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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO VALDESON PAULA PORTELA CAPOEIRANDO CAMINHOS: DO PÉ DO BERIMBAU AO SER E FAZER CAPOEIRA EM CUIABÁ- MT CUIABÁ - MT 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

VALDESON PAULA PORTELA

CAPOEIRANDO CAMINHOS:

DO PÉ DO BERIMBAU AO SER E FAZER CAPOEIRA EM CUIABÁ-

MT

CUIABÁ - MT

2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CAPOEIRANDO CAMINHOS:

DO PÉ DO BERIMBAU AO SER E FAZER CAPOEIRA EM CUIABÁ-

MT

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título

de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Beleni Saléte Grando

CUIABÁ - MT

2017

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

P324c Portela, Valdeson Paula.Capoeirando Caminhos : do Pé do Berimbau ao Ser e Fazer

Capoeira em Cuiabá-MT / Valdeson Paula Portela. -- 2017115 f. ; 30 cm.

Orientadora: Dr.ª Beleni Saléte Grando.Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,Cuiabá, 2017.

Inclui bibliografia.

1. Capoeira. 2. Cuiabá. 3. Educação Intercultural. I. Título.

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AGRADECIMENTOS

Na vida se cai Se leva rasteira

Quem nunca caiu Não é capoeira

Eu caí, sim

Eu caí e me levantei Se for pra cair de novo

Pode vir que eu me aprumei.

Gratidão a todos que contribuíram para a realização desta pesquisa, pois se, por vezes, tenho

caído, vocês estão ao meu lado e é com e por vocês que me levanto.

Por mais que eu agradeça por ter ganhado tantos ensinamentos, ainda me faltam

agradecimentos por viver a filosofia na vida e em vida com a capoeira.

Gratidão ao acolhimento, carinho, conselhos e amor de minha mãe Lucilene José de Paula

que, no cotidiano desta pesquisa, tem manifestado humildade e sabedoria na luz de seu olhar.

Sou-te grato;

Sou grato pela orientação da Professora Doutora Beleni Saléte Grando que, ao reconhecer

minhas limitações no início do processo, aceitou o desafio da orientação. Gostou de mim

como eu sou. A sua competência, humanidade, engajamento, coragem e ternura são valores

permanentes em minha vida. Sou- lhe grato.

Agradeço aos amigos, amigas, professores, professoras, mestrandos, contramestres e mestres

de capoeira, bem como às companheiras e aos companheiros de luta que compartilham

comigo suas experiências nesta pesquisa.

Gratidão à amiga Laylla Fernanda da Silva que me incentivou a fazer a seleção do mestrado e

pela mão amiga, pelo companheirismo e pela acolhida no início de tudo. Sou-lhe grato.

Agradeço às minhas amigas antigas e novas, às turmas de Mestrado 2015/16, Aila Oliveira

Serpa, Solange Mara Moreschi Silva e Zizele Ferreira Santos, Aila e Solange, colegas do

curso de Mestrado em Educação, companheiras de luta que compartilham comigo as

discussões acadêmicas, e à Zizele por ouvir minhas questões de estudo, além colaboração na

construção dos conhecimentos e discussões acadêmicas.

Agradeço à equipe do Programa de Pós Graduação em Educação, Linha de pesquisa em

Educação, Movimentos Sociais e Educação Popular da UFMT e ao COEDUC - Grupo de

Pesquisa Corpo, Educação e Cultura pela acolhida e parceria.

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PORTELA, Valdeson Paula. CAPOEIRANDO CAMINHOS: FROM THE FOOT OF BERIMBAU TO BE MAKING CAPOEIRA IN CUIABÁ-MT. 2016. 092 f. Dissertation (Master in Education) - Institute of Education, Federal University of Mato Grosso, Cuiabá, 2016.

ABSTRACT

This dissertation seeks to understand the weaving of relationships that were created to allow the rebirth of Capoeira in Cuiabá, Mato Grosso, with consideration to the rites and rituals that mark such practices in different consolidated groups, narratives and also its' history of the masters responsible for such groups. Capoeira, considered a manifestation of Afro-Brazilian culture, is an art marked by the story of the common people, made to tell and signify life's daily struggle. Capoeira, from its' conception as told by the masters and intellectuals in Brazil, to it's growth as a diverse art, is capable of untold dimensions and visions. Capoeira is expressed in the circles, dances, fights, games, jokes and rituals - all depending on its intention. It's historical and sociocultural experiences are only felt through the expression of body. This expression of self effected how one lived sociallaly, according to studies undertaken by Corte Real (2006), Vieira (1995), Falcão (1996) and Grando 2014). This qualitative social research was carried out with eight capoeira groups from Grande Cuiabá in dialogue with their teachers and managers. The methodological proposal is based on Ethnography to describe, from their narratives, how they perceive themselves and constitute themselves as a group of Brazilians, but also as capoeiristas from Mato Grosso. From them were gathered futher participants with which was gathered a network of relationships of interviews and relationships that began to form an identify that is unique to Mato Grosso. This network was m Bapped and is presented here. This data has made it possible to reflect upon the processes needed to further educate, understand and fully communicate to this body of people. The learning in and of the capoeira in Cuiabá is esential to the understanding of the diverse audience an educator faces and is crucial to devleoping an intercultural perspective. Keywords: Capoeira; Cuiabá; Intercultural Education.

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PORTELA, Valdeson Paula. CAPOEIRANDO CAMINHOS: DO PÉ DO BERIMBAU

AO SER FAZER CAPOEIRA EM CUIABÁ-MT. 2016. 092 f. Dissertação (Mestrado em

Educação) - Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2016.

RESUMO

Esta dissertação busca compreender o tecer das relações que garantem a recriação da Capoeira em Cuiabá, Mato Grosso, considerando os ritos e rituais que marcam sua prática em

diferentes grupos consolidados e as narrativas dos mestres responsáveis pelos grupos. A capoeira, considerada uma manifestação da cultura afro-brasileira, é uma prática corporal marcada por histórias e agentes sociais que a produzem e a ressignificam nos dias atuais.

Segundo os mestres e intelectuais da capoeira no Brasil, esta é plural desde sua origem, sendo possível contemplá- la nas diversas dimensões e visões de Capoeira que se expressam nas

rodas, danças, lutas, jogos, brincadeiras e/ou rituais dependendo de seu recorte histórico e do contexto sociocultural vivenciado no corpo. O corpo expressa-se na diferença e é relativo aos papeis sociais assumidos em cada período ou relação estabelecida no jogo social e grupo que

representa, conforme estudos empreendidos por Corte Real (2006), Vieira (1995), Falcão (1996) e Grando (2014). Trata-se de uma pesquisa social de abordagem qualitativa realizada

com oito grupos de capoeira da Grande Cuiabá em diálogo com seus mestres, professores e responsáveis. A proposta metodológica se pauta na Etnografia para descrever, a partir de suas narrativas, como os mesmos se percebem e se constituem como grupo de capoeira mato-

grossense e brasileiro. Recorreu-se à observação participante como pesquisador e integrante de um dos grupos pesquisados, o que permitiu identificar as autoridades constituídas nos

grupos e realizar entrevistas com essas lideranças, estabelecendo as redes de relações e significados que os identificam e os diferenciam em Mato Grosso. Esta rede foi mapeada e é aqui apresentada, ao mesmo tempo em que orientou a delimitação dos grupos e das entrevistas

realizadas. Os dados têm possibilitado refletir sobre os processos de educação do corpo presente em cada grupo, bem como pontuar novas formas de educar as pessoas para uma

relação mais respeitosa que reconhece na diversidade as possibilidades de aprender com o outro, que se evidenciam nas inquietações dos corpos que jogam e brincam numa luta de reconhecimento e alteridade. As aprendizagens na e da capoeira em Cuiabá se colocam nos

corpos como possibilidades de ser igual e ser diferente, numa perspectiva intercultural.

Palavras-chave: Capoeira; Cuiabá; Educação Intercultural.

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PORTELA, Valdeson Paula. Capoeirando formas: desde el berimbau pie sea EN AVES

DE CORRAL Cuiabá-MT. 2016. 090 f. Disertación (Maestría en Educación) - Instituto

de Educación, Universidad Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2016

Resumen

Esta disertación busca comprender o tejer las relaciones que garantizan la recreación de la

Capoeira en Cuiabá, Mato Grosso considerando los ritos y rituales que marcan su práctica en

diferentes grupos consolidados y las narrativas de los magísteres responsables de los grupos.

La Capoeira considerada una manifestación cultural afro- brasileña, es una práctica corporal

marcada por historias y agentes sociales que la producen y la resignifican en la actualidad.

Según los magísteres e intelectuales de la Capoeira en Brasil, esta es plural desde su origen

siendo posible contemplarla en las diversas dimensiones y visiones de la Capoeira que se

expresan en las ruedas, bailes, luchas, juegos, bromas y/o rituales que dependen de su recorte

histórico y el contexto sociocultural que se vive en el cuerpo. El cuerpo se expresa en la

diferencia y es relativo a los papeles sociales asumidos en cada periodo o relación que se

establece en el juego social y en el grupo que representa, de acuerdo a los estudios

emprendidos por Corte Real (2006), Vieira (1995), Falcão (1996) e Grando (2014). Se trata de

una investigación local con abordaje cualitativa realizada con ocho grupos de Capoeira de la

grande Cuiabá en dialogo con sus magísteres, profesores y responsables. La metodologia

propuesta se pauta en la etnografía para describir, a partir de sus narrativas, cómo ellos se

perciben y se constituyen como grupo de Capoeira matogrossense y brasileño. Se recurrió a la

observación participante como investigador e integrante de uno de los grupos estudiados, lo

que permitió identificar a las autoridades constituidas en los grupos y así realizar entrevistas

com estos liderazgos, estableciendo las redes de relaciones y significados que los identifican y

los distinguen en Mato Grosso. Esa red fue mapeada e presentada al mismo tiempo en que

orientó la delimitación de los grupos y las entrevistas realizadas. Los datos han permitido

reflexionar sobre los procesos de la Educación del cuerpo que está presente en cada grupo, así

como puntualizar nuevas formas de educar a las personas para una relación más respetuosa

que reconozca en la diversidad, las posibilidades de aprender con el otro que quedan

evidenciadas en las inquietudes del cuerpo que juega y bromea en la lucha por el

reconocimiento y la alteridad. Los aprendizajes en y capoeira en Cuiabá se colocan en los

cuerpos como las posibilidades de ser iguales y ser diferentes desde una perspectiva

intercultural.

Palabras clave : Capoeira; Cuiabá; Educación intercultural.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Grupos de Capoeira na Grande Cuiabá a partir dos mestres e representantes dos

grupos ....................................................................................................................................... 33

Figura 2 Mapeamento dos grupos de capoeira na Grande Cuiabá ........................................... 35

Figura 3 Jornal O Mato Grosso. ............................................................................................... 52

Figura 4 Curso de Capacitação Grupo Aruandê ....................................................................... 66

Figura 5 Evento do Grupo Sendero .......................................................................................... 68

Figura 6 Tuiuiú: troca de corda em Cuiabá-1995. ................................................................... 72

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

CAPÍTULO I ............................................................................................................................ 23

PROCESSO METODOLÓGICO: CAPOEIRANDO OS CAMINHOS DA PESQUISA....... 23

1.1 A Capoeira na Grande Cuiabá: Mapeamento dos Grupos de Capoeira a Partir de

Algumas Autoridades Locais ................................................................................................ 30

1.1.1. Perfil dos Entrevistados......................................................................................... 36

CAPÍTULO II ........................................................................................................................... 40

CAPOEIRA: UMA PRÁTICA CORPORAL DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA ........... 40

2.1 A capoeira em Cuiabá: uma história mais recente .......................................................... 54

2.2 A capoeira em Cuiabá: uma questão de raça e identidade .............................................. 73

CAPÍTULO III.......................................................................................................................... 79

AS TEIAS DE RELAÇÕES DA CAPOEIRA EM CUIABÁ: UM DIÁLOGO COM A

LITERATURA ......................................................................................................................... 79

3.1 Tecendo Capoeira na Grande Cuiabá.............................................................................. 83

3.2 Educação ......................................................................................................................... 85

3.3 A organização ritual da capoeira..................................................................................... 87

3.3.1 A formação da roda .................................................................................................. 98

3.3.2 Musicalidade........................................................................................................... 101

3.3.3 Conduta/regras........................................................................................................ 106

CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................... 108

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 110

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INTRODUÇÃO

A capoeira, vista como manifestação da cultura afro-brasileira produzida nas relações

sociais que envolvem diversidade de classe, gênero, idade, etnia, constituição familiar, entre

outros aspectos, será investigada como uma prática social presente na cultura mato-grossense.

Ao estudá- la, partimos do conceito antropológico de cultura de Geertz (2008), entendendo-a

como ―teia de significados‖ tecida pelos sujeitos em relação às suas formas de produzir a

vida, de jogar, cantar, tocar, brincar ou dançar, uma vez que es ta manifestação em si é

polissêmica e multicultural. Nos interessa compreender as formas de transmissão dos saberes

e fazeres da capoeira dos grupos de capoeira de Cuiabá delimitados nesta pesquisa, bem como

suas pedagogias e possibilidades de educação intercultural, reconhecendo as diversidades

identificadas nas rodas.

Adotamos a compreensão da Educação Intercultural enquanto prática pedagógica que

compreende o encontro entre as diversas culturas, reconhecendo seus valores e propiciando

um diálogo entre os saberes, tendo por referência os estudos de Fleuri (200, 2006) e parceiros

do Grupo de Pesquisa Educação Popular e Interculturalidade – MOVER/UFSC. Para este

autor, a educação intercultural é uma modalidade de educação capaz de modificar e atuar no

pensamento, propor, produzir e dispor de diálogo entre as relações de aprendizagem, num

contraponto ao modo de pensar e produzir ancorado na homogeneidade e universalização, por

promover ―interação entre sujeitos de identidades culturais diferentes e busca desenvolver

concepções e estratégias educativas que favoreçam o enfrentamento dos conflitos, na direção

da superação das estruturas sócio-culturais geradoras de discriminação, de exclusão ou de

sujeição entre grupos sociais [...]‖ (FLEURI, 2002, p. 407).

A partir dessa compreensão, os grupos de Capoeira que buscamos conhecer através de

suas práticas pedagógicas próprias, nos possibilitam investigar como nas relações

estabelecidas pelos mediadores das práticas corporais, os mestres e capoeiras promovem

―interações‖ ―entre os sujeitos de identidades culturais diferentes‖.

Assim, a pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na linha de pesquisa Movimentos Sociais,

Política e Educação Popular, busca descrever a capoeira na grande Cuiabá1, a partir das

relações tecidas pelos Mestres ou responsáveis pelos grupos de capoeiras e os processos de

1 Por grande Cuiabá definimos o contexto urbano das cidades de Cuiabá e Várzea Grande, que se dividem pelo

rio Cuiabá.

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institucionalização dos mesmos, procurando compreender a trama de relações e significados

que garantem a roda de capoeira como espaço de identificação e diferenciação des tes grupos.

A proposta metodológica se pauta na Etnografia a fim de descrever, a partir de suas

próprias narrativas, como os mesmos se percebem e se constituem como grupo de capoeira

mato-grossense e brasileiro. Como pesquisador que integra um dos grupos investigados,

optamos pela observação participante que nos auxiliou na identificação e reconhecimento das

autoridades constituídas nos grupos e realizar entrevistas com essas lideranças, estabelecendo

as redes de relações e significados que os identificam e os diferenciam entre os observados.

Minha inserção e conhecimento como capoeirista possibilitou a construção de um

texto produzido pelo olhar de um ―participante observador‖, um observador interno, que

vivenciou uma significativa parcela da história com os Mestres aqui identificados como

agentes sociais (sujeitos da pesquisa). Tais vivências, ao longo de minha história vivida na

capoeiragem, configuraram-se como momentos de significativos diálogos, desvelando a rica

contribuição destes atores sociais, em especial o grande conhecimento que demonstram sobre

a prática da capoeira e a sensibilidade para a contribuir na junção dos fragmentos desta

história em construção.

A Capoeira, incorporada como ―esporte nacional‖, é símbolo da identidade brasileira

e, por isso mesmo, traz consigo todos os conflitos e fragilidades vivenciados nas relações

entre os praticantes que a criaram e a produzem no cotidiano, dentro de uma sociedade que é

marcada por preconceitos raciais, bem como de gênero e de condição socioeconômica.

Os indicadores sociais e os estudos sobre relações raciais são analisados a partir de

Pinho (2007), que em suas pesquisas revela cenas cujas crenças ideológicas racistas estão

completamente infiltradas e são influentes no imaginário social b rasileiro, permeando as

práticas corporais, tal como o futebol e, com Falcão (2004), a partir de uma análise específica

da capoeira. Outros sim, estes indicadores ilustram de forma triste que a política de integração

do negro brasileiro se dá pela ―assimilação cultural‖ ofertada pelo mito da democracia racial

que dispõe de um espaço limitado a que esta população está subordinada, ao passo que nega

sua integração na sociedade de forma plena. (MUNANGA, 2010).

Ao tecer a leitura da realidade local, buscamos interpretar a história da capoeira para

além da sua marginalização, compreendendo-a em suas contradições sociais como cultura

afro-brasileira sob um cenário de subordinação e falta de integração plena, e como resistência

e fortalecimento dos sujeitos marginalizados, figurando como prática social de identidade

nacional, reproduzida de forma descontextualizada, incorporada e homogeneizada,

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consequentemente, folclorizada, desprovida do caráter político que denuncia e contesta as

situações de desigualdades às quais homens e mulheres negros foram e estão expostos.

O diálogo necessário com a história do Brasil nos remete aos quilombos que trazem na

Capoeira sua resistência e sustentam outros movimentos negros que se configuram como

instâncias de organização social. Neste movimento de resistência e luta, incluem pautas que

garantem o exercício da liberdade e cidadania à população negra brasileira.

Fugindo à tentação de cairmos em reducionismos ou romantismos, descomprometidos

com a própria história e produção da Capoeira, buscamos descrever esta prática social a partir

de seu próprio processo de cultura, postulado de condições reais (materiais) e objetivas;

procuramos identificar os seres produtores desta manifestação cultural e como estes

respondem aos novos desafios em cada época, colaborando para a manutenção deste

patrimônio cultural e abrindo-se às novas possibilidades de sustentação.

A Capoeira, quando observadas as tessituras e afinações de seus instrumentos - base

para o jogo bem jogado - exigiu de nosso trabalho, dentro de nossas possibilidades,

compreendermos não apenas o momento de seu surgimento, mas, também, a variação de seus

estilos e seus significados históricos pelos quais perpassam os projetos políticos de nação,

uma vez que a construção da identidade nacional se ancora na eugenia2 como fator ideológico,

resultando em danos ainda não reparados ao segmento populacional negro brasileiro.

Ao rever a história do Brasil, identificamos que os intelectuais, antropólogos,

políticos, artistas, educadores e outros integrantes de classes dominantes, foram, de forma

excessiva, influenciados pelo ideal de moldar os corpos negros para que se adaptassem e

servissem como força física saudável para a construção e desenvolvimento do país. Para tal, a

homogeneização das culturas – tendo a Europa como referencial de desenvolvimento e

progresso, e o exacerbado sentimento nacional – foi encorajada com base numa falsa noção de

pertença harmoniosa através da exaltação da mestiçagem brasileira que integrava como povo

os negros, indígenas e brancos pobres, camuflando o racismo e ―limpando‖ a marca das

escravidões e colonialismos que imperavam em todos os tempos na luta de classes.

2 Compreende-se esse termo como uma ciência/pseudociência/teoria que, baseando-se na hierarquia da

superioridade, voltou-se através de projetos diversos à purificação da raça humana. A eugenia baseia-se,

portanto, na ciência da hered itariedade somada à concepção de que a vida fora tida como resultado das leis

biológicas. Nancy Stepan (2005) procura compreender a utilização da eugenia em diversos países ao final do

século XIX e início do século XX, conclu indo que, embora houvesse, em linhas gerais, uma adesão da maioria

dos países, a utilização e concepção e uso desta variava.

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É em meio a este cenário – constituição do Estado Novo do Brasil – que Mestre Bimba

funda a Capoeira regional e consegue se articular politicamente com integrantes da classe

dominante praticantes da Capoeira, assim como com outros praticantes de renomes como

Mestre Pastinha, e concretizam a abertura da primeira academia de Capoeira devidamente

licenciada, bem como a descriminalização desta prática considerada crime desde 1890 por

meio do Código Penal Brasileiro, na nova Constituição Brasileira de 1937. O processo que

resulta em tais conquistas tem muito a ver com a assimilação cultural pela qual a produção

cultural negra brasileira irá passar neste período. Mestre Bimba, formulando preceitos,

movimentos/golpes e novas metodologias que, adaptando-se a ambientes fechados, afastava-

se das práticas da Capoeira das ruas na Bahia e, ao desafiar nesses novos espaços fechados a

capoeira como uma categoria de luta, conseguiu levar seus praticantes lutadores a vencer

outras categorias de artes-marciais existentes no Brasil à época. Para tal, afasta

temporariamente o atabaque que simbolicamente identifica a Capoeira e o Candomblé com o

povo negro do Brasil.

Nestor Capoeira (1998) relata sobre a Capoeira e o Candomblé:

Getúlio Vargas (...) em 1934 extingue o decreto-lei que proibia a capoeira e a prática de cultos afro-brasileiros (...), mas por outro lado ele obriga que tanto os cultos quanto a capoeira sejam realizados fora da rua, em recinto fechado com um alvará de instalação, e assim cria também uma forma de controlar estas manifestações. Outro exemplo desta mesma política de Getúlio é que, embora permitindo a livre expressão (vigiada) da cultura negra, ele desmantela a Frente Nacional Negra que naquela época tinha aglomerado uns duzentos mil associados, restringindo a expressão política dos negros (CAPOEIRA, 1998, p. 60).

Ao tecer a história da Capoeira e necessariamente dos seus personagens que a criam e

a alimentam em cada fase da história social coletiva do Brasil, trazemos as tensões e

conquistas vivenciadas com a capoeira que dizem respeito tanto à construção da identidade de

cada um quanto à nossa na posição de pesquisador uma vez que, também nos dias atuais,

atuamos na complexa história de formações identitárias do país.

Nessa rede de sentidos e significados cujo corpo capoeira se produz, minha

proximidade com ela surge aos 14 (quatorze) anos de idade e, já naquela época, manifestou-se

como uma oportunidade de transformar minha vida social, individual, cultural e profissional.

Desde adolescente, trabalhador e de periferia da grande Cuiabá, o corpo franzino e pobre que

busca um lugar de superação para se ver homem num contexto de disputas e exclusão da

sociedade elitizada e sem espaços para meninos negros pobres. A Capoeira foi o espaço

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limitado passível de ocupação enquanto sujeito subordinado à ―democracia racial‖, tal como

nos ensina Munanga (2010).

Nesta pesquisa, fui tecendo a compreensão da minha própria história entrelaçada com

as histórias de outros capoeiras e brasileiros que, na luta por ocupar um lugar de cidadania, se

coloca no corpo que tem para ocupar e resistir ao se identificar e se reconhecer como igual e

diferente.

Hoje compreendo melhor que tais transformações são de grande valor cultural, além

de uma oportunidade para a constituição de minha identidade negra, pois há mesmo um

caminho árduo em que se lida com a desconstrução pelas quais nós negros e negras

brasileiros(as) passamos, ou seja, o processo de tornar-se negro3. Assim, revelo que, somados

os 20 anos de capoeira, meu interesse por essa temática enquanto pesquisa científica faz parte

de minha trajetória acadêmica desde a graduação, portanto, não só me identifiquei com a

―filosofia da capoeira, mas fiz e faço dela a minha filosofia de vida e de trabalho 4”.

Conforme as palavras de Mestre Falcão (2004, p.293), ―A capoeira como ―filosofia de vida‖ é

fruto de uma vivência contínua, íntima e prolongada de seus rituais e fundamentos, nos

mesmos moldes das práticas religiosas‖.

Da inserção na Capoeira como adolescente aprendiz, o corpo se tornou forte e robusto

e com ele tive a oportunidade de desenvolver atividades já como adulto... O professor... Com

crianças refiz a minha história e, com a Capoeira, novas oportunidades de trabalho e

reconhecimento, pela identidade de ―Professor Modelo‖ (meu nome na Capoeira), mesmo

antes de ter concluído o Ensino Médio. Essa identidade me levou a valorizar os estudos para

ocupar os espaços escolarizados com a capoeira. Ao acompanhar meu professor Paulo

Henrique e Mestre Lindomar nas oficinas, fui me formando professor e desta vivência surgiu

o convite para ir à Juara em meados de 20015 e atuar com projetos sociais6.

3 A autora negra, Neuza Santos Souza (1983) trata, do ponto de vista psicanalítico, da interiorização que, nós

negros e negras, sofremos ao adotarmos estigmas e alguns sentimentos como: vergonha, inferioridade como

sensação constante no que diz respeito aos nossos valores e crenças, humilhações, pouca proximidade ou

dificuldade de lidar com a aceitação das diferenças ou estabelecermos, prontamente, um discurso de identidade

racial. Tais marcas são concernentes à história marcada pelo afastamento e negação das identidades de seu

próprio povo. 4 Jargão das rodas de capoeiras que desde Mestre Pastinha vai sendo ressignificado nas rodas e músicas.

5 Este movimento de valorização dos projetos sociais se deu na gestão do Governador Dante de Oliveira, com o

Projeto Xané, oportunizando consideravelmente a ampliação dos grupos de capoeira e o reconhecimento de seus

instrutores, professores e mestres: ―O Xané surgiu em 1995, quando a Seduc promoveu seminários sobre a

situação de risco e de fracasso escolar a que estavam submetidos os alunos mais carentes da rede pública. Com o

diagnóstico desses seminários, e baseado no Art. 4, da Lei nº 8.069/90, do Estatuto da Criança e do Adolescente

- que garante seus direitos fundamentais como desenvolvimento e integração social - o programa foi implantado

em Mato Grosso‖, em 2004 o projeto foi reformulado e o foco ficou como atividade complementar no contra

turno da escola, como aulas de reforço e oficinas, com apoio à alimentação, numa proposição de ―escola em

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Deste modo, busquei concluir a Educação Básica e adentrar ao Ensino Superior na

Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Juara. Neste processo é que fui aprender

a estar em outra situação, de posse de instrumentos teóricos para entender o processo das

manifestações de preconceitos e discriminação raciais na sociedade brasileira e que, no

mestrado, imbuído de novas leituras, permitiu-me entender esse processo de construção de

uma nação cujas teorias raciais tiveram forte influência e, para além da escravidão, a

desigualdade que ainda nos atinge perpassa questões que vão muito além do que as discussões

de classe conseguem explicar. Durante o período da pós-graduação, na vivência com

movimentos negros dentro e fora da universidade, em Cuiabá ou interior do estado, e com

grupos de pesquisas voltados à temática racial, amplia-se minha sensibilidade para ―além de

sentir‖ e ser, por vezes, discriminado. Esta pesquisa proporciona coletas de dados de uma

realidade da qual faço parte e ao mesmo tempo me torna muito mais instrumentalizado para

tomar posse de outros espaços, pois também é parte de um encorajamento para minha

identidade.

A professora Lori Hack de Jesus foi quem me iniciou na condição de professor

pesquisador, ela é ainda uma importante autora que subsidia os estudos raciais no interior de

Mato Grosso, especialmente nos contextos escolares da região Norte e Vale do Arinos 7.

Para concluir minha graduação em Pedagogia, realizei o Trabalho de Conclusão de

Curso (TCC) que procurou investigar como professores(as), alunos(as) e familiares de alunos

desenvolvem suas práticas e pensamentos sobre a temática da capoeira na escola e,

posteriormente, esta veio à tona em uma Monografia que visava trazer experiências do Grupo

Centro Cultural Aruandê Capoeira no Vale do Arinos, bem como as percepções dos

capoeiristas que constituem este grupo, seus sentimentos e vivências como sujeitos da

capoeira. Isso devido à observação enquanto homem negro e capoeirista de duas situações

voltadas às questões raciais e que ainda hoje me são provocadoras. A primeira é que, embora

a aprendizagem se desse na escola, esta se construía também nas ruas, na televisão, na igreja,

na religião de Matriz Africana, nos livros, dentre outros espaços, tal como numa roda de

capoeira; a segunda é a identificação de discursos que faziam, constantemente, a associação

do negro à escravidão. Tais percepções me colocaram desafios imensos para o engajamento

período integral‖. Fonte: Mato Grosso – Disponível em http://www.seduc.mt.gov.br/Paginas/Seduc-estuda-

reformula%C3%A7%C3%B5es-para-o-Projeto-Xan%C3%A9.aspx Acesso em, 26 de janeiro de 2017. 6 Sobre esses projetos, com minha professora doutora Waldinéia Antunes de Alcântara Ferreira (coordenadora do

Projeto de Extensão e Cultura, ―Capoeira no campus: Transformando Corpos e Vidas‖ -UNEMAT), escrevemos

relatos de experiências: Capoeira, Educação e Dança: práticas sociais transformando corpo e vidas. 7 Microrregião denominada de Vale do Arinos composta pelos municípios de Juara, Tabaporã, Novo Horizonte

do Norte e Porto dos Gaúchos (FERREIRA,1997).

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em ações de combate ao racismo e de promoção para a igualdade racial no interior de Mato

Grosso, mais precisamente em Juara, região da Amazônia Legal Brasileira.

As leituras realizadas em Munanga (1988; 2008; 2010) revelam que esta minha

angustiante descoberta ou vivências daquela época são marcas profundas deixadas pela

―anomalia‖8 que foi a escravidão no Brasil, sendo estas perceptíveis no cotidiano através das

piadas e histórias carregadas de preconceitos a respeito da população negra e de tudo aquilo

que ela produz ou do qual é vítima.

Em um cenário racista, seja durante a escravidão física ou social pelo imaginário que

permeia e reforça práticas sociais excludentes e racistas cotidianamente, seja pela percepção

de preconceitos, estereótipos e intolerâncias, pude compreender através da pesquisa que o

etnocentrismo e a discriminação marcam a história de capoeiristas, produtores de uma

importante manifestação cultural de resistência afro-brasileira, a Capoeira.

No desenrolar da construção de uma identidade nacional, e em meio às opressões que

sofriam as identidades dos povos negros e indígenas, houve uma significativa resistência

cultural na qual a Capoeira se consolida de forma inteligente e multifacetada. Para Munanga

(2010), trata-se de um modelo assimilacionista em que, sorrateiramente, este projeto de

identidade baseado nos moldes etnocêntricos se constituiu integrando tais resistências

adotando-as como símbolos nacionais desta cultura.

As leituras realizadas em Hall (2003, 2000, 2007) que tratam da identidade

demonstram que está composta de questões complexas devido às discussões nos campos

teóricos e políticos. No entanto, o autor não deixa margem de dúvidas para que anulemos um

―eu‖ performativo na pós-modernidade e apresenta a proposta inerente de que somente será

possível nos debruçarmos sobre este conceito se estudá- lo sob ―rasura‖, incluindo uma

demanda emergente em um diálogo com conceitos que não se apresentam como suficientes e

bons para pensar a identidade, pois determinadas questões são importantes para ser

incorporadas aos antigos estudos, mas com novas formas, pensando com eles (HALL, 2003).

Com o mencionado autor, podemos compreender que a identidade deve ser entendida para

além da exclusividade Estado-Nação.

Hall (2000) explora questões relativas à identidade cultural na modernidade tardia e

propõe-se a avaliar se existe uma ―crise de identidade‖: em quê ela consiste e quais os rumos

que estaria tomando. Ao longo de suas reflexões, o autor aborda aspectos da modernidade, da

8 Sobre este conceito, Thomas E. Skidmore na obra ―Preto no Branco‖ (1976) refere -se a essa estrutura social,

econômica e polít ica do Brasil baseada na monarquia, agricultura e tolerância à escravidão como uma anomalia

que saltava aos olhos do mundo.

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modernidade tardia e das identidades relativas a elas, mostrando um movimento muito mais

dialético do que de superação de uma para outra. Para ele, trata-se de uma leitura mais

complexa da noção de descentramento, sendo que se trata de formulações provisórias e

abertas à contestação, dada a dinamicidade própria de tal temática.

Diz Hall (2000) que, no mundo moderno, as culturas nacionais atuam como fontes

imprescindíveis de identidade cultural. Na mesma obra, complementa sua análise de modo a

corroborar conosco ao tratar de raça, a fim de pensar a questão da identidade. Evidencia o

autor sobre o termo e assim aqui o adotamos:

A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas — cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (HALL, 2000, p. 63).

