telenovelas estruturadas na ideologia do

branqueamento.

As telenovelas na cultura contemporânea brasileira recebem demasiada influência do

sistema capitalista, cujo interesse é a obtenção de lucro e manutenção dos privilégios dos que

estão na situação de dominantes, como no caso das elites brancas. As telenovelas brasileiras

são um produto da indústria cultural, sendo a própria expressão dos valores euro-norte-

americano, que estão estritamente vinculados ao sistema econômico vigente. Esses valores

ancoram-se em uma visão de mundo judaico-cristão-ocidental, que, por sua vez, parece

reforçar um único padrão de referência fenotípica de pessoa, o leucodérmico, ou branco

europeu (MOORE, 2007), ao que é atribuído os sucessos e as virtudes necessárias para

transformar e fazer avançar o mundo.

Os filósofos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985), nesse sentido,

aparentam estar em sintonia com o que foi exposto anteriormente, ao argumentarem que a

indústria cultural é alimentada pelas concepções e visão da realidade conforme a sociedade na

qual está inserida, mantendo uma relação dialética de troca. Por exemplo, quando os

produtores das telenovelas brasileiras se inspiram na história e no sofrimento que foi a

escravidão que ocorreu no Brasil, para produzirem e organizarem o enredo de suas novelas,

como no caso de “Xica da Silva” (1996, Rede Manchete), acabam escondendo inúmeros fatos

que constituíram esse episódio de nossa história, acreditando que não fariam sucesso junto ao

público telespectador se abordados.

Essa forma de produzir as telenovelas brasileiras favorece o ideário do

branqueamento, pois nega, incutindo habilmente, a severidade e o drama que foi a escravidão

no Brasil, disseminando uma concepção de conhecimento e valores corrompidos e

romantizados desse acontecimento. Contribuindo, assim, para estabelecer uma noção de vida,

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cultura e comportamento na sociedade brasileira que propicia a desconsideração quanto à

diversidade racial do Brasil, realizando a manutenção dos preconceitos em relação à

alteridade.

Dessa maneira, a indústria cultural, com seus produtos audiovisuais

predominantemente embranquecidos, fragiliza a identidade negra. E, de que modo as

telenovelas tornam ativa esta fragilização? Há uma abordagem da identidade negra na trama

novelística? Quais são os estereótipos em relação ao negro recorrentes nas telenovelas? Estas

são algumas questões importantes, pelo menos a nosso ver, que perpassam a compreensão do

racismo à brasileira. Pois, a identidade negra veiculada pela teledramaturgia sempre foi virtual

e distanciada do componente real da cultura negra brasileira. Os estereótipos criados em

relação ao negro, de que é um ser carregado de energia sensual, de malandragem e de força

física, são os exemplos desse distanciamento fomentado por esses rótulos raciais.

Esse procedimento da televisão e das telenovelas revelam um pouco da situação racial

brasileira, deixando evidente a negação da representação na ficção da maior parte da

população, constituída por negros, que possivelmente fragilizam suas identidades.

Nessa perspectiva, Joel Zito Araújo (2004) enuncia que o sistema de classificação e a

ideologia do branqueamento dificultam o desenvolvimento do sentimento de pertencimento

racial da população negra, que a televisão parece acentuar através das telenovelas.

Araújo (2004) também alerta para outro problema na formação da identidade negra

brasileira: a ideologia da mestiçagem, que é difundida pela televisão e inserida nas novelas

como uma das grandes características do Brasil. Pelo que sugere o autor, essa ideologia,

principal pano de fundo estruturante das relações raciais brasileiras, parece ter auxiliado na

criação e na manutenção do mito da democracia racial. Sendo que a mestiçagem sempre foi

concebida pelos cientistas, políticos e intelectuais brasileiros, especialmente os do início do

século XX, como uma espécie de passagem, em que as “raças” inferiores se purificariam ao

sofrer o processo de miscigenação, diluindo os aspectos fenotípicos do negro, incorporados e

apagados no fenótipo da população branca (ARAÚJO, 2006).

Diante dessas conjecturas, como a telenovela brasileira atuaria na difusão da ideologia

da mestiçagem e do mito da democracia racial? A resposta para esta indagação, de acordo

com que estamos concebendo, ao tratar da representação do negro e da ideologia do

branqueamento nas telenovelas, é apresentada por Araújo (2006) da seguinte maneira:

E hoje, os mitos da “raça cósmica”, ou do “mulato inzoneiro” que resultaria

na formação de um homem novo ideal nas Américas, revelam-se apenas

13

como celebrações discursivas do passado, e caem por terra quando

observamos as telenovelas brasileiras, mexicanas, colombianas,

venezuelanas, ou produzidas em qualquer parte da América Latina, que

funcionam como os melhores atestados de que sempre prevaleceu à

ideologia da branquitude como formadora do padrão ideal de beleza e, ao

mesmo tempo, como legitimadora da ideia de superioridade do segmento

branco. A escolha dos galãs, dos protagonistas, celebra modelos ideais de

beleza europeia, em que quanto mais nórdicos os traços físicos, mais

destacado ficará o ator ou atriz na escolha do elenco (ARAÚJO, 2006, p.

76).

Esses apontamentos do autor revelam que o tipo físico celebrado e idealizado pelos

telespectadores de telenovelas serão os modelos fenotipicamente brancos, cuja ideia de beleza

é sempre associada ao seu biótipo. Em relação aos atores e as atrizes negros e mestiços

brasileiros “[...] independente da fusão racial a que pertencem [...]” (ARAÚJO, 2006, p. 77) se

aparentam traços acentuadamente não brancos, serão vitimados pelos estereótipos dos papéis

que interpretarão nas telenovelas.

Dessa maneira, quando o negro e o indígena aparecem nas telenovelas trazem consigo

os vestígios dos estereótipos que a condição racial brasileira impõe a esses grupos:

subalternidade, malandragem, aspecto estético negativo, sensualidade e ingenuidade. Esse

estratagema dificulta a afirmação de uma identidade racial mais positiva da população negra.

Aquelas identidades que social e historicamente sempre foram esquecidas,

desprestigiadas e negadas, por exemplo, a negra, na teledramaturgia é condicionada a se

manifestar de forma apagada e fragmentada. Desencadeando uma percepção social do

segmento negro estereotipado e deslocado virtualmente das suas raízes culturais. Isso pode,

em certa medida, inviabilizar e gerar uma crise na questão do reconhecimento da pertença

racial.

Entretanto, seria bom ressaltar que as telenovelas não são capazes sozinhas de

produzir este efeito, já que a discriminação racial, o racismo e a ideologia do branqueamento

são construções sociais forjadas ao longo da história da formação do país. O que buscamos

refletir e discutir, por meio desta pesquisa, é que as telenovelas, possivelmente, fortalecem a

crise da concepção de pertencimento racial na população negra no Brasil. Em conformidade

com isso, Bauman (2005) aponta que o mundo contemporâneo passa por uma crise de

identidade. Sendo que as culturas subalternizadas pelas elites dominantes eurocêntricas, estão

com as formas de se ver e de representar comprometidas e fragmentadas. Nesse sentido, as

telenovelas exerceriam uma função ideológica, intencional ou não, subalternizando os

segmentos étnicos com menor poder de representação política, cultural e social. Assim, o

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brasileiro cuja ascendência seja negra (pretos ou pardos) encontra dificuldade de se

reconhecer como negro. É lhe imposto a todo o momento, no convívio social e pelos meios de

comunicação de massa, sobretudo pela televisão e em particular pelas telenovelas, que seu

modo de ser deve se aproximar e se identificar com a cultura euro-norte-americana, ou seja,

com as bases ideológicas que compõem a mentalidade da elite branca brasileira.

Por esse prisma, os produtores das novelas, querendo ou não, ajudam a camuflar, junto

aos telespectadores, a percepção mais detalhada dos problemas sociais, por exemplo, a

questão do racismo no Brasil, ao enfatizarem, nos enredos novelísticos, à subordinação do

negro em relação ao branco. Na lógica racista da sociedade brasileira, as telenovelas parecem

exercer um papel terrível ao reforçarem, como naturais, as posições sociais e os lugares

ocupados pelos negros e pelos brancos. Em um detalhe sutil, sugerem que a fonte de

inspiração, para a ocupação dessas posições sociais, estaria alicerçada em uma suposta

hierarquia das raças, que insistem em destacar ideologicamente, sem tratar disso abertamente.

Saber, portanto, em que estrutura ideológica está fundada, por exemplo, o conteúdo

das novelas brasileiras, pode contribuir no desenvolvimento de uma consciência mais crítica

em relação aos produtos audiovisuais exibidos nos canais abertos.

A ideologia do branqueamento, nesta perspectiva, faz parte da estrutura dos produtos

audiovisuais, apresentando o negro quase sempre de modo estereotipado, e com sua

identidade fragilizada por concepções preconceituosas, abstratas e separadas da identificação

com a cultura negra. Desconsiderando assim, o forte hibridismo dessa cultura (CANCLINI,

1990) na sociedade brasileira.

Por esse ângulo, pode-se perceber como está sistematizada a indústria cultural

brasileira, sendo inspirada e influenciada pelos modelos euro-norte-americano. A telenovela,

dessa maneira, se torna [...] “não só o elemento-chave do desenvolvimento industrial da

televisão brasileira e latino-americana, como também o programa mais legítimo nas

preferências populares” (ARAÚJO, 2004, p. 19). Por fazerem parte dessas preferências, as

telenovelas têm grande acesso aos lares brasileiros. Nesses discursos, linguísticos e visuais,

um modelo estético dominante de pessoa é construído ao apresentar o branco sempre em

primeiro plano nas telenovelas, branqueando a referência identitária e fragilizando a

autoafirmação de outros grupos étnicos, como os afro-brasileiros.

A telenovela é um formato moderno dos antigos folhetins, e carrega forte carga

simbólica, transmitida pela televisão aberta do Brasil com grande audiência, inclusive

exportada para países da América Latina, africanos e europeus. Ela é o principal produto da

indústria cultural brasileira. “E, a partir dos anos 70, ao lado do telejornal, adquiriu o status

15

definitivo de programa de maior audiência e de sucesso com o público” (ARAÚJO, 2004, p.

19).

A telenovela brasileira exibe temas inspirados e originados na trama social, levando as

pessoas, por muitas vezes, a se identificarem com as narrativas e os diversos debates inseridos

em seus conteúdos. Entretanto, como a telenovela é um produto da cultura industrializada, há

um ar de semelhança que a caracteriza, próprio da seriação dos produtos feitos para serem

vendidos. Desse modo, os clichês são recorrentes e determinantes para o sucesso da

audiência. Por exemplo, em quase todas as novelas os mocinhos e mocinhas, os heróis e

heroínas são aqueles que espelham descendência europeia. Os serviçais, como cozinheiras,

babas, faxinheiras, na sua maioria, são negros e com pouca participação na trama da novela.

Para quem assiste em outros países as novelas brasileiras, fica a impressão de que o

Brasil é constituído por uma maioria branca, podendo concluir que não há em solo nacional

problemas raciais, que vivemos em uma genuína democracia racial, pois as novelas dizem

implicitamente um pouco de como a sociedade brasileira é organizada social e racialmente.

Nas telenovelas, em uma simples observação do telespectador mais interessado e

antento as questões raciais, será possível perceber que o negro tem pouca participação e

completa ausência em alguns programas televisivos, princiapalmente, como apresentador de

destaque, ou mesmo como ator protagonista em alguma novela das principais emissororas de

televisão do país.

Nenhum dos grandes atores negros parece ter escapado do papel de escravo

ou serviçal na história da telenovela brasileira, mesmo aqueles que quando

chegaram à televisão já tinham um nome solidamente construído no teatro

ou no cinema, como Ruth de Souza, Grande Otelo, Milton Gonçalves e

Lázaro Ramos (ARAÚJO, 2008, p. 979).

A teledramaturgia nacional reservou aos atores negros papéis subalternos, como se

coubessem a eles apenas à representação do flagelo e humilhação que o terror da escravidão

infligiu aos africanos a mais de três séculos no Brasil. Diante disso, quando o negro atua nas

telenovelas apenas incorporando personagens submissos e inferiorizados socialmente (como

de pessoa escravizada, empregada doméstica, pobre, favelado), atribuem-lhe um signo, uma

marca que faz com que o público telespectador o identifique como negro.

Tendo em vista esse enfoque, Guimarães, com base nos estudos de Gomes (2003) e

Barth (2004), elabora sua crítica acerca de discriminação e signos.

16

Para discriminar, as pessoas reconhecem quem é negro e quem é branco,

mas desconhecem essas diferenças quando é para incluir, afirma Nilma

Gomes (2003). Não são as diferenças objetivas que fazem com que os seres

humanos se diferenciem etnicamente. São alguns signos que são escolhidos

como emblemáticos, enquanto outros são ignorados. É por meio desses

emblemas que as pessoas afirmam, constroem, realçam e exibem uma

identidade comum (BARTH, apud HOFBAUER, 2004). A cor da pele é um

desses traços emblemáticos. E é pela categoria cor que o IBGE mostra as

significativas diferenças existentes entre os grupos compostos pela cor

branca e os grupos de cor negra (GUIMARÃES, 2010, p. 84).

O meio pelo qual esses signos são reafirmados, posicionados com evidência e

transmitidos como emblemas de uma categoria racial, no caso dos meios de comunicação de

massa, teria o poder ideológico de reforçá-los. Realçando dessa forma a crença de que a cor

da pele negra é inferior à cor da pele branca, ao conceder maior visibilidade em seus produtos

audiovisuais, como nas telenovelas, a presença hegemônica do fenótipo caucasiano.

No imaginário da maioria da população negra, talvez, isso possa fomentar uma “[...]

identidade racial negativa [...] reforçada pela indústria cultural brasileira, a qual insiste

simbolicamente no ideal do branqueamento, sendo um dos corolários do desejo de euro-norte-

americanização [...]” (ARAÚJO, 2004, p. 25) de grande parte dos brasileiros. As pessoas que

não se encaixam nesse padrão podem se sentir inconscientemente inferiorizadas. Para citar um

exemplo disso, salientamos a questão do cabelo, tão valorizado pelas mulheres. O cabelo

crespo tem uma tímida representação afirmativa nas novelas exibidas diariamente. Pois, em

sua maioria, as personagens negras são forçadas, pelo menos aparentemente, a negarem sua

negritude, alisando seus cabelos para se enquadrar ao padrão de referência branco.

Assim, as telenovelas difundem o ideal de branqueamento introjetando na população

negra (na classificação do IBGE a categoria negro envolve os pretos e pardos), o mal-estar de

pertencer a um grupo étnico-racial com uma rica cultura, mas que reiteradamente é negada,

sonegando o direito de sua representação de maneira não estereotipada e mais afirmativa.

Subjetivamente, as telenovelas reforçam o racismo à moda brasileira, ao propagarem,

por meio da sua dramaturgia, a estética branca como único padrão de referência de beleza dos

brasileiros. De modo que há nas telenovelas, um apagamento da cultura e da identidade afro-

brasileira. Segundo Santos (2011), a questão da identidade, da cultura negra, e como os

diferentes povos africanos foram trazidos para cá, contribuindo com seu suor, sangue e

lágrimas para a formação da sociedade brasileira, parecem não receber o devido valor perante

as produções audiovisuais. As telenovelas, nesse sentido, cooperam de modo muito

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prejudicial, reforçando esses aspectos de negação da importância dos africanos e seus

descendentes na consolidação do país como uma nação forte e etnicamente diversa.

[...] a grande contribuição do negro à cultura brasileira ou era folclorizada ou

era reduzida ao passado, à história “o negro deu o vatapá, o índio trouxe o

gosto pelas lendas, - sempre as formas verbais pretéritas” (SANTOS, 1988,

prefácio, apud SANTOS, 2011, p. 6).

Nesse passado histórico, séculos XVI a XIX, no qual o Brasil utilizou de mão de obra

de pessoas escravizadas, é sempre retomado pelas telenovelas que, persistemente, se portam,

por exemplo, no caso da Abolição, como se tivesse sido tão somente o resultado do esforço do

branco, desconsiderando as revoltas e as resistências encampadas pelos africanos e afro-

brasileiros que viveram nesse período de horrores imensuráveis.

Assim, novelas como “A Escrava Isaura”, de 1977, e “Sinhá-Moça”, de 1986, ambas

produzidas pela Rede Globo (ARAÚJO, 2004), reproduziram em relação à Abolição, e aos

negros escravizados, os estereótipos da passividade, da dependência e submissão ao senhor de

engenho, da resignação da condição na qual viviam e da esperança de serem libertados por

um herói branco, como representado na novela “Sinhá-Moça” (1986) pelo Irmão do

Quilombo. Apesar de terem sido produzidas em um contexto social e histórico diferentes,

(pois o Brasil na década de 1970 estava mergulhado na ditadura militar, e já em meados da

década de 1980 estava saindo dessa ditadura, em um momento de redemocratização do país,

sendo que as questões raciais, mesmo com as pesquisas patrocinadas pela UNESCO nos anos

1950 e sua repercussão, parecem que não estavam na agenda política e social como prioridade

nesses dois momentos de nossa história), essas telenovelas, que trataram da Abolição,

independentemente das condições históricas ou sociais na qual foram produzidas, sempre

realçaram a figura das personagens brancas, apresentando-as com maior ênfase e relevância

no conjunto dos capítulos e na distribuição dos papéis, em detrimento das personagens negras.

Talvez, isso possa introjetar psicológica e ideologicamente nos telespectadores o

branqueamento em seus diversos aspectos (tanto nos hábitos, quanto nos costumes dos afro-

brasileiros), fragilizando a percepção positiva da herança africana na cultura brasileira. Isso,

provavelmente, confirma que na concepção e no pensamento das elites dominantes, que

acabam influenciando não apenas a sociedade em geral, mas também os produtores das

telenovelas, criando um senso comum, o negro, assim como o indígena, contribuíra de

18

maneira quase que irrisória para a consolidação da população brasileira. Tal pensamento

parece residir no imaginário brasileiro, estimulado, em grande parte, pelas telenovelas.

Diante disso, aventamos que a ideologia do branqueamento nas telenovelas, auxiliaria

na formação de um imaginário depreciativo da cultura, da religião, do fenótipo negro, da

capacidade intelectual e moral da população negra. Assim, para investigarmos estas questões

e realizar a pesquisa, cuja intenção principal é contribuir para reflexão teórica acerca da

problemática racial brasileira, do conceito de raça, e dos possíveis efeitos da ideologia do

branqueamento na sociedade, nos servimos de uma metodologia em que buscou-se fazer um

levantamento bibliográfico minucioso, respaldado em literatura especializada na questão

racial e na ideologia do branqueamento, bem como na observação e na análise de novelas

exibidas nos canais abertos brasileiros. No entanto, por existirem um número muito grande de

novelas já produzidas, fizemos a opção por escolher apenas uma especificamente, para

aprofundarmos um pouco mais as questões que apontamos anteriormente. Dessa maneira, a

telenovela selecionada foi “Lado a Lado”, de (2012), que será analisada empiricamente, e do

ponto de vista de um recorte racial. Procuramos relacionar as teorias raciais com o conteúdo

dessa novela, ilustrando como as concepções racistas perpassam a sociedade brasileira.

Destacamos que essa novela talvez seja um exemplo de como deveria ser afirmada a história

da população negra no Brasil. Apesar de considerarmos que ela está ainda inserida na lógica

da ideologia do branqueamento da cultural audiovisual brasileira. No entanto, esta telenovela

indica caminhos possíveis de como se poderia tratar a cultura negra de maneira menos

estereotipada nos produtos televisivos. Esse seria um dos motivos pelos quais optamos por

analisar a novela. No terceiro capítulo, apontaremos com mais detalhes o porquê dessa

escolha.

Por fim, nas considerações finais, realizaremos uma breve discussão no âmbito da

educação, em que apontamos uma possível intervenção de enfretamento da ideologia do

branqueamento e do racismo, a partir de uma educação antirracista no ensino médio, com

base na Lei 10.639/2003.

Assim, a proposta desta pesquisa é contribuir para a reflexão, a análise e a

compreensão da ideologia do branqueamento nas telenovelas e sua repercussão na sociedade.

Para tal empreendimento, organizamos a dissertação em três capítulos, distribuídos da

seguinte maneira:

O Capítulo I, intitulado “Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça”, irá

discutir acerca do racismo e sua problemática na sociedade brasileira. Também abordaremos a

ideia de classe social, usada como justificativa por muitos intelectuais para explicar as

19

desigualdades e as hierarquias raciais existentes no Brasil. O conceito de raça será examinado

como uma categoria analítica com muitas controversas, cujo debate realizado por alguns

estudiosos da problemática racial não chegaram a nenhum consenso. Desse modo,

apontaremos nesse capítulo as discussões existentes em torno das diferenças na concepção de

raça e de etnia como categorias importantes para se compreender a dinâmica racial brasileira.

No Capítulo II, denominado de “Televisão e telenovelas: breve introdução teórica”,

realizaremos inicialmente uma discussão sobre a televisão e as telenovelas, tendo como

embasamento as concepções da Escola de Frankfurt e dos Estudos Culturais acerca das

produções da indústria cultural e sua influência no gosto popular. Apresentaremos uma

reflexão sobre os possíveis efeitos sociais da televisão e de sua origem no Brasil. Esse

capítulo também toca na questão das radionovelas como antecessoras das telenovelas.

Falaremos, de modo geral, sobre as novelas e as temáticas sociais que foram desenvolvidas

como conteúdo de seus enredos, contribuindo, desse modo, para o debate de muitos temas

relevantes para sociedade brasileira, como a homossexualidade e a AIDS, cuja presença é uma

constante nas telenovelas. Por outro lado, o mesmo não acontece com a temática em torno das

relações raciais.

Nomeamos o Capítulo III de “Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela

“Lado a Lado” como um caso emblemático”, no qual fazemos uma análise mais empírica

dessa telenovela, trazendo alguns diálogos das principais personagens como exemplo para

fundamentar nossos pressupostos. Também nesse capítulo, discute-se que essa novela talvez

tenha acabado apenas reproduzindo os estereótipos difundidos na sociedade sobre o negro. No

início do capítulo, justificamos o porquê da escolha dessa telenovela para a nossa análise

empírica. Salientando que, pelo menos nos últimos anos, foi uma produção ficcional

emblemática, que mais evidenciou a figura do negro e de sua história no Brasil. Não obstante

a esse destaque dado a participação da população negra na consolidação da cultura e na

formação do povo brasileiro, a novela “Lado a Lado” parece não ter escapado aos estereótipos

raciais que estão impregnados na sociedade. Tratando a cultura negra de forma essencializada,

ao realçar, por exemplo, o negro como o bom de bola, o capoeirista habilidoso, o malandro

safo e a mulher negra cheia de sensualidade. Assim, sugerimos que “Lado a Lado” seja uma

telenovela interessante para se discutir a ideologia do branqueamento no âmbito educacional,

sendo que essa discussão poderá ser acionada pelas disciplinas de filosofia e sociologia do

ensino médio.

20

CAPÍTULO I

Teorias sobre o racismo à brasileira e o conceito de raça

Os estudos e as pesquisas concernentes ao racismo no Brasil, são considerados pela

academia um tema antigo, pois remonta ao século XIX. Há muitas pesquisas na área e

diversas publicações sobre o assunto. Mas, a problemática do racismo na vida social ainda

persiste. Agora, mais complexo e diluído nas dinâmicas sociais. Certamente que a

problemática do racismo não é um tema fácil de ser tratado, sobretudo em um país como o

Brasil, onde a sociedade não considera, de modo geral, que há um racismo instalado

estruturalmente. Há uma negação, uma cegueira generalizada, certo tabu e equívocos (estes

últimos provocados pela ideologia do branqueamento e pelo mito da democracia racial), que

as pessoas reproduzem quando estimuladas a falar do racismo, mesmo que informalmente.

Considerando isso, suscitamos as seguintes indagações: quando é que surge o

racismo? Ele tem uma história? E no Brasil, o racismo teria quais resquícios históricos? Estas

são questões preliminares que apresentamos para direcionar, pelo menos em parte, a reflexão

sobre o racismo e seu desdobramento, cujo caso brasileiro teve como uma das consequências

a ideologia do branqueamento. Porém, por hora vamos abordar a problemática do racismo e o

conceito de raça. Em linhas gerais, esta é a proposta preambular desse primeiro capítulo. De

modo que, para marcar o lugar teórico de nossas concepções, de antemão anunciamos que a

posição adotada aqui, em relação ao conceito de raça, está relacionada em um sentido

analítico, já que está mais do que provado (histórico e biologicamente) que raça, quando se

refere a classificação da diversidade humana, não existe. Raça, na perspectiva assumida nesta

pesquisa, se refere à cor da pele ou ao fenótipo das pessoas.

1.1 A ideia de classe social como justificativa das desigualdades e hierarquias raciais

A partir do século XX, os estudos e as concepções de classe social parecem querer

justificar as desigualdades raciais existentes (GUIMARÃES e MACEDO, 2008). Guimarães

(2002) afirma que o conceito de classe foi usado nos estudos sobre as sociedades ocidentais

industrializadas, principalmente pela filosofia moral, no sentido de privilégio e honra social,

sobretudo no domínio aristocrático e no ancien régime (antigo regime aristocrático social e

político francês que esteve em vigor nos séculos XVI e XVIII). Karl Marx (século XIX) seria,

21

de certa forma, o responsável por incorporar este termo à moderna ciência social. Mas foi

Max Weber (século XX) que concedeu ao termo classe uma noção mais precisa, ao separar e

distinguir, de maneira mais clara, tudo aquilo que estava ligado ao termo classe, que se referia

à honra e aos privilégios. Esta separação, que, segundo Guimarães (2002), é analítica,

possibilitou a problematização do termo classe, desvinculado “[...] da distribuição econômica

de riquezas, a continuidade, nas sociedades modernas, dos fenômenos de distribuição da

honra e do prestígio social” (GUIMARÃES, 2002, p. 43).

Assim, no pensamento sociológico persistiu “[...] a associação das “classes sociais” a

ordens competitivas, a relações sociais abertas, ao capitalismo e à modernidade”

(GUIMARÃES, 2002, p. 43). A concepção inglesa de classe social em seu uso vulgar

permaneceu, sobretudo, na Inglaterra e nos Estados Unidos.

No caso do Brasil, a questão da discriminação racial vinculada à ideia de raça e cor,

“[...] são amplamente consideradas, pelo senso comum, como discriminações de classe, o

sentido pré-sociológico do termo nunca deixou de ter vigência” (GUIMARÃES, 2002, p. 43).

A noção antiga do termo classe, e seu uso para justificar as desigualdades brasileiras, “[...]

pode ser compreendido como pertencendo à ordem das desigualdades de direitos, da

distribuição da honra e do prestígio social, em sociedades capitalistas e modernas [...]”

(GUIMARÃES, 2002, p. 43). Nessas sociedades, permaneceu em termos razoáveis e

inalterados, certa ordem ou organização hierárquica em que os privilégios foram mantidos.

A partir dos anos 1990, a lacuna teórica acerca da concepção de classe começa a ser

abordada. O preenchimento dessa lacuna tem início, como sugere Guimarães (2002), nos

escritos do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, que aponta a existência de uma ordem

social brasileira que é herdeira da colonização portuguesa, uma sociedade altamente

hierarquizada.

[...] no seio de um sistema hierarquizado, não está em ter alguma

característica que permita diferenciar e assim inferiorizar, mas em não ter

relações sociais. Uma vez que tais relações são estabelecidas, todos ficam

dentro de um sistema totalizante e é sempre por meio dele que as diferenças

entre os grupos são resolvidas (DAMATTA, 1987, p. 76-77).

Guimarães esclarece que DaMatta compreende que “[...] a chamada sociedade de

classe [...] não pressupõe uma ordem social igualitária e relações sociais abertas”

(GUIMARÃES, 2002, p. 43-44). Para Guimarães (2002), DaMatta se inspirou em

interpretações clássicas sobre o racismo e a igualdade (tais como a do antropólogo americano

22

Marvin Harris e de concepções como as do antropólogo francês Louis Dumont), para levantar

a hipótese de que a “[...] ‘quase rígida estrutura de classes’ brasileira [teria sido] a responsável

pela relativa ausência de discriminação racial no país” (GUIMARÃES, 2002, p. 44). Desse

modo, toda confusão em torno da ideia de discriminação de classe e discriminação racial

parte, em princípio, de uma postura ideológica e da imprecisão semântica dos “[...] três

significados do termo “classe” – grupo identitário, associação de interesses e sujeito político e

histórico” (GUIMARÃES, 2002, p. 43-44).

O termo classe, mesmo quando utilizado na sua perspectiva sociológica, se conecta de

maneira explícita em uma relação de ordem, de direitos e igualdade (EDER, 2001). Isso

presume uma “[...] desigualdade de direitos que o termo vulgar e pré-sociológico sugere”

(GUIMARÃES, 2002, p. 44), pois ao “[...] dizer que não é racial a discriminação que, no

Brasil, sofrem os negros, equivale a silenciar o que deveria ser dito: que se encontra ativo, na

nossa ordem de classe, o princípio de desigualdade de direitos individuais” (GUIMARÃES,

2002, p. 44). Nesse sentido, e se valendo das ideias do cientista político José Murilo de

Carvalho, Guimarães chama “[...] a atenção para o fato de que a noção de cidadania, no

Brasil, refere-se mais propriamente à igualdade de direitos políticos que à igualdade de

direitos civis” (GUIMARÃES, 2002, p. 44).

Guimarães indica que grande parte dos escritos e pesquisas na área da sociologia atual,

e que se dedica a investigar a questão da exclusão e os limites da cidadania das classes não

hegemônicas ou populares, está relacionada diretamente ao campo de estudos das classes

sociais. Estes estudos investigam, portanto, a “[...] ordem estamental, a ação de grupos, a sua

hierarquia e a formação de comunidades, mesmo quando distante da problemática econômica

das classes” (GUIMARÃES, 2002, p. 44).

O desafio do momento presente, é conseguir relacionar os estudos que tratam da

desigualdade entre os indivíduos e as desigualdades de classes.

[...] dialogar tradições que refletem sobre: a) as heranças patrimonialistas e

autoritárias; b) a ideologia da desigualdade brasileira, sob a forma mitológica

de democracia racial; c) a prática cotidiana da desigualdade, através da

violência física e simbólica; d) a formação de atores coletivos e sua política;

e) a inserção econômica destes atores e a sua dinâmica produtiva

(GUIMARÃES, 2002, p. 45).

Os estudos e as discussões sobre as questões raciais giram em torno, para alguns, da

ideia de classe social, pois não haveria um problema genuinamente racial no Brasil.

Guimarães (2002) destaca que esta visão está enraizada nos argumentos de marxistas, tais

23

como Pierson (1945; 1948; 1971), Pinto (1945), Willems (1947; 1947) e Florestan Fernandes

(2007). Esses autores asseveram que a discriminação racial brasileira seria ocasionada pela

desigualdade existente entre as classes sociais.

[...] a expansão urbana, a revolução industrial e a modernização ainda não

produziram efeitos bastante profundos para modificar a extrema

desigualdade racial que herdamos do passado. Embora “indivíduos de cor”

participem (em algumas regiões segundo proporções aparentemente

consideráveis), das “conquistas do progresso”, não se pode afirmar,

objetivamente, que eles compartilhem, coletivamente, das correntes de

mobilidade social vertical vinculadas à estrutura, ao funcionamento e ao

desenvolvimento da sociedade de classes (FERNANDES, 2007, p. 67).

Essa mentalidade está representada imageticamente nas telenovelas, nas quais os

negros estão sempre em posição subalternizada, dando a ideia de que há um problema social

de desigualdade no Brasil, mas que esta desigualdade é desencadeada pela tensão produzida

nas relações de classe. Esse seria um ponto importante, embora falso, em que gira a discussão

racial no Brasil. Certamente que esta perspectiva enfrenta forte refutação de intelectuais, a

exemplo do sociólogo Guimarães (2002; 2008), que procuram evidenciar que a discriminação

racial que os negros brasileiros sofrem não teria origem nas relações de classe.

Sobre esta questão, as considerações do sociólogo Jessé Souza1 (2005) nos apontam

uma perspectiva distinta da origem da desigualdade social, principalmente a enfrentada pela

população negra no Brasil. Em seu texto “Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira”, o

autor argumenta que “[...] será a noção de disciplina e controle do corpo e de suas emoções e

necessidades, que passará a diferenciar imperceptivelmente, classes sociais, gênero, etnias,

etc.” (SOUZA, 2005, p. 50). À vista disso, onde se localizaria o ponto inicial dessa

diferenciação imperceptível?

A concepção de mundo exportada para a periferia do capitalismo é [:] [...]

controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais, interiorização

progressiva de todas as fontes de moralidade e significado e entronização

concomitante das virtudes do autocontrole, autorresponsabilidade, vontade

livre e descontextualizada e liberdade concebida como autorremodelação em

relação a fins heterônomos. É precisamente esta noção historicamente

construída, altamente improvável e culturalmente contingente de

personalidade e de condução da vida, que se constituiu na Europa ente os

séculos XVII e XVIII, que passa a ser o núcleo duro da hierarquia valorativa

incrustada de forma opaca e intransparente no funcionamento destas

1 Professor da Universidade Estadual Norte Fluminense (UENF), com diversos livros publicados, como “Ralé

brasileira: quem é e como vive”, 2009, pela Editora UFMG.

24

instituições fundamentais. Em outras palavras e weberianamente: o

protestantismo ascético, que constrói essa noção contingente e única de

agência humana, passa a ter agora como suporte secular à lógica impessoal

de mercado e Estado que reproduz, através de estímulos empíricos como

dinheiro e coerção legal, o mesmo tipo de indivíduo que antes a fé produzia

(SOUZA, 2005, p. 57).

Os valores criados a partir de uma mentalidade com fundo religioso-moral, ligada às

formas de produção da vida material, irão estabelecer uma hierarquia valorativa de como se

deve comportar para obter sucesso, tanto no mercado de trabalho como no Estado, com suas

funções de gestão e cargos públicos.

Para explicar o que foi dito, Souza (2005) se utiliza do conceito de habitus de

Bourdieu, mas ampliando este conceito. Assim, acrescenta o habitus primário para elucidar a

formação das classes médias e o domínio que exercem sobre as classes inferiores.

Sugestivamente, sua interpretação do preconceito contra o negro (e também em relação ao

branco pobre, seja urbano ou rural) estaria nesse habitus primário, que, segundo Souza, é

formação sociocultural sólida e não apenas condições econômicas, como argumentam os

marxistas sobre a divisão e a luta de classes, que estabeleceriam inicialmente a desigualdade

entre as classes sociais.

Desse modo, a população negra, sobretudo a brasileira, não teve um ponto de partida

consoante a um habitus primário que garantisse o sucesso no mercado e no Estado.

[...] é a reprodução de um “habitus precário” a causa última da inadaptação e

marginalização desses grupos, como o próprio Florestan parece acreditar,

pelo menos na parte inicial de seu livro, não é “meramente a cor da pele”,

como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasileira

tendem, hoje, a interpretar. Se há preconceito neste terreno, e certamente há,

e agindo de forma instransparente e virulenta, não é, antes de tudo, um

preconceito de cor, mas sim um preconceito que se refere a certo tipo de

“personalidade”, ou seja, de um habitus específico, julgada como

improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo (SOUZA, 2005, p.

59).

Souza (2005; 2009a) defende que não são os fatores economicistas que determinam as

desigualdades entre as classes sociais (ou coloca o negro em situação de subalternidade na

sociedade contemporânea). De acordo com o autor, os fatores mais fortes e determinantes no

estabelecimento dessa desigualdade são os valores imateriais. Aquilo que se aprende na

intimidade familiar, e que é transmitido naturalmente, por meio do capital cultural, para os

filhos e filhas como valores fundamentais para obter sucesso na vida (SOUZA, 2005; 2009a).

25

Diante do posicionamento de Souza, podemos inferir que o racismo e a discriminação racial

também se aprenderiam nas relações sociais primárias, como a da família, por exemplo.

Souza (2005; 2009a) argumenta que o racismo seria produzido somente entre as classes,

assim tecendo uma crítica a autores como Florestan Fernandes e Guimarães, sobretudo a este

último, em que entende a desigualdade social no Brasil pelo viés racial, como já expomos

anteriormente.

Na visão de Souza (2005; 2009a), de maneira sumária, a discriminação racial ainda

continua sendo acionada pela classe social. O diferencial da análise de Souza (2005; 2009a) é

que há toda uma pré-condição sociocultural para que o racismo continue existindo. Como

revela o autor, o racismo é uma reunião de conceitos que podem ser aprendidos nas relações

familiares com seus valores morais, estéticos e capitais culturais, e que sustentam a

discriminação racial e alargam a desigualdade entre brancos e negros.

O que o mercado, o Estado, uma “ciência” e um senso comum dominantes

— mas dominados por uma perspectiva conservadora, acrítica e quantitativa

— nunca “dizem” é que existem precondições “sociais” para o sucesso

supostamente “individual”. O que todos escondem é que não existe o

“talento inato”, o mérito “individual” independentemente do “bilhete

premiado” de ter nascido na família certa, ou melhor, na classe social certa.

O indivíduo privilegiado por um aparente “talento inato” é, na verdade,

produto de capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos por

mecanismos de identificação afetiva por meio de exemplos cotidianos,

assegurando a reprodução de privilégios de classe indefinidamente no

tempo. Disciplina, capacidade de concentração, pensamento prospectivo

(que enseja o cálculo e a percepção da vida como um afazer “racional”) são

capacidades e habilidades da classe média e alta que possibilitam primeiro o

sucesso escolar de seus filhos e depois o sucesso deles no mercado de

trabalho. O que vai ser chamado de “mérito individual” mais tarde e

legitimar todo tipo de privilégio não é um milagre que “cai do céu”, mas é

produzido por heranças afetivas de “culturas de classe” distintas, passadas de

pais para filhos. A ignorância, ingênua ou dolosa, desse fato fundamental é a

causa de todas as ilusões do debate público brasileiro sobre a desigualdade e

suas causas e as formas de combatê-la (SOUZA, 2009a, p. 22-23).

O pensamento de Souza (2009a) manifesta que as desigualdades sociais no Brasil não

são de caráter racial, anunciando que o problema racial brasileiro não seria solucionado

apenas atendendo as necessidades econômicas e materiais dos segmentos marginalizados. Não

é resolvendo simplesmente a questão econômica da população negra, ou tão somente

inserindo-a no mercado, que a desigualdade desapareceria, como declara Souza (2005;

2009a), em resposta à argumentação de Florestan Fernandes. As condições socioculturais

26

estabeleceriam uma precariedade (histórica) nas relações sociais da vida dos negros,

dificultando sua ascensão social.

Ao invés da oposição clássica entre trabalhadores e burgueses, o que temos

aqui, numa sociedade perifericamente moderna como a brasileira, como

nosso “conflito central”, tanto social quanto político e que subordina em

importância todos os demais, é a oposição entre uma classe excluída de todas

as oportunidades materiais e simbólicas de reconhecimento social e as

demais classes sociais que são, ainda que diferencialmente, incluídas

(SOUZA, 2009a, p. 25).

Pode ser que estas concepções de Souza (2005; 2009a) explique, por exemplo, o que

foi discutido em páginas anteriores, a respeito da hipótese de que o racismo brasileiro esteja

relacionado diretamente com a questão da aparência. Para tratar desse aspecto, vamos nos

fundamentar, a partir de agora, na percepção e no estudo das obras de estudiosos e

pesquisadores do racismo, especialmente do racismo que ocorre no Brasil, que apontam a

discriminação e o preconceito racial no Brasil relacionados diretamente com o fenótipo

(aparência das pessoas), pois, quanto mais pigmentação escura a pessoa tiver, mais sentirá a

discriminação racial independente da classe ou da condição social.

Entretanto, na discussão racial dos últimos sete ou oito anos, um grupo de intelectuais,

antropólogos e sociólogos, tais como Yvonne Maggie (2005-2006), Peter Fry (2005), Simon

Schwartzman (2007) entre outros, posicionaram-se contra as cotas raciais nas universidades,

alegando que no Brasil o problema racial era superficial. Esses autores defendem seus

posicionamentos teórico e político, ponderando que as questões que envolvem as

desigualdades entre as classes sociais e a baixa qualidade da educação básica quanto da

educação superior seriam as causas principais da falta de oportunidade da população negra

para ingressar em outras esferas das relações sociais (SCHWARTZMAN, 2007). Apontam

ainda que as cotas raciais (políticas de Ação Afirmativa) são um engano que provavelmente

irá racializar e dividir o país.

Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e

etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível

alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e

precisamos participar (SCHWARTZMAN, 2007, p. 110).

Não concordamos inteiramente com esse argumento. Pois, ao se valorizar a cultura

afro-brasileira, não significa que se deva abandonar e desprezar o que o Ocidente produziu

culturalmente, e que é aceito como cultura universal. Mas, de dar oportunidade de se

27

conhecer, sem estereótipos, as culturas de matrizes africanas e indígenas que deram origem à

sociedade brasileira. Compreender que essa sociedade já nasceu racializada. Os indígenas

foram os primeiros a sofrer com o racismo dos colonizadores. Em seguida, foram os negros

transplantados pelos europeus, diretamente de algumas regiões da África, em terras brasileiras

para servi-los como escravos.

Dessa forma, apontamos outra hipótese em relação ao racismo existente no Brasil,

com base em autores como Guimarães (2002; 2008; 2012) DaMatta (1986) e Barros (2009),

que sinalizam que a estrutura histórico-social da formação da sociedade brasileira contribuiu

para que o racismo se potencializasse. A maneira como os negros foram inseridos na história

do Brasil e os desdobramentos sociais de suas culturas e identidades evidenciam uma

hierarquia na sociedade brasileira. No caso do antropólogo Roberto DaMatta (1986), as suas

concepções sobre o racismo estão alicerçadas em uma noção que afirma a organização social

brasileira como herdeira de uma sociedade rigidamente hierarquizada, a portuguesa, em que

não se permitia, por exemplo, o intermediário entre o branco e o negro. Este argumento

procura destacar que o racismo à brasileira ocorre justamente porque a sociedade não se vê

como hierarquizada. Pois “[...] o fato contundente de nossa história é que somos um país feito

por portugueses brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada

dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios” (DAMATTA, p. 39, 1986). Os

portugueses já tinham organizado um conjunto de leis que estabeleciam processos

discriminatórios em relação a mouros, judeus e negros, anteriores a chegada às terras

brasileiras.

A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social

contra negros, índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão

profundamente social, econômica e política, deixava-se de lado a

problemática mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o

Brasil foi formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da

democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada,

que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode admitir, entre

o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de

classificação. Assim, podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo

dinheiro. Pelo poder que detêm ou pela feiura de seus rostos. Pelos seus pais

e nome de família, ou por sua conta bancária. As possibilidades são

ilimitadas, e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora

inabalável confiança no credo segundo o qual, dentro dele, “cada um sabe

muito bem o seu lugar”. É claro que podemos ter uma democracia racial no

Brasil. Mas ela, conforme sabemos, terá que estar fundada primeiro numa

positividade jurídica que assegure a todos os brasileiros o direito básico de

toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei! Enquanto isso não for

descoberto, ficaremos sempre usando a nossa mulataria e os nossos mestiços

como modo de falar de um processo social marcado pela desigualdade, como

28

se tudo pudesse ser transcrito no plano do biológico e do racial

(DAMATTA, 1986, p. 39-40).

Na mentalidade da sociedade parece pairar os fundamentos dessa mistura que ocorreu

nos primórdios da formação do povo brasileiro. Mas, isso é uma fábula, introjetada ao longo

do tempo por um processo mitológico. Pois, este processo alimentou a criação do mito de

origem dos brasileiros. Sendo, no fundo, “[...] uma forma sutil de esconder uma sociedade que

ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação”

(DAMATTA, 1986, p. 39-40). Assim, a fábula das três raças une o entendimento popular,

mais vulgar, e as elaborações eruditas, em formulações sofisticadas de nossa cultura, em que

uma representa o vivido (popular) e a outra o concebido (erudito) (DAMATTA, 1986).

A ideia transmitida por meio dessa fábula foi a de uma mescla e de uma triangulação

das raças. Subjetivamente, na mentalidade brasileira, isso possibilitou conceber e

compreender o surgimento dos intermediários (mulatos, cafuzos e mamelucos). Isso não

ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, onde há uma linha (racial) que se estabeleceu

social e historicamente, impondo os limites das relações entre negros, brancos e indígenas.

