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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DE RONDONÓPOLIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ITAMAR JOSÉ VALÉRIO JÚNIOR “CRIANÇAS ESTILOSAS”: IMAGENS DE INFÂNCIA NAS REDES SOCIAIS Rondonópolis MT 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DE RONDONÓPOLIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ITAMAR JOSÉ VALÉRIO JÚNIOR

“CRIANÇAS ESTILOSAS”: IMAGENS DE INFÂNCIA NAS REDES SOCIAIS

Rondonópolis – MT

2016

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ITAMAR JOSÉ VALÉRIO JÚNIOR

“CRIANÇAS ESTILOSAS”: IMAGENS DE INFÂNCIA NAS REDES SOCIAIS

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal de Mato Grosso –

Campus Universitário de Rondonópolis, Linha de Pesquisa: Linguagens, Cultura e

Construção do Conhecimento: perspectivas histórica e contemporânea, como requisito parcial à obtenção do título

de Mestre em Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Raquel Gonçalves Salgado

Rondonópolis – MT

2016

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Rod. Rondonópolis.-Guiratinga, km 06 MT-270 - Campus Universitário de Rondonópolis - Cep:

78735-901 -RONDONÓPOLIS/MT

Tel : (66) 3410-4035 - Email : [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO : "CRIANÇAS ESTILOSAS: IMAGENS DE INFÂNCIA NAS REDES SOCIAIS"

AUTOR : Mestrando Itamar José Valério Júnior

Dissertação defendida e aprovada em 12/09/2016.

Composição da Banca Examinadora:

_____________________________________________________________________________

____________

Presidente Banca / Orientador Doutor(a) Raquel Gonçalves Salgado Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinador Interno Doutor(a) Carmen Lúcia Sussel Mariano Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinador Externo Doutor(a) Rita Marisa Ribes Pereira Instituição : UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Examinador Suplente Doutor(a) Leonardo Lemos de Souza Instituição : UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

RONDONÓPOLIS,12/09/2016.

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Dedico esta dissertação a um pai maravilhoso, que vive em meu coração, Itamar José Valério (In Memoriam). À minha

mãe, Benedita Rosália Silva Valério, a quem considero grande espelho da minha vida. À minha querida filha, Ana Jéssica Gomes Valério, e aos meus sobrinhos, Maria Eduarda,

Valentina, Guilherme e Alexandre.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus por me manter centrado na realização desse

trabalho, por não me deixar abalar pelos desafios que surgiram pelo caminho, por ter

me proporcionado viver esse momento tão especial às luzes do aprendizado, da

pesquisa e do conhecimento.

Sou muito grato ao meu querido pai, Itamar, e aos meus antepassados, pois,

graças a eles, tenho a possibilidade de vivenciar mais essa grande etapa da minha

vida.

Sou grato também à minha querida família: minha mãe, Benedita; minha filha,

Ana Jéssica; minha irmã, Patrícia; meu irmão, Alex, e sua esposa, Aparecida, pelo

apoio, amor e carinho desde sempre.

À minha orientadora, Profa. Dra. Raquel Gonçalves Salgado que, desde o

início desta pesquisa, percebendo minhas dúvidas e inquietações, direcionou de

modo tranquilo o percurso desse trabalho, com sua confiança em minha pessoa e o

seu apoio. Tê-la como orientadora foi um imenso aprendizado. Muito além do ato de

"orientar na pesquisa", ela me fez observar, não apenas como pesquisador, mas

também como cidadão e professor, as novas conjunturas em que se desenha, a

todo instante, a relação da infância com as mídias digitais. Também por ter me

apresentado ao pensador Mikhail Bakhtin, cujas obras contribuíram para um novo

modo de ver o mundo e o ser humano, por meio dos discursos, sejam eles orais,

escritos, imagéticos, por signos ou materializados de outras formas.

A Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT/CUR, especialmente ao

corpo docente do curso de mestrado em Educação do PPGEdu.

À Profa. Dra. Rita Marisa Ribes Pereira, pela honra que me foi concedida de

fazer parte de minha banca, pelo contato com seus conhecimentos sobre a infância,

em especial a infância contemporânea, pelo seu olhar atento em relação à criança

nas redes sociais online e pelas prestativas e enriquecedoras contribuições no

desenvolvimento dessa dissertação.

À Profa. Dra. Carmem Lúcia Sussel Mariano, pela participação em minha

banca, por ter me proporcionado refletir, de modo crítico, sobre a infância como

relevante período de vida para o ser humano e também por ter colaborado com o

seu conhecimento para minha pesquisa.

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Ao Prof. Dr. Leonardo Lemos de Souza, pela pessoa especial que é e pelo

modo como divide os seus conhecimentos com os alunos.

À Profa. Dra. Cancionila Janzkovski Cardoso, pela sua dedicação e carinho

no seu jeito de ser; à técnica Anabel Beatriz de Col, pela atenção e auxílio para com

os mestrandos e à Anabela Ferrarini, pela brilhante revisão textual.

Aos integrantes do Grupo de Estudos Infância, Juventude e Cultura

Contemporânea (GEIJC), pelas leituras, pelos debates e pelos conhecimentos.

Aos mestrandos, especialmente Rosângela, Pedro e Luciane, relações que se

intensificaram, em muitos momentos de aprendizagem, e ultrapassaram o campo

acadêmico, nos tornando amigos e companheiros. À Rosângela e ao Pedro sou

grato pelas longas conversas, críticas construtivas, pelo respeito e pela

consideração. Grandes amizades são conquistas a serem celebradas.

À Waldinéia, pela confiança, pelo senso crítico e apoio, à Gisele, pelas

palavras carinhosas de incentivo e ao Gérson pelas mensagens de estímulo.

Aos colegas do Instituto Federal de Mato Grosso – IFMT/Rondonópolis.

Se alguém não foi mencionado, peço desculpas, pois meus sinceros

agradecimentos se estendem a todas as pessoas que, de algum modo, colaboraram

para a realização dessa pesquisa.

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A fotografia propriamente dita também só oferece material para cotejo, e nela não vemos a nós mesmos mas tão somente o nosso reflexo sem autor; é verdade que esse reflexo já não reproduz a expressão do outro fictício, ou seja, é mais puro que o reflexo no espelho, no entanto é percebido de forma aleatória, artificial, e não expressa nossa diretriz volitivo-emocional no acontecimento da existência – esse material bruto, que de modo algum pode ser incluído na unidade da minha experiência de vida por não haver princípios para a sua inclusão. (Mikhail Bakhtin, 2011, p. 32).

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RESUMO

As mídias e tecnologias da comunicação conquistam cada vez mais destaque na contemporaneidade, promovendo constantes mudanças nas relações humanas e

nos processos de constituição subjetiva. Nessa conjuntura, temos a infância entrelaçada com as mídias digitais. Esta pesquisa tem como objetivo principal analisar os discursos de beleza e sedução, que compõem as imagens de crianças,

especificamente meninas, estampadas em redes sociais online, em especial, a página no Facebook "Crianças Estilosas – Blog pessoal". As principais questões de

pesquisa são: que imagens de infância são refletidas nos espelhos digitais presentes na rede social e como estas constituem discursos contemporâneos em torno desse tempo de vida, que se apresentam como pedagogias culturais ao ensinarem às

crianças modos de ser, comportar-se e relacionar-se com o outro? Quais são os discursos presentes em páginas de uma rede social, em que imagens de meninas estão associadas à beleza e à sedução? Que valores e perspectivas sociais

atravessam as imagens de corpos de meninas postadas na página do Facebook "Crianças Estilosas – Blog pessoal"? A metodologia é de cunho qualitativo e conta

com os aportes teórico-metodológicos e analíticos de Mikhail Bakhtin, com destaque para os conceitos de enunciado, dialogismo e polifonia. O foco de análise é a página “Crianças Estilosas – Blog pessoal”, da rede social Facebook. Esse blog foi

selecionado por possuir o maior número de curtidas (56.444) até o dia 30 de abril de 2015, dentre todas as demais páginas acessadas que trazem representações de

infância, em imagens de crianças, com discursos de beleza e sedução. A decisão de trabalhar apenas com as imagens de meninas deu-se em função de estas serem a maioria. Nessa página, as crianças que aparecem nas postagens possuem idades

que variam de alguns meses de vida (bebês) até sete anos de idade e a maioria delas é da etnia branca. As imagens das meninas destacam-se não apenas pelo fato

de serem maioria nas postagens de fotos, mas também pelos modos como estas são representadas. Essas imagens revelam elementos ambíguos, entrelaçando a inocência com a sedução. Observamos, nesta pesquisa, que, apesar de se notar a

presença da criança nas redes sociais online, nem todos os discursos imagéticos relativos à infância são produzidos pela criança. Ao contrário, muitos desses

discursos são produzidos pelos adultos. As imagens aqui analisadas são resultados de discursos do outro, mais propriamente dos adultos, num tenso processo de idealização da infância. Os discursos imagéticos, que remetem à beleza e à

sedução, investidos nos corpos das meninas, possuem ecos que circulam nos campos da educação, da sexualidade e das relações de gênero. São discursos que

transitam em nossa cultura e abarcam, dessa forma, a infância contemporânea.

Palavras-chave: Infância. Corpo. Imagens. Redes Sociais.

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ABSTRACT

This research aims to analyze the speeches of beauty and seduction that make up

the images of female children in social networks, especially Facebook on the page

"Stylish Children - Personal Blog". Media and communication technologies are

highlighted in contemporary society, promoting constant changes in human

relationships and in the subjective constitution processes. In this context, we have

the childhood intertwined with digital media. The main research questions are: what

childhood images are reflected in digital mirrors present in the social network and

how these are contemporary discourses around of the timefile that present as cultural

pedagogies teaching to the children ways of being, behaving and relate to each

other? What are the discourses present in social pages where girls images are

associated with beauty and seduction? What values and social perspectives cross

the images of girls bodies posted on Facebook in the page "Stylish Children -

Personal Blog"? The methodology in this research it is imprint by quali tative

approach with theoretical and methodological and analytical contributions of Mikhail

Bakhtin, with highlight to the concepts of utterance, dialogism and polyphony. The

focus of analysis is the page "Stylish Children - Personal Blog," on the Facebook.

This blog was selected for having the greatest number of likes (56.444) until April 30,

2015, among the other pages that bring childhood representations in images of

children, with speeches of beauty and seduction. The decision to work only with the

girls pictures gave up due to these being the majority. Children in this page have

ages ranging from a few months (babies) up to seven years old, mostly of them white

ethnicity. The images of these girls stand out not only because they are just photos,

but also the ways these photographs are represented, revealing ambiguous

elements, interweaving innocence with seduction. We observed in this research that

although we noted the presence of the in social networks, not all imagetic discourses

related to childhood are produced by themselves, but by adults. The analyzed

images are the result of the discourses of another, more specifically, the adults

discourses, in a tense process of childhood idealization. The imagistic speeches,

referring to the beauty and seduction, invested in the bodies of the girls, have echoes

that circulate in the fields of education, sexuality and gender relations. They are

speeches that transiting in our culture and embrace thus contemporary childhood.

Keywords: Childhood. Body. Images. Social networks.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Página inicial “Crianças Estilosas – Blog Pessoal” 87

Imagem 1 – Crianças Estilosas (a) 106

Imagem 2 – Crianças Estilosas (b) 110

Imagem 3 – Crianças Estilosas (c) 115

Imagem 4 – Crianças Estilosas (d) 119

Imagem 5 – Crianças Estilosas (e) 121

Imagem 6 – Crianças Estilosas (f) 124

Imagem 7 – Crianças Estilosas (g) 127

Imagem 8 – Crianças Estilosas (h) 129

Imagem 9 – Crianças Estilosas (i) 132

Imagem 10 – Crianças Estilosas (j) 136

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 IMAGENS DA INFÂNCIA NA HISTÓRIA: QUANDO A INOCÊNCIA ENTRA EM

CENA ...................................................................................................................................... 26

1.1 Infância imaculada ....................................................................................................... 30

1.2 Escola e disciplina ....................................................................................................... 33

1.3 Autonomia do corpo.................................................................................................... 37

2 IMAGENS CONTEMPORÂNEAS DA INFÂNCIA: O CORPO DA CRIANÇA

ENTRE A INOCÊNCIA E A SEDUÇÃO ........................................................................... 42

2.1 Cibercultura e infância................................................................................................ 48

2.2 Encontros e brincadeiras: crianças nas redes sociais ..................................... 52

2.3 Fronteira tênue: menina criança e menina mulher ............................................. 55

3 BELAS E SEDUTORAS, AS IMAGENS DE MENINAS REFLETIDAS NOS

ESPELHOS DIGITAIS ......................................................................................................... 60

3.1 Beleza e sedução: origem e significado ................................................................ 61

3.2 Imagens da feiura: do corpo grotesco ao corpo midiático .............................. 63

4 FEMININO: GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE .................................................... 67

4.1 Ser menina: (des)construindo identidades.......................................................... 70

4.2 Desafios e reflexões para o feminino ..................................................................... 73

5 INFÂNCIA IMAGÉTICA: FUNDAMENTOS E PERCURSOS METODOLÓGICOS

................................................................................................................................................. 79

5.1 Um misto de inocência e sedução: as imagens de meninas na página do

Facebook “Crianças Estilosas – Blog Pessoal” ........................................................ 79

5.1.1 Enunciado, dialogismo e polifonia ............................................................................ 81

5.2 "Crianças Estilosas – Blog Pessoal": locus da pesquisa................................. 87

5.3 Objetivos da pesquisa.......................................................................................91

5.4 O corpus da pesquisa ................................................................................................ 92

5.5 A trajetória da pesquisa ............................................................................................. 96

5.6 Nas imagens virtuais de meninas, os novos mapeamentos da infância .... 103

CONSIDERAÇÕES INACABADAS ................................................................................ 140

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 150

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INTRODUÇÃO

Os momentos de aulas do mestrado possibilitaram-nos oportunidades para

buscar um delineamento do objeto de pesquisa e, assim, saber como nos

movimentar durante todo o processo de investigação. Para tanto, foi necessário

estar atentos e não menosprezar a paisagem, na qual o objeto estava inserido, pois

um detalhe poderia fazer toda a diferença. Por isso, passamos a compreender a

importância de estarmos envolvidos com a paisagem da pesquisa como um todo.

O processo de elaboração da pesquisa promoveu um grande aprendizado, e

é nesse decorrer que surge um momento especial, a construção do conhecimento.

Qualquer que seja a descoberta ou observação, esta pode vir a ter significativa

importância para a investigação empreendida. É desafiador e libertador quando

criamos nossos próprios caminhos, circulamos por paisagens incríveis e, às vezes,

desconhecidas. Assim é a pesquisa, porém, há algo mais complexo quando nos

propomos a pesquisar.

No curso de mestrado, já nos é apresentado um esboço do caminho, da

distância e curvas à vista, só não conseguimos detectar os obstáculos antes da

caminhada, mas o mapa, esse sim é desenhado e apresentado para nós. Durante

essas vivências, fomos percebendo que precisamos criar nossas próprias narrativas,

nossos próprios caminhos para fazermos nossas pesquisas.

Abriu-se, a partir daí, um mundo maravilhoso enquanto, ao mesmo tempo,

transbordamo-nos de dúvidas. Uma das minhas maiores preocupações era seguir

da melhor forma possível o caminho delineado em conjunto com minha professora

orientadora, privilegiando oportunidades de buscar novas metodologias ou maneiras

de pesquisar, destacando, assim, as singularidades do aluno-pesquisador, nas quais

a pesquisa terá a sua marca, o seu modo de conduzir a escrita. Isso representa uma

grande riqueza no processo de pesquisa.

O imprevisível faz parte de nossas vidas, e, assim como uma derrapada

sofrida por um skatista, podemos derrapar também nas pistas da pesquisa.

Essa imprevisibilidade faz lembrar que a obra bakhtiniana, que inspira esta

pesquisa, é marcada por um inacabamento, um vir a ser, uma heterogeneidade, que

tornam muito complexa a apreensão de seu pensamento. O ser é um evento único.

Bakhtin se volta para a existência do ser humano concreto (FIORIN, 2008).

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Conciliar a construção de um caminho e a parte dedicada ao resultado da

pesquisa é o nosso maior desafio, o qual comparo a belíssimas acrobacias

desenhadas no ar sobre desafiadoras rampas. Nas pistas da pesquisa, adentramo-

nos, fazemos descobertas, brincamos, ensaiamos voos e enfrentamos desafios. Nas

pistas da pesquisa, podemos fazer o nosso melhor, construir caminhos, rivalizar com

o tempo, lembrando que cada um tem o seu tempo, no entanto, conscientes de que

o aprendizado e o ato de pesquisar são sempre um processo em devir.

Nesse percurso da pesquisa, vamos ao encontro de imagens de crianças, que

circulam no ambiente digital e que, neste, acabam sendo projetadas em espelhos

virtuais.

Observando esses reflexos imagéticos, percebe-se que existe um clima de

excitação no ar: entre roupas e sapatos, maquiagens, preparativos para o penteado,

acessórios e artefatos, uma criança se prepara para ser fotografada.

Sua imagem estará, em instantes, na página de alguma rede social online, um

espaço virtual que exibe aos internautas diversas imagens de crianças.

A criança em questão tem o nome fictício de Júlia e está muito empolgada

para a sessão de fotos que a mãe e a tia organizaram em casa. Trata -se de uma

produção caseira, amadora, não de uma equipe profissional de fotografia ou de um

estúdio de imagens, mas sim de fotografias que serão produzidas na casa de Júlia.

Algumas amigas da menina já sabem do acontecimento e aguardam a sua

postagem nas páginas do Facebook.

Essa história é uma ficção e foi inspirada no foco de análise desta pesquisa,

que remete às imagens de meninas relacionadas aos signos de beleza e sedução

(com roupas e sapatos da moda, penteados ou cortes de cabelos, maquiagens e

acessórios etc) e em performances imagéticas. Nos comentários e nos

compartilhamentos realizados pelos internautas nas mídias sociais, também foi

considerada a elaboração deste pequeno enredo introdutório, uma vez que Júlia

poderia ser Maria, poderia ser Izabel, poderia ter outros nomes e outros rostos. O

que se coloca em questão aqui são os novos modos de ser, de apresentar-se ao

outro, notadamente um “outro” virtual, as imagens de infância que ganham

visibilidade nos espaços sociais contemporâneos, com destaque para as mídias

eletrônicas e, em especial, as redes sociais online.

Concomitantemente ao aumento do acesso da criança à plataforma

cibernética, nota-se a presença de outro fenômeno, ou seja, de um comportamento

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da sociedade contemporânea, já muito presente na infância. Trata-se da exposição

demasiada de corpos de crianças, principalmente de meninas, em situações que

realçam um padrão de beleza e a sedução na aparência física.

O que parecia ser algo que despertava a atenção quando se observava com

determinada distância, tornou-se surpreendente quando a pesquisa teve seu início,

daí ser este um tema que clama por investigações, debates e reflexões. Assim,

mediante cada novo encontro com as ilustrações imagéticas que dizem respeito aos

corpos infantis femininos, percebe-se que há muito para se estudar e, dessa forma,

analisar que outros contornos a infância contemporânea tem ganhado, sobretudo no

tocante aos modos como tem sido representada imageticamente, questão esta que

consiste no objeto de investigação desta pesquisa. Nesse sentido, o que se torna

corriqueiro e cotidiano, no âmbito da pesquisa, constitui-se como surpreendente e

enigmático. "O outro se torna estrangeiro pelo simples fato de eu pretender estudá-

lo." (AMORIM, 2004, p. 31).

A exposição da infância nas redes sociais está imbricada com os avanços

científicos e tecnológicos, juntamente com as transformações sociais, econômicas e

culturais que revolucionam as formas como nos relacionamos e nos posicionamos

no mundo, como nos comunicamos e interagimos com as pessoas, com os objetos,

com os acontecimentos e como percebemos a nós mesmos. Imersos neste contexto,

percebemos que as distâncias diminuíram, há uma fluidez nas fronteiras entre a

infância e o mundo adulto. O mundo está cada vez mais globalizado e as mídias e

tecnologias de comunicação vão ganhando destaque, promovendo constantes

mudanças nas relações humanas e nos modos como nos constituímos

subjetivamente. Nesse cenário, dirigimos nosso olhar à infância contemporânea e

deparamo-nos com o fato de que esta também está, cada vez mais, entrelaçada

com as redes sociais digitais.

Vinculada à linha de pesquisa “Linguagem, Cultura e Construção do

Conhecimento” e ao grupo de pesquisa “Infância, Juventude e Cultura

Contemporânea” (GEIJC), do Programa de Pós-graduação em Educação, do

Câmpus Universitário de Rondonópolis, Universidade Federal de Mato Grosso

(PPGEdu/CUR/UFMT), esta pesquisa tem como foco principal analisar os discursos

presentes em imagens de corpos de meninas, em uma página da rede social

Facebook, conhecida como "Crianças Estilosas – Blog pessoal".

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O corpo da criança, especificamente o corpo da menina, tem ganhado novos

contornos ao ser refletido em novos espelhos da sociedade. O que se coloca em

questão é como se configuram as imagens da infância refletidas nos espelhos

digitais das redes sociais e como estas, por sua vez, constituem discursos

contemporâneos em torno da infância e que compõem pedagogias culturais que

ensinam às crianças modos de ser, comportar-se e relacionar-se com o outro.

A imagem ganhou uma repercussão e um empoderamento nunca antes visto

na história, graças ao advento das mídias digitais. Entendemos hoje que a

exposição das imagens de crianças nas redes sociais, como os novos "espelhos", já

refletem e interpelam os modos de ser criança.

Ocorre que nossa própria relação com a imagem externa não é de índole imediatamente estética mas diz respeito apenas ao seu eventual efeito sobre os outros – observadores imediatos –, isto é, nós a avaliamos não para nós mesmos mas para os outros e através

dos outros. (BAKHTIN, 2011, p. 31).

Os espelhos virtuais nos revelam uma realidade na qual as crianças exploram

as novas tecnologias e suas linguagens de maneira precisa e eficaz. Isso significa

que elas já possuem habilidades com a rede e, na contemporaneidade, vão

conquistando um letramento digital por meio de aprendizagens constantes com

essas novas tecnologias de comunicação. Dornelles (2005) afirma que a nova

relação da infância com a sociedade, via tecnologias digitais, estabelece a criança

como uma consumidora, alvo de interpelações que a deixam individualizada e

fragmentada, conhecida como sujeito cyber-infante pós-moderno. As crianças

aprendem desde cedo que consumir é possuir determinados objetos, adotar certo

estilo de vida, é condição necessária para a felicidade, é conquistar um status e,

portanto, uma atividade fundamental em seu processo de subjetivação. Nesse

processo, ganhar visibilidade nos espaços sociais é ser ou ter acesso às estratégias

que permitem se tornar uma criança “bela”, para, então, se r refletida nos espelhos

das redes sociais.

O constante apelo à beleza, que se expressa através de um corpo magro e jovem, e que, para se manter dentro desses padrões, precisa cada vez mais se submeter a sacrifícios e cuidados, tem encontrado acolhida não só entre mulheres mais maduras, mas também entre as jovens e meninas. (FELIPE, 2012, p. 55).

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Diante desse apelo à beleza, muitas meninas não medem esforços para

ficarem com uma aparência considerada bonita. Mas, afinal, existe uma beleza ideal

a ser seguida? "A imagem da mulher na cultura confunde-se com a da beleza. Esse

é um dos pontos mais enfatizados no discurso sobre a mulher: ela pode ser bonita,

deve ser bonita, do contrário não será totalmente mulher." (NOVAES, 2013, p. 85).

Diante da citação acima, percebe-se não ser nada fácil para as mulheres

enfrentarem essa situação de pressão. Cabe-nos fazer uma reflexão sobre a

situação das crianças nessa realidade, em especial das meninas que, desde cedo,

têm se tornado alvo desses discursos de beleza estética, predominantemente

branca. Somado a isto se observa um intenso e eficaz investimento feito na internet,

por meio das redes sociais virtuais, junto às crianças, e sustentado pelo consumo,

ao apresentar uma imagem de infância única, à qual todas elas devem se adequar.

A internet, porém, não é uma instituição, sujeito ou ator social, não funciona a

seu bel-prazer, é uma plataforma digital, é, segundo Ferreira (2001, p. 427), "um

conjunto de redes de computadores ligados entre si." O autor ainda afirma que essa

rede funciona em "âmbito mundial, descentralizada e de acesso público, cujos

principais serviços oferecidos são o correio eletrônico e a web".

As redes sociais se constituem como tal a partir do uso que dela fazem

diferentes atores sociais, ou seja, pessoas que transitam nesses espaços,

transformando-os numa rede de contatos, comunicação e relacionamentos. Entre os

discursos que circulam nessa rede, encontram-se os que relacionam estética e

infância, difundidos por muitas pessoas que, seja por um motivo ou outro, visam

propagar esse ideário de infância.

Possivelmente, consagra-se uma época na qual a exposição de corpos

infantis chama a atenção e nos intriga, sob intervenções de artefatos culturais,

produtos, compondo um marketing avassalador e um discurso de que a beleza e um

corpo escultural, sensual, branco e feminino são condições exigidas para ser uma

criança “estilosa” e que isso implica, necessariamente, em sua felicidade. Isso fica

evidente quando se observa que a maioria desses corpos é de meninas,

atravessados e definidos por discursos de um valor estético e de sedução, que se

configuram, cada vez mais, como normas.

Ao mesmo tempo em que aparatos jurídicos são constituídos para preservar a integridade física, moral e social das crianças, e também

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para combater práticas de pedofilia, há, contraditoriamente, em nossa sociedade, um significativo investimento em práticas corporais já na infância. Assim, a produção e a veiculação dos corpos infantis, em especial os das meninas, envoltos em práticas de embelezamento, de intervenções estéticas, de cuidados com a aparência e com a imagem, têm propiciado sua erotização e seu consumo. (BECK, 2013, p. 141-142).

Vivemos numa sociedade do consumo e do culto ao corpo jovem, à beleza,

da incansável busca pelo corpo perfeito, perseguindo um padrão de beleza. Isso

também tem afetado a vida das crianças, especificamente das meninas, pois já

buscam conquistar o olhar do outro, no simples ato de se embelezarem diante de

um espelho.

A importância de analisar o panorama da infância na contemporaneidade

reside na compreensão dos ecos dos discursos que hoje constituem as imagens

dessa temporalidade da vida e repercutem nas experiências das crianças, pois os

reflexos desses acontecimentos podem ser visibilizados no fenômeno da erotização

midiática, pautada no consumo dos corpos infantis.

O interesse da humanidade pela sua própria imagem pode ter vindo desde a

Antiguidade. Provavelmente, o ato das pessoas observarem o próprio reflexo

acontecia na água, pois, diante dela, tinham ideia de como se apresentavam e, com

isso, agregavam valores que definiam essa compreensão. A milenar história

mitológica de Narciso talvez seja emblemática nesse aspecto. Trata-se do

encantamento de um belo jovem por sua própria imagem refletida num lago. Desse

modo, podemos também pensar as redes sociais como potenciais lagos digitais da

contemporaneidade. Como pontua Bakhtin (2011, p. 30):

Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente específico de visão de minha imagem externa. Tudo indica que neste caso vemos a nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão e vivenciamento do mundo: vemos o reflexo da nossa imagem externa mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho; o espelho só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um material não genuíno. (BAKHTIN, 2011, p. 30).

Vasconcellos (1998) relata que Narciso era filho de uma belíssima ninfa. O

rapaz, desde que nasceu, sempre foi formoso e tinha uma extraordinária beleza.

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Muitas moças e ninfas queriam o seu amor, mas ele desprezou a todas. Ao se

deparar com a beleza de Narciso, a ninfa Eco se apaixonou por ele, porém foi

repelida. A rejeição de Narciso se abateu sobre Eco, que se transformou em pedra.

Um dia, uma das jovens desprezadas por Narciso pediu ao céu que ele amasse com

a mesma intensidade, sem poder possuir a pessoa amada. Nêmesis, a divindade

punidora do crime e das más ações, atendeu ao pedido da jovem e puniu Narciso,

que, ao beber a água de uma límpida fonte, se apaixonou por si mesmo. Sem saber

que aquela imagem era sua, refletida no espelho d’água, tentou, inutilmente, abraçá-

la, mas morreu afogado.

O grande fascínio que a exposição de corpos considerados belos e sedutores

exerce sobre as pessoas, nas redes sociais, poderia ser a marca de uma cultura

narcísica? Refletir sobre esta situação, em se tratando das crianças, pode ser mais

complexo ainda, pois, a todo o momento, imagens de crianças são postadas nas

redes sociais. Cabe aqui salientar que muitas postagens possuem o apoio dos

familiares. Tomando como ponto de partida as imagens de meninas do blog

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook, parece haver uma preocupação

com o sucesso dessas fotografias, da repercussão dessas imagens que são

refletidas nos novos espelhos da era contemporânea.

O que se constituía em um espelho d'água para Narciso se admirar hoje seria

muito bem representado pelos espelhos digitais, uma vez que as páginas das redes

sociais online estabelecem um novo tipo de relação com o outro, uma relação que

busca o olhar de admiração desse outro. Vilhena (2008 apud NOVAES, 2010) afirma

que "no registro das culturas narcísicas, tudo é permitido ao sujeito que se crê o

centro do universo – em sua onipotência predatória, o outro é apenas um objeto

para usufruto de seu próprio gozo." (NOVAES, 2010, p. 45).

Outro comportamento que reflete esse modo narcísico de ser é a selfie1, um

autorretrato que pode ser feito através do aparelho de telefone celular . Apesar das

imagens analisadas nesta pesquisa não se caracterizarem como selfies, já se

percebe muito a presença desta forma de fazer fotografias entre as crianças, até

porque a selfie já se tornou um tipo de expressão cultural das redes sociais e é

muito utilizada não só por adultos e adolescentes, como também por crianças.

1 Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo com origem no termo self-portrait, que significa

autorretrato, e é uma foto tirada e compartilhada na internet. Normalmente, é tomada de uma câmara fotográfica de mão ou celular com câmera. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013

pelo Oxford EnglishDictionary. Disponível em: www.significados.com.br Acesso em: 26/04/2015.

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Ao fazer uso de postagens de selfies nas redes sociais, em convívio ou

brincadeiras com outras pessoas, a criança estabelece uma relação dialógica,

trazendo à tona, nesse discurso imagético, vozes sociais que carregam sentidos

sobre como se relacionar com a sua própria imagem e com as imagens dos outros.

Como Stam (1992, p. 74) analisa, o dialogismo “se refere às possibilidades abertas e

infinitas geradas por todas as práticas discursivas de uma cultura, toda a matriz de

enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado."

Nêmesis puniu Narciso com a morte por ter se apaixonado por sua própria

imagem, mas, quando se pensa na criança que se encontra envolvida no mundo

digital, pressionada a se preocupar com a sua própria imagem, com o seu corpo,

sobre como se apresentar ao mundo, a seguir determinados padrões de beleza,

pode-se relativizar que a "Nêmesis contemporânea" vem sendo muito bem

representada pelo consumo, pela individualização e pela valorização demasiada do

corpo jovem, branco, magro ou “sarado”, enfim, um corpo considerado perfeito.

É virtual toda entidade "desterritorializada", capaz de gerar diversas

manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem,

contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo particular (LÉVY, 1999, p. 49).

O mundo virtual não deixa de ser real, pelo contrário, ele é verdadeiro e pulsante,

pois possibilita que as pessoas se relacionem por meio de outras mídias, entre elas,

as redes sociais. Essa comunicação ocorre sem a necessidade das pessoas

estarem fisicamente próximas, é uma grande revolução nas relações interpessoais,

nos meios de comunicação e podemos ter o corpo belo e sedutor como almejado

produto de consumo, como pano de fundo desse evento.

Narciso morreu afogado porque não compreendeu que entre ele e a imagem existe a água. Eu sei que entre eu e a imagem há o mundo, há a palavra dos outros, uma grande distância. [...] Não há perigo de morrer dessas imagens, porque não sou tonto como Narciso. Sou Narciso sem espelho. Para mim as imagens existem através do olhar dos outros, que me falam, que me trazem, que me permitem ver. (BAVCAR, 2009 apud PASSOS; PEREIRA, 2009, p. 269).

Fotografias de meninas, consideradas belas e sensuais, que antes apenas

provocavam olhares curiosos dos internautas nas redes sociais, vêm causando outro

tipo de provocação, em muitos setores de nossa sociedade, preocupados com a

exposição cada vez maior de corpos infantis, principalmente de meninas em

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performances pautadas na idealização de corpos de mulheres adultas e belas.

Estamos vivendo em uma cultura, em que “as crianças passam a ser bombardeadas

com informações vultosas que ostentam o padrão de beleza da mulher midiática,

como meta a ser alcançada quando forem adultas." (SALGADO; LUIZ, 2012, p. 18).

A principal questão desta pesquisa consiste em analisar imagens de meninas

na página "Crianças Esti losas – Blog Pessoal”, no Facebook. Essas imagens

destacam-se não apenas pelo fato de a maioria ser postagens de fotos, mas

também pelos modos como as meninas são apresentadas, na maioria das vezes,

afastadas da ideia de inocência da infância e, por isso, mais próximas da vida

adulta. São, portanto, imagens associadas à beleza do corpo feminino, fortemente

pautada na sedução, materializadas em discursos de um corpo perfeito e

glamouroso para a infância. Discursos estes que circulam hoje em nossa cultura e,

consequentemente, se fazem muito presentes na vida das crianças, nos modos

como se veem e se relacionam com os outros.

Há também outras questões que estão ligadas à questão principal desta

pesquisa. São elas: que imagens de infância são refletidas nos espelhos digitais

presentes na rede social e como estas constituem discursos contemporâneos da

infância, que se apresentam como pedagogias culturais ao ensinarem às crianças

modos de ser, de comportar-se e de relacionar-se com o outro? Quais são os

discursos presentes em uma página do ciberespaço, em que imagens de crianças

estão associadas à beleza, à sedução, ao glamour? Que valores e perspectivas

sociais atravessam as imagens de corpos de meninas postadas na página do

Facebook "Crianças Estilosas – Blog pessoal"?

Segundo Dornelles (2005), "cyber-infantes" origina-se de "cyber-infância", que

significa aquela infância afetada por novas tecnologias, que vem produzindo a

infância tida como perigosa. Produz-se nos adultos sentimentos de medo da

infância, visto que ela nos escapa. Vê-se na cyber-infância um perigo, talvez por não

se ter produzido um saber suficiente para controlá-la ou porque não se consegue

melhor governá-la.

A cyber-infância constitui-se nas mediações com as novas tecnologias da

informação e da comunicação, apresentando-nos outros conceitos de infância. São

novas formas de ser criança, e uma destas é estar conectada à multimídia e às

modernas tecnologias. A cyber-infância constitui-se a partir de pedagogias culturais

que não cessam de ensinar códigos linguísticos e culturais às crianças em diferentes

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ambientes sociais, muito além da escola. Essa relação dos cyber-infantes com o

mundo virtual carece de investigação e reflexão, levando-se em conta que essas

crianças têm acesso aos produtos tecnológicos e à internet desde muito cedo.

No século XVII, prevalecia a ideia de que a criança era um ser frágil, inocente

e que não poderia desenvolver qualquer atividade sem a última palavra do adulto.

Mas esse cenário se transforma, passa por grandes transformações mobilizadas por

mudanças sociais, religiosas, educacionais, trabalhistas, tecnológicas e do próprio

estatuto da infância. Essas mudanças refletem com força na infância,

especificamente nas brincadeiras e nos relacionamentos sociais, e o que vemos

hoje são crianças assumindo um protagonismo nas plataformas virtuais. Se antes

eram meras telespectadoras de programas de televisão, atualmente elas têm

chances reais de dar as cartas no que lhes interessa, sejam jogos, brincadeiras,

vídeos, redes sociais e outros suportes, tudo parece ter ficado mais divertido com o

mundo que se acessa pelas teclas do computador ou dos celulares.

(As crianças de hoje) têm novas e poderosas ferramentas para investigação, análise, auto-expressão, influência e brincadeira. Elas têm uma mobilidade sem precedentes. Estão encolhendo o planeta de uma forma que seus pais nunca teriam conseguido imaginar. Ao contrário da televisão que era feita para elas, as crianças é que são os atores no mundo digital. (TAPSCOTT, 1998 apud BUCKINGHAM, 2007, p. 74).

As imagens de meninas, carregadas de signos de beleza e sensualidade,

representam, também, uma relação de controle e poder sobre o corpo infantil. Para

Foucault, o controle sobre os sujeitos tem seu início no corpo, com o corpo. "Foi no

biológico, no somático, no corporal que antes de tudo investiu a sociedade

capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica" (FOUCAULT, 1992, p. 77 apud

GOELLNER, 2012, p. 32).

Os corpos infantis, principalmente o das meninas, ganham cada vez mais

visibilidade nas redes sociais digitais, com artefatos e produtos culturais disponíveis

feitos especialmente para elas. Le Breton (2013, p. 230-231) afirma que a imagem

que temos do corpo “é a representação que o sujeito se faz de seu corpo; a maneira

pela qual ele aparece mais ou menos conscientemente de um contexto social e

cultural particularizado por sua história pessoal.”

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O culto ao corpo perfeito, aliado ao culto à juventude eterna e ao consumo,

são pedagogias culturais que fazem parte, a cada dia, da vida das crianças.

Buckingham (2007, p. 19) aponta críticas contundentes sobre como a infância tem

sido compreendida na contemporaneidade, entre elas, estão os contrapontos por ele

levantados em relação ao desaparecimento da infância, com o crescimento do

mundo midiático. Postman (1999) entende ser a televisão a principal responsável

pelo fim da infância. Com a perda da inocência, rompe-se a divisa entre o adulto e a

criança. Buckingham (2007, p. 67-73) argumenta que Postman (1999) tem uma

visão tradicional de infância, na qual o adulto ensina à criança qual o seu lugar. É o

retrato de uma criança que não sabe ou não pode tomar nenhuma decisão sozinha,

pois depende sempre do adulto e, assim sendo, as mídias, no caso, a televisão, têm

o terrível poder de corromper a ordem estabelecida na relação entre a criança e o

adulto, além de manipular e prejudicar moralmente as crianças.

Postman (1999) afirma que, para assistir a programação da televisão, a

criança não é obrigada a ter formação, ou seja, a televisão veicula a mesma

programação tanto para a criança quanto para o adulto. Já com a imprensa isto não

ocorre, porque é preciso saber ler para compreender as informações ou signos que

são publicados nessa mídia.

