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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Sociais
Programa de Pós-graduação em Sociologia Mestrado em Sociologia
Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)
Autor: Pedro Felix Carmo Penhavel
Orientador: Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges
Goiânia 2013
i
Pedro Felix Carmo Penhavel
Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Sociologia, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges.
Goiânia 2013
ii
Pedro Felix Carmo Penhavel
Urbanização por expropriação: o caso do Setor Noroeste (Brasília-DF)
Dissertação defendida em 25 de abril de 2013 e aprovada por banca examinadora
constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________ Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges
(Presidente – UFG)
_________________________________________ Prof. Dr. Frederico Flósculo Pinheiro Barreto
(UnB)
_________________________________________ Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha
(UFG)
_________________________________________ Prof. Dr. Revalino Antonio de Freitas
(Suplente – UFG)
iii
Aos indígenas do Santuário dos Pajés (aos habitantes originários).
iv
Agradecimentos
Agradeço à minha família, pelo apoio; aos amigos, pelo diálogo; e à Érica,
pelo carinho.
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Pedro Célio Alves Borges, pela
orientação atenciosa e enriquecedora.
Agradeço aos professores Dra. Catherine Trudelle, Dr. Cleito Pereira dos
Santos, Dr. Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, Dr. Jorge Eremites de Oliveira e Dr.
Leandro Mendes Rocha, pela generosa colaboração ao longo deste trabalho.
Agradeço aos funcionários da Faculdade de Ciências Sociais e da Secretaria
do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.
Agradeço aos apoiadores e aos habitantes do Santuário dos Pajés,
inspiradores desta dissertação.
v
“A produção capitalista não desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção senão socavando, ao mesmo tempo, os dois mananciais de toda a riqueza: a terra e o homem.”
Karl Marx, O capital
“O conceito de progresso deve ser fundamentado na ideia de catástrofe. Que ‘as coisas continuem assim’ – eis a catástrofe.”
Walter Benjamin, Passagens
“A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se odeiam de um ódio instintivo. Quando se encontram no mesmo caminho, é preciso que um deles sirva ao outro.”
Charles Baudelaire, Obras estéticas
“A la tierra, el indígena la ve como la madre. El capitalista, como uno que no tiene ídem.”
Don Durito de la Lacandona
vi
Resumo
Este trabalho se apresenta como uma confluência de três campos temáticos:
estudos urbanos, conflitos socioambientais e conflitos interétnicos. Tratamos dos
processos sociais e políticos que orientaram a construção de um novo bairro residencial
em Brasília, o Setor Noroeste, e nos propomos a analisar o conflito socioambiental que
emerge a partir da execução desse projeto imobiliário. No primeiro capítulo, traçamos um
histórico dos eventos políticos que determinaram que uma área anteriormente protegida
pelo projeto original de Brasília e, além disso, local de ocupação tradicional de uma
comunidade indígena, o Santuário dos Pajés, fosse destinada à construção de um bairro
residencial de “alto padrão”. Para essa discussão, utilizamos, como suporte teórico, as
análises de Marx e de Rosa Luxemburgo acerca da acumulação primitiva de capital e de
David Harvey a respeito da acumulação por despossessão. Inspirados por esses atores,
propomos como chave analítica para nossa análise o conceito de “urbanização por
expropriação”. No capítulo seguinte, discutimos, a partir da abordagem crítica de
conceitos como “desenvolvimento sustentável” e “economia verde”, a apropriação do
discurso ambientalista pelos idealizadores do novo bairro. Para isso, realizamos análises
de discurso de reportagens do jornal “Correio Braziliense”, bem como de anúncios
publicitários relacionados ao Setor Noroeste. Finalmente, no terceiro capítulo, tratamos
dos discursos e práticas do movimento social “O Santuário não se move!”, que contesta
o projeto imobiliário ao defender a preservação do cerrado nativo e a permanência da
comunidade indígena na área destinada à construção do novo bairro. Para tanto, apoiamo-
nos na perspectiva analítica da Ecologia Política, que, por meio de conceitos como
“desigualdade ambiental”, “ecologismo dos pobres” e “justiça ambiental”, propõe-se a
abordar os conflitos socioambientais a partir da percepção dos embates em torno da
apropriação e uso dos recursos naturais, em oposição à tendência de “naturalização” dos
conflitos socioambientais.
Palavras-chave: Acumulação por despossessão; Conflitos socioambientais;
Ecologia Política; Estado e questão indígena; Urbanização por expropriação.
vii
Abstract
This study is presented as a confluence of three thematic areas: urban studies,
environmental conflicts and interethnic conflicts. It analyzes the social and political
processes involved in and the social and environmental conflicts emerging from
construction of a new residential neighborhood in Brasilia, Setor Noroeste. The first
chapter recounts the political events that led to the area called Santuário dos Pajés, which
had previously been protected by the original plan of Brasilia and occupied by an
indigenous community, being zoned for high-end residential development. Theoretical
support for this discussion is provided by Marx and Rosa Luxemburg’s analyses of
primitive capital accumulation and David Harvey’s analysis of accumulation by
dispossession. Inspired by these authors, we propose the concept of "urbanization by
expropriation" as the key to our analysis. On the basis of a critique of concepts such as
sustainable development and the green economy, in the second chapter we discuss how
those behind the neighborhood project appropriated environmentalist terminology. For
this purpose, we performed a discourse analysis on Correio Braziliense news reports
about Setor Noroeste and commercials promoting it. Finally, in the third chapter, we deal
with the discourse and practices of the "O Santuário não se move!" movement, which
challenges the residential project in order to defend the preservation of native vegetation
and the continued presence of the Indian community in the area. The analytical
perspective of political ecology is adopted. Concepts such as environmental inequality,
environmentalism of the poor and environmental justice are used to address
environmental conflicts from the point of view of conflicts over ownership and natural
resource use as opposed to the trend to "naturalize” environmental conflicts.
Keywords: Accumulation by dispossession; socio-environmental conflicts;
political ecology; the state and indigenous issues; urbanization by expropriation.
viii
Lista de ilustrações
Figura 1 – Novas áreas residenciais propostas no documento Brasília Revisitada ....... 73
Figura 2 – Imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do Setor
Noroeste ......................................................................................................................... 74
Figura 3 – Variação do preço médio do m² em apartamentos no Setor Noroeste, de agosto
de 2010 a janeiro de 2013 ................................................................................................ 75
Figura 4 – Devastação do cerrado próximo a um dos canteiros de obras da incorporadora
Brasal .............................................................................................................................. 76
Figura 5 – Imagem de satélite com a delimitação dos 50,91 hectares reivindicados pelo
Santuário dos Pajés ......................................................................................................... 77
Figura 6 – Herbário de plantas nativas fitoterápicas do Santuário dos Pajés .................. 78
Figura 7 – Ação da Polícia Militar do DF no território do Santuário dos Pajés ............. 79
Figura 8 – Reprodução de capa em que o jornal Correio Braziliense anuncia a liberação
das vendas das projeções do Setor Noroeste ................................................................... 80
Figura 9 – Reprodução de reportagem em que o jornal Correio Braziliense se refere aos
indígenas como “invasores” da área destinada ao “futuro bairro” .................................. 81
Figura 10 – Anúncio publicitário ilustrando a localização do Setor Noroeste ................ 82
Figura 11 – Anúncio publicitário com slogan promocional do Setor Noroeste .............. 83
Figura 12 – Faixa de protesto contra os governos Arruda (DEM) e Agnelo (PT), no
Palácio do Buriti (sede do governo do Distrito Federal) ................................................. 84
Figura 13 – Reprodução de gravura e palavra de ordem utilizadas pelo movimento “O
Santuário não se move!” ................................................................................................. 85
Figura 14 – Registro fotográfico de encontro inter-religioso realizado no Santuário dos
Pajés em setembro de 2010 ............................................................................................. 86
Figura 15 – Registro fotográfico do toré, cerimônia tradicional celebrada pelo líder
Tapuya/Fulni-ô Santxiê .................................................................................................. 87
ix
Figura 16 – Reprodução de cartazes de divulgação do movimento “O Santuário não se
move!” ............................................................................................................................ 88
Figura 17 – Registro fotográfico de ação direta de remoção de cercas implantadas
ilegalmente pela empreiteira Emplavi ............................................................................ 89
Figura 18 – Registro fotográfico de ação direta contra a invasão do território do Santuário
dos Pajés por máquinas da empreiteira Emplavi ............................................................. 90
x
Lista de tabelas
Quadro 1 – Preço médio do m² de apartamentos em bairros nobres de 17 municípios
brasileiros, com destaque para o Setor Noroeste ............................................................. 91
Quadro 2 – População do Santuário dos Pajés no início do 2º semestre de 2010 ........... 92
Quadro 3 – Espécies botânicas de uso tradicional no Santuário dos Pajés ..................... 96
xi
Lista de siglas
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ACPI – Associação Cultural Povos Indígenas
AGU – Advocacia-Geral da União
APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CGID – Coordenação Geral de Identificação e Delimitação
CMI – Centro de Mídia Independente
Conplan – Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal
DEM – Democratas
Dhesca Brasil – Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
GDF – Governo do Distrito Federal
GEN – Global Ecovillage Network
GT – Grupo de trabalho
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IUCN – International Union for the Conservation of Nature
MPF – Ministério Público Federal
MPL – Movimento Passe Livre
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONU – Organização das Nações Unidas
xii
PAC – Programa de Aceleração do Crescimento
PDOT – Plano Diretor de Ordenamento Territorial
PMDF – Polícia Militar do Distrito Federal
PNUMA – Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
PSA – Pagamentos por Serviços Ambientais
PT – Partido dos Trabalhadores
SHCNW – Setor de Habitações Coletivas Noroeste
SPI – Serviço de Proteção aos Índios
STF – Supremo Tribunal Federal
TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
WWF – Worldwide Fund for Nature
xiii
Sumário
Introdução ........................................................................................................................ 1
O objeto ................................................................................................................ 1
O método .............................................................................................................. 2
Capítulo 1 – A urbanização .............................................................................................. 7
1.1 – Urbanização e acumulação por despossesão: apontamentos teóricos .......... 7
1.1.1 – A acumulação primitiva ................................................................ 7
1.1.2 – A acumulação por despossessão ................................................... 9
1.1.3 – O caso brasileiro .......................................................................... 12
1.2 – Estudo de caso: aspectos históricos, antropológicos e políticos ................. 13
1.2.1 – A urbanização por expropriação .................................................. 13
1.2.2 – O Setor Noroeste (Brasília-DF) ................................................... 14
1.2.3 – O Santuário dos Pajés (Brasília-DF) ............................................ 20
Capítulo 2 – O verde ....................................................................................................... 30
2.1 – Sustentabilidade e acumulação capitalista .................................................. 30
2.1.1 – Desenvolvimento sustentável e economia verde ......................... 30
2.1.2 – A sustentabilidade como religião ................................................. 32
2.1.3 – O ambientalismo de espetáculo ................................................... 33
2.2 – O discurso verde da expropriação .............................................................. 34
2.2.1 – A análise do discurso ................................................................... 34
2.2.2 – O Correio Braziliense e seus leitores .......................................... 36
2.2.3 – A publicidade .............................................................................. 40
Capítulo 3 – A luta ......................................................................................................... 44
3.1 – Urbanização e conflitos socioambientais .................................................. 44
3.1.1 – Delimitação teórica .................................................................... 44
xiv
3.1.2 – Conflitos socioambientais e meio urbano .................................. 47
3.2 – Notas sobre a conjuntura e a resistência ................................................... 49
3.2.1 – A exceção ................................................................................... 49
3.2.2 – “O Santuário não se move!” ...................................................... 54
Considerações finais ...................................................................................................... 64
Referências bibliográficas ............................................................................................. 67
Anexos ........................................................................................................................... 73
Ilustrações .......................................................................................................... 73
Tabelas ............................................................................................................... 91
1
Introdução
O objeto
O presente trabalho tem como objeto de estudo os processos sociais e
políticos que determinaram a transformação de uma reserva ambiental, localizada no
Plano Piloto de Brasília, em bairro residencial destinado às elites econômicas da capital.
Além de ser a última grande reserva de cerrado nativo do Plano Piloto, a área destinada à
construção do novo bairro, o Setor Noroeste, é local de moradia de indígenas da etnia
Tapuya/Fulni-ô, que reivindicam o local como terra tradicional, em oposição aos
defensores do empreendimento. Assim, a pesquisa se apresenta como confluência de três
campos temáticos: estudos urbanos, conflitos socioambientais e conflitos interétnicos. O
marco temporal do trabalho se inicia em 1957, ano que marca o início da ocupação
indígena no local, e se estende até outubro de 2012, momento da inauguração dos
primeiros prédios do bairro e do anúncio de sua expansão.
No âmbito jurídico, analisamos os mecanismos que possibilitaram a
construção do bairro numa área originalmente protegida pelo projeto original de Brasília.
Para tanto, traçamos um histórico dos processos políticos que orientaram a formulação
das políticas de planejamento urbano da cidade, especialmente a partir de 1987, com a
publicação do plano de expansão urbana denominado Brasília Revisitada. Aqui,
discutimos as implicações da eleição, em 2006, do governador José Roberto Arruda e do
vice-governador Paulo Octávio, maior empresário do setor imobiliário de Brasília. Ainda
nesse plano, abordamos a transição do governo Arruda (DEM) ao governo Agnelo
Queiroz (PT), discutindo a atuação do governo petista no âmbito da questão urbana,
especialmente no que diz respeito às políticas por ele implementadas em relação ao
conflito socioambiental.
Ao tratar da questão interétnica, analisamos os contextos e processos de
interações mantidas entre os indígenas e outros agentes da capital federal envolvidos na
área em disputa (o Santuário dos Pajés), considerada sagrada pelos Tapuya/Fulni-ô.
Tratamos também da atuação dos órgãos federais responsáveis pelas questões indígena e
ambiental, respectivamente FUNAI e IBAMA, a fim de perceber as ações do Estado em
relação ao conflito e de discutir a efetividade desses órgãos na resolução dos problemas
sociais e ambientais relacionados à construção do Setor Noroeste. Ainda no âmbito do
2
Estado, investigamos a atuação da Terracap, empresa pública do Governo do Distrito
Federal responsável pela venda dos lotes às empreiteiras, bem como a participação da
Polícia Militar do DF no conflito.
O conflito socioambiental é aqui entendido como fenômeno resultante dos
embates entre grupos sociais pela apropriação e uso dos recursos naturais e das bases
materiais da sociedade. A fim de perceber, em nosso estudo, como tais embates se
configuram e se inter-relacionam com os mecanismos de produção do espaço urbano,
investigamos, por meio de pesquisa empírica, os discursos e as práticas dos grupos sociais
que se confrontam em torno do empreendimento Setor Noroeste. Assim, procedemos à
análise de conteúdo dos pronunciamentos e narrativas enunciados, de um lado, pelos
defensores da construção do Setor Noroeste e, de outro, pelos seus opositores.
O método
David Harvey defende uma abordagem “unificada” para a questão urbana;
abordagem que seja capaz de tratar, além dos mecanismos de produção das cidades, das
relações entre a acumulação capitalista e as dinâmicas das lutas de classe (HARVEY,
2006:75). Na análise do fenômeno urbano, tal perspectiva é por ele alcançada por meio
da aplicação do método materialista dialético, fundado por Marx. De acordo com a crítica
à Economia Política empreendida pelo filósofo alemão, a compreensão adequada da
realidade jamais será alcançada – como querem os “economistas do século XVII” a que
Marx se refere nos Grundrisse – por meio da análise da representação da realidade que
se nos apresenta à primeira vista: a “população”, por exemplo, é mera abstração se
desconsiderarmos as classes pelas quais é formada; estas, por sua vez, são “palavra vazia”
se não levarmos em conta seus elementos constitutivos. No método marxista, a efetiva
apreensão da realidade depende do empreendimento daquela “viagem de retorno” a que
Marx se refere: os “movimentos” do pensamento – do “concreto representado” aos
“conceitos abstratos”; e, destes, finalmente, ao “concreto mental” – são necessários para
que se possa perceber determinado dado da realidade como “rica totalidade de muitas
determinações e relações” (MARX, 2011:54-55).
Harvey defende a necessidade de se considerar a espacialidade como
elemento ativamente produzido e atuante no processo social. Sendo assim, é preciso evitar
3
a tendência de se abordar o fenômeno urbano como elemento imutável; como se o espaço
urbano se tratasse de mero palco para o desenvolvimento dos processos sociais
(HARVEY, 2006:77). A adoção de uma perspectiva dialética na análise da questão
urbana exige que esta não seja entendida como simples somatório dos mecanismos de
produção do espaço. O fenômeno urbano, assim como a “população” no exemplo de
Marx, deve ser apreendido como “uma rica totalidade de muitas determinações e
relações” – técnicas, políticas, jurídicas e ideológicas – que se inter-relacionam. A partir
desses pressupostos, torna-se possível revelar contradições, desvelar aparências e
imaginar alternativas para a transformação e a reivindicação do espaço urbano.
Segundo Henri Lefebvre, a adequada compreensão do fenômeno urbano
depende de um esforço no sentido de integrar à teoria marxista o entendimento da “vida
cotidiana”. Para o autor francês, o método de Marx “consiste precisamente na busca das
relações existentes entre aquilo que os homens pensam, desejam, dizem e acreditam sobre
si mesmos e aquilo que eles de fato fazem e são” (LEFEBVRE, 1991 apud Harvey,
2006:85). Assim, a partir da confrontação dialética entre ideias e ação, estabelece-se a
crítica marxista ao desenvolvimento urbano capitalista. Afinal, como argumenta Harvey
em sua obra mais recente:
A urbanização do capital pressupõe a capacidade das elites capitalistas
em dominar o processo urbano. Isso implica na dominação de classe
não somente dos aparatos estatais (especialmente daqueles aspectos do
poder estatal que administram e governam as condições sociais e
infraestruturais no âmbito das estruturas territoriais), mas também sobre
populações inteiras – seus estilos de vida, assim como seu poder de
trabalho; seus valores culturais e políticos, assim como suas concepções
mentais do mundo (tradução nossa) (HARVEY, 2012:66).
Acreditamos que, seguindo os pressupostos metodológicos apresentados,
sejamos capazes de analisar as múltiplas dimensões apresentadas por nosso objeto de
pesquisa: as configurações políticas e econômicas que orientam a expansão da cidade de
Brasília e a construção do Setor Noroeste; as implicações da presença indígena na região;
os problemas ambientais e seus impactos em diferentes grupos sociais; a sustentação
política e ideológica do discurso dos construtores; e as práticas de resistência à construção
4
do bairro. Sendo assim, a discussão, ao longo de nosso trabalho, sustenta-se pela
utilização do método materialista dialético. Segundo Harvey,
O único método capaz de unir disciplinas de tal maneira que elas
possam lidar com questões como urbanização, desenvolvimento
econômico e meio ambiente é aquele fundamentado numa versão
apropriadamente constituída do materialismo dialético, de modo que
este opere no âmbito de uma totalidade estruturada, no sentido
concebido por Marx (tradução nossa) (HARVEY, 2009b:302).
A fim de discutir o conflito socioambiental que emerge a partir da construção
do novo bairro, fazemos uso, em diálogo com o materialismo dialético, da abordagem
teórico-metodológica proposta pela Ecologia Política, campo de estudos que tem como
objeto de análise os conflitos socioambientais resultantes dos embates entre grupos
sociais pela apropriação e uso dos recursos naturais. Partindo da noção de desigualdade
ambiental, ou seja, da percepção de que grupos distintos não são afetados da mesma
maneira pelos riscos ambientais, a perspectiva da Ecologia Política evita a naturalização
dos conflitos socioambientais, permitindo que estes sejam abordados levando-se em conta
as bases materiais da sociedade e os esforços em torno de sua apropriação. Assim, tal
perspectiva fornece substância conceitual e ferramentas analíticas para uma aplicação
mais precisa do método de Marx à análise dos fenômenos geradores dos embates sociais
relacionados à questão ambiental. Como argumenta Daniel Bensaïd,
A crítica da economia política não pretende fundar uma ciência geral
da economia. Ela se quer como crítica do capital. Por isso não teria
como esgotar as exigências das determinações naturais e acabar de vez
com o tormento da matéria. A crítica da ecologia política, por sua vez,
não conseguiria, a rigor, absorver a crítica da economia política. Uma e
outra podem, em compensação, estabelecer uma relação fecunda a
partir de temporalidades diferentes (BENSAÏD, 1999:492).
A pesquisa empírica que fornece base às nossas observações consiste, num
primeiro momento, na coleta, seleção e análise de publicações do jornal Correio
Braziliense relacionadas ao nosso objeto de pesquisa. O período investigado se inicia em
janeiro de 2008, data em que se publicam as primeiras reportagens sobre a construção do
bairro, e se estende até outubro de 2012, data da entrega das primeiras unidades de
5
apartamentos e anúncio da segunda etapa de obras do Setor Noroeste. Optamos por
realizar a coleta de dados por meio do website do jornal, pois este reúne tanto as
publicações do diário impresso quanto reportagens produzidas exclusivamente para a
internet. Selecionamos reportagens que tratam dos aspectos urbanísticos, políticos e
jurídicos relacionados à construção do bairro, além daquelas que abordam o conflito
socioambiental. Finalmente, na segunda parte do estudo empírico, analisamos anúncios
publicitários relacionados ao Setor Noroeste, com especial atenção ao emprego de
conceitos ambientalistas (desenvolvimento sustentável, bairro ecológico, ecovila, etc.).
Em seguida, nos dedicamos à discussão acerca dos grupos sociais vinculados
à resistência contra a construção do novo bairro, em especial o movimento denominado
“O Santuário não se move!”. Para tanto, apoiamo-nos em fontes indiretas: trabalhos
acadêmicos, textos jornalísticos (especialmente aqueles vinculados à mídia independente)
e material audiovisual produzido pelos militantes (vídeos e documentários) e em fontes
diretas: entrevistas com apoiadores do movimento social. Aqui, utilizamos como método
a entrevista em profundidade com perguntas semi-estruturadas, que tem como vantagem
conferir maior liberdade de expressão ao informante e flexibilidade investigativa ao
pesquisador, possibilitando-lhe ajustar seu roteiro de perguntas conforme o
desenvolvimento do discurso do entrevistado.
