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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL PPGSS MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL ANNA CLARA FELICIANO MENDONÇA A PERCEPÇÃO DOS USUÁRIOS SOBRE OS BENEFÍCIOS EVENTUAIS NO MUNICÍPIO DE SAPÉ, PB: OBSTÁCULO PARA AFIRMAÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ENQUANTO DIREITO JOÃO PESSOA, PB 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA - UFPB

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES CCHLA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SERVIO SOCIAL PPGSS

MESTRADO EM SERVIO SOCIAL

ANNA CLARA FELICIANO MENDONA

A PERCEPO DOS USURIOS SOBRE OS BENEFCIOS EVENTUAIS NO

MUNICPIO DE SAP, PB: OBSTCULO PARA AFIRMAO DA ASSISTNCIA

SOCIAL ENQUANTO DIREITO

JOO PESSOA, PB

2015

ANNA CLARA FELICIANO MENDONA

A PERCEPO DOS USURIOS SOBRE OS BENEFCIOS EVENTUAIS NO

MUNICPIO DE SAP, PB: OBSTCULO PARA AFIRMAO DA ASSISTNCIA

SOCIAL ENQUANTO DIREITO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps

Graduao em Servio Social da Universidade

Federal da Paraba como requisito parcial para

a obteno do ttulo de Mestre em Servio

Social

rea de Concentrao: Poltica Social

Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes

Soares

JOO PESSOA, PB

2015

DEDICATRIA

Ao meu av Fernando Mendona (in

memorian), pelo exemplo de sabedoria que

mora no silncio e na simplicidade.

Ao meu av Feliciano Neto (in memoriam),

pelo exemplo de inteligncia enobrecida pela

dignidade.

AGRADECIMENTOS

professora Dra. Maria de Lourdes Soares, que sabiamente orientou a conduo deste trabalho;

professora Dra. Marinalva de Souza Conserva e ao professor Dr. Marcelo Gallo, pela

disponibilidade em participar da Banca Examinadora e proporcionar ricas contribuies para o

aperfeioamento deste estudo;

A todos os professores do PPGSS pela forma atenciosa com que transmitem seus

conhecimentos;

Aos funcionrios e estagirios da coordenao do PPGSS, pelos atendimentos prestados de

maneira amigvel e acolhedora;

Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela

disponibilizao da bolsa de estudos, essencial para a realizao da pesquisa apresentada;

equipe da Secretaria de Promoo e Assistncia Social do municpio de Sap, pela

autorizao para a realizao do presente estudo;

Aos colegas que fizeram parte da turma G-30, pela unio e solidariedade durante todo o

processo de aprendizagem, em especial ala procadiana;

s amigas Aline Ferreira, Virgnia Helena, Wanessa Leandro e Socorro Pontes pela amizade e

apoio prestados ao longo dessa jornada;

Aos meus pais, Fernando Hugo e Ciane, pelo amor incondicional e pelo apoio aos meus projetos

pessoais e profissionais;

E ao meu noivo, Caio Mrcio, por todo amor, carinho e companheirismo.

RESUMO

MENDONA, A.C.F. A percepo dos usurios sobre os benefcios eventuais no municpio

de Sap, PB: obstculo para afirmao da assistncia social enquanto direito. 2015. 167 f.

Dissertao (Mestrado) - Programa de Ps Graduao em Servio Social, Universidade Federal

da Paraba, Joo Pessoa, 2015.

Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa realizada no municpio de Sap, PB, que teve

por objetivo identificar a percepo que os usurios da poltica de assistncia social detm sobre

os benefcios eventuais, considerando as perspectivas do direito e da ajuda, e analisando-a

quanto aos seus rebatimentos para o processo de afirmao da assistncia social enquanto

direito. Para tanto, a coleta de dados foi realizada entre os meses de novembro de 2013 e

dezembro de 2014 e se deu atravs da observao, do levantamento documental e bibliogrfico

pertinente e da aplicao de formulrios junto aos usurios que acessaram os benefcios

eventuais, tendo por referncia o ms de agosto de 2013. De modo geral, identificou-se que a

percepo dos beneficirios reflexo das limitaes presentes no plano legal e operativo,

aproximando-se mais da noo de ajuda do que da do direito, configurando-se, portanto, em

um obstculo para a consolidao do direito assistncia social. Essa constatao fundamenta-

se no pressuposto de que a assistncia social, ao se constituir como direito assegurado pela

Constituio Federal e por Lei especfica, no detm a faculdade de, por si s, abandonar os

vestgios de um passado abarrotado de prticas e concepes deturpadas. Para tanto, preciso

estimular projees polticas que orientem sua gesto no sentido da quebra deste paradigma,

num movimento que integralize todas as suas provises para a garantia do direito dos usurios

desta poltica. A regulamentao e operacionalizao dos benefcios eventuais, enquanto

componentes do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) brasileiro, se apresenta como

elemento indispensvel nesse processo de consolidao, uma vez que estes possuem particular

associao ao assistencialismo e ao clientelismo expressos por muito tempo na trajetria da

assistncia social.