O significado de infância, afirma Buckingham (2007, p. 19), “está sujeito a um

constante processo de negociação, tanto no discurso público (por exemplo, na

mídia, na academia ou nas políticas públicas) como nas relações pessoais, entre

colegas e familiares”.

A glamourização de corpos de meninas no blog do Facebook, "Crianças

Estilosas – Blog Pessoal", aponta para o fato de a criança também consumir

produtos e um modelo de corpo, uma imagem ideal, um estilo de vida. Segundo

Pereira; Paula e Santos (2009, p. 102):

O mercado da beleza, que desde início se voltava prioritariamente às mulheres, nas últimas décadas tem buscado fidelidade no consumidor infantil. A criança, que em sua suposta pureza e plasticidade, historicamente fora convertida aos olhos adultos em símbolo de beleza, depende agora dos acessórios que o mercado lhe oferece para fazer por merecer tais atributos.

Para a análise das imagens do blog do Facebook “Crianças Estilosas – Blog

Pessoal”, esta pesquisa tem como referenciais teórico-metodológicos os conceitos

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de enunciado, dialogismo e polifonia, de Mikhail Bakhtin. Segundo Fiorin (2008), a

língua, em seu uso, é dialógica. Para haver sentidos numa relação, numa

comunicação, se fazem necessários os enunciados, que são dialógicos. O

dialogismo orquestra todo o desenvolvimento da linguagem, de modo que um

enunciado é uma resposta a outros. As relações dialógicas são um campo de

conflitos, de lutas, concordâncias, discordâncias, ou seja, uma arena de tensões.

Sobre o enunciado, Bakhtin (2011) destaca:

[...] o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito dos discursos, e fora dessa forma não pode existir. (BAKHTIN, 2011, p. 274).

Os discursos analisados nesta dissertação estão imbricados com o objeto, as

imagens de meninas. É com essas imagens que vamos dialogar, a fim de refletir

sobre os discursos que as compõem e quais as suas possíveis implicações na

construção de outros modos de conceber a infância.

Amorim (2004) ressalta que o objeto da pesquisa é reconhecido a partir do

momento que é valorizado pelo pesquisador. Essa valorização implica na realidade

em que o objeto não surge do nada, ele é elaborado e isso significa ter que negociar

com a alteridade que vai atravessar a atuação do pesquisador, bem como o

desenvolvimento da própria pesquisa. Pensando nas análises deste objeto de

pesquisa, pela ótica de Bakhtin, cabe-nos uma pergunta: que vozes sociais

permeiam os discursos dessas imagens de meninas, na página "Crianças Estilosas

– Blog Pessoal"?

A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objeto do discurso do autor, são sujeitos de seus próprios discursos. (BEZERRA, 2005, p. 194-195).

No levantamento de dados para esta pesquisa, foram encontradas, ao todo,

81 (oitenta e uma) páginas no Facebook, que são nomeadas com os termos

"crianças estilosas, criança estilosa, estilosas ou esti losa". A página “Crianças

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Estilosas – Blog Pessoal”, da rede social Facebook, foi selecionada por ter o maior

número de curtidas (56.444) até o dia 30 de abril de 2015, dentre todas as demais

páginas acessadas que trazem imagens de crianças associadas ao corpo “belo”.

A decisão de trabalhar apenas com as imagens de meninas deu-se em

função de estas serem a maioria. Nessa página, as crianças que aparecem nas

postagens possuem idades que variam de alguns meses de vida (bebês) até sete

anos de idade, a maior parte delas, de etnia branca. As imagens das meninas

destacam-se não apenas pelo fato de serem postagens de fotos, mas também pelos

modos como estas são representadas, na maioria das vezes, como meninas

afastadas da ideia tradicional de infância.

Os capítulos que compõem esta dissertação de mestrado se apresentam

estruturados da seguinte forma: o primeiro cap ítulo, “Imagens da infância na história:

quando a inocência entra em cena ”, discute o sentimento da infância, as relações

entre crianças e adultos, o corpo e a sexualidade na infância no contexto da

modernidade, com destaque para a sacralização da imagem da criança. Para tanto,

são trazidos como referências teóricas autores, como Ariès (2014), Foucault (2014)

e Gélis (1991).

O segundo capítulo, intitulado “Imagens contemporâneas da infância: o corpo

da criança entre a inocência e a sedução”, apresenta um dos grandes dilemas para

a sociedade na era contemporânea e midiática, que é a existência da tensa fronteira

entre a infância e a vida adulta, fronteira que se redesenha a todo instante. Trata-se

de assunto polêmico entre os autores que se debruçam sobre a infância na

contemporaneidade. Sob o apelo do consumo e do culto ao corpo, a criança,

especificamente a imagem da menina, mais do que nunca está em evidência,

apresentada, muitas vezes, sob a aparência da mulher bela e sedutora no corpo de

menina. As análises, nesse capítulo, são ancoradas em autores, como: Lévy (1999),

Buckingham (2007), Del Priore (2011), Dornelles (2005), Fantin; Girardello (2008),

Felipe; Guizzo; Beck (2013), Felipe; Guizzo (2003), Le Breton (2013), Louro (2013),

Louro; Felipe; Goellner (2012), Macedo (2014), Novaes (2010; 2013), (2014), Pereira

(2014), Postman (1999), Santaella (2013), Souza; Salgado (2012), Primo (2013).

O terceiro capítulo, denominado “Belas e sedutoras, as imagens de meninas

refletidas nos espelhos digitais”, apresenta o processo de construção da pesquisa,

com o foco voltado para a compreensão sobre o fenômeno contemporâneo de

produção de discursos imagéticos de corpos de meninas. Para embasar tal

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compreensão, contamos com os aportes teóricos de: Amorim (2004), Bakhtin (2006;

2011), Barros; Fiorin (2011), Brait (2005), Eco (2014), Faraco; Tezza; Castro (2007),

Fiorin (2008), Freitas; Souza; Kramer (2003), Le Breton (2013), Sant'anna (2014),

Stam (1992) e Kramer; Leite (1996).

O quarto capítulo, "Feminino: gênero, corpo e sexualidade", aborda o gênero

feminino na infância e como questões do corpo e da sexualidade são tratadas nesse

contexto, a partir de uma perspectiva histórica. São discutidos, também, os desafios

para o feminino ao destacar imagens de meninas como discursos de beleza e

sedução nas mídias digitais e na educação. Nesse capítulo, os pilares teóricos são

os/as autores/as: Bakhtin (2009), Belotti (1975), Butler (2016), Grupo de Estudos dos

Gêneros do Discurso-GEGe (2009), Le Breton (2013), Louro (1997), Moreno (1999),

Roveri (2012), Xavier Filha (2014).

O quinto e último capítulo desta dissertação, intitulado “Um misto de inocência

e sedução: as imagens de meninas na página do Facebook “Crianças Estilosas –

Blog Pessoal”, dedica-se a narrar a realização da pesquisa como um todo, com a

descrição do locus, dos objetivos da pesquisa, do objeto e da trajetória da pesquisa.

Por fim, são apresentadas as análises das imagens de meninas postadas nessa

página. As análises desse capítulo são tecidas por meio de diálogos com Amorim

(2004), Bakhtin (2006; 2011), Barros & Fiorin (2011), Brait (2005), Cruz (2015),

Faraco (2009), Del Priore (2013), Felipe; Guizzo e Beck (2013), Fiorin (2008),

Freitas; Souza & Kramer (2003), Novaes (2010; 2013), Pereira; Paula e Santos

(2009), Recuero (2014), Salgado; Mariano e Oliveira (2015) Louro; Felipe e Goellner

(2012), Stam (1992), Xavier Filha (2014).

Algumas considerações relacionadas à pesquisa finalizam esta dissertação,

não como conclusão, mas como reflexões e apontamentos para novos estudos e

pesquisas sobre os discursos que tratam da beleza e da sedução em imagens de

meninas nas redes sociais online.

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1 IMAGENS DA INFÂNCIA NA HISTÓRIA: QUANDO A INOCÊNCIA ENTRA EM

CENA

O espelho da história reflete muitas imagens da infância. Neste capítulo, o

nosso olhar é arrebatado por um reflexo dessas imagens. Trata-se do momento no

qual a inocência entra em cena e traz consigo novas perspectivas em relação à

criança, que mudam o cenário da infância a partir do fim do século XVI, no qual a

família era centrada na linhagem e no convívio em comunidade.

Cada membro da família dependia dos outros; sem estes não era nada. Os adultos em idade de procriar estabeleciam o elo entre passado e futuro, entre uma humanidade que se fora e uma que estava por vir. Romper a corrente era uma responsabilidade absurda. E porque trazia a criança no ventre, dava-a à luz, alimentava-a, a mulher estava investida de um papel fundamental: era a depositária da família e da espécie. Donde os ritos de fertilidade aos quais se submetia nos "santuários da natureza", junto a pedras da fecundidade, a fontes e árvores fecundantes, como se a semente da criança estivesse na natureza, em certos lugares privilegiados. (GÉLIS,1991, p. 311, grifo do autor).

Na sociedade medieval, o sentimento de infância, tal como a concebemos,

não existia. Ariès (2014) destaca que antes não havia diferenciação de sentimentos,

de consciência entre o adulto e a criança, não havia uma preocupação, um olhar

especial do adulto em relação à infância como tempo de vida. A infância, na Idade

Média, não existia enquanto conceito. A partir do século XV, começa a ter uma

relativa visibilidade.

O primeiro sentimento da infância – caracterizado pela "paparicação" – surgiu no meio familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século XVI, e de um maior número de moralistas do século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes. (ARIÈS, 2014, p. 105, grifo do autor).

Não havia um consenso, um entendimento relacionado à importância da

etapa de vida da criança, como se conhece hoje. Não havia uma linha divisória entre

o adulto e a criança. A dinâmica da convivência entre crianças e adultos acontecia

sem nenhum pudor, desde as brincadeiras sexuais aos diálogos do cotidiano.

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Uma das leis não escritas de nossa moral contemporânea, a mais imperiosa e a mais respeitada de todas, exige que diante das crianças os adultos se abstenham de qualquer alusão, sobretudo jocosa, a assuntos sexuais. Esse sentimento era totalmente estranho à antiga sociedade. O leitor moderno do diário em que Heroard, o médico de Henrique IV, anotava os fatos corriqueiros da vida do jovem Luís XIII fica confuso diante da liberdade com que se tratavam as crianças, da grosseria das brincadeiras e da indecência dos gestos cuja publicidade não chocava ninguém e que, ao contrário, pareciam perfeitamente naturais. Nenhum outro documento poderia dar-nos uma ideia mais nítida da total ausência do sentimento moderno da infância nos últimos anos do século XVI e início do XVII. (ARIÈS, 2014, p. 75)

Uma miscelânea de fatos dava o tom na relação adulto-criança, sem nenhum

espanto ou ato de repreensão. A infância e a vida adulta se entrelaçavam num

campo, no qual a sexualidade era estampada diante da criança sem qualquer

preocupação. Segundo Foucault (2014, p. 7), "as palavras eram ditas sem reticência

excessiva e as coisas eram feitas sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito

uma tolerante familiaridade." O autor ainda enfatiza que: "Gestos diretos, discursos

sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente

misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos

dos adultos: os corpos pavoneavam". (Ibidem, p. 7)

Mas, aos poucos, no Ocidente vão ocorrendo muitas transformações na

maneira como os adultos lidam com a vida e com o corpo, o que resulta em grandes

mudanças nos costumes e nos modos de ser no convívio com as crianças. O Pe. De

Dainville, historiador dos jesuítas e da pedagogia humanista, constata: "O respeito

devido às crianças era então (no século XVI) algo totalmente ignorado. Os adultos

se permitiam tudo diante delas: linguagem grosseira, ações e situações escabrosas;

elas ouviam e viam tudo." (ARIÈS, 2014, p. 77). Pensando nessa nova aura em

torno da vida e do corpo, a comunidade passou a compreender a criança como um

membro importante que, no futuro, sucederia as gerações mais velhas (GÉLIS,

1991).

Protegida pela moldura da "inocência" e com o apoio da família, a criança

passa a ser vista e tratada de outra forma, graças ao movimento de educadores e

moralistas, que, por meio de suas ideias, encontraram um terreno férti l, do qual se

colhem os frutos até a atualidade. É um modelo de pensamento que ainda prevalece

na contemporaneidade. O seu maior representante, no que se refere à sexualidade,

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é Gerson, pesquisador e escritor, autor da obra "De confessione mollicei2", que se

dedicou a observar o comportamento sexual das crianças no intuito de colaborar

com os confessores a trabalhar o sentimento de culpa nos pequenos penitentes.

Uma de suas metas era proibir que as crianças se tocassem quando estivessem

nuas, ensiná-las a não se deixar tocar ou beijar pelos outros, e, se isso acontecesse,

deveriam se confessar. "A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-

se para dentro da casa. A família conjugal a confisca.” (FOUCAULT, 2014, p. 7).

Sendo assim, o sexo é silenciado e, para infância, o silêncio vem acompanhado de

uma negação.

As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. (FOUCAULT, 2014, p. 8).

Forma-se uma concepção moral da infância que tem como pilares a fraqueza,

a inocência e a pureza da criança, razão pela qual a educação passa a ser uma das

prioridades básicas das obrigações humanas.

Essa concepção reagia ao mesmo tempo contra a indiferença pela infância, contra um sentimento demasiado terno e egoísta que tornava a criança um brinquedo do adulto e cultivava seus caprichos, e contra o inverso deste último sentimento, o desprezo do homem racional. Essa concepção dominou a literatura pedagógica do final do século XVII. (ARIÈS, 2014, p. 87).

A partir do século XVII, surge uma nova conjuntura na qual a escola se torna

fundamental para a infância: "a educação das crianças é uma das coisas mais

importantes do mundo." (VARET, 1666 apud ARIÈS, 2014, p. 87). Essa doutrina teve

adesão tanto dos jesuítas como dos oratorianos e dos jansenistas. Isso se refletiu no

aumento das escolas para crianças, que ofertavam uma educação de característica

religiosa e uma disciplina mais rígida. Houve alguns princípios que foram adotados

por essas instituições em seus regulamentos, como por exemplo , nas escolas de

Port-Royal: vigiar as crianças com cuidados, estejam elas sãs ou doentes; evitar

mimar as crianças, habituando-as, desde cedo, à seriedade; a criança deve ser

2 GERSON. De confessione mollicei, Opera, 1706, vol. II, p. 309.

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recatada; a criança precisa deitar sozinha em sua cama e não mais acompanhada

de várias crianças, até então, um hábito enraizado. (ARIÈS, 2014, p. 87).

Foi uma revolução puritana que seguiu até o século XVII e veio ao encontro

de outra revolução: o desenvolvimento do capitalismo, que se aproveitou muito bem

de uma política de repressão e vigilância sobre as pessoas e fez, majestosamente, o

uso dos discursos e das intenções dos moralistas. Verificam-se, assim, vantagens

para ambos os movimentos, uma vez que “se o sexo é reprimido com tanto rigor, é

por ser incompatível com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em

que se explora sistematicamente a força de trabalho". (FOUCAULT, 2014, p. 10).

Ao entrar em cena, a inocência traz consigo artefatos, que podem assegurar a

proteção físico-espiritual da criança, como a literatura religiosa, literatura

pedagógica, tratados ou manuais de civilidade, concepções de infância, entre outros

mecanismos envoltos na preocupação maior com o bem-estar da infância, com o

objetivo de evitar o contato de adultos e crianças, contato de corpos, já que os

pequenos não tinham como se defender, caso um adulto atravessasse a linha do

não contato corporal ou da intimidade considerada inadequada.

O sentido da inocência infantil resultou, portanto, em uma dupla atitude moral com relação à infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da sexualidade tolerada – quando não aprovada – entre os adultos; e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão. (ARIÈS, 2014, p. 91).

Ao mesmo tempo em que a criança é resguardada, ela é tratada como uma

pessoa adulta, e, dessa forma, considerada apta a fazer uso da razão. Ariès (2014)

ressalta que, na Idade Média, não havia contradição entre a inocência e a razão. Até

o modo como o adulto se dirigia e falava à criança foi influenciado por esse novo

modo de pensar a infância. Buscou-se uma forma mais reservada e civilizada, de

maneira razoável, sem necessariamente usar uma linguagem infanti l. Isso pode ser

um reflexo da inocência e da razão no ideário de infância. Esses ideais

acompanharam um fato primordial, que era manter intacta ou preservada a aura da

inocência na infância.

Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as palavras: polícia dos enunciados. Controle também das enunciações: definiu-se de maneira muito mais estrita onde e quando não era possível falar dele; em que situações, entre quais locutores, e em que

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relações sociais; estabeleceram-se, assim, regiões, se não de silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição: entre pais e filhos, por exemplo, ou educadores e alunos, patrões e serviçais. (FOUCAULT, 2014, p. 20).

Segundo Ariès (2014), é com os guardiões da moralidade e os professores

que surge um sentimento de infância, com respaldo na inocência e na proteção da

criança. Estamos tratando da criança sob o viés da inocência, da vigilância e do

controle do contato corporal e da sexualidade, ainda muito presente na infância

contemporânea. Exemplos não nos faltam, nas famílias, nas relações sociais, na

igreja e nas escolas, especialmente. Ariès (2014) argumenta que o interesse pela

infância percorria o caminho da psicologia e da moralidade. Isso implicou num novo

pensamento em relação à infância, de cunho religioso, no qual a criança é elevada a

uma categoria de divindade, de santidade, efeito disso foi o surgimento da

iconografia religiosa com referências à criança.

Esse tipo de retrato de infância teve sua influência em terras brasileiras, da

década de 1930 à década de 1950 do século XX, tendo em vista que algumas

revistas da época, “Vida Doméstica” e “Fon-Fon!” publicavam imagens idealizadas

de crianças, ainda muito ligadas à religiosidade e à família. Existia, conforme Brites

(2000, p. 163),

[...] a necessidade de cultivar naquelas páginas uma visão idealizada da criança, padrão a ser alcançado, como forte, saudável, estudiosa, adaptada ao ambiente familiar, escolarizada, religiosa, regrada, bem-comportada, com aspecto higienizado, livre dos estigmas visíveis da carência.

A autora ainda ressalta que essas revistas assumiam um papel importante na

sociedade daquela época, como formadoras de opinião, espaço para debate público

sobre a infância, além de publicar um conteúdo que apresentava uma ideologia de

educação conservadora, que orientava as famílias, especialmente as mães, na

criação dos filhos.

1.1 Infância imaculada

A angelização da imagem da infância acontece no momento crescente em

que a criança é encaminhada às escolas particulares e, sobretudo, às escolas

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religiosas, vinculadas às igrejas. A criança retratada como um ser sagrado ou como

um anjo funciona, também, como uma estratégia moralizadora nas relações que

envolvem as famílias, as crianças e os adultos. Ariès (2014, p. 93) afirma que, "A

partir do início do século XVII, a pintura, a gravura e a escultura religiosa passaram a

dar uma grande importância à representação do Menino Jesus isolado, e não mais

junto da Virgem ou no meio da Sacra Família."

Na devoção à infância sagrada, a criança passou a ser simbolizada como um

fruto santo da família, que deveria ser tratado com muito esmero e com uma

vigilância permanente. A criança não possuía autonomia sobre o seu corpo.

Cada ser tinha seu próprio corpo, e, no entanto, a dependência em relação à linhagem, a solidariedade de sangue eram tais que o indivíduo não podia sentir o corpo como plenamente autônomo: esse corpo era o seu, mas também era um pouco "os outros", os da grande família dos vivos e dos ancestrais mortos. (GÉLIS, 1991, p. 312, grifo do autor).

Trata-se de um anjo que não podia sentir o seu corpo em toda plenitude.

Dessa forma, a criança seguia numa representação que ainda é muito viva, a

imagem da criança associada à imagem do anjo. Ariès (2014) nos chama a atenção

para o fato de que é pela figura do anjo, representada por uma criança, que as

almas seriam elevadas ao céu, simbologia que predominou entre os séculos XVI e

XVII.

Tudo indica que as festas religiosas para a criança na Idade Média eram a

circuncisão e a apresentação da Virgem no templo. Ariès (2014) ainda pontua que a

primeira comunhão se tornou, aos poucos, o grande evento religioso da infância, o

que ainda continua em muitos locais, mesmo não sendo tão realizada em

comparação com tempos de outrora.

Seria nesse evento, então, que a criança acenaria para o seu autogoverno,

para o seu desejo próprio. Nessa celebração, como salienta Gélis (1991), ela

ensaiava seus primeiros passos, de forma simbólica, em locais considerados

sagrados, como as igrejas e os cemitérios, por exemplo. Esse ritual representava,

para as pessoas, as primeiras inserções da criança à sua autonomia.

A cerimônia da primeira comunhão tornou-se a manifestação mais visível do sentimento da infância entre o século XVII e o fim do século XIX: ela celebrava ao mesmo tempo seus dois aspectos

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contraditórios, a inocência da infância e sua apreciação racional dos mistérios sagrados. (ARIÈS, 2014, p. 98).

Dessa forma, trazer a infância ao altar sacro estabeleceu uma nova ordem no

espaço no qual a criança se encontrava, alterando as formas de relações

interpessoais com os familiares e o mundo adulto. Uma das primeiras grandes

transformações foi o afastamento da criança do adulto. Isso porque se observou que

esse convívio ancorado no despudor poderia sim trazer malefícios à formação da

criança. Havia também a preocupação com o estado físico dos pequenos, ou seja,

em relação ao corpo da criança, era preciso tomar providências e protegê-lo, e o não

contato do adulto com esse corpo já foi um grande passo. A santificação do corpo

infantil apresentou um novo panorama, no qual o sentimento de infância passou

para o seio da família.

Antes, a infância era mais ignorada, considerada um período de transição rapidamente superado e sem importância. Essa ênfase dada ao lado desprezível da infância talvez tenha sido uma consequência do espírito clássico e de sua insistência na razão, mas acima de tudo foi uma reação contra a importância que a criança havia adquirido dentro da família e dentro do sentimento da família. (ARIÈS, 2014, p. 85).

Enquanto a sexualidade passa a ser tratada de forma um tanto quanto

reservada, retirada de nossas vistas, "o sexo é açambarcado e como que

encurralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem

sossego." (FOUCAULT, 2014, p. 22). Mas uma nova forma de representação da

infância viria a contrastar com a imagem angelical até então difundida na Idade

Média, a imagem de uma criança mais próxima da realidade daquela sociedade,

uma criança mais humana, literalmente falando.

Enquanto a origem dos temas do anjo, das infâncias santas e de suas posteriores evoluções iconográficas remontava ao século XIII, no século XV surgiram dois tipos novos de representação da infância: o retrato e o putto. A criança, como vimos, não estava ausente da Idade Média, ao menos a partir do século XIII, mas nunca era o modelo de um retrato, de um retrato de uma criança real, tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida. (ARIÈS, 2014, p. 21).

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Ainda hoje é comum observar, em várias situações do cotidiano, a

comparação da criança com o anjo. Isso comprova a força que teve a influência da

Igreja na promoção da infância sagrada, bem como na evolução pela qual passou a

educação da criança, tendo em vista a participação dos homens detentores da

autoridade, da razão e do saber, desde a formação do seu embrião, nos movimentos

moralistas, que "compreenderam a particularidade da infância e a importância tanto

moral como social da educação, da formação metódica das crianças em instituições

especiais, adaptadas a essa finalidade." (ARIÈS, 2014, p. 128).

Outras preocupações, além da religiosidade, acompanharam a infância no

decorrer do tempo. No Brasil, no século XX, revistas representavam, em suas

edições, esses cuidados na produção de imagens de infância.

Seus trajes e adereços ajudavam a compor a imagem de criança bem nascida e feliz. O universo da fotografia na infância está articulado a outras preocupações constantes quando se fala de criança: saúde, educação, religiosidade, lazer e moda. (BRITES, 2000, p. 161).

A imagem da criança retratada precisava seguir um roteiro, que reproduzisse

os discursos conservadores de então, com vozes sociais que ditavam uma

idealização de criança, almejada pela sociedade da época, e estampas de crianças

saudáveis e felizes, protegidas pela religiosidade e nos moldes da família patriarcal.

1.2 Escola e disciplina

O desenvolvimento da educação escolar que ocorreu do século XVI ao XVIII

aconteceu simultaneamente ao advento do sentimento de infância. Nessa época, as

escolas estavam sob o monopólio dos cônegos.

[...] como a escola e o colégio que, na Idade Média, eram reservados a um pequeno número de clérigos e misturavam as diferentes idades dentro de um espírito de liberdade de costumes, se tornaram no início dos tempos modernos um meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual, de adestrá-la, graças a uma disciplina mais autoritária, e, desse modo, separá-las da sociedade dos adultos. (ARIÈS, 2014, p. 107).

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A escola da catedral não estava mais sozinha, pois havia uma expansão das

escolas particulares, que, no início, atendiam alunos de diferentes idades, crianças,

adolescentes e adultos estudavam na mesma sala. Essa era uma das principais

características da educação escolar, ainda não existia separação de turmas por

idade, pois não se considerava essa distinção importante. (ARIÈS, 2014, p. 107-

108).

Sendo assim, o ingresso da criança na escola significava também o convívio

com o adulto, que tinha nas tradições o fator regulador dessa convivência. As

escolas funcionavam em locais que hoje seriam considerados inadequados, pelo

tamanho e pelo desconforto. Eram pequenas salas, alugadas pelo mestre

(professor), que, mesmo estando em escolas, atuavam de modo semelhante aos

locais de comércio com direito a disputas por alunos. Alguns desses alunos viviam

com os pais, outros moravam em regime de pensão com o próprio mestre ou na

casa de autoridades religiosas ou religiosos. (ARIÈS, 2014, p. 109).

As mudanças na educação não cessavam. Personagens, como os jesuítas,

os doutrinários, os oratorianos, dominicanos e franciscanos, têm o seu protagonismo

nessa nova fase do ensino escolar para as crianças.

O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude. (ARIÈS, 2014, p. 110).

Ariès (2014) relata que, a estrutura dos colégios foi pensada de forma que a

disciplina prevalecesse e a sexualidade permanecesse interditada. Basta analisar a

arquitetura dos prédios e como eram feitas suas divisões, os regulamentos, os

horários de aulas e outras atividades. Tudo ocorria de modo a ter na disciplina rígida

e na moral os pilares de apoio para todo o corpo de servidores e pais dos alunos

envolvidos com a educação das crianças.

O espaço da sala, a formação das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina), os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças. (FOUCAULT, 2014, p. 31).

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Ariès (2014) argumenta que a revolução na educação foi muito relevante para

as crianças a partir do século XVI, podendo ser considerada a primeira grande

revolução ocorrida nas escolas no Ocidente, um evento que pode ser comparado a

outro grande movimento que teve o seu início na Europa, a Revolução Industrial.

Contudo, se faz necessário enfatizar que o progresso no ensino mobilizou uma

etapa imprescindível na vida de qualquer ser humano, a infância. Até então, a

criança não chegava a ser nem mesmo um personagem coadjuvante, posto que era

considerada insignificante. Não se pode esquecer, entretanto, que, por se tratar de

um movimento que tem como cenário as escolas e como seus principais atores, as

crianças, constata-se que ainda não tem o valor que lhe deveria ser atribuído, isto é,

que não seja um tema tão estudado ou pesquisado quanto a Revolução Industrial.

Essa revolução nas escolas trouxe um preço que coube à criança a obrigação de

pagar: a dura disciplina imposta por esse modelo de trabalhar o ensino. (ARIÈS,

2014)

Havia um pensamento de duas infâncias: uma antes de a criança frequentar a

escola e outra quando a criança inicia suas atividades escolares. "O sentimento mais

comumente expresso para justificar a necessidade de retardar a entrada para o

colégio era a fraqueza, "a imbecilidade", ou a incapacidade dos pequeninos."

(ARIÈS, 2014, p. 114, grifo do autor).

Se antes, nos século XV e XVI, os castigos, como o chicote, ao critério do

mestre, e a espionagem mútua em benefício do mestre eram reservados à infância,

estes se estendem a toda população escolar, da criança ao adolescente e ao adulto.

"A preocupação em humilhar a infância para distingui-la e melhorá-la se atenuaria ao

logo do século XVIII, e a história da disciplina escolar nos permite acompanhar a

mudança da consciência coletiva nessa questão." (ARIÈS, 2014, p. 118). Uma nova

concepção de educação triunfaria no século XIX. Muda-se, então, o modo como a

criança seria tratada no ambiente escolar.

O relaxamento da antiga disciplina escolar correspondeu a uma nova orientação do sentimento da infância, que não mais se ligava ao sentimento de sua fraqueza e não mais reconhecia a necessidade de sua humilhação. Tratava-se agora de despertar na criança a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade. (ARIÈS, 2014, p. 119).

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Outro ritual que acompanhava essa realidade escolar era um mecanismo de

opressão com a finalidade de obter uma produção da verdade. Dessa forma, fazia-

se necessário acontecer a confissão. "O homem, no ocidente, tornou-se um animal

confidente.” (FOUCAULT, 2014, p.66). Houve, porém, uma grande mudança no

formato como a confissão era realizada e qual o seu papel naquela sociedade. Esta

passou por uma reconfiguração e continua a fazer parte de nosso cotidiano, na vida

escolar e, consequentemente, na vida das crianças. Passo a passo, a confissão foi

se modificando.

A partir do protestantismo, da Contrarreforma, da pedagogia do século XVIII e da medicina do século XIX, perdeu sua situação ritual e exclusiva: difundiu-se; foi utilizada em toda uma série de relações: crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras, delinquentes e peritos. As motivações e os efeitos dela esperados se diversificaram, assim como as formas que toma: interrogatórios, consultas, narrativas autobiográficas ou cartas, que são consignados, transcritos, reunidos em fichários, publicados e comentados. (FOUCAULT, 2014, p. 71).

As meninas ainda não participavam do processo escolar. Cabia apenas aos

meninos e homens (adultos) esse papel, o que restava a elas era a aprendizagem

doméstica, uma preparação para ser uma boa esposa, uma dona de casa

trabalhadora e uma mãe cuidadosa com os filhos.

Se a escolarização no século XVI ainda não era o monopólio de uma classe, era sem dúvida o monopólio de um sexo. As mulheres eram excluídas. Por conseguinte, entre elas, os hábitos de precocidade e de infância curta mantiveram-se inalterados da Idade Média até o século XVII. (ARIÈS, 2014, p. 125).

Entretanto, o que essa transformação escolar apresenta é o coroamento da

criança no seio familiar, pois a "criança tornou-se um elemento indispensável da vida

quotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e

futuro." (ARIÈS, 2014, p. 189).

Apesar da evolução do papel da criança no Ocidente no século XVII, a

disciplina ainda deixou os seus resquícios na infância contemporânea, porém, hoje,

os seus efeitos são outros, bem como as crianças e o contexto social. É provável

que a disciplina não se aplique apenas na escola, que esteja presente em vários

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lugares. A disciplina acompanha, por muito tempo, a educação das crianças, e isso

se refletia nas fotografias produzidas em atividades escolares.

As fotos consideravam sempre grande quantidade de alunos, como nos parques infantis, uniformizados, disciplinados, exercendo atividade física orientada, demonstrando que a preocupação principal era valorizar iniciativas das instituições consideradas, levando em conta a ideia de que o projeto era bem recebido por um número

expressivo de crianças e famílias. (BRITES, 2000, p. 171).

Atualmente, uma das vertentes que constitui a disciplina, seria o fato de a

criança ser requisitada a se preocupar e a dedicar muito de seu tempo a cultuar a

estética e o embelezamento para conservar o corpo esculpido e atraente.

1.3 Autonomia do corpo

A partir do século XIX, a criança tinha o seu momento de aprendizagem que

acontecia na primeira infância. Essas atividades tratavam das relações com outras

crianças, com os brinquedos, com o espaço físico onde viviam e o corpo. A

preocupação que os pais tinham em relação aos fi lhos era a perpetuação da família,

dar continuidade à linhagem. "A família era uma realidade moral e social, mais do

que sentimental". (ARIÈS, 2014, p. 158). São dados, então, os primeiros passos

para a criança conquistar uma relativa autonomia do seu corpo e,

concomitantemente a isso, teve início, nas famílias, um sentimento de cuidar e

prolongar a vida da criança.

As aprendizagens da infância e da adolescência deviam, pois, ao mesmo tempo fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar o indivíduo a superar os reveses da sorte e principalmente a transmitir também a vida, a fim de assegurar a continuidade da família. (GÉLIS, 1991, p. 315).

O despertar e o interesse por parte dos pais no zelo pela vida dos seus

pequenos filhos desenham uma nova configuração na relação da família com a

infância. É uma nova consciência que nascia em relação à vida e ao ser humano

que estava em formação.

Arrancar uma criança da doença e da morte prematura, recusar a desgraça tentando curá-la: esse passa a ser o objetivo de pais

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angustiados. Evidentemente, antes os pais tampouco aceitavam a perda de um ente querido, porém a consciência da vida, do ciclo vital, era diferente, e não lhes restava outro recurso senão ter mais um filho. Porque a vida era dura e porque era preciso perpetuar a linhagem [...]. (GÉLIS, 1991, p. 316).

Uma vida "sua" que era vivida pelos outros, assim se encontrava o indivíduo,

em um grande conflito, ao se deparar com a responsabilidade que a manutenção da

linhagem da família exigia e de como se comportar diante das adversidades da vida

pessoal, com as suas ideias, os seus sonhos, o seu modo de observar o mundo,

suas experiências, os seus interesses e a sua relação com o seu corpo e com o

corpo do outro.

A relação matrimonial era o foco mais intenso das constrições; era sobretudo dela que se falava; mais do que qualquer outra, tinha que ser confessada em detalhes. Estava sob estreita vigilância: se estivesse em falta, isso tinha que ser mostrado e demonstrado diante de testemunha. (FOUCAULT, 2014, p. 41).

Todavia, algo muda nas relações familiares, pois existia uma contradição

quando o assunto era o estabelecimento da linhagem e a luta pela vida. Isso

acontece quando o homem volta o olhar também para si próprio, para a sua vida.

Essa nova visão vem transformar o que antes era a maior preocupação daquela

sociedade, que era a linhagem das famílias.

Empenhado em manter a linhagem, estabelecendo o elo entre passado e futuro, até então ele não tivera de preocupar-se consigo mesmo. E agora se põe a pensar em seus próprios interesses, imediatos e por vir, aprende a contar, sabe que seu tempo é contado – o tempo de viver. (GÉLIS, 1991, p. 316).

Esse novo tempo, o tempo de viver, inaugura o momento do indivíduo com o

seu próprio corpo. "A essa nova forma de relação entre o indivíduo e o grupo

corresponde uma nova imagem do corpo." (GÉLIS,1991, p. 316). Está fundada,

desse modo, a individualização do corpo coletivo e do corpo individual.

[...] “meu corpo é meu", e procuro poupá-lo da doença e do sofrimento, mas sei que ele é perecível e, assim, continuo a perpetuá-lo através da semente de outro corpo, do corpo de meu filho. Esse arrancar simbólico do corpo individual ao grande corpo coletivo sem dúvida constitui a chave de muitos comportamentos nos séculos clássicos. Tal modelo certamente permite compreender

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melhor porque a criança passa a ocupar um lugar tão importante entre as preocupações dos pais: e uma criança que amam por ela mesma e que constitui sua alegria de cada dia. (GÉLIS, 1991, p. 317, grifo do autor).

Essa postura em relação à infância não surge de forma cronológica e linear

em localidades diferentes simultaneamente. O sentimento de infância vai se

constituindo aos poucos, como se fossem vagalumes piscando numa noite, em

lugares diferentes, e que, aos poucos, vão se juntando e formando um forte clarão.

As luzes do sentimento de infância conquistam terreno nas cidades e a família,

restringindo-se ao casal e aos filhos, conquista espaço. Isso significou que poderia

haver outras opções de como as famílias criariam os seus filhos, mesmo que isso

ainda trouxesse alguns conflitos ou contradições.

Enquanto alguns pais entregam o filho a uma nutriz, outros encontram na companhia dele "divertimento e alegria". As duas atitudes não são contraditórias; atestam que agora é possível escolher. Por certo, a "natureza" continua a falar em favor do filho criado pela mãe; porém esta tem apenas deveres; doravante pretende ter também o direito de viver e recebe a aprovação do marido quando manifesta o desejo de manter um corpo íntegro e atraente. Todavia, nem sempre a escolha é evidente! Não é fácil conciliar o interesse do filho e o da mãe. (GÉLIS, 1991, p. 321, grifos do autor).

Com o discurso de zelar pelo futuro da criança, os pais acreditam que, "seu

filho está sempre à mercê de instintos primários que devem ser reprimidos e de que

é preciso ‘sujeitar seus desejos ao comando da Razão’” (GÉLIS, 1991, p. 324, grifo

do autor). Igreja e Estado retomam o controle da educação, antes nas mãos das

escolas particulares. Na realidade, esse movimento escolar se tratava de um projeto

muito mais ambicioso, da educação comunitária para a educação com base no

individualismo, pois dominar o ensino nesse contexto foi uma estratégia religiosa e

política de administrar e ter influência sobre a vida das pessoas, sobre a sociedade.

A Igreja e o Estado trazem consigo ideologias sobre a infância, que

"contribuíram para a ‘privatização’ da imagem da criança. Modelos inacessíveis

vieram fortalecer a emergência da criança como indivíduo na sociedade ocidental."

(GÉLIS, 1991, p.325, grifo do autor). Por meio do suporte textual e da iconografia, a

Igreja promoveu um ideário de criança mística e de criança-cristo. Gélis (1991)

chega à conclusão de que a imagem do homem santificado se cruza, se intercala

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com a imagem do menino que também é visto como santificado, angelical. A

imagem da infância mística carregava ideias de que o corpo místico deveria ser

preservado por via do celibato, do fortalecimento do nível espiritual. Havia também

uma divulgação de outra corrente que defendia a imagem laica da criança, uma

oposição à imagem da criança mística.

Gélis (1991) entende que, a expressão "nosso sentimento da infância" não

significou que a sociedade fez uma mudança de pensamento e atitude em relação à

criança de uma hora para outra, ou que os pais começaram a ter mais interesse

pelos filhos, no que tange aos cuidados e ao amor. Também não houve uma grande

revolução no ocidente em que o corpo e a vida estivessem totalmente no centro da

questão.