As análises de discurso são conduzidas segundo os pressupostos teórico-
metodológicos da Análise de Discurso Crítica, elaborados pelo linguista inglês Norman
Fairclough. Tal perspectiva propõe uma abordagem transdisciplinar para a realização da
análise do discurso, baseada não somente na linguística, mas também em percepções
acerca da realidade histórico-social em que os discursos são produzidos. Assim, unindo a
análise textual à crítica social, a Análise de Discurso Crítica pretende revelar a atuação
da linguagem na constituição dos fenômenos sociais e seu envolvimento nas relações de
poder e dominação (TILIO, 2010). Em diálogo com o materialismo dialético e com a
Ecologia Política, os pressupostos teóricos e as ferramentas analíticas da Análise de
Discurso Crítica nos permitem averiguar em que sentido os discursos dos atores
envolvidos no conflito socioambiental estudado se relacionam com os fenômenos sociais
observados e em que medida contribuem para reproduzi-los ou modificá-los.
6
No primeiro capítulo, investigamos os processos sociais e políticos que
determinaram a transformação de uma reserva ambiental – anteriormente protegida pelo
projeto original da cidade e, além disso, local de moradia tradicional de famílias indígenas
– em bairro residencial destinado às classes altas da capital. Para discutir o fenômeno,
apoiamo-nos na perspectiva crítica de Harvey, com o objetivo de analisar o aparecimento
do novo bairro no âmbito daquilo que o geógrafo denomina acumulação por
despossessão (HARVEY, 2009a), elemento que nos ajudará a compreender os
mecanismos de produção do espaço urbano a partir da percepção das relações entre a
acumulação capitalista e as dinâmicas das lutas de classe. Assim, para tratar do resultado
da confluência entre a acumulação por despossessão e a urbanização contemporânea,
propomos como chave analítica o conceito de urbanização por expropriação, aqui
entendido como o dispositivo que possibilita, por meio de práticas e discursos próprios,
a utilização dos instrumentos de organização, regulação e expansão das cidades em
benefício da acumulação de capital.
O segundo capítulo da dissertação destina-se ao estudo dos discursos e
práticas dos idealizadores do novo bairro: empresários, gestores públicos, publicitários e
mídia. Aqui, damos especial atenção à utilização de conceitos ambientalistas. Estes,
segundo nossa hipótese, a despeito de suas pretensões preservacionistas, têm atuado
essencialmente como suporte técnico e ideológico para a acumulação de capital. Por meio
desse discurso, possibilita-se que um empreendimento imobiliário, cuja construção, como
discutiremos, representa sérios riscos socioambientais, seja anunciado como “bairro
ecológico”, agregando-se valor de mercado ao projeto e, ao mesmo tempo, revestindo-se
de teor ético mecanismos de expropriação.
No terceiro capítulo, analisamos os discursos e práticas dos indivíduos
envolvidos na resistência contra a construção do novo bairro. Tratamos especialmente do
movimento denominado “O Santuário não se move!”, coletivo que reúne indígenas,
estudantes, políticos, ambientalistas, defensores dos direitos humanos e organizações da
sociedade civil em torno da luta pelos direitos dos indígenas habitantes da área conhecida
como Santuário dos Pajés e pela preservação da última grande reserva de cerrado nativo
do Plano Piloto de Brasília.
7
Capítulo 1 – A urbanização
1.1 – Urbanização e acumulação por despossessão: apontamentos teóricos
1.1.1 – A acumulação primitiva
No livro I de O capital, Marx define a acumulação primitiva de capital como
o processo histórico promotor da dissociação entre o produtor e seus meios de produção,
que teria ocorrido na “pré-história” do modo de produção capitalista. Segundo o filósofo
alemão, ao contrário do que reza a “cartilha” da economia política clássica, os meios
violentos de espoliação ocuparam um papel decisivo nesse processo. Marx observa que a
“libertação” dos produtores das estruturas feudais não significou o fim da exploração dos
produtores, como defendem aqueles que o autor denomina “historiadores burgueses”, mas
representou o início de uma nova forma de espoliação, pois os trabalhadores, apartados
de seus meios de produção, viram-se também desprovidos de todas as garantias básicas
de sobrevivência fornecidas pelas velhas instituições feudais (MARX, 2013:785-788).
Exemplo clássico entre esses mecanismos de expropriação são os
cercamentos (enclosures, em inglês), política instituída pelo parlamento inglês, a partir
do século XVI, a fim de promover a delimitação e a repartição das áreas comunais e assim
impossibilitar seu uso pelos camponeses. Essa prática fez com que os pequenos
produtores rurais se vissem impedidos de subsistir a partir do cultivo da terra e fossem
obrigados a buscar seu sustento por meio de empregos na indústria nascente. Isso
significou um aumento repentino da oferta de mão de obra e facilitou a extração da mais-
valia capitalista, devidamente assegurada pela legislação inglesa da época.
Segundo o economista norte-americano Michael Perelman, a acumulação
primitiva atuou em duas frentes: primeiro, impedindo os camponeses de proverem seu
próprio sustento; depois, impedindo que esses trabalhadores encontrassem meios de
sobrevivência alternativos, fora do sistema de renda capitalista. Aqui, exerceu papel
decisivo o parlamento inglês, através da promulgação de leis que impossibilitavam
qualquer resistência contra as forças do mercado (PERELMAN, 2000:14). Como observa
o economista marxista Maurice Dobb em seu clássico A evolução do capitalismo, os
cercamentos representaram a forma-tipo da acumulação primitiva porque resultaram não
somente no enriquecimento burguês, mas acarretaram também o desapossamento de
8
pequenos proprietários em número muitas vezes maior do que a quantidade de pessoas
enriquecidas pelo processo (DOBB, 1987:189).
A atuação dos mecanismos de acumulação primitiva e a consequente
separação entre os camponeses e seus meios de produção tem como resultado o aumento
da oferta de mão de obra barata e vulnerável, estabelecendo-se as bases do mecanismo
que Marx descreveu, no livro I de O capital, como “lei geral absoluta da acumulação
capitalista”:
Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o
volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza
absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior
será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se
desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A
grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha,
pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse
exército de reserva em relação ao exército de trabalhadores, tanto maior
será a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão
inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as
camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de
reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral,
absoluta, da acumulação capitalista (MARX, 2013:719-720).
Observa-se, na atualidade, que os cercamentos, descritos por Marx em sua
análise do capitalismo nascente na Inglaterra como mecanismos básicos para a
acumulação primitiva (MARX, 2013:788-804), não deixaram de atuar como
componentes do capitalismo de acumulação avançada. Trata-se do que vem sendo
chamado por estudiosos de novos cercamentos (DE ANGELIS, 2001; FEDERICI, 2001),
fenômenos de expropriação observáveis tanto em países pouco desenvolvidos quanto
naqueles de desenvolvimento capitalista mais avançado. Assim como os antigos
cercamentos, os novos têm como estratégia fundamental de atuação promover a
inviabilidade da propriedade comum sobre os meios de subsistência dos trabalhadores.
Segundo Massimo De Angelis, “o projeto neoliberal global, que por vários meios visa
atingir os bens sociais comuns criados no período pós-guerra, se apresenta como uma
forma moderna de cercamento” (tradução nossa) (DE ANGELIS, 2001). Nesse sentido,
9
Silvia Federici cita reportagem da revista inglesa The Economist, que em 1986
recomendava aos países africanos que suas terras comuns fossem cercadas (enclosed) e
que os direitos tradicionais de uso fossem extintos, afinal a propriedade privada da terra
seria essencial para o “bom funcionamento do capital” (THE ECONOMIST, 1986 apud
FEDERICI, 2001).
1.1.2 – A acumulação por despossessão
Sustentando-se na análise de Marx, e a partir da observação do
comportamento do capitalismo contemporâneo, David Harvey discute, em O Novo
Imperialismo, a necessidade de reavaliação histórica do conceito de acumulação primitiva
de capital. Para o geógrafo inglês, não haveria nessa categoria de acumulação nada de
antiquado; pelo contrário, estaria ela ainda cumprindo papel fundamental na reprodução
do sistema capitalista (alguns daqueles mecanismos discutidos por Marx teriam sido
inclusive aprimorados e desempenhariam hoje um papel ainda mais destacado).
Percebendo a necessidade de reativação do debate, o autor sugere como chave analítica o
conceito de acumulação por despossessão (HARVEY, 2009a). Trata-se, portanto, de uma
proposta de atualização do termo clássico marxista para sua inserção na discussão do
capitalismo avançado, como observa o próprio Harvey:
Uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas
predatórias da acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ no âmbito da longa
geografia histórica da acumulação do capital é, por conseguinte muito
necessária, como observaram recentemente vários comentadores.
Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um
processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito
de ‘acumulação por espoliação [despossessão]’ (HARVEY,
2009a:120).
Ao comentar a proposta Harvey, o filósofo Paulo Arantes destaca a percepção
da preponderância, no capitalismo avançado, da lógica territorialista de poder, apesar do
avanço inexorável do paradigma financeiro do capital sem lastro territorial. Assim,
segundo o autor, reintroduz-se no interior do sistema práticas aparentemente relegadas à
pré-história capitalista:
10
A hipótese de David Harvey para explicar a engrenagem do novo
imperialismo é preciosa. Nada mais nada menos que uma reativação de
formas supostamente arcaicas de exploração e dominação que Harvey
enfeixa sob a denominação única de Acumulação por Despossessão.
[...] Numa palavra, mais uma vez: Acumulação Primitiva. Só que
reinterpretada de modo a reintroduzir no interior do sistema finalmente
completo do capitalismo as práticas predatórias que caracterizaram sua
pré-história externa – das guerras mercantilistas ao esbulho das
enclosures, passando pelo sistema colonial e pela instituição do milagre
perene da dívida pública. Não há nenhuma extravagância na hipótese.
De uns tempos pra cá, justamente a propósito dos novos “cercamentos”
com os quais se parecem cada vez mais as privatizações da última onda
capitalista [...], debate-se para saber se a Acumulação Primitiva deve ou
não ser entendida num sentido puramente histórico ou como um
processo contínuo (ARANTES, 2007:185).
Foi Rosa Luxemburg quem primeiro observou o caráter global e perene da
acumulação primitiva, quando tratou do imperialismo europeu como mecanismo de
sustentação para o capitalismo industrial, em sua obra A Acumulação Capitalista,
publicada na Alemanha em 1913. Segundo Luxemburg, o militarismo europeu
acompanha todas as fases históricas da acumulação capitalista, desde a conquista do
“Novo Mundo” até as colônias modernas, promovendo a destruição das organizações
sociais primitivas e apropriando-se de seus meios de produção, em processo análogo
àquele descrito Marx ao tratar da acumulação primitiva em território europeu. Assim, os
colonizadores puderam impor a economia de mercado e o trabalho assalariado nos
territórios conquistados, ampliando-se as esferas de atuação do capital europeu
(LUXEMBURG, 1983:399). Dessa maneira, como argumenta Luxemburg, “as
necessidades históricas que acompanham a concorrência mundial intensificada para a
conquista de condições de acumulação transformam-se assim, para o próprio capital, num
magnífico campo de acumulação” (LUXEMBURG, 1983:411).
Na esteira de Luxemburg, Ruy Mauro Marini demonstra como a vocação
internacional do capitalismo faz do mercado mundial de mercadorias uma plataforma
para o desenvolvimento das contradições do próprio capital. Longe de promover a
superação de tais contradições, o mercado global se apresenta como campo aberto para
11
sua ampliação territorial, possibilitando a intensificação dos lucros capitalistas e, ao
mesmo tempo, a distensão das contradições presentes nos centros do sistema. Assim, por
meio dos mecanismos de acumulação primitiva (expropriações violentas dos meios de
subsistência), as expressões autodestrutivas do desenvolvimento capitalista podem ser
transferidas dos centros para as periferias do sistema (MARINI, 1993).
Desde a multiplicação das “guerras preventivas” promovidas pela política
externa norte-americana, o processo de acumulação por despossessão ganhou destaque
como abre alas para o que David Harvey denomina novo imperialismo (HARVEY,
2009a). No Afeganistão e, logo, no Iraque, o recurso à violência era nítido (ainda que
naturalmente acompanhado da retórica em torno da expansão da democracia e do livre
mercado). “Danos colaterais” à parte, o fato é que após a destruição viria a “reconstrução”
– leia-se: infindáveis oportunidades para a acumulação capitalista.
Em seu livro, Harvey emprega o conceito de acumulação por despossessão
para tratar das implicações do “novo imperialismo” nas relações entre estados nacionais,
mas não deixa de ressaltar que a discussão acerca da perenidade da acumulação primitiva
é igualmente válida no âmbito interno dos países, pois o funcionamento de seus
mecanismos depende, em grande medida, de sua sustentação pelos poderes de
intervenção dos próprios estados nacionais. Segundo nosso autor:
A acumulação por espoliação [despossessão] pode ser aqui interpretada
como o custo necessário de uma ruptura bem-sucedida rumo ao
desenvolvimento capitalista com o forte apoio dos poderes do Estado.
As motivações podem ser internas (como no caso da China) ou impostas
a partir de fora (como no caso do desenvolvimento neocolonial em
zonas de processamento de exportações no sudeste asiático ou da
abordagem de reformas estruturais que o governo Bush hoje propõe
como cláusula das concessões de ajuda externa a nações pobres). Na
maioria dos casos, está na base dessas transformações alguma
combinação de motivação interna e pressão externa (HARVEY,
2009a:128).
Os aspectos doméstico e externo da acumulação de capital evidentemente
mantêm estreita relação entre si. No entanto, é importante abordá-los de modo que uma
ordem de fenômenos não se sobreponha à outra. Não se pode, por exemplo, subestimar o
12
papel decisivo das elites nacionais – que não necessariamente estão submetidas aos
imperativos do capital estrangeiro –, na consolidação do processo de acumulação
capitalista nos países de capitalismo menos desenvolvido.
1.1.3 – O caso brasileiro
Ao tratar das especificidades do caso brasileiro, Francisco de Oliveira
defende, em sua Crítica da razão dualista, a necessidade de redefinição do conceito
original de acumulação primitiva. Segundo Oliveira, num capitalismo que se desenvolve
por meio da elaboração de periferias, como é o caso brasileiro, a acumulação primitiva
adquire um caráter estrutural e não apenas genético, ou seja, não está circunscrita à gênese
do capitalismo (OLIVEIRA, 2003:43).
O economista Carlos Brandão, professor do Instituto de Economia da
Unicamp, concorda com a hipótese. Para o autor, a experiência capitalista brasileira deve
ser entendida considerando-se a coexistência da acumulação de natureza primitiva e de
formas renovadas de acumulação por despossessão. Os mecanismos da forma primitiva
estão baseados na “apropriabilidade privada extensiva/intensiva do território, na retenção
especulativa da terra-propriedade e do dinheiro e na hegemonia da órbita da circulação
no amplo espaço nacional” (BRANDÃO, 2010).
Nas trilhas de David Harvey, Brandão argumenta que, no Brasil, houve uma
sofisticação do fenômeno de transformação do solo urbano em ativo financeiro, o que
tornou o mercado de terras um segmento do mercado financeiro. O autor resume o
processo da seguinte maneira:
O proprietário fundiário, monopolista de uma porção territorial da
cidade, transforma-se em uma facção de classe portadora de capital
dinheiro. A renda da terra, capitalizada a determinada taxa de juros,
assume a forma de títulos de propriedade em circulação e o papel de
capital portador de juros, uma espécie de capital fictício (BRANDÃO,
2010).
A acumulação primitiva entra em cena, no contexto urbano, quando o
estabelecimento do monopólio sobre a terra depende da expropriação do território. Esta
ocorre, via de regra, com a atuação diligente das instituições estatais (sistema judiciário,
13
polícia militar, etc.), em comunhão com o uso da violência por agentes privados. As
recorrentes “operações de reintegração de posse” em cidades brasileiras são exemplos
amplamente ilustrativos.
Assim, tomando como verdadeiros os diagnóstico de Oliveira e Brandão a
respeito da função constitutiva e perene da acumulação primitiva nos capitalismos
periféricos, passaremos a tratar de um caso brasileiro específico: a construção, em
Brasília, do Setor Noroeste, empreendimento imobiliário que reúne, a despeito de sua
atualidade e de seu caráter periférico, caracteres constitutivos da acumulação primitiva
de capital descrita por Marx ao tratar da gênese do capitalismo nos países centrais.
1.2 – Estudo de caso: aspectos históricos, antropológicos e políticos
1.2.1 – A urbanização por expropriação
Aproximando-nos da análise dos fenômenos internos da acumulação de
capital – especialmente no que diz respeito às cidades –, pretendemos discutir o papel
desempenhado pela urbanização na reprodução capitalista. Inspirados pelo conceito de
acumulação por despossessão de David Harvey e à luz do debate contemporâneo acerca
dos “novos cercamentos”, propomos como chave analítica para nossa investigação o
termo urbanização por expropriação, que pretende dar nome ao dispositivo que
possibilita, por meio de práticas e discursos próprios, a utilização dos instrumentos de
organização, regulação e expansão das cidades em benefício da acumulação de capital. O
termo “dispositivo” deve ser aqui entendido no sentido que Agamben, seguindo Foucault,
lhe atribui: “Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum
modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e
assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes
(AGAMBEN, 2009)”.
Preferimos adotar o termo expropriação (expropriation) em detrimento de
despossessão (dispossession) pois, como observa Virgínia Fontes, o termo expropriação
é utilizado constantemente por Marx, especialmente quando o autor se refere ao processo
de separação do trabalhador de seus meios de produção, característica fundamental da
acumulação primitiva de capital (FONTES, 2010:62).
14
O conceito de urbanização por expropriação pretende dar conta dos
processos estruturais geradores da espoliação nas cidades, portanto, se distancia do que
Lucio Kowarick denomina espoliação urbana, na medida em que este conceito é definido
como “o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de
serviços de consumo coletivo” (KOWARICK, 1980:59) ou, em outros termos, como
“uma forma de extorquir as camadas populares do acesso aos serviços de consumo
coletivo” (KOWARICK, 1980:73). Não pretendemos tratar especificamente da limitação
ao acesso a “serviços de consumo coletivo”, mas das configurações políticas, econômicas,
técnicas e ideológicas que determinam o caráter espoliativo da expansão urbana
capitalista e produzem – entre outros efeitos –, a precariedade do acesso a serviços de
consumo coletivo nas cidades.
1.2.2 – O Setor Noroeste (Brasília-DF)
A partir desse momento, analisaremos a construção, em Brasília, do Setor
Noroeste1. Partindo desse contexto periférico específico – mas expansível a vários outros
casos mundo afora, inclusive aos países centrais –, discutiremos, com o suporte dos
pressupostos teóricos apresentados, as relações estabelecidas, em nosso estudo de caso,
entre os mecanismos urbanísticos e a acumulação capitalista.
Inicialmente, cabem algumas considerações acerca do empreendimento
brasiliense: o Setor Noroeste (ou Noroeste Ecovila, como querem os construtores),
projetado pelo arquiteto e urbanista Paulo Zimbres, e divulgado por investidores2 e mídia
como o primeiro bairro ecológico do Brasil, tornou-se legalmente possível com a
alteração, em 1987, do projeto original de Brasília. A manobra jurídica foi possível graças
à assinatura, por Lucio Costa, de um documento de intenções denominado Brasília
Revisitada, que permitia a alteração do projeto original de Brasília (o bairro “verde” está
1 O Setor Noroeste foi apelidado por seus críticos de “Setor Faroeste”. A referência ao processo de expansão
das fronteiras norte-americanas não poderia ser mais adequado, como pretendemos demonstrar ao longo do
trabalho. 2 O principal investidor e beneficiário do projeto é Paulo Octávio, homem mais rico do Distrito Federal e
vice-governador durante o governo Arruda (DEM).
15
sendo construído sobre uma área anteriormente protegida como reserva ambiental3) e
previa a construção de quatro novos bairros no Plano Piloto, dentre eles o Setor Sudoeste
(já construído e habitado) e o Setor Noroeste. Pressionado pelo poderoso setor imobiliário
de Brasília e convencido pela classe política de que os novos bairros seriam destinados a
suprir a demanda habitacional das classes populares e médias da capital, Lucio Costa
acabou por referendar a alteração de seu plano original4. É o que se pode ler nesse trecho
do documento:
Na implantação dos dois novos bairros a oeste – Oeste Sul [Sudoeste]
e Oeste Norte [Noroeste] – foram previstas quadras econômicas (pilotis
e três pavimentos) para responder à demanda habitacional popular e
superquadras (pilotis e seis pavimentos) para classe média, articuladas
entre si por pequenos centros de bairro, com ocupação mais densa,
gabaritos mais baixos (dois pavimentos sem pilotis) e uso misto
(COSTA, 2009).
No dia 14 de outubro de 1987, publicou-se um decreto pelo qual o governador
do DF determinava, entre outras providências de ordem urbanística, que a expansão
urbana da cidade fosse orientada, a partir de então, pelo novo plano de Lucio Costa. Na
figura 1, em anexo, a área B, em amarelo, representa a região destinada à construção do
Setor Noroeste, então denominado “Bairro Oeste Norte”. A figura 2, em anexo, contém
uma imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do bairro.
A eleição do ex-governador José Roberto Arruda e de seu vice Paulo Octávio
(maior empresário do setor imobiliário do Distrito Federal e grande investidor do projeto
Noroeste), em 2006, significou sinal verde para a reativação do empreendimento. A
aprovação, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, em 2009, da revisão do Plano
Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), documento que estabelece as diretrizes para
o desenvolvimento urbano e para a expansão territorial de Brasília, garantiu ainda mais
3 No projeto original de Brasília, a área destinada à construção do Setor Noroeste estava inserida na
denominada “escala bucólica”, que deveria atuar, segundo Lucio Costa, como contraponto natural às áreas
edificadas (escalas monumental, residencial e gregária) da cidade. 4 Informações recolhidas em palestra do professor Frederico Flósculo (FAU-UnB), por ocasião de evento
promovido em Brasília pela associação ambientalista Pequí. O vídeo da palestra se encontra disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=ixtC109fwzs>.
16
segurança aos empreendedores. O projeto de lei complementar que orientava a revisão do
PDOT foi proposto por Arruda logo em seu primeiro ano de governo, em 2007. O
principal eixo do novo plano era justamente o estabelecimento de diretrizes urbanísticas
que garantissem a criação do Setor Noroeste.
Segundo investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal,
cada um dos 18 deputados distritais da base do governo Arruda recebeu 420 mil reais
para votar a favor da aprovação do documento (FORTES, 2010), no âmbito do esquema
de corrupção conhecido como “Mensalão do DEM”, que mais tarde levaria ao
impeachment do governador. Frederico Flósculo, professor da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de Brasília, enumera algumas implicações socioambientais
do modelo urbanístico adotado pelo PDOT:
É um plano essencialmente imobiliário, uma verdadeira Lei de Uso e
Ocupação do Solo, sem o ordenamento territorial que se espera para o
desenvolvimento humano nas dimensões da educação, da saúde, do
emprego e renda, dos transportes, do lazer, da segurança. [...] A adoção
de uma inflexível e seletiva lógica de "fatos consumados" da Ocupação
Territorial, em que a grilagem, as designações de uso sem fundamentos
ecológicos honestos (como no caso do Setor Noroeste, das mudanças
no Setor Park Way, na 901 Norte, da Orla do Paranoá, do "caso Santa
Prisca", entre tantos outros casos) prevalecem sobre a racionalidade
ambiental e do desenvolvimento humano e comunitário (FLÓSCULO,
2012)
Os planos diretores se tornaram obrigatório para todas as cidades brasileiras
com mais de 20 mil habitantes a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001.