Demarcando os limites das relações sociais das pessoas negras, indígenas e brancas.

Aparentemente uma estratégia colonizadora para não pôr em risco os direitos daqueles que

são iguais. De modo que não há uma triangulação de raças nos Estados Unidos. No Brasil,

esta noção é amplamente aceita no entendimento do senso comum, incorporado por diversas

pessoas, tanto pelo povo quanto por políticos, intelectuais e acadêmicos de qualquer

posicionamento político-partidário-ideológico (DAMATTA, 1981). Então por que está fábula

das três raças é tão aceita socialmente? Em que base ela está arregimentada? Quais os são os

pressupostos?

De acordo com DaMatta (1986), Portugal tinha uma estruturada hierarquia social

estabelecida em decretos e leis. Não é como se imagina, ou como é difundido por alguns

escritos históricos sobre Portugal, que o país era uma nação desestruturada. Pelo contrário,

havia uma ordem social rígida. As leis formuladas na Portugal medieval e pré-moderno

decretava não haver uma igualdade entre as categorias sociais, normatizando quem deveria ser

tratado adequadamente segundo sua posição social. Fundando uma hierarquia das relações

sociais em que cada um sabia do seu lugar social (DAMATTA, 1986).

Como base nisso o racismo brasileiro apresenta uma diferença importante, pois nos

Estados Unidos, após a guerra civil, foram estabelecidos os direitos de igualdade e de

individualidade para todos. Mas, ao mesmo tempo, esta igualdade impossibilitou que negros e

29

brancos mantivesse relações mais próximas, como a formação de pares, que propiciasse o

nascimento de mestiços ou dos intermediários. Estes últimos eram condenados pelos teóricos

do racismo norte-americano, considerados como fracos e degenerados, assim, não

merecedores dos direitos que negros e brancos possuíam. Já no racismo brasileiro, está em

funcionamento algo diferente. Primeiro que cada um sabe de seu lugar social, herança da

cultura e da legislação portuguesa, como já dissemos anteriormente. E depois, as relações

raciais brasileiras, conforme a tese de DaMatta (1986), se pautou ideologicamente pelo

encontro das raças, em que o posicionamento tanto do negro, do branco quanto do indígena

era de uma relação frente a frente. Enquanto que os norte-americanos concebiam que brancos

e negros estavam em realidades raciais estanques, individualizadas, fechadas em si mesmas,

posicionadas lado a lado, sem que jamais pudessem entrar em contato umas com as outras de

maneira sincrética, no Brasil, as raças estariam relacionadas de maneira complementar,

formando uma espécie de triângulo racial, possibilitando diversos cruzamentos e gradações

raciais, tornando mais complexa e intrincada a classificação referente ao fenótipo ou a cor

(DAMATTA, 1986). Porém, caso a pessoa seja negra e possuir algum status social, seja

econômico, intelectual ou mesmo um ator famoso de alguma telenovela ou ainda um

esportista de alto rendimento, este indivíduo passará, virtualmente, pelo processo de

branqueamento. Veja o caso dos jogadores de futebol que são negros: boa parte deles se

relacionam com mulheres brancas e loiras. As mulheres brancas brasileiras comuns de classe

média, pelo que se constata, preferem homens brancos para se relacionar. Mas, se um negro

está em uma posição social de destaque, como a de famoso jogador de futebol, a hipótese é de

que elas acabariam dando menos destaque para o fenótipo do atleta, não o enxergando mais

como negro, relativizando sua cor. Isso pode provoca a ilusão de que o racismo à brasileira

seja um problema de classe social.

No entanto, o que pontua a situação do negro no Brasil não é apenas à sua posição

social. Supostamente à sua cor diz de onde ele veio e o que seria capaz de fazer. A cor da

pele, então, funciona como um referencial, que marca as relações de preconceitos vividas

pelos negros brasileiros. Nessa perspectiva, o sociólogo Oracy Nogueira (1998; 2006) afirma

que as relações raciais no Brasil são pautadas pela marca da cor. E não a de origem, como

ocorre nos Estados Unidos. Estas afirmações foram decorrentes de uma pesquisa patrocinada

pela UNESCO nos anos 1954, que procurou averiguar a situação racial do Brasil. Ao referido

sociólogo coube investigar as relações raciais em um município do interior do Estado de São

Paulo, Itapetininga (NOGUEIRA, 1998).

30

Os resultados a que Nogueira (1998; 2006) chegou sobre o racismo no Brasil é que a

discriminação racial é marcada pelo fenótipo da pessoa, pois, quanto mais escura a pessoa e

maior forem os traços africanos, mais ela será vitimada pelo preconceito racial. Por outro

lado, se a pessoa tiver a cor da pele menos escura, em geral, será considerada branca, e não

sentirá tanto os efeitos da discriminação racial. O racismo brasileiro não leva em conta a

origem étnica da pessoa. Não importa sua ancestralidade. Já nos Estados Unidos, o ponto

central é a ancestralidade. A pessoa pode ser branca, com olhos azuis e cabelos lisos

esvoaçantes, mas se tiver um bisavô de pele escura ou mesmo um parente distante na árvore

genealógica, pela ancestralidade será considerado negra (NOGUEIRA, 2006). Apesar dos

estudos de Oracy Nogueira terem aproximadamente 60 anos de sua realização, continua sendo

atual o quadro comparativo que promove entre o racismo à brasileira e o praticado nos

Estados Unidos. Um exemplo dos diversos que cita nesse quadro comparativo, é a tendência

do intelectual brasileiro (em geral fenotipicamente branco) de subestimar o racismo no Brasil,

negando sua existência como algo realmente importante para se discutir e debater. Os

problemas raciais são sempre esquecidos ou deixados para depois. Estes problemas não são

tratados abertamente, e no plano das relações sociais, esta preterição diz respeito ao

esquecimento e a recusa dos seus efeitos na sociedade (NOGUEIRA, 2006, p. 293). De outro

modo, o racismo brasileiro é implícito. Nos Estados Unidos, pelo contrário, é explicito e

declarado. Contudo, os negros nesse país têm acesso aos mesmos direitos que a população

branca. Claro que após a abolição, e, sobretudo, até a segunda metade do século XX, houve

leis segregacionistas terríveis nos Estados Unidos impondo limites das relações sociais e

raciais entre negros e brancos. Entretanto, a luta pelos direitos civis é uma conquista para a

população negra norte-americana que garante, perante a constituição, igualdade de acesso aos

bens públicos e privados para todos. No caso do Brasil, não há leis segregacionistas

institucionalizadas. O que há é uma forma de racismo sutil e, ao mesmo tempo, muito

presente nas relações sociais. Apesar de ter como referência a época (década de 1950) que

realizou seus estudos, Oracy Nogueira cita um exemplo bastante emblemático que ilustra o

que estamos afirmando:

[...] um clube recreativo, no Brasil, pode opor maior resistência à admissão

de um indivíduo de cor que à de um branco; porém se o indivíduo de cor

contrabalançar a desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em

inteligência ou instrução, em educação, profissão e condição econômica, ou

se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso,

“abrindo uma exceção”, sem se obrigar a proceder da mesma forma para

31

com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou mesmo, mais leves

(NOGUEIRA, 2006, p. 293).

Por não ser violento em alguns casos, o racismo à brasileira, ao ser comparado com o

dos Estados Unidos, parece menos dramático, conforme a asseveração do senso comum. No

fundo, há apenas uma diferença de postura. No Brasil, o negro tem que provar que é capaz e

inteligente (e não uma inteligência qualquer). Além disso, deve ser muito perseverante para

compensar a desvantagem da cor. Mesmo assim, sofrerá os efeitos do racismo. Por exemplo,

não vemos com frequência atrizes e atores negros de telenovelas, por mais talentosos que

sejam, recebendo prêmios por suas atuações. Até porque são poucos os personagens de

destaques que eles interpretam. Mas, pela perseverança dos movimentos sociais,

principalmente do movimento negro, a realidade nas telenovelas está lentamente passando por

mudanças (ainda muito tímidas, diga-se de passagem).

De acordo com as afirmações de Nogueira (2006), o preconceito de marca no Brasil

toma como referência o fenótipo ou a aparência racial do indivíduo. Talvez, seja por isso que

aqueles que não são brancos são preteridos na mídia de modo geral.

Nos Estados Unidos é a origem étnica do indivíduo que marca sua situação racial.

Desse modo, há um fenômeno norte-americano muito curioso para enfrentar e driblar o

racismo: o passing. Expressão inglesa para designar o indivíduo que tenha uma origem ou

uma filiação negra, mas que se passa por branco (NOGUEIRA, 2006). Mesmo que seja

fenotipicamente branco, ainda será considerado negro, já que no racismo norte-americano se

considera mais a origem do que a aparência. E a aparência diz objetivamente em que grupo de

pertencimento racial o indivíduo se enquadra na sociedade norte-americana. No entanto, no

caso do passing, se um negro, mesmo fenotipicamente branco, esconder suas origens, será

recriminado socialmente, tanto pelos negros como pelos brancos.

No Brasil, não teria sentido o fenômeno do passing, pois que o indivíduo,

sendo portador de traços “caucasoides”, será considerado branco, ainda que

se conheça sua ascendência negra ou o seu parentesco com indivíduos

negroides [sic] (NOGUEIRA, 2006, p. 294).

Isso é considerado normal em nosso país. Há muitos mestiços, mulatos ou pardos que

são considerados brancos pela sociedade. No caso dos Estados Unidos, “[...] a fuga do

passing somente é possível a negros de tal modo brancos que sua filiação racial apenas pode

ser conhecida através de documentos de identidade e provas circunstanciais” (NOGUEIRA,

2006, p. 294). Nesse sentido, mais de 90% dos brasileiros seriam considerados negros nos

32

Estados Unidos. Obviamente que a sociedade brasileira não se considera formada por uma

maioria negra. No censo de 2010, realizado pelo IBGE, pretos e pardos teriam aumentado.

Pretos e pardos, conforme o IBGE e o movimento negro, estariam dentro de uma categoria, a

negra. Os negros, portanto, constituíram maior parte em relação aos brancos. Além disso, há a

questão da carga afetiva no racismo, que no Brasil, se manifesta de forma mais intelectiva e

estética (NOGUEIRA, 2006). No preconceito de marca um indivíduo branco pode ter grande

afetividade por uma pessoa negra, que sua relação não será inviabilizada, “[...] especialmente

numa pessoa por quem se tem amizade, simpatia ou deferência” (NOGUEIRA, 2006, p. 296).

Contudo, a cor da pele, subjetivamente, acaba sendo uma espécie de defeito, causando

[...] pesar, do mesmo modo por que o causaria um “defeito” físico. Desde

cedo se incute, no espírito da criança branca, a noção de que os

característicos negroides [sic] enfeiam e tornam o seu portador indesejável

[...] (NOGUEIRA, 2006, p. 296).

Nessa perspectiva, a família, a escola e os meios de comunicação, como a televisão,

sobretudo por meio de suas telenovelas, teriam responsabilidades por transmitir estas noções

afetivamente racistas para seus membros, criando no imaginário dos indivíduos negros e

brancos que ser melanodérmico é algo negativo e ruim. Por isso que, intelectiva e

esteticamente, suspeitamos que há uma preterição em relação ao negro, gerado pelo

preconceito de marca, que o excluí não por força de uma lei, mas inconscientemente, dando

preferência para o grupo hegemônico.

Na sociedade norte-americana, o racismo tem uma relação mais direta com aspectos

mais emocionais e irracionais. Esses aspectos do racismo norte-americano têm forte

antagonismo dos brancos em relação aos negros, e destes em relação aos brancos. Porém, o

sistema e a estrutura social e racial fariam com que os negros fossem segregados intencional e

conscientemente, apesar das mudanças ocorridas nos últimos tempos por lá, sobretudo após as

conquistas dos direitos civis a partir da segunda metade da década de 1960.

Estes são alguns pontos, para efeito de comparação, das duas modalidades de racismo

existentes entre o Brasil e os Estados Unidos.

O preconceito racial é visto como um elemento cultural intimamente

relacionado com o ethos social, isto é, com o modo de ser culturalmente

condicionado que se manifesta nas relações inter-individuais [sic], tanto

através da etiqueta como de padrões menos explícitos de tratamento

(NOGUEIRA, 2006, p. 304).

33

No caso do Brasil, a etiqueta das relações inter-raciais é um mecanismo do modo de

ser cultural, regulando o comportamento do indivíduo ao se referir à pigmentação da pele de

alguém.

[...] não é de bom tom “puxar o assunto da cor”, diante de uma pessoa preta

ou parda. Evita-se a referência à cor, do mesmo modo como se evitaria a

referência a qualquer outro assunto capaz de ferir a suscetibilidade do

interlocutor – em geral, diz-se que “em casa de enforcado, não se fala em

corda” (NOGUEIRA, 2006, p. 299).

De certa forma, os brasileiros se sentem constrangidos em tratar da questão da cor.

Preferem lançar mão de eufemismos, tais como moreno claro, mulata ou morena cor de

jambo, quando a pessoa é parda; e moreno escuro, quando na realidade a pessoa é preta. Esta

última locução é evitada o quanto possível no tratamento interpessoal. Entretanto, em uma

contenda, ou em um momento de conflito, o primeiro aspecto a ser realçado, se a pessoa for

negra, é sua cor, tornando-se vítima de palavrões e despautérios, sendo classificada como algo

inferior.

Os estudos de Nogueira (1998; 2006) apontaram que a etiqueta racial norte-americana

tinha (talvez, isso continue ainda hoje) como base relações assimétricas entre negros e

brancos. Ou seja, há uma desigualdade na etiqueta de tratamento entre ambos. Enquanto que o

branco exige que o negro o trate por mister (pronome de tratamento formal em inglês) usando

o sobrenome, o negro é chamado pelo primeiro nome, sem o uso dessa expressão

(NOGUEIRA, 2006). É muito frequente também a expressão boy (garoto ou menino) no

tratamento que os brancos dispensam aos negros, e isso pode ser percebido especialmente em

filmes que abordam o racismo. Ela indica à suposta infantilização do negro norte-americano e

serve para rebaixá-lo a mera criança, sem responsabilidades e ingênua. Esta é mais uma

estratégia do racismo para silenciar e enfraquecer o negro.

No Brasil, por conseguinte, falar da cor da pele é um tabu. Pretos e pardos brasileiros

(negros, na classificação do IBGE) teriam pouca consciência racial. Em alguns casos, o negro

no Brasil somente é despertado para a problemática racial em uma situação de conflito, ou ao

sofrer diretamente o peso do racismo, como ao procurar um emprego, quando é preterido por

um não negro.

Por outro lado, esse preconceito racial pode não ser sentido pelo negro, pois vivendo

em uma comunidade onde a maioria seja negra, e não tendo contado com outras pessoas

estranhas ao seu círculo familiar, acaba não percebendo, de maneira imediata, o racismo. Não

34

estamos nos referindo apenas às comunidades distantes das cidades ou dos grandes centros

urbanos. Esse sentimento pode ocorre também nos bairros periféricos das grandes cidades.

Por exemplo, um jovem negro poderia discursar contra as políticas de Ações Afirmativas

porque nunca foi vítima de racismo, e acredita que estas ações poderiam provocar o racismo.

E, se o mesmo vive circunscrito em um bairro de maioria negra, e esta tem pouca consciência

racial, sem dúvidas que o suposto jovem também não sentirá os efeitos da problemática racial

consciente e diretamente. Entretanto, quando esse mesmo jovem negro começa a sair da sua

jurisdição comunitária ou bairrista, dirigindo-se para outras áreas com maior concentração de

diversidade de pessoas, pode ser que sinta mais as impressões do racismo.

À medida que aumenta a frequência dos contatos secundários, se torna mais

constante, para o indivíduo de cor, o risco de ser tratado em função dos

traços raciais – e, portanto, de um estereótipo – pelo menos nas situações de

contato categórico (NOGUEIRA, 2006, p. 300).

O contrário parece ocorrer nos Estados Unidos, onde o negro, desde cedo, tem a

consciência racial despertada pela sua comunidade e pelo preconceito que enfrenta. A

identificação racial do negro norte-americano é constante, permanente e de preocupação

contínua.

[...] envolve três tendências que se interpenetram: 1. uma preocupação

permanente de autoafirmação [sic]; 2. uma constante atitude defensiva e 3.

uma aguda e peculiar sensibilidade a toda a referência, explícita ou implícita,

à questão racial (NOGUEIRA, 2006, p. 300).

No entanto, a construção social da cor é algo que marca o racismo à brasileira,

dificultando, a nosso ver, a formação de uma consciência racial. José D’Assunção Barros

(2009) evidencia como a composição da diferença da cor foi estruturada desde o período

colonial no Brasil. Segundo o autor, o tráfico negreiro do colonizador europeu categorizou as

diversas populações africanas em negras, aplainando suas diferenças (BARROS, 2009). O

africano de qualquer etnia ao ser capturado pelo colonizador europeu, ou por uma tribo

inimiga, e vendido, ao chegar às mãos do comerciante de escravos, perdia sua identidade

étnica originária. O traficante europeu atribuía-lhe uma identidade étnica fundamentada em

outros parâmetros, como o geográfico. Mas, todos eram considerados negros, mesmo antes de

chegarem à colônia, constituindo uma demarcação da diferença entre negros e brancos

efetivada pela cor da pele. Com o processo de miscigenação, ao longo da história da

35

população brasileira, o que se pode constatar é que o preconceito racial, principalmente em

relação aos negros mais escuros, está assentado nessa diferenciação, pois para o mestiço,

como para o mulato, esse preconceito é mais relativo e escamoteado. No Brasil, quanto mais

uma pessoa tiver concentração na epiderme de melanina, tanto mais sofrerá os efeitos do

racismo.

Mas a diferença entre o negro e o mulato terá vida longa, o que confirma o

fato de que o mulato não pode ser pensado como gradação entre o negro e o

branco – embora este seja o seu discurso – e sim como nova diferença

(BARROS, 2009, p. 98).

Na política de branqueamento, o mulato, sobretudo no final do século XIX e início do

século XX, seria o elemento com maior aceitação e a “esperança”, na mentalidade política e

intelectual da época, da nação se tornar mais branca.

Este ideário do branqueamento, ao que tudo indica, ainda persiste no imaginário de

grande parte dos brasileiros. Os colonizadores conseguiram instituir e colonizar não apenas as

terras do novo mundo, mas também implantaram uma forma de percepção da diferença negra

como inferioridade e subalternidade. O efeito desse ideário pode ser notado nos meios de

comunicação de massa, que são predominantemente embranquecidos. Em uma sociedade

como a brasileira, na qual mais da metade da população é constituída por negros (pardos e

pretos), estes meios estão colonizados ideologicamente pela estética e cultura eurocêntrica,

regidos por uma norma branca.

1.2 Raça: um conceito controverso

O racismo parece ser um fenômeno social que faz parte de todos os agrupamentos e

povos humanos. E, apesar do racismo contra os judeus e indígenas, por exemplo, também ser

notório e ter uma fonte abrangente de estudos, o que comprova que raça é um conceito muito

importante para ser retomado filosófico e sociologicamente, proponho nesta seção discutir o

racismo praticado contra o negro. Mesmo que já tenha sido debatido e esmiuçado por vários

autores, ao tratar do racismo e da ideologia do branqueamento, o conceito de raça se apresenta

como fundamental para a compreensão do racismo no Brasil e nas telenovelas produzidas no

país.

De acordo com Kabengele Munanga (2004), raça tem sua etimologia na palavra razza,

de origem italiana, que, por sua vez, deriva do latim ratio, que designa categoria, espécie e

36

sorte. Conforme Cashmore (2000a, p. 448), “[as] mudanças no uso da palavra ‘raça’ refletem

as mudanças na compreensão popular das causas das diversidades físicas e culturais”. O

conceito de raça foi utilizado inicialmente nas ciências naturais, precisamente na zoologia e

na botânica, no século XVI, pelo naturalista sueco Lineu (Carl Von Linné), para a

classificação de animais e plantas (MUNANGA, 2004) em 24 raças ou classes de plantas.

Esta classificação, de acordo com Munanga (2004), atualmente foi completamente

abandonada. Na língua latina da Idade Média, a concepção do termo raça referia-se a

linhagem ou descendência a que um grupo de indivíduos pertencia, sendo portadores de

alguns traços fenotípicos comuns. O antropólogo, médico e viajante francês François Bernier,

em 1684, utiliza o conceito de raça em uma perspectiva moderna para se reportar a

diversidade de tipos físicos humanos, considerando a aparência dos indivíduos (MUNANGA,

2004). Mas, somente no início do século XIX “[o] termo ‘raça’ passou a ser usado no sentido

de tipo, designando espécies de seres humanos distintos, tanto pela constituição física quanto

pela capacidade mental” (CASHMORE, 2000a, p. 448-449).

No entanto, na França dos séculos XVI e XVII, a ideia de raça desempenhava um

papel determinante nas relações sociais, em que estabelecia os vínculos de poder e o lugar da

nobreza francesa, identificada com os Francos (grupos de origem germânica), e o lugar da

plebe, constituída pelos Gauleses de origem local (MUNANGA, 2004). Os Francos arrogam

para si a atribuição de uma raça “pura” e superior a dos Gauleses, considerando que poderiam

até mesmo submetê-los à escravidão. Entre estes grupos a única diferença concerne às

condições sociais, pois na perspectiva biológica ou fenotípica, não apresentavam distinção.

Todos eram brancos. A concepção de raça superior ou “pura” sofreu um deslocamento da

Zoologia e da Botânica para justificar a relação de poder entre dois grupos situados em classes

antagônicas. Uma, com maior poder político e econômico, subjugou a outra, que apresentava

menos recursos políticos e econômicos (MUNANGA, 2004). Isso dentro de uma realidade e

quadro europeu. Quando as incursões marítimas europeias encontraram outros povos

(sobretudo os do Novo Mundo), a partir do século XV, situados em uma realidade distinta da

Europa, Munanga (2004) aponta que o conceito de humanidade, estabelecido nos limites do

pensamento ocidental, sofreu um abalo, o que causou certa desorientação. Mas passando os

instantes iniciais e recobrando-se da surpresa do ineditismo, logo os europeus agarraram-se as

antigas crenças, com mais força do que antes.

Com isso, entendemos que as crenças científicas da época ganharam mais vigor, já que

havia sido descoberto um Outro, mais distante geograficamente, diferente fenotipicamente,

para ser comparado e julgado pela sua diferença cultural e fenomênica (aparência). O

37

fundamento para explicar e suavizar o abalo sofrido por esses europeus dos séculos XV e

XVI, estava assentado nas ideias teológicas, nas Escrituras e em uma visão eurocêntrica do

mundo, que, diga-se de passagem, perdura até hoje. Por outro lado, os filósofos iluministas

estavam colocando em xeque a ordem estabelecida e questionando a histórica como algo

cíclico, alicerçada mais nas fábulas do que na verdade dos fatos (MUNANGA, 2004).

Mediante esta ideia, Voltaire, um influente filósofo iluminista do século XVI, elucida que

“[...] a fábula cresce e a verdade diminui com o passar do tempo. Daí o motivo de todas as

origens dos povos serem absurdas” (VOLTAIRE, 2004, p. 267). Dessa forma, a história para

os iluministas era cumulativa e linear, regida por um progresso irreversível. Na estrutura de

pensamento desses pensadores, para saber e estabelecer uma compreensão acerca dos povos

recém-encontrados, não caberia como fonte de explicação à visão do mundo antigo, e muito

menos a interpretação das Escrituras, da teologia, dos mitos ou das fábulas. Utilizaram como

mecanismo operacional a ciência fundada no pensamento racional. Para os filósofos

iluministas, a razão, isenta da influência dogmática da Igreja ou do domínio dos Príncipes,

seria capaz de dizer quem era esse Outro. Conforme Munanga (2004), eles lançaram mão do

que as ciências naturais haviam criado, a classificação das raças.

Dialogando com essas concepções, o filósofo ganense Kwame Anthony Appiah

(1997) revela que se fosse realmente possível tal classificação dos indivíduos em raças

biológicas, não teria validade, pois o critério utilizado por esta ciência, que estava em seu

início, fundamentava-se mais no fenômeno, ou seja, na aparência, do que em algo mais

profundo, como os conhecimentos relativos aos genes. Certamente que a distância temporal

nos possibilita afirmar que os cientistas do passado estavam errados. Porém, naquele

contexto, a classificação humana em raças era um fato inconteste. Ao passo que a lógica da

classificação é um atributo do pensamento humano, em que opera um mecanismo de

organização daquilo que pretende conhecer. Munanga (2004) alude para o fato de que,

praticamente todas as pessoas, em dado momento de suas vidas, já fizeram alguma

classificação daquilo que acreditavam ser necessário organizar para ter um acesso mais rápido

e eficaz ao seu conteúdo, sendo que tal classificação, seria apenas uma maneira de organizar o

espaço e a realidade para melhor se relacionar com ela. Nessa perspectiva, é que o conceito ou

a ideia de raça teria sido útil, mesmo que provisoriamente, para classificar e mapear a

pluralidade humana. Lamentavelmente, este conceito acabou orientando a falsa noção de uma

hierarquização das raças que revestiu os discursos do racialismo (MUNANGA, 2004). Por

outro lado, Appiah (1997) nos fornece uma crítica, que não deixa de ser interessante, à noção

de raça.

38

Falar de “raça” é particularmente desolador para aqueles de nós que levamos

a cultura a sério. É que, onde a raça atua – em lugares onde as “diferenças

macroscópicas” da morfologia são correlacionadas com “diferenças sutis” de

temperamento, crença e intenção –, ela atua como uma espécie de metáfora

da cultura; e só o faz ao preço de biologizar aquilo que é cultura, a ideologia

(APPIAH, 1997, p. 75).

Appiah (1997) defende que o conceito de raça não seria um termo apropriado para

falar das diferenças humanas. Podemos depreender dos argumentos do filósofo que o conceito

não serviria as ciências humanas por sua falta de precisão ou por sua controvérsia. Mesmo

assim, o conceito de raça continua sendo utilizado, seja nas ciências sociais ou no imaginário

de classificação dos indivíduos, pelo senso comum. Talvez isso possa, em parte, se justificar

pelo passado histórico da construção do conceito. No século XVIII, de acordo com Munanga

(2004), a cor da pele era um critério central para se distinguir as diferentes raças existentes.

Então, raça era uma noção biológica classificatória formatada para designar os diversos

fenótipos dos povos espalhados pelo globo terrestre.

Por isso, que a espécie humana ficou dividida em três raças estanques que

resistem até hoje no imaginário coletivo e na terminologia científica: raça

branca, negra e amarela. Ora, a cor da pele é definida pela concentração da

melanina. É justamente o degrau dessa concentração que define a cor da

pele, dos olhos e do cabelo. A chamada raça branca tem menos concentração

de melanina, o que define a sua cor branca, cabelos e olhos mais claros que a

negra que concentra mais melanina e por isso tem pele, cabelos e olhos mais

escuros e a amarela numa posição intermediária que define a sua cor de pele

que por aproximação é dita amarela. Ora, a cor da pele resultante do grau de

concentração da melanina, substância que possuímos todos, é um critério

relativamente artificial (MUNANGA, 2004, p. 19-20).

Munanga afirma que bem menos de 1% dos genes que fazem parte do conjunto

genético de um indivíduo são responsáveis pela transmissão dos caracteres físicos visíveis,

tais como a cor da pele e dos olhos, a espessura do cabelo, o tamanho dos lábios. Os

autóctones (aborígenes australianos) também são negros, mas nem por isso possuem

parentesco genético tão próximo com os negros africanos. “Da mesma maneira que os

pigmeus da África e da Ásia não constituem o mesmo grupo biológico apesar da pequena

estatura que eles têm em comum” (MUNANGA, 2004, p. 20). Somando-se ao critério da cor,

como maneira de classificação racial, no século XIX a ciência acrescenta os aspectos

morfológicos, como o formato do nariz, as características dos lábios, do queixo, o tamanho e a

39

forma do crânio, a angulação facial entre outros aspectos, que visavam aprimorar a

classificação por raça.

O crânio alongado, dito dolicocéfalo, por exemplo, era tido como

característica dos brancos “nórdicos”, enquanto o crânio arredondado,

braquicéfalo, era considerado como característica física dos negros e

amarelos. Porém, em 1912, o antropólogo Franz Boas observara nos Estados

Unidos que o crânio dos filhos de imigrados não brancos, por definição

braquicéfalos, apresentavam tendência em alongar-se. O que tornava a forma

do crânio uma característica dependendo mais da influência do meio, do que

dos fatores raciais (MUNANGA, 2004, p. 20).

Os progressos alcançados com o estudo da genética humana no século XX fortaleceu o

consenso entre os estudiosos das ciências biológicas que o conceito de raça, para classificar os

indivíduos, não teria validade, pois as pesquisas empenhadas na comparação entre as raças

concluíram que dois indivíduos e seus respectivos patrimônios genéticos podem ser

classificados como pertencentes. Assim, um indígena do grupo Nambiquara (pertencente aos

Estados de Mato Grosso e Rondônia) pode ser mais próximo geneticamente de um

descendente direto de alemães (no sul do Brasil) e mais distante geneticamente do grupo

indígena Bororo (também do estado de Mato Grosso).

Os biólogos e geneticistas modernos concluíram que o termo raça não implica em uma

realidade biológica capaz de classificar os indivíduos humanos, recomendando, segundo

Munanga (2004), o seu uso apenas no campo conceitual, na perspectiva cientifica, sem efeito

para “[...] explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estanques. Ou seja,

biológica e cientificamente, as raças não existem” (MUNANGA, 2004, p. 21).

[As] críticas ao termo raça e as revelações de sua redundância como

construção analítica desestabilizaram e desmembraram a sua compreensão

como um critério com sentido nas ciências sociais e biológicas, mas

enquanto as conversações contemporâneas continuarem a incluir a palavra,

seu potencial persistirá. Isso ocorre porque o termo “raça” propõe descrever

algo, mas inclui simultaneamente a diversidade (CASHMORE, 2000b, p.

452).

Diante disso, podemos lançar mão de uma provocação: por que a noção de “raça”

continua sendo empregada para se referir aos diferentes grupos de indivíduos que partilham

traços fenotípicos comuns? Se tanto os intelectuais como os estudiosos das relações raciais e

dos estudos culturais criticam seu uso na compreensão de muitas sociedades.

40

Na visão do antropólogo britânico Paul Gilroy (2001), os estudiosos e intelectuais

negros (e brancos também) contemporâneos sucumbem, com frequência, ao engano de

[...] concepções românticas de “raça”, “povo” e “nação”, encarregando a si

mesmos, em lugar do povo que supostamente representam, das estratégias de

construção da nação, formação do estado e elevação racial (GILROY, 2001,

p. 91).

Pelo que Gilroy (2001) sinaliza, esses intelectuais são seduzidos por uma visão

essencialista de raça. Em certo aspecto, consideramos que Munanga (2004) concordaria com

isso, pois, segundo ele, não se deve pensar em raças estanques, fechadas biologicamente em

um grupo, como se houvesse uma pureza racial. Nada mais falso, enganoso e perigoso do que

tal interpretação.

Gilroy, na análise de Guimarães (2002), não acredita que a manutenção do termo raça

contribua efetivamente para o enfretamento da problemática do racismo.

1) no tocante à espécie humana, não existem “raças” biológicas, ou seja, não

há no mundo físico e material nada que possa ser corretamente classificado

como “raça”; 2) o conceito de “raça” é parte de um discurso científico

errôneo e de um discurso político racista, autoritário, antiigualitário e

antidemocrático; 3) o uso do termo “raça” apenas reifica uma categoria

política abusiva (GUIMARÃES, 2002, p. 48-49).

O fato é que o termo raça evoca no imaginário das pessoas uma hierarquia racial.

Gilroy destaca que os antirracistas justificam o argumento da necessidade do conceito de raça

(GUIMARÃES, 2002) considerando que o conceito é uma categoria única que carrega a

possibilidade de auto identificação referente às pessoas que sofreram os efeitos de um sistema

opressor (o escravista e o racista), cujas identidades e solidariedades foram forjadas à custa de

categorias (como negro, inferioridade racial, subalterno racialmente etc.) impostas por aqueles

que os oprimiam. A novidade da crítica de Gilroy (GUIMARÃES 2002) é que os discursos

que se apropriam da noção de raça são anacrônicos, pois, atualmente, a negritude, em muitos

setores, como no mundo do entretenimento televisivo, cinematográfico e, principalmente, em

alguns esportes de alto rendimento, em que o negro é considerado com mais aptidão do que o

não negro, pode significar prestígio em vez de inferioridade ou repulsa.

Guimarães (2002) acrescenta que Gilroy afirma que o antirracismo sempre foi uma

forma política que acabava negando o racismo existente, mas que não propunha efetivamente

uma política afirmativa de enfrentamento ao racismo. Provavelmente, este antirracismo fique

41

mais no plano discursivo, e não se converta em ação. A posição de Gilroy está fundamentada

na perspectiva de que os antirracistas estão comprometidos com o enfrentamento das

desigualdades e diferenças estabelecidas a partir do conceito de raça; e que não há mais

necessidade da identidade racial tendo como enfoque um fundamento histórico, para avançar

na compreensão do racismo e suas consequências. Por isso, não haveria mais utilidade o

termo raça, seja do ponto de vista biológico ou mesmo social.

Alguns dos pressupostos de Gilroy são também pressupostos meus. Se eles

estão corretos, a pergunta decisiva é: quando os anti-racistas (sic) negros

podem prescindir da ideia de “raça” que os unifica? Essa é uma pergunta

política e, portanto, concreta, que não pode ser respondida em termos

genéricos. Afinal, se a raça biológica não existe, também não há uma única e

universal maneira de construir a categoria social de “raça”, a qual deve

diferir de sociedade para sociedade, ainda que obedeça a certa matriz

universal, informada por um modo de produção, uma estrutura planetária de

trocas e por tecnologias específicas (GUIMARÃES, 2002, p. 50).

A posição que Guimarães (2002) adota está na contramão da crítica de Gilroy. Para

Guimarães (2002; 2012), o conceito de raça não é apenas um marcador de resistência política

que serve para organizar o enfrentamento ao racismo, mas uma categoria de análise

imprescindível para se compreender este fenômeno. Os argumentos de Gilroy estão baseados

em uma realidade europeia, e que talvez caiba apenas ao continente. No caso do Brasil, ainda

há a necessidade da categoria raça para o enfrentamento, político e teórico, da problemática

racial. Quando, então, se poderia prescindir do conceito de raça?

[...] quando já não houver identidades raciais, ou seja, quando já não

existirem grupos sociais que se identifique a partir de marcadores direta ou

indiretamente derivados da ideia de raça; [...] quando as desigualdades, as

discriminações e as hierarquias sociais efetivamente não corresponderem a

esses marcadores; [...] quando tais identidades e discriminações forem

prescindíveis em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a afirmação

social dos grupos oprimidos (GUIMARÃES, 2002, p. 50-51).

Enquanto esta mudança não ocorrer, Guimarães direciona a imprescindibilidade do

uso do termo raça em um sentido analítico. A justificativa para tal uso seria que o conceito,

mesmo suprimido do discurso erudito e popular entre os anos 1930 e 1970, e interditado por

uma etiqueta racial muito sofisticada, contribuiria para discutir a desigualdade, a

discriminação e as queixas de preconceito em relação à cor da pele que aumentavam no país

durante esse período. As vozes abafadas pela negação do racismo se viram obrigadas a

42

intensificar um discurso que promovesse a afirmação identitária, revigorando-se ao

possibilitar uma atualização do discurso étnico e cultural de parte da população negra.

A despeito desse movimento de luta na efetivação de uma marca identitária negra, a

etiqueta racial permanece como uma forma de tratamento dispensado ao negro, característico

do racismo à brasileira.

Esta etiqueta racial, dispensada ao negro, relativizando sua cor, de acordo com

Teixeira (2011), tem sua origem na ideologia do branqueamento, no status socioeconômico e

nas relações de amizade e afeto entre as pessoas. No caso das relações de afeto e amizade, a

pessoa que tem amigo negro, quando vai se referir à cor dele, se comporta de tal maneira que

acaba negando os traços e a cor de sua pele. Realiza essa negação usando expressões como

“você não é negro não, é moreno achocolatado” e “você pode até ser meio preto, mas tem a

alma branca”. Um caso que pode ser citado é a do ex-governador de Mato Grosso Júlio

Campos, que governou o estado nos anos 1980, e que, quando deputado federal pelo

DEM/MT, durante um discurso na bancada de seu partido em março de 2011, em que

defendia a prisão especial para autoridades, se referiu ao então ministro do STF (Supremo

Tribunal Federal) Joaquim Barbosa como “moreno escuro”, ao salientar que esses processos

poderiam cair em suas mãos (TEIXEIRA, 2011). O que fica explícito nesse acontecimento, é

o modo como está constituída a mentalidade preconceituosa do brasileiro, ao não admitir por

razões afetivas, econômicas e hierárquicas a negritude do outro. E até mesmo aqueles que são

negros, muitas vezes, por força e influência dessa mentalidade, negam seu pertencimento e

seu próprio ser sob a influência dessa etiqueta racial. Há ainda certa recusa na opinião pública

brasileira em se falar em raça, mesmo que seja em um sentido analítico, quando se refere à cor

da pessoa. Apesar disso, segundo Guimarães (2002), “[...] continuamos a nos classificar em

raças, independente do que nos diga a genética” (GUIMARÃES, 2002, p. 52).

Muitos pesquisadores, segundo Munanga (2004), que estudam as questões raciais,

usam o conceito de raça para analisar e explicar o racismo.

[...] na medida em que este fenômeno continua a se basear em crença na

existência das raças hierarquizadas, raças fictícias ainda resistentes nas

representações mentais e no imaginário coletivo de todos os povos e

sociedades contemporâneas. Alguns fogem do conceito de raça e o

substituem pelo conceito de etnia considerado como um lexical mais

cômodo que o de raça, em termos de “fala politicamente correta”. Essa

substituição não muda nada à realidade do racismo, pois não destruí a

relação hierarquizada entre culturas diferentes que é um dos componentes do

racismo (MUNANGA, 2004, p. 29).

43

Nesse ponto, o pensamento de Munanga (2004) converge com o de Guimarães (2002),

quando julgam que hoje muitos dos pesquisadores prescindem do conceito de raça, por

acreditarem que o racismo que se pratica nas diversas sociedades contemporâneas não

necessita mais do conceito de raça para ser compreendido.Nas formulações de Munanga

(2004), o conceito de raça se reconfigurou em outras noções que tomam como base a etnia, a

diferença cultural e os processos identitários. “[...] Mas as vítimas de hoje são as mesmas de

ontem e as raças de ontem são as etnias de hoje” (MUNANGA, 2004, p. 29). De fato, o que

mudou foram os conceitos ou os termos, mas a representação ideológica que conduz à

exclusão e à dominação continua ilesa. “[...] É por isso que os conceitos de etnia, de

identidade étnica ou cultural são de uso agradável para todos: racistas e antirracistas (sic)”

(MUNANGA, 2004, p. 29). Cada um manipula ou faz o uso do termo raça conforme a

posição ideológica assumida no plano das ideias. O que permanece no mundo real é o

racismo.

De modo que, enquanto a ideia de raça tem uma referência morfológica e biológica,

atrelado mais aos aspectos fenotípicos, o conceito de etnia, por exemplo, diz respeito a um

conteúdo sociocultural, histórico e psicológico.

Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente,

têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião

ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo

território (MUNANGA, 2004, p. 28-29).

O autor, dessa maneira, além de pensar o termo etnia como não muito apropriado para

tratar do racismo, distancia-se também da concepção analítica do conceito de raça proposta

por Guimarães (2002) e por autores norte-americanos, como Cashmore (2000a). Em seus

textos, Munanga (2004) usa os conceitos de “negro” e “branco” em sentido político-

ideológico, em vez de “raça negra” ou “raça branca”.

[...] os conceitos de “População Negra” e “População Branca”, emprestados

do biólogo e geneticista Jean Hiernaux, que entende por população um

conjunto de indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de

casamento e que, ipso facto, conservam em comum alguns traços do

patrimônio genético hereditário (MUNANGA, 2004, p. 30).

O uso duplo do conceito de raça e de etnia, segundo Munanga é inteiramente

manipulável e cria certa confusão, sobretudo para o iniciante que procura estudar as questões

raciais. Esta confusão configura-se precisamente na utilização não muito evidente dos

44

conceitos de raça e etnia, “[...] que se refletem bem nas expressões tais como as de

“identidade racial negra”, “identidade étnica negra”, “identidade étnico-racial negra” [...]”

(MUNANGA, 2004, p. 30), como se fossem fixos e não constituídos cultural e

historicamente. Conforme Munanga (2004), os povos (descendentes dos ancestrais africanos –

que foram transplantados forçosamente de seu continente – e europeus, que chegaram e se

encontraram com os povos indígenas de maneira nada amistosa) no que hoje denominamos de

Brasil, não poderiam ser mais considerados como raças, simplesmente porque a ciência

biológica assim estabeleceu, em um passado não muito distante. O autor sugere que estes

povos não sejam mais classificados de raças ou etnias, mas de populações (MUNANGA,

2004). Munanga justifica a nomenclatura defendendo que estes povos continuam a se misturar

pelos processos endogâmicos proporcionados pelas regras culturais, por mais que alguns

estivessem ou procurassem fechar-se em seus circuitos socioculturais, ocorreu um aumento da

população mestiça.

Por um posicionamento político, social, ideológico e histórico, colocou-se

coletivamente os brancos no cume da pirâmide social, delegando aos mesmos o comando e o

poder, que independe de suas raízes culturais e étnicas. Por um sintoma da ideologia racista,

que vincula uma relação inerente entre o biológico e o cultural, ou ainda entre a raça e a

cultura, ficou estabelecido uma relação equivoca ao considerar a população branca como

sendo da mesma etnia. Assim, segundo Munanga (2004), dizer que há uma “cultura branca”

ou uma “etnia branca” é incorrer em erro e gerar mais confusão nesse intrincado campo de

estudos das relações raciais. Do mesmo modo, seria enganoso dizer que há uma “cultura

negra” ou uma “etnia negra”, estabelecido por um posicionamento político, social, ideológico

e histórico que situou coletivamente os negros como grupo na base da pirâmide social.

A ideia central do autor, portanto, é que a classificação de todos os brancos na “etnia

ou cultura branca”, independentemente se são descendentes de alemães, ucranianos ou

italianos, é dúbia e equivocada. Visto que as etnias não são unidades fixas, há um constante

processo de identificação e mudança, que acabam por gerar outros aspectos étnicos que

diferem do original. Por exemplo, muito da cultura alemã no Sul do Brasil já não é algo que

se vê praticado na Alemanha. No caso do idioma alemão, houve certa mestiçagem com a

língua portuguesa: por exemplo, a palavra alemã es regnet (chover) foi modificada em alguns

casos por choviert (que significaria também chover), mas que na realidade está

aportuguesada, pois choviert não existe no idioma alemão como designação de chuva.2

2 Todas estas informações sobre a língua alemã e a cultura germânica no sul do Brasil foram adquiridas

informalmente, em contato com amigos e palestras que abordavam a questão da dinâmica cultural.

45

Estas são referências às culturas particulares que, segundo Munanga (2004),

esquivam-se da cultura globalizada se posicionando de forma resistente ao estabelecimento da

globalização. Todas estas culturas particulares se edificaram diferentemente tanto no conjunto

da população branca como da população negra.

É a partir da tomada de consciência dessas culturas de resistência que se

constroem as identidades culturais enquanto processos e jamais produtos

acabados. São essas identidades plurais que evocam as calorosas discussões

sobre a identidade nacional e a introdução do multiculturalismo numa

educação-cidadã, etc. Olhando a distribuição geográfica do Brasil e sua

realidade etnográfica, percebe-se que não existe uma única cultura branca e

uma única cultura negra e que regionalmente podemos distinguir diversas

culturas no Brasil. Neste sentido, os afro-baianos produzem no campo da

religiosidade, da música, da culinária, da dança, das artes plásticas, etc. uma

cultura diferente dos afro-mineiros, dos afro-maranhenses e dos negros

cariocas (MUNANGA, 2004, p. 32).