A consciência sobre o sentimento de infância foi se transformando na

sociedade gradativamente, crescendo passo a passo, concomitante a algumas

transformações sociais, entre elas, as educacionais e tecnológicas.

As imagens de crianças expostas nas redes sociais podem situar a infância

contemporânea numa condição de imagem pública no formato digital, com alcance

não apenas às pessoas familiares, amigos e pessoas conhecidas, mas também

vistas por pessoas desconhecidas, na maioria das vezes, internautas. Isso pode

explicar como o conceito de imagem pública para a infância era diferente ou com

uma exposição bem menor em meados do século XIII.

A criança da realeza nada tem de provar: já de início é uma criança pública. Ainda mais se é o delfim. Nasce em público e na primeira infância não tem realmente vida privada; vive sob constante vigilância, o menor de seus gestos é observado e registrado, como demonstra o texto deixado por Héroard, o médico do pequeno Luís XIII. O menino vive sob os olhares da corte. (GÉLIS, 1991, p. 326).

A criança não precisa mais nascer na realeza para ter a sua vida pública.

Vivemos a era da criança-espetáculo, pois o reino virtual permite isso. Crianças

podem ter os seus momentos de reis ou rainhas nas redes sociais, estampados em

imagens com a garantia dos olhares de outras pessoas que acessam ou navegam

pelo ciberespaço.

Na busca de reflexões sobre a infância e a sua interação com as redes

sociais, tem-se a exposição de imagens de crianças nesses espaços virtuais e isso,

possivelmente, não tem relação com a autonomia do corpo. A criança tem a sua

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imagem divulgada, muitas vezes, por adultos, o que nos leva a pensar sobre os

modos como os adultos ainda definem e tutelam as representações de infância que,

ainda nos dias de hoje, estão se constituindo.

Deparamo-nos com um projeto educativo, dedicado a formar a atual geração de crianças, cujos mestres e didática pulverizam-se sob a forma de brinquedos, roupas, acessórios, programas televisivos, site de relacionamentos, filmes, revistas, canções e uma série de outros produtos culturais, que se reúnem para compor uma rede de signos disponíveis ao consumo, conjugando entretenimento, educação e cultura. (SALGADO; LUIZ, 2012, p. 27).

Problematizar a relação da criança com a corpo pode ser um dos grandes

desafios da contemporaneidade, dentro do contexto das redes sociais online, no

qual as imagens são transferidas quase simultaneamente, do cotidiano para o

ciberespaço, transitando com desenvoltura nas vidas de crianças e adultos.

.

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2 IMAGENS CONTEMPORÂNEAS DA INFÂNCIA: O CORPO DA CRIANÇA

ENTRE A INOCÊNCIA E A SEDUÇÃO

Desaparecimento da infância ou aparecimento de outras infâncias? Esta é

uma dúvida que não é recente, uma vez ou outra , lançamos mão desta mesma

questão para tentar encontrar alguma resposta ou algum esclarecimento, por menor

que seja, a respeito da presença cada vez maior das crianças no cenário das

modernas tecnologias, dos meios de comunicações e, em específico, da internet. De

coadjuvante, a criança passa a assumir certo protagonismo nas transformações, nas

relações com a família, nos relacionamentos com o adulto e com outras crianças.

Esse caminhar com desenvoltura ainda pode assustar o adulto, que , muitas vezes,

responsabiliza a falta de uma educação mais rígida e vigilante, o acesso às

tecnologias, às comunicações e às informações.

Para Postman (1999), a televisão destrói a linha que divide a infância da

idade adulta, por esta não estabelecer distinções entre crianças e adultos. Para

chegar a esta conclusão, o autor fez um estudo da trajetória da infância no mundo

ocidental a partir do século XVII. Quando trata do desaparecimento da infância, o

autor se refere à "ideia de infância".

A verdade é que a invenção da infância foi uma ideia que transpôs todas as fronteiras nacionais, sendo às vezes detida e desencorajada, mas sempre prosseguindo na sua jornada. E embora as condições locais influíssem em seu aspecto e em seu progresso, nada logrou fazê-la desaparecer. (POSTMAN,1999, p. 69).

Esse olhar em relação à infância já surgia com força a partir da prensa de

Gutenberg e das aulas ministradas pelos professores e contribuiu para posicionar a

infância em lugar de destaque na sociedade, seja pelo viés da família, da arte, da

cultura, da economia, da religião ou outro viés. Mas não foi só a televisão que

desafiou ou desafia a existência da infância como período importante de vida, a

corrida industrial também afetou de forma direta e indireta a vida de muitas crianças,

principalmente das classes menos favorecidas, que foram usadas como mão de

obra barata pelas indústrias inglesas no século XVIII e parte do século XIX.

O que está em jogo nas reflexões de Postman (1999) é como a criança lida e

também é afetada pela televisão e no fato de esta criança ser desrespeitada nos

seus direitos quando se está na condição de mão de obra de alguma indústria. Ao

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se referir à infância e à televisão, observa-se uma criança retratada como um ser

muito frágil, altamente influenciável e passivo diante da mensagem televisiva. É

como se a criança fosse capaz de fazer apenas a assimilação da programação da

televisão. Para o autor, exclui-se qualquer hipótese de a criança ter a capacidade de

fazer críticas ou de não se influenciar por algum conteúdo exibido na televisão.

Outros fatores podem colaborar para as transformações ocorridas nos modos

de subjetivação da criança, a televisão não pode ficar como uma grande vi lã que

atrapalha o seu desenvolvimento. A criança não pode ser vista de maneira tão

indefesa e sem opinião própria, pois ela pode, sim, atuar de forma ativa no campo

das mídias tecnológicas, concordando ou não com os textos midiáticos ao interagir

com outras crianças e também com adultos.

Essa nova postura de comportamento não significa o fim da infância, e sim o

surgimento de novas configurações de infância. Também não significa que a linha

que separa a criança do adulto está sendo extinta, até porque não se pode exigir ou

impedir as crianças de viverem outras experiências, buscar outras convivências,

realizar outras atividades, de ter acesso a informações e se comunicar, seja pela

televisão seja por outros suportes midiáticos, como, por exemplo, as redes sociais.

O adulto também ultrapassa essa fluida linha divisória com a infância, um

exemplo disto é visto nas redes sociais. Trata-se da exposição de imagens de

adultos cada vez mais parecidos com seus filhos ou com pessoas mais jovens, seja

na forma de se vestir, no corpo malhado ou em qualquer outra performance, na qual

se percebe a preocupação de manter, a qualquer custo, atributos, como a beleza, a

sedução e a jovialidade.

Em relação à industrialização, na Inglaterra, no século XVIII, Postman (1999,

p. 71) esclarece que, "o Iluminismo, como é chamado ajudou a nutrir e divulgar a

ideia de infância". Surgem, então, novos horizontes no caminho da infância, "pouco

a pouco a autoridade absoluta dos pais se modificou, adotando padrões mais

humanitários, de modo que todas as classes sociais se viram forçadas a assumir em

parceria com o governo a responsabilidade pela educação da criança." (POSTMAN,

1999, p. 70).

Tudo parecia se encaminhar muito bem para a criança, uma próspera

realidade se configurava para a infância, que, segundo Postman (1992), foi

duramente desafiada pela televisão, um meio de comunicação que está disponível a

todos, inclusive às crianças, que, desde muito cedo, se transformam em

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telespectadoras assíduas, com direito a escolher quais programas assistir. O autor

aponta três itens que participam desse processo destruidor da infância: "primeiro,

porque não requer treinamento para apreender sua forma; segundo porque não faz

exigências complexas nem à mente nem ao comportamento; e terceiro porque não

segrega seu público." (POSTMAN, 1999, p. 94).

Para o autor, a televisão é uma janela grande demais para a criança, são

paisagens que não caberiam ao olhar infanti l, pois pequenas frestas já são mais que

suficientes para a visão curiosa e perspicaz de uma criança. A televisão escancara a

curiosidade e ao mesmo tempo retira do adulto sua autoridade e abala as relações

interpessoais criança e adulto, rompendo, assim, a linha divisória entre esses dois

mundos, o que traz desordem e caos social. Ou seja, a criança é vista, sob a ótica

do autor, como um ser muito ingênuo, imaturo e frágil.

Diante disto, cabe ao adulto reter o conhecimento, de modo que existem

coisas que a criança não precisa saber. É preferível que fique na inocência ou sem

acesso ao conhecimento ou informações, ou que estes sejam controlados pelos

adultos, cabendo a estes a decisão de divulgá-los ou não.

Outro ponto levantado pelo autor é a adultização das crianças na mídia. Na

televisão, por exemplo, as crianças são exibidas em vários tipos de programas,

dentre eles, comédias e novelas como se fossem adultos em miniatura. Para ele: "as

crianças de tais programas não diferem significativamente em seus interesses, na

linguagem, nas roupas ou na sexualidade dos adultos dos mesmos programas.”

(POSTMAN, p. 136).

O autor ainda assinala que a televisão causa um grande transtorno à criança.

Sendo assim, o que pensar, então, sobre as mídias eletrônicas, especialmente a

internet e suas redes sociais, que podem ser consideradas infinitamente mais

abrangentes do que a televisão? Questões como estas nos fazem refletir: o medo do

desaparecimento da infância não estaria ligado ao medo de desestabilização social

que esse conceito gera ao perder suas características originárias e tradicionais?

A infância é variável – histórica, cultural e socialmente variável. As crianças são vistas e vêem a si mesmas – de formas muito diversas em diferentes períodos históricos, em diferentes culturas e em diferentes grupos sociais. Mais que isso: mesmo essas definições não são fixas. O significado de "infância" está sujeito a um constante processo de luta e negociação, tanto no discurso público (por exemplo, na mídia, na academia, ou nas políticas públicas) como nas

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relações pessoais, entre colegas e familiares. (BUCKINGHAM, 2007, p. 19, grifo do autor).

Possivelmente esse temor relacionado à criança em contato com as mídias

tecnológicas tem ocorrido devido às circunstâncias dos adultos, das famílias das

crianças não estarem preparadas para essa nova realidade. Essa nova

reconfiguração da infância, que afirma que a criança continua brincando, se

movimentando, mas, em espaços diferentes, significa que ela não brinca apenas no

quintal de sua casa ou na rua ou alguma praça, mas agora tem a oportunidade de

brincar também no ciberespaço, nas redes sociais.

Um dos desafios a ser superado é o de como promover na criança, por meio

da educação, uma leitura e compreensão crítica de conteúdos e produtos

considerados impróprios para o consumo infantil. Por outro lado, convém, também,

não criar barreiras, não censurar o contato da criança com essa nova conjuntura

tecnológica, na qual está inserida. Até mesmo qualificar o que é próprio e impróprio

para a infância é uma grande dificuldade. Isso envolve os segredos que antes

chegavam apenas aos adultos e agora são compartilhados com a infância. Isto

significa que houve uma dissolução dos guardiões dos segredos, uma vez que as

portas da inocência foram escancaradas e hoje as crianças têm o acesso a variados

tipos de informações.

Para Buckingham (2007), existe um enorme anseio para entender como

funciona esse panorama altamente tecnológico e midiático para a infância. Ainda

não se compreende direito como as crianças lidam com as mídias eletrônicas e

como o processo de convivência com essas mídias se desenrola, repercute ou se

transforma em subjetividades. Não se pode culpabilizar os meios tecnológicos como

grandes responsáveis por influenciar a infância, como se a criança fosse apenas um

sujeito passivo. É importante observar que a criança tem atuado como protagonista

em suas relações com as mídias tecnológicas, bem como com seus artefatos.

O vilão principal da cena, porém, não são tanto as mídias em si, mas o capital empresarial – ainda que, na prática, os dois pareçam ser vistos como indistinguíveis, e a preocupação central não são tanto as consequências cognitivas das mídias, e sim seu papel de portadores de ideologia. (BUCKINGHAM, 2007, p. 29).

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Entretanto, com base nas mudanças políticas, sociais e econômicas, o

mercado, por meio de ferramentas tecnológicas, como a internet, por exemplo,

busca subsídios para sustentar o seu ideário diante da nova concepção de infância

que se acredita ser a ideal. Nem sempre o modelo de infância defendido pelo

mercado está em consonância com o que se defende como o “bem-estar” da

criança. Há conflitos de interesses no que tange às representações culturais da

infância.

As imagens da infância – como pecadora e corrompida ou como pura e inocente – foram usadas conscientemente pelos reformadores sociais do século XIX; do mesmo modo, imagens igualmente estereotipadas das crianças como livres e naturais fazem parte da retórica visual da "liberação das crianças" em tempos mais recentes. (BUCKINGHAM, 2007, p. 55, grifo do autor).

Um tipo de liberdade de atuação das crianças pode sim ser promovido pela

mídia tecnológica, como defende uma corrente de pesquisadores, segundo

Buckingham (2007), pois a criatividade, as relações humanas e a autorrealização

são potências que podem ser melhor exploradas pelas crianças com o uso das

tecnologias midiáticas. Há, então, duas correntes de ideias: uma voltada para o

desaparecimento da infância a partir da mídia e outra que acena para uma grande

possibilidade de sucesso na convivência da criança com as tecnologias. A primeira

segue a linha defendida por Postman (1999), ao se colocar arredia e desconfiada

quando o assunto é a relação entre mídia e infância. Essa corrente defende que

esses meios são poderosos e negativos e podem corromper e desumanizar as

crianças.

Provavelmente, seja inimaginável a não presença das tecnologias midiáticas

no convívio de muitas crianças, o que se percebe é que não houve um

desaparecimento da infância, e sim o fato de que estão ocorrendo transformações

amplas. A presença tecnológica interfere de alguma forma em todas as esferas da

sociedade. Em se tratando da criança, percebe-se que muita coisa mudou. O acesso

das crianças ao ciberespaço confere outra dimensão aos fatos, posto que estas têm

modificado suas condutas. Antes, ao assistirem televisão, poderiam, talvez, mudar

de canal, agora, com a internet, navegam por jogos, sites e redes sociais.

Não há como negar, porém, que não foram apenas as tecnologias que

modificaram as relações da infância com o adulto, a jurisprudência também. Tem-se,

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portanto, um novo olhar direcionado à criança: "as crianças de hoje tiveram

reconhecidos os direitos a educação, representação legal e bem-estar social, que

antes lhes eram negados." (BUCKINGHAM, 2007, p. 112). A Convenção das

Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, ratificada pelo Brasil, no dia 20 de

novembro de 1989, possivelmente foi o ponto de partida para muitos países

refletirem a respeito da jurisprudência que ampara a infância e colocá-la em prática

em seus respectivos países.

No Brasil, a Declaração dos Direitos da Criança, que foi adotada pela

Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, é ratificada através do

art. 84, inciso XXI, da Constituição Federal. Há também o Estatuto da Criança e do

Adolescente – ECA (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990).

Mesmo com essas leis que ressaltam o direito da criança à cidadania,

Buckingham (2007) chama a atenção para uma nova ordem mundial, uma ideologia

que pode ser oposta aos interesses das leis que amparam a infância da criança

cidadã. São outros interesses, que privilegiam as transações comerciais, em nome

de uma ideologia que contempla a criança como consumidora, realidade que vem ao

encontro do festejado nicho do mercado infantil.

as novas tecnologias estão provocando uma convergência de mídias e formas de comunicação até então separadas que está amplamente sujeita às operações do capitalismo global. Poderíamos dizer que as mídias estão se fundindo em uma nova forma de intertextualidade infinita orientada pela mercantilização, uma cultura do consumo que efetivamente engole tudo que estiver em seu caminho (BUCKINGHAM, 2007, p. 142).

Em relação à criança e ao consumo, Buckingham (2007) ressalta que é

inimaginável um mundo que separa a infância do consumo, a cultura do consumo já

é uma realidade muito presente na vida das crianças. O mercado já as trata como

potenciais consumidores e não abre mão disso, o que se reflete no cotidiano, seja

na hora de comprar algo ou em contato com alguma mídia. Está acontecendo uma

redefinição não apenas da criança, mas também do jovem e do adulto. Dessa forma,

"a idade em que a infância termina – pelo menos, no que se refere à indústria da

mídia – parece estar continuamente diminuindo." (BUCKINGHAM, 2007, p. 144).

Com o reconhecimento do status das crianças como consumidoras, o autor

propõe que a educação desenvolva projetos ou atividades de políticas sociais que

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protejam a infância da contaminação das influências da arena do consumo,

amparem a infância nos seus direitos como uma infância que consome, e preparem,

de modo crítico e consciente, a criança para lidar com o mercado. Ressalta, ainda, a

necessidade das empresas se responsabilizarem, no que se refere aos direitos, na

sua forma mais ampla de comercialização de seus produtos para a criança, de modo

que o ato de consumir pode estar relacionado, também, ao exercício de cidadania.

Para Canclini (2001, p. 83 apud SALGADO, 2005), consumir e ser cidadão é

uma possibilidade quando há consciência do consumo de produtos enquanto

mecanismo e da cidadania como conceito político, de direitos e deveres. O consumo

de produtos pode se referir ao desejo de constituir identidades por meio de signos.

Os produtos são marcas que nos diferenciam dos outros, pois eles são como os

porta-vozes do que somos, posto que os objetos informam aos outros o que somos.

Contudo, há outras faces que o consumo não deixa de nos mostrar. Uma delas é a

disputa pela aquisição desses bens e de como se dá a sua distribuição. Portanto,

seja qual for a situação ou contexto, consumir produtos ou bens abre um leque de

oportunidade que pode proporcionar o exercício da cidadania.

2.1 Cibercultura e infância

A criança adentra novos espaços para desenvolver suas atividades, seja para

estudar, brincar, conversar, realizar múltiplas tarefas. O que antes poderia se

resumir a uma tríplice localidade, como, por exemplo, a casa, a escola e a rua, hoje

ganha novos contornos que trazem mudanças significativas para a vida das

crianças, as quais despertam a atenção de adultos e merecem ser discutidas com

urgência, tendo em vista que a internet é uma ferramenta de comunicação,

informação e entretenimento poderosa, muito presente e influente na

contemporaneidade. As brincadeiras e as fantasias, textos culturais tão presentes no

cotidiano infantil, ganham versões virtuais no ciberespaço, no qual conteúdos

produzidos para a criança ou pela criança têm conquistado muito destaque no

mundo digital.

O ciberespaço (que também chamarei de "rede") é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que

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navegam e alimentam esse universo. (LÉVY, 1999, p. 17, grifo do autor).

Desse modo, o ciberespaço torna-se, para a criança, uma instância de

constituição de suas subjetividades e, portanto, de acesso a muitos conteúdos

culturais direcionados à infância. O contato da criança com essa realidade pode

gerar alguma preocupação por parte do adulto com o seu bem-estar, um

estranhamento referente ao que é produzido e consumido na internet pela infância.

Existe uma gama de informações, conteúdos, produtos e outros tipos de

expressões que podem fazer parte da cibercultura, na qual a criança vem ganhando

relevância, pois quando se fala em tecnologias e infância, é preciso refletir sobre o

caminho que a criança busca para interagir com o mundo digital em seu cotidiano,

seja em casa, com a família, na escola, nas brincadeiras como os amigos ou quando

ela faz uso de um artefato tecnológico.

A cibercultura é a expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo, sobre processos abertos de colaboração. O apetite para as comunidades virtuais encontra um ideal de relação humana desterritorializada, transversal, livre. As comunidades virtuais são os motores, os atores, a vida diversa e surpreendente do universal por contato. (LÉVY, 1999, p. 132-133).

O atual cenário da infância apresenta um envolvimento da criança com a

cibercultura e isso promove novas formas de socialização, novas formas de ser

criança no contexto do desenvolvimento das mídias tecnológicas. A criança está

amparada por leis que regulamentam e dão respaldo aos direitos da criança e visam

protegê-la de quaisquer tipos de abuso, pois são alguns adultos que oferecem

perigo às crianças. Entre esses direitos, encontra-se o acesso à informação, à

comunicação, à liberdade de expressão e de ser respeitada como cidadã. Essa

proteção pode proporcionar um modo mais tranquilo ou seguro para navegar de

forma mais confiante no mundo digital, seja observando ou exercendo algum tipo de

contato, relação ou atividade com ou na cibercultura.

As diferentes formas de sociabilidade que as crianças constroem interagindo com a cultura envolvem conhecimentos das mais diversas áreas e se expressam nas múltiplas linguagens – lúdicas,

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orais, corporais, gestuais, artísticas, plásticas, visuais, musicais – e em tantas outras capacidades expressivas e simbólicas que as crianças constroem quando brincam e aprendem. (FANTIN, 2008, p. 151-152).

A aura de criança inocente e desprotegida começa a perder sua força.

Temos, na contemporaneidade, uma criança que expressa seus sentimentos, suas

ideias, seus saberes e desejos, se relaciona com agilidade com outras pessoas e

tem, na internet, uma audiência social, não se limitando apenas à escola. É a

infância das tecnologias digitais.

[...] as crianças de nossa sociedade são produzidas como sujeitos ativos, de vanguarda e se dedicam à estilização da vida. Ou seja, se preocupam com a moda, o look, o design, a decoração, com o fashion, com os games de última geração, com seus sites de produtos, com os brinquedos e jogos eletrônicos fabricados a partir das novas tecnologias. (DORNELLES, 2005, p. 78).

A presença da infância na cibercultura, seja produzindo ou consumindo, traz à

tona algo que merece uma atenção especial. Trata-se de um dispositivo que garante

às empresas que suas ofertas sejam consumidas e, dessa forma, tornem-se

lucrativas, o que consiste numa espécie de pedagogia do consumo, na qual os

movimentos e as atuações da criança nesse cenário são acompanhados de perto

pelo mercado, que, de alguma forma, tenta negociar os seus produtos com as

crianças. Nesse processo, fazem-se presentes discursos que vão engendrando uma

nova concepção de infância.

Produtos, personagens e até personalidades, tudo isto é fugaz, podendo ser

facilmente descartável, uma vez que o que é novidade hoje poderá cair no

esquecimento amanhã. É a realidade da vida curta que dita os caminhos que a

infância deve seguir no contexto da cibercultura. "Vivemos sob uma permanente

pressão de vendas em uma terra aparentemente de ninguém, mas comandada por

essa entidade supostamente abstrata, definida por "mercado ”." (OROFINO, 2008, p.

117, grifo da autora).

Santaella (2013) destaca que mesmo com a presença de outros canais de

comunicação com propostas de serem alternativos ou independentes, como alguns

sites ou blogs, por exemplo, as empresas que administram grande parte das mídias

ainda dão o tom no cenário midiático e tecnológico, pois se reinventaram como

potências capitalistas. Mesmo que a comunicação de massa não tenha sido

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aniquilada, e nada indica que isso ocorrerá, pelo menos por agora, observa-se que a

estrutura midiática contemporânea mostra avanços significativos. Nesse panorama,

temos a infância, que também vive sob a pressão do mercado, das mídias digitais,

que reproduzem a relação de poder das grandes mídias, o que significa uma

situação um tanto vulnerável para a infância, como se estivesse presa nas garras de

um animal feroz. Há que se discutir esse tema e educar as crianças, que, a todo

instante, são interpeladas pela pedagogia do consumo. Isso precisa ser abordado

nas famílias e nas escolas.

A escola é um local de apropriação da mídia. O conteúdo midiático a que as crianças e os adolescentes têm acesso é trocado, debatido, discutido, confrontado em inúmeras experiências no cotidiano da escola, seja no pátio, na cantina, nos corredores, ou mesmo do lado de fora dos muros, nas calçadas antes e depois da aula. A mediação escolar é aquela ação institucional planejada de modo participativo pelos professores a fim de que a escola tenha um espaço formal para que o debate sobre a mídia possa ocorrer de forma sistematizada, para além das mediações que informalmente já ocorrem no cenário escolar. (OROFINO, 2008, p. 122).

O ambiente educativo pode ser um palco para as reflexões sobre o papel das

mídias tecnológicas na produção e difusão da cultura infantil e, ao mesmo tempo,

um espaço relevante para discutir com as crianças sobre novas formas de

representações da cultura infantil, sob o ponto de vista da própria criança, no cenário

tecnológico.

Desse modo, a escola pode ocupar uma posição estratégica no debate sobre

cibercultura na infância contemporânea. "Viver a cibercultura é, para as crianças,

protagonizar uma nova inserção social, uma nova forma de participação da vida

coletiva que as livra de posições antes pré-estabelecidas por relações verticalizadas

entre crianças e adultos." (MACEDO, 2014, p. 57). A queda dessas verticalizações

nos relacionamentos entre crianças e adultos é materializada com mais

contundência pelo fato de as redes sociais online também se constituírem nesse

novo desenho da criança na contemporaneidade e na sua relação com o mundo.

Entendemos que a cibercultura, com a experiência da sinergia entre o tecnológico e o social e com as possibilidades de uma produção colaborativa da cultura, instaura uma crise nos modos de viver e de interpretar o mundo até então instituídos e provoca uma necessária revisão da relação entre os sujeitos e as normas vigentes, que

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passam a ser, uma vez mais, postas em questão. (PEREIRA, 2014,

p. 8).

2.2 Encontros e brincadeiras: crianças nas redes sociais

A criança que antes criava ou adaptava muitos lugares para vivenciar os seus

encontros e suas brincadeiras, acompanhada ou não de outras crianças ou até

mesmo do adulto, vê hoje novas possibilidades, um leque amplo de espaços para a

socialização e as experiências lúdicas. Novos ambientes infantis foram ampliados de

uma forma como nunca antes vista. Há um imenso campo descoberto pelas

crianças: o "ciberespaço", o "mundo digital", nos quais os encontros e as

brincadeiras infantis também podem acontecer. Segundo Viana (2010), redes sociais

são:

[...] serviços on-line de acesso grátis por meio dos quais se podem criar redes de contato para o intercâmbio de mensagens e conteúdos multimídia. Essas redes acabam por funcionar como plataformas sociais, dada a facilidade de intercomunicação dos usuários por meio dos recursos proporcionados por tais serviços. "Os que participam dessas redes o fazem de forma voluntária, mas acabam por gerar conteúdos que também têm valor histórico, etnográfico e sociológico, porque retratam as vidas e o dia a dia dos participantes. Chegam a ser confundidos com as realidades ou funcionam como partes complementares do cotidiano." (VIANA, 2010, p. 61 apud SANTAELLA, 2013, p. 315, grifos do autor).

Nas redes sociais online, as crianças vivenciam a socialização com outras

crianças numa forma muito veloz, com muita mobilidade e ubiquidade, temas muito

bem abordados por Santaella (2013). A criança pode se comunicar a qualquer hora

e em qualquer lugar, basta estar conectada a algum aparelho eletrônico. A autora

explica que “essa conectividade é mantida independente do movimento ou da

localização da entidade" (SANTAELLA, 2013, p. 16). A tecnologia sem fio (conexão

WiFi) e as mídias móveis são grandes aliados para a ubiquidade, com a qual as

crianças mostram grande desenvoltura e isso é notado em vários momentos, como,

por exemplo, ao acessar as redes sociais digitais por meio de aparelhos de telefones

celulares.

"O Facebook desponta hoje como uma das empresas mais rentáveis da

internet", afirma Macedo (2014, p. 264). Possivelmente, é uma das redes sociais

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mais acessadas pelas crianças, que têm, nesse endereço, um local para transitar,

como se fosse uma extensão online do quintal de sua casa.

O Facebook (originalmente, the facebook) foi um sistema criado pelo americano Mark Zuckerberg enquanto este era aluno de Harvard. A ideia era focar em alunos que estavam saindo do secundário (High School, nos Estados Unidos) e aqueles que estavam entrando em universidade. Lançado em 2004, o Facebook é hoje um dos sistemas com maior base de usuários no mundo, não tão localizado quanto outros, como o Orkut. (RECUERO, 2014, p. 184).

Com as redes sociais, não foram apenas os modos de se relacionar que

passaram por reconfigurações, mas essas tecnologias trouxeram outras situações

que estão transformando a infância, entre elas, o consumo. Para Macedo (2014), a

participação da criança nas mídias eletrônicas, desperta, no mercado, um nicho em

potencial, o segmento infantil na cultura de massas. É a infância midiática

administrada pelo adulto.

Se os adultos detêm as regras do jogo no mercado, então cabe fazer reflexões a respeito da criança nesse debate que envolve os direitos da infância e os interesses do mercado das mídias tecnológicas, especialmente quando a infância é tratada como usuário e produto, isso acontece no Facebook. Enquanto sustenta o slogan "É gratuito, e sempre será" em sua página inicial, funciona como uma vitrine de dois lados: os usuários são consumidores em potencial dos produtos anunciados no site, ao mesmo tempo em que são produtos em exposição para as empresas que lá estão. É bom lembrar, usuários-produtos de todas as idades. (MACEDO, 2014, p. 264, grifos da autora).

De acordo com a autora, embora haja o reconhecimento da gravidade de que

as relações que acontecem no Facebook são monitoradas pelo mercado e que as

crianças presentes ali estão expostas a propagandas e ao incentivo ao consumo de

forma sutil, não se pode, por outro lado, desmerecer o site ou anular a sua

importância como potência de comunicação, uma plataforma de interatividade que

está no centro de novas formas de sociabilidade presentes na infância.

A socialização das crianças pelas redes sociais desperta a atenção no que

tange às práticas de consumo, impulsionadas pelo mercado, e também expõe a

imagem da infância numa faixa de alcance extraordinária, uma audiência grandiosa

formada por crianças, adolescentes, adultos. Acrescentam-se a isto os olhares de

muitas empresas, que tornaram a infância mais imagética e, consequentemente,

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com maior visibilidade e menor privacidade. Santaella (2013) explica que, no século

XIX, surgiu

[...] uma explicação bem simples de privacidade como "direito de estar só". Não é casual que essa explicação e reivindicação de direito tenham sido contemporâneas de mídias de reprodutibilidade técnica trazidas pela Revolução Industrial, a saber, a impressão em massa dos jornais, a fotografia e a emergência da publicidade. Com elas foi sendo corroído o sentido da privacidade como esfera doméstica, junto com o temor da invasão da privacidade pela disseminação pública de detalhes relativos à vida privada de uma pessoa. Começava aí o dilema relativo à exata extensão em que pensamentos, sentimentos e emoções de um indivíduo podem e devem ser compartilhados como os outros. (SANTAELLA, 2013, p. 78, grifo da autora).

Os dilemas com a falta de privacidade que a criança contemporânea vive

podem ser facilmente encontrados em imagens da infância estampadas nas redes

sociais. É cada vez maior o número de exposição de imagens de crianças,

especificamente de meninas, com performances que retratam, de alguma forma,

uma conjugação de inocência e sedução.

Dentro dessas discussões, há outro embate que envolve interesses das

empresas de mídias tecnológicas que se utilizam de discursos com viés jurídico,

como o artigo 5, da Lei de Liberdade de Expressão (inciso promulgado na

Constituição Federal), que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística,

científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença." O interesse

dessas empresas é comercializar os seus produtos, por meio da divulgação com

propagandas e campanhas publicitárias, e isso tudo pode ser possível graças ao

incentivo ao consumo, desde a infância. A criança precisa ser preparada para lidar

de forma crítica com essa situação, e, para isso, um dos caminhos possíveis é

promover a educação para a mídia.

A escola não pode ficar de fora dos debates sobre a infância nas redes

sociais. É no ambiente escolar que se necessita levantar questões para se discutir a

relação e a exposição da criança nas mídias tecnológicas. Macedo (2014) propõe

que a escola inclua, em caráter de urgência, um debate entre educadores e

sociedade sobre uma educação que contemple os novos modos de ser e de se

relacionar das crianças, o que inclui, fundamentalmente, as mídias digitais. A

pesquisadora demonstra muita preocupação em oferecer à criança uma educação

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crítica em relação aos materiais disponíveis nos meios de comunicação e no mundo

cibernético.

2.3 Fronteira tênue: menina criança e menina mulher

O internauta observa e verifica que mais uma imagem de menina é postada

numa página do Facebook, o blog "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", capricho na

produção, roupas e sapatos da moda, cabelos feitos e maquiagem impecável, entre

poses e olhares, caras e bocas, cenário perfeito. Uma nova imagem de menina é

postada. Cria-se uma expectativa para saber a quantidade, o número de curtidas,

comentários, compartilhamentos que os usuários da página dedicarão àquela

imagem.

Um grande feedback dos internautas pode significar que a fotografia foi um

sucesso, chamou muita atenção dos visitantes do blog. O sucesso na postagem de

uma imagem de menina implica na busca por adjetivos, como juventude, beleza e

corpo perfeito (corpo torneado e magro). "O corpo jovem é proclamado como algo a

ser desejado, perseguido, minuciosamente investido." (FELIPE; GUIZZO, 2003, p.

126).

O que se evidencia, nas redes sociais, são novas formas de representações

de infâncias, que são interpeladas por discursos de um ideário, de um padrão da

estética do corpo, da aparência física, e, consequentemente, artefatos e produtos,

estabelecidos socialmente e comercializados pelo mercado e pelas mídias digitais.

Esses discursos de beleza e sedução, materializados na cultura do consumo,

conferem um novo tom às subjetividades das crianças, nos dias atuais.

Na cultura do consumo, o corpo desvirgina-se e afasta-se, quase por completo, de sua natureza, passando a ser objeto de intervenções ao ponto de se transformar em produto cultural. Não há mais corpo que não possa ser trabalhado, modificado e produzido. Assim, nossas identidades, imersas na esfera midiática, ganham um caráter mutante jamais visto, permitindo-nos atravessar as fronteiras, cada vez mais elásticas, entre realidade e ficção. (SALGADO; LUIZ, 2012, p. 23).

Conforme Louro (2013), os corpos são significados pela cultura e são,

continuamente, alterados por ela. Talvez devêssemos nos perguntar, antes de tudo,

como determinada característica passou a ser reconhecida e significada como uma

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marca definidora da identidade? Quais os significados que, nesse momento e nessa

cultura, estão sendo atribuídos a tal marca ou a tal aparência?

As infâncias estão em processo constante de reconfiguração, de acordo com o interesse e as necessidades de cada sociedade. Estão em andamento diferentes formas de constituição de ser criança. As atuais e múltiplas configurações familiares, as pedagogias culturais, as tecnologias da comunicação e da informação são alguns dos processos que nas sociedades contemporâneas contribuem para a constituição dessas novas e diferentes infâncias. (FELIPE et al, 2013, p. 18).

Os corpos das meninas estão em pleno processo de significação, de

reconfiguração, e essa realidade revela um complicador, que é a elasticidade de

fronteiras. Nesse sentido, é oportuna uma reflexão sobre o que representa ser uma

menina criança e o que representa ser uma menina mulher na dimensão imagética

da qual a infância é parte e como isso afeta a vida da criança.

Novaes (2013) argumenta que, em uma cultura com mais telas e menos

páginas, as imagens passam a constituir, por si só, a realidade, em vez de retratá-la,

reproduzi-la e representá-la. A imagem assume a posição do sujeito, e sem

perspectiva de si mesmo, não há identidade possível, ele se torna estrangeiro em

seu próprio corpo, alienado em sim mesmo, pois existe somente como imagem.

A autora destaca, ainda, uma situação de exclusão que ocorre nas

sociedades contemporâneas sob o viés do consumo. O que é considerado feio, que

tem um limite para acabar, definha e morre, não pode ser consumido, ainda não se

encontrou um valor mercadológico e/ou de troca para esse fenômeno. O discurso

que diz que a mulher considerada feia, pelos padrões sociais, é menos feminina

abarca o cenário de como o corpo dominou nosso imaginário de uma forma nunca

antes vista. Conquistas, práticas e discursos definem normas de comportamento,

regulam diretamente nossas vidas e determinam padrões de inclusão e exclusão,

sendo alguns deles validados pela sociedade.

Nas redes sociais, há uma exibição constante de muitas imagens de corpos

de meninas, apresentadas de tal maneira como se fossem adultas, resultado de

investimentos na produção da aparência, no intuito de ficarem belas e admiráveis,

ao mesmo tempo, como possibilidade de evitar algum tipo de discriminação ou

exclusão por não estarem nas normas ou padrões de beleza pré -estabelecidos pela

sociedade e pelo mercado. O corpo, explica Le Breton (2013, p. 31-32), “tornou-se

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um empreendimento a ser administrado da melhor maneira possível no interesse do

sujeito e de seu sentimento de estética. O selo do domínio é o paradigma da relação

com o próprio corpo no contexto contemporâneo."

Para promover o consumo nas mídias eletrônicas, o mercado se utiliza, de

forma competente, da publicidade, que tem conteúdos recheados com imagens de

corpos de meninas, ninfas, com discursos de sedução, ou seja, a publicidade faz

uso desse recurso e incentiva, de algum modo, a menina criança a buscar a

transformação para a menina mulher, com base em discursos que têm o olhar do

adulto como determinante sobre a infância.

Fazendo uso da imagem da infância, a publicidade tanto oferece produtos destinados a ela (brinquedos, roupas, doces, parques de diversão etc.) como também oferece produtos típicos do mundo adulto (locação de veículos, venda de automóveis, amaciante de roupas, cadernetas de poupança, seguros de vida, etc.) num discurso dirigido ao adulto, porém, mediado pelos discursos que o mundo adulto construiu sobre a infância. (PEREIRA, 2014, p. 93).

O fato de haver representações de meninas estampadas em imagens das

redes sociais, que fazem o uso de signos, produtos e artefatos relacionados à moda

ou que demonstram preocupação demasiada com o corpo, de modo a atender um

tipo específico de beleza, parece um tema ainda não muito debatido socialmente.

Entretanto, intensifica-se a gama de imagens de crianças, garotas em ensaios

sensuais regidos discursivamente pela insistente busca pela beleza.

Há um frisson nas redes sociais para acompanhar a repercussão das fotos

postadas, por meio de curtidas, comentários, compartilhamentos e mensagens. O

que importa é o sucesso das postagens dessas imagens. Buckingham (2007) pontua

que a fronteira da infância para representações do mundo adulto não é rígida,

permanente, pelo contrário, é uma fronteira dinâmica e que pode ganhar outros

contornos. Há um embaralhamento de todas as formas nas fronteiras,

independentemente do contexto, seja ele mercado, mídias, cultura, consumo ou

acesso das crianças a tudo que é produzido e veiculado pelos meios de

comunicação ou pelas efervescentes redes sociais.

Dentro desse panorama de fluidez das fronteiras entre infância e vida adulta,

há um grande crédito à beleza física do corpo, à juventude, ao belo visual, no qual a

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criança também é personagem desse processo, que tem como mecanismo

supervalorizar um padrão de beleza a qualquer custo.

