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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LAYANE MACHADO BUOSI
DESCONSTRUÇÃO E DIDÁTICA DA TRADUÇÃO:
A ESCUTA OTOBIOGRÁFICA DE UM ATO DE
TRADUÇÃO
CUIABÁ-MT
2018
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LAYANE MACHADO BUOSI
DESCONSTRUÇÃO E DIDÁTICA DA TRADUÇÃO:
A ESCUTA OTOBIOGRÁFICA DE UM ATO DE
TRADUÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, como
requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação
na Linha de Pesquisa Cultura, Memória e Teorias em
Educação.
Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro
Co-orientadora: Prof.ª Drª. Emília Carvalho
Leitão Biato
CUIABÁ-MT
2018
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3
4
Agradeço a Aline, que tanto me ensinou,
obrigada pelo fundamental apoio a minha pessoa,
por me ler, ouvir, incentivar e acolher.
Agradeço aos meus pais,
que mesmo quando não entendiam bem o que eu estava fazendo ou querendo,
sempre me deram todo o suporte necessário para que
eu pudesse alcançar meus objetivos.
Agradeço ao Leonardo,
que apesar de ser naturalmente chato, todos os momentos que precisei,
foi o melhor irmão do mundo.
5
Agradeço,
Aos meus pais que proporcionaram condições de caminhar até aqui. Ao
meu Pai Carlos, pelos ensinamentos e apoio para que eu nunca desistisse dos
meus objetivos; à minha Mãe Luzia que me ensinou empatia;
À Aline, obrigada por me ajudar a crescer e ensinar que para escutar é
preciso calar;
Ao meu orientador Silas, todo o meu apreço, admiração e gratidão.
Agradeço também pela oportunidade concedida a minha pessoa em 2013,
permitindo que eu fizesse parte deste grupo de pesquisas, experiências e amigos
que é o Estudos de Filosofia e Formação, (EFF);
À querida Emília, minha Co-orientadora, pela sabedoria, paciência e
carinho comigo, por guiar-me e acompanhar-me desde quando a ideia deste
trabalho era ainda embrionária;
À minha estimada e amada tia, Verinha, que mesmo sem saber foi minha
primeira e eterna referência de docência, obrigada por me inspirar desde
sempre;
Às incríveis e valiosas amigas Márcia e Alessandra por todo o apoio,
suporte e chacoalhões tão necessários. Vocês são presentes da vida;
À Prof.ª Drª. Márcia Ferreira pelo acolhimento como sua orientanda no
início do mestrado;
Ao Dr. Allan e a Mª. Roberta pelo tempo e atenção que dedicaram a
leitura da primeira versão deste texto, obrigada por todas as considerações tão
valiosas a esse texto;
Aos membros da banca avaliadora, professores Dr. Allan Kozlakowski,
Dr. Henrique de Oliveira Lee, Drª. Polyana Olini e Drª. Vera Lúcia Blum pela
generosidade e aula incrível durante o exame de qualificação. É impossível
pensar em outra composição, obrigada pelo sim ao meu convite;
6
À família EFF, em especial aqueles que me acompanharam mais de perto:
Van, Vith, Bet, Gabi, Iris, João, Louise, Matheus, Vinicius, Nath, Claudinha e
Fernanda, pelos estudos, momentos de descontração e acolhimento. É muito
difícil chegar até aqui sem lembrar de vocês;
À equipe do Programa de Pós-Graduação em Educação, Prof.ª Dra Rute
Cristina Domingos da Palma, Prof.ª Dra Regina Aparecida da Silva, Luiza,
Marcos, Marisa e Duarte que tanto ajudaram e orientaram minhas dificuldades
burocráticas;
A todos os professores, pesquisadores e graduandos da Universidade
Federal de Mato Grosso, que generosamente aceitaram participar desta
pesquisa;
Aos colegas da turma de Psicologia 2016/1, pela acolhida durante o
estágio em docência;
Á CAPES pelo fundamental apoio financeiro para a realização desta
pesquisa.
7
Resumo
Entendendo a aula como um ato tradutor e o professor como uma Didática da tradução, este
trabalho se propôs a experimentar o conceito derridiano de Tradução. Para isso, solicitei a
pesquisadores, professores e estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso campus
Cuiabá, que traduzissem o trecho de um texto de Nietzsche. Utilizei-me do Survey Monkey,
uma plataforma online de questionários, como ferramenta para este propósito. Num
movimento de experimentação, a partir da escrileitura dessas traduções, ouvi os ecos de
minhas vivências, que me permitiram produzir um outro texto em coautoria com estes. A
escuta das traduções deu-se por meio da investigação otobiográfica, desenvolvida por
Monteiro em sua tese de doutoramento (2004), a partir da noção nietzschiana de vivências e
do conceito de otobiografias, proposto por Derrida.
Palavras-chave: Derrida. Tradução. Didática da tradução. Método. Otobiografia.
8
Abstract
Understanding the class as a translator act and the teacher as a translation didata, this work
poposed to experiment the derridian concept of Translation. To that end, I request to
researchers, professors and students of the Federal University of Mato Grosso, Cuiabá
campus, that translated the excerpt from a text by Nietzsche. I used the Survey Monkey, an
online questionnaire platform, as a tool for this purpose. In a movement of experimentation,
from the scripture of these translations, I heard the echoes of my life-experiences, that
allowed me to produce another text in co-authorship with these. The listening of the
translations was obtained through otobiographic investigation, developed by Monteiro in his
doctoral thesis (2004), based on the Nietzschean notion of life-experiences and the concept
of otobiographies, proposed by Derrida.
Keywords: Derrida. Translation. Didactics of translation. Method. Otobiographie.
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SUMÁRIO
O tal do “aramaico” 10
Preâmbulo 12
Caminhos do texto 14
Tradução na educação? 16
Método Acroamático: algumas implicações 18
Um método que ressoa 22
Notas iniciais sobre o método 22
Método otobiográfico e desconstrução 23
A escuta otobiográfica 26
Caminhos do texto 29
Para dar um passo adiante, é preciso dar um passo atrás 32
Por uma tradução transcriadora 36
Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido 41
Por uma tradução desconstrutora 44
Os indecidíveis derridianos 46
A impossibilidade à fidelidade 47
Alô, teste, som 56
Por uma tradução otobiográfica 58
A otobiografia precisa ser bancada 60
Algumas ponderações 66
Referências 69
10
“O momento mais tenebroso vem sempre antes do começo.
Depois, as coisas só podem melhorar.”
Stephen King - Sobre a escrita.
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O tal do “aramaico”
Certa vez, em uma certa padaria, eu falava sobre minhas inseguranças, meus medos e anseios
em escrever no contexto de um grupo de pesquisas, em que todos parecem falar linda e
maravilhosamente o “tal do aramaico”.
Me lembro daquele riso nervoso frente a ironia em que me via por querer trabalhar com o
conceito de tradução, sendo que eu me via incapaz de traduzir em meu texto a bendita língua
do EFF.
Durante muito tempo isso me angustiou e inquietou. Mais complexo e assustador que
escrever uma dissertação em si, seria escrevê-la na bendita língua. Por muito tempo eu pensei
ser isso que se esperava de mim. Afinal de contas, como eu poderia estar ali há tanto tempo e
não ter aprendido o “tal do aramaico”?
E a verdade é que não aprendi, e desde já deixo claro que dele não tentarei me apropriar. Isso
não quer dizer que ele aqui não esteja, ou que não apareça. Percebo o EFF como uma espécie
de entidade mística, nele e com ele, imergi em vivências múltiplas, que me fizeram acessar
infinitas possibilidades. É o tipo de coisa que se sente, que ressoa. Que está lá mesmo que nas
entrelinhas.
Assim, escrevo como alguém que finalmente entendeu, ouvindo as palavras doces e cortantes
de uma querida amiga, que não me cabe querer provar nada a ninguém, só me cabe ser, pois
tudo que há para ser visto e provado, assim o será.
Obrigada, Márcia.
12
Preâmbulo
Agora, olhando para trás, tento lembrar como e quando tudo isso
começou. Ainda é curioso perceber, nesse movimento cíclico da vida,
como tudo que vivi parece se entrelaçar, se cruzar, se mobilizar para
me trazer até aqui. Logo eu, que nunca fui muito boa com as
palavras, em me expressar. Logo eu, que já tinha desistido da minha
busca por um lugar, por algo ao qual pertencer. Logo eu, que já não
sabia mais no que acreditar. Hoje, penso que foi esse duvidar, essa
inquietação que me possibilitou estar aqui. Divido neste texto
recortes de mim, das minhas questões, algumas soluções? Minha
tradução.
Pense em um professor, mas não um professor qualquer, pense no seu professor
preferido. Acredito que todos nós tivemos ou teremos um. O que torna sua aula tão
interessante? Como ele consegue sua atenção? Por que, de uma hora para outra, aquela
disciplina passa a despertar tanto interesse em nós? O que é isso que esse professor faz?
Assim que entrei no Grupo Estudos de Filosofia e Formação — EFF, no final do ano
de 2013, ainda na graduação, disseram que eu deveria ter uma pergunta, algo que eu quisesse
pesquisar e que em alguma medida, traduzisse o meu querer em ali estar, algo que me
inquietasse, levasse cada vez mais a perguntar. Assim, em minha primeira reunião de linha1,
essa questão se tornou oficial. Eu me Lembro de ter balbuciado algo como: “Queria entender
porque a aula de um professor é mais interessante que a de outro, mesmo que os dois deem a
mesma disciplina”.
Dois apontamentos aqui são importantes: 1° - Aqui há um terceiro oculto, o aluno.
Entendo que quando se trata de uma aula, de uma cena tradutória, forma-se no mínimo uma
tríade, o texto, o professor e o aluno. Não desconsidero a presença e importância deste, afinal,
para quem a aula seria interessante, se não para o aluno? Entretanto, neste texto, discutirei
1 O EFF se dividia em três linhas de pesquisa: Linha 1 - Constituição de estilos de individuação; Linha 2 -
Diferença e normalização em Educação e Saúde; e Linha 3 - Experimentações em teorias e políticas
educacionais.
13
apenas esse primeiro momento de uma aula, texto-professor-ensino; 2° - Uma aula nunca será
a mesma, mesmo que dada pelo mesmo professor e para a mesma turma, há algo aqui da
différance. Novamente, o que discutirei aqui é esse ato tradutor do professor ao preparar/dar
uma aula. Essas questões serão melhor elaboradas adiante.
Assim, ao propor a questão destacada anteriormente, me lembrei do meu professor da
8ª série, Claudismar Camargos, que ministrava as disciplinas de História e Filosofia para
minha turma, naquele ano. Recordei de minha fascinação com suas aulas, e hoje percebo o
quanto isso me levou de alguma forma a querer trilhar esse caminho. Apesar de adormecida,
essa lembrança, me impulsionou nessa jornada.
A princípio, minha questão foi relacionada ao conceito derridiano de assinatura.
Entretanto, conforme eu me aprofundava no campo teórico2 do EFF, que privilegiam
principalmente Nietzsche e Derrida, outras questões surgiam, entre elas, destacou-se minha
insatisfação com a metodologia de ensino tradicional, muito comum durante o Ensino Médio,
chamada por Libâneo (2002, p. 2) de “mecânica repetitiva”.
Libâneo (2002) afirma que, esse método de ensino, em que impera a repetição como
forma de acesso ao conteúdo, não é duradouro. Vejo este método de ensino como limitado e
limitante, uma vez que, mesmo que o professor mecanize fórmulas e definições, insista para
que os alunos memorizem suas falas e decorem o livro didático, nem tudo que foi transmitido
pelo professor será recebido pelo aluno, e nem sempre esse aluno receberá como foi passado,
com essa tal fidelidade.
No caminho percorrido pelo conteúdo, do livro para o aluno, ocorrem desvios que
deturpam o original. A própria existência do professor opera desvios, como será demonstrado
posteriormente. Deste modo, a crítica à fidelidade debatida aqui, se refere a um ensino que
busca simplesmente pelo sentido presente no texto original, evidenciada pela repetição do
conteúdo, tal qual este se apresente no original, sem que haja abertura para a possibilidade
crítica. Nesse sentido, notamos um professor e um ensino que, não saibam “como ajudar o
aluno a, através de uma atividade, elaborar de forma consciente e independente o
conhecimento” (LIBÂNEO, 2002, p. 4), querem justamente a fidelidade, uma vez que é isso
que se cobra nas provas.
Entendo o conhecimento como uma contínua construção. É um relacionar-se com
outro — tudo aquilo ou aquele que é diferente de si —, ser afetado pelo outro, sem deixar de
2 Tendo em vista as referências movimentadas pelo Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação em seus
eventos, textos, imagens, audiovisuais, performances e filmes.
14
ser independente e crítico. Assim, tomo o conceito derridiano de tradução como lentes que
possibilitam outra perspectiva — sobre o trabalho-performance do professor —, como
possibilidade de provocação, questionamento e guia nesta dissertação para me ajudar a
defender que, ao ministrar uma aula o professor é ativo e crítico, dar uma aula é um ato de
tradução.
Propor que dar uma aula é um ato de tradução do professor, implica em considerar a
aula equivalente ao texto, no sentido de considerar o trabalho do professor equivalente ao de
um tradutor. Veremos a partir de Corazza (2013) que o professor é um Didata tradutor, isso
me permite considerar que o que o professor faz é o que Jakobsson (1959) chama de tradução
interlingual.
Caminhos do texto
Os capítulos desta dissertação são abertos com trechos de escritura autobiográfica3.
Abri mão das famosas epígrafes, pois, levando em consideração a forma como este texto foi
pensado e operacionalizado, achei importante dividir um pouco de mim. Assim, ao trabalhar
o método enquanto percurso pensei porque não trazer um pouco do meu? Além disso,
abordar a minha biografia é também uma estratégia de possibilitar a otobiografia. Conceito-
método caro a este trabalho.
Outras questões tornam-se também centrais neste texto, entre elas, apresento em
Tradução da educação? a perspectiva aqui adotada sobre o conceito de ensino para a
Didática, o entendimento da tradução enquanto atividade crítica de negociação com o texto a
traduzir que, através do que Corazza (2013) nos apresenta sobre Didática da Tradução me
permite afirmar o professor como um tradutor. Apresento também o método Acroamático e
sua relevância para o questionamento que faço aos métodos de educação ditos tradicionais.
Em Um método que ressoa, faço a apresentação da estratégia metodológica utilizada
nesta pesquisa e da concepção de método adotado, que o considera para além de um simples
procedimento de investigação da verdade. O método é também um “caminho do
conhecimento”, isto é, importa o percurso tanto quanto o que se tem dele, nele e com ele.
Para a análise dos dados, anuncio o método Otobiográfico, proposto por Monteiro, em sua
tese de doutoramento (2004). Neste capítulo, é feita também uma importante diferenciação,
entre tradução (desconstrução derridiana) e interpretação (hermenêutica).
3 Sugestão da Prof.ª Drª Polyana Olini, a quem eu gostaria de agradecer.
15
Nesses termos, Para dar um passo adiante, é preciso dar um passo atrás. Assim,
apresento ao leitor um pouco do percurso da Tradução, desde como esta é apropriada pela
linguística, de forma a passar por algumas teorias da tradutologia, até chegar às considerações
de Campos (2010) que com o conceito de Transcriação inspira Corazza (2013) a propor a
Didática da Tradução. Esses conceitos são de extrema relevância para a aproximação que
faço entre o conceito derridiano de tradução e a Educação.
Entendo que, para elucidar e enfatizar a minha escolha por Derrida e sua tradução
desconstrutora, é interessante um capítulo que introduza e demonstre meu percurso e
aproximações com sua obra. Esse é um dos objetivos de Quem comanda a narração não é a
voz: é o ouvido, em que também serão apresentados e discutidos alguns dos conceitos
derridianos indispensáveis para esse texto, além é claro, de dedicar especial atenção ao que o
filósofo da diferença discute sobre tradução.
Alô, teste, som serve de abertura ao capítulo destinado escuta otobiográfica das
traduções feitas pelos participantes desta pesquisa. Assim, em Por uma tradução
otobiográfica me coloco a ouvir as vivências desses tradutores que tracejam em sua escrita,
para no movimento de escrileitura escrever em coautoria com esses um texto novo. Por fim,
Algumas ponderações encerram esse texto, deixando em aberto porém, o convite para
pensarmos as questões aqui trabalhadas.