Cabe aqui expor também que, quando se trata da utilização da cultura afro-brasileira,

considera-se que esta deve ser abordada como campo plural, produzida por negros e negras

brasileiros(as), mas também, pelas diversas práticas resultantes da diáspora de África para o

Brasil por meio homens e mulheres que para cá foram trazidos, escravizados, bem como seus

descendentes em relação aos demais brasileiros de todas as etnias ameríndias e outras que

povoam o país com seus conflitos e formas de resistir aos processos de colonização e

escravidão.

[...] Qualquer grupo humano através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA 1996, p. 17).

Ao pesquisar a Capoeira, produzi- la ou inseri- la no processo de implementação do

ensino sobre a História e Cultura Africana e Afro-brasileira, faz-se necessário o discernimento

sobre a diversidade e complexidade de África e a cultura afro-brasileira, bem como o

questionamento mínimo sobre metodologias para se estudar, abordar e relacionar a cultura

africana e afro-brasileira ante o processo de construção da identidade nacional brasileira. Hall

(2000) trata de fazer observações caras às constituições identitárias dos sujeitos ao tratar desta

fragmentação:

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[...] solapa a idéia da nação como cultura unificada. As unidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferenças e não estão livres do jogo do poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas. Devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para ―costurar‖ as diferenças numa única identidade (HALL, 2000, p. 65).

Nesse sentido, o processo de fragmentação das identidades nos ajuda a compreender e

não perder de vista que, para esta pesquisa, faz-se necessário um entendimento da história do

negro no Brasil, bem como a contribuição e a formação da cultura negra brasileira;

desconstruir preconceitos e entender a necessidade de posturas e ações de promoção à

valorização das diferenças, considerando a multiculturalidade existente no país. Este termo

indica a presença de múltiplas culturas numa mesma sociedade, mas aqui, ressaltamos, deve-

se entendê- lo como a identificação e a importância das diferenças entre identidades culturais

aliado ao reconhecimento das discriminações presentes nesta sociedade rica e culturalmente

diversa, mas que também discrimina, elabora ou mantém projetos de manutenção das

desigualdades sociais e raciais.

No caso do Brasil, a Capoeira e outras manifestações culturais negras e indígenas

ainda compõem um cenário de construção do processo de Educação Intercultural que, por sua

vez, exige uma compreensão que identifique e promova a interação dos saberes

intencionalmente. Ou seja, não é pelo reconhecimento da diversidade que as transformações

das relações raciais e preconceituosas são eliminadas, e sim por um processo intencional de

educação que paute práticas educativas voltadas ao reconhecimento das diferenças ao mesmo

tempo em que as disponha em paridade de condições e de valorização como iguais, tal como

propõe a Educação Intercultural.

Ora, se a academia é um duro espaço que também ajudou na propagação do racismo,

esta colabora ao reconhecer esses fatores e ofertar espaços para a escrita de uma nova história

do povo negro. No entanto, deve ser esta uma ação coesa da prática e discurso não só da

academia, mas de todos os espaços públicos de Educação do país, e mais, da sociedade

brasileira. Coesão da prática, discurso e compromisso político para com a população negra a

fim de contribuir e possibilitar a articulação de diferentes diálogos sobre esta cultura afro-

brasileira que se constrói e se constituí em espaços que ainda tentam sufocar as riquezas e

diferenças culturais cuja identidade expresse a matriz africana, a exemplo da Capoeira que

carrega em si esta singularidade musical, religiosa, saberes, sabores, e outras estéticas

artísticas.

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Com estas considerações, observamos em diálogo com os autores e mediações dos

colaboradores e colaboradoras desta pesquisa - especialmente a partir da qualificação da

dissertação - como as narrativas dos mestres e professores de Capoeira entrevistados para esta

dissertação nos trouxeram a valorização enquanto ser humano e pudemos vislumbrar o

respeito que sempre almejamos desde a infância, ainda que enfrentemos e ainda tenhamos

como aqueles desafios advindos da capacidade dos seres humanos em comparar e classificar

quase ou tudo que existe.

Em relatos trazidos pela monografia, capoeiristas denunciam situações de racismo,

preconceito, e discriminação que nos são cotidianos:

Sou negra e participei do primeiro Kalunga9 de Juara, estava indo para lá

para me juntar ao Grupo de Capoeira Aruandê e dois homens estavam conversando perto de mim assim... Um convidou o outro para ir até o Kalunga e outro disse que não iria ver um monte de preto pulando como macaco. Eu acho que isso é uma desvalorização do negro e da capoeira. (apud PORTELA, 2012, p.38). [...] Vivenciei na escola, as críticas dos meus colegas. Eles diziam que a capoeira é macumba, coisa de gente preta, de quem não tem o que fazer e diziam mais: que a capoeira não dá futuro pra ninguém. Serve apenas para marginalizar os praticantes, mas lutei contra tudo isso tentando rebater, conforme meu professor de Capoeira me orientou nas aulas, porém não me deram ouvidos (apud PORTELA, 2012, p. 38).

Observamos que tais falas não se diferenciam das desconfianças e preconceitos que a

Capoeira sofreu em Cuiabá nas últimas décadas do século XX. Mestre Lindomar revela que

para implantar a prática da Capoeira no SESC (Serviço Social do Comércio), as resistências

passaram por questões raciais resultantes do processo de marginalização e desvalorização da

história e cultura afro-brasileiras ao dizer:

[...] Em 92 resolvemos colocar a capoeira, pois já estávamos mais seguros referente à capoeira porque havia uma insegurança dos diretores na época com capoeira, houve uma resistência para implantar a capoeira lá... Pela marginalidade, porque naquela época a capoeira tinha um lado ainda negativo. Hoje mudou bastante, mas naquela época o lado negativo era o pretinho com pés descalços, maconheiro e assim vai, né...? (MESTRE LINDOMAR, 2016).

Na capoeira mais antiga, tinha sempre aquela visão da discriminação: o

neguinho sujo, aquele abada sujo, o cara que fica na porta do bar bebendo

sua cachaça, tomando uma cerveja, fumando uma maconha antigamente isso

9 Evento Cultural realizado pelo movimento negro Instituto Ilê Axé de Juara/MT, Universidade do Estado de

Mato Grosso Campus Juara/MT e Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira no mês de novembro desde 2012.

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era muito comum e aberto e o capoeirista participava disso tudo, hoje não

mais, né...? (MESTRE IVAN, 2016)

Ora, de pronto não nos propomos a travar um debate sobre relações raciais na capoeira

da grande Cuiabá, no entanto, ignorar as implicações políticas decorrentes de fatores

históricos de subalternização dos sujeitos seria, deveras, um equívoco com a Capoeira, pois

esta não consiste apenas em movimentos corporais, mas também em manifesto de resistência.

Para tratar da temática de forma a não despolitizá-la, corrobora conosco Skidimore (1976) e

Munanga (1996, 2008, 2010) ao se referirem à identidade racial no Brasil, pois afirmam que

esta perpassa um olhar cujo padrão fora baseado em teorias raciais desenvolvidas pelo branco,

cristão e que, cheia de falhas e distorções, aqui chegavam como ciência e eram absorvidas

como verdades absolutas e incontestáveis.

Esse olhar branco e eurocêntrico reforçado pelo discurso de harmonia nacional

amplamente retificado pelo mito da democracia racial, evidencia que as estruturas sociais do

país alimentaram uma identidade falsa, pois tem por base um padrão constituído pelo ideal de

branqueamento tão largamente difundido no Brasil no momento pós-abolicionista que

perpassa as relações sociais até os dias atuais.

Ouvir os capoeiras nas pesquisas em Mato Grosso nos possibilitou perceber o quanto é

necessário (re)pensar constantemente as práticas culturais que influenciam nossas ações

sociais e desenvolver espaços plurais de respeito às construções das identidades. Em nossa

pesquisa anterior (PORTELA, 2014, p. 97), afirmamos que: ―os capoeiristas experimentam,

por causa da capoeira, relações de conflitos de poder e de discriminação, não importa se são

brancos ou negros, pois se for praticante de capoeira está sujeito a comentários desse tipo‖.

Ao se referir à identidade Munanga (1996, p. 17) ressalta que ―[...] a identidade é uma

realidade sempre presente em todas as sociedades humanas [...]‖. Como afirma Brandão

(2005), a educação está em todos os espaços sociais, estamos o tempo todos nos educando e,

portanto, não podemos perder de vista que o pensamento racial é formado desde muito cedo.

Assim, diante de tais relatos denotando situações de conflitos raciais presentes na vida de

capoeiristas, sejam crianças, jovens ou adultos, é preciso não silenciarmos, e sim debatermos

estratégias de enfrentamentos contra o racismo na sociedade.

Isto nos remete a Hall (1997), uma vez que o autor destaca que a noção cultural é de

grande importância para que pensemos uma transformação social, pois entendemos que os

estigmas impressos ao longo da história por meio de uma imposição cultural é que permitem a

manutenção de estigmas independente dos processos históricos e culturais em que estamos.

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Rótulos sofisticados para manter discriminações raciais, clichês negativos e/ou folclóricos que

em nada contribuem para a formação e continuidade da Capoeira enquanto cultura de

resistência de um povo.

Feitas as considerações, apresentamos, de forma resumida, as questões iniciais e

norteadoras desta pesquisa, são elas: quem tece a Capoeira na grande Cuiabá? Como, onde e

com quem ela se socializa como prática corporal? Como as relações na Roda de Capoeira

reproduzem/produzem a capoeira local? Que jogo é jogado neste encontro de reencontros

afrodescendentes na grande Cuiabá? Como se organizam e se relacionam os grupos e as

pessoas deste lugar?

A escrita desta dissertação apresenta-se, por vezes, permeada por ladainhas entoadas nas

Rodas ou entrevistas como uma forma de lançarmos mão, de fato, da arte da escuta quando

nos propomos a pesquisar sobre a Capoeira. Alinhavamos para este momento do trabalho as

primeiras organizações da capoeira e os rituais identificados, imbuídos de forma natural por

sermos capoeira, mas amparados por um procedimento científico, além de entrevistas,

observações, referenciais teóricos e apresentação descritiva de dados decorrentes do processo

de pesquisa.

O primeiro capítulo diz respeito ao caminho adotado pela pesquisa a fim de estruturar

nosso trabalho acadêmico buscando o diálogo entre o corpo vivido e tecido na Capoeira e o

corpo tecido e vivido no processo de formação do mestrado em educação, trazendo a

Educação no e do Movimento Popular. Tal investigação de caráter qualitativo buscou

aproximações com a etnografia, uma vez que esta define alguns instrumentos metodológicos

que têm por objetivo compreender em sua profundidade o ponto de vista dos sujeitos

envolvidos na pesquisa (FONSECA, 1998).

Para tratar da Capoeira como uma prática corporal da Cultura Afro-Brasileira,

dialogamos, no segundo capítulo, ―ao ritmo do berimbau‖ - seguimos o fio condutor do jogo

da capoeira, o ritmo do berimbau, dialogando com os autores -, amparados por teóricos como:

Vieira (1995), Freyre (2003), Pires (2001) e (Falcão, 2004), uma vez que suas teorias afirmam

que a manifestação capoeirística é originária do Brasil, e que seu berço pode até ser africano,

mas sua cama é brasileira, conforme Falcão (2004), ou seja, configuram-na como uma

manifestação [...] ―pluriétnica e, embora prevaleça a tese de que, originalmente, tenha sido

uma construção dos negros escravizados no Brasil, ela apresenta, desde os seus primeiros

registros (final do século XVIII), um perfil pluriétnico‖ (2004, p.17). Por fim, procuramos

trazer dados que apontam indicativos da capoeiragem em Cuiabá e, através das narrativas dos

mestres entrevistados, a formação dos primeiros grupos de capoeira no lócus de pesquisa.

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Tais dados têm nos revelado que este processo está intrínseco às tessituras que

garantem a prática da capoeira no Estado de Mato Grosso. Para além disso, nos chama a

responsabilidade tanto para com as produções e resistência política da população negra no

estado, quanto para uma pesquisa acadêmica que, de fato, ofereça registros deste fazer

capoeira, procurando trazer, ao máximo, alguns apontamentos sobre a capoeiragem na Grande

Cuiabá sem no entanto eleger um marco ou um professor fundador. A pesquisa pretere a

busca de seus precursores não por mero receio, mas por compreender que a produção

científica requer aprofundamentos imbuídos de ética, compromisso social e honestidade para

com o povo do qual se pretende abordar.

No terceiro capítulo, iniciamos a descrição das cerimônias, indicando alguns dos

rituais mais latentes e encontrados em todos os grupos observados nas Rodas de Capoeira.

Para tanto, tal como descrevemos no processo metodológico, fomos a campo utilizando-se da

observação participante com o objetivo de compreender como se dá essa presença dos grupos

de capoeira na Grande Cuiabá, bem como as relações encontradas nos processos educativos

identificadas nas rodas e nos grupos de capoeira.

Os resultados desta pesquisa evidenciam nas vozes dos ―agentes sociais‖ – os

capoeiras entrevistados na grande Cuiabá – que esses estudos são pertinentes e não podem

deixar de permear todo o entendimento das práticas da capoeira, seus rituais, as relações de

poder estabelecidas dentro dos grupos e as relações entre eles, nas rodas, nas praças, nos

eventos, etc.

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CAPÍTULO I

PROCESSO METODOLÓGICO: CAPOEIRANDO OS CAMINHOS DA PESQUISA

Capoeirando os caminhos significa que, com o reconhecimento e colaboração da

Universidade, repensamos e dialogamos com o mundo da Capoeira. Como professor de

Capoeira e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, ginguei entre os estudos

e as experiências acumuladas para compreender que não há uma educação, mas muitas

educações que no corpo educam pessoas que são diferentes e se constituem como tais em

tempos e lugares distintos, segundo as relações estabelecidas com o Outro. Conforme elucida

Grando (2016, p. 135): ―[...] a matéria-prima é o corpo, que educamos conforme influências

externas e internas que se aproxima de nós‖. Esses tempos e lugares são também ocupados

pelos capoeiras que ensinam seu Jogo, num processo educativo dos corpos que se identificam

e se diferenciam em Mato Grosso, e que com seus grupos de pertencimentos e seus jogos,

criam e recriam rituais de identificação e diferenciação nos grupos espalhados pela Grande

Cuiabá.

Ao entrar no Jogo da Capoeira, o pesquisador entra no ―mundo da capoeira‖ e busca

de cabeça para baixo ler as coisas do ―mundo da universidade‖. Inicia-se no ―Jogo da

Pesquisa‖ e o ―Jogo da Papoeira‖.

A primeira etapa deste encontro do pesquisador se dá com o papo entre os capoeiras

de Cuiabá sobre a nossa pesquisa, a ―papoeira10/entrevista”, a fim de identificar os grupos

existentes na cidade e definir quais seriam os pesquisados.

Do mapeamento realizado e apresentado posteriormente nesta dissertação, destacamos

oito grupos sujeitos à investigação, a saber: Centro Cultural Aruandê Capoeira, Sendero

Capoeira, Nação Guerreira Capoeira, Kizomba de Capoeira Angola, Grupo Iúna de Capoeira,

Aldeia de Bamba, ABADA Capoeira e Quilombo de Angola.

Ao apresentar a pesquisa, destacamos nossas questões orientadoras, conforme

apresentado na introdução do trabalho: Quem tece a Capoeira na grande Cuiabá? Como, onde

e com quem ela se socializa como prática corporal? Como as relações na Roda de Capoeira

reproduzem/produzem essa capoeira local? Que jogo é jogado nesse encontro de reencontros

10

Papoeira é a expressão usada no universo da capoeira para designar a conversa, o bate-papo sobre capoeira. É

comum que esse bate-papo aconteça informalmente, muitas vezes, depois das rodas ou das aulas de capoeira.

(CORTE REAL, 2006).

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afrodescendentes na grande Cuiabá? Como se organizam e se relacionam os grupos e as

pessoas desse lugar?

A pesquisa caminha para construir uma rede de sentidos entre os grupos e a cidade em

que estão situados, e com quem se encontram, pois espera-se do mapeamento dos grupos de

capoeira compreender suas formas de organização em Cuiabá, bem como as de seus mestres

ou representantes (autoridades reconhecidas nos grupos e pelos demais grupos) das

coletividades constituídas. Ao mapear os grupos e seus locais de encontro e seus

―professores‖, esboçaremos os primeiros traços de um desenho que, ao fim, revelará um

pouco da historicidade dos grupos de capoeira na grande Cuiabá.

Inicialmente, e a fim de estabelecer um recorte para a pesquisa, nos remetemos a uma

leitura de Bourdieu (2003, p.693), para com ele termos clareza de que ―Compreender‖ é um

―[...] caso particular de interação entre o pesquisador e aquele ou aquela que ele interroga.‖

Para este autor, os manuais de metodologias e técnicas de pesquisa não são muito úteis se não

levarmos em consideração aquelas condutas e estratégias comuns que respeitam seus objetos

de estudo como agentes sociais. Em nosso exercício metodológico, levamos esse cuidado até

mesmo às avessas, pois nós também somos agentes sociais imbricados com o ―mundo da

capoeira‖ e cujo desafio é ocuparmos um novo lugar nesse espaço tecido com os agentes da

pesquisa, os parceiros capoeiras.

Como já mencionado anteriormente, a metodologia nos diz respeito ao caminho

seguido pela pesquisa para estruturar nosso trabalho acadêmico, buscando um diálogo entre o

corpo vivido e tecido na Capoeira e o corpo tecido e vivido no processo de formação no

mestrado em educação da Universidade Federal de Mato Grosso, na linha de Pesquisa que

traz a Educação no e do Movimento Popular.

Muito frequentemente os trabalhos acadêmicos apresentam as questões da pesquisa,

primeiro com os objetivos, depois com a justificativa, seguida pela revisão da literatura e do

método da coleta de dados, para somente então apresentar o desenvolvimento da temática em

estudo e finalmente desenvolver a discussão e a conclusão (SEVERINO, 2007).

Neste trabalho, opto por organizar a pesquisa tendo por referência a ideia do Jogo da

Capoeira, jogando com, para falar de cada espaço-tempo que servirá como foco para as

análises dos dados coletados através da observação participante, das entrevistas e documentos

etnográficos.

Na Capoeira, a Ginga é um dos elementos que marcam o Jogo que se estabelece entre

o ―corpo capoeira‖ com o ―corpo outro‖ (pessoas diferentes) que na roda se desafiam e se

entrelaçam para compor o movimento que faz da Capoeira uma luta, uma dança e um jogo,

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pois é justamente no movimento que a possibilidade de resposta dos corpos se manifesta de

maneira recíproca.

Castro Junior (2010) afirma que ―A ginga é o movimento fundamental [...] donde

emanam todos os componentes do conjunto harmonioso da capoeira! [...] está intimamente

relacionado como ritmo e melodia do berimbau, o equilíbrio dinâmico do corpo‖. Para o

autor, que referencia Campos (2009), a Ginga é a:

Sabedoria do corpo que dança na luta, joga na dança e luta no jogo; portanto, o corpo cria situações expressivas, gerando conhecimentos e fatos históricos que tão simplesmente como eles fazem, como cantam, como eles a sentem, porque Capoeira é apenas folga - é Vadiação

11 (Campos, 2009, p. 14, Apud.

CASTRO JUNIOR, 2010, p. 118).

A ginga é um movimento a partir do qual se configuram os demais movimentos e

golpes de capoeira, este é o ponto essencial para o seu desenvolvimento. Atribui-se à ginga o

significado simbólico da luta que tem nela o movimento que a disfarça, que por meio de

saberes corporais é ritmada ao toque do berimbau, onde o corpo ginga, mandinga (balança),

golpeia, dança, joga e, por ser executada pelos escravos, estes não revelavam os sentidos do

movimento da roda.

Nesse gingar da pesquisa, a qualidade do lido e do analisado se pauta em técnicas

compatíveis com o que Severino (2007, p. 119) aponta como pesquisa qualitativa, ou seja, um

conjunto de: ―[...] metodologias, eventualmente, diversas referências epistemológicas. Que

nas ciências sociais, os pesquisadores que empregam essa abordagem estão mais preocupados

com o processo social.‖

Essa ginga metodológica é de cunho etnográfico, pois busca descrever a vivência e

experiência de mestres ou representantes dos grupos de capoeira constituídos na grande

Cuiabá (Cuiabá e Várzea Grande) em suas realidades e contextos sócio-históricos e culturais.

O método etnográfico pode ser composto por diferentes procedimentos de coletas, no

exercício do olhar (ver), aproximar (sentir) e do escutar (ouvir), é se colocar por inteiro numa

participação efetiva de sociabilidade através das quais a realidade investigada se apresenta

(ROCHA, ECKERT, 2008). Estas autoras, com base nos termos de Cardoso de Oliveira

(2000), nos alerta para esse exercício inerente de ver, ouvir e escrever, tendo-o como parte

integrante da prática etnográfica que não se limita a ações simples, mas giram em torno das

implicações do pesquisador com sua pesquisa. Assim, tais fatores ―[...] podem ser

11

Vadiação corresponde ao nome dado à brincadeira nas rodas de capoeira, a malandragem, a destreza e a

esperteza de se esquivar de um golpe. (SILVA, 2008)

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questionados em si mesmos, embora, em um primeiro momento, possam nos parecer tão

familiares e, por isso, tão triviais, a ponto de sentirmo-nos dispensados de problematizá- los‖

CARDOSO DE OLIVEIRA (2000, p.17). Partindo desses questionamentos que o autor faz,

resta ficarmos atentos ao Olhar etnográfico, tanto quanto ao Ouvir, cumprindo sua função

básica na pesquisa empírica.

Geertz (2008) entende que fazer etnografia é tentar ler as ações dos sujeitos, e mais do

que isso, é tentar compreender os significados dessas ações através da interpretação que os

próprios sujeitos dão às suas ações, não limitando-se a descrevê-las. Ao se referir à ―descrição

densa‖, o autor afirma ser esta uma tentativa de interpretar: ―[...] não é só uma questão de

métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações,

selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um

diário, e assim por diante‖. Perante a etnografia, o pesquisador deve ir além dos elementos e

técnicas da pesquisa a fim de apreender os processos vivenciados junto aos parceiros com os

quais se compreende a realidade e a cultura investigadas. (2008, p 04).

Para o autor, um dos objetivos de se fazer este tipo de ―descrição densa‖ é aprender e

depois apresentar, uma vez que: ―[...] as atividades de campo implica um trabalho minucioso,

mesmo o mais rotineiro que seja é preciso entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os

termos de parentesco, traçar as linhas de propriedades, fazer o censo doméstico [...]‖ (2008, p.

07).

A presente proposta metodológica não aspira a uma descrição da cultura da capoeira

de forma genérica, e sim daquela inscrita e produzida nas relações sociais vigentes em Mato

Grosso, mais especificamente em Cuiabá, portanto, buscamos compreender a maneira de ser e

viver dos grupos a partir deles próprios, identificando como cada um se expressa ao construir

os movimentos do corpo nos grupos, como eles se percebem como grupo, como ocorre sua

relação com os demais grupos e, sobretudo, como se congregam em grupos específicos no

estado, tendo em vista que a capoeira é uma manifestação cultural brasileira cuja identidade se

associa à marginalização e ao preconceito contra o povo negro/afro-brasileiro.

Para tanto, adotou-se a observação participante nas rodas em que me coloco como um

dos ―capoeiras‖12, aquele que facilita o diálogo informal (no termo da Capoeira, o ―papo-

capoeira ou papoeira‖), e em uma situação propícia a observar as significações atribuídas por

cada participante, bem como observar a relação estabelecida entre si, estando dentro do grupo,

12

O termo capoeira é designado aos capoeiristas que vivifica as práticas culturais no corpo ritualizado em

experiências com os capoeiristas. Alguém que também tem identidade com essa prática e na Roda é aceito para

gingar e jogar.

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participando das rodas, jogos, treinos, encontros e eventos que caracterizam o tecer dos

grupos constituídos na Grande Cuiabá.

Os estudos de caráter etnográfico desvelam olhares amplos e aguçados sobre o espaço

do outro onde a capoeira se situa. Isto significa que, o pesquisador, ao se engajar em uma

experiência de percepção do estranhamento diante do que parecia ser conhecido, passa a

vivificar mudanças: onde ora nos percebemos, ora nos diferenciamos, ―os contrastes sociais,

culturais, e históricos‖ (ROCHA, ECKERT, 2008, p.18).

Podemos identificar esse estranhamento no processo de aproximação às ações de

mapeamento dos grupos na grande Cuiabá, sobretudo nos momentos de papoeira, nas rodas

de capoeira, nas entrevistas semiestruturadas, nos eventos e encontros. Esta leitura com os

representantes de cada grupo possibilitou entender um pouco do movimento das agremiações

de capoeira na grande Cuiabá, a saber: em que lugar elas estão; em qual parte da cidade elas

se encontram; a forma em que se organizam; a predominância dos grupos em territórios

centralizados ou periféricos.

Conforme nos aproximamos do objeto de estudo estabelecendo redes e critérios,

construímos um mapa de capoeira em Cuiabá e Várzea Grande, identificando cada grupo,

situando-o no mapa da capital mato-grossense, a partir de uma classificação por bairro,

localidade e sede principal onde ocorrem os encontros semanais com rodas e treinos. Não

obstante, observamos que a pesquisa inicialmente foi além, pois possibilitou identificar e

perceber uma relação de poder, saber e empoderamento dos espaços de Capoeira constituídos

na Grande Cuiabá.

A ida ao campo envolveu a confecção de um roteiro para entrevistas semiestruturadas

em que pretendia-se entrevistar apenas cinco lideranças dos grupos locais. No entanto, a partir

das reflexões realizadas sobre os questionários respondidos e devido aos questionamentos

resultantes do diário de campo e das observações feitas nas rodas, fez-se necessária a

realização de nove entrevistas individuais com mestres, professores ou responsáveis dos

grupos. Portanto, as observações foram realizadas somente com sete grupos. Tal número

justifica-se porque dois destes grupos não estavam realizando seus próprios eventos, aulas, e

rodas, e sim participando de determinadas atividades promovidas por outros grupos.

As entrevistas semiestruturadas com as lideranças aconteceram nas residências, nos

espaços de aula ou após a finalização da roda e do acesso às suas formas de organização

reconhecidas pela cultura local. O registro visual e em áudio estiveram presentes na Roda,

bem como no Diário de Campo.

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Outro dado da coleta foi o acesso aos registros dos documentos dos grupos que, junto

as informações das entrevistas, nos ajudaram a fazer um mapeamento dos grupos e de suas

lideranças, e também o que o jogo da capoeira nos possibilita vivenciar no interior destes a

partir da observação sistemática.

Em algumas situações surgem inquietações sobre as vivências dos sujeitos nas rodas,

os saberes e os fazeres, os pensamentos e sentimentos de construção e transformação dos

grupos, das pessoas que os constituem e garantem sua manutenção, somadas às inquietações

do pesquisador que no corpo se reconhece e se diferencia ao mesmo tempo em que busca

estranhar o já conhecido.

Na pesquisa etnográfica ―[...] o caminho a ser seguido é muitas vezes construído

enquanto ―caminhamos‖ (FONSECA, 1998, p. 4, grifo do autor). O estranhamento e as

incertezas, durante a pesquisa, se evidenciam nas etapas traçadas, onde o corpo que integra a

capoeira como pesquisador, se reconhece, se diferencia e estranha o já conhecido. Procurarei

descrever a minha caminhada metodológica nesta pesquisa que, a partir de um olhar de

estranhamento quanto à prática dos agentes sociais, parece prosaico ao pesquisador-

capoeirista, como no meu caso. Fazer etnografia nesse sentido vai além de integrar,

reconhecer e diferenciar, mas também respeitar e valorizar todas as formas de saberes e

fazeres de cada grupo e suas próprias práticas culturais vivenciadas em cada corpo.

As observações de participante dos grupos foram provocando comparações entre os

contextos e sistematização dos dados gerados, a partir de uma descrição da minha inserção no

campo, trazendo reflexões acerca desse estranhamento, do papel do diário de campo junto aos

capoeiras, além de explicar as estratégias utilizadas para sistematizar os dados gerados no

contexto da pesquisa. Conforme esclarece Fonseca (1998), a riqueza de um trabalho é

construída ―[...] na e com a pesquisa de campo, na e com a interação dos sujeitos envolvidos

na investigação‖. (1998, p. 04).

A ginga do capoeirista tem seus objetivos, assim como a da pesquisa, que acelera

conforme o toque do berimbau que, neste caso, simboliza o movimento do pesquisador com

os seus parceiros capoeiras mediado pelas orientações e pelos estudos resultantes do

mestrado.

No estilo de Jogo da Capoeira de Angola, capoeira essa, considerada a mãe dos

todos os estilos. Trata-se de um jogo mais lento, próximo ao chão, próximo à fertilidade da

terra: é um jogo mais malandreado, usa-se de esperteza e de destreza corporais (PORTELA,

2012), pois contempla um tempo maior para sentir o movimento e ter mais consciência dos

passos, dos gingados, do seu movimento com o outro.

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Entre uma e outra capoeira, recorro também à sabedoria das aprendizagens do Jogo de

Benguela. Do jogo de cadência, onde os movimentos ocorrem no chão e tem sua ênfase no

entrelaçamento de um capoeirista com o outro. Utiliza-se nele toda experiência e técnica. No

estilo da ginga da Capoeira Regional tem-se a expressão de luta, o objetivo é a luta em si, os

saltos, os movimentos rápidos onde o corpo é um instrumento eficaz para seu

desenvolvimento. Num jogo mais próximo à uma performance individual, o pesquisador

também busca neste processo o aparato das técnicas da pesquisa e, com ela, a aprendizagem

das relações que ora nos levam a recuar, ora a avançar, para no jogo o corpo se tornar mais

seguro do próprio capoeirar.

Desta maneira, seguimos o fio condutor gingando ao ritmo do berimbau, onde o

principal objetivo desta ginga é apresentar o fenômeno da capoeira na Grande Cuiabá e os

sujeitos que protagonizam a Capoeira em Mato Grosso, contribuindo para historicizar esta

dança, bem como indicar a forma em que ela se manifesta no combate ao preconceito ligado à

sua ancestralidade africana. Desvelando este jogo, a pesquisa poderá contribuir para o

fortalecimento da capoeira mato-grossense devido à sua perspectiva de pertencimento a uma

arte com ancestralidade africana, de identidade nacional e presente também na cultura local.

Continuamos gingando ao som do Berimbau Gunga13, visando compreender a

capoeira em Mato-grossense a partir das relações tecidas pelos mestres/autoridades

responsáveis pelos diversos grupos de capoeira aqui constituídos, a fim de entender a trama de

relações e significados que garantem seu desenvolvimento, bem como analisar as

possibilidades de interação e construção educativa dentro de uma dimensão vivificada na

cultura do estado. Neste processo, nosso interesse é compreender as formas de transmissão

dos saberes e fazeres da capoeira destes grupos e se neste processo educativo do corpo

perceber se há possibilidades de uma educação intercultural reconhecendo a diversidade

presente nas rodas, ou seja, o que é transmitido de mão em mão pelos agentes sociais que

produzem e reproduzem a capoeira local de geração à geração.

Capoeirando os caminhos ou capoeirar caminhos é, para mim, uma relação de levar a

convivência do grupo de capoeira para dentro do espaço acadêmico. São trilhas, ramificações

que registro na pesquisa. É um jogo onde se inscreve o caminho para seguir e os objetivos a

perseguir.

13

Instrumento que tem a cabaça maior, que alguns capoeiristas consideram como pai da roda de capoeira.

Geralmente, quem toca esse tipo de instrumento, é sempre o mestre, o professor, ou seja, aquele que tem a maior

graduação ou mais experiência na roda de capoeira.

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1.1 A Capoeira na Grande Cuiabá: Mapeamento dos Grupos de Capoeira a Partir de Algumas

Autoridades Locais

Um fato que despertou curiosidade durante a realização desta etapa da pesquisa foi a

constatação de uma tessitura cujos fios se conectam possibilitando conhecer-se,

independentemente do tempo, lugar ou circunstâncias. Entre os grupos fundados na Grande

Cuiabá e aqueles que aqui têm sua representação, ora se estica ou se amarra coletivamente

devido a uma inter-relação, ora se individualizam conservando cada qual suas características.

Os grupos são os mediadores entre a ―verdadeira tradição‖ da prática corporal da cultura afro-

brasileira dentro da cultura mato-grossense. Obviamente a capoeira de hoje não é mesma que

se jogava no passado, mas está sendo jogada a partir das referências de uma determinada

época aos olhos contemporâneos. Nesse sentido, perpassa aspectos identitários tensionados

pela reconstrução de uma perspectiva de futuro unida num elo entre o passado e o presente

(FALCÃO, 2004).