Segundo o documento (lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001), o plano diretor do
município é o “documento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana” e
deve promover o cumprimento da função social da propriedade urbana, “assegurando o
atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e
ao desenvolvimento das atividades econômicas” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
2001). A lei estabelece ainda que o plano diretor deve ser aprovado por lei municipal, que
precisa ser revista, pelo menos, a cada dez anos. No entanto, as “revisões” do plano diretor
(que deveriam servir, segundo a lei, para acentuar os mecanismos de uso social da
17
propriedade), têm atuado, domo demonstra o caso de Brasília, como plataforma de
negociações entre governos municipais e agentes privados.
Os planos diretores tendem a assimilar, como demonstra o professor Carlos
Vainer, os preceitos do chamado planejamento estratégico urbano, corrente do
urbanismo que adere à ideia de que o planejamento das cidades deve orientar-se por
conceitos e técnicas oriundos do planejamento empresarial, uma vez que as cidades
estariam sujeitas aos mesmos “desafios” enfrentados pelas empresas (VAINER,
2000:76). As cidades deveriam, segundo os pressupostos propagados pelos consultores
internacionais do planejamento estratégico, ser capazes de competir entre si pelo
investimento de capital, tecnologia e competência gerencial. De acordo com os
sociólogos (e consultores urbanísticos) catalães Manuel Castells e Jordi Borja,
O governo local deve promover a cidade para o exterior, desenvolvendo
uma imagem forte e positiva apoiada numa oferta de infra-estrutura e
de serviços (comunicações, serviços econômicos, oferta cultural,
segurança etc.) que exerçam a atração de investidores, visitantes e
usuários solventes à cidade e que facilitem suas “exportações” (de bens
e serviços, de seus profissionais etc.) (CASTELLS e BORJA, 1996
apud VAINER, 2000:80).
Vainer destaca o caráter excludente desses pressupostos urbanísticos: a
cidade-empresa deve se esforçar para atrair, de preferência, “visitantes e usuários
solventes”; ou seja, deve ser capaz de selecionar os “consumidores” que lhe interessam
financeiramente (VAINER, 2000:80). Esse receituário pragmático se mostra
especialmente atual no Brasil, tendo em vista os mecanismos urbanísticos autoritários
adotados nos esforços de “adequação” das cidades-sede (Brasília, entre elas) para a Copa
do Mundo de 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também para a realização dos Jogos
Olímpicos de 2016.
No caso da capital fluminense, Vainer sugere que seu território tenha se
transformado numa cidade de exceção, o que teria instaurado uma conjuntura política que
o autor denomina democracia direta do capital (VAINER, 2011). Não por acaso, o
planejamento urbano do Rio de Janeiro segue, desde a década de 1990, as diretrizes do
planejamento estratégico, o qual se reafirmou, nos últimos anos, com a necessidade de
18
“transformação” da cidade para os megaeventos esportivos de 2014 e 2016. Segundo
Vainer,
A cidade de exceção transforma o poder em instrumento para colocar a
cidade, de maneira direta e sem mediações na esfera da política, a
serviço do interesse privado de diferentes grupos de interesses. [...]
Trata-se de uma forma nova, em que as relações entre interesses
privados e estado se reconfiguram completamente e entronizam novas
modalidades de exercício hegemônico. Neste contexto, torna-se regra a
invisibilização dos processos decisórios, em razão mesmo da
desqualificação da política e da desconstituição de fato das formas
“normais” de representação de interesses (VAINER, 2011).
A análise de Vainer nos remete, outra vez, ao Estatuto da Cidade. O autor
demonstra como o documento, por meio da criação do instituto da “operação urbana
consorciada” (instrumento de parceria público-privada) promove a “flexibilização” de
determinadas leis que regulamentam as práticas urbanísticas (VAINER, 2011). A
maleabilidade da legislação é instrumento fundamental para a imposição da “democracia
direta do capital” e, como destaca Vainer, está assegurada pelo artigo 32 do Estatuto da
Cidade5:
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá
delimitar área para aplicação de operações consorciadas. §
1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de
intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal,
com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes
e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a
valorização ambiental. § 2o Poderão ser previstas nas operações
urbanas consorciadas, entre outras medidas: I – a modificação de
índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e
subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o
impacto ambiental delas decorrente; II – a regularização de
construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a
5 O texto completo do Estatuto da Cidade (lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001) encontra-se disponível
para consulta em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>.
19
legislação vigente (grifo nosso) (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
2001).
De volta ao nosso estudo de caso: a “associação” entre poder público e setor
privado, já discutida por Marx ao tratar da atuação do parlamento inglês na sustentação
jurídica dos mecanismos de acumulação primitiva, estava estabelecida. O marketing
“verde” propalado pelos investidores foi facilmente assimilado pela mídia e o novo bairro
era divulgado como solução inovadora (e “sustentável”) para o déficit habitacional de
Brasília. Assim, logo se anunciou a construção da “ecovila” de 220 edifícios residenciais
de “alto padrão”, além de 198 prédios comerciais; tudo isso num terreno de 825 hectares6,
na única área de vegetação nativa de cerrado ainda preservada no Plano Piloto. A figura
3, em anexo, ilustra a evolução do preço médio do m² no Setor Noroeste, de agosto de
2010 a janeiro de 2013. O quadro 1, em anexo, contém um comparativo entre o preço
médio do m² de apartamentos no Setor Noroeste e apartamentos em bairros nobres de
outras 16 cidades brasileiras, segundo dados de janeiro de 2013.
Críticos do projeto alertam que o desmatamento do cerrado (cf. figura 4, em
anexo) colocará em risco a grande riqueza biológica da área; que a impermeabilização do
solo, prevista pela obra, impedirá a absorção das águas das chuvas e resultará em
enchentes; que o Lago Paranoá sofrerá com o assoreamento, uma vez que há a previsão
de retirada de 4 milhões de metros cúbicos de terra para a construção de garagens
subterrâneas; e, ainda, que os dejetos eliminados pelos edifícios irão sobrecarregar e
poluir a bacia do Lago Paranoá, impedindo a utilização futura da água para o consumo
humano7. O professor Frederico Flósculo enumera, em entrevista a nós concedida, outros
possíveis problemas ambientais e urbanísticos derivados da implementação do bairro:
O alargamento do Plano Piloto acarreta congestionamentos crônicos,
pois quando a cidade linear começa a virar "um balão", seu padrão de
circulação deve ser anelar, e não mais linear. Vários pontos de
congestionamento devem ocorrer no cruzamento da Asa Norte (pelo
eixo das quadras 906 a 406) do Eixo Monumental (no Palácio do Buriti)
e na EPIA (na saída adiante do Parque Nacional). Além disso, o
6 Informações disponíveis no seguinte endereço: <http://www.noroesteecovila.com/index.html>. 7 Informações retiradas de Recomendação de maio de 2009 e de Ação Civil Pública de agosto de 2010 da
Procuradoria da República no Distrito Federal, Ministério Público Federal.
20
relatório de impacto ambiental contratado pelo próprio GDF tem sérias
ressalvas quanto ao que pode acontecer à hidrografia do Parque
Nacional, e é omisso quanto aos ricos lençóis freáticos dessa imensa
área, que alimentam o riacho Bananal e, com ele, o Lago Paranoá. Os
padrões de assoreamento do Lago Paranoá estão claramente ligados ao
modo como as construtoras têm desmatado essa área do Setor Noroeste,
que era uma imensa reserva de cerrado. O Setor Noroeste congestiona
o Plano Piloto de um modo imprudente e permanente, deformando o
seu Plano Piloto de forma irreversível (FLÓSCULO, 2013).
1.2.3 – O Santuário dos Pajés (Brasília-DF)
A situação é agravada por outro fato, não menos importante: uma área de 50
hectares (cf. figura 5, em anexo) da região onde se pretende construir o novo bairro é
habitada desde 1969, em caráter permanente, por índios da etnia Tapuya/Fulni-ô. Os
índios, originários do município de Águas Belas, em Pernambuco, deslocaram-se do
Nordeste do país ao Centro-Oeste juntamente com os denominados candangos,
nordestinos que buscavam oportunidades de trabalho e melhores condições de vida na
região onde hoje se localiza Brasília.
Segundo antropólogos responsáveis por laudo antropológico encomendado
pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o deslocamento dos índios para a região
Centro-Oeste deve ser entendido como resultado da ineficácia da atuação do Estado
brasileiro no sentido de garantir os direitos territoriais daquela etnia. Os conflitos agrários
e as agressões aos direitos do povo Tapuya/Fulni-ô remetem à edificação do perímetro
urbano do município de Águas Belas, realizada dentro do território originário dos índios.
Segundo os profissionais que assinam o laudo antropológico, apesar de os indígenas
serem originários de outra região, o fato de haverem se deslocado ao Centro-Oeste não
impede que seu novo local de residência seja considerado como área de ocupação
tradicional8:
8 Conforme determina o art. 231 da Constituição Federal de 1988, transcrito a seguir: “São terras
tradicionais ocupadas pelos índios e por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas
21
Apesar de Águas Belas ser o epicentro de seu mundo, isso não significa
que os Fulni-ô estejam impossibilitados ou que sejam incapazes de
estabelecer vínculos de tradicionalidade com outras áreas, onde possam
se adaptar segundo seus usos, costumes e tradições (OLIVEIRA;
PEREIRA e BARRETO, 2011:16).
Relatos registrados na monografia de especialização de Frederico Flávio
Magalhães, funcionário da FUNAI, coletados a partir de entrevistas com os índios da
região, corroboram a caracterização da área como ocupação tradicional indígena:
Informaram que os mais velhos chegaram em 1957 para trabalhar na
construção da nova capital e que ocuparam aquela área para suas rezas
porque nos canteiros de obras, longe dos elementos naturais não era
possível estabelecer o contato com seus ancestrais, manifestar suas
crenças e praticar seus usos tradicionais da terra, como forma de
satisfazer sua identidade espiritual. [...] Demonstraram como é
importante a realização das rezas na mata onde a natureza íntegra
proporciona os elementos naturais e sobrenaturais que compõem o
mundo mágico-religioso de sua identidade com os antepassados na
dimensão do espiritual, do sagrado. Fato que não é possível nas ruas,
estradas, construções ou em locais onde a natureza não é respeitada.
Contaram como os casamentos, os nascimentos de filhos e netos e a
morte de alguns líderes espirituais que aí viveram aprofundaram mais
ainda as relações espirituais com a ancestralidade do território.
Mencionaram que o enterro de seus pertences ocorreram nesta terra em
pontos de referência relacionados ao clã a que cada um pertence.
Expressaram a crença de que tais ocorrências confirmam o caráter
sagrado do território. [...] Assim esclareceram que os pioneiros
indígenas escolheram a área da Fazenda Bananal como ponto para suas
rezas, enquanto desenvolviam relações de amizade, parceria e
assumiam tarefas como prestação de pequenos serviços eventuais para
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar
e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
22
os demais sitiantes e agregados da Fazenda Bananal (MAGALHÃES,
2009:17-18).
Os indígenas mantêm na área, agora destinada à construção de moradias para
a elite brasiliense, um local considerado por eles sagrado. Ao longo do tempo,
estabeleceu-se na Comunidade Indígena do Bananal, ou Santuário dos Pajés (como os
índios se referem ao local), uma comunidade multiétnica, composta por representantes
das etnias Fulni-ô, Xukuru, Tupinambá, Korubo, Kariri-xocó e Tuxá (cf. quadro 2, em
anexo). Trata-se, portanto, de importante patrimônio histórico e ponto de referência
cultural no Centro-Oeste do país, além de local de acolhida de povos indígenas em
deslocamento da região amazônica ao Centro-Oeste e Sul do país9, pois ainda não existem
em Brasília locais adequados para a recepção de índios que vêm à capital tratar de
questões burocráticas ou de problemas de saúde.
Além de contribuírem para a preservação do cerrado em torno do Santuário
(cf. quadro 3, em anexo), os indígenas cultivam um herbário de plantas nativas
fitoterápicas (cf. figura 6, em anexo), possuem um banco de sementes de espécies nativas
do cerrado e organizam visitas guiadas de educação ambiental para estudantes do ensino
fundamental, além de encontros com grupos interessados em conhecer a comunidade e o
ecossistema do cerrado. A Associação Cultural Povos Indígenas (ACPI), sediada na área
do Santuário dos Pajés e gerida pelos próprios indígenas, é responsável pela organização
dos eventos e encontros e pela emissão de comunicados da comunidade indígena à
exterioridade.
As evidências materiais resultantes do esforço de preservação promovido
pelos índios são exemplos do que os antropólogos denominam “ecofatos” (OLIVEIRA;
PEREIRA e BARRETO, 2011:20) e expressões do processo de “humanização da
natureza”:
Com efeito, o fato é que os pais de Santxiê e outros aliados Fulni-ô,
ainda que inicialmente não tenham estabelecido moradia permanente na
área, ao passarem a frequentá-la com periodicidade para a prática de
9 A presença indígena nas terras que hoje constituem o Distrito Federal é ainda mais antiga: a região foi
utilizada como rota de fuga de indígenas de diversas etnias durante as investidas dos Bandeirantes nos
séculos XVII e XVIII.
23
rituais religiosos, contribuíram de maneira prática e simbólica para a
humanização daquele espaço, adaptando-o gradualmente ao seu modo
de vida. [...] Por isso o lugar tornou-se familiar para os indígenas,
destacadamente para os Fulni-ô, pois cada vez mais passou a se
configurar como uma ilha de vegetação humanizada cercada por vias
asfaltadas, prédios etc., que marcam a urbanização de Brasília. Ao
chegar ali, um Fulni-ô logo percebe a presença de muitas espécies de
plantas originárias da Caatinga e, por conseguinte, sabe que naquele
lugar também estão seus respectivos “donos”. [...] Trata-se, dentre
outras coisas, de uma estratégia de adaptação sociocultural a outro
ambiente, distinto de seu território de origem, transformando-o em
espaço domesticado e território tradicional segundo a dinâmica de seus
usos, costumes e tradições (OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO,
2011:21-22).
As evidências descritas acima permitiram aos antropólogos Jorge Eremites de
Oliveira e Levi Marques Pereira e à bióloga Lilian Santos Barreto a elaboração das
seguintes conclusões:
Primeiro, que o Santuário dos Pajés é, de fato, terra de ocupação
tradicional indígena, conforme determina o Art. 231 da Carta
Constitucional de 1988. Logo, a reivindicação apresentada pela
comunidade é pertinente do ponto de vista dos direitos dos povos
originários no Brasil. [...] Segundo, que o Projeto Imobiliário Setor
Noroeste, sob a responsabilidade da Terracap, incide sob terra indígena
não regularizada pelo Estado Brasileiro, cujo início da ocupação
tradicional é anterior à promulgação da Lei Maior. Terceiro, que as
reivindicações indígenas sobre a área têm a ver com uma demanda
coletiva e não com uma demanda individual. Quarto, que o Santuário
dos Pajés é imprescindível, tanto física quanto simbolicamente, para a
permanência do grupo na área, sobremaneira para os Fulni-ô e Tuxá que
ali se estabeleceram há mais tempo que os ocupantes indígenas que ali
chegaram a partir da década de 1990. Quinto, que se faz imperativo que
a FUNAI constitua um GT (Grupo de Trabalho), sob a coordenação de
um antropólogo, para proceder aos estudos necessários à identificação,
delimitação e demarcação da terra indígena, em conformidade com o
24
que estabelece o Decreto 1.775, de 08/01/1996, e a Portaria MJ Nº 14,
de 09/01/1996. Sexto, que sejam realizados estudos com vista à
identificação dos impactos negativos, incluindo dados morais e
materiais, que Projeto Imobiliário Setor Noroeste causou e vem
causando à comunidade indígena do Santuário dos Pajés, bem como
outras ações semelhantes que se fizerem necessárias (OLIVEIRA;
PEREIRA e BARRETO, 2011:44-45).
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA), órgão governamental responsável pela emissão da licença ambiental que
permitiria o início das obras do Noroeste, utilizou como sustentação para sua análise de
impacto ambiental um estudo realizado por empresa terceirizada contratada pelos
próprios construtores e, ignorando a necessidade de preservação ambiental da reserva,
impôs como único condicionante para emissão da licença definitiva a resolução da
questão indígena, transferindo a responsabilidade para a FUNAI, órgão responsável pela
demarcação de terras indígenas tradicionais no Brasil. Até o início de 2009, a FUNAI não
havia emitido parecer definitivo sobre a questão, o que não impediu que os construtores,
com o apoio da Terracap10 e da Polícia Militar do Distrito Federal, começassem as obras
de terraplanagem e infra-estrutura. Havia claramente a intenção de transformar a
construção do bairro num “fato consumado”11, ignorando-se os trâmites legais.
Em março de 2009, o Ministério Público Federal recomendou a paralisação
de “quaisquer atos tendentes a alterar, reduzir, impactar, transferir ou restringir a
ocupação e as atividades da comunidade indígena do Bananal, até decisão definitiva da
FUNAI”12. No entanto, o reiterado adiamento do estudo fundiário permitiu que as
empreiteiras, novamente com o suporte da Terracap, da Polícia Militar e do novo
governador do DF, Rogério Rosso, continuassem a construção do bairro. Segundo nota
10 Empresa pública do governo do Distrito Federal responsável pela administração e pela venda das terras
públicas do DF. Foi a responsável pela licitação de venda dos lotes para os empreendedores do Setor
Noroeste. José Roberto Arruda iniciou sua carreira pública na Novacap, empresa antecessora da Terracap. 11 Sobre essa prática, aparentemente comum entre as empreiteiras, conferir o trabalho da arquiteta e
urbanista Mariana Fix, Parceiros da Exclusão (FIX, 2001), que narra a remoção da favela Jardim Edith,
em São Paulo, para a construção de empreendimentos de “alto padrão”. 12 Procuradoria da República no Distrito Federal, Ministério Público Federal, Recomendação GAB-LLO nº
05/2009, assinada pela Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira.
25
publicada em junho de 2010 pelos construtores em um dos websites do empreendimento,
as obras continuavam normalmente, para o sossego dos futuros moradores: “Muitas
máquinas e trabalhadores por todos os lados. Essa é a visão que se tem das obras de
urbanização do Setor Habitacional Noroeste, que estão a todo vapor. Cerca de 400
homens dividem espaços com as 100 máquinas das 11 empreiteiras responsáveis pela
urbanização”13 (grifo nosso).
O laudo antropológico atestando o caráter tradicional da ocupação indígena
foi entregue à FUNAI em setembro de 2011, ou seja, mais de dois anos após o início das
obras do Setor Noroeste. O órgão estatal, apesar de haver encomendado o estudo após
indicação, pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), dos antropólogos Jorge
Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira, declarou o laudo inconsistente, alegando a
não aplicabilidade do artigo 231 da Constituição Federal a áreas urbanas. Em entrevista
a nós concedida, Jorge Eremites de Oliveira afirmou o seguinte, em relação à atuação da
FUNAI no caso do Santuário dos Pajés:
No que se refere ao Santuário dos Pajés, a atuação da FUNAI tem sido
colonialista desde o início. Na verdade, a presidência do órgão apenas
determinou a realização do estudo antropológico para protelar outra
publicização de posicionamento contrário ao reconhecimento daquela
área como terra de ocupação tradicional indígena. Isso ficou muito claro
para mim antes de iniciar os estudos na área, quando tive a oportunidade
de participar de uma reunião na antiga CGID [Coordenação Geral de
Identificação e Delimitação] para discutir o assunto. Na ocasião, a
coordenadora daquela coordenação e seus subordinados e assessores
explicitaram a mim que entendiam que a área não era terra de ocupação
tradicional indígena, conforme determina o artigo 231 da Carta
Constitucional de 1988. O medo deles, por assim dizer, era e é que o
Santuário dos Pajés abrisse um precedente jurídico para a
regularização de outras terras indígenas existentes em contextos
urbanos no país. Então, se o resultado do laudo produzido sob minha
coordenação não teve o resultado que a FUNAI esperava, não seria
13 A nota, uma evidente tentativa de tranquilizar os compradores em relação à continuidade das obras, pode
ser acessada no seguinte endereço: <http://www.setornoroestebsb.com.br/noticias.php?cod=30>.
26
estranho que o órgão se opusesse ao mesmo, opondo-se inclusive ao
posicionamento formal do MPF e da própria ABA. Que mais teria a
dizer sobre isso? Registro amiúde que a FUNAI é um órgão do Estado
Brasileiro e, como tal, é colonialista desde suas origens na época da
criação do antigo SPI [Serviço de Proteção aos Índios]. Por isso usa de
vários expedientes legais, burocráticos e administrativos para ceifar
direitos e dominar os povos indígenas. Senti, [...] durante a reunião
feita na CGID, como explicado anteriormente, que havia um ambiente
completamente contrário às reivindicações da comunidade indígena do
Santuário dos Pajés. Na ocasião, depois de vários servidores públicos
fazerem uso da palavra, manifestando-se contra a tese de que a área
seria terra indígena, alguém perguntou qual seria a minha opinião sobre
o caso. Respondi que não tinha opinião formada porque ainda não tinha
ido a campo fazer a pesquisa. Logo, somente depois disso poderia
formar opinião sobre o assunto. Mas como é que a FUNAI formou
opinião contrária sobre o Santuário dos Pajés se os estudos
anteriormente encomendados possuem conclusões antagônicas?
Desconheço o fato de algum técnico da FUNAI ter feito um estudo
consistente sobre a área. Ademais, um processo administrativo interno
sobre o Santuário dos Pajés simplesmente sumiu de dentro – pasme! –
da própria sede da agência indigenista oficial. Nesse processo havia
documentos internos que comprovavam que a área não apenas era terra
indígena, mas que em gestões anteriores a FUNAI tinha iniciado um
processo de regularização da mesma. Embora não seja expert em direito
constitucional, penso que do ponto de vista antropológico e jurídico não
há justificativa técnica para a interpretação tendenciosa e viciada que
a FUNAI apresentou, para o caso do Santuário dos Pajés, sobre o
artigo 231 da Constituição Federal, negando-se a cumprir seu dever
(grifo nosso) (OLIVEIRA, 2013).