A feiura não tem história. Tampouco se escreveu a história da solidão e da dor, e de suas consequências mais imediatas. Há séculos, os feios servem de bode expiatório a sociedades muito seguras da própria verdade e do discurso das elites, que, tal como as nossas nos anos 1920 e 1930, determinavam que a beleza era o modelo “sueco”. Hoje, embora o discurso higienista tenha desaparecido, continuamos falando em coisas como “patricinhas e mauricinhos”, em “peruas e marombeiros”. Nessa perspectiva, as transformações do corpo da mulher brasileira foram brutais. Uma radicalização compulsiva e ansiosa a impeliu nos últimos dez anos, e continua a impeli-la, para a tríade abençoada pela mídia: ser bela, ser jovem, ser saudável! Graças à supremacia das imagens, instaurou-se a tirania da perfeição física. Hoje, todas querem ser magras, leves, turbinadas. Em um mundo onde se morre de fome, graças a uma verdadeira lipofobia – todas as mulheres parecem querer participar da sinfonia do corpo magnífico, quase atualizando as intolerantes teses estéticas dos nazistas. (DEL PRIORE, 2013, p. 141, grifos da autora).

Se as imagens das crianças nas cartilhas escolares poderiam não ser ideais

no que se refere às representações da infância, o que dizer hoje, quando estamos

diante de uma pluralidade de imagens que estampam as novas infâncias da

contemporaneidade, principalmente nas mídias eletrônicas? Felipe (2012)

argumenta que, historicamente, o corpo tem sido objeto de estudos, de cuidados, de

investimento e até especulação em várias culturas. Há tentativas de vários campos

do conhecimento em atribuir ou ditar regras sobre o corpo. Existem muitas

expectativas sobre o corpo que, de algum modo, acabam por dividi-lo, demarcá-lo,

conferindo-lhe, assim, status, uma valorização ou não em função do gênero.

Enfatiza, ainda, a autora que as crianças passam a ser vistas como consumidoras e,

consequentemente, alvos das propagandas ao mesmo tempo em que são

desejadas, como se fossem um objeto, um produto a ser apreciado, difundindo a

"pedofilização" na sociedade. A história da humanidade nos apresenta diversas

situações que mostram o encantamento do adulto pela infância, que vem ganhando

mais espaço na sociedade ao se caracterizar como um mercado que alimenta

inúmeros produtos da indústria cultural e das mídias eletrônicas, tais como: filmes,

novelas de TV, músicas, redes sociais online, entre outros.

Del Priore (2011) argumenta que, no Brasil, durante o período do Estado

Novo, o governo já expressava alguma preocupação com a infância, prova disso é a

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difusão dada pelo Ministério de Educação e Saúde que tratava da infância e também

da juventude como objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado.

Isso significava dar condições físicas e morais de uma vida sadia e harmoniosa para

o seu desenvolvimento. A autora aponta, ainda, que, naquele período, assim como a

juventude, a infância era considerada uma categoria social que se torna, ao mesmo

tempo, uma representação sociocultural e uma situação social. A imagem da criança

era relacionada à civilidade, concentrada, obediente e a caminho para uma

cidadania nacionalista, fato que garantia a estabilidade do regime governista.

Exemplo disso são as cartilhas escolares.

Felipe (2012) comenta que, de várias maneiras, seja em campos de

conhecimentos ou pela mídia, há uma predisposição à padronização, a um

enquadramento, a uma conceituação do corpo. Esse cenário abrange tanto as

representações sobre corpo, quanto as de gênero e sexualidade que permeiam, de

forma subjetiva, não apenas o mundo adulto, mas também a vida das crianças.

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3 BELAS E SEDUTORAS, AS IMAGENS DE MENINAS REFLETIDAS NOS

ESPELHOS DIGITAIS

Ser bela e sedutora são atributos poderosos, de forte apelo para as meninas,

de modo que se tornou quase impossível separar esses adjetivos das meninas que

desejam ter as suas imagens refletidas nos espelhos digitais, seja nas redes sociais

ou em alguma página do espaço cibernético. As mídias eletrônicas têm sido

eficientes pedagogias culturais, que adotam discursos nos quais beleza e sedução

são pré-requisitos básicos para ter sucesso, status e, por fim, felicidade.

Pereira et al (2009) comentam que a religião, o mercado e a mídia são as três

instituições que, historicamente e em tempos diferentes, solidificaram o ideal

supremo da beleza. Essa influente trindade institucional permeou a arte, a ciência e

os discursos, associando a experiência da beleza a outros modos de experiência,

como os modos de ser, modos de viver, as relações interpessoais, as

subjetividades, bem como o consumo e outros. Com o apogeu das cidades,

indústrias e tecnologias, instaura-se um novo tipo de preocupação, que é o "mostra-

se ao outro”. No mundo virtual, a humanidade perdeu a noção do quê e até onde ir

para modificar o corpo e conquistar uma beleza que seja impecável, provocante,

perfeita. Porém, basta usarmos o bom senso para perceber que isso não pode ser

alcançado, ou seja, muitas pessoas anseiam desesperadamente por um corpo

perfeito que só pode ser concretizado na tela de um computador.

Se hoje nos deparamos com a exacerbação da beleza e da sedução em

relação ao corpo feminino, no passado não era bem assim. Ao contrário, o

encantamento pelas formas físicas de uma mulher poderia significar maus

presságios ou a materialização de algo ruim ou triste.

Del Priore (2000) relata que, no Brasil, durante o período colonial, doença e

culpa se misturavam. O corpo feminino era visto, tanto pela Igreja Católica quanto

pela medicina, como algo ruim e perigoso; nele se travava uma batalha entre Deus e

o Diabo. Quando a mulher ficava doente ou sofria de algum mal, a culpa era dela

própria, pois estaria recebendo castigo de Deus por seus pecados ou algum aviso

demoníaco. Essa ideia povoava as mentes das pessoas naquela época, como se o

corpo da mulher fosse um documento, ora emitido por Deus, ora emitido pelo Diabo.

Na era contemporânea, o corpo feminino continua sendo um grande palco,

porém, com um enredo bem diferente. Dessa vez, é o corpo infantil, da menina, que

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vem conquistando cada vez mais evidência, interpelando a infância na sua

configuração e na demarcação de suas fronteiras com a vida adulta.

[...] a mulher bela já foi assimilada à flor, à gatinha e, recentemente, à fera, agora, esta última se armou, cresceu e alargou a musculatura. O termo "sarada" é também utilizado para indicar um mulher popularmente chamada de bombada ou marombada, sugerindo um corpo que se curou de qualquer fraqueza ou moleza. (SANT'ANNA, 2014, p. 179, grifo da autora).

A autora também relata que, nessa conjuntura de sarados com músculos

definidos, o corpo é considerado um material de renovação constante. Se, acaso,

ele estiver com o prazo de validade vencido, corre o risco de estragar e ser

descartado. Há uma impressão de que a beleza construída no Brasil se afirmou

como um passaporte de Primeiro Mundo, do qual pode se ultrapassar fronteiras

econômicas ou culturais. Houve um ganho inusitado na liberdade para adular,

modificar, explorar e cultuar o corpo e, assim, obter prazeres. Sant'Anna (2014)

alerta que o corpo é mutável e mortal, está no tempo e tem dentro de si a memória

de experiências vividas, nada em sua forma é permanente e totalmente submisso ao

controle. A imagem construída, por cada um, de seu próprio corpo, teve, poucas

vezes como hoje, a chance de ser tão densa e profunda, mas, ao mesmo tempo, tão

incerta e efêmera.

Pereira (2009) afirma que o capitalismo, por meio de seus mecanismos –

como a produção e consumo – dita o ritmo contemporâneo, uma época que tem nas

fascinantes imagens uma potência catalisadora para atrair as pessoas para o

consumo. Não importa ao capitalismo se o/a consumidor/a faz uma reflexão sobre a

imagem e o respectivo produto que vai consumir, o interesse aí é puramente

comercial, por isso, também ocorre a sedutora e efêmera relação das imagens com

as pessoas. A autora propõe uma reeducação, um repensar crítico sobre o tempo

que se dedica à contemplação ou produção das imagens.

3.1 Beleza e sedução: origem e significado

Segundo Ferreira (2001), beleza significa qualidade de belo, pessoa o u coisa

bela, muito agradável ou muito gostosa. Já a palavra sedução se refere ao ato ou

efeito de seduzir ou ser seduzido. Na realidade, os significados dessas palavras vão

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muito além das informações dos dicionários, ser bonita e fazer dessa beleza um

mecanismo para sedução já é algo presente em muitas imagens de meninas

estampadas pelas redes sociais online.

A beleza pode ter vários significados. Novaes (2013) argumenta que a beleza

pode também significar trabalho. Isso quer dizer, para as mulheres, a beleza vem

em forma de trabalho sobre o corpo, ser bela cansa e dói. Sendo assim, mais

importante que ganhar dinheiro é estar com o corpo em forma (seco, sarado e

definido). Não se pode descuidar do corpo em nenhum momento, um simples

desleixo e pronto, corre-se o risco de ficar feia.

A autora ainda pontua que a beleza é um meio de ascensão social, o que vem

sendo contado e recontado nos contos de fadas, de modo que cultivar a beleza, a

boa forma e a saúde representa uma nova ideologia, que tem como discurso um

verdadeiro esti lo de viver, um bem que nos é posto como o caminho mais seguro e

autêntico para a felicidade individual.

Conforme Del Priore (2013, p. 137), no século XX, envelhecer começava a

ser associado à perda de prestígio e ao afastamento do convívio social. Além disso,

a gordura passou a ser identificada à velhice. Instaura-se a era da lipofobia. A

obesidade tornou-se um critério determinante de feiura. O fim do século XX inventou

um narcisismo coletivo. A beleza instituiu-se como prática corrente e, mais do que

isto, ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais,

argumentos publicitários, produtos de beleza e medicina vulgarizada nas revistas,

atuando como mecanismos sutis, mas extremamente repressivos, que agem sobre o

corpo feminino.

O conceito de beleza já teve várias definições na história da humanidade. Eco

(2014) aponta que, na Grécia Antiga, não havia uma regra independente para a

beleza, uma estética ou uma teoria que tinha a beleza como objeto de estudos.

Talvez seja por isso que a beleza sempre esteve relacionada a outras qualidades, é

um modo de pensar sobre o que é belo, que influencia a nossa sociedade até os

dias atuais. Por exemplo, quando questionado a respeito do critério da beleza, o

oráculo de Delfos respondeu que o mais justo é o mais belo. Mesmo no período em

que a arte grega se encontrava em plena magnitude, a beleza era associada a

outros valores.

Quando se pensa na beleza retratada nas artes, Eco (2014) afirma que a

escultura grega busca uma beleza psicofísica que harmoniza alma e corpo, ou seja,

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a beleza das formas e a bondade da alma. Historicamente, a beleza já tem muitas

faces e especificidades associadas ao seu tempo, da Vênus à beleza romântica; da

pastorinha à mulher angelical; da beleza mágica entre os séculos XV e XVI à beleza

das damas; da beleza do consumo à beleza da mídia.

Até hoje não há uma definição se os antigos entendiam como "belo" tudo

aquilo que lhes agradava, que lhes despertava admiração e atraía o olhar, tudo

aquilo que, devido à sua forma, satisfazia os sentidos, ou uma beleza espiritual, que

podia, às vezes, não se igualar a uma extraordinária beleza do corpo. Eco (2014)

conclui que os meios de comunicação de massa, por sua vez, não apresentam mais

nenhum modelo ideal de beleza. É preciso se render diante da profusão de

tolerância, de sincretismo total, de absoluto e descontrolável politeísmo da beleza.

Para o autor, não existe um modelo padrão de beleza, pelo contrário, a beleza tem

várias faces. Esse pensamento se torna um consolo, quando se depara com os

discursos de uma beleza ideal, em imagens de meninas nas redes sociais.

O politeísmo da beleza refere-se a uma grande festa tomada por muitos

signos e discursos sobre a beleza, festa da qual a infância é convidada a participar.

Em meio ao culto ao corpo magro e definido, no que se refere à massa muscular, há

outros referenciais de beleza, outros discursos ou ideologias que podem ou querem

se fazer ouvidos. “O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são

mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se o

ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.” (BAKHTIN, 2006, p.

32-33).

Como argumentam Pereira et al (2009), a beleza nos é apresentada no

sentido de ser apreciada, uma vez que foi transformada em mercadoria e, portanto,

não é referente ao sujeito, mas pode ser comercializada, trocada, comprada. Na

contemporaneidade, a beleza é mantida como aparência, valor ou fim em si mesmo,

que interpela as formas como as pessoas determinam suas relações com o/s

outro/s.

3.2 Imagens da feiura: do corpo grotesco ao corpo midiático

Para Bakhtin (1996), em Rabelais:

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[...] as imagens grotescas conservam uma natureza original, diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. São imagens ambivalentes e contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da

estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. (BAKHTIN, 1996, p. 22, grifo do autor).

Bakhtin evidencia, ainda, as diferenças entre o corpo moderno e o corpo

grotesco, consagrado na cultura popular.

Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas partes do corpo que ele se abre ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através dos orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz. É em atos como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e as satisfações das necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites. (BAKHTIN, 1996, p. 23)

De acordo com Novaes (2013), no novo cânone, o corpo grotesco é visto

como monstruoso e horrível, uma vez que reflete a imagem de uma sociedade, na

qual o seu pertencimento é vinculado ao registro social e não ao privado. Aos

poucos, o corpo grotesco perde espaço para esse corpo que é perfeitamente

acabado e severamente delimitado, o que torna suas funções, antes valorizadas,

agora transformadas em objeto de pudor e privatizadas. Há também outros fatores

que transformaram a imagem social do corpo: a produção e utilização dos espelhos,

que nomeiam o sentido da visão como aquele mais privilegiado para o

desenvolvimento tecnológico. A autora afirma que: "O olhar público que explora a

anatomia humana é o mesmo que realiza ao extremo sua ampliação, dissecando e

fragmentando o corpo do outro." (Ibidem, p. 56).

"De aspecto desagradável, indecoroso", esses são alguns dos significados

para a palavra "feio", segundo Ferreira (2001, p. 342). Porém, sabe-se que as

palavras saltam dos dicionários e avançam para além dos seus significados, na vida

das pessoas. Não por acaso, os discursos que ecoam nos dias de hoje fazem com

que ninguém deseja ser marcado por esse adjetivo, nem sequer imaginar ser

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reconhecido como uma pessoa feia, visto que, de acordo com os discursos do

mercado e da mídia, há solução contra a feiura.

Eco (2014) esclarece que, ao longo da história, filósofos e artistas sempre

elaboraram estudos e definições sobre a beleza. Dessa forma, quando se pensa em

pesquisar sobre o que é ser belo ou bela, encontra-se vasto material sobre estética

que foi produzido com o passar do tempo, enquanto sobre a feiura, depara-se,

quase sempre, com a definição do contrário do que é ser bonito. Mas, afinal, o que é

a feiura?

O autor pontua que as considerações sobre o que é feio e bonito são relativas

aos vários períodos históricos ou às várias culturas . Ele cita um exemplo que, para

um ocidental, uma máscara ritual africana pode parecer horrível, enquanto que, para

o nativo, poderia representar uma divindade benévola, as formas como os deuses

eram retratados, bois, leões, cavalos desenhados com mãos, os ciclopes, seres da

mitologia grega que possuíam apenas um olho. Repelentes, abomináveis,

desgraciosos, fétidos, entre outros, quase todos os sinônimos de "feio" podem

implicar uma reação de horror, susto.

Conforme Pereira et al (2009), a beleza é relacionada à luz, que dá a ideia de

natureza do belo, a natureza bela e perfeita não produz algo ruim/feio. Dessa forma,

nesse contexto, o lugar do feio é o "não lugar", é condenado a se esconder nas

trevas por não ter a perfeição divina, por estar fora dos padrões socialmente

estabelecidos. Nessa perspectiva, a feiura física acompanha a sua feiura moral,

enquanto que a beleza abona qualquer imperfeição de caráter. (PASSOS;

PEREIRA, 2009, p. 98).

Aquilo considerado "feio" é resgatado, de alguma forma, durante o período

Renascentista, afirma Eco (2014, p. 142): “em uma sociedade que vai sustentar

doravante a prevalência do humano e do terrestre sobre o divino. O obsceno

transforma-se em orgulhosa afirmação dos direitos do corpo, e como tal, Rabelais foi

admiravelmente analisado por Bakhtin”.

Já na atualidade, ainda segundo o autor, convivemos “com dois modelos

opostos porque a oposição feio/belo não tem mais valor estético: feio e belo seriam

duas opções possíveis a serem vividas de modo neutro, o que parece se confirmar

em muitos comportamentos juvenis." (ECO, 2014, p. 426).

Mesmo que exista um padrão de beleza preestabelecido em nossa

sociedade, não há como deixar de notar que existem, também, vozes sociais

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contrárias a essa padronização. São discursos que nos fazem refletir a respeito de

estética do corpo humano.

O que hoje é visto como exótico, mas incluído nos padrões de

beleza, em outros momentos era considerado feio. O feio,

historicamente, é caracterizado como aquele que foge à regra, sai

dos princípios, que pode trazer sensações de nojo ou desprezo.

(PEREIRA; PASSOS, 2009, p. 98)

A pressão que a mulher sofre para ser bela vem de muito tempo atrás, o que

se vê hoje é a sua exacerbação com a presença da mídia eletrônica e das redes

sociais online. Del Priore (2013, p.135) apresenta um exemplo disso, trazendo uma

publicação da Revista Feminina, de 1920, que se caracteriza como um conselho

para as mulheres:

As feias [...] não devem fingir-se belas. Contentem-se em ser feias, tratem de educar seu espírito, de viver higienicamente para adquirir saúde, de nutrir-se convenientemente, de ser simples, bem-educadas e meigas. A vida higiênica, a boa nutrição, os esportes garantir-lhes-ão a saúde, a boa pele, os bons dentes, a harmonia das formas, o desembaraço dos gestos e a graça das atitudes; a leitura sã, o cultivo do espírito, dar-lhes-ão inteligência e à fronte; a bondade, a simplicidade, a meiguice torná-las-ão perturbadoramente simpáticas. Deixarão, pois, de ser feias; ou, se continuam feias, valerão mais do que as belas, terão mais prestígio pessoal, impor-se-ão às simpatias gerais. (DEL PRIORE, 2013, p. 135).

A realidade pode ser mais preocupante e ao mesmo tempo desafiadora.

Nessa conjuntura, há a infância que se encontra nessa era imagética e repleta de

exigências, de uma sistemática obrigação pelo embelezamento direcionado às

meninas, pois a imagem, mesmo de forma digital, apresenta-se para essas crianças

como algo primordial em suas vidas, uma espécie de passaporte para a realização

pessoal.

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4 FEMININO: GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE

Não há como se debruçar sobre uma investigação de imagens de meninas,

que ilustram, de forma um tanto quanto exaustiva as redes sociais, sem estar

consubstanciado nos Estudos de Gênero. Louro (1997) ressalta bem a emergência e

a urgência de se levar esse tema à arena dos debates dos Estudos de Gênero, pois

lutas e confrontos de ideias são inevitáveis no exercício da reflexão sobre a

relevância de se pensar o feminino como ser vivente e pertencente de fato e de

direito na trajetória histórica da humanidade, que vem se configurando a todo o

momento, se transforma e é transformado a todo instante. São vozes do feminino

que, após muitas lutas contra a invisibilidade, contra o olhar desimportante,

conquistam, pouco a pouco, seu protagonismo no palco da cidadania.

Louro (1997, p.15-16) relata a importância dos movimentos em defesa dos

direitos da mulher. Ainda hoje, na atual conjuntura do papel da mulher na sociedade

brasileira e no mundo, ações de luta pelo direito ao voto, à organização familiar e

pelo acesso a algumas profissões são pontos que merecem atenção.

Todavia, os discursos de discriminação e inferiorização contra a figura

feminina podem encontrar, tanto no conhecimento empírico quanto nos braços de

algumas ciências, fortes palavras e convincentes ideias para a permanência de

ideais que ainda contemplam um pensamento preconceituoso e excludente em

relação à mulher. "Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma

linguagem "científica", a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve

para compreender – e justificar – a desigualdade social." (LOURO, 1997, p. 21, grifo

da autora).

Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo que se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental. (LOURO, 1997, p. 21).

A construção de muito do que se conhece, se pensa e se diz a respeito do

feminino, quanto ao gênero, ao corpo e à sexualidade, faz parte de um leque de

discursos que ecoam mesmo antes, por exemplo, de uma criança vir ao mundo,

antes de seu nascimento. Belotti (1975) chama a atenção para esse fato, inclusive

para a pressão social sobre a própria mulher gestante, futura mamãe, que não é

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poupada de cobranças referentes ao “sexo” da criança, pois o desejo pelo filho

homem ainda prevalece em nossa sociedade, evento esse muito festejado por

familiares e amigos dos familiares.

Belotti (1975, p. 25-26) pontua que as mães, os pais, as famílias, já têm em

mente os perfis adequados para crianças: das meninas, se aguarda afetuosidade,

gratidão, companheirismo e colaboração no trabalho doméstico, enquanto que, dos

meninos, se espera agressividade, voracidade e agitação. Essa elaboração de

valores, no que diz respeito ao gênero, é fortemente expressa nos discursos,

também materializada na decoração do quarto do bebê e no modo como essa

criança será apresentada ao mundo, que tipo de roupa usará, quais as cores e

brinquedos permitidos. Existe um contexto social alicerçado em discursos que dão

destaque à sexualidade binária, feminino e masculino, estabelecendo padrões nos

modos de ser, nas regras de como meninas e meninos devem agir. Devem, assim,

obedecer a uma conduta determinada em relação a um ideário, bem definido, que é,

a todo o momento, construído e reconstruído, no que se entende por ser feminino ou

por ser masculino.

As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos, na história, não nas condições de acesso aos recursos da sociedade, não nas formas de apresentação. (LOURO, 1997, p. 22).

Com isso, Louro (1997, p. 25) argumenta que os papéis designados para

mulheres e homens são estabelecidos e transmitidos pela sociedade. Entretanto, há

várias formas de viver as feminilidades e masculinidades, de modo que não se

podem observar essas questões de gênero sob uma ótica simplista, reducionista.

Torna-se vital ampliar os horizontes, e, assim, "entender o gênero como constituinte

das identidades dos sujeitos." (LOURO, 1997, p. 24).

Discutir gênero, com o foco no feminino e, especificamente, nos modos como

os corpos das meninas são representados, pode nos ajudar a compreender como

uma nítida imagem, capturada por uma câmera, com o ângulo mais aberto, permite

a exposição maciça de imagens de meninas, que têm seus corpos estampados nas

redes sociais, impulsionadas por discursos que tratam beleza e sedução como

grandes valores a serem seguidos.

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O objeto desta pesquisa, imagens de meninas postadas numa página do

Facebook, "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", requer subsídios teóricos sobre

Estudos de Gênero para uma compreensão das transformações complexas em que

a infância está inserida. Estamos diante de discursos calcados em regras e

normativas sobre o feminino, mas de uma forma diferente, veloz, que atinge um

elevado número de crianças. O "ensinar a ser menina" agora é ensinado por outros

tipos de pedagogias culturais. Trata-se das mídias sociais, das redes sociais.

Diferentes discursos de construção das subjetividades em torno do corpo da

menina afetam as composições do feminino. Observa-se que, pela dinâmica da

proposta imagética da página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", há um novo

modelo de criança, mais propriamente de "menina", a ser ensinado e a ser seguido,

o que nos leva a pensar na existência de um "estilo menina de ser". Esse estilo é

relacionado à beleza e à sua sedução, e tem sustentáculo na cultura do consumo,

pois, para ser uma menina estilosa, é preciso consumir produtos que agregam

valores, e isso implica em ser bela e atraente.

Os discursos que imprimem o tom de formatação ao gênero feminino, no

período da infância, podem atropelar ou tentar, de alguma maneira, si lenciar ou

sufocar as diferentes vozes e particularidades nos modos de ser das meninas.

Sendo assim, torna-se necessário desconstruir esses discursos impositivos às

subjetividades femininas. Não se pode perder de vista que essa uniformidade, que é

promovida por discursos da beleza e da sedução, só é possível de forma superficial,

aparente. É nesse ponto que muitas meninas podem enfrentar conflitos, quando

chega o instante em que decidem seguir um "estilo de menina", um modelo feminino,

como gênero, corpo e sexualidade. O choque de realidade se contrapõe aos

discursos de um ideário feminino, quando se leva em questão que, "afinal não existe

a mulher, mas várias e diferentes mulheres que não são idênticas entre si".

(LOURO, 1997, p. 32).

A afirmação de Louro (1997), quanto à existência de diferentes mulheres e

não apenas "a mulher", nos faz pensar que essa modelagem do feminino tem início

na gestação da futura mãe, uma vez que a família, os grupos sociais – como a

igreja, o trabalho e a escola – atuam fortemente no ensinamento de como ser

menina. Hoje se percebe que os discursos do consumo, as vozes que ecoam a

beleza e a sedução também vão pelo caminho que corrobora com a invisibilidade

das múltiplas formas de ser mulher. São discursos que têm no unívoco, numa

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publicização, numa formação específica, na identidade do feminino, uma

característica predominante, sem o reconhecimento da diversidade.

4.1 Ser menina: (des)construindo identidades

A família é um dos primeiros grupos sociais no qual a menina aprende as

normas, as regras, como deve ser e como deve se fazer representar como menina

perante o mundo. São os primeiros discursos, dirigidos especificamente aos modos

de ser do gênero feminino, que se intensificam quando a menina começa a

frequentar a escola, que "colaborará eficazmente no esclarecimento conceitual do

significado de ser menina e fará o mesmo com o menino." (MORENO, 1999, p. 16).

Destaca-se que a escola, ainda que seja um importante espaço de formação

social da menina, hoje, possivelmente, divide o seu poder de influência com as

redes sociais, como o Facebook, que funciona como um tipo de pedagogia que atua

sobre a criança. Isso requer que a escola reflita a sua função como ambiente

educador e não ignore essa realidade cibernética, na qual a criança está inserida.

São novos tempos que vão exigir uma nova relação, uma nova forma de educar.

A escola tem marcada uma dupla função: a formação intelectual e a formação social dos indivíduos, ou seja, seu adestramento nos próprios modelos culturais. Em lugar de ensinar o que outros pensaram, pode ensinar a pensar; em lugar de ensinar a obedecer, pode ensinar a questionar, a buscar os porquês de cada coisa, a iniciar novos caminhos, novas formas de interpretar o mundo e de organizá-lo. (MORENO, 1999, p.17).

A escola pode fazer muita coisa por meio de uma educação que promova o

aprendizado, o senso crítico e o respeito às diferenças e à diversidade. A educação

na contemporaneidade sinaliza algo importante e ao mesmo tempo intrigante aos

nossos olhos. Nesse sentido, deve-se entender e pensar como a escola atua hoje,

pedagógica e ideologicamente na formação das crianças, como a questão de gênero

é tratada – ou se é tratada – nesses espaços. Observa-se que, ainda, "a escola

transmite os sinais de pensamento e as atitudes sexistas, aquelas que marginalizam

a mulher e a levam a ser considerada um elemento social de segunda categoria" ,

como aponta Moreno (1999, p. 17). Esses sinais sexistas não cessam na escola,

como um rio em curso, que segue em outra direção, até chegar ao mar, nesse caso,

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até chegar ao mar digital, com fortes ondas, provocadas por imagens de meninas,

nas redes sociais.

A discriminação da mulher começa muito cedo, no momento do nascimento ou mesmo antes. Quando meninas e meninos chegam à escola, já têm interiorizada a maioria dos padrões de conduta discriminatória. Mesmo que tenhamos escolas mistas e que meninas e meninos sentem-se ao redor das mesmas mesas, na hora do recreio os meninos jogam com os meninos e as meninas com as meninas. Nas brincadeiras livres é que se exercitam espontaneamente os modelos aprendidos de conduta, é aí que aparece a fantasia com a qual cada indivíduo se identifica. Mas, curiosamente, é nesses momentos de "liberdade" que cada indivíduo se encontra mais intensamente limitado pelas normas estabelecidas, como se tivesse "plena liberdade" para identificar-se com os arquétipos que estão destinados a ele em função de seu sexo, mas não para transgredi-los. (MORENO, 1999, p. 30-32, grifos da autora).

Há um processo de elaboração para a formação do ser feminino, é um

caminho que surge antes mesmo da mulher se tornar mãe, são as perspectivas em

relação a uma futura filha, e, nesse caminho, temos a família, escola e vários formas

de sociabilidade, nas quais os discursos são engendrados e acabam por constituir

subjetividades.

Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados culturalmente construídos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de "homens" se aplique exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo "mulheres" interprete somente corpos femininos. (BUTLER, 2016, p. 26, grifos da autora).

Butler (2016, p. 29) chama a atenção para a ideia de que a cultura tem

respaldo para determinar e fixar o gênero, assim como faz a biologia, como se

restasse ao corpo apenas a função de um recipiente, para receber informações e

instruções de conteúdo de leis sobre o gênero, regidas pela própria cultura. A autora

ainda apresenta outra reflexão, um contraponto com a escritora feminista Simone de

Beauvoir, que defende na força da cultura no processo de formação do gênero

feminino. Beauvoir pontua que a "mulher" não surge no nascimento de ninguém, não

há como uma pessoa nascer mulher. A mulher nasce sob uma compulsão cultural,

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somando o fato que o ser mulher não significa, necessariamente, ser fêmea.

(BEAUVOIR apud BUTLER, 2016, p. 29).

O corpo é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais é apenas externamente relacionado. Mas o "corpo" é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de "corpos" que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero. (BUTLER, 2016, p. 30, grifos da autora).

Se os fatores culturais moldam a identidade feminina, se é pela compulsão

cultural que se torna mulher, então, podemos pensar que, por meio da página

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal", muitas meninas também se transformam em

um tipo de menina, uma categoria de meninas estilosas, cujos corpos vão se

constituindo por meio de discursos de beleza e sedução que definem o que significa

ser "estilosa". É sob a compulsão desses discursos, com influência do consumo, que

meninas, ainda crianças, vão se tornar "meninas estilosas". Um dos ápices desse

processo pode ser, para essas meninas, as postagens de suas imagens nessa

página ora investigada. O fato de o internauta curtir, comentar, compartilhar essas

imagens é uma possibilidade do coroamento na transformação dessas meninas para

que se tornem, finalmente, "meninas estilosas".

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações. (BUTLER, 2016, p. 69).

Ancoradas nos discursos de beleza e sedução, as meninas buscam construir

suas identidades segundo os moldes de muitos signos contemporâneos, como, por

exemplo, a boneca Barbie, que veicula a ideia de imortalidade, perfeição e juventude

eterna, tanto que tem a sua imagem modelada no museu de cera de Grévin, em

Paris (ROVERI, 2012, p. 17). É na representatividade desse ícone que se desvenda

a grande engrenagem que influencia e impulsiona as subjetividades femininas , o "se

tornar menina" implica diretamente no ato de consumir, de comprar, de adquirir

produtos que estão na moda, o que constitui a identidade de uma "menina estilosa".

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Graças à descoberta da criança como consumidora em potencial, a partir dos anos de 1950, os publicitários passaram a falar diretamente com ela. A princípio, a venda de brinquedos era diretamente com os pais, mas os criadores da Barbie foram os pioneiros em desenvolver técnicas de marketing e comerciais voltados ao público infantil. (ROVERI, 2012, p. 20).

O que se iniciou há tempos atrás, com a boneca Barbie, a respeito do

conceito da criança consumidora, hoje assume proporções gigantescas, quando o

tema são as subjetividades femininas, interpeladas por discursos de beleza,

sedução e consumo, nas redes sociais. A boneca Barbie pode ser considerada um

dos símbolos dessa ideologia, que tem nos bastidores o "mercado", atuando sobre

várias vertentes, como a comercialização de seus produtos para as meninas e as

redes sociais. É possível que a cultura do consumo tenha percebido, nas redes

sociais, como o Facebook, um grande filão para os seus negócios, uma vitrine para

os seus produtos.

A boneca, no seu mundo cor-de-rosa, tem uma participação relevante na construção deste marcador, afetando a subjetivação das identidades das meninas que consomem seus produtos e suas representações de beleza e feminilidade. (XAVIER FILHA; BACARI, 2014, p. 43).

Essa estratégia possibilita que, nesses espaços, nas redes sociais, existam

outras formas de atuação, outros modelos de pedagogia, no qual o interesse maior é

ensinar as meninas que acessam essas redes sociais a serem "estilosas".

Tornando-se "estilosas", elas podem se ver nesses espelhos virtuais e ter as suas

imagens utopicamente eternizadas, assim como a boneca Barbie: jovem, bela,

sedutora e imortal.

4.2 Desafios e reflexões para o feminino

Basta se pensar no gênero feminino e pronto, já aparecem os inúmeros

desafios que a mulher precisa superar e, quando se fala em mulheres, podem-se

incluir também as meninas. Sabe-se que os desafios têm início muito cedo, antes

mesmo de a criança nascer, seguem durante a infância, se mantêm na vida adulta e

culminam na velhice. Percebe-se que há duas grandes barreiras históricas que,

mesmo de uma maneira que não seja absoluta, dão as cartas na vida das mulheres:

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a religião e a ciência. Apesar dos avanços da participação da mulher no cenário

social contemporâneo, a influência da religião e da ciência, que historicamente

trazem a mulher como um ser secundário, com menos importância que o homem e

que precisa ser dócil e submissa, enfim, uma mulher sem voz, ainda perdura.

A mitologia ocidental considera a mulher uma propriedade do homem por ter sido ela criada a partir de uma de suas costelas, fazendo proceder também de um mandato divino uma norma de conduta eleita pelo homem. (MORENO, 1999, p. 29).

Existe também um enquadramento de modelos, seja no modo de ser, nas

normas de condutas, nas relações interpessoais, nas profissões que envolvem a

figura feminina, nos discursos oriundos da ciência. A biologia exemplifica bem essa

situação.

[...] esses modelos podem obedecer a padrões de conduta do tipo genético, ligados à biologia e totalmente independente do social; podem, por outro lado, depender unicamente de um determinado tipo de organização social ou participar de ambos os componentes. (MORENO, 1999, p. 32).

Butler (2016) nos traz uma reflexão sobre a relação da biologia com a questão

de gênero, e, dessa forma, deixa evidente que esse debate é salutar e contribui para

uma compreensão mais precisa do feminino na sociedade contemporânea.

As relações de poder que permeiam as ciências biológicas não são facilmente redutíveis, e a aliança médico-legal que emergiu na Europa do século XIX gerou ficções categóricas que não poderiam ser antecipadas. A própria complexidade do mapa discursivo que constrói o gênero parece sustentar a promessa de uma convergência inopinada e generativa dessas estruturas discursivas e reguladoras. (BUTLER, 2016, p. 68).

A escola parece não ter sido muito aliada das mulheres, durante muito tempo.

A ideologia sexista ainda é notada nos espaços educativos, mas há algo que precisa

ser dito: é o silenciamento da mulher nos materiais pedagógicos, em livros que

pouco trazem referências do protagonismo e da importância da mulher na história,

na sociedade e na contemporaneidade.

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A história que nos contam os livros de texto é, como temos visto, uma história tendenciosa, carregada de ideologia. O fim a que se destina – sem que seus autores e autoras tenham necessariamente consciência disso – é inculcar nas alunas e nos alunos uma determinada forma de ver o presente por meio de uma particular maneira de interpretar o passado, em uma desesperada tentativa de fazê-lo sobreviver, de preservar seus valores ultrapassados, de continuar mantendo sistemas e modelos de conduta totalmente inadequados ao momento atual. A história deve ser reescrita – e felizmente esta é uma tarefa que já está sendo realizada – sob uma ótica completamente diferente. (MORENO, 1999, p. 51).

Com a realidade das mídias digitais e o culto às imagens de meninas nas

redes sociais, vem à tona uma questão que envolve infância e exposição do corpo,

que, além de ser um grande desafio, clama por uma reflexão. É necessário

problematizar essa temática, pensar quais caminhos seguir para aprender a lidar

com essa seara de apelos discursivos, que relacionam beleza e sedução a imagens

de meninas, nas páginas virtuais, como as do Facebook.

Felipe (2003) aborda com propriedade essa complexa questão, que envolve a

exposição do corpo infantil nas mídias digitais, dando relevância ao corpo feminino,

observância esta que, de acordo com Felipe (2003), pode ser entendida como um

processo de pedofilização da imagem da menina. O encantamento do adulto pelo

corpo da criança é histórico, e, hoje, os produtos destinados a crianças são

carregados de referências que fazem jus à beleza, ao corpo perfeito, que pode ser

magro ou escultural. As meninas ficam quase impotentes, sem saber, muitas vezes,

como reagir diante da oferta de variados produtos por tratar-se de uma pedagogia

cultural por meio da qual as meninas aprendem a ser "estilosas", tanto pelo consumo

de produtos femininos como pelo consumo de uma ideia, o "ser estilosa". É para

essa ideia, do corpo infantil como objeto de consumo – a pedofilização da infância –,

que Felipe (2003) chama a atenção:

Não se trata, portanto, de afirmar a existência de uma "natureza" ou "essência" que conduza a este tipo de comportamento (ou preferência) pela juventude, mas, ressaltar o quanto há de investimento, nas mais diversas sociedades e épocas, para que tal comportamento se efetive como prática comum. (FELIPE, 2003, p. 63-64, grifos da autora).

O investimento citado por Felipe (2003) ganha proporções grandiosas,

quando pensamos em redes sociais, uma situação que se assemelha a uma

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anomalia, quando se confronta com os discursos que primam pela proteção e pelos

direitos da criança. Vivemos com duas dinâmicas em direções contrárias: o

investimento sobre o apelo da beleza e da sedução em imagens de meninas e, ao

mesmo tempo, uma tentativa de amparar a infância com leis nacionais e tratados

internacionais.

O corpo da menina, além de receber investimentos assentados no consumo,

atrai holofotes e olhares nas redes sociais. Isso se deve a uma busca, que é

incentivada nas meninas, sob o pretexto de imprimir sua marca, o seu nome,

materializada em seu corpo, alinhado aos padrões estéticos propostos pela

sociedade, pelo mercado, que inculcam, nelas, a noção de que ser bela e sedutora

só depende delas próprias.