Os cantos entoados pela capoeira podem ser divididos entre os grupos, sobretudo na

grande Cuiabá. Os cantos fazem ecos nas academias, nas escolas, nas quadras, nos bairros,

nas universidades e nas cidades. Aqueles relacionados aos toques ditam um ritmo mais rápido

ou mais lento. Assim se fundamenta a pesquisa que busca saber quais são os grupos que

cantam a expressão do sentido lúdico e crítico do saber fazer capoeira. Quem tece a Capoeira

em Cuiabá? Como, onde e por quem é disseminada? Como as relações na roda

produzem/reproduzem esta capoeira local?

A partir dos critérios iniciais estabelecidos na busca dos grupos que constituem a

capoeira na grande Cuiabá, foi possível identificar um resultado parcial de 21 grupos de

capoeira localizados em 84 bairros na Grande Cuiabá, tal como indicado no Quadro 1.

Após esquematizar os grupos de capoeira e analisar as formas de organização dos

grupos supramencionados, buscou-se uma aproximação do objeto de estudo estabelecendo

redes e critérios para a escolha e a delimitação da pesquisa de campo.

O mapeamento destes na Grande Cuiabá iniciou-se a partir da coleta de informações

durante os momentos de papoeira, rodas de capoeira, entrevistas semiestruturadas, eventos e

encontros. Esta leitura com os representantes de cada grupo possibilitou entender um pouco

seu deslocamento na grande Cuiabá, em que lugar eles estão, em que parte da cidade eles se

encontram, de que forma se organizam, onde estão mais centralizados ou afastados do centro,

tal como exemplificado pelo quadro a seguir.

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Fig. 01: Grupos de capoeira da Grande Cuiabá

Nº Município Bairros

Localidade Grupo de Capoeira e

Responsável

Logo – Símbolo

01 Várzea Grande Cuiabá

São Matheus

Nova Fronteira

Manga

Jardim dos estados

Cristo Rei

Centro/CT

Titucal

Nação Guerreira (Associação Cultural e Esportiva de Capoeira) Mestre: Eder

02 Cuiabá Várzea Grande

Dom Aquino

CPA, I, II e III

Altos da Serra

Canjica

Jardim Imperial

Coophema

Doutor Fábio

Cohab Canelas

ABADÁ (Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte-Capoeira) Instrutor: Tuiuiú Instrutor: Monzala

03 Várzea Grande Mappin Ipase

ACALF (Associação de Capoeira Lídio Filho) Mestre: Azulão Mestre: Lídio

04

Cuiabá Porto Residencial

Coxipó

Jardim Vitória

CAPUERÊ (Associação Cultural de Capoeira) Mestre: Didi Professor: Apolo

05 Várzea Grande Cristo rei

Dança Guerreira Mestre: Ray Kintê

06 Cuiabá

Várzea Grande Coophamil

Novo Terceiro

Candido Rondon Áreas

Tijucal

Boa esperança

Jardim industriário

Jardim dos estados

ICA (Instituto Aruandê Brasil Mestre: Demétrius Mestre: Bicudo

07 Cuiabá Centro

Lixeira

Industriário

Grupo: Muzenza Contramestre: Sangue bom Professor: Jibóia

08 Cuiabá

Jardim universitário

Centro

Grupo: Associação Mato-grossense Kizomba de Capoeira Angola

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Mestre: Lindomar

09 Várzea Grande Mappin Icarai

7 de Setembro

Zumbi dos Palmares Masca Fumo

Sem Logo

10 Cuiabá CPA I e II São Matheus

Atalaia

Sendero Mestre: Morcego Contramestre: Biro

11 Cuiabá Boa Esperança

Parque Cuiabá

Mossoró

Ministério Logos Mestre: Degui

12 Cuiabá Centro Academia Golfinho Azul

Consciência Brasil Mestre: Cyborg

13 Várzea Grande Jardim Gloria Ave Branca

Contramestre: Adriano

14 Cuiabá Boa Esperança UFMT

Capoeira Quilombo de Angola Mestre: Olavo Professor: Weverton

15 Cuiabá Novo Terceiro Arte e Dança

Mestre: Heron Silva

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Fonte: Arquivo pessoal Representantes dos grupos

16 Cuiabá Jardim Leblon

Parque Cuiabá

Santa Helena

Jardim Itália Morada do Ouro

Candeia Contramestre: Sulim Contramestre: Alemão

17 Cuiabá Novo Terceiro Porto da Barra Mestre Augusto

18 Cuiabá Parque Cuiabá

Casa da Cultura

Aldeia de Bambas Mestre Rayovak

19 Cuiabá Varzea Grande

Goiabeiras

15 de Maio

Nossa Senhora da Guia

Ipase Campo Velho

Água Limpa

Nagô Professor: Marcelio Professor: Forró

20 Cuiabá Centro Sul

Áreas

Jardim Colorado

Pedregal

Sucuri

Jardim Florianópolis

Santa Rosa II

Lixeira

Ubirajara

Alvorada

Coxipó

Duque de Caxias

Jardim Imperial

CPA IV

Santa Marta

VIP Mestrando: Visk

21 Cuiabá Tijucal

Pedra Noventa

Jardim Universitário

Centro

ACAPOEIRA Professor: Negro D´Água

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Assim, interessa-nos compreender as formas de transmissão dos saberes e fazeres da

capoeira desses grupos e se neste processo de educação do corpo há possibilidades de uma

educação intercultural reconhecendo a diversidade presente nas rodas.

A proposta de mapeamento surgiu na disciplina Seminário Avançado quando foi

solicitado um Diagnóstico Rápido Participativo (DRP)14, considerado uma atividade de

pesquisa semiestruturada, implementada no campo, por um ou mais pesquisadores, com o

objetivo de obter, de forma rápida, novas informações acerca de um tema de interesse

acadêmico, político, cultural. Esta atividade permitiu ao pesquisador se aproximar mais dos

grupos de capoeira que estão ativos na Grande Cuiabá, onde, por meio de suas narrativas,

torna-se também conhecedor de aspectos privilegiados do cenário investigado.

Com o objetivo de obter maiores informações sobre o objeto de estudo, bem como de

aportar novas informações acerca do tema sobre a Capoeira na Grande Cuiabá, fizemos este

mapeamento dos grupos para colher informações a serem utilizadas na pesquisa.

Ao longo dos encontros nas rodas, nas aulas, nos eventos e nos momentos de papoeira,

fomos aos poucos fazendo o mapeamento dos grupos, assim que os mestres, professores e

alunos relatavam seus espaços de treino e roda, o pesquisador anotava-os no caderno de

campo ou procedia à entrevista. Desta maneira seguíamos adentrando as rodas: do Beco do

Candeeiro no Centro de Cuiabá; Roda na Praça Cândido Rondon (Centro); Roda do Liceu

Cuiabano (Centro). Ademais, seguimos a ginga em eventos de capoeira: ―2º Intercâmbio dos

Camaradas‖, Batizados e trocas de cordas do Grupo Sendero Capoeira, ―Atravessando

fronteiras‖ do Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira, e troca de cordas do Grupo Dança do

Guerreiro; Dando as mãos também para jogar nas outras rodas que acontecem em bairros

como: Parque Cuiabá, Cândido Rondon, Boa Esperança, Jardim Industriário; em Várzea

Grande, no Cristo Rei. Todos os grupos nos receberam para contar sobre seus espaços de

treinos, rodas e especificidades sobre suas sedes.

O mapeamento na Grande Cuiabá possibilitou conhecimento das diversas formas de

organização, seja da forma como é composto, suas lideranças, locais de rodas, treinos, sua

sede, bem como esses grupos são liderados. Desta maneira, nos permitiu verificar a produção

dessa prática corporal da cultura afro-brasileira presente nos espaços representados pelos

grupos já referidos.

14

O DRP é uma adaptação do Manual de técnicas Diagnóstico Participativo Rápido Rural, copilado por Martin

Whiteside, março de 1994 - Comissão Nacional do Meio Ambiente, Maputo (Moçambique) - CNMA, 1994. O

documento foi usado como instrumento metodológico sob orientação dos docentes do PPGE/UFMT, Beleni

Grando e Darci Secchi, como proposição para aprofundar o problema de pesquisa e delimitação do mes mo para

o trabalho de mestrado, na disciplina da linha de pesquisa.

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Nos momentos das papoeiras e rodas, identificamos dados a respeito das diferentes

ações de um mesmo grupo. Daí a importância da observação direta nos grupos, visávamos,

assim, buscar maiores informações dos representantes para saber, de fato, onde se davam os

territórios de produção da capoeira. Este trabalho de observação nos forneceu a compreensão

da realidade de alguns grupos de capoeira. Deste modo foi possível, compreendermos as

diferentes maneiras de pensar, fazer, Ser e produzir conhecimento nos grupos.

Em Cuiabá e Várzea Grande, a capoeira atualmente se caracteriza pelo complexo

processo de símbolos e imagens que cada grupo possui. Os grupos estão em mais de 84

(oitenta e quatro) bairros, tanto na periferia como no centro, e as relações se estabelecem tanto

do centro para periferia quanto da periferia para centro, há grupos em apenas uma

comunidade, outros com grande expansão, próximos do centro ou mais periféricos, além

daqueles que atuam em Cuiabá e Várzea Grande. As relações se estabelecem também entre

alguns capoeiristas que moram na periferia e interagem com pessoas de fora do bairro, da

cidade e até mesmo de outros países, formando laços que podem ser mobilizados para

diversos benefícios em prol da manutenção desta prática nos locais investigados.

A capoeira é constitutiva da cultura mato-grossense e cuiabana. Há nesta região um

grande número de pessoas produzindo e ressignificando a educação dentro dos grupos e se

constituindo como grupo de pertencimento. Para Vieira (1995), a capoeira é uma

manifestação empírica da dialética, é o movimento circular, o estado de espírito, ou seja, uma

coisa se torna outra, a dialética é o movimento da capoeira que não é linear.

Figura 1 Mapeamento dos grupos de capoeira na Grande Cuiabá

Fonte: Arquivo pessoal.

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1.1.1. Perfil dos Entrevistados

Após o mapeamento e visita a campo, capoeirando através da pesquisa exploratória,

chegamos aos entrevistados selecionados cujos perfis serão apresentados e totalizam oito.

Em relação à identificação dos capoeirandos, não vamos manter o anonimato, pois

queremos ressaltar a visibilidade como ―atores sociais, produtores de cultura‖ na grande

Cuiabá (FONSECA, 1998). Para a apresentação dos resultados desta pesquisa identificaremos

os entrevistados neste texto por seus nomes e apelidos15, referimo-nos a eles desta maneira,

pois é assim que gostam de reconhecer-se, ou seja, da forma como são conhecidos no campo,

capoeirando.

O grupo de entrevistados é composto por indivíduos de diferentes faixas etárias, tendo

o mais novo (a) 41 anos e o mais velho 65. Todos os ―Capoeirandos‖ são do sexo masculino.

Justifico por não trazer capoeirandas (sexo feminino) na pesquisa devido à ausência destas

com a titulação de Mestre ou professora que sejam responsáveis por um grupo. Há no cenário

nacional uma predominância maciça de capoeirandos do sexo masculino no contexto da

capoeira e do lócus de pesquisa e, apesar do grande número de mulheres que iniciam a

prática, poucas conquistam o grau de mestre no Brasil. No caso de Mato Grosso, não há

nenhuma mulher que possua uma alta titulação, porém algumas já estão no nível de

instrutoras e professoras. Esta supremacia dos homens é, entre outras possibilidades, fruto da

divisão social e sexista no Brasil que, ao longo dos séculos, tratou a mulher de forma

discriminada, segundo afirma Abdias, ―[...] o Brasil escravocrata herdou de Portugal a sua

estrutura patriarcal de família, cujo preço foi pago pela mulher negra‖ (ABDIAS, 1978, apud

MUNANGA p. 86, 2008).

Os movimentos sociais de luta das mulheres resultaram na ampliação de sua

cidadania, isto quer dizer que dentre tantas conquistas, embora lentas e ainda parcas, surge

como uma pauta que confere outras dimensões e responsabilidades ao poder público:

Entendemos a importância de que tais dados carecem de maiores aprofundamentos por parte

dos estudos acadêmicos e da elaboração de políticas públicas para mulheres em todos os

âmbitos, não perdendo de vista as questões de gênero atreladas à raça. Portanto, cabe

identificar as situações concernentes às desigualdades e discriminações que atingem a

população de mulheres e criar condições de superação destas realidades. Salientamos que não

nos eximimos de nossa responsabilidade enquanto pesquisador e capoeirista, mas neste

15

Alguns capoeiristas ao passarem pelo ritual do Batizado de capoeira, ou seja, quando obtêm sua primeira

graduação, recebem um apelido que será uma marca registrada em sua trajetória capoerística.

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37

trabalho não nos deteremos na discussão e investigação dos aspectos gênero e capoeira por

entender que demandaria maiores aprofundamentos, dadas as especificidades que o tema

requer.

A relação de entrevistados é composta por representantes dos respectivos Grupos: (1)

Centro Cultural Aruandê Capoeira de Cuiabá-MT, (2) Sendero Capoeira (Cuiabá), (2) Nação

Guerreira Capoeira (Várzea Grande e Várzea Grande), (3) kizomba de Capoeira Angola

(Cuiabá), (4) Grupo Iúna de Capoeira (Cuiabá), (5) Aldeia de Bambas (Cuiabá e Várzea

Grande), (6) Quilombo Angola (Cuiabá) e (7) ABADA Capoeira (Cuiabá e Várzea Grande),

com diferentes graduações na capoeira, assim como diferentes níveis de escolaridade.

Na capoeira, a graduação é um tipo de corda feita de algodão ou cordel para se usar

na cintura a fim de definir o grau e o estágio de capoeira em que cada praticante se encontra.

Cada cor tem um significado, e cada grupo de capoeira tem uma organização própria de

graduação. Os grupos de capoeira participantes desta pesquisa fazem vários eventos que

consistem no ritual do batizado e das trocas de graduações que, segundo Falcão (2004, p.

300), ―[...] foi uma estratégia que se consolidou a partir dos trabalhos de Mestre Bimba, na

Capoeira Regional, para atender a objetivos particulares‖.

O batizado é utilizado por diversos grupos de capoeira na grande Cuiabá. No caso dos

grupos participantes, este consiste em um momento de encontro, de saberes, fazeres, ou seja,

o ser e fazer capoeira na grande Cuiabá, onde são realizados cursos, palestras, rodas,

papoeiras e aulas. Também é ali o espaço em que, se atualiza e se reconhece sua

ancestralidade, onde se aprende a linguagem da capoeira e onde se aprende a jogar com ela.

Assim, reconhecer-se singular dentro do coletivo e das vivências individuais com os alunos,

professores, contramestres, mestrandos e mestres, é um processo natural e extremamente

festivo. O auge desta cerimônia é o Ritual do Batizado de capoeira, na qual o discípulo

iniciante, após cumprir um período de atividades sistematizadas, recebe a primeira graduação

(geralmente representada por uma corda amarrada na cintura pelos mais experientes).

O período de atividades sistematizadas para o discípulo a ser batizado pode variar de

grupo para grupo. Em geral, a práxis é que, para que discípulo seja batizado, deve jogar com

um mestre ou um professor convidado. A troca de graduação é muito similar, porém, o que a

diferencia é que os iniciados não são batizados, apenas trocam sua corda que, para isso, exige-

se certo grau de experiência na capoeira, pois devem mostrar ao público presente os seus

avanços na modalidade, jogando com os mais experientes. No caso de uma graduação mais

alta como monitor, professor, mestrando ou Mestre, além do jogo, exige-se tempo maior para

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amadurecimento e desenvolvimento do trabalho prestado. Junto com tudo isso, o primordial:

reconhecimento da comunidade capoeirística.

Falcão (2004, p. 300), importante intelectual e Mestre da Capoeira, em sua pesquisa,

fundamenta-se em Silva (1979) para afirmar que ―[...] o batismo é uma herança do juramento

que os capoeiras cariocas prestavam antigamente aos seus líderes em frente às igrejas‖.

Embora o ritual do batizado na grande Cuiabá seja consagrado como um importante

evento por todos os grupos, este não é unanimidade quanto à adesão. O uso do batizado é

utilizado na Capoeira Regional, diferentemente dos grupos de Capoeira Angola que não

aderiram ao ritual, pois como afirma Falcão (2004, p.301), alguns grupos de Capoeira Angola

o [...] ― ‗criticam‘ pela sua estreita vinculação com os dogmas da religião católica,

responsável inicialmente por um violento processo de repressão às manifestações religiosas

africanas‖. Como sabemos, os africanos eram proibidos de exercer suas religiões, portanto

adotar a nomenclatura ―batizado‖ para esse ritual é tido como ―tendencioso‖ pelos grupos da

capoeira tradicional. Os dois grupos de capoeira Angola identificados na grande Cuiabá não

adotam esta cerimônia, mas realizam encontros de Capoeira contendo rodas, oficinas, aulas,

palestras e papoeiras.

Nota-se que três entrevistados completaram o Ensino Médio, sendo que, destes, 1

(um), mestrando de capoeira (regional) e vice presidente da Federação Mato-grossense de

Capoeira: graduação marrom16/vermelha, Policial, treina capoeira há 20 (vinte) anos e atua

como professor há 15 (quinze anos) anos, é acadêmico de direito. O segundo dedica-se a

capoeira há mais de 30 (trinta) anos, Mestre: graduação vermelha/branca17, presidente do

grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira, atua como professor de capoeira há 20 (vinte) anos.

Já o terceiro é Mestre e presidente do Grupo Aldeia de Bambas Capoeira: graduação preta18,

artesão e músico, treina há 38 (trinta e oito) anos, lecionando essa arte há 25 (vinte e cinco)

anos.

16

Esta graduação é a 14º (décima quarta) e significa o reconhecimento: após uma longa jornada de trabalho

(cerca de 20 anos) prestado na comunidade capoerística, o reconhecem como Mestrando de capoeira. A cor

Marrom é a cor da mãe terra, significa fertilidade, já a cor Vermelha é o sangue derramado pelos escravizados,

significa poder. A junção destas duas cores tem o sentido do sangue do negro que o chicote cortou pelas mãos do

feitor, caindo no chão, espalhando-se na terra e fert ilizando toda nossa historia e cultura. (CAPOEIRA,

ARUANDÊ, 2016). 17

Esta graduação é a 16º (décima sexta), Mestre de Segundo Grau, significa a autoridade: o Mestre entra em sua

segunda fase para continuar passando sua sabedoria e experiência, supervisionando suas ra ízes. (CAPOEIRA,

ARUANDÊ) – Disponível em http://www.zumzumzum.com/ Acesso em 10 de janeiro de 2017. 18

Segundo nos relata o Mestre Rayovac em entrevista concedida no dia 17/12/2016, em Cuiabá esta graduação

―É a 18º (décima oitava graduação) do grupo Aldeia de Bamba. Este é o único grupo de capoeira participante

que aderiu à cor preta. Justifica-se devido a grande parte de outras modalidades de artes marciais terem atribuído

aos Mestres esta cor. O grupo não atribui significado à cor, apenas nos relata que para chegar a essa graduação é

preciso ter 35 anos de trabalho prestado à capoeira‖ (MESTRE RAYOVAC, 2016).

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39

Quanto ao Nível Superior completo, quatro destes possuem graduação em Educação

Física. Cabe observar que, destes, um é mestre de capoeira Angola, professor da rede

municipal de ensino, treina há 36 (trinta e seis) anos e é fundador do Grupo Kizomba de

Capoeira Angola. O mesmo não usa graduação, pois na capoeira Angola tal classificação não

existe, pois quem define sua graduação é a comunidade capoeirística ao reconhecê- lo como

mestre pela relevância do trabalho prestado à Capoeira. O segundo deste grupo é contramestre

de capoeira pelo grupo Sendero Capoeira (Regional), professor universitário: graduação

vermelha/marrom19; treina capoeira há 21 (vinte e um) anos e, destes, atua como professor há

15 (quinze) anos. O terceiro é reconhecido como um dos grandes protagonistas da capoeira

em Cuiabá na década de 1960. Trata-se do fundador do antigo Grupo Iúna, reconhecido como

mestre por ser parte fundamental da organização da capoeira em Cuiabá, professor

universitário, sem título de graduação na capoeira. O último deles está na arte da capoeira há

21 (vinte e um) anos e é professor de Educação Física em academia e no Ensino Superior.

Instrutor corda marrom/roxa20, atua como professor de capoeira pela escola Abadá Capoeira.

Um dos entrevistados está cursando o Ensino Superior (Educação Física), mestre pelo

grupo Nação Guerreira: graduação branca/vermelha, pratica capoeira há 28 (vinte oito) anos e

há 15 (quinze) anos leciona artes marciais.

19

No sistema de graduação do grupo Sendero Capoeira es ta corda é a 14º (décima quarta), representa o

Contramestre que ainda esta em formação para ser Mestre e é uma corda que antecede a do mestre. O grupo

não denomina significados às cores (CONTRAMESTRE BIRO, 2016). 20

Significa ―A Ametista‖ – É a reflexão da continuidade na capoeira. É nesta graduação que o capoeirista

procura superar a dor física, psicológica e espiritual na busca dos conhecimentos da capoeira e na defesa dos

ideais da ABADÁ (ABADÁ CAPOEIRA, 2016). Disponível em

http://www.abadasp.com.br/index.php?option=com_content&view=art icle&id=3&Itemid=5 Acesso em 10 de

janeiro de 2017.

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CAPÍTULO II

CAPOEIRA: UMA PRÁTICA CORPORAL DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Neste capítulo, continuamos o tecer do trabalho unindo passado, presente e, talvez,

vislumbraremos alguns aspectos futuros da Capoeira.

O presente da Capoeira tece e modela o seu futuro, em nós, através do nosso corpo,

no momento em que a estendemos em uma rede de dança, música, instrumento e gingado que

reitera os sentidos de luta e da libertação, da autonomia e da emancipação, construídos na

fome e sede de justiça, mas numa amálgama de fraternidades e valores que a ancestralidade

nos invoca no âmbito da produção intelectual a pensar, repensar, construir e reconstruir,

entender esse jogo de cá e de lá, no qual a política é como brinquedo sério, mas, ao final,

reiterando no presente a luta incessante do povo negro. Desta forma, iremos traçar um

panorama dos estudos que abordam a história da Capoeira no país, seus aspectos e influências

mediante o pensamento de estudiosos que se debruçaram sobre a temática. Apontaremos

alguns fios norteadores que alinhavam, consequentemente, a formação dos grupos que

exercem esta prática na Grande Cuiabá-MT, expondo, em partes, a Capoeira, suas

reivindicações, suportes e ressignificações. Tomamos como fonte - suporte para traçarmos um

breve histórico da formação destes grupos - as narrativas de quatro Mestres de Capoeira, a

saber: Edmundo; Lindomar; Rayovac e Demétrius.

Entrevistamos, a fim de captar as reinterpretações atuais da história da capoeira, o

contramestre Biro, e instrutor Tuiuiú. Esse processo de lidar com as memórias durante as

entrevistas transcorre em meio a fatores inerentes à oralidade: esquecimentos, representações,

sentimentos, intenções e tantos outros. Tais aspectos fazem parte deste fio que os moveram na

construção e tessitura de uma história que se entrelaça com a forma, quiçá uma estampa do

que seja o tecido cultural formado pela cultura afro-brasileira. Além das narrativas, apoiamo-

nos em documentos, cartazes de eventos e registros fotográficos de arquivos pessoais

apresentados no decorrer das entrevistas. Estes materiais compreendem o período estudado e

não apenas contribuem para a legitimidade dos depoimentos obtidos, mas nos provoca a

pensar outras questões sobre a prática da capoeira em Mato Grosso, mas que, por ocasião do

recorte desta pesquisa, não nos aprofundaremos.

Autores como Rego (1968), Campos (2001), Silva (1993), e Vieira (1995) afirmam

que há controvérsias sobre a origem da capoeira, e várias são as hipóteses. Duas fortes

correntes se confrontam, sendo que uma delas afirma que a capoeira teria sido trazida pelos

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africanos escravizados no Brasil, já a outra indica que ela é uma invenção dos aqui

escravizados a partir do contexto de gueto, fugas e perseguições sofridas (CAMPOS, 2001).

Entretanto, para Sodré (2001):

O importante não é o ―começo‖- a data histórica não tem tanto interesse assim – mas sim o ―princípio‖: quais as condições que a geraram e o que a mantém em expansão. Isto é, o conjunto de condições e circunstâncias históricas e culturais para que aquele jogo tenha se expandido. No caso da capoeira, o ―começo‖ é brasileiro, mas o ―princípio‖ – tanto o fundamento, a historicidade, quanto o mito – é Africano (BRITO apud, SODRÉ 2001, p. 20 2005).

Embora as duas correntes apresentem tal divergência sobre a origem da capoeira,

ambas reconhecem-na como resultado das formas de expressão cultural advindas de

referenciais negros que se desenvolveram como forma de luta e resistência em meio à

imposição expressa em lutas simbólicas de ―troca‖, amiúde marcadas pela expropriação em

face das condições desumanas as quais esses povos e seus descendentes foram expostos

durante a escravidão, e mesmo depois dela, no período pós abolição, e promoveu um

genocídio ainda mais acentuado dos negros e mestiços. Esta forma de lidar com as injustiças

torna-se reivindicação por justiça, sobrevivência do corpo, da ancestralidade, da cultura do

povo negro e dos oprimidos pelos privilégios de classe (FALCÃO, 2004).

Neste trabalho a capoeira é entendida como sendo uma prática corporal da cultura

afro-brasileira, e, portanto, contempla as diversas dimensões desta cultura expressas em

práticas inseparáveis e incluidoras, tal como as danças, brincadeiras, lutas, jogos, rituais,

historicidades, políticas e outros. Em concordância com Silva (2012):

A capoeira como manifestação cultural brasileira e fenômeno social que envolve pessoas de classes e grupos sociais diversos é capaz de agregar valores educativos significativos, possibilitando um olhar diferenciado sobre a diversidade cultural de nosso povo que, ao longo de sua história, vem, por meio de lutas de resistências, buscando encontrar sua verdadeira identidade. (SILVA, 2012, p. 8).

Além disso, o termo ―prática corporal da cultura afro-brasileira‖ pode apontar para a

possibilidade de a capoeira estar ligada às diferentes visões dos seus agentes sociais, ou seja,

valorizando as diferentes experiências e concepções que são vivenciadas em cada corpo

próprio inscrito em sua carnalidade. Consequentemente, as reflexões não pretendem

homogeneizar os significados da capoeira, por ser ela uma arte polissêmica, mas entendê- la

como uma produção social de expressão identitária afro-brasileira.

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Considerando que a capoeira constrói-se a partir das interações com o meio e em

diferentes aspectos, fazer capoeira não se limita a jogar as pernas para o ar, ela é um modo de

ser, de ver, de estar no mundo de corpo inteiro reconhecendo o ser inacabado, inconcluso e

consciente do inacabamento, tal como se dá no corpo que ginga (FREIRE, 1992).

Na capoeira o corpo é a pessoa que movimenta o corpo inteiro: joga, ginga, canta,

balanceia os punhos, contorce a cintura, as pernas, os cotovelos protegem o rosto, numa

progressão do tronco que adianta e avança com movimentos alternados e que precisam ser

executados pelos dois lados. Há uma educação do corpo em sua vivência que, na capoeira, tal

articulação se dá, segundo cada estilo, através do berimbau, pois é ele quem determina uma

educação corporal para cada corpo na roda de capoeira. O toque do berimbau se acelera, a

corrente sanguínea perpassa no corpo de forma mais vibrante, a expressão é pura energia e o

batuque expresso cada vez mais forte, engajado pelas mãos. ―É o corpo que na capoeira

compõe-se por um rico repertório de gestualidade chamada de golpes, o que representa um

arcabouço de formas com as quais o corpo irá realizar movimentos‖ (CASTRO JUNIOR,

2010, p. 23).

Vamos ao pé do berimbau para fazer uma devoção a todos os mestres e capoeiristas

visíveis e invisíveis, pois o conhecimento não só se produz no campo do visível, mas no

invisível também, em especial saúdo dois grandes mestres: Pastinha e Bimba, dois dos

principais mestres e que constituem uma fonte inesgotável de conhecimento e inspiração,

dada a energia que atravessa os tempos e inspira muitos capoeiristas nos dias atuais.

Conforme o toque do berimbau jogando ora embaixo, ora rasteira deitada, ora angola,

ora regional, ora Pastinha21, ora Bimba22, quando soa o ritmo sou pessoa, sou corpo, sou afro,

sou indígena, um quilombo vive em mim, dentro do peito...

Surge um grito iêêê!

Liberdade sim iôiô Navio me trouxe pra cá Os negros capturados Em suas terras Acorrentados jogados Em um navio No porão som de Gritos e chibatadas Foi assim que eram

21

Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha), conhecido como o Guardião da Capoeira Angola

desempenhou um papel de verdadeiro líder, orientando politicamente os capoeiristas, estimulando -os para que

formassem um grande centro de Capoeira Angola na Bahia entre 1944 á 1952. (CAMPOS, 2006, p. 45) 22

Mestre Bimba, conhecido por criar um novo estilo de Capoeira chamada Capoeira Regional em meados de

1928: ―criei, completa, a capoeira regional, que é o batuque misturado com a angola, com mais golpes, uma

verdadeira luta, boa para o físico e para a mente‖. (ALMEIDA, 1994, p. 17 Apud. CAMPOS, 2006, p. 54).

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Trazidos ao Brasil (coro) Negos bantos oriundos de Angola E do congo E também de Guiné E todos marcados Com ferro quente Vendido para outra Gente a trabalhar Sem algo para recompensa (coro) Uma viagem para Uma terra distante Seus tripulantes Morriam de sede e de frio Amontoados em um porão de navio (coro) Após uma viagem de pesadelos Presos no navio negreiro Chegavam ao seu destino cruel (coro) E corte da cana E o trabalho na moenda Foi tão sofrido Dentro do canavial O sofrimento que Encontrava no dia Pedia a Deus Para lhe levar para o céu (Autor e cantor: mestre Bicudo Canta; Capoeira Angola Grupo: Aruandê)

Nesse sentido, torna-se difícil falar da capoeira sem que não nos venha à mente os seus

rituais culturais, sua musicalidade, o movimento, o manuseio dos instrumentos, tudo isso

associado à uma ritualização que acontece no meio da capoeira. Isso significa que cada grupo

de capoeira tem uma cultura própria.

Toda história é sempre uma versão, pois Cada um, no tempo e corpo vivido, faz uma

leitura parcial do vivido coletivo. Por mais que tentemos contar um pouco da história da

capoeira, estaremos sempre apresentando uma versão com risco de desagradar a outros.

Ainda assim, arriscamos contar um pouco de uma história, considerando que existe

uma parcela significativa dos trabalhos escritos sobre a capoeira, portanto, trarei alguns

autores para esse jogo de discussão teórica. É bem verdade, também, que as histórias escritas

também trazem versões a partir da compreensão do ―olhar datado‖23 de cada autor.

Mestre Pastinha, uma grande referência na capoeira, quando diz ―A Capoeira é tudo

que a boca come e tudo que o corpo dá‖ (CASTRO JUNIOR, 2010), assim se referindo à

23

Merleau-Ponty utiliza a identidade das pessoas juntos com as coisas, casadas com elas, cuja experiência não

está sozinha em nós, nem na co isas, mas na relação entre ―a gente‖ com ela .

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capoeira do seu tempo já com sabedoria e maestria, rebela sua consciência corporal, ao

afirmar que somos corpo, que produz, reproduz cultura popular, conforme afirma:

Não são poucas nem insignificantes as referências (fontes) à capoeira que revelam a temática do corpo. Elas expressam os vários significados relevantes que o corpo possui no universo simbólico da capoeira num movimento imbricado da ―cultura popular‖ e a história da capoeira em cada

época. (CASTRO JUNIOR, 2010, p. 19).

A capoeira é uma prática corporal originária das necessidades materiais e ritualizadas

dos sujeitos de uma determinada cultura em um determinado tempo. Para Mauss (2003),

qualquer movimento humano é uma técnica, por possuir tradição e eficácia, pois entendia as

técnicas corporais como: ―[...] as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de

maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos‖ (2003, p. 401).

As técnicas corporais são compostas de diversificadas práticas corporais, estas são

elementos da cultura e se representam principalmente na dimensão corporal.