O laudo não foi oficialmente encaminhado à Justiça e o grupo de trabalho,
que deveria proceder com os estudos necessários para a identificação, delimitação e
demarcação da terra indígena, jamais foi estabelecido pela FUNAI. No dia 18 de outubro
de 2011, a ABA divulgou nota condenando a inação do órgão:
27
O Laudo concluído atesta de maneira clara, objetiva e consistente que
se trata de terra tradicionalmente ocupada por comunidade indígena,
cuja extensão é de, pelo menos, 50,91 hectares. [...] Um Processo da
FUNAI no qual constavam importantes documentos para o
esclarecimento dos fatos, inclusive procedimentos oficiais para a
regularização da área, sob Nº 1.607/1996, desapareceu de dentro do
próprio órgão indigenista. [...] A morosidade da FUNAI em tomar as
providências para assegurar os direitos territoriais, inclusive no que se
refere à entrega formal do laudo à Justiça, tem aumentado a situação de
vulnerabilidade e causado grandes prejuízos àquela comunidade
indígena e à conservação ambiental do lugar. Tal postura favorece os
setores ligados à especulação imobiliária em Brasília e seus aliados
políticos, inclusive pessoas ligadas a conhecidos esquemas de
corrupção no Distrito Federal e segmentos da impressa a elas
vinculados, os quais seguidamente distorcem e manipulam os fatos a
favor de seus patrocinadores (ABA, 2011).
A Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), articulação que reúne 36 movimentos e
organizações da sociedade civil, também emitiu nota demonstrando descontentamento
em relação às decisões do órgão indigenista, alertando inclusive para as evidências de
descumprimento, pelo Estado brasileiro, de preceitos da Convenção 169 da OIT14:
Observa-se ainda, de forma preocupante, que a FUNAI reiteradamente
negou o direito dos indígenas ao procedimento estabelecido no Decreto
1.775/96, ora sob o argumento jurídico de ausência de imemorialidade
na ocupação tradicional, agora com parecer contrário da ABA, e ora
ante a inaplicabilidade do art. 231 da Constituição Federal a áreas
urbanas. Algo que afronta categoricamente os preceitos da Convenção
169 da OIT. [...] A situação de agressões e intimidações à comunidade
indígena e ao próprio Santuário Sagrado dos Pajés representa uma
afronta aos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito,
à Constituição Federal e aos Tratados Internacionais dos quais o Brasil
14 A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), datada de 1989 mas ratificada pelo
Brasil somente em 2002, regulamenta os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais.
28
é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho. A perspectiva garantista e plural do Estado não pode ser
abandonada diante da violência e pressão de grupos econômicos que
historicamente submetem as populações à violência e a exclusão, além
de agirem à revelia de qualquer ordenamento jurídico (OIT, 1989).
Diante da morosidade da FUNAI e da situação de conflito entre os apoiadores
do Santuário e as construtoras, a Juíza Federal Substituta Clara da Mota Santos,
determinou, no dia 13 de outubro de 2011, a suspensão das obras até que fosse realizada
audiência pública, marcada para o dia 27 de outubro. No entanto, as construtoras
continuaram as obras, alegando que a decisão da juíza se referia apenas à infraestrutura
do bairro, que seria responsabilidade do poder público.
Desde o início das obras, havia um embate interno no Santuário, entre as
famílias das etnias Kariri-xocó e Tuxá, que consideravam a possibilidade de acordo de
remoção e a família do líder indígena Santxiê, de etnia Tapuya/Fulni-ô, que desde o
anúncio do projeto imobiliário defendeu incondicionalmente sua permanência na área do
Santuário. No dia 18 de outubro de 2011, oito das nove famílias indígenas que ocupavam
a área do Santuário aceitaram proposta da Terracap para deixar a área e deslocar-se para
um terreno de 12 hectares, próximo ao setor Noroeste, que seria doado pela Terracap à
União e repassado à FUNAI. O acordo foi assinado pela cacique Ivanice Pires Tononé,
em nome das famílias das etnias Kariri-xocó e Tuxá. Por ocasião do acordo, no dia 19 de
outubro representantes da comunidade indígena publicaram um comunicado, por meio do
qual traçaram um histórico da presença dos Kariri-xocó e dos Tuxá no Santuário dos Pajés
e reafirmaram a permanência dos Tapuya/Fulni-ô na área em litígio:
Após a notícia veiculada ontem pela mídia de que os indígenas Kariri-
Xocó e Tuxá, através do advogado George Peixoto, assinaram acordo
para deixar área próxima ao Santuário dos Pajés, comunicamos que a
resistência indígena dos Fulni-ô juntamente com sua rede de apoiadores
permanece na área de 50 hectares em litígio e amparada pela decisão
judicial da Juíza Clara da Mota Santos. [...] Em 1976 e 1977, os Tuxá,
devido a construção da barragem da usina Hidroelétrica de Itaparica,
foram deslocados de suas terras na Bahia. A senhora Maria Filha da
Conceição Vieira Tuxá refugiou-se no Santuário, iniciando a presença
Tuxá na região. [...]Em meados da década de noventa, devido a uma
29
série de problemas sociais, econômicos e fundiários, indígenas da etnia
Kariri-Xocó migraram para o Distrito Federal. Após morarem em
vários pontos do DF, sua última moradia havia sido nas pensões da W3,
onde a FUNAI mantinha um convenio para abrigar os indígenas, que
foi encerrado em 2004. Com o encerramento do convênio, os Kariri-
Xocó se encontraram mais uma vez desabrigados e solicitaram
acolhimento dentro das terras do Santuário dos Pajés. A presença dos
Kariri-xocó era vista pelos Fulni-ô como transitória, sendo uma questão
temporária até que uma moradia permanente fosse encontrada
(SANTUÁRIO, 2011a).
A resistência dos Tapuya/Fulni-ô e o desrespeito das construtoras em relação
ao embargo das obras fizeram com que o conflito entre os apoiadores do Santuário e as
empreiteiras – apoiadas pela Polícia Militar e por seguranças privados (cf. figura 7, em
anexo) –, se agravasse durante os meses de outubro e novembro de 2011, apesar de nova
decisão da Justiça que havia suspendido as obras até o dia 29 de novembro, data de mais
uma audiência pública para tratar o caso. Por meio de liminares judiciais e do apoio
logístico da Polícia Militar do governo petista do Distrito Federal, as empreiteiras
intensificaram as obras no início de 2012, especialmente dentro da área em litígio (os
cerca de 51 hectares em torno do Santuário dos Pajés), apostando no sufocamento físico
e psicológico da comunidade indígena.
Em maio de 2012, o setor imobiliário de Brasília anunciou que, até fevereiro
de 2012, havia lucrado 3,5 bilhões de reais com as vendas do Setor Noroeste. No dia 21
de junho de 2012, o Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal
autorizou o início das obras da segunda etapa do bairro.
30
Capítulo 2 – O verde
2.1 – Sustentabilidade e acumulação capitalista
2.1.1 – Desenvolvimento sustentável e economia verde
A origem do conceito de desenvolvimento sustentável remete à Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em 1972, em Estocolmo,
onde discutiu-se pela primeira vez a noção de ecodesenvolvimento. Mais tarde, pelas
mãos de Ignacy Sachs, esse termo transformar-se-ia no conhecido desenvolvimento
sustentável e seria acolhido pelas Nações Unidas como o novo paradigma teórico sobre o
qual deveria orientar-se, a partir de então, o desenvolvimento econômico e social da
humanidade (PATO, 2012). Aos olhos do movimento ambientalista, tratava-se de um
esforço urgente, na medida em que o modelo de desenvolvimento vigente desde o pós-
guerra mostrava-se incapaz de superar a crescente desigualdade social e provocava,
visivelmente, a acentuação da degradação ambiental. Por outro lado, sob a ótica das elites
dirigentes internacionais, tratava-se de estabelecer novas bases institucionais que
permitissem que o modelo de desenvolvimento vigente pudesse prosseguir sem grandes
rupturas e não acabasse por comprometer as bases de sua própria reprodução
(ACSELRAD, 2008).
O grande trunfo do novo conceito, como ressalta Christy Pato, foi o de
pavimentar, no âmbito das conferências sobre o meio ambiente, uma terceira via entre
duas vertentes de “especialistas”: os chamados curnucopians, para quem as preocupações
ambientais inibiriam o avanço industrial dos países em desenvolvimento; e os
denominados doomsayers, aqueles que previam uma catástrofe ambiental caso
providências preservacionistas não fossem tomadas de imediato. Sendo assim, a solução
“sustentável” de Sachs não apenas deixou intacta a crença na necessidade de crescimento
econômico, mas também a tornou “socialmente receptiva” (PATO, 2012).
Em 1987, a Comissão Brundtland, a pedido da ONU, publicaria um relatório
denominado Nosso Futuro Comum, que definiria o desenvolvimento sustentável como
“aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as
gerações futuras atenderem às suas necessidades”. Para tanto, seriam necessárias certas
medidas, entre as quais a limitação do crescimento populacional, a preservação da
31
biodiversidade e dos ecossistemas terrestres, o uso racional dos recursos naturais, a
reorientação do uso de tecnologias e a consideração dos aspectos ambientais nos
processos decisórios (ONU, 1987). O relatório, no entanto, como ressalta Henri Acselrad,
não promoveu qualquer ruptura estrutural em relação ao que até então se entendia por
desenvolvimento, uma vez que reafirmou por outras vias (ativando o arcabouço
conceitual oferecido pela noção de desenvolvimento sustentável) as necessidades de
crescimento econômico e de progresso técnico. Em outras palavras, a Comissão terminou
por conferir à acumulação capitalista um caráter “sustentável” – do ponto de vista
econômico e, por suposto, ambiental.
Aqui, cabe discutir a função legitimadora do que se tem denominado
economia verde. Esse termo, propalado indiscriminadamente por organismos
internacionais, organizações não-governamentais e governos nacionais, dá nome ao
conjunto de práticas econômicas que, segundo seus defensores, contribuiriam para a
materialização do desenvolvimento sustentável e, por extensão, trariam soluções para as
crises econômica, ambiental e alimentar. Segundo relatório do Programa das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA) intitulado Rumo a uma economia verde,
publicado em 2011, economia verde é aquela “que resulta em melhoria do bem-estar da
humanidade e igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente riscos
ambientais e escassez ecológica” (PNUMA, 2011). Como destaca Fabrina Furtado,
Trata-se de um conceito ambíguo, inconsistente e pouco fundamentado,
no que diz respeito ao seu significado e às suas implicações. Por outro
lado, como conceito, incorpora valores, interesses e posicionamentos
(neste caso, em torno da apropriação da questão ambiental). Assim,
parte do conceito e práticas já existente – desenvolvimento sustentável
– e o expande, aprofundando suas proposições e consequências. Em um
contexto de mudança climática, de implementação do mercado de
carbono e em que, com o propósito de sobrepujar a última manifestação
da crise econômica, a natureza passa a ser concebida como uma
mercadoria, alguns indícios do que este conceito ambíguo, inconsis-
tente e pouco fundamentado representa já são visíveis (FURTADO,
2012)
32
Segundo Larissa Packer, advogada e assessora jurídica da organização não-
governamental Terra de Direitos, os mecanismos da economia verde se sustentam na
teoria de que “a única possibilidade de garantir a preservação do meio ambiente é a
inserção dos processos ecológicos e dos bens ambientais no mercado”. Para tanto,
É fundamental que exista possibilidade de valoração monetária, para
viabilizar a comercialização e também a criação de leis que, por meio
do estabelecimento de obrigações, criem a demanda para o mercado
hoje inexistente. [...] A floresta em pé, a terra parada ou atividades e
tecnologias “pintadas de verde”, como o plantio direto – que coloca a
“agricultura de baixo carbono” como um dos maiores mercados de
pagamentos por “serviços ambientais” –, passam a gerar valor em
capital, criando um mercado lucrativo, e que autoriza a continuidade da
cadeia produtiva emissora e degradante do ambiente (PACKER, 2011).
Apesar da inconsistência do conceito, alguns mecanismos propostos pela
economia verde já se materializam. É o caso dos Pagamentos por Serviços Ambientais
(PSA), nos quais se inclui o mercado de carbono. Por meio desse mecanismo, a
purificação da água e do ar, a geração de nutrientes do solo para a agricultura, a
polinização e o fornecimento de insumos para a biotecnologia, por exemplo, tornam-se
mercadoria (PACKER, 2011). Aqui, é preciso salientar: o tão criticado novo Código
Florestal brasileiro não se propõe somente a flexibilizar dispositivos de proteção do meio
ambiente ou a garantir anistia a latifundiários perpetradores de crimes ambientais. O
documento também pretende inovar, estabelecendo um arcabouço jurídico moderno para
a regulamentação de mecanismos da chamada economia verde, entre eles os “Pagamentos
por Serviços Ambientais” (ACSELRAD, 2011).
2.1.2 – A sustentabilidade como religião
Partindo da percepção do caráter tecnicista do debate em torno da
sustentabilidade, evidenciado pelas conferências e relatórios da ONU e pela atuação de
organizações não governamentais e estados nacionais, Henri Acselrad nos alerta para a
insuficiência da discussão em torno das implicações sociais da questão ambiental.
Segundo nosso autor, olvida-se que a sustentabilidade “remete a relações entre a
sociedade e a base material de sua reprodução, ou seja, às diversas formas sociais de
33
apropriação e uso dos recursos ambientais” (ACSELRAD, 2008). É preciso, portanto,
promover um esforço teórico que conduza a discussão para o campo das relações sociais,
especialmente no que se refere aos embates entre grupos com interesses antagônicos.
Caso contrário, o discurso em torno da sustentabilidade acaba por adquirir um caráter
teleológico, pautado pelos pretensos efeitos de sua aplicação e não pela observância dos
múltiplos processos sociopolíticos envolvidos (ACSELRAD, 2008).
Nesse sentido, a abordagem de matriz psicanalítica proposta pelo filósofo
esloveno Slavoj Žižek se mostra pertinente. Para esse autor, o discurso ambientalista
tende, na atualidade, a assumir um nítido conteúdo ideológico: a versão predominante da
ecologia, aquela baseada na propagação do temor às catástrofes ambientais, cumpre o
papel fundamental do discurso religioso, ou seja, o de instaurar uma autoridade
inquestionável, capaz de impor limites e de orientar as ações dos indivíduos. Assim, a
ecologia atua como uma espécie de substituta para a religião em decadência no Ocidente
e assume o papel de “novo ópio para as massas” (ŽIŽEK, 2007).
Nas trilhas de Žižek, Christy Pato sugere que o discurso ambientalista tende
a atuar como estrutura de sublimação, autorizando o indivíduo ao gozo por meio de um
questionamento superficial à catástrofe ambiental; questionamento desprovido de
qualquer oposição aos fundamentos estruturais do desastre, ou seja, à lógica da
acumulação do capital (PATO, 2012).
2.1.3 – O ambientalismo de espetáculo
Como crítica à reprodução ideológica dos conceitos ambientalistas, emerge a
noção de ambientalismo de espetáculo (ACSELRAD, 2012a e FURTADO, 2012), termo
que dá nome aos fenômenos de apropriação do discurso ambientalista pelos mecanismos
da reprodução capitalista. Tal apropriação pode se expressar, por exemplo, por meio da
utilização pela publicidade dos conceitos de “desenvolvimento sustentável” e “economia
verde”; ou através dos esforços para a despolitização da questão ambiental, que tendem a
restringir a discussão em torno do meio ambiente a imperativos de ordem técnica, sem
qualquer referência aos dilemas materiais e aos embates sociais relacionados às disputas
pelos recursos naturais do planeta.
34
Para essa discussão, mostra-se incontornável a ideia marxista de ideologia.
Esta reflete, para Marx e Engels, o conjunto de crenças que se estabelecem em
consequência da reprodução ideal das relações materiais dominantes numa determinada
sociedade e que promovem o que se denomina falsa consciência; ou seja, reproduzem o
desconhecimento, por parte de um indivíduo ou classe social, de sua situação real em
relação à organização material da sociedade, acentuando-se assim as relações de
dominação. No caso do capitalismo, reforça-se a dominação da burguesia sobre o
proletariado, na medida em que a classe trabalhadora permanece inconsciente de sua
posição como classe revolucionária (MARX e ENGELS, 2007).
Nas trilhas de Marx e Engels, poderíamos afirmar que o ambientalismo de
espetáculo atua ideologicamente, impondo-se como ideia ilusória que impossibilita a
percepção e a transformação das relações sociais e materiais relativas à questão ambiental
e que, ao mesmo tempo, obscurece e legitima mecanismos de expropriação inerentes à
acumulação capitalista.
2.2 – O discurso verde da expropriação
2.2.1 – A análise do discurso
A pesquisa empírica que fornece base às observações adiante consiste,
primeiramente, na análise de reportagens publicadas no jornal Correio Braziliense,
veiculadas no período de janeiro de 2008 (data de veiculação das primeiras reportagens)
até outubro de 2012 (data da entrega dos primeiros apartamentos e anúncio da segunda
etapa de construções) por meio do website do jornal. Posteriormente, analisamos os
anúncios publicitários veiculados pelos responsáveis pelo Setor Noroeste. Pretendemos,
assim, revelar de que forma a construção do novo bairro e os conflitos socioambientais a
ele relacionados são abordados pelo jornal de maior circulação no Distrito Federal, além
de desvelar as implicações políticas e ideológicas dos conceitos ambientalistas propalados
pelos anúncios publicitários do Setor Noroeste.
Fazemos uso, como método de análise do discurso, da Análise de Discurso
Crítica (ADC), cujos pressupostos teórico-metodológicos foram estabelecidos pelo
linguista inglês Norman Fairclough. A proposta da ADC parte do princípio de que a
35
linguagem deve ser compreendida segundo sua funcionalidade nas práticas sociais,
condição que se torna possível por meio da articulação entre as análises linguísticas dos
textos e as explanações de caráter social.
O discurso é entendido pela ADC como um momento irredutível da vida
social e como expressão de um modo particular de representar o mundo, que se relaciona
a interesses específicos dos sujeitos. Aqui, como no método marxista, faz-se presente o
elemento dialético, uma vez que a linguagem é considerada parte irredutível da vida social
e, inversamente, as práticas sociais são vistas como componentes da linguagem. Em
outras palavras: a linguagem se constitui socialmente, mas também tem implicações
sociais. Estabelece-se, portanto, uma relação de caráter dialético entre linguagem e
sociedade (RAMALHO e RESENDE, 2011:10-23). Em ADC, a análise do discurso é
realizada por meio de dois processos: a compreensão e a explanação. Assim,
Um texto pode ser compreendido de diferentes maneiras, uma vez que
diferentes combinações das propriedades dos texto e do posicionamento
social, conhecimento, experiências e crenças do(a) leitor(a) resultam
em diferentes compreensões. Parte da análise é, portanto, análise de
compreensões, que envolvem descrições e interpretações. A outra parte
da análise é a da explanação, que se situa na interface entre conceitos e
material empírico. Trata-se de um processo no qual propriedades de
textos particulares são “redescritas” com base em um arcabouço
particular (RAMALHO e RESENDE, 2011:108), com a finalidade de
“mostrar como o momento discursivo trabalha na prática social, do
ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e relações de
dominação” (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999 apud
RAMALHO e RESENDE, 2011:108).
Em 2009, Alan Schvarsberg defendeu, no Centro Universitário de Brasília,
monografia de conclusão de curso de graduação em Comunicação Social intitulada A
construção do bairro Setor Noroeste feita pelo Correio Braziliense (SCHVARSBERG,
2009). Nesse trabalho, o autor analisou 38 reportagens publicadas no caderno Cidades do
Correio Braziliense entre março de 2008 e março de 2009, investigando a influência da
publicidade na construção do discurso jornalístico e discutindo a representação da questão
indígena realizada pelo diário. Aqui, inspirados pela proposta seminal de Schvarsberg,
36
expandimos cronologicamente a análise das reportagens do jornal, considerando as
demandas investigativas específicas de nosso trabalho.
2.2.2 – O Correio Braziliense e seus leitores
O jornal Correio Braziliense foi fundado em abril de 1960, em Brasília, por
Assis Chateubriand, proprietário do então maior conglomerado de mídia do Brasil, os
Diários Associados. Trata-se do jornal de maior circulação na região Centro-Oeste do
país, com tiragem diária média de 57 mil exemplares, o que representa 48% do mercado
do Distrito Federal e possibilita atingir, em média, 605 mil leitores, segundo dados do
próprio jornal. Além disso, o website do Correio Braziliense conta com uma média
mensal de 9 milhões de visualizações. Considerando-se nossos interesses de pesquisa, é
interessante notar que, em seu website, o grupo Diários Associados dá destaque para o
seguinte aspecto de seus leitores: “Os leitores do Correio Braziliense têm uma renda
familiar mensal de R$ 5.344,21, um considerável potencial de consumo” (grifo nosso)15.
Segundo Schvarsberg, no período analisado em sua monografia, o jornal divulgou 94
anúncios publicitários vinculados ao Setor Noroeste. De acordo com estimativas do autor,
a publicidade gerou um lucro de aproximadamente 2 milhões de reais ao Correio
Braziliense (SCHVARSBERG, 2009).
A leitura das reportagens nos permite, logo de início, observar que a
construção do bairro, apesar do conflito socioambiental dela decorrente, é tratada pelo
jornal como “fato consumado”. O conflito entre manifestantes e construtoras é abordado
de forma superficial e técnica; está geralmente circunscrito ao litígio pela posse da área
onde se localiza o Santuário dos Pajés. Dá-se destaque, inclusive nos títulos das
reportagens, para decisões judiciais favoráveis à desocupação da área: “Juiz autoriza uso
da força para garantir continuidade das obras no Noroeste” (MAIA, 2011) e para a atuação
do aparelho repressor estatal: “Mais de 300 policiais militares reforçam segurança no
Setor Noroeste” (TEMÓTEO, 2011). Em 28 de novembro de 2008, por exemplo, a capa
do jornal dava destaque à decisão do Tributal de Justiça do Distrito Federal que autorizou
a Terracap a dar início às vendas dos lotes às construtoras, e destacava o parecer da juíza
15 Dados disponíveis em: <http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=25>.
37
Gildete Balieiro, da Vara de Registros Públicos. A magistrada concluía que a presença
dos indígenas na região constituía “simples invasão de terras públicas” (cf. figura 8, em
anexo).
Os apoiadores da permanência do Santuário dos Pajés são denominados, de
forma genérica, como “manifestantes” ou “estudantes”; não há, na maioria dos textos
analisados, qualquer referência à existência de um movimento social organizado contra a
construção do bairro. Da mesma maneira, não se percebe qualquer esforço nas
reportagens e textos de opinião em se discutir o caráter tradicional da presença indígena
na região; os índios do Santuário, em geral, são retratados como meros “ocupantes”, ou
mesmo “invasores” (cf. figura 9, em anexo), da área destinada à construção do Setor
Noroeste.