Aí nasce o dualismo contemporâneo que, de um modo igualmente implícito, considera o corpo isoladamente, em uma espécie de indiferença em relação ao homem ao qual empresta o seu rosto. O corpo está associado ao ter e não ao ser. (LE BRETON, 2013, p. 72).

O "ter o corpo" é um parâmetro que a menina pode usar para se diferenciar

de outra menina, é algo que é incentivado nos discursos imagéticos. O investimento

no corpo, na aparência é o objetivo a ser alcançado pelas meninas, que o fazem

pela retórica discursiva de que elas podem "ter o corpo" que quiserem e, assim, se

diferenciarem em relação às outras meninas. Concomitantemente a essa realidade,

o corpo atua como ponto limite em relação ao outro, como argumenta Le Breton

(2013, p. 32): "O corpo funciona à maneira de um marco de fronteira para delimitar

perante os outros a presença do sujeito. Ele é o fato de individualização."

Le Breton (2013) ressalta que o conceito do corpo misturado ao cosmo, ao

sagrado, à vida comunitária, à natureza, tão presente na civilização medieval e

renascentista, passa por uma transformação na modernidade, quando o corpo deixa

de ser intocável, sagrado, e acontece o rompimento do corpo humano com o cosmo.

O corpo humano começa a ser estudado pela humanidade e, assim, instaura-se a

individualização do ser humano.

Simultaneamente à descoberta de si como indivíduo, o homem descobre seu rosto, sinal de sua singularidade, e seu corpo, objeto de uma posse. O nascimento do individualismo ocidental coincidiu com a promoção do rosto. (LE BRETON, 2013, p. 29).

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Possivelmente, promover o rosto ainda pode ser a maior prova de

individualidade. Entre uma produção e outra, entre caras e bocas, poses e

performances, meninas de diversas aparências têm imagens de seus rostos clicados

e postados na página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook. Lidar com

a posse do corpo, a busca pelo "ter" alinhado a um padrão de beleza, não pode

passar despercebido.

A história pode nos proporcionar a problematização e reflexão dos desafios

vivenciados pelo gênero feminino, no que se refere aos discursos de beleza e

sedução em imagens de meninas, pelas mídias digitais. A grande arena de debate

para essas discussões continua sendo a escola, e nem poderia ser diferente, pois

cabe à educação protagonizar debates e trabalhos, reescrever uma história, que

abarque reivindicações e pautas femininas. Bakhtin (2009, p. 56) nos ensina que a

história pode ser reconstruída, diferente do que está posto , pois esta não é estática,

ela se movimenta, se atualiza e nós nos atualizamos com ela.

Rever o estabelecimento da normatização às meninas, ao gênero feminino,

pode ser um pontapé inicial para a educação se reposicionar no seu compromisso

social com as mulheres de uma forma mais ampla e cuidadosa.

Os indivíduos tornam-se sujeitos com múltiplas identidades em meio a jogos que estabelecem em relação às práticas coercitivas de instituições como a família, a escola, dentre outras. Em relação a jogos teóricos, os produzem em "práticas divisórias, a partir de discursos que normalizam condutas; finalmente, através do trabalho do próprio sujeito consigo mesmo. (XAVIER FILHA; BACARIN, 2015, p. 52, grifo das autoras).

Diante dessa conjuntura, a escola, então, pode vir a ser uma das maiores

potências na reconstrução da história contra qualquer tipo de discriminação,

preconceitos e/ou sexismo contra o gênero feminino, de modo a transformar essa

realidade.

É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem. Atrevidamente é preciso, também, problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas "críticas"). Temos de estar atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela frequentemente carrega e institui.

(LOURO, 1997, p. 64, grifo da autora).

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Louro (1997) propõe discutir o não dito no processo escolar como um todo,

uma ressignificação da educação em relação aos desafios e reflexões para o

feminino. Se a educação pode reescrever a história, dando voz e visibilidade às

mulheres, às meninas, que esta reconstrução tenha que partir de cada um de nós.

Essa ressignificação histórica deve transitar por muitos caminhos, que podem

promover, à mulher, oportunidades de escolarização, trabalho, combate à

discriminação e todas as formas de violência.

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5 INFÂNCIA IMAGÉTICA: FUNDAMENTOS E PERCURSOS METODOLÓGICOS

Sob o entendimento de que o espaço cibernético é também contexto de

brincadeiras de crianças e que o mouse do computador poderia estar na mesma

ordem de um skate, é possível imaginar muitas crianças vencendo desafios e

fazendo surpreendentes movimentos nas rampas digitais e, dessa forma,

conquistando o melhor ângulo, fazendo a melhor imagem ou sendo a melhor

imagem. Como um aprendizado de manobras de skate para iniciantes, a grande

expectativa em relação à pesquisa é aprender a se equilibrar sobre esse brinquedo,

se movimentar pelas pistas, aproveitar para observar a paisagem a sua volta e o que

ela tem de interessante.

A pesquisa que aqui se apresenta assume uma abordagem qualitativa, cujo

paradigma se pauta na ideia de que a observação do mundo e dos fenômenos que

nele se dão está diretamente vinculada às práticas sociais e a seus significados

(BORTONI-RICARDO, 2008). Flick (2009) aponta que a pesquisa qualitativa

trabalha, sobretudo, com textos, servindo de base para as análises que acontecem,

de modo reflexivo, da teoria. Assim, o pesquisador, em suas interpretações, é um

construtor do percurso da pesquisa (BORTONI-RICARDO, 2008).

Para analisar as imagens do blog “Crianças Estilosas – Blog Pessoal”, esta

pesquisa tem como referenciais teórico-metodológicos os conceitos bakhtinianos de

enunciado, dialogismo e polifonia. Fiorin (2008) afirma que, para Bakhtin, a língua é

viva por essência e vibrante por existência. O dialogismo acontece por meio da

aliança de dois enunciados, que promove a sensação na comunicação dialógica.

Todo enunciado surge de outro enunciado, é uma resposta a outro enunciado. As

relações dialógicas têm várias faces, que podem ser de aceitação ou recusa, de

acordo ou desacordo, enfim, elas são flexíveis. Não há um modo exato de vivenciá-

las, elas são dinâmicas, assim como a vida.

5.1 Um misto de inocência e sedução: as imagens de meninas na página do

Facebook “Crianças Estilosas – Blog Pessoal”

Não há como deixar de reconhecer a grande contribuição bakhtiniana para o

campo das Ciências Humanas. “Bakhtin afirma que a especificidade das ciências

humanas está no fato de que seu objeto é o texto (ou o discurso). [...] as ciências

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humanas voltam-se para o homem, mas é o homem como produtor de textos que se

apresenta aí.” (FARACO et al, 2007, p. 22).

Faraco et al (2007) argumentam que Bakhtin compreende as ciências

humanas para além do conhecimento objetivo, ampliando o próprio conceito de

ciência, que concebe e interpreta os fatos humanos numa forma outra que inclui as

dimensões ética e estética. Há também uma distinção do conhecimento do objeto do

conhecimento do sujeito: nas ciências naturais, pretende-se conhecer um objeto,

enquanto as ciências humanas têm no sujeito o seu objetivo, um sujeito que fala. Os

autores ainda pontuam que Bakhtin faz críticas às ciências humanas, por sofrerem

de um complexo de inferioridade em relação às ciências naturais, pois se esquecem

que seu objeto é, na verdade, um outro sujeito. Sendo assim, o “objeto” das ciências

humanas é outro sujeito que tem voz, com quem o pesquisador fala. Trata-se de

uma relação entre dois sujeitos, portanto, uma forma dialógica de conhecimento.

Freitas et al (2003) relatam que, para Bakhtin, existe uma complexa relação

entre o texto e o objeto de estudo e reflexão, com o contexto no qual se realiza.

Dessa forma, o encontro do texto com o contexto, do que está dado e do que se

está criando como uma resposta ao primeiro é, por conseguinte, um encontro de

dois sujeitos, de dois autores. É nessa perspectiva ética e estética que a pesquisa é

focalizada nas ciências humanas. Sob o olhar bakhtiniano, a ação física do homem

necessita ser entendida como um ato, porém, este ato não pode ser compreendido

fora de sua expressão sígnica, que é por nós recriada.

Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado. (BAKHTIN, 2011, p. 319).

Interpretar quais os signos que se fazem presentes nos discursos das

imagens selecionadas da página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal" é o caminho

desenhado para esta pesquisa, por meio dos conceitos de enunciado, de dialogismo

e de polifonia, em Mikhail Bakhtin.

Bakhtin trata o ato como pensamento – de desejo, de fala, de atitude – e também como criação teórica ou artística inseridos na cultura. O ato é sempre intencional, singular e responsável (responsável no

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sentido de uma compreensão que gera uma resposta à realidade; esta resposta responsável ganha relevância na obra de Bakhtin enquanto responsividade). (MACEDO, 2014, p. 125).

Perceber que a pesquisa se realiza com responsabilidade significa, também,

que a ética está interligada nesse processo, não a ética do politicamente correto, de

bonitas e apaziguadoras palavras, e sim a ética que não oculta o confronto e que

relativiza tudo e sempre. Sobre isso, Amorim (2003) comenta: "Fazer pesquisa

lidando com a questão da diversidade convoca um pensamento ético, mas não há

ética sem arena e confronto de valores.” (FREITAS et al, 2003, p. 25).

5.1.1 Enunciado, dialogismo e polifonia

Os discursos que se estabelecem na arena imagética desta pesquisa são

conduzidos por três conceitos bakhtinianos: enunciado, dialogismo e polifonia. Esses

conceitos são fundamentais para sustentar esta pesquisa e, dessa forma, produzir

conhecimentos que nos levam a compreender, de algum modo, como se constituem

as relações humanas na contemporaneidade, por meio da exposição de imagens da

infância nas mídias eletrônicas, neste caso, o Facebook. Perceber como o

enunciado, o dialogismo e a polifonia atravessam de formas consistentes o objeto

desta pesquisa pode ser considerado um grande passo para se fazer uma leitura

mais precisa sobre a sociedade na qual vivemos.

Sobre o enunciado, Bakhtin (2011) pontua que todos os diversos campos da

atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. O uso da língua realiza-se sob

a forma de enunciados, sejam eles orais ou escritos, concretos e únicos, proferidos

pelos componentes de diferentes campos da atividade humana. Esses enunciados

refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo, não só

por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos

recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua

elaboração composicional.

O enunciado é um jogo a três e toda vez em que somos capturados pelo olhar suposto do outro, a criação se perde. A concepção dialógica do enunciado nos fornece assim uma espécie de coreografia que, a cada ocorrência de estilo-gênero, reconstrói o espaço discursivo. Contanto que se dance a três (o locutor, o destinatário e o objeto). (AMORIM, 2004, p. 124).

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Amorim (2004) aponta, ainda, que todo enunciado, saiba ele ou não, queira

ele ou não, responde a outros enunciados. O tema que se foi já foi falado antes, a

palavra que foi utilizada na fala já foi dita antes. Assim, de acordo com a teoria

bakhtiniana, tanto o tema falado como a palavra que foi usada trazem consigo suas

respectivas memórias. A pluralidade de contextos de enunciação se encontra em

cada texto e suas vozes serão tanto mais ouvidas da mesma forma que será

permitida a memória discursiva do leitor. "O falante não é um Adão bíblico, só

relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela

primeira vez." (BAKHTIN, 2011, p. 300).

Bakhtin (2011) ainda reitera que o enunciado é constituído por respostas e

ressonâncias dialógicas dos enunciados que o precedem, posto que se encontra em

uma cadeia de comunicação verbal

Grosso modo, é possível dizer que enunciado, em certas teorias, equivale a frase ou a sequências frasais. Em outras, entretanto, que assumem um ponto de vista pragmático, o termo e consequentemente o conceito por ele gerado são utilizados em oposição à frase, unidade entendida como modelo, como uma sequência de palavras organizadas segundo a sintaxe e, portanto, passível de ser analisada "fora do contexto". O enunciado, nessa perspectiva, é concebido como unidade de comunicação, como unidade de significação, necessariamente contextualizado. Uma mesma frase realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a "frase" ganhará sentido nessas diferentes realizações "enunciativas". (BRAIT, 2005, p. 63, grifos da autora).

Brait (2005) ainda comenta que, para Bakhtin, o enunciado é um produto de

um processo, isto é, a enunciação é o processo que o produz e nele registra marcas

da subjetividade, da intersubjetividade, da alteridade que caracterizam a linguagem

que está sendo usada, o que a diferencia do enunciado para ser entendido como

discurso. As noções de enunciado e enunciação têm destaque principal na

concepção de linguagem que predomina no pensamento bakhtiniano, exatamente

porque a linguagem é concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social que

abarca, para efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e

discursos nela comprometidos.

Faraco (2007) ressalta que, conforme a teoria bakhtiniana, o enunciado

sempre tem um destinatário, de quem o autor espera e presume uma compreensão

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responsiva. Mas há, além desse destinatário, o autor do enunciado, que, de alguma

forma consciente, pressupõe um superdestinatário superior, cuja compreensão

responsiva absolutamente exata é suposta talvez num espaço físico ou em um

tempo histórico afastado.

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância de sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). (BAKHTIN, 2011, p. 275).

Investigar os enunciados de algumas imagens de meninas da página

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal" torna-se um grande desafio, uma vez que estas

são enunciados, que carregam perspectivas sociais (vozes sociais) que, muitas

vezes, se confrontam. Esse objeto de pesquisa já traz consigo enunciados que

respondem a outros, que, por sua vez, promoverão enunciados responsivos – algum

tipo de compreensão ou ação responsiva – por parte dos visitantes da página.

Compreender as mensagens que estão imbricadas nos enunciados dessas

imagens nos dá uma noção da sociedade em que estamos vivendo e de quais

valores estão postos, como a celebração de um corpo considerado bonito, sensual e

que se expõe de acordo com a moda ou regras de uma cultura do consumo. Se as

pessoas adultas já vivenciam esses tipos de conflitos, hoje as crianças,

especialmente as meninas, vivem sob uma divulgação intensa do discurso que pode

ter como significado de felicidade e sucesso, ser uma pessoa bonita e sensual pelos

padrões dominantes da indústria do consumo.

E o tom de um enunciado escrito, do mesmo modo que a entonação, define-se precisamente pela relação locutor/interlocutor. O interlocutor participa portanto da formação do sentido de um enunciado. Nenhum enunciado pode ter seu sentido atribuído apenas ao locutor. (AMORIM, 2004, p. 123).

Entender o tom do enunciado é captar o seu "colorido", a forma como é

apresentado ou encaminhado ao interlocutor. Neste caso, é importante compreender

o tom dos enunciados das imagens analisadas nesta pesquisa.

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Amorim (2004) argumenta que a concepção dialógica do enunciado é uma

dança que, a cada ocorrência de estilo-gênero, reconstrói o espaço discursivo.

Trata-se de uma dança a três, formada pelo locutor, o destinatário e o objeto, no

qual todas as posições são possíveis.

O dialogismo pode ser considerado uma forma de mediador das imagens da

página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal" no Facebook (analisadas nesta

pesquisa) com os internautas que a acessam, e é essa mediação que movimenta os

discursos presentes nas imagens. Exemplo disso são os recursos discursivos aos

quais os visitantes da página têm acesso, como as "curtidas”, os compartilhamentos,

os comentários, as trocas de fotografias. Há algo muito poderoso, que é o fato de os

discursos dessas imagens se deslocarem para o cotidiano das pessoas, permeando

a vida dos internautas.

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2011, p. 348).

Bakhtin (2011) entende que o homem participa do diálogo com toda a sua

individualidade, o que contribui para que o dialogismo seja um eterno templo de

conflitos e embates.

O dialogismo de um enunciado é um acontecimento; não é uma simples experiência psíquica nem uma relação lógica. Mesmo se as relações dialógicas são impossíveis sem relações lógicas e semânticas, a elas não se reduz. Para se tornarem dialógicas é preciso que essas relações se encarnem: transformem-se em enunciado em um dado contexto de enunciação. (AMORIM, 2004, p. 140).

Faraco (2007) afirma que Bakhtin é o primeiro pensador contemporâneo a

tratar da linguagem sem a necessidade de separá-la da materialidade da vida social,

tendo em vista que o caráter dialógico é o fator que integra todas as atividades

relacionadas à linguagem, havendo também uma rica dialogia entre os gêneros

elaborados, ou seja, os primários e os secundários.

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A concepção dialógica da linguagem é a condição de todas essas possibilidades que contêm um potencial heurístico para os estudos linguísticos, psicológicos, literários, estéticos e culturais em geral – potencial ainda em fase preliminar de exploração. Nesse sentido, destaca Bakhtin estava claramente consciente de que o enfrentamento do estatuto da linguagem está no cerne do enfrentamento dos estudos das realidades humanas. (FARACO 2007, p. 105).

Fiorin (2008) aborda que o conceito de dialogismo é o princípio que reúne as

obras de Mikhail Bakhtin, no qual a língua, em sua totalidade concreta, viva em seu

uso real, tem a propriedade de ser dialógica. O dialogismo possui três conceitos: o

primeiro destaca que este diz respeito à maneira real como a linguagem se

estabelece, é o início que constitui o enunciado, no qual se ouvem, sempre ao

menos duas vozes. O segundo conceito se refere à incorporação, pelo enunciador,

da voz ou das vozes de outro(s) no enunciado, o que significa, nesta situação, que o

dialogismo é uma forma composicional, são modos de mostrar outras vozes. Para

Bakhtin, o dialogismo vai além dessas formas composicionais, ele é propriamente o

modo verdadeiro como a linguagem se constitui. O terceiro conceito pontua como a

subjetividade acontece nos relacionamentos sociais em que a pessoa participa.

Fiorin (2008, p. 55) afirma: "O princípio geral do agir é que o sujeito age em relação

aos outros; o indivíduo constitui-se em relação ao outro. Isso significa que o

dialogismo é o princípio de constituição do indivíduo e o seu princípio de ação."

[...] o dialogismo, característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. O dialogismo é a condição do sentido do discurso. [...] Bakhtin concebe o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. Examina-se, em primeiro lugar, o dialogismo discursivo, desdobrado em dois aspectos: o da interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, o da intertextualidade no interior do discurso. (BARROS, 2011, p. 2).

O dialogismo está presente nas imagens analisadas nesta pesquisa, e sua

importância se fundamenta no fato de que trazem consigo discursos que se

entrecruzam com outros discursos. Os outros textos ou discursos, dominados pelo

dialogismo, no objeto desta pesquisa, podem nos mostrar novas faces da infância,

cujo reflexo também supõe revelar novas faces da nossa cultura.

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Dialogismo entendido, sobretudo, como visão de mundo construída com a linguagem através dos sistemas de signos. Consequentemente, dialogismo constituído como ciência das relações, fundamental para se compreender a representação estética como construção de sentido. (MACHADO, 2007, p. 196).

A relação dialógica que acontece entre as imagens das crianças, analisadas

nesta pesquisa, é conduzida por signos que representam modos de ser criança,

fundamentados em pilares que valorizam a beleza, em padrões estéticos do corpo, o

que inclui, também, os artefatos, adereços e produtos relacionados a esses valores.

Esse discurso de contemplação ao belo, diga-se de passagem, é constituído por

discursos que remetem a padrões sociais de beleza e se articulam dialogicamente.

Aliás, ele acontece pelo dialogismo, que põem em funcionamento discursos que vêm

de diversas esferas sociais, dentre elas, as mídias eletrônicas. O dialogismo,

segundo Faraco et al (2007, p. 105-106), consiste em “uma tentativa de dar certo

sentido de globalidade ao estudo das questões humanas.".

Muitas vozes formam essas questões humanas, e observamos que elas se

movimentam pelos discursos presentes no objeto de investigação desta pesquisa.

Não há como pensar em discursos, sem mencionar a diversidade de vozes

entrelaçadas na vida humana, mais precisamente, na infância.

As diferentes vozes não são etapas em devir; elas coexistem e interagem. O mundo polifônico é concebido antes no espaço que no tempo. A unidade temporal essencial da polifonia é o instante de pluralidade máxima; o presente que só se justifique em relação a um passado ou a um futuro ocupa um lugar temporário. O acontecimento dialógico não tem explicação ou gênese. (AMORIM, 2004, p. 141).

Em se tratando da polifonia, segundo Brait (2005, p. 193), Bakhtin afirma que:

[...] o romance polifônico só pôde realizar-se na era capitalista, e justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos sociais nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o equilíbrio ideológico, criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as múltiplas vozes da existência, indicando que a essência conflituosa da vida social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e requeria outro método de representação.

O esclarecimento de Brait (2005) parece se familiarizar, em alguns aspectos,

com esse momento contemporâneo pelo qual passamos. O capitalismo continua a

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prevalecer e tem, no comportamento do consumo, possivelmente o seu maior

símbolo. Nesse contexto, a pluralidade de diferentes vozes permeia desde espaços

virtuais ao cotidiano das crianças, formando, desse modo, maneiras de viver, de

como ser criança e de como se apresentar ao outro e ao mundo.

A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências equipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objeto do discurso do autor, são sujeitos de seus próprios discursos. (BRAIT, 2005, p. 194-195).

Quando Bakhtin (2009) defende que a polifonia implica na plenivalência e

consciência livre das vozes, isso vem a significar cidadania e respeito mútuo entre

os seres humanos, num cenário no qual as vozes, por mais diferentes que sejam as

mensagens que ecoam, nunca se deixam desarmonizar, pois trata-se de uma

adorável e necessária confusão polifônica.

5.2 "Crianças Estilosas – Blog Pessoal": locus da pesquisa

Figura 1 – Página de abertura “Crianças Estilosas – Blog Pessoal”

Fonte: https://www.facebook.com/criancasestilosas1/?fref=ts

O locus desta pesquisa adentra limites movediços nos quais nos

encontramos constantemente, no limite de dois territórios: entre o real e o virtual ou

vice-versa. Podemos observar que esse limite, essa fronteira entre o mundo real, da

materialização, dos fatos concretos em relação ao mundo virtual, da internet, das

redes sociais, entre outros, não está ou não é tão delimitado assim.

O que é virtual está completamente imbricado a tudo que seja real em nossas

vidas, em nosso cotidiano. As imagens de crianças que são postadas nas redes

sociais não constituem uma situação meramente virtual, pois, seja como for, essas

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imagens, estampadas nessas vitrines virtuais, vão interferir, sim, na realidade

dessas crianças, formando uma complexa convivência do real e do virtual, sem

muitas linhas divisórias.

Lévy (1996, p.19) argumenta que o virtual, com muita frequência, "não está

presente". O autor pontua que a virtualização é elevada à potência e não em ato,

portanto, no virtual há a existência de algo, sem o mesmo estar presente de forma

física ou materializada. Virtual nada mais é que uma maneira de ser, sem

necessariamente se opor à realidade. As interações tecnológicas dispensam as

unidades de localidades, mantêm apenas as unidades de tempo ao se referir ao

virtual, a ubiquidade pode proporcionar isso ao internauta, ele pode estar fisicamente

em casa e virtualmente no trabalho por meio dessas interações que as mídias

tecnológicas nos proporcionam.

É nesse contexto que se desenvolve a pesquisa, no campo virtual,

especificamente em uma página da rede social Facebook, uma página descrita

como blog, até no seu próprio nome. Mas notamos que é uma página, e não um

blog. Santaella (2013) exemplifica que os b logues podem atuar como instrumentos

na prestação de serviço e apoio a variados temas, com abertura para comentários e

intervenções dos internautas.

A página "Crianças Estilosas - Blog Pessoal” é, na verdade, uma página

dedicada, a priori, à criança e, respectivamente, ao seu estilo de ser ou de se

apresentar em fotografias, com destaque à moda infanti l. A página segue uma

estrutura, uma arquitetura nos moldes de qualquer página pessoal do Facebook, a

qual, ao invés de ter o perfil de uma pessoa, tem o perfi l de uma página, inicialmente

dedicada à infância.

Na Figura 1, é possível identificar, na página, os ícones do "curtir" e da

"mensagem" para que os internautas, caso queiram, possam curtir o espaço ou

deixar alguma(s) mensagem(ns). Verifica-se, também, a "Linha do Tempo", que

contém as publicações da página, em ordem cronológica, ou seja, as publicações

atuais estão em destaque, e, para ver algo que já foi publicado, deve-se retornar às

datas anteriores.

Ainda na figura 1, encontram-se os links “Sobre”, “Fotos”, “Curtidas” e

“Vídeos”.

O link "Sobre" é relacionado às informações sobre a página, indicando que

ela teve início em 30 de janeiro de 2012. Na descrição “curta”, o endereço informa:

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"Estilo é ser especial pelo simples fato de ser quem é, do jeito que é. Fotos?

Vídeos? Sugestões Envie para crianç[email protected]". Enquanto que, na

"descrição longa", a página explica: "Estilo é muito mais que uma roupa, um cabelo

ou aparência. Estilo é ser especial pelo simples fato de ser quem é. Uma criança

não é uma criança padronizada. Beleza não tem moldes e muito menos estilo."

O link "Fotos" apresenta todas as imagens publicadas na página, na ordem

cronológica decrescente (anual), de 2015 a 2012. O link "Curtidas" informa o número

de pessoas que curtiram a página. Até o dia 9 de março de 2016, a página

registrava 56.940 curtidas. Há um gráfico na página que destaca o número de

curtidas dos visitantes, porém é relevante pontuar que, pela observação, o gráfico

expõe poucos dados e parece estar desatualizado. Por fim, há o link "Vídeos", mas,

ao observamos no dia 10 de março de 2016, havia apenas um vídeo postado.

Quanto ao restante da estrutura, a página exibe o mesmo formato de uma

página pessoal convencional do Facebook, tem o perfil da página, que pode ser

alterado, conforme vontade de quem a administra. Há uma imagem de uma menina

de cor branca, ainda bebê, usando um óculos de grau, que parece ser um óculos de

adulto, vestida de camiseta com estampa colorida, uma calça com estampa de pele

de onça e calçando um tênis. Essa imagem foi publicada na página no dia 13 de

junho de 2012.

Aparecem os símbolos da "Página inicial", das "Solicitações de amizade",

"Mensagens", "Notificações", "Atalhos de privacidade" e o "triângulo invertido

(triângulo de cabeça para baixo)", que se refere às configurações, criação de grupos,

sair da página, entre outras finalidades.

Na sua arquitetura, o Facebook incentiva o usuário a ver e prestar atenção no que seus amigos fazem, pensam, dizem, querem e sentem. É possível, inclusive, compartilhar e disseminar essas informações. Nesse ambiente, o usuário nunca está só. Seu perfil é um lugar social entre seus amigos, de modo que as identidades são construídas na soma das interações com os outros. A arquitetura permite que estes se façam presentes de vários modos, nas opções, curtir, comentar etc. (SANTAELLA, 2013, p. 319).

Foram feitas três tentativas de se criar um perfi l no Facebook, a partir de uma

personagem. As tentativas tiveram início por meio da criação de uma personagem,

uma menina fictícia, Bruna Melissa, de quatro anos, nascida em 2 de fevereiro de

2012. Porém, não houve sucesso no cadastro, após as tentativas, uma mensagem

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informava: "Não foi possível processar o seu cadastro." Essa recusa faz parte da

política de cadastro dos usuários do Facebook, que não aceita pessoas menores de

13 anos de idade.

Um dos aspectos que saltam da relação entre crianças e redes sociais diz respeito à classificação etária. Teoricamente proibidos para crianças menores de treze anos, Orkut e Facebook ressaltam que, em caso de descumprimento, o perfil poderá será removido permanentemente. É importante lembrar que esta classificação etária foi redefinida em 2010, visto que então, a proibição era pra menores de 18 anos. No entanto, a presença marcada e assumida de crianças nos sites suscita algumas questões. (MACEDO, 2014, p. 88).

Mas há um burlamento nessas restrições. Muitas crianças, com o

conhecimento e até a participação dos familiares, podem “enganar” o questionário

de cadastro do Facebook, no que diz respeito à idade, já que essa informação pode

ser alterada, e, dessa forma, a criança tem a possibilidade de se passar por

adolescente ou adulto. Depois de criada a conta, a criança navega com tranquilidade

pela rede social, sem ser incomodada pelas restrições da idade, pois o que vale é o

preenchimento do cadastro. Prova disso são algumas crianças que têm suas

imagens divulgadas na página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", algumas delas

com contas próprias no Facebook.

O que fazer diante dessa nova configuração da infância nas redes sociais?

[...] sustenta-se uma postura no reconhecimento de que é preciso buscar compreender como se configuram as experiências infantis na cibercultura, sendo necessário, para tal, ir onde as crianças estão, de fato, se relacionando com a cultura, interagindo, dialogando, consumindo, jogando, e não onde se supõe que deveriam estar. E elas estão no Facebook. (MACEDO, 2014, p. 95).

Há uma grande investida do mercado no Facebook. São inúmeras

propagandas de produtos, campanhas publicitárias. É uma espetacular gama

planfetária virtual, exibida nesse espaço, em vários formatos, imagens, vídeos,

textos escritos, links que direcionam o internauta ao tema da propaganda. O próprio

Facebook agrega as vozes do mercado, é uma rede social que assume esse papel

de porta-voz do consumo. É possível notar que a "imagem" vem a ser a estrela

central nesse palco digital. A página em questão não existe por acaso, uma vez que

lucrar com o consumo de quem visita esse endereço vem a ser um grande filão e

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este é um espaço que agrega famílias ou pessoas que tenham algum tipo de

proximidade com crianças, como tios, avós, vizinhos etc, que visa o mercado infanti l,

por meio do comércio de produtos, eventos ou atividades para crianças, que,

todavia, só aparecem nesse espaço para atender a interesses dos adultos. Em

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal", é comum ver os próprios visitantes das páginas

atuando também como divulgadores de produtos e mesmo de outras páginas. Aliás,

muito da força do mercado nas redes sociais é movimentado pelos internautas,

através de postagens e compartilhamentos de publicidade de produtos, conceitos e

ideais relacionados ao mercado do consumo.

Recuero (2014) argumenta que o suporte dos sites das redes sociais

sustentam, dão estrutura viável para que as redes sociais aconteçam, ou seja, é

pelos endereços eletrônicos que essa modalidade de relacionamento virtual se

estabelece. "Sites de redes sociais propriamente ditos são aqueles que

compreendem a categoria dos sistemas focados em expor e publicar as redes

sociais dos atores." (RECUERO, 2014, p. 104). Exemplo disso é o Facebook, no

qual os atores fazem publicações e postagens de momentos ou atividades de suas

vidas, que ficam em exposição para os internautas, visitantes dessa rede social.

5.3 Objetivos da pesquisa

Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar os discursos presentes em

imagens de corpos de meninas, em uma página da rede social online Facebook,

“Crianças Estilosas – Blog Pessoal”.

A partir deste objetivo central, desdobram-se os seguintes objetivos

específicos:

Analisar, a partir das imagens postadas, os discursos que têm sido

construídos em torno da infância na contemporaneidade;

Analisar que infâncias se fazem presentes;

Analisar as imagens dos corpos das meninas como discursos que estão

associados à beleza e sedução;

Analisar como esses discursos sobre o corpo da criança constituem

pedagogias culturais;

Refletir sobre os conceitos de beleza, feiura e estilo.

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5.4 O corpus da pesquisa

As imagens das pessoas conquistaram uma relevância de produto cultural na

indústria do consumo, na sociedade contemporânea e, consequentemente, nas

redes sociais. Produzimos nossas próprias imagens a todo momento. Temos, a

nosso favor, uma gama de instrumentos e mecanismos, entre os quais podemos

citar o aparelho de telefone celular, que tem a função de câmara fotográfica, um

recurso tão forte quanto o simples ato de falar ou enviar mensagens. Através das

tecnologias que esses aparelhos proporcionam, podemos enviar nossas imagens de

variados lugares e enviá-los às redes sociais, outros sites ou para terceiros.

O produto que está em discussão é a imagem externa, exposta nos espelhos

digitais, pois, aparentemente, é a que mais interessa às pessoas e ao mercado. Até

porque fotografar, retratar o nosso íntimo, o nosso interior, o nosso "eu", isso pode

ser algo mais complexo e difíci l. Bakhtin (2011) trata bem dessa questão, quando

afirma que "a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante dela e não

dentro do espelho." (BAKHTIN, 2011, p. 30).

Empacotamos os nossos modos de ser e os espalhamos por toda a parte como "informação e modernidade" no mercado da cultura de massa construída pelos processos mediáticos, e no mercado da especulação transformamos a todos em devedores, e quando a dívida não foi suficiente para imobilizar, de exércitos lançamos mão para impor aos outros serem espelhos de nós mesmos. (GERALDI, 2003, p. 40-41).

Se o nosso próprio olhar em relação ao outro supostamente atua como uma

espécie de espelho, isso também nos faz pensar que, de algum modo, estaríamos

em constante estado de vigilância, no qual as prisões podem ter formatos virtuais,

como as redes sociais. Ao mesmo tempo em que nos fascinam, nos atormentam e

nos aprisionam, aliás, é um aprisionamento do qual muitas vezes temos consciência,

e nós queremos, nos colocarmos e nos mantermos nessa situação.

Opera-se um efeito de desdobramento porque, pelo jogo do fascínio, aquele que olha é despossuído de seu próprio olhar, investido e invadido pelo da figura que lhe está defronte. Através dessa troca identificatória, se é arrancado de si próprio e a projeção numa alteridade radical se produz. A face de Górgona é o Outro, o nosso duplo, o horror de uma alteridade radical com a qual nos identificamos ao nos petrificarmos. (AMORIM, 2004, p. 52).

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O objeto desta pesquisa são algumas imagens da página "Crianças Estilosas

– Blog Pessoal", dentro do contexto da beleza e do apelo à sedução. Houve um

levantamento para identificar as 10 imagens mais curtidas da página.

Sob a ótica de Foucault (2013), podemos refletir que a realidade

contemporânea nos apresenta outra forma de pensar as imagens, como buscamos

fazer nessa pesquisa ao analisar algumas imagens de criança nas redes sociais,

mais precisamente, no Facebook. A relação humana com a sua própria imagem, por

meio da fotografia, parece nos situar como prisioneiros do olhar do outro. Muitas

vezes, nos permitimos ser como prisioneiros do olhar alheio. Mesmo sem a nossa

concessão, poderemos estar diante do olhar de outra pessoa.

As mídias tecnológicas formam uma superestrutura, uma maneira de nos

vigiarmos e de nos punirmos. A punição pode estar simbolicamente materializada

nas curtidas, comentários e comparti lhamentos das imagens postadas nas redes

sociais. A baixa repercussão de uma imagem no Facebook pode ser encarada, sim,

como uma espécie de punição. A infância também está inserida nesse panorama de

enclausuramento, uma situação de que, por incrível que pareça, queremos fazer

parte.

A punição vai se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade, não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. (FOUCAULT, 2013, p. 14).

O aparelho de telefone celular é um objeto muito relevante no que tange à

mudança de engrenagens quando o objetivo é punir. Esse aparelho vai muito além

de um elo de comunicação, possui, entre muitas ferramentas, o dispositivo da

câmera fotográfica, do qual se faz tanto uso, até mais do que poderia ser a primeira

utilidade do telefone, o ato de falar com outra pessoa. Dentro desse regime de

vigilância, no qual a imagem está no centro das atenções, o telefone celular pode

ser pensado como uma espécie de dispositivo eletrônico com o qual exibimos a

nossa localização de modo muito dinâmico, somos locali zados em tempo real nas

redes sociais, por meio das imagens divulgamos onde estamos e o que estamos

fazendo ou pretendemos fazer.

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A vigilância e a punição, sob o viés foucaultiano, podem ser compreendidas

em diversos momentos de concretude, exemplos não nos faltam: o simples ato de

postar uma foto de um evento escolar do qual participamos e estampá-lo no

Facebook implica na concordância com essa vigilância virtual. O olhar do outro em

nossas postagens pode nos vigiar e pode nos punir, dependendo do conteúdo

imagético que é postado nas redes sociais.

A sociedade contemporânea se encontra num cenário de rigorosa vigilância

virtual dos corpos. Hoje, a condenação e a punição acontecem ao que se apresenta

em imagens. É o ápice do reflexo imagético nas plataformas virtuais. Todos

estamos, de certa forma, envolvidos, inclusive as crianças.

A punição vai se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade, não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. (FOUCAULT, 2013, p. 14).

Contextualizando esse pensamento de Foucault (2013), nas redes sociais,

podemos pensar que, na exposição de corpos pelas fotografias, o fato de não

atender ou romper com as linhas dos discursos que primam por um ideário de

beleza pode ser considerado uma transgressão, o que suscita uma modalidade de

crime para as vozes sociais que ecoam discursos de beleza que coroam o corpo

jovem, magro, malhado ou remodelado como exemplo da perfeição estética.

Muitas meninas já passam por algum tipo de castigo corporal desde muito

cedo, e não se trata de açoites ou agressões físicas, mas a dor resultante ultrapassa

as possíveis marcas que podem ficar no corpo. Elas deixam sinais por muito tempo,

talvez para o resto da vida. Basta estar acima do peso, ter os cabelos não tratados,

ou usar roupas, sapatos ou acessórios que são considerados fora da moda, para

sofrer algum tipo de punição, pois há uma vigilância quase onipresente que estende

os seus olhos pela virtualidade.

Há que se considerar, também, a questão étnico-racial, uma vez que as

meninas negras precisam aprender, desde muito cedo, a lidar com o preconceito e o

racismo, pois a infância não é poupada dessa realidade conflituosa. Essa conjuntura

leva à falta de representatividade da população negra em todos os espaços sociais,

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seja nos registros da história do Brasil, nas profissões, nos brinquedos infantis

(bonecas na cor negra ainda são pouco comercializadas) e na mídia como um todo.

Porém, essas vozes de exclusão e de invisibilidade estão sendo interpeladas

por outras vozes sociais, que gritam pelo engajamento político-social e

empoderamento da população negra. Entre vários exemplos, podemos destacar o

movimento de páginas no Facebook, que divulgam exclusivamente imagens de

crianças negras e valorizam elementos dessa etnia, sua história e sua cultura.

O fato de as meninas negras – cujas imagens são analisadas nesta pesquisa

– terem os cabelos cacheados e não alisados já remete a um enunciado de

enfrentamento a esses discursos que buscam estabelecer os conceitos de estética e

beleza para as crianças, muito pautados no padrão europeu. Isso pode ser visto,

igualmente, como um ato de empoderamento na imagem da menina negra e da

busca pela representatividade, iniciando pela valorização do seu próprio corpo e da

sua própria imagem.