Munanga (2004) acrescenta que, no nível político, o termo raça (em um sentido

sociológico e político-ideológico, sendo que se aproxima novamente das concepções de

Guimarães), a partir da conscientização da exclusão provocada pela discriminação racial,

pode constituir uma unidade identitária negra, apesar das diferenças culturais e regionais de

cada lugar. Esta é uma mobilização organizada e fundada na ideia de raça, na perspectiva de

que todos os negros, levando-se em consideração as diferenças históricas e culturais existentes

entre eles, são discriminados e subalternizados pelo segmento branco.

Sendo assim, tal “identidade racial negra” ou uma “identidade étnica racial negra”

deve ser compreendida como um marcador político-ideológico de enfrentamento teórico, ou

mesmo político, do racismo. O que resta verificar é se todos estão a par do conteúdo político

dessas expressões, para evitar que se caía em um biologismo, ao pensar que os negros

produzam cultura ou identidade como a mangueira produz a manga ou o abacateiro produz o

abacate (MUNANGA, 2004).

Segundo o autor, o uso dos termos raça, etnia, “identidade racial negra” e “identidade

étnica racial negra” são terminologias que buscam efetivar uma transformação da situação do

negro no Brasil. Elas estão em oposição ao discurso dominante da identidade mestiça, que

legitima a ideologia da democracia racial, que interessa ao conservadorismo e ao status quo

dominante.

Nesse emaranhado debate que se encontra a discussão racial, a antropóloga Lilian

Schwarcz (2007), por outro lado, destaca em suas pesquisas às teorias que estruturavam o

pensamento racial europeu. Estas teorias ganhariam solo brasileiro, principalmente no final do

46

século XIX, tendo como porta de entrada as Faculdades de Direito, de Medicina e os círculos

militares da época, sendo que no começo do século XX, houve uma intensificação do debate,

teórico e político, em torno da noção de raça. De acordo com Schwarcz (2007), “[...] o

interessante é que, para a confirmação da identidade, a raça teve que ser positivada: assim

como no Império você positiva o indígena, no século XX, positiva-se a mestiçagem”

(SCHWARCZ, 2007, p. 14). Dessa maneira, a mestiçagem, de concepção negativa, converter-

se em uma virtude do povo brasileiro, em que há uma aceitação e oficialização da capoeira

como prática cultural, a descriminalização do candomblé, o futebol torna-se um esporte de

negros e a Nossa Senhora Aparecida é vista como uma santa mestiça, transfigurando-se em

símbolo nacional (SCHWARCZ, 2007). Assim, nos anos 1930, o discurso em torno da raça é

um discurso positivado, constituindo um elemento que compõe a nacionalidade e a cultura

brasileira, misturada e racialmente integrada. Na mentalidade de muitas pessoas desse

período, o Brasil havia conseguido uma “boa mistura” e uma “boa raça”. Ainda, ao que

parece, somos herdeiros dessas concepções. Basta notarmos os discursos conservadoramente

raciais que fazem a mídia e o senso comum, ao especularem acerca da identidade nacional e

da classificação dos brasileiros. No que diz respeito à mídia, e no caso específico das

telenovelas, o discurso em torno dos negros é de que eles estão perfeitamente integrados as

classes sociais, ao evidenciar seu lugar de “costume” na hierarquia social. Esta integração,

em parte, se deve a “tão celebrada” democracia racial, que o Brasil ostenta orgulhosamente.

Sobre a expressão democracia racial, Schwarcz (2007) aponta que Arthur Ramos, um

importante intelectual do início do século XX e estudioso das questões raciais e da identidade

brasileira, foi o primeiro a usá-la. Entretanto, a autora nos diz que Gilberto Freyre ficou com a

fama de ter criado a terminologia, pois a temática racial estava na agenda do país naquele

momento. Isso repercutiu no ideário político do Estado Novo (1937 a 1945), chamando a

atenção de muitos países no exterior, em que até mesmo a UNESCO (Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), na década de 1950, fomentou uma

pesquisa para verificar o grau da propagada democracia racial brasileira. A pesquisa da

UNESCO queria evidenciar o Brasil como um caso exemplar de interação harmoniosa entre

as raças. Na realidade, de acordo com Schwarcz (2007), a ideologia do mito da democracia

racial é muito forte, criando um imaginário com grandes repercussões na forma de se enxergar

o Brasil, assimilada principalmente pelos próprios brasileiros e inculcada nos estrangeiros.

Nesse sentido, a autora apresenta algo que parece controverso, ao apresentar o mito da

democracia racial não como uma mentira, pois pensar nele significa procurar compreender

47

mais o que ele tem a revelar do que a esconder. “[...] É preciso levar a sério o mito, porque ele

já foi desmontado muitas vezes e continua presente” (SCHWARCZ, 2007, p. 15).

E o que significaria levar o mito a sério? Na concepção da antropóloga, realmente não

há uma democracia racial no Brasil.

Praticamos uma política perversa de exclusão e de discriminação. Então, não

há a tal democracia social ou racial, mas também não acho que devemos

apostar em modelos de fora, análises que dicotomizam a realidade entre

negros e brancos (SCHWARCZ, 2007, p. 15).

Ou seja, modelos de análises das relações raciais empreendidos em países como os

Estados Unidos ou a África do Sul, em que negros e brancos convivem quase que em um

regime de castas, não serviriam para compreender analiticamente o racismo no Brasil. O mito

da democracia racial, nesse caso, afirma que as relações raciais brasileiras são diferentes por

congregar as raças sob o signo da mestiçagem.

[...] A mestiçagem é uma realidade, mas o problema não é a constatação da

mestiçagem, mas a qualificação positiva sempre da mestiçagem. Mestiçagem

não é sinônimo de igualdade. Mestiçagem não é obrigatoriamente sinônimo

de ausência de discriminação. É esse vácuo que me incomoda

(SCHWARCZ, 2007, p. 15).

A ideia da mestiçagem é usada para ratificar o panorama racial brasileiro. Ela é um

engodo, conforme argumenta a autora, que serve para dissimular o preconceito racial e fazer

com que as pessoas no Brasil acreditem, que não exista racismo.

De acordo Schwarcz, a raça seria uma noção e uma construção perversa, que

estabelece uma relação de hierarquia. Isso se aproxima das concepções de DaMatta (1986),

quando argumenta que a sociedade brasileira é hierarquizada, favorecendo o racismo à

brasileira. Na visão de Schwarcz (2007), o conceito de raça sempre foi empregado para pensar

a identidade no Brasil e o racismo à brasileira, que tem um caráter privado. Compreendemos

com isso, que a autora revela o racismo no Brasil funcionando como algo velado,

subentendido ou mesmo camuflado. “Esse racismo à brasileira é de caráter privado, por não

se manifestar no corpo da lei e por não se manifestar nas estâncias mais oficiais”

(SCHWARCZ, 2007, p. 15). Esse racismo tem também como característica a de jogar no

Outro a culpa de se ser preconceituoso ou racista. Por exemplo, quando se acusa os peruanos

de racistas no caso em que o jogador de futebol do Cruzeiro Tinga, em um jogo pela Copa

Libertadores da América (fevereiro de 2014), em que toda vez que tocava na bola a torcida do

48

time adversário, Real Garcilaso, imitava gestos e sons de macaco direcionados ao jogador.

Houve grande repercussão desse episódio no Brasil, sobretudo pelas redes sociais e pela

imprensa. Com efeito, “as pessoas negam e jogam no Outro o racismo que na verdade é de

cada um” (SCHWARCZ, 2007, p. 15). Assim, é comum no Brasil apontar a falha do Outro

sem se perceber como portador da mesma falha. Ou seja, criticar o racismo de outros países e

não dar muita importância ao racismo existente em solo doméstico.

Por conseguinte, o conceito de raça contribuiria para discutir e pesar a problemática do

racismo à brasileira que envolve não apenas o Outro, mas todos os indivíduos.

O conceito de raça, quando se trata de pessoas, não pode ser usado como conceito

biológico, como já argumentado anteriormente, uma vez que não existem raças humanas.

Schwarcz (2007) pensa na perspectiva de que o termo raça é uma construção social acionada

constantemente pelo imaginário. Tratar do racismo à brasileira, pensando-o a partir do

conceito de raça, talvez seja necessário para desvelar e diagnosticar suas entranhas, para

enfrenta-lo efetivamente. Nesse sentido, não é descartando o conceito de raça, como sugeriu

Paul Gilroy (2001), ao falar das relações raciais, que se estará diminuindo a problemática

racial.

No terreno movediço, complexo e árido dos estudos da problemática racial

apresentamos, para fazer uma contraposição ao que viemos refletindo até agora, os

argumentos de outro autor, Peter Fry, que, em certa medida, divergem das premissas de

Munanga e Guimarães, quando pensa o conceito de raça.

De início, é necessário dizer que Fry (2005) não considera o racismo inexistente no

Brasil. Considera-o, na realidade, muito complexo, diferente quando comparado ao racismo

norte-americano. Enquanto Munanga (2004), Guimarães (2002) e Moore (2007) têm um

posicionamento político mais evidente e, de certo modo, atuante no enfrentamento da

problemática racial, Fry (2005) parece sustentar que isso não resolveria o racismo existente no

Brasil. E descarta, de maneira sutil em seus argumentos, o conceito de raça como necessário

para se compreender o racismo. O autor enfatiza que certos sociólogos, filósofos e

antropólogos, ao pensarem e analisarem o racismo brasileiro, se aproximam da concepção da

divisão bipolar entre negros e brancos com raízes na taxonomia racial norte-americana. Para

Fry (2005), o Brasil é um caso único de entrelaçamento das raças, embora considere a

discriminação racial algo muito evidente no Brasil. O autor não acredita que o conceito de

raça seja suficiente para a compreensão, ou mesmo disciplinar, o universalismo que os

brasileiros usam para classificar a cor da pele.

49

É possível argumentar que o estilo múltiplo é mais coerente, menos ambíguo

e até menos racista que o bipolar dos Estados Unidos. O estilo múltiplo

efetivamente utiliza um sistema de percentagens não-quantificadas: assim,

“cabelo bom”, “nariz chato”, “lábios finos” e “cor clara” são descrições que

acabam reconhecendo a herança genética africana e européia (sic). O

racismo surge quando os mais próximos da “Europa” são vistos como

superiores (FRY, 2005, p. 198).

O argumento de Fry (2005) parece inclinar-se (talvez essa seja a intenção maior do

autor?) para uma relativização do racismo brasileiro. Na prática e no cotidiano, o pensamento

racial (brasileiro e norte-americano) opera fazendo uso de conceitos como o de raça. No caso

do Brasil, ele serve para dizer a cor e classificar as pessoas fenotipicamente; e, no caso dos

Estados Unidos, a classificação das pessoas está relacionada mais diretamente com sua

origem ancestral (NOGUEIRA, 2006).

Nesse sentido, Fry (2005) argumenta que a ideologia da democracia racial, cujo

conceito de raça, de acordo com sua posição teórica, não faz sentido se a relação entre as

pessoas de todas as cores e fenótipos ocorrem de forma festiva e harmoniosa. Esta constatação

do autor não é a mesma de outros antropólogos e sociólogos como Moore (2007), Schwarcz

(2007), Guimarães (2002) e Munanga (2004), para quem o conceito de raça ainda é necessário

analítica (Guimarães; Schwarcz) e politicamente (Munanga; Moore), já que a construção do

racismo é um fenômeno sociocultural e não biológico. Ninguém nasce racista, se aprende a

ser racista. Para analisar um fenômeno tão complexo, principalmente no caso particular do

Brasil, o conceito de raça poderia contribuir mais efetivamente para o enfrentamento teórico e

político do racismo. Sendo a educação e a escola lugares/espaços privilegiados para tratar do

racismo, combatendo-o por meio de uma educação antirracista. Para isso será fundamental

formar os professores. Esta formação pode partir da própria escola, nos espaços reservados ao

estudo e formação continuada, através da Sala de Educador (espaço destinado aos professores

e funcionários das escolas estaduais do Estado de Mato Grosso, para a formação continuada

com temas selecionados pelos próprios participantes, com a contribuição/orientação dos

Cefapro’s3 da Secretaria de Educação - MT).

Desse modo, para voltarmos à discussão do conceito de raça, Fry (2005) se aproxima

das concepções de teóricos como Gilroy e Appiah, os quais discordam do uso do termo raça

para se pensar e enfrentar o racismo. Mas, como afirmamos antes, o uso do termo raça é

3 “Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica (CEFAPRO) [e tem] como objetivo

[...] desenvolver projetos de formação continuada nas unidades escolares estaduais, [do Estado de Mato Grosso]

subsidiando professores nas discussões e reflexões coletivas sobre os diagnósticos levantados e orientando-os

nas intervenções necessárias para a melhoria do processo de ensino.” Cf. em: Sílvia Bezerra e Cristiane

Cespedes. Disponível em: http://www.congressohistoriajatai.org/anais2011/link%209.pdf

50

corriqueiro tanto na linguagem do senso comum quanto na linguagem de intelectuais e

eruditos brasileiros. Como descartar um conceito que as pessoas utilizam frequentemente para

classificar hierarquicamente o lugar de brancos, indígenas e negros na sociedade?

Telles4 (2004) usa as diferenças da estrutura racial entre Brasil e Estados Unidos para

destacar que o conceito de raça é amplamente usado em ambos os sistemas. Seus argumentos,

de certo modo, vêm ao encontro do que pensam Nogueira (2006), Guimarães (2002),

Munanga (2004) sobre a questão racial brasileira, pois entende que a noção de raça no Brasil

tem fundamentos na cor da pele e na “[...] aparência física e não na descendência africana”

(TELLES, 2004, p. 2), como é o caso nos Estados Unidos. Sendo que os dois sistemas de

relações raciais se orientam pelas raízes ideológicas da supremacia branca, porém constituídos

de modos diferentes. No caso dos Estados Unidos, a segregação racial marcou as fronteiras

nitidamente entre negros e brancos. Já no caso brasileiro, Telles alega que as relações raciais

são mais fluidas, não tendo uma fronteira rígida e tão nítida como no norte-americano. Esta

fluidez está relacionada à ideologia da mestiçagem, que enfatiza a mistura racial brasileira

como um pilar central para se discutir e destacar (diante dos próprios brasileiros como perante

a comunidade internacional) as supostas relações raciais pouco conflituosas.

A miscigenação, embora inicialmente tenha provocado inquietação e medo

entre a elite, há muito tempo tem servido como metáfora definidora da nação

brasileira. Embora a mistura racial não reflita necessariamente a realidade do

comportamento social brasileiro, esse conceito tem sido fundamental para

compreender as relações raciais em termos brasileiros (TELLES, 2004, p. 4).

A ideia de raça entre os brasileiros, defende o autor, vincula-se irredutivelmente à

noção de mistura e miscigenação racial. E, em relação aos países latino-americanos “[...]

como o Brasil, muitos outros [...] defenderam suas ideologias de mestizaje, termo espanhol

equivalente à mistura racial” (TELLES, 2004, p. 4), para assegurarem ideologicamente o

sucesso da miscigenação na criação de raças híbridas.

A concepção de mestizaje na América Latina está fundamentada na ideologia da

supremacia branca (TELLES, 2004), e que muitos defensores dessa concepção não enxergam

4 Edward E. Telles “[...] é professor no Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Los

Angeles, e, além de pesquisador da realidade sociológica do Brasil há pelo menos uma década, publicou

inúmeros artigos sobre o tema, especialmente em revistas norte-americanas, tendo várias passagens pelo Brasil,

incluindo uma estadia no Rio de Janeiro onde trabalhou como Assessor de Programas em Direitos Humanos do

escritório da Fundação Ford”. Cf. em: Jacqueline Britto Pólvora Disponível em:

http://www.scielo.br/pdf/ha/v10n21/20631.pdf

51

(ou não querem enxergar?). Sabe-se que a miscigenação, o hibridismo e a mistura entre as

culturas é um fato, não existindo de maneira alguma uma cultura ou povo essencialmente

puros. Mas a miscigenação, “de fato”, não impediu que as injustiças raciais cessassem. Estas

injustiças têm se revelado cada vez mais acentuada na região latino-americana. Diversos

cientistas sociais estão chegando a um consenso de que a mistura racial apenas representa

uma metáfora (TELLES, 2004) que explica as relações entre os povos e as pessoas, seus

conflitos e encontros.

Nesse sentido, a televisão brasileira, e em particular as telenovelas, celebram a

miscigenação por meio de um discurso simbólico e ideológico, enfatizando que as relações

raciais no Brasil não seriam tensas, pois cada um saberia seu lugar social. No entanto, na

prática as injustiças raciais, como afirma Telles (2004), continuam atuando fortemente e de

maneira crescente. Talvez, seja por isso que muitos autores, principalmente os que

fundamentam nosso trabalho, defendem a manutenção do termo raça para analisar o racismo

no Brasil e seus desdobramentos.

Com base nisso, nos ocorrem as seguintes questões: como as telenovelas poderiam

tornar efetiva esta precarização do processo de identificação da população negra? Há uma

abordagem da identidade negra nas tramas novelísticas? Quais seriam, por outro lado, os

estereótipos em relação ao negro que são recorrentes nas telenovelas? Haveria também nas

telenovelas algum hibridismo cultural? Estas são questões que perpassam a compreensão do

racismo que se vive no Brasil, pois a identidade negra veiculada pela teledramaturgia sempre

foi virtual e distanciada do componente real da cultura negra brasileira. Os estereótipos

criados em relação ao negro são os exemplos desse distanciamento.

Pode ser que seja importante, tendo em vista as questões que esboçamos no parágrafo

anterior, pensar sobre o termo raça sem pré-conceitos. Sendo assim, Pinho (2008) nos ajuda a

compreender que o termo raça é uma categoria analítica e um conceito êmico5, que está nos

debates cruciais e na busca da compreensão em torno da problemática racial, não apenas no

Brasil e nas ciências sociais, mas no mundo e na vida pública.

Já o antropólogo Andreas Hofbauer6 (2006) convenceu-se de que não poderia

prescindir de termos como negro e branco para falar do racismo, assim como de noções como

5 “Termo utilizado na antropologia para descrever categorias e valores internos próprios às sociedades e grupos

em estudo, e tomados segundo a lógica e coerência com que aí se apresentam; o termo tem origem na linguística,

mas atualmente é utilizado predominantemente na antropologia”. Cf. em:

http://www.nossalinguaportuguesa.com.br/dicionario/%eamico/ 6 Antropólogo austríaco radicado no Brasil e professor “[...] assistente doutor da Universidade Estadual Paulista

Júlio de Mesquita Filho, [em Marília, estado de São Paulo]. Atua principalmente nos seguintes temas: racismo e

52

raça, identidade e cultura “[...] como conceitos-chave de discursos de inclusão e exclusão,

desenvolvidos primeiramente no mundo ocidental” (HOFBAUER, 2006, p. 15).

Hofbauer (2006) defende que as palavras e os conceitos são produções histórico-

culturais que manifestam intenções individuais e coletivas, ligadas consequentemente a

construção da realidade cultural e social. O conceito de raça está relacionado a esta

construção.

Embora a maioria dos especialistas em “assuntos raciais” [...] afirme

enfaticamente que noção de raça é um conceito historicamente construído,

muitos destes autores tratam as “variedades fenotípicas” como um dado

biológico neutro, como mera constatação sem valoração nem conteúdo

ideológico (HOFBAUER, 2006, p. 17).

O antropólogo inglês Peter Wade, conforme Hofbauer (2006), chama a atenção para

fato de que no campo dos estudos raciais ainda é praticado tendencialmente, por certos

especialistas na questão racial, a naturalização do conceito de raça. Ainda de acordo com

Hofbauer, Wade, constatou que há uma transferência naturalizada do conceito de raça para o

fenótipo. Isso inviabilizaria a noção de que raça é uma construção social, pois a pigmentação

da pele negra continuaria a ser considerada um elemento da natureza e não uma argumentação

ideológica.

Para Hofbauer, Wade faz um importante alerta sobre o uso de categorias como raça,

fenótipo e cor: elas não devem ser entendidas como um dado objetivo da realidade, “[...] mas

muito mais como partes integrantes de discursos específicos sobre o mundo empírico”

(HOFBAUER, 2006, p. 18).

Desse modo, a perspectiva de investigação e análise de Hofbauer (2006), parte de uma

orientação que historiciza a problemática racial, enfatiza um elemento importante na

compreensão do racismo existente no Brasil, a construção sociocultural da noção de

branqueamento. Os termos raça, fenótipo ou cor estão ligados a este campo de construção

ideológica. Entendemos que o autor aponta para uma compreensão da problemática racial e

do racismo a partir da história desses fenômenos.

Enfim, usaremos o conceito de raça na elaboração dos nossos argumentos no texto,

para descrever e analisar como o racismo e a ideologia do branqueamento estão subjacentes

no conjunto da sociedade, sobretudo na televisão e nas telenovelas. No caso da televisão, a

antirracismo, identidade e etnicidade, cultura afro-diaspórica, religiosidade afro-brasileira, teoria antropológica e

pós-colonialismo”. Cf. em: http://andreashofbauer.wordpress.com/2011/08/30/hello-world/

53

evidência desse comportamento branqueado é explícita. Quando, por exemplo, vemos o

número superior de personagens brancos no elenco de uma telenovela ou nas bancadas dos

telejornais, ou ainda apresentadores loiros quase albinos, na apresentação de programas

sabatinos e domingueiros das transmissões televisivas.

Hoje, as mídias funcionam como nossas próteses, “permitindo” uma onisciência da

realidade e o que acontece nela, principalmente no aspecto cultural, tecnológico e social. Elas

nos dizem o que está acontecendo no mundo à nossa volta. Mas carregam uma carga

ideológica, escondendo ou mantendo velados alguns discursos, como o racial. Dessa maneira,

provavelmente interferindo na compreensão da questão da raça no Brasil, já que raça é uma

concepção controversa. Talvez por isso o movimento negro, para facilitar e mobilizar ao

mesmo tempo o enfrentamento ao racismo, tenha bipolarizado a cor ou a raça dos brasileiros

em branco e negro (sem desconsiderar os indígenas e outros povos que vivem aqui, como os

japoneses, de raça ou cor amarela). No entanto, será que essa bipolarização realmente

facilitaria o enfretamento da problemática racial? Ou apenas acentuaria o problema, deixando-

o mais intrincado?

CAPÍTULO II

Televisão e telenovelas: breve introdução teórica

54

A produção e a realidade da comunicação de massa, de acordo com as análises do

sociólogo e ex-professor de técnica da linguagem radiotelevisiva Mauro Wolf (2009), são

compostas por muitos aspectos diferentes. Segundo Wolf, esses aspectos envolvem desde

regulamentações legislativas, operações financeiras, crises e triunfos das produções,

polêmicas eventuais que dizem respeito à influência que a mídia exerceria sobre as crianças,

“[...] entusiasmos e alarmes pelas novas tecnologias e pelos cenários prefigurados por elas”

(WOLF, 2009, p. IX). Os meios de comunicação de massa, desse modo, formam um grande

setor de produção industrial que tem muita relevância, especialmente na consolidação de

universos simbólicos consumidos amplamente e que constitui “[...] investimento tecnológico

em contínua expansão, uma experiência individual cotidiana, um terreno de conflito político,

um sistema de mediação cultural e de agregação social [...]” (WOLF, 2009, p. IX) e um modo

de gastar o tempo livre.

Ainda conforme Wolf (2009), nas produções televisivas os produtores exercem total

autoridade sobre os roteiristas e atores. Por conseguinte, os produtores estão subordinados as

decisões e interesses dos diretores das redes de televisão, para os quais os programas são

produzidos. Estes programas estão inseridos na lógica e na exigência dos patrocinadores e dos

índices de audiência. Nesse caso, “o produtor sente-se [...] obrigado a movimentar-se entre

constantes negociações, tanto em relação à equipe quanto à rede, para chegar a um produto

aceitável por todos” (WOLF, 2009, p. 184). Com base nesses argumentos, entendemos que os

meios de comunicação deteriam uma lógica e uma dinâmica de produção industrial que a

Escola de Frankfurt analisou com muita propriedade, nos escritos de Adorno e Horkheimer,

nas primeiras décadas do século XX. Os Estudos Culturais, por sua vez, ampliaram o rol de

análise iniciado pela teoria critica frankfurtiana, interessando-se por investigar, por exemplo,

a questão da recepção dos telejornais e das telenovelas junto ao público. Produções televisivas

que a academia vinculava ao pensamento mais tradicional e não dava muita importância.

2.1 A Escola de Frankfurt

O avanço e aprimoramento dos meios de comunicação ocasionaram duras críticas a

respeito de seus efeitos na sociedade, sobretudo em meados do século XX. Uma dessas

críticas era formulada pela corrente teórica vinculada à denominada Escola de Frankfurt7, a

7 A expressão Escola de Frankfurt, na realidade, seria apenas um cognome para o Instituto de Pesquisa Social de

Frankfurt, na Alemanha, que surgiu em 1924 sob a direção de Carl Grünberg, que ficou no cargo até os anos

1927. Sendo que com a ascensão do nazismo em 1933, e para fugir de seus ataques, o Instituto se transferiu

55

qual tinha como principais representantes os filósofos alemães Theodor Adorno, Max

Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, apenas para citar alguns. Os pensadores

frankfurtianos acreditavam que a indústria cultural exercia um domínio extremamente

eficiente sobre os indivíduos e a sociedade. O termo indústria cultural surgiu na obra

“Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos”, produzida a quatro mãos por Theodor

Adorno e Max Horkheimer, em 1947. Mas, segundo Martino (2009), talvez esta expressão

tenha sido “[...] usada pela primeira vez em um ensaio de Horkheimer intitulado “Arte e

cultura de massa” de 1940” (MARTINO, 2009, p. 47), sendo aprofundada e desenvolvida

com maior precisão na obra “Dialética do Esclarecimento”. O termo foi concebido pelos

filósofos em substituição a expressão cultura de massa, que consideravam inapropriado para a

realização de uma crítica da produção cultural em série, com objetivos meramente

econômicos. Conforme alegavam Adorno e Horkheimer, o termo cultura de massa poderia

trazer alguns problemas (como a ideia falsa de que a massa criaria de forma espontânea uma

cultura e arte popular) que serviriam como vantagem nas mãos dos defensores e

aproveitadores da industrialização cultural em larga escala.

Na visão de Adorno e Horkheimer (1985), a cultura contemporânea é regida, e está

vinculada intimamente, pela ideologia capitalista, cujo objetivo principal é o benefício

material do lucro. De modo que o cinema, a televisão, o rádio e a internet, em uma atualização

da crítica dos filósofos frankfurtianos, hibridizaram-se aumentando a oferta, a facilidade de

acesso e o consumo de seus produtos.

Segundo os autores, a perda gradativa do suporte que era ofertado pela religião, os

instantes finais do pré-capitalismo, a diversidade técnica “[...] e social e a extrema

especialização levaram a um caos cultural” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 113).

Desencadeando assim o rompimento de um mundo velho e atrasado para dar lugar a uma

infinidade de coisas novas que brotaram e surgiram a partir do antigo e do arcaico. O sistema

primeiramente para Genebra, depois, Paris, e, finalmente, para Nova York. Após a derrota do regime nazista e

com o fim da segunda guerra mundial, o Instituto volta à sua terra natal. Tendo um caráter interdisciplinar que

envolvia a sociologia, a psicologia social e a filosofia, a Escola de Frankufurt era composta por intelectuais,

como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, entre outros que mantinham

tendências teóricas voltadas mais para as concepções marxistas, realizando importantes críticas sociais,

denominadas de “Teoria Crítica”, que influenciaram toda uma geração de estudiosos e intelectuais do século

passado e que repercutem ainda hoje no campo da filosofia, da psicologia e da sociologia. Para o leitor

interessado em conhecer um pouco mais sobre a história da Escola de Frankfurt, sugerimos as seguintes obras:

“Textos Escolhidos”, da coleção os pensadores da editora Abril, de 1980. E a obra do estudioso dessa corrente

teórica, Rolf Wiggershaus, intitulada “A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação

política”, de 2006, publicado pela editora DIFEL.

56

que emergiu do velho tem exigências próprias e regras duras quando a finalidade é o lucro

material. De modo que o capitalismo se expandiu, estabelecendo suas regras, dominando e

exercendo sua influência na subjetividade dos indivíduos, moldando seus interesses e

perspectivas da realidade. Tanto a política, a economia, a cultura quanto a arte obedecem às

suas normas (ADORNO e HORKHEIMER, 1985).

As produções no campo cultural, como argumentam Adorno e Horkheimer (1985), em

suas bases estruturais teriam um mesmo molde para a produção, por exemplo, de filmes ou de

telenovelas (é preciso deixar claro que os filósofos não trataram das telenovelas em sua obra).

Na realidade, esses produtos, sejam filmes, músicas ou as telenovelas, devem agradar

ao público consumidor. A semelhança desses produtos seria o resultado de uma fórmula que

deu certo. Reproduzir esta fórmula seria garantia de sucesso e, consequentemente, lucro.

De acordo com a crítica dos autores alemães, os entusiastas da indústria cultural defendem

que o processo de produção cultural da música e de obras de arte, de maneira geral, se

diferenciaria das produções da cultura produzida em larga escala. Todavia, não é isso que

ocorre. Para Adorno e Horkheimer (1985), todas as produções estão cooptadas pela indústria

cultural, revelando-se na seriação.

Haveria, então, uma falsa alternativa de escolha produzida ideologicamente pela

indústria cultural ao disponibilizar filmes, músicas e novelas por meio do cinema, da

vendagem de CDs e das produções televisivas para o público em geral.

A indústria cultural, apontam Adorno e Horkheimer (1985), detém estratégias, como a

seriação de filmes formatados em um esquema de mocinhos e bandidos, que facilitam a ação

contínua na formação do gosto e do interesse dos consumidores. Esta ação facilita memorizar

a sucessão do filme que gerou uma enorme bilheteria. Nos filmes, de modo geral, já se pode

identificar, por meio de sua estrutura elementos que indicam como será o final do mocinho,

que no desenrolar da aventura ou do drama é temporariamente vencido, para que na sequência

conquiste o posto de herói que suplantou todas as adversidades e obstáculos.

Na coleção de textos “Adorno: Sociologia” (1986), organizado por Gabriel Cohn,

Theodor Adorno expõe que o consumidor não é o sujeito, mas o objeto dessa indústria, sendo

permanentemente retroalimentado pela sua própria mentalidade e gosto, que são trabalhados

por ela, “[...] as massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta

última não possa existir sem a elas se adaptar” (ADORNO, 1986, p. 93).

Por consequência, o que é concebido como diversão no capitalismo, nada mais é do

que a continuação do trabalho das massas (ADORNO, 1986). O autor explica que mesmo em

um trabalho pesado, mecânico ou em um mais leve, como de um escritório de administração,

57

o trabalhador não está isento da ação ideológica do sistema. De ampla maneira, o lazer e a

felicidade do trabalhador enquanto descansa, são submetidos a imagens, por exemplo, de

filmes ou de propagandas que o adverte o tempo todo, mesmo não percebendo isso

claramente, de seus deveres como trabalhador.

A crítica de Adorno e Horkheimer a indústria cultural tornou-se um clássico na teoria

da comunicação e nas ciências sociais ao estudarem os mass media. Ainda são atuais e

pertinentes seus apontamentos e análises críticas, mas certamente há mais a ser visto e

analisado em relação aos meios de comunicação de massa. E, suas críticas se encerram na

ideologia da produção capitalista que domina todos os outros meios, inclusive a indústria

cultural. Outra corrente teórica (possivelmente mais complexa que a frankfurtiana, por

envolver um campo interdisciplinar) avançou na análise da recepção desses produtos da

cultura industrializada. Os Estudos culturais representam as pesquisas que estabeleceram um

novo olhar, com maior flexibilidade e abertura, para a compreensão da relação entre

comunicação e cultura.

2.2 Os Estudos Culturais

Luís Mauro Sá Martino (2009) assegura que a história dos Estudos Culturais está

associada ao nascimento do CCCS – Centre for Contemporary Cultural Studies – na década

de 1950, sediado no Reino Unido, na Universidade de Birmingham. Os nomes mais

importantes ligados ao centro de estudos são Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward

Palmer Thompson e Stuart Hall, que se vincula ao grupo mais tarde.

A televisão estava se consolidando no período em que o Centre for Contemporary

Cultural Studies se estruturava como um campo de estudos da cultura, logo, o Centro

acompanhou o desenvolvimento desse meio de comunicação, que faz parte da vida das

pessoas como um artefato de informação e transmissão cultural de muita influência.

Os Estudos Culturais fizeram uso das concepções de Marx, aliando-a ao

Estruturalismo Francês, encabeçada pela crítica de Roland Barthes, a partir da leitura

realizada por Gramsci, Althusser e Lukács. Além de ter sido agregadas as concepções de

filósofos como Michael Foucault e Jacques Derrida, e de semiólogos como Ferdinand de

Saussure e Charles Sanders Peirce (MARTINO, 2009).

O caminho adotado pelos Estudos Culturais, conforme Martino, tinha como finalidade

alinhar ideias e práticas culturais que a academia, grosso modo, não se interessava, ou mesmo

não via como objetos de estudos. “[...] Elegeram como objeto temas negligenciados pelas

58

práticas acadêmicas de sua época, da cultura popular à cultura de massa” (MARTINO, 2009,

p. 241).

O posicionamento teórico e político dos Estudos Culturais abriu um leque de

possibilidades de compreensão dos meios de comunicação em diferentes perspectivas.

Diferente da teoria crítica frankfurtiana, os Estudos Culturais não relegaram a televisão a

mero aparelho tecnológico a serviço da elite dominante e dos interesses do capital.

[...] a “cultura da televisão” passou a ser compreendida de uma maneira

crítica. Não faz sentido condenar a televisão ao esquecimento de milhões de

pessoas acompanham (sic) diariamente novelas, programas de auditório e

telejornais (MARTINO, 2009, p. 242).

Os produtos culturais, tais como a literatura popular, a música pop, os diversos vídeos

musicais, as telenovelas e os filmes hollywoodianos, “[...] não eram mais um terreno fora das

preocupações dos estudiosos por se tratar de ‘cultura de massa’ ou serem ‘populares’”

(MARTINO, 2009, p. 242). E porque não estudar esses produtos sendo que o principal espaço

de apropriação é o “popular”, e as manifestações das culturas tradicionais, bem como da alta

cultura, continuam vigorosas, existindo “[...] nas mais diversas formas” (MARTINO, 2009, p.

242).

Configurou-se, dessa maneira, por meio dos Estudos Culturais, um discurso que deu

abertura para que se pensasse analiticamente o que estava acontecendo, por exemplo, com as

minorias sociais, tais como as étnicas, nacionais e sexuais (MARTINO, 2009). Esse campo de

estudo possibilitou que os grupos mais à margem da sociedade (postos aí pelo pensamento da

elite dominante branca e sexista) tivessem maior visibilidade, ganhando legitimidade no

mundo acadêmico, e, portanto, firmando-se como elementos culturais e sociais fundamentais

da sociedade, “[...] no caso das culturas negras, isso significou o reconhecimento de um

espaço novo e aberto para a luta política pelo campo cultural” (MARTINO, 2009, p. 246).

Passando, dessa forma, a fazer parte do “[...] cenário cultural como manifestação em um

espaço simbólico de luta” (MARTINO, 2009, p. 246).

De acordo com Hall, como mostra-nos Martino (2009), o espaço cultural é marcado

pelo conflito e pelo deslocamento. A leitura de uma telenovela é diferentemente realizada por

quem a produz e por aqueles que a assistem, mesmo ambos fazendo parte de uma única

cultura.

O receptor é um ser social e histórico, e sua maneira de ver televisão ou ler

uma revista está ligada a seu desenvolvimento nesse sentido. Esse é o tipo de

59

questionamento dos Estudos Culturais. Como uma adolescente negra, por

exemplo, se vê diante dos padrões de beleza da mídia? Como ela convive

com o fato de que nenhuma novela tem uma protagonista negra – e, quando

tem, é estereotipado? (MARTINO, 2009, p. 246).

É na recepção (teoria que interpreta como os indivíduos fazem as leituras do que

assistem e ouvem na televisão, cinema, rádio, mídia impressa, internet) que acontece todos os

processos de comunicação.

Douglas Kellner (2001) está em sintonizar com a argumentação de Martino, ao dizer

que os Estudos Culturais percebem a cultura em um “[...] contexto sócio-histórico no qual está

promove dominação ou resistência, e critica as formas de cultura que fomentam a

subordinação” (KELLNER, 2001, p. 49). Kellner enfatiza, desse modo, que os Estudos

Culturais caracterizam-se por possuir um discurso que está na oposição das teorias idealistas,

textualista, extremistas ou essencialista que valorizam somente as formas linguísticas de

organização da cultura e da subjetividade. No caso dos Estudos Cultuais, o posicionamento é

outro. Estão fortemente ligados ao materialismo, por conceberem que é importante prestar

atenção às origens e aos efeitos materiais produzidos pela cultura. Assim, compreendendo

como ela se envolve no processo de dominação e de resistência, se opondo as forças

hegemônicas que imperam nas sociedades.

Este modelo teórico necessita de uma teoria social capaz de analisar, de maneira mais

complexa, o sistema capitalista e sua estrutura. Considerando, por exemplo, o estudo da

recepção de produtos televisivos como parte dos sistemas de dominação, sendo que isso

contribui para compreender como ela ocorre e como as forças de resistências operam.

[...] os estudos culturais (sic) veem a sociedade como um sistema de

dominação em que certas instituições como a família, a escola, a igreja, o

trabalho, a mídia e o Estado controlam os indivíduos e criam estruturas de

dominação contra as quais os indivíduos que almejam maior liberdade e

poder devem lutar (KELLNER, 2001, p. 48).

A proposta teórica dos Estudos Culturais tem pontos convergentes com teoria crítica

da Escola de Frankfurt, ao pensar o relacionamento entre a economia, o Estado, a sociedade, a

cultura, vida diária e os meios de comunicação de massa. Mas distancia da teoria crítica ao

subverter a hierarquia entre cultura superior e cultura inferior, pois, assim, dão mais

importância a temas culturais relacionados ao cinema, a televisão, a música popular, as

telenovelas, que eram sempre alijadas pelas abordagens teóricas mais ortodoxas. Por outro

lado, os Estudos Culturais dispensaram e ignoraram os estudos sobre a cultura superior.

60

Os estudos culturais (sic) britânicos, porém, em geral deixaram de tratar do

modernismo ou de outras formas de cultura superior, e, desse modo,

deixaram de ver o potencial de contestação de subversão, assim como a

ideologia, de obras que alguns de seus expoentes deixaram de lado por

considerarem cultura elitista (KELLNER, 2001, p. 50).

Kellner, desse modo, manifesta a ideia de que a principal inovação e novidade dos

Estudos Culturais foram justamente dar importância e visibilidade para o que estava sendo

produzido nos meios de comunicação de massa, principalmente pela televisão. Investigando

como ela e a mídia estão configuradas nas formas de dominação e de resistência. Os Estudos

Culturais britânicos desenvolveram uma abordagem investigativa da cultura que evitou a

dicotomia e a divisão no “[...] campo da mídia/cultura/comunicações em alto e baixo, popular

e elite, e nos possibilitou enxergar todas as formas de cultura da mídia e de comunicação

como dignas de exame e crítica” (KELLNER, 2001, p. 53).

Assim, o posicionamento deste trabalho está mais afinado com os Estudos Culturais

do que com o pensamento dos teóricos frankfurtianos, já que a proposta é fazer uma análise

crítica da televisão, realizando um recorte nas telenovelas para abordar a questão do racismo e

seus desdobramentos no branqueamento e no preconceito racial.

2.3 A televisão: efeitos sociais

Segundo a afirmação de Ellis Cashmore (1998), a televisão provoca fascinação. Não

em termos otimistas ou pessimistas, visto que há sempre uma relação dicotômica entre

admiradores e críticos ao se falar da televisão. Na realidade, até impera certo maniqueísmo ao

refletir sobre ela. “Alguns a veem como um instrumento de crescimento educacional e como

um estímulo à imaginação [...]” (CASHMORE, 1998, p. 11). Também há aqueles que a

percebem como um incentivo a práticas e comportamentos belicosos e doentios

(CASHMORE, 1998). Nossa intenção é acompanhar e refletir em conformidade com o

pensamento do autor sobre a televisão e, posteriormente, desdobrar-nos sobre nosso objeto de

estudo, as telenovelas e a questão racial. Escapando, assim, de fazer julgamento de valores

sobre ela. Pois, como argumenta Cashmore (1998): “[...] a televisão fascina porque

corporifica a cultura que representa. Num sentido genuíno, a televisão é a cultura hoje:

caprichosa, sem moderação e absorvida por uma devoção quase religiosa ao consumo”

(CASHMORE, 1998, p. 11). Todos consomem os produtos televisivos. Podem ser tanto das

TVs por assinatura (os consumidores desses produtos pagos, sobretudo os mais

61

“intelectualizados”, acreditam que estão isentos da ideologia televisiva ao não assistirem a

programação da televisão aberta), como da televisão comercial e aberta a todos os públicos.

Desse modo, a televisão representou “[...] a invenção que refletiu, moldou e recriou a cultura

do século XX” (CASHMORE, 1998, p. 11). Já em pleno século XXI, ela continua a mostrar a

força de sua presença, mesmo com avanços sofisticadíssimos no campo das comunicações e

das novas tecnologias, como a internet e o cinema 3D. Na realidade, ela hibridizou-se com a

internet, por meio da Smart TV, apelido para se referir a sua função e capacidade de conexão

direta com a Web 2.0. Esse tipo de televisor, compreendidos em alguns modelos, oferece,

além desse recurso, as imagens em 3D, antes somente visto nas salas de cinema.

Dessa maneira, de acordo com as concepções de Cashmore (1998), a televisão se

popularizou, inserindo-se na vida de milhões de famílias nos diversos países do mundo, pois

constitui-se em uma forma, relativamente barata, na qual as pessoas podem encontrar

entretenimento e informação. A televisão parece que nos mudou de uma maneira que não

podemos medir ou avaliar (pelo menos em relação a nós consumidores) com precisão seus

efeitos. Entretanto, a televisão, como ferramenta tecnológica, não surgiu em um passo de

mágica. Ela teve um longo processo de desenvolvimento e um conjunto de experimentos e

procedimentos que possibilitou seu nascimento desde meados do século XIX. Na concepção

de Cashmore (1998), foi o rádio o responsável em preparar o campo para o nascimento da

televisão. Estabelecendo as primeiras bases da comunicação de massa, envolvendo não apenas

os territórios nacionais, mas também territórios internacionais (CASHMORE, 1998). De

acordo com o autor, populações inteiras reagiram muito bem a novidade, “[...] a ideia de se

envolver com um meio que era anônimo, remoto, e, ao mesmo tempo, pessoal e próximo”

(CASHMORE, 1998, p. 23).

Assim, a partir do rádio, a história da televisão começa a se configurar lentamente. O

desenvolvimento desse invento se deve aos estudos de físicos, químicos e matemáticos

interessados em transmitirem imagens a longas distâncias. Em 1817, o químico sueco Jakob

Berzelius descobriu o selênio, elemento químico capaz de transformar energia luminosa em

energia elétrica. Estava instituída as bases fundantes para as transmissões televisivas. Porém,

somente em 1920 teremos as primeiras transmissões a partir do empenho do engenheiro

escocês John Logie Baird, que baseado no invento mecânico do técnico alemão Paul Jullius

Gottlieb Nipkow, denominado de Disco de Nipkow, realizou as primeiras irradiações de

imagens. No entanto, na mesma década de 1920, outro experimento semelhante estava sendo

realizado pelo russo Wladimir Zworykin, que desenvolveu estudos em relação a transmissão

de imagens. Esse pesquisador acabou patenteando seu invento, sendo convidado pela empresa

62

RCA – Radio Corporation Of America –, em 1945, para produzir os primeiros tubos de

televisões, batizados de Orticon, em larga escala.8

Nesse sentido, a televisão apropriou-se desse espaço iniciado e produzido pelo rádio,

ganhando adesão e força, principalmente com o passar do tempo, cuja melhoria em sua

estrutura tecnológica conquistou o gosto e a simpatia da audiência, estabelecendo discursos e

difundindo imagens que agradassem os diferentes públicos. Esses discursos e imagens

constituem o que Bourdieu (2003) conceitua como poder simbólico. Conforme o autor, o

poder simbólico é um poder invisível, que somente pode ser exercido se tiver a cumplicidade

dos que são sujeitados a ele, e daqueles que o exercem.