A questão ambiental, por sua vez, é delimitada como um conjunto de
transtornos de ordem técnica a serem contornados pela atuação dos responsáveis pela
obra (poder público e iniciativa privada). A reportagem intitulada “Obras estão livres do
embargo. Por enquanto”, publicada no dia 1º de maio de 2010, é ilustrativa. O texto se
inicia com frases tranquilizadoras: “As obras de construção do Setor Noroeste seguirão
a todo vapor. A ameaça de paralisação da instalação do canteiro de obras terminou na
quinta-feira” (grifo nosso) e, em tom festivo, anuncia:
A Terracap estava pronta para se pronunciar e, se necessário, recorrer
ao Tribunal de Justiça do DF caso a decisão fosse favorável à
paralisação. Nader Franco, chefe da assessoria jurídica da estatal,
comemorou a sentença. “O juiz foi muito sensível. A Terracap tem
cumprido todos os pré-requisitos, tanto urbanísticos quanto ambientais.
Até assinamos um termo de ajustamento de conduta com o Ministério
Público”, disse (grifo nosso) (SAKKIS e MADER, 2010).
É interessante notar que várias reportagens, em geral aquelas que tratam dos
conflitos entre manifestantes e construtoras ou que relatam os possíveis atrasos na
construção do bairro, são acompanhadas de notas de rodapé escritas em tom conciliador,
sustentado por uma linguagem muito próxima à adotada em anúncios publicitários. A
seguir, um exemplo de uma destas notas, publicada em reportagem do dia 22 de junho de
2012, na qual se anunciava a aprovação, pelo Conselho de Planejamento Territorial e
Urbano do Distrito Federal (Conplan), da segunda etapa das obras do Setor Noroeste:
38
O Noroeste localiza-se no final da Asa Norte, e será construído em duas
etapas. A primeira delas começou em 2009 e a segunda que começará
este ano. Ao todo, o setor terá 15 mil unidades habitacionais, espalhadas
por 220 prédios, com capacidade para abrigar cerca de 40 mil pessoas.
O Noroeste é considerado o primeiro bairro verde de Brasília e foi
idealizado em 1987 pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa (grifo
nosso) (CORREIO BRAZILIENSE, 2012).
Em reportagem do dia 25 de setembro de 2009, o jornal anunciou o resultado
inicial de vendas do Setor Noroeste. Em tom de comemoração, a notícia se intitula
“Primeiro lançamento imobiliário do Noroeste vende 92% dos apartamentos em apenas
três dias”. Logo no primeiro parágrafo, informa-se que “[...] até o fechamento desta
edição, os seis imóveis restantes estavam reservados e faltava apenas a conclusão do
negócio” e, em seguida, que “[...] os corretores entraram em contato com os interessados
que haviam se cadastrado e, logo depois, foi registrada uma corrida aos pontos de venda”.
Na mesma reportagem, o jornal entrevista “o primeiro comprador do Setor Noroeste”, um
economista de 50 anos de idade. O “feliz proprietário” justifica sua compra com o
seguinte argumento: “Esse conceito ecológico do Noroeste vai ser o grande diferencial.
Eu já estava no cadastro de reserva e, assim que me ligaram, decidi fechar o negócio”.
Mais um depoimento, desta vez de um administrador de empresas de 39 anos, atesta a
efetividade da campanha publicitária promovida pelos investidores: “Meu grande sonho
de consumo é comprar uma cobertura no Noroeste. Como ainda não tenho capital para
isso, decidi começar com um apartamento de três quartos”. Ao finalizar a reportagem, o
Correio Braziliense procura reforçar o caráter “ecológico” do bairro com as seguintes
ponderações: “Para ganhar alvará, a empresa tem que desenvolver um projeto de acordo
com o conceito ecológico do novo bairro. Os edifícios têm sistemas modernos de captação
de luz solar e recolhimento de lixo a vácuo” (MADER, 2009).
A reportagem publicada no dia 21 de setembro de 2012, com o título
“Primeiro prédio do Noroeste será inaugurado em 15 dias”, é especialmente elucidativa
da confluência discursiva entre os textos jornalístico e publicitário. O lead, texto curto
introdutório à notícia, anunciava em linguagem tipicamente publicitária, em
complemento ao título: “Outros nove serão entregues até o fim do ano. Obras de
infraestrutura ainda estão em andamento, mas o bairro já mudou a cara da região norte
39
do Plano Piloto.” (grifo nosso). Na mesma reportagem, o jornal entrevista um gerente de
projetos da Terracap e destaca o bom andamento das obras de infraestrutura:
“Queremos terminar as obras básicas de infraestrutura antes do período
de chuvas. Em dezembro, só o sistema de drenagem não estará
concluído”, afirma Albatênio Granja, gerente de projetos do Noroeste
da Terracap. Os novos apartamentos já possuem luz elétrica e água
encanada, e a iluminação pública começou a ser instalada esta semana
pela Companhia Energética de Brasília (CEB) (FURQUIM, 2012).
No website do Correio Braziliense há, ao final de cada reportagem, um espaço
para comentários dos leitores. A análise desses textos nos parece interessante, uma vez
que revelam em que medida as opiniões dos leitores a respeito de certos temas refletem o
posicionamento do jornal. É possível perceber, em alguns casos, que o texto jornalístico
tende a orientar ou reforçar o posicionamento da opinião pública, como sugerem os textos
a seguir.
No dia 8 de novembro de 2012, o jornal informa que “O juiz plantonista do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região José Márcio da Silveira e Silva autorizou a Polícia
Militar a usar da força e prender qualquer pessoa que impeça o andamento das obras no
Setor Noroeste” (MAIA, 2011). No “espaço do leitor”, comenta-se:
Esse movimento está tão desprovido de razão que ninguém da
população apoiou. Aliás, muito pelo contrário: 95% da população de
Brasília está contra esses índios oportunistas e essa meia-dúzia de
manifestantes ignorantes (MAIA, 2011).
Em resposta à reportagem do dia 10 de novembro de 2011, que também
destaca a atuação da Polícia Militar do DF (segundo o Correio Braziliense, para “garantir
a segurança na continuidade das obras no Setor Noroeste”), uma leitora do jornal
comentou:
A PM-DF está de parabéns! Até que enfim planejou e está executando
uma operação exemplar para garantir a paz e a ordem no DF. As obras
no Noroeste garantem empregos, renda e trabalho para milhares de
pessoas, beneficiando toda a coletividade. Parabéns, PM-DF! (grifo
nosso) (TEMÓTEO, 2011).
40
No dia 2 de fevereiro de 2012, o jornal publicou reportagem anunciando o
acordo realizado entre duas das etnias que habitavam o Santuário dos Pajés e a Terracap
(MACHADO e TOLENTINO, 2012). Segundo o acordo, as famílias das etnias Kariri-
xocó e Tuxá concordavam em se transferir a um terreno de 12 hectares, que seria doado
pelo governo do Distrito Federal à União. Revoltado com a situação, um dos leitores
comentou: “É impressionante o que ocorre em Brasília. Um bando de meliantes, invasores
de terra pública, botam a população ordeira da cidade de joelhos” (grifo nosso)
(MACHADO e TOLENTINO, 2012). Outro leitor, aparentemente indignado com a
permissividade do Estado em relação aos indígenas, escreveu o seguinte:
Os índios da Asa Norte bagunçaram, serviram de divertimento para
"estudantes" em férias e agora fica claro que a reinvindicação era
estapafúrdia, mas acabaram levando uma "terrinha". Aqui é assim, cria
uma confusão, o GDF, "bonzinho", doa parte do território para os
desordeiros (grifo nosso) (MACHADO e TOLENTINO, 2012).
Publicou-se, no dia 21 de setembro de 2012, notícia em que o jornal anunciava
a inauguração iminente do primeiro edifício do Setor Noroeste (FURQUIM, 2012). Um
leitor, que se dizia proprietário de apartamento no bairro, comentou a respeito:
Noroeste vai ser o melhor bairro do Brasil e um dos melhores do
mundo. Comprei uma cobertura lá e recomendo que quem tenha
condições compre também, pois terá a melhor qualidade de vida de
Brasília. Noroeste, rumo ao futuro (grifo nosso) (FURQUIM, 2012).
A leitura dos comentários às notícias nos revela que os indígenas são vistos
por grande parte dos leitores do Correio Braziliense como entraves passíveis de remoção;
como obstáculos ao “progresso”. Este, em oposição à ideia de atraso associada à
comunidade indígena, está vinculado à perspectiva do futuro; à imagem das edificações
urbanas de “alto padrão” a serem erguidas sobre o território do Santuário.
2.2.3 – A publicidade
Nesse momento, passamos à análise dos anúncios publicitários relacionados
ao Setor Noroeste, a fim de perceber em que medida, segundo nossa hipótese, o discurso
ambientalista é, nesse caso, utilizado como instrumento ideológico capaz de agregar valor
41
de mercado ao empreendimento imobiliário e, ao mesmo tempo, revesti-lo de um caráter
eticamente determinado, em nome da “sustentabilidade”.
Desde seu lançamento, o bairro, oficialmente denominado Setor de
Habitações Coletivas Noroeste (SHCNW), vem sendo chamado por seus anunciantes de
“Noroeste Ecovila”. O termo ecovila designa um modelo de assentamento humano
“alternativo”, baseado nos pressupostos do desenvolvimento sustentável e da economia
verde. Jonathan Dawson, ex-presidente da Global Ecovillage Network (GEN),
organização que orienta a prática dessa modalidade de assentamento humano, as ecovilas
devem possuir as seguintes características: projetos independentes de financiamentos
governamentais; valores comunitários sólidos; produção e processamento local de
alimentos orgânicos; utilização da permacultura, de construções ecológicas e de sistemas
de transporte de baixo impacto ambiental; promover a cultura pacifista e a educação
“holística” do indivíduo; aprender a partir do diálogo com comunidades tradicionais
(DAWSON, 2006).
Na prática, as ecovilas se restringem, em sua maioria, a pequenas
“comunidades alternativas” localizadas em regiões bucólicas de países ricos ou em áreas
abastadas de países em desenvolvimento. Limitações de ordem técnica e alto custo de
implantação tornam bastante improvável sua aplicabilidade a áreas urbanas de grande
concentração populacional, como é o caso de Brasília. O fato é que os impactos
socioambientais e culturais relacionados à construção do Setor Noroeste parecem não
colaborar para sua adequação aos critérios de “sustentabilidade” pregados pelos
idealizadores das ecovilas. A figura 10, em anexo, ilustra essa contradição: o novo bairro
(que, em sua condição de “ecovila”, deveria produzir seus próprios alimentos orgânicos,
fazer uso de meios de transporte de baixo impacto ambiental, dialogar com comunidades
tradicionais, etc.), utiliza como chamariz publicitário o fato de estar localizado próximo
a shopping centers, supermercados e postos de gasolina.
O discurso em torno da “sustentabilidade” na publicidade do Setor Noroeste
(Noroeste Ecovila, como querem os anunciantes), parece pretender ressaltar a ideia de
que o eventual morador do bairro não estaria simplesmente usufruindo da natureza ou
gozando do bem-estar proporcionado pelo privilégio de se viver num “bairro verde”; o
proprietário estaria, ao mesmo tempo, cumprindo uma espécie de dever ético. Não se
42
trataria somente de uma moradia (ou de uma fonte de especulação); adquirir um imóvel
naquele bairro seria, antes, um ato de responsabilidade ambiental e de consciência social.
Aqui, o discurso ambientalista parece atuar, em alinhamento ao que sugerem as análises
de Slavoj Žižek e Christy Pato, como instrumento de redenção para a ação egóica do
indivíduo: o futuro proprietário será capaz de sublimar, de imediato, qualquer eventual –
ainda que improvável – questionamento de ordem ética a respeito, por exemplo, da
devastação do cerrado ou da expulsão de famílias indígenas ocasionados pela construção
do Setor Noroeste; ao mesmo tempo em que se garante numa posição de gozo proveniente
do cumprimento de um suposto imperativo moral. Em Economia política do
desenvolvimento sustentável, Christy Pato elucida o processo:
O conteúdo ideacional presente no sentimento oceânico, que dá o tom
também da ascese religiosa, apresenta-se na figura da ecologia como a
mesma pulsão de unidade com o universo. O sistema mundial produtor
de mercadorias, claro está, só pode manter-se pela reificação da mão
invisível, pela assunção, portanto, de um sujeito em cuja ação movida
por interesses individuais repousam consequências benéficas para
todos. A consciência ecológica elevada à condição de imperativo
categórico nos remete, portanto, à posição de gozo de uma recuperação
de nosso vínculo íntimo com o mundo. Internalizado, assim, um sentido
e um conteúdo moral da ação meramente egóica, o padeiro smithiano
emerge, renovado (PATO, 2012).
Slavoj Žižek observa fenômeno análogo na vertente da caridade corporativa
que se ocupa da disseminação do chamado consumo responsável: o consumidor não
somente compra uma mercadoria – uma xícara de café orgânico da rede multinacional
Starbucks, por exemplo –, mas realiza, simultaneamente, uma boa ação. Afinal, parte do
lucro proveniente da venda do produto será revertido a causas humanitárias em países
pobres. Tal instrumento, como sarcasticamente sugere Žižek, torna mais “simples” a vida
do consumidor, pois o ato altruísta do indivíduo já está, por assim dizer, “incluído” no
preço do produto (ŽIŽEK, 2011). Por essa via ideológica, o consumo, além de não ser
questionado, é anunciado como solução ética para os “efeitos colaterais” do capitalismo.
A caridade corporativa reproduz, portanto, a mesma lógica observada na apropriação do
discurso ambientalista em nosso estudo de caso. Nesse sentido, o filósofo francês Alain
43
Badiou se posicionou, em entrevista recente, da seguinte maneira a respeito do emprego
do ecologismo como instrumento de “humanização” do capitalismo:
Trata-se de um velho debate (“um capitalismo regulado, normatizado,
humanizado, não seria possível?”) que acaba por negar o próprio
fundamento do capitalismo. Se o capitalismo é feroz e cruel, não o é
porque seja “malvado”. Essa é a sua natureza. Não é possível imaginar
que algo que funcione sob a norma absoluta da maximização dos lucros
esteja preocupado com o bem-estar da humanidade. Se ser verde
significar pintar-se de verde, não há dúvida: o capitalismo se pintará de
verde (tradução nossa) (BADIOU, 2012).
No anúncio reproduzido na figura 11, em anexo, pode-se notar, mais uma
vez, a atuação ideológica do discurso ambientalista como mecanismo de valorização
financeira do empreendimento imobiliário. Apesar da devastação do cerrado nativo e dos
riscos ambientais decorrentes da construção do bairro, o discurso publicitário é construído
a fim de sugerir que a natureza (ainda que suprimida pela atuação das empreiteiras), atue
como chamariz e seja apresentada, como diriam os publicitários em seu ignóbil jargão,
na condição de “diferencial” do empreendimento. É o que podemos percebemos a partir
da leitura do slogan do anúncio em questão: “Noroeste: diferente por natureza”.
44
Capítulo 3 – A luta
3.1 – Urbanização e conflitos socioambientais
3.1.1 – Delimitação teórica
Estudiosos da questão ambiental têm recorrido ao termo ambientalização seja
para se referir ao processo de adoção de um discurso ambientalista por determinado grupo
social, seja para designar o fenômeno de incorporação de justificativas ambientais como
forma de legitimação de práticas institucionais, políticas, científicas, etc. (ACSELRAD,
2010). Segundo Acselrad, é essencial discutir tais mecanismos de apropriação do discurso
ambientalista pelos grupos sociais, pois
É por meio desses processos que novos fenômenos vão sendo
construídos e expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos
são renomeados como “ambientais”, e um esforço de unificação
engloba-os sob a chancela da “proteção ao meio ambiente”. [...] Nessas
disputas em que diferentes atores sociais ambientalizam seus discursos,
ações coletivas são esboçadas na constituição de conflitos sociais
incidentes sobre esses novos objetos, seja questionando os padrões
técnicos de apropriação do território e seus recursos, seja contestando a
distribuição de poder sobre eles (ACSELRAD, 2010).
Nesse sentido, a noção de desigualdade ambiental reflete a percepção de que
os riscos ambientais impactam em graus distintos os diferentes grupos sociais; os quais,
por sua vez, atuam de acordo com repertórios específicos em relação à apropriação e uso
dos recursos naturais e das bases materiais da sociedade. Essa preocupação com os
fundamentos estruturais dos conflitos socioambientais é justamente o que move a
perspectiva analítica da Ecologia Política, sobre a qual nos apoiamos neste trabalho para
a discussão do conflito relacionado à construção do Setor Noroeste.
Ainda seguindo tal perspectiva, chegamos ao conceito de racismo ambiental.
Essa ideia tem sua origem nos Estados Unidos, na década de 1970, mais especificamente
a partir da percepção de que três quartos dos aterros de resíduos tóxicos do Condado de
Warren, na Carolina do Norte, localizavam-se em bairros habitados majoritariamente por
negros (PACHECO, 2007). O conceito reflete, portanto, o fato de que os riscos ambientais
recaem com maior intensidade sobre determinados grupos étnicos, como é o caso, por
45
exemplo, dos negros da Carolina do Norte ou, em nosso estudo, dos índios do Santuário
dos Pajés.
Em diálogo com a Ecologia Política, o economista catalão Joan Martínez-
Alier propõe o conceito de ecologismo dos pobres para dar nome à confluência de lutas
de movimentos socioambientais que não se alinham às vertentes ecologistas
hegemônicas, as quais ignoram justamente a existência dos fenômenos de desigualdade e
de racismo ambiental; ou seja, desconsideram a estrutura de distribuição dos recursos
naturais e riscos ambientais.
A primeira corrente questionada por Martínez-Alier é a do culto à vida
silvestre, que consiste, em linhas gerais, na “defesa da natureza intocada, no amor aos
bosques primários e aos cursos d’água” (MARTÍNEZ-ALIER, 2007:22). Esse tipo de
ecologismo essencialmente preservacionista, cuja base científica se estabeleceu com o
desenvolvimento da biologia da conservação, nos anos 1960, tem origem no século XIX,
nos Estados Unidos, com os trabalhos dos naturalistas John Muir e Aldo Leopold e com
a fundação da organização preservacionista Sierra Club. Essa doutrina ambientalista,
segundo Martínez-Alier, ainda hoje é bastante atuante e serve, em maior ou menor
medida, como sustentação teórica para importantes organizações internacionais, como a
International Union for the Conservation of Nature (IUCN), o Worldwide Fund for
Nature (WWF) e a Nature Conservancy.
A segunda corrente ecologista questionada por Martínez-Alier é a chamada
de evangelho da ecoeficiência. Em aparente oposição ao “culto ao silvestre”, a vertente
da ecoeficiência se mostra preocupada com os efeitos ambientais do crescimento
econômico: “sua atenção está direcionada para os impactos ambientais ou riscos à saúde
decorrentes das atividades industriais, da urbanização e também da agricultura moderna”
(MARTÍNEZ-ALIER, 2007:26). A ecoeficiência, apesar de defender a necessidade de
crescimento econômico, sustenta-se em conceitos como desenvolvimento sustentável,
modernização ecológica e utilização racional dos recursos naturais; assim, fala-se mais
no manejo adequado e uso eficiente dos “recursos naturais” (ou do “capital natural”) do
que propriamente na “preservação da natureza”. Segundo Martínez-Alier, o credo no
evangelho da ecoeficiência domina os debates ambientais, tanto sociais quanto políticos,
na Europa e nos Estados Unidos. Essa vertente de pensamento ambientalista fornece a
46
sustentação teórica, por exemplo, para os mecanismos econômicos (ecoimpostos,
mercado de carbono, etc.) da chamada economia verde. Nesse sentido, o evangelho da
ecoeficiência atua como um vínculo entre as corporações e o “desenvolvimento
sustentável”, e converte a ecologia numa “ciência gerencial para limpar ou remediar a
degradação causada pela industrialização” (VISVANATHAN, 1997 apud MARTÍNEZ-
ALIER, 2007:28).
Martínez-Alier argumenta que as duas vertentes ecologistas discutidas (o
“culto ao silvestre” e o “evangelho da ecoeficiência”) são, ainda hoje, hegemônicas e,
Seja qual for a corrente que detém a primazia, as duas vertentes do
ambientalismo convivem atualmente em simultaneidade,
entrecruzando-se às vezes. Nesse sentido, observamos que se a procura
utilitarista da eficiência no manejo florestal poderia confrontar-se com
os direitos dos animais, num sentido oposto os mercados reais ou
fictícios de recursos genéricos ou de paisagens naturais, poderiam ser
entendidos como instrumentos eficientes visando à sua preservação.
[...] Às vezes, aqueles cujo interesse pelo meio ambiente associa-se
exclusivamente à esfera da preservação da vida selvagem exageram
sobre a suposta facilidade com que se poderia desmaterializar a
economia, terminando em se converterem em apóstolos oportunistas do
evangelho da ecoeficiência. Por quê? Porque ao afirmar que as
mudanças tecnológicas tornarão compatível a produção de vens com a
sustentabilidade ecológica, enfatizam a preservação daquela parte da
natureza que, ainda, se mantivera fora da economia. Nessa perspectiva,
o “culto ao silvestre” e o “credo da ecoeficiência” dormem juntos
(MARTÍNEZ-ALIER, 2007:32-33).
Nesse contexto, Henri Acselrad nos alerta para a consolidação, no Brasil, de
um ambientalismo consensualista legitimado por acadêmicos e especialistas que se
esforçam para forjar uma interpretação da causa ambiental baseada num “pragmatismo
tecnicista e paliativo” de caráter “universalista e supraclassista”, em substituição ao
ambientalismo contestatário. Os representantes do ambientalismo consensualista,
tecnicamente denominado multissetorial, argumentam que o movimento ambientalista
não comportaria distinções ou embates de caráter classista e seria, antes, o resultado de
um “consenso de múltiplos segmentos da sociedade” em torno de uma visão de mundo
47
ambientalista, ou seja, “consciente” e “preocupada” com a degradação do meio ambiente
(ACSELRAD, 2012). Segundo Samyra Crespo, “especialista” citada por Acselrad,
Os agentes do ambientalismo seriam, potencialmente, todos os cidadãos
do planeta, todos aqueles que se sensibilizam e que de alguma forma
adquirem uma ‘consciência’ em relação à crise ambiental e à
necessidade de reverter o processo de devastação da biosfera. [...] O
nosso conflito principal está se dando entre o homem e a natureza e
não entre os homens (grifo nosso) (CRESPO, 1995 apud ACSELRAD,
2012b).