Palavras-chaves: Assistncia social. Proteo social. Benefcios eventuais.

ABSTRACT

MENDONA, A.C.F. The users' perception about the eventual benefits in the city of Sap,

PB: obstacle to affirm the social assistance as a right. 2015. 167 f. Dissertao (Mestrado) -

Programa de Ps Graduao em Servio Social, Universidade Federal da Paraba, Joo Pessoa,

2015.

This work presents the results of research conducted in the city of Sap, PB, that had as

objective identify the perception that the users of the social assistance politics have about the

eventual benefits, considering the perspectives of the right and of the help, and analyzing it as

its repercussions for the process of affirming the social assistance as a right. Thus, the data

collecting was conducted between the months of November 2013 and December 2014 and was

made through the observation, by the review of the documents and literature pertinent and by

the application of the formularies with the users that had access the benefits, with reference to

the month of August 2013. Altogether, it was identified that the perception of beneficiaries

reflects the limitations presents in the legal and operational plans, approaching more of the help

than the notion of the right, setting is, therefore, an obstacle to the consolidation of the right to

social assistance. Starts by the presupposition that the social assistance, instituted as right

ensured by the Constitution and by specific law, don't have the faculty of, by itself, leave the

traces of one past full of practices and conceptions misrepresented. For this, it is necessary to

stimulate political projections that guides their management to the sense of break this paradigm,

at one movement that integrate all their provisions to the assurance of the users' rights. The

regulation and operation of the eventual benefits, as components of the Brazilians System of

Social Assistance (SUAS), presents itself as an indispensable element in this process of

consolidation, once these have particular association with welfarism and clientelism expresses

along the career of the social assistance and that, and how is possible to deduce from the data

that describes the reality of the manage this right, presented in this discussion, still resist

insistently.

Keywords: Social assistance. Social protection. Eventual benefits.

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 Mapa do Estado da Paraba por Regio Geoadministrativa com Destaque para o

Municpio de Sap e a Capital Joo Pessoa .......................................................................... 108

Mapa 2 Muncipios que Compem a 1a Regio Geoadministrativa do Estado da

Paraba................................................................................................................................... 109

LISTA DE GRFICOS

Grfico 1 Situao dos Habitantes Ocupados no Municpio de Sap ................................ 109

Grfico 2 Habitantes Ocupados Classificados de Acordo com o Rendimento Nominal Mensal

................................................................................................................................................ 110

Grfico 3 Incidncia da Situao de Extrema Pobreza sobre os Habitantes por Setor Censitrio

................................................................................................................................................ 112

Grfico 4 - Benefcios Eventuais Concedidos no Ms de Agosto de 2013, por tipo ............ 123

Grfico 5 Faixa Etria dos Sujeitos .................................................................................... 124

Grfico 6 Escolaridade dos Sujeitos .................................................................................. 125

Grfico 7 Situao Ocupacional do Sujeito ....................................................................... 125

Grfico 8 Quantidade mdia de membros das famlias ..................................................... 126

Grfico 9 Renda familiar per capta .................................................................................... 127

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Porte dos municpios brasileiros .......................................................................... 60

Quadro 2 Valores dos benefcios funeral e natalidade pagos pelos municpios .................. 91

Quadro 3 Forma de oferta dos benefcios funeral e natalidade pelos municpios ............... 91

Quadro 4 Itens ofertados pelos municpios como benefcios por vulnerabilidade

temporria/situao de calamidade pblica ............................................................................ 93

Quadro 5 Objetivo das questes apresentadas no bloco D ................................................ 102

Quadro 6 Vivncia de Situaes de Vulnerabilidade temporria pelos sujeitos ................ 128

Quadro 7 Profissional / pessoa de referncia procurada pelo sujeito por local de requerimento

dos benefcios eventuais ......................................................................................................... 133

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI: Ato Institucional;

ARENA: Aliana Nacional Renovadora;

BNDE: Banco Nacional de Desenvolvimento;

BNH: Banco Nacional de Habitao;

BPC: Benefcio de Prestao Continuada;

CAP: Caixa de Aposentadoria e Penso;

CEME: Central de Medicamentos;