Os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento (ciência) e comunicação

(língua, cultura), apenas operam um poder estruturante, porque já são estruturados por esses

sistemas. Bourdieu (2003) explica que o poder simbólico, regente desses sistemas, é o

responsável pela produção da realidade, ao mesmo tempo em que formata a percepção dos

indivíduos, estabelecendo um sentido para o mundo, especialmente o mundo social e as

relações nele existentes. Nesse sentido, é produzido uma concepção de tempo, de espaço, de

causa, de número, que torna possível uma concordância ou aceitação da realidade que são

impostas aos indivíduos como uma norma. Dificilmente as pessoas negariam que o tempo

passa, que o espaço está vazio ou cheio, que o número estabelece uma relação de quantidade.

Um dos instrumentos do sistema simbólico, que estrutura essas percepções, é o conhecimento

ou a ciência. Por esse motivo, os símbolos são instrumentos, dispositivos ou mesmo

mecanismos que propiciam a integração social, justamente por serem modos de conhecimento

e comunicação, ciência e linguagem. Isso viabiliza o consenso do sentido do mundo social,

que por sua vez contribui delineando a paisagem da ordem social. Assim, uma integração

lógica (conhecimento, ciência) é uma condição para a integração moral (língua, costumes,

cultura).

Bourdieu argumenta que as tradições marxistas deram mais destaques, no sistema

simbólico, as funções políticas nelas implicadas, do que toda a estrutura lógica e gnoseológica

(conhecimento e as formas de dar sentido ao mundo), para explicar as produções simbólicas

da classe dominante como resultado de seu interesse, por aquilo que deseja produzir como

uma norma a ser seguida. Exemplo disso, é em relação a música. Há determinadas músicas,

segundo os valores da classe dominante, que são consideradas sérias, arte genuína, como as

8 Cf. essas ideias em “A história da televisão: da sua invenção ao início das transmissões em cores”. Disponível

em:http://minhateca.com.br/Anima/Hist*c3*b3ria/A+Hist*c3*b3ria+da+televis*c3*a3o,48543060.pdf Acessado

em: 30 Set. 2014.

63

óperas, as músicas clássicas. As que fogem dessa norma, dessas concepções simbolicamente

instituídas pelos dominantes, muitas vezes não são consideradas como arte. Isso é uma das

formas de produção ideológica e política da classe que está no topo da hierarquia social.

Assim, as ideologias são o resultado e o efeito de um processo coletivo e apropriado pela

coletividade, que servem a interesses particulares, como de uma determinada classe que tem o

poder de influenciar e divulgar suas produções e ideias, transmutando isso em interesses

universais, fazendo com que todos aceitem o que está sendo posto, como no exemplo da

música considerada séria, genuína. Desse modo, a classe dominante contribui para a

integração real de seus membros, fazendo com que haja uma comunicação imediata entre eles

e se percebam distintos da conformação das outras classes sociais. Por meio de seu sistema

simbólico, faz acreditar que há uma integração social (ficticiamente produzida) e isso

desmobiliza as classes dominadas, gerando uma falsa consciência sobre si mesmas, que

acabam ratificando a ordem inculcada, instituindo uma distinção hierarquicamente assumida e

legitimada. Por exemplo, na ordem social estabelecida é vista com normalidade, e certa

aceitação, a vinculação das populações negras à criminalidade, baixa condição de estudo e

pobreza. Na realidade, pobreza, pelo menos no Brasil, é sempre relacionada a população

negra.

De acordo com Bourdieu, esse efeito ideológico produz uma distinção das

consideradas subculturas em relação a cultura dominante.

[...] a cultura dominante [dissimula] a função de divisão na função de

comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a

cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções

compelindo todas as culturas [inferiores] a definirem-se pela sua distância em

relação à cultura dominante (BOURDIEU, 2003, p. 11).

Assim, o erro interacionista reduz a compreensão das relações de forças existentes nas

sociedades aos aspectos das relações de comunicação. Essas relações são inseparáveis na

forma e no conteúdo do poder material ou simbólico acumulado pelos indivíduos ou

instituições que fazem parte dessas relações. Os sistemas simbólicos, como instrumentos de

comunicação e de conhecimento estruturados e estruturantes, exercem politicamente a função

de dominação, pois, por meio desses instrumentos impõem e legitimam a dominação de uma

classe sobre a outra, domesticando os dominados (BOURDIEU, 2003).

O campo da classe dominante constitui uma luta dos principios que hierarquizam o

mundo social. O poder dessa classe está assentado no capital econômico, que acaba forçando

64

a legitimidade da sua posição social respaldado na produção simbólica, como a forma de se

vestir, se comportar, de consumir bens culturais e na ação dos ideólogos conservadores, como

os intelectuais e artista, que são, segundo Bourdieu (2003), uma fração dominada que

estabelece os princípios de hierarquização, colocando os valores, sejam cultural, moral, ético

e estético da classe dominante no topo.

Bourdieu (2003) expõe que as ideologias são estruturadas a partir das condições

sociais de suas produções e circulação. Elas cumprem suas funções mais específicas “[...] em

primeiro lugar, para os especialistas em concorrência pelo monopólio da competência

considerada (religiosa, artística, etc.) e, em segundo lugar e por acréscimo, para os não-

especialistas” (BOURDIEU, 2003, p. 13). Nesse sentido, a ideologia é duplamente

determinada. Ou seja, as características mais específicas dependem não apenas das classes

dominadas ou das frações de classes, que justificam por meio de narrativa uma sociedade tal

como é (Bourdieu denominou isso de “sociodicéia”), mas também estão relacionadas aos

interesses daqueles que produzem essas ideologias e na lógica dos campos específicos onde

elas foram produzidas, tais como o religioso, o científico ou artístico.

Diante disso, o poder simbólico exerce seu poder se for reconhecido pelos dominantes

e dominados como natural e ignorado como arbitrário, isto é, um efeito da divisão das classes

sociais, estabelecido pela qual tiver mais força ideológica e os instrumentos necessários para

realizar a dominação. Desse modo, o poder simbólico está na crença do poder das palavras e

na confiança naqueles que as pronunciam como sendo a verdade.

Nessa perspectiva, a representação do branco na televisão ou nas telenovelas é tomada

como natural, pois ele é o modelo de beleza e moralidade considerado e visto como a norma.

Assim, podemos elaborar uma relação do conceito de poder simbólico desenvolvido por

Bourdieu com a questão da ideologia do branqueamento. A própria classe dominada, reificada

por essa ideologia, também ignora que há uma diversidade racial no Brasil, e que

frequentemente não se percebe como negra, mas reconhece que há um padrão étnico (branco)

a ser copiado, admirado, almejado e seguido como referência estética e moral.

Bourdieu (1997) examina detalhadamente os mecanismos que promovem a censura

por trás das imagens e dos diversos discursos veiculado pela televisão. Para o sociólogo, a

televisão tem uma série de mecanismos que faz com que coloque em ação uma maneira

particular e danosa de violência simbólica, “(...) a violência simbólica é uma violência que se

exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a

exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-las”

(BOURDIEU, 1997, p. 22). A informação, e aquilo que é veiculado nos telejornais, e também

65

nas telenovelas, por exemplo, é uma das formas de produzir a violência simbólica. Sendo a

televisão para muitas pessoas a única fonte de informação sobre o mundo e seus

acontecimentos, ela tem um monopólio de fato na formação das cabeças e ideias de grande

parte da população (BOURDIEU, 1997). Além disso, “a televisão convida à dramatização, no

duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera lhe a importância, a

gravidade, e o caráter dramático, trágico” (BOURDIEU, 1997, p. 25), como a violência

promovida pelo tráfico e pelo Estado, que ocorre nos morros do Rio de Janeiro ou a

problemática do aquecimento global, que desesperou algumas pessoas mundo afora quando

divulgadas. A televisão dramatiza estes fatos que são muito sérios em nome da audiência. “A

televisão se torna o árbitro do acesso à existência social e política” (BOURDIEU, 1997, p.

29).

Bourdieu (1997) postula que a sociedade precisa cada vez mais da televisão para dar

visibilidade às suas reivindicações e necessidades, sejam de cunho político, social, cultural ou

econômico. No entanto, isso não quer dizer que a televisão se interessará por todas essas

demandas sociais. Mas aqueles que se manifestam sem o auxílio, vamos dizer assim, da

televisão, por acreditarem que basta se manifestar, como argumenta Bourdieu (1997), correm

o risco de errar o alvo. “[...] É preciso cada vez mais produzir manifestações para a televisão,

isto é, manifestações que sejam de natureza a interessar às pessoas de televisão [...]”

(BOURDIEU, 1997, p. 30), garantindo sua eficácia na produção da verdade sobre os fatos.

Por que a televisão cobriria uma manifestação? Quais os interesses ideológicos por

trás de sua ação?

Através da pressão do índice de audiência, o peso da economia se exerce

sobre a televisão, e, através do peso da televisão sobre o jornalismo, ele se

exerce sobre os outros jornais, mesmo sobre os mais “puros”, e sobre os

jornalistas, que pouco a pouco deixam que problemas de televisão se

imponham a eles. E, da mesma maneira, através do peso do conjunto do

campo jornalístico, ele pesa sobre todos os campos de produção cultural

(BOURDIEU, 1997, p. 81).

Podemos inferir, de acordo com o pensamento de Bourdieu (1997), que questões como

como manifestações em algum morro do Rio de Janeiro contra a violência ou a problemática

racial no Brasil envolvem discussões políticas que muitas vezes são desgastantes e

complicadas por envolverem diferentes interesses. A televisão não se ocuparia disso em sua

programação, a não ser tratando as questões de maneira superficial, conservadora e muito

recortada para ajustarem-se ao tempo de um telejornal exibido em horário de grande

audiência.

66

Em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação

de divertir a qualquer preço, a política está condenada a aparecer como um

assunto ingrato, que se exclui tanto quanto possível dos horários de grande

audiência, um espetáculo pouco excitante, ou mesmo deprimente, e difícil de

tratar, que é preciso tornar interessante (BOURDIEU, 1997, p. 133).

Discutir questões complexas, mas com a necessidade de discuti-las – como a política

ou a problemática racial –, acaba sendo desencorajada, pois não haveria um ponto de apoio na

televisão que fomentasse essas discussões tão relevantes.

[...] o jogo político [ou as discussões raciais pertenceriam somente ao campo

dos Movimentos Negros e de alguns intelectuais] é um jogo de profissionais,

para encorajar, sobretudo nos menos politizados, um desengajamento

fatalista evidentemente favorável à manutenção da ordem estabelecida

(BOURDIEU, 1997, p. 142).

Kellner (2001), sintonizado com Bourdieu (1997), propõe que a estética da televisão

comercial é regida predominantemente pelo realismo representacional, constituída por

imagens e histórias que permitem a fabricação do real, produzindo assim um efeito de

realidade.

A televisão comercial é constituída como um instrumento de entretenimento,

e está claro que seus produtores acreditam que o público se diverte mais com

histórias, com narrativas que contenham personagens, argumentos,

convenções e mensagens familiares e reconhecíveis, e com gêneros bem

conhecidos. Essa pobreza estética do meio provavelmente foi responsável

pelo desprezo com que tem sido ele tratado pelos teóricos eruditos e pela sua

designação como um vasto “ermo intelectual” por parte daqueles que têm

outros gostos e valores estéticos (KELLNER, 2001, p. 301).

Kellner (2001) defende que os críticos da pós-modernidade não percebam que a

televisão, e os outros modos da cultura da mídia, desempenha uma influência muito

significativa na reelaboração das identidades contemporâneas, assim como na constituição de

maneiras e formas de pensar e de se comportar na dinâmica social. Identidades certamente

fragmentadas e marcadas pela influência dos meios de comunicação de massas, especialmente

pela televisão, que produz uma forma particular de compreender o real a partir do realismo

assumido, gerado e imaginado por ela.

Cashmore (1998) revela que as novelas representam o real por meio do realismo, ou

seja, um simulacro ou uma imitação do real. À vista disso, um personagem de uma novela é

ficcional, específico e tem sua existência circunscrita no mundo criado pela telenovela. Dado

67

sua atitude e comportamento, as pessoas que assistem podem perceber uma relação direta com

a realidade social. Cashmore assegura que não há nada de real referente ao realismo, pois que

ele não corresponde objetivamente à maneira como vemos o mundo e o modo como o

pensamos (CASHMORE, 1998). Esse realismo que se fundamenta no real, mas que não é o

real, constitui “[...] aquilo que esperamos dos esforços da televisão para reconstruir a

realidade” (CASHMORE, 1998, p.87).

Os telespectadores sentem-se felizes com os casamentos exibidos em telenovelas. No

oposto, ficam chocados com a morte e manifestam raiva e desprezo pelos vilões ficcionais. A

televisão faz, desse modo, a mediação entre o que acontece no mundo real transformando

geralmente em caricatura, e de forma fantástica e absurda, aquilo que ocorre na vida diária.

Ela solicita de nós a suspensão da “[...] descrença e que mergulhemos na TV como uma

representação autêntica e natural do modo como as coisas são, muito embora tenhamos

consciência de que não é assim” (CASHMORE, 1998, p.87). Cashmore explica que

(provavelmente) “estamos preparados para acreditar na televisão. Isto parece ser uma coisa

condicional; enquanto ela não exigir demais de nós, e, nesse caso, ela se torna forçada,

absurda, ou apenas irreal” (CASHMORE, 1998, p. 87).

Provavelmente isso se justifica porque, por mais que a televisão brasileira seja

branqueada (com uma maioria quase absoluta de apresentadores, repórteres e atores brancos,

em um país em que há uma maioria negra9), as pessoas nas relações sociais continuem a

estabelecer relacionamentos entre as diferentes raças (de acordo com que argumentamos no

primeiro capítulo). Certamente elas não acreditam realmente (pelo menos intuitivamente) que

haja tão somente um padrão estético de beleza e de comportamento (eurocêntricos), que a

televisão simbolicamente insiste em representar. Esse modo de resistência, mesmo que

inconsciente, encontra respaldo em diversos núcleos de relações sociais, entre eles, em

especial e mais antigo, a família. Em conformidade com isso, Martín-Barbero (2009) assinala

que a televisão, no continente latino americano, tem na família uma unidade que é básica para

a audiência.

[...] representa para a maioria das pessoas a situação primordial de

reconhecimento. E não se pode entender o modo específico que a televisão

emprega para interpelar a família sem interrogar a cotidianidade familiar

enquanto lugar social de uma interpelação fundamental para os setores

populares (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 295[grifos do autor]).

9 Isso de acordo com os dados do IBGE. Cf. em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-aponta-aumento-

de-brasileiros-que-se-declaram-pardos-ou-pretos,748620

68

A família, de acordo com Martín-Barbero (2009), mostra-se um espaço interessante de

leitura e codificação da televisão. “[...] A mediação que a cotidianidade familiar cumpre na

configuração da televisão não se limita ao que pode ser examinado do âmbito da recepção,

pois inscreve suas marcas no próprio discurso televisivo” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.

295). As relações estreitas e relações próximas, que são as características da família, são

forjadas pela televisão, mesmo que artificialmente, “a simulação do contato e a retórica do

direto” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 295). O autor compreende por retórica do direto, o

dispositivo e os elementos que tornam um programa mais próximo de seu público,

diferentemente das produções cinematográficas em que há o predomínio da distância e a

mágica da imagem. As produções televisivas é um espaço dominado pela magia do ver, do

olhar, constituída “[...] por uma proximidade construída mediante uma montagem que não é

expressiva, e sim funcional, sustentada na base da ‘gravação ao vivo’, real ou simulada”

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 297). De maneira que os rostos na televisão devem

apresentar-se amigáveis. Esses rostos não devem ser misteriosos ou encantadores demais.

Devem ter uma proximidade com as personagens (idealizadas pelo senso comum e pelo

núcleo familiar) brancas e que inspirem desejo de identificação. O negro, nesse sentido, não

seria uma personagem que inspira desejo de identificação, já que seria posto na categoria de

rosto vulgar e não amigável. Provavelmente isso explique, pelo menos em parte, porque a

televisão no Brasil sofreu o processo de branqueamento com resultados quase que

inquestionáveis. Buscar compreender estas relações da televisão com o público é importante

para uma pesquisa que deseja explicar quais os prováveis efeitos sociais e raciais de uma

televisão embranquecida. No entanto, no mundo acadêmico há muito pouco interesse em se

discutir o tema, sobretudo quando se pensa em estudar ou refletir sobre a televisão.

Nos últimos anos, a crítica à televisão se exacerba a partir de todos os

ângulos, ofícios e disciplinas. E não é que faltem motivos para a crítica de

uma televisão que, ao se pluralizar, permanece, não obstante, demasiado

parecida consigo mesma. Mas o que cansa, e até irrita, porque – como a

própria televisão – quase nunca sai do circuito fechado do óbvio, é a

exasperação da queixa (MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p. 23).

Muitos intelectuais e acadêmicos estão arregimentados nas concepções da Escola de

Frankfurt, como já apresentamos logo acima, para realizar a crítica à indústria cultural e à

televisão. Porém, acabam deixando de lado o estudo e a crítica dos efeitos da televisão no

69

cotidiano das pessoas, por acreditarem que basta desligar a televisão para cessar seus efeitos.

Entretanto, esses críticos da televisão não consideram ou não percebem que esse meio de

comunicação é um instrumento consolidado. Não tem como pôr fim à televisão simplesmente

ignorando o que se passa nela. As pessoas, a despeito do que os intelectuais asseveram,

continuarão a ver e a apreciar seus conteúdos.

Pois, encante-nos ou nos dê asco, a televisão constitui hoje,

simultaneamente, o mais sofisticado dispositivo de moldagem e deformação

do cotidiano e dos gostos populares e uma das mediações históricas mais

expressivas de matrizes narrativas, gestuais e cenográficas do mundo

cultural popular, entendido não como as tradições específicas de um povo,

mas a hibridação de certas formas de enunciação, de certos saberes

narrativos, de certos gêneros novelescos e dramáticos do Ocidente com as

matrizes culturais de nossos países (MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p.

26).

É necessário conhecer as demandas sociais para que se possa compreender o que a

televisão faz às pessoas. Não é interrompendo o processo de comunicação que se eliminará os

efeitos televisivos.

Sendo assim, “na América Latina, é nas imagens da televisão que a representação da

modernidade se faz cotidianamente acessível às grandes maiorias” (MARTÍN-BARBERO e

REY, 2004, p. 41). Esta modernidade está fundada em alicerces eurocêntricos. As imagens

televisivas parecem obedecer, portanto, aos padrões europeus. A televisão é branqueada. A

lógica do branqueamento faz parte do dispositivo que garante o sucesso das telenovelas,

produto com ampla aceitação e consumo na região.

Martín-Barbero e Rey (2004) enfatizam que a televisão cooptou as mídias de massa (embora

os autores citem o disco e o vídeo, atualmente podemos falar do CD, DVD e da internet),

convertendo-as em poderosos agentes que disseminam uma cultura-mundo, dissolvendo as

particularidades regionais e as identidades locais. Essa cultura-mundo propaga a estética e os

valores da cultura hegemônica eurocêntrica, por exemplo, ser belo tem que estar de acordo

com o padrão de referência europeu. Negros, indígenas e obesos não configuram modelos de

beleza nesse cenário da cultura-mundo, por uma televisão que difunde comportamentos e

sugere ideologicamente uma única cultura, tratando as outras como exóticas e fora do padrão

de normalidade. Desse modo, as telenovelas representariam um dos meios, dentro da

programação televisiva, que reforçaria padrões de comportamento e referências estéticas e

culturais.

2.4 A telenovela brasileira e sua origem

70

A história da televisão no Brasil também é, de certa forma, a história das telenovelas,

já que estão intimamente relacionadas, fazendo parte da outra, como em uma expressão

popular, “unha e carne”, unidas desde o nascimento. Nesse aspecto, as histórias da telenovela

e da televisão acabam se entrecruzando, operando como sinônimo uma da outra. A origem da

telenovela remonta a um passado em que o rádio não existia e nem se cogitava a existência da

televisão. Os folhetins, como os protótipos das novelas nesse passado remoto, eram

veiculados pelos jornais impressos na Europa dos séculos VXIII e XIX. Desse modo, nesta

seção, vamos discutir as bases da origem da novela e da telenovela, como um gênero ficcional

de grande interesse popular.

Renato Ortiz (1991a), aponta o desenvolvimento da imprensa, a revolução industrial, o

nível de educação, sobretudo na Europa, e particularmente na França, como contribuições

importantes para a disseminação do romance-folhetim, entendido como um dos precursores

das telenovelas. Precursores porque esses romances-folhetins eram seriados, ou seja, estavam

toda semana, ou até mesmo diariamente, sendo publicados, como parte dos jornais que

circulavam por diversas regiões da França e eram facilmente distribuídos, principalmente em

decorrência dos avanços das ferrovias. Diante de todos esses eventos ocorridos no século

XIX, Ortiz assegura que o folhetim era um contemporâneo das transformações que estavam

acontecendo na França. Os meios de divulgação e a formação de um público leitor garantiram

uma boa aceitação do folhetim.

Não deixa de ser interessante observar que esta narrativa vem desde o seu

início marcada pelo signo do entretenimento. O próprio vocábulo feuilleton

denota esta dimensão: no início a palavra designa um lugar específico da

página do jornal, o rodapé, espaço visualmente demarcado dos outros temas,

e no qual são tratados os faits divers, os crimes, as crônicas mundanas, e por

fim o romance-folhetim, publicado em pedaços (ORTIZ, 1991, p. 14).

Ortiz argumenta que o jornal La Presse, de Émile Girardin, no ano de 1836, publicou

um romance do grande escritor francês Honoré de Balzac. Houve uma boa repercussão dessa

publicação no jornal, aumentando assim o interesse pelo folhetim. Segundo o autor, os

maiores jornais franceses do século XIX com fortes características empresariais, tais como La

Presse e Le Siècle, possibilitaram o desenvolvimento do romance-folhetim, ao observarem

que poderiam, dentro do espaço do jornal, render economicamente.

No entanto, o romance-folhetim não era muito popular, pois circulavam apenas na

pequena e média burguesia. “Os meios populares somente começaram a ler regularmente os

71

diários no final do Segundo Império, quando foi possível adquiri-los nas ruas [...]” (ORTIZ,

1991, p. 15). Isso porque jornais, como o Le Petit Journal, o maior jornal popular da época,

fundado em 1863, consolidou nas classes populares urbanas o interesse pelo folhetim, sendo

também levado, mais no final do século XIX, aos camponeses e às províncias mais distantes

da França (ORTIZ, 1991).

O desenvolvimento do folhetim no Brasil sucedeu-se concomitante ao da França. No

ano de 1838, um jornal do Rio de Janeiro, o “[...] Jornal do Comércio [...] publica Capitão

Paulo de Alexandre Dumas, série que é iniciada em Paris, no Echo [...]” (ORTIZ, 1991, p. 15

[grifos do autor]). Na realidade, o folhetim publicado no Brasil no século XIX, em sua

maioria, eram traduções de autores franceses. Assim, enquanto um folhetim era publicado na

França, quase que simultaneamente era lançado no Brasil. “Tudo indica que a aceitação do

novo gênero literário, como tudo que vinha da França, se fez sem maiores problemas”

(ORTIZ, 1991, p. 15). Entretanto, o autor aponta uma diferença entre o folhetim francês e o

brasileiro. Os escritores franceses estavam relacionados a uma lógica e ao ritmo da imprensa

comercial da época para produzir os folhetins, tinham que se adequar a dinâmica da demanda

comercial e à assimilação do público leitor. Ou seja, havia ajustamentos no processo da

escrita do folhetim. As narrativas das “estórias” sofriam com os interesses externos, do lado

comercial e da recepção.

No Brasil, o folhetim seguia outro ritmo. De acordo com Ortiz (1991), na produção do

folhetim brasileiro, pelo menos aqueles que não eram traduções francesas, “[...] tem-se a

impressão de que os romances são escritos antes, para em seguida serem publicados na forma

seriada” (ORTIZ, 1991, p. 16). O autor destaca também que os escritores brasileiros tinham

como forma de divulgar seus trabalhos as publicações nos jornais. De modo que suas

produções eram veiculadas em pedaços, porém, possuindo um caráter diferente do folhetim

francês. Esses escritores utilizavam “[...] estrategicamente o único meio de expressão que lhes

é disponível do que propriamente produzindo uma literatura folhetinesca de entretenimento”

(ORTIZ, 1991, p. 17). Mas o folhetim não floresceu, em termos comerciais no Brasil, porque

a sociedade brasileira, além de ter um comércio incipiente, era precisamente escravocrata no

período em que o folhetim nascia na França. E quem possuía acesso e condições de consumo

de jornais e livros era uma pequena minoria da sociedade brasileira.

[...] porque a imprensa, a linguagem escrita numa sociedade escravocrata, é

um bem da elite dominante não atingindo a massa analfabeta da população.

Na verdade a tiragem dos jornais e revistas brasileiras pode, no máximo, ser

comparada à distribuição dos bens restritos na Europa (ORTIZ, 1991, p. 17).

72

Por conseguinte, o folhetim como um meio de entretenimento e de divulgação dos trabalhos

dos escritores chegou ao Brasil, marcando um estilo de produção seriada, que narrava

“estórias” romanceadas. Não podemos afirmar, dessa forma, que as telenovelas sejam

exclusivamente uma herança do romance-folhetim francês. Remontamos à história do

folhetim, para tratar da telenovela, simplesmente pelo fato que há um núcleo comum entre ele

e a moderna telenovela: esse núcleo comum é justamente a seriação. Ortiz (1991) nos diz que,

além do romance-folhetim francês, também se deve somar nessa matriz geradora da

telenovela o rádio, mais precisamente a radionovela; as “óperas de sabão”, ou soap opera

norte-americanas, que eram destinadas a fazer propaganda dos produtos de limpeza para as

donas-de-casa, em um período de forte recessão econômica nos Estados Unidos. De acordo

com Silva (2005), podemos elencar outros antecedentes da telenovela, como o melodrama

teatral, o romance europeu do século XIX, o romance folhetim (por entrega e em fascículos),

a fita-em-série norte-americana, as histórias em quadrinhos e a fotonovela (SILVA, 2005). De

todos esses antecedentes, o melodrama é o gênero narrativo incorporado pelas telenovelas que

mais caracteriza o seu formato.

Conforme Martín-Barbero (2009), esta maneira de narrar os fatos surge especialmente

na França e na Inglaterra desde 1790, pois é um “[...] espetáculo popular que é muito menos e

muito mais que teatro” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 163). O melodrama está mais

próximo dos modos e espetáculos de feira, mais circense e com as formas da literatura oral,

sobretudo os contos de medo e de mistérios que fazem referência ao terror (MARTÍN-

BARBERO, 2009). O melodrama tem uma forma de encenação muito própria, em que as

emoções são sempre mais exageradas, com gestos expansivos e comoventes, tanto para o riso

quanto para a tristeza ou o choro. Dessa maneira, os críticos de teatro dos séculos XVIII e

XIX, conforme Martín-Barbero (2009), ficavam escandalizados com o melodrama, já que

essa expressão não dava muita importância à palavra, mas aos efeitos sonoros e visuais. Os

gestos e a dança são privilegiados. Mantém, por outro lado, uma relação em torno do bem e

do mal, do excesso estético, dos juízos de valores morais, do sentimentalismo, das virtudes e

vícios contrastantes das personagens, sobretudo dos heróis e dos vilões (SILVA, 2013).

Há que se destacar também, que esse melodrama está no contexto da Revolução

Francesa (1789-1799), período de intensa movimentção nos campos políticos, sociais e

culturais. Nesse sentido, Silva (2013) ratifica a ideia que a chamada estética melodramática

surgiu no burburinho revolucionario da França do século XVIII.

73

Na estruturação do melodrama pode-se encontrar todas essas características elencadas

que repercutem até hoje no cinema e nas telenovelas. Claro que com algumas atualizações,

mudanças e sofisticações tecnológicas. No entanto, em relação aos personagens, o esquema

ou a estruturação continua a mesma do melodrama “original”. Segundo Martín-Barbero

(2009), há um núcleo estrutural do melodroma formado por quatro personagens: o Traidor

(que seria o vilão da história), a Vítima (heroina que encarnar a inocência e a virtude, na

maior parte das vezes é uma mulher), o Justiceiro (herói, sempre do gênero masculino, que no

último instante salva a vítima e castigo o traidor) e o Bobo, que se encontra fora da tríade dos

protagonistas (MARTÍN-BARBERO, 2009). Nessa perspectiva, o Bobo, tanto no cinema

quanto nas telenovelas, tem sempre uma atuação marginal. Não aparece com frenquência no

enredo, e quando surge é somente para despertar o riso, por meio da sua representação do

rídiculo.

Em uma sociedade racista, assim como a brasileira, a estrutura do melodrama

televisivo espelhará esta formação das personagens com a diferença de que os protagonistas

serão sempre, ou quase sempre, brancos. O Bobo, que representa os papéis subalternos, será

sempre, ou quase sempre, reservado ao negro.

[...] nenhum outro gênero consegiu agradar tanto nesta região quanto o

melodrama, nem mesmo o de terror – e não por falta de motivos – ou o de

aventuras – ainda que não faltem selvas e rios (MARTÍN-BARBERO, 2009,

p. 305).

Martín-Barbero (2009) defende que esse gênero expresso nas telenovelas, de certo

modo, nos unifica enquanto latino-americanos, reafirmando as mestiçagens da qual somos

resultados.

Como nas praças de mercado, no melodrama está tudo misturado, as

estruturas sociais com as do sentimento, muito do que somos – machistas,

fatalistas, supersticiosos – e do que sonhamos ser o roubo da idendidade, a

nostalgia e a raiva (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 305).

Além disso tudo, Martín-Barbero aponta que é precisoressaltar também o aspecto

racista, pois o melodrama, principalmente o televisivo representa de forma predominante a

estética branca como a detentora quase que absoluta das virtudes da beleza e da moralidade.

2.5 Radionovela como precursora das telenovelas

74

Segundo a historiadora Lia Calabre (2007), o rádio chegou oficialmente ao Brasil em

1923, despertando muitas paixões. Paixões estas que Edgar Roquete Pinto, considerado o pai

da radiodifusão no Brasil, e Henrique Morize, engenheiro industrial francês naturalizado

brasileiro, alimentavam com a esperança de ter, nesse veículo de comunicação, um meio de

enfrentar o analfabetismo e a falta de informação que afetavam o país naqueles tempos. Sem

falar nos empreendedores, como Renato Murce, que vislumbrava grandes vantagens

comerciais com o advento do rádio. Entre as décadas de 1940 e 1950 houve uma expansão

vertiginosa das emissoras de rádio, com uma vasta programação, do radiojornalismo,

comerciais às radionovelas. Este período é conhecido como os “anos dourados do rádio

brasileiro”. As radionovelas constituíam destaque nessa época, ocupando o horário nobre da

programação (CALEBRE, 2007).

No entanto, as radionovelas, como menciona Ortiz (1991), somente chegaram ao

Brasil em 1941. “[...] Ano em que são lançadas A predestinada pela Rádio São Paulo e Em

busca da felicidade pela Rádio Nacional” (ORTIZ, 1991, p. 25). Estas radionovelas eram

destinadas a um público específico, as mulheres, sobretudo as donas de casa, e tinham como

base de inspiração a soap opera norte-americana.

[soap] relacionava-se aos anunciantes, patrocinadores de sabão, e opera liga-

se ao romantismo desse gênero musical, trazendo em seu conteúdo dramas

domésticos voltados para classe média em uma perspectiva feminina

(CHAVES, 2007, p. 24).

Os principais patrocinadores das radionovelas nos Estados Unidos eram os fabricantes

de produtos de limpeza domésticos e de higiene pessoal. E quem cuidava dos afazeres do lar?

Quem estava mais horas presente em casa? As mulheres. Desse modo, o alvo principal do

rádio e das radionovelas era o público feminino.

Chaves (2007) revela que Cuba foi uma grande fonte de inspiração e exportação de

radionovelas para o Brasil, pois, em Havana, nos anos 1930, havia proporcionalmente mais

emissoras de rádio do que em Nova York.

A radionovela tinha forte influência no cotidiano da nação, não apenas por fomentar o

comércio nacional, mas também por ter um conteúdo voltado para as questões da vida dos

brasileiros, “[...] com tramas envolventes e, consequentemente, ocupavam os melhores

horários de transmissão, assim como boa parte da programação das emissoras” (CHAVES,

2007, p. 40).

75

Ortiz (1991), nesse sentido, afirma que antes, no início da sua inserção no Brasil, as

radionovelas eram importadas; porém, com o passar do tempo, os autores nacionais

desenvolveram os próprios enredos das novelas, abordando temáticas e questões que os

brasileiros teriam mais afinidades identitárias. Acumularam um know-how da literatura

melodramática que depois foi transferida para as telenovelas (ORTIZ, 1991).

Contudo, a transferência foi lenta. A televisão chegou ao Brasil somente em 1950. A

primeira telenovela a ser exibida foi em 1951, “Sua vida me pertence”, na TV Tupi de São

Paulo, cujo autor foi Walter Foster. “É o início de uma produção que permanece até 1963 com

o advento da telenovela diária” (ORTIZ, 1991, p. 28). Segundo Ortiz, durante toda a década

de 1950 as telenovelas eram transmitidas duas vezes por semana, em um curto espaço de

tempo, cerca de vinte minutos cada capítulo. A televisão era uma aquisição muito recente para

o país, e não se sabia como explorá-la adequadamente, havendo certa insegurança em seu uso

comercial, além da pressão do passado radiofônico, que produziu toda uma maneira especifica

de interpretação que diferia das exigências das novelas exibidas na televisão.

Com o tempo as telenovelas ganharam um espaço que acabou por deixar lentamente

a radionovela para trás. Nesse período, a telenovela ainda sofria com a precariedade financeira

e empresarial, pois a televisão brasileira em seus primórdios era marcada pela improvisação e

problemas econômicos, “[...] cuja gestão se fazia nos moldes dos ‘capitães de indústria’, como

Chateaubriand, e não segundo os parâmetros de uma administração racional e moderna”

(ORTIZ, 1991, p. 33).

Outro aspecto das telenovelas que se iniciavam no Brasil, é seu caráter esporádico,

sendo exibidas duas ou três vezes por semana, ao vivo. Ortiz (1991) aponta que, além de

transmitir as telenovelas, a televisão brasileira exibia os teleteatros que gozavam de mais

prestígio que as telenovelas, pelo menos entre os atores, que percebiam as novelas como algo

menor, ficando incomodados quando eram escalados para encená-las.

Nesses primeiros momentos das telenovelas, os textos eram produzidos por autores

nacionais, depois houveram adaptações de autores consagrados da literatura internacional,

assim como adaptações do cinema, como “E o vento levou” e “Sublime obsessão”. No caso

da literatura tem-se Vitor Hugo, Júlio Verne, Alexandre Dumas, Rafael Sabatini, entre outros,

em que seus textos foram adaptados para o vídeo.

[os] diretores das telenovelas incursionam inclusive pelo terreno de uma

escrita mais erudita, escolhendo livros como César e Cleópatra, de Bernard

Shaw; Um lugar ao sol, de Theodor Dreiser; ou Coração inquieto, de

76

Stephan Zweig. Um padrão que se distancia do melodrama cubano, calcado

nas peças lacrimosas de Felix B. Caignet (ORTIZ, 1991, p. 36).

Percebe-se que houve uma tentativa de inserir um conteúdo mais sofisticado nas

telenovelas, baseado em uma literatura estrangeira, que muitas vezes não tinha muita relação

com as questões da cultura brasileira. “Ao se apropriar da literatura internacional, a novela se

afastava do melodrama, compensando de alguma forma o desequilíbrio que a herança

radiofônica insistia em perpetuar” (ORTIZ, 1991, p. 45).

Desse modo, as telenovelas brasileiras nascem inspiradas em grande parte nas

adaptações de escritores estrangeiros, que contam suas estórias a partir de um mundo

diferente da realidade brasileira.

A temática que é abordada nas telenovelas, pelo menos em seu início, está fundada na

literatura francesa e inglesa, e no cinema norte-americano hollywoodiano. Somente um pouco

mais tarde, na década de 1960, que a televisão usa mais os autores nacionais, tais como

Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado e Érico Veríssimo, para discutir e

apresentar estórias em um contexto brasileiro.

Com isso, podemos aventar a hipótese de que a televisão e as telenovelas sejam

branqueadas, justamente por influência da literatura europeia e dos filmes hollywoodianos. As

temáticas sociais eram construídas a partir da cultura europeia e norte-americana. Com o

tempo, claro que isso sofreu mudanças significativas. No entanto, a matriz de representação

ou o arquétipo dos personagens continuaram brancos. Por isso, as temáticas sociais que as

telenovelas abordam são importantes pontos de provocação da reflexão, já que tratam de

algumas de maneira mais aberta e declarada e outras de maneira incipiente e fragmentada. Por

exemplo a questão da homossexualidade é discutida de forma bem evidente, já a questão

racial não é tratada abertamente.

2.6 As telenovelas e as temáticas sociais

Pelo que se pode constatar, a telenovela está alicerçada em dois eixos estruturantes que

permitem o desenvolvimento da estória que será narrada. Um desses eixos é o romance, que

desencadeia um relacionamento amoroso com seus altos e baixos, frustrações, conflitos,

desencontros, e reencontros. O outro eixo está fundado em uma temática social, seja ela

política, como a questão da corrupção, ou de saúde pública, como ao enfatizar os transplantes

de órgãos um alerta sobre a AIDS, sua prevenção ou o preconceito que se tem aos portadores

do vírus. Além desses temas, pode-se destacar na área do comportamento, a homoafetividade:

77

relações homossexuais entre homens ou entre mulheres. Discussão que está sempre presente

nas telenovelas.

As temáticas sociais, a nosso ver, evidenciadas pelas telenovelas constituem pautas

importantes de debates veiculadas pela televisão. Na realidade, elas compõem um espaço para

a discussão e a reflexão de fatos sociais apresentados aos telespectadores para serem

examinados. As telenovelas realizam de modo satisfatório essa tarefa (pelo menos do ponto

de vista de provocar o redirecionamento do olhar das pessoas para o fato ou temática social

em evidência). Claro que algumas temáticas, como as raciais, nunca foram discutidas de

forma tão aberta e recorrente como a homossexualidade, que ocupa, nos últimos tempos, o

enredo das telenovelas com muita frequência, possibilitando a reflexão social sobre essa

questão, trabalhando os preconceitos e fomentando a tolerância quanto à sexualidade humana.

Cashmore (1998) chama a atenção para o fato de que as telenovelas (em relação às

caracterizações que executam nas tramas que desenvolvem nos enredos), “são as formas mais

‘realistas’ de toda a televisão. [Assim] [...] Aborto, dislexia, estupro e desemprego são grãos

para o moinho que comprime os debates do dia nas crises pessoais” (CASHMORE, 1998, p.

145). Elas conseguem dar vida a muitos mundos artificiais em que os espectadores podem

estabelecer vínculos identitário. “Por quê? Porque os contextos não são importantes; o que

importa são as relações humanas” (CASHMORE, 1998, p. 145-146). As telenovelas ao usar

temáticas de amplitude social, inspiradas nos dramas e nos problemas de pessoais concretas,

segundo Cashmore, acabam transcendendo os contextos sociais, sejam culturais, econômicos

ou políticos, tornando-se populares nas diferentes classes sociais por possibilitar uma

identificação das pessoas com os sofrimentos, dramas e amores que são comuns à vida

humana. Por exemplo, a telenovela “Lado a Lado”, da Rede Globo, exibida entre setembro de

2012 e março de 2013, discutiu, entre outras questões, a emancipação feminina no início do

século XX, na cidade do Rio de Janeiro, cuja sociedade era conservadora e permeada por

diversos preconceitos em relação à mulher.

Algumas feministas elogiam as novelas por serem o único gênero que mostra

mulheres em papéis ativos e fortes. Outros as criticam por perpetuar o

estereótipo sexista das mulheres-corajosas, sempre presentes nos momentos

de crise (CASHMORE, 1998, p. 146).

Independente do posicionamento político, o fato é que esta telenovela apresentou a

história de algumas mulheres que lutaram pela sua emancipação. Possibilitando repensar o

papel da mulher no contexto contemporâneo. Além disso, os papéis que as mulheres assumem

nas telenovelas tem forte interesse comercial.

78

As mulheres, especialmente as jovens, são o grupo mais procurado pelos

programadores. Elas interessam aos anunciantes, pois têm a maior parte do

controle sobre a renda disponível e assistem mais TV. Por extensão,

interessam aos programadores que precisam dos negócios com os

anunciantes. Nesse sentido, as mulheres são o oposto das minorias étnicas,

às quais os anunciantes têm sido indiferentes, pelo menos até há pouco. A

lógica é irresistível. Mas os resultados quase não ajudaram a dissolver os

estereótipos dos quais os dois conjuntos de minorias têm reclamado por

décadas. Apesar das grandes modificações no decorrer dos anos, as mulheres

e as minorias étnicas continuam a insistir em que nenhuma quantidade de

reformulação pode compensar adequadamente as injúrias (CASHMORE,

1998, p. 153).

No caso da novela “Lado a Lado”, a intenção talvez tenha sido enfatizar que a mulher

não está satisfeita com o lugar que ela ocupa na hierarquia social, sendo representado como

mera dona de casa.

Dessa maneira, o Cashmore apresenta um argumento que não estamos totalmente em

sintonia, mas que vale a pena ressaltar.

Se as mulheres mantiverem a rédea curta no orçamento doméstico e as

minorias étnicas mantiverem ou melhorarem sua posição no mercado, suas

posições nos programas de TV irão melhorar, especialmente nos dramas.

Tudo isso faz com que o conteúdo da televisão pareça redutível aos

imperativos do mercado e dos anunciantes que buscam manipulá-la

friamente (CASHMORE, 1998, p. 154).

Veja que ele reduz tudo a uma questão de mercado. Se, por exemplo, as mulheres

continuarem a manter o domínio da economia doméstica, os anunciantes continuarão a exigir

no elenco das telenovelas as mulheres. Em relação aos negros, o argumento é parecido. Se

eles tiverem uma posição no mercado de destaque, os produtores e anunciantes os recrutaram

mais vezes e em maior quantidade. Este argumento parece problemático, pois as questões

raciais não se reduzem aos ditames do mercado.

Nessa maneira de pensar, parece ser mais fácil culpabilizar o mercado, ou o

capitalismo, do que admitir o sexismo, o machismo e o racismo da sociedade e também das

pessoas envolvidas no processo de produção das telenovelas, sendo que elas se inspiram e são

influenciadas pelo contexto da sociedade na qual fazem parte.

Ortiz e Ramos (1991), ao que tudo indica, estão em sintonia Cashmore (1998), ao

assegurarem que o mercado e os anunciantes “[...] delimita a autoridade dos produtores de

cultura; sua força provém do êxito junto ao grande público” (ORTIZ e RAMOS, 1991, p.

79

158). Parece que o mercado somente aprova ou desaprova de acordo com a quantidade da

audiência do produto televisivo. As questões políticas, como a discriminação e o preconceito

enfrentados pelas minorias, não constituiriam uma preocupação para o mercado. O interesse

está centrado na obtenção do lucro.

Para o público telespectador as demandas do mercado também não interessam muito.

Os produtores das telenovelas gravitam em torno da ideia de entretenimento. O objetivo

principal é cativar o público, magnetizar e prender sua atenção na estória que está sendo

contada para as amplas faixas de possíveis consumidoras e consumidores (ORTIZ e RAMOS,

1991).

Ortiz e Ramos (1991) citam o produtor de televisão e escritor norte-americano Steven

Ronald Bochco para enfatizar o caráter apolítico da telenovela estadunidense.

Eu não penso que eu tenha a responsabilidade de apresentar um ponto de

vista abalizado. Isto é propaganda, não entretenimento. Eu sou realista. Eu

sei que atuo num meio que não é um meio artístico. Não é nem mesmo

fundamentalmente um meio de entretenimento. É basicamente um meio

comercial (BOCHCO apud ORTIZ e RAMOS, 1991, p. 159).