O ambientalismo é visto, portanto, como resultado de um consenso em torno
de “preocupações” comuns relativas aos problemas ambientais, os quais seriam passíveis
de resolução por meio de um tratamento tecnicamente adequado; não há espaço para a
discussão dos conflitos sociais e das contradições materiais inerentes à questão ambiental.
Para Acselrad, “o que se está a recusar aqui é que se questione a legitimidade da ação
política em nome do imperativo da cooperação consensualista” (ACSELRAD, 2012b).
Em oposição à convivência harmoniosa e acrítica das correntes hegemônicas
do pensamento ambientalista, fundamentadas no ecologismo de resultados, Martínez-
Alier nos apresenta a vertente do ecologismo dos pobres (também chamado, por alguns
autores, de ecologismo popular, ecologismo de combate ou de movimento pela justiça
ambiental). O ecologismo dos pobres dá nome, portanto, ao conjunto de repertórios
discursivos e práticos dos movimentos socioambientais empenhados nas lutas contra a
injustiça ambiental fomentada por fenômenos como a desigualdade e o racismo
ambientais. Na atualidade, essa perspectiva se fortalece, inevitavelmente, em decorrência
da multiplicação e do acirramento dos conflitos ecológicos distributivos em todo o
mundo. O movimento social “O Santuário não se move!”, analisado em nosso trabalho,
insere-se nesse contexto de lutas pela afirmação da justiça ambiental.
3.1.2 – Conflitos socioambientais e meio urbano
Em O ecologismo dos pobres, Martínez-Alier argumenta que o aumento da
população urbana mundial no último século tende a fazer com que as economias
dependam, cada vez mais, de maiores quantidades de energia e de materiais per capita.
48
O incremento da produtividade agrícola e a expulsão da população ativa do campo para
as cidades têm como consequência direta a intensificação dos processos de urbanização.
Estes, por sua vez, tendem a multiplicar e a deslocar os problemas ambientais para uma
escala espacial cada vez mais extensa, pois os territórios das cidades abrigam, em geral,
populações demasiado grandes para se auto-sustentar (MARTÍNEZ-ALIER, 2007:211-
212). A multiplicação dos conflitos socioambientais torna-se, nesse contexto, inevitável.
No caso brasileiro, Andréa Zhouri nos lembra que a histórica concentração
de terras no meio rural e a imposição do agronegócio baseado na monocultura e na
mecanização são responsáveis por acentuar os movimentos migratórios compulsórios do
campo para a cidade, além de provocar a destruição de ecossistemas como o cerrado e a
floresta amazônica. As famílias expulsas do campo se veem obrigadas a instalar-se em
regiões marginalizadas das cidades, o que acentua o fenômeno da desigualdade ambiental
nos meios urbanos. Zhouri destaca algumas consequências desse tipo de ocupação do
território, que tende a se replicar nas metrópoles brasileiras na medida em que se
intensificam os processos de urbanização:
Tendo como referencial o acesso aos recursos e ao território (este último
enquanto locus privilegiado da memória e da identidade) e o
direcionamento dos riscos urbanos, por exemplo, as investigações
empíricas não deixam dúvidas sobre quem são as vítimas do
desenvolvimento ou da modernização conservadora. A poluição incide
muito mais sobre as camadas de baixa renda, que não têm tratamento
sanitário apropriado em sua maioria, não têm acesso aos bens e serviços
urbanos e em geral ocupam áreas de risco, áreas contaminadas, etc. São
os pobres que moram em áreas industriais e recebem a poluição direta,
a contaminação por metais pesados e outros. São os pobres os que mais
sofrem com as enchentes, pois habitam áreas de risco pela segregação
socioespacial urbana (ZHOURI, 2007).
À luz do ecologismo dos pobres, a autora argumenta que são aqueles mesmos
sujeitos, as vítimas da modernização conservadora e da segregação sócio-espacial, os
responsáveis por promover a politização da questão ambiental nas cidades, na medida em
que lutam pelo acesso aos serviços urbanos e pela igualdade na distribuição dos recursos
naturais (ZHOURI, 2007). Nesse sentido, Henri Acselrad afirma que
49
Muitos movimentos sociais construíram, a seu modo, [...] aquilo que
constitui a dimensão ambiental específica às suas lutas, convergindo na
denúncia da desigualdade ambiental própria a um modelo de
desenvolvimento que baseia-se na expropriação das condições de
existência de trabalhadores urbanos, grupos camponeses, povos e
comunidades tradicionais (grifo nosso) (ACSELRAD, 2012b).
Os movimentos socioambientais emergem, portanto, da percepção de uma
situação de desigualdade ambiental e se constituem na medida em que um grupo de
pessoas se organiza na luta contra as injustiças ambientais. Em contextos urbanos, tais
movimentos sociais adquirem características próprias, pois se mobilizam não só pela
justiça ambiental, mas também pelo direito à cidade; ou seja, pelo direito “à vida urbana,
à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos
do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais” (LEFEBVRE,
2008:139). Como argumenta David Harvey, reivindicar o direito à cidade significa, em
linhas gerais, lutar pelo controle dos processos que determinam a produção e a expansão
das cidades (HARVEY, 2008). Sustentamos que tal luta deve ser necessariamente
orientada pelo questionamento dos mecanismos próprios da urbanização capitalista. A
formulação de modelos alternativos de urbanização depende desse enfrentamento.
3.2 – Notas sobre a conjuntura e a resistência
3.2.1 – A exceção
Como procuramos demonstrar nos dois primeiros capítulos deste trabalho, a
porosidade do governo em relação aos interesses privados, a inação de órgãos
governamentais, a maleabilidade da Justiça e a utilização ideológica de conceitos
ambientalistas são fatores que autorizaram ao Estado e aos empresários do setor
imobiliário de Brasília a utilização da intimidação, da corrupção e da violência como
mecanismos de espoliação da população indígena e do meio ambiente, configurando-se
assim o dispositivo que denominamos urbanização por expropriação.
A transição da administração distrital do governo Arruda (DEM) ao governo
Agnelo (PT) não significou uma mudança de abordagem da administração pública em
relação às questões socioambientais implicadas na construção do Setor Noroeste. O
50
governo petista, cuja campanha eleitoral foi, em parte, financiada16 por empresas ligadas
à construção civil e ao projeto Noroeste, continuou a oferecer suporte logístico para a
atuação das empreiteiras, inclusive em ações conjuntas com seguranças privados,
desrespeitando-se o embargo temporário das obras determinado pela Justiça.
No entanto, o posicionamento do governo distrital do petista Agnelo Queiroz
em relação à questão indígena do Santuário dos Pajés, bem como a precarização
generalizada dos direitos indígenas durante os governos Lula da Silva (PT) e Dilma
Rousseff (PT), devem ser entendidos considerando-se não só o jogo político-eleitoral
regional, mas também a conjuntura política que se estabeleceu a partir da execução dos
grandes projetos de infraestrutura conduzidos pelo governo federal em todo o país. Além
de causarem impactos ambientais expressivos, alguns dos projetos relacionados ao
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e às obras para os grandes eventos
esportivos de 2014 e 2016 afetam terras tradicionalmente habitadas por populações
indígenas. As reações à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, ou o
caso recente da aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, são expressões do conflito de
interesses existente entre o governo federal (cujos recursos são, via de regra, aplicados
segundo a orientação de lobbies de agentes privados) e as comunidades indígenas afetadas
pelas obras.
Um informe publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em
janeiro de 2013, evidencia que a inação da FUNAI em relação à demarcação da terra
indígena pertencente ao Santuário dos Pajés não é um caso isolado. Atualmente, no Brasil,
339 comunidades indígenas esperam pelo reconhecimento oficial de suas terras; em 2012,
apenas 7 terras indígenas foram homologadas pelo governo federal. Segundo o mesmo
informe, a taxa de execução do orçamento indigenista foi de apenas 71,37%, sendo que
somente 37,66% da verba destinada especificamente à “delimitação, demarcação e
regularização das terras indígenas” foram utilizados (CIMI, 2013).
16 A Emplavi, uma das empreiteiras detentoras dos direitos de construção na área do Santuário, está entre
as maiores doadoras da campanha de Agnelo Queiroz (PT) ao governo do DF. A empresa doou, no dia
27/10/10, R$150.880,00 aos cofres do Partido dos Trabalhadores (conferir prestação de contas do
candidato, disponível em: <http://spce2010.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2010>.
51
Ainda no âmbito de atuação do governo federal, cabe destacar a publicação,
pela Advocacia-Geral da União (AGU), em 16 de julho de 2012, da Portaria nº 303, que
estende a todas as comunidades indígenas do país as condicionantes impostas por decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, em Roraima. Segundo posicionamento do CIMI, a efetivação da portaria traria
grandes prejuízos para a afirmação dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Entre
outras consequências, o documento permite que terras indígenas sejam ocupadas por
unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos
hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades
indígenas; além de limitar e relativizar o direito dos povos indígenas sobre o usufruto das
riquezas naturais existentes em suas terras (CIMI, 2012).
Para a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a portaria tem como
objetivo homogeneizar, de forma arbitrária, decisões relacionadas a questões complexas,
que deveriam ser tratadas segundo suas singularidades, com atenção às múltiplas
interpretações antropológicas e jurídicas delas derivadas (ABA, 2012). Como destaca a
nota publicada pelo CIMI, a portaria tem teor inconstitucional, uma vez que o Advogado
Geral da União não tem poderes para promulgar leis que afetem os povos indígenas, o
que, segundo a Constituição Federal, compete ao Congresso Nacional. Além disso, o
documento impõe condicionantes para o usufruto exclusivo pelos povos indígenas das
riquezas naturais existentes em suas terras, em visível desrespeito ao artigo 231 da
Constituição Federal (CIMI, 2012).
Percebe-se, tanto no caso do Santuário dos Pajés, quanto no âmbito dos
grandes projetos do governo federal, a utilização indiscriminada de instrumentos jurídicos
ad hoc, com o objetivo de flexibilizar a aplicação dos direitos indígenas e, ao mesmo
tempo, retirar qualquer entrave jurídico à continuidade das obras. Assim, cria-se uma
espécie de exceção em relação às normas constitucionais que deveriam garantir os direitos
dos povos indígenas. No dia 18 de julho de 2012, em nota de repúdio à Portaria nº 303 e
às políticas indigenistas do governo federal, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB), declarou:
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil manifesta publicamente o
seu total repúdio a esta outra medida autoritária do Governo Dilma, que,
como o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, considera os povos e
52
territórios indígenas ameaças e empecilhos a seu programa
neodesenvolvimentista, principalmente à implantação do PAC e do
PAC 2 [...]. Este tratamento dado aos povos indígenas não tem
cabimento num Estado democrático de direito, a não ser num estado de
exceção ou num regime ditatorial, cujas políticas e práticas a atual
presidente da República e seus mais próximos assessores conhecem
bem (grifo nosso) (APIB, 2012).
Considerando o teor do depoimento da APIB, nos parece pertinente, nesse
momento, a discussão de Giorgio Agamben acerca da curiosa ocorrência, nos Estados
contemporâneos ditos democráticos, de práticas de governo totalitárias:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a
instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal
que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas
também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão,
pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação
voluntária de um estado de emergência [exceção] permanente (ainda
que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma
das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos
chamados democráticos (grifo nosso) (AGAMBEN, 2004:13).
No que diz respeito às comunidades indígenas brasileiras, podemos afirmar
que a explícita suspensão de garantias constitucionais (tecnicamente, nos termos do artigo
138 da Constituição Federal de 1988, o decreto do estado de sítio17) seria, atualmente,
desnecessária. O já discutido posicionamento da FUNAI de que os preceitos do artigo
231 da Constituição Federal não se aplicariam a terras urbanas é um exemplo prático de
formulação de instrumento jurídico ad hoc. Percebe-se, quando tratamos da situação dos
povos indígenas no Brasil, que o estado de exceção se configura como técnica de
dominação e de eliminação física permanente dessas populações.
17 Transcrevemos, a seguir, o artigo 138 da “Constituição cidadã”: “O decreto do estado de sítio indicará
sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e,
depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas
abrangidas”
53
Aqui, cabe o posicionamento, em entrevista a nós concedida, do professor
Jorge Eremites de Oliveira a respeito da atuação da FUNAI no reconhecimento e proteção
de terras tradicionais indígenas no Brasil:
Minha avaliação acerca desse assunto parte, sobretudo, das
experiências acumuladas em Mato Grosso do Sul, onde trabalho como
professor universitário desde 1996, embora tenha conhecido a realidade
de comunidades indígenas em outros estados da Federação. Neste
sentido, tenho a dizer que a FUNAI é um órgão do Estado Brasileiro e,
como tal, não consegue cumprir o seu papel no que se refere à proteção
de terras indígenas já homologadas. Tampouco o consegue fazer no
que diz respeito à identificação, delimitação e demarcação de terras
indígenas ainda não homologadas no âmbito do Judiciário. Exemplo
disso seria a dificuldade em proteger dezenas de terras indígenas contra
a ação de garimpeiros, madeireiros e extrativistas na Amazônia Legal.
Outro exemplo seria a demora em mais de meio século na regularização
de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades Guarani, Kaiowá
e Terena em Mato Grosso do Sul. Mas esta discussão é bastante
complexa, haja vista a ação da bancada ruralista nos poderes
constituídos na República, como ocorre no Congresso Nacional,
apenas para citar um exemplo. Soma-se a isso o fato de o atual governo
federal ter feito muito pouco, ou praticamente nada, para reverter o
quadro. Enquanto o assunto não for tratado como prioridade de
Estado, muito pouco terá sido feito. E o pouco feito somente existirá
graças à pressão dos movimentos indígenas. Digo isso porque a FUNAI
e os governos em geral são como feijão – como me disseram em 2012
alguns Xokleng de Santa Catarina –, ou seja, só amolecem na pressão
(grifo nosso) (OLIVEIRA, 2013).
A recente revisão do Código Florestal tem, na questão ambiental, implicações
análogas àquelas da Portaria nº 303 em relação à questão indígena. Criam-se, com o novo
documento, normas ad hoc que flexibilizam a legislação, desfazendo-se, um a um, como
demonstra Henri Acselrad, os poucos dispositivos que até então impunham limites à
devastação do meio ambiente:
A proposta de alteração do Código Florestal do chamado “Relatório
Aldo Rebelo” pretende anistiar os desmatamentos ilegais realizados em
54
Áreas de Proteção Permanente até 2008; diminuir a proteção aos rios e
topos de morro; reduzir a área destinada a ser mantida em reserva legal
em todo o país; permitir a compensação da área de reserva legal em
lugares remotos sem a necessidade de se observar nenhum critério
ambiental e possibilitar que municípios autorizem desmatamento [...]
Leis e normas ambientais que pressupõem, tal como na Constituição de
1988, “o meio ambiente como bem de uso comum do povo”, são, via
de regra, apresentadas como entraves burocráticos ao
desenvolvimento (grifo nosso) (ACSELRAD, 2011).
Mais uma vez, como na questão indígena, os direitos sociais são interpretados
como entraves ao “progresso” (leia-se: obstáculos a interesses econômicos de
empresários da construção civil e de latifundiários do agronegócio) e, seja por meio de
dispositivos jurídicos ad hoc, seja pelo uso direto da violência, são suprimidos. As velhas
formas de expropriação são asseguradas e novas oportunidades (“sustentáveis”, como já
vimos) são geradas, estabelecendo-se, assim, condições excepcionais para a reprodução
do capital. A construção do Setor Noroeste, em Brasília, inscreve-se nessa conjuntura.
3.2.2 – “O Santuário não se move!”
O movimento social “O Santuário não se move!” surgiu, como grupo
organizado, no primeiro semestre de 2008, momento em que o governo do Distrito
Federal afirmou sua pretensão de iniciar, por meio da empresa pública Terracap, a venda
de lotes às empreiteiras interessadas na construção de edifícios residenciais e comerciais
no Setor Noroeste. O movimento apartidário é constituído por atores diversos da
sociedade civil: indígenas, estudantes secundaristas e universitários, professores,
ambientalistas, defensores dos direitos humanos, entre outros. Os militantes,
autodenominados “apoiadores do Santuário”, têm como principais reivindicações a
manutenção dos indígenas no território do Santuário dos Pajés, a paralização das obras
do Setor Noroeste e a consequente preservação do cerrado nativo em torno da terra
indígena. Essa luta, no entanto, tem implicações mais amplas, como destaca o depoimento
da militante Magdalena18, por nós entrevistada:
18 Utilizaremos nomes fictícios a fim de preservar a identidade e a privacidade dos sujeitos entrevistados.
55
A luta do Santuário não é uma luta apenas indigenista ou ambiental, é
uma luta por moradia para as classes baixas, uma luta contra a
especulação, contra a corrupção. Então a questão está na pauta dos
outros movimentos sociais. O movimento "O Santuário não se move"
era apartidário, mas integrava militantes autonomistas, membros de
partidos, movimentos sociais de Brasília na luta por uma pauta que é
bem ampla, na verdade (grifo nosso) (MAGDALENA, 2013).
O posicionamento da militante é reforçado por depoimento do indígena
Awamirim Tupinambá, habitante do Santuário dos Pajés. Em entrevista à jornalista
Adriana Kortlandt, Awamirim destaca a relevância histórica da luta do Santuário dos
Pajés e suas implicações para a população do Distrito Federal:
A presença indígena no DF, principalmente no Setor Noroeste, não é
apenas um imperativo ecológico, ambiental, de cidadania, de
reconhecimento da diversidade cultural do Brasil. Antes de tudo, é uma
justiça histórica. [...] Brasília tem a oportunidade de revolucionar sua
continuísta história de colonial de segregação social, econômica e
espacial. As cidades satélites são a repetição colonial dessa tendência
e agora o respeito e reconhecimento do Santuário dos Pajés são uma
mudança de consciência e de inflexão de um padrão recorrente de
segregação social, racismo e destruição ambiental. O Santuário tem a
missão de conscientizar pelo respeito à presença indígena na região,
difundindo os valores da tolerância, do pluralismo e da convivência
pacífica. Ganham todos: nós, a cidade, a civilidade e as futuras gerações
(grifo nosso) (KORTLANDT, 2011).
O militante Marcos, em depoimento reproduzido a seguir, delineia, a partir
de sua experiência pessoal, um rico histórico da conjuntura política, dos acontecimentos
e dos encontros que levaram à aglutinação de militantes sociais do Distrito Federal em
torno da causa do Santuário dos Pajés:
Antes de conhecer a comunidade indígena participei de outros
movimentos. Em 2004 foi organizada a primeira Convergência de
Grupos Autônomos na Candangolândia, reunindo pessoas que
cultivavam alguma afinidade com a discussão autônoma, seja lá o que
isso quer dizer, para refletir formas de organização horizontais e
56
apartidárias. Me sentia próximo das concepções anarquistas, creio que
a maioria das pessoas, naquele momento também. Me lembro que um
movimento que serviu de inspiração foi o zapatismo mexicano, embora
não fossem anarquistas, pois discutiam a partir da cosmovisão indígena
uma forma de organização outra que não a estamental. Outro marco foi
a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, que
originou o Indy Media, ou Centro de Mídia Independente (CMI), que
foi um importante veículo de contra informação para as lutas que
realizamos no DF. A meu ver, esses não foram os únicos referenciais
de organização de movimentos, houve também a partir de 2001 na
Argentina, uma violenta crise econômica (e quando não há crise
econômica no mundo?), e uma forte organização popular, retomada de
fábricas pelos trabalhadores, organizações barriais, entre outros. Sendo
assim, vegetarianos, anarco-punks, anarquistas, feministas, e outras
pessoas sem um norte político partidário se reuniram no Praia Verde,
um centro cultural afro, organizado por Chico Piauí e Jacira, dois
militantes históricos do movimento negro no DF. A partir desse
encontro, o que saiu de mais concreto foi a organização do Movimento
Passe Livre (MPL), que lutava por um transporte público e gratuito para
toda a população. Tal movimento contava com núcleos em outras
cidades do país, Florianópolis, Salvador e outras cidades que foram
palco de grandes manifestações. A princípio o movimento estava
organizado de acordo com as diretrizes do apartidarismo, da autonomia
e da horizontalidade. Em Brasília houve grandes atos e forte repressão
policial. Aglutinaram-se em algumas delas outros setores que não se
enquadravam no perfil estudantil, por exemplo, o Movimento dos
Trabalhadores sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores
Desempregados (MTD), sindicatos e mesmo partidos políticos
apareciam nas manifestações. Estive mais presente desse período de
2004 ao final de 2007, quando a partir de um amigo que trabalhava na
FUNAI, que foi da Federação Anarquista do Rio de Janeiro, entrei em
contato com a comunidade indígena do Bananal (MARCOS, 2013).
A entrevista do militante Marcos nos revela um importante aspecto da
comunidade indígena: o diálogo entre o Santuário dos Pajés e a exterioridade. Desde a
década de 1990, os indígenas organizam encontros com segmentos diversos da sociedade
57
do Distrito Federal, a fim de promover a conscientização da população em relação à
preservação do cerrado e de estimular o estabelecimento de contatos interétnicos e
interculturais (cf. figura 14, em anexo). Desde 2008, com o acirramento dos conflitos
entre os indígenas e os defensores do Setor Noroeste, multiplicaram-se os encontros e
estabeleceram-se vínculos com movimentos sociais e simpatizantes da causa. O diálogo
com a exterioridade é visto pelo Santuário dos Pajés como instrumento de sensibilização
da sociedade e de fortalecimento da posição indígena na luta pela demarcação e pelo
reconhecimento de seu território. Conforme nota publicada pela Associação Cultural
Povos Indígenas,
As atividades de intercâmbio cultural promovidas pela comunidade
indígena Tapuya/Fulni-Ô têm o objetivo de oferecer contatos e
encontros interculturais com a comunidade indígena do Santuário
Tapuya dos Pajés, promovendo a educação intercultural entre
sociedades de saberes diversos, propiciando o respeito às diferenças
étnicas e uma maior compreensão da organização social indígena, das
nossas tradições, das nossas formas políticas tradicionais Tapuya
(Macro Jê), da cosmologia do Santuário Tapuya, da história indígena
do Santuário dos Pajés em Brasília, e, sobretudo, da importância de
reconhecer que a preservação da mata do cerrado é consequência da
cosmovisão indígena Tapuya, resultado de um modo de ser e viver
culturalmente diferenciado. Nesse sentido, a comunidade indígena
Tapuya/Fulni-Ô, desde o início da década de 1990, promove o Projeto
de educação intercultural “Nas Rotas dos Pajés: Os Andarilhos da Luz”
onde estudantes, escolas, faculdades, crianças, pesquisadores, do
Distrito Federal, do Entorno e de várias partes do Brasil visitam a Terra
Indígena Santuário dos Pajés interessados em conhecer a tradição
cultural Tapuya/Fulni-Ô e os saberes ancestrais guardados nas tradições
do Santuário dos Pajés. Entretanto, as atividades de cunho intercultural
também se somam no esforço de ampliar socialmente a sensibilização
sobre a luta da comunidade indígena Tapuya/Fulni-Ô pela demarcação
da Terra Indígena Santuário dos Pajés em Brasília e a oportunidade de
convivência e intercâmbio intercultural com diferentes atores e grupos
sociais do Distrito Federal e do Brasil, como ocorre com o “Encontro
Interespiritual” e a “Jornada de Arqueologia e História Indígena do
58
Santuário dos Pajés”, promovidos pela comunidade indígena Tapuya e
sua organização, a Associação Cultural Povos Indígenas (ACPI)
(SANTUÁRIO, 2013).