16
Tradução na educação?
Há algum tempo ideias e rascunhos dessas páginas me acompanham.
Pode-se dizer que este texto foi iniciado por uma graduanda em
Psicologia e é finalizado por uma Psicóloga que acaba de ter sua
primeira experiência com a docência. Nesse curto tempo, tive a
oportunidade de experienciar alguns conceitos aqui trabalhados.
Penso que deles posso falar, talvez com mais propriedade. Importa
que deles me sinta mais próxima. Um leque de outros
questionamentos e possibilidades também foram abertos para mim.
Este é meu convite para a partir deles, podermos pensar.
O que é a Educação? Uma simples pergunta que abre espaço para múltiplas respostas.
Tudo depende do recorte e da perspectiva que se adota. E também, não é disso que se trata
uma pesquisa? Preciso então, falar da proposta de educação4 que pretendo repensar, explicar
os motivos que me levam a esses questionamentos para então me colocar.
Neste capítulo, darei notícias sobre algumas questões que me são caras, o conceito de
ensino para didática, a tradução enquanto processo de negociação e criação e o professor
como um tradutor. Essa possibilidade tradutora viabilizada ao professor implica em uma
reformulação das concepções tradicionais e mais difundidas dentro da educação,
especificamente quando se refere ao ensino.
Dou destaque a duas dessas concepções tradicionais bastante difundidas. A primeira
delas refere-se à suposição de que exista uma única unidade de sentido para um
texto/conteúdo. Assim, tanto o professor, enquanto mediador da leitura destes, quanto suas
aulas canônicas, tendem a este sentido único entronizar.
Masetto (2003, p. 1) afirma que, tratando-se do ensino superior, a preocupação
principal é sempre com o próprio ensino. Assim, “o professor entra em aula para transmitir
aos alunos informações e experiências consolidadas para ele, através de seus estudos e
4 Para as discussões aqui fomentadas, optou-se por um recorte no campo da Educação que se refere ao Ensino
Superior.
17
atividades profissionais, esperando que o aprendiz as retenha, absorva e reproduza por
ocasião dos exames e provas avaliativas”. Esse panorama ilustra e introduz a segunda
concepção a qual gostaria de dar destaque. Percebe-se ainda vigente no processo de ensino a
manutenção de um sistema rígido de (o)posições hierárquicas que devem ser mantidas e
respeitadas para sua viabilização. Essa hierarquização estende-se ao Ensino Superior.
Algumas delas são:
ensinar/aprender
falar/escutar
ler/escrever
descobrir/criar
Dentre as razões para a manutenção dessas (o)posições, Masetto (2003, p. 1) assinala
uma “organização curricular que privilegia disciplinas conteudistas e técnicas, estanques e
fechadas”, além de “uma metodologia, que, em primeiro lugar deve dar conta de um
programa a ser cumprido, em determinado tempo, com a turma toda; por isso mesmo, uma
metodologia que se esgota em 90% das atividades em aulas expositivas”. Essas concepções
parecem enfatizar um papel de sintetizador e repetidor por parte do professor no processo de
ensino, onde este não teria espaço para a crítica e para a criação.
De acordo com Pimenta et al (2013, p. 146), “a didática, como área da pedagogia,
estuda o fenômeno do ensino”. Nesta dissertação optou-se por, ao tratar de didática, ater-se
ao que os autores aqui referenciados trabalham sobre o ensino. Não se entendem ensino e
aprendizagem como coisas distintas, separadas ou interdependentes uma da outra. Este é um
recorte prático, justificado pelo enfoque deste texto.
Assim, sendo o ensino como isso que o professor faz em dada situação, pois se
entende que, são as pessoas nesta ou naquela cena/situação, que direcionarão quais práticas o
professor deve ter para ensinar. Por essa perspectiva, entendo ensino-tradução sendo
equivalentes, ora, ao ensinar-traduzir importa a audiência-contexto, uma vez que a tradução
do professor tem um destinatário, o aluno. Isto é, ao traduzir, no mínimo, o professor precisa
deixar o texto-conteúdo inteligível a este aluno. Ou seja, a didática é esse campo da
pedagogia que pensa o que o professor faz quando ensina, para uma determinada audiência.
Paralelamente, Corazza (2013) ao tratar da Didática da Tradução, refere-se ao
professor como um Didata da Tradução, através deste conceito, pode-se afirmar que em todas
as vezes que um professor ensina, ele traduz, pois, seu ato é tradutor. É o que Jakobsson
18
(1959) chama de tradução interlingual, ou seja, ao ensinar o professor substitui signos
linguísticos por outros da mesma língua que contenham o mesmo significado. É neste mesmo
sentido que podemos dizer que ler é traduzir. Ou seja, ao ler o texto de base para a aula, o
professor já traduziu. Essa concepção será melhor trabalhada adiante, ao discutirmos como
esse ato de ensino do professor se vincula ao conceito de tradução.
Método Acroamático: algumas implicações
No texto Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino são reunidas cinco
conferências proferidas por Nietzsche entre 16 de janeiro a 23 de março de 1872, na
Universidade de Basiléia, essas conferências têm como tema os estabelecimentos de ensino.
Nelas, Nietzsche propunha a seus interlocutores o exercício de uma reflexão crítica, sobre
problemas da cultura, da educação e do ensino.
Nesse texto, Nietzsche (IE, §5)5, nos fornece instrumentos para refletir sobre
problemas que ainda hoje debatemos, dentre os quais darei destaque ao que ele chama de
método Acroamático6. Percebe-se que ainda é vigente no campo educativo uma ligação direta
do aluno à universidade pelo ouvido, ou seja, cabe ao professor falar — transmitir o
conhecimento — e ao aluno ouvir — receber esse conhecimento.
Desconfio que esse modelo seja pouco eficiente no processo de ensino,
principalmente ao se tratar de um ambiente que tem como um de seus enfoques principais a
formação profissional, a Universidade. Entendo que, sobre a formação profissional ainda há
muito a se contribuir, principalmente no que diz respeito a práticas e pesquisas. Na
Universidade, dedica-se a um ensino, que muito demandará de seu aluno, pois entre outras
nuances, a formação profissional implica em autonomia.
Tomemos um Psicólogo em sua prática clínica, como exemplo. Ao clinicar essa
prática, exigirá mais do que saber ouvir e identificar conteúdos a serem trabalhados com o
cliente. Esse fazer extrapola o conhecimento teórico recebido, implica em mobilizar o que se
sabe, operacionalizando-o e, transformando-o na e pela prática.
5 Este modo de citação se baseia na convenção da edição Colli e Montinari das obras completas de Friedrich
Nietzsche. Adoto neste texto, a citação por siglas. IE - Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino. 6 Esse termo faz referência ao ensino aos moldes de Aristóteles, onde o conhecimento era transmitido
oralmente, não era permitido aos discípulos qualquer intervenção a sua fala.
19
Trata-se de um criar, que acarreta em escolhas, em situação, autônomas. Através deste
panorama, meu entendendimento é de que o ensino profissional não só estremece essa ligação
direta do aluno à Universidade pelo ouvido, mas a ultrapassa quando percebemos que aquilo
que foi ouvido pelo aluno é incorporado em sua prática profissional como instrumento de
trabalho.
Se o Ensino Superior mobiliza teoria e prática, meu problema então é justamente esse
desejo de fidelidade que a Instituição Educacional tem. A cada momento somos solicitados a
repetir conteúdos, tal qual nos foram passados, seja pelo livro didático, seja pelo professor.
Assim, em alguns momentos parece ser mais importante a repetição à criação, à
remobilização teórico-prática.
As determinações da Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT) — apesar
de não se constituírem como uma prescrição de conteúdo, mas como uma forma de
apresentação destes — serve de exemplo sobre a fidelidade a qual me refiro. Quem no meio
acadêmico nunca passou algumas horas revisando seus textos, para verificar se tudo estava
dentro do padrão desejado, ou após a entrega não perdeu alguns pontos caso o olhar corretivo
apontasse a falta? Quando analisada por esse aspecto, normativo, a fidelidade acaba tolindo
de certo modo a criatividade, pois ela não é apenas desejada, mas critério avaliativo.
Além disso, o método Acroamático reforça a visão do professor como mero
receptáculo e transmissor de conhecimentos, e da aula como loco de mera transmissão do
conteúdo literal ou simples auxiliar a leitura dos textos originais. Considero essa visão
ultrapassada. Entendo que ao ensinar o professor não só não é neutro, como não apenas
transporta o conteúdo do livro para o aluno, o professor traduz.
A tradução, tradicionalmente, também parte de uma busca a fidelidade. Seu interesse
é pela origem, pelo significado original do a traduzir. É interessante notar que, apesar da
impossibilidade desta — o que pretendo demonstrar posteriormente —, a fidelidade não é
simplesmente uma injunção externa, mas um imperativo ditado pela dívida que o tradutor
fantasia possuir com o texto original (DERRIDA, 2012).
O conceito de tradução utilizado aqui é o da Filosofia da Diferença, enquanto um
gesto desconstrutor, que põe em dúvida a ideia de que a leitura de qualquer texto possua uma
mensagem pré-determinada que precise ser codificada, ou seja, que há um sentido presente-
oculto no texto. O conceito derridiano de tradução também aponta para a errância do texto e
seus deslocamentos de sentido no percurso do texto.
Desse modo, proponho que pensemos as relações de ensino, professor-aluno, em
novas bases. Para isso, me aproximo de trabalhos de filósofos da diferença, como Derrida, e
20
seu conceito de tradução. E de Corazza (2013), que nos apresenta a Didática da Tradução,
conceito que discute a didática e seus processos de criação tendo como norteadores a filosofia
da diferença, as teorias de tradução literária e as formulações didáticas contemporâneas.
Parto de um questionamento aos métodos de educação tradicionais, que dispõe uma
concepção conteudista, baseada na repetição, no decorar, nessa tal fidelidade ao original, que
Derrida (2002a) e Haroldo de Campos (2010) questionam. A fidelidade à obra original é
possível? Acredito que não. Para mim, quando o professor lê, ele já traduziu, então de forma
introdutória poderíamos dizer que o professor cria quando ensina e por sua vez, o aluno cria
quando aprende.
Tenho por hipótese que o conceito derridiano de tradução provoca uma instabilidade
na noção de ligação do aluno à Universidade pelos ouvidos. Essa noção de tradução, ao
contrário do que postula o método Acroamático, provoca um estranhamento nessa relação
professor-aluno, uma confusão de papéis que parece desejar que a escuta do aluno seja infiel,
mesmo que, tradicionalmente, o professor queira desse ouvido justamente a fidelidade, de
forma a absorver tudo e repetir igual ao que foi dito.
De modo bem simplificado, digamos que cada um recebe/traduz o conteúdo tendo
como base os parâmetros estabelecidos pelas Instituições às quais pertence e por suas
vivências7. O conceito de Instituição aqui utilizado provém da formulação de Baremblitt
(1992, p. 25), o qual determina que:
As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a
forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e,
quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou
regularidades de comportamentos.
Isso quer dizer que, as Instituições, enquanto formas de centralização do poder dentro
de uma sociedade, promovem um cerceamento da liberdade de tradução, me refiro aqui à
dívida do tradutor. As Instituições ditam regras de conduta que influenciam não só no
comportamento das pessoas, mas também nas concepções destas sobre esses
comportamentos/práticas.
Nesta perspectiva, o conceito de tradução é atravessado por outras Instituições, como
a Linguística e a Educação, por exemplo. Assim, nossa concepção de tradução recebe
7 A Vivência aqui é compreendida e utilizada no sentido nietzscheano, conforme apresentado no Fragmento
póstumo 19[241] do verão de 1872/início de 1873 [Erlebnisse], onde Nietzsche nos mostra que as vivências são
únicas e individuais e advém de cada indivíduo, da constituição orgânica, do instinto, não podendo assim ser
transpassada. Ou seja, a vivência não é racional, é inatingível. É tudo o que propriamente se vivenciou (sentiu,
presenciou, pensou, quis, fez ou permitiu).
21
influencias tanto das determinações Institucionais vigentes, quando das nossas
particularidades, nossas vivências.
A partir da obra ou conteúdo dito “original”, através da tradução, múltiplos sentidos
são disseminados, há múltiplas possibilidades, sentidos mutáveis. Um exemplo simples é o
estudante de psicologia que traduz a teoria psicanalítica apresentada em sala de aula pelo
professor, tendo como suporte sua experiência de análise. A tradução da teoria psicanalítica
do estudante que está em processo de análise, será diferente daquele que não está, mesmo que
ambos estejam inseridos na mesma instituição, a educação, e essa aula seja operacionalizada
pelo mesmo agente, o professor.
Entendo que a riqueza da produção do conhecimento difere da simples repetição do
mesmo, mas que o conhecimento dado seja possibilidade de abertura à produção de novos
saberes. Assim, me respaldo principalmente em Jacques Derrida, no que diz respeito ao
conceito de tradução e em Sandra Corazza e Haroldo de Campos, com o intuito de pensar o
processo de ensino a partir das contribuições do conceito de Didática da Tradução.
22
Um método que ressoa
Ressoar, entoar, retumbar, ecoar. Nada deste texto é só um texto.
Escrever é um salto no abismo. Escrever produz uma marca. Escrever
é dar a palavra. Pois quando aquele que escreve desaparecer, seu
texto não deixa de funcionar, seu texto continua para ser lido e
reescrito. Escrever é uma performance que se esvai de quem escreve.
A assinatura fica. É morte do signatário em nome da sua marca.
Notas iniciais sobre o método
De acordo com Monteiro e Biato (2008, p. 255), a partir da tradição “a palavra
método indica a noção de procedimentos que devem ser seguidos quando se deseja obter
algum resultado investigativo8”, ou seja, é o que deve ser feito para que seja possível validar
um resultado ou uma ideia. Isso traz também a ideia de caminho tomado para se chegar a um
fim. Entendo que, nesse movimento, nesta pesquisa, além do resultado final, importa também
o percurso, o conhecimento construído.
O que se pretende com este texto está tanto no movimento quanto no resultado final,
pois se trata da “vivência do processo e o conhecimento adquirido com ele, muito mais do
que o estabelecimento de uma resposta. O percurso é conhecer; seu método, a criação, o
ensaio. ” (Monteiro e Biato, 2008, p. 266). Em consonância com esses autores, penso que o
método é sim, caminho percorrido para se chegar ao conhecimento, mas que se consolida
como criação e não como descoberta.
Essa concepção de método difere da tradicional e famosa concepção de método
trabalhada pelo maior expoente do racionalismo clássico, René Descartes. Em seu célebre
texto Discurso do método (1979), Descartes propõe uma base sólida que serviria de alicerce a
todo conhecimento científico, sua intenção era conduzir o pensamento humano por um
8 Grifo do autor.
23
modelo similar ao matemático, uma vez que, ausência de dúvidas e certeza são atributos
desta. Descartes é um racionalista, para o qual através de raciocínio lógico, ou pela aplicação
de um método, consegue-se atingir um objetivo e/ou solucionar um difícil problema, sendo
essas as funções e o fim para qual se destina o método.
Minhas concepções metodológicas, entretanto, afastam-se das cartesianas na medida
em que se aproximam das concepções da Filosofia da Diferença, pois essas últimas abrem
espaço para caminhos e possibilidades múltiplas para soluções diversas. À maneira como
entendo, o método seria um “caminho do conhecimento” e não apenas um procedimento de
investigação da verdade, sendo caminho, mesmo que muitas vezes tortuoso e incerto, sempre
será criativo, criador.
Método otobiográfico e desconstrução
Para a análise dos dados lanço mão de um método proposto por Monteiro, em sua tese
de doutoramento (2004) — Método Otobiográfico —, por se aproximar das referências
teóricas adotadas para a pesquisa: o pensamento de Jacques Derrida, Friedrich Nietzsche e as
filosofias da diferença. Este, é que ditará o tom para as análises realizadas, já que vem sendo
adotado, recriado e performatizado por diversas pesquisas9 de mestrado e doutorado oriundas
de um fértil movimento de estudar junto do EFF.
Entendo que o método aqui adotado me auxiliará na escuta das produções escritas,
pois foi desenvolvido a partir da noção nietzschiana de vivências e do conceito de
otobiografias, proposto por Derrida (2009), no livro Otobiografias. La enseñanza de
Nietzsche y la política del nombre proprio.