Esta concepção da produção televisiva, principalmente das telenovelas, guia e orienta,

pelo menos por certo tempo, os autores brasileiros. Os jornais e as revistas especializadas no

gênero tecem críticas, afirmando que as telenovelas deveriam ter uma postura mais de

vanguarda. Aguinaldo Silva, telenovelista brasileiro, autor da novela “Duas Caras” exibida no

horário da 20h, afirma, de acordo com Ortiz e Ramos (1991), que a televisão é um negócio

que tem como fonte de exploração o capital privado, dependente assim de anunciantes. Mas,

captando uma sutileza do texto de Ortiz e Ramos, percebemos que, independente da vontade

ou determinação do anunciante, os autores telenovelistas têm livre poder de criação das

novelas, abordando temática diversa e em conformidade com que desejam expressar por meio

de os seus posicionamentos políticos e ideológicos.

Ortiz e Ramos (1991) afirmam que, enquanto os escritores, de modo geral, das soap

opera norte-americanas se preocupam em fazer um produto para o simples consumo e

entretenimento televisivo, desvinculado de qualquer posicionamento político e social, os

novelistas brasileiros são mais engajados politicamente. Mesmo recebendo influência das

produções norte-americanas, as telenovelas brasileiras teriam escritores que se contraporiam à

visão amenizada dos problemas sociais, se preocupando mais com as questões nacionais e

com a cultura popular. Estas preocupações, assim como o ideário nacional-popular, foram

80

difundidas nos anos 1950 e 1960, tornando-se politizado e com intencionalidade

revolucionária e que “[...] vai direcionar a ação de um grupo de escritores no interior da

televisão” (ORTIZ e RAMOS, 1991, p. 161). Os autores prosseguem ao argumentar que:

Sua crença [dos escritores] é a possibilidade de se trabalhar junto a um

gênero popular, visando a uma “conscientização” mais elaborada,

ultrapassando as “lições de vida”, o que seria alcançado através da conexão

dos conteúdos das novelas com as questões mais amplas do processo cultural

e político. Lauro Cézar Muniz, cuja trajetória como escritor inicia-se nos

anos 60 [do século XX], quando ainda atuava no movimento teatral,

polarizado pelos grupos Arena e Oficina, enfatiza tanto o caráter catártico da

novela com a possibilidade de ali criar um espaço para reflexão (ORTIZ e

RAMOS, 1991, p. 161).

De modo geral, os escritores brasileiros, como apontam os autores, sempre têm como

pano de fundo, em suas produções telenovelísticas (depois de superada aquela fase em que

concebiam as telenovelas apenas como mero entretenimento), questões sociais de interesse

nacional. A ficção desencadeia não apenas momentos de entretenimento, mas também

momentos de reflexão.

Segundo Motter (2003), a televisão de sinal aberto no Brasil, apesar da baixa

qualidade de sua programação, tem na ficção televisiva, sobretudo nas minisséries e nas

telenovelas, uma zona de qualidade. Ela sugere que esta ficção, leva ao público discussões

que provocam a reflexão de assuntos fundamentais.

[...] homossexualidade, reforma agrária, crianças desaparecidas, alcoolismo,

leucemia foram postos em pauta nas últimas telenovelas e construídos com

clareza e aos poucos no curso dos cerca de seis meses de duração da história

(MOTTER, 2003, p. 77).

Na telenovela, “O Clone” (2001-2002), da autora Glória Perez, retratou-se a

dependência química (MOTTER, 2003) por meio da personagem Mel, ou Melissa Ferraz,

interpretada pela atriz Déborah Falabella, desencadeando uma campanha contra as drogas, em

que, ao final de cada capítulo da novela, era apresentado depoimentos dramáticos dos

familiares e dos pacientes que estavam em tratamento. Isso provocou na época um aumento

do interesse por tratamento e orientação de especialistas junto às pessoas envolvidas nesse

drama.

Motter defende que as telenovelas têm grande influência na opinião pública, bem

como nas instituições, pois fomenta a reflexão e desperta para a necessidade de certas ações

para enfrentar as possíveis falhas na organização, por exemplo, da distribuição de terras. No

81

entanto, é importante destacar que as telenovelas são apenas ficções. A leitura ou a recepção

que o público faz foge ao controle daqueles que a produzem.

[...] se a ficção televisiva pode tocar tantos ao mesmo tempo e discutir,

dentro dos limites da ficção, questões delicadas, difíceis e cruciais [...] cabe-

lhe tratar desses problemas não como documentário ou com o didatismo de

uma lição (MOTTER, 2003, p. 78).

De modo que se as telenovelas romper a fronteira da realidade, retratando com muito

realismo o que se propõe mostrar os aparelhos de televisão serão sintonizados em outros

canais, ou simplesmente desligados (MOTTER, 2003).

O factual, ou a realidade, só se toma um objeto desejável por se oferecer, na

telenovela, na embalagem do sonho, do devaneio, do descompromisso. Não

se deve cobrar dela nada além da responsabilidade social que lhe cabe como

líder de audiência. A finalidade da televisão continua sendo entretenimento e

informação. Nós insistimos em cobrar dela um propósito educativo e lhe

atribuímos esse papel, o que é possível, sobretudo no âmbito da ficção onde

a mediação de autores com responsabilidade social existe e é de suma

importância (MOTTER, 2003, p. 78).

A autora alerta que não pode se esperar da ficção as transformações de

responsabilidade das ações concretas da política e das instituições sociais.

“A ficção pode fazer muito pela realidade, pode desenhar mundos, pode apontar caminhos. Só

não pode fazer a mágica de transformar, por si só, o que historicamente é resistente à

mudança, o que cabe aos agentes sociais concretos”. (MOTTER, 2003, p. 79).

Argumentando nesse mesmo sentido, Esther Hamburger (1998) postula que a televisão

ofereceria vasta informação, difundida, principalmente, por meio da ficção. Esta última

acessível a todos os públicos e camadas sociais, independente do pertencimento identitário, de

classe social ou mesmo localização geográfica. “Ao fazê-lo, ela torna disponíveis repertórios

anteriormente da alçada privilegiada de certas instituições socializadoras tradicionais como a

escola, a família, a Igreja, o partido político, a agência estatal” (HAMBURGER, 1998, p.

442).

A autora destaca ainda que a ficção televisiva, sobretudo a difundida pelas telenovelas,

são responsáveis, juntamente com as instituições sociais, ou provavelmente até mais do que

estas, por atualizar a noção de ser contemporâneo, já que os diversos personagens das

telenovelas disseminam essa noção ao fazerem uso de telefones celulares de última geração,

82

computadores sofisticados, helicópteros, aviões, modelos de roupas recentemente lançadas e

padrões de comportamentos entre homens e mulheres.

A novela estabelece padrões com os quais os telespectadores não

necessariamente concordam, mas que servem como referência legítima para

que eles se posicionem. A novela dá visibilidade a certos assuntos,

comportamentos, produtos e não a outros; ela define uma certa pauta que

regula as interseções entre a vida pública e a vida privada (HAMBURGER,

1998, p. 443).

Os telespectadores, desse modo, não são determinados pelas telenovelas. É bem

possível que estas últimas possam induzir a modelos ou padrões de referência para o

comportamento social das pessoas. Nessa perspectiva, gostaríamos de dar um exemplo,

considerando o que foi dito por Hamburger (1998). A estética das pessoas na sociedade

brasileira tem como modelo o branco, sendo referência de beleza, virtude e dignidade. No

entanto, no cotidiano da vida e dos relacionamentos, a maioria das pessoas, ao manterem suas

interações sociais, por mais que recebam a influência, intencional ou não, desse modelo

propagado pelas telenovelas, não necessariamente escolhem suas parceiras e parceiros para se

casarem tendo como parâmetro exclusivo a questão racial, como a cor da pele ou os traços

fisionômicos (cabelo, nariz, lábios). De forma que o branco não se casa somente com uma

branca, ou uma negra apenas com um negro. Há na realidade social brasileira uma forte

mistura pigmentar. Não quer dizer, de forma alguma, que isso seja ruim ou bom. Apenas

demonstra que as pessoas de todas as cores se encontram e se enamoram, por mais presente

que esteja o racismo classificando o que é belo ou o que é feio. Até porque o Brasil é o país

com a maior população negra fora da África.

O exemplo citado serve para evidenciar que o racismo existente no país não é um

fenômeno que ocorre eventualmente. Na realidade, ele é estrutural, pois está na raiz histórica

da formação do Brasil, impregnando de ideias falsas a mentalidade dos brasileiros ao

introjetar ideologicamente que a beleza física das pessoas somente tem valor (seja moral,

estético, cultural e material) quando ela se enquadra no modelo de referência leucodérmico

(MOORE, 2007). As telenovelas brasileiras acabam reforçando essa percepção, ao exibir no

conjunto de seus personagens uma maioria branca. Isso explicar também a pouca frequência

de negros10 nas propagandas e nos intervalos comerciais das telenovelas. Evidentemente, se

10 Aqui usamos o termo negro de acordo com a concepção do IBGE, em que pardos e pretos constituem a

categoria negra. Já falamos disso também no primeiro capítulo.

83

compararmos há trinta ou vinte anos atrás, houve avanços da presença negra na televisão. Mas

há que se considera que isso ainda é uma mudança tímida.

Os padrões de comportamentos exibidos nas novelas, de certa forma, tocam as

pessoas, convocando posicionamentos e atitudes em seu grupo social. Isso gera discussões,

principalmente no seio familiar ou no círculo de amigos, em relação aos costumes, moda,

consumo, economia e política adotados pelos personagens. Como efeito colateral, as

telenovelas podem realçar preconceitos e atitudes discriminatórias enraizadas no senso

comum. No entanto, esse caráter ambíguo da telenovela que expomos logo acima, não é o

mais importante a se destacar, pois as telenovelas, em diferentes graus, influenciam a opinião

das pessoas e de suas atitudes. Segundo Hamburger, a política ganhou grande audiência e

repercussão junto aos telespectadores, recrutando-os a pensar sobre as demandas que

envolvem a corrupção, os Sem Terra e a política nacional. Essas telenovelas são denominadas

pela autora de novelas de intervenção (HAMBURGER, 2005). Ou seja, produções que, além

de trazerem as marcas comuns do melodrama e do folhetim, procuram desenvolver temáticas

sociais que possam mobilizar opiniões e despertar reflexões em torno de assuntos

considerados importantes para o debate público.

Quando telespectadores se envolvem no debate sobre um assunto – seja no

âmbito público, privado, ou em ambos os contextos –, eles mobilizam sua

condição de membros de um grupo, determinado não pelo conteúdo

ideológico dominante de uma “mensagem”, mas pelo estabelecimento de

pautas. Ao definir cenários, pautas e enquadramentos, as novelas tomam

parte na delimitação de coletivos imaginários e expandem os limites do que

é e do que não é considerado assunto legítimo para discussão pública. As

novelas expressam as peculiaridades de um espaço político perversamente

saturado de fofocas, intimidades e registros morais que escapa das teorias e

práticas que procuram explicar os universos contemporâneos nos marcos de

disciplinas e domínios estreitos (HAMBURGER, 2005, p. 147).

Ou seja, assuntos que muitas vezes ficam restritos ao campo de especialistas,

acadêmicos ou de estudiosos do comportamento humano acabam se tornando acessíveis a um

público bem mais amplo, pelo fato das telenovelas apresentarem os temas de maneira mais

ilustrativa e fazendo referência sempre ao senso comum, acessando diretamente o imaginário

das pessoas, suas convicções e suas visões de mundo. Por outro lado, não se pode esperar uma

determinada recepção do público, como em uma equação matemática, em que dois mais dois

são quatro. A justificativa para isso, de acordo com Hamburger (2005), é que não se consegue

prever com muitos acertos a reação do público em relação a determinado assunto que está

sendo apresentado em uma telenovela. Como as críticas que a novela “Amor à Vida” sofreu

84

ao não conseguir emplacar as intervenções sociais com êxito. Por exemplo, a questão da

AIDS, do preconceito em relação à pessoa gorda, o problema do alcoolismo, não tiveram

repercussões significativas perante os telespectadores. Mas é sempre difícil averiguar com

precisão as reações do público. Sabemos que, de algum modo, ocorreu a recepção. Podemos

inferir, hipoteticamente, que as pessoas foram influenciadas e sensibilizadas, por exemplo, no

caso da AIDS, em que a personagem da atriz Raquel Villar, a auxiliar de enfermagem Inaiá

Seixas, não sabia que era portadora do vírus HIV, e que tinha começado a desenvolver o

quadro da doença.

[...] é uma forma de conhecer melhor, através das interpretações e do

julgamento que as pessoas fazem das personagens, as percepções,

pensamentos e sentimentos destas pessoas a respeito de algumas de suas

relações sociais (JUNQUEIRA, 2009, p. 19).

De acordo com Junqueira, as telenovelas, sendo um dos principais produtos culturais

da América Latina e do Brasil, detêm umas das formas mais efetivas de comunicação com o

público, e não podem ser fixadas e vistas apenas com as funções de entretenimentos e da pura

dominação ideológica (JUNQUEIRA, 2009). A autora ainda assevera que “questões relativas

à percepção, sentimento e à moral ligadas à vivência das desigualdades sociais na sociedade

brasileira são tratadas pelas telenovelas e lançam verdadeiras pautas de discussão nacional”

(JUNQUEIRA, 2009, p. 20). É bom ressaltar, no entanto, que as telenovelas não partem

diretamente para as discussões dos temas sociais, como se fossem o objetivo principal.

Sempre apresentam um motivo comum em sua estrutura narrativa que é facilmente

reconhecível em todas as novelas.

[...] a telenovela trata de histórias de amor e ascensão social contadas e

recontadas a partir de tecnologia e estética que a transformam num dos

produtos mais rentáveis da indústria do audiovisual, especificamente, da

televisão brasileira” (WEBER e SOUZA, 2009, p. 142).

Weber e Souza afirmam que a teledramaturgia é um campo de conhecimento que

serve de objeto de pesquisa e estudo às diversas áreas do saber.

No caso da telenovela, pode-se dizer que é um objeto que causa

estranhamento devido a sua extrema simplicidade (aparência) e

complexidade (compreensão). Um objeto paradoxal. Se por um lado se

mostra passível de enquadramentos nas categorias que explicam a literatura,

o cinema, o rádio e o teatro, por outro, estas não são suficientes, pois a

85

telenovela é um produto serializado ficcional híbrido que transmuta a

literatura, o cinema, o rádio e o teatro (WEBER e SOUZA, 2009, p. 142).

Weber e Souza (2009) esclarecem que as telenovelas estão formatadas em uma

estética própria (ou seja, racialmente branqueada, pelo menos no caso brasileiro) e que

seguem a lógica da televisão que embaralha realidade e ficção. As autoras apontam que, para

chamar a atenção do telespectador, além das histórias de amor e de ascensão social, as

telenovelas estão a meio caminho da informação jornalística, da propaganda e de outros

diversos produtos televisivos de entretenimento.

[...] entre a informação jornalística, a propaganda e outros produtos do

entretenimento televisivos, a telenovela fascina na combinação do tempo,

histórias, personagens em imagens que simulam o tempo real num tempo

próprio da televisão e da narrativa ficcional, distante do tempo humano

necessário à imaginação individual estabelecida a partir da leitura de um

livro ou da apreciação de um filme. Na telenovela, o acordo está no próprio

desenrolar e a imaginação pretende ser saciada aos poucos,

fragmentariamente, a partir de uma história que combina interesses mútuos –

dos contadores de estórias, das emissoras, dos telespectadores e de tantos

outros. Tudo isso transforma a telenovela contemporânea brasileira em lugar

de passagem, de significações, emoções, reafirmações e produção de

sentidos (WEBER e SOUZA, 2009, p. 143).

As temáticas da violência infantil, do tráfico humano, da educação, dos menores

desaparecidos e dos transplantes de órgãos “[...] são inseridas sob a marca da responsabilidade

social da empresa (o marketing social que se torna merchandising social)”11 (WEBER e

SOUZA, 2009, p. 144). Há uma maior aceitação do público em relação a estes assuntos mais

comuns da vida real, em que o consenso é maior. No entanto, temas mais complexos, que

causam polêmicas, e que geram menos consenso positivo na sociedade, tais como a

homossexualidade, a religião, o aborto e o incesto, também fazem parte (apesar de causar

controvérsias apaixonadas) do escopo do merchandising social das telenovelas. Esses temas

obedecem aos parâmetros ficcionais e narrativos convencionais estabelecidos pelas novelas.

Diante disso, vale a pena salientar que a questão do racismo não é um merchandising social

tão frequente assim nas telas da televisão. Assim, Weber e Souza (2009) alegam que a

emissora, os autores e os criadores das telenovelas são reconhecidos pela postura

11 Conforme Junqueira “o termo merchandising social é utilizado para definir uma inovação feita pelos autores

nas novelas da última década, na qual problemas sociais são tratados a fundo nas tramas. Uma trama pode ser

inteiramente dedicada a determinado problema ou ainda apresentar depoimentos de pessoas comuns atingidas

por este problema nas novelas. O merchandising social, [por exemplo,] é bastante explorado nos trabalhos de

Manuel Carlos” (JUNQUEIRA, 2009, p. 24).

86

emancipatória e por se envolverem em debates na esfera pública por meio do merchandising

social, indicando pautas de discussões no campo das relações sociais.

[...] Explode Coração [1996, Globo, 21h/ Glória Perez] que passa a abordar

a questão de crianças desaparecidas e suscita ações sociais e a participação

de instituições públicas e privadas nessa cruzada (HAMBURGER, 2005) e

Páginas da Vida (2006, Globo, 21h/ Manoel Carlos) que complexifica a

ordem ficcional ao introduzir a “verdade” documental como complemento,

entrelaçando o tema central do capítulo com o tema central dos depoimentos

de pessoas comuns ao final de cada um deles, num enquadramento cênico e

estético diferenciado (WEBER e SOUZA, 2009, p. 157).

Para Rocha (2009), a realidade ficcional tem uma repercussão no mundo social, como

no debate e na apresentação da questão da homossexualidade veiculada nas telenovelas, que

produzem posicionamentos contra ou a favor, atitudes preconceituosas, manifestação dos

fundamentalismos religiosos e toda uma expressão negativa de parte do público telespectador.

Mas, por outro lado, e talvez isso seja o mais importante, as telenovelas que trataram

dessa questão possibilitaram o debate em torno da sexualidade. E, no limite, as telenovelas

promoveriam o germe da tolerância, da compreensão e do respeito perante a

homossexualidade, pois ainda o senso comum a percebe como se fosse uma anomalia.

Entretanto, na questão racial as telenovelas não foram tão incisivas. O que vemos é

uma televisão branqueada e racista que sonega a presença do negro de maneira mais efetiva.

Os atores brancos das novelas brasileiras compõem mais de oitenta por cento das

personagens.12 Não há um debate aberto, franco e frequente sobre o racismo nas telenovelas

como uma temática social. Quando aparecem são, pelo menos a nosso ver, fragmentados e

estereotipados.

Apesar disso, Junqueira (2009) aponta que

Na década de 2000 podemos perceber uma inovação geral no discurso sobre

as desigualdades. O ponto forte é o enfrentamento das desigualdades de

classe no Brasil, da violência simbólica de uma classe sobre a outra, que

passa a ser retratada nas novelas. A obra de Aguinaldo Silva [autor das

novelas Senhora do Destino de 2004 e Duas Caras de 2007] é o motor desta

tendência. Os negros, as favelas, os pobres e seus problemas passam a

integrar a pauta de discussão, além disso o merchandising social permite

12 Este é um dado que coletamos fazendo uma pesquisa nos sites oficiais das telenovelas brasileiras. Há uma

presença muito forte de atores brancos. Os negros, talvez representem menos de dez por cento do elenco. E isso

em uma sociedade em que de acordo com os dados do IBGE do censo de 2010 pretos e pardos que estão na

categoria de negros, somados, representam mais de 50,7 por cento da população brasileira. Cf. em:

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-aponta-aumento-de-brasileiros-que-se-declaram-pardos-ou

pretos,748620

87

incluir outras exclusões e discriminações como as relativas a doenças e

vícios que afligem a sociedade brasileira (JUNQUEIRA, 2009, p. 25-26).

Conforme a autora, a multiplicidade das tramas secundárias e as modificações

ocorridas no interior das telenovelas, a partir das inovações dos anos 2000, deixam de ter

como ponto central e único a trama que gira em torno do melodrama fundamentado nas

relações românticas das personagens (JUNQUEIRA, 2009). Esse destaque das tramas

secundárias possibilita leituras que se distanciam dos padrões convencionais das novelas,

focadas anteriormente apenas no romantismo e nas relações amorosas com suas frustrações,

sucessos e promessa de felicidade eterna. Os telespectadores a partir dessas transformações

passam a ter um leque mais amplificado em que tem a possibilidade de se identificar com os

personagens. Junqueira, nesse sentido, destaca que “a partir daí os usos das telenovelas se

expandem extraordinariamente, embora permaneçam dentro dos limites do socialmente

aceitável, ou seja, dentro da moral estruturada de cada classe social” (JUNQUEIRA, 2009, p.

26). Isso porque, de acordo com a autora, as classes subalternizadas relacionam a ética à

estética, julgando assim os personagens a partir da natureza moral de suas ações, com base na

dimensão do que se convencionou chamar de certo ou errado nas relações sociais; ou

julgamentos atrelados à uma visão maniqueísta do mundo, como se houvesse realmente uma

luta perene entre o bem e o mal. Já as classes médias apreciam e consideram os personagens

por um prisma inteiramente psicológico, cuja avaliação e justificativa de seus

comportamentos têm como base seus atos (JUNQUEIRA, 2009).

Ao falar das telenovelas, os indivíduos fazem naturalmente a passagem para

experiências pessoais e de pessoas conhecidas, fazem observações,

julgamentos, além de identificações e projeções com os personagens, e

tentam a partir deles conhecer, entender ou apresentar novas formas de

pensar e sentir suas experiências de vida e da sociedade em que vivem

(JUNQUEIRA, 2009, p. 26).

A autora afirma que o valor desses discursos está justamente na possibilidade que eles

abrem para “[...] conhecer os fundamentos afetivos das disposições sociais, já que o tema e a

linguagem principais da comunicação entre telenovelas e telespectadores situam-se no

universo emocional” (JUNQUEIRA, 2009, p. 26). Com isso, é possível estudar e pesquisar as

desigualdades sociais não se limitando aquilo que emerge do público como uma reação a

determinado tema abordado pela telenovela.

88

As questões raciais, portanto, são demandas que podem ser estudadas e analisadas pelo

viés que as telenovelas apresentam (por exemplo, os estereótipos de subalternidade, visível

sempre como coadjuvante, e a pouca presença de personagens negros no enredo das

telenovelas), Apesar da problemática racial não emergir do público como uma necessidade de

se debater seus efeitos sociais de exclusão e sofrimento de suas vítimas, como no caso das

crianças abandonadas ou da pedofilia, em que há um consenso das pessoas de que é algo

muito ruim, e aceitam isso como um debate legítimo que a telenovela propõe, estamos em

sintonia com a autora quando ratifica que: “[...] estes processos dão às telenovelas, sobretudo

as brasileiras um caráter político que não se encontra em nenhum outro tipo de ficção no

mundo” (JUNQUEIRA, 2009, p. 26). Por isso acreditamos que a questão racial pode ser

abordada a partir do estudo e da análise da telenovela brasileira que tem, como a autora

aponta, um forte caráter político. O estudo das questões raciais é também marcado pelo viés

da política (está última no seu sentido mais original, tais como negociação, gerenciamento de

interesses, relações de poder e organização das relações sociais).

2.7 Ideologia do branqueamento: teorias raciais e as telenovelas

A ideologia do branqueamento talvez seja a mais entranhada das ideologias racistas

que já vigorou na sociedade brasileira desde o final do século XIX. Agora atualizada, mais

sutil e perfeitamente acomodada no pensamento e comportamento dos brasileiros. Mas, afinal

de contas, o que é a ideologia do branqueamento? Em que consiste? E como se constituiu?

Em quais matrizes teóricas está fundamentada? Estas são algumas questões que podem

emergir quando se procura compreender a ideologia do branqueamento, principal

característica do racismo à brasileira. Tendo em vista estas questões, nos serviremos delas

para guiar a reflexão acerca dos possíveis efeitos da ideologia do branqueamento que está

amplamente incorporada na sociedade brasileira.

Para compreendermos a ideologia do branqueamento é necessário remontar ao século

XIX, no qual o Brasil acolheu algumas concepções e teorias raciais produzidas na Europa,

que influenciaram principalmente a visão das elites brancas sobre o povo, a cultura e a

percepção racial dos brasileiros. Essas concepções se apoiavam em teorias e correntes

filosóficas, tais como o darwinismo social, o positivismo, as teorias evolucionistas, a eugenia

e a antropologia criminal, amplamente aceitas na Europa nesse momento, e que acabaram

contagiando os brasileiros, sobretudo os intelectuais, os cientistas e os políticos. Esse

conjunto de correntes teóricas marcaram o pensamento social brasileiro de maneira acentuada,

89

especialmente na primeira República, sendo utilizadas como parâmetros para se pensar a

identidade nacional. Tudo indica que essas teorias e correntes filosóficas contribuíram para o

surgimento da teoria do branqueamento no Brasil, no final do século XIX e início do século

XX. Um exemplo interessante da influência exercida por essas teorias é a obra de arte “A

redenção de Can”, de 1895, do artista plástico espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos y

Gómez, que é bastante emblemática ao reproduzir esse ideal (MAIO e SANTOS, 2004). O

quadro traz quatro personagens: uma senhora idosa negra, que parece agradecer a Deus pela

sua filha mulata clara (que já carrega os traços do branqueamento, pelo menos do ponto de

vista ideológico) que tem o filho branco no colo. E, mais ao fundo, um homem branco,

provavelmente representando um imigrante europeu (MAIO e SANTOS, 2004). Maio e

Santos apontam que em 1911, o quadro foi usado pelo médico e antropólogo João Batista de

Lacerda para ilustrar suas memórias mestiças do Brasil. A referida obra foi apresentada pelo

médico antropólogo no I Congresso Mundial das Raças. Ele representava o governo brasileiro

e sua “[...] memória defendia que o Brasil estava no caminho do ‘branqueamento’: por meio

da mestiçagem, seria possível resolver o problema racial brasileiro” (MAIO e SANTOS,

2004, p. 62). No prognóstico de Lacerda, em 2010, aproximadamente, não haveria mais

negros no Brasil (MAIO e SANTOS, 2004).

O sociólogo brasileiro Carlos Hasenbalg defende que mesmo sendo difícil determinar

se o contínuo de cor no Brasil teve como consequência as políticas dos colonizadores

portugueses ou ainda um mecanismo social que evoluiu de modo não intencional, a partir dos

efeitos e do limites da colonização, o ideal de branqueamento e a democracia racial brasileira,

“[...] são muito claramente os produtos intelectuais das elites dominantes brancas”

(HASENBALG, 1979, p. 238).

O denominado contínuo de cor, conforme Hasenbalg (1979), seria uma tênue divisão

no aspecto racial entre brancos e negros. Mas foi justamente isso que fez com que ocorresse

uma fragmentação da identidade negra. O autor argumenta que a diminuição da solidariedade

entre os não-brancos (HASENBALG, 1979), a pouca consideração de cada indivíduo em

relação a sua negritude,

[...] e a cooptação social de lideranças potenciais receberam um maior

reforço quando o ideal de branqueamento tornou-se parte do projeto das

elites dominantes para transcender o subdesenvolvimento brasileiro

(HASENBALG, 1979, p. 238).

90

As elites brancas acreditavam que um dos problemas que impediam o Brasil avançar

estava na mestiçagem e na herança africana. Mesmo no pensamento abolicionista, movimento

político e social que lutava contra o regime de escravidão e buscava a liberdade das pessoas

negras escravizadas, o branqueamento já era um ideal almejado (HASENBALG, 1979). No

período compreendido entre o final do século XIX e início do século XX, as elites brancas

fomentaram racionalmente, por meio de estudos teóricos e suposições científicas, o desejo de

transformar o Brasil negro e mestiço em uma nação racialmente mais clara, sem a presença do

fenótipo negro, considerado uma raça inferior.

Assim, entre essas teorias estava, por exemplo, a eugenia apoiada em pressupostos

científicos. Esta teoria diz respeito ao “aperfeiçoamento” de determinada espécies por meio da

seleção artificial, foi criada pelo antropólogo e matemático inglês Francis Galton no século

XIX.

[...] um conjunto de ideias e práticas relativas a um “melhoramento da raça

humana” ou, como foi definida por um de seus seguidores, ao

“aprimoramento da raça humana” pela seleção dos genitores tendo como

base o estudo da hereditariedade (MACIEL, 1999, p. 121).

As concepções desenvolvidas pela teoria eugênica obtiveram grande sucesso e

repercussão mesmo depois de terem sido questionadas como ciência. Por muito tempo, elas

foram usadas como justificativas nas práticas racistas e discriminatórias (MACIEL, 1999).

[...] ganhou vulto nas primeiras décadas do século XX, pois seus

pressupostos forneciam uma explicação para a situação do País (que seria de

um “atraso”) e, ao mesmo tempo, indicava o caminho para a superação dessa

situação (MACIEL, 1999, p. 121).

A hipótese do pensamento eugênico era que a hereditariedade se constituiria em uma

alegação para justificar e determinar a vida e o destino dos indivíduos.

[...] [Ou] seja, as condições de [...] vida [dos indivíduos] já estariam dadas de

antemão [sendo que o futuro já estaria traçado e estabelecido desde o

nascimento], segundo a classificação de determinados critérios que o

colocavam numa categoria “inferior” ou “superior” (MACIEL, 1999, p.

121).

Fundamentado nessas noções, a eugenia defendia que as condições de vida dos

indivíduos, tanto cultural quanto social, estavam relacionadas diretamente as condições

biológicas de cada um, dentro de um quadro de hereditariedade. De acordo com Maciel

91

(1999), a “melhoria da raça” era o objetivo primordial do movimento eugenista, pois seus

membros acreditavam que na sociedade haveriam pessoas com características “indesejáveis”,

por exemplo, as com propensão a atos criminosos e com doenças mentais, que deveriam

deixar de existir nas gerações futuras por meio de determinadas práticas de intervenção da

eugenia. A eugenia, no entanto, visava algo mais amplo, que, na realidade, parece ser o seu

objetivo maior: melhorar os aspectos raciais das sociedades. Pelo que pode ser depreendido

do pensamento eugênico, e podemos inferir isso sem muita hesitação, tanto os problemas

mentais, quanto os impulsos criminosos seriam resultados dos cruzamentos raciais

inapropriados. As hierarquias sociais seriam organizadas de acordo com as hierarquias raciais.

Esta organização de antemão estabelecia as características raciais das pessoas. Se a pessoa

fosse branca, tenderia a se comportar de maneira mais racional e equilibrada. Se a pessoa

fosse negra, teria atitude menos racional, mais emotividade no comportamento e nas relações

sociais.

Maciel faz um alerta: embora o ideário eugênico esteja em desuso, deve-se ter cuidado

em afirmar que estas concepções despareceram por completo do mundo contemporâneo

(MACIEL, 1999). Há aqueles que a defendem de diversas maneiras, por exemplo, os

geneticistas modernos e os racistas radicais neonazistas, ainda que, em muitos casos, não seja

com os mesmos pressupostos do passado. A autora expõe que isso é um dos aspectos dos

resquícios da eugenia, que também contaminou o

[...] senso comum e [que implicou em] comportamentos cotidianos

discriminatórios, o que envolve a problemática da apropriação e utilização

do saber científico (ou tido como científico) pela sociedade (MACIEL, 1999,

p. 122).

Então, desse modo, a eugenia serviria de base teórica para a ideologia do

branqueamento? Parece-nos que sim. Maciel afirma (1999), em conformidade com Lilia

Schwarcz, “[...] a eugenia foi introduzida no Brasil [...] em 1914, na Faculdade de Medicina

do Rio de Janeiro, com a tese de Alexandre Tepedino” (MACIEL, 1999, p. 129). Mas, foi nos

1920 que a proposta da eugenia conquistou um público diverso, espraiando-se para além do

meio médico, fazendo discípulos “[...] também entre educadores, jornalistas, escritores e

outros” (MACIEL, 1999, p. 129). É curioso notar que em 1920, como enfatiza Maciel

(1999), enquanto os argumentos justificadores da eugenia na Europa haviam sido

completamente desqualificados e destruídos, no Brasil, ela reaparecia “[...] de forma ainda

mais radical, como programa político-institucional” (MACIEL, 1999, p. 129).

92

Um dos principais articulista, propagandista e defensor da eugenia no Brasil foi o

médico Renato Kehl, que seria também o “[...] fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo

(1918), do Boletim de Eugenia (1929) e da Comissão Brasileira de Eugenia (1932) [...]”

(MACIEL, 1999, p. 129).

Na afirmação de Robert Wegner (2011), essas instituições que Renato

Kehl fundou “[...] tiveram um papel central na promoção das idéias

(sic) eugênicas no país” (WEGNER, 2011, p. 2). A fonte de inspiração

para Renato kehl, como parece sugeri o autor, para a divulgação do

programa eugênico, de modo geral, estava alicerçado sob a “[...]

influência das discussões que os eugenistas norte-americanos, alemães

e ingleses vinham desenvolvendo desde o início do século XX”

(WEGNER, 2011, p. 2).

Assim, o médico e ativista político da eugenia no Brasil, Renato Kehl buscou na

Europa as bases teóricas e fundamentação empírica para alegar e defender a eugenia como

“remédio” para curar a nação dos problemas da hereditariedade, da degeneração moral e

intelectual (MACIEL, 1999; WEGNER, 2011). A partir da propagação das ideias desses

intelectuais e cientistas que a teoria do branqueamento ganhou mais força e adeptos,

convertendo-se em ideologia amplamente aceita, não apenas por alguns setores da

intelectualidade, mas também por grande parte da população brasileira.

Para explicar essa relativa aceitação popular e de parte da intelectualidade brasileira

em relação à ideologia do branqueamento, Andreas Hofbauer (2003) revela que essa ideologia

foi constituída historicamente e em contextos econômicos e sociais específicos. Para elucidar

isso o autor enuncia que:

O ideário do “branqueamento” – que me parece uma característica

importantíssima do “racismo brasileiro” – tem “atuado” como “suporte

ideológico” de relações de poder de tipo patrimonial que aqui se

estabeleceram e se firmaram desde a Colônia (HOFBAUER, 2003, p. 68).

Hofbauer (2003) argumenta que já no final do século XIX, o ideário do

branqueamento converteu-se em um pretexto discursivo de parte da elite brasileira formada

por políticos e cientistas, que almejavam por mudanças econômicas, mas que não queriam

alterar as velhas estruturas de poder do Brasil, baseada no patrimonialismo colonial. Esse

ideário, segundo o autor, tem como fonte discursiva as análises do tipo cultural-antropológica

e sociológica, que surgiu em um período de incertezas e inseguranças, ganhando, assim, mais

força, justamente em um contexto histórico e político em que a sociedade brasileira deixava

93

de ser escravista para adentrar em outro modelo econômico, o capitalista (HOFBAUER,

2003). De acordo com as análises cultural-antropológica e sociológica, as teorias raciais tidas

como clássicas, e que tinham muita influência na Europa e nos Estados Unidos do século

XIX, e que recriminavam a miscigenação, não ajudava na “[...] viabilidade do projeto de

modernização do país” (HOFBAUER, 2003, p. 68), pois, tanto na Europa quanto nos Estados

Unidos havia uma destacada segregação racial. No caso do Brasil do final do século XIX e

XX, essa segregação racial nos moldes norte-americano não seria, provavelmente, possível de

ser implantada exatamente porque era altamente miscigenada a sociedade. É interessante

notar, tendo como perspectiva o pensamento do autor, que as análises cultural-antropológica e

sociológica concebiam que “[...] a ideia do “branqueamento” serviu como uma saída

ideológica para este momento crítico de transformações na política e na economia”

(HOFBAUER, 2003, p. 68), sendo útil também para reforçar o discurso das elites políticas e

econômicas brasileiras para promover a campanha em torno da imigração da mão de obra

europeia. Isso acometeria os negros que não seriam integrados (marginalizando-os) na nova

sociedade de classe que se desenvolvia nos principais centros urbanos do Brasil

(HOFBAUER, 2003).

Para Hofbauer (2003), nas análises cultural-antropológica e sociológica, a ideologia

(ou teoria) do branqueamento seria genuinamente brasileira. Isso porque o que ocorreu com as

teorias raciais europeias foi uma adequação ao caso específico do Brasil referente à

problemática racial. Diante disso, Guimarães (1995) contribui, ao complementar as

argumentações de Hofbauer (2003), ratificando que a particularidade do racismo no Brasil

reside na importação de teorias racistas da Europa. Mas essas teorias tiveram dois princípios

importantes excluídos: o caráter inato das diferenças raciais, ou seja, a hierarquia racial, em

que o branco seria o superior e os outros grupos humanos, especialmente o negro, estariam em

um patamar de inferioridade, integrando uma raça inferior. O outro princípio excluído seria a

concepção de que a mistura poderia levar a degenerescência racial. Guimarães propõe que

“[...] [o] núcleo desse racialismo era a ideia de que o sangue branco purificava, diluía e

exterminava o negro, abrindo assim a possibilidade para que os mestiços se elevassem ao

estágio civilizado” (GUIMARÃES, 1995, p. 37). No racismo brasileiro, a segregação não era

algo pensado como uma solução, como ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul.

Parece-nos que isso ficou como uma marca indelével na consciência racial da população

brasileira.

94

A ideia de “embranquecimento” foi elaborada por um orgulho nacional

ferido, assaltado por dúvidas e desconfianças a respeito do seu gênio

industrial, econômico e civilizatório. Foi, antes de tudo, uma maneira de

racionalizar os sentimentos de inferioridade racial e cultural instalados pelo

racismo científico e pelo determinismo geográfico do século XIX

(GUIMARÃES, 1995, p. 37-38).

Hofbauer (2003) parece não concordar inteiramente com Guimarães e com Schwarcz,

quando afirmam que a ideologia do branqueamento seria uma consequência do momento

histórico daquele período.

De acordo com as concepções de Hofbauer (2003), a compreensão do racismo

brasileiro está relacionada analiticamente à interpretação que se faz em torno da ideia de raça

e de negro que se desenvolveu no Brasil. Diante das análises vigentes, como no raciocínio de

Guimarães e Schwarcz, em que procuram demonstrar como a ideologia do branqueamento

surgiu tendo como principal causa o fim da escravidão e a consequente miscigenação, em que

o branqueamento e a escravidão se excluem. Hofbauer (2003) declara “[...] que ‘escravidão’ e

‘'branqueamento’ podem ser melhor entendidos como fenômenos que se complementavam

(HOFBAUER, 2003, p. 69). Nesse sentido, o autor aponta que a ideia de negro e de branco

localizam-se anteriormente ao discurso racializado que se estabeleceu na modernidade. Pelo

que Hofbauer enfatiza, as duas cores de pele, negra e branca, não estavam relacionadas

diretamente a um mundo natural, que poderia ser facilmente explorado e observado

objetivamente. Mas estavam, historicamente, associadas aos ideais de moralidade e

religiosidade.

Desde os primórdios das línguas indo-europeias, o branco representava o

bem, o bonito, a inocência, o puro, o divino, enquanto o negro era associado

ao moralmente condenável, ao mal, às trevas, ao diabólico, à culpa. Na Idade

Média, o grande paradigma de inclusão e exclusão era a filiação religiosa, e

não ainda a cor de pele (HOFBAUER, 2003, p. 70).

É importante pontuar que estas noções assinaladas pelo autor, ainda que falsas, estão

vigentes, sobretudo no sistema racial brasileiro. Talvez isso justifique, pelo menos em parte, o

porquê de os negros serem minorias nas telenovelas das principais emissoras nacionais.

As concepções morais e religiosas, e toda a simbologia atribuída ao branco como puro

e divino e o negro como impuro, pagão e pecador, auxiliava na justificação das investidas e

dominações coloniais. Além disso, para reforçar o argumento da dominação, como aponta o

autor, os medievais concebiam como negros todos os grupos populacionais que estavam

distantes do continente europeu.

95

Hofbauer (2003) destaca também, para que se possa compreender melhor a história do

racismo (e ele enfatiza que isso é de suma importância), um trecho do Velho Testamento,

contido na Gênese: IX, em que Noé lança uma maldição sobre seu filho, e nesse ponto

aparece pela primeira vez a palavra “escravo”. Nesse trecho das Sagradas Escrituras, Noé

condenou seu neto Canaã por causa do comportamento imoral de seu filho, Ham (ou Cam).

Pinar (2008) explica o que houve para que Noé amaldiçoasse o filho de Cam.

Noé (do famoso dilúvio) planta um vinhedo, produz vinho, embriaga-se e

desmaia nu, na sua tenda. Seu filho Cam – Noé tem dois outros filhos, Sem e

Jafé – entra na tenda e, mais tarde, a deixa. Depois de passado algum tempo,

Noé aparece: “E Noé acordou do seu vinho, e percebeu o que seu filho mais

novo tinha feito a ele” (Gênesis 9: 24). Noé não maldiz Cam, mas Canaã,

filho de Cam: “um servo de servos fará dele um seu irmão” (Gênesis 9: 24)

(PINAR, 2008, p. 36).

Pinar (2008) observa ainda que não há menção ao termo raça na passagem desse texto.

Não há nenhuma referência explícita à “raça” nessa passagem. Embora se

tenha aceitado que Cam (equivocadamente) tenha a conotação de “escuro”

no hebreu antigo, parece que os donos de escravos e segregacionistas

produziram completamente a associação entre raça e a fúria de Noé (PINAR,

2008, p. 36).

Hofbauer analisa que foram os textos dos exegetas israelenses que, presumivelmente

entre os séculos V e VI, introduziram inicialmente uma relação mais direta entre a maldição

de Ham (Cam) e a pigmentação da pele escura. Os árabes muçulmanos logo acolheram esta

interpretação do Velho Testamento, com a intenção de justificar a dominação e a escravização

dos povos que ficavam ao sul do Saara (HOFBAUER, 2003). Mas, de acordo com o autor,

nos dogmas do islamismo todo aquele que se convertia aos seus preceitos era considerado um

fiel. Assim, não poderia ser escravizado, pois a doutrina islâmica proíbe rigorosamente fazer

escravo um irmão de fé, mesmo que esta conversão tenha sido recente. Essa concepção estaria

em consonância com os textos sagrados. “Posteriormente, este discurso ideológico seria

também adotado pelos cristãos ibéricos e ganharia, no contexto do tráfico transatlântico, uma

nova relevância política” (HOFBAUER, 2003, p. 71).

Um ponto significante destacado por Hofbauer é que a construção ideológica da

escravização pendia a relacionar o “[...] “ser escravo” com a ‘cor negra’” (HOFBAUER,

2003, p. 71). No entanto, essa relação não era atribuída para referenciar somente os povos da

África. Quando os colonizadores europeus aportaram no Novo Mundo, dominando os povos

96

indígenas e os escravizando designava-os de negros. Não eram como, a princípio, se imagina

no senso comum, qualificados como índios ou gentios.

Conforme a análise de Hofbauer (2003), na visão universal do cristianismo, a

humanidade teria sua gênese a partir do mítico casal Adão e Eva, um casal, sem dúvida

alguma, branco. A humanidade, portanto, em sua origem, seria branca. Toda cor de pele que

fenotipicamente desviava desse padrão seria explicada pelos cristãos como uma falha moral

dos povos com pele mais escura.

No século VXII, e daí por diante, a variação da cor da pele começou a ser explicada

em decorrência da influência do clima. Nos sermões proferidos pelo padre Antônio Vieira, a

justificativa para a cor da pele negra era atribuída aos descendentes de Cam que mudaram

para a Etiópia.

Mas, ao mesmo tempo, o padre jesuíta ligava, recorrentemente, a cor negra

com a ideia de uma vida cheia de pecado que, segundo ele, predominava em

África: uma vida na escuridão, sem presença de Deus (cf. VIEIRA, 1940, p.

26-109 apud HOFBAUER, 2003, p. 72).