Na nota anterior, os indígenas fazem uso do termo cosmovisão. Esse conceito
se refere à percepção de mundo própria de um indivíduo ou grupo social; ou seja, à
maneira segundo a qual se interpreta os dados da realidade. Ao reivindicar sua
cosmovisão, o povo Tapuya/Fulni-ô procura afirmar pressupostos próprios para a
interpretação do mundo ao seu redor, o que resulta num “modo de ser e viver
culturalmente diferenciado” (SANTUÁRIO, 2013). Dessa maneira, o povo indígena do
Santuário dos Pajés é capaz de afirmar suas perspectivas políticas e culturais, bem como
seu modo particular de lidar com a natureza. A defesa de sua cosmovisão se dá seja por
meio da celebração de rituais tradicionais como o toré (cf. figura 15, em anexo) e de seus
ritos religiosos cotidianos; seja pela própria preservação do cerrado nativo, considerado
pelos indígenas sagrado (em oposição à percepção dos interessados na construção do
Setor Noroeste). A afirmação da cosmovisão indígena pelos habitantes do Santuário dos
Pajés configura-se, portanto, como um ato de preservação e celebração de sua própria
cultura e de resistência política contra aqueles que se esforçam por suprimi-la. Por ocasião
da II Jornada Tribal de Arqueologia e História Indígena, realizada em agosto de 2011 no
Santuário dos Pajés, os indígenas afirmaram, em nota de divulgação para o evento:
Nós da comunidade indígena do Santuário dos Pajés, os outros
diferentes, preservamos, renovamos e transformamos nessas andanças
distantes e próximas no tempo e no espaço a consciência de nossa
identidade indígena, nossos usos, costumes e tradições, reivindicando
uma história e uma memória próprias, nosso direito à identidade e à
consciência indígenas plenas, pois temos no dever de memória um
dever ético-espiritual com nosso passado, nossos antepassados, nossas
famílias e os filhos e filhas da terra, silenciados, denegados e
marginalizados pela sociedade brasileira em sua colonialista “História
Nacional do Brasil” (SANTUÁRIO, 2011b).
Em tese de doutorado intitulada O Regime Imagético Pankararu (Tradução
Intercultural na Cidade de São Paulo), defendida em 2011 na Universidade Federal de
Santa Catarina, o antropólogo Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque dedicou-se ao
estudo da comunidade de indígenas da etnia Pankararu, originária de Pernambuco, que
59
vem se instalando na cidade de São Paulo desde a década de 1960. Albuquerque
demonstra como os indígenas daquela etnia utilizam-se de danças e rituais tradicionais
como forma de afirmação cultural contra-hegemônica, com o objetivo de combater a
violência simbólica que os impede de afirmar-se como uma comunidade etnicamente
diferenciada em seu novo local de residência (ALBUQUERQUE, 2011). Em entrevista
ao antropólogo, o ex-presidente da Associação da Comunidade Indígena Pankararu,
entidade que representa os indígenas residentes na cidade São Paulo, afirmou:
Nós começamos a dançar o toré, os praiá, e se identificar, depois da
associação. Lutamos por ela porque a FUNAI não queria nos atender
como índio, porque eles acham que índio só é índio na aldeia, como a
FUNAI queria tirar o corpo dela fora pra não assumir nós com nada, ela
botou essa dificuldade, só nos apoiou depois que viu a nossa cultura
(ALBUQUERQUE, 2010).
O depoimento do líder Pankararu evidencia a situação de “invisibilidade”
enfrentada pelos indígenas migrantes no Brasil, destacadamente aqueles residentes em
áreas urbanas. Segundo Albuquerque, tal situação é sustentada por meio de um discurso
“preconceituoso, estigmatizante e ideológico” em relação aos povos indígenas. Essa
representação, hegemônica em setores diversos da sociedade e do Estado, baseia-se num
modelo de “museu”, e “evoca a ‘primitividade’, a ‘pobreza’, a atemporalidade e o
anonimato, como condição de autenticidade das culturas nativas” (ALBUQUERQUE,
2011). O mesmo modelo hegemônico de representação pode ser verificado no
posicionamento dos órgãos estatais e de parte da sociedade civil em relação à situação
dos indígenas do Santuário dos Pajés. É possível perceber, tanto no caso de Brasília
quanto no de São Paulo, que os esforços de afirmação cultural das comunidades se
configuram como atos de resistência contra-hegemônica, na medida em que se opõem à
violência das representações estigmatizantes e possibilitam a inserção dos indígenas em
novas arenas de luta política. Nesse sentido, em oposição ao discurso antropológico que
privilegia o “exotismo” em detrimento de uma compreensão mais apurada das identidades
indígenas, o antropólogo francês Michel Agier argumenta que
A complexidade crescente das realidades locais torna mais necessária
do que nunca a abordagem situacional das culturas e das identidades
como um instrumento de compreensão das lógicas observadas
60
diretamente, e também como um princípio de vigilância antiexótica da
antropologia. A atenção principal do observador deve se colocar antes
sobre as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam,
do que nas representações formuladas a priori das culturas, tradições
ou figuras ancestrais em nome das quais se supõe que eles agem
(AGIER, 2001).
Em entrevista realizada em 2007, o líder indígena Santxiê criticou a atuação
do Memorial dos Povos Indígenas, construído em 1987 pelo Governo do Distrito Federal.
Em oposição ao discurso hegemônico que sustenta a ideia de “museu do índio”, o líder
do Santuário dos Pajés afirmou:
Nós queremos o Índio com um pé na aldeia e um pé na cidade, para
que ele conheça as diversidades do mundo moderno, nós não queremos
um Índio para zoológico não. O índio não é isso, o Índio é ciência, ele
tem seu acervo ancestral que fala alto pra ele, e pro espírito dele que
nunca acaba, nunca morre. [...] O Memorial não está bem enquadrado
na causa científica dos Povos Indígenas para pesquisa de arqueologia,
pesquisa de origem, de linguística, troncos, bilinguismos,
multiculturalismo. [...] Você sabe que não existe lei pra tirar uma
cidade de dentro das terras dos Índios, mas os brancos criaram leis pra
tirar os Índios de dentro da casa deles! [...] Você vê que existem vários
ministérios, existe até ministério pra peixe. Mas pra Índio não existe!
Então se entende que o Índio não existe, ou é um animal irracional? O
Índio está fora do contexto nacional? Será que os Índios não existem
mais aqui no Brasil? [...] Quando se fala Memorial a questão a ser
tratada é a de um cemitério. O espaço existe mas não existe verba, o
Memorial é um grande faz de conta... Fazem de conta que se
preocupam com os Índios... É um faz de conta! (grifo nosso)
(HOLANDA, 2007).
Voltamo-nos, nesse momento, às práticas de resistência do movimento “O
Santuário não se move!”. O movimento é caracterizado pela multiplicidade e
originalidade de suas ações, que incluem manifestações, ações diretas, promoção de
debates, eventos culturais e oficinas de conscientização junto à população, produção de
material audiovisual de divulgação da causa indígena e realização de mutirões de apoio
61
ao Santuário. A internet é amplamente utilizada pelo movimento como plataforma de
divulgação e mobilização. Os militantes mantêm um website próprio e páginas em redes
sociais como Facebook e Twitter, onde são divulgados informes, notícias e chamados
para reuniões, eventos culturais e manifestações (cf. figura 16, em anexo). Os apoiadores
fazem uso igualmente intenso de recursos audiovisuais: as manifestações e os atos do
movimento, bem como entrevistas com os apoiadores e indígenas, são documentados em
vídeo para posterior divulgação na internet, em websites como o YouTube, por exemplo.
O movimento produziu dois documentários sobre a causa do Santuário dos
Pajés: o longa-metragem Sagrada Terra Especulada e o curta-metragem A Ditadura da
Especulação. O primeiro deles, lançado em janeiro de 2011, retrata o processo histórico-
político que levou à construção do Setor Noroeste e apresenta as reivindicações dos
indígenas e apoiadores do Santuário. O segundo filme, lançado em maio de 2012, retrata
os conflitos que ocorreram na área do Santuário dos Pajés nos meses de outubro e
novembro de 2011 e documenta as ações de resistência dos militantes diante do uso da
violência pela Polícia Militar do DF e por seguranças privados contratados pelas
empreiteiras. Os filmes, ambos premiados em festivais de cinema de Brasília, foram
divulgados por meio da internet e exibidos em sessões públicas seguidas de debates sobre
a causa indígena do Santuário.
Nos meses de outubro e novembro de 2011, ocorreu, na área destinada à
construção do Setor Noroeste, um intenso confronto que opôs, de um lado, os indígenas
e apoiadores do Santuário dos Pajés e, de outro, representantes da construtora Emplavi,
seguranças privados e a Polícia Militar do DF. O conflito se originou com o
descumprimento, pela construtora, de decisão da Justiça Federal que determinava a
paralização das obras até a resolução do litígio. Na primeira semana de outubro, a
Emplavi iniciou um processo de invasão e demarcação da área em disputa, por meio da
implantação de cercas. Como reação à ação da construtora, apoiadores do Santuário
retiraram as cercas (cf. figura 17 e figura 18, ambas em anexo), o que resultou no uso de
violência física contra os militantes pela segurança privada da Emplavi. Nos dias 3 e 10
de novembro, a Polícia Militar do DF realizou operações com até 800 policiais na área, a
fim de garantir a continuidade das obras (CÈO, 2011); segundo nota do movimento, 15
apoiadores do Santuário foram detidos (SANTUÁRIO, 2011c).
62
A ação da PM e a distribuição de liminares pelo Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) permitiram que as empreiteiras dessem
continuidade à tática de sufocamento físico e psicológico da comunidade indígena, por
meio da devastação do cerrado ao redor do Santuário, numa clara aposta no estatuto
jurídico do “fato consumado”19. Segundo liminar expedida no dia 6 de novembro por juiz
do TJDFT, os manifestantes estavam proibidos de “invadir, destruir, ocupar, embaraçar
o uso de outras propriedades” e a Polícia Militar estava autorizada a “remover pessoas,
obstáculos, impedir toda e qualquer atividade que viole o direito de uso e gozo das
propriedades." (G1 DF, 2011). Aqui, nos parecem ilustrativos os comentários do filósofo
marxista Marshall Berman acerca de uma passagem do Fausto de Goethe:
Fausto comete de maneira consciente seu primeiro ato mau. Convoca
Mefisto e seus “homens fortes” e ordena-lhes que tirem o casal de
velhos do caminho. Ele não deseja vê-lo, nem quer saber dos detalhes
da coisa. Só o que lhe interessa é o resultado final: quer que o terreno
esteja livre na manhã seguinte, para que o novo projeto seja iniciado.
Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto,
impessoal, mediado por complexas organizações e funções
institucionais (grifo nosso) (BERMAN, 1986:64).
No dia 14 de dezembro de 2011, o TJDFT aceitou ação indenizatória movida
pela construtora Emplavi contra os apoiadores do Santuário dos Pajés. No processo, a
empresa, apesar de haver descumprido ordem judicial, solicitava uma indenização no
valor de 244 mil reais de nove dos militantes, alegando prejuízos decorrentes da remoção
de cercas pelos manifestantes e dos custos da contratação de seguranças privados.
Percebe-se, pela ação movida pela construtora, a tentativa de promover a deslegitimação
do movimento social por meio de sua criminalização judicial. Segundo nota divulgada
pelos apoiadores do Santuário,
19 José Renato Nalini, desembargador da Câmara Especial do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma o seguinte a propósito da aposta no fato consumado: “Embora o correto esteja numa direção, decide-se em sentido inverso. A pretexto de que o fato consumado não permite qualquer outra solução. Em nome disso, quanto prejuízo a comunidade não suporta. Na área ambiental a constatação é de uma evidência solar. Os exemplos são muitos. Alguém começa a construir em área de preservação permanente. Mesmo após embargo da obra, por confiar na lentidão com que o juízo convencional costuma funcionar, o infrator continua a edificar. Quando, finalmente, a Justiça vai se manifestar, está diante de uma realidade diversa daquela que ensejou o embargo: a obra está terminada, famílias moram nela. Alega-se o fato consumado e tudo fica sem consequência” (NALINI, 2009).
63
Estamos diante de um violento ataque à Constituição Federal, que no
seu artigo 231 diz que apenas a União pode demarcar terra indígena.
Aqui na capital do Brasil, Arruda e Paulo Octávio com a Terracap
demarcaram terra indígena ao venderem em 2009 lotes em toda a área
ocupada pelos Tapuya/Fulni-ô. E o governo Agnelo, ao invés de
construir um novo caminho, apoia até o momento o velho caminho e
colabora, prendendo e reprimindo com violência os apoiadores. O
movimento de apoiadores do Santuário dos Pajés já começou a se
mobilizar contra a criminalização de alguns poucos como forma de
oprimir o processo de resistência (SANTUÁRIO, 2011d).
No início de 2013, apesar da inação dos órgãos estatais e da permanente
coação das empreiteiras e do poder público, os indígenas do Santuário dos Pajés
permanecem em seu território. Sustentados pelo laudo antropológico que comprova o
caráter tradicional de sua ocupação, bem como pela afirmação da territorialidade20
etnoreligiosa Tapuya/Fulni-Ô estabelecida naquela área (SANTUÁRIO, 2013),
reivindicam ao Estado brasileiro a demarcação e a regularização definitivas de suas terras.
Afinal, como afirmam em comunicado de março de 2013, “foi o Noroeste que foi para
Terra Indígena, e não a Terra Indígena que foi para o Noroeste” (SANTUÁRIO, 2013).
20 O antropólogo Paul E. Little define “territorialidade” nos seguintes termos: “Esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” [...]. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos.” (LITTLE, 2002).
64
Considerações finais
No primeiro capítulo, discutimos, com o apoio de autores como Rosa
Luxemburgo, David Harvey e Francisco de Oliveira, a tendência de continuidade, no
capitalismo avançado, dos mecanismos de expropriação típicos da acumulação primitiva
de capital descrita por Marx. Vimos que o modo de produção capitalista jamais deixou de
fazer uso de meios violentos a fim de promover a supressão dos bens comuns e o
consequente aumento de mão de obra barata e vulnerável. Para se referir ao caráter
permanente desse tipo de expropriação no sistema capitalista, Harvey propõe o conceito
de acumulação por despossessão (HARVEY, 2009a). Tratando do caso brasileiro,
observamos que a monopolização do solo urbano por meio da expropriação do território
estabelece um elo entre as formas “primitivas” de acumulação e o capital portador de
juros gerado pela renda da terra (BRANDÃO, 2010).
Inspirados pela proposta de Harvey, procuramos averiguar em que medida os
mecanismos de expropriação podem ser observados num caso contemporâneo específico:
a construção do Setor Noroeste, em Brasília. Para tanto, tratamos dos processos sociais
e políticos que levaram à transformação de uma área de cerrado nativo habitada por uma
comunidade indígena, o Santuário dos Pajés, em terreno destinado à construção de um
bairro de “alto padrão”. Vimos como, por um lado, a atuação diligente da Justiça e dos
órgãos repressores estatais e, por outro, a inação de agências governamentais, como a
FUNAI e o IBAMA, significaram a afirmação dos interesses privados em detrimento dos
bens públicos e dos direitos indígenas. Para dar nome à confluência desses mecanismos
de expropriação no meio urbano, apresentamos como chave analítica o conceito de
urbanização por expropriação.
No segundo capítulo, tendo em vista o discurso publicitário que apresenta o
Setor Noroeste como “ecovila” ou primeiro bairro “verde” do Brasil, procuramos realizar
uma abordagem crítica de conceitos ambientalistas como desenvolvimento sustentável e
economia verde. A partir de uma análise histórica de tais conceitos e da percepção de sua
apropriação por “especialistas”, percebemos que o discurso ambientalista tende a atuar
como um discurso de caráter ideológico análogo ao religioso, impondo-se como
autoridade inquestionável (ŽIŽEK, 2007) e como estrutura de sublimação para ações
auto-interessadas dos indivíduos (PATO, 2012). Assim, configura-se o que se denomina
65
ambientalismo de espetáculo (ACSELRAD, 2012a e FURTADO, 2012), ideia ilusória
que obscurece a percepção das relações sociais e materiais inerentes à questão ambiental.
A partir dessa percepção analisamos duas vertentes do discurso dos
defensores da construção do Setor Noroeste: de um lado, a mídia, que procura, em suas
reportagens, ignorar o conflito socioambiental relacionado ao projeto imobiliário,
apresentando a questão indígena como entrave a ser suprimido em nome do progresso; e,
de outro lado, a publicidade, que tenciona apresentar o Setor Noroeste como solução
“sustentável” para a cidade de Brasília, a fim de obscurecer os impactos ambientais e
sociais provenientes da construção do bairro e, ao mesmo tempo, agregar valor de
mercado aos edifícios em construção. O ambientalismo de espetáculo e suas implicações
configuram-se como componentes ideológicos do dispositivo que, no primeiro capítulo,
denominamos urbanização por expropriação.
Em oposição ao ambientalismo de espetáculo, apresentamos, no terceiro
capítulo, a perspectiva da Ecologia Política. Esta, a partir da discussão de conceitos como
desigualdade e racismo ambiental, propõe a afirmação do ecologismo popular, ou
ecologismo dos pobres (MARTÍNEZ-ALIER, 2007), termo que dá nome à confluência
de movimentos socioambientais que lutam pela justiça ambiental, ou seja, pela
distribuição igualitária dos recursos naturais e pela possibilidade de uso comum dos bens
oferecidos pela natureza. Vimos que a intensificação dos processos de urbanização tem
significado a multiplicação dos conflitos socioambientais em meios urbanos, pois o
crescimento das cidades tende a reproduzir os mecanismos da injustiça ambiental, o que
se evidencia pelo fato de que as populações urbanas marginalizadas tendem a estar em
situação mais vulnerável em relação aos riscos ambientais. Essas vítimas da segregação
espacial são justamente aquelas pessoas que dão vida aos movimentos socioambientais
que, nas cidades, lutam pela justiça ambiental e pelo acesso igualitário aos serviços
urbanos (ZHOURI, 2007).
Observamos que, no caso do Santuário dos Pajés, além dos mecanismos que
sustentam a urbanização por expropriação, devemos estar atentos à situação de exceção
que se nos apresenta quando tratamos da questão indígena no Brasil. A inação da FUNAI
em relação à demarcação e regularização de terras tradicionais indígenas, somada à
criação de dispositivos jurídicos ad hoc, como a Portaria nº 303, estabelecem situações
66
excepcionais para a expropriação dos povos indígenas e para a acumulação de capital.
Nesse contexto insere-se o movimento socioambiental surgido a partir do anúncio da
construção do Setor Noroeste. O movimento “O Santuário não se move!” opõe-se aos
defensores do novo bairro por meio de um amplo repertório de práticas de resistência que
afirmam a cosmovisão indígena e o caráter tradicional das terras ocupadas pelo território
do Santuário dos Pajés.
Em seu livro das Passagens, Walter Benjamin nos ensina que a crítica
marxista, em oposição ao positivismo e ao evolucionismo vulgar, deve estar atenta à
necessidade de aniquilar, em si mesma, a ideia de progresso (BENJAMIN, 2006:502).
Como observa Michael Löwy, “Benjamin não concebe a revolução como o resultado
“natural” ou “inevitável” do progresso [...], mas como a interrupção de uma evolução
histórica que conduz à catástrofe” (LÖWY, 2002). A revolução atuaria, portanto, como
uma espécie de “freio de emergência” contra o avanço da modernidade capitalista: “A
sociedade sem classes não é o objetivo final do progresso na história, e sim sua
interrupção muitas vezes fracassada e finalmente alcançada” (BENJAMIN, 2006:30). A
resistência do movimento “O Santuário não se move!”, em Brasília, posiciona-se
justamente contra o progresso capitalista, este que se sustenta por meio do massacre de
povos tradicionais, da mercantilização da natureza e da destruição dos ecossistemas. Ao
propor uma temporalidade alternativa ao progresso (e à catástrofe) do capital, a luta do
Santuário dos Pajés contribui para a interrupção necessária.
67
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73
Anexos
Ilustrações
Figura 1 – Novas áreas residenciais propostas no documento Brasília Revisitada
Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Distrito Federal
74
Figura 2 – Imagem de satélite com a delimitação da área destinada à construção do
Setor Noroeste
Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal
75
Figura 3 – Variação do preço médio do m² em apartamentos no Setor Noroeste, de
agosto de 2010 a janeiro de 2013
Fonte: Índice FipeZap de jan. de 2013
76
Figura 4 – Devastação do cerrado próximo a um dos canteiros de obras da
incorporadora Brasal
Fonte: Arquivo pessoal
77
Figura 5 – Imagem de satélite com a delimitação dos 50,91 hectares reivindicados
pelo Santuário dos Pajés
Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011
78
Figura 6 – Herbário de plantas nativas fitoterápicas do Santuário dos Pajés
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
79
Figura 7 – Ação da Polícia Militar do DF no território do Santuário dos Pajés
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
80
Figura 8 – Reprodução de capa em que o jornal Correio Braziliense anuncia a liberação das
vendas das projeções do Setor Noroeste
Fonte: SCHVARSBERG, 2009
81
Figura 9 – Reprodução de reportagem em que o jornal Correio Braziliense se refere aos
indígenas como “invasores” da área destinada ao “futuro bairro”
Fonte: SCHVARSBERG, 2009
82
Figura 10 – Anúncio publicitário ilustrando a localização do Setor Noroeste
Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal
83
Figura 11 – Anúncio publicitário com slogan promocional do Setor Noroeste
Fonte: Terracap – Governo do Distrito Federal
84
Figura 12 – Faixa de protesto contra os governos Arruda (DEM) e Agnelo (PT), no Palácio
do Buriti (sede do governo do Distrito Federal)
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
85
Figura 13 – Reprodução de gravura e palavra de ordem utilizadas pelo movimento “O Santuário não se move!”
Fonte: Movimento “O Santuário não se move!”