CF: Constituio Federal;

CLT: Consolidao das Leis Trabalhistas;

CMAS: Conselho Municipal de Assistncia Social;

CNAS: Conselho Nacional de Assistncia Social;

CNSS: Conselho Nacional de Servio Social;

CRAS: Centro de Referncia da Assistncia Social;

CREAS: Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social;

CTPS: Carteira de Trabalho e Previdncia Social

ECA: Estatuto da Criana e do Adolescente;

ESTADIC: Pesquisa de Informaes Bsicas Estaduais;

FGTS: Fundo de Garantia por Tempo de Servio;

FEBEM: Fundao Estadual de Bem-Estar do Menor;

FUNABEM: Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor;

IAPs: Institutos de Aposentadoria e Penso;

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica;

IDEME: Instituto de Desenvolvimento Municipal e Estadual da Paraba;

INAMPS: Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social;

INPS: Instituto Nacional de Previdncia Social;

INSS: Instituto Nacional do Seguro Social;

IPASE: Instituto de Aposentadoria e Penso dos Servidores Estaduais;

LA: Liberdade Assistida;

LBA: Legio Brasileira de Assistncia;

LOAS: Lei Orgnica da Assistncia Social;

LOPS: Lei Orgnica da Previdncia Social;

MDB: Movimento Democrtico Brasileiro;

MDS: Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome;

MOBRAL: Movimento Brasileiro de Alfabetizao;

MPAS: Ministrio da Previdncia e Assistncia Social;

NOB/SUAS: Norma Operacional Bsica do Sistema nico de Assistncia Social;

PAEFI: Servio de Proteo e Atendimento Especializado a Famlias e Indivduos;

PAIF: Servio de Proteo e Atendimento Integral Famlia;

PIB: Produto Interno Bruto;

PNAS: Poltica Nacional de Assistncia Social;

PSC: Prestao de Servio Comunidade;

RMV: Renda Mensal Vitalcia;

SAGI: Secretaria de Avaliao e Gesto da Informao;

SAM: Servio de Atendimento a Menores;

SAS: Secretaria de Assistncia Social;

SENAC: Servio Social do Comrcio;

SESAN: Secretaria de Segurana Alimentar e Nutricional;

SESI: Servio Social da Indstria;

SINPAS: Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social;

SPAS: Secretaria de Promoo e Assistncia Social;

SUAS: Sistema nico de Assistncia Social;

UNE: Unio Nacional dos Estudantes;

SUMRIO

INTRODUO ..................................................................................................................... 17

1 OS DIREITOS SOCIAIS E A FORMATAO DA PROTEO SOCIAL: recortes da

histria brasileira ................................................................................................................... 23

1.1 As Constituies de 1824 e 1891: os pressupostos da proteo social estatal ............ 26

1.2 As Constituies de 1934 e 1937 e o Estado Social: a industrializao e a

institucionalizao da proteo social ................................................................................. 30

1.3 A Constituio de 1946 e os planos de governo populistas: expanso da

industrializao e continuidade do modelo previdencirio ............................................... 34

1.4 O Golpe Militar de 1964: Entre a represso aos direitos e a afirmao do Regime

...................................................................................................................................................41

1.5 O Lugar da Assistncia Social ........................................................................................ 48

2 A ASSISTNCIA SOCIAL NA PROTEO SOCIAL BRASILEIRA ........................ 52

2.1 Tpicos Sobre a Fundamentao Legal e Normativa da Assistncia Social .............. 53

2.1.1 A proteo social do SUAS ............................................................................................ 55

2.1.2 Responsabilidades e atribuies: a descentralizao poltico-administrativa na assistncia

social ........................................................................................................................................ 58

2.1.3 A Perspectiva Territorial como inovao da Poltica de Assistncia Social .................. 60

2.2 O Debate Terico Sobre a Assistncia Social no Brasil: questes para anlise ......... 63

2.2.1 A focalizao na extrema pobreza .................................................................................. 65

2.2.2 Os Programas de Transferncia de Renda no Contexto da Poltica de Assistncia Social

Brasileira ................................................................................................................................. 67

2.3 O Processo de Consolidao da Assistncia Social Enquanto Direito Social ............ 72

3 A PARTICULARIDADE DOS BENEFCIOS ENVENTUAIS .................................... 80

3.1 Possibilidades e Limites da Normatizao .................................................................... 81

3.2 Entre a Normatizao e a Prtica: O Processo em Discusso ..................................... 87

3.3 A Realidade do (No)Direito .......................................................................................... 89