A vida escrava era justificada pelos cristãos da época como uma chance e um caminho

para se chegar ao reino de Deus, sendo que no começo do empreendimento colonial no

mundo árabe muçulmano da Idade Média, e na península Ibérica, a conversão à fé que os

cristãos denominavam de verdadeira eram no fundo um processo de clareamento e de

embranquecimento dos colonizados a nova cultura dominante (HOFBAUER, 2003)

Nos parece que a argumentação de Hofbauer (2003) procura destacar como o racismo

e o branqueamento nasceram e se desenvolveram alicerçados pela mitologia cristã que

dominou por séculos as concepções de mundo, sendo que essa visão de mundo se impregnou

na ciência da Idade Moderna.

[...] a força simbólica das cores “negro” e “branco” – que, durante muito

tempo, foram associadas a valores religiosos - morais – seria agora projetada

em novas visões a respeito do “mundo” e do “ser humano” (HOFBAUER,

2003, p.73-74).

A ciência do século XVIII pensava o homem como uma das partes da physis

(natureza). Não o dissociava dessa natureza, que para ser compreendida, necessitava de

critérios e métodos objetivos e que a metafísica religiosa não cooperasse tanto. “Mesmo

assim, explicações de cunho mais religioso - moral e outras já mais ‘naturalizadas’ a respeito

97

das diferenças humanas deviam – ainda por muito tempo – conviver lado a lado [...]”

(HOFBAUER, 2003, p. 74), e também sobrepondo-se uma a outra.

Tendo em vista essa perspectiva, as características e a diversidade dos fenótipos

humanos seriam explicadas, a partir desse período, como uma atribuição de forças externas,

por exemplo, as condições de vida e as determinações climáticas e geográficas. Para muitos

autores dessa época, essas determinações ainda eram a expressão da vontade Divina

(HOFBAUER, 2003).

[cientistas] importantes, como Georges Louis Leclerc de Buffon, descreviam

a cor de pele escura como uma decorrência do ambiente e, portanto, como

um fenômeno “acidental” e perfeitamente “reversível”. Assim, explica-se

também que vários pensadores da virada do século XVIII para o XIX

contavam ainda com a possibilidade de uma mudança de cor de pele dentro

de uma única “raça”, caso um determinado grupo migrasse para uma região

mais quente ou mais fria. Buffon chegou a propor que se levasse um grupo

de africanos (do Senegal) para Dinamarca, a fim de estudar quantas gerações

demoraria até que a cor de pele deste grupo fosse totalmente transformada

em branco. Ele estipulou um período de 8 a 12 gerações, tempo que,

segundo ele, deveria ser o suficiente para “branquear uma raça” [...]

(HOFBAUER, 2003, p. 74).

Essa crença na transformação do negro em branco, ou de branco em negro, era

alimentada por muitos pensadores europeus entre os séculos XVIII e XIX, que vaticinavam

essa mudança em um prazo ainda mais curto: quatro gerações seriam suficientes para tal

transformação. Isso porque a base para essa transformação seria os “[...] casamentos

controlados entre representantes da ‘raça branca’ com representantes da ‘raça negra’”

(HOFBAUER, 2003, p. 74 [grifos do autor]).

Nesse sentido, gostaríamos de destacar que a recepção dessas teorias raciais europeias

no Brasil do final do século XIX e início do século XX foram vistas como verdades que

apontavam para a solução da desigualdade racial existente. E a transformação de negros em

brancos foi uma teoria (ou ideologia) aceita com grande entusiasmo por alguns intelectuais

desse momento histórico. A exemplo de Renato Kehl (WEGNER, 2011), João Baptista de

Lacerda (1846-1915) foi outro grande divulgador e entusiasta de teorias raciais e,

consequentemente, do branqueamento no Brasil. Médico e intelectual de renome, foi

escolhido pelo governo brasileiro, para representar o país no Congresso Universal das Raças,

na Inglaterra, na cidade de Londres, de 26 a 29 de julho de 1911 (SCHWARCZ, 2011).

98

Lilia Moritz Schwarcz (2011nos esclarece que, além de todas as palestras realizadas

no evento abordando aspectos peculiares, como os culturais e sociais, dos países convidados a

participar desse Congresso Universal das Raças, haviam temas complexos e intensos.

[...] “O problema da raça negra nos EUA”, “A posição mundial do negro e

do negroide”, “O destino da raça judaica”, “A consciência moderna e os

povos dependentes” e “As raças sob o ponto de vista sociológico”

(SCHWARCZ, 2011, p. 226).

Conforme a autora, mesmo sendo realizado no início do século XX, esse congresso

das raças estava profundamente tomado pelas concepções raciais dos séculos anteriores. Os

modelos deterministas e os fenômenos ontológicos e finais da compreensão da ideia de raça

que orientavam os discursos e as visões de cientistas e intelectuais no passado estavam ainda

muito presentes nas falas dos participantes desse evento (SCHWARCZ, 2011).

Em meio às visões deterministas da ideia de raça, o Brasil figurava-se no congresso

como algo particular. Isso não demonstra, como aponta Schwarcz (2011), que a situação do

país era vista de forma positiva.

Por um lado, a participação brasileira não deve ser entendida de maneira

desavisada. Naquele momento o país era conhecido como um ‘laboratório

racial’, sobretudo pelos viajantes europeus e norte-americanos que por aqui

estiveram em busca do espetáculo da natureza e dos homens. O Brasil servia

como um exemplo do cruzamento extremado de raças, algo que, no período,

era visto como extremamente negativo: representávamos um exemplo de

degeneração, obtida pelo efeito perverso da mistura de raças (SCHWARCZ,

2011, p. 226).

A concepção científica de João Baptista de Lacerda se colocava de maneira menos

dramática e determinista, sobretudo em relação aos cruzamentos raciais extremados que

ocorriam no Brasil. Isso não quer dizer que ele era menos racista. Mas tinha uma importância

grande no cenário científico brasileiro da época, o que possibilitou que fosse ouvido com mais

atenção no congresso de 1911, pois, além de médico, também era membro correspondente de

diversas sociedades científicas na Europa e nos Estado Unidos, “[...] professor honorário da

Faculdade de Medicina da Universidade do Chile e, sobretudo, [...] diretor do Museu

Nacional do Rio de Janeiro” (SCHWARCZ, 2011, p. 226). Lacerda afirmava que o Brasil

acomodava grupos que estavam no início do processo civilizador. Essa tese fundamentava-se

através das diversas pesquisas que realizou com o grupo indígena Botocudo. O resultado foi

99

publicado nos arquivos do Museu Nacional, e confirmavam “[...] a inferioridade do grupo,

que [estaria] na ‘infância da humanidade’”. (SCHWARCZ, 2011, p. 227).

Com esse currículo e autoridade científica João Baptista de Lacerda, provavelmente,

teria convencido os participantes do Congresso Universal das Raças (e também no Brasil) ao

argumentar que a mestiçagem brasileira era transitória e benéfica, sendo que não deixaria

qualquer tipo de marca ou rastros (SCHWARCZ, 2011).

Mais ainda: era preciso demonstrar como nos portávamos de maneira

alternativa, até mesmo em relação aos EUA. Se por lá grassara um sistema

escravocrata violento, no Brasil o processo teria sido marcadamente pacífico.

Além do mais, se na América do Norte vigia uma ampla gama de

preconceitos, por aqui a característica mais marcante seria a ausência de

padrões de exclusão. Como se vê, bem no começo do século [XX], João

Baptista de Lacerda defendia uma espécie de melting pot, se não presente, ao

menos futuro e assegurava ao Brasil uma identidade positiva, obtida pela

contraposição que estabeleceu não só com os outros países da América do

Sul, mas também com a América do Norte (SCHWARCZ, 2011, p. 227

[grifos da autora]).

Assim, João Baptista de Lacerda reforçava o valor positivo da mestiçagem destacando

que ela era uma saída para o progresso do Brasil. A miscigenação e o cruzamento racial de

problema passavam a ser solução (SCHWARCZ, 2011). Lacerda defendia a mestiçagem

como um fator de redenção que teria êxito a partir de determinadas políticas públicas que

incentivassem a imigração europeia. Essas políticas estavam sintonizadas com algumas

convicções da ciência da época. Por exemplo, a seleção dos fenótipos brancos, como sendo os

mais fortes para mudar o panorama racial brasileiro. Conforme Schwarcz (2011), a tese de

Lacerda realmente era abusada. Ele pressagiava que dentro de um século, mais ou menos em

três gerações, seriamos uma nação de brancos caucasianos. “Lacerda havia chegado a essa

conclusão a partir dos dados levantados por Edgar Roquette - Pinto (1884-1954), o qual

trabalhara, por sua vez, com estatísticas de 1872 e 1890” (SCHWARCZ, 2011, p. 228).

Roquette-Pinto, na época um jovem antropólogo, e mais tarde também considerado o pai da

radiodifusão no Brasil, tinha constatado que a população negra e indígena estava lentamente

em declínio.

100

João Baptista de Lacerda afiançava essas ideias, anunciando em tom panfletário na sua

comunicação13 no Congresso Universal das Raças em Londres, que o Brasil ofereceria um

exemplo ao mundo.

[...] mostraríamos uma redenção e ‘redução’ étnica, bem no alvorar do novo

século. A raça negra desapareceria entre os brasileiros e, junto com o

incentivo à imigração europeia, a nação seria definitiva e finalmente branca.

Com essa etapa alcançada, o país estaria pronto e preparado para

transformar-se num dos “principais centros civilizados do mundo”, na

mesma condição que os EUA e os “povos Anglo-Saxões do Velho

Continente”. Enfim, uma nova Europa! (SCHWARCZ, 2011, p. 231).

Empiricamente essa “redenção étnica”, e o consequente branqueamento da população

anunciada e desejada, não apenas por Lacerda, mas também por grande parte das elites

brasileiras, não se efetivaram. As relações étnico-raciais são mais complexas e mais ricas que

os vislumbres prognósticos dos cientistas do início do século XX.

Sobre a temática do branqueamento dentro das discussões que tratam do racismo à

brasileira, seria bom pontuarmos, consoante as considerações do historiador e professor da

Universidade Federal de Sergipe, Petrônio José Domingues (2002; 2003), o qual se alinha aos

argumentos de Andreas Hofbauer, que o branqueamento é uma categoria analítica, que vem

sendo utilizada pelo menos em dois sentidos.

O primeiro, de acordo com Domingues (2002; 2003), “[...] é visto como a

interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu

ethos de matriz africana” (DOMINGUES, 2002, p. 565-566). O outro sentido indicado pelo

autor diz respeito ao processo de embranquecimento da população brasileira que foi

registrado pelos censos oficiais e pelas previsões estatísticas realizadas no final do século XIX

e no início do século XX (DOMINGUES, 2002; 2003). Apesar da importância da

diferenciação desses dois sentidos do branqueamento para se compreender melhor a

problemática racial do Brasil, não queremos em nosso trabalho aprofundá-lo demasiadamente.

No entanto, a seguir, vamos, de maneira sumária, discorrer sobre esses dois sentidos do

branqueamento que Domingues (2002) destaca.

2.8 Branqueamento: entre os dados oficiais e a influência ideológica-moral

13 Cf. o discurso de João Baptista de Lacerda para o Congresso Universal das Raças no texto de Lilia M.

Schwarcz (2011), “Previsões são sempre traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco” onde ela

apresenta na integra a comunicação do autor.

101

Domingues (2002; 2003) se alinha as concepções de Hofbauer (2003) e Schwarcz

(2011) ao considerar que no pós-abolição (a partir dos anos finais do século XIX) o fenômeno

do branqueamento era percebido como algo irreversível. “Pelas estimativas mais “confiáveis”,

o tempo necessário para a extinção do negro em terra brasilis oscilava entre 50 a 200 anos”

(DOMINGUES, 2002, p. 566). Essas estimativas eram endossadas e difundidas pelos

documentos oficiais do governo, como no caso do censo de 1920, em que o sociólogo e jurista

fluminense Oliveira Viana, por meio do texto de apresentação do referido censo, realçava

esses dados declarando-os como verdade irrefutável. Segundo Domingues (2002; 2003), esse

texto era a prova conclusiva de que o governo brasileiro era avalista do branqueamento14.

Assim o ideal de branqueamento da população paulista da virada do século XIX para o XX

era correspondido, pelo menos de forma aparente, pelos dados estatísticos.

Pelo censo de 1872, os negros (pretos e mulatos) correspondiam a 37,2% da

população da cidade de São Paulo. Já em 1893, o percentual era de 11,1% e,

pelas estimativas de 1934, esse percentual declinava para 8,5%. Portanto, o

desaparecimento do negro, ou branqueamento da população, era um dos

fenômenos estatísticos mais evidentes do quadro racial de São Paulo

(DOMINGUES, 2002, p. 566).

Certamente que esses dados entusiasmavam os racistas, não apenas de São Paulo, mas

também os do Brasil como um todo na primeira metade do século XX, que acreditavam no

branqueamento como solução para o problema negro do país. Esses dados estatísticos

parecem que influenciaram também os estrangeiros que viajavam por terras brasileiras. É o

caso, como explica Domingues (2002), do viajante inglês Maurício Lamberg, que relatou em

seu diário que o negro no Brasil estava progressivamente desaparecendo. Já outro viajante, o

francês Pierre Denis, que esteve em São Paulo no início do século XX, confirmava a tese do

branqueamento, ao constatar empiricamente que “apesar de não haver estatísticas, parece

certo que a população [negra] está hoje em plena regressão no estado de São Paulo. O fim da

escravatura levou à eliminação rápida do operário negro” (DENIS apud DOMINGUES, 2002,

p. 567). Domingues (2003) aponta que outro francês Louis Couty (1854-1884), médico e

professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, fez grande publicidade das ideias racistas.

Conforme Domingues (2003), Louis Couty “[demonstrando] falta de familiaridade com a

cultura de herança africana, [...] foi um dos mais importantes propagadores do racismo

científico no Brasil” (DOMINGUES, 2003, p. 49). Os relatos e a percepção desses

14 Para aprofundar esta questão, em conformidade com Domingues (2002), sugerimos o texto de Carlos Vainer

“Estado e Raça no Brasil. Notas Exploratórias” (1990), que discute de maneira mais detalhada esta questão da

conivência do governo brasileiro do início do século XX com as ideologias racistas.

102

estrangeiros que estiveram no país, bem como os que residiam por aqui, como no caso de

Louis Couty, estavam impregnados pela influência da imprensa local e pelo contexto racial do

Brasil daquele momento. Apesar da sua grande presença na sociedade brasileira, o negro era

(e é ainda) descaradamente invisibilizado e sonegado pelos mecanismos raciais de

discriminação, dos quais a ideologia do branqueamento seria o mais perverso.

O fato é que havia nesse Brasil dos anos 1900 (e isso não é muito diferente nos dias de

hoje) toda uma estrutura racista e ideológica que realizava a manutenção dos mecanismos de

discriminação. Por exemplo, na área da saúde havia a crença de que o negro se dirigia para o

seu desaparecimento completo. De acordo com Domingues (2002), Alfredo Ellis Júnior,

político, formado em direito, professor de sociologia e história prognosticava em seu livro

“Populações Paulistas” que “[...] o negro estava caminhando à extinção, num prazo de 40 ou

no máximo 50 anos” (DOMINGUES, 2002, p. 569). A justificativa para tal extinção dos

negros, segundo Alfredo Ellis Júnior, era de natureza fisiológica decorrente da deficiência

étnica dos negros. Assim, o professor paulista apontava como causa dessa suposta extinção

negra a acentuada diminuição da natalidade, o aumento da mortalidade, o clima e a altitude,

principalmente do estado de São Paulo. Sem contar que doenças como a tuberculose e a sífilis

eram, conforme Ellis Júnior, muito presente no meio das pessoas negras, cuja resistência e a

taxa de sobrevivência eram menores que nas pessoas brancas (DOMINGUES, 2002).

Alfredo Ellis se equivocou em suas análises, por que as razões do saldo

vegetativo negativo do negro não era sua pretensa inferioridade biológica,

mas uma decorrência dos problemas sociais que assolavam este povo, dos

quais os principais eram: as condições desumanas de moradia, as doenças, o

desemprego, o alcoolismo, o abandono do menor, dos velhos, a mendicância,

subnutrição, criminalidade e a mortalidade infantil (DOMINGUES, 2002, p.

572-573).

Esses dados estatísticos oficiais, que Ellis Júnior usava para avaliar a situação do

negro no Brasil e em São Paulo, mesmo que equivocados, nutriam o imaginário social ao

justificar o desaparecimento do negro e o consequente branqueamento do país. No entanto, a

força política e a persistente publicidade desses dados oficiais fizeram com que o

branqueamento de ordem ideológica-moral inserisse na mentalidade social brasileira a suposta

inferioridade do negro. Infelizmente essa ordem parece ter atingido alguns negros

profundamente, sobretudo os mais elitizados. Entre estes haviam intelectuais e jornalistas que

escreviam mais diretamente para o público negro. Entretanto, de antemão, é importante

enfatizar que, na realidade, essas pessoas foram cooptadas pelo sistema racista daquele

103

momento, pois, “todos” pareciam estar convencidos da inferioridade negra e da supremacia

branca, que servia de norma e modelo a ser seguido. Diante dessas afirmações, Domingues

(2002) compreende que “[a] “raça branca” precisa que as demais raças e grupos étnicos,

inclusive os negros, assimilem seus valores e passem a se comportar, pensar, sentir e agir

conforme sua ideologia racial” (DOMINGUES, 2002, p. 573). Consideramos que hoje essa

estrutura de pensamento está também nas telenovelas, em que o ator negro e as personagens

que representa são tratados como se fizessem parte de um país onde haveria apenas pessoas de

pigmentação branca, sendo os negros percebidos com inferioridade e uma raça intrusa “no

mundo branco”. Em decorrência deste entendimento, nos surge uma questão: essa estrutura de

pensamento racial, que supomos refletir também nas telenovelas, talvez possa acabar

convencendo a população negra de que ela está realmente em lugar errado, sustentando por

meio de um discurso moral e estético a ideia de subalternidade em relação aos brancos? Ao

pensarmos uma resposta para essa questão, Domingues (2002; 2003) nos auxilia a esclarecer

que no início do século XX a ideologia moral pregada contra os negros estava impregnada na

imprensa negra, como já destacamos em linha anteriores. De modo que antigos jornais da

imprensa negra do início do século passado, como “O Alfinete”15, atacava a postura dos

negros que frequentavam os bailes públicos, denominados de “freges”, em que se dançavam o

maxixe16 (DOMINGUES, 2002). O autor revela que a imprensa negra investia contra esses

bailes justamente por pressupor que lá estava reunida “[...] a ‘escoria’ da sociedade: negros e

brancos das camadas populares, vadios, gatunos, prostitutas, cáftens” (DOMINGUES, 2003,

p. 283). Além disso, nesses lugares “[a] bebida, a licenciosidade, o despudor, a descontração e

libertinagem reinavam. Daí a veemência com que estes bailes eram reprovados”

(DOMINGUES, 2002, p. 574). O autor destaca ainda que

15 Um importante jornal de São Paulo que “[...] foi um periódico dedicado a noticiar os ideais da comunidade negra por meio de textos opinativos sobre a defesa de padrões a serem seguidos pelos leitores. Além dessa proposta, era ainda característica dessa folha a publicação de eventos sociais e, sobretudo, de “mexericos” sobre a vida das pessoas da comunidade. Leite, um dos mais expressivos líderes da Imprensa Negra define O Alfinete como um jornal que publicava fofocas, mas não de cunho ideológico, “as alfinetadas [eram] no sentido de corrigir a moral, denunciar pessoas que aparentemente tinham dignidade, mas escorregavam”” (BARBOSA e BALSALOBRE, 2008, p. 3). 16 Esta dança “[apareceu] na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Resultou da fusão da tabanera

pela rítmica, e da polca pelo andadura, com adaptação da síncopa africana. Outros o fazem uma prolação do

lundu, mescla do com a toada. Era dança de salão, de par unido, exigindo extrema agilidade pelos passos e

figuras rápidas, mobilidade de quadris [...]. Foi por algum tempo expoente da nossa dança urbana, tendo cedido

lugar ao samba [...]” (CASCUDO apud DOMINGUES, 2002, p. 594).

104

[na] ótica dos negros branqueados social e moralmente, o salão Lyra era um

desses antros de depravação na cidade, devendo ser evitado pelas mulheres

negras: “a nossa raça deve procurar outra convivência...” [essa era uma

reportagem que constava no jornal o Alfinete de março de 1919]. Elas

deviam se recusar a frequentar espaços cujos bailes executavam músicas de

“preto”, como o maxixe (DOMINGUES, 2002, p. 575).

Esses eventos eram criticados por uma pequena parcela dos negros em São Paulo que,

de acordo com Domingues (2002; 2003), estavam moral e ideologicamente branqueados.

Condenavam acintosamente esses bailes, destacando o caráter grotesco, bárbaro e selvagem

desses ritmos e danças. Esse pequeno setor de mentalidade branqueada da comunidade negra

em certos momentos negava as referências ao éthos cultural da ancestralidade africana.

[...] formas típicas de andar, falar, dançar, gingar, forma de se vestir, estilo

de cabelo, tradições culturais religiosas. O repúdio [dessa minúscula elite

negra e intelectualizada] a tais valores era um recurso de diferenciação social

da plebe negra (DOMINGUES, 2003, p. 285).

O autor ressalta que a assimilação dos valores morais e sociais da ideologia do

branqueamento por parte dessa elite negra, na realidade, resultava das representações

instituídas negativamente pelos brancos.

Era necessário ser um “negro da essência da brancura”. Por isso, eles

desenvolveram certo desprezo em relação às raízes da negritude. Aliás, a

recusa da herança cultural africana e o isolamento do convívio social com os

negros da “plebe” eram duas marcas distintivas dos negros “branqueados

socialmente” [...] (DOMINGUES, 2003, p. 285).

Marx e Engels (1999), nessa perspectiva, apesar de não abordarem diretamente a

questão racial em sua obra, “A Ideologia Alemã”, talvez possam oferecer uma das chaves

para compreender a cooptação da ideologia do branqueamento, ao descrevem as relações de

poder entre a classe dominante e a dominada. Assim, pois, para estes filósofos

Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os

pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material

dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual.

A classe que dispões igualmente dos meios de produção material dispõe

igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o

pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual

está submetido igualmente à classe dominante. (MARX e ENGELS, 1999, p.

63).

105

Esses pensamentos dominantes, como apontam Marx e Engels (1999), dizem respeito

ao domínio das relações materiais. Condição primordial para quem está com o poder

econômico de produzir e exercer, também em forma de ideias, o domínio cultural e social

sobre as outras classes.

Diante desses argumentos de Marx e Engels (1999), podemos, sob o amparo de suas

ideias, compreender como a classe dominante brasileira, do final do século XIX e início do

século XX, persuadia todos os segmentos sociais com a produção e a reprodução das teorias

raciais, a ponto de parte da intelectualidade negra mais elitizada reproduzir as ideias racistas

da classe branca dominante, fazendo crer que eram os próprios negros que praticavam

racismos contra si mesmos, pois o sistema de poder, de produção e os inúmeros privilégios

estavam nas mãos dos brancos, tornando fácil a imposição ideológica dos valores morais e

estéticos de seu segmento racial. No entanto, não estamos afirmando que o racismo e a

ideologia do branqueamento, principalmente no Brasil, sejam exclusivamente em decorrência

dos fatores econômicos. Parece-nos que, independentemente da desigualdade das classes

sociais, o racismo continua a atuar.

Para retomarmos brevemente as reflexões de Marx e Engels (1999), e relacioná-las

diretamente com que afirmarmos anteriormente, Marilena Chaui (2003), nos elucida que essa

imposição ideológica “[...] não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno

objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos

indivíduos” (CHAUI, 2003, p. 72).

A elite negra do século passado reproduzia, portanto, inconscientemente, os efeitos do

branqueamento acreditando que os valores das classes brancas eram a verdade e o caminho a

ser trilhado.

Essa elite negra branqueada aconselhava os demais negros a adotar uma conduta moral

condizente com a cultura e o poder hegemônico, pois esta seria a norma, mesmo que

ideologicamente falsa.

Ao destacarmos a submissão, no início do século XX, de parte da elite

negra aos ditames perversos das relações raciais brasileiras vigentes

no país naquele período, a ideologia do branqueamento está em

primeiro plano de investigação. Não poderíamos compreendê-la

melhor deslocada de um pano de fundo histórico, “[...] o ideário de

transformar ‘negro’ em ‘branco’ perpassou longos períodos históricos,

em que o ideal do branco tem sido (re)semantizado constantemente”

(HOFBAUER, 2006, p. 27).

106

No caso do Brasil há toda uma estrutura subjetiva e objetiva que foi constituída

historicamente, como revela Hofbauer (2003; 2006), que induz os indivíduos a quererem se

aproximar do ideal de branqueamento. Se os antigos jornais impressos do século XX, tanto da

imprensa branca quanto da imprensa negra, postulavam a supremacia dos valores morais e

estéticos brancos, hoje isso está atualizado de maneira sofisticadíssima nos diversos

programas exibidos pela televisão. O ideal de branqueamento veiculado pela televisão talvez

seja mais persuasivo e penetrante no imaginário das pessoas, ressaltando os valores

hegemonicamente brancos, do que os antigos jornais da imprensa branca ou negra, que se

reportava diretamente a comunidade negra sugerindo a esta última costumes e atitudes.

De maneira semelhante, a televisão brasileira, principal veículo de comunicação do

país, é inteiramente branqueada. Ela valoriza e propaga o ideário do branqueamento por meio

de sua programação. Isso está explicitamente posto, por exemplo, nas telenovelas, em que o

ideário do branqueamento é celebrado constantemente. Por outro lado, isso não quer dizer que

não haja negros atuando nas telenovelas, mas o protagonismo das personagens negras é

diminuto.

A ideologia do branqueamento faz acreditar que o Brasil seja constituído por maioria

fenotipicamente caucasiana. Da perspectiva política, parece-nos que isso dificulta enfrentar o

racismo de forma mais eficaz, fomentando uma consciência racial entre brancos e negros

fragmentada. O branco, com características europeias, aparece nas telenovelas como a norma

e o padrão de referência de beleza. O negro como o inverso de tudo isso.

As telenovelas, dessa forma, constituem elemento de significado muito influente na

cultura brasileira, que talvez sejam pouco exploradas, cujas relações raciais estão presentes na

maneira de negação do negro como protagonista da ficção televisiva dos canais abertos.

Entretanto, seria interessante acentuar que as coisas mudaram um pouco no próprio

percurso histórico de desenvolvimento das telenovelas em relação a participação de negros

em seus enredos. Assim, no próximo capítulo, vamos analisar a novela da Rede Globo “Lado

a lado”, de 2012, que é relativamente um marco da teledramaturgia brasileira ao destacar à

presença negra de maneira afirmativa, abordando a importância e as contribuições da cultura

afro-brasileira para a história do Brasil.

107

CAPÍTULO III

Ideologia do branqueamento nas telenovelas: a novela “Lado a Lado” como um caso

emblemático

Depois de discorrermos a respeito do racismo, da origem das telenovelas e acerca da

ideologia do branqueamento, a intenção é fazer agora uma análise da novela “Lado a Lado”,

cuja produção enfocou a questão da cultura negra no Brasil. Infelizmente, essa novela, no

fundo, acabou apenas reproduzindo alguns estereótipos veiculados e aceitos socialmente sobre

o negro. No entanto, antes de passarmos a análise dessa produção televisiva, é importante

justificar o porquê de escolhermos esta telenovela. Primeiramente, seria bom ressaltar que

“Lado a Lado”, pelo menos nos últimos tempos, foi uma produção ficcional emblemática, que

destacou a figura do negro e de sua história no Brasil. Apesar disso, não escapou aos

estereótipos raciais impregnados na sociedade, abordando a cultura negra de forma

essencializada ao dar destaque ao negro como o bom de bola, ao capoeirista versátil e ágil, a

mulher negra como uma mulata sensual. Além disso, enfatizou o negro como um ser

inclinado a indolência, a malandragem, com forte gosto pela dança, pelo samba, pelos ritos

religiosos de matriz africana e pelas práticas de curandeirismo. Os autores dessa novela não

conseguiram escapar desse senso comum racialmente constituído e que está colado à imagem

do negro. Por isso, essa novela, a nosso ver, representa um objeto de análise interessante,

pois, ao mesmo tempo em que procura evidenciar a história da população negra brasileira,

reproduz simultaneamente aquilo que, provavelmente, poderia evitar: os estereótipos em

relação à contribuição dos negros na formação da identidade brasileira.

Diante desses pontos um tanto quanto negativos, ainda assim “Lado a Lado” serve de

ilustração para se refletir sobre a questão do negro na sociedade brasileira do passado e do

presente. Desse modo, mesmo dando maior ênfase na história do negro, a novela permaneceu

embranquecida. É justamente isso que nos chamou a atenção. Por que será que os produtores

da novela não formaram um elenco exclusivamente de atores e atrizes negros? Quais seriam

os motivos pelos quais não se optou por essa escolha? Apesar da trama da novela girar em

torno da amizade de Isabel e Laura, e do romance delas com seus amados, Zé Maria e Edgar

Vieira, o cenário de fundo, o contexto histórico e social era voltado para a narrativa da cultura

negra. Entretanto, qual é a narrativa central no enredo da novela? Parece-nos difícil de

responder de forma imediata. Mas, ao observar o quadro do elenco da novela, pode-se

perceber onde estaria essa ênfase. Por esse prisma, “Lado a Lado”, mesmo tendo como

108

proposta apresentar a história e o drama da população negra no início do século XX, parece

permeada pela ideologia do branqueamento.

Desse modo, metodologicamente para analisar essa novela, optamos por uma

observação empírica ao assistirmos a mesma quando ela foi exibida no ano de 2012. Também

realizamos consultas e investigações sistemáticas no próprio site oficial da novela, que ainda

está no ar, de modo pormenorizado, cuja importância foi buscar elementos detalhados dessa

produção para fundamentar nossa pesquisa.

Assim, para explorar a dimensão empírica e discutir mais sobre a problemática racial,

trazemos transcritos alguns diálogos de personagens negros e brancos, disponíveis em vídeos

no site da novela, que compõem o drama novelístico, e relacionamos esses diálogos com

aspectos históricos, sociais e culturais enfrentados pela população negra no período a que se

refere. Dessa forma, podemos chamar a atenção para a história de Chico, jogador de futebol

negro, que para conseguir jogar no time do clube em que trabalhava, teve que se pintar com

pó-de-arroz. Essa história é baseada em um fato real que ocorreu no início do futebol no

Brasil.

Destacamos também a ação política de Zé Maria, a dança de Isabel e as práticas

religiosas e a solidariedade de tia Jurema. Por isso, a escolha da novela “Lado a Lado” nos

pareceu importante para uma análise mais detalhada, considerando-se seu recorte racial, pois,

ao possibilitar ver na televisão, principalmente em telenovela, a história do negro, ela acabou

essencializando sua trama. Talvez, nesse aspecto, “Lado a Lado” serva de modelo para se

estudar a ideologia do branqueamento, a discriminação racial e os diversos preconceitos em

relação ao negro, no âmbito escolar, fundamentado na Lei 10.639/2003, com o objetivo de

desconstruir essas noções, afirmando a identidade negra. Mas, está discussão não será abordar

nesse capítulo porque não é seu escopo principal. Apenas tocaremos, de maneira breve sobre

isso, nas considerações finais. Sugerimos está reflexão, acerca do conteúdo dessa novela,

somente como uma possibilidade de aplicação no campo educacional. A seguir, nos próximos

itens, vamos analisar a telenovela enunciada.

3.1. Especificações e breve resumo da novela “Lado a Lado”

“Lado a Lado” é uma novela da Rede Globo de Televisão, exibida no horário das 18

horas, no período de 10 de setembro de 2012 a 8 de março de 2013, com 154 capítulos.17 Teve

17 Cf. em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/lado-a-lado/lado-a-lado-fontes.htm

e também em: http://gshow.globo.com/novelas/lado-a-lado/index.html

109

uma audiência média de 18,3 pontos. Escrita em parceria pelos autores João Ximenes Braga e

Claudia Lage, esta novela contou com cinquenta e seis personagens. Desse total, dezesseis

eram negros (pretos e pardos). As outras quarenta personagens eram brancas, conforme

demonstrado no quadro 1.

Quadro 1 – Elenco e as personagens da novela “Lado a Lado”

Total de atores/atrizes brancos e seus

personagens – 40

Total de atores/atrizes negros e seus

personagens – 16

Ator/Atriz Personagem Ator/Atriz Personagem

Thiago Fragoso Edgar Vieira Lázaro Ramos Zé Maria dos

Santos

Marjorie Estiano Laura Assunção Camila Pitanga Isabel Nascimento

Patrícia Pillar Constância Assunção Sheron Menezzes Berenice

Emílio de Mello Carlos Guerra Milton Gonçalves Afonso

Nascimento

Caio Blat Fernando Vieira Zezeh Barbosa Tia Jurema

Cassio Gabus Mendes Bonifácio Vieira Marcello Melo Jr. Caniço

Alessandra Negrini Catarina Laís Vieira Etelvina

Maria Clara Gueiros Neusinha Rui Ricardo Diaz Percival

Paulo Betti Mário Cavalcanti Ana Carbatti Zenaide

Tuca Andrada Frederico Martins César Mello Chico

Rafael Cardoso Albertinho Assunção Cauê Campos

(Ator mirim)

Elias

Maria Padilha Diva Celeste Jorge Amorim

(Ator mirim)

Olavo

André Arteche Luciano Jurema Reis Gilda

Isabela Garcia Celinha Zeca Gurgel

(Ator mirim)

Tião

Werner Schünemann Dr. Assunção Ana Luiza Abreu

(Atriz mirim)

Madá

Klebber Toledo Umberto Marcio Rangel

(Ator mirim)

Vilmar

Daniel Dalcin Teodoro _ _

110

Bia Seidl Margarida _ _

Guilherme Piva Delegado Praxedes _ _

Débora Duarte Dona Eulália _ _

Susana Ribeiro Teresa _ _

Beatriz Segall Madame Besançon _ _

Maria Eduarda Eliete _ _

Cláudio Tovar Padre Olegário _ _

Álamo Facó Vasco

Queirós(Quequé)

_ _

George Sauma Jonas _ _

Christiana Guinle Carlota Passos _ _

Priscila Sol Sandra _ _

Juliane Araújo Alice Passos _ _

Maria Fernanda

Cândido

Jeannete Dorleac _ _

Rhaisa Batista Esther _ _

Tião D'Ávila Isidoro _ _

Romis Ferreira Luiz Neto _ _

Luisa Friese Matilde _ _

Ana Paula Lopes Luzia _ _

Rogério Freitas Haroldo _ _

Eliz David

(Atriz mirim)

Melissa _ _

Marcos Acher Rodrigues _ _

Daniel Marques Paiva _ _

Thiago Amaral Gustavo _ _

Antes de passarmos a outros detalhes da novela, seria importante salientar que, de

acordo com o quadro 1, a quantidade de atores e atrizes brancos é mais do que o dobro dos

atores e atrizes negros.

111

Em relação a história principal da novela, gravita em torno das personagens Isabel

Nascimento (negra), interpretada por Camila Pitanga, e Laura Assunção (branca), animada

pela atriz Marjorie Estiano. Tanto Isabel Nascimento quanto Laura Assunção buscam um

futuro de igualdade em um contexto histórico (início do século XX) marcado pelo machismo,

pelas desigualdades sociais e raciais. Ambas as personagens vivem os encontros e

desencontros dos seus amores: Isabel com José Maria dos Santos (Lázaro Ramos) e Laura

com Edgar Vieira (Thiago Fragoso). Enquanto que para Isabel, o amor de Zé Maria era uma

certeza, para Laura, ainda não estava muito certo o que ela sentia por Edgar Vieira, pois o

casamento com ele poderia frustrar sua necessidade de liberdade. É ao redor desses acertos e

desacertos amorosos, que João Ximenes Braga e Claudia Lage construíram a trama amorosa

da novela. O pano de fundo dessas histórias de amor é uma época (início do século XX) em

que havia uma forte influência europeia, sobretudo francesa, na sociedade brasileira mais

elitizada, rica e branca (LADO A LADO, 2012). Assim, as personagens estão imersas nas

tendências desse período histórico, como o charme da Belle Époque, as confeitarias, os cafés,

as esperanças de uma modernidade que estava em transformação, em que as mulheres

lutavam por liberdade individual e a cultura negra por afirmação identitária.

A trama da novela se desenvolve no Rio de Janeiro, no ano de 1904, onde o fim da

monarquia prenunciava mudanças profundas para o Brasil.

Nesse cenário de transformações, um jovem casal de negros se destaca em uma roda de

samba de raiz na zona portuária do Rio de Janeiro. Eles são Isabel e Zé Maria. Ela empregada

doméstica. Ele auxiliar de barbeiro. Estão muito apaixonados e envolvidos naquele momento

de dança e alegria. Nem se lembram das dificuldades financeiras e planejam se casar (LADO

A LADO, 2012).

Em outro ponto da cidade do Rio de Janeiro, em uma bela mansão localizada em

Botafogo, encontra-se Laura Assunção, noiva de Edgar Vieira, preparando o vestido de

casamento. Ela irá se casar no dia seguinte, mas não com o mesmo entusiasmo de Isabel.

Laura almeja uma vida mais independente, pois é inteligente, idealista e pretende trabalhar,

coisa que não era bem vista pela sociedade da época. Entre essas coisas também sonha em ser

escritora. A mãe, dona Constância, interpretada por Patrícia Pilar, se opõe a essas ideias da

filha (LADO A LADO, 2012).

O noivo de Laura, Edgar Vieira, apesar de ser advogado acabou indo para o

jornalismo. O pai dele, o senador Bonifácio, representado pelo ator Cássio Gabus Mendes,

tem outros planos para o jovem advogado e jornalista. Quer que ele assuma os negócios da

empresa da família guiando os seus rumos (LADO A LADO, 2012).

112

Já no caso de Isabel e Zé Maria, a vida não está nada fácil. O cortiço onde moram está

ameaçado pela modernização da cidade. Corria um boato de que a polícia pretendia invadir o

cortiço, expulsar seus moradores e demoli-lo para a realização do projeto de modernização.

Segundo Bardanachvili (2012a), o presidente da república na época incumbiu o engenheiro e

prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, mais o médico sanitarista e diretor do

Serviço de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, de liderar firmemente as reformas propostas de

higienização da cidade. A polícia nesse evento chegava sem avisar e muitas vezes, durante à

noite, enxotando os moradores dos cortiços. Popularmente esse despejo compulsório ficou

conhecido como “bota abaixo”.

Entretanto, mesmo sabendo disso, Isabel e Zé Maria adiam por alguns dias a

preocupação com o despejo. E afirmam para o pai de Isabel, o seu Afonso, vivido pelo ator

Milton Gonçalves, que está muito preocupado com a situação do “bota abaixo”, que após se

casarem pensarão em novo lugar para morarem (LADO A LADO, 2012).

Outro episódio importante na trama é que Zé Maria esconde do seu Afonso e da Isabel

o fato de ser um capoeirista conhecido como Zé Navalha. Ele esconde isso porque naquele

tempo a capoeira era extremamente marginalizada. Não era vista como esporte, mas como

uma arma usada por marginais (LADO A LADO, 2012). Mas, depois que descobre essa

identidade oculta de Zé Maria, Isabel de, certa maneira, procura mudar sua opinião em relação

a capoeira. O quadro 2 traz um diálogo de Zé Maria e Isabel, cuja discussão gira em torno da

importância da capoeira.

Quadro 2

Descrição da cena: Em uma cena exibida em setembro de 2012, Isabel e Zé Maria

conversam na casa de tia Jurema sobre seu relacionamento e a capoeira, e como ela é

marginalizada, sempre ligada à ideia de malandragem e bandidagem.

Isabel: Aqui a gente vai poder conversar com mais calma. Tia Jurema disse que a Berenice

está longe.

Zé Maria: Estou com uma saudade danada de você!

Isabel: Zé... Eu tenho uma coisa importante para te dizer.

Zé Maria: Tá! Antes, eu queria somente te explicar umas coisinhas que tenho obrigação.

Todo esse mal entendido, a culpa é minha. Eu sei que você pensou mal de mim, por causa

da capoeira, por eu não ter te contado nada.

113

Isabel: Eu encontrei a fantasia de diabo nas suas coisas. Era você mesmo?

Zé Maria: Hum!! Era. Mas eu coloquei aquela fantasia para brincar. Brincar, meu amor.

Aí depois, um anjo apareceu na minha frente e me apaixonei, ali, de primeira.

Isabel: Zé! Por que você não me contou isso antes?

Zé Maria: Ah, meu amor, era que você era sempre tão firme quando falava de capoeira,

que no início do namoro achei melhor a gente se conhecer mais até eu puder te contar. E

depois, o tempo foi passando, foi passando, e não te contei, nem sei porque.

Isabel: Encontrei o chapéu nas suas coisas, Zé. Você era um Guaiamum! Um bando de

bandido!

Zé Maria: É ... Isabel. O meu pai, era um Guaiamum. E eu tenho muito orgulho dele. Meu

amor, quando os jornais e a polícia falam que a capoeira é bandidagem, é porque é coisa

de preto. Mas, essa foi a única maneira que o nosso povo encontrou, na época da

escravidão, para poder se defender da violência dos Capitães do Mato. Eu sei, eu sei, que

muitos viraram bandidos. Mas mesmo assim, quando os brancos proibiram a capoeira, é

porque eles estavam com medo que nosso povo se juntasse para lutar contra essas

injustiças. Meu amor, eu não... A escravidão já acabou. Mas, ainda falta muito para gente

conquistar respeito, uma vida digna.

Isabel: Mas, não é com briga de rua que a gente consegue isso.

Zé Maria: É! Mas, capoeira não é uma briga. É uma luta também. Ah! Os brancos de Bota

Fogo, não adoram esses esportes que vêm da Inglaterra?! Então, porque o que é nosso não

pode ser considerado esporte também?

Isabel: Você está certo. Você está certo. Quem sabe se você tivesse me dito isso antes, eu

não ia achar que você era bandido quando descobri da capoeira. Quem sabe se a Berenice

não tivesse passado a perna na gente. Se eu tivesse recebido o recado. Vai ver se você

tivesse da... Se você não tivesse dado o nome falso na delegacia, a gente tinha se

encontrado. Zé, isso é um monte de talvez. O que aconteceu de verdade? Ah, isso é tão

difícil para mim.

Está cena evidencia que Isabel começa a compreender a importância histórica da

capoeira na cultura do povo negro, e como ela foi inicialmente usada para defender os negros

escravizados no período escravocrata. A referida cena enfatiza a capoeira como um elemento

cultural de significativa presença na formação da identidade nacional brasileira, que é plural e

diversa.

Voltando ao caso de Isabel e Laura, apesar de estarem em posições sociais opostas, se

conhecem na igreja, no dia do casamento, em seus trajes de noivas. Mas Isabel tem o

casamento atrasado por um motivo inesperado: Zé Maria não aparece à cerimônia. Mas isso

não significa que ele abandonou à noiva. O que ocorreu foi que, a caminho para a igreja, Zé

Maria encontra Caniço, interpretado pelo ator Marcelo Melo Júnior, avisando-o que o cortiço

114

está preste a ser derrubado. Caniço e um grupo de capoeirista intenciona impedir a ação da

polícia. Zé Maria vai à luta com Caniço e o grupo de capoeiras, e é preso no final do conflito.

Perde assim o casamento com Isabel, deixada no altar (LADO A LADO, 2012). Laura, a outra

noiva, apesar da indecisão, casa-se com Edgar Vieira com toda pompa.

Com o casamento frustrado, Isabel e seu pai, ao chegarem ao cortiço, descobrem que

não tem mais onde ficar, pois “o bota abaixo” deixa-os desabrigados. Isabel e seu Afonso

encontram solidariedade nos vizinhos, de alguns amigos e juntos mudam-se para o Morro da

Providência, na zona portuária.

Zé Maria, depois de um lapso de tempo, é solto e vai ao encontro de Isabel. Esse

encontro é permeado pela suspeita e hesitação. O capoeirista elucida o que aconteceu e a

situação se resolve com Isabel e os dois voltam a ficar juntos. Porém, algo aconteceu nesse

entremeio da prisão de Zé Maria. Isabel manteve um relacionamento passageiro com o irmão

de Laura, Albertinho Assunção, interpretado pelo ator Rafael Cardoso. Zé Maria descobre o

que aconteceu e se separa de Isabel.