86
Figura 14 – Registro fotográfico de encontro inter-religioso realizado no Santuário dos Pajés
em setembro de 2010
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
87
Figura 15 – Registro fotográfico do toré, cerimônia tradicional celebrada pelo líder
Tapuya/Fulni-ô Santxiê
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
88
Figura 16 – Reprodução de cartazes de divulgação do movimento “O Santuário não se move!”
Fonte: Movimento “O Santuário não se move!”
89
Figura 17 – Registro fotográfico de ação direta de remoção de cercas implantadas
ilegalmente pela empreiteira Emplavi
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
90
Figura 18 – Registro fotográfico de ação direta contra a invasão do território do Santuário
dos Pajés por máquinas da empreiteira Emplavi
Fonte: Arquivo fotográfico do movimento “O Santuário não se move!”
91
Tabelas
Quadro 1 – Preço médio do m² de apartamentos em bairros nobres de 17 municípios
brasileiros, com destaque para o Setor Noroeste
BAIRRO CIDADE PREÇO
Leblon Rio de Janeiro R$ 20.451
Vila Nova Conceição São Paulo R$ 12.100
Setor Noroeste Brasília R$ 10.581
Charitas Niterói R$ 7.722
Savassi Belo Horizonte R$ 7.568
Jurerê Internacional Florianópolis R$ 7.479
Cais do Porto Fortaleza R$ 6.986
Três Figueiras Porto Alegre R$ 6.834
Campina do Siqueira Curitiba R$ 6.556
Pina Recife R$ 5.628
Vila Alpina Santo André R$ 5.483
Campo Grande Salvador R$ 5.311
Jardim São Caetano São Caetano do Sul R$ 5.216
Mata da Praia Vitória R$ 4.758
Centro São Bernardo do Campo R$ 4.206
Praia da Costa Vila Velha R$ 3.700
Setor Bueno Goiânia R$ 2.838
Fonte: Índice FipeZap de jan. 2013
92
Quadro 2 – População do Santuário dos Pajés no início do 2º semestre de 2010
NOME ETNIA OBSERVAÇÃO Santxiê Fulni-ô Liderança do Santuário dos Pajés, 55
anos, filho de Phuwá ou Pedro Veríssimo e Many ou Maria Veríssimo, primeiros ocupantes da área. Possui renda fixa mensal por ser funcionário público federal.
Fetxawewe Fulni-ô Filho de Santxiê e Marta de Souza Silva, da etnia Guajajara, 12 anos. Nas férias vem ficar com seu pai, pois dali saiu por conta do ambiente tenso configurado a partir dos conflitos pela posse da terra decorrentes do Projeto Imobiliário Setor Noroeste.
Santxiê Júnior Fulni-ô Filho de Santxiê e Marta de Souza Silva, da etnia Guajajara, 10 anos. Está na mesma situação que seu irmão mais velho, Fetxawewe.
Ademilta Fulni-ô Irmã de Santxiê, 53 anos, filha de Phuwá ou Pedro Veríssimo e Many ou Maria Veríssimo, primeiros ocupantes da área. Apóia seu irmão na reivindicação da área.
Kafhitxó Fulni-ô Também conhecido como Américo Torres da Hora, cunhado de Santxiê, casado com Ademilta, com idade de uns 54 anos. Trata-se de um importante aliado político de Santxiê na reivindicação da área.
Xoá Fulni-ô Filho Kafhitxó e Ademilta, 20 anos, e sobrinho de Santxiê.
Juscimara Fulni-ô Filha de Kafhitxó e Ademilta, sobrinha de Santxiê, 10 anos.
Rosanilda Fulni-ô Filha de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê.
Tailane Fulni-ô Filha de Arlete, neta de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê, 4 anos.
Sauane Fulni-ô Filha de Rosanilda, neta de Kafhitxó e Ademilta, e sobrinha de Santxiê, 4 anos.
Txá Fulni-ô Filho de Kafhitxó e Ademilta, 22 anos, e sobrinho de Santxiê.
Cláudio Gomes Inácio da Silva Fulni-ô Natural de Águas Belas, 40 anos, mora em Brasília há 27 anos. Possui vínculo empregatício com uma empresa que presta serviços à FUNAI, onde trabalha com serviços de manutenção. É neto de Euclídio Frederico da Silva, Fulni-ô, seu avô paterno, falecido há cerca de 4 anos, em Águas Belas, quem era compadre do pai de Santxiê.
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Maria Cícera Salustiano Caeteno Xukuru Esposa de Cláudio Gomes Ferreira da Silva, cerca de 35 anos, natural de Vila de Simbre, em Pesqueiras-PE.
Felipe Salustiano da Silva Xukuru Estudante do último ano do ensino médio, 18 anos, natural de Pesqueiras-PE.
Raíza Salustiano da Silva Xukuru De 4 anos, nascida em Pesqueiras, sofreu trauma psicológico por conta do ambiente tenso e conflituoso instalado na área desde o início do Projeto Imobiliário Setor Noroeste.
Awamirim Tupinambá Klayton Mário Oliveira Ramos, mais conhecido como Awamirim Tupinambá, nascido em Brasília na data de 14/01/1976. É graduado em Filosofia pela Universidade de Brasília e casado com Llenia Barra Vidal, não-índia nascida em Santiago do Chile, na data de 13/12/1980, com quem tem uma filha chamada Laykyhá, nascida em 2010 em Brasília. É um dos principais apoiadores de Santxiê na reivindicação de direitos territoriais. Identifica-se como Tupinambá por entender que descende de indígenas de um aldeamento extinto no estado da Bahia.
Korubo Kashalpunya Korubo Apresenta-se como natural da etnia Korubo, da fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Teria sido apenado em Manaus sob a acusação de tráfico de drogas e outros delitos, mas diz ser inocente. Sua presença no Santuário dos Pajés é esporádica e por vez com intervalos de meses. À época das pesquisas era aliado político, na condição de “apoiador” de Santxiê, mas não possui vínculo de pertencimento à área.
Alcilânia Alves de Souza Fulni-ô Artesã, nascida em Águas Belas, 27 anos, veio para Brasília pela primeira vez para jogar futebol, quando tinha 16 anos e ficou no Santuário dos Pajés, onde tinha parentes. É sobrinha de Santxiê e Towê. É filha de Alcides Alves dos Santos, Fulni-ô, 55 anos, e Maria Auxiliadora de Souza, Fulni-ô, 52 anos, ambos residentes em Águas Belas. Sua avó parterna, Josefa Inácia Severo, conhecida como Zefina, falecida há cerca de 16 anos, é prima da mãe de Santxiê.
Edgar Pires Tononé Kariri Xocó Artesão, natural de Alagoas, 30 anos, marido de Alcilânia Alves de Souza, com quem tem três filhos. Chegou a Brasília pela primeira vez em 1985, acompanhando sua mãe, Ivanice Pires Tononé em tratamento médico. A conjugalidade entre Edgar e Alcilânia também representa uma aliança
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interétnica entre família Fulni-ô e Kariri Xocó.
Awayoá Tononé Kariri Xocó Nascido em Brasília, 7 anos, filho de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.
Ytawanawi Tononé Kariri Xocó Nascida em Brasília, 8 anos, filha de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.
Hewanay Tononé Kariri Xocó Nascida em Brasília no ano de 2010, filha de Alcilânia Alves de Souza e Edgar Pires Tononé.
Ivanice Pires Tononé Kariri Xocó Natural de Alagoas, 55 anos, xamã, veio para Brasília pela primeira vez por volta de 1985, onde ficou na Casa do Ceará e tomou conhecimento da existência do Santuário dos Pajés. Por volta de 1997 veio morar na área da antiga Fazenda Bananal. Primeiro vinha nos finais de semana e ficava na casa de Santxiê. Depois, a partir de 2002, fixou moradia no Santuário dos Pajés. Em 2008 teve desentendimentos com Santxiê, por quem afirma ter grande consideração. No caso dos Kariri Xocó, a estratégia política voltada para a reivindicação de direitos se dá, sobretudo, para dentro da família extensão de Ivanice, sua principal liderança na área.
Alexsandro Pires Tononé Kariri Xocó Nascido em Alagoas, 31 anos, no ano de 1978, veio para Brasília pela primeira acompanhando sua mãe, Ivanice Pires Tononé.
Irene Pires de Lima Kariri Xocó Irmã de Ivanice Pires Tononé, 44 anos.
Iago Gomes de Lima Kariri Xocó Filho de Irene Pires de Lima e sobrinho de Ivanice Pires Tononé, com 13 anos.
Artur Gomes da Silva Kariri Xocó Filho de Irene Pires de Lima e sobrinho de Ivanice Pires Tononé, com 18 anos.
Iasmim Gomes da Silva Kariri Xocó Filha de Irene Pires de Lima e sobrinha de Ivanice Pires Tononé, com 14 anos.
Gilvaldo Pires Kariri Xocó Trabalha na construção civil e com artesanato, irmão de Ivanice Pires Tononé.
Murá Maria do
Carmo Reis
Kariri Xocó Mãe de Ivanice Pires Tononé, 79 anos, descendente de Pankararu, mas criada com os Kariri Xocó, motivo pelo qual se identifica como membro desta etnia.
Chiquinho Kariri Xocó Primo de Ivanice Pires Tononé e ex-marido de Edilene. Seu pai, falecido em 1993, era irmão de Ivanice Pires Tononé.
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Edilene Conceição Cavalcante Tuxá Irmã de Ednalva Conceição Cavalcante, cerca de 38 anos.
Kauã Kariri Xocó Filho de Alexsandro Pires Tononé com uma não-índia, com quem não vive mais.
Manoel Correia Pereira (Marivaldo) Fulni-ô Nascido em Águas Belas, na data de 04/09/1979, teria vindo para Brasília em 1999 em busca de emprego. Um ano depois, em 2000, teria se estabelecido pela primeira vez com sua família na área do Santuário dos Pajés, a qual teria conhecido por intermédio de Towê, irmão de Santxiê. Inicialmente seu estabelecimento no lugar se deu sem a devida autorização de Santxiê. Trabalha na construção civil e algumas de suas ações na área têm acirrado conflitos internos entre membros da comunidade. Busca para si uma posição de liderança da comunidade para a exterioridade, sobretudo no que se refere a negociações com a Terracap. Neste caso em específico, trata-se de uma pessoa que sugere não possuir vínculos tradicionais com a área, haja vista o pouco tempo em que ali reside e a maneira como adentrou no lugar.
Dalissandra Moreira
Costa
Não-índia Funcionária de uma empresa que presta serviços à FUNAI, possui uns 35 anos.
Kannaway Costa Correia Fulni-ô Filho de Manoel Correia Pereira (Marivaldo) e Dalissandra Moreira Costa, 5 anos, nascido em Brasília.
Ednalva Conceição Cavalcante Tuxá Filha de Maria Filha da Conceição Vieira, 38 anos, natural de Cocos-BA, onde nasceu por conta de processo de esbulho sofrido por seus parentes. Manteve conjugalidade com Pedro Francisco Ribeiro, Fulni-ô, quem conheceu no Santuário dos Pajés. Este é outro caso de casamento interétnico existente na área, desta vez entre um Fulni-ô e uma Tuxá.
Francisco Cleidemar Lima Não-índio Atual marido de Ednalva Conceição Cavalcante e genro de Maria Filha da Conceição Vieira.
Tainã Cavalcante Ribeiro Fulni-ô Filho de Ednalva Conceição Cavalcante, Tuxá, e Pedro Francisco Ribeiro, Fulni-ô, com 20 anos.
Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011
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Quadro 3 – Espécies botânicas de uso tradicional no Santuário dos Pajés
NOME COMUM
PROCEDÊNCIA FAMÍL IA NOME CIENTÍFI CO
CATEGORIA DE USOS
PARTES USADAS
USO MEDICINAL
goiabeira
cultivada
Myrtaceae
Psidium guajava
alimentar
fruto
jaca
cultivada
Moraceae Artocarpus integrifolia
alimentar
fruto
graviola
cultivada
Annonaceae
Annona crassiflora
alimentar
fruto
banana
cultivada
Musaceae
Musa sp.
alimentar
fruto e folha taperibá introduzida alimentar e
medicinal folha
limão
cultivada
Rutaceae
Citrus sp.
alimentar
fruto
laranja
cultivada
Rutaceae
Citrus auratium
alimentar
fruto
banana roxa
cultivada
alimentar
fruto cambará amarelo
introduzida
medicinal
folha
cansaço, fraqueza e banho
ritualístico cambará branco
introduzida
cambará laranja
introduzida
favaca
nativa
medicinal
folha e raíz
banho
pinhão roxo
introduzida
Euphorbiaceae
Jatropha sp.
medicinal
raíz e leite
cicatrizante
aroeira introduzida Anacardiaceae Myracrodruon urundeuva
medicinal folha e caule corrimento, secreção e ritual
jamelão
introduzida
medicinal
folha
diabetes
mulungu
introduzida
Fabaceae
Erythrina velutina
medicinal
folha e caule insônia,
circulação
araticum
nativa
Annonaceae
Annona crassiflora
medicinal
folha
piolho
umburana de cheiro
introduzida
Fabaceae
Amburana cearensis
medicinal
caule e semente
dor de barriga, ingestão e dor de
cabeça
guando
introduzida
medicinal
semente
abortivo
poalha
nativa
medicinal
raíz
dor de garganta, febre e cólica
fedegoso
introduzida
medicinal
raíz e semente
dor de cabeça, anemia e abortivo
picão amarelo
nativa
medicinal
folha
hepatite
mamona
introduzida
Euphorbiaceae
Ricinus communis
medicinal
semente
prisão de ventre
ipê roxo
nativa
Bignoniaceae
Tabebuia sp.
medicinal
casca
câncer
ipê rosa
introduzida
casca
câncer
ipê amarelo
nativa
Bignoniaceae
Tabebuia caraiba
ipê felpudo
nativa
Zeyhera tuberculosa
ipê branco
introduzida
Bignoniaceae
Tabebuia alba
ipê verde
cerrado
Bignoniaceae Cybistax
antisyphilit ica
craibeira
introduzida
medicinal
casca
câncer
caju vermelho
cultivada
Anacardiaceae Anacardium occidentale
alimentar e medicinal
caule
corrimento
mamão
cultivada
Caricaceae
Carica papaya
alimentar
cajuí
nativa
alimentar
mandioca cultivada Euphorbiaceae Manihot esculenta alimentar "amansada"
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milho
cultivada
Poaceae
Zea mayz
alimentar "amansada"
angicuo
introduzida
Mimosaseae
Anadenanthera sp.
medicinal e recuperação ambiental
casca
tosse e tuberculose
feijão de porco
introduzida
alimentação
semente
barbatimão nativa recuperação ambiental
semente
maracujá nativo
nativa
Passifloraceae
Passiflora sp.
alimentar
erva do cipó
introduzida
medicinal
tontura e disritmia
erva cidreira
introduzida
medicinal
folha
calmante olho de boi introduzida Papilionaceae Dioclea violaceae medicinal e
artesanato semente disritmia
manga
cultivada
Anacardiaceae
Mangifera indica
alimentar velandinho branco introduzida medicinal folha diabético
croá introduzida Bromeliaceae Neoglaziovia variegata
artesanato folha
mandacaru
introduzida
Cactaceae
Cereus jamacaru
medicinal
caule
doenças do coração
tabaco
introduzida
ritual e repelente mama cadela nativa Moraceae Brosimum
gaudichaudii medicinal caule viti ligo
cabaça
introduzida
Cucurbitaceae
Lagenaria vulgaris
artesanato
fruto
abóbora introduzida Cucurbitaceae Cucurbita pepo alimentar "amansada"
chapéu de coro
nativa
Vochisiaceae
Salvertia convallariaeodora
medicinal
folha
pedras renais
palma
introduzida
Cactaceae
Opuntia ficus-indica
medicinal e alimentar
folha e fruto
queimadura
lobeira
nativa
Solanaceae
Solanum lycocarpum
medicinal
caule
úlcera
baraúna
introduzida
Anacardiaceae Schinopsis brasiliensis
medicinal
casca
artrite, artrose e ferida
papo de peru
introduzida
Aristolochiaceae
Aristolochia esperanzae
medicinal e recuperação ambiental
raíz
artrite e artrose
catinga de porco
introduzida
Caesalpiniaceae
Caesalpinia sp.
medicinal
casca
próstata
tamburiu
introduzida
medicinal
casca
elefantíase
corona
introduzida
medicinal
semente
epileptico
juá
introduzida
Rhamnaceae
Ziziphus joazeiro
medicinal
folha e casca antiséptico, leucemia
embauba
introduzida
medicinal
broto
hernia
ouricuri
introduzida
Arecaceae
Syagrus coronata medicinal, alimentar e artesanato
folha e fruto
jurubeba
introduzida
Solanaceae
Solanum sp.
medicinal
raíz e folha
fígado
caraguatá
introduzida
medicinal
raíz reumatismo e
coluna
ipê vermelho
introduzida
medicinal
resina
pâncreas
genipapo
introduzida
Rubiaceae
Genipa americana
pintura corporal
barriguda
introduzida
Bombacaceae
medicinal
raíz
coluna
sisal
introduzida
artesanato
folha
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pequi
nativa
alimentar
fruto
lingua de pirarucu
nativa
medicinal
folha
ferida e luxação
copaiba
introduzida
Leguminoseae
Copaifera langsdorffii
medicinal
óleo
asma, bronquite, ferida
aroeira vermelha
introduzida
medicinal
casca e folha
ferida, ovário, gastrite, úlcera e corrimento
arnica
introduzida
Asteraceae
medicinal
folha
ferida e reumatismo
alecrim
introduzida
Lamiaceae
Rosmarinum officiales
medicinal
folha
adstringente, rinite e sinusite
alfavaca nativa Lamiaceae Ocimimum gratissimum
medicinal folha chá e banho
urucum
introduzida
Bixaceae
Bixa orellana
pintura corporal
semente
beijóim
introduzida
medicinal
folha
banho
alfazena
nativa
medicinal
folha
banho comigo ninguém
pode
introduzida
medicinal
folha
banho
junça
introduzida
ritual
raíz
jatobá
nativa
Leguminoseae
Hymenaea stigonocarpa
medicinal e alimentar
casca, resina,
semente e folha
crescimento,
próstata e pulmão
ipê azul
introduzida
medicinal
casca
câncer
mucunã
introduzida
Fabaceae
Dioclea grandiflora
medicinal e alimentar
semente
disritmia
pata de vaca
introduzida
Caesalpiniaceae
Bauhinia macrostachya
medicinal
folha
diabetes
gravatá
introduzida
Bromeliaceae
Bromelia sp.
medicinal
raíz
coluna
cipó timbó
introduzida
Sapindaceae
Paullinia elegans
tóxica
folha
veneno para flechas
araçá bravo
introduzida
alimentar e medicinal
fruto e folha
banho
gervão roxo
introduzida
medicinal
raíz
câncer
cambiú
introduzida
medicinal
folha
dor de dente
bálsamo
introduzida
Fabaceae Myroxilum peruiferum
medicinal reumatismo,
artrite e artrose
sucupira
nativa
Fabaceae
Pterodon emarginatus
medicinal e religiosa
casca e semente
garganta, tosse e gripe
mamona vermelha
introduzida medicinal óleo prisão de ventre
cebola
introduzida
tóxica
raíz
veneno para flechas
babosa
introduzida
Liliaaceae
Aloe vera
medicinal
folha
câncer
hibisco branco
introduzida
medicinal
folha
queda de cabelo
caruru
introduzida
alimentar
folha
fonte de ferro
cava-cava
introduzida
medicinal
folha dor de cabeça,
insônia e doença nervosa
meiru
introduzida
artesanato
semente feijão branco introduzida Fabaceae Phaseolus sp. medicinal
"amansado"
batata de teiú
introduzida
medicinal
raiz
cura animal
abacate
introduzida
Lauraceae
Persea americana
alimentar
acerola
introduzida
Malpighiaceae
Malpighia sp.
alimentar
fruto
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melissa
introduzida
medicinal
folha
calmante
jibóia
introduzida
medicinal
raíz tirar estrias e
banho
picão roxo
introduzida
Asteraceae
Bidens pilosa
medicinal
folha
doença de fígado
mastruz
introduzida
Chenopodiaceae
Chenopodium ambrosioides
vermífugo
folha
eucalipto
introduzida
Myrtaceae
Eucalyptus sp.
medicinal
folha e resina
inalação e banho
feijão guandu
cultivada
Fabaceae
Cajanus cajan
alimentação
semente
anemia e abortivo
ingá de metro
introduzida
Inga sp.
alimentação castanha do maranhão
introduzida
Pseudobombax sp.
alimentação
faveiro
nativa
Pterogynes sp.
medicinal
semente
câncer
sapucaia
introduzida
Lecythis lanceolata
medicinal
fruta
asséptico
sibipiruna
introduzida Caesalpinea
peltophoroides
reposição do solo
semente
romã
introduzida
Punicaceae
Punica granatum
medicinal
fruto
garganta
quina
introduzida Strychnos
pseudoquina
medicinal
casaca
febre jacaranda do
cerrado
nativa
Leguminoseae
Machaerium sp.
medicinal resina e
entrecasca estômago e conjuntivite
insulina
introduzida
medicinal
folha
diabete
macela
introduzida
Compositae Achyrocline satureoides
medicinal
flor
insônia e relaxante
quitôco
introduzida
medicinal
semente
asma e bronquite
transagem
introduzida
medicinal
folha
garganta
sete dores
introduzida
Lamiaceae
Plectranthus barbatus
medicinal
folha
macaxeira
cultivada
Euphorbiaceae
Manihot uti lissima
alimentar
raiz
pau brasil
introduzida
Caesalpiniaceae
Caesalpinia echinata
pintura corporal
semente
fava
cultivada
Fabaceae
Phaseolus lunatus
alimentar
semente
mutamba
introduzida
medicinal
semente
asséptico
macaúba
introduzida artesanato e
medicin al
fruto e raíz
doenças venéreas
arruda
cultivada
Rutaceae
Ruta graveolens
jambo
alimentar
Myrtaceae
Eugenia sp.
curaça
introduzida
ciriguela
introduzida
Anacardiaceae
Spondias purpurea
alimentar
carqueija
introduzida
Asteraceae
Baccharis trimera
medicinal
folha distúrbios do
estômago
capim santo
introduzida
Poaceae Cymbopogon densiflorus
medicinal
folha
calmante e diurético
pau ferro
introduzida
Leguminoseae
Caesalpinea ferrea
medicinal
diabetes
tipi
introduzida
cana
introduzida
Poaceae Saccharum officinarum
alimentar
café
introduzida
Rubiaceae
Coffea arabica
alimentar
fruto
lambedor
introduzida
medicinal
folha
gripe
Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA e BARRETO, 2011