A própria criança sente a pressão da cobrança no cumprimento aos pré-

requisitos de um ideário de beleza. Caso não se atenda a essas normas, o

julgamento é imediato entre os internautas. Os castigos e o sofrimento vão além de

marcas de chicotadas pelo corpo, tão bem relatadas por Foucault (2013). São

punições que vão desde rígidos e controversos regimes para emagrecer ou conter o

peso, chegando até mesmo à reclusão imagética nas redes sociais.

Afinal, o vacilo não pode acontecer, seja numa produção mais caprichada de

uma fotografia ou numa simples selfie. Em último caso, recorre-se aos recursos da

câmera – aplicativos –, seja um filtro ou um recorte na imagem, porque tudo tem que

estar perfeito sob o ponto de vista do olhar do outro. Se isso não acontece, já é

motivo para não ser curtida, comentada, comparti lhada e até ser transformada em

brincadeiras que discriminam, por meio dos "memes3".

As discussões de Foucault em torno da vigilância, da punição e do

adestramento do corpo mostram que isso beneficiava a industrialização, o mercado,

algo que, de certa forma, não mudou muito em tempos de redes sociais. Os

discursos sobre padrão de beleza vêm a atender também o mercado, o consumo. O

cumprimento de regras e normas que têm o corpo como objeto central continuam,

3 Meme é um termo grego que significa imitação. O termo é bastante conhecido e utilizado no "mundo

da internet", referindo-se ao fenômeno de "viralização" de uma informação, ou seja, qualquer vídeo, imagem, frase, ideia, música etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente, alcançando

muita popularidade. Disponível em: http://www.significados.com.br/meme/ Acesso: 24/08/2016.

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porém, adequados à contemporaneidade. Questões ligadas à alimentação ou aos

exercícios físicos praticados para manter um corpo saudável, belo e imagético

comprovam essa nova forma de relação que temos com o corpo nos dias de hoje.

O próprio layout, a arquitetura das páginas das redes sociais, como "Crianças

Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook, é elaborada e construída de uma maneira

que oportuniza, ao internauta, a chance de julgar e vigiar, de punir e confessar, de

adestrar o corpo, por meio das imagens e dos comentários postados na página. Ora

somos observadores e donos de um possível poder de influenciar a vida de uma

pessoa, imageticamente falando, como a de uma menina, por meio de sua imagem,

que foi postada em uma rede social. Ora somos julgados e sentenciados, quando

postamos nossas próprias imagens, pois, ante à tela virtual, nada escapa aos

olhares atentos do outro. Podemos também nos redimir e ser perdoados, quando

confessamos algo, por meio de uma postagem de uma fotografia ou quando

divulgamos que fizemos um regime, ou que frequentamos uma academia de

ginástica ou compramos uma roupa nova.

As imagens de análise desta pesquisa são, de algum modo, produzidas, o

que leva a crer que houve uma preocupação para realizá-las. Percebe-se que

algumas são produções caseiras, enquanto outras fotografias seguiram outros

formatos, com um caráter mais profissional, tendo como contexto um estúdio de

fotografia e elementos utilizados nas produções de imagens de modelos.

5.5 A trajetória da pesquisa

O carnaval, na concepção de Bakhtin, é mais do que uma festa ou um festival; é a cultura opositora do oprimido, o mundo afinal visto "de baixo", não a mera derrocada da etiqueta mas o malogro "antecipatório", simbólico, de estruturas sociais opressoras. O carnaval é profundamente igualitário. Ele inverte a ordem, casa opostos sociais e redistribui papéis de acordo com o "mundo de ponta-cabeça". O carnaval coroa e destrona; ele arranca de seus tronos monarcas e instala hilariantes reis da bagunça em seus lugares. (STAM, 1992, p. 89, grifos do autor).

É no ritmo da ideia do carnaval bakhtiniano que acontece a trajetória desta

pesquisa, uma grande alegria, uma festa espetacular, na qual percebemos que

infância e imagem se destacam como o par mais enigmático, num imenso salão

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cibernético, em que o reflexo dessa curiosa dança ganha contornos imediatos nos

espelhos virtuais das redes sociais online.

No entanto, adentrar nessa festa não foi nada fácil, a começar pelo objeto de

pesquisa, a infância, tema delicado e complexo, o que não deixa de ser

surpreendente e apaixonante. Apesar de já ter atuado na Educação Infantil, me senti

um estrangeiro ao iniciar esta pesquisa, tal qual descrito por Amorim (2004), quando

trata do pesquisador no país do outro: o "outro se torna estrangeiro pelo simples fato

de eu pretender estudá-lo." (AMORIM, 2004, p. 31).

Um dos grandes desafios na realização desta pesquisa foi deparar-me com o

olhar de curiosidade e surpresa das pessoas, quando relacionam o tema com o

pesquisador, sim, um pesquisador e não "uma" pesquisadora. Esse comportamento

das pessoas foi externado não apenas no ambiente acadêmico, mas principalmente

nos eventos dos quais participei. Pesquisar sobre os discursos de beleza e sedução

em imagens de meninas, nas redes sociais online, me tocou não apenas como

pesquisador, mas como ser humano, o "outro, justamente pelo fato de ser o outro, é

imprevisível." (AMORIM, 2014, p. 224). A partir disso compreendi o quanto esta

pesquisa suscita pontos importantes, que necessitam estar presentes na agenda de

debates da nossa sociedade, pontos como pedofilização da infância, educação,

redes sociais, a situação da mulher no Brasil, crimes na internet, a participação da

criança, questões de gênero e sexualidade e tantos outros assuntos que estão

entrelaçados à proposta desta pesquisa.

Diante dessa situação, e alertado pelo meu "eu para mim" e para me

posicionar em relação ao "eu para o outro" e ao "outro para mim", tomei a decisão

de esclarecer, no meu endereço no Facebook, na parte dedicada às informações do

meu perfil, sobre o desenvolvimento desta pesquisa, com imagens de infância nas

redes sociais, especificamente, imagens de meninas. Minha postura se deu com o

intuito de evitar o olhar desconfiado do outro. As diferenças exotópicas me impeliram

a essa atitude. Algumas vozes sociais indagam: "Um negro pesquisando sobre

imagens de meninas?” O enunciado desta pergunta pode remeter a uma histórica

polifonia, no âmbito da qual um homem negro brasileiro poderia, certamente, correr

algum risco de ser, em algum momento, encurralado pela ignorância, preconceito,

racismo ou discriminação, e ter muito que explicar sobre o "motivo" de tal pesquisa

sobre imagens de meninas, imagens estas salvas em seu computador pessoal.

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Foi preciso superar mais essa etapa, pois já vivi situações semelhantes, por

ser um professor com formação em Pedagogia e também por ter lecionado na

Educação Infantil. Amparado pelo direito à liberdade, de poder transitar pelos

campos das pesquisas e como pesquisador num país estrangeiro, é preferível seguir

em frente, deixar-se surpreender pela construção do conhecimento.

As imagens da infância marcada por discursos que fazem referências à

beleza estética ganham outras conotações, quando vistas por diferentes ângulos

das diferenças exotópicas (eu para mim/ eu para o outro/outro para mim), abordadas

por Mikhail Bakhtin. Essas diferentes maneiras de se ver dão a dinâmica nos

relacionamentos nas redes sociais online. Mas o interesse em ser visto pelo outro

ganha destaque, ter a foto postada numa rede social online e ser uma pessoa

admirada ou discutida por outras pessoas não é só um passatempo, para alguns , é

uma necessidade importante. "O desejo pelo outro nos leva às redes sociais e nos

move no ciberespaço." (MACEDO, 2014, p. 232).

Sobre as formas de se relacionar nas redes sociais, Macedo (2014, p. 238)

esclarece que a "tríade compartilhar, comentar e curtir é a base das interações entre

os usuários do Facebook, embora haja muitas outras alternativas de comunicação:

mensagens in box, chat, cutucadas, participação em grupos, por exemplo."

No levantamento de dados desta pesquisa, foram encontradas, ao todo, 81

páginas no Facebook, com imagens de meninos e meninas. Algo interessante é que

quase não há representatividade de crianças com algum tipo de deficiência física,

nas imagens postadas. Para um primeiro levantamento documental, foram copiadas

uma média de 700 imagens de crianças do sexo feminino. As imagens foram

copiadas por entendermos ser de domínio público, pois estão disponíveis a todos/as

que podem acessar as páginas. Esses endereços eletrônicos apresentam em seus

nomes palavras com os termos "crianças estilosas”, “crianças estilosas”, “estilosas”

ou “estilosa". A análise da pesquisa tem como corpus 10 imagens de meninas, da

página “Crianças Estilosas – Blog Pessoal”, da rede social Facebook. Esse blog foi

selecionado por ter o maior número de curtidas (56.444) até o dia 30 de abril de

2015. A seleção das 10 imagens de meninas se deu no dia 08 de junho de 2015.

A página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal” exibe padrões sociais pré-

estabelecidos de gênero, infância e beleza, discursos que valorizam o perfil de uma

menina "descolada e estilosa", fazendo alusão a uma estética normativa. Essa

página pode ser vista como um espelho virtual, no qual crianças e adultos podem

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ver imagens de outras crianças. As imagens apresentadas nessa página trazem

fotografias de crianças, consideradas bonitas, pelo olhar/discurso do outro (adulto),

há uma valorização de signos do consumo e da moda (roupas, calçados, acessórios

e outros produtos).

Apesar de se notar um grande número de postagens de fotografias de

meninos, há ainda um número maior de imagens de meninas, imagens estas que

apresentam alguns discursos associados à beleza e à sedução, como se fossem

estampas de crianças felizes, de modelos de infância, ou seja, perfis de crianças,

que, sob o "olhar do outro", deveriam ser valorizados por outras crianças, que

visitam a página.

Em princípio, essas páginas seriam destinadas especificamente ao público

infantil, tomando as crianças, especialmente, como receptoras, entretanto, à medida

que se observa a página, constata-se que são os adultos a sua maior audiência, os

maiores receptores e postantes de imagens dessa página. O papel da criança,

nessas páginas, atende o interesse do adulto, seja para promover o consumo por

meio da aglutinação de famílias ou grupos de pessoas que convivem com crianças

ou para obter lucro, por meio de propagandas, campanhas comerciais ou divulgação

de produtos, lojas ou outras páginas de moda infantil. Com alcance a todo tipo de

público, nesses espaços são postadas fotografias de crianças, em sua maioria

meninas, de etnia branca, com cabelos compridos, usando roupas, calçados e

acessórios que, segundo as próprias páginas, seguem as tendências da moda, ou

seja, essas crianças estão em sintonia com o que está sendo produzido e

comercializado de mais novo no mercado e divulgado na mídia. No "Crianças

Estilosas - Blog Pessoal”, há um número de 114 imagens de meninas, 92 imagens

de meninos, duas imagens dos personagens do seriado mexicano Chaves

(Chiquinha e o Chaves), nove imagens da revista em quadrinhos "Nem tão rosa,

nem tão azul: Ser Menino e Ser Menina”, uma do Projeto Anjo da Guarda, quatro

imagens de uma revista em quadrinhos sobre o Dia da Criança, uma imagem com

um adulto cantor de rock e um adulto guitarrista de rock. Há imagens que têm a

mesma criança. Quando a criança aparece em mais de uma imagem, foi

considerado o número de imagens, independentemente de a criança aparecer em

mais de uma fotografia. As idades das crianças nas imagens, aparentemente, são de

alguns meses de vida (bebês) até sete anos de idade.

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Convém salientar que a grande maioria das páginas no Facebook não divulga

com clareza de quem é a responsabilidade por suas criações e manutenções. Esses

blogs podem vir a ser como vitrines e espelhos da moda, nas quais se observa uma

grande participação dos familiares, amigos e pessoas próximas das crianças como

visitantes, além de praticarem a postagem de fotografias.

A decisão de trabalhar apenas com as imagens de meninas deu-se em

função de estas ainda serem maioria. Entretanto, é relevante registrar que as

postagens de imagens de meninos se encontram em um movimento crescente, e a

diferença no número de postagens de imagens de meninas e de meninos é cada vez

menor. Arriscamos afirmar que há quase um empate técnico em número de

publicações de imagens de meninos e meninas nessa página. Observando a

presença de fotografias de meninos na página, podemos considerar que a

preocupação com o corpo, com a aparência, com a beleza também parece fazer

parte dos ingredientes que compõem as suas imagens. Estas são, porém,

atravessadas por discursos que fazem referências a um ideário masculino permeado

por alguns signos, como força e conquista.

As imagens de meninas aqui selecionadas apresentam alguns elementos do

ideário de beleza e sedução e, portanto, pode-se observar a presença desses

discursos que circulam hoje em nossa cultura, na vida das crianças. Primeiro, foram

selecionadas as imagens que, de alguma forma, trazem um misto da menina

inocente, representação tradicional de infância, com a menina bela e sedutora, que

aparece como uma representação que se choca com a da inocência infantil. Depois,

foram selecionadas as 10 imagens com o maior número de curtidas da página.

Alguns comentários tiveram os seus conteúdos analisados, bem como foi

computado o número de compartilhamentos e até mesmo alguns comentários dos

compartilhamentos. Com base nos comentários, curtidas e compartilhamentos, o

público feminino adulto é maioria nessa página.

Em relação ao levantamento de dados para a pesquisa, sobre todas as

páginas encontradas, inclusive a que é nosso objeto de investigação, há poucas

publicações de imagens de crianças com algum tipo de necessidade especial.

Também se evidencia que a maioria das postagens apresenta fotos de crianças de

cor branca.

Com o objetivo de melhor conhecer como funciona essa relação da página

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal", tratando de temas relacionados à infância, ao

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mercado, ao consumo, no intuito de saber como é o dia a dia de trabalho na

produção dessa página, tentamos, por duas vezes, fazer contato com o/a

responsável ou os/as responsáveis pela página, nos dias 17 e 22 de fevereiro de

2016, e não obtivemos resposta alguma. No dia 21de março de 2016, enviamos um

questionário sobre os aspectos que consideramos relevantes para a pesquisa, que

abarcam infância, redes sociais e imagem, a ser respondido pelos/as responsáveis

por esse espaço. No dia 03 de maio de 2016, reenviamos o mesmo questionário, e

não houve nenhuma resposta. As tentativas de contato e o questionário foram

enviados para o endereço citado na página: [email protected]. O

questionário enviado apresentou as seguintes perguntas:

1. Como e quando surgiu a página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal"?

2. Onde é a sede da página?

3. Qual é a definição de "Crianças Estilosas – Blog Pessoal"?

4. A que tipo de público a página se destina?

5. Como é feito o processo de seleção das imagens que são postadas?

6. Essa página funciona em outra plataforma digital, como o Instagram, por

exemplo, ou outros endereços eletrônicos?

7. O que as imagens postadas na página mostram a respeito da infância

contemporânea?

8. Como é a concorrência com outras páginas no Facebook?

9. Alguma(s) criança(s) participa(m) da equipe de produção?

10. Existe diferença entre imagens de meninos e imagens de meninas?

11. Quais imagens são mais enviadas à página para serem postadas, "de

meninos ou de meninas"?

No dia 29 de julho de 2016, tentamos, mais uma vez, manter contato com a/s

pessoa/s ou equipe responsável pela página. Para isso, enviamos, novamente, um

questionário com as seguintes perguntas:

1. Como e quando surgiu a página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal"?

2. Onde é a sede da página?

3. Qual é a definição de "Crianças Estilosas – Blog Pessoal"?

4. Quem são as crianças cujas imagens estão lá?

5. Como chegaram a essas crianças? (são imagens copiadas? Crianças

conhecidas? Imagens enviadas? É feito cadastro dessas crianças?)?

6. Quem manda as imagens são adultos ou crianças? Como sabem disso?

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7. Quais os critérios para uma criança ser considerada "estilosa"?

8. Quem escolhe as roupas, as poses, os cenários? Adultos? Crianças? É

uma negociação?

9. Há algum conhecimento sobre regras para divulgação de imagens de

crianças?

10. A que tipo de público a página se destina?

11. Como é feito o processo de seleção das imagens que são postadas?

12. Essa página funciona em outra plataforma digital, como o Instagram, por

exemplo, ou outros endereços eletrônicos?

13. O que as imagens postadas na página mostram a respeito da infância

contemporânea?

14. Como é a concorrência com outras páginas no Facebook?

15. Alguma(s) criança(s) participa(m) da equipe de produção?

16. Existe diferença entre imagens de meninos e imagens de meninas?

17. Quais imagens são mais enviadas à página para serem postadas, "de

meninos ou de meninas"?

Novamente, não recebemos nenhuma resposta da/s pessoa/s ou equipe

responsável pela "Crianças Estilosas – Blog Pessoal". Não sabemos qual o motivo.

Simplesmente, não tivemos sucesso nessa tentativa. Contudo, o fato de não

recebermos resposta pode ser, na verdade, uma resposta, pois o silêncio, a não

manifestação em forma de escrita, pode ser considerada uma resposta.

[...] os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilação: podemos simplesmente nos basear neles com um interlocutor bem conhecido, podemos pressupô-los em silêncio, a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressão do próprio discurso – na seleção de recursos linguísticos e entonações, determinada não pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto. (BAKHTIN, 2011, p. 297).

Aqui observamos, pela nossa atitude responsiva, o enunciado cristalizado "em

silêncio", numa forma de "não resposta" de nossas inquietações por meio dessas

tentativas em saber quem se responsabiliza pela página "Crianças Estilosas – Blog

Pessoal" e o que teriam a nos dizer, a nos informar sobre essas representações de

infâncias. Mas esse si lêncio parece dizer que não quer dizer. Há uma impressão de

que não há crianças envolvidas pessoalmente, em nenhuma atividade de

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manutenção dessa página. São vozes sociais de adultos que produzem

representações de infância. Isso, porém, não impede que esse silêncio venha

acompanhado de outros enunciados, de outras vozes sociais, que merecem

também, algumas reflexões.

5.5 Nas imagens digitais de meninas, os novos mapeamentos da infância

Esta seção tem por objetivo analisar dez imagens de meninas, que foram

postadas na página "Crianças Estilosas – Blog pessoal", do Facebook. Os discursos

das imagens são analisados a partir dos aportes teórico-metodológicos de Mikhail

Bakhtin, com destaque para os conceitos de enunciado, dialogismo e polifonia. As

imagens foram selecionadas no dia 8 de junho de 2015, de acordo com os seguintes

critérios: fotos de meninas; imagens de meninas que conjugam traços da inocência e

da sedução, compondo um misto da menina inocente com a menina mulher;

imagens que trazem a beleza como forte atributo e, por último, o número de curtidas

pelos visitantes da página. Foram selecionadas dez das imagens mais curtidas na

página do blog, levando em consideração os critérios acima.

As crianças nas imagens analisadas não são identificadas por seus nomes, e

sim enumeradas na forma cardinal. Sobre a utilização das imagens na análise,

entende-se que estas são de uso público, pois estão disponíveis a qualquer pessoa

que acessar o endereço virtual do blog em estudo. Algumas imagens dessa página

ainda resistem ao apelo da beleza e da sensualidade, contudo, não há como negar

que as que mais chamam a atenção para as novas configurações da infância na

contemporaneidade são aquelas relacionadas a algumas referências de beleza e

sensualidade, indicando uma forte tendência sobre como as crianças hoje,

sobretudo as meninas, são representadas nos espaços culturais, especificamente na

mídia.

Segundo as informações da página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", pelo

menos "teoricamente", e conforme a própria página se apresenta aos internautas,

observa-se que ela tenta se descolar da ideia de um modelo de infância, de uma

infância exclusivamente relacionada à beleza e à sensualidade, fato tão celebrado

pelo mercado. Apesar de ser uma página que se classifica como infantil, o seu maior

público receptor é constituído por mulheres adultas. É um espaço que apresenta

imagens com uma estetização adulta, principalmente as de meninas.

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A página define, em suas informações, o que é ser uma "criança estilosa":

"Estilo é muito mais do que uma roupa, um cabelo ou aparência. Estilo é ser

especial pelo simples fato de ser quem é. Uma criança estilosa não é uma criança

padronizada. Beleza não tem moldes e muito menos esti lo." O período de acesso à

página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", para realizar a seleção das imagens,

ocorreu de 03 de maio de 2015 a 28 de junho de 2015. Embora não apresente

somente fotos de crianças com apelos de beleza e sedução, não passam

despercebidas as imagens que trazem elementos da vida adulta estampadas no

corpo da criança ou nos cenários que ela ocupa. São 51 imagens, ao todo, na

página, que, de algum modo, trazem uma referência ao mundo adulto, seja na

postura, nas roupas, maquiagem, cabelos, adereços ou artefatos.

Qual o significado da palavra "estilosa"? O termo tem origem na palavra

"estilo", que, segundo o Dicionário Aurélio, possui alguns significados, dentre eles:

maneira de tratar, de viver, procedimento, conduta, modos. É muito usada no

cotidiano, para identificar pessoas que se apresentem de forma pessoal, original ou

criativa. Refere-se às roupas, sapatos, acessórios. Ser estilosa pode fazer menção,

também, à beleza. Podemos notar, por meio da internet, dos meios de comunicação

e dos eventos de moda, que essa palavra foi apropriada pela indústria cultural, pelas

mídias digitais. Observa-se que "estilosa" é muito mais do que os significados em

um dicionário. Essa palavra agrega a ideia de originalidade e criatividade, tudo que

se relaciona ao mundo da moda e dos produtos que são lançados no mercado.

Percebe-se que há mais que uma estratégia de marketing em torno dela. A página

se apropria da palavra “estilosa”, que recebe outras ressignificações.

Outras páginas, supostamente dedicadas à criança, que fizeram parte do

levantamento de dados para esta pesquisa, aplicam basicamente o mesmo valor à

palavra "estilosa", que faz menção à beleza, representa uma criança chique, na

moda, antenada com tudo que acontece no mundo, uma criança que tem acesso a

tudo de mais "novo" e comercializado no mercado. Com isso, vemos que a palavra

"estilosa" ganhou visibilidade nas mídias digitais. A palavra agrega outros valores

que não figuram no dicionário, mas estão nas redes sociais.

Destaca-se, contudo, que a infância também pode criar o seu próprio estilo,

uma vez que a criança, com inteligência e criatividade, estabelece o seu modo de

ser, seu jeito de se vestir, de usar calçados, acessórios. A combinação desses

fatores ganha muitas possibilidades na imaginação criadora de uma criança.

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O panorama tecnológico, bem como as redes sociais virtuais, coloca-nos em

uma sociedade imagética, em que a imagem assume relevância fundamental nas

relações interpessoais na contemporaneidade. Sobre isso, Bakhtin considera que:

Ocorre que nossa própria relação com a imagem externa não é de índole imediatamente estética mas diz respeito apenas ao seu eventual efeito sobre os outros – observadores imediatos –, isto é, nós a avaliamos não para nós mesmos mas para os outros e através dos outros. (BAKTHTIN, 2011, p. 31)

Uma questão a ser observada são os contextos dessas imagens. Uma

fotografia de uma menina com uma roupa mais provocante ou sensual, com algum

tipo de maquiagem, pode ser vista por sua família ou por seus responsáveis como

algo jocoso, sem nenhuma ofensa, como se fosse algo corriqueiro, naturalizado.

Pensando nisso, ainda temos indagações: Que infâncias são essas estampadas no

blog "Crianças Estilosas – Blog Pessoal"?

O conceito de infância deve ser compreendido como fluído, múltiplo, instável e heterogêneo, o que significa dizer que existem inúmeras representações de infâncias cujos significados podem variar de acordo com o tempo, o gênero, a sexualidade e a cultura na qual as crianças estão inseridas. (FELIPE; GUIZZO, 2003 apud FELIPE et al, 2013, p. 19).

Dessa forma, cabe-nos refletir sobre as infâncias na contemporaneidade e

compreender quais são os discursos presentes nas imagens das meninas postadas

no blog "Crianças Estilosas – Blog Pessoal".

As imagens podem nos dizer muitas coisas, carregar muitas informações,

significados, podem até nos educar, e esse processo transita nas autorias dessas

imagens, no que e como elas representam, nos seus objetivos e em que contextos

foram produzidas e quais os discursos que estão presentes. "O primeiro elemento a

merecer o nosso exame é a imagem externa (narúrjost) como conjunto de todos os

elementos expressivos e falantes do corpo humano." (BAKHTIN, 2011, p. 25).

O ato de como averiguamos nossas imagens externas e as imagens externas

de outras pessoas assume um patamar extraordinário, que salta do campo físico

para o campo virtual, no qual ganha significativos contornos no que tange à

visibilidade e à comunicação da observação de imagens externas. São os espelhos

digitais das modernas tecnologias, ou seja, são as redes sociais digitais.

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Ariès (2014) também trabalhou com imagens em 1962. Neste caso, pinturas e

gravuras para mostrar à Europa, no período pré-industrial, que a concepção de

infância gestada na modernidade diferia marcadamente de épocas mais remotas.

Também mostrou como as crianças eram vestidas com roupas com modelos

desenhados para adultos, de como participavam do convívio adulto e como as

crianças eram representadas sem a inocência que hoje lhes é atribuída.

Que discursos estão presentes nas imagens selecionadas? Bakhtin (2006)

ressalta que tudo que é ideológico é um signo, que vai além do reflexo de uma

realidade, posto que é parte dessa própria realidade.

A análise das imagens selecionadas visa tratar dos discursos que trazem

elementos da inocência infantil conjugados a elementos da vida adulta e acabam por

reconfigurar as fronteiras entre esses mundos. Assim, essa análise inclui observar a

expressão facial e corporal; posturas e pose para a câmera; roupas, sapatos e

acessórios; local de produção da foto; i luminação; posicionamento e enquadramento

da câmera; arquitetura, se há algo escrito na imagem e como isso é apresentado em

sua forma/design e cor; origem do envio das fotos; as curtidas na página; os

comentários na página; os comparti lhamentos das imagens e as vozes sociais por

elas ecoadas. A data de postagem das fotos pode não coincidir com a data em que

os internautas as enviaram, até porque, para serem publicadas, as fotografias são

enviadas ao/à responsável pela página que faz a postagem, ou seja, não são os

usuários que postam diretamente na página. As postagens acontecem de forma

indireta pelo endereço eletrônico: "[email protected]".

Imagem 1 – Crianças Estilosas (a)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

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A Imagem 1 teve 1.086 curtidas, 2.147 compartilhamentos e 218 comentários

até o dia 8 de junho de 2015. Essa criança aparenta ter em torno de 2 a 3 anos. A

foto foi postada na página no dia 12 de fevereiro de 2013 e não há um registro mais

explícito de sua origem de envio, ou seja, sobre quem é o internauta que enviou

essa foto ao blog.

Trata-se da imagem de uma menina negra. Sua pose chama a atenção: ela

está em pé, ombros erguidos, pernas levemente cruzadas. A flor, ao lado direito da

cabeça, enfeita um penteado que é muito usado por mulheres e deixa parte do

pescoço e da nuca da criança visível. A vestimenta ressalta os ombros à mostra,

que remete a um traço de sedução atribuído à imagem.

A alteração do corpo remete ao imaginário ocidental, a uma alteração moral do homem e, inversamente, a alteração moral do homem acarreta a fantasia de que seu corpo não é apropriado e que convém endireitá-lo. (LE BRETON, 2013, p. 87).

Ao que a imagem indica, essa menina passou por uma produção profissional

para ser fotografada: sob o olhar do outro (adulto), buscou-se construir um corpo,

que mescla a menina inocente com a sensualidade. Convém salientar que não é a

criança que se apresenta com esses discursos, e sim o adulto que nomeia o corpo

dessa criança.

A roupa e o corpo da criança são discursos de sedução, que investem na

sensualidade. Essa fotografia revela, portanto, ambiguidades entre elementos de

inocência e elementos de sedução, posto que não se pode deixar de notar que o

sorriso da menina remete ao sorriso prototípico de uma criança, que traz o tom do

desprendimento e da descontração. É um sorriso de uma criança que posa para

uma fotografia, que apresenta uma expressão lúdica.

O penteado também chama atenção por fazer o contraponto aos discursos do

estereótipo da mulher negra brasi leira, um penteado que representa, de certa forma,

o empoderamento da mulher e da menina negra brasileira. Há uma luta social e

política de reafirmação da população negra no Brasil pela conquista de seu espaço,

por sua visibilidade e por seus direitos na sociedade brasileira. Esse

empoderamento, como vemos no penteado dessa menina, pode ser apropriado

como "estiloso".

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O empoderamento notado no penteado dessa menina revela um enunciado

que abarca uma forte polifonia. São vozes contrárias aos padrões europeus de

beleza ao trazerem a não submissão aos cabelos lisos e o coroamento dos cabelos

cacheados. É um movimento, expresso nos discursos que atravessam essas

imagens, oriundo de vários locais, como por exemplo, de outras páginas dedicadas

exclusivamente às imagens de meninas negras. Entre elas, podemos citar: “Negro’s

Show”, “Faça amor, não faça chapinha” e “Enroladas”.

A fotografia, da forma como está apresentada, levanta a hipótese de ser uma

produção profissional, feita em um estúdio fotográfico, ou, pelo menos, pode-se dizer

que foi bem produzida. Refiro-me ao enquadramento e à luz da imagem, que nos

remete ao sol, ao clima tropical, tudo muito bem orquestrado com o florido da roupa

da menina. Esse discurso apresenta signos que retratam diversão, descontração e

sensualidade. Ao fundo, há uma escada de pedras e árvores. Para criar esse visual

de natureza abundante, a equipe ou os produtores dessa imagem podem ter

lançado mão de um recurso ou efeito visual tecnológico, uma montagem no

computador ou talvez um painel dentro de um estúdio. O objetivo desse efeito é

sugerir movimento, uma relação entre a menina e a paisagem, como se ela fosse

íntima desse cenário, próxima ou pertencente a essa paisagem. Stam (1992)

esclarece que:

Bakhtin dá o nome “tato” ao conjunto de códigos que regem a interação discursiva. O "tato", como vimos, tem a ver com as relações entre interlocutores e é determinado pelo conjunto de relações sociais dos sujeitos falantes, por seus horizontes ideológicos e pelas situações concretas. (STAM, 1992, p. 63, grifos do autor).

Em relação ao discurso que essa imagem carrega, reportamo-nos a Stam

(1992) como o "tato" se contextualiza nas relações sociais com os internautas.

Essa dramaturgia tem seu tato específico, suas maneiras de sugerir, através da colocação da câmera, do enquadramento e da interpretação, fenômenos como intimidade ou distância, companheirismo e dominação, em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre interlocutores. (STAM, 1992, p. 63).

Grande parte dos 218 comentários foi postada por pessoas que se identificam

como adultas e adolescentes. Esse dado foi pesquisado no dia 15 de junho de 2015.

Os conteúdos publicados são de elogios à menina, declarações como:

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"linda e estilosa";

"muito linda";

"minha cara";

"olha q gata";

"fofa";

"olha que delícia”;

“princesa";

"criança linda4".

São 218 comentários, dos quais 203 são de mulheres, 12 comentários de

homens e três comentários de páginas direcionadas à infância, como, por exemplo,

escola para crianças ou páginas de modas (vestuário e calçados).

As mulheres fazem parte da maioria dos comentários e, geralmente,

expressam admiração e incentivo. Não se observa um olhar crítico em relação ao

consumo, à sedução e à beleza sobre as fotografias das meninas aqui selecionadas

para análise, pois parece haver um olhar naturalizado em relação a esse fato. Um

exemplo disso é o comentário "olha que delícia". A palavra "delícia" pode ser alusiva

a uma mulher considerada sexualmente bonita e atraente. Mas pode, também,

remeter a outros sentidos, com outras nuances, que não estão associadas

exclusivamente à sexualidade. "Delícia" se situa, dessa forma, como uma palavra

ambígua nessa imagem, que transita ora pela infância, ora pelo mundo adulto.

Grande parte dos comentários remete a uma idealização da criança como um

"vir a ser", marcado por investimentos no presente com vistas ao futuro. Há,

inclusive, alguns comentários que idealizam que os bebês, que estão a caminho,

tenham essa aparência de beleza. Entre os comentários de mulheres, podemos

citar: “Quem dera a Maricota vinhesse assim, muito linda.”; “Nossa Linda Mesmo,

Nunca Se Sabe Né Vamos Ficar Na Esperança Que Venha Assim Vai ser Taum

Linda, Se Vir Branquinha Também.”. Um homem comenta: “Olha qui linda moor...

nossa filha tem que fikar linda assim! Fulano.”

Foram 2.147 compartilhamentos dessa imagem, o que nos faz pensar: o que

motiva as pessoas a compartilharem essa foto? Quais os significados disso?

Segundo os comentários, fica nítido o investimento numa imagem da criança que se

coloca como parâmetro de beleza que precisa ser perseguida no futuro. Muito mais

4 Foi mantida a escrita original utilizada nos comentários publicados pelos internautas, característica

das redes sociais.

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do que a menina bela está a mulher sedutora, que representa o seu porvir e,

portanto, o que precisa ser conquistado.

Imagem 2 – Crianças Estilosas (b)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

Em relação à fotografia seguinte (Imagem 2), publicada no dia 20 de janeiro

de 2013, verificaram-se 390 curtidas e 357 compartilhamentos no dia 8 de junho de

2015. Há uma identificação, na página, da internauta que enviou a fotografia.

Temos na imagem uma das novas faces da infância contemporânea e suas

nuances. Trata-se de uma menina afrodescendente, cujos cabelos cacheados estão

presos por um tipo de prendedor (fita, elástico) e jogados para o lado direito. Nota-se

que há uma coloração diferente em algumas partes do cabelo, sugerindo um modo

de ser descontraído, conectado com a moda. Chama-nos a atenção o fato de,

apesar de estarmos em tempos que o mercado dita a moda dos cabelos alisados

para as mulheres afrodescendentes, a menina da foto ainda mantém os cachos de

seus cabelos, o que pode também remeter aos discursos de empoderamento da

menina negra. Os cabelos encaracolados são signos que trazem vozes sociais que

se confrontam ao padrão estético europeizado, que associa a beleza feminina aos

cabelos lisos. Essa imagem da menina negra, nos espelhos virtuais, com os seus

cabelos cacheados, marca outro discurso estético, que rompe com esse padrão ao

afirmar a beleza da negritude.

A foto é feita em close, de modo que o olhar da criança está fixo para a lente

da câmera, como se estivesse diante de um espelho. Dá-nos a impressão de um

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olhar desprendido, típico de muitas crianças. O enquadramento da câmera não é

convencional. A foto foi produzida com a câmera numa posição tal que deixa a

imagem inclinada para um lado. A imagem da menina fica com uma inclinação à

direita, o que, possivelmente, revela um pouco de rebeldia, transgressão e, ao

mesmo tempo, alegria.

O fundo da imagem lembra uma casa, porém, não há nenhuma identificação,

o que se vê é apenas uma porta. A menina é o grande destaque, foco dessa

imagem. Não há nada que desvie o olhar do internauta para outro detalhe. Ela está

com uma camiseta branca caída para a esquerda e, com isso, mostra-se o ombro e

a alça cor-de-rosa, em espessura fina de outra blusa, como se fosse um sutiã. Há aí

um elemento que carrega o sentido de sensualidade, conferindo o tom de sedução à

imagem da menina.

A blusa é decotada, com a intenção de mostrar a peça por baixo. A alça de

outra blusa é muito sugestiva, consti tuindo-se como um discurso de sedução,

artifício demasiadamente visto no cinema, na televisão e nas artes em geral. A blusa

caída tem uma representatividade muito grande e carrega sentidos de uma

feminilidade atrelada à conquista e à sedução. O "piercing5" de argola num tom

prata, do lado direito do nariz, pode simbolizar juventude, irreverência, ousadia,

atributos importantes para compor a identidade de uma menina descolada, estilosa,

que está sempre atualizada acerca das novidades do mundo da moda. Essa

realidade pode ter relação com a fluidez tão presente na atualidade nas fronteiras

construídas entre a infância e a vida adulta, exemplo disto é o uso do piercing pela

menina dessa fotografia. Isso chama a atenção porque o piercing é um acessório

muito permitido pelos adultos e também pelos adolescentes. Essa imagem traz à

infância signos da vida adulta, com elementos que conjugam universos simbólicos

distintos, que na imagem da menina se interpenetram, se misturam e se borram.

Qual o poder da imagem dessa criança com um piercing no nariz? Até que

ponto uma imagem pode influenciar nossas vidas? Culturalmente, podemos

5 Embora o cultivo do piercing como adorno corporal seja moda na sociedade contemporânea, esta

prática de transformar o corpo físico, perfurando-o, com o objetivo de inserir fragmentos metálicos assépticos, é uma tradição que remonta há pelo menos 5000 anos na história da humanidade. Historicamente, ele tinha uma conotação similar à da tatuagem no sentido de exprimir escolhas

individuais, de traduzir um rito sagrado, ou de conferir status nobre a determinadas pessoas. No mundo contemporâneo, ele também adquiriu outro sentido, mais estético, menos existencial, tornando-se mais um item fashion. Disponível em: http://www.infoescola.com/artes/piercings/

Pesquisado em: 26/09/2015.

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observar que o uso de brincos, pela menina, não é contestado, pelo contrário, pois

muitas meninas, quando bebês, têm suas orelhas enfeitadas com brincos, que são

signos de feminilidade. De um lado o piercing, que traz o discurso da rebeldia, da

transgressão e, do outro, os brincos que marcam os discursos no território do

feminino. Outra observação a ser problematizada na postagem dessa imagem é o

fato de o piercing ser apontado, pelos internautas, como algo fora da infância,

enquanto que a vestimenta sensual não.

Possivelmente, o mundo se encontra num panorama imagético quase

irreversível, ou seja, não há como descolar as imagens da vida das pessoas.

Imagens técnicas se estabeleceram no cotidiano, anunciando os novos tempos. Filmamos tudo: ultra-sonografias, partos, aniversários, casamentos, além de estarmos habituados a conviver com câmaras em nossas atividades cotidianas em bancos, supermercados, elevadores, lojas, restaurantes, etc. (SOUZA, 2003, p. 78).

Souza (2003) ainda menciona que, hoje, as pessoas não utilizam as imagens

de acordo com uma necessidade do cotidiano, pelo contrário, a ordem se inverteu,

as pessoas direcionam a sua vida de um modo que sejam bem contempladas nas

imagens.

Temos aqui a imagem de uma criança que representa outras reconfigurações

de infâncias, outros esti los de ser e de viver, que se aproximam cada vez mais da

forma como os adolescentes e adultos vivem, especialmente no contexto da moda

(vestuário, calçados, acessórios e adereços) e as suas significações para a vida.