É neste texto que Derrida (2009) apresenta o neologismo otobiographies, este sendo
mais um exemplo de sua constante busca de superação ao fonocentrismo. Assim como em
seus outros neologismos, ele joga com as palavras, aqui autobiographie e otobiographie, ou
9 Alguns dos trabalhos aos quais me refiro são: Como engenheiros tornam-se professores (2008), A formação da
mulher para se tornar policial militar (2009), Vivências formativas que encaminham à Docência (2009),
Otobiografia como escuta-escrita autobiográfica (2010), Escritura, vida e constituição de si: a arte do estilo
(2012), A constituição de si: pesquisa otobiográfica com professores da rede pública de ensino (2012), A
Dicotomia Policial x Militar? Explorando o Conceito de Vivências em Nietzsche na Formação do Oficial da
Polícia Militar de Mato Grosso (2014), A constituição de estilos do feminino: investigação de processo de
formação de pedagogas e psicólogas (2014), Prognóstico e errância. Mil saúdes e ilhas recônditas da vida
(2015), e Investigação otobiográfica: composição de pesquisa em educação (2015).
24
seja, com os prefixos auto (próprio, si mesmo) e oto (ouvido), utiliza-se da semelhança na
sonoridade das palavras para impossibilitar sua distinção enquanto pronúncia. Entretanto, a
impossibilidade de distinção decorrente do jogo entre oto e auto pode ser superada na sua
forma gráfica10, na palavra escrita, o que propicia a elaboração do conceito de otobiografias.
Este livro (2009) é o estabelecimento de uma aporia11 — embora Derrida só venha a
se dedicar, investir nesta futuramente —, ou seja, ele anuncia um limite, mas ao mesmo
tempo um espaço, uma possibilidade. Como? Em primeiro lugar porque quando se fala, duas
coisas são ditas. Em francês, o som da palavra otobiographies pode ser entendido tanto como
autobiografia quanto otobiografia. O som desta palavra diz duas coisas. Sempre haverá um
segredo quando se diz ou quando se escreve. Para Derrida, a fala é essa absoluta denúncia
que não aparece (DERRIDA, 2009). Assim como a différance recalca uma différence com
“a” porque quando se fala, só “aparece” différence com “e”.
Em segundo lugar, a vida não é um acidente empírico, ou seja, não é possível para nós
identificar suas intenções, motivações ou causas. Toda atribuição de causa a uma vida é mais
uma declaração sobre quem atribuiu a causa do que sobre a quem é atribuída à causa. Derrida
(2009) lê a declaração de independência dos Estados Unidos, como uma estratégia para
explicar por que quem declara fala mais de si do que da declaração. Afinal de contas, quem é
o “povo”? Poderiam algumas pessoas reunidas em uma sala para escrevê-la falar em nome de
uma nação?
Em terceiro lugar, em todo texto há uma política do nome próprio, isto é, ao escrever
se fala em nome e por nomes que supostamente são dados ou próprios. Para Derrida (2009),
não há dados, verdade absoluta ou sentido original, apenas traduções, interpretações. De
acordo com Schmidt (2012), ao afirmar que não existe verdade ou significado a ser
encontrado no texto, apenas interpretações deste, Derrida enfatiza o jogo da diferença.
Interpretar no sentido derridiano difere do sentido dado pela hermenêutica, que busca
o sentido original, descobrir a verdade, ou ainda “compreender corretamente” (SCHMIDT,
2012, p. 15). Em outras palavras, a interpretação hermenêutica entende que há e busca essa
suposta mensagem ou sentido presente-oculto no texto.
Ao contrário, a interpretação para Derrida, é considerada no sentido de produzir um
pensamento a partir do texto, mas sempre assumindo que não há sentido dado, ou a ser
revelado, isto é, interpretar é sempre perfurar no sentido de esporas (DERRIDA, 2013).
10
Lembro-me de recém-chegada no EFF, ter experienciado essa impossibilidade de distinção sonora quando os
colegas se referiam ao Método Otobiográfico. 11
Em grego: Ἀπορία, caminho inexpugnável, sem saída, dificuldade.
25
A ideia de interpretação no sentido derridiano tão pouco se refere à busca “daquilo
que é mais significativo. ” (MONTEIRO, 2016, p. 12). Perfurar um texto, cria “traços,
rastros, margens12; tais conceitos devem ser lidos à luz do pensamento da desconstrução”
(Ibid).
Isso leva ao fragmento Esqueci meu guarda-chuva. Entre aspas. Que chave
hermenêutica nos ajudará com esta sentença? Será um código, uma senha, uma
mensagem criptografada? Será mesmo de Fritz? A letra é sua, mas de sua autoria?
Foi citada, pois entre aspas? É respeito à autoria de outro? Foi escrita para não ser
esquecida, pois desejava usá-la em uma sessão de seus livros? Talvez, toda a obra
de Nietzsche tenha que ser lida ao modo de “esqueci meu guarda-chuva”. Um texto
absurdamente claro, mas contratualmente indecifrável. Queríamos o autor vivo para
perguntar-lhe as razões, como às vezes desejamos que sejam feitos com os bilhetes
dos suicidas. Queremos razões para textos indecifráveis. Quais as cifras de acesso?
Como traduzi-lo? (MONTEIRO, 2016, p. 12, grifo do autor).
Perfurar no sentido de espora é uma entrada que se dá no texto a partir de quem lê.
Perfurar seria uma “interpretação afirmativa” (MONTEIRO, 2016, p. 15) de si no texto.
Desse modo, longe de se buscar o sentido presente-oculto do texto (como se faz na
interpretação hermenêutica), entende-se que em todo texto “sempre haverá um furo, um
buraco, uma ausência” (Ibid).
Essa é uma importante diferenciação a ser estabelecida — no modo como trabalho —
entre tradução (desconstrução derridiana) e interpretação (hermenêutica). Embora Derrida —
meu interlocutor — tenha farta leitura em autores vinculados à tradução fenomenológica, e
considerados como hermeneutas (Heidegger, por exemplo), as relações entre hermenêutica e
desconstrução (que dita o tom à interpretação a qual me referi acima) devem ser bem
demarcadas.
A hermenêutica vincula-se, no limite, a uma tradição histórica que remonta a
Schleiermacher13 no empenho de interpretar textos bíblicos, portanto, a uma tradução
teológica alemã. “Para Schleiermacher, a hermenêutica é a arte14 de compreender a
linguagem falada e escrita. A prática estrita da hermenêutica pressupõe que erros de
12
“Para além do texto filosófico não há uma margem branca, virgem, vazia, mas um outro texto, um tecido de
diferenças de forças sem nenhum centro de referência presente [...] o texto escrito da filosofia (desta vez nos
seus livros) excede e faz quebrar o seu sentido” (DERRIDA, 1991, p. 25). O sentido é partido. 13
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768 - 1834), filósofo e teólogo alemão, ele se considerava o primeiro
a unificar as várias teorias hermenêuticas de disciplinas específicas numa hermenêutica universal. 14
“Com ‘arte’, Schleiermacher não quer dizer que a hermenêutica é meramente um processo criativo e
subjetivo. Em vez disso, naquela época “arte” incluía o sentido de saber como fazer alguma coisa, que é o
significado compartilhado nos termos “artes técnicas” e “belas-artes”. Enquanto uma arte, a hermenêutica inclui
regras metodológicas, mas sua aplicação não é restrita por regras, como seria o caso num procedimento
mecânico. A arte é aquilo para o qual admitidamente há regras. ” (SCHMIDT, 2012, p. 19).
26
compreensão ocorrem normalmente, por isso a interpretação é sempre necessária”
(SCHMIDT, 2012, p. 16).
O problema central da hermenêutica, a tarefa necessária da aplicação, trata de como
o texto é levado a falar no horizonte do intérprete, agora expandido. A compreensão
é como uma conversa onde o intérprete precisa ouvir e respeitar as opiniões de outra
pessoa. Nessa conversa, onde várias posições são examinadas, a compreensão
correta é obtida quando todos concordam sobre uma posição (SCHMIDT, 2012, p.
19).
A desconstrução, pelo contrário, põe em dúvida a ideia de que a leitura de qualquer
texto, inclusive os da mitologia judaico-cristã, "querem-dizer" alguma coisa a seus leitores.
Enquanto “o objetivo da hermenêutica é reconstruir o processo criativo do autor e mesmo
compreendê-lo melhor do que ele se compreendia” (SCHMIDT, 2012, p. 21), para a
desconstrução, toda leitura é ativa e produtiva. Nas palavras de Derrida: "uma leitura que
transforma o texto pondo em jogo uma multiplicidade de significações diferentes e
conflitantes". (DERRIDA, 1997, p. 23, tradução nossa). Não há um sentido que precisa ser
encontrado, mas perfurado.
A escuta otobiográfica
De acordo com Santana (2008, p. 17), “o prefixo oto significa orelha, ouvido.
Portanto, o órgão da fisiologia humana que tem a função de captar os sinais sonoros, ou seja,
que nos possibilita ouvir. Sendo assim, otobiografia significa ouvir a biografia.” Monteiro
(2007, p. 473), afirma que quando se trata de otobiografia “a metáfora despertada pela escuta
concilia-se com a de labirinto: o ouvido, em sua anatomia, aproxima-se da forma labiríntica”.
Nesse sentido, “o código do labirinto é duplo” (Ibid, p. 474), pois é tanto uma parte da orelha
humana, como se refere ao caminho de Ariadne.
Refero-me aqui ao mito de Ariadne, princesa da mitologia grega, filha de Minos e
meia-irmã do monstruoso Minotauro. Este vivia num labirinto no palácio de Knossos, onde
todos os anos eram entregues a ele 14 jovens em forma de sacrifício. Esses jovens entravam
no labirinto e eram mortos pelo monstro. Certa vez, Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas,
heroicamente se ofereceu como vítima, disposto a liquidar o monstro. Ariadne, encantada
pelo rapaz, prometeu ajudá-lo a sair do labirinto depois que matasse Minotauro. Assim,
Ariadne permaneceu na entrada do labirinto segurando um dos extremos de um longo
27
barbante, conforme Teseu adentrava pelos infinitos corredores, o barbante ia sendo
desenrolado. Foi somente por conta do fio de Ariadne que Teseu pode sair do labirinto após
matar o temível Minotauro (MONTEIRO e BIATO, 2008).
Figura 1 - Anatomia do ouvido humano.
O labirinto (sendo referência à estrutura do ouvido, ou ao caminho tortuoso do
labirinto enfrentado por Teseu com ajuda de Ariadne), serve de analogia ao próprio
movimento de escura otobiográfica.
Monteiro (2004, p. 21) fez uso da otobiografia “como método de acesso às vivências
formadoras das professoras-estudantes, captadas por suas falas presentes nos dossiês de
conclusão de curso. ” É nos dossiês das “professoras-em-formação” (Ibid., p. 23) que
ressoam suas vivências.
Esse método/caminho mostra-se tortuoso e labiríntico, pois quando me coloco a ouvir,
o que pretendo ouvir são “as vivências que tracejam os escritos, as forças que põem em
movimento o texto, as criações do autor que levam sua assinatura única. Isto é a vida do autor
afirmada em sua assinatura” (CAMPOS, 2016, p. 58).
Sendo assim, é necessário se distanciar da escuta analítica “em direção a uma escuta
da vida que transita pelo texto, se apresenta como o duplo gesto do leitor-desconstrutor
derridiano, que se aproxima e se afasta do texto, evitando o movimento de síntese e redução”
(SANTIAGO, 1976, p. 19).
A escuta analítica aqui, refere-se a um ouvir atento, que através desta escuta e tendo
como suporte um quadro conceitual tende a atribuir significações, criar nexos. Escutar as
28
vivências que tracejam na escrita afasta-se da escuta analítica na medida em que se aproxima
de uma escuta quase instintual que demanda e é comandada por minhas próprias vivências.
Parto do pressuposto que todo texto é autobiográfico, mesmo que nele não se fale de
si. Assim, “ouvir as vivências é sempre um desafio”, haja vista que “para compreendê-las é
preciso compartilhá-las” (CAMPOS, 2016, p. 58). Nesse sentido, ao escutar vivências, não
busco por significados nem “o quê” o autor quis dizer (CAMPOS, 2016), mas os traços de
vivências que habitam essa escrita, pois, “só artificialmente podemos separar um texto da
vida do seu autor” (MONTEIRO, 2007, p. 471).
Esses escritos deixam rastros de vivências que são outras, mas que afetam e são
acessadas pelas minhas. Desse modo, não se trata de uma investigação da verdade, mas de
uma criação que acontece no percurso. A escuta não é um fim, mas um meio de acessar
vivências.
Dizia Nietzsche em Zaratustra15, (ZA, §1) “Para aquilo a que não se tem acesso por
vivência, não se tem ouvido. ” Logo, a otobiografia, implica em deixar “meus ouvidos e
minhas vivências ao exercício” dessa escuta. (CAMPOS, 2016, p.17)
Uma escuta de vida que privilegie menos os acidentes empíricos que marcam os
pontos entre o nascimento e a morte de um autor <e que costumeiramente se
costuma chamar de vida >, detendo-se mais aquilo que afirmativamente se mostra
acidental. Uma escuta que não se põe apenas a escutar os acidentes de uma vida
empírica, mas que se coloca <ela mesma> enquanto acidente. Em águas
demasiadamente serenas, a vibração de uma pequena pedra sendo jogada soará
sempre acidental. Ao se estender por toda a superfície do corpo, o tímpano será isto
que vibra, e como tal, o organismo próprio da escuta. Uma organicidade receptiva e
<sobretudo> vibratória. A otobiografia enquanto acidente tocante, que sofre
vibração e que se põe a vibrar. O tímpano como zona fronteiriça entre corpos que se
encontram e que se ferem. Timpanizar a biografia é enxertar o acidental da vibração
a útil funcionalidade da compreensão auditiva. Eu escutei! – diz o ouvido, referindo-
se ao que foi compreendido de uma vibração. O ouvido é o órgão da partilha e do
pertencimento. (COSTA, 2008, p. 72).
É no movimento de leitura e escritura, através de uma “escrileitura” (CORAZZA,
2013) que procuro entrar nos textos, movimento que resultará numa produção em coautoria
com o texto lido (BIATO, 2015), onde, “a otobiografia seria esse pacto autobiográfico
deslocado da boca de quem fala para a orelha de quem escuta” (COSTA, 2008, p. 70).
Neste processo, vivências múltiplas e singulares nos atravessam, e afinando os
ouvidos será possível ouvir os rastros deixados pelo autor, ou seja, “ouvir uma história que
não está na história” (CAMPOS, 2016, p.55), para então produzir dele/com ele um texto
novo.
15 ZA - Assim falava Zaratustra.
29
Nessa perspectiva, é importante ressaltar, que talvez, as vivências que me guiam hoje
no exercício dessa escuta, podem não ser as mesmas de amanhã, pois esse é um movimento
errante e experimental, próprio da dinâmica da pesquisa (CAMPOS, 2016). De toda forma,
espero ter, como criação, uma produção escrita refletida, especialmente no que tange às
possibilidades de fazer e construir o novo.
Caminhos do texto
Esta pesquisa está dividida em três momentos. No primeiro, farei uma revisão de
literatura do conceito de tradução, nesse ponto, busco dar conta da visão de alguns
pensadores clássicos e contemporâneos sobre o conceito. Busco também, esse entendimento
por parte da Linguística, por ser este um conceito muito discutido nesta ciência.
No momento seguinte, destacarei minha escolha pelo entendimento derridiano do
conceito de tradução. Aqui, será estabelecida a relação do mesmo com o conceito de
Transcriação de Haroldo de Campos e de Didática da Tradução de Sandra Corazza, são essas
leituras que me auxiliaram a estabelecer a conexão com a Educação.
Por fim, faço uma experimentação do conceito de tradução, neste momento, relaciono
o conceito de tradução à didática enquanto campo de pesquisa. Para tal, exporei a pesquisa
em sua métrica amostral e categorias utilizadas na acomodação dos perfis visados para a
distribuição do instrumento de coleta de dados.
Foram amostra desta pesquisa dois docentes, seis discentes e dez pesquisadores da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus Cuiabá.
A experimentação do conceito derridiano de tradução proposta aqui, contou com a
contribuição de dezoito participantes, acomodados em uma das categorias abaixo:
1. Pesquisadores com diversas formações, desde que vinculados a algum grupo de
pesquisa da UFMT;
2. Graduandos do curso de Psicologia da UFMT;
3. Docentes da UFMT (pertencentes ao Programa de Pós-Graduação em Educação, ao
EFF ou ao curso de Psicologia).