4 A PERCEPO DOS USURIOS SOBRE OS BENEFCIOS EVENTUAIS NO

MUNICPIO DE SAP, PB: obstculo para afirmao da assistncia social enquanto

direito ..................................................................................................................................... 97

4.1 O percurso metodolgico da pesquisa ........................................................................... 97

4.1.1 A estrutura do formulrio ............................................................................................... 99

4.2 Sap, PB: o cenrio da pesquisa .................................................................................. 103

4.2.1 Breve histrico ............................................................................................................. 103

4.2.2 Caractersticas gerais do municpio.............................................................................. 108

4.2.3 Indicadores sociais e a poltica de assistncia social no municpio ............................. 112

4.3 A anlise dos dados ....................................................................................................... 114

4.3.1 Os benefcios eventuais e a legislao municipal: a incompreenso do objeto ........... 115

4.3.2 Primeiras impresses: o cadastro dos beneficirios ..................................................... 119

4.3.3 Observaes sobre a aplicao do formulrio .............................................................. 122

4.3.4 O perfil dos sujeitos ..................................................................................................... 124

4.3.5 O acesso dos usurios aos benefcios eventuais no municpio de Sap, PB ................ 130

4.3.6 Entre o direito e a ajuda: a percepo dos sujeitos sobre os benefcios eventuais e seus

rebatimentos para a concretizao do direito assistncia social ......................................... 135

CONCLUSO ..................................................................................................................... 143

REFERNCIAS .................................................................................................................. 149

APNDICE I Formulrio para aplicao com os usurios ......................................... 154

APNDICE II Legenda para preenchimento do formulrio ....................................... 162

ANEXO I Lei Municipal n. 976/2009 ............................................................................. 165

17

INTRODUO

Esta dissertao decorrente dos estudos e trabalhos que esto sendo desenvolvidos

pelo Ncleo de Estudos e Pesquisas em Polticas Sociais (NEPPS), vinculado ao Centro de

Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal da Paraba e ao Programa de Ps-

Graduao em Servio Social (UFPB), a partir do Projeto de Cooperao

Acadmica Casadinho/PROCAD 2011/2015[1], Edital 06/20011MCTI/CNPq/Capes, sob o

nmero PROJETO CNPQ NO 552248/2001-8, entre o Programa de Ps-Graduao em Servio

Social (PGSS) da UFPB e o Programa de Estudos Ps-Graduados em Servio Social (PEPGS-

SSO) da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), intitulado ASSISTNCIA

SOCIAL E TRANSFERNCIA DE RENDA: INTERPELAES NO TERRITRIO DA

PROTEO SOCIAL, sob a coordenao da Professora Doutora Marinalva Conserva.

O interesse pelo estudo da percepo que os usurios detm sobre os benefcios

eventuais no municpio de Sap, PB, surgiu a partir do contato direto com estes usurios em

virtude da experincia profissional enquanto assistente social do referido municpio, atuando

na Secretaria de Promoo e Assistncia Social (SPAS) e, posteriormente, no Centro de

Referncia da Assistncia Social (CRAS).

Antes de fazer as devidas ponderaes sobre o presente estudo, fazem-se necessrias

breves consideraes a respeito de seu objeto, os benefcios eventuais.

At a promulgao da Constituio Federal de 1988, os benefcios eventuais eram

restritos, no patamar legal, ao auxlio natalidade e auxlio funeral, integrando a gama de

benefcios dos segurados da previdncia social. No plano meramente prtico, caracterizavam

as aes da assistncia social pblica, desarticuladas e executadas quase totalmente pelas

entidades sociais subvencionadas pelo Estado.

Sabe-se que as prticas fragmentadas de ajudas e doaes se encontram arraigadas

ao processo histrico e cultural que permeia a trajetria da assistncia social pblica no Brasil.

Com a elevao da assistncia social ao patamar de poltica pblica de seguridade social e a

instituio da Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), essas prticas so transformadas e

reconhecidas como direito social sob a denominao de benefcios eventuais.

18

Conceituados genericamente pelo artigo 22 da LOAS, os benefcios eventuais so

provises suplementares e provisrias prestadas aos cidados e s famlias impossibilitados de

arcar, por si prprio, com o enfrentamento de contingncias sociais em virtude de nascimento,

morte, situaes de vulnerabilidade temporria e calamidade pblica, cujas ocorrncias

provocam riscos e fragilidade na manuteno do indivduo, da famlia e da sobrevivncia de

seus membros.

Assim, a LOAS possibilitou a ampliao dos tipos de benefcios e sua garantia

populao no atendida pela previdncia social. Alm disso, dimensionou, formalmente, o

distanciamento de prticas assistencialistas e clientelistas, caractersticas que marcaram

fortemente a trajetria da assistncia social no Brasil.