Bakhtin (2006, p. 32-33) argumenta que: "O domínio ideológico coincide com o

domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se

encontra, encontra se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor

semiótico."

De acordo com os comentários da imagem, observados no dia 22 de junho de

2015, vimos que há muitos elogios, como, por exemplo:

"linda";

"lindona";

"é verdade linda demais".

Por outro lado, há também alguns comentários reprovando ou questionando o

uso do piercing no nariz:

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"só não gostei do piercing";

"Ela é linda, só acho que pra ser estilosa não precisa usar essa argola em

criança, em adulto já é feio quanto mais nessa gatinha. Criança tem que ser

criança";

"só não gostei do piercing".

O piercing é um acessório que tem ganhado aura midiática e, sendo assim,

usar o piercing pode significar estar em dia com o mercado da moda, como um

discurso do adulto que nomeia uma criança "fashion", que possui estilo, e isso

precisa ser divulgado pela imagem. O olhar dos outros é o passaporte para que se

atinja esse status, é como se o olhar dos internautas simulasse um carimbo,

oficializando a postagem dessa imagem como "menina estilosa". Felipe (2012)

argumenta que a mídia vê a criança como um consumidor. Essa potência do

consumo na infância só tende a aumentar graças aos constantes recursos de

propaganda.

A fotografia dessa menina com piercing contrasta com as fotografias de

meninas dos anos 30 aos anos 50 do século XX, nas quais a ideia de ousadia não

existia. Os discursos do adulto sobre as representações desejadas para a infância

eram bem diferentes dos que vemos hoje na internet. As meninas figuravam em

trajes mais propriamente infantis, embora, em alguns casos, a pose revelasse

postura composta, na direção de seriedade. (BRITES, 2000).

Novaes (2010) ressalta que, diferente de séculos anteriores, em que se

acreditava que a beleza era uma revelação divina ou revelação da sensibilidade, no

século XX, a beleza é uma revelação do próprio ser humano para si mesmo, é o

interesse por si próprio. É o início do que a autora nomeia de "triunfo do eu", que

ganha a poderosa sustentação da indústria, do mercado do consumo e pesquisas

destinadas a descobrir e desenvolver meios de auxiliar as pessoas a ficarem

bonitas. Dessa forma, bate-se o martelo com o intrigante discurso de que só é feio/a

quem quer. Acabaram-se as desculpas.

Há outro comentário que faz a seguinte menção ao acessório: "É piercing

FALSO, nós só colocamos nela pra tirar foto! Calma gente rs”. Essa declaração, é

possível supor, parte de quem produziu/publicou a fotografia, porém, a internauta

que a enviou para a página tem outro nome. Diante disto, não conseguimos chegar

a uma conclusão precisa, mesmo após checar as duas páginas das usuárias, a que

postou a foto e a que publicou esse comentário.

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A polifonia se define pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objeto do discurso do autor, são sujeitas de seus próprios discursos. (BRAIT, 2005, p.194-195).

Os comentários são discursos que nos brindam com uma polifonia, posto que

o piercing, acessório do qual a menina faz uso, é o centro de discordâncias e

concordâncias em relação à sua utilização por crianças. Por representar algo da vida

adulta, o piercing representa uma ruptura na fronteira entre a criança e o adulto. As

vozes sociais marcam essa contradição, pois pontuam que a menina só usou o

piercing para se deixar fotografar, já que, na vida real, ela pode não fazer uso desse

adereço. É algo para ser observado e analisado em relação a essa imagem,

considerando as necessidades de ressaltar elementos da vida adulta, como é o caso

do piercing.

Ressalta-se que não existe contestação quanto ao uso dos brincos pela

menina, pois enfeitar-se com esse artefato, que carrega os discursos relativos ao

gênero feminino, é visto como algo natural, aceitável e até incentivado pela

sociedade. O piercing, pelo contrário, tem a sua imagem associada à quebra de

regras e de condutas, o que pode, também, representar outro modo de ser feminino,

diferente do tradicional, da feminilidade representada pelos brincos. Há fortes

demarcações do que pode e do que não pode quando se trata de infância. Nota-se

que a sensualização do corpo parece já integrada à infância, enquanto o piercing e a

tatuagem ainda não atingiram esse estágio, sendo vistos como elementos que soam

como destoantes quando associados à infância.

Sobre os comentários, tem-se, ao todo, 95, sendo 82 de mulheres e 13 de

homens. Os autores desses comentários são, em sua maioria, adultos, havendo

também, alguns adolescentes, ampla maioria no plano de idealização da menina

como um modelo perfeito de criança.

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Imagem 3 – Crianças Estilosas (c)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

Temos agora a imagem 3, da Miss Brasil Infanti l Goiás, publicada em 9 de

junho de 2013. No dia 8 de junho de 2015, verificou-se a presença de 350 curtidas e

432 comparti lhamentos. Esse enunciado remete-nos aos concursos de beleza, que

possivelmente ainda mobilizam muito o imaginário das pessoas e, nesse contexto,

se encontra a criança, que, muitas vezes, é levada a participar desses eventos por

interesse dos pais ou familiares. "Para Bakhtin, cada enunciado concreto, seja ele

prático ou poético, é um ato social, no fundo um evento histórico, mesmo que

infinitesimal." (STAM, 1992, p. 26).

A menina dessa terceira fotografia tem uma página própria no Facebook. Isso

sugere que, provavelmente, essa imagem tenha sido enviada à página por sua

família ou por uma equipe responsável por sua imagem como Miss Brasil Infantil

Goiás. Pelo teor da fotografia, percebemos que há um trabalho profissional na sua

confecção, pois se entende que, possivelmente, a sua divulgação seja uma

estratégia de marketing.

Há uma luminosidade marcante nessa fotografia que cumpre a função de um

grande holofote, ressaltando o rosto da menina. Esse tipo de luz forte é muito

utilizado também em concursos de beleza, nos letreiros de cinema, em peças de

teatro e casas de shows, conferindo à protagonista da foto o sentido de “estrela”, o

que se acentua com o fato de ela ser uma Miss. O plano de fundo é limpo, não tendo

nenhuma outra informação, todo na cor branca. Não há nada escrito, não há objetos

e nada que chame a atenção ou ofusque a pequena Miss. O branco carrega,

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culturalmente, discursos de pureza e inocência, tradicionalmente associados à

infância e, ao mesmo tempo, instaura um cenário no qual se observa apenas a

menina, pois ela é o destaque.

Essa criança aparece num plano em que se vê mais o seu rosto, numa pose

mais comumente usada para retratar adultos para capas de revistas, estampando

fotos de modelos e celebridades. O rosto está de frente para a câmera, enquanto o

restante do seu corpo está levemente virado para o lado esquerdo. Ela usa uma

blusa de alça, com flores coloridas, que contrastam com o fundo branco. Há uma

presilha branca, de cetim, enfeitada com pequenas pedras bri lhosas, que imitam

diamantes, presa aos cabelos, no formato de laço de fita, do lado esquerdo. Mais

uma vez, o branco confere o tom de "pureza". Um elemento da infância nos faz

observar que estamos diante de uma criança. Trata-se do laço de fita, que

representa a menina inocente, meiga e terna. A maquiagem chama atenção: o rosto,

os olhos, o batom na boca, tudo bem pensado para compor o perfi l de uma Miss,

mesmo que esta seja uma criança.

As vozes sociais que atuam nessa imagem nos proporcionam alguns

elementos em confronto para análise. O penteado que a deixa com os cabelos

esvoaçantes é, ao mesmo tempo, alusivo à sedução, à feminilidade, e também se

apresenta como discurso referente a uma estética negra, materializado como uma

forma de empoderamento. Já a fita em formato de laço nos remete aos signos da

infância, entram em embate com os signos da vida adulta, visíveis na maquiagem da

menina: a pintura nos olhos, feita com rímel e sombra, simula um olhar de gata. Na

nossa cultura, “gata” é uma gíria, usada para se referir às mulheres bonitas,

sedutoras, que despertam a atenção dos homens. É comum seu uso também para

aludir a meninas bonitas (adolescentes/crianças). Há inclusive inúmeros concursos

de beleza que fazem uso dessas expressões. Há também um destaque para a boca

da menina, mesmo com um batom de cor leve, ela ganha realce na foto. A boca

materializa, de forma contundente, o que há de mais sedutor, sobretudo quando

pensamos no beijo, no contato físico, os lábios com batom, podem ser vistos como

como signos de sedução. Mesmo em mulheres que não têm os lábios carnudos,

como os lábios da menina dessa imagem, há outros recursos e truques para realçá-

los, por meio de técnicas com o batom. Sendo assim, podemos notar uma imagem

com ambiguidades, que mescla duas representações: a menina do laço de fita e a

menina miss, signos de inocência e sedução que habitam o mesmo corpo.

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Em relação aos comentários, em sua maioria de pessoas adultas, pela

análise feita no dia 24 de junho de 2015, verificaram-se 49 comentários de mulheres,

três comentários de homens e três comentários de outras páginas ou blogs do

Facebook. A admiração pela imagem é quase uma unanimidade nos comentários,

sendo um deles da própria criança retratada: "Lindo este site, cheio de estilo! Adorei

estar aqui!!! Bjs." Vejamos alguns outros comentários:

"linda...;

"linda+++";

"Que linda parece uma boneca".

O comentário da própria criança refere-se à página como "lindo e cheio de

estilo". Podemos observar que lindo pode se referir à própria "beleza" em questão,

porém, ela não vem sozinha. Temos aí suporte para que isso ocorra, como as

aparências das crianças nas imagens. Isso significa "cheio de estilo", como a menina

Miss afirmou em seus comentários. É estar na moda, usar roupas, sapatos,

adereços, artefatos que são destaques nas vitrines das lojas e, por conseguinte, nas

vitrines virtuais, como sugere o próprio nome da página, "Crianças Estilosas – Blog

Pessoal".

Há também alguns comentários que não são necessariamente de elogios,

mas chamam a atenção por fazerem menção à infância, tais como:

"É linda, mas não parece uma criança...”;

"Gente... curtam minha página? É chamada MODA INFANTIL... Uma

página voltada pra MODA de crianças e bebês, assim como dicas para mamães e

amantes de crianças! Por favor, deem uma forcinha, é nova mas posto todo dia!";

"Adorei este site nossas crianças são lindas!! Vamos protegê-las!!!!!."

Pelas palavras, os visitantes da página se expressaram, marcaram as suas

posições enquanto observavam a fotografia da menina Miss Goiás.

As vozes presentes nos comentários expressam uma dupla interpretação que

não pode passar despercebida, tal como: "linda" e "não parece uma criança". Estes

transportam a imagem da criança para um contexto que pode situá-la como uma

mulher. Essas vozes nos dão a ideia de que o tratamento em relação a essa menina

é como se ela fosse já uma mulher, e não mais uma criança. Analisamos que há um

anseio nesses discursos para que os signos que representam a mulher sejam

destacados e assumam maior relevância na imagem, ou seja, essa menina não

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poderia ser mais considerada uma criança ou, pelo menos, é o que se tenta fazer

por meio das entrelinhas, do não dito nesses discursos.

Muitos comentários, feitos pelo público feminino, remetem a projeções futuras

a partir da imagem dessa menina, como filhas belas, filhas modelos, que alimentam

ideários de mulheres adultas, um modelo de mulher que atende aos pré-requisitos

de um padrão de beleza: " Imagino a mimi assim, uma miss Laura... e eu em todos

concursos com ela", "eu também achei uma linda boneca. Mais é uma criança bem

de saúde e beleza natural"; "olha como a gi vai ficar". Nesses comentários, também

há alusões à identificação de mulheres adultas com a menina-modelo.

O chamamento ao consumo por meio de discursos da moda infantil transita

constantemente na fluidez da linha divisória entre a infância e a vida adulta, com

apelos comerciais que partem, também, dos próprios internautas que visitam a

página.

O comentário "Adorei este site nossas crianças são lindas!! Vamos protegê-

las!!!!!" parece alertar para algo que representaria um perigo. Mas, que perigo é

esse? Isso nos leva a pensar que a imagem da menina pode representar outro

modelo de infância, que é formado por signos de beleza e sensualidade. É nesse

ponto chave que Felipe (2012) alerta sobre a pedofilização das imagens de crianças.

Podemos problematizar a exposição dos corpos das crianças, mais ainda, da

erotização desses corpos, que, ao mesmo tempo em que atende aos chamados dos

discursos da beleza, da sedução e do consumo, se encontra num labirinto, quando

há a necessidade de proteger essas crianças da divulgação de forma inapropriada

de imagens de seus corpos nas redes sociais.

Esse comentário pedindo proteção às crianças da página faz pensar sobre os

limites na postagem de uma fotografia de uma menina, para um cuidado, uma

atenção à fluidez na fronteira entre a infância e o mundo adulto, bem como saber a

quem realmente se destina essa página e quem, de fato, a visita.

Felipe (2012), ao refletir a respeito da erotização dos corpos infantis,

especificamente das meninas, argumenta como o mercado opera na

comercialização de seus produtos, o corpo da criança como objeto de consumo:

Se observamos as propagandas de brinquedos dirigidas às meninas, veremos que elas investem de forma importante na ideia de cultivo à beleza como algo inerente ao feminino, aliada sempre ao supérfluo, ao consumo desenfreado, ou seja, não basta ter apenas a boneca

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tal, é preciso ter todos os modelos e variações da mesma boneca seus respectivos acessórios. (FELIPE, 2012, p. 55).

Há um universo de signos e significados nessa imagem da menina Miss,

menina boneca e menina mulher. A participação de crianças em concursos de

misses causa frisson e polêmicas também, seja pelo fato de serem "engraçadas",

por serem ainda crianças, e também pelo fato de se apresentarem "sedutoras", ao

imitarem as mulheres adultas em suas performances como misses. A busca de

títulos em concursos de beleza pode garantir status, um poder concretizado pela

conquista de predicados aliados ao corpo jovem e bonito , de acordo com alguns

padrões de beleza da sociedade contemporânea. Corpos magros e bem tratados,

bem vestidos e calçados, corpos que bri lham nas janelas virtuais, que seduzem nas

passarelas, mesmo sendo corpos infantis. O retrato da Miss Infantil Goiás talvez

responda bem a esses requisitos, a cada dia mais intensos, impositivos e

disciplinadores em relação ao corpo, desde a mais tenra infância.

Imagem 4 – Crianças Estilosas (d)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

A Imagem 4, acima, mostra uma pose muito visualizada nas redes sociais.

Trata-se de uma criança “fazendo biquinho” com os lábios, simbolizando, dessa

forma, o ato de beijos. A fotografia foi encaminhada à página pela tia da criança,

segundo as informações da página. A imagem foi postada no dia 4 de abril de 2013,

e recebeu 160 curtidas e 253 compartilhamentos até o dia 8 de junho de 2015.

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A origem da fotografia nos dá pistas de que essa é uma produção caseira, e

que, supostamente, foi produzida na casa da criança ou da pessoa que enviou a foto

para o blog.

A boina branca, com a aba levemente voltada para o lado esquerdo, aparenta

certa descontração. A saia ampla, disposta em forma circular sobre a cama lembra

as brincadeiras de rodas vivenciadas pelas crianças. As pulseiras na mão esquerda

fazem alusão à infância. Com essa mesma mão, a menina segura a cintura, o que

remete à descontração e, ao mesmo tempo, um certo toque de provocação. Os

cabelos cacheados estão bem delineados e se apresentam como enunciado que

marca a negritude da menina e, por sua vez, a sua valorização estética. No rosto em

geral, há maquiagem leve, que fica mais acentuada nos olhos e na boca, ambas

com a cor roxa em destaque. Essa cor roxa pode significar magia e suspense.

Os olhos fechados e o “biquinho” nos lábios supõem ser uma recomendação

da produção da fotografia. Os olhos fechados dão um tom de romantismo à imagem,

de entrega à outra pessoa, enquanto que o “biquinho” nos lábios é conhecido como

"duck face6", expressão em língua inglesa, que, em português, significa "cara de

pato", usado mais por mulheres em selfies e fotografias, e que se popularizou nas

redes sociais digitais. Novamente, a boca se reinventa frente às câmeras de

telefones celulares e conquista as redes sociais. Símbolo de sensualidade, o "duck

face" se tornou um poderoso gesto realizado por mulheres, meninas adolescentes e

meninas crianças. Mais uma vez, vemos que os discursos de sedução e beleza vão

muito além do que usamos, de nossa aparência, e estão também nos modos de ser.

Em relação ao ângulo da imagem, o enquadramento mostra a menina do alto

para baixo. A câmera está quase sobre o seu corpo, com destaque para o rosto.

Esse enquadre remete ao olhar do adulto para a criança, de cima para baixo,

perspectiva que carrega uma imposição hierárquica em relação ao outro. Também

podemos pensar que esse ângulo de fotografia é um formato que vem sendo

bastante usado nas redes sociais, como tentativa de se fazer imagens com ângulos

diferenciados dos mais habituais.

Essa imagem é a materialização dos discursos do adulto, como se observa

pela presença de vários elementos, muitas vozes sociais, a maquiagem forte, a

6

"Duck Face" (v. também: MySpace Face); Expressão facial popular em poses de fotos, especialmente entre jovens do sexo feminino; Consiste em pressionar os lábios para deixá-los mais carnudos, e as maçãs do rosto e a mandíbula, mais definidas; Tem esse nome porque lembra,

obviamente, um bico de pato. Disponível: http://super.abril.com.br/ Pesquisado em 28/07/2015.

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pose, a vestimenta, os acessórios, a boina e o "duck face", que revelam, pela ótica

do adulto, uma menina que sabe se expressar nas redes sociais online, uma

menina, pelo menos imageticamente, em sintonia com o seu tempo, tempo do corpo

bonito e sedutor e das tecnologias.

O corpo humano torna-se um continente a explorar, que os pesquisadores exploram e com o qual pretendem obter lucros. No tempo dos anatomistas, as pessoas se contentavam com designar pelo seu nome determinado fragmento do corpo. (LE BRETON, 2013 p. 121)

A fotografia apresentou 26 comentários até 26 de junho de 2015, sendo 25

comentários de mulheres e dois de homens. Vejamos alguns comentários femininos:

"nossaaaaaatopassadaa";

"que maquiagem linda *0* obs: a garotinha também é linda";

"rainha do carnaval".

Em seguida, temos os comentários dos homens:

"QUE LINDA",

"linda mesmo eu não te conhecendo".

Um comentário convida os internautas a visitarem a página de outra criança:

"OOI... aproveitando o espaço... essa bonequinha precisa de sua

CURTIDA... É SÓ ENTRAR NO LINK E CURTIR A FOTINHA DELA... VAMOS

AJUDAR ESSA PRINCESA PESSOAL...".

Imagem 5 – Crianças Estilosas (e)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

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Essa criança apresenta um visual bem diferente do imaginário convencional

da infância moderna, meninas com vestidos, laços e babados, bem distinta das

representações de meninas que hoje estampam as redes sociais online.

Essa imagem apresentou 154 curtidas e 31 compartilhamentos no dia 8 de

junho de 2015. Ao que parece, essa fotografia pode ter caráter profissional,

possivelmente, com destino a alguma agência de modelos.

Há um leque de discursos nessa imagem, desde as poses da menina até o

modo em que a fotografia foi publicada. São três imagens de corpo inteiro, cada uma

com uma pose diferente, que, coladas, formam uma única imagem num determinado

espaço. Esse recurso de recortar, colar imagens e, dessa maneira, criar uma

imagem única é muito usado por agências de produção fotográfica e de imagens,

mas, também, é muito encontrado em computadores e aparelhos de telefones

celulares.

O visual da criança remete a uma moda cobiçada por meninas atualmente,

que é composto, majoritariamente, por roupas, sapatos e acessórios que têm uma

relação direta com o mundo adulto. O sapato dourado, com um detalhe na frente,

semelhante a um coração ou a uma flor, pode remeter ao universo simbólico da

“princesa”. Os óculos escuros, com armação na cor preta, é de tamanho grande e,

por isso, ganha destaque no rosto da menina e constitui um acessório que confere

estilo. A camisete (blusa) é de cor branca, de modelo bem típico de uma mulher

executiva.

A menina usa uma saia com pregas, num modelo bastante usado por

colegiais. Talvez esta seja a única peça da vestimenta da menina que remeta ao

mundo infantil. A cor da saia é "rosa" choque, uma cor socialmente identificada como

feminina, que, numa acepção binária de gênero, representa delicadeza e

sensibilidade. Um colar de argolas, na cor dourada, está pendurado no pescoço, o

que confere um toque de sofisticação à indumentária. No pulso da mão direita,

observa-se um relógio, elemento significativo na vida dos adultos e que também

passa, na atualidade, a fazer parte das preocupações das crianças. O relógio remete

ao tempo cronológico, do trabalho, da vida ocupada pela rotina da produtividade,

bem própria do universo adulto, mas cada vez mais presente na vida das crianças. A

bolsa de mão segue a tonalidade dos sapatos, do colar e do relógio, a cor dourada,

que pode fazer referência à riqueza e ao poder aquisitivo.

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Na primeira pose, a menina segura a bolsa com as duas mãos e vira o ombro

um pouco à direita, mas o seu olhar, apesar de coberto pelos óculos, centra-se

fixamente na lente da câmera, marcando uma postura de decisão, segurança e

autonomia. A segunda pose, com a mão direita segurando a bolsa, a perna

esquerda sobreposta um pouco à direita, o corpo levemente inclinado para trás e

com a mão esquerda indicando o envio de um beijo, carrega o sentido de

sensualidade. Além disso, é a pose em que a menina se dirige mais diretamente ao

público da rede social.

Na terceira pose, a menina aparece com o lado direito da cintura um pouco

inclinado, a perna direita está quase reta, com o pé mais apoiado no chão, enquanto

que a perna esquerda está mais relaxada e o pé não aparece tão apoiado no chão.

As duas mãos estão sob o queixo e a boca aberta simula um ato de surpresa, de

espanto, e, até mesmo, de provocação.

A resposta para essa questão pode talvez ser encontrada na fluidez das

fronteiras da infância com a vida adulta, e esse ato da criança transitar nessas linhas

divisórias pode vir ao encontro dos interesses da mídia como um todo, em especial,

das redes sociais. A impressão que se tem é que o rompimento dessas fronteiras

pode fazer a menina (criança) atingir a tão desejada beleza, a tão comentada

sedução, mesmo que isso tenha que causar algum tipo de sofrimento. Novaes

(2010) aponta que essa efemeridade, no que se refere à beleza, bem como os

interesses midiáticos que decidem o que é beleza, o que é uma mulher bonita e,

consequentemente, uma menina bonita, fazem do corpo feminino uma arena de luta

e de sofrimento constante.

No dia 8 de julho de 2015, foram registrados nove comentários, sendo oito

comentários de mulheres e um comentário de outro blog, "Crianças Estilosas Artista

(2)". A maior parte dos comentários reporta-se a elogios, como:

"Ela é linda";

"Minha filha ";

"curtem".

Novamente, observa-se que alguns comentários, registrados até o dia 27 de

julho de 2016, vão ao encontro de um padrão de beleza, de uma projeção de uma

"futura filha", vendo, nessa menina, um modelo de infância desejado. Algumas

mulheres se manifestaram assim: "parece com hellena no futuro"; "lívia vai se vestir

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assim kkk"; "A nossa Sophia HAHAHAHA". Já um homem comenta: “Se fosse uma

menina (fulana) kkkk até já imaginaria assim". Há um comentário de uma internauta

que faz uma referência comercial: “Promoção de Roupa Infantil até 60% de desconto

e todos os cliente da Light in The Box, que estejam registrados na Dubli

(www.dubli.com/4347827 ) recebem ainda 11,2% de reembolso ao fazerem as suas

compras habituais.”

Os discursos conferem a essa imagem um protótipo de construção de uma

menina numa futura mulher. O modo como a foto é apresentada, o corpo da menina

investido em signos da mulher intelectualizada e independente refletem discursos do

"outro" como a criança na condição de "vir a ser".

Imagem 6 – Crianças Estilosas (f)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

Na postagem da Imagem 6, até 8 de junho de 2015, havia 102 comentários e

50 compartilhamentos. Na fotografia, divulgada no blog em 20 de maio de 2013, a

menina aparenta descontração e alegria, sorriso e postura desinibidas.

Não se sabe o local no qual essa fotografia foi realizada, mas há um vestígio

de que foi produzida em um estúdio, pois o ângulo da foto está curvado à esquerda.

A imagem apresenta um plano que vai dos joelhos até a cabeça, com detalhe de

que há um corte do plano da imagem acima, na cabeça da criança. O fundo da foto

é uma cortina de cor preta e há um puff na cor branca, porém, a menina está em pé.

Cortinas, puffs e cadeiras são muito usados em estúdios de fotografias. O pano de

fundo da imagem, com cortina preta, simula a noite, o que compõe a discursividade

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da festa e da “balada” – termo muito usado pelos adultos para se referir às festas

noturnas. Temos aí mais uma imagem que carrega a ambiguidade da "menina-

mulher".

A roupa usada pela menina é composta por uma camiseta de manga longa na

cor preta, uma saia de tamanho médio com estampa de pele de onça, a famosa

"saia de oncinha", esse tipo de estampa, que imita peles de animais, tem sido

apropriada pela moda infantil. Mas, há algo que chama a atenção, a saia está sobre

a blusa preta e numa altura bem acima da cintura, dando a impressão de ser uma

saia curta. Há, dessa forma, um apelo sedutor, que talvez possa ser parte de uma

estratégia da equipe ou dos responsáveis por essa fotografia. A corrente usada pela

menina é de cor amarelo dourado.

A blusa preta insinua algo mais sóbrio, vestimenta mais adequada para a

noite. O que observamos em nossas vivências é que muitas coisas relacionadas à

infância, sejam roupas, sapatos, acessórios e outros produtos são carregados de

cores, nos habituamos culturalmente a fazer referência ao "colorido" associado à

infância e aos seus pertences. Isso se faz muito presente nos ambientes sociais

frequentados pelas crianças.

A saia com estampa de pele de onça remete-nos a algo ou a alguma coisa

selvagem, como, por exemplo, uma onça, difícil de domar, perigosa e, ao mesmo

tempo, atraente e fascinante. A estampa de pele de onça remete ao poder de

sedução, aparecendo, nessa imagem, como marca da mulher no corpo da menina.

A corrente usada no pescoço, sendo de ouro ou bijuteria, vem representar um valor

material. A cor da corrente em amarelo dourado com pedras brancas na frente pode

simbolizar riqueza, poder, status, sedução e beleza.

A menina segura um objeto cor-de-rosa, que parece ser um telefone celular,

elemento este que a conecta às novas tecnologias, conferindo-lhe um sentido de

menina “bem informada”, “descolada” e “antenada” ao que acontece no mundo

virtual.

Novamente, os cabelos cacheados chamam a atenção na imagem. Esses

cabelos parecem enunciar vozes de resistência a outros discursos de padrão de

beleza. Os cachos da menina, assim como em outras imagens, mostram a não

submissão à padronização dos cabelos lisos. Por outro lado, podemos considerar

como exibir orgulhosamente os cabelos cacheados ou crespos, como beleza negra,

tem sido apropriado pelos discursos de beleza e sedução, como um signo de

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"estilo", ou seja, ter cabelos cacheados ou crespos passou a estar associado à

beleza.

Quantas vozes possivelmente estão presentes nessa foto ao olharmos o

corpo da criança, suas roupas e calçados, os acessórios e artefatos por ela

utilizados, a iluminação na fotografia, o posicionamento da câmera, o cenário? O

que tudo isso tem a nos dizer? Cabe uma a reflexão a respeito das vozes e

discursos que atravessam esse texto imagético.

Stam (1992, p.73) esclarece que: "na obra de Bakhtin a palavra "dialogismo"

vai incorporando sentidos e conotações, sem nunca perder a ideia central de relação

entre o enunciado e outros enunciados".

Ao observamos os comentários, no dia 9 de julho de 2015, deparamo-nos

com nove, dos quais, oito são de mulheres. Dentre estes, destacamos:

"que linda", "MINHA CARA KKKKKK";

"morena linda com Deus na frente e com esta cor linda e este sorriso vc

chega aonde Deus, quiser a paz do Senhor linda de Jesus".

Nesse dia, identificamos apenas um comentário de homem que convida o/a

internauta para visitar uma página de moda infantil:

"para vc q tem criança... vale a pena curtir essa página e compartilhar com

seus amigos https://www.facebook.com/lainalacos?fref=ts&hc_location=ufi".

Apareceu, também, outro comentário de mulher, que chamou a nossa

atenção: "MINHA CARA KKKKKK", que é uma gíria muito usada atualmente quando

alguém gosta ou se interessa por algo ou por outra/s pessoa/s. No caso dessa

imagem, provavelmente a internauta quis dizer que a vestimenta da menina a

agradou, a ponto de com ela se identificar, expondo a preocupação da internauta

com um modelo ideal de beleza e juventude, difundido e sustentado pelas mídias

digitais. O que realmente está em jogo é seguir uma ideologia da beleza que está

posta pelas mídias digitais, “uma vez que a beleza não mais é vista como dom

natural, mas como mercadoria ao alcance de todos. (PEREIRA; PAULA; SANTOS,

2009, p. 98). Isso nos faz pensar que a expressão "minha cara" vai ao encontro das

representatividades dos padrões estéticos, são signos e, portanto, construções

sociais.

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Imagem 7 – Crianças Estilosas (g)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

Essa é uma fotografia de uma criança de cor branca (Imagem 7) de cabelos

lisos, castanhos, que foi postada em 3 de abri l de 2013. Apresentou 94 curtidas e 67

compartilhamentos no dia 8 de junho de 2015. Uma frase comenta que a menina

está linda e convida os visitantes do blog a conhecer a sua própria página:

https://www.facebook.com/pages/Mickaely-Do-Prado/202714649814204.

Pela produção da imagem, pelos procedimentos usados para recortar e colar

três imagens, compondo, dessa forma, uma única, bem como pelas poses, cenário

da foto e produção visual apresentados, há indícios de que essa fotografia tenha

sido produzida profissionalmente, em um estúdio fotográfico, por exemplo.

Nas imagens que ficam à esquerda e à direita, a criança aparece trajando

uma blusa regata de cor branca, com uma gravata borboleta de cor vermelha com

estampas de bolinhas de cor branca, uma saia com babados, o que remete também

à de colegial e, portanto, à infância.

Na imagem central, a menina veste uma roupa de gola rolê cor-de-rosa. Não

há como saber que tipo de vestimenta usa porque a imagem possui um ângulo mais

fechado, em plano americano. Ela usa uma presilha no cabelo, do lado esquerdo e

brincos nas orelhas, batom na cor rosa, com brilho, e uma maquiagem leve no rosto.

Na imagem à direita, a menina aparece sorridente num plano mais fechado,

da cintura à cabeça. Ela está com as duas mãos segurando a cintura e os cabelos

caídos sobre o ombro esquerdo. A pose estampada nessa imagem remete a uma

menina decidida (mãos na cintura) e, ao mesmo tempo, descontraída (cabelos sobre

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os ombros). O sorriso nos sugere a intenção ao diálogo com o/a internauta, bem

como alegria e otimismo.

A pose central mostra a menina sorridente, com a mão esquerda sustentando

o queixo e o dedo indicador apoiando o lado esquerdo do rosto. Essa imagem pode

significar uma menina observadora, atenta aos fatos, pensativa ou concentrada.

Já a pose da terceira imagem exibe a criança num plano mais aberto, da

cabeça até abaixo dos joelhos, com as mãos na cintura e o corpo um pouco

inclinado à direita. Confiança em si própria e descontração podem ser atributos em

destaque nessa pose da menina.

A saia, vermelha com bolinhas brancas, em conjunto com a gravata borboleta,

está muita associada a uma imagem tradicional da menina. As bolinhas brancas na

saia simbolizam algo mais delicado, mais lúdico e divertido relacionado às

brincadeiras de criança.

A gravata borboleta reporta-se à delicadeza, a algo singelo e faz menção ao

"laço para cabelos", acessório muito usado por meninas. Faz referências, ao mesmo

tempo, a momentos de descontração ao ar livre, vivenciados por muitas crianças,

seja brincando no quintal de casa, na praça, num sítio ou em outro espaço aberto.

As poses feitas pela menina revelam o discurso do adulto sobre o corpo da

criança, seja pelas mãos na cintura, os olhares para a câmera ou a imagem com o

plano fechado no rosto. Essa última pode ser a pose que mais revela discursos do

adulto em relação a uma infância imaginada. É uma fotografia que traz alguns

elementos de imagens antigas de meninas, dos anos 20 aos anos 50 do século XX,

o que reporta a uma representação higienizada da infância.

A fotografia não é reflexo do real nem ilustração, ela é datada de uma historicidade própria, que considera novas tecnologias, formas de conceber e encarar o social. O fotógrafo, por seu turno, não é mero espectador do objeto fotografado, ele age e interfere, criando novas realidades. (BRITES, 2000, p. 172).

Foram sete comentários, todos provenientes de mulheres, alguns com

idealização de adultos acerca da imagem da menina. Os comentários foram

registrados até o dia 14 de julho de 2015. Entre eles:

"Sempre linda!!";

"Linda aparece uma bonequinha";

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"Pérola já grandinha, vai ser igualzinha, rsrsrsrsrs".

Observando a página que a menina tem no Facebook, nota-se que se trata de

uma modelo profissional, que participa de campanhas publicitárias, pois há

postagens de fotos e informações sobre as suas atividades em agências e

campanhas publicitárias, desfiles de moda e outros eventos.

É uma menina modelo, que atua no mercado da moda, transitando e se

constituindo como sujeito num mundo no qual a infância tem as suas imagens

produzidas e reproduzidas, cada vez mais, atreladas às de um corpo belo e sensual.

Imagem 8 – Crianças Estilosas (h)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

Parece controvertido o enunciado da Imagem 8, que apresenta dicas sobre

os cuidados no procedimento de maquiagem para crianças : “Boa tarde, se for

maquiar uma criança tenha cuida porque maquiagens podem causar alergias. Use

tons leves, nada pesado.” Isso nos faz pensar sobre qual ou quais motivos levariam

uma criança a se maquiar ou ser maquiada. Bakhtin (2011, p. 272) nos diz que:

"Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros

enunciados.”

A foto foi publicada no dia 11 de abril de 2013. Até o dia 8 de junho de 2015,

estavam registradas 80 curtidas e 166 compartilhamentos. A imagem não identifica o

nome da criança e nem a sua origem. É uma foto que se assemelha muito com uma

peça publicitária, apesar de não encontrarmos nenhuma identificação plausível

referente a isto. A menina retratada é de cor branca, cabelos lisos castanhos e

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escuros e olhos claros. A criança no ato de se maquiar é o foco da foto. A menina se

embeleza por completo: face e cabelos, já que estes aparecem com bobes na parte

superior. Trata-se de uma situação tipicamente vivida por mulheres adultas, mas

que, como a foto mostra, pode estar presente também nas vidas de meninas hoje.

Diante de um pequeno espelho, deparamo-nos com elementos que remetem ao

embelezamento: bobes e batom. Na face da menina, observamos as marcas desse

investimento: cabelos em processo de penteado e bochechas rosadas.

O ato de se maquiar, além de fazer parte do cotidiano do embelezamento

entre as meninas, pode também, juntamente com outros procedimentos de estética,

ser destaque em atividades como festas de aniversários, que, algumas vezes,

ocorrem em salões de beleza. O batom é um cosmético muito usado para colorir e

realçar os lábios, é amplamente divulgado e muito presente em nossa cultura. O ato

da maquiagem feminina é amplamente visto em propagandas de TV, na internet, no

cinema, nas artes e também em imagens de meninas, que são visualizadas em

redes sociais.

Os discursos dessa fotografia trazem a maquiagem no rosto, que remete ao

embelezamento da ambígua “menina-mulher”, que tem no espelho seu parceiro

cotidiano. Dos espelhos dos contos de fadas, da convivência diária com os espelhos

no ambiente doméstico até os espelhos digitais das redes sociais, temos como uma

das experiências da infância a produção do corpo, com vistas ao embelezamento

como prática cotidiana para alcançar o reconhecimento dos olhares que buscam os

espelhos sociais. O que fica em evidência é o fato de que a imagem foi usada para

falar de maquiagem, pois o que importa realmente, para essa página, é trazer

imagens que corroboram com a identidade de ser "estilosa". São, mais uma vez,

elementos da sedução reproduzindo discursos de adultos sobre um ideário de

menina-futura-mulher, que destacam, como atributos femininos de beleza, a

maquiagem e o cuidado com os cabelos.

Constatamos que até o dia 22 de julho de 2015 estavam associados a essa

imagem oito comentários, sendo cinco de mulheres, dois de homens e um

comentário de uma página ou blog. Entre os comentários observados, destacamos:

"para vc que tem criança... vale a pena curtir essa página e compartilhar

com seus amigos";

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"Gente... curtam minha página? É chamada MODA INFANTIL... uma

página voltada pra MODA de crianças e bebês, assim como dicas pra as mamães e

amantes de criança! Por favor, deem uma forcinha, é nova mas posto todo dia!";

"Um dermatologista deu a dica no www.corujices.com para usar protetor

solar antes de maquiar crianças porque protege mais a pele, funciona como um

primer, orientar as crianças a usarem apenas em festas, nada de todo dia pra ir à

escola, e nunca usar rímel e lápis nos olhos. Com meninas tão vaidosas, não

podemos descuidar, não é? Beijos em todas as mães de meninas!"

O segundo comentário – que encontramos, também, nos comentários da

Imagem 3 – solicita aos internautas que acessem e curtam outra página, que trata

de moda para crianças. Podemos entender que isso é uma forma de publicidade,

tendo em vista que a infância mobiliza mercados. Ter criança, ter filha/o é uma

identidade que pode constituir um nicho de mercado. Nota-se, pelos comentários

dos/as internautas, que tudo é dirigido a este nicho, que abarca a infância.

Como um dos alvos privilegiados da sociedade de consumo, a criança, como já vimos, movimenta poderosas remessas de capital pelo mundo afora, sendo o pivô da criação de mercados exclusivamente dedicados a ela. Do progama de TV ao macarrão, há um mercado cada vez mais vasto e multifacético, que também se configura como rede. Basta aparecer um animado desenho de TV para que uma série de produtos esteja disponível no mercado. (SALGADO, 2005, p. 215-216).