Vale ressaltar que, os participantes foram selecionados de maneira aleatória — tendo
como único critério se encaixar em uma das categorias apresentadas anteriormente — e que
30
nem todas as produções serão analisadas nesta pesquisa. Entretanto, essa divisão em
categorias foi feita numa tentativa de abranger a maior e diversificada amostra possível de
atores acadêmicos.
As vias desse estudo utilizaram o Survey Monkey16, uma plataforma baseada em
nuvem de desenvolvimento de pesquisas online. A escolha por essa ferramenta deu-se por sua
agilidade e praticidade, a informática possibilita que o link que direciona para a coleta de
dados seja enviado rapidamente aos participantes via internet (e-mail, Telegram ou
Whatsapp). Assim que os participantes respondam ao que lhes foi proposto, clicam em
“Concluído” e esses dados são enviados para o pesquisador em tempo real.
No primeiro contato com os participantes, falei da minha pesquisa e me apresentei
brevemente. Em seguida fiz o convite para que participassem. Aqueles que aceitaram,
apresentei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi devidamente
explicado e assinado. Após a assinatura do TCLE, solicitei aos participantes que acessassem
o link do Survey Monkey, que eu havia acabado de enviar. Assim, todos poderiam17 visualizar
as instruções contidas no instrumento de coleta de dados adotado para essa pesquisa, como
mostra a Figura abaixo:
16
Esta plataforma provê pesquisas personalizáveis gratuitas, e inclui análise de dados, seleção de amostras,
eliminação de vieses, e ferramentas de representação de dados. 17
Nem todos os participantes acessaram e responderam imediatamente.
31
Figura 2 - Modelo do instrumento de coleta de dados - Survey Monkey.
É preciso deixar claro que não pretendo buscar neutralidade no processo de tomada
dos dados construídos na pesquisa. Após receber o material coletado, eu também produzi
textos a partir da leitura que fiz da produção dos participantes. Esse movimento de criação é
parte imprescindível para o método de análise aqui proposto, pois tanto pesquisados quanto
pesquisadora são, neste sentido, “escrileitores” (CORAZZA, 2013, p. 191) operam,
simultaneamente, a leitura e a escritura.
32
Para dar um passo adiante, é preciso dar
um passo atrás
Ao se deparar com essas palavras, o que elas denotam? O que elas
a nós significam? Ao criar conhecimento, geramos perspectivas e as
experimentamos, tentamos fugir da adoção de perspectivas já
existentes, mesmo que em partes, partamos destas. Inspirada por
Nietzsche, acredito que o procedimento para a produção de
conhecimento é dizer sim à vida, o que torna possível experimentar
diversas perspectivas. Experimentar é viver. Que dizer sim a vida,
não seja confundido com aceitar tudo que vem, a passividade frente
à vida denota fraqueza, também não é negar tudo que vem, é saber
que viver a vida é fonte rica de experimentações. E não são as
ambíguas, as criações mais fascinantes? Se não formos capazes de
criar nada que não seja a partir de um livro ou algo que nos tenha
sido posto, também não temos perspectiva sobre nada.
Tradução é um termo bastante comum à Linguística. De acordo com Emmel (1997),
apesar de em muitas discussões a tradução ainda é considerada uma “atividade linguística
em sua essência” (p. 75), antes da década de 80 não se estabelecia esse tipo de relação entre
ambas. Isso, pois,
até bem pouco tempo a preocupação primordial dos tradutores se restringia a
discutir se a tradução era uma ciência ou uma arte, se as traduções eram para ser
"livres" ou "literais", ou se ela, afinal, era de todo possível. Raras são as referências
ao que poderia constituir uma contribuição da Linguística à tradução. (EMMEL,
1997, p. 76).
A autora cita o exemplo de Saussure, um dos mais referenciados linguistas, que
dedicou boa parte de seus esforços para precisar a natureza de seu objeto de estudo, uma vez
munido de “argumentos suficientes e convincentes” (1997, p. 76), pode então dedicar-se a
seus estudos da “linguística como uma ciência autônoma” (Ibid).
De acordo com Schmitz (1992), ainda hoje, muitos autores consideram a tradução
uma subárea da Linguística Aplicada. Steiner (1975), defende que as primeiras tentativas de
33
aplicação da teoria linguística à tradução começaram somente no século XX, sendo que a
publicação de Essay on the principies of translation, de A. F. Tytler, em 1972, marcaria o
início dessa investigação teórica. (RODRIGUES, 1993).
Deveras diversas podem ser as posições dos teóricos da área quanto às relações entre
linguística e tradução. Susan Bassnet-McGuire (1991, p. 37, tradução nossa) defende que a
tradutologia “é uma disciplina séria que investiga o processo de tradução, tentando
esclarecer a questão da equivalência e examinando o que constitui o significado dentro
desse processo.” Koller (1992, p. 128, tradução nossa) defende a “existência de uma Ciência
da Tradução por seu caráter interdisciplinar.” Para ele, a “tradução é ciência sui generis,
mas que, em conteúdos ou métodos, se cruza com outras ciências ou ramos de ciência.”
(EMMEL, 1997, p. 78), e Tobin (1988, p. 450, tradução nossa) constata que “parece existir
uma tendência dentro da Tradutologia de permanecer na retaguarda dos estudos linguísticos,
embora ambas as áreas estejam se empenhando igualmente na busca de um modelo
universal.” (Ibid). Ou seja, essa distinção, ou entrelaçamentos ainda se constituem em uma
linha muito tênue.
No Brasil, o primeiro curso universitário de tradução foi criado no ano de 1968
(BORDENAVE, 1989), sendo que foi só a partir 1980 dada a devida importância para a
metodologia dos cursos de tradução. Bordenave (1989), coloca em destaque o que podemos
chamar de “natureza do processo tradutório” (RODRIGUES, 1993), pois, para ele "a
tradução não é disciplina na qual um conteúdo é transmitido ... é um fazer, um fazer
intelectual" (BORDENAVE, 1989, p. 60).
Com essa afirmação, o autor se coloca na contramão daqueles que defendem a
tradução como a busca por equivalências, corrente que visa formular regras para a prática
tradutória. Para Snell-Hornby (1988), por exemplo, a "tradutologia" seria então, uma linha
de pesquisa baseada na linguística que teria “como objetivo fazer com que o estudo da
tradução fosse rigorosamente científico e transparente.” (RODRIGUES, 1993, p. 183).
O termo equivalência, além de ser impreciso e mal-definido (mesmo depois de
calorosos debates por cerca de 20 anos), indica uma ilusão de simetria entre
línguas que mal vai além de aproximações vagas e que distorce os problemas
básicos da tradução (SNELL-HOMBY, 1988, p. 22, tradução nossa).
Essa concepção de tradução, como podemos notar ressalta a ideia, de que a tradução
seria uma tentativa de ser fiel ao texto original e ao se mudar a língua, seria possível buscar
um termo equivalente no outro idioma. Ou seja, trata-se de “congelar e dissecar o processo,
assim como estabelecer normas gerais para a boa tradução.” (RODRIGUES, 1993, p. 183).
34
Mas, isso é realmente possível? Basta ensinar algumas técnicas, e “dependendo do
grau de convergência ou de divergência entre as línguas envolvidas” (RODRIGUES, 1993,
p. 184) neste ato, essa pessoa, esse simples “intermediário” nesse processo, já teria os
atributos para ser considerado um bom tradutor? E seu trabalho, poderia ser considerado
uma boa tradução? Para começar, levemos em consideração que “a linguagem é
indissociável de um contexto imediato e sócio histórico.” (Ibid).
É importante destacar que, apesar de a noção de equivalência tratada acima ter se
mostrado cara a linguística aplicada, acompanhando a evolução das discussões da
tradutologia nota-se que a equivalência vem perdendo campo, isto é, essa já não é mais uma
visão hegemônica. As noções de relevância18 Sperper e Wilson (2005), e a noção de tomada
de decisão19 Jiry Levy (2012), por exemplo, são duas teorias na tradutologia que substituem
essa noção de equivalência. Não tenho como intuito neste texto esgotar as discussões da
tradutologia. Desse modo, espero apenas que as leituras apresentadas aqui sirvam de suporte
e fundamento para a minha tomada de posição sobre a tradução.
Para Saussure (1993), o objeto da linguística é a língua, onde som ou o sinal gráfico
seriam produtos da capacidade humana em expressar pensamentos. Já a tradução, para
Emmel (1997, p. 79), seria uma “aplicação especial da capacidade linguística humana”. Ou
seja, trata-se de “um procedimento altamente complexo envolvendo as mais diversas
condições e fatores linguísticos, comunicativos, culturais etc.” (KOLLER, 1992, p. 148,
tradução nossa).
O peculiar reside no fato de que, diferentemente do falar normal, o tradutor não
pode refletir livremente sobre o que ele deseja revestir de palavras. Ocorre aqui
uma predeterminação na forma de palavras e sentenças – só que em outra língua!
É justamente dessas palavras e sentenças que o tradutor precisa extrair o conteúdo
a ser expresso. Os processos normalmente separados de compreensão e de
produção linguística se integram no traduzir – ou de forma concomitante como na
tradução simultânea, ou “off line” na tradução normal de textos escritos. Em
ambos os casos o processo se divide em duas línguas. Embora essas
particularidades marquem uma diferença entre o traduzir e o falar comum, não
acredito que exista algo aqui que extrapole o alcance normal do objeto da
18
“A afirmação central da Teoria da Relevância é a de que expectativas de relevância geradas por um
enunciado são precisas e previsíveis o suficiente para guiar o ouvinte na direção do significado do falante. O
objetivo é explicar em termos cognitivamente realísticos a que essas expectativas equivalem e como elas podem
contribuir para uma abordagem empiricamente plausível de compreensão”. (SPERBER e WILSON, 2005, p.
222). 19
“Do ponto de vista do trabalho do tradutor, a qualquer momento deste trabalho (isto é, do ponto de vista
pragmático), traduzir é um PROCESSO DE TOMADA DE DECISÃO: uma série de um certo número de
situações consecutivas – movimentos, como em um jogo – que impõem ao tradutor a necessidade de escolher
dentre um certo número (muitas vezes exatamente definível) de alternativas”. (JIRY LEVY, 2012, p. 72).
35
linguística. Assim como na pesquisa normal da língua, também no traduzir pode-
se proceder orientado preferencialmente para o processo ou para o produto.
(KLEIN, 2010, p. 298)
Podemos perceber aqui, que essas concepções de tradução que venho apresentando
têm em comum a busca por um “produto”, em outras palavras, a relação do texto original
com a sua tradução, em que a base de estudos e discussões seriam a relação sistemática
entre dois textos. Entretanto, tratar-se-ia de uma simples transferência linguística? Acredito
que não. Concordo com Hans Vermeer (1992, p. 42, tradução nossa), para o qual, “partes
verbalizadas e de qualquer outro modo constituintes de significado diferem de cultura para
cultura. A parte verbalizada de uma expressão sozinha é apenas uma parte da transferência
e, consequentemente, apenas parte do significado.”. Além disso,
O processo de tradução é dependente de um sujeito-tradutor e relacionado a
diretrizes que não são universais nem eternas, mas transitórias e vinculadas às
instituições sociais. A tradução é um processo complexo e sempre dependente de
uma leitura contextualizada. (RODRIGUES, 1993, P. 183).
Nesse sentido, digamos que a tradução não ficaria limitada a uma simples
confrontação entre vocabulário e normas gramaticais de duas línguas; esta ciência se
interessa também em investigar até que ponto a substituição de palavras numa língua de
partida levaria ao mesmo resultado na língua de chegada.
De acordo com uma corrente de pensamento contemporânea:
A tradução tem sido reconhecida como constitutiva de toda atividade de leitura,
interpretação e escrita de textos. Não apenas a tradução ganha corpo a partir
dessas atividades, mas elas próprias podem ser compreendidas como momentos de
tradução – de uma tradução entendida no sentido lato. (SILVA, 2016, p. 1).
Segundo Lima (2011), o exercício da tradução nos mostra que não existem
significados independentes e puros. Ele vai além e ressalta que o significante não é algo que
possa ser materializado, assim “há um entrelaçamento e um encadeamento de rastros, tanto
de elementos de uma língua como das línguas em si, [...] um significante sempre remete a
outro significante, não havendo nenhum significado transcendental, apriorístico.” (LIMA,
2011, p. 415).
Isso coloca em foco o que podemos chamar de “problemática da hierarquização e da
delimitação entre o materno e o estrangeiro” (LIMA, 2011, p. 416). Benjamin, em seu texto
A tarefa do tradutor (2008), um prefácio às traduções de Benjamin dos Tableaux Parisiens
de Baudelaire, traz a palavra Aufgabe remetendo “às noções de dever, missão, tarefa,
problema, devolução e restituição” (SILVA, 2016, p. 4) envolvidas na tarefa de traduzir.
Seria Aufgabe do “sujeito tradutor” e não da língua ou da tradução em si.
36
Para Benjamin, “o tradutor seria assim um receptor endividado, submetido ao dom e
ao dado de um original” (DERRIDA, 2002a, p. 33), numa relação de dependência unilateral,
pois para Benjamin existiria die reine Sprache [a língua pura]. Aquela, original, a qual todo
tradutor está fadado a buscar, alcançar.
Para Benjamin,
Na obra original, haveria unidade entre teor e língua – uma unidade natural como
a que existe entre a casca e o fruto. Na tradução, essa relação seria inadequada e
artificial – como a que existe entre um manto real e o corpo que ele recobre.
Derrida (1985, p. 238; 2002, p. 54-55) atenta para o significado das imagens
escolhidas por Benjamin e sugere a violência com que a lei da obra original é
imposta sobre a tradução – tradução, aliás, cuja existência é imprescindível para a
sobrevida e o crescimento da própria obra original e sua língua (SILVA, 2016, p.
8).
Ancorada em Derrida e Haroldo de Campos, entendo a tradução, como transposição
poética (Umdichtung) e não como uma devolução ou busca de equivalência. Ao encarar a
tradução como transposição poética somos remetidos quase que instantaneamente ao
conceito de Transcriação elaborado por Haroldo de Campos.
Por uma tradução transcriadora
Segundo Santaella (2005), ao elaborar o conceito de Transcriação, Campos inspira-se
na ideia de tradutor como recriador, de Ezra Pound; na ideia da influência da língua-fonte
sobre a língua-alvo, de Walter Benjamin; no conceito de traduzir a forma da língua-fonte na
língua-alvo, de Roman Jakobson; além da teoria dos signos de Peirce, seus intérpretes Morris
e Bense, e em autores como T. S. Eliot e Paul Valéry. Campos investe no princípio de
tradução como criação e como crítica, esta, vem na contramão da chamada “Tradução
Literal”.
não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua
fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual,
enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo
estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira similar àquilo
que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a
baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se, pois, no avesso da
chamada Tradução Literal. (CAMPOS, 2010, p. 35)
37
Partindo do autor acima, para uma tradução transcriadora, deve-se desprezar o sentido
pontual de uma palavra isolada, levando em conta o sentido no efeito de um conjunto, assim é
possível remobilizar o texto20. Busca-se corresponder ao original em relação às suas
características fônicas, sintáticas e semânticas, mas sempre num processo de negociação,
criação.
Inspirada nas considerações de Campos quero dar destaque ao que Corazza — que
será nosso elo com a Educação — chama de Didática da Tradução.
Segundo Corazza (2013), para se traduzir didaticamente, deve-se tratar cada elemento
original como algo já criado.
Ou seja, o Didata traduz ideias prontas; porém, o faz ‘sob o signo da invenção’, que
rasura a origem e oblitera a sua originalidade; Ao traduzir elementos já existentes, o
Didata não os funde numa generalização ou síntese superior; ao contrário, através de
um projeto radical de intertextualidade, transcria-os. (CORAZZA, 2013, p. 214)
Neste trecho, Corazza nos mostra ser tangível a tradução/transposição poética de
Campos (2010) na Educação. Mas o que seria Didática?
...