No entanto, apesar de estarem legalmente respaldados na LOAS desde 1993, a trajetria

desse direito social enfrentou alguns entraves ao longo de seu percurso, os quais se refletem e

ainda persistem, expressando-se pelas falhas no processo de normatizao e operacionalizao.

Primeiramente, nos referiremos ao vcuo normativo presente nessa caminhada, pois a

primeira regulamentao dos benefcios eventuais se deu apenas em 2006, com a Resoluo n.

212, do Conselho Nacional de Assistncia Social (CNAS), depois de mais de uma dcada da

promulgao da LOAS. Esta regulamentao se deu em decorrncia dos resultados obtidos

atravs de um levantamento nacional sobre a situao desses benefcios, realizado em 2004 pelo

Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS).

De modo geral, a referida Resoluo prope critrios orientadores para a

regulamentao e prazos para a proviso dos benefcios eventuais pelos municpios, ente

federado competente, bem como trata do co-financiamento pelos estados e da definio das

atribuies dos Conselhos Municipais de Assistncia Social, rgo responsvel por aprovar os

prazos e critrios para a concesso.

Ainda referenciados nos resultados obtidos pelo levantamento nacional do MDS, foi

institudo o Decreto Presidencial n. 6.307/07, que apresenta os princpios aos quais devem

atender os benefcios eventuais no mbito do SUAS, incluindo sua afirmao como direito

relativo cidadania. O Decreto define tambm o que se constitui vulnerabilidade temporria e

algumas situaes que a caracterizam, de suma importncia para a definio e limitao da

abrangncia dos benefcios eventuais.

19

O que h de se questionar nesse aspecto como se deu a execuo dos benefcios

eventuais ao longo desses treze anos sem nenhum tipo de regulamentao e como os municpios

absorveram, depois de tantos anos, as normatizaes institudas tanto no plano legal quanto no

plano operacional.

No sentido dessa questo, um panorama nacional da situao dos benefcios eventuais

pde ser visualizado pela anlise dos dados obtidos atravs do Levantamento Nacional Sobre

Benefcios Eventuais, realizado tambm pelo MDS, em 2009. O estudo, aplicado em 75% dos

municpios brasileiros, buscou, exatamente, analisar a implementao desses benefcios em

consonncia com os parmetros nacionais sob os aspectos de sua regulao e oferta.

Genericamente, aps trs anos da primeira regulamentao nacional, uma minoria

apresentou um panorama de regulamentao e de execuo dos benefcios eventuais em

consonncia com os parmetros nacionais, sendo apontados alguns motivos que dificultam a

instituio das normas e a concesso dos benefcios, abordados ao longo deste estudo.

Atravs desse panorama ficou evidenciado que a atribuio do financiamento dos

benefcios eventuais pelos municpios e a consequente impossibilidade de se arcar com esses

benefcios na forma proposta pela poltica de assistncia social figura como um dos principais

entraves no fluxo desse direito.

De acordo com o levantamento de 2009, em mais de 80% dos municpios participantes

do estudo foi revelada a ausncia de co-financiamento pelos estados. No caso da Paraba,

conforme dados da pesquisa de informaes bsicas estaduais (ESTADIC), realizada pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) em 2012, o estado no realiza a concesso

nem mesmo o co-financiamento de benefcios eventuais (IBGE, 2013 b).

A cidade de Sap situa-se na mesorregio da Zona da Mata paraibana, integrando a 1

Regio Geoadministrativa do estado. Com 50.143 habitantes (IBGE, 2013 a), o municpio se

destaca por ser classificado como de mdio porte em um estado onde mais de 99% do total de

223 municpios esto divididos entre municpios de pequeno porte I e II1. A populao total de

pessoas com rendimento de at do salrio mnimo de 18.294 habitantes (IBGE, 2013 a), ou

1 Classificao dos municpios de acordo com a Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS).

20

seja, de imediato se pode afirmar que 36,5% da populao se constitu de possveis usurios

dos benefcios eventuais2.

No municpio, os benefcios eventuais so regulamentados pela lei municipal n. 976,

de 19 de junho de 2009, cuja anlise ser discutida em subseo especfica deste trabalho. O

atendimento populao usuria demandante dos benefcios eventuais realiza-se,

principalmente, na sede da Secretaria de Promoo e Assistncia Social, a qual no

disponibiliza um setor especfico para gerenciar os benefcios.