Os comentários atuam, então, como porta vozes do mercado, de seus

produtos e respectivamente de seus signos e simbolismos. Essas vozes sociais

ganham ecos de várias maneiras, tais como as divulgações e propagandas de

páginas e produtos dedicados, teoricamente, à infância, que são destaque no

espaço de "Crianças Estilosas – Blog Pessoal".

No dia 27 de julho de 2016, houve novas observações, desta vez, nos

comentários dos compartilhamentos, emitidos por mulheres: "eu kkkkkkkkkk";

"Quando eu era criança ..criança ..Eu era assim ..eu era assim !!!!"; "olha sua fiilha

(fulana)!!!!!!"; "Hoje é dia de se produzir meninaas". Há alguns comentários nos

compartilhamentos, que fazem observações à maquiagem: "que menina fofa já tem

vaidade desde a infância."; "Sr desse tamanho já e assim imagina com 15 RSRS".

Esses comentários mostram muitos caminhos, são vozes diferentes que

interpelam o discurso da imagem da menina no momento de se maquiar, no ato de

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embelezamento. O que provavelmente interessa nesse discurso é estar bela diante

do espelho digital, "vemos o reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós

mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo,

estamos diante e não dentro do espelho". (BAKHTIN, 2011, p. 30).

De acordo com a ótica bakhtiniana, nós só podemos ver o nosso reflexo

porque permanecemos dentro de nosso interior, não podemos ver a nós mesmos

em nossas imagens externas. Por maior que seja o espelho, por mais avançadas

que sejam as tecnologias digitais, estas jamais conseguirão abarcar todas as

imagens externas dos nossos "eus".

As inúmeras produções de imagens de pessoas que dominam as mídias

digitais, bem como as redes sociais podem revelar muitas coisas dessas fotografias.

Os discursos de beleza podem refletir no corpo, nas roupas, nos sapatos, nos

acessórios da moda, sorrisos, poses, caras, bocas e olhares, mas, para esse reflexo

no espelho digital, o que está em jogo é a aparência das pessoas, portanto, sempre

ficará algo que não será capturado pelas lentes das câmeras e , assim, pelo olhar do

outro. Parece irônico, mas promover e valorizar uma imagem externa das pessoas,

de forma um tanto ilusória, vem ao encontro dos interesses do consumo. Contudo,

não se pode perder de vista que, possivelmente , as relações interpessoais na

contemporaneidade estejam num momento de contemplação do "eu", de

contemplação "diante o espelho".

Imagem 9 – Crianças Estilosas (i)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

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"Gatinha" (Imagem 09) - é dessa forma que a criança exibida nessa fotografia

é apresentada na página, que vem também com outras informações referentes à

sua produção. Essa postagem aconteceu no dia 22 de junho de 2013 e, segundo

constatações feitas no dia 8 de junho de 2015, a fotografia teve até então 40 curtidas

e 13 compartilhamentos.

Já no início, o enunciado da postagem dessa imagem convida o/a visitante da

página a conhecer outra página: "Boa noite!! Essa linda gatinha é Kammilly Jahel,

colaboração de nossa amiga Bianca Jahel. — com para vc q tem criança, vale a

pena curtir essa pagina e compartilhar com seus amigos

https://www.facebook.com/lainalacos?fref=ts”. Além de apresentar a imagem da

menina, o espaço da postagem da fotografia é utilizado para divulgar outros

endereços eletrônicos, supostamente dedicados à infância. Essa estratégia se

assemelha a uma rede de contatos, na qual todos (supõe-se, adultos) que enviam

imagens aproveitam para fazer publicidade de outra página, produtos, campanhas

ou algo parecido.

O tratamento de "gatinha" para uma criança leva-nos a pensar sobre quais

discursos envolvem essa palavra, quais as vozes sociais que se entrecruzam nessa

forma de se referir à menina. Como afirma Bakhtin, há um discurso dito e não dito

em relação a essa palavra, uma vez que "gatinha" é uma expressão que significa

"menina bonita", "mulher bonita", "juventude". A expressão "gatinha" possivelmente

caminha pelo campo da sensualidade, da erotização, mas também pode ter perdido

um pouco desse valor e ter sido ressignificada como uma expressão de afeto ou

apenas de admiração. "Gatinha" pode, portanto, significar ter um corpo considerado

bonito pelas convenções da sociedade contemporânea, levando-se em conta que "o

discurso não é apenas o conteúdo ostensivo, aquilo que é dito, mas também o

suposto, tudo o que se deixa por dizer. É a entonação que comunica o suposto ou

não dito, conferido às simples palavras momentum histórico e singularidade."

(STAM, 1992, p. 28).

A imagem em análise trata de uma menina de cor branca, cabelos lisos e

longos, castanhos, com mechas loiras, de olhos azuis, emoldurando um sorriso,

muito bem captado pela lente da câmera. O internauta pode perceber que a imagem

foi clicada de um ângulo um pouco mais para o lado direito. A foto apresenta uma

imagem que vai da cintura até o alto da cabeça, os braços da menina estão um

pouco abertos e o grande destaque é para o seu rosto.

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A menina usa uma camiseta na cor predominantemente rosa, com gola "V",

um artifício usado para deixar o corpo mais esguio, parecer ser mais alto do que é.

O penteado dos cabelos lisos ondulados só deixa à mostra uma orelha, realçada por

um brinco pequeno redondo, semelhante a uma pérola, parecendo ser uma joia.

O penteado já é bem conhecido pelas mulheres: cabelos penteados e jogados

para o lado direito da cabeça, a ponto de quase cobrir o olho direito. Esse detalhe

pode sugerir algo mais próximo de uma pessoa adulta, de uma mulher. Há algumas

mechas louras nos cabelos da frente em contraste com o restante do cabelo, o que

levanta a hipótese de estas não serem da cor natural, e sim manipuladas com

produtos químicos (luzes/pintura em cabelos). Os cabelos loiros ou com algum tipo

de pintura que se reporta a essa tonalidade, ainda são muito valorizados e têm muito

prestígio no Brasil. Representam a influência europeia, fazem menção às fadas e

princesas das histórias infantis, representam um padrão de beleza altamente

massificado pelo cinema, pela televisão e, agora, pelas redes sociais, na internet.

O sorriso chama a atenção pelo brilho do batom nos lábios. A produção

prioriza o rosto da criança. Uma prova disso é a luz sobre este, enquanto todo o

restante da imagem se encontra um pouco mais escuro. Percebe-se a intenção de

explorar mais o sorriso e o olhar da menina, tê-los como sedutores atributos a

conquistar os visitantes da página, de modo que a menina protagonista da imagem

seja admirada pelos outros e conquiste curtidas, compartilhamentos e comentários.

Ocorre que nossa própria relação com a imagem externa não é de índole imediatamente estética, mas diz respeito apenas ao seu eventual efeito sobre os outros – observadores imediatos –, isto é, nós a avaliamos não para nós mesmos, mas para os outros e através dos outros. (BAKHTIN, 2011, p. 31)

Essa afirmação de Bakhtin (2011) simboliza o ápice da nossa relação com a

imagem externa e, especialmente, da infância contemporânea. Antes de estampar

páginas como "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", as meninas se avaliam para os

outros e essa avaliação consiste em suas aparências, desde um corpo belo e

atraente, roupas, sapatos, acessórios, que, de alguma forma, representam signos da

moda e as aproximam da vida adulta. Para a menina, todo esse processo vai desde

a preparação para ficar bonita na fotografia, segue a postagem na página "Crianças

Estilosas – Crianças Esti losas", e culmina na avaliação por parte do auditório de

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internautas, que resulta em curtidas, comentários, compartilhamentos em torno da

imagem da menina.

Hoje a criança também vive uma relação com a sua própria imagem, muito

semelhante à vivida pelo adulto. Avaliar para o outro e através do outro a sua

imagem externa implica, para a infância, a necessidade de sentir e experimentar

outras formas de se ver representada.

Salgado et al (2015) destacam que, na vida real, as crianças interagem no dia

a dia com os meios de comunicação e as mídias digitais, transformando em

experiências próprias as formas de expressão e produtos culturais que lhes são

apresentados. Nesse entrelaçamento da infância com as comunicações e a mídia, a

criança quebra alguns paradigmas da inocência e convida a família e a sociedade a

refletir sobre quem são, como agem e o que fazem na contemporaneidade.

Até o dia 28 de julho de 2015, foram postados cinco comentários, sendo três

comentários de mulheres:

"Kammilly tú és uma super gatinha. bjinhosss".

Um comentário masculino:

"Amor olha filha Nanada Paula Da Silva Azevedo".

E, por fim, um comentário de outra página ou blog:

"https://www.facebook.com/photo.php?fbid=610595105628963&set=a.61059003229

6137.1073741826.100000354370877&type=1&theater&hc_location=ufi."

Essa imagem nos remete ao que Le Breton (2013) analisa como o marco do

individualismo ocidental, a invenção do rosto. Aqui, temos um rosto, considerado,

pelos padrões sociais e pelo discurso do outro como um "belo rosto". É nesse ponto

que a menina dessa foto se destaca, pela preocupação da produção dessa imagem

em realçar sua "singularidade facial", que também pode ser entendida como fronteira

em relação a outras pessoas.

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Imagem 10 – Crianças Estilosas (j)

Fonte: <https://www.facebook.com/criancasestilosas1>

"Praia, sol... e uma linda sereia aproveitando um dia maravilhoso!" Temos aí o

enunciado da Imagem 10, na qual nos é apresentada uma menina de pele clara,

cabelos pretos, vestida com um biquíni estampando nas cores laranja, branca e

amarela, usando um par de óculos escuros grandes numa pose sentada sobre uma

toalha em uma praia. Até o dia 8 de junho de 2015, houve dois compartilhamentos e

39 curtidas. O curioso dessa postagem é o enunciado que a acompanha, que traz a

sereia como identidade da menina. Esse enunciado é atravessado por muitas vozes,

que dialogam com o imaginário da nossa cultura popular ao fazer uso de um mito

folclórico (a sereia) e associá-lo à criança. A "sereia7" é uma personagem mitológica

muito presente em nossas fantasias, que vem desde as histórias infantis mais

remotas até as mais atuais. As sereias são, muitas vezes, representadas como

seres belos, que se caracterizam por seu poder de sedução e encantamento.

As figuras das sereias também seduzem as crianças, seja por meio do

cinema, da televisão, da internet, das redes sociais ou outros veículos de

comunicação. As histórias ou produtos direcionados para a infância envolvendo

sereias como personagens são muito exploradas pela indústria cultural, como por

exemplo o filme "A pequena sereia", dos estúdios Disney. No enunciado dessa foto,

a palavra "sereia" tem uma representatividade no Brasil, posto que é um signo muito

7 Sereia (do grego antigo: Σειρῆνας) é um ser mitológico, parte mulher e parte peixe (ou pássaro,

segundo vários escritores e poetas antigos). É provável que o mito tenha tido origem em relatos da existência de animais com características próximas daquela que, mais tarde, foram classificados como sirénios. As sereias representam na cultura contemporânea o sexo e a sensualidade.

Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Sereia Pesquisado em 19/09/2015.

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associado às mulheres bonitas e com corpos esculturais, propagado em eventos

culturais, artísticos e midiáticos. Então temos, aí, uma criança, mais propriamente

dita, uma menina, usando um biquíni em uma praia, o que nos faz pensar que uma

menina ou uma mulher adulta, que não seja bonita fisicamente, que esteja com o

corpo acima do peso ideal, não se enquadraria na personificação de uma "sereia".

O biquíni usado pela menina é uma peça que por si só já evidencia o corpo

feminino. A tonalidade marcante das cores pode ser observada, ainda, nas unhas

pintadas de azul numa tonalidade forte, tanto as cores do biquíni quanto as das

unhas podem ser trabalhadas pela mídia e pelo mercado como cores da estação do

verão, de sol, de período de férias, de descontração, de clima de praia ou de piscina.

Os óculos escuros, demasiadamente grandes, remetem a um forte elemento

do universo adulto. Os óculos grandes auxiliam na criação de uma imagem da

criança como uma mulher usando biquíni ao tomar banho de sol na praia. Há dois

objetos icônicos nessa fotografia: dois pequenos baldes de plástico, nas cores roxa

e rosa, objetos estes muito uti lizados por crianças em suas brincadeiras com areia e

água em praias. Sua presença na cena não nos deixa esquecer da menina-criança.

Os baldes aparecem, portanto, como enunciados que remetem ao brincar da

criança, atividade emblemática da infância em sua tradição secular.

Ao todo, oito pessoas ou outras páginas comentaram essa imagem. Esses

dados foram levantados no dia 24 de julho de 2015. Dessa vez, os homens são

maioria, cinco no total, enquanto três são mulheres. Quase todos os comentários

são de convites aos internautas para acessarem outras páginas, outros endereços

eletrônicos. Vejamos alguns comentários:

"CURTAM ESSA FOTO POR FAVOR!

https://www.facebook.com/.../a.621659.../621673397943836/...";

"https://www.facebook.com/photo.php?fbid=460724010735070&set=a.3624

89300558542.1073741826.100003924249473&type=1&hc_location=ufi Boa noite,

minha sobrinha linda está participando de uma votação para ganhar um book, quem

puder curtir a foto dela eu agradeço!..."

Essa imagem também chama muito a atenção pelos comentários, que fazem

convite ou publicidade aos internautas a visitarem outras páginas, com conteúdos,

que vão desde um concurso de fotografia, realizado por empresa comercial, até

concurso com imagem de crianças, associado a campanhas de supermercado.

Esses concursos envolvem o apelo aos internautas para curtir imagens de crianças

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em outras produções nas redes sociais. Usos da linguagem e do forte simbolismo

que remete à infância por adultos.

Um comentário, feito por um homem no dia 9 de janeiro de 2016, não passa

despercebido: "Quero chupar a vagina dela". Constata-se que, até o dia 27 de julho

de 2016, o comentário continuava presente na área de comentários da imagem da

menina, o que nos faz pensar que o/s responsável/eis pela página, até aquela data,

nunca excluíram essa mensagem. Por que uma página que se apresenta como

endereçada ao público infantil mantém um comentário desse tipo? O que significam

essa mensagem e o descaso de quem gerencia a página em relação a esse

comentário e à imagem da menina? A busca por respostas se deparam com

barreiras ocultas, bem específicas no campo da internet. Essa página, na verdade,

não tem rosto, há um endereço para contato ou envio de fotografias para postagens,

e nada mais. Não se sabe quem realmente alimenta essa página. Qualquer pessoa

pode abrir uma página com essa temática, não lhe é exigido ética, respeito e nem

compromisso com a legislação que defende os direitos da infância. Além disso, fica

claro que esses direitos não são o que interessa os/as administradores/as da

página, posto que suas metas estão voltadas para o número de acessos de

internautas, movimento pelo mercado e pelo consumo. Sob a ótica do consumo, o

corpo da criança é apenas mais uma mercadoria exposta nas vitrines, não havendo

espaços para o debate sobre seus direitos e a violação de sua integridade física,

psíquica e social. É, por essas razões, que o comentário machista e violento do

internauta, que se apresenta como homem que toma o corpo da menina como

objeto de consumo ao seu bel prazer, não causa polêmicas, protestos, denúncias e

nenhuma outra ação contestatória. É inadmissível e constrangedor observar como

postagens dessa natureza não causam tais reações. Quem mais sofre com esta

impunidade são as mulheres ou, no caso desta página, as meninas, muitas vezes

apontadas como culpadas ou causadoras desse tipo de comportamento masculino.

Apenas uma mulher levanta um questionamento, ao postar uma reclamação relativa

ao comentário: "Que homem idiota é esse bani esse estrupador de uma figa só pode

ter problema". Essa mensagem foi postada no dia 28 de janeiro de 2016, e continua

publicada após a observação no dia 30 de julho de 2016.

Entendemos ser, portanto, a educação um dos campos privilegiados para que

esses debates aconteçam como forma de desvelar e discutir os discursos ambíguos,

que corroboram para a cultura da pedofilização, como muito bem analisa Felipe

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(2012), na qual, a criança, por um lado, precisa ser preservada na sua inocência,

perpetuando o discurso secular da moralização da infância, e, por outro,

dessacralizada ao ter seu corpo sensualizado e exibido nas vitrines como

mercadoria altamente rentável. Para este último discurso, tudo vale desde que se

transforme em produto e possa ser comercializado, inclusive a violação dos

princípios mais basilares do ideário da infância, dentre estes, a sua proteção.

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CONSIDERAÇÕES INACABADAS

Foi um grande desafio embrenhar-me pelo campo dos estudos da infância

contemporânea e refletir sobre o lugar social da criança, especificamente das

meninas, no contexto das redes sociais online. É impressionante notar o quanto os

discursos para a infância são atravessados por outros discursos, e que muitos

desses discursos que circulam na internet não são originalmente produzidos pelas

próprias crianças. A infância passa por um momento de protagonismo na internet,

demonstra desenvoltura, opiniões próprias e atitudes. Porém, observa-se, em

páginas, como "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", o quanto o discurso do adulto

interpela a imagem da criança, de modo que a infância ainda tem suas imagens e

representações muito atreladas aos modos como os adultos concebem as crianças,

fortemente pautados em interesses políticos e econômicos. Essa página reflete o

interesse pelo consumo, pelo mercado, pelos anúncios e propagandas. Isto posto, é

fundamental problematizar quem realmente lucra com a manutenção dessa página.

Essa pesquisa aponta que a criança ainda não pode ser. As crianças, que

protagonizam essas imagens, parecem ser as grandes estrelas, enquanto, na

verdade, são tidas como potenciais consumidoras, e que, por meio de seus

familiares ou responsáveis, podem adquirir, além dos produtos, um modo de ser e

de se apresentar ao outro.

A fim de investigar e melhor entender esse fenômeno, que acontece com a

infância contemporânea, busca-se compreender os discursos a partir dos conceitos

de Mikhail Bakhtin: enunciado, dialogismo e polifonia. É por meio desses conceitos

que são produzidos conhecimentos e reflexões sobre os discursos de beleza e

sedução em imagens de meninas, postadas "por outras pessoas", na página

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook. Dessa forma, podemos

problematizar a exposição do corpo de crianças, pelo viés imagético nas redes

sociais online.

Le Breton (2013) destaca-se, neste trabalho, como outro referencial teórico

importante, cujos estudos sobre o corpo humano apontam que, na Idade Média, o

corpo é tido como algo ligado ao sagrado, que não pode ser tocado, no que diz

respeito à investigação científica. O corpo era tido como uma extensão do "divino",

do "imaculado". Contudo, a partir dos séculos XVI e XVII, tem início, na Europa, uma

grande mudança na relação do homem com o seu próprio corpo : é a definição

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moderna do corpo. O homem rompe consigo mesmo, é separado de seu próprio

corpo. Com isso, corpos passam por dissecações para serem estudados pela

humanidade. Nasce o individualismo ocidental, que tem, no rosto humano, seu

símbolo maior. E o que dizer sobre a imagem, sobre fotografias de pessoas?

A imagem do corpo é a representação que o sujeito faz de seu corpo; a maneira pela qual ele aparece mais ou menos conscientemente a partir de um contexto social e cultural particularizado por sua história pessoal. (LE BRETON, 2013, p.230-231).

Vivemos hoje um momento no qual a nossa imagem, seja por fotografias ou

vídeos, rompe conosco a cada instante, talvez uma mudança tão ou mais

revolucionária pela qual passou o corpo humano, retratada por Le Breton (2013) a

partir do século XVI. Atualmente, nossas imagens sofrem uma espécie de

"dissecções digitais", nossas próprias imagens nos são capturadas, nos são

retiradas a todo instante, e podem passar por inúmeros tipos de alterações técnicas

(cortes, montagens etc) a qualquer momento.

A sensação da perda de controle da própria imagem e do seu discurso é um fenômeno que, se inibe e ameaça, também seduz. Seduz porque no centro da consciência de sermos sujeitos efêmeros existe o desejo de permanência da nossa imagem, da nossa presença no mundo, experiência que agora é recriada pela técnica. De fato, o sujeito que se coloca disponível para uma câmera sabe que a sua imagem ao descolar-se de si ganha uma existência própria e poderá, portanto, ser retomada por outras pessoas desencadeando interpretações infinitas. (FREITAS; SOUZA; KRAMER, 2003, p. 85-86).

Tempos atrás, tínhamos mais controle sobre nossas imagens, que ficavam

organizadas nos álbuns de fotografias, sob o nosso domínio, quase sempre em

nossas casas. Quando quiséssemos avivar nossa memória ou quando alguém

quisesse observar nossas imagens, lá estavam os álbuns, sempre bem guardados,

aos cuidados dos familiares. Geralmente, era necessário conversar e ter a

autorização para apreciar as fotografias de outras pessoas, que ficavam quase

sempre restritas aos álbuns de família, era algo mais particular. Os álbuns de

fotografias representavam um controle que, utopicamente, tínhamos sobre nossas

imagens, e que se dissolveu com o crescimento das mídias digitais e sua influência

nas novas formas das pessoas se relacionarem. Hoje a realidade é bem diferente,

as fotografias são comparti lhadas com outras pessoas, como o ato de postar uma

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foto em uma rede social, como, por exemplo, as imagens de meninas, que foram

postadas na página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook.

Essas imagens, assim como outras, podem ganhar existência própria através

de reproduções, cópias, charges, imitações que podem ser (re)produzidas pelos

internautas, por qualquer pessoa, realidade essa que já chegou à infância. Essas

infinitas interpretações imagéticas não ficam restritas às redes sociais, vão muito

além disso, transitam pelas mídias digitais e têm reflexo no convívio social das

pessoas. Outro exemplo muito conhecido dessa possível perda do controle das

imagens e seus respectivos discursos são os "memes", que, segundo Recuero

(2014), estão relacionados à replicação de ideias, informações e de que estas se

mantenham quando são transmitidas de pessoa para pessoa. Os memes têm vários

formatos, entre eles, jogos, vídeos, imagens etc.

Consubstanciados na análise das imagens, observamos muitos signos, e, de

acordo com a teoria bakhtiniana, temos, nessas imagens de meninas, um fragmento

da realidade contemporânea da infância. Possivelmente, é quase irreversível

equilibrar a importância e o status que a "beleza" alcançou na vida das pessoas, e,

no caso das crianças, o fato requer ainda mais atenção.

Os espelhos mágicos contemporâneos nos revelam uma infância que se

encontra também em pleno estágio imagético, sob os flashs e os cliques das lentes

fotográficas, por meio de variados tipos de mídias, entre eles, as máquinas

fotográficas, computadores e os telefones celulares. Chegamos, hoje, a uma

dimensão maior na relação que as pessoas têm com a imagem de si próprias. Para

chegarmos a esse estágio, foi uma longa caminhada, exemplo disso eram os

retratos individuais, que eram feitos por meio da pintura no século XV.

O retrato se torna um quadro por si só, suporte de uma memória, de uma celebração pessoal sem outra justificação. A preocupação com o retrato, e, portanto, essencialmente com o rosto, tomará uma importância crescente ao longo dos séculos (a fotografia substituindo a pintura: assim a quantidade de documentos de identidade, cada qual adornado por uma foto, dos quais dispomos hoje. A individuação pelo corpo se afinando aqui pela individuação pelo rosto). (LE BRETON, 2013, p. 65-66).

Seguir um modelo de beleza, segundo um padrão de estética que possa vir a

ser proposto por uma sociedade, por uma indústria do consumo, ancorada na mídia,

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entre muitos meios, as redes sociais na internet, já é uma tarefa árdua para os

adultos, imaginemos essa dinâmica com as crianças.

A sociedade se modifica, os modos de ser mudam, bem como as maneiras

das pessoas se relacionarem. Dentro dessa nova dinâmica se encontram as

crianças, vivenciando, de forma intensa, essas transformações que as modernas

tecnologias estão promovendo no novo desenho das infâncias contemporâneas.

As infâncias estão em processo constante de reconfiguração, de acordo com o interesse e as necessidades de cada sociedade. Estão em diferentes formas de constituição de ser criança. As atuais e múltiplas configurações familiares, pedagogias culturais, as tecnologias de comunicação e informação são alguns processos que nas sociedades contemporâneas contribuem para a constituição dessas novas e diferentes infâncias. (FELIPE e SANTOS apud FELIPE et al, 2013, p. 18).

A reconfiguração pela qual a infância passa é interpelada pelas redes sociais,

que podem nos mostrar caminhos nos quais as nossas imagens, os nossos corpos

precisam estar em evidência para outras pessoas, tudo passa pelo olhar, pela

aprovação ou não do outro. Provavelmente, é assim que se encontram muitas

crianças, dentre elas, as que são estampadas em imagens nas páginas eletrônicas

como, por exemplo, "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", uma página no Facebook,

uma vitrine virtual, que tem o chamariz da beleza corporal como peça principal em

uma engrenagem meticulosa sob esse formato de pedagogia cultural.

Bakhtin (2011, p. 47-48) destaca que "o corpo não é algo que se baste a si

mesmo, necessita do outro, do seu reconhecimento e da sua atividade formadora.

Só o corpo interior – a carne pesada – é dado ao próximo homem, o corpo exterior é

antedado: ele deve criá-lo com seu ativismo."

Se o corpo precisa do outro para ser visto, há regras a seguir nesse jogo, que

passam por uma padronização de beleza, por corpos bonitos e esculturais, que têm,

ao seu dispor, artefatos e procedimentos para cultivar a tão desejada beleza. São

artefatos e procedimentos que vão desde academias de exercícios físicos, práticas

de esportes, cirurgias plásticas, roupas e sapatos da moda, isso sem se esquecer de

outros procedimentos, dentre eles, os cuidados com os cabelos, com a pele e

embelezamento corporal. O grande drama nessa realidade é a luta quase diária para

não sair dos padrões normativos que se pulverizam em nossa cultura hoje. Em

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tempos tão imagéticos, se tornou um grande desafio ser "diferente" dos modelos de

beleza que aí estão postos.

Novaes (2013, p. 77) lembra-nos que:

Uma vez que a imagem passa a ocupar o lugar do ser, consequentemente, o sujeito passa a ocupar o lugar destinado à alteridade e, dessa forma, sendo o sujeito a própria alteridade, o outro ou qualquer coisa diferente disso é atacado com violência e intolerância.

A página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal" é uma vitrine virtual que, além

de mostrar imagens, nos faz refletir sobre o interesse do mercado, da cultura do

consumo em promover, nas crianças, por meio de discursos, um modo de viver, um

estilo de ser, e isso acontece quando se tenta padronizar um modelo de

subjetividade sob a regência de padrões ocidentais de beleza, do corpo magro e

escultural, da branquitude, adotados também no Brasil.

Todavia, constatamos que algumas das imagens analisadas têm discursos

que se rebelam contra esses padrões de beleza ocidentais europeus, apresentando

meninas negras com cabelos cacheados. Pode-se observar, nessas postagens,

elementos de visibilidade e empoderamento da menina negra brasileira. O que, até

então, era rechaçado, agora recebe a chancela de "estiloso", ou seja, ter cabelos

cacheados ou com penteados e cortes afro tem se configurado como signo de estilo.

É importante ponderar que as imagens analisadas, da página "Crianças

Estilosas – Blog Pessoal", o objeto desta pesquisa, trata de uma infância sob o olhar

do outro, mais precisamente, de uma infância proferida, nomeada e representada

pelo adulto. Não é a criança que se intitula como “estilosa”, e sim o adulto que lhe

confere essa identidade. Essa página é uma pedagogia cultural. Assim como

aconteceu no passado, seja pela família, pela Igreja ou pela escola, "ser esti losa"

pode ser considerado um tipo de categoria de criança, uma categoria de menina.

Sob a ótica do outro (adulto/s), para serem "estilosas", as meninas precisam atender

aos discursos do ideário da beleza e da sedução, discursos esses transformados em

modos de ser, por meio de produtos, acessórios, artefatos produzidos pelo mercado

como passaporte para se ter "estilo", estar na moda, atualizada com as novas

tendências de produtos da indústria cultural.

Grande parte das postagens das imagens, das curtidas, dos comentários e

dos comparti lhamentos é feita por adultos, sendo as mulheres, a maioria. Verifica-se

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uma idealização de um modelo de menina, de um modelo de filha, nos comentários

dos internautas. Essa imagem da menina bonita, segundo os padrões sociais, de

corpo magro, vestido com roupas, sapatos, acessórios da moda, e descolada, é uma

das representações de infância na contemporaneidade a que podemos chamar de

categoria "estilosa". Sob a ótica de Foucault (2013), nota-se que "Crianças Estilosas

– Blog Pessoal" é um espaço de engendramento do corpo, posto que a filosofia e a

arquitetura das prisões, das escolas, tão discutidas por Foucault, são, de certa

forma, vivenciadas nessa página. As medições são registradas nas curtidas, nos

comentários, nos comparti lhamentos, e quem dá vida a esse sistema de vigilância e

punição não é a página em si, é algo mais poderoso, são os discursos de beleza e

sedução, discursos esses produzidos pelo adulto.

Nesse universo imagético de "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", as

categorias que remetem à exotopia bakhtiniana abarcam as diferenças que

permeiam os discursos que interpelam essas imagens: "o outro para mim", "eu para

o outro" e "eu para mim". São essas diferenças que dão o tom nos discursos. Não se

pode esquecer de que a infância que aparece estampada nessa página é publicada

pelo outro, neste caso, o adulto. Há uma percepção, que surge nas análises dessa

página, do ponto de vista exotópico, da teoria bakhtiniana.

Essas diferenças exotópicas fazem uma relação emblemática com o debate

sobre o corpo humano, discutido por Le Breton (2013), para quem este está

relacionado ao ter e não ao ser. É nesse ponto que os discursos de beleza e

sedução se potencializam, o verbo chave dessa reflexão é o "ter". Os discursos

ensinam às meninas por meio dessa diferença: eu-para-mim/menina para ela

mesma = menina estilosa que pode "ter" beleza e sedução se esforçar-se para

perseguir os padrões postos culturalmente. Depois dessa etapa, podemos identificar

a outra diferença: eu-para-o-outro e, finalmente, o outro-para-mim. Apresentam-se,

assim, nas redes sociais, as diferenças exotópicas que se completam e se

relacionam na dinâmica comunicativa nesses espaços virtuais. Esse complexo jogo

exotópico ("o outro para mim", "eu para o outro" e "eu para mim") é atravessado

pelos conceitos de enunciado, dialogismo e polifonia, que , por sua vez, ganham vida

em forma de arquitetura e design na página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal": são

ferramentas do Facebook, entre elas, "curtir, comentar e compartilhar".

Os discursos que transitam na convivência da infância com a página

"Crianças Estilosas – Blog Pessoal" tem origem no outro, sobre um modelo de

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infância fantasiada, que se acredita ser a adequada. É nesse ponto que Felipe

(2012) alerta sobre a "pedofilização da infância", ou seja, discursos com menção ao

consumo de produtos que atendem aos pré-requisitos de corpo saudável, beleza e

de sedução. A educação tem relevância nesse debate, pois é com a atuação da

escola que podemos problematizar essa questão e analisar, junto com a sociedade,

nosso exercício de cidadania e ética quanto ao tema.

[...] se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso cotidianamente, com a nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se transforma e pode ser subvertida; e por fim, se não nos sentirmos conformes com essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para observar, mas, especialmente, para tentar intervir na continuidade dessas desigualdades. (LOURO, 1997, p. 86).

Nesse contexto, coroa-se a educação como a possibilidade de ser um grande

espelho humano, no qual podemos ver refletidas nossas imagens, a partir da

parceria com as modernas tecnologias e das mídias digitais. Torna-se, então, um

grande espaço para problematizar e discutir questões da infância nos campos

virtuais.

Realizar esta pesquisa desvelou um caminho enriquecedor e surpreendente,

trazendo-nos apontamentos que nos dão a possibilidade de conhecer e entender um

pouco dessa seara, da criança nas redes sociais online. É uma experiência que

apenas a pesquisa pode nos oferecer, "a pesquisa em Ciências humanas pode

encontrar na imagem técnica uma forte aliada metodológica para a construção de

um olhar sobre o humano que escape do enquadre das mediações massificadas."

(FREITAS; SOUZA; KRAMER, 2003, p. 93).

Outras imagens que escapam do enquadre das mediações massificadas

podem, certamente, ser encontradas. Esta pesquisa, no entanto, não tem a intenção

de responder a todas as inquietações que surgiram em seu processo, até porque, de

acordo com as premissas do pensamento bakhitiniano, o ser humano está sempre

em transformação. Estar em transformação significa continuidade, novas

oportunidades. Abrem-se as portas para nossas investigações, para novas

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pesquisas. A escola também é o nosso espelho, do mesmo modo que a pesquisa é

o nosso reflexo. Nesta dissertação, se observou que o discurso do outro (adulto)

institui uma imagem de infância, mais uma vez, a imagem da criança, retratada por

meio de discursos do adulto.

O surgimento da fotografia, a partir dos anos 1840/1860 do século XX, trouxe

uma nova forma de linguagem, um jeito peculiar de apresentar a imagem do ser

humano, uma revolução na comunicação para a humanidade, que alterou a

produção e deu nova roupagem à concepção de artes. "O fator novidade visual

assim introduzido desempenha um papel decisivo na perda de influência e logo na

desqualificação da pintura." (COURTINE e VIGARELLO, 2011, p. 542).

A fotografia pode ter se tornado uma das formas de linguagem mais uti lizada

pelas pessoas. Capturar a imagem do corpo humano está presente em vários

campos, seja na segurança, através de câmeras de vigilância; na saúde, com

câmeras que fazem imagens interiores do corpo, que pode ter inúmeras intenções

ou objetivos. Todos os parelhos que registram imagens transformaram-se em novos

olhos para os seres humanos, olhos tecnológicos. “São olhos a mais para verem e

se verem. No fim do século XX, o anel se fechará: o que é visto está constantemente

em espelho e não há quase nada que aconteça que não tenha logo sua imagem”.

(COUTINE e VIGARELLO, 2011, p. 546).

Nesse espelho, temos imagens dos corpos de beleza e corpos de feiura,

segundo os discursos que estabelecem, socialmente, ideários de padrões voltados à

aparência física, e a infância se encontra, igualmente, nesse contexto. Eco (2014, p.

426) explica que hoje acontece uma convivência das representações dos opostos

belo e feio, e isso ocorre porque o "estético" perdeu o seu valor. O que pode ser

considerado belo para uns, pode ser considerado feio para outros. Contudo,

notamos que, na página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal", no Facebook, há, sim,

discursos constituídos por vozes sociais que valorizam e nomeiam padrões sociais e

urbanos às meninas. A beleza, neste caso, reside no corpo magro ou torneado,

jovem, de cabelos longos, pele branca ou clara, de preferência, e bem produzida

visualmente (roupas, sapatos, acessórios, maquiagem, cabelos etc).

A beleza nunca esteve tão em evidência, ocupa o imaginário das pessoas, faz

parte hoje dos sonhos de muitas crianças, muitas meninas, por meio das artes, das

mídias digitais, dos produtos vendidos pelo mercado, da indústria cultural e da

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publicidade, que usam desse tipo de espelho para proferir e pulverizar discursos de

corpos belos.

Mas, e quanto à feiura, o que ela significa de fato? O feio, para Eco (2014,

421), “é relativo aos tempos e às culturas, o inaceitável de ontem pode ser o bem

aceito de amanhã e o que é percebido como feio pode contribuir, em um contexto

adequado, para a beleza do conjunto.”

O feio, a feiura que conhecemos hoje, que se registra nos enunciados, no

dialogismo e na polifonia da página "Crianças Esti losas – Blog Pessoal", pela análise

dos discursos imagéticos, é aquilo que vai contra a filosofia de beleza. Muitos

enunciados afirmam que qualquer menina pode ser bonita, que toda criança pode

“ter beleza", desde que seja uma "criança estilosa". Esse "ter" implica mais que um

corpo magro, pois há toda a questão de roupas, sapatos, acessórios, produtos e

estar atualizada com este mundo, e, desse modo, ser definida e identificada como

"estilosa". Observa-se que a página pesquisada capturou a palavra "estilosa", dando

outras formas e entonações, que vão muito além da imagem. Trata-se da

apropriação de outros conceitos, de signos que abarcam outras searas, além de

corpos e de discursos de beleza e sedução, o que resulta num modo de ter, de ser e

de apresentar-se ao mundo. Concomitante a isso, há um movimento interessante

nos discursos de padrões de beleza, como, por exemplo, nas imagens de meninas

negras, que expressam, nos seus cabelos cacheados ou crespos, um contradiscurso

à padronização europeia da beleza e ao preconceito, que também passa a se

apresentar como “estiloso”.

Qualquer criança pode ser bonita, segundo os discursos de "Crianças

Estilosas – Blog Pessoal". Se nas histórias infantis uma mágica, um poderoso

antídoto resolvia tudo, hoje, o que resolve tudo – ou quase tudo – no quesito

"beleza" é praticar o verbo "consumir", comprar os discursos de beleza, seja por

meio da aquisição de produtos ou na adoção de modos de ser. A feiura pode ser

vista como o "não consumo" desse ideário de beleza, enquanto que o "esti lo" é o

coroamento dessa relação. Beleza é igual a consumo, que, somado à imagem, pode

resultar num "estilo".

Ao navegar pelas imagens da página "Crianças Estilosas – Blog Pessoal" é

possível notar que a infância brasileira ainda é retratada na mídia pelo tripé

inocência-perigo-consumo, e o espaço "Crianças Estilosas" constrói discursos de

uma infância consumidora, nos quais a criança ganha destaque pelo fato de

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consumir, adquirir produtos e apropriar-se de uma forma de viver, e, desse modo,

são atendidos os interesses do adulto e da publicidade.

A criança tem um valor simbólico, que é o capital que ela representa dentro

desse contexto discursivo sobre um ideário de beleza. Esta pesquisa, portanto, abre

brechas para outras que se dediquem a analisar imagens mais comentadas ou

apenas as vozes sociais que estão presentes nos comentários.

E as crianças? O que pensam a respeito disso tudo? Quais seriam as

respostas das meninas analisadas nas imagens sobre o conceito "estilosa"? O que

significa, de fato, “ter estilo", “beleza”, “sedução” e “feiura” para as crianças? O que

as crianças têm a dizer sobre suas imagens postadas por adultos nas redes sociais?

São algumas questões para se pensar, sem a necessidade de respostas

imediatas, já que novas portas se abrem para novas pesquisas, com questões para

investigar e refletir sobre a infância, que não estão esgotadas.

Por enquanto, para este pesquisador, ficam, aqui, as considerações

inacabadas.

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