Ao inaugurar o termo de forma moderna em seu livro Didática Magna. Tratado da
Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos (1649), Comenius21 define Didática como a “arte de
ensinar”. De acordo com Olini (2013, p. 100), “a obra de Comenius é referência, não só para
a didática, como também para a revolução pedagógica burguesa do século XVII”. Além
disso,
Comenius caracteriza-se como um inovador em sua época, pois adiantou aspectos
do processo formativo que são típicos da modernidade. É possível encontrar, em sua
obra, contrastes promovedores da formação do homem em sua totalidade, além das
questões do lúdico na educação e do respeito à inteligência e o sentimento das
crianças (OLINI, 2013, p. 100).
Seu intento é criar “um instrumento para realizar a educação universal: a pansofia. Ela
representa o desenvolvimento harmonioso do saber”, (OLINI, 2013, p. 100, grifo do autor).
20
As perspectivas tradutológicas de Susan Bassnet-McGuire (1991), Lefevere (2003) corroboram neste sentido,
eles afirmam que não é nem a palavra nem o texto a unidade operacional na tradução, mas a cultura. 21 Iohannes Amos Comenius (1592-1670), viveu e estudou na Alemanha e na Polônia. Bispo protestante da
Igreja Moraviana. Como pedagogo, é considerado o fundador da didática moderna.
38
Dessa forma, “o papel das escolas é formar o homem, isto é, para ser homem é preciso que
seja formado. É preciso que as escolas definam e ensinem qual o comportamento adequado
dos homens” (Ibid), ou seja, como sugere o título de sua obra citada acima, para Comenius
(1649) a educação é necessária para todos, então deve ser dada para todos. É essa premissa
que o guia acompanha nesta obra.
Vale ressaltar que à época de Comenius, não havia a concepção de infância, crianças
eram adultos em miniatura. A questão da aprendizagem só aparece quando a Psicologia se
interessa pela educação problematizando a capacidade cognitiva, por exemplo. Desta forma,
podemos entender porque independentemente da idade e do contexto, partia-se do
pressuposto que todos chegavam a escola em condição de igualdade para ser ensinados.
Cabia ao professor usar determinada estratégia e consequentemente ela seria eficiente. A
estratégia é eficiente, basta aplicá-la. É em razão disso a afirmação da possibilidade em
ensinar tudo a todos.
No terceiro ponto da Saudação aos Leitores, ele afirma:
Nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, um método universal de
ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja impossível não
conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e
sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com
sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente
e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução,
para os bons costumes, para a piedade sincera. Enfim, demonstraremos todas estas
coisas a priori, isto é, derivando-as da própria natureza imutável das coisas, como de
uma fonte viva que produz eternos arroios que vão, de novo, reunir-se num único
rio; assim estabelecemos um método universal de fundar escolas universais.
(COMENIUS, 1997, p. 13)
Como podemos notar, Comenius utiliza no subtítulo de sua obra a palavra “arte”,
entretanto, entendo que a arte não se configura como um modelo, não há um jeito certo, ou
um único modo de produzir arte, neste caso o produto final, o ensino, depende de uma
confluência de fatores. Nesse sentido, o campo da Didática também não se definiria dentro de
um modelo único, tendo a Didática um objeto. Ela não é uma prática que pode ser repetida
sempre da mesma maneira. Esta é um fundamento, e, consequentemente, um campo de
pesquisa.
Paralelamente as concepções de Comenius, Franca22 (1952), vendo a necessidade da
normatização no trabalho dos colégios — decorrente do aumento do ingresso de alunos
atrelado à falta de preparo dos professores —, elabora o “Plano de Estudos da Companhia de
Jesus”. Neste sentido, vemos que:
22
Leonel Franca (1893-1948), sacerdote da Companhia de Jesus, doutor em Teologia, escritor laureado com o
prêmio Machado de Assis da ABL.
39
O cerne do ordenamento era garantir a uniformidade de procedimentos, de mente e
coração dos educadores jesuítas e dos alunos, para a consecução dos objetivos
propostos, opondo-se à turbulência desencadeada pelo movimento reformista do
século XVI. (NEGRÃO, 2000, p. 154).
Sendo assim, tanto Comenius (1649) quanto Franca (1952), — autor do Método
pedagógico dos Jesuítas, o Ratio Studiorum — defendem a ideia de que há um protocolo a ser
seguido, um modelo, para ensinar. A didática, de acordo com esses autores, seria uma
proposta que visa definir procedimentos de ensino. Ou seja, basta seguir determinados passos
que o ensino, ou a transmissão de conhecimento seriam consequência. Essa ideia se aproxima
àquela que tratamos anteriormente, dos tradutores que acreditam que seguindo determinados
passos, se terá como resultado uma boa tradução. Ideia que gostaria de repensar.
Nesta mesma direção e com intuito de dar foco ao estudo, minha opção é discuti-lo a
partir da reflexão de Haroldo de Campos e Sandra Corazza, cujas indagações vão ao encontro
de problemas concretos, que demandam outras lentes para olhar os fenômenos. Busco
observar as noções de tradução, transcriação e didática da tradução especialmente em seus
impactos sobre as práticas de ensino ligadas aos espaços Acadêmicos.
Monteiro, (2016, p. 523) afirma “Derrida precisava ser lido com Haroldo de Campos”,
aqui se referindo a leitura de Derrida feita por Campos ao elaborar o conceito de transcriação
a partir do conceito de tradução. Apesar das inegáveis contribuições e avanços desses autores,
preciso também de Corazza (2013), pois opera com o conceito de transcriação, criado por
Haroldo de Campos, inspirando-se também em Walter Benjamin, Roland Barthes e outros, e
o renova em educação, pensado em termos de Didática.
Como já foi dito, estou com Corazza para a qual o ensinar, a tradução criadora, ou a
transcriação, não é:
literal, funcional, automática, etimológica, estruturalista, hermenêutica, celebração
epifanística, uma violação, um caso de sobre tradução, um semidecalque, uma
superafetação; não soa como extravagância; não traduz palavra por palavra; não
transmite a mensagem do original; não apresenta qualquer purismo ultra-acadêmico;
não atualiza textos pelos contextos; ao contrário, consiste em traduções, em que são
postas tal força criadora que, alegadamente, o resultado vale como se cada tradução
fosse uma obra original, viva e aberta. (CORAZZA, 2011, p. 64)
Corazza defende a transcriação de Campos que seria “a apropriação da historicidade
do texto-fonte e pensada como construção de uma tradição viva; é um ato até certo ponto
usurpatório, que se rege pelas necessidades do presente da criação.” (CAMPOS, 2013, p. 39),
isso acarreta nova roupagem ao trabalho do tradutor/professor, pois “o tradutor constrói
23
Texto digitado, conferência apresentada durante a Jornada de Estudos do EFF em abril de 2015.
40
paralelamente (paramorficamente) ao original o texto de sua transcriação, depois de
“desconstruir” esse original num primeiro momento metalinguístico.” (CAMPOS, 2013, p.
110). A transcriação é lida como uma operação de tradução criadora e crítica (CAMPOS,
2011, p. 77). Nesse sentido, privilegia-se não a cópia, a transcrição, ou uma simples
transposição de palavras e significados, mas sim a criação, a transcriação. Nesse sentido,
perscrutar a tradução como transcriação — no sentido de tradução poética —, no
campo da educação, torna-se um exercício de observação de nossas práticas
cotidianas como professores e professores lidando com conteúdos, currículos,
didáticas e suas repercussões. (ADÓ, CORAZZA e CAMPOS, 2017, p. 9)
Ou seja, a partir das propostas teóricas destacadas acima, acredito que a cada
momento na academia são feitas traduções, seja por parte do professor que traduz o conteúdo
transcriando-o em sua aula, quanto por parte do estudante universitário, que traduz aquilo que
recebe e transcria em seu modo de compreender, sua internalização e também, em suas
práticas de pensamento e exercício profissional. E que é justamente esse movimento de
remobilização e criação que enriquece o ensino e o conhecimento.
41
Quem comanda a narração não é a voz: é o
ouvido24
O texto não acaba, o ponto final não dita o final. Como uma colcha
de retalhos, onde sempre cabe um pedacinho a mais, aquilo que se
escreve pode até dar pistas, mas nunca encerra um sentido. Todo
texto precisa do leitor para lhe perfurar. Para lhe transbordar.
Importa a narração, tanto quanto as palavras que seu ouvido
pretende escutar.
Meu primeiro contato com Derrida aconteceu no ano de 2013, assim que me tornei
bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBC), do Grupo de
pesquisas Estudos de Filosofia e Formação25. O EFF realiza há mais de 10 anos o estudo com
filósofos da diferença e seus conceitos, entre os quais se destacam Friedrich Wilhelm
Nietzsche e Jacques Derrida.
Contrariando as indicações de meu orientador – segundo o qual devemos beber
diretamente da fonte – inicialmente busquei me aproximar de Derrida “pelas beiradas”, já que
as primeiras tentativas de aproximação com sua obra foram extremamente perturbadoras.
Derrida é realmente uma leitura densa.
Muito de sua obra é decorrente dos diversos cursos, seminários e conferências que
Derrida proferiu ao longo de sua carreira. Não podemos deixar de observar o contexto ao nos
aproximarmos de sua obra, como era constantemente convidado a falar nas Universidades,
não é de admirar que sua aproximação com o fenômeno educacional seja justamente por meio
dessa Instituição. De modo geral, Derrida não escreve diretamente para o campo da
Educação, mesmo que seus conceitos sejam de grande valia a ela.
Uma das coisas que poderia adiantar sobre esse autor é que ele gosta de frases de
efeito, então, se eu pudesse dar um conselho seria: preste atenção na primeira frase. É comum
24
CALVINO, 1990, p. 123. 25
Trechos deste texto, de minha autoria, foram publicados nos Anais do Seminário Educação 2015 e nos Anais
do Seminário Educação 2016 sob os títulos: Conceito de tradução na obra de Torres de Babel de Derrida e
Processos de tradução. Contribuições dos trabalhos de Derrida para pensar a prática docente.
42
que ele dê, logo no início, pistas a respeito do texto. Essa dica, entretanto, pode não ajudar
muito, uma vez que a escrita derridiana não carrega um sentido prévio – como encontramos
nas ciências humanas e na filosofia – seu texto é repleto de lacunas e incompletudes. Sua
escrita “tem sentido não como um sentido depositado, mas como sentido habitado, vivente no
texto” (MONTEIRO, 2015, p. 6).
Os textos de Derrida são trabalhosos pois abrem, explodem os sentidos, assim, o
sentido do texto é construído no momento da leitura26, não há ideia a priori a ser defendida, e
assimilar seu pensamento é desconfortável, inquietante, deslocante, trata-se de uma “criação
de trajeto.” (MONTEIRO, 2015, p. 6).
Jacques Derrida nasceu em 15 de julho de 1930, na cidade de El Biar, Argélia. Esteve
pela primeira vez no Brasil no ano de 1995, a convite de Leyla Perrone-Moisés para uma
conferência no MASP. A essa altura, Derrida já era considerado um dos mais influentes
pensadores pós-estruturalistas e filósofos da diferença. A época de sua primeira visita,
tínhamos disponíveis no país apenas três de suas obras, A escritura e a diferença traduzida
em 1971, Gramatologia em 1973, traduzida por Renato Janine Ribeiro e Miriam
Schnaiderman, ambas as obras lançadas pela editora Perspectiva. Somente em 1990
aconteceria a tradução de Do espírito: Heidegger e a questão, por Constança Marcondes
César, para a Papirus. (MONTEIRO, 2015, p. 2)
Segundo Strathern (2002), Derrida teve seguidores principalmente nos campos da
filosofia e da crítica literária. Entretanto, as ciências tiveram por ele grande desprezo. Suas
influências vêm de diversas áreas, como Psicanálise, Teoria Literária, Filosofia da
Linguagem entre outras. Sua obra é vasta, aborda temas diferenciados como hospitalidade,
autoria, escritura, morte, duplo, segredo, envio, jogo, entre outros. Derrida sempre era
demandado a falar sobre temas diversos em suas conferências, sendo assim, é de extrema
importância, ao lermos esse autor, atentarmos ao contexto implícito naqueles escritos.
É um movimento comum, ao apresentarmos um autor, sempre começarmos
biograficamente, mas qual a relevância disso? O que esperamos com isso? Qual a relação da
vida do autor com sua obra?
Obviamente não estamos interessados em seus percalços anímicos ou em explicações
de seu pensamento, isso não diz respeito ao campo da filosofia. Muito menos buscamos em
sua vida a legitimação de seu pensamento, “se conta a vida, por que se quer a dobra; tomam-
se os cantos, as curvas, as intersecções e os fazem voltar ao texto indagando: com quem
26
A possibilidade de infinitas leituras em infinitos novos "contextos" é que impede a totalização de um sentido,
a que supostamente poderíamos alegar ser construído no momento da escrita.
43
estava ele produzindo? Contra quem estava ele produzindo? Para quem estava ele
produzindo?” (MONTEIRO, 2015, p. 2).
Nietzsche já afirmava em Zaratustra, (ZA, §1) “De tudo escrito, amo apenas o que se
escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que sangue é espírito”. Para
Nietzsche, assim como para seu leitor, Derrida, “a vida dá um estilo de pensamento”
(MONTEIRO, 2015, p. 4), ou seja, nos interessa a vida de um autor quando em movimento
com seu texto, pois é na vida que se manifestam os estilos que darão tom à sua escrita. É,
portanto a sua inquietude ao discurso filosófico tradicional, a pluralidade, o jogo, sua
dinâmica fragmentada, densa instintualmente, com um certo ar melancólico e contundente
biograficamente que serve à escritura de Derrida como forma de expressar seu pensamento.
Para Derrida (1991a), não existe o fora do texto, todo texto é autoral, uma confissão
de seu autor. Derrida era judeu, nascido em uma colônia da França e recebeu um nome
americano. Jackie Élie Derrida – seu nome familiar – foi adolescente em meio a Segunda
Guerra e mais tarde, ao se tornar professor assumiu publicamente o nome de Jacques Derrida
(NASCIMENTO, 2004). Claramente, temos aqui uma questão do nome, de assinatura, que
permeará o pensamento do autor. É nesse sentido que o movimento de Vidobra
(MONTEIRO, 2015) é tão valioso para que possamos acessar o pensamento desse autor.
Peters (2000), apresenta Derrida tanto como um filósofo da diferença quanto como
um pós-estruturalista, mas o que seria isso? Enquanto filósofo da diferença, poderíamos dizer
que assim é considerado por a afirmar. Tomemos como exemplo sua différance27: “Por
encontrar-se no meio e em todos os lugares, a différance não é hierárquica nem binária, ela é
todas as possibilidades de sentido” (FERREIRA e OLIVEIRA, 2015, p. 429.).
A Filosofia da Diferença é uma vertente filosófica inaugurada por Derrida dentro do
contexto do pós-estruturalismo. É uma analítica, assim, ao olhar e perceber a diferença, essa é
valorizada, não é reprimida nem aplainada, – como no movimento comum – tomar a
diferença e a torná-la igual. Transformar o que é diferente no que é igual, é tirar da diferença
o que ela tem de peculiar, que é o que ela é. Normalizá-la é também uma estratégia de
suprimi-la.
No que diz respeito ao seu outro título, Peters (2000), afirma que o pós-estruturalismo
foi um movimento filosófico com intuito de replicar as aspirações científicas do movimento
estruturalista. Apesar das divergências ideológicas posteriores, pós-estruturalistas partiam do
27
Esse conceito será melhor trabalhado adiante neste capítulo.
44
mesmo ponto. Eles questionavam as estruturas ordenadas e a metafísica, intrínsecos ao
movimento que visavam superar.
Para eles, todo conhecimento seria textual, ou seja, estes rejeitam definições de
verdades absolutas, pois todo o conhecimento de determinada época seria consequência de
“uma interpretação relativista do texto” (Strathern, 2002, p. 48), em outras palavras, a
verdade depende do contexto histórico ao qual pertence. Toda leitura, seria então, por tal
contexto, em parte, determinada, mesmo que impossível seja saturar o contexto. Pois,
nenhum contexto é totalmente determinável.
Derrida é considerado pós-estruturalista – apesar de nunca ter reconhecido esse título
– por utilizar o relativismo linguístico para questionar a real envergadura de toda a filosofia,
desde suas bases até sua aptidão ao “operar em seus próprios termos” (Strathern, 2002, p. 19).
Termos estes que compõem seus neologismos.