As práticas corporais, portanto, são manifestações cultura is. Essas manifestações são explicitadas nos movimentos corporais identificados como dança, jogo, formas de exercitar, luta, competições esportivas etc. Essas práticas corporais expressam uma educação específica do corpo que por sua vez explicitam a concepção de pessoa em cada sociedade. Como vimos nos exemplos de Mauss [...] cada prática corporal, explicita a identidade étnica de quem a pratica, a partir das técnicas corporais e da estética explicitada no corpo em movimento (GRANDO, 2009, p. 32).

As práticas corporais neste trabalho serão entendidas como manifestações culturais,

tais como dança, jogo, luta, esporte, cultura afro-brasileira, música, como gestos que

caracterizam a ritualização do jogo da capoeira. Logo, deveremos entender como os capoeiras

se utilizam do seu corpo neste jogo, ou seja, nas rodas, nas aulas, nos eventos, nos ritos e no

cotidiano desta cultura afro-brasileira.

Os registros históricos evidenciam que, quando a capoeira, a partir de uma história do

ontem, ensaiou os seus primeiros passos no Brasil, o fez através dos corpos de africanos de

várias etnias e reinos trazidos pelos portugueses (FALCÃO, 2004), os negros traficados do

continente Africano, aqui feitos escravos pela força, além do indígena escravizado em sua

própria terra, naquele período foi denominada Terra de Santa Cruz pelos portugueses.

Retomando o sentido histórico de Falcão (2004):

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[...] É possível afirmar, portanto, que, embora ela tenha sido ―engravidada‖ na África, ela já ―nasce‖ no Brasil pluriétnica. Metaforicamente, poderíamos dizer que seu ―berço‖ é africano, mas sua ―cama‖ é brasileira, embora nestes povos de outros cantos tenham tirado alguns ―cochilos‖. Ou seja, ela foi ―batizada no Brasil‖, como filha de uma condição de exploração a que foram submetidos seres humanos procedentes de diversas etnias africanas em terras recém invadidas pelos portugueses. (2004, p. 17, grifos do autor)

A capoeira nasce numa amálgama, trata-se de uma das manifestações presentes em

nossa historia, cultura, e é contada de várias formas, tal como Silva (2008, p. 40) destaca

quando trata da dimensão afrodescendente da capoeira:

Outra interessante manifestação cultural do período colonial foi a capoeira, cuja origem é objeto de controvérsia. Há os que acreditam que ela nasceu no Brasil, a partir de uma mistura de lutas, dança e rituais de diversas partes da África. Há, porém, os que crêem que se trata de uma mistura de cultura africana com a indígena, pois os índios brasileiros praticavam um ritual que misturava música, dança e luta.

Independentemente de suas origens, a capoeira é aqui abordada como uma forma de

resistência dos afro-brasileiros à escravidão. Nas senzalas, era praticada nos momentos de

descanso, disfarçada em dança, em ginga, em música, em cantos e no próprio corpo que

produz conhecimento. Para que os senhores dos engenhos não desconfiassem de que se

tratava de uma forma de combate, os escravizados aliaram a ginga aos golpes muita vezes

mortais, segundo (SILVA, 2008).

Neste sentido assumimos a capoeira como uma manifestação pluriétnica constituída

neste amálgama da sociedade brasileira, que de acordo com Falcão, (2004, p. 112) ―[...]

começaram seus primeiros registros, no século XVIII‖. A sua trajetória histórica foi marcada

por muitas perseguições policiais, repressão, prisões, racismo e outras formas de controle

social (ZULU, 1995).

A capoeira vem sendo explicada na história de diversas formas, porém a que vamos

apresentar aqui é uma das possibilidades de entendê- la como ―[...] uma luta apresentada por

movimentos ágeis envolvidas por música, ritmo e ginga‖, de acordo com Portela (2012, p.

16). É uma luta que atualmente se espalha em diversos lugares do Brasil e em outros países, é

uma manifestação da cultura afro-brasileira presente na cultura mato-grossense. De acordo

com Rego (1968), a capoeira é um exemplo de resistência do povo negro que ajudou na

sobrevivência à escravidão, uma vez que não possuíam armas de fogo, portanto os

escravizados usavam o corpo e a ginga dos movimentos para a defesa.

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Sob a influência do continente Africano esta manifestação ritualizada no corpo traz

memórias de movimentos associadas a diversos animais como a da Aranha, envolvente e

enlaçadora, do Macaco, pela agilidade e destreza, da Onça, devido à sagacidade e

combatividade, e a da Raposa com sua manha e astúcia (CRUZ, 2006). É uma espécie de

imitação de força, de agilidade, de destreza que faz parte do comportamento do animal. É

como se o espírito do animal tomasse conta do corpo ritualizado, não pelo determinismo e

pressupostos religiosos, ideológicos e cientificistas arbitrários que deixaram profundas marcas

na história da sociedade brasileira, (CORTE REAL 2006), mas pelo ponto de vista ancestral.

Conforme evidencia Munanga (2008): [...] as forças das ideologias e das tradições,

passadas e presente, a qual se pretendia branca, cristã, europeizada. Isso, no entanto, se

apoiava no pensamento de estrangeiros que, embora eivada de falhas e distorções‖, no Brasil

a força do pensamento é pautada pela intelectualidade e portanto ―acolhida como verdade

incontestada‖. (2008, p.13)

Sabemos que muitos mestres de capoeira são adeptos das religiões de matriz africana.

A capoeira é também um movimento de religiosidade, de quem a prática, e se configura como

uma busca dependendo da espiritualidade, do conhecimento do que está invisível, conforme

nos esclarece Cruz (2006). Para o autor:

Geralmente o capoeirista acredita no seu santo protetor, no seu guia espiritual ou no seu orixá, para quem pede proteção no pé do berimbau enquanto ouve ladainha

24 antes do jogo; conhece orações para fechar o

corpo, possui amuletos para aumentar a sua a fé e protegê-lo nas horas de

perigo (CRUZ, 2006 p. 39).

Acredita-se que todos esses aspectos levam alguns capoeiristas ao encontro de uma

realidade metafísica. Quando se considera a profunda carga de energia, o sentimento, o Axé

de algumas rodas de capoeira, entende-se por que alguns capoeiristas buscam abrigo em

esferas sobrenaturais. Verifica-se a ritualização inicial, antes de jogar na roda, de pedir

proteção a seu santo, seu guia protetor, fazer o sinal-da-cruz quando entra na roda, agachar-se

ao pé do berimbau, e realizar, simultaneamente, gestos que influenciam magneticamente seu

jogo. Tocam no chão traçando linhas misteriosas, formando uma estrela de cinco pontas.

Acreditam que assim fecham a roda e também seu corpo de qualquer mal.

24

É t ipo de música executada, normalmente, como canto de abertura na capoeira, sobretudo na angola, é um

ritmo de musica lenta, sofrida, dolente é como uma reza, uma oração muito parecida com as que são feitas na

Igreja Católica em louvor ao terço ver mais em (CORTE REAL, 2006).

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Temos como exemplo um grande capoeirista cantado nas rodas e exibido em filmes,

Besouro Mangangá, o maior modelo de capoeirista mandingueiro 25 que, segundo a lenda,

desaparecia misteriosamente na frente dos seus inimigos quando estava em desvantagem ou

não queria ser visto (CRUZ, 2006).

Besouro Mangangá, Besouro Mangangá Besouro, Besouro, Besouro, Coro: Besouro Mangangá Besouro Mangangá Cidade de Santo Amaro Terra do Maculelê Viu os Mestres Popó e Vavá E viu Besouro a nascer Besouro, Besouro, Besouro, Coro:

Besouro Mangangá Besouro Mangangá Besouro cordão de ouro Manoel Henrique Pereira Desordeiro pra polícia

Uma lenda pra capoeira Besouro, Besouro, Besouro, Coro: Besouro Mangangá Besouro Mangangá A lenda diz que Mangangá Também sabia voar Transformando em besouro Pra da polícia escapar Besouro, Besouro, Besouro, Coro: Besouro Mangangá Besouro Mangangá Mataram Besouro Preto Não foi tiro nem navalha Com uma faca de tucum Na velha Maracangalha Besouro, Besouro, Besouro, Coro: Besouro Mangangá Besouro Mangangá (Autor e cantor: Instrutor Perna; Capoeira Regional Grupo: Abadá Capoeira)

25

A palavra mandinga remete-nos aos ―Mandingas‖, africanos originários da região da Senâmbia, na África

Ocidental, que estavam entre os primeiros cativos trazidos para o Brasil. Eram respeitados por suas fortes

habilidades como feit iceiros. Esta palavra tem importância significativa no imaginário dos capoeiras. Uma

capoeira sem mandinga seria a mes ma coisa que uma capoeira esterilizada, formatada, mecânica. Para ser

mandingueiro, o capoeira tem que ser imprevisível, astuto e envolvente. (FALCÃO, 2004). A Mandinga, na

capoeira, refere-se à malícia, à capacidade de improvisar e envolver o parceiro de jogo . Capoeirista cheio de

manhã, ardiloso, supersticioso, que usa malevolência na v ida, um bom capoeirista (PORTELA, 2012).

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Notamos com isso que na roda de capoeira há uma ritualização expressa através de

uma linguagem corporal, é uma expressão simbólica de energias e ritualização do corpo, a

mandinga tem significados no imaginário dos capoeiristas.

Alguns autores como Pires (2001), Soares (2004) e Freyre (2003), afirmam em suas

teorias que esta manifestação capoeirista é originária do Brasil. Baseado nestes autores,

Portela (2012, p. 16) argumenta:

[...] os negros aqui escravizados foram trazidos de diversas regiões da África, não apenas para o Brasil, mas também para outras ex-colônias do continente europeu. Entretanto, parece não haver registros históricos conhecidos do desenvolvimento da capoeira nestes locais, somente no Brasil. Por outro lado, existem aqueles que acreditam na origem africana da capoeira, como Marinho (1956), como sendo trazida daquele continente pelos cativos, uma vez que podem ser encontradas danças e rituais, também características de luta. A partir dessa concepção, a capoeira seria simplesmente uma variação dessas danças.

Nesse ínterim, estamos assumindo a capoeira como uma arte polissêmica, que traz

diversas possibilidades de interpretação, considerando-a um jogo que é luta, dança, arte e,

também, que é esporte, que é folclore vivo e vivido, que é religiosidade, que emana energia e

resistência desde o período da escravidão. Configura-se, assim, como uma prática corporal da

cultura afro-brasileira. Significa, na história, um mecanismo de defesa camuflado na

sabedoria de um povo.

De acordo Souza, (2008, p. 29): ―[...] o século XVI ao XIX foi em torno do tráfico de

escravos, isto é, do comércio de pessoas que se deram as relações entre alguns africanos e

europeus‖, esse movimento, uma ação vergonhosa e desumana, ficou conhecido como o

período do tráfico negreiro.

Foram trazidos da África pelos colonizadores mais de quatro milhões de negros para

se tornarem escravos, sobretudo nas lavouras de cana-de-açúcar de Pernambuco, Bahia e Rio

de Janeiro. Segundo Andrade (1989), tribos inteiras foram obrigadas a cruzar o oceano, sem

saber qual era seu destino, sendo tratados como animais: ―[...] os escravos adquiridos pelo

negreiro, na costa africana, eram embarcados em tumbeiros com péssimas condições de

conforto e higiene‖, e muitos deles não suportavam a viagem e morriam no caminho.

(ANDRADE, 1989, p. 13),

Quando chegavam nesta terra estranha e distante, os escravos, pertencentes a grupos

étnicos que tinham línguas diferentes, eram aqui separados e reagrupados. O objetivo era

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obrigá- los a ficar longe uns dos outros para não representarem nenhum perigo. Assim, mesmo

pertencendo a troncos linguísticos e tradições diferentes, e ainda que oriundos do mesmo

continente, os negros eram obrigados a trabalhar e conviver juntos nas senzalas. Submetidos a

repressões, castigos físicos e torturas, toda e qualquer manifestação da cultura africana era

repreendida e/ou punida. Mas ainda assim se organizavam e, escondidos, cantavam, jogavam

capoeira e cultuavam seus Deuses a seu jeito e a seu modo.

[...] sua rotina era sofrer castigos diários, das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fugas e, quando chamava a atenção, recaía sobre ele o castigo exemplar, forma de mutilação de dedos, do furo dos seios, de queimaduras de lição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites do pelourinho, sobre trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas diárias, para sobreviver. Uma saída encontrada pelo escravo para sair desta situação foi o chamado Banzo, um suicídio no qual o negro ingeria terra até morrer asfixiado. Para evitar este tipo de suicídio, era colocada uma máscara de ferro na boca do escravo que fosse suspeito de querer cometer tal suicídio (RIBEIRO, 1997, p. 120).

Tamanhas atrocidades foram vividas pelos negros, mas eles reagiram e reagem ainda

hoje, e através da capoeira enfrentaram seus opressores em emboscadas, refugiando-se em

bandos. A fuga ocorria em grupos e assim surgiam os quilombos, sendo o mais conhecido o

dos Palmares.

Justamente nestes quilombos, locais de refúgio e já livres para as manifestações

culturais do povo negro, foi que a capoeira realmente se desenvolveu. Palmares foi uma das

maiores organizações de escravos negros foragidos das fazendas. Conforme Freitas (1984), os

escravizados tinham uma organização que equivalia a um estado, nos moldes africanos,

constituído de povoações diversas onde mais de vinte e cinco mil negros viviam em

comunidades chamadas de Mocambos, governadas por oligarquias e sob a chefia de um rei.

Palmares continua existindo em todo o Brasil, cada luta, cada resis tência, cada trabalho que se

refere à manifestação cultural e de religiosidade é um Quilombo de Palmares.

Palmares cresce sem parar Lavoura, muzambo cobrem a região Herdeiro de ganga Zumba nasceu Com destino traçado nas mãos Bravo forte guerreiro Um deus da guerra, se fez na terra A lenda de um herói (coro) Zumbi, Zumbi, olha Zumbi Zumbi, Zumbi, olha Zumbi

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50

Zumbi, Zumbi, olha Zumbi Zumbi, Zumbi, olha Zumbi (Domínio Público)

Cresce o negro e o indígena em Palmares, afinal muitos quilombos e vilas começaram

como mocambos de índios e negros fugidos dos cativeiros e das senzalas. Cresce o negro e o

indígena em todos os palmares sociais, na luta e na resistência, pela agilidade da luta, pela

agilidade de como se vive nessa sociedade, pela astúcia de sobreviver em meio a tantos

problemas que ocorrem no meio social (SILVA, 1993). Conta este autor que o negro quando

luta capoeira emana superioridade, assim é:

[...] evidentemente superior na luta, pela agilidade, coragem, sangue frio e astúcia, aprendidas afrontando os bichos, as feras mais perigosas, lutando mesmo com elas, saltando valados, trepando em árvores, as mais altas e galhadas, para se acomodar nas suas frondes, pulando de umas às outras, como macacos, onde as nuvens batiam. E tiravam proveito disso, tornando-se, extraordinariamente, ágeis e muito comumente um homem desarmar uma escolta, punha-a em desordem, fazendo-a fugir [...]. (SILVA, 1993, p. 13).

Ao analisar o texto do mencionado autor, percebemos a descrição da força e da

destreza dos negros escravizados na superação dos desafios do dia-a-dia por uma questão de

sobrevivência.

O vento me levou de volta Soprou, e me levou Para Aruanda

26 pra ver

Os negros que vieram de angola (Coro) Traficados pelos navios Negreiros os negros Ficavam no porão do navio E sofrendo por não Ter o que comer e a noite Muitos negros morriam de frio (Coro) Muitos dias velejando Em alto mar com sua crença Rezavam para logo chegar E sabendo que seriam Maltratadas as escravas Muitas delas se jogavam no mar (Coro) Enfim chegando ao Brasil o navio

26

Era a terra dos sonhos, onde os negros escravizados imaginavam ser uma lugar onde não houvesse

escravização (PORTELA, 2012).

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Faziam a conta dos escravos Vendidos para os coronéis Das fazendas cuidadas Pelos capatazes (Coro) A luta e pela liberdade de viver Capoeira o negro foi aprender E hoje o negro tem seu valor Hoje o Brasil é Aruanda (Autor e cantor: Mestre Bicudo Canta; Capoeira Angola; Grupo: Aruandê)

Essas pessoas cantaram, e seus cantos estão na memória dos grupos de capoeira, a

exemplo do que o Grupo Aruandê canta. Os negros foram trazidos de nações, em sua maioria,

províncias africanas como: Luanda, Congo, Moçambique, Angola, Cabinda, Benguela, entre

outras. Hoje, seus descendentes estão aqui no Brasil, em vários lugares no mundo, inclusive

na Grande Cuiabá, Estado de Mato Grosso, produzidos e educados pela prática corporal.

Abaixo, o Gunga, o berimbau que comanda o ritual, a roda, aponta uma memória que retrata a

formação da Capoeira neste nosso lócus de pesquisa e narra esta história como resistência e

espaço de luta, bem como de afirmação do negro e sua cultura no estado.

Tocando meu Gunga Já falei da Bahia Ê seu moço Histórias da capoeira Vou contar de Mato Grosso. (coro) Pioneiro neste estado Começou quando criança Roda na casa da cultura É com Eron do Arte Dança (coro) Mestre Rayovac com seu Berimbau gigante Fez história em Mato Grosso Teve um papel importante. (coro) Baixada cuiabana Muito se ouviu falar Falo de Mestre Sombra Um rubi da capoeira Nossa pedra preciosa Que nasceu em Cuiabá (coro) Mato Grosso teve a sorte Com essa arte brasileira Hoje a nossa capoeira Tá se espalhando pro mundo Fica aqui o nosso axé Pro grande Mestre Edmundo.

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(coro) Quem viveu da capoeira, Pra poder sobreviver Falo de Mestre Demétrius Raiz deste estado Viajando pelo mundo Com o seu conhecimento Hoje tem sua família Que se chama Aruandê. (Autor e Cantor: mestre Bicudo; Capoeira Angola; Grupo: Aruandê)

A capoeira na Grande Cuiabá, como atividade e cultura oral, possui uma relação direta

com a história da capoeira do Brasil. O mesmo processo histórico de aceitação dessa

manifestação cultural afro-brasileira presente na cultura mato-grossense ocorreu em outros

Estados brasileiros, e por vezes ela se confunde com a própria história do país.

Para contextualizar a história da capoeira local e os conflitos inerentes a esta prática

mesmo após sua descriminalização, trazemos uma mostra da edição do Jornal O Mato Grosso,

de outubro de 1989, quando foi publicada uma matéria com título: ―Secretário Municipal de

Cultura Contra a Capoeira‖, como forma de postura ao enfrentamento contra o racismo e o

preconceito. Escreve Alvino Souza Santos, praticante de capoeira e na época presidente do

grupo Associação Arte e Dança de Capoeira em Cuiabá, em defesa da cultura negra.

Figura 03 Jornal: ―O Mato Grosso‖ (03/10/89), p. 02 Em defesa da Cultura Negra

Fonte: Acervo do Museu da Imagem e Som de Cuiabá (MISC) (03/10/89).

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Sua origem negra passou por perseguições e devido às lutas e à persistência de seus

praticantes, foi se firmando e conquistando o seu espaço na Grande Cuiabá, e aos poucos foi

se expandindo para outras regiões mato-grossenses. O texto em questão apresenta-se como

um rico documento para pesquisadores da Cultura e das Relações Raciais, pois não apenas

demonstra um movimento negro atuante na década de 80 em Cuiabá como também a

articulação deste com espaços formais de Educação e Cultura, numa busca pelo

reconhecimento e por espaços de construção de identidade e pesquisa sobre a história do

negro em Mato Grosso.

De acordo com (Munanga, 2008, p.13), ―Todos os movimentos sociais, incluindo o

dos negros, lutam pela justiça social e por uma redistribuição equitativa do coletivo‖. A

capoeira marginalizada por sua origem negra clama por esse produto coletivo: melhores

condições para desenvolver seu trabalho como prática da cultura afro-brasileira. Numa

sociedade hierarquizada como a nossa, negros e negras encontram dificuldades para mobilizar

seus membros em torno da luta comum para transformar a sociedade. A falta descrédito

implantado ao longo de nossa história, molda e mobiliza os oprimidos a ser sempre menos,

porém a luta pela mobilização é uma conscientização dos membros da sociedade organizada e

precisa ser feita (MUNANGA 2008).

[...] os movimentos sociais encontra numerosos obstáculos, como a inércia e as forças das ideologias e das tradições, passadas e presentes, entre outras. Remover esses obstáculos exige a construção de novas ideologias, capazes de atingir as bases populares e convencê-las de que, sem adesão às novas propostas, serão sempre vítimas fáceis da classe dominantes e de suas ideologias. (MUNANGA, 2008, p. 13)

O processo a se fazer conjuntamente com todos aqueles que resistiram a todas as

investidas ideológicas: das elites, da religião, da ciência, cultura, pensamento. A prática da

capoeira se dá em espaços que se tornam espaços de encorajamento, lócus de influência

material e simbólica acerca dos valores de nossas ancestralidades. Com isso, quero dizer que

devido à própria localização geográfica dos grupos e da realização dos rituais afro-brasileiros

de luta e resistência, com a capoeira é possível estabelecer parcerias de mobilizações com

outros grupos para que se possa construir uma identidade a partir da realidade local de seu

grupo e da comunidade onde está inserida.

Tomando a premissa de que ―Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela

recuperação de sua negritude, física e cultural‖ (MUNANGA, 2008, p. 14) e de que o racismo

se manifesta em dimensões estruturais e interpessoais, os grupos de capoeira de Cuiabá já

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realizam uma importante parceria para lidar com a falta de estrutura de recursos que, assim

como denunciado no jornal da década de 1980, ainda persiste quando se trata da alocação de

verbas suficientes para manter a qualidade na Educação e Saúde da população negra e da

Cultura afro-brasileira. Este diálogo profícuo sobre as desigualdades materiais e simbólicas

contra os negros ocorre através da entoação da ladainha, pelas papoeiras, pelo toque do

atabaque, do pandeiro e do envolvimento em espaços de discussões, alguns deles

deliberativos acerca da sociedade brasileira.

Estamos cientes de que a capoeira assume em seu discurso a resistência e a

contribuição do negro que fora escravizado no âmbito da cultura afro-brasileira, isso a torna

singular, trata-se de uma reivindicação acentuada dos movimentos negros, inclusive manifesta

nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Cabe salientar que a Educação não é

a resistência da vez para a população negra, mas uma preocupação constante deste segmento

populacional (COSTA 2009).

É importante que se tome conhecimento do quanto é complexo o processo de

construção da identidade negra no Brasil. Se nos grupos de capoeira o praticante evoca,

denuncia e prescreve sua dor, sua luta e sua conduta, cabe sim um estudo mais aprofundado

sobre a identificação raça/cor, considerando que os efeitos do racismo se manifesta m nesta

complexidade de construção da identidade negra. Esta observação se faz devido ao que já

discutimos acima, ou seja, há um processo marcado por discriminações contra os negros e que

se utiliza não apenas da desvalorização das culturas provenientes de matriz africana, mas

também dos traços fenotípicos, tal como alertado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e

Africana (2004, p.15).

2.1 A capoeira em Cuiabá: uma história mais recente

A produção científica sobre a Capoeira em Mato Grosso revela-se ainda incipiente.

Não se encontrou ainda nenhum registro que trata da formação ou produção dos grupos locais.

Nosso trabalho procura, de forma breve, levantar e trazer dados históricos que abordem a

formação dos primeiros grupos de capoeira da Grande Cuiabá por meio de entrevistas com

mestres e responsáveis por alguns dos grandes grupos desta localidade, revelando que há

muito a se pesquisar a fim de que se possa traçar a história da Capoeira no Estado.

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As narrativas dos mestres de capoeira nos revelam a história do início, da trajetória e

das dificuldades da capoeira mato-grossense, bem como as mudanças e permanências sofridas

ao longo da história da mesma no Estado, concentrando-se no papel que a capoeira e seus

mestres desempenham na atualidade.

Na ocasião em que fui percorrer as rodas de capoeira para o seu reconhecimento de

campo na Grande Cuiabá, conheci mestre Edmundo de Souza, natural de Cuiabá-MT. Nasceu

em 06/08/1951, é graduado em Licenciatura em Educação Física e mestre em Educação pela

UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba), é professor universitário da Universidade

Federal de Mato Grosso, mestre de capoeira pelo antigo grupo Iúna e considerado um dos

principais atores, para muitos, o mestre Edmundo é o principal protagonista na formação dos

Grupos de Capoeira na Grande Cuiabá. A entrevista realizada na própria universidade se

mostrou como um momento raro em que o pesquisador capoeira pode desfrutar da experiência

de vida no universo da capoeira daquele que é considerado o precursor da organização destes

grupos no estado. Ouvir e reviver a história dessa formação em suas palavras requer abrir a

Roda para que o público cuiabano ou de Mato Grosso possa ver, ouvir e louvar os próprios

heróis da cultura negra na Grande Cuiabá. Conta-nos:

No início da década de 60, eu morava na Rua 24 de Outubro de 1967 e ali conheci uma família baiana, três irmãos, o Zeno que era mais da minha faixa etária eu nesse período eu estudava na escola técnica federal ainda, era adolescente e dessa família eram três irmãos aquele que era contemporâneo da minha idade o Zeno nós éramos colegas amigos e o Roxinha, nosso querido Roxinha ficou na Bahia estudando e passou no vestibular para Engenharia Mecânica e Roxinha treinava com mestre Pastinha e se tornou o melhor aluno do Pastinha na Capoeira. [...] Um dia à tarde o Zeno me chama “Edmundo quero mostrar uma coisa, mas se não pode falar com ninguém” [...] fui lá e foi quando eu vi a capoeira pela primeira vez. Eu comecei ver o Roxinha treinar sozinho com uma cadeira, depois uma cadeira no centro, eu desnublei! Com aquilo, foi uma paixão imediata! Pela capoeira: aqueles movimentos acrobáticos, aquela caída no chão, - que hoje conhecemos, a negativa e o role - ele fazia vários roles em volta da cadeira e subia com a força de um braço só para plantar uma bananeira, caia numa queda de rim, queda de braço. Então, aquilo tudo me desnublou. - Aí ele percebeu que estávamos assistindo, eu fiquei com medo. Ele falou: “Não! Não! Não! Zeno pode trazer ele aqui, senta ali e fica assistindo!” - Eu fiquei assistindo!

Eu assistia! Assistia! Desnublado. Pedi no final. Ele estava muito suado... Posso falar com você? Pode! – Senhor poderia me ensinar? Ele falou assim: “primeiro você tem que falar com sua mãe e você não pode falar isso para ninguém, eu só venho aqui nas férias, então você vem três vezes na semana. Então, comecei a treinar, quando ele precisava voltar para Salvador ele deixava tudo escritos os movimentos os exercícios que eu tinha que fazer, eu treinava e obedecia. Aí, comecei a treinar com Roxinha, mas ele me proibiu de contar. Naquela época, eu não entendia o porquê, mas depois eu tomei consciência disso “a capoeira era seu segredo, a capoeira era o segredo! (MESTRE EDMUNDO, 2016).

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Pouco mais de sete décadas depois da Abolição da escravatura, Cuiabá estava em

pleno desenvolvimento, nesse contexto, surgiu na Rua 24 de Outubro os primeiros

movimentos da capoeira, tal como demonstra o fragmento da narrativa da memória do mestre

Edmundo de Souza, quando foi perguntado qual era memória mais antiga que ele tem em

relação à capoeira.

O Mestre Edmundo revela com paixão seu início no universo e no caminhar da

capoeira em Mato Grosso. No momento em que relatou sua experiência, sua expressão facial

foi adquirindo traços de boas recordações, de quem tem muitas saudades da sua juventude

cheia de tramas, memórias, às vezes difusas, às vezes nítidas e claras da infância, da

adolescência, ou seja, um corpo repleto de história e de cultura. Foi como se ele entrasse em

um grande portal por onde os pensamentos entram e saem, e as imagens saltassem no tempo e

se materializassem na realidade, onde o som do berimbau o remeteu a lugares e tempos

diferentes em sua inserção no mundo da capoeira.

As lembranças que acompanham essa memória foram tecidas pela vivência na

capoeira, pelo caminhar com seu professor Roxinha, que mesmo em período de férias, com

sua boa prática pedagógica vivida com o saudoso mestre Pastinha em Salvador, ajudaram

mestre Edmundo a perceber suas potencialidades, motivando-o a criar um grupo de capoeira

em Cuiabá. É justamente neste momento que se inicia a produção da história da capoeira,

rememorando as marcas deixadas pelas distintas aprendizagens.

A capoeira ―praticada em segredo‖ como foi mencionada pelo mestre, foi marcada

pela marginalização, preconceito e perseguição sem par pela classe dominante. Cabe não

perdermos de vista a estratégia do ―segredo‖ como forma de resistir a toda sorte de

perseguição em um período cujas manifestações discriminatórias eram fortalecidas por uma

cultura dominante, uma educação eurocêntrica, uma experiência social e política dominante e

unilateral que quase nunca tratava da realidade social e suas diversidades.

A capoeira de outrora é uma postura de enfrentamento à dominação e às instituições

governamentais, a rebeldia e a vadiagem dos capoeiristas servem de elementos de superação

do autoritarismo da ordem sócio-política e contribuem para criação de uma outra realidade

nas relações de poder (Zulu 1995), ou seja, reinventar-se a partir dessa resistência que integra

um poder popular, dessa manifestação da cultura afro-brasileira que Freire (1985) classifica

como uma afronta ao poder de dominação: ―É a partir desse poder, que eu chamaria de

primário, que o poder e a luta pelo poder têm de ser reinventados‖ (1985, p.40). Esta outra

realidade nas relações de poder é um elemento gerador e tático da capoeira, a malícia assume

o sentido de luta pela resistência através de fintas, esquivas, negaças, balanços, movimentos e

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trejeitos, hipnotizando a atenção do adversário para caracterização de ataque certeiro e

desconcertante.

Apesar da dificuldade de estabelecer uma escrita livre e complexa a fim de expressar

reflexões mentais, pode-se aprender muito sobre a importância do ensino por meio da

―malícia‖ e da ―malandragem‖ vivenciadas na capoeira, é somente através da experiência,

jamais de forma aligeirada e descontextualizada, mas numa espécie de sabedoria exclusiva

que apenas os velhos mestres da capoeira são capazes de expressar, pois carregam a malícia

consigo, enquanto um fundamento valioso e caro (SILVA 2012).

Segundo Mestre Edmundo, a capoeira foi criada para liberdade, não para agredir o

próximo, mas durante muito tempo ela foi incompreendida:

A capoeira não foi criada para bater em ninguém, mas quando alguém tentava obstruir a fuga, ai ele usava seu corpo, sua ginga, te dava um ponta pé, uma rasteira e ia embora, não ficava ali para te quebrar, não é essa a filosofia da capoeira. Ela foi criada não para você bate em dez homens, mas para dez homens não baterem em você, é essa a filosofia da capoeira. (EDMUNDO DE SOUZA, 2016)

Nas lembranças das práticas dos treinos dirigidos por seu professor, mestre Edmundo

dá uma demonstração das dificuldades que teve de superar.

Quando chegava o mês de dezembro, treinávamos janeiro, fevereiro e as aulas dele só começam em março era período que mais treinava, já em julho eram só vinte dias e nisso passaram dois anos.. Quando cheguei a vê-lo em Cuiabá novamente ele falou “Edmundo você está pronto, agora você pode ensinar dois amigos seus com esse processo básico, mas tem que ser dois que saiba guarda segredo igual a você porque vamos formar o primeiro grupo de capoeira de Cuiabá [...] eu chamei o Dalmo em segredo ele também se deslumbrou com capoeira, Dalmo passou a ser meu braço direito na capoeira (MESTRE EDMUNDO, 2016)

Observamos que, sempre que se avança na busca de sucessivos objetivos produzidos

pelo próprio aprendiz, esse campo vai se expandido nessa vontade de expandir, assim mestre

Edmundo convida outros para partilhar deste conhecimento em comunhão, ―caminhar com‖,

assim como expõe, também, o processo pelo qual criou o primeiro grupo de capoeira em

Cuiabá Mato Grosso, o grupo Iúna.