Laura deixa de ter dúvidas em relação ao casamento com Edgar, e se tornam um casal

apaixonado. Entretanto, o relacionamento entre eles sofre um abalo quando Laura fica

sabendo que Edgar irá viajar para Portugal. Ele vai de qualquer maneira, mas pede para Laura

aguardá-lo e ter confiança no que está fazendo (LADO A LADO, 2012).

Decepcionada e triste, por conta da separação do auxiliar de barbeiro, Isabel consegue

um emprego de camareira no Teatro Alheira. Esta era uma companhia de comédia dirigida

por Mario Cavalcanti, personagem do ator Paulo Betti. Nessa companhia a expectativa está

em torno da chegada de uma dançarina francesa Mlle. Dorleac, interpretada pela atriz Maria

Fernanda Cândido, que será a maior atração da temporada. Ao chegar à cidade do Rio de

Janeiro, a dançarina francesa conhece Isabel e se encanta pela sua dança de raízes afro-

brasileiras. Mlle. Dorleac convida Isabel para acompanhá-la até Paris. O problema é que

Isabel ainda nutre esperanças de voltar com Zé Maria.

A outra protagonista, Laura, também toma uma decisão revolucionária. Imaginando

que Edgar Vieira nunca a amou realmente resolve pedir o divórcio. Edgar, não satisfeito com

essa decisão, procura a todo custo reatar o relacionamento e fazer Laura mudar de ideia. Mas

não consegue.

Isabel também perde as esperanças de reestabelecer o relacionamento com o ex-noivo.

Principalmente quando descobre que Zé Maria decide se alistar na Marinha. Ele fez isso

porque ficou sabendo que sua vida corria risco, pois Caniço espalhou entre os capoeiristas

rumores de que Zé Maria os havia traído. A melhor opção era ingressar na Marinha naquele

115

momento para se proteger. Isabel, ao ficar sabendo que Zé Maria está longe, decide ir embora

com a Mlle. Dorleac para Paris.

Após o embarque de Isabel e o fim do relacionamento de Laura e Edgar, a novela terá

um lapso de tempo de seis anos, em que os dois casais irão se encontrar continuando a trama

de suas relações (LADO A LADO, 2012).

Após esta sucinta sinopse da telenovela que consideramos importante para situar o

leitor, passaremos a analisar não as estórias amorosas. Mas como essa telenovela contribuiu

para se pensar a história do negro no Brasil e a afirmação da cultura afro-brasileira.

3.2 Ideologia do branqueamento e a telenovela “Lado a Lado”: expressões da cultura

afro-brasileira

A principal ênfase das telenovelas brasileiras, independente da emissora que as

produzem, é o branqueamento e sua ideologia como norma estética, moral e cultural. Isso

pode ser observado pelo telespectador mais atento ao assistir as novelas, pois há um destaque

muito acentuado nas personagens brancas. O número de atores brancos em relação aos atores

negros é desproporcional nas telenovelas brasileiras. Essa desproporcionalidade parece se

repetir há muito tempo. Assim, enquanto que na novela “Geração Brasil” (2014), da Rede

Globo, o elenco total soma sessenta e oito atores, apenas dez desse total são negros. Essa

mesma desproporção podia ser verificada na novela “Vidas Cruzadas” (2000), produzida pela

Rede Record, em que dos trinta e cinco atores do elenco somente quatro ou cinco eram

negros. Todas as telenovelas têm essa ênfase na estética branca. Talvez a novela “Lado a

Lado” (2012) seja uma das únicas que diminuiu um pouco essa desigualdade na composição

do elenco, ao procurar enfatizar um pouco a história dos povos africanos trazidos para o

Brasil, como na cena em que Laura deseja escrever um artigo sobre a cultura do negro.

Ilustramos a cena no quadro 3.

Quadro 3

Descrição da cena: No capítulo exibido em janeiro de 2013, Laura e Isabel estão juntas

com tia Jurema. Laura tem interesse em escrever sobre a cultura negra. Isabel está

entusiasmada com a ideia. No entanto, esta cena nos parece reafirmar os estereótipos em

relação ao negro que são frequentes na sociedade, como se fossem um segmento racial

realmente apartado da nacionalidade brasileira. Esse diálogo sugere certo romantismo do

período escravista no Brasil.

116

Isabel: Pediram para Laura escrever mais um artigo.

Tia Jurema: Que bom!

Isabel: Só que ao invés de falar de meu espetáculo, é para ela falar da cultura de nosso

povo.

Laura: Só que eles não sabem que foi eu quem escrevi. Tive que, eu tive que assinar com

nome de homem, porquê de mulheres eles só publicam receitas e assuntos domésticos. Eu

não queria correr o risco de o texto não ser publicado.

Isabel: A gente pede segredo, Tia.

Tia Jurema: Segredo dado...

Isabel: A gente pede para contar sobre nossa história também. A senhora viu tudo. Viu o

batuque na senzala.

Tia Jurema: Ah, eu me lembro disso toda vez que escuto o atabaque no meu quintal. Desde

menina, sabe, quando eu dormia no chão de terra batida, dormia ouvindo a cantoria.

Laura: E vocês dançavam e cantavam, mesmo depois de um dia inteiro na lavoura?!

Tia Jurema: Ah! Um dia inteiro na lavoura, com um carrasco ou capataz com um chicote

atrás da gente. Pouca água, pouca comida. Muito escravo no tronco. E por isso mesmo que

a gente cantava e dançava. Que era a única coisa que a gente podia fazer, que era da

gente. Que não tinha se perdido em Navio Negreiro e nem debaixo da chibata.

Laura: Posso escrever sobre isso?

Tia Jurema: Claro que pode. Agora, não sei porque uma moça branca iria querer falar

sobre a gente, não é?!.

Isabel: A Laura é diferente, Tia.

Laura: Não, mas não deveria ser Isabel. A senhora está certa em estranhar. Mas nada disso

é indiferente para mim. Eram meus pais, meus avós que estavam lá na Casa Grande. Eram

de lá que eles mandavam erguer o tronco, entregavam o chicote na mão do capataz. Essa

história é importante para mim também.

Tia Jurema: Que bom que você pensa assim. Aliás, o que não falta é história para contar

sobre meu povo (risos). Uma vez...

Dessa maneira, os estereótipos em relação ao branco são constantemente apresentados

nas telenovelas carregados de positividades, tais como papéis de destaque na trama, como

pessoa rica e bem sucedida, loiro ou loira insinuando subjetivamente que o belo é apenas

atributo dos brancos. Sem mencionar que a formação do elenco das novelas privilegiam esses

atores. Já os estereótipos em relação ao negro quase sempre são negativos, como

117

malandragem, preguiça, vadiagem e excluído social. Além disso tem pouca representação de

sua estética nas telenovelas. Mas, o que seriam os estereótipos? Como são criados? O que de

fato eles representam? Nessa perspectiva, Luís Mauro Sá Martino (2009) nos auxilia a

responder essas indagações sobre as características dos estereótipos.

Estereótipos são imagens mentais criadas pelo indivíduo a partir da

abstração de traços comuns a um evento previamente vivido. A partir da

experiência com alguma pessoa ou ambiente constrói-se um estereótipo ou

representação que permite identificar situações semelhantes – e aplicar a elas

a representação anterior. Os traços comuns da experiência anterior são

mantidos na memória e comparados com os da experiência atual, garantindo

a identificação. Nesse sentido, o estereótipo é um conhecimento imediato e

superficial, ganhando em tempo o que perde em profundidade. Essa

representação, quando utilizada por um grande número de pessoas, tende a

ganhar status de verdade (MARTINO, 2009, p. 21).

Os estereótipos seriam criados então pela sua repetição. Isso possibilita, de acordo com

Martino (2009), condições de interpretar a realidade de maneira mais rápida, identificando

com maior velocidade a situação. “O resultado facilita as relações sociais, bem como a vida

em sociedade – os estereótipos explicam o que está diante dos olhos, permitindo formulação

rápida de estratégias de ação em uma situação” (MARTINO, 2009, p. 21). A não presença de

estereótipo implicaria em maior gasto de tempo para se compreender uma dada situação ou

evento.

Quando uma pessoa vê outra se aproximando em um lugar deserto, de noite,

com um canivete na mão e olhando feio, não precisa pensar muito para

entender o que vai acontecer: o estereótipo “assalto” vem à mente. Sem

estereótipos, ela seria a pessoa armada e se perguntaria: “O que será que ela

quer?”, com evidente prejuízo (MARTINO, 2009, p. 21-22).

Martino (2009) afirma que um olhar puro, sem estereótipos seria impossível e não

teria sentido. O que o estereótipo representa de seu objeto não estaria totalmente errado.

Entretanto, seria uma representação caricatural. O seu sentido positivo está relacionado à

conscientização de seus limites. A telenovela “Lado a Lado” cria (pelo menos em parte, pois

não é tanto branqueada em relação as outras produções) estereótipos mais positivos das

personagens negras que compõe seu enredo. Na história atual das telenovelas brasileiras,

“Lado a Lado”talvez tenha sido uma das que mais concentraram personagens negras. No

entanto, a que marcou a história e gerou muita polemica foi a novela “A cabana do Pai

Tomás”, de 1969, produzida pela Rede Globo.

118

A cabana do Pai Tomás, embora tenha sido a novela que teve o maior

número de personagens negros até então, provocou uma das primeiras e

maiores polêmicas sobre a questão racial na televisão brasileira. Liderados

pelo ator e autor teatral branco, Plínio Marcos, uma série de protestos foram

realizados em São Paulo contra a escolha de um ator branco, Sérgio

Cardoso, para interpretar papel de um personagem negro, Pai Tomás. O ator

foi pintado de preto e usava rolhas no nariz e atrás dos lábios para aparentar

uma pessoa negra de nariz largo e beiçudo. Conforme depoimento [do ator]

Milton Gonçalves, a pressão foi tamanha que criou uma situação

constrangedora para Sérgio Cardoso, que também escreveu boa parte da

novela, e preocupou o alto escalão da Rede Globo (ARAÚJO, 2004, p. 91-

92).

Esta novela contava com um núcleo de atores negros importantes, como Ruth de

Souza, Isaura Bruno, Jacyra Silva, Gésio Amadeu, Jorge Coutinho e Haroldo de Oliveira.

Entretanto, o ator escolhido para fazer o papel principal, Pai Tomás, foi um ator branco.

Mesmo sabendo do talento e desempenho de Milton Gonçalves na época, os produtores da

novela preferiram um ator branco para fazer o papel de um sábio negro. Segundo Araújo

(2004) “[no] Brasil, representar outras raças, tais como negros e índios, sempre foi uma

prerrogativa unilateral dos atores euro-brasileiros, e não dos atores afro-brasileiros [...]”

(ARAÚJO, 2004, p. 95).

Contudo, as produções e a escolha do elenco nas telenovelas brasileiras mudaram ao

longo do tempo. Os estereótipos negativos em relação ao negro diminuíram. Infelizmente não

o suficiente ainda, mas não se pode negar que houve avanços. Como no caso de “Lado a

Lado”, em que um dos pares românticos protagonistas da trama era representado por

personagens vividas pelos atores negros Lázaro Ramos e Camila Pitanga. Além disso, o

personagem de Lázaro Ramos, o versátil Zé Maria, encarnava o herói engajado politicamente,

que lutou contra a demolição dos cortiços para a construção da Avenida Central, juntamente

com seu ex-companheiro capoeirista Caniço. Eles estiveram juntos nos últimos capítulos da

novela, embora em caminhos diferentes, pois não eram mais amigos, lutando na Revolta da

Vacina, ocorrida no início do século XX. A novela se vale de fatos históricos para discutir a

situação do povo negro nesse período. Essa vacinação obrigatória, ocorrida no ano 1904, era

contra a varíola e foi mais uma imposição governamental arbitrária infligida ao povo (REIS,

2012). Nesse sentido, havia um descontentamento e desconhecimento total por parte da

população sobre a verdadeira finalidade da vacina. A cena transcrita no quadro 4 ilustra isso.

Quadro 4

119

Descrição da cena: Nessa cena, que foi ao ar em outubro de 2012, tia Jurema, Etelvina, Zé

Maria e Percival, depois que estes dois chegaram de mais um confronto com a polícia,

falam sobre a obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Acreditam que ela foi feita para

exterminar de vez com o povo negro no Rio de Janeiro.

Etelvina: Há confusão de mais nessa cidade.

Tia Jurema: A gente não tem paz mesmo, não Etelvina?! Acaba um suplício, começa um

outro. Primeiro era a febre amarela. Depois, a doença dos ratos. Agora essa tal de varíola.

Mas é uma peste para cada dia.

Etelvina: Oh, Jurema! Será que o mundo está se acabando?

Tia Jurema: Ah! Se o mundo está se acabando, eu não sei. Mas que a coisa está boa, não

está não. Agora, estão invadindo as casas para obrigar o povo a tomar a vacina. Vão

metendo a agulha de qualquer jeito.

Etelvina: Deus proteja meus filhinhos!

Tia Jurema: Ah! ... Mas esse povo aqui não vem não. Essa gente da cidade nem lembra que

morro existe.

Tia Jurema: Zééé!

Etelvina: Percival! Homem de Deus! O que foi isso?! Machucou na obra, foi?

Zé Maria: Não! O quebra-quebra era bem outro, Etelvina.

Tia Jurema: Não me diga que foi na confusão da vacina?

Percival: O povo estava protestando, e a coisa ficou feia.

Etelvina: E por que você se meteu nisso, homem?!

Percival: Pelos nossos filhos, Etelvina! E também porque não sou homem de ficar parado

enquanto os outros estão na luta.

Zé Maria: Etelvina, eu sei que você não quer ver seu maridão machucado, mas a coisa é

séria.

Tia Jurema: Zé, você está sabendo de alguma coisa que a gente não está?

Zé Maria: Coisa ruim, Tia. A tal da vacina não é remédio, e nem cura varíola coisa

nenhuma. Eles injetam é doença na gente!

Etelvina: Valha-me!

Tia Jurema: Mas, por que, querem que todo mundo fique doente?

Zé Maria: De preferência que morra todo mundo junto de uma vez só!

Percival: Teve uma mulher que morreu na hora.

Tia Jurema: Primeiro acabaram com a casa da gente. Agora, querem acabar com a gente

120

mesmo de vez!

Zé Maria: É extermínio o nome disso! Querem matar os pretos e os pobres, para o Rio de

Janeiro ficar igualzinho a Paris.

De acordo com Reis (2012), a Câmara dos Deputados tinha aprovado a lei que

regulamentava a obrigatoriedade da vacinação. Impondo, assim, algumas sanções aos

cidadãos que não se vacinavam por exemplo, impedindo-os de fazer matrícula em escola,

conseguir emprego, viajar, casar e também de votar. Rapidamente os protestos ganharam as

ruas (REIS, 2012a). Na ficção, como no caso da telenovela “Lado a Lado”, Zé Maria enfrenta

a política para defender seu povo da obrigatoriedade dessa vacinação compulsória e massiva.

Os diversos enfrentamentos que o personagem realiza na novela, inspirados em contextos

sociais reais, afirma a presença, a importância e a contribuição dos negros na história do

Brasil.

Isabel como uma personagem negra e dançarina que se consagrou na França, destaca a

relevância da cultura afro-brasileira, ao mostrar, pelo menos ficticiamente, os primeiros traços

do surgimento do samba. A historiadora Bardanachvili (2013a) argumenta que Isabel não

dança ainda o samba, como nós o conhecemos hoje. Era apenas um embrião do samba que se

desenvolvia. Desse modo, ao chegar ao Brasil Isabel fez uma apresentação de sua dança que

gerou grande polêmica. Segundo Bardanachvili (2013a), as pessoas de diferentes classes

sociais, por uma questão moral, classificaram a dança de Isabel de vulgar. No jornal fictício

da novela, o “Correio da República”, o jornalista Luiz Neto, vivido pelo ator Romis Ferreira,

questionou a dança não sabendo como denominá-la, se maxixe ou samba, negando-lhe o

status de arte (BARDANACHVILI, 2013a). No entanto, a personagem Laura defende a dança

de Isabel e da cultura popular escrevendo sobre a apresentação da amiga. Bardanachvili

(2013a) aponta que, mesmo sendo uma ficção, “Lado a Lado” ilustra o universo cultural do

Rio de Janeiro no início do século XX. A sociedade da época estava sob a influência das

teorias raciais europeias, principalmente da teoria do branqueamento inserida intensamente na

mentalidade das pessoas. Possivelmente seja por isso que tudo que se referia à cultura africana

era recebido com certo desprezo e relacionado com sinônimo de inferioridade. No caso da

música, muitos intelectuais e ilustrados acreditavam que a “verdadeira” seria a erudita de

matriz eurocêntrica. A autora argumenta também que havia outros intelectuais e alguns

músicos que investiam e acreditavam em uma música brasileira. O olhar desse grupo estava

mais atento no que estava sendo feito no folclore, nas danças populares dos morros cariocas, e

no nascente samba. Gilberto Freyre e Mario de Andrade talvez fossem os principais

121

intelectuais envolvidos em disseminar a ideia de valorização da cultura popular brasileira.

Gilberto Freyre elogiava a mestiçagem como uma marca especial do país. Somente eram

possíveis os diferentes ritmos na música brasileira devido à mistura étnica e cultural. Essa

visão romântica da cultura brasileira favoreceu o predomínio de ideologias como a do

branqueamento. A novela “Lado a Lado” procurou destacar isso com a personagem de Isabel,

que, inicialmente, sofre o preconceito de dançar algo supostamente de culturas inferiores e

incivilizadas, pois as influências europeias na dança e na música eram intensas.

Para ilustrar esse aspecto do samba que está nascendo, no quadro 5, apresentamos um

diálogo de Isabel e tia Jurema sobre essa dança.

Quadro 5

Descrição da cena: Em janeiro de 2013, uma das cenas da novela, protagonizada por Isabel

e tia Jurema, fala brevemente do samba que será apresentado a uma artista francesa. Esta

cena retoma o estereotipo do negro como tendo uma aptidão quase que inata para o samba e

para as festas.

Isabel: Vim aqui para te mostrar coisa bonita e acabei me desmanchando.

Tia Jurema: O que filha!

Isabel: Olha aqui. Acho que a senhora vai gostar. Eu e a artista francesa no jornal.

Tia Jurema: Isabel você está no jornal!

Isabel: É, mas só apareci porque estou dando uma de artista, né.

Tia Jurema: Ai, não, que belezura! E, está muito mais bonita do que a francesa.

Isabel: Vou trazer ela aqui.

Tia Jurema: Aqui! Aqui onde?

Isabel: Na sua casa, ora! Amanhã de noite.

Tia Jurema: Isabel não me faça passar uma vergonha dessa. O que vou oferecer para uma

francesa tão chique.

Isabel: O que ela me pediu: música e dança. A nossa dança Tia, samba. Música dos pretos,

dos filhos de escravo. Não aquela polca importada que o pessoal chique dança em Bota

Fogo.

Tia Jurema: Bom, se é assim, a madame que se prepare porque ela vai ter um festão como

ela nunca viu na terra dela. Vou fazer sabe o que: vou fazer acarajé, aquele molhinho...

122

Bardanachvili (2013b), informa que já no final do século XIX, nos diversos bailes e

salões que frequentado pela elite, dançava-se ao ritmo da valsa de Viena e da polca polonesa.

Além dessas danças, havia o sucesso do tango espanhol e a habanera cubana. A autora propõe

que esses ritmos estrangeiros passaram por um processo de hibridização, assimilando

elementos da cultura africana, tais como o lundu, que é uma dança sensual, e o batuque. Este

último, segundo Bastos (2007) é um “[...] termo genérico para músicas de dança com raízes

africanas no Brasil” (BASTOS, 2007, p. 17). Com tal influência, os dançarinos que

executavam a polca, a valsa e os músicos que tocavam canções europeias no Brasil foram aos

poucos deixando a “pureza” dessas expressões artísticas e incorporando elementos afro-

brasileiros. Isso abriu caminho para o nascimento, por volta de 1870, do tango brasileiro, do

maxixe e do choro (BARDANACHVILI, 2013b).

Mas foi o samba que marcou profundamente a cultura brasileira. Porém, a sua origem

e formação é um pouco polêmica.

Os pesquisadores são unânimes em afirmar que a gestação do samba ocorreu

a partir das práticas culturais das classes mais baixas da população carioca

no início do século XX, num momento em que a cidade crescia através de

fluxos migratórios internos e externos e tinha sua geografia transformada por

reformas que alteraram substantivamente o panorama urbanístico e social da

capital (TROTTA, 2006, p.57).

O autor argumenta que o samba também teve autores brancos, tais como Noel Rosa e

Mário Lago.

O samba, então, não é negro, nem nacional, nem carioca, baiano, urbano, do

morro, do carnaval. Ele é um produto cultural que pode atuar como

deflagrador de uma identidade nacional, negra, carioca, etc. Todas essas

formas de identidade são apenas potencialidades, não necessariamente

realizadas ou realizáveis. Para que elas sejam evocadas e estabelecidas, é

necessário que o sujeito da ação se sinta pertencente a este ou aquele grupo

identitário e que utilize o samba para demarcar seu elo de identidade. É

preciso que esta música seja empregada como um recurso para dizer quem

você é e usada “para interpretar quem as outras pessoas são ou o que uma

comunidade aspira” (Seeger, 1992:3). Nesse instante, a narrativa de

identidade a partir da música estará evocando um sentimento de identidade

que pode se referir a componentes étnicos, geográficos, sociais ou nacionais.

No caso do samba e da grande maioria das músicas populares urbanas, a

construção identitária vai se tornando cada vez mais complexa e se

adaptando à medida que o samba vai ultrapassando as fronteiras culturais e

se tornando parte da cultura nacional, veiculado através do rádio e do disco

para a totalidade da população (TROTTA, 2006, p. 61-62).

123

De qualquer maneira, “Lado a Lado” enfatiza o samba que começa a nascer por meio

da dança de Isabel, como parte da identidade negra, afirmando a cultura afro-brasileira. As

pessoas, de modo geral, reconhecem o samba como uma contribuição africana na cultura

nacional. Apesar disso, Bardanachvili (2013b) e Trotta (2006) parecem evidenciar que a

indústria fonográfica da época e as diversas gravações dos ritmos do maxixe e do lundu

podem ter contribuído com a formação do samba como gênero musical, mais do que a própria

cultura negra. O caráter híbrido, miscigenado, e a ideologia do branqueamento na sociedade

brasileira sempre, ao longo da história, embranqueceram as raízes e o legado africano na

formação da cultura no Brasil.

Além do samba, no início do século XX, também o futebol recebeu influência afro-

brasileira. Apesar de ser um esporte cuja invenção é atribuída aos ingleses, no Brasil, ele

hibridizou-se com o componente africano. Não de forma pacífica, mas de maneira conflituosa,

dramática e permeada pelo racismo. “Lado a Lado” procura mostrar um pouco dessa história

por meio do personagem Chico, vivido pelo ator afro-brasileiro César Mello.

Segundo Ronaldo Helal e João Paulo Vieira Teixeira (2011), o futebol teria chegado

ao Brasil por volta da segunda metade do século XIX trazido pelos filhos de ingleses que

imigraram para o país. De maneira mais específica, a historiadora Luciene Reis (2013a)

complementa indicando que esse esporte chegou ao território nacional trazido por dois jovens,

Charles Miller e Oscar Cox. Eles conheceram o futebol em uma das temporadas de estudos

que tinham na Europa.

Inicialmente, o futebol era exclusivamente uma diversão praticada pela elite branca,

nos grandes Clubes aristocráticos. Era quase inacessível aos pobres e aos negros. Até porque

os materiais utilizados em sua prática eram muito caros. E as regras eram todas em língua

inglesa. Algo que os aristocratas faziam questão de preservar. No entanto, a partir do século

XX lentamente o futebol se popularizou, e os negros cada vez mais tendo acesso e um papel

importante para a consolidação desse esporte no Brasil, como foi exemplificado por meio do

personagem Chico na novela já mencionada.

Na realidade a história de Chico, pelo menos na telenovela, é polêmica e representa a

força que a ideologia do branqueamento exercia naquele momento no Brasil. No quadro 6, um

episódio que envolve Chico é bastante emblemático ao representar a atmosfera racista da

época.

Quadro 6

124

Descrição da cena: A cena, transcrita logo a seguir, foi exibida em fevereiro de 2013, e se

passa em um campo de futebol, com uma plateia relativamente grande. Albertinho pinta o

rosto, os braços e as pernas de Chico com pó-de-arroz, para que ele fique parecido com um

branco, e possa jogar sem problemas a partida de futebol. Assim, Fernando Vieira e

Umberto reclamam que a partida está preste a começar e Albertinho ainda não chegou.

Mas, quando chega, traz Chico todo maquiado com pó-de-arroz.

Fernando Vieira: Onde diabos Albertinho se enfiou, hein! Se ele não chegar agora o juiz

vai cancelar a partida e dar a vitória para o outro time.

Umberto: Olha quem está vindo ali!

Fernando Vieira: Então, é esta sua ideia brilhante. Pintar um negro de pó-de-arroz.

Albertinho: Foi a única forma dele parecer branco.

Fernando Vieira: Parecer bran...!

Umberto: Isso não vai dar certo!

Albertinho: Deixem de ser medrosos. É a única maneira da gente ganhar o jogo. De longe

ninguém vai perceber. Joga na frente comigo.

A cena continua evidenciando a admiração das pessoas pelo futebol daquele jogador,

diferente e muito habilidoso. Edgar Vieira e Carlos Guerra, estão assistindo à partida de

futebol e admiram as jogadas, mas acham a cor do rosto dele muito esquisita. Nesse

momento, Zé Maria entra no campo de futebol para retirar o amigo daquela situação que

considera humilhante. No entanto, isso acontece depois de algumas cenas mostrando

jogadas e os gols de Chico.

Carlos Guerra: Olha! Esse jogador Edgar, ele não estava na última partida?

Edgar Vieira: Não, não. O Theodoro se machucou durante o treino, e ele entrou para

substituí-lo agora. Foi uma excelente troca, porque, como joga o cidadão.

Carlos Guerra: Excelente!

Após mais algumas cenas mostrando jogadas de Chico, Edgar Vieira e Carlos Guerra

apontam que:

Edgar Vieira: Tem alguma coisa estranha com este jogador, hein!

Carlos Guerra: É, tem sim: um talento acima do normal.

Edgar Vieira: Não, não é isso. Tem alguma coisa estranha com ele. Com... O rosto dele

está esquisito. Olha!

Carlos Guerra: Tem razão Edgar. O que está acontecendo?

125

Logo em seguida, Zé Maria entra no campo de futebol abruptamente e vai ao encontro de

Chico.

Carlos Guerra: O que é que Zé Maria está fazendo ali?

Chico: O que você está fazendo aqui Zé?

Zé Maria: Vim cá salvar sua hora. Limpa essa cara irmão.

Fernando Vieira: Satisfeito Albertinho? Você chama um preto para jogar com a gente, e

logo vem outro atrás.

Zé Maria: Eu não tenho o menor prazer de estar aqui. Eu preferia estar no morro que é

lugar de gente decente sem preconceito.

Fernando Vieira: Faça isso! Pegue seu amigo e leva embora daqui antes que eu chame a

polícia.

Zé Maria: Foi justamente isso que vim fazer. Tirar meu amigo desse circo que esse imbecil

aqui armou.

Umberto: Cale sua boca!

Zé Maria: A Marinha inteira não me calou, e não vai ser um borra botas que nem você que

vai me calar. Vamos, Chico!

Albertinho: Ele fica! Ele é o melhor jogador de nosso time, e ele vai ficar.

Zé Maria: O Chico não vai participar dessa papagaiada. Vamos irmão! Chico, você vai se

sujeitar a uma humilhação dessas? Todo pintado de branco, que nem um palhaço pra todo

mundo rir de você.

Albertinho: Se for o problema... (Nesse momento tira a camisa e a oferece ao Chico)

Fernando Vieira: O quê que isso, Albertinho! O quê que isso, Albertinho!

Albertinho: Pega a minha camisa e tira esse pó-de-arroz do rosto.

Zé Maria: Não, não se faz de bom moço, porque você só está preocupado em ganhar o

jogo.

Albertinho: Claro! Sem ele a gente não tem chance. Pega, Chico! Tira esse pó-de-arroz do

rosto.

Chico, nesse momento, passa a camisa de Albertinho no rosto. Todos que estavam

assistindo ao jogo ficaram surpresos ao perceberem que o jogador estava com uma

maquiagem de pó-de-arroz.

Zé Maria: Não se curva Chico! A gente lutou tanto para acabar com a chibata na Marinha,

para deixar sua honra ser açoitada desse jeito irmão. Olha em volta. Olha! Esse mundo

não é nosso Chico. Eles não querem a gente aqui. O quê que você vai querer ficar fazendo

126

aqui, irmão?!

Chico: Você está certo Zé, está certo, está certo... Eu não devia ter vindo. Vamos embora!

Albertinho: Não! Fica!

Zé Maria: Não, espera aí, será que vou ter que dar algumas pancadas em sua cabeça para

você entender que ele não vai mais jogar.

Albertinho: Me escuta! Eu sei que foi uma ideia infeliz fazer ele passar pó-de-arroz no

rosto, mas foi a única maneira que encontrei dele não ser expulso. Ninguém iria aceitar

aqui um negro jogando futebol. Mas agora que todo mundo viu o talento de seu amigo, não

importa se ele é preto ou branco. Todo mundo só quer ver um futebol bem jogado aqui.

Zé Maria: Eu já falei o que eu acho, irmão! Por mim a gente iria embora daqui agora. Mas

o que você decidir está decidido.

Na cena seguinte, Chico decide ficar e expõe suas razões.

Zé Maria: Tem certeza que é isso que você quer?

Chico: Desculpa meu irmão. Desculpa! Eu sei, eu sei que futebol é esporte de branco, é

esporte de rico. Mas gosto tanto de jogar. Eu sei, claro, que tudo que você disse é muito,

muito importante. A gente tem mesmo é que se valorizar. Mas é que nesse momento, aqui,

agora, eu não vejo uma maneira melhor de mostrar o meu valor, do que continuar em

campo, e ensinar para essa gente como é que se joga.

Zé Maria: Então, boa sorte. Agora joga de cara limpa! Nunca mais esconda quem você é.

Zé Maria abraça Chico, vira as costas, e vai embora.

Fernando Vieira: Ótimo! Mas só vou voltar a jogar se o outro crioulo sair também.

Albertinho: Então, pode ir embora Fernando, porque entre você e o Chico, eu fico com ele.

Os jornalistas Carlos Guerra e Edgar Vieira comentam:

Carlos Guerra: Se eu não tivesse visto, eu não acreditava. Um jogador negro, que usa pó-

de-arroz para se passar por branco.

Edgar Vieira: Resta saber o que o juiz vai decidir.

Carlos Guerra: Pelo que eu saiba, não existe regra que proíba um negro de jogar futebol.

Carlos Guerra: Ah! O juiz teve bom senso.

Edgar Vieira: Quero saber o que Zé Maria achou disso tudo. Confesso que estou mais

curioso com isso, do que com o resultado do jogo.

127

Carlos Guerra: Eu também. Vamos atrás dele!

Edgar Vieira: Vamos, vamos!

Quadro 7

Descrição da cena: No capítulo exibido em fevereiro de 2013, Carlos Guerra e Edgar

Vieira interpelam Zé Maria sobre o ocorrido com Chico no campo de futebol.

Edgar Vieira: Então, foi para esse seu amigo que pedi emprego para o Fernando no clube.

Zé Maria: Desculpe, Edgar, mas nem me fala de seu irmão. Porque, o Chico já tinha

comentado comigo que ele era o pior dos racistas que tem por lá. Mas dessa vez senti na

pele.

Edgar Vieira: Oh, meu Deus! É desse nível?!

Zé Maria: É. Ele se comporta ainda como se tivesse na época da escravidão. Tem alma de

feitor.

Carlos Guerra: Oh Zé! Fala mais sobre seu amigo. Fiquei impressionado com o

desempenho dele no jogo. O homem é um ás no futebol.

Zé Maria: Chico é meu irmão. A gente já viveu muita coisa juntos nessa vida. A gente lutou

juntos na Revolta da Chibata. Ele sempre de cabeça erguida. Agora não entendi, porque

que ele se sujeitou a um papel desses. Mas é que tá, precisando de dinheiro, e fraquejou

pelo motivo que a gente sempre fraqueja, que é o que?

Carlos Guerra: Mulher!

Zé Maria: Mulher, por exemplo.

Edgar Vieira: Claro, claro!

Zé Maria: Está de namorada nova, está empolgado.

Carlos Guerra: Mas como eles chegaram a esse ponto de querer fazer ele passar por

branco.

Zé Maria: Você se surpreende realmente com isso Guerra? Futebol é esporte de rico.

Quem frequenta aquele clube lá é que nem o tal de Albertinho. Gente que foi filho de quem

foi dono de escravos. Bom, deixa eu ir que tenho encontro com anunciantes.

Carlos Guerra: Isso é importante.

Edgar Vieira: Até logo, Zé Maria.

Zé Maria: Até logo, Edgar.

Edgar Vieira: Ah, Guerra, eu estou, estou pasmo com as atitudes do Fernando, viu!

128

Carlos Guerra: Edgar, eu quero que você... Ou melhor, o Antônio Ferreira faça uma

matéria sobre isso.

A história de Chico contada na novela baseou-se em um fato real sucedido com o

jogador Carlos Alberto, nos anos 1914. Não era permitido aos negros (pretos e pardos) jogar

futebol nos Clubes da aristocracia, como o Fluminense, Flamengo, Botafogo, Bangu. Esse

esporte era marcadamente cultivado pela elite branca que frequentava esses espaços sociais

ricos e luxuosos. Para serem aceitos nesses clubes, os jogadores negros, como Carlos Aberto,

tinham que passar na pele o pó de arroz. Segundo Mario Filho (2003) era o momento que

Carlos Aberto mais receava.

[Carlos Aberto tinha] vindo do América, com os Mendonças, Marcos e Luís.

Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém

reparou que ele era mulato. Também Carlos Aberto, no América, não quis

passar por branco. No Fluminense foi para o primeiro time, ficou logo em

exposição. Tinha de entrar em campo, correr para o lugar mais cheio de

moças na arquibancada, parar um instante, levantar o braço, abrir a boca

num hip, hip, hurrah (FILHO, 2003, p. 60).

Mario Filho (2003) relata ainda que:

Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por

isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó de arroz, ficando quase

cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo

de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto, cinzento de tanto

pó de arroz (FILHO, 2003, p. 60).

Nesse período inaugural do futebol brasileiro, o artifício e a estratégia de

branqueamento utilizado por Carlos Alberto não foram as únicas na história desse esporte no

Brasil. Mario Filho (2003) assinala outro caso de dissimulação e disfarce do fenótipo negro e

da identidade afro-brasileira, imposta pelo contexto racial da época, e que entrou para as

crônicas históricas do futebol. O caso de Arthur Friedenreich, jogador habilidoso, conhecido

como “Fried” ou “El Tigre”, filho de um comerciante alemão e uma lavadeira negra, que

também se passava por branco. Entretanto, conforme explica o autor, Friedenreich tinha olhos

verdes e um tom azeitonado no rosto moreno. Mas se não fosse os cabelos, podia-se passar

por branco. Assim, de acordo Filho, os cabelos de “Fried” eram fartos, mas muito duros. Ele

levava meia hora para amassar os cabelos.

129

[primeiro] untava o cabelo de brilhantina. Depois, com o pente, puxava o

cabelo para trás. O cabelo não cedendo ao pente, não se deitando na cabeça,

querendo se levantar. Friedenreich tinha de puxar o pente com força, para

trás, com a mão livre segurar o cabelo. Senão ele não ficava colado na

cabeça, como uma carapuça (FILHO, 2003, p. 61).

Para Friedenreich apenas o pente não bastava. Era preciso outras artimanhas para fazer

o cabelo assentar. Ele assim amarrava uma toalha na cabeça fazendo dela um turbante

(FILHO, 2003). Esperava por horas para que o cabelo ficasse do jeito que deseja: com aspecto

de liso. Mario Filho (2003) conta que Friedenreich era sempre o último a entrar no campo.

Não queria chamar a atenção, mas era quase impossível, porque primeiro entrava atrasado, e,

segundo, o visual de seu cabelo despertava olhares curiosos, pois parecia postiço (FILHO,

2003).

As crônicas de Mario Filho (2003), especialmente em sua obra sobre o negro no

futebol, podem parecer, em um primeiro momento, engraçadas, cômicas, mas no fundo

revelam o drama racial vivido pelos jogadores negros no Brasil no início do século XX. Mario

Filho não faz uma crítica contundente da situação racial do país. Na realidade faz apologia a

uma suposta democracia racial instalada no futebol nessa época. No entanto, Antônio Jorge

Soares (1999) faz uma crítica muito pertinente sobre a obra do jornalista pernambucano

radicado no Rio de Janeiro.

A crítica principal desse autor se refere à interpretação que muitos cientistas sociais

fazem ao estudar a origem, a história e as relações raciais no futebol brasileiro tendo como

referência incontestável a obra de Mario Filho. Soares (1999) justifica isso ao assegurar que

há um discurso politicamente correto na obra de Mário Filho, que continua sendo

reproduzido, pelo que o autor categoriza de novos narradores. Dessa maneira, eles se

respaldam em uma obra com um forte traço romântico e prosador. Pois, Mario Filho tinha

uma escrita eloquente que envolvia a todos, sobretudo ao ressaltar as qualidades e os dramas

vividos pelos negros no futebol brasileiro (SOARES, 1999). Com isso, o autor postula que a

obra de Mario Filho não seria uma fonte segura para estudar o futebol brasileiro e a

problemática racial no contexto histórico que o envolvia.

Por outro lado, o sociólogo Ronaldo Helal e o antropólogo Cesar Gordon Jr. (1999)

rebatem os argumentos de Soares, enunciando que o autor induz seus leitores, por meio de

suas concepções, a conclusões perigosas e precipitadas acerca do “O Negro no Futebol

Brasileiro” (HELAL, GORDON JR. 1999). A dupla aponta que as conclusões de Soares são,

desse modo, uma resistência ou até mesmo uma recusa de perceber a obra de Mário Filho do

ponto de vista historiográfico. Diante do que fora exposto, percebemos que a novela “Lado a

130

Lado”, mesmo sendo uma ficção, contribuiu, a exemplo da obra de Mario Filho, mas sem o

peso histórico e os detalhes desta última, com a narrativa da história do futebol e sua

assimilação pelos brasileiros. Em que inicialmente apenas a elite podia praticá-lo. Isso foi

ilustrado na novela pelos personagens Albertinho Assunção (Rafael Cardoso) e Fernando

Vieira, interpretado por Caio Blat. Na trama, ambos pertenciam à elite carioca. Wesley

Pereira Grijó (2013resume da seguinte forma o encontro do rico Albertinho Assunção e do

excelente, embora amador, jogador de futebol Chico.

Na trama, Chico era um exímio jogador de futebol, pois aprendeu quando

era marinheiro e morou na Inglaterra. Ele foi trabalhar no clube onde

Albertinho e seus amigos ricos praticavam o esporte. Ao perceber a

habilidade do empregado com a bola, Albertinho convidou-o para fazer parte

de seu time em troca de pagamento. Como negros não podiam praticar o

esporte, os outros rapazes ricos e brancos se opuseram à presença de Chico

nas competições. A solução encontrada foi passar pó de arroz no rosto do ex-

marinheiro para que assim pudesse competir junto com os atletas brancos.

Tal medida fez com que o jogador fosse alvo de preconceito pelas pessoas e

criticado por Zé Maria que pediu ao amigo que não se sujeitasse a tamanha

humilhação. (GRIJÓ, 2013, p. 12).

Essa situação exibida por meio do personagem Chico foi um episódio (que já

expusemos anteriormente com maiores detalhes) inspirado em acontecimento real ocorrido

com o jogador negro Carlos Aberto, no clube Fluminense, em que usava pó de arroz para

dissimular sua cor e entrar em campo (GRIJÓ, 2013). Mas, no caso de “Lado a Lado”, Zé

Maria tenta resgatar a dignidade do amigo interferindo na partida de futebol e procurando

retirá-lo daquela condição constrangedoramente racista. Novamente, Zé Maria aparece como

um militante negro consciente do racismo que a sociedade daquela época praticava em relação

aos negros. Afirmando assim, a identidade negra e o sentimento de pertencimento racial desse

grupo. “Lado a Lado” tratou essa questão abertamente, diferente de outras produções

novelísticas que simplesmente repetem os mesmos clichês raciais, reiterando a ideologia do

branqueamento.

Outro destaque importante da cultura e da identidade negra que “Lado a Lado”

proporcionou diz respeito às tias baianas e suas relações com a história do samba e com o

candomblé.

Em “Lado a Lado”, uma dessas tias foi protagonizada pela atriz Zezeh Barbosa. Ela

desempenhava o papel de tia Jurema, importante personagem no contexto da novela para a

manutenção da cultura afro-brasileira (GRIJÓ, 2013). Porém, é alvo de preconceito e

intolerância religiosa. No quadro 8 destacamos um diálogo que evidencia isso.

131

Quadro 8

Descrição da cena: Isabel trabalha na casa de Madame Besançon, uma senhora francesa,

que depois de um desentendimento com Isabel voltou para a França. Mas em uma das

cenas, Madame Besançon pede para Isabel se afastar de tia Jurema, por acreditar que ela

não é uma boa companhia para a moça, pois pratica bruxarias. Em uma cena exibida em

setembro de 2012, Isabel recebe aumento por trabalhar como empregada doméstica na casa

da senhora francesa e ouve as queixas dela em relação a tia Jurema.

Madame Besançon: Pronto! Conforme o combinado, está aqui com o aumento, noventa mil

reis.

Isabel: Isso é muito bom Madame. Muito obrigada!

Madame Besançon: Você merece! Olha Isabel, está uma coisinha (sic) que quero falar

para você já faz algum tempo, sabe. Aquela senhora, a sua amiga, a tal de Jurema.

Isabel: O quê que tem a tia Jurema?

Madame Besançon: Olha! Agora que nossa relação de trabalho está resolvida, eu gostaria

que você deixasse de ver aquela senhora, sabe.

Isabel: Deixar de ver a tia Jurema!? Mas por quê?

Madame Besançon: Não é uma pessoa adequada, sabe. Ela pratica certa sorcellerie aí...

Quer dizer, como é que chama isso? Bruxaria, sabe.

Isabel: Desculpe Madame. Não é bruxaria. É Candomblé, uma religião assim como a

nossa, o Catolicismo. E como toda religião merece nosso respeito.

Madame Besançon: Isabel, que tolinha você é! Comparar essa dança tribal, é assustadora,

como religião.

Isabel: Eu sou sua empregada, e tenho um imenso respeito pela senhora, mas minha vida

particular, prefiro eu mesma cuidar.

Madame Besançon: Mas eu prefiro que você tenha um conversar particular com o padre

Olegário. E, logo!

Em uma outra cena, tia Jurema é presa por causa de sua religião. No quadro 9

descrevemos esse episódio.

Quadro 9

Descrição da cena: Tia Jurema caminha pela rua com o senhor Afonso, quando de repente

132

são abordados pela polícia, que dá voz de prisão à ela. Na repartição policial, o delegado

Praxedes afirma que recebeu denúncia de que ela estaria praticando bruxaria, jogos de

adivinhação, e por isso deveria ser presa. Esta cena foi ao ar em janeiro de 2013.

Tia Jurema: Por aqui a gente chega mais rápido na Gamboa, cortar o caminho.

Afonso Nascimento: É, cortar caminho sim. Mas a gente corre o risco de esbarrar num

desses...

Polícia: A senhora está presa!

Afonso Nascimento: Que absurdo é esse?!

Polícia: Se a senhora não oferecer resistência não vai precisar ser algemada.

Tia Jurema: Deixa Afonso, deixa. Vou com eles até a delegacia. Tenho fé que tudo ficará

esclarecido. Vai ficar tudo bem.

Afonso Nascimento: Eu vou falar com Zé Maria e vou falar com Isabel. Eles vão ajudar a

resolver esta situação.