A inquietao em relao ao objeto em estudo resultou da observao de um

atendimento no organizado da demanda, sem critrios especficos para o acesso e de forma

desarticulada da oferta de servios socioassistenciais, o que fere os preceitos da normativa

nacional. Neste sentido, foi ponderado que a forma de operacionalizao dos benefcios

eventuais, assim como outros fatores, poderia se manifestar tambm na forma pela qual so

apreendidos pelos usurios.

Um possvel impasse entre sua disseminao e percepo pela via do direito social ou

pelo vis clientelista da ajuda, so fatores que influenciam no fluxo das relaes entre os

usurios e a poltica, podendo denotar numa concepo assistencialista.

A oferta dos benefcios eventuais a ao que afirma os municpios como entes

federados autnomos em relao poltica de assistncia social e, portanto, espraia-se de

maneira capilar por todo o territrio brasileiro. Em vista disso, acredita-se que o rompimento,

a continuidade ou o ressurgimento de elementos retrgrados esto intimamente relacionados

com a percepo que os usurios da assistncia social detm sobre os benefcios eventuais.

Assim, considerou-se, neste estudo, a possibilidade de identificar a percepo

apreendida pelos usurios sobre os benefcios eventuais entre as perspectivas do direito e da

ajuda, analisando toda a sua construo histrica e os possveis reflexos sobre a consolidao

do direito assistncia social.

A coleta de dados da pesquisa foi realizada na cidade de Sap, PB, entre novembro de

2013 e dezembro de 2014, sendo realizada atravs das tcnicas de observao, de pesquisa

2 Critrio de renda mnimo definido pela Resoluo n. 212 do CNAS (CNAS, 2015 c) e institudo pela Lei

Municipal n. 967/2009.

21

bibliogrfica e documental e, sequencialmente, de aplicao de formulrios junto aos

beneficirios, com questes dos tipos aberta e fechada.

O resultado obtido atravs da anlise dos dados da pesquisa, demonstrado ao longo do

ltimo captulo deste estudo, possibilita a visualizao de um panorama geral sobre a situao

dos benefcios eventuais no municpio, perpassando pela anlise da legislao municipal e pelos

elementos presentes no seu processo de oferta e operacionalizao, bem como no acesso pelos

usurios. Para compreenso da percepo identificada, so considerados tambm aspectos

relevantes, referentes ao perfil dos sujeitos e ao fluxo dos elementos socioeconmicos e

culturais existentes no territrio.

A discusso precedida da fundamentao terica necessria para subsidiar a sua

compreenso. O primeiro captulo aborda os direitos sociais e a formatao da proteo social

brasileira de modo mais amplo tendo em vista que, antes da Constituio de 1988, a matria

que hoje compreende os benefcios eventuais permeou entre o campo da previdncia social e

das aes da assistncia social, no apenas pblica, mas que tambm envolvia aes privadas

(predominantemente filantrpicas) e relaes de cunho pessoal.

Buscou-se ainda no captulo 1 contextualizar os elementos prprios da formao

sociohistrica brasileira que ofereceram influncia sobre os modelos de proteo social

predominantes em cada poca, donde a ateno estatal se deu de maneira a priorizar as medidas

na rea previdenciria. Assim, elementos especficos das aes de assistncia social pblica

foram tratados em seo a parte, ressaltando sua fragilidade no sentido da efetividade e de

uniformizao em nvel nacional.

O segundo captulo aborda a assistncia social aps a Constituio de 1988, concebida

enquanto direito e organizada como poltica pblica integrante do sistema de seguridade social

brasileiro, onde, entre suas garantias, encontram-se respaldados os benefcios eventuais.

Consideram-se os aspectos concernentes a sua normatizao e regulamentao legal, bem como

os aspectos relevantes do debate terico sobre a assistncia social na atualidade.

Alm disso, faz-se a devida discusso sobre o processo de consolidao da assistncia

social enquanto direito social, relacionando as possibilidades e limites para a superao

definitiva da cultura assistencialista. A esse ponto, exatamente, buscar-se- complementar com

as concluses sobre a percepo dos usurios em relao aos benefcios eventuais.

22

O captulo 3 trata especificamente sobre os benefcios eventuais, de forma a aprofundar

e complementar as informaes j brevemente apresentadas, fazendo o contraponto entre a

normatizao e a realidade desses benefcios no cenrio brasileiro, tendo por base os dados

apresentados como resultados do Levantamento Nacional Sobre Benefcios Eventuais

(BRASIL, MDS, 2009).

Enfim, ponderando o conjunto de elementos apresentados ao longo deste trabalho,

pretende-se contribuir para a compreenso deste objeto, ampliar seu universo informacional,

detectar desafios e pensar em possibilidades que permitam avanar no processo de consolidao

da assistncia social como poltica pblica de garantia de direitos.