A continuidade de seus treinos, mesmo com a ausência de seu professor, era movida

por uma paixão que se deu no primeiro momento, do olhar, do sentir e da aproximação que se

acentuou ainda mais na própria ação de fazer capoeira e, conforme se pratica, reconhece ser

insuficiente o que busca no exercício de superação dos desafios, tal como relata:

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Em meados de 1968, por aí. Roxinha disse: “Você vai forma o primeiro grupo de capoeira de Cuiabá, mas de vagar”. Eu e Dalmo começamos intensificar os treinos e logo depois puxei o Eron e o Sombra. Em mais um ano na volta dele de Salvador ele me deu uma incumbência que eu já estava pronto para criar o primeiro grupo de capoeira em Cuiabá, ele me autorizou a criar e criei o grupo Iúna. (MESTRE EDMUNDO, 2016)

O depoimento do mestre Edmundo evidencia que no início da formação do Grupo

Iúna de Capoeira (1968) pode-se identificar a importância do envolvimento dos primeiros

alunos em todo o processo de criação de uma prática que deve ser ensinada de forma

integrada, por exemplo, enfatizando e priorizando o aprendizado sobre a centralidade nos

treinos, no cuidado, no tempo e no respeito sobre a função de promover por meio do jogo e do

treino a possibilidade de juntos criarem o grupo Iúna no fundo do quintal de sua casa na Rua

24 de outubro:

Lá no quintal de casa, falei com mamãe e meus irmãos se podia cimentar para montar

academia de capoeira. A primeira academia de capoeira de Cuiabá foi na rua 24 de Outubro. Morávamo-nos em frente do Armazém Futurista que era dos pais do Jaime Campos, na minha frente morava o Antero Paz de Barros e na esquina Roberto França. (MESTRE EDMUNDO, 2016)

A rua 24 de Outubro é conhecida em Cuiabá como o berço de figuras políticas que

fizeram parte da história do estado. É curioso que, mesmo surgindo no meio desse reduto de

personagens responsáveis pela elaboração e implementação de políticas públicas, a capoeira

não tenha tido atenção e muito menos o desenvolvimento necessário, tal qual se desejava,

culminando num processo de muita luta até mesmo por espaços físicos.

Assim, quando mestre Edmundo faz referência ao significado do nome do Grupo Iúna,

ele está falando de um pássaro que voa e canta pela liberdade, por espaço, por diversidade e

em especial pela capoeira, vejamos:

Quem canta bonito? Quem joga bonito? (coro respondia) É Iúna! Cruzar o céu, cruzar o mar É Iúna! Iúnaa! Iúnaeee! Iúnaaaa! Iúnaeee! Iúnaeee! Iúnaaaa! Quem canta bonito? Quem joga bonito? É Iúna! Cruzar o céu, cruzar o mar É Iúna! Iúnaa! Iúnaeee! Iúnaaaa!” - Ai Raimundinho fez uma segunda estrofe:

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A liberdade arrebenta as correntes Fortalece de paz o meu coração Só entra na roda porque somos irmãos Iúnaa! Iúnaeee! Iúnaaaa!Iúnaeee! Iúnaeee! Iúnaaaa! (MESTRE EDMUNDO, 2016)

Mestre Lindomar, nascido no ano do golpe militar ocorrido no Brasil, em 1964, é

professor de Educação Física formado pela UFMT, com Especialização em Lazer e Recreação

também pela UFMT, exerce a função de diretor da Escola Municipal de Educação (SMEC)

Floriano Bocheneki, no Bairro Parque Atalaia Cuiabá-MT. Dos 52 (cinquenta e dois) anos de

vida, 39 anos (trinta e nove) foram dedicados à prática efetiva da capoeira. O início se deu no

ano de 1977 no Distrito Federal, mais especificamente, no Colégio Agrícola da cidade de

Planaltina, orientado pelo mestre Zulu, cuja contribuição para a história da capoeira é

significativa na rede oficial de ensino do Distrito Federal. A participação de seu mestre de

capoeira – um professor aguerrido e comprometido em expandir o ensino da capoeira na rede

de ensino do Distrito Federal – irá permear sua vida em diversos aspectos, “A gente nunca

tinha ouvido falar de capoeira naquela época, nos espelhávamos muito no mestre, além de

ser um educador ele ensina mesmo era capoeira regional. Se eu não falhe a memória foi no

ano de 1977” [...] (MESTRE LINDOMAR, 2016). Falcão (1996) revela o protagonismo do

Mestre Zulu na luta pela capoeira em espaços educacionais ao dizer que esta:

[...] tem sua origem nas iniciativas implementadas por Mestre Zulu, no Colégio Agrícola de Brasília, nos idos de 1972. Após acumular vasta experiência no universo da capoeira, a princípio informalmente, o mestre Zulu dedicou-se a vários estudos com a intenção de promover a implementação desta prática nas escolas públicas do Distrito Federal. (1996, p. 14)

Em Cuiabá, Mestre Lindomar irá desempenhar um papel muito importante na

construção e desenvolvimento da capoeira, começando pelo longo tempo em que foi professor

de capoeira no SESC Porto, situado na região central da capital do estado. Segundo ele, foram

20 anos, seis meses e quinze dias, tempo este que garantiu uma vasta experiência conquistada

pela inserção e participação em eventos de capoeira em Cuiabá. O mesmo foi pioneiro em

organizar eventos de capoeira na década de noventa em forma de gincana, a fim de estimular

o jogo cooperativo, a formação e o debate, tal como demonstra a Gincapoeira, o Simpósio

Cuiabano de Capoeira, o Festival SESC de Capoeira, a Conexão Bahia, o Workshop de

Capoeira Angola e tantos outros, ―uma capoeira de paz, de festança, mas dialogada entre os

capoeiristas‖ (MESTRE LINDOMAR, 2016).

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Ao falar sobre o seu início no universo da capoeira, demonstra muita emoção e

entusiasmo ao expor suas recordações quando era ainda um iniciante.

Eu cheguei a Cuiabá em 1983 pra fazer faculdade e, aí, tinha poucos capoeiristas que eu conhecia. Como eu vivia mais dentro da universidade, eu comecei a pegar bolsas de estudos. Em uma certa oportunidade eu conheci o mestre Edmundo, Edmundo Souza que é professor da universidade. Eu tive a oportunidade de conhecer ele e lá ele tava fazendo mestrado e teve que sair e me falou “olha como você tem a bolsa de estudo, que seria interessante você montar um grupo só de universitário”. Aí, eu topei e iniciei como estagiário lá na faculdade [...] (MESTRE LINDOMAR, 2016)

O movimento da capoeira do Mestre Lindomar ocorre numa dialética em que não é a

circularidade do movimento que é linear, mas sim a continuidade do jogo na vida e na roda de

capoeira.

[...] E quando foi em 92, decidimos a criar o Grupo Kizomba. A gente não só trabalhava a capoeira Angola, mas trabalhávamos as duas capoeira: Angola e Regional. É porque, antes, nós tínhamos contatado com os mestres da Bahia, a gente já tinha uma ligação muito grande com alguns mestres lá de Salvador. Em 92, criamos o Grupo de Capoeira Kizomba que foi uma referência em fazer eventos de capoeira em Cuiabá. (MESTRE LINDOMAR, 2016)

Este grupo se origina como Capoeira Kizomba, unindo o estilo Regional e Angola. Em

1994, criam o ―Grupo Kizomba‖, que trabalharia apenas o segundo estilo, a capoeira mãe,

Angola. Esta opção pela capoeira Angola vem do contato com grupos na Bahia, tal como ele

nos relata:

Já em 94 decidimos deixar o Grupo Kizomba somente com a capoeira Angola, resolvemos só fazer capoeira angola, fomos esquecer o passado. Sentamos com os alunos mais velhos e falamos quem quiser ficar aqui a partir de agora vamos trabalhar só capoeira Angola, quem não quiser pode ficar à vontade para procurar outro grupo para treinar! Só não pare com capoeira, quem realmente gosta da capoeira vai se dá bem! Alguns se deram bem, uns continuaram outros pararam, mas essa foi a história da criação do grupo Kizomba de capoeira Angola, o Kizomba significa a festa do povo, ali todos poderia entrar, sai, jogar e brincar sem está preocupado com bandeiras de grupo ou estilo de capoeira. (MESTRE LINDOMAR, 2016)

A experiência que teve com a Capoeira Regional na época não foi muito positiva, pois

havia muitos conflitos de grupos. O Grupo Kizomba de Capoeira Angola trouxe essa

referência de aproximar, transmitir, compartilhar valores de união entre os grupos, visto que

era já uma forma de organizar eventos em jogos cooperativos e estes foram criando redes de

formação técnicas, debates e estudos sobre a Capoeira Angola, ampliando, dessa forma,

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saberes e fazeres de uma prática corporal da cultura afro-brasileira. Mestre Falcão em sua tese

de doutorado afirma que:

[...] o processo de afirmação identitária da capoeira sempre envolveu disputas internas no contexto tanto de ―angoleiros‖ como de ―regionais‖, bem como entre essas duas consagradas vertentes, demonstrando a complexidade e as contradições das relações sociais, mesmo no âmbito de uma única manifestação cultural. (FALCÃO, 2004, p. 41)

Ao referir seu início na capoeiragem dentro da capoeira Angola, suas mudanças e sua

busca pelo conhecimento sempre estiveram presentes em sua caminhada. Influenciado pela

aproximação com mestre Bobó, sua fala desvela o interesse e a preferência pela capoeira

Angola:

[...] minha vida capoeirista na Angola, foi com mestre Bobó de Salvador, eu ia sempre para Salvador fazer os trabalhos com ele, numa fase que estávamos bem influenciados e trabalhando com a Capoeira Angola [...] me espelhava muito nos trabalhos do mestre Bobó que era um excelente mestre. (MESTRE LINDOMAR, 2016)

Os conflitos entre os grupos são inerentes a um processo vivenciado por um povo que

sempre lutou pela liberdade e justiça, que cheio de graça construiu e reelaborou valores

culturais que marcam as relações étnico-raciais brasileiras. É a ginga que dialoga através das

práticas, lutas e resistências entre os diversos grupos participantes da pesquisa. Trata-se de

diversidades a serem investigadas e consideradas para a construção de um projeto de

Educação, de um país mais justo.

Antes de apresentar o Mestre Rayovac, apelido concedido devido à velocidade com a

qual executava seus golpes nas rodas de capoeira, é preciso que não percamos de vista que

vivemos em um cenário de crescentes e aceleradas trocas culturais que nos obrigam, do ponto

de vista epistemológico e enquanto pesquisadores e produtores de cultura, a refazer ou refletir

sobre as alterações ocorridas nos mapas culturais. Isto significa ou exige antes de tudo que

(re)pensemos a cultura em seus aspectos conceituais e/ou práticos, direcionando-nos para os

avanços imbuídos do sentido e compreensão da multiculturalidade em voga, além da demanda

pela implementação de práticas educacionais que sejam multiculturais e críticas. Como já

sinalizamos através das concepções de Hall (1997), faz-se necessária, inicialmente, a

compreensão da cultura enquanto a construção social que representa, uma vez que ela é parte

de uma realidade histórica onde também se apresenta como espaço de disputa por poderes, em

linhas gerais simbólicos, a fim de se estabelecer uma correspondência intrínseca entre cultura

e identidade.

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No entanto, em meio a esse processo de Globalização que tudo mercantiliza, nos

vemos em meio a intensos debates sobre identidades27, reconhecimento, redistribuição e a

busca por uma sociedade que tenha sentido, onde toda sua produção não venha a se resumir

em acúmulo de capital. Neste sentido, para tratar da valorização da capoeira, do

enfrentamento dos trabalhadores desta cultura no mundo profissional ou da disseminação da

mesma, dialogamos com Castells (1999), que nos alerta para a necessidade de nos

debruçarmos sobre a identidade religiosa nacional, regional e étnica das sociedades se de fato

quisermos compreender a política nos dias atuais. Para este autor, a construção da vida social,

em todos os âmbitos, e em torno de identidades coletivas, é a regra. A única exceção fica por

conta das sociedades que surgiram ou foram forjadas em prol do capitalismo e do estatismo na

época industrial, utilizando-se da expressão colonial para se expandirem.

Lucimar da Cruz Sousa, conhecido no mundo da capoeira como mestre Rayovac,

músico percussionista e artesão, nascido em Goiânia-GO em 1969, residiu na Espanha por 10

(dez) anos, mais precisamente na cidade de Valência, onde desenvolveu trabalhos com a

prática corporal da cultura afro-brasileira em várias instituições culturais, sociais e

educacionais naquele país. Iniciou-se na capoeira no ano de 1974 com Mestre Sabú, com

apenas 5 (cinco) anos de idade, na Feira Hippie de Goiânia, local onde seu mestre fazia

apresentações, vendia instrumentos e organizava rodas de capoeira. Foi um dos precursores,

ao lado de alguns Mestres, a empregar a graduação de capoeira em Cuiabá. Esta novidade na

década de noventa traz a corda na cintura em cores e formas diferentes para que com cada

graduação obtenha-se um grau de amadurecimento e compromisso condizentes com a

capoeira.

Misturando sonhos, desejos, inquietações, temores, mesclados a incertezas, o mestre

Rayovac vem tecendo conhecimentos há mais de 30 (trinta) anos na capoeira mato-grossense.

Revela que, embora tenha se tornado mestre muito cedo, teve de lutar muito para se manter:

Eu me formei nos anos 80 a mestre com 15 anos, daí em diante comecei a viajar na capoeira no Rio de Janeiro. Assim, eu me formei com 15 anos na Capoeira Angola conheci outros mestres dentro da capoeira aprendi muito, posso dizer que tive dois mestres, um da Capoeira Angola e um da Capoeira Regional. O primeiro foi o mestre Sabú que foi o primeiro mestre que conheci e o mestre Caravela que vem da Capoeira Regional grupo Senzala de Santos SP que também me formei com ele a mestre, isso aconteceu tudo em Goiânia. (MESTRE RAYOVAC, 2016).

27

Castells (1998, p.23) a respeito da identidade concorda que, do ponto de vista socioló gico, esta é socialmente

construída. Mas alerta para ―[...] a principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de quê, por

quem, e para quê isso acontece.

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Formado em dois estilos de capoeira diferentes e provenientes de dois mestres,

entende que, mesmo em suas diferenças, elas são complementares, uma vez que foi da

capoeira Angola que se originou a Capoeira Regional por mestre Bimba, ou seja, uma

depende da outra para sobreviver.

É importante destacar que o mestre saiu de Goiânia em 1987 para viver em Cuiabá,

levando a lembrança de seus pais e de seus 22 irmãos, além da saudade dos mestres que o

iniciaram no mundo da capoeira.

Logo no final dos anos 1987/88 decidi fazer meu trabalho independente. Meu primeiro

grupo de capoeira que criei foi Associação de Capoeira Angola Diamante Negro, fiquei com esse grupo uns 10 anos em Cuiabá e depois criei o grupo Ganga Zumba que funcionou por muitos anos.(MESTRE RAYOVAC, 2016)

Na tentativa de conquistar sua autonomia e autoria através do trabalho com a capoeira,

o mestre buscou formar seu próprio grupo e em seguida foi criando outros. Este processo é

fundamental para afirmação e preservação de seus fundamentos capoeirísticos, pois assim é

possível dar continuidade e seguimento às longas aprendizagens vivenciadas ao longo da vida,

e partir das quais irá transmiti- las a seu grupo. Este procedimento requer, necessariamente,

um conjunto de normas, valores e regras para seu desenvolvimento.

A década de 90 em Cuiabá ficou marcada como um período de expansão dos grupos

de capoeira, onde pequenos grupos começaram a se filiar a outros, assumindo uma dimensão

maior, tal como ele relata:

E com a evolução da capoeira os grupos estavam crescendo, surgindo muitas formas de trabalhar e os grupos estavam se filiando. Como eu tinha uma ligação com a capoeira de Goiânia e com mestre Suíno eu dava aula no setor universitário e mestre Suíno também dava aula no setor universitário no SESC. Então, decidi fazer parte de um grupo que estava começando na época que só tinha em Goiânia não tinha em outro estado que o grupo Candeias entrei para grupo como mestre e não como aluno ou formado do mestre Suíno, mas sim como integrante mestre do grupo na bancada de mestre, e fiquei neste grupo 12 anos pertencendo, levando essa bandeira. (MESTRE RAYOVAC, 2016)

Verifica-se a busca por acompanhar a complexidade e a dinamicidade da capoeira,

cuja mobilidade se expressa, horizontalmente, pelos trânsitos e fluxos dos capoeiras em todo

Brasil e no mundo.

A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimento a partir de novas experiências

são os principais motivos que levaram o mestre Rayovac a deixar o Brasil e a se jogar em

promessas incertas de vida boa na Espanha, mais especificamente na Cidade de Valência, e a

retomar um trabalho independente em outro país:

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Quando foi em 2005 eu resolvi desligar deste grupo e criar meu trabalho independente. Fiz uma pesquisa a fundo para construir esse novo grupo com novo nome. Em 2005, já fazia um ano que estava na Espanha e nisso senti a necessidade criar um novo grupo chamada Aldeia de Bambas (Associação Aldeia de Bambas de Capoeira). Hoje estamos com o grupo Aldeia de Bamba em vários estados e em alguns países, na Suíça, Hungria, França, Espanha, Holanda e Tóquio. Estamos tentando levar a capoeira para o mundo. (MESTRE RAYOVAC, 2016)

Logo cedo partiu para São Paulo e depois para Espanha, treinando e ensinando

capoeira ao lado de renomados mestres. Ao retornar a Cuiabá em 2015, recomeça seu trabalho

formando novos capoeiristas, refazendo outros, buscando novos espaços e retomando os

antigos, pois ―[...] o capoeirista deve estar sempre disposto a recomeçar, pois nem pai e mãe

segura seu filho, imagina um mestre de capoeira, podemos sim, deixar marcas que ajudará a

superar alguns desafios na vida, se vai ficar? Eu não sei, só ele saberá” (MESTRE

RAYOVAC, 2016). Assim, neste recomeço na capital de Mato Grosso, desenvolvendo sua

capoeira, ele está tecendo e criando redes entre outros grupos e a Associação Aldeia de

Bambas - celeiro de bambas.

Em seu retorno, o mestre trouxe experiências e vivências da capoeira e da música em

outros países. Ele enfatiza que, o retorno ao Brasil, em especial a Cuiabá, se deu por conta da

capoeira “[...] para fazer um capoeirista lá demora 10 (dez) anos, eu aqui demoro 5 (cinco)

anos. Eu voltei mesmo foi pela capoeira, não foi a questão financeira, não foi a questão da

convivência e nem a nossa cultura, porque a gente tem que adaptar aonde está vivendo”

(MESTRE RAYOVAC, 2016).

Na oportunidade em que conheci o Mestre Rayovac, desfrutei de sua experiência de

vida na capoeira, e nesse momento de papoeira ele nos trouxe uma importante reflexão sobre

a capoeira em sua vida:

A Minha Vida e as Três Fases na Capoeira: primeiro contato é visual: ele vê a capoeira.

O segundo contato: é conviver a capoeira. Porque ele vê a capoeira que é o primeiro contato e depois ele quer conviver, buscar fazer parte daquela manifestação cultural vai procurar alguém para treinar, fazer aula, então ele vai começar a conviver naquele mundo da capoeira. A parte mais complicada com quase 40 anos que tenho de experiência com a capoeira é viver a capoeira, quem vive a capoeira é só quem tem seguidores, uma pessoa que não dá aula: ele joga capoeira, vai aos eventos e nas rodas ele curte e convive a capoeira. E viver a capoeira e só quem tem seguidores que na minha visão, é só quem dá aula. Ou seja, é a pessoa passar o que os grandes mestres ensinaram, é fato que os novos mestres fazem isso hoje também. Eu posso viver a capoeira hoje, dando aulas onde continuo passando as coisas que o mestre passou até o momento que eu quiser. Portanto vai chegar o momento que, alias, não quero que esse momento chegue, mas pode ser que ele chegue, o momento que não vou mais querer viver a capoeira, ou seja, eu vou querer conviver na capoeira, e não viver. Porque viver a capoeira é você viver as decepções, as trairagens e as alegrias que a capoeira ti dá, isso é viver a capoeira! Certamente, não é simplesmente estar em São Paulo, no Rio de Janeiro, Minhas

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Gerais, Goiânia e nos Estados Unidos nos eventos de capoeira jogando capoeira, que neste caso, você está convivendo a capoeira, agora viver a capoeira é quando você tem seguidores quando você dá aula. (MESTRE RAYOVAC, 2016)

Os conhecimentos e aprendizagens expressos pelo mestre são vivenciados tanto na

vida como em vida, isto é, não há diferença entre o jogo da capoeira e a própria vida. A

capoeira é a vida do mestre, construída através dos toques e ritmos dos instrumentos, das

distintas músicas e cantigas, revelando-se, principalmente, através da linguagem corporal

expressa pelo mestre. Este jogo favorece e auxilia o capoeira ao longo de sua trajetória, no

enfrentamento de obstáculos e dificuldades que devem ser encarados. Atitudes serão tomadas

a fim de que ele, Mestre Rayovac, compreenda o momento certo de ser mais ousado ou mais

prudente, utilizando-se, assim, dos recursos adquiridos e aprimorados em suas vivências e nas

observações em sua ―volta do mundo28‖, tanto dentro da roda de capoeira como na vida.

Como uma ginga, ora avança, ora recua e ora se esquiva de tudo com cautela e paciência.

Demétrius Pereira dos Santos, nascido em 1979 no Rio de Janeiro, conhecido como

Mestre Demétrius, ficou conhecido por levar a capoeira mato-grossense para os Estados

Unidos. Iniciou-se na capoeira em 1984/85, em Cuiabá-MT, na Academia União de Artes

Marciais e Associação Lídio e Filho com o mestre Lídio, sendo este reconhecido por

institucionalizar a Federação Mato-grossense de Capoeira e levá-la a mais de 30 municípios

dentro do estado.

Em 2004, mestre Demétrius recebeu uma proposta para ensinar capoeira no exterior, e,

sua chegada aos Estados Unidos, mais especificamente ao Texas, foi uma experiência boa,

pois, segundo ele, fora bem recebido pelos americanos. Lá, destacou-se pela forma plástica,

objetiva e de bastante leveza com que jogava capoeira. Hoje está morando nos Estados

Unidos e a cada 4 (quatro) meses volta para Cuiabá, onde mantém casa, família e discípulos

que o seguem com seus ensinamentos e fundamentos na capoeiragem.

O material didático de seu grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira indica que seus

fundamentos estão centrados na proposta de ensino para a formação de discípulos que

valorizem seu aprendizado particular, suas experiências pessoais, os ensinamentos de seu

Mestre e sua identidade histórica e cultural, aprendendo a conhecer e respeitar a história da

capoeira por meio da história de seu Mestre, partindo de sua comunidade, do local em que

28 ―Volta do mundo‖ é uma terminologia utilizada pelos capoeiristas para designar uma parada no jogo. Parada

esta que pode ser para descansar, ou por uma situação inusitada ocorrida dentro da roda, como uma rasteira ou

um golpe sofrido. Ela se inicia circulando no sentido anti-horário, para depois recomeçarem a jogar. Termo este

que é utilizado também como metáfora, para se falar de fatos e acontecimentos que com o passar do tempo

tiveram outro desfecho, GONÇALVES, (2012, p. 61).

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nasceu e vive, valorizando o caráter ritual, ao identificar e reinventar tradições e, acima de

tudo, ao trilhar de forma integral o caminho que o tornará Mestre.

Figura 2 Curso de Capacitação Grupo Aruandê

Fonte – Arquivo Grupo Aruandê, 2015.

O mestre Demétrius nos recebe em sua casa de portas abertas no ato da entrevista.

Identificamos isso quando pega, de imediato, o seu berimbau Gunga e entoa ―Um boa noite

pra quem é de boa noite... A gente vai ficar à vontade porque é, mais ou menos assim: Quem

vem lá sou eu! Quem vem Lá sou eu! Berimbau bateu! Capoeira sou eu!” (MESTRE

DEMÉTRIUS, 2016).

Neste momento havia um pandeiro ao meu lado, passei a ajudá-lo na execução dos

instrumentos e comecei a tocá-lo, aguardando o instante de responder o coro que deve cantar:

―Quem vem Lá sou eu! Quem vem Lá sou eu! Berimbau bateu! Capoeira sou eu!”. Em

seguida passamos à entrevista, e a cada momento que o pesquisador lhe fazia perguntas

referentes aos fatos históricos da capoeira mato-grossense, ele sempre respondia com muita

arte e uma alegria contagiante através de uma música de capoeira, tal como no momento de

falar de seu mestre:

Meu mestre, eu sinto saudade Meu mestre me ensinou a jogar Buscando conhecimento Em todo mundo pra poder ensinar O mestre falou para mim: Oi menino, não faça besteira Ele me estendeu a mão Me tirou da rua, e ensinou capoeira Meu mestre já rodou o Brasil O mestre tá rodando o mundo

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Hoje eu me lembro do mestre Em todas as rodas a cada segundo Tocando o seu berimbau Cantando com sentimento Na roda o jogando Benguela o jogo De angola e o jogo dentro. Autor e Cantor: mestre Bicudo; Capoeira Regional; Grupo: Aruandê)

O Mestre Demétrius, ao recordar sobre seus primeiros contatos com a capoeira, afirma

que:

A lembrança que eu tenho na verdade da história que hoje eu faço parte, - que eu ajudo a escrever a história do estado de Mato Grosso- é dos abadás feitos de saco! De saco! De açúcar, né? Que batia um pouco abaixo do joelho no meio da canela assim, né? Bem parecido com a calça do pescador. E essa calça era a roupa do capoeirista na época, não se usava, não tinha muito a tradição de se usar camiseta [...] em meados entre 1984/85 eu tive o primeiro contato com a capoeira, comecei a capoeira com mestre Lídio Filho que foi em Várzea Grande, depois de eu ver uma apresentação deles no centro de Várzea Grande. (MESTRE DEMÉTRIUS, 2016)

No contexto de organização para ter sua autonomia, o mestre treinou por certo período

com mestre Lídio até se formar professor. Assim que se formou, sentiu a necessidade de ter

seu próprio trabalho, movido por essa força motriz, ele criou seu grupo, mas conservou seu

mestre como patrono seu patrono:

Nessa época você se formava e tinha autonomia de fazer sua história na capoeira. Então, quando me formei na corda azul que era aluno formado, foi quando comecei a dar aula, eu levava nome de Associação de Capoeira Nova Geração. Assim, cada um que se formava tinha como mestre o seu mestre normal. [...] Depois dos anos 90 pra cá, a capoeira ganhou uma proporção gigantesca e começaram a surgir grupos que usava só uma bandeira, que se espalhava pelo mundo. (MESTRE DEMÉTRIUS, 2016)

Em 1994 Mestre Demétrius, participou de um evento de capoeira em Governador

Valadares-MG, onde conheceu Manuel Januario Leite, o mestre Loka, que fez- lhe um convite

para fazer parte do Grupo Capuraginga. Aceito o convite, passou a proporcionar sabedoria

dentro da capoeira enriquecendo seu profissionalismo e fazendo o que mais gosta de fazer:

ensinar a capoeira. Antes de estabelecer um vínculo maior com EUA, passa por países como

Israel, Holanda, Alemanha e Suíça, promovendo cursos de capoeira. Somente em 2003 é que

vai morar no Texas, Estados Unidos, o que, segundo ele revelou-se como uma ótima

experiência. No entanto, relata uma certa resistência do presidente do grupo, um

estadunidense, ao qual o mestre era filiado.

Com transcorrer com tempo quando cheguei aos Estados Unidos, houve uma

preocupação com mestre Demétrius, dentro do Capuraginga que já fazia mais de 19 anos fazendo parte dessa família, eu comecei ter uma visão diferente e passei por certa

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pressão. Por não ser americano, os americanos que faziam parte e fazem parte até hoje com meu mestre, acharam por bem querer ditar o que o mestre Demétrius iria ter que fazer nos Estados Unidos: para onde ele ia, se ele ia viajar, o que fizesse era preciso de autorização deles. Eu, não concordei muito porque a gente sempre foi livre. E não tinha o porquê disso. E aí, acabei tendo uns problemas políticos dentro do trabalho do Capuraginga o qual o mestre Loka achou por bem, eu segui minha vida capoeirística já que eu era uma pessoa formada, já tinha meus conhecimentos. (MESTRE DEMÉTRUS, 2016)

Movido por tais conflitos, Mestre Demétrius desliga-se desse grupo de capoeira,

criando, depois de longos estudos e discussões, o Centro Cultural Aruandê Capoeira. O que se

manifesta em sua fala é corroborado por meio da ladainha:

Uma família que é berço de bamba E manteve suas gerações Um mestre que saiu pelo mundo Pensando em que ia fazer Confiou em sua vivência Pra fazer sua criação Viajou com seus antepassados Foi pra LUANDA encontrar seus irmãos Teve que dar a volta por cima Em sua batalha pra poder vencer E criou sua escola de bamba Inversão de Luanda é Aruandê. Olha nego fugindo pra sobreviver Sou capoeira sou Aruandê Sou capoeira sou Aruandê (Hino do grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira) (Autor: Mestre BICUDO Aruandê)

O fato é que os mestres da capoeira mato-grossense vêm desenvolvendo trabalhos que

se consolidam a partir de ações e eventos nos quais participam representantes das

―academias‖, de diferentes grupos organizados e de várias organizações institucionalizadas ou

não, escolarizadas ou não, mas que adquirem/constroem competências e redes necessárias

para se inserirem nas novas dimensões estruturantes do sistema capitalista. Como apontamos,

Hall (2000) entende que as identidades nacionais são formadas e transformadas no interior de

um sistema de representação, além de uma entidade política, constituindo uma comunidade

simbólica (ou seja, que produz sentidos). Ele discute como essa identidade se figura como

narração e se é homogênea e unificada de fato para tratar de seus deslocamentos, que

ocorrem devido a globalização (força que desloca a cultura nacional e a identidade

proveniente dela), em um movimento dialético de autonomia nacional e globalização.

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Figura 3 Evento Grupo Sendero com mais de 14 (quatorze) representantes de grupos diferentes

Fonte - Arquivo pessoal. Portela, 2015.

Percebemos, neste momento em que as narrativas apresentam memórias dos mestres

de capoeira entrevistados, a ressignificação do passado recente desta cultura em Mato Grosso,

considerando-as enquanto memórias coletivas múltiplas, sabendo que cada mestre carrega sua

memória a partir da história de seu grupo, das imagens e acontecimentos que guardam

consigo.

Jocelmo Barbosa Borges (Contramestre Biro), natural de Barra do Garças-MT, nasceu

em 1974, graduou-se em Licenciatura em Educação Física pela UFMT, e possui

Especialização em Educação Física, Escolar e Lazer, também pela UFMT, exercendo sua

função de presidente do SINTRAE/MT (Sindicato dos trabalhadores em estabelecimentos de

ensino do Estado de Mato Grosso), no Bairro Lixeira Cuiabá-MT. Sua prática efetiva da

capoeira completa 21 (vinte e um) anos de dedicação, tempo em que pôde, inclusive, exercer

a função de presidente da Federação Mato-grossense de Capoeira na gestão 2010/2014. Atua

como presidente da Associação Sendero Capoeira Criado em Cuiabá/MT e conta que iniciou-

se na Capoeira em 1995, através do Projeto Iúna (UFMT/Cuiabá), orientado pelo mestre

Edmundo.

Sempre tive desejo em praticar capoeira. Eu iniciei a capoeira em Cuiabá na UFMT em 1995. Quando eu vim para Cuiabá, saindo de Barra do Garças que eu cheguei na Universidade Federal de Mato Grosso eu encontrei o Edmundo de Souza (professor) que na oportunidade era e continua sendo professor na UFMT, ele iniciou um projeto de capoeira dentro da UFMT, como eu morava em Várgea Grande e as aulas de capoeira era a tarde eu já permanecia na instituição, eu estudava no período da manhã e esperava as aulas de capoeira que eram no período da tarde. Em Agosto de 1995 foi quando eu iniciei na capoeira então, já faz 21 anos de práticas de capoeira e Edmundo de Souza meu

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mestre que me iniciou na capoeira. Então de lá para cá eu permaneci na capoeira (CONTRAMESTRE BIRO, 2015).

Ao considerar os homens como sujeitos da História, estamos considerando a forma de

ser, fazer, sentir e como se ver no mundo, um ser presente na história cotidiana da vida, assim

o contramestre Biro se faz presente na história da capoeira em Cuiabá.