Por uma tradução desconstrutora
Com o conceito de desconstrução (déconstruction), – sua mais importante
contribuição – Derrida claramente estabelece uma crítica aos pressupostos dos conceitos
filosóficos. No texto Carta a um amigo Japonês (2005), põe-se a estabelecer “algumas
reflexões — esquemáticas e preliminares — sobre a palavra ‘desconstrução’” (formato epub)
e sua dificuldade de tradução. Aqui, ficará evidente a estreita relação entre seu mais famoso
conceito e tradução.
Derrida nos mostra que, mesmo antes de se tornar conceito, o termo desconstrução,
assim como qualquer outro, não está destituído da possibilidade de diferentes significações.
Pois, se podemos antecipar as dificuldades de tradução (e a questão da
desconstrução é também do começo ao fim a questão da tradução e da língua dos
conceitos, do corpus conceitual da metafísica dita “ocidental”), não se deveria
começar por acreditar, o que seria ingênuo, que a palavra “desconstrução” é
adequada, em francês, a alguma significação clara e unívoca (DERRIDA, 2005,
formato epub).
Dessa forma, será possível ver melhor sobre a impossibilidade de univocidade de
sentido posteriormente. Porém, tenhamos claro que seja no “alemão, inglês e sobretudo
45
americano, a mesma palavra já está ligada a conotações, inflexões, valores afetivos ou
patéticos muito diferentes” (DERRIDA, 2005, formato epub). Importa o contexto.
Foi em Gramatologia que a palavra desconstrução se impõe a Derrida. Neste texto,
tinha por intuito:
Traduzir e adaptar a meus propósitos as palavras heideggerianas Destruktion ou
Abbau. Ambas significavam, nesse contexto, uma operação relativa à estrutura ou à
arquitetura tradicional dos conceitos fundadores da ontologia ou da metafísica
ocidental. Mas, em francês, o termo destruction (“destruição") implicava,
demasiado visivelmente, uma aniquilação, uma redução negativa, talvez mais
próxima da “demolição” nietzschiana do que da interpretação heideggeriana ou do
tipo de leitura que eu propunha (DERRIDA, 2005, formato epub, grifo do autor).
Derrida se interessa28 por essa palavra devido a sua afinidade com o que ele “queria-
dizer”29, uma vez que longe de tratar a desconstrução com o sentido de aniquilamento ou
destruição, essa palavra-conceito é operada como um gesto de ruptura que o filósofo fez com
o estruturalismo e construtivismo.
Nesses termos, mais uma vez importa o contexto. À época de Gramatologia o
estruturalismo ainda predominava e a palavra desconstrução remetia justamente à estruturas,
isto é, desconstruir remetia a “um gesto estruturalista” (DERRIDA, 2005, formato epub). É
devido a esse “equívoco” proposital que ao adotar essa palavra, o faz para performatizar seu
gesto anti-estruturalista, ou seja, a desconstrução é uma estratégia para “desfazer, descompor,
dessedimentar as estruturas (todas as espécies de estruturas, linguísticas, ‘logocêntricas’,
‘fonocêntricas’)”. (Ibid)
Ao tratar deste conceito, Derrida (2005, formato epub), preocupa-se em esclarecer o
que dele não se deve esperar. A “desconstrução não é nem uma análise30 nem uma crítica31,”
assim como também não é um método. Ora, se o filósofo da diferença busca justamente
questionar os pressupostos e significações do pensamento metafísico, as estruturas, lógicas
linguísticas logocêntricas e fonocêntricas, como a desconstrução poderia “reduzir-se a
28
Para Derrida, essa palavra por si só não é satisfatória, assim como nenhuma outra o é, por isso todo conceito
precisa ser acompanhado de um discurso. 29
Vale lembrar que, as significações atribuídas a palavra desconstrução, mesmo sendo imprescindíveis para
essa escolha, “concerniam apenas, metaforicamente, se quisermos, aos modelos ou às regiões de sentido e não à
totalidade do que a desconstrução pode pretender em sua ambição mais radical. Esta não se limita nem a um
modelo linguístico-gramatical, nem mesmo a um modelo semântico, menos ainda a um modelo mecanicista. ”
[...] Derrida sustenta que “os próprios modelos deviam ser submetidos a um questionamento desconstrutor”
(DERRIDA, 2005, formato epub). 30
“Não é uma análise, em particular, porque a desmontagem de uma estrutura não é uma regressão em direção
ao elemento simples, em direção a uma origem indecomponível” (DERRIDA, 2005, formato epub). 31
“Não é também uma crítica, em um sentido geral ou em um sentido kantiano” (DERRIDA, 2005, formato
epub).
46
alguma instrumentalidade metodológica, a um conjunto de regras e de processos
transponíveis”? (Ibid).
A desconstrução também não é um ato ou uma operação, “ela não diz respeito a um
sujeito (individual ou coletivo) que teria a iniciativa e a aplicaria a um objeto, um texto, um
tema,” nela não há nada de “passivo” ou de “paciente” (Ibid, grifo do autor).
A desconstrução tem lugar, é um acontecimento que não espera a deliberação, a
consciência ou a organização do sujeito, nem mesmo da modernidade. Isso se
desconstrói. [...] E o ‘se’ do ‘se desconstruir’, que não é a reflexividade de um eu
(moi) ou de uma consciência, carrega todo o enigma” (DERRIDA, 2005, formato
epub, grifo do autor)
Desconstrução é acontecimento, a desconstrução é “móbil”. Voltemos aqui e questão
da dificuldade de tradução. Não existe conceituação plena aplicável a nenhum termo, pois
sempre existirá algo que escape a completude de um sentido (DERRIDA, 1991a). O
movimento é intrínseco a linguagem, assim a completude é apenas imaginária. Isso quer dizer
que “todas as significações lexicais, e mesmo as articulações sintáticas que parecem um
momento se prestar a essa definição e a essa tradução são também desconstruídas ou
desconstrutíveis, diretamente ou não” (DERRIDA, 2005, formato epub).
Nesses termos, como não se tem uma univocidade para a tradução da palavra
desconstrução, não há resposta única nem resposta oficial quando se trata do conceito da
mesma. Um conceito, uma palavra é incapaz de atingir por si só um pensamento, para que
algo neste sentido seja possível tornam-se indispensáveis discurso e escritura. “O que a
desconstrução não é? É tudo! O que é a desconstrução? É nada!” (Ibid). Para uma tradução
desconstrutora o conceito serve a palavra como a palavra serve ao conceito.
Os indecidíveis derridianos
Ao longo de sua obra, Derrida se preocupou em criar diversos termos que
performatizassem a desconstrução. O neologismo mais famoso criado por Derrida foi a
Différance. Assim como outros conceitos próprios de sua filosofia, a Différance é um
47
indecidível (SANTIAGO, 1976), uma aporia32. Seus indecidíveis não são nem conceitos, nem
palavras, ou são quase-palavras e quase-conceitos.
Dessa forma, ao levar em conta o jogo ― elementos que escapam a oposição binária
como, um ou outro, bem ou mal, verdadeiro ou falso ― característico desse filósofo, atrelado
a peculiar característica de seu pensamento que tende a oferecer termos intrigantes aos seus
leitores, é sempre importante atentarmos a grafia.
Para ele, não é possível exprimir tudo que se quer expressar apenas com palavras.
Assim, criam-se lacunas na escrita e na fala, sendo a capacidade de modificação dos sentidos,
seja no pensamento, na expressão ou na escrita que torna os conceitos incompletos
(DERRIDA, 1991a).
Sendo assim, ao substituir intencionalmente a vogal “e” por “a” na palavra différence,
Derrida expõe um claro exercício de rompimento com a tradição de submissão do grama à
phoné, ou seja, a tradição fonocêntrica predominante desde épocas anteriores a Platão, até os
estudos linguísticos de Saussure (SANTIAGO, 1976). Essa diferença muda ― substituição
da vogal “e” por “a” ― só pode ser notada no traço, na palavra escrita, uma vez que ambas as
palavras possuem o mesmo som. Para Derrida, é essa diferença silenciosa possibilitada pela
escrita que viabiliza um deslocamento de sentido.
Seguindo essa mesma linha de pensamento, Derrida (2002a), concebe tradução como
transformação das línguas envolvidas na tarefa de traduzir. Conforme os pressupostos de
Saussure, para o qual a língua abre espaço para semelhanças e diferenças, Derrida evidencia o
papel das diferenças nas línguas e suas consequências para a tradução. Desse modo, não pode
existir a traduzibilidade plena e nem um único sentido da tradução.
Para tanto, aqui há um jogo que se põe a ser desconstruído: o sentido dito original e o
sentido traduzido, ou o original e o vertido, o original e a versão. E, claro, o jogo
experimentado entre o tradutor/tradução. Pode-se dizer que para Derrida a tradução é uma das
estratégias da desconstrução.
A impossibilidade à fidelidade
32
Se estabelece pela dificuldade ou dúvida racional decorrente da impossibilidade objetiva de obter resposta ou
conclusão para uma indagação filosófica.
48
Nesta parte dedico-me ao livro de Derrida intitulado Torres de Babel (2002a). Trata-
se de um ensaio publicado no livro Psyché. Inventios de l’autre no qual Derrida discute do
mito Bíblico da Torre de Babel, que em sua análise seria a origem da dispersão das línguas.
Nesse texto, o conceito de tradução é colocado no foco do exame, considerando sua
multiplicidade e, porque não, sua intraduzibilidade.
Figura 3 - “Construção da Torre de Babel”, Pierpoint Morgan Library, Nova York (1260).
De acordo com o Livro do Gênesis, no início, toda a humanidade falava a
mesma língua. Os homens queriam ser como Deus, então decidiram construir uma torre para
chegar até o céu.
49
Figura 4 - A construção da Torre de Babel, de Pieter Bruegel, o Velho, (1563).
A multiplicidade das línguas seria originária da cólera de Deus, que no intuito de
impedir que os homens fossem capazes de alcançálo, fez com que cada um deles passassem a
falar uma língua diferente, semeando a confusão, babel. Parando a construção da torre, Deus
acaba com a pretensão de uma língua única e impõe a necessidade da tradução. (DERRIDA,
2002a).
50
Figura 5 - "A Confusão das Línguas" por Gustave Doré (1865.
Neste texto (2002a), Derrida lembra incessantemente ao tradutor sua incapacidade de
reproduzir a verdadeira intenção do texto original. Para Derrida, a Tradução é necessária e
impossível, uma vez que essa impossibilidade deriva da necessidade de “traduzir para uma
única língua o que, na origem, é mais de uma” (LIMA, 2011, p. 420).
Um texto “em sua língua de origem” nunca é legível fora de um grande número de
operações de tradução. (DERRIDA, 1998, p. 253, tradução nossa).
É nesse sentido que para o filósofo, qualquer solução que se busque à Tradução é
incompleta e consequentemente provisória. A Lei da tradução é imposta e interdita. Imposta
através da necessidade de comunicação e interdita por seu caráter intraduzível em totalidade.
[...] notemos um dos limites das teorias da tradução: eles tratam bem
51
frequentemente das passagens de uma língua a outra e não consideram
suficientemente a possibilidade para as línguas, a mais de duas, de estarem
implicadas em um texto. Como traduzir um texto escrito em diversas línguas ao
mesmo tempo? Como "devolver" o efeito de pluralidade? E se traduz para diversas
línguas ao mesmo tempo, chamar-se-á a isso traduzir? (DERRIDA, 2002a. p. 20).
Segundo Santiago (1976, p. 95), "A tradução é um ato de força do tradutor." Ao
traduzir, o tradutor fica entre a latente precisão e a impraticabilidade de dizer tudo, de dar
conta do sentido pleno do texto a ser traduzido. Ao traduzir, não se toma conta de todos os
significados, mas se apropria de apenas um. Nesse sentido, ao traduzir um termo é
apresentado apenas uma de suas faces, o que não exclui a possibilidade deste mesmo termo
possuir outras faces ocultadas pelo ato da tradução.
Temos como exemplo a reflexão de Derrida a respeito do termo grego pharmakon, no
texto de Fedro: "A tradução corrente de pharmakon por remédio — droga benéfica — não é
certamente inexata. Não somente pharmakon podia querer dizer remédio e apagar, numa
certa superfície de seu funcionamento, a ambiguidade de seu sentido." (DERRIDA apud
SANTIAGO, 1976).
Dessa forma, ao tocarmos a língua, ao traduzir um conceito, inventamos e
promovemos uma diferenciação do original, assim podemos pensar a tradução como
transformação e como intraduzível.
Essa impossibilidade da tradução também pode ser vista na relação com o nome
próprio. Derrida (2002a) traz o exemplo do nome “pedra”, que enquanto pertencente à língua
francesa deve ter seu sentido preservado quando traduzido para outra língua. No entanto, o
mesmo movimento não ocorre com “Pedro”, que ao se tratar de um nome próprio não
pertence à língua francesa. Dessa modo, como “Peter” também não pertence à língua inglesa
e tampouco se trata de uma tradução de “Pierre”. Para essa situação, Derrida recorre à
contribuição de Jakobson33:
O ensaio On translation (1959) distingue três formas de tradução. A tradução
intralingual interpreta signos linguísticos por meio de outros signos da mesma
língua. [...] Existiria em seguida o que Jakobson chama lindamente de tradução
"propriamente dita", a tradução interlingual que interpreta signos linguísticos por
meio de uma outra língua, o que remete à mesma pressuposição da tradução
intralingual. Existiria enfim a tradução intersemiótica ou transmutação que
interpreta, por exemplo, signos linguísticos por meio de signos não linguísticos.
(DERRIDA, 2002a, p. 23, grifo do autor).
A tradução intralingual consiste no gesto que ocorre dentro da própria língua, a
substituição de signos linguísticos por outros da mesma língua que sejam sinônimos.
33
Roman Osipovich Jakobson, (1896 - 1982), se tornou um dos principais linguistas do século XX.
52
Podemos encontrar esse tipo de tradução na prática da paráfrase, por exemplo. No que se
refere à tradução interlingual, ocorre um movimento semelhante ao da tradução intralingual,
porém externo. Busca-se a substituição de signos linguísticos por equivalentes em outras
línguas. Já a tradução intersemiótica, opera através da transmutação de signos linguísticos em
signos não linguísticos. Ou seja, a passagem da linguagem verbal em linguagem não verbal.
Um exemplo de traduções deste tipo é o que acontece nas adaptações de livros em filmes, ou
a função do artista que tem de criar uma capa para um livro ou CD, com a missão de
representar seu conteúdo.
Outra questão levantada por Derrida neste texto (2002a), diz respeito à dívida do
tradutor. Para ele o tradutor é detentor de uma dívida, porque este é regido por esse dever. O
tradutor é herdeiro e sobrevivente de sua função, função essa de devolver. Nesse sentido, ele
é envolvido nesse ato de criação. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a tradução se torna
uma lei, é também uma dívida que o tradutor não pode quitar, pois ele é incapaz de
reproduzir a verdadeira intenção do texto original. Entretanto, através da tradução é possível
renovar o original, lhe concedendo uma sobrevida e esta possível é a das obras, não dos
autores.
De certa forma, é possível que haja a sobrevida dos nomes de autores, de suas
assinaturas, mas não dos autores. Ela é mais que uma sobrevivência, dá um pouco mais de
vida. Assim, “A obra não vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor, acima dos meios
de seu autor.” (DERRIDA, 2002a. p. 33).
Respaldado por Benjamin34 em sua obra Sur le langage en general et sur te
langagehumain (1916), Derrida discorre sobre algumas teses acerca da tarefa do tradutor. Em
primeiro lugar, a tarefa do tradutor não se anuncia a partir de uma recepção, isso porque a
teoria da tradução não depende de qualquer teoria da recepção. Ele a recusa, pois ao assumir
a instância do original, além de produzir seus receptores e tradutores, esse os requer, manda e
comanda, determinando a lei.
Além disso, a tradução não tem por destinação essencial comunicar. Um exemplo
disso seriam os textos sagrados ou os poemas. Aqui não nos referimos à estrutura
comunicante da linguagem, mas à suposição de que há no texto um conteúdo comunicável, o
que se diferenciaria severamente do ato linguístico da comunicação. Ao tratar da
comunicação, quer se dizer a respeito de seu conteúdo e não do ato em si, e, assim, o
essencial é a enunciação e não a comunicação.
Em 1916, a crítica do semiotismo e da "concepção burguesa" da linguagem já
34
Walter Benjamin (1892 - 1940) ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão.