23

1 OS DIREITOS SOCIAIS E A FORMATAO DA PROTEO SOCIAL: recortes da

histria brasileira

Os benefcios eventuais tm suas razes formais nos domnios da previdncia social,

assim como a maioria das aes de proteo social providas pelo Estado Social a partir da

dcada de 1930, mantidas at a instituio do Estado Democrtico de Direito expresso na

Constituio Federal de 1988. No entanto, parte das garantias que hoje so asseguradas pela

gama dos benefcios eventuais transcorreu tambm pelo campo delimitado pela prtica da

assistncia social at ento.

Assim, faz-se necessria uma breve exposio de como se institucionalizou os direitos

sociais no Brasil, estruturando a proteo social estatal que se encontra erguida e gerida

atualmente, com foco no campo de domnio da previdncia e da assistncia social para dar

respaldo ao objeto deste estudo.

Faz-se igualmente importante analisar os aspectos peculiares da formao social

brasileira que permearam o processo de desenvolvimento e institucionalizao dos direitos

sociais3, o qual est intimamente relacionado expanso (tardia) do capitalismo industrial no

Brasil.

De acordo com Sposati (2009), o termo proteo social se refere necessidade

antropolgica de segurana exigida pelos indivduos e que no se resumem ao campo privado,

mas requer tambm um nvel determinado de segurana a ser provido a todos os membros de

uma sociedade.

A proteo social pode, ento, ser definida como um conjunto de iniciativas pblicas,

estatalmente reguladas para a proviso de servios e benefcios sociais visando enfrentar

situaes de risco social ou privaes sociais (JACCOUD, 2009, p. 58). A noo de proteo

social deve contemplar, portanto, a preveno a situaes de deteriorao do ser humano, no

restrito apenas ao amparo quando esta situao j estiver estabelecida.

3 No contexto histrico mundial, os direitos sociais passaram a ser institudos entre os sculos XIX e XX, em

decorrncia da luta dos trabalhadores durante o desenvolvimento e expanso do capitalismo industrial, diante da

exigncia de prestao material por parte do Estado (SIMES, 2013).

24

Diante deste conceito, a discusso contida neste primeiro captulo abordar a questo

dos direitos sociais desde a primeira Constituio brasileira at a ltima anterior Constituio

Federal de 1988, buscando elementos para anlise da finalidade da proteo social diante do

formato que lhe fora atribudo.

A princpio desta discusso, faz-se importante destacar a percepo da integralidade de

valores no processo de institucionalizao dos direitos definidos como de primeira, segunda e

terceira gerao (civis, polticos e sociais, respectivamente).

Ao compreender que esta sucesso de fases no implica na caducidade de um em

relao ao outro, justifica-se a necessidade de meno das garantias que abrangeram tambm

os direitos civis e polticos, uma vez que os direitos sociais so incompreensveis sem os

individuais e o direito da igualdade formal sem a implementao da igualdade real (SIMES,

2013, p.50).

O que se observa no decorrer da anlise que se segue a presena constante de interesses

privados e econmicos como elementos que permearam a instituio dos direitos no Brasil.

Inicialmente, com a nfase atribuda aos direitos civis, o que predominou no campo da

proteo foram as relaes de poder entre os grandes latifundirios e seus tutelados, seja na

condio de escravo, seja na condio de assalariado, criando a prtica do favor. Pela

manuteno dessa situao, os senhores e coronis tinham, por sua vez, as vantagens que os

colocavam em um patamar poltico e econmico privilegiado4.

Do outro lado, aos indigentes restava a caridade das irmandades e congregaes,

principalmente religiosas, que, alm de prestarem suas obras em hospitais, orfanatos e escolas,

recolhiam e distribuam auxlios e esmolas aos pobres, pois era consenso por parte dos

governantes da poca (reis e imperadores) que cabia ao meio religioso exercitar a prtica da

Caridade [...] (BOVOLENTA, 2010, p. 28).

Foi somente aps o fim da escravido e chegada de imigrantes europeus no Brasil que

ganhou corpo a luta pelos direitos sociais, os quais eram concedidos s categorias de

trabalhadores essenciais para a manuteno da economia agroexportadora como estratgia das

elites.