Além de sua trajetória dentro do universo da capoeiragem mato-grossense, o

Contramestre Biro discorre sobre o seu primeiro contato com o Mestre Edmundo dentro da

universidade, e a despeito de ter tido contato com outros mestre, Mestre Edmundo continua

sendo o seu mestre até hoje, é justamente aquele que o inicia na capoeira que permanece

como referencial. Expõe a sua visão pessoal sobre a sua caminhada na capoeiragem:

Mas a minha vida de capoeira é essa aí: estou ai há 21 (vinte e um anos). Eu não sei do

futuro, meu mestre que dirá, mas esse ano fiquei muito feliz, pois de fato recebi o reconhecimento da comunidade capoeirista de Contramestre de Capoeira. O evento aconteceu no Colégio Coração de Jesus no dia 11 de outubro de 2015 às 17h 30. Nesse evento contou com 14 grupos de capoeira participante do evento. Com a participação de tantos grupos de capoeira é um reconhecimento da comunidade que me reconhece como contramestre. Neste dia teve o ritual da minha formatura onde peguei a corda Vermelha/Marrom de Contramestre... Foi um dos momentos mais importante da vida de um capoeirista. [...] mesmo que eu não me preocupo muito com essa titulação, portanto, o ruim do titulo é que têm coisas que você pode fazer e têm coisas que você não pode, às vezes eu vi muita gente ai que iniciou depois de mim, que já são mestrandos ou contramestre hoje na capoeira, então chega a um determinado local que essa patente essa graduação ela tem um peso, uma roda só de mestres e mestrandos aí aquele que começou bem depois de mim ele vai poder participar e eu não vou poder porque eu era professor, então isso pesa. (CONTRAMESTRE BIRO, 2016)

Ao narrar o seu início no universo da capoeira, ele nos remete a sua história de vida

justamente porque tais relatos de sua história de vida se entrelaçam com o da capoeira. Ao

falar das mudanças pelas quais a capoeira passou e continua a passar, o mesmo demonstra

certa apreensão em relação à importância que algumas pessoas têm dado, atualmente, à

graduação, deixando de lado o real aprendizado dos fundamentos da capoeira.

Adilson Domingos dos Reis Filho (Instrutor Tuiuiú), nasceu em Cáceres-MT no dia 11

de outubro de 1975. Possui Licenciatura Plena em Educação Física pela UFMT, Mestrado em

Biociências pela FANUT/UFMT, na linha de pesquisa Nutrição, Exercício, Rendimento

Físico e Doenças Metabólicas. Exercendo a função de Personal Trainer e professor

universitário da Rede Privada. Em 1995, após ter chegado a Cuiabá-MT para completar seus

estudos, conheceu a capoeira por meio de uma roda realizada em uma academia de ginástica

sob o comando do graduado Vagalume (in memoriam). O professor, à época já graduado, lhe

fez um convite para a realização de uma aula experimental e, desde então, a capoeira começou

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a fazer parte da sua vida. Há 21 anos instrutor Tuiuiú é Instrutor do grupo na ABADÁ –

Capoeira (Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte-Capoeira).

Saindo do colégio Master ali no centro, aí um pessoal veio para bater em um menino lá e

aí estávamos eu e mais dois amigos saindo da escola, aí esse rapaz era amigo do meu colega, ele chegou na roda para conversa, e nisso mais de 30 pessoas chegaram na roda bateram nele. Nisso só sobrou pra mim, eles saíram correndo eu fiquei no meio da roda naquela bagunça. Então, eu não fazia nenhuma arte marcial até comecei fazer Karatê, quando tinha 8 (oito) anos de idade fiz até os noves logo eu parei, depois eu não fiz mais nada! Aí, pensei “poxa preciso fazer alguma coisa! Alguma arte marcial para poder no mínimo me defender”. (INSTRUTOR TUIUIÚ, 2015)

A procura por artes marciais como praticante na juventude foi motivadora para essa

aproximação com a capoeira. Assim, como um aprendiz em busca de um mestre que lhe guie,

conta-nos como foi esse percurso:

Chegando lá fiquei uma semana e aquelas contagem tudo em Coreano, ai pensei isso aqui

não é para mim não. Meu sangue brasileiro não bateu com isso não, achei bacana e tal! Até gostei da preparação física, mas a filosofia era muito militar. E esse mesmo colega meu falou que seu irmão dela fazia Kickbox na academia Jacarezinho, vai lá quem sabe você gosta do Kickbox. E nisso fui até lá, quem estava dando aula era o professor Feti que era referência para campeão mundial da época. Tentei treinar achei bacana, mas ainda não mexeu. [...] Lembro-me como se fosse hoje, numa terça feira dia 30 de maio de 1995 efetuei a matrícula na Academia Jacarezinho com finado Vagalume. (INSTRUTOR TUIUIÚ, 2015)

Neste fragmento de sua memória é revelado como o mesmo adentrou o universo da

capoeira através do contato com o professor Vagalume, um grande capoeirista temido e

lembrado por muitos devido a sua capoeira mais objetiva, rápida. Ele narra:

O finado Vagalume que foi meu professor era uma pessoa que precisava muito se auto-

afirma nas rodas de capoeira. Havia muita briga nas rodas em um determinado período da história da capoeira em Mato Grosso. A capoeira daquela época era muito atrasada, poucas pessoas viajavam para buscar melhoria que eu me lembro era o mestre Demétrius e Vagalume era que mais se diferenciava dos outros como: Rayovak, Edmundo, Sombra, Eron e outros em geral jogavam mais uma capoeira tradicional. Era uma capoeira ventilador, sem muita noção de chão, de técnica, era uma capoeira pouco avançada! (INSTRUTOR TUIUIÚ, 2015).

Outro fragmento importante que traz em sua fala diz respeito aos conflitos inerentes

que eram frequentes em algumas rodas na época e também em relação à importância do

capoeira em constante formação, nas vivências das viagens, treinos, rodas, momentos que na

capoeira se traduzem pela busca por ―fundamentos‖, e são também reforçados pelo jargão

popular no campo capoeirano de que ―quem viaja tem história para contar‖ ou seja, quando a

busca é constante há uma tentativa de jogar a capoeira a partir das referências de uma

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determinada época, vista aos olhos de hoje. Nesse sentido, o passado perpassa o presente, é

tensionado por este e é reconstruído em articulação com a perspectiva de futuro (FALCÃO,

2004).

Em dezembro de 1995, Adilson é batizado com o apelido de Tuiuiú, apelido este

dado na ocasião do batizado pelo Mestre Camisa, presidente da escola, uma das maiores

instituições de capoeira do mundo.

Quando eu fui pegar minha graduação, até meu apelido foi dado por mestre Camisa, no

dia do evento ele me chamou pelo nome e me perguntou você não tem apelido? Falei que tinham colocado Frank Stein, mas ele respondeu que não tinha nada a ver com capoeira, nisso mestre Camisa falou como chama aquele pássaro do Pantanal das pernas compridas meio desengonçado para voar? Tuiuiú ele perguntou para mim que achou? Falei que não poderia ser melhor, tem a ver com minha terra é uma ave símbolo do Pantanal. (INSTRUTOR TUIUIÚ, 2015)

Figura 4 Tuiuiú : troca de corda. Cuiabá, 1995.

Fonte - Arquivo pessoal. Tuiuiú, 2016.

Neste fragmento de sua memória é revelado como o mesmo adentrou o universo da

capoeira, o contato com o Mestre Camisa e a importância na escolha de seu apelido. Ao

discorrer sobre a sua história dentro do mundo da capoeira, expõe também a sua admiração e

o respeito ao mestre e a sua terra.

A capoeira mato-grossense é uma prática dos sujeitos presente na história da grande

Cuiabá que, a partir da década de 1990, com a expansão da capoeira no estado, Brasil e no

mundo, surgiu com novas representações por meio de mestres e professores mais recentes

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desta prática corporal da cultura afro-brasileira, contribuindo para que novas fontes possam

ser buscadas e utilizadas na pesquisa.

A história da capoeira em Mato Grosso ainda não pode ser estabelecida com precisão.

Como vimos no relato do Jornal O Mato Grosso, há indícios de capoeiragem desde 1838

segundo Alvino Souza Santos (Bidu) quando cita o professor Carlos Rosa. Outrossim, Mestre

Ivan, em uma papoeiragem, nos relata que na ―década de 1950 já tinha um negão que jogava

capoeira em uma malta que ficava na frente do Quadragésimo Quarto Batalhão de Infantaria

Motorizada”(Comunicação pessoal, 18 de agosto de 2015) e Edmundo discorre que seu avô

lhe contou uma história de que na “década de 40 e 50 ele viu no centro de Cuiabá na antiga

Praça Alencastro, a presença de um baiano que foi cercado por algumas pessoas e esse

baiano era um capoeirista. Ele viu esse homem bater em mais de 20 homens e sair livre‖.

Podemos identificar que, na Grande Cuiabá, a formação dos grupos de capoeira se

inicia a partir da década de 1960 com Mestre Edmundo, Mestre Rayovac (1984), Mestre Lídio

(1986), Mestre Eron (1989), Mestre Lindomar (1990), Mestre Demétrius (1991) e

Contramestre Biro (1995), ganhando segmentos, formando novos mestres, professores e

alunos graduados. Iniciou-se com o mestre Edmundo ao formar o grupo que deu continuidade

à formação de novos grupos de ensino e de difusão da prática corporal da cultura afro-

brasileira em Mato Grosso, no Brasil e no mundo.

2.2 A capoeira em Cuiabá: uma questão de raça e identidade

A capoeira na Grande Cuiabá retrata um dos espaços de convivência entre pessoas

que, por meio do jogo, da roda, do canto e dos instrumentos, promovem inteiração e

socialização de crianças, adolescentes, jovens e adultos de identidades e culturas diferentes.

Estes espaços são viabilizados pelas práticas corporais constitutivas da capoeira pois, sendo

ela uma manifestação cultural, através da transmissão dos gestos e do ritual, viabiliza as

estratégias educativas que favorecem o enfrentamento dos conflitos geradores de

discriminação e desigualdade sociocultural e histórica impostas aos descendentes de africanos

que nela se manifestam, conferindo- lhes uma identidade.

A pesquisa nos trouxe a compreensão de que a capoeira não se constitui em algo

estático; é um movimento tecido pelo corpo que viabiliza aos capoeiras se construírem

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mutuamente. Este espaço, outrossim, reproduz as formas de relações na sociedade, dentre elas

as raciais e identitárias.

Assim, a capoeira permeia este processo identitário e racial marcado por uma falsa

imagem de democracia racial e de identidade, a ideia de uma sociedade de relações racia is

harmoniosa e sem linha de cor é um mito mascarado, velado, dissimulado, disfarçado,

invisível, ameno e cordial (PINHO, 2007).

A edificação desta falsa imagem de democracia racial que reflete ilusoriamente um

paraíso no qual seria inconcebível a existência de qualquer forma de violência e de qualquer

forma de autoritarismo, confronta-se com o discurso das problemáticas enfrentadas pelo

segmento negro da sociedade tanto no campo individual como no coletivo, uma vez que esta

população é alvo de preconceitos raciais e de gênero, bem como pela negação do acesso às

condições socioeconômicas historicamente dignas.

Diante de uma das faces do mito de democracia racial, procuramos nesse tópico

verificar de que forma ele se evidencia dentro dos grupos investigados. Isto implica e dificulta

o entendimento da discriminação racial, sobretudo em relação ao reconhecimento das tensões

raciais estabelecidas na capoeira, em que determinadas relações são de negação de identidade

negra evidenciada pelo mascaramento ou silêncio ante a problemática racial nos espaços de

convivência e de roda. A história do negro ―escravo‖ contada como origem da capoeira não é

problematizada nem atualizada, pois se resume a manifestar uma visão romântica de um

tempo imemorável.

Incitados a falar sobre sua autodeclaração racial, somente alguns capoeiristas tecem

considerações que podemos identificar com os estudos e debates atuais :

Eu, na verdade, nunca fui uma pessoa... Na verdade assim de querer, não distinguir... Na verdade, eu não olho para esse lado de cores, mas eu falaria que... Vejo que a nossa raça negra! Porque não se dá... - Eu me lembro dentro dos meus conhecimentos, quando houve o descobrimento do Brasil, bem antes do descobrimento do Brasil... Algumas expedições queriam eliminar todas! Todas! Todas! As raças indígenas e negras, né? Pra se criar uma raça branca (batendo com dedo na mesa), só que isso não foi possível... Através de resistência, um monte de coisas... Isso manteve. Então é... Eu mesmo, até porque eu não sou... Acredito que todos somos nós somos descendente de africanos, quero dizer afro-brasileiro. Me considero negro! (MESTRE DEMÉTRIUS, 2016)

No primeiro e no segundo momento das falas de Mestre Demétrius, que por ter a

vivência num país marcado por especificidades racistas como os Estados Unidos, há vontade,

mas também uma dificuldade de apresentar, definir e de estabelecer a identificação cor/raça.

Processo comumente encontrado no país que, como ressaltamos em outros momentos neste

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trabalho, foi marcado pela negação de identidade da população negra e dos estigmas que a

obrigou a afastar-se do preto e aproximar-se do branco, para além das discriminações das

quais a Capoeira retrata o tempo todo.

Na terceira fala há um apelo à mestiçagem ainda recorrente como forma de sile nciar

ou lidar com a própria identificação. Para Munanga (2010, p. 445): ―O surgimento de uma

etnia brasileira, capaz de envolver e acolher a gente variada que no país se juntou, passa tanto

pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus quanto pela

indistinção entre as várias formas de mestiçagem‖.

Nas falas, observamos esse reposicionamento e reivindicação por uma identidade

negra, transformada pela história da negação das identidades negras e indígenas em prol de

uma aceitação calcada no embranquecimento e na classificação racial da ―cor parda‖. No

entanto, esse movimento não logrou o êxito almejado e acabou gerando muitas formas de

resistências, entre elas a capoeira, como uma forma de manter a identidade do corpo negro,

por suas práticas e rituais, por suas formas de educar e se relacionar, de se organizar e de

lutar.

Neste movimento surge o protagonismo do capoeirista que, ao conhecer sua história,

ao entender-se como produtor de uma cultura de luta pela liberdade histórica, encontra espaço

social para sua afirmação como sujeito histórico num processo de reconhecimento de

identidade ou identidades étnico-raciais.

Faz parte da tomada de consciência e identificação que foge aos aspectos negativos, a

Capoeira que se ressignifica por meio de recriações de padrões culturais ou estéticos que

confrontam as hegemonias em prol da negritude. Cabe lembrar que, os grupos que aqui são

tratados estão em constante diálogo com outros movimentos negros e de culturas afro-

brasileiras da cidade e, neste movimento, participam e se posicionam como expressão da arte

negra nos corpos capoeiras. Nas apresentações e vivências na cidade, os grupos acabam por se

reconhecerem ao serem reconhecidos como produtores de cultura afro-brasileira.

Através das entrevistas, verificamos, no entanto, algumas omissões nesta concepção

de harmonia e, portanto, faz-se necessário verificarmos como se elabora a ideia segundo a

qual, no Brasil, os negros representam o que se configurou chamar como ―classes perigosas‖

29. Ou seja, quando se diz que esse segmento da população produziria os elementos que

trariam desordem e insegurança à sociedade.

29

Gislene Aparecida dos Santos , em resumo de seu livro intitulado: ―Quando o negro ‗virou‘ sombra. A

produção de uma imagem negativa‖. Em sua pesquisa demonstra argumentos presentes na construção de uma

ideologia que inventa o ser negro como algo negativo e como esses argumentos se amoldaram no Brasil, onde

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Na entrevista feita com o Contramestre Biro, podemos evidenciar alguns elementos

que nos auxiliam a compreender melhor este movimento de cada pessoa e dos grupos:

Lá no período de repressão, quando a gente imaginava que a instalação da República pudesse trazer vida nova aos capoeiristas não foi bem assim, logo em seguida que sai desse período de Monarquia entre a República a capoeira é inserida no código penal brasileiro; vem a República agora as coisas mudam? Não! Até 1889 ela era tolerada, a partir daí ela já deixa de ser tolerada e já passa a ser uma coisa de marginal, a prática da capoeiragem estava lá no código penal brasileiro de 1890, os artigos quatrocentos a quatrocentos e dois e quatro, e mais específico, o dois e três, que trata dos vadios de capoeira, essa questão das penalidades por ser capoeiristas. E o mestre Bimba já dizia que era mais fácil você ser brigador e brigar perto da delegacia porque já estava meio próximo. (CONTRAMESTRE BIRO, 2016)

O relato acima refere-se ao fato de que na história da capoeira, a prática da

―capoeiragem‖ no século XIX recebeu um tratamento criminal oficializado em todo o

território brasileiro a partir da República. Segundo Rego (1968), o Código Penal da República

oficializou este tratamento, conforme os artigos a seguir:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem (...) Pena: de prisão celular por dois a seis meses. Parágrafo Único: É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o poder público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes. (REGO, 1968, p. 292).

Os argumentos presentes na história da construção de uma ideologia baseada em

teorias raciais desenvolvidas pelos brancos com estatuto de ciência e tão largamente

difundidos no Brasil, acabou por conferir uma negatividade do ―ser negro‖ a partir de

argumentos que emolduram um retrato (projeto) ideal de país. De certa forma, os ecos da

história são assombrosos e a sociedade silencia e tolera a violência contra negros, os índices

sociais de racismo simbólico e material demonstram o que país ainda está longe de se

constituir como uma nação harmônica, tolerante e pacífica.

Ora, se a legislação brasileira não incorporou o reconhecimento do negro na história e

tampouco o considerou na elaboração do projeto de nação naquele momento, apontando

em sua análise mostra o exemplo de como o racismo se faz presente na sociedade contemporânea e a forma

como a sociedade silencia e tolera a violência contra os negros. - Disponível em

http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2000/GSantos.PDF. Acesso em, 28 de janeiro de 2017.

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soluções para os problemas sociais agravados pela escravização, as práticas culturais desta

mesma população foram constantemente vistas como ameaças, exigindo a vigilância do poder

público, haja vista a citação trazida pelo autor supracitado e que dá conta de como, no âmbito

jurídico, se age em conformidade e agilidade curiosa a fim de reprimir, e jamais para

reconhecer o patrimônio cultural construído pela população negra nas primeiras constituições

após a abolição. Corrobora conosco, Costa (2011):

De 1891 a 1969, não se verifica, em qualquer dessas constituições, menções voltadas à perspectiva de se reconstruir socialmente o país, no sentido de se redefinir e transformar as condições de descaso e de exclusão às quais o estado brasileiro havia relegado a população negra. A Lei nº 3.353, de 03 de maio de 1888, que ficou conhecida na história como a Lei Áurea, foi de uma limitação extrema ao ―fica extinta a escravidão no Brasil‖ sem sinalizar para qualquer possibilidade de garantia de direitos sociais à população negra, no sentido de corrigir as desigualdades e intimidar os processos racistas em curso no país. Independentemente, se nessas condições as garantias universalizadas de direitos sociais apareceram de forma mais ampla ou mais restrita, não foram suficientes à resolução de questões sociais que comprometiam severamente a consolidação da democracia no Brasil, em função de uma estrutura social na qual a concepção biológica de raça humana tem historicamente operado como forte critério de seleção e de estratificação social. (COSTA, 2011, p. 82).

Repleta de contradições numa sociedade que apela para a miscigenação como fator de

melhoria racial, a história aponta que a capoeira continuou a ser perseguida e enquadrada

como crime no começo do século passado, mas também serviu a sociedade em diversos

momentos30.

Ainda assim, e embora nascida de um sonho de liberdade, a capoeira tomou conta do

coração de um povo, pois trazia em si aspectos de ancestralidade e importantes contribuições

para a vida das pessoas, de modo continuou a ser praticada. Por vezes, apresentava-se como

forma de lazer e trabalho e, embora fosse proibida, políticos e homens que desfrutavam de

importantes posições sociais contratavam alguns capoeiristas para fazer serviços de

30

Manuel Querino é um intelectual negro nascido ao final do século XIX na Bahia e que foi um dos percursores

cronistas a adentrar e registrar as contribuições da população negra para a sociedade brasileira. Em Querino

(1916), encontramos dados sobre cantigas, movimentos/golpes, musicalidade, rito s, cenários, costumes,

indumentárias e finalidades da capoeira na Bahia. Deixou-nos a informação de que a capoeiragem era uma

prática de diferentes grupos sociais e de suas contribuições na Guerra do Paraguai. Querino (1916; 1918), na

contramão de racialis tas como Nina Rodrigues e Silvio Romero que se preocupavam com a inferio ridade do

negro e suas influências para a um projeto de uma nova nação brasileira, apontava o negro como figura positiva

e central para constituição dessa nação por meio do trabalho e criação que já viera, de pronto, enriquecido da

África.

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segurança. Quer dizer, ela era considerada crime, mas as pessoas influentes usufruíam dela,

em nome de sua defesa. Nesse sentido, dialogamos com Munanga (2010) pois ele corrobora

conosco ao alertar que, embora tais culturas tenham sido assimiladas no processo de

construção da identidade nacional brasileira, esta:

[...] na cabeça da elite pensante e política, deveria obedecer a uma ideologia hegemônica baseada no ideal do branqueamento. Ideal esse perseguido individualmente pelos negros e seus descendentes mestiços para escapar aos efeitos da discriminação racial, o que teve como consequência a falta de unidade, de solidariedade e de tomada de uma consciência coletiva, enquanto segmentos politicamente excluídos da participação política e da distribuição equitativa do produto social. (MUNANGA, 2010, p. 446)

As implicações de se estudar a Capoeira sem considerar os aspectos raciais incorrem

na perpetuação desse discurso harmônico sobre um país de caipirinha, carnaval, futebol e

capoeira, em que acentuamos a importância de negros e indígenas para a cultura do Brasil,

mas tão somente por um viés simétrico e etnocêntrico que dita e nega a identidade desses

grupos sociais majoritários e sua valorização na construção da nação brasileira, em todos os

âmbitos.

As transformações pelas quais a Capoeira passa não a isenta de tais influências como

já expressamos ao longo desse trabalho. De fato, pensar numa sociedade democrática exige

projetos que respeitem as pluralidades e exige ainda uma articulação que não cabe apenas ao

fazer escolar, e sim a uma prática pedagógica presente em todos os espaços de Educação que

se articule e difunda a relevância das diversas culturas que contribuíram no amoldamento de

outras culturas, visto que a memória coletiva dos movimentos e grupos diferentes resgata de

forma ampla a dimensão de humanidade de cada povo ou grupo social, e dado que, nossas

vidas, cotidianamente, também são tecidas por relações entre pessoas diversas, com suas

culturas corporais e seus movimentos por reconhecimento e identidade também diversos.

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CAPÍTULO III

AS TEIAS DE RELAÇÕES DA CAPOEIRA EM CUIABÁ: UM DIÁLOGO COM A

LITERATURA

A possibilidade de estar em vários locais na grande Cuiabá e no estado, no país e no

mundo, talvez seja a principal meta dos grupos de capoeira e dos capoeiristas de um modo em

geral. Partindo de Falcão, (2004, p. 119), ―Podemos afirmar que atualmente os grupos de

capoeira formam redes que se ampliam e se desmoronam a cada dia‖. É muito comum a

mudança de professores, mestres ou alunos que saem de um grupo e vão para outro, mas a

maioria geralmente o faz para buscar novos conhecimentos, obter uma graduação, ou

simplesmente por estar descontente com seu grupo.

Para melhor evidenciar como os grupos de capoeira podem ser caracterizados,

recorremos à autoridade de Falcão, (2004, p.52):

[...] Os grupos de capoeira podem ser caracterizados como ―unidades englobantes‖ (TRAVASSOS, 1999) [...] que são construídos e reconstruídos a partir de alguns ―fundamentos‖ do acervo capoeirano que os seus integrantes elegem e inventam, frequentemente por contraposição, para legitimar seus projetos de capoeira. [...] servem-se da memória biográfica e genealógica as quais os seus líderes (mestre e professores) se dizem umbilicalmente vinculados. Com isso, terminam construindo pequenos mundos irmanados por identidades de projetos que opõem e contrastam os ―nós‖ em relação aos ―outros‖.

As interdependências entre os grupos se estabelecem, pois cada um tem uma maneira

própria de se organizar tendo como um ideal comum a ―capoeira‖. Quando alguns desses

grupos conseguem se estabelecer e, caso sejam coesos, podem oprimir outros grupos que não

estão bem instalados ou em uma posição de poder, o que faz com que o grupo seja

estigmatizado e excluído.

Trazendo Norbert Elias e Scotson (2000) para a roda de discussão das relações de

poder, em suas pesquisas demonstram uma divisão clara entre o grupo de residentes de longa

data e o grupo de residentes mais recentes num bairro cujos novos moradores eram tratados

pelo primeiro como Outsiders. Segundo os autores, o grupo mais antigo se constituía como os

Estabelecidos, e a partir desta referência, estigmatizava os Outsiders como pessoas de menor

valor humano, por considerar que lhes faltava a verdade humana, carisma grupal distinto do

que o grupo dominante atribuía a si mesmo.

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Assim, encontrava-se ali, naquela pequena comunidade cujo nome fictício é Winston

Parva, e em uma dimensão reduzida, um tema humano universal. Na capoeira, podemos

observar que quando há grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes, aqueles

se pensam a si mesmos como humanamente superiores; ―há sempre algum fato para provar

que o próprio grupo é ―‗bom’ e que o outro ‘ruim’.” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.23, grifo

do autor).

Deste modo, ao descrever as relações sociais que imperam nos grupos de capoeira na

Grande Cuiabá, corroboram conosco Elias e Scotson (2000) que indicaram a priori a

existência de dois distintos grupos sociais: os Estabelecidos e os Outsiders. As relações

existentes entre estes dois grupos estarão fundamentadas em um processo de intensa

diferenciação baseada principalmente no tempo de moradia no bairro. É a partir desta relação

que permeamos a discussão da relação de poder que se dá nas relações sociais cotidianas no

interior dos grupos de capoeira na grande Cuiabá.

A capoeira na grande Cuiabá é um movimento tecido pelos capoeiristas locais e os

grupos, constituídos propriamente em Cuiabá ou representantes de grupos externos. Cada

agremiação tem uma maneira única de se organizar dentro de seus fundamentos 31. Podemos

afirmar, de acordo com Mauss (2003), que todos os modos de agir desses grupos e dos

capoeiristas são técnicas do corpo, técnicas em que há uma transmissão de saberes e uma

tradição, ou seja, podemos afirmar que estamos lidando com técnicas do corpo, pois a

capoeira é uma tradição ensinada através das técnicas corporais e, por sua vez, toda técnica

propriamente dita tem sua forma. Isto vale para qualquer atividade corporal, e é preciso

salientar ainda que estamos considerando cada grupo de capoeira como uma sociedade que

tem seus hábitos próprios, se organizando e ressignificando constantemente.

Cabe alertar que os grupos de capoeira investigados desenvolvem algumas práticas de

danças, tais como: maculelê, puxada de rede, samba de roda, além disso identificamos nos

eventos em constante ascensão o surgimento de performances que se utilizam da musicalidade

e dos movimentos da capoeira na Grande Cuiabá. Tornou-se comum nos eventos de capoeira

ali celebrados a manifestação de tais performances além das rodas de capoeira. No entanto,

entendemos que esta pesquisa deveria debruçar-se, neste momento, ao ritual das rodas de

capoeira, tamanha a profundidade envolvida nestas derivações presentes em seu mundo. Nesta

fase da pesquisa foram observadas – sobretudo nas rodas e nos eventos de capoeira – as

formas em que se organizam e o modo em que jogam entre si.

31Segundo Falcão, (2004), os fundamentos se constituem no conjunto de conhecimentos relativos ao jogo da capoeira, que podem variar de grupo para grupo.

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Ao retomar o sentido da técnica na atividade em movimento da capoeira, esta se dá no

corpo inteiro, ou seja, na maneira de gingar, no modo de execução dos movimentos, no jogar,

no ritmo da ginga de cada estilo, no balanço dos punhos no jogo, nos cotovelos protegendo o

rosto, na progressão do tronco, no balanço dos braços, enfim, cada movimento precisa ser

realizado por ambos os jogadores. Os capoeiristas estão acostumados a realizar o movimento

com o corpo todo, mas cada capoeirista tem um jeito próprio de jogar, isto é, o sujeito que

entra na roda se produz, reproduz e torna a produzir uma nova capoeira. Nas rodas de

capoeira, é óbvio ter em mente que os capoeiristas tradicionais não jogam a capoeira que

jogamos hoje, minha geração não joga como a geração atual, mas os gestos são aprendidos da

mesma forma tradicional conforme expresso por Mauss (2003), como ―fatos sociais totais‖,

aprendidos numa relação direta entre as gerações de forma prestigiosa, incorporados pelo

aprendiz.

Partindo destas premissas, pretendo através da prática da capoeira em Mato Grosso

entender a teia de significados e de relações produzidos na ―roda de capoeira‖, a partir da

perspectiva de seus mestres, pois são eles que tecem esta cultura na grande Cuiabá.

Isto posto, é importante entendermos um pouco desse movimento da capoeira da

grande Cuiabá junto a seus agentes, e mais uma vez faz-se necessário recorrer aos seus

depoimentos a fim de alcançar a compreensão que buscamos nesta pesquisa.

O mestre Lindomar, fundador do grupo Kizomba de Capoeira Angola em Cuiabá,

ilustra esse complexo e conflituoso movimento de recriação de uma prática social com

sentidos e significados expressos nas redes de relações sociais que conectam os capoeiras de

ontem e de hoje em tempos e lugares diversos:

Eu iniciei a capoeira em Brasília no distrito federal na cidade satélite Planaltina, no colégio agrícola. Nessa escola tinha o mestre Zulu e era um professor de química, nisso ele aproveitava o tempo para ensinar capoeira regional, ano de 1976/1977. Em 1983 eu cheguei em Cuiabá para fazer a faculdade de Educação Física. Então, já havíamos de lá para cá trabalhando com a capoeira, na universidade, nós tínhamos uma bolsa de estudos, bolsa alimentação que chamava, aí como eu era aluno de Educação Física me colocaram em duas modalidades: natação com professor Vicente e a capoeira, nessa época o professor era o professor Edmundo que ensinava a capoeira [...] (MESTRE LINDOMAR, 2016)

Convém destacar que o movimento da capoeira se deu pela vinda do mestre para

cursar Educação Física na Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá como bolsista, e

na universidade a prática já se dava através das lições do mestre Edmundo, que era professor

da universidade e fundou o grupo de Capoeira Iúna. Outro fator importante no depoimento diz

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respeito ao mestre de capoeira, por isso é necessário ressaltar a importância do mestre no

grupo de capoeira, tendo em vista que seus discípulos irão seguir seus caminhos e trilhar os

objetivos do grupo em si. Cordeiro (2004, p. 129) discorre sobre a importância do mestre de

capoeira ―Ser reconhecido como mestre, e amadurecer na capoeira, demanda,

necessariamente, vivência, aquisição de madurecer, experiências adquiridas, compreensão,

maturidade e tempo.‖ Portanto, a capoeira não é apenas uma prática desportiva onde se

aprende técnicas, a performance aqui está assegurada pela sua aprendizagem e

amadurecimento. Ela é, sobretudo, a expressão da cultura de um povo que tem história, uma

memória vivificada em nosso país.

De acordo com Falcão (2004), ao longo de sua história, a capoeira tem se mostrado

imponderável, incomensurável, imprevisível, permeada de conflitos que tanto podem gerar

aproximação quanto podem estreitar vidas em suas relações do dia a dia.

Os caminhos da pesquisa nos conectam aos sentidos dados por Fleuri (2006):

De um questionamento do autoritarismo e da alienação das relações pedagógicas passei, pouco a pouco, a compreender a complexidade das relações entre sujeitos constituídos em contextos sociais e culturais diferentes. Hoje, as pesquisas com que me venho envolvendo indicam o incrível potencial das relações interculturais para a promoção do diálogo e da práxis, na busca de superação dos processos de sujeição, de discriminação, de exclusão social (2006, p. 127).

Analisando outras perspectivas, Falcão, em sua tese de doutorado de 2004, traz uma

importante reflexão sobre a relação de poder vivenciada no interior de alguns grupos em um

determinado período da história:

A capoeira nos dias de hoje, pela sua própria dinâmica, pode ser definida como algo que defende e denuncia, ao mesmo tempo, a imposição, a libertação e a preservação de seus códigos e valores. Ela propaga, dialeticamente, a paz e o terror, o prazer e a revolta, a harmonia e a dissonância. (2004, p.95)

Os dados coletados revelam na Grande Cuiabá uma relação de poder muito forte entre

os grupos, inviabilizando a realização de eventos que os reunissem, pois, de modo geral, havia

sempre muitos conflitos entre os grupos, portanto era uma unanimidade que nas rodas de

capoeira fosse praticado um jogo mais agressivo: com socos, agarramentos, ponta pés,

utilizando seu corpo e sua força para impor sua visão de mundo, ou seja, usando o corpo

como um instrumento de conquista opressora que desvirtuava o contexto de luta nos

fundamentos da capoeira. A minoria dominante impõe sua visão de mundo, seus fundamentos

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ideológicos. Ao analisar a capoeira, percebemos que até hoje os grupos de capoeira

reproduzem tais relações de forças, embora de modo mais atenuado e camuflado. Logo,

podemos inferir que tanto na capoeira quanto no sistema educacional de hoje a opressão

continua se disseminando.