53
visava essa distribuição: meio, objeto, destinatário. "Não existe conteúdo da
linguagem." O que comunica em primeiro lugar a linguagem é sua
"comunicabilidade" (Surle langage..., trad. M. de Gandillac, p. 85) (DERRIDA,
2002a, p. 34).
Além disso, “Se existe entre texto traduzido e texto traduzante uma relação de
"original" à versão, ela não poderia ser representativa ou reprodutiva. A tradução não é nem
uma imagem nem uma cópia.” (DERRIDA, 2002a, p. 35, grifo do autor). Ou seja, até aqui
vimos que a tradução não é nem recepção, nem comunicação, nem representação. Então,
como se estabelecem a genealogia e a dívida do tradutor? Para responder a essa questão,
Derrida elabora duas teses:
Primeira questão: em meio à totalidade de seus leitores, a obra pode a cada vez
encontrar o tradutor que seja, de algum modo, capaz dela? Segunda questão e, diz
Benjamin, "mais propriamente", como se essa questão tornasse a precedente mais
apropriada, ao passo que, nós veremos, ele lhe dá todo um outro valor: "Devido a
sua essência [a obra], ela suporta e, se assim é — conforme a significação dessa
forma —, exige ser traduzida?" (DERRIDA, 2002a, p. 36).
Quanto a primeira questão, surgindo ou não um tradutor capaz da obra, isso não altera
em nada quanto à sua demanda. Assim, esse questionamento é desnecessário. No que se
refere à segunda questão, ao contrário da primeira, essa sim é válida, pois deriva da lei
interior do original, de sua estrutura, que é a relação da vida com a sobrevida. Desse modo, a
tradução é obrigatória, mesmo sem que haja um tradutor ali em condição de responder a essa
injunção.
Esses questionamentos são pertinentes, pois a tradução busca remarcar a afinidade
entre as línguas, exibindo assim, sua própria possibilidade e não apenas dizer isto ou aquilo,
de forma a transportar o conteúdo, ou exprimir um sentido. Mas a questão principal é
existindo o a-traduzir, ambos os lados, original e tradutor são designados e contratados. Uma
vez que o tradutor não restitui nem copia um original, é devido justamente a sobrevivência e
transformação desse original possibilitada pelo tradutor. “A tradução será na verdade um
momento de seu próprio crescimento, ele aí completar-se-á engrandecendo-se.” (DERRIDA,
2002a, p. 46).
Entretanto, esse crescimento não vai em qualquer direção, ele conclui, preenche e
completa o original, que ao chamar um complemento, assume que em sua origem ele já não
estava pleno.
O tradutor deve resgatar, absolver, resolver, tratando de absolver-se a si mesmo de
sua própria dívida que é, no fundo, a mesma — e sem fundo. "Resgatar na sua
própria língua essa linguagem pura exilada na língua estrangeira, liberar transpondo
essa linguagem pura cativa na obra, tal é a tarefa do tradutor." (DERRIDA, 2002a,
p. 47).
Isso porque, a tradução só é capaz de tocar o original em uma parcela infinitamente
54
pequena de seu sentido, e em seguida, segue seu próprio caminho. É justamente esse caráter
intangível e intocável do sentido do original que arrebata o tradutor e orienta o seu trabalho.
“Ele quer tocar o intocável, o que resta do texto quando dele se extraiu o sentido comunicável
(ponto de contato, lembre-se, infinitamente pequeno), quando se transmitiu o que se pode
transmitir, até mesmo ensinar.” (DERRIDA, 2002a, p. 52).
Outra questão levantada nessa obra, é quanto a originalidade do traduzido, quando
assumimos que as traduções são obras originais pelas expressões empregadas, podemos
definir então, a originalidade do traduzido. Digo isso, levando em conta que as ideias, temas
ou conteúdos do texto original, são propriedade comum e universal. Desse modo, devem ser
preservados pelo tradutor. Sempre se admitiu que “o tradutor dá prova de originalidade na
escolha das expressões para reproduzir da melhor maneira em uma língua o sentido do texto
em uma outra língua.” (DERRIDA, 2002a, p. 61). Em outras palavras, Desbois concorda:
o tradutor consciencioso e competente "coloca de seu" e cria, assim como o pintor
que faz a cópia de um modelo. A verificação dessa conclusão é fornecida pela
comparação de várias traduções de um só e mesmo texto: cada uma poderá diferir
das outras, sem que nenhuma contenha um contra-senso; a variedade dos modos de
expressão de um mesmo pensamento demonstra, pela possibilidade de uma escolha,
que a tarefa do tradutor dá ensejo a manifestações de personalidade. (Le
droitd'auteur en France. Dalloz, 1978.) (DERRIDA, 2002a, p. 62).
Dessa forma, o tradutor é responsável pela escolha de suas palavras, assim não atua
como ator secundário. Entretanto, no ato da tradução, ele não altera a estrutura da obra, o
tradutor deve respeito à obra.
Como disse anteriormente, minha escolha por trabalhar com Derrida, parte do grande
alcance de suas indagações e reflexões no tocante com problemas concretos, o que possibilita
outras lentes para olhar os fenômenos, as lentes da Filosofia da Diferença.
Outro exemplo é seu texto O que é uma tradução relevante? (2000), nele Derrida visa
demonstrar quais seriam as “características” de uma tradução para que essa pudesse ser
considerada relevante, para isso utiliza a própria palavra “relevant”, pois essa traria “em seu
corpo uma operação de tradução em andamento”. (DERRIDA, 2000, p. 16). Nesse sentido,
trata-se de um exercício de experimentação, da tradução como transação e como transporte.
Segundo Derrida (2000), costuma-se considerar algo como “relevant” quando “aquilo
que parece mais certo, pertinente, a propósito, bem-vindo, apropriado, oportuno, justificado,
bem afinado ou ajustado, surgindo de forma adequada lá onde é esperado” (DERRIDA, 2000,
p. 17), ou seja, seguindo essa lógica de pensamento, uma tradução relevante seria uma “boa”
tradução, que cumpre seu papel, que seja econômica — no sentido de aproximar o traduzível
do intraduzível, levando em consideração os princípios da economia, propriedade e
55
quantidade — e que de acordo com o que tratamos anteriormente, também consiga cumprir
sua missão e honrar sua dívida.
uma tradução dita literal, se quiser atingir a maior relevância possível, não será uma
tradução que traduz letras, nem mesmo a que traduz o que chamamos
tranquilamente de sentido, mas será aquela que, traduzindo o sentido dito próprio de
uma palavra, seu sentido literal, quer dizer, determinado e não figurativo, impõe-se,
como lei ou como ideal, embora permaneça inacessível, traduzir, não palavra a
palavra, nem certamente palavra por palavra, mas de permanecer, apesar disso, tão
perto quanto possível da equivalência de "uma palavra por uma palavra"; e impõe-
se, portanto, respeitar a quantidade verbal como quantidade de palavras, em que
cada uma é um corpo que não pode ser decomposto, a unidade indivisível de uma
forma sonora incorporando ou significando a unidade indivisível de um sentido ou
de um conceito. (DERRIDA, 2000, p. 21).
Nesse sentido, não basta que um tradutor seja “absolutamente competente em, pelo
menos, duas línguas e duas culturas, duas memórias culturais com os saberes sócio históricos
que nelas se incorporam” (DERRIDA, 2000, p. 19), é necessário conseguir ultrapassar o
“querer-dizer” do original. Em outras palavras, não é disso que trata a tradução? Uma
sobrevida. Elevada.
É muito marcante na obra de Derrida o caráter autoral, autobiográfico, e é nesse
sentido que entendendo a Tradução sempre como uma invenção, não há modelo, não há um
modo certo de traduzir. Assumindo-nos tradutores, temos então, um campo aberto, pois
abrimos a possibilidade de transcriar. É nesse sentido que, pressuponho, compreendo que
esse movimento do professor ao dar sua aula, ao performatizar sua aula, é Tradução.
56
Alô, teste, som
Expectativa. Está aí uma coisa que sou realmente boa em criar. E no
caso dessa pesquisa, obviamente não foi diferente. Foram uns bons
meses de planejamento, definindo a melhor estratégia e forma de
executá-la; será que vai funcionar? Funcionou? Funcionou. Como o
esperado? Não exatamente. Isso foi um problema? Sigo acreditando
que não. Deu mais trabalho? Sempre dá. Isso foi um problema? Me
digam vocês.
Nessa caminhada, houve tropeço, euforia e desespero. Em alguns momentos
deslanchou, em muitos outros travou, chorei, sorri e sofri, mas o que me importa é que
finalmente estou aqui. Para falar um pouco dessa caminhada. Refiro-me agora,
especificamente a metodologia adotada para essa pesquisa.
Nesses meus quase cinco anos de EFF, tive o privilégio de, não só participar, mas
também de “pensar junto” em algumas pesquisas, desde a elaboração dos instrumentos de
coleta de dados, da coleta em si e na análise desses dados. Uma das coisas que sempre me
chamaram a atenção, diz respeito a dificuldade no que se refere à disponibilidade dos
participantes para coleta de dados.
O tempo está a cada dia mais curto, então como eu faria para marcar uma data,
horário e local que conseguisse se adequar a agenda de participantes inseridos em contextos
tão diferentes? E mesmo que eu marcasse vários encontros, eu conseguiria ao menos um
representante de cada categoria definida previamente? Essas questões realmente tomaram
bastante o meu tempo.
Como solução, pensei no Survey Monkey. Durante o estágio em docência eu o vi em
prática, notei que funcionou. Meu orientador o utilizou diversas vezes na disciplina de
Filosofia da Ciência, a qual eu o acompanhei. Ele enviava links de avaliações parciais para a
turma no grupo do Telegram e todos o recebiam e já o respondiam, tendo ele, as respostas em
tempo real. Para mim, era óbvio que no contexto de uma pesquisa funcionaria da mesma
forma, com a vantagem de o participante nem ter que se deslocar para participar, apenas
57
acessar um link e responder do dispositivo que achasse mais cômodo. Apostei nessa ideia.
Foram enviados dezoito links no total, destes dezoito links enviados eu recebi seis respostas, e
são algumas dentre essas que serão analisadas neste texto.
58
Por uma tradução otobiográfica
Em A escritura e a diferença, Derrida afirmou: “Escrever é saber que
aquilo que ainda não está produzido na letra não tem outra
residência35”. No contexto de seu pensamento, o que este coloca em
questão é: o que está no texto, está no texto, mora no texto. Trata-se a
partir daqui, de um lutar com o texto. Luta que me possibilitará
bancar a otobiografia, pois, também é disso que se trata, não? Que
fique claro, o que será produzido aqui é um outro texto, possibilitado
pelo meu ato de leitura/escuta das produções que a mim chegaram.
Traduções otobiográficas.
Nesta etapa, pretende-se colocar em movimento um conceito que circula nos debates
da educação, trata-se da tradução. Como um conceito, não está destituído de valores
genéticos e de acréscimos, contextuais ou viscerais. Esse jogo conceitual levanta a suspeita
de que tal termo tornou-se corriqueiro o suficiente a ponto de perder sua devida potência de
pensamento.
Não pretendo corrigir ou censurar qualquer significação já atribuída, mas sim, colocá-
las em movimento a partir de outros operadores. Sabe-se que estes temas, com suas
abordagens e nuances, têm, de algum modo, impacto na vida dos indivíduos,
especificamente, nos espaços educacionais, daí julgo que vale a pena serem repensados.
Cunha (1989, p. 151), no livro O bom professor e sua prática visa ressaltar a
importância e o significado do papel do professor, afirma que “estamos vivendo um momento
de transição, uma relação dialética entre os comportamentos enraizados em nós e o desejo de
encontrar formas alternativas de democratização do saber”, ou seja, um momento de
“dualidade entre manutenção e transformação das relações escolares”, que está e ainda estará
vigente por um bom tempo, sendo somente através da reflexão sobre essa prática, que passa a
existir a possibilidade de modificá-la. A leitura deste texto que tem por objetivo “esclarecer
quem é o bom professor hoje e tentar analisar o seu cotidiano a partir do contexto histórico
35
(2009, p. 13.)
59
que lhe é dado” (CUNHA, 1989, p. 158) levou-me a seguinte questão: qual a função de um
professor em sala de aula? O que dele se espera?
De acordo com esta autora, somos
condicionados a ter um tipo de expectativa em relação ao professor. Em geral, ela se
encaminha para que o professor fale, "dê aula", enquanto ele, o aluno, escuta e
intervém quando acha necessário. O fato de se achar na condição de ouvinte é
confortável ao aluno, especialmente se o professor possui habilidades de ensino que
fazem com que a aula não se torne maçante. Este comportamento ratifica a
tendência de que o ritual escolar se dê em cima de aula expositiva (CUNHA, 1989,
p. 136).
Entretanto, o que conduziria essa fala do professor? Essa me parece uma pergunta
pertinente, uma vez que de acordo com Derrida (2002b), é comum a crença de que ao ensinar
o professor não só pode, como deve se despir de si mesmo, apagar-se “para tornar-se porta-
voz de qualquer conteúdo a ser ministrado” (BINGHAM, 2013, p. 418).
Em 1974, porém, durante uma palestra ministrada para o GREPH, o Groupe de
Recherches sur l’Enseignement Philosophique, Derrida demonstra quão incorreta é essa
pressuposição que se tem sobre a possibilidade de “transparência” do professor em seu fazer.
Sendo no ensaio “Who’s afraid of philosophy? (2002b)” (Quem tem medo da Filosofia?), que
ele colocará em xeque a possibilidade de “apagamento” do professor. Para Derrida (2002b), a
simples presença de um professor em sala de aula já inviabiliza essa ideia, pois ao ensinar,
por mais que ele se atenha às ideias do texto, do conteúdo, esses já não falam mais por si
mesmos.
São esses operadores que me levam a entender a visão do professor como um simples
receptáculo ou transmissor de conhecimentos e da aula como loco de transmissão do
conteúdo literal ou auxiliar à leitura dos textos originais como ultrapassada. “Quando um
professor ensina, ele não pode simplesmente apontar para, ou significar algum conteúdo que
já está ali, esperando para ser compreendido” (BINGHAM, 2013, p. 422), ensinar é uma
performance, ao ensinar o professor traduz.
Para fundamentar essa afirmação, tomo novamente o conceito derridiano de tradução,
em seu texto Torres de Babel (2002a). Conforme o que foi dito anteriormente, nessa obra
Derrida se preocupa em evidenciar a incapacidade do tradutor em reproduzir a verdadeira
intenção do texto original, isso porque tanto texto quanto conhecimento não possuem um
dono. Para ele, sendo a tradução necessária e impossível ela é também um gesto
desconstrutor.
“Não há lugar neutro ou natural no ensino” (DERRIDA, 2002a, p. 81), ou seja, aquilo
que o professor diz, parte invariavelmente de um contexto, pois ele escolhe as palavras a
60
partir da sua perspectiva, tomando para si o conteúdo ou texto e proporciona a este uma
sobrevida, e, por isso, o traduz.
Assim, ao ler e preparar uma aula o professor traduz o conteúdo. Esse trabalho gera
uma obra original, pois a simples escolha de suas palavras possibilita a criação de novos
sentidos a um texto inicialmente estrangeiro aos seus alunos. Nesse sentido, não sendo a
tradução unívoca, ao assistir a aula, por sua vez, o aluno também traduz (DERRIDA, 2002a),
ele remobiliza o conteúdo passado pelo professor, num processo de criação (CAMPOS,
2010). Então, tanto o ato de leitura do professor quanto o ato de leitura dos alunos operam
traduções.
Até aqui, acredito que tenha ficado claro meu entendimento e minha posição frente ao
fenômeno da tradução, como este se desdobra e como ele se “encaixaria” ao espaço
acadêmico, ou simplificando, ao processo de ensino. Entretanto, conforme destacado
anteriormente, esse texto se propõe, para além de um estudo teórico, a realizar uma
experimentação do conceito de tradução no contexto acadêmico. Esse é o meu objetivo. É a
isso que passo a me dedicar a partir deste ponto.
A otobiografia precisa ser bancada
Muitas foram as informações passadas aos participantes desta pesquisa, quanto ao
TCLE, objetivos da pesquisa e intenções da pesquisadora, por exemplo. A orientação, porém,
foi única e bem clara: traduzam. Uma orientação aparentemente simples. Vale ressaltar que,
não foi dada qualquer explicação sobre essa tradução, pois o que importa é o que os
participantes ouviram, e aqui opera o Otobiográfico, e o que se pode notar foram respostas
diversas a esta mesma orientação.