Depois dessa cena, aparece Isabel e Zé Maria conversando, enquanto ela prepara um jantar

especial que será oferecido ao filho que fora raptado quando criança. Até então eles não

sabiam da prisão de tia Jurema. Enquanto isso na delegacia, o delegado Praxedes acusa tia

Jurema de praticar feitiçaria. A cena se passa desta maneira:

Delegado Praxedes: Isso é feitiçaria!

Tia Jurema: O Candomblé é minha religião. Não tem nada a ver com feitiçaria. Eu tenho

muito orgulho na minha fé pelos orixás. Eles são a força que estão em tudo, na natureza, e

de tudo que está em nossa volta. O Candomblé, é a herança que minha gente trouxe da

África. Que não pode ser renegado e que ninguém tem direito de condenar.

Delegado Praxedes: Então a senhora confessa: os jogos de búzios, os banhos de ervas.

Tia Jurema: É a minha fé. Se me foi dado um dom, eu não posso renegar. É como se fosse a

minha força, um dom, uma benção.

Delegado Praxedes: Leva para cela, anda!

Tia Jurema: Mas estou sendo presa por quê?

Delegado Praxedes: Praticar jogos de adivinhação e magia, é contra a lei. E, não adianta

pedir clemência. A denúncia veio de um padre muito respeitado.

Tia Jurema: Eu não preciso pedir clemência porque não fiz nada de errado. O meu único

sentimento agora é de tristeza em ver tanta intolerância.

133

Tia Jurema, desse modo, encarna a figura das reais “tias baianas”, que viveram na

cidade do Rio de Janeiro no período encenado pela novela “Lado a Lado”. Ela representava,

como as reais “tias baianas”, um referencial de moralidade e de religiosidade, mantendo viva

as tradições de matriz africana, como uma genuína sacerdotisa conselheira e amiga. Além

disso, tia Jurema exercia uma força política, tal como ocorreu com as “tias” da vida real,

perante a comunidade do morro, que a respeitava como uma importante líder. Esse respeito e

poder de liderança de tia Jurema,

[ficaram evidentes] quando a polícia invadiu o morro para prendê-la e todos

os “capoeiras” do local se uniram, agrediram e expulsaram os policiais. Por

terem ligação com o samba e o candomblé, ambos proibidos naquele

momento, as casas das “tias” eram alvo de invasão da polícia que prendiam

todas as pessoas ali presentes sob o pretexto de crime de vadiagem e crime

contra a saúde pública (magia, espiritismo, cura de doenças) (GRIJÓ, 2013,

p. 11).

A historiadora Bardanachvili (2012b) revela também que, já no final do século XIX,

antes da Abolição, diversos negros da Bahia que eram alforriados ou libertos foram para o Rio

de Janeiro na esperança de melhorarem as condições de sobrevivência. Outros foram para o

Vale do Paraíba, onde a cultura do café ainda era forte. Com o colapso da cultura cafeeira e a

consolidação da Abolição, a migração de negros baianos para o Rio de Janeiro aumentou

(BARDANACHVILI, 2012b). Os que chegaram ao Rio juntaram-se aos que já estavam por lá

principalmente nas áreas próximas a zona portuária, como Gamboa, Saúde e Santo Cristo.

Muitos homens vinham procurar por trabalho nessa região, com “o bota abaixo”,

implementado pelo prefeito Pereira Passos, todos os residentes na zona portuária

compulsoriamente foram obrigados a procurar outros lugares para morarem. Estabeleceram-se

principalmente nos arredores do Campo de Santana e na Cidade Nova. Esses lugares

tornaram-se os refúgios das tias baianas (BARDANACHVILI, 2012b).

No Rio de Janeiro, uma dessas mulheres tornou-se muito conhecida e referência do

samba e do candomblé. Hilária Batista de Almeida, tia Ciata, nasceu em Santo Amaro da

Purificação, no início da segunda década do século XIX, na Bahia. Foi iniciada no candomblé

na cidade de Salvador. Depois migrou para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. A

ida de tia Ciata para o Rio se deveu, talvez, por ser lá a capital da Republica no início do

século XX com maiores oportunidades de sobrevivência.

134

A Abolição [engrossou] o fluxo de baianos para o Rio de Janeiro, liberando

os que se mantinham em Salvador em virtude de laços com escravos,

fundando-se praticamente uma pequena diáspora baiana na capital do país,

gente que terminaria por se identificar com a nova cidade onde nascem seus

descendentes, e que, naqueles tempos de transição, desempenharia notável

papel na reorganização do Rio de Janeiro popular, subalterno, em volta do

Cais e nas velhas casas no Centro (MOURA, 1995, p.61).

Esses fluxos internos em decorrência da Abolição, conforme aponta o autor, fez com

que o Rio de Janeiro crescesse rapidamente. Assim, assinala ainda o autor que: “[se] em 1890

o Rio de Janeiro tinha 522.561 habitantes, 15 anos após [...] já subira para 811.443, para

chegar ao primeiro milhão no final da Primeira Guerra Mundial, em 1917” (MOURA, 1995,

p.61). A capital da Republica vivia uma efervescência de pessoas e de culturas diferentes, pois

além do contingente de ex-escravos havia também os imigrantes europeus que por lá

aportavam (MOURA, 1995).

Era nesse ambiente social e cultural que tia Ciata se relacionava. Em “Lado a Lado”

procurou-se reproduzir de forma semelhante esse contexto histórico. Tia Jurema talvez tenha

sido inspirada justamente nessas Mães de Santos que contribuíram para a formação da cultura

popular no Rio de Janeiro, e na afirmação da religiosidade de matriz africana por meio do

candomblé.

Por exemplo, no último capítulo de “Lado a Lado”, tia Jurema realiza, depois de

encontros e desencontros, o casamento de Zé Maria e Isabel. A cerimônia é de acordo com os

ritos das religiões de matriz africana. A tia Jurema usa, nesse rito de casamento, elementos da

natureza para abençoar a união do capoeirista e da dançarina, como está descrito no quadro

10.

Quadro 10

Descrição da cena: Essa cena foi ao ar em março de 2013, na qual tia Jurema realiza o

casamento de Zé Maria e Isabel. A cerimônia é de acordo com os ritos das religiões de

matriz africana. Estão presente nessa cena, o padre Olegário, algumas personalidades da

cidade, e a comunidade do morro.

Tia Jurema: Meus amores. Eu ofereço a vocês o mel que traz a doçura. O sal, que traz a

verdade e dá sabor à vida. O azeite, que deixa a vida mais leve e fluída. E, a água limpa,

promessa de frescor e fertilidade.

Após a junção desses elementos em um pires, acompanhados com algumas folhas verdes,

Zé Maria e Isabel tocam o composto com o dedo indicador, e leva até os lábios, beijando-o.

Depois eles trocam as alianças, dizem algo um para o outro, e se beijam.

135

Isabel: Meu Zé. Meu marido para toda à vida.

Zé Maria: Minha Isabel. Minha mulher. Agora e sempre.

Geralmente, os lugares comuns no final das novelas da Rede Globo, são casamentos

celebrados em igrejas católicas, afirmando a ortodoxia cristã. “Lado a Lado” mostrou o que

seria os ritos de casamento das religiões de matriz africana, que comumente são negadas e

envoltas em muitos preconceitos.

Tia Jurema representa na ficção, a mulher negra guardiã dos saberes ancestrais, como

por exemplo, dos rituais necessários para realizar casamentos, salvaguardar os conhecimentos

míticos e os ensinamentos que devem ser repassados a gerações futuras.

Nessa perspectiva, Vanessa Soares da Silva (2010) contribui com nossas

argumentações.

As mulheres negras sempre estiveram à frente das religiões negro-brasileiras

e, com suas práticas de permanência e manutenção das tradições,

estabeleceram a integração de nossa cultura. Elas unem, ensinam, trocam,

protegem e guardam os segredos míticos. Os saberes e fazeres herdados da

diáspora tem-lhes possibilitado, nesse espaço do sagrado, assumir o poder e

a liderança frente a uma rede urbana patriarcal e machista que as alijam e as

subestimam do direito de pertença e do reconhecimento de sua influência.

Às vezes, de modo equivocado, quando olhamos à primeira vista as

mulheres negras do presente não conseguimos reconhecer as negras de

outrora, guerreiras, insubmissas, fortes e altivas. No entanto, ao chegarmos

perto vemos que essas mulheres continuam lutando e sobrevivendo a essa

ordem. A exclusão pela condição étnica e de classe fez com que essa mulher

[atualmente] esquecesse todas as estratégias que as emanciparam sem

necessariamente terem de assumir uma “consciência feminista” de padrões

herdados da cultura eurocêntrica que não foram e não são os nossos (SILVA,

2010, p. 57).

Tia Jurema, desse modo, afirma a identidade negra com sua postura altiva e repleta de

sabedoria ancestral. Essa personagem pode ter sido inspirada, além de tia Ciata, em mulheres

como tia Carmem, tia Amélia, tia Perciliana. De acordo com Rodrigo Cantos Savelli Gomes

(2010),

[essas] baianas estão entre personalidades consideradas mais importantes das

camadas populares na virada do século XX na cidade do Rio de Janeiro,

frequentemente proclamadas como ‘matriarcas do samba’, tidas como

influentes e poderosas (GOMES, 2010, p. 972).

136

O autor ainda considera que no Rio de Janeiro nesse período, nas camadas populares

especificamente, estava presente uma espécie de matriarcado regido pelas mulheres negras.

Elas assumem para si “[...] o papel central que garante a permanência das tradições africanas e

as possibilidades de sua revitalização [,] [...] como é o caso da cultura afro-brasileira [...]”

(GOMES, 2010, p. 972).

Em “Lado a Lado”, a matriarca da comunidade tia Jurema, retrata essas mulheres que

eram responsáveis pela manutenção da cultura negra, principalmente no campo religioso. As

tias Baianas seriam as responsáveis no início do século XX, por dar condições para que

houvesse uma estrutura propícia que facilitasse a execução dos ritos religiosos bem como das

festas e encontro musicais (principalmente do samba) que organizavam.

A personagem tia Jurema parece desempenhar esse papel na novela, enfatizando os

saberes e a cultura africana e afro-brasileira. Ela reforça, desse modo, a identidade negra.

Kathryn Woodward (2000) argumenta que “[...] uma das formas pelas quais as identidades

estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos”

(WOODWARD, 2000, p. 11). Assim, tias Baianas, como representada por tia Jurema,

motram-se os arautos da ancestralidade africana que a colonização europeia tentou apagar e

diminuir. Por outro lado, os africanos e seus descendentes ao procurarem reproduzir a herança

africana no Brasil buscando no passado seus antecedentes para justificar suas identidades

acabam produzindo novas identidades (WOODWARD, 2000).

A identidade é algo provisório, dinâmico, mutável. Não é fixo ou essencializado. De

acordo com Zygmunt Bauman (2005),” a identidade “[...] só nos é revelada como algo a ser

inventado, e não descoberto (BAUMAN, p. 21, 2005)”. Ela não pode ser descoberta porquê

de fato nunca existiu como uma marca evidente, por exemplo, de um determinado povo ou

etnia. Sempre foi frágil com um caráter provisório (BAUMAN, 2005).

Por estarem em um mundo totalmente adverso, talvez os africanos escravizados no

Brasil, reinventaram suas culturas ao procurar afirmar uma identidade africana corrompida

pelo escravismo. Tia Jurema, em “Lado a Lado”, não representa uma identidade africana

essencializada, mas sim o resultado da mistura, mesmo que forçada, dos colonizados e

colonizadores.

[...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de

processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no

momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado

sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em

processo’, sempre ‘sendo formada’ (HALL, p. 38, 2006).

137

Um exemplo desse processo de formação da identidade e da cultura afro-brasileira, e

que a telenovela “Lado a Lado” expos, foi o surgimento do samba. Estilo de dança e música

nascido no Brasil com forte influência da cultura africana. Mas, não se pode dizer que o

samba seria genuinamente africano. Houve um processo de hibridação, uma síntese de

elementos africanos e brasileiros que possibilitou tal nascimento. Assim, para esclarecer

melhor o conceito de hibridação, recorremos a Canclini.

As diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos

repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos

transnacionais geram novos modos de segmentação: dentro de uma

sociedade nacional, por exemplo, o México, há milhões de indígenas

mestiçados com os colonizadores brancos, mas alguns se ‘chicanizaram’ ao

viajar aos Estados Unidos; outros remodelaram seus hábitos no tocante às

ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nível educacional

e enriqueceram seu patrimônio tradicional com saberes e recursos estéticos

de vários países; outros se incorporaram a empresas coreanas ou japonesas e

fundem seu capital étnico com os conhecimentos e as disciplinas desses

sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por isso, mais do que levar-

nos a afirmar identidades autossuficientes, serve para conhecer formas de

situar-se em meio à heterogeneidade e entender como se produzem as

hibridações (CANCLINI, 2013, p. XXIII - XXIV, 2013).

A cultura afro-brasileira, desse modo, não seria apenas constituída por elementos

culturais de uma única nação africana, mas sim um híbrido de diversas culturas africanas

somadas com o caldo cultural existente no Brasil. Em “Lado a Lado” procurou-se evidenciar

essa mistura. Nas afirmações de Canclini (2013), estudar os processos de formação cultural

pode nos indicar como são produzidas as hibridações. Especialmente no caso do Brasil.

Talvez essas hibridações culturais e raciais, no decorrer da história do Brasil

contribuíram para composição do sentimento de uma identidade mestiça.

Igor Bergamo Anjos Gomes (2008) em sua dissertação de mestrado “A ameaça

simbólica das cotas raciais na mídia brasileira: o negro nas telenovelas” argumenta que esse

sentimento de brasilidade mestiça é expresso nas novelas brasileiras. Mesmo em “Lado a

Lado”, uma novela que apresentou uma forte discussão em torno da problemática racial e da

afirmação da cultura negra, o sentimento de uma brasilidade mestiça está implícito nas

principais personagens dessa telenovela. Isabel, Zé Maria, Chico e tia Jurema parecem ser no

enredo da novela, os representantes dessa mestiçagem. De fato o Brasil é mestiço. E qual

povo, comunidade ou população no globo terrestre não é mestiço?

138

Entretanto, Gomes (2008) assinala que há um ideal negativo veiculado pelas

telenovelas (“Lado a Lado” não seria diferente) de que o Brasil é uma nação mestiça, pois

assim:

[...] todos os brasileiros podem se sentir retratados nas telenovelas, não

necessitando inserir negros, e índios especificamente. Deste modo, as

telenovelas reforçam a temática da mestiçagem, legitimando a falácia de que

o Brasil é uma democracia racial, forjando a inexistência do racismo,

corroborando para a manutenção de um projeto de branqueamento

explicitado pela vigência de um paradigma de beleza branco, veiculado

como se fosse o espelho da nação (GOMES, 2008, p. 27).

Nesse sentido, “Lado a Lado” parece ter enfatizado, mesmo que sutilmente, o ideal da

democracia racial. A desigualdade existente entre negros e brancos parece surgir na trama

mais como uma questão social do que racial. Isso em uma novela que procurou trabalhar a

afirmação da cultura negra. Imagine nas outras telenovelas em que a presença do negro é

restrita a poucos personagens. Com base nisso Gomes (2008) pondera que a maior parte das

telenovelas temáticas, como por exemplo, as que tratavam da imigração europeia, como na

novela “Terra Nostra” (Rede Globo, 1999), mostra uma distorção do componente racial

brasileiro do século XIX (GOMES, 2008). Essa telenovela tratou da proletarização dos

imigrantes italianos e também destacou as condições de vida dos negros recém-libertos sem

aprofundamento. Pois, segundo o autor, dois terços da população brasileira nesse período

eram de negros. Os produtores de “Terra Nostra” parecem ter desconsiderado esse fato

(GOMES, 2008).

As telenovelas, por esse motivo, podem despertar, em sua recepção junto ao público,

esses equívocos em relação à composição racial brasileira. Dificultando a percepção do negro

como principal componente numérico da sociedade brasileira. Segundo dados do IBGE de

2010, a população que se autodeclara preta e parda (negra), corresponde a 50,7% de toda a

população brasileira, chegando a 101.923.585 habitantes. E já somos 201.032.714 habitantes

(AFROPRESS, 2013). No entanto, as telenovelas agem como se houvesse uma maioria de

brancos na população brasileira.

Em relação às novelas temáticas, especialmente aquelas que ressaltam culturas

europeias, como no caso de “Terra Nostra”, contribuem para o ideal de branqueamento. Pois,

evidenciam e valorizam a influência cultural desses povos na constituição da sociedade

brasileira. Fortalecendo a crença de que o legado cultural, social e histórico que deixaram no

Brasil, por exemplo, são maiores e mais importantes que a dos negros e dos indígenas.

139

Provavelmente essa crença ajude a robustecer o racismo estrutural existente no país,

justificando assim o porquê dos negros serem minoria no elenco das telenovelas.

Portanto, observa-se que a inserção do ator negro nas telenovelas, principalmente as da

Rede Globo de televisão, é mais frequente. No entanto, Gomes (2008) parece discordar dessa

afirmação.

A inserção dos atores negros nas telenovelas brasileiras se processa de forma

parcial e descontínua, centrada [...] em 3 estereótipos clássicos. O primeiro

está relacionado à imagem do negro passivo, focado na sexualidade (corpo)

e alegria (espírito). O segundo está relacionado com a violência,

criminalidade, revolta e marginalidade social. O terceiro e mais em voga

atualmente é o que retrata a imagem do negro enquanto um sujeito solitário,

definitivamente encaixado num ideal de branqueamento. Ou seja, nem

mesmo quando aparece como um profissional bem sucedido, ele deixa de

corroborar a imagem já estereotipada do negro passivo, cordial e

subserviente, com um perfil semelhante aos empregados domésticos e

trabalhadores braçais, reafirmando no senso comum o legado sócio-histórico

de escravidão (GOMES, 2008, p. 29).

Esta constatação de Gomes (2008) destaca os estereótipos em que os atores negros

sempre representam em telenovelas. Difícil ver nas tramas novelísticas um negro como

personagem central. Por exemplo, em “Lado a Lado” o protagonismo negro teve que ser

dividido com os protagonistas brancos: Isabel e Laura; Zé Maria e Edgar; tia Jurema e o padre

Olegário.

Para desmobilizar e desconstruir esses estereótipos dos negros na televisão e nas

telenovelas seria necessário um enfrentamento mais incisivo. Talvez isso já esteja ocorrendo

por meio das Ações Afirmativas, em que procuram possibilitar o acesso e a representação da

população negra em espaços onde ela quase completamente está ausente. Gomes (2008) nos

lembra de uma dessas ações que procurou inserir um determinado percentual de negros nos

meios de comunicação, mas que infelizmente não foi muito adiante.

[...] o Projeto de Lei encaminhado pelo Movimento pelas Reparações

(MPR), proposto pelo então Deputado Paulo Paim (PT/RS), e defendendo

uma reserva de cotas mínima de 20% para a participação de negros no

mercado audiovisual (programas de televisão, novelas, seriados e filmes) e

de 40% no mercado publicitário. O projeto foi vetado em 1998, e não foi

alvo de destaque pelos meios de comunicação (GOMES, 2008, p. 40).

Gomes (2008) pondera ainda que a Rede Globo tentou deslegitimar a política de cotas

junto à opinião pública, afirmando que não era necessária a aprovação de tal ação. “Um

exemplo disso foi o lançamento do livro de Ali Kamel (2006), que é diretor-executivo da

140

emissora, intitulado: ‘Não Somos Racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa

nação bicolor” (GOMES, 2008, p. 55). De acordo com Gomes (2008), no livro Ali Kamel age

como um porta voz dessa emissora de televisão, indicando supostas falhas na metodologia do

projeto de cotas, “[...] como, por exemplo, a adoção da categoria raça, para referendar o

acesso ao sistema” (GOMES, 2008, p. 55-56).

Kamel problematiza a utilização deste critério, em face de uma realidade de

miscigenação étnica da população brasileira. Nega a existência do racismo

no país e atribui às causas das desigualdades entre brancos e negros

unicamente a pobreza, que para ele atinge a todos os brasileiros, mas com

especial rebatimento sobre o segmento negro. Argumenta que o único

caminho racionalmente aceitável para equacionar esta problemática é

promover investimentos massivos na educação básica. Assim o autor insiste,

equivocadamente, na análise social e econômica das desigualdades raciais,

excluindo o enfoque preconceito/racismo, encastelando-se no entendimento

de que, em iguais condições, negros e brancos pobres ascenderão

socialmente (GOMES, 2008, p. 55).

As deduções de Kamel se coadunam com o pensamento de alguns intelectuais, como

Yvone Maggie, Peter Fry, Demetrio Magnolli, que parecem acreditar que o racismo existente

no Brasil é desencadeado pela desigualdade social, pela pobreza e a falta de oportunidade para

a população negra. Essas concepções certamente estão equivocadas. Se fosse assim, por

exemplo, atores como Zezé Mota, Milton Gonçalves, Lázaro Ramos, entre outros, estariam

fazendo papéis de maior destaque nas telenovelas, pois estes artistas têm uma formação e um

currículo invejáveis. Mesmo assim, a presença deles em atuações relevantes nas telenovelas é

diminuta.

Contra a ideologia do branqueamento, portanto, nos parece ser necessário fazer

intervenções aliadas as Ações Afirmativas. Infelizmente, os meios de comunicação de massa,

principalmente a televisão e as telenovelas, não farão essas intervenções. O propósito delas é

outro, qual seja, obter lucro. Parece-nos, que, no fundo, apenas reproduzem aquilo que as

pessoas desejariam ver nas telas de televisão, como uma espécie de espelho mágico, refletindo

a imagem embranquecida da população brasileira que ao longo da história foi sendo cooptada

e introjetada pela ideologia do branqueamento. A educação, à vista disso, seria um campo

muito importante de ação para enfrentar essa cooptação e introjeção. A filosofia e sociologia

pertencentes ao currículo do Ensino Médio, poderiam contribuir, apoiadas pela Lei

10.639/2003, na desconstrução da ideologia do branqueamento e do racismo que paira na

sociedade brasileira.

141

CAPÍTULO IV

Lei 10.639/2003

Parece-nos, nessa perspectiva, que saber em que estrutura ideológica estão respaldados

os conteúdos das novelas brasileiras podem auxiliar no desenvolvimento de uma consciência

mais crítica concernentes aos produtos audiovisuais, principalmente sobre as telenovelas. Mas

por onde começar? E, como fazer isso? Apoiado em que se poderia fomentar uma consciência

mais crítica em torno da problemática racial?

Diante dessas questões, talvez seja importante, para fomentar uma consciência crítica

em relação ao racismo e suas consequências sociais, uma educação interessada em

compreender este fenômeno e combatê-lo, sobretudo no ensino básico. À vista disso, a

educação brasileira tem a Lei 10.639/200318, que estabelece o ensino da história da África e

da cultura afro-brasileira, pois não basta apenas diagnosticar e apontar onde está o racismo,

como salientamos no caso das telenovelas. É preciso criar estratégias para desconstruí-lo. O

caminho mais eficiente, mesmo que os resultados demorem a aparecer, provavelmente seja de

fato pela educação. Uma intervenção educativa, com base na Lei 10.639/2003, contribuiria

para diminuir a força dos estereótipos em relação ao negro apresentado nas telenovelas e o

branqueamento que impera em sua estrutura.

Em conformidade com essas concepções, acreditamos que o currículo multicultural

pós-colonial, associado à Lei 10.639/2003, seria uma forma de estratégia bastante importante

de enfrentamento ao racismo. Como exemplo ilustrativo disso, sugerimos concentrar esforços

na elaboração de projetos pedagógicos de combate à discriminação racial, tendo como

perspectiva o espaço escolar e sua dinâmica. Por outro lado, não se deve perder de vista (para

não ser tomado por uma postura ingênua ou ficar desestimulado) a compreensão do espaço

escolar como algo muito complexo e contraditório. Mas, ao mesmo tempo, perceber suas

possibilidades para a transformação cultural, intelectual e ética dos estudantes. Consideramos

esta transformação provável, porque o currículo escolar é flexível, e de certo modo, no caso

brasileiro, em decorrência das Políticas de Ações Afirmativas, poderia estar relacionado a

algumas estratégias de ensino que visam à implementação e à execução das ações contra o

racismo. O desafio talvez seja elaborar um currículo que possa intervir na questão racial de

18 Está Lei foi publicada no Diário Oficial da União no dia 10 de janeiro de 2003, e se encontra publicada

também nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: DF, 2004.

142

maneira mais efetiva, visto que a própria Lei 10.639/2003, apesar de ser uma lei, não está

ainda plenamente em vigor. Um currículo pensado a partir de uma base antirracista facilitaria

o enfrentamento das ideologias discriminatórias dominantes, tais como o racismo e a

ideologia do branqueamento.

Concebemos que o espaço e o cotidiano escolar, de certa maneira, estão abertos, por

mais que estejam perpassados por uma gama de interesses e ideologias, como

posicionamentos conservadores, neoliberais, socialistas e crenças religiosas. Mesmo assim,

por meio da dinâmica e do cotidiano escolar, centrados em um currículo antirracista, é que se

teria a oportunidade de enfrentar e desmobilizar as discriminações raciais existentes na

sociedade. Nesse caso, parece-nos que seria crucial discutir estratégias de enfretamento à

discriminação racial em todos os níveis da Educação Básica, que engloba da pré-escola ao

ensino médio. A nosso ver, este último constitui uma fase importante de aprendizagem,

formação intelectual e moral dos jovens estudantes. Apesar de que o nível de ensino mais

sensível e menos rígido da estrutura do ensino básico é a educação infantil, pois as crianças

nessa fase estão mais acessíveis ao aprendizado. E, não por ser a fase melhor ou a mais fácil

para se trabalhar, mas por ser um período de socialização importante, em que a subjetividade

da criança não está cristalizada pelos valores, preconceitos e visões de mundo que

determinam sua formação intelectual e a percepção do outro. Talvez um currículo antirracista

favoreça a formação de sua personalidade em uma perspectiva de compreensão e valorização

da diferença, que pode ser adquirida e abortada justamente na interação e no contato com

outras crianças. No entanto, os jovens do ensino médio, até para prosseguir em uma educação

antirracista, precisariam manter contato com um conteúdo que aborda a problemática racial. A

sugestão que apontamos é que parte desse conteúdo poderia ser estudado pelas disciplinas de

filosofia e sociologia. Em relação a estas disciplinas, e suas possibilidades de abordagens

nesse processo, não iremos aprofundar aqui. Mas, vale a pena apontar que, esta formação

antirracista deveria inicialmente aprimorar as concepções e conhecimentos do professor que

atua no ensino básico, qualificando-o nas questões que envolvem a diferença e a problemática

racial. É necessário, então, que a primeira ação de combate ao racismo seja a formação do

professor que atua no ensino médio, principalmente nos conhecimentos que tratam da

diversidade cultural e étnica, tendo como recorte as relações raciais. Esta última deve ser

abordada na perspectiva da Lei 10.639/2003 com os estudantes desse nível educacional. Uma

dessas ações poderia ser debater sobre a questão do fenótipo. Por exemplo, mostrar aos jovens

que não há cabelo bom ou ruim, mas sim diferentes. Cada um com suas qualidades,

características e beleza. Desconstruindo, dessa maneira, o estereótipo e a hierarquização que

143

classifica e qualifica o cabelo crespo e liso, sendo que isso infelizmente está muito presente

nas telenovelas, reforçando a ideologia do branqueamento.

Há caminhos viáveis para realizar e implementar o combate à discriminação racial

utilizando os mecanismo e estratégias que o ato de educar oferece. Para tanto, se faz

necessário o estudo e o aprofundamento, especialmente da Lei 10.639/2003, pelos professores

que são diretamente envolvidos na relação ensino-aprendizagem. Esses profissionais devem

também aguçar seus olhares e sensibilidades para diagnosticar os atos de racismo e

discriminação presentes na sociedade, na mídia, nas telenovelas, para intervir de forma

significativa no enfrentamento dos preconceitos raciais que deixam marcas indeléveis em suas

vítimas.

Assim, em um país como o Brasil, de grande complexidade, com forte desigualdade

social e profundamente marcado pelo racismo, a televisão e as telenovelas seriam um reflexo

da realidade racial brasileira, em que retratam os lugares hierarquicamente ocupados por

negros e brancos na sociedade. Para minimizar os efeitos dessas desigualdades estabelecidas

pelas relações raciais, imaginamos que a escola seria um dos caminhos para enfrentar essa

problemática, sendo que a sociedade brasileira é extremamente branqueada e colonizada pelos

costumes e valores europeus. Percebe-se isso no “desdenho” pela cultura afro-brasileira e

indígena, cuja “valorização” é dada mais em épocas de carnaval, datas comemorativas e que

são ainda referenciadas de forma folclorizada nesses momentos festivos.

A cultura afro-brasileira, mesmo estando entranhada no comportamento dos brasileiros

e fazendo parte de sua identidade, quando é representada nas telenovelas, como na novela

Lado a Lado (2012), carrega ainda as marcas da ideologia do branqueamento e do mito da

democracia racial. Como a amizade de Isabel (Camila Pitanga) e Laura (Marjorie Estiano),

reforçando a ideia de que no Brasil as relações raciais entre negros e brancos seriam tranquilas

e isentas de preconceitos, dando a impressão que o principal problema brasileiro estaria

exclusivamente nas desigualdades sociais e econômicas.

Para não perpetuar essas crenças, veiculadas sobretudo pelas produções audiovisuais,

entendemos que a Lei 10.639 de 2003 (BRASIL, 2004) poderia contribuir para desmobilizar

essas ideologias raciais. Essa Lei possibilita aos professores do ensino fundamental e médio

compreenderem e conhecerem o papel da população negra, dos africanos e seus descendentes

na formação e consolidação da sociedade brasileira (EDUCAÇÃO E DIFERENÇA, 2009). A

referida Lei foi promulgada pelo ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, no dia

9 de janeiro de 2003. Ela altera a Lei 9.394 de 20 de novembro de 1996 que regula as

diretrizes e bases da educação nacional, para acrescentar no currículo oficial da educação

144

brasileira do ensino básico a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira.

(AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009; BRASIL, 2004). Esta Lei incluiu os Art. 26-A, 79-A e 79-B

na Lei 9.394. O Art. 26-A determina que os “[...] estabelecimentos de ensino fundamental e

médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-

Brasileira” (AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009. p. 215). Nos parágrafos seguintes desse Artigo

está detalhado que:

§ 1º.O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o

estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a

cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,

resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e

política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão

ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de

Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (AÇÕES

AFIRMATIVAS, 2009. p. 215).

§ 3º. (VETADO)

O Art. 79-A foi vetado. E o Art. 79-B acrescenta no calendário escolar o dia 20 de

novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (AÇÕES AFIRMATIVAS, 2009).

Segundo Jesus (2013), “[apesar] de seu caráter sucinto (com apenas três artigos), a Lei

nº 10.639, de 2003 repercutiu de modo significativo no campo das relações étnico-raciais no

Brasil e, sobretudo, para o contexto das práticas pedagógicas escolares” (JESUS, 2013, p.

403).

Jesus (2013) destaca ainda que as atividades e as práticas pedagógicas para estabelecer

a Lei 10.639/2003 têm sido aplicadas com muitas contradições que passam pelas questões

administrativas e burocráticas e vai até as questões éticas, teóricas e metodológicas na

implementação da Lei.

A constatação de que boa parte dos trabalhos desenvolvidos nessas

instituições escolares fundamentava-se apenas, ou prioritariamente, no

conteúdo da Lei (cujo caráter sucinto não oferece orientações pedagógicas

aos educadores) coloca em risco a eficácia dessa legislação no que se refere

às modificações nos padrões de relações étnico-raciais atualmente vigentes

no país (JESUS, 2013, p. 403-404).

As atividades pedagógicas desenvolvidas nas instituições escolares para o

enfrentamento do racismo, da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial

apenas para ratificar o que já discutimos anteriormente, devem estar alicerçadas em uma boa

145

formação dos professores. Nesse sentido, a formação continuada seria um caminho viável

para aprofundar alguns conhecimentos em relação a problemática racial no Brasil e aprimorar

metodologias para se trabalhar os conteúdos da Lei 10.639/2003 em sala de aula. Em

conformidade com isso, o autor Rodrigo Ednilson de Jesus (2013) aponta que se o sistema de

ensino disponibilizar aos estudantes negros um professor bem formado e informado sobre o

racismo existente na sociedade brasileira, poderia contribuir para que os conhecimentos

aplicados em sala de aula dessem a base necessária de segurança para se orgulharem de sua

origem africana e da cultura afro-brasileira a qual pertencem. Ao mesmo tempo, para os

estudantes do seguimento racial branco sucederia um cenário favorável, desprovidos de

estereótipos, em que perceberiam “[...] as influências, [...] e a importância da história e da

cultura dos negros no seu jeito de ser, viver e [de] se relacionar com as outras pessoas,

sobretudo as negras” (JESUS, 2013, p. 404).

Infelizmente isso não está ocorrendo como imaginado. A escola tem muita resistência

em abordar a questão racial de modo aberto e esclarecedor.

[...] a escola tem sido considerada historicamente um espaço de repercussão

e reprodução do racismo. Como mostra sua história e revelam as dinâmicas

sociais produzidas nesse lócus, trata-se de uma instituição que dificilmente

consegue lidar com identidades forjadas num contexto de diversidade,

reconhecendo-as e tratando-as de forma igualitária e digna, e com saberes e

patrimônios culturais produzidos pelos grupos étnico-raciais do País

(GOMES, 2012, p. 24).

Por estar imersa em um sistema racial complexo como o do Brasil, a escola acaba

reproduzindo os estereótipos e os preconceitos que assimilou histórica e socialmente.

Kabengele Munanga (2005) acrescenta que o preconceito introjetado na mentalidade do

professor e seu despreparo profissional em trabalhar com a diversidade, mais o conteúdo

preconceituoso e estereotipado veiculado pelos materiais pedagógicos, especialmente o livro

didático, as relações de preconceito entre os alunos de ascendências étnicos-raciais diversas,

sociais, de gênero entre outras, “[...] desestimulam o aluno negro e prejudicam seu

aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do

alunado negro, comparativamente ao do alunado branco” (MUNAGNA, 2005, p. 16).

Nessa perspectiva, parece-nos que a Lei 10.639/2003 contribuiria para que os

professores discutam de maneira desmistificadora a história africana e a cultura afro-

brasileira, quase sempre ausentes do currículo escolar, repensando práticas inovadoras de

enfrentamento da questão racial. Assim, seria necessária uma formação voltada para os

146

professores, seja inicial ou continuada, em relações raciais, que favoreça a implementação de

ações efetivas na desconstrução dos estereótipos raciais vigentes.

Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da

população negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do

ponto de vista do “Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana.

Como escreveu o historiador Joseph Kizerbo, um povo sem história é como

um indivíduo sem memória, um eterno errante. Como poderia ele então

aprender com facilidade? As conseqüências (sic) de tudo isso na estrutura

psíquica dos indivíduos negros são incomensuráveis por falta de ferramentas

apropriadas (MUNAGNA, 2005, p. 16).

Não resta dúvidas de que esta Lei é aliada fundamental no enfrentamento do racismo.

Entretanto, Müller (2010) aponta que os professores, de modo geral, têm resistência em

discutir acerca dos processos de discriminação referentes aos estudantes negros. Sob o amparo

desta Lei, no entanto, os professores têm uma ferramenta substancial para ser usada no

combate aos mecanismos racistas que operam em nossa sociedade. Um deles seria o

desvelamento dos estereótipos que a televisão – e as telenovelas, de modo mais específico –

proporcionam, ao fragmentar a identidade negra no Brasil, exibindo em seus enredos o negro

sempre em posições subalternizadas.

Assim, o professor ao trabalhar a Lei 10.639/2003 junto a seus estudantes

possibilitaria que eles visualizassem a situação de preconceito racial na qual estão todos

imersos. Infelizmente, de acordo com nossas percepções, o brasileiro geralmente não tem

consciência da problemática racial em que está inserido há muito tempo. Desse modo, a

televisão e as novelas apenas refletem aquilo que a sociedade ainda carrega como marca de

sua formação social, histórica e ideológica.

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo no Brasil está tão presente nas relações sociais que as pessoas quase não o

percebem. Em decorrência disso, acabam aceitando como normal, relacionar, por exemplo,

pobreza à população negra, bandido aos negros, feiura aos negros, trabalho pesado e pouca

formação educacional aos negros, energia sexual potente e bom desempenho no esporte aos

negros. Certamente, no fundo, são esses os estereótipos que compõem o imaginário sobre os

negros que a televisão em geral reforça por meio de sua programação. De acordo com nossas

concepções, isso está difundido especialmente por meio das telenovelas. Transmitindo, assim,

esses estereótipos, ao insinuar, pela forte exposição e ênfase dada a estética branca, que esta

seria a única com as qualidades e virtudes dignas de serem valorizadas e imitadas por todas as

pessoas, independentemente da filiação racial. Assim, buscamos por meio desta pesquisa

refletir, com base em uma análise empírica da novela “Lado a Lado”, sobre como as

telenovelas exerceriam uma função de espelho da sociedade, abastecidas pelo pensamento

social e racialmente estabelecidos, sendo que, os estudos e as análises que realizamos,

apontaram que as novelas expressariam, mesmo que não de forma totalizante, o pensamento

social, os preconceitos, as discriminações e principalmente os estereótipos em relação aos

negros.

Por outro lado, as telenovelas isoladamente, como já foi argumentado anteriormente,

não teriam força e muito menos capacidade de influenciarem, ou mesmo determinarem, as

relações raciais existentes no Brasil. Mas, mesmo assim, seria interessante acentuar que os

autores e os produtores desse principal produto da indústria cultural brasileira, parecem

inspirar-se nos temas e dramas reais do cotidiano para que as novelas sejam aceitas, obtendo

uma boa audiência junto ao público telespectador. Diante disso, a impressão que obtivemos

por meio deste estudo, é que os autores e os produtores dessas telenovelas talvez “prefiram”

contar mais as histórias das personagens brancas do que das negras, ao recortar o cotidiano da

realidade brasileira, para ser retratado na ficção.

Nesta perspectiva, o racismo brasileiro acaba tornando-se mais exposto, quando nas

novelas não têm muita visibilidade e destaque às personagens negras, não apenas no que diz

respeito a uma participação mais protagonista dessa categoria racial, mas, sobretudo, referente

ao diminuto número de negros escalados no próprio elenco dessas telenovelas, como

procuramos evidenciar no capítulo III.

Diante dessa pouca presença negra nas novelas brasileiras, podemos supor que os

telespectadores de outros países, para onde essas novelas são exportadas, principalmente as da

148

Rede Globo, talvez fiquem com a impressão de que no Brasil a população existente seria

formada por uma maioria branca. Ou também fazer com que acreditem que no Brasil não

haveria problemas raciais, e que há uma harmoniosa democracia racial imperando nas

diversas relações sociais do dia a dia brasileiro. Provavelmente, seja um pouco disso que as

novelas transmitam implicitamente em seu conteúdo sobre a sociedade brasileira,

demonstrando como está organizada, ao situar, por meio da ficção, as relações raciais e sua

estrutura hierárquica.

Com isso, compreendemos que os produtos audiovisuais embranquecidos

desencadeariam uma fragilização na identidade negra brasileira ao ser enfatizado nas

telenovelas mais o seguimento racial branco e seus valores. Sugerindo que seriam os únicos

símbolos da perfeição moral e estética. Isso é uma forma de imperialismo.

Desse modo, durante a pesquisa, buscamos ressaltar que as telenovelas,

provavelmente, tornam um pouco mais frágil a identidade negra ao limitar a participação e o

protagonismo dos atores negros no conjunto do elenco das novelas exibidas a milhões de

telespectadores no Brasil.

Nesta pesquisa, discutimos que a ideologia do branqueamento também está associada

a uma persistente etiqueta racial. Embora não tenhamos aprofundado este ponto, até porque

não era o foco principal de nossos estudos, ela indica que o negro é sempre branqueado ao ser

rotulado de “bom caráter”, de “trabalhador” e de “honesto”, quando escapam aos estereótipos

negativos vinculados à sua imagem. As telenovelas, nesse sentido, parecem realizar com

eficiência e competência essa rotulação, pois difundem, ideologicamente em seus conteúdos,

o esforço pessoal e meritocrático como justificativas de progresso e crescimento pessoal das

personagens negras, sem considerar o espaço sócio-histórico-racial, no qual estão inseridas.

Com base nisso, talvez fique a impressão, criada a partir da trama novelística que as

conquistas e a prosperidade de alguma personagem negra aconteceram de maneira natural e

mediante seu próprio esforço, já que em nosso entendimento, as telenovelas negam os

entraves provocados pelo preconceito racial e pelo racismo no qual a personagem negra

poderia ter sido vítima, se fosse realmente inspirada na vida real, e que sucederam em seu

percurso até chegar ao patamar de destaque e êxito profissional, econômico ou cultural, em

sua posição no enredo da novela.

Nesse caso, pode ser que ao configurar a personagem negra, as novelas insinuem

ideologicamente, que não haveria problemas raciais no Brasil, enfatizando, por exemplo,

como o negro se relacionaria bem com o branco, sendo-lhe submisso, por meio da

149

representação do empregado dócil, do amigo sempre fiel e bom conselheiro, e do protetor que

está sempre atento.

Percebemos em nossos estudos, que as telenovelas brasileiras constituem um novo

mecanismo de difusão do branqueamento. Este último surgiu inicialmente como uma teoria, e,

quase ao mesmo tempo, se converteu numa ideologia, que impregnou a sociedade brasileira

desde o final do século XIX e início do século XX. Na realidade brasileira atual, a ideologia

do branqueamento parece estar inserida na televisão, especialmente nas telenovelas que, ao

negar a participação do negro na sua programação de forma mais atuante, impossibilita uma

visão afirmativa da população negra em relação ao seu pertencimento racial. De outro modo,

ela fragmenta uma percepção mais nítida da composição social e racial da sociedade

brasileira. Assim, tanto a televisão quanto as telenovelas, agem de forma conservadora na

manutenção do status quo existente em relação à questão racial no Brasil, fazendo acreditar

que haveria uma democracia racial no país, pois, ao longo da história, o mito da democracia

racial se manteve como uma estratégia sempre usada pela elite dominante, para afirmar que

no Brasil as relações raciais seriam harmoniosas.

A concepção de mito está relacionada à narrativa da origem das coisas, bem como da

fixação de ideias e da explicação do mundo real, e no caso do mito da democracia racial

serviria como mecanismo de sustentação dos privilégios das elites dominantes no decorrer da

história do Brasil, sendo que o mito da democracia racial, o ideário do branqueamento e a

etiqueta racial são ideologias veiculadas e validadas pelo aparato audiovisual, que têm nas

telenovelas brasileiras um campo propício para a sua continuidade. Compreendemos, de

acordo com isso, que as telenovelas carregam simbolicamente a estruturação de como está

organizada a sociedade brasileira, com suas hierarquias e exclusões.

Assim, o branqueamento está presente no enredo televisivo como uma espécie de

norma padrão. Entretanto, há que se considerar, nesse aspecto, alguns avanços na questão

racial. Mas, apesar disso, as telenovelas prefiguram insinuar ainda o desejo e o ideário de que

a nação brasileira deveria ser efetivamente branca, ou, no mínimo, aparentar ser mais branca.

As telenovelas realizam muito bem esse jogo de aparência ao exibirem (como já

exposto em outras partes desse estudo), no conjunto de seu elenco, mais de 70% de atores

brancos.

Cabe, portanto, também à educação, por meio do ensino básico, recorrendo, como

mencionado, a Lei 10.639/2003, realizar o enfrentamento da problemática racial para que haja

uma transformação desse quadro que ainda, infelizmente, mostra como a sociedade brasileira

está racialmente organizada, pois, o racismo está tão presente na dinâmica social brasileira, de

150

forma tão profunda e imersa nas relações sociais do cotidiano, que se tornou transparente.

Consequentemente, muitas pessoas acabam não o percebendo, e negam veementemente a sua

existência, afirmando que é coisa da cabeça dos negros e de alguns estudiosos que se

debruçam no estudo da problemática racial. O brasileiro é míope em relação ao racismo

praticado no país. Talvez, isso seja os efeitos do mito da democracia racial, que está

internalizada no subconsciente das pessoas, e da ideologia do branqueamento que nos

acostumou a ver o branco e as referências estéticas desse grupo como sendo a normalidade

exigida.

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