3.1 Tecendo Capoeira na Grande Cuiabá

A Roda de Capoeira nos desvela a Grande Cuiabá como um imenso espaço de

vivência de homens e mulheres. Há uma diversidade de mundos possíveis e dos quais

necessitamos, inclusive para nos encontrarmos na cidade que habitamos, seja em Cuiabá ou

Várzea Grande. Trataremos neste capítulo da formação cultural que a capoeira propícia, o viés

da Educação.

Para Gohn (2008), a cidadania é o objetivo principal da Educação não formal e esta

deve ser pensada em termos coletivos. Não nos propomos a entrar no debate sobre a

informalidade ou formalidade na educação. Nossa experiência enquanto professores de

capoeira em espaços formais e não formais de educação demonstrou que o informal pode ser,

de fato, formal, mesmo que não seja escolar. Embora a autora citada defenda que na educação

formal há uma intencionalidade a fim de encontrar determinadas qualidades ou objetivos,

ousamos inferir que os valores familiares, percepções e saberes dos grupos são reproduzidos

providos de intenções. O que fazemos aqui é tratar como não formal essa formação cultural

trazida pela capoeira que em diversos momentos se volta para a educação.

Se aqui consideramos as experiências educacionais contidas nos processos das

manifestações das culturas afro-brasileiras, isto se dá, primeiramente, pela necessidade de

pensar e registrar os conhecimentos e saberes do mundo da capoeira produzida em Mato

Grosso, e também porque outros pesquisadores nos atentaram para isso. Assim o fez ABIB

(2004) ao investigar como se articulam esses processos educacionais não formais no âmbito

da cultura popular, do fazer ao transmitir, apontando os limites do trato da academia que, num

pensamento positivista e limitado, deixa de considerar especificidades educacionais inscritas

neste modo de fazer cultura. Se o autor aponta limites, também propõe que busquemos novos

referenciais teóricos para tratar das complexidades existentes em tais manifestações.

A produção cultural e intelectual que identificamos na capoeira é formada por um

conjunto de experiências vividas ao longo da existência da manifestação pesquisada. E

justamente para não ficarmos presos em erudições eurocêntricas que classificam as

manifestações culturais em popular, de massa ou erudita, e a fim de rompermos com estas e

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outras hierarquizações em expressões culturais que, de forma brilhante, ainda mantêm suas

tradições, tratamos neste trabalho a produção da capoeira numa perspectiva de construção de

futuro, uma vez que já se provou sua contribuição enquanto movimento capaz de propiciar

cidadania aos praticantes e às comunidades onde se insere. Como tal, é inegável que há nos

espaços de educação certa reciprocidade de aprendizagens que são frutos das relações sociais

existentes. Esta é a base e, as limitações da linguagem para nomear tais ocorrências, nos leva

à noção da interculturalidade, em que na sociedade as relações que são interativas modificam

ações e/ou as pessoas, onde as influências são muitas e mútuas, efetivas e imensuráveis.

As narrativas dos mestres a respeito da capoeira na Grande Cuiabá e os registros

audiovisuais resultantes da observação participante denotam a capoeira co mo um jogo. Isso

implica considerarmos o que os teóricos que se voltam aos estudos e pesquisas sobre a

temática apontam como características que tanto refletem a natureza do jogo, da capoeira, da

capoeira com o rito, bem como os processos educativos presentes no jogar capoeira.

A opção pela observação participante e o fato de eu ser um pesquisador capoeirista me

colocaram diante de uma situação que exigia uma ginga de produção capaz de incorporar uma

discussão sobre Jogo e Educação que não ficasse restrito aos padrões aceitos pela ciência, não

aqueles que predominam e engessam os saberes, e sim a riqueza e os mistérios da cultura

popular, os saberes presentes nas produções que estão fora do sistema formal de ensino.

Neste processo de observação e registro cotidiano do mundo da capoeira, Brandão

(2001) colabora conosco na reflexão de que, ser participante na pesquisa é estar ciente de que

ali há mais que espetáculo, aquilo que se vê é vivido, é também aprendizagem, pois :

[...] por baixo do repetitivo, do pitoresco, do apenas exótico, existem

tradições populares que transformam uma aparente simples ―roda de capoeira‖, em microcosmo de vidas, de saberes e de trocas de bens, serviços e sentidos‖ e não é algo que se vive apenas naquele

momento, para além do que se vê, eu, pesquisador e capoeirista, posso identificar o que é ―aprendido e significado‖ (BRANDÃO apud

ABIB, 2004, p. 19).

Tais constatações nos incitam a ver que o jogo faz parte desse tecer capoeira entre os

próprios grupos de capoeira e que, portanto, é deveras importante observar as minúcias que

envolvem os saberes e os significados neste processo de tessitura.

O jogo, para muitos autores, aparece relacionado ao lúdico. Portanto, possui grande

valor educacional, uma vez que constitui uma ferramenta capaz a fim de colaborar com a

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formação do ser humano, seja para seu desenvolvimento pessoal, seja para garantir formas de

sociabilidades.

Bregolato (2008) entende que o jogo é um fenômeno composto por atividades lúdicas,

brincadeiras, constituição que envolve pessoas que interagem entre si, com a natureza e com

objetos. É, pois, uma nascente de onde jorra conhecimento, em que a própria necessidade de

jogar é sugestão advinda da própria necessidade de viver, visto que a função do lúdico é a

espontaneidade, a capacidade de errar e reintegrar-se para continuar errando e acertando,

construindo autenticidade em um espaço aberto às possibilidades de criação. No caso da

capoeira, trata-se de um rito que permite aos grupos manter-se em constante criação, e que

proporciona aos capoeiristas a busca por uma autenticidade a todo momento suscetível a

descobertas, seja na Roda, nas papoeiras, nos treinos ou no próprio cantar, no entoar ou na

audição das ladainhas.

3.2 Educação

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender e ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias, misturamos a vida com a educação. (BRANDÃO, 2001, p.07)

Um grupo de capoeira configura-se como um espaço de formação que se faz no tempo

e por meio da oralidade que valoriza a ancestralidade.

As relações que permeiam as configurações dos grupos investigados são complexas e,

em linhas gerais, as possibilidades de experimentações culturais e sociais suscetíveis à fruição

dos capoeiristas dizem respeito ao modo como estão constituídos, também, o seu grupo e,

ainda, dizem respeito à constituição da identidade individual e coletiva dentro dos grupos. É

inegável que é preciso compreender essas relações estando atentos aos aspectos ligados aos

modos de organização dos grupos e os processos educativos envolvidos nesta manifestação

cultural que, por ser de matriz afro-brasileira, carrega em si especificidades inscritas em ritos,

no modo de produzir, ensinar e manter tradições.

Nesta reflexão de Brandão (2001) mencionada já na epígrafe, compreendemos que é

logo ao nascer que penetramos no mundo, pois adentramos à condição humana. Deste modo,

começamos a constituir um conjunto de relações e interações complexas com as outras

pessoas, compondo um sistema que nunca será completamente finalizado, a isto chamamos de

Educação. Os responsáveis por este processo no início de nossas vidas são os pais, a família, e

é justamente no ambiente familiar onde aprendemos valores como: o que é certo, o que é

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errado, o que podemos ou não fazer, etc. Aos poucos, é neste ambiente que iremos

paulatinamente nos transformarmos em pessoas educadas, de forma natural e não formalizada.

Salientamos que, quando nos referimos à Educação, entendemo-la como um

importante processo de formação e de aprendizagem socialmente elaborado, destinado a

contribuir para a promoção da pessoa humana enquanto sujeito de transformação social e que

é, também, ao mesmo tempo, elemento transformador e passível de transformação. A

educação está articulada com os processos sociais de produção da vida e, ainda, é responsável

pela produção do homem, pela sua formação, pela inserção das gerações mais novas no me io

social. Tal processo permite o desenvolvimento das suas potencialidades e a apropriação dos

saberes socialmente construídos.

Ponderamos então que a educação é um processo que ocorre durante toda a vida.

Sendo assim, é oportuno refletir sobre o processo educativo no sentido de oferecer aos

sujeitos condições de compreender o meio onde estão inseridos, considerando a economia, a

política e a cultura. Somente assim poderão compreendê- lo e estarão prontos para transformá-

lo. Podemos dizer então que a educação faz parte de um dos requisitos considerados

fundamentais para que os seres humanos tenham acesso ao conjunto de bens e serviços

disponíveis na sociedade, pois ela cumpre um papel essencial de mediação na transmissão da

cultura humana.

Nossa pesquisa revelou que o ambiente educativo da capoeira se dá em espaços

formais e não formais de Educação. Ambiente este carregado de intenções e de transmissão de

uma cultura marcada pela oralidade, onde o coro, por vezes formado por crianças e adultos

ainda não alfabetizados, entoa ladainhas que revelam profunda intimidade com as palavras,

com aquilo que é vivenciado.

Pode-se dizer que o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser (BÂ, 1982, p.199, grifo do autor)

O caso da prática da capoeira está inserido em um processo de formação cultural que

desempenha um importante papel enquanto prática educativa. Este é um olhar a ser proposto

para que reflitamos sobre o alcance desta manifestação cultural, bem como das demais

culturas que se assentam na matriz africana. Como partimos de um espaço de educação formal

para a compreensão das tessituras possíveis entre os grupos de capoeira da Grande Cuiabá,

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entendemos que estamos nos propondo a relacionar educação formal – neste caso viabilizado

pela universidade – com algumas noções conceituais da educação não formal.

Para Abib (2006), em muitos espaços educativos as características da capoeira têm

sido enaltecidas.

Ao priorizar uma intervenção pedagógica com base na educação não-formal e na cultura popular junto às camadas menos favorecidas da população, prioriza-se também o caráter humanizante, enfatizando a abordagem do lúdico, da corporeidade, da sensibilidade, da criatividade e da expressão como elementos fundamentais dessa intervenção (ABIB, 2006, p. 59).

Os valores adotados pela Capoeira são repassados por meio de uma lógica de

ensinamento que se aproxima de metodologias presentes em sua própria matriz, ou seja, na

maioria das vezes o mais velho ensina sem recorrer à forma escrita em papel, com lápis ou

caneta. Isto significa que há uma estrutura organizacional pedagógica que resulta em um

ensino e uma aprendizagem dotados de características próprias devido à relação necessária

entre a cultura e a realidade dos primeiros capoeiristas até o presente momento.

A garantia da existência desses grupos na Grande Cuiabá perpassa por esse processo

de ensino que contempla em seu bojo a realidade local de Mato Grosso, da capoeira que

começa a se organizar nos anos de 1968, desenvolvendo-se por meio de métodos de

comunicações variadas para atingir seus objetivos.

O repasse dos ensinamentos da capoeira acontece em processos ritualísticos incutidos

de ancestralidade, pois os mestres são os sábios, aqueles em quem os mais novos depositam

confiança para que lhes confiram luz na trajetória de aprendizagem da capoeira, um modo de

vida a ser seguido. O ritual propicia um aprendizado que vem direto da própria

experimentação.

O pesquisador, ao chegar a esta questão imbuído de leituras e teorias, deve estar

preparado para o verdadeiro aprofundamento que se dará nos rituais da Roda. Ali aprendemos

e entendemos melhor suas práticas e as relações permeadas por ancestralidades e simbologias

da cultura africana.

3.3 A organização ritual da capoeira

[...] uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos rituais, e outra é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e as palavras significam para elas (TURNER, 1974, p. 20).

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Na condição de capoeirista, quando passo a de pesquisador, começo a estranhar a

história da formação dos grupos de capoeira na grande Cuiabá que me era familiar, bem como

as hierarquias e a construção pedagógica presentes na figura do mestre, o poder do berimbau,

etc. No entanto, o simbolismo sagrado que eu predicava a uma ancestralidade africana, estava

permeado em louvações aos santos católicos. Eu me vejo na situação de ―Descobrir o exótico

no que está petrificado‖ (DA MATTA, 1978, p. 29).

Ao longo da pesquisa, identificamos a roda de capoeira como um empenho maior, em

que se apresenta como uma organização ritual formada por um conjunto de tramas simbólicas

que envolvem, por exemplo, o corpo, saberes, linguagens específicas, verbalizadas ou não,

além do sagrado. Na Roda, o corpo mandingueiro apresenta-se como uma forma de

resistência dos negros escravizados e forros. Para Sodré (2002), o corpo encontra um tipo

diferente de totalidade no rito onde se produz, coletivamente, uma integração de energias.

Ocorre que, simultaneamente, este corpo é objeto mas também sujeito no rito da capoeira.

Assim, ele é sujeito no que diz respeito à soberania dos músculos, dos gestos e movimentos; e

objeto, quando da entrega ao domínio do ritmo e da liturgia coletiva apresentada (SODRÉ,

2002).

O discurso encontrado nas narrativas dos mestres responsáveis pelos grupos de

capoeira e a análise das práticas encontradas nos levam a necessidade de compreensão da

capoeira enquanto rito e os processos que envolvem os simbolismos ritualísticos que ocorrem

nas rodas, eventos e treinos. Para uma compreensão do conceito de rito e ritual, consultamos

referências como: Peirano (2001, 2003), Da Matta (1978, 1997), Turner (1974), Van Gennep

(1978), Terrin (2004), Rivière (1995) e Segalen (2002). A noção de ritual apresentada nestas

leituras denota que o ritual é um momento extraordinário, que extrapola o âmbito comum dos

indivíduos envolvidos, são momentos em que os conhecimentos e valores são

disponibilizados aos neófitos como forma de inserção destes ao universo cultural no qual

estão ingressando.

Rito é uma palavra de origem latina e que equivale ao termo grego thesmós, cuja

tradução poderia ser ―tradições ancestrais, regras, ritos‖. Além disso, a raiz artus. da qual se

origina a palavra rito, associa-se às formas gregas tais como: ararisko4, arthmos5 e artus6,

termos cuja raiz ar ocorre pelo processo de derivação indo-europeu védico, e nos remetem à

ordem do universo e dos homens entre si (RIVIÈRE, 1995).

Para Terrin (2004), o rito é uma ação realizada no tempo e no espaço. Este possui duas

faces correlacionadas, sendo uma de caráter expressivo, ou seja, liga-se ao mundo místico na

totalidade da existência, e outra, também concreta, pois vive na opacidade como um fato

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comunicativo social. Segundo o autor supracitado, o rito é um meio de comunicação e todo

discurso, pois configura-se como um comportamento ritual cuja ação é sempre uma forma de

linguagem comunicativa que adquire significados particulares.

Para estes autores, as práticas rituais decorrem desde os primórdios. Em sociedades

simples ou complexas, sua importância é identificada como um desenvolvimento e imposição

que atuam de forma silenciosa junto aos participantes. Outrossim, as formas estabelecidas nos

mais diversos rituais configuram-se como uma ação repetitiva, como que sagrada (TERRIN,

2004), pois demonstram ter significativa relevância, e seus eventos são marcados por

diferentes processos ritualísticos inerentes à evolução de cada sociedade.

Os rituais, característicos das sociedades humanas que se têm notícias, passadas ou

atuais, estão nas realizações das inúmeras atividades humanas. Segundo Turner (1974), é

através dos rituais que a sociedade vivencia e dramatiza dimensões da vida social e reflete

sobre si mesma. Tais cerimônias simbólicas podem ser executadas por um único indivíduo,

um grupo, ou por uma sociedade inteira; pode ocorrer em locais aleatórios, específicos, de

modo privativo ou público. Um ritual pode ser restrito a determinado subgrupo da

comunidade e pode autorizar ou sublinhar a passagem entre condições sociais ou religiosas.

Para Rivière (1995), o rito é um conjunto de atos e condutas individuais ou coletivas e

que tem base corporal, incluindo a verbalização, os gestos ou a postura. Ainda, para o autor, o

rito apresenta um caráter mais ou menos repetitivo e caracteriza-se, também, pela forte

simbologia de seus atores, bem como para suas testemunhas, baseando-se em uma adesão

mental nem sempre conscientizada e em valores sociais que, na compreensão do autor, de

forma inconsciente, sua eficácia ―[...] não depende de uma lógica puramente empírica que se

esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação entre causa-efeito‖ (RIVIÈRE, 1995, p. 30).

Se o rito pode ser visto como uma forma de organização do mundo, é imprescindível

que os estudos sobre os rituais nas culturas afro-brasileiras não estejam atrelados a noções

antropológicas limitadas. Para Da Matta (1997), um dos primeiros estudiosos brasileiros a se

debruçar sobre a temática, é preciso analisar o carnaval, as procissões, o próprio futebol,

dentre outras grandes manifestações do país e como estas dramatizações ocorrem na

sociedade. Essa inversão de Da Matta (1997) com relação aos estudos de Rivière (1995) se dá

em virtude da configuração macrossociológica do povo brasileiro.

Para Da Matta (1997), o ritual distingue-se pela dramatização, onde há a condensação

de algum aspecto, elemento ou reação que o coloque em foco, de modo a destacar-se.

Inferimos assim que o rito não possui uma forma rígida, tampouco se caracteriza unicamente

por uma repetição, pois se trata de ―um dado de toda a vida social‖, sendo, também ele,

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―marcado por qualquer substância especial, que o transforma substantivamente em algo

individualizado e reificado. Ao contrário, tudo pode ser colocado em ritualização porque tudo

que faz parte do mundo pode ser personificado, colocado em foco e reificado‖.

Em sua obra, Peirano (2003) trata de uma definição mínima do rito a ser observado em

termos nativos. A autora irá tratar da ―definição operativa" de ritual e alerta que não cabe

pressa para conceituá- lo, tampouco rigidez e definição absoluta. A autora lembra que, em

diversos momentos, os estudiosos que se debruçavam sobre a temática tentaram classificar os

fenômenos envolvidos nos ritos e seus rituais. A autora argumenta que:

[...] Uma consequência curiosa dessas tentativas de classificação é a constatação de que, por um período longo, os antropólogos não conseguiam tirar do horizonte as categorias de racionalidade e de misticismo associadas ao ritual. Volta e meia, o senso comum dominante aflorava e deixava suas marcas. Este é parcialmente o caso de Victor Turner (1920-1983) — apenas parcialmente, como veremos —, reconhecido desde a década de 1970 como um dos mais conceituados especialistas na análise de rituais. Embora tenha estabelecido em 1958 que ritual é um ―comportamento formal prescrito para ocasiões não sujeitas à rotina tecnológica, referindo-se a crenças em seres ou poderes místicos‖, felizmente sua contribuição etnográfica ultrapassou esta definição limitada. (PEIRANO, 2003, p. 18)

Para a autora, esta compreensão não deve ser antecipada. Antes, ela se dará no

processo etnográfico ao ser apreendida pelo pesquisador no campo de observação. Ora,

amparados pelas leituras dos pesquisadores aqui citados, podemos observar que

acontecimentos ou eventos especiais e únicos podem ser identificados em todos os grupos

sociais, mesmo que isto ocorra de formas diferentes nas sociedades. Segundo Peirano (2003),

ao distinguirmos e considerarmos como especiais o futebol, uma formatura, um casamento, a

posse de um político, no Brasil, tais eventos também se apresentam como potenciais rituais.

A exemplo de outros autores, ela ressalta que os rituais podem ser ―religiosos,

profanos, festivos, formais, informais, simples ou elaborados‖ (PEIRANO, 2003, p. 10).

Assim, para a autora, a natureza dos rituais não está em questão e destaca que, no caso de

considerarmos os eventos citados como rituais, mais importante do que o conteúdo explícito

neles são suas características de forma, convencionalidade, repetição, combinação de palavras

e gestos, entre outras.

Embora eu seja um capoeirista, é na condição de pesquisador que estou fazendo um

trabalho de observação etnográfica e onde será possível identificar as tramas ritualísticas

nesse tecer de ser e fazer capoeira na grande Cuiabá. Do contrário, as ―definições antecipadas

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– de ritual ou, aliás, de qualquer outro fenômeno – só tendem ao empobrecimento se não

coincidem com nossos valores explícitos‖ (PEIRANO, 2003, p. 10).

A respeito da relação do ritual com o cotidiano, o repertório de um está presente no

outro, e vice-versa. Assim, considera ―o ritual como um fenômeno especial da sociedade, que

nos aponta e revela expressões e valores de uma sociedade‖, entretanto, o ritual desvela,

expande, ressalta aquilo que é tido como comum a um determinado grupo, logo, os rituais

apresentam-se como ―bons para transmitir valores e conhecimentos, também próprios para

resolver conflitos e reproduzir as relações sociais‖ (PEIRANO, 2003, p. 10).

Ademais, a autora ainda nos fornece o que chama de ―definição operativa‖, formulada

inicialmente pelo antropólogo Stanley Tambiah, autor que se dedicou aos estudos

contemporâneos a respeito dos rituais. A autora traz a definição de Stanley Tambiah que

afirma:

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjos caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como ―performativa‖ em três sentidos; 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional [como quando se diz ―sim‖ à pergunta do padre em um casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3), finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance [por exemplo, quando identificamos como ―Brasil‖ o time de futebol campeão do mundo]. (Tambiah apud PEIRANO, 2003, p. 11).

As considerações deste autor são, para Peirano (2003), de suma importância a fim de

não perdermos de vista que, ao contrário do que pensa o senso-comum sobre os rituais e tal

como concebido por alguns antropólogos contemporâneos, o ritual não é ―[...] fossilizado,

imutável, definitivo‖ (2003, p. 11). O conceito acima nos subsidia a entender os eventos

presentes no nosso cotidiano como rituais, de onde advêm as ações performativas.

Para Segalen (2002), o rito apresenta-se numa configuração espaço-temporal que é

específica, seja pela recorrência a objetos ou às linguagens e comportamentos, fazendo

sentido aos membros do grupo que dele compartilham. Ainda, em um dos relatórios

antropológicos de Lienhardt sobre a religião dinka, o rito tem como um de seus objetivos

―controlar situações e modificar a experiência‖ (Lienhardt apud DOUGLAS, 1966).

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O ritual, tal como compreendido por alguns estudiosos, apresenta-se como uma forma

de comunicação que gera influência. Portanto, para a compreensão de suas mensagens e

linguagem simbólicas faz-se necessário considerar o contexto e a intenção. Segalen (2002),

analisando as contribuições dos autores clássicos e contemporâneos que se dedicaram à teoria

dos rituais reitera que, assim como Émile Durkheim, Van Gennep interessou-se pela ligação

entre a estrutura social e o rito. Porém, em se tratando de método, o segundo autor nos traz a

sua grande contribuição – este método realiza o estudo da manifestação ritual em sua

totalidade, considerando o contexto – pois seu método faz sentido devido ao fato de partir do

social para chegar ao sagrado. Para autora, cabe destacar a discussão já feita por Nicole

Belmont em sua leitura sobre Van Gennep, o rito ou ato social não tem valor, tampouco

possui valor intrínseco definido, portanto, este pode mudar de valor e sentido ―segundo os

atos que o procedem e aqueles que o seguem‖ (SEGALEN, 2002, p. 44).

As contribuições de Van Gennep, tal como observamos, são diversas e suficientes para

que os ritos não sejam tomados como objeto reificados, conforme aponta Da Matta (1978).

Sobre aquela que considera a maior descoberta deste antropólogo, Da Matta enuncia :

A grande descoberta de Van Gennep é que os ritos, como o teatro, têm fases invariantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o grupo pretende realizar. Se o rito é um funeral, a tendência das sequências formais será na direção de marcar ou simbolizar separações. Mas o sujeito está mudando de grupo (ou de clã, família, aldeia) pelo casamento, então as sequências tenderiam a dramatizar a agregação dele novo grupo. Finalmente, se as pessoas ou grupos passam por períodos marginais (gravidez, noivado, iniciação, etc.), a sequência ritual investe nas margens ou na liminaridade do objeto em estado de ritualização. (DA MATTA apud GENNEP, 1978, p.18)

Para Van Gennep (1978), que desde o início do século XX compreende a necessidade

de se tomar os rituais como objetos de estudos, o rito apresenta três fases ordinárias e

fundamentais: a) ritos preliminares, ou ritos de separação; b) ritos liminares, isso quer dizer:

o rito executado no período de margem, limbo; c) os ritos pós-liminares, ou seja, rito de

agregação ao momento posterior, ao novo status. É importante observarmos que as três fases

fundamentais do rito se relacionam umas com as outras, uma vez que possuem um

determinado fim.

Turner (1974), afirma que:

[...] a primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer de um ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um ‗estado‘), ou ainda de ambos. Durante o período ‗liminar‘ intermédio, as características do sujeito ritual (o ‗transitante‘) são ambíguas; passam através

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de um domínio cultural que têm poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem‖ (TURNER, 1976, p. 116 e 117, grifos do autor).

Esta estrutura, marcada por situações que se assemelham a pequenas mortes e

representam uma espécie de renascimento, desta vez assume uma nova condição. Para o que

Turner (1974) considera como fase ―liminar‖ e Van Gennep (1978) como margem, esta fase

intermediária que ambos constataram foi considerada como delicada, pois neste período o

sujeito participante do ritual já não é mais o que era e ainda não é aquilo que será ao fim dos

rituais.

Ao estabelecermos um diálogo entre as narrativas dos mestres ouvidos nesta pesquisa,

efetivou-se o posicionamento da capoeira enquanto um jogo que, por sua vez, é uma

ferramenta cultural cheia de possibilidades educativas, mas que depende do sentido dado

pelos praticantes, bem como da compreensão que o responsável pelo grupo tem do jogo e da

própria roda. Cada um deles se veem construindo saberes, desenvolvendo uma didática que

seja capaz de treinar o corpo biológica e culturalmente. Para eles, a capoeira é território da

liberdade, espaço da criatividade e da imaginação.

Assim é que identificamos a Roda de capoeira como um espaço de socialização e

momento propício para que os capoeiristas apliquem seus conhecimentos sobre a Capoeira, a

musicalidade desenvolvida pela percussão e coloquem em prática, ainda, os seus

conhecimentos sobre o jogo. Os rituais transferem energia em meio a essa socialização, de

modo que os diversos movimentos ocorrem não de forma programada, mas sim porque o

momento, o Axé propiciou. Para Sodré (2002):

O ritmo e o rito dão vida e alma à capoeira. São eles que favorecem a epifania dos corpos em movimento, trazendo beleza atlética para o gingado e para a execução harmoniosa dos golpes e balões. Não se trata, portanto, de mero esporte, nem de mera técnica de defesa e ataque, mas de um jogo, isto é, uma totalidade articulada de formas inventadas, abertas a apropriações lúdicas e guerreiras, que também se pode designar como uma cultura, se não como uma alma ou espírito de grupo (SODRÉ, 2002, p. 86).

O jogo de capoeira enfatiza a ludicidade ―[...] cuja regulação interna e cuja

exteriorização correspondem a formas de expressão, a criações artísticas e a modos

(particulares) de criar, viver e fazer [...]‖ (IPHAN, 2014, p. 141). Recorremos a Huizinga

(2007), autor que trata o lúdico não em sua dimensão biológica, mas cultural, abordando-o de

um ponto de vista histórico. Para o autor, a relação do homem com a brincadeira e o acaso

está em sua raiz, portanto ―[...] o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em

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suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana [...]‖ (HUIZINGA,

2007, p.3).

Huizinga (2007) concebe o jogo como uma atividade que ultrapassa os limites físicos

ou biológicos do homem, portanto, ultrapassa a esfera da vida humana (2007, p. 6). É, pois,

uma função que encerra um determinado sentido, implicando na presença de um elemento não

material em sua essência. O jogo é uma atividade que contém intensidade e o poder de

fascinar, bem como a capacidade de excitar. Assim, há no jogo, segundo o autor, tensão,

alegria e divertimento. Sendo que o ―divertimento do jogo‖ é que define a sua essência, pois

―resiste a toda análise e interpretação lógicas‖ (HUIZINGA, 2007, p. 5).

Desta feita, as contribuições de Huizinga para a análise do jogo da capoeira auxiliam,

também, ao alertar-nos de que ele é uma categoria de relevante significado ao homem, cujo

aspecto lúdico é essencial para o desenvolvimento da civilização, tal qual o é o raciocínio e as

criações materiais. O autor nos esclarece que:

Reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. [...] A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da natureza humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional (HUIZINGA, 2007, p. 6).

Entendemos então que o jogo pode ser encontrado em todas as culturas, nas diversas

sociedades existentes e formatos de organizações humanas. Este autor discorre que o jogo é

uma atividade cuja natureza é voluntária, em que as regras são consentidas de forma livre,

mas, também, são necessariamente obrigatórias, pois há uma ordem específica e absoluta

dentro dele. Assim, culmina-se num acordo de que o jogo se processa em um tempo e espaço,

onde há finalidades singulares e universais, características formais que são de fundamental

importância para se estabelecer uma unidade de coesão e, bem como essenciais, a fim de

estabelecer e integrar uma unidade coesa.

Tais características foram importantíssimas para compreendermos a capoeira e sua

natureza quando nos debruçamos sobre o jogo e a conduta entre um grupo e outro, o fazer

pedagógico dos mestres que vivenciam uma cultura e que, portanto, cabalmente precisa ler as

urgências de luta do mundo político e criar outros modos para a construção de mundos numa

roda de capoeira. Tratamos aqui de uma reflexão em que contemplamos a função significativa

da população negra escravizada ao fazer a Capoeira e ao modo como ela se ressignifica no

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contexto cultural e político atual. Portanto, o jogo mantém uma função significativa ainda

dentro de um contexto cultural de marginalização a que estão expostos os afrodescendentes e

pobres no Brasil, bem como se mantém significante à Capoeira, pois ela é jogada com a

ladainha através da utilização de palavras, e com os corpos, para demonstrar habilidades e

exercitar valores utilizados no cotidiano fora da Roda, ou seja: ética, harmonia, autocontrole,

eficiência, afetividades, solidariedade, diálogo e outros elementos que preparam o capoeira

para um outro jogo: a vida.

Um certo dia perguntarão a seu Pastinha O que era a capoeira? Ele, mestre velho e respeitado Ficou um tempo calado Revirando em sua alma Depois, ele respondeu com calma Em forma de ladainha A capoeira É um jogo, é um brinquedo É se respeitar o medo É dosar bem a coragem É uma luta É manha de mandingueiro É um vento no veleiro É um lamento na senzala É um berimbau bem tocado É um corpo arrepiado É um sorriso de um menino A capoeira É o vôo do passarinho É bote da cobra coral É sentir na boca O gosto do perigo É sorrir para o inimigo É apertar a sua mão A capoeira É um grito de Zumbi Ecoando no quilombo É si levantar do tombo Antes de chegar ao chão É o ódio Esperança que renasce Um tapa que explodiu na face E vai arder no coração Em fim é aceitar o desafio Com vontade de lutar A capoeira é um barco pequeninho Solto nas ondas do mar É um peixe pequeninho Só pelas ondas do mar (Domínio Público)

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Assim, entendemos que o jogo ―escapa para suas origens de resistência e fuga,

manifesta-se enquanto luta. Uma luta de vida contra a morte, joga festivamente a celebração

da festa do horizonte que se abriu‖ (SAMPAIO,TAVARES, 2007, p. 5).

O jogo possui características formais cujas noções passam por obrigações e

demonstrações de valor e honra para uma sociedade. Insinua-se como uma atividade

temporária, fora da vida comum dos indivíduos. Quando relacionado ao ritual, este compõe-se

como um elemento que integra a vida de modo geral. Ainda, nas palavras de Huizinga (2007),

o jogo:

Ornamenta a vida, ampliando-a e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade devido ao sentido que encerra, à sua significação o seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo como função cultural (HUIZINGA, 2007, p.12).

Capoeira e diversão lúdica chegam aos praticantes para romper com a vida cotidiana.

Quando um(a) praticante diz que vai ―vadiar‖, ele revela uma face da autonomia capoerística

e, por outro lado, conforme os(as) praticantes estabelecem vínculos afetivos no grupo, faz dos

encontros de capoeira uma necessidade constante a ser suprida. A capoeira tem o elemento do

fantástico e traz uma dimensão de satisfação quando a Roda acontece, incorrendo nos

aspectos apresentados por Huizinga (2007) sobre o jogo.