Neste ponto, acredito que, ter notícias prévias sobre a pesquisa e a pesquisadora
auxiliou alguns participantes na realização da tarefa. Explico. Desde o meu primeiro contato
com as traduções, um texto me chamou a atenção:
Foreseeing that inside in little I must direct me it the humanity with
the most serious requirement that never was placed to it, she seems
me indispensable to say who I am. In the truth already if it would
have to know it, therefore I did not leave “to give certification” of me.
But the desproporção enters the largeness of my task and the
61
smallness of my contemporaries was disclosed in the fact of that they
had not heard me, at least turns me. Living creature of my proper
credit; it would be a mere preconception, that alive I? … It is enough
to speak to me with any “scholar” who comes to the High Engadina
in the summer to convince me that not alive… In these circumstances
a duty exists, against which in the deep one my habits are rebelled,
and more still the pride of my instincts, that is to say: They hear me!
Therefore I am such and such. Over all they do not confuse me!
(Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995, p.17. Trad. Paulo César de Souza.
Esta tradução, entre as produções, parece ser a mais semelhante as traduções ditas
literais, apresentadas anteriormente. Em que o sentido do texto é encontrado através da busca
de correspondentes entre as línguas, ou seja, a língua de partida e a de chegada. Neste caso
Pedro36, ao deparar-se com o trecho do texto nietzschiano e com a orientação para traduzi-lo,
traduz aos moldes dos linguistas clássicos, transpondo as línguas, o texto apresentado em
língua portuguesa é vertido para a língua inglesa.
Alguns participantes, principalmente os colegas da turma do mestrado e colegas de
grupo de pesquisa, tiveram notícias do conceito de tradução que ensaio experimentar neste
texto. Estes já haviam escutado eu falar sobre o assunto, mesmo que sucintamente, sobre
Derrida e sua tradução desconstrutora. Acredito que tais notícias tiveram relevância, uma vez
que as demais traduções se apresentaram em língua portuguesa.
Partimos do pressuposto que o ato tradutor de Pedro não é decorrente de um
entendimento errado da orientação, o entendimento da orientação é também uma operação de
tradução. Além disso, para o método aqui adotado, não é disso que se trata, a questão aqui é,
o que Pedro disse com essa tradução?
Desse modo, parece enfatizar-me que, quem comanda a narração são seus ouvidos,
não minha voz. Fiel a norma e ao rigor acadêmico, assim que recebe a orientação para
traduzir, responde de acordo com o que habitualmente se espera neste ambiente. Há aqui algo
da destinerrance derridiana, que implica invariavelmente em “destino e errância: o que ao ser
enviado não encontra garantias de chegar, ou a chegada tem seu caminho errante.”
(MONTEIRO, 2013, p. 6).
Isso quer dizer que ao enviarmos uma ideia não há garantias de que essa chegará ao
seu destino, ao menos não tal qual a enviamos, o caminho mostra-se labiríntico e operam
desvios. Ela poderá tanto atingir destinatários não esperados, não atingir nenhum destinatário,
36
Os nomes dos participantes apresentados nesta pesquisa são fictícios, oriundos do texto Torres de Babel que
serviu de inspiração e embasamento teórico para esta pesquisa.
62
como abranger aos que esperamos de formas inimagináveis. Destarte, a produção de Pedro se
apresenta como um sentido que “é locatário involuntário do escrevedor” (MONTEIRO, 2013,
p. 4), e que “ganha vida própria” (Ibid) no percurso tortuoso percorrido pela ideia enviada por
mim.
...
É ciente da incerteza do caminho que o pensamento percorre, que afino os ouvidos em
minha busca por traços das vivências de Pierre em sua produção, assim o faço por seguir a
pressuposição derridiana de que toda produção é autoral, em que a separação de um texto da
vida de seu autor, só pode ser feita artificialmente.
Clarice Lispector, em "A paixão segundo G.H." dizia algo como
"sempre conservei um par de aspas à esquerda e à direita de mim". A
expressão do que sou é sempre acompanhada por aspas, as aspas são
sempre representações e as representações... bem, elas nem sempre
são necessárias. O dever em dizer que "eu sou tal e tal" pode ser
substituído por representações de mim. Afinal, o dever cansa diante
da pequenez dos contemporâneos. Mas que blasfêmia falar em
representação a partir de um fragmento nietzscheano. Fui
compreendido?
De acordo com Monteiro (2007, p. 473), “é pressuposto que a produção escrita
contribui para a construção do sentido de vida do escritor” assim, “a autoria descreve seu
autor” (Ibid). Portanto, é no texto de Pierre que está a sua verdade.
Sua produção me parece um manifesto de si mesmo, em que as aspas lhe servem para
além de uma expressão literária. Estas são marcas que carrega no corpo, que dão tom a sua
vida, como um protesto às definições estatizantes, as imposições sociais, as expectativas que
lhe são depositadas. Embora sua produção tenha feição de grito de guerra, nunca saberemos
se com esse manifesto ele “quis que algo fosse feito” (DERRIDA, 2013, p. 94).
A produção de Pierre é, por conseguinte, um indecidível, não abre espaço para o
movimento de decifração, ouve-se as margens e nesse movimento de escrileitura, sou afetada
e o que eu ouço são ressonâncias de minhas próprias vivências.
...
63
As traduções até aqui analisadas fazem retornar a mim a questão da dívida do tradutor
trabalhada anteriormente e me fazem pensar, até que ponto e de que maneira os sujeitos desta
empiria estabelecem o seu sentido e estão implicados com o endividamento implícito no ato
tradutor? Quais as consequências?
O conto O Tradutor Cleptomaníaco37 de Dezső Kosztolányi38 (1996, formato epub)
me auxiliará a elucidar este ponto. Imagine alguém que não tem dívida nenhuma com o que
irá traduzir. Pois bem, o protagonista deste conto era um cleptomaníaco, literalmente.
Realizou diversos furtos, até que foi preso. Só consegue sair da cadeia por conta da influência
dos amigos. Porém, o inverno está chegando e além de não ter dinheiro, está desempregado.
Desesperado ele vai até um amigo e implora por um emprego, esse amigo alega que
alguém em sua posição não teria como escrever artigo ou coluna para jornal assinando seu
próprio nome. Ele não tinha mais crédito por ser cleptomaníaco. Entretanto, por saber inglês
muito bem, seu amigo arruma para ele um trabalho de tradutor, sua primeira tarefa seria
traduzir um romance, no caso uma novela inglesa de detetives (Ibid).
Esse texto “Era um daqueles lixos com os quais não se quer sujar as mãos. Não o
lemos. No máximo o traduzimos, usando luvas” (KOSZTOLÁNYI, 1996, formato epub).
Surpreendendo o amigo que lhe arrumara o emprego, antes mesmo do prazo estabelecido o
tradutor entrega o manuscrito. Entretanto, ao fazer a leitura dele o editor “comunicou que a
tradução do meu protegido era totalmente inutilizável, e por isso não estava disposto a pagar
nenhum vintém” (Ibid).
O amigo do tradutor surpreso pôs-se a ler esse texto e ao fazê-lo solta um grito de
admiração. “Frases claras, mudanças engenhosas, montagens linguísticas espirituosas se
sucediam, muito mais digna que o original” (Ibid). Era uma tradução “fluente, artística, e por
vezes poética” (Ibid). Foi então questionar o editor. Esse pediu que comparasse o original e a
tradução.
A primeira frase do original inglês dizia assim:
As trinta e seis janelas do velho castelo, desgastado pelo vento, brilhavam. No
primeiro andar, no salão de baile, quatro lustres de cristal iluminavam
luxuosamente. Na tradução húngara estava: As dezessete janelas do castelo,
desgastado pelo vento, brilhavam. No primeiro andar, dois lustres de cristal
37
Este conto me foi apresentado pelo Prof. Dr. Henrique de Oliveira Lee durante o exame de qualificação desta
dissertação. Acredito ser de grande relevância apresentá-lo mesmo que fragmentado e resumido neste texto por
ter se mostrado imprescindível a mim na elaboração das considerações que farei sobre a importância (ou não) da
apropriação do endividamento com o original por parte do tradutor. 38
Foi um dos maiores autores húngaros (1885-1936). Em 1933 lançou um volume de contos protagonizados por
seu personagem mais famoso, Kornél Esti (espécie de alter ego do autor), do qual foram extraídas as treze
histórias de O tradutor cleptomaníaco.
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iluminavam luxuosamente. [...] Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre
causava prejuízo aos personagens, mesmo que só se apresentassem naquele capítulo,
e, sem respeitar móvel ou imóvel, atropelava a quase indiscutível sacralidade da
propriedade privada. Trabalhava de várias maneiras. Na maioria das vezes, os
objetos desapareciam sem mais nem menos (KOSZTOLÁNYI, 1996, formato
epub).
Percebendo então a posição do editor, o amigo do tradutor despede-se e vai embora.
Esse conto, brevemente apresentado e até certo ponto bem-humorado, cria uma história para
dizer do que eu entendo como a questão da perda da tradução. Perda e dívida estão
intimamente relacionadas na tradução, o que me leva a questionar: a fidelidade a quantidade
das coisas que são descritas na tradução importa? É o que realmente importa? O que importa?
Outra questão: até que ponto os sujeitos que traduziram a meu pedido se endividaram? Se
endividados, ligada a que estava essa dívida?
As duas análises das traduções elaboradas acima apontam para dois sentidos de
endividamento. Esses tradutores respondem a sua dívida de maneiras bem distintas, o
primeiro foi deveras formal, ao passo que o segundo parece um tanto “artístico”. Além disso,
há uma fantasia de endereçamento que opera nessas traduções, penso não ser para mim,
sujeito empírico, que essas fantasias se dirigem, então para quem se dirigem? Talvez para si
mesmos, mas como saber? Questões que ressoam.
…
Parece-me um desafio à humanidade pedir-lhe que saiba quem eu
sou, por isso eu o faço aqui, por meio de palavras. Palavras essas que
deveriam ser desnecessárias se as pessoas observassem as minhas
ações, os meus depoimentos, minhas expressões, enfim, se
enxergassem quem eu sou. Mas o fato de que eu tenha que fazer a
tarefa de me definir, apresentar-me, significa que passei
desapercebido pelas pessoas, algumas que conheço há tantos anos,
pois elas ainda me definem pelo meu exterior. Sendo assim, ainda que
contra a minha vontade e ferindo o meu orgulho, sinto necessidade de
dizer: Olhem de verdade para mim, para além do estereótipo. Vejam
quem sou e, sobretudo, não me confundam!
Qual a fantasia de Peter ao escrever? Para quem e por quem precisa ele ser
enxergado? Porque isso se mostra tão importante? Será isso, realmente importante? Há aqui
algo da experimentação da impossibilidade da verdade. Não há verdade. O que é a verdade?
Para quem é verdade? Até quando é verdade? Mas, indagar por uma verdade não me faria
entrar no desconcerto do hermeneuta diante de textos indecidíveis? Não é justamente para
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isso que Derrida sugere um outro modo de aproximação que se engaje em “afastar a
decifração para tão longe quanto for possível” (2013, p. 101)?
Não tenho a pretensão de ter todas as respostas, mas tratando-se do método
Otobiográfico, uma questão torna-se central: o que eu escuto deste trecho de Nietzsche?
Talvez a mais difícil de responder. Só depois que será possível perguntar: o que eu escuto
dessa tradução deste texto? Ora, otobiografia não diz respeito justamente a escutar o texto? O
texto que ressoa? Parece-me que o que ouço aqui, fornece-me elementos para pensar a
didática. Talvez a tradução seja o modo como Peter mobiliza a didática. Seria sua assinatura?
Afirmação da vida afinal.
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Algumas ponderações
13 de dezembro de 2013, esse foi o dia da minha primeira reunião
como membro do EFF. Ai que nervoso! Quanta ansiedade! Mas
vamos lá, respira fundo, controla-se! Mantras que eu recitava a mim
mesma, não ajudaram muito. Desde o primeiro instante em que entrei
na famosa sala 40 fui subitamente sugada. Minhas forças foram
sendo consumidas e eu me sentindo deslocada. Sugada para aquele
universo incrível. Distante da minha zona de conforto. Aí está algo
que eu nunca mais senti desde aquela sexta-feira 13 no ano de 2013.
Inebriante. Essa é a palavra? Talvez a melhor em que eu consiga
pensar no momento.
Viver o EFF foi intenso. Conceitos, experiências, escritas, pessoas e conversas ainda
ressoam em mim. Isso me fez tremer, tilintar. Sempre me deslocando e fazendo vibrar. E este
texto é como sempre diz uma querida e sábia amiga, o resultado do que foi possível até este
momento da minha caminhada. É isso que quero dividir. No fim das contas, esse texto trata-
se de como eu traduzo tudo isso.
Antes de finalizar, eu gostaria apenas de agradecer, a todos que direta ou
indiretamente colaboraram para que esse texto fosse possível, esse é sim o meu texto. Há nele
marcas de mim, assinatura, afirmação da vida, mas vida essa que não teria sentido se não
fosse compartilhada.
Há algum tempo olho para essas páginas em branco e penso: “preciso finalizar”! E
como dói! Talvez o fim seja tão tenebroso quanto o começo, não é? Sorte a minha que o fim é
também a marca de um recomeço. Ao menos assim o vejo.
Volto a aquelas questões que me serviram de abertura, não para finalizá-las, mas para
transbordá-las. Lembremos então daquele professor que fantasiamos naquele momento.
Nessas páginas, me dediquei a defender a premissa de que a aula é um ato tradutor do
professor, assim, seu trabalho é ativo, criativo e crítico, possibilitando ao conteúdo uma
sobrevida, uma sobrevida elevada.
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Obviamente, minha proposta vai à contramão de uma lógica ainda vigente de
enquadramento desse professor como um replicador, um repetidor, ou ainda um simples
transmissor de conhecimentos. Essa mesma lógica toma a aula, consequentemente, como
dispositivo de transmissão do conteúdo literal ou simples auxiliar a leitura dos textos.
É importante ressaltar, que o modelo educacional que busquei repensar neste texto,
recebeu forte influência da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, movimentos que
entre outras coisas, visavam a produção em massa pela via da especialização, em um cenário
onde a maior parte da população era analfabeta e, consequentemente, mão de obra
desqualificada.
Nesse sentido, mesmo que possamos justificar a validade deste modelo para este
contexto, isto é: que o ensino — através da sistematização de determinados conhecimentos
até então considerados fundamentais —, servisse de ponte para o mercado de trabalho; e o
professor — como um receptáculo-repetidor — devesse transportar o máximo de
conhecimento de sua cabeça para a cabeça do aluno; atualmente, não se justifica que
permaneçamos presos a essas concepções. São outros tempos, com outras necessidades, que
demandam novas estratégias, tanto do ensino quanto do professor. Pensemos, por exemplo,
na velocidade e na facilidade de acesso a informação experimentada atualmente.
Da maneira como percebo, principalmente no Ensino Superior, boa parte das
estratégias de ensino ainda baseadas na repetição, mecanização de fórmulas e definições, que
tendem a priorizar a fidelidade — tolindo a abertura para o desenvolvimento da criatividade e
da capacidade crítica —, talvez não estejam levando em consideração a lógica turbulenta e
inconstante do mercado de trabalho atual.
Como esperar que os recém-formados estivessem preparados para ser criativos,
críticos e inovadores, se esses passaram anos da sua vida aprendendo que isso não era correto
nem desejável?
A todo o momento somos demandados e nosso contexto é modificado, renovado.
Todos os dias somos apresentados a alguma inovação tecnológica, a algo que precisamos
incorporar em nosso repertório para não ficarmos obsoletos. Penso ser ingênuo imaginar que
o professor não devesse acompanhar esse movimento.
É fazendo o que Jakobsson chama de tradução interlingual, que o professor toma esse
aluno como destinatário e comandante de sua fantasia de endereçamento, se mobiliza e
remobiliza no intuito de apresentar um texto, um conteúdo, uma aula que além de inteligível,
seja também interessante. Enquanto Didata da Tradução o professor abre a possibilidade
68
crítica e criativa em sua aula. Lembremos que a boa tradução é justamente aquela que
revigora o texto, que lhe dá uma sobrevida.
Assim, finalizo esse texto tendo comigo a imagem do mesmo professor com quem o
iniciei. Pois quando penso no “que é isso que esse professor faz?”, já posso arriscar: ensina a
traduzir.
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