Ainda tratando da natureza do jogo, faz-se necessário ressaltar alguns apontamentos de

Huizinga (2007) acerca de suas principais características. O autor elenca como primeira

característica o fato do jogo ser uma atividade voluntária, portanto, livre, é ele próprio a

liberdade. Assim:

Só se torna uma atividade urgente na medida que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca se constitui uma tarefa, sendo sempre praticado em ―horas de ócio. Liga-se a noção de obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como culto e no ritual (HUIZINGA, 2007, p. 11).

Por conseguinte, este autor elenca como segunda característica o ―faz de conta‖. Esta

relação com o ―faz de conta‖ ocorre uma vez que o jogo não é vida real e nem vida corrente.

A malandragem da roda de capoeira, os olhares, piscadelas, o ―faz que vai, mas não vai‖

ilustra que, mesmo no faz de conta, o jogo, conforme alerta o autor supracitado, é capaz de

absorver inteiramente o jogador a qualquer momento.

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Como terceira característica, o autor delimita que o jogo tem seu tempo e espaço

definidos e este se apresenta como um intervalo na vida comum do dia-a-dia. É, pois, o jogo,

uma atividade temporária ―que tem finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma

satisfação que consiste nessa própria realização‖ (HUIZINGA, 2007, p. 12). Auxilia-nos o

autor a pensar o rito que formou a capoeiragem, pois enquanto a roda está acontecendo, como

um jogo, ―tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação‖, mas

também permanência (HUIZINGA, 2007, p.12). Ainda, devido a sua limitação no tempo, há

uma capacidade do jogo de apresentar a repetição, tornando-se um fenômeno cultural. Mesmo

depois de ter sido jogado, o jogo permanecerá como uma nova criação do espírito e de grande

valor para ser conservado pela memória, e em seu processo de transmissão transforma-se

também em tradição (HUIZINGA, 2007).

Para nós que nos dedicamos ao estudo da Capoeira, interessa observar este lugar onde

se realiza o jogo e que, conforme Huizinga (2007), está previamente delimitado. Para o autor,

este é um lugar sagrado, e em cujo interior, ou seja, o terreno, as regras são respeitadas e

previamente determinadas. Importante constatação nos traz quando, a respeito dos lugares

onde o jogo ocorre, o autor afirma que estes constituem ―mundos temporários dentro do

mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial‖ (2007, p.13.).

As leituras destes autores subsidiam nosso trabalho conforme constatamos que o rito e

o jogo acontecem em espaço e tempo especiais, fora do que é comum. Embora haja repetição,

a Capoeira é um rito que possui um tempo a ser respeitado.

Sobre a quarta característica do jogo, Huizinga (2007) evidencia que, tal qual o rito, o

jogo cria sua própria ordem e esta lhe é específica. Não cabe desobedecer à ordem estabelecida

pelo jogo a fim de evitar que o jogo seja subvertido. Para o autor, esta afinidade está ligada ao

domínio da estética, pois há nele uma tendência que leva ao belo e aponta palavras que são

utilizadas para descrever os efeitos trazidos pela beleza, tais como a ―tensão, equilíbrio,

compensação, contraste, variação, solução, união, desunião‖ (HUIZINGA, 2007, p. 13) para dizer

que o jogo lança em nós um feitiço e, que, portanto, fascina e cativa.

Importa agora registrar aqui algumas observações sobre os comportamentos

verificados nas rodas de capoeira realizadas pelos grupos objetos desta pesquisa.

A ritualidade no jogo, na roda e nos treinos de capoeira, ou seja, presente na

manifestação cultural afro-brasileira é mais um fator que desempenha uma função essencial,

já que é através dela que se estabelece a conexão com esse tempo primordial, onde tudo se

originou, onde se encontraram os antepassados que retornam a cada vez que o rito e a

celebração assim o solicitam (ABIB, 2004). ―A ritualidade adquire, no universo da cultura

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popular, o aspecto de culto, onde o sagrado e profano se entrecruzam, atribuindo um outro

sentido ao religioso‖ (p.11). A ritualidade vivida no corpo do capoeira é um conjunto de

mensagens e sequências de elementos dentro de um repertório de movimentos que a constitui.

Na capoeira, durante seu processo de aprendizagem, desde muito cedo a criança ou

adulto que a pratica passa por alguns processos de ritualização que manifestam, nos grupos

constituídos na Grande Cuiabá, as representações imaginárias de cada ordem social aos quais

pertencem.

Os tempos e lugares ocupados pelos grupos de capoeira que ensinam no jogo, nos

treinos, nos eventos e nas rodas a educar corpos, se percebem e se distinguem a partir de seus

respectivos grupos de pertencimento, bem como através de seus jogos, onde criam e recriam

rituais de identificação e diferenciação devido às características destes na grande Cuiabá.

Quando o berimbau é tocado nas rodas da Grande Cuiabá, ele desenha, dita um jogo

que pode diminuir e aumentar o ritmo dos movimentos, cria sensações, interpretadas pelo

corpo que joga conforme o ritmo determinado, e onde quem está no centro da roda agachado

ao pé do berimbau ginga, ouve o som, joga e aprende desde cedo a distinguir os mais variados

toques: Angola, Regional, São Bento Grande, São Bento Pequeno, Benguela, Iúna, etc., ao

passo que cada toque exige uma maneira de jogar, cantar, fazer e ser capoeira.

A roda, formada por quase vinte grupos de capoeira na Grande Cuiabá, e a partir da

qual procedemos a uma observação limitando-nos a apenas sete grupos é, assim como outras,

uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam, recriam e as produzem entre

todos os que ensinam e aprendem a educação corporal, onde os saberes atravessam as

palavras das práticas dos mestres, professores e membros dos grupos, transformando e

educando corpos que irão compor uma sociedade capoerística com significados e regras

próprios.

3.3.1 A formação da roda

A roda de capoeira: um complexo de ações que se constrói simbolicamente, formando

um mundo dos capoeiristas. Todas as ações são vivenciadas por aqueles que constituem a

roda. Conforme o local, evento e grupo de capoeira, essa roda tem nome e tamanho, sendo

que na capoeira a dimensão da roda pode variar de um diâmetro de 3 a até 10 metros, ao

mesmo tempo que pode ter meia dúzia de capoeiristas ou até mais de uma centena deles. Na

capoeira Angola a roda é menor, os tocadores ficam sentados, assim como os que compõem a

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roda. Esta difere-se dos outros estilos pois os tocadores são os únicos na roda que não

recorrem às palmas

Em todas as rodas, os instrumentos ficam no centro, completando a circularidade.

Geralmente, quem canta são os que compõem a bateria, ou seja, berimbaus, pandeiro,

atabaque, agogô. No entanto, em alguns casos, não necessariamente aqueles que compõem a

bateria são os cantadores, pois pode haver uma mudança na ritualidade que varia segundo a

forma de organização.

O jogo normalmente se inicia ao pé dos berimbaus. A roda de capoeira pode acontecer

praticamente em qualquer lugar, em ambientes fechados ou abertos, sobre o cimento, terra,

areia, asfalto, ruas, praças, escolas, quadras, universidades, academias, etc. Cabe ressaltar: a

capoeira não se realiza em espaços com bebidas alcoólicas. Por vezes, identificamos o

cuidado dos praticantes ao saírem dos treinos, eventos ou rodas com camisetas que falem da

capoeira ou de seus grupos, bem como o lugar para onde iriam.

Observando a roda de capoeira do Grupo Sendero, na ocasião em que realizávamos

um evento de capoeira no Colégio Coração de Jesus em Cuiabá-MT, verificamos que,

conforme o horário do evento se aproximava, os capoeiristas, homens e mulheres, vinham

chegando. Eles vêm de branco, alguns começam a envergar (armar) a madeira do berimbau.

Trata-se de um sinal de que a roda vai começar.

O berimbau (Gunga) que está na mão do mestre mais experiente conclama e no seu

toque lento anuncia a Capoeira Angola, a capoeira mãe, considerada assim pelos mestres

tradicionais, João Pequeno, Curió, Paulo dos Anjos, Waldemar do Pero Vaz e tantos outros

divulgadores da capoeira, a exemplo de Vicente Ferreira Pastinha, o baiano mestre Pastinha,

tido como guardião da Capoeira Angola. Este que foi um dos maiores nomes da capoeira no

final do século XIX e início do século XX, e defendeu incisivamente a capoeira tradicional

Angola, insistindo em sua origem africana (SILVA, 1993).

Os jogadores vêm sem pressa; as pessoas vão sentando em um círculo que se completa

com a formação da bateria de instrumentos. Os instrumentos, hierarquicamente, começam a

"falar". Primeiro o Berimbau Gunga, depois o Berimbau Médio, o Berimbau Viola, o

Pandeiro e o Agogô, que acompanham a ladainha que o Mestre entoa com o seu canto

anunciando o Jogo que vai começar. Enquanto aguarda o Atabaque, os participantes

permanecem em silêncio e, ao término da ladainha, inicia a louvação para, só então, o

Atabaque ser autorizado a tocar e as vozes dos(as) capoeiras na Roda começarem a marcar o

coro em resposta ao Mestre:

Iê, vamo jogar, camará

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lê, vamo jogar, camará (coro) lê, pelo mundo a fora lê, pelo mundo a fora, camará (coro) Ah, joga bonito que eu quero aprender Aiai, aidê, Joga bonito que eu quero aprender (Domínio Público – Caderno de Campo 1, 11/10/2015).

Os jogadores, em dupla, agachados na frente dos instrumentos, especificamente na

frente do berimbau Gunga, ficam esperando a autorização do mestre para jogar. Este lhes dá o

sinal curvando-se e abaixando o berimbau, pronto: pode-se jogar. Este é o diálogo travado. Os

jogadores cumprimentam-se apertando as mãos uns dos outros e saem do aú32. Os

movimentos dos corpos seguem na Roda e nela os encontros ocorrem entre e nos corpos que

se colocam nas formas da capoeira: inversão aú, queda-de-rins, rolê; o corpo com a cabeça no

chão e os pés para cima anunciam que os capoeiras entraram no "mundo da capoeira". Feito o

jogo inicial, eles aceleram o ritmo, e as pessoas que estão na roda se levantam e começam a

bater palmas. Neste momento, identificamos que a energia se eleva, os mestres e convidados

se revezam nos instrumentos, pois é preciso manter a energia da roda e, ao mesmo tempo,

incentivar os(as) alunos(as) a responderem ao coro e a baterem palmas. Jogadores(as) mais

experientes jogam com mais novos(as) que pegam sua primeira corda na capoeira, ao passo

que os(as) mais avançados(as) trocam suas cordas. Há uma ação que, sem a coletividade no

trabalho e em partes muito minuciosas, tal como a forma que se compõem os rituais da

capoeira, não garantiria que tudo corresse bem. Portanto, a ação funciona porque é uma soma

de todas as vozes e braços. São homens, mulheres, crianças muito pequenas, jovens, adultos e

idosos em comunhão na capoeira.

A observação do Grupo Centro Cultural Aruandê nas rodas aconteceu em vários

momentos, em vários espaços. A roda é formada por pessoas que, quando formadas, atuam da

seguinte forma: os capoeiristas se perfilam na roda batendo palmas ou não, tudo depende

sempre do ritmo dos cantos e dos instrumentos, sobretudo o berimbau, seu principal

instrumento, é ele quem comanda a roda e seu andamento geral. Formada a roda, dois

capoeiristas agacham-se, silenciosamente, na frente dos instrumentos, se cumprimentam

fazendo uma saudação com as mãos, saem do aú e perfazem um círculo completo no interior

da roda onde os dois capoeristas jogam.

Na Capoeira Angola, observamos o Grupo Quilombo de Angola, onde as aulas

acontecem no Hall de entrada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) às segundas,

quartas e sextas-feiras. O local onde esse jogo ocorre é primordial para o grupo, pois trata-se

32

Tipo de estrelinha que o capoeirista faz ao iniciar o jogo da capoeira.

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de um espaço de transição, pois para eles é a ―rua‖ o local de pertencimento da capoeira. É,

ainda, uma provocação sendo realizada dentro do espaço acadêmico, visto que é uma das

pouquíssimas ações voltadas à cultura afro-brasileira nesta universidade.

O jogo na roda de capoeira Angola segue o mesmo ritual dos demais grupos ao saírem

para o jogo. Porém, o jogar é sem pressa, mais lento, não tem palmas, os jogadores

permanecem sentados e preferem jogar com manha, malícia. Verificamos que essa malícia

ocorre quando os jogadores fingem que estão machucados, colocam as mãos nas costas, no

joelho e na cabeça como que simulando uma queda, mas quando menos se espera vem o

golpe. Seus gestos e movimentos se misturam com a dança e luta com os golpes, formas

rasteiras, com a beleza de movimentos que apresentam características e estéticas que lhe são

peculiares.

Nas observações realizadas, encontramos características que, ora se assemelham, ora

se diferenciam. Por exemplo, a roda da capoeira Regional é mais aberta que a de Angola, pois

na primeira os jogadores ficam em pé, batem palmas e a formação dos instrumentos varia de

grupo para o grupo.

As rodas realizadas pelos grupos de capoeira na grande Cuiabá que se denominam

contemporâneos ou apenas Capoeira ocorrem geralmente em três andamentos: o primeiro é

ditado pelo toque de Angola, cujo jogo deve ser mais lento, malicioso, o brinquedo é a

vadiação do jogo; o segundo andamento é ditado pelo toque de Benguela, cujo jogo deve ser

intermediário, nem lento e nem rápido, é um jogo cadenciado que busca o equilíbrio e a

harmonia; o terceiro é ditado pelo toque São Bento Grande, cujo jogo deve ter cadência

rápida, buscando harmonia na expressão corporal e na eficiência da combatividade e

acrobacias (ZULU, 1995).

3.3.2 Musicalidade

A musicalidade na capoeira serviu e serve para estabelecer a comunicação entre os capoeiristas e as forças emanantes, assegurando a transmissão oral como caminho de interlocução da história, que favorece a preservação dos seus ritos de passagens. (CASTRO JÚNIOR; PESSOA, 2008. p. 02)

A musicalidade é o tecer entre o passado que lembra o presente, é a comunicação entre

o mundo do capoeira, são os ecos produzidos pela roda que, através da oralidade, fortalece

também a ritualidade. Pertinente para este trabalho é a observação de Silva (2015, p. 27) ao

dizer que ―[...] não sabemos, nem podemos afirmar precisamente, quando as cantigas e os

instrumentos foram incorporados à roda‖. Nos rituais compostos pela musicalidade nas rodas

de capoeira observadas, há dois estilos bem definidos: a Capoeira Angola e a Capoeira

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Regional. Para além desses dois estilos, temos um movimento renovador na prática da

capoeira, definido como contemporâneo. Perante esta divisão, a musicalidade também é

utilizada de formas distintas, porém similares conforme identificamos a troca dos cantos,

ladainhas, corridos, chulas e quadras.

A formação da bateria na capoeira é constituída por instrumentos que,

hierarquicamente, compõem a roda de capoeira: o Berimbau, pandeiro, atabaque, agogô, reco-

reco, palmas e música. Estes instrumentos constituem os principais recursos envolvidos na

ritualidade presente nas rodas de capoeira.

No Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira, a formação da bateria é composta por 7

(sete) instrumentos, tal como descrito anteriormente. Ela inclui três berimbaus, dois

pandeiros, um atabaque e um agogô. Esta ordem está disposta da esquerda para a direita pelos

seguintes instrumentos: 2 (dois) pandeiros; berimbau (viola), berimbau (gunga), berimbau

(médio); atabaque e, por último, o agogô. É o berimbau quem dita o ritmo e o estilo de jogo,

por exemplo: no toque ao estilo da Capoeira Angola, o berimbau (gunga) executa o toque de

Angola seguido do berimbau (médio) que realiza o toque de São Bento Pequeno e, por último,

o berimbau (viola) improvisa com repiques e marcações. Tudo isso sem destoarem da

cadência rítmica, conduzida pelos berimbaus gunga e médio. Em seguida, o pandeiros

começam a ser tocados e, consecutivamente, o atabaque o e agogô.

No estilo da Capoeira Benguela, o berimbau (gunga) toca Benguela, o berimbau

(médio) toca Angola invertida e o berimbau (viola) continua com suas improvisações,

repiques e marcações, ao passo que os outros instrumentos apenas aceleram ligeiramente o

compasso. Por fim, iremos nos atentar somente aos 3 (três) estilos mais tocados e jogados

pelos grupos observados. No estilo da Capoeira Regional, o berimbau (gunga) toca São Bento

Grande, o berimbau (médio) toca Angola invertida e o berimbau (viola) continua suas

improvisações, repiques e marcações. Já o atabaque, pandeiro e agogô apenas aceleram o

ritmo.

A observação participante nos revelou que não importa a natureza e as circunstâncias

do evento, se é batizado de capoeira, troca de graduações, demonstração, roda ou até

competição, pois a formação da bateria deste grupo será sempre esta.

Por sua vez, a bateria do Grupo Sendero diferencia-se do Aruandê, pois esta é

constituída por seis instrumentos, sendo três berimbaus, um pandeiro, um atabaque e um

agogô. Tais instrumentos se encontram posicionados em uma ordem estática, diferente do

grupo relacionado acima. Tal ordenamento constitui-se a partir da seguinte descrição, da

esquerda para a direita, os instrumentos: berimbau (viola); berimbau (médio); berimbau

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(gunga); atabaque; pandeiro e, por ultimo, o agogô. No que diz respeito ao estilo e ao ritmo do

jogo, este grupo segue a mesma ritualização grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira.

Na Capoeira Angola (Grupo Quilombo de Angola), a bateria que acompanha a

ladainha marcada pelo canto de entrada é composta de 8 (oito) instrumentos: 3 (três)

berimbaus, 1 (um) pandeiro, 2 (dois) atabaques, 1 (um) agogô e 1 (um) reco-reco. Segundo

Fabrício, professor responsável pelo grupo, a bateria nem sempre segue esta ordem, pois tudo

depende de como será organizado o ritual, todavia, durante a observação, constatou-se esta

formação, da esquerda para direita, respectivamente: agogô, reco-reco, atabaque, Berimbau

(viola), Berimbau (médio), Berimbau (gunga) e pandeiro. Neste grupo, prevalece apenas o

estilo da Capoeira Angola, o berimbau (gunga) segue o toque da Capoeira Angola, o

berimbau (médio) realiza o toque de São Bento Pequeno e por último o berimbau (viola)

improvisa com seus repiques e marcações, sem sair da cadência rítmica, conduzida pelos

berimbaus gunga e médio; os pandeiros começam a ser tocados em seguida e são

acompanhados pelo toque do atabaque, agogô e reco-reco.

O ritual de canto de iniciação na capoeira angola começa com a ladainha. O cantador

grita: ―Iêêê‖. É este, pois, um grito de liberdade para iniciar a ladainha que desperta a todos na

roda:

Iêêêê! A história nos engana Diz tudo pelo contrário Até diz que a abolição Aconteceu no mês de maio A prova dessa mentira É que da miséria não saia Viva vinte de novembro Momento pra se lembrar Não vejo em treze de maio Nada pra comemorar Muito tempo se passou E o negro sempre a lutar Zumbi é nosso herói Zumbi é nosso herói, colega velho Do Palmares foi senhor Pela causa do homem negro Foi ele quem mais lutou Apesar de toda luta, colega velho O negro não se libertou Iê! O nego é bom Iê! Viva Zumbi Iê! Nosso herói Iê Vamo Jogar Camará Autor e Cantor: Mestre Moraes; Capoeira Angola)

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Tal como dito anteriormente, o Atabaque só pode ser tocado quando o mestre canta

―Iê! Vamo jogar Camará‖, e as vozes dos capoeiras na Roda repetem o que o mestre cantou

fazendo o coro. Na roda de Angola, após a ladainha, o corrido dita o ritmo do jogo e dá

continuidade para o seu momento.

Na análise de Vieira (1995) sobre os cânticos apresentados nas rodas, estes trazem três

funções básicas:

[...] inicialmente uma função ritual, fornecendo a animação da roda, juntamente com as palmas e a instrumentação. No tocante ao seu conteúdo, os cânticos de capoeira cumpre seu papel de elemento mantenedor das

tradições, reaviando a memória da comunidade da capoeira acerca dos acontecimentos importantes em sua história (as lutas ela libertação, os quilombos, a Dida – forçada obviamente – dos capoeiristas à Guerra do Paraguai, as fugas da polícia, etc.) e dos nomes famosos nas rodas de capoeira. Além de ser reavivando da tradição, o cânticos da capoeira atua como espaço dinâmico de constante repensar desse mesma história, dos princípios ético nas rodas de inserção da capoeira e do elemento negro na sociedade. (VIEIRA, 1995, p. 45, grifo do autor).

A musicalidade na capoeira é um campo de significados que ressignifica, ou seja, é um

espaço de permanente pensar no âmbito externo e interno da roda de capoeira, tal como o

demonstra a seguinte ladainha:

Iêêê! Na guerra do Paraguai Uma raça se destacou Na destreza e na coragem Muitas glórias conquistou Havia um negro O nome Negro Tião Foi pra guerra voluntário Em troca de liberdade No pantanal A batalha do Tuiuti Guarani Cerro Corá Ele mostrou o seu valor Na negativa Rasteira, rabo de arraia Faca de ponta, zagaia Foi ganhando promoção Mas quis a sorte E uma lança certeira O roubou a derradeira Esperança de liberdade Sangue correu Em pantanais paraguaios Em mais uma terra estranha Um corpo negro tombou E o seu sangue

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Não era preto, nem escravo Nem azul, nem de outra cor Era vermelho Que se espalhou como vento Trazendo um forte alento Para o povo brasileiro Camaradinha. Iê! O nego é bom Iê! Sabe jogar Iê! Volta do mundo camará (Autor e Cantor: Mestre Cobra; Capoeira Angola; Grupo: ABADÁ)

Esta ladainha, assim como outras, evidencia acontecimentos importantes onde reside

uma enorme riqueza de conteúdos que detalham a vida do povo negro: história, luta pela

libertação, coragem e ida forçada dos capoeiristas à guerra do Paraguai em troca da liberdade.

Segundo Corte Real, (2006, p. 98):

Característica fundamental do canto de desafio, também vista nas musicalidades das rodas de capoeira, é o canto narrativo, em que o solista aborda um fato acontecido e depois é seguido no canto pelo coro formado pela assistência.

A observação referente aos instrumentos e à musicalidade dos grupos possibilitou-nos

verificar algumas semelhanças com as práticas do Centro Cultural Aruandê Capoeira, tal

como a formação da esquerda para direita: pandeiro, pandeiro, berimbau viola (com cabaça

menor) que faz o som agudo, berimbau gunga (com a maior cabaça) com som grave (fica no

centro e determina o início e o fim em cada jogo), berimbau médio (com cabaça média) e som

médio, atabaque e agogô. A formação dos instrumentos do grupo Sendero Capoeira está

disposta da seguinte maneira, da esquerda para direita: berimbau viola, berimbau médio,

berimbau gunga, atabaque e agogô. Na angola a bateria se diferencia pelo fato de ter dois

atabaques na roda, ao passo que as outras apresentam apenas um.

Os cantos são bem distintos para cada ritmo cadenciado pelo toque do berimbau que

dita o jogo, o cantar e o fazer. Assim, todos que estão na roda são responsáveis pela

manutenção da música, ou seja, respondem ao coro, batem palmas, tocam instrumentos,

organizam a roda e cantam. Esse processo é educativo e configura-se como um dos momentos

mais ricos de tessitura entre os grupos e dentro dos grupos de capoeira. As notas se

acomodam de tal forma que se tece uma capoeira ou um mundo de capoeiras.

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3.3.3 Conduta/regras

O jogo na roda tem suas condutas e regras, entre elas, quem pode determinar o

comando da mesma, comprar o jogo, cantar, organizar, maliciar na roda ou, ainda, mas não

menos importante, batizar alunos.

A respeito dos mestres e da hierarquização na formação da bateria, eles podem tocar e

cantar no momento que quiserem. Mais especificamente, apuramos que isso vai depender das

relações estabelecidas e da organização com determinados grupos em posições de saberes e

fazeres, estamos a verificar a tessitura que se dá de forma minuciosa na Grande Cuiabá.

Uma encenação, assim se faz a malícia, quando o jogador de capoeira faz uma

expressão com o corpo que produzirá um determinado movimento, convencendo o outro

jogador a uma esquiva ou a um contragolpe. É, pois, a malícia que permite a um jogador

enganar o outro, fingindo que vai fazer algo quando, na verdade, está preparando um outro

tipo de golpe. Isso está muito presente e imerso nas rodas no sentido amplo, uma vez que é a

maneira como o capoeira vê, sente, ouve e joga com a vida, o mundo e, especialmente,

percebe as relações sociais vividas.

É importante frisar que cada mestre, cada jogador, e até cada iniciante, explica a

malícia da sua maneira. A malícia daqui (Grande Cuiabá) se assemelha a malícia de lá, mundo

afora onde a capoeira está presente, como uma rede feita de estranhamentos de fios jogada

sob um rio de forte correnteza. Por mais mudanças que o tempo possa ter provocado no fazer

capoeira, verificamos um entrançamento de relações destes grupos ou entre estes grupos.

A responsabilidade de quem canta, toca e organiza a roda e transmite a energia são de

todos. No entanto, cabe ao cantador articular e chama o axé. Para tanto, é necessária a

manutenção desta energia. Os mestres, professores e alunos mais avançados ficam na roda a

todo o momento chamando para responderem ao coro e a respeitar a formação de

instrumentos, pois, por exemplo, é inconcebível ficar na frente dos instrumentos que estão na

roda.

Sobre a ―compra do jogo‖ entre os capoeiras que estão na roda, esta pode ser

encerrada ao comando de quem está no berimbau. Vimos que, via de regra, é um capoeirista

mais experiente ou na ocasião em que algum jogador da roda entra para ―comprar o jogo‖.

Para que o capoeirista compre o jogo ele deve saudar o berimbau, fazer a ―volta ao mundo‖,

isto é, caminhar dentro da roda no sentido anti-horário. A volta também pode ser feita pela

dupla que está jogando naquele exato momento. O jogo pode ser comprado com quem está

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menos cansado ou também quando dois capoeiristas saem da frente do pé do berimbau para

comprar, assim se inicia um novo jogo.

No jogo de mestres, os mestrandos, contramestres, professores, não podem comprar o

jogo, a não ser que ele queira e chame para jogar ou esteja cansado. Isso significa que mestres

jogam entre mestres e com quem eles quiserem, pois têm autonomia para configurar cada

organização. São quatro os momentos de compra do jogo. Discorrido o primeiro, passemos

aos demais.

No segundo momento, os mestrandos e contramestres podem ―comprar o jogo‖ entre

si e com aqueles que possuem menor graduação que eles; o terceiro momento ocorre entre os

professores, eles jogam entre si e podem comprar jogo entre os mestrandos, contramestres e,

em dados momentos, caso algum deles esteja cansado ou quando eles denominam com quem

quer jogar; o ultimo momento é quando tais regras ficam mais flexíveis e ocorrem conforme a

organização de cada grupo, hierarquias, relações estabelecidas e constituídas em cada um

deles. No entanto, geralmente, seguem essa mesma regra de compra de jogo, onde o que

prevalece é a experiência do capoeirista e a relação entre cada um dele s, além do respeito à

hierarquia de graduação que se estabelece na roda.

Vários elementos permeiam as relações com o mundo e no Jogo na roda de Capoeira,

estes elementos aparecem de maneira intensa. A provocação e a disputa nas rodas são feitas

através de várias expressões do/no corpo: como de uma rasteira, um golpe bem feito, fazendo

o oponente cair. Sinal que na vida e na capoeira quem nunca caiu não é capoeira, portanto, é

preciso treinar. A liberdade, brincadeira e poder, entre outros, estão presentes em maior ou

menor intensidade durante um jogo, e não há um jogo igual ao outro, mesmo com um mesmo

oponente.

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CONSIDERAÇÕES

A pesquisa de campo é sempre um desafio, pois possui vários aspectos inesperados e

incontroláveis. No andamento desta pesquisa, percebemos que o caminho a ser seguido é

muitas vezes construído enquanto caminhamos. Há nossas incertezas, as estranhezas durante a

pesquisa, tão evidentes nesta etapa em que desafiamos nossos limites para dar origem à

riqueza de um trabalho construído na e com a pesquisa de campo, na e com a interação dos

sujeitos – agentes culturais – envolvidos na investigação.

A preocupação dos fazeres, das ferramentas metodológicas pautadas na compreensão

dos saberes e fazeres do universo da capoeira, talvez seja meu maior esforço na construção

desta pesquisa, enfatizando o olhar cuidadoso: se colocar por inteiro numa participação

efetiva de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada lhe apresenta (ROCHA,

ECKERT, 2008).

Tendo em vista a qualidade do lido e analisado, pensamos a capoeira como uma prática

corporal originária das necessidades materiais e ritualizadas dos sujeitos de uma determinada

cultura em um determinado tempo.

Os procedimentos inerentes à pesquisa nos asseguraram uma caminhada até a capoeira

na grande Cuiabá e, neste contexto, encontramos o movimento tecido pelos capoeiristas e seus

grupos, sejam estes constituídos em Cuiabá ou representados por grupos externos,

identificando, diferenciando aproximando-os aos demais grupos e capoeiras que estão

inscritos nos corpos brasileiros, conforme nos possibilitou o diálogo com os autores capoeiras.

Assim, foi possível constatar que Cuiabá é o local no estado onde se concentra o maior

número de grupos e donde partem os professores e mestres que assumem grupos de capoeira

em Mato Grosso, no país ou fora dele, com a responsabilidade de garantir a transmissão e a

vivência da capoeira como uma prática social.

Os debates suscitados, indícios de posturas ou as falas em que a miscigenação figura

como um alento para a população negra nos alerta, enquanto produtores desta cultura, para a

necessidade de parcerias que gerem formações sobre a história e relações raciais no Brasil a

todos os grupos de capoeira locais. Tomar para si a responsabilidade de ser um agente cultural

que se compreende nas relações sociais mais amplas foi um dos legados dessa pesquisa. A

capoeira é, como prática social brasileira, uma expressão das relações raciais e autoritárias

tanto quanto outras práticas, mas a partir dela, pode-se aprofundar a compreensão de nossas

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identidades e contradições, compreendendo-se como parte da história para, a partir desta

consciência de si, escrever outras histórias mais democráticas e interculturais.

Ademais, verificamos que as pesquisas e os posteriores trabalhos que tratem da

formação da Capoeira em Cuiabá, bem como outros recortes atentos às inúmeras

especificidades não discutidas aqui, irão adentrar ou propiciar o fortalecimento de uma

memória coletiva que, por sua vez, irá fortalecer sua identidade cultural de forma a valorizar

os agentes culturais. Ainda em relação a trabalhos de pesquisa como este, esperamos que

possam levar a Capoeira ao reconhecimento pela sociedade local que não deve ignorar as

denúncias, protestos e reivindicações cantadas nas ladainhas, muito menos as propostas

educativas encontradas nesta filosofia de vida, pois a capoeira proporciona condições de

interação participativa entre sujeitos de diferentes faixas etárias e saberes culturais.

Como nos ensinam os Mestres e Professores de Capoeira, há nesta prática social um

sentimento de pertença dentro de uma sociedade emancipada e complexa e o desejo de que

nela as diferenças culturais sejam respeitadas e valorizadas.

Ao final da trajetória desta pesquisa, percebemos que a caminhada desconcertou o

capoeirista e descontruiu um pedagogo ante novas inquietações vistas e provocadas pelas

inúmeras leituras que apuraram ―o olhar, o ouvir e o escrever‖, tal como referencia Roberto

Cardoso de Oliveira (2000) sobre o trabalho do antropólogo, e nos reposicionou em outro

lugar dentro de nós mesmos.

Os lugares de quem se constituiu e se constitui em diálogos interculturais, num corpo

que não é natureza biológica, mas social, num corpo que não é jogo, mas que se faz no jogo,

um jogo que é a vida porque é capoeira, porque é educador, porque é pesquisador.

No corpo pesquisador, novos espaços de produção cultural e acadêmica se desvendam e

inquietam ao se debruçar sobre uma temática que inicialmente era tão próxima e conhecida

mas, ao estranhá- la, possibilitou também o estranhamento de si mesmo.

Não se trata de considerar o pesquisador de capoeira como um transeunte que se encanta

pelo vigor das mãos que fazem o batuque, mas sim como aquele que se coloca junto ao objeto

dotado de lupas, outrossim, como alguém atento à conclamação do berimbau e de diversas

palmas, ao corpo percebido e vivido, às letras de justiça e liberdade, às aprendizagens

possíveis que a Educação tem a ganhar quando a academia traz à tona a temática sobre

valores culturais, construções e vivências afro-brasileiras.

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