Com as medidas econmicas advindas do ps-crise de 1929, a necessidade de

instaurao do capitalismo industrial e o contexto poltico brasileiro, expandiu-se uma proteo

social estatal de natureza contributiva, restrita aos trabalhadores formais e, por quase todo

4 Percebe-se, ainda, que essa mesma forma de proteo perdurou por muito tempo na zona rural do pas, mesmo

aps o fim da escravido, a expanso do capitalismo industrial no Brasil e as garantias trabalhistas que, durante

muitos anos estiveram estrategicamente restritas aos trabalhadores formais urbanos.

25

tempo, aos trabalhadores urbanos, apesar do maior contingente da populao ainda estar

concentrada na rea rural at a dcada de 1960.

Esse perfil da proteo social brasileira permaneceu sem profundas alteraes desde o

governo provisrio e ditatorial de Vargas, passando pelos governos populistas at a instaurao

do Golpe Militar de 1964. Entretanto, durante todo perodo, mesmo com a garantia dos direitos

trabalhistas, foram priorizadas as medidas de estmulo ao desenvolvimento capitalista em

detrimento das necessrias intervenes na rea social.

Com a instituio do regime militar e sua orientao governamental destinada

modernizao acelerada da economia esse modelo sofreu algumas mudanas significativas

como consequncia da incorporao de novas categorias e do aumento no nmero de

assalariados vinculados ao processo de crescimento econmico.

Vianna (1998) analisa a expanso da previdncia, no contexto da centralizao

burocrtica do autoritarismo peculiar a este perodo, de modo a perceber um deslocamento

rumo universalizao dos direitos sociais (VIANNA, 1998, p. 144), embora no fosse

inteno desse processo. Entretanto, essa disseminao de direitos no coincidiu com uma

estrutura que os assegurassem um exerccio pleno, tornando precria a cidadania que se

universalizava.

O que se verificou, prontamente, foi uma queda na qualidade dos servios pblicos

prestados e a vinculao da proteo social lgica privatizante, resultando, de modo geral, no

incentivo terceirizao, no desvio de fundos destinados ao financiamento da proteo social

para fins diversos e no estmulo ao abandono dos servios pblicos em decorrncia, sobretudo,

da insuficincia no atendimento.

Essa forma de proteo social meritocrtica relegou os no contribuintes e/ou

impossibilitados de acessar os servios privados ao precrio atendimento pela assistncia social,

a qual tinha previso jurdica meramente programtica e de estmulo segmento privado. Por

isso, a ltima seo desse captulo tratar especificamente do lugar ocupado pela assistncia

social durante todo o processo em questo.

Ressalta-se ainda que, para fins deste estudo, adotaremos a perspectiva mencionada por

Jaccoud (2009) de que a proteo social at a dcada de 1980 era constituda pelas mesmas

polticas que compem o sistema de seguridade social atual - previdncia, assistncia social e

sade - entretanto, sero destacados aspectos e iniciativas relevantes nas demais reas sempre

que se fizer necessrio.

26

1.1 As Constituies de 1824 e 1891: os pressupostos da proteo social estatal

Os traos marcantes da formao social brasileira que tambm ofereceram influncia na

instituio dos direitos decorrem da relao de dependncia com Portugal durante o perodo

colonial, donde se estabeleceu o sistema produtivo com base na agricultura extensiva e no

trabalho escravo, deixando como herana para o pas a escravido, a grande propriedade rural

e a presena de um Estado comprometido com o poder privado (COUTO, 2010).

A questo dos latifndios traz consigo o padro das relaes de poder, onde a figura dos

coronis encenava como donos de escravos e de trabalhadores, que, embora legalmente livres,

dependiam diretamente da benesse do patro para garantir os recursos de sobrevivncia. Couto

(2010, p.78) afirma que criam-se a as condies objetivas da ideologia do favor, que se

estende para alm das fronteiras dos latifndios, passando a dominar tambm a relao entre o

governo e os grandes proprietrios.

Essa estrutura social centrada no poder do governo e dos grandes proprietrios

dificultava, inclusive, a circulao de informaes e a organizao de movimentos sociais.

A burguesia que se formava no Brasil adquiria uma caracterstica diferenciada da que se

constituiu durante os movimentos para consolidao de direitos civis e polticos na Europa,

objetivando, no caso brasileiro, uma apropriao do Estado para que fossem garantidos os seus

interesses privados (COUTO, 2010).

Os movimentos sociais que se formaram durante o perodo da colnia e imprio se

reservavam a questionar a dependncia econmica e os altos tributos cobrados pela Coroa

portuguesa. Movimentos como a Inconfidncia Mineira (1789) e a Revoluo Pernambucana

(1817) so exemplos desse processo, cuja dificuldade de expanso em virtude da distncia

geogrfica possibilitava a sua represso pela fora militar da poca.

Participavam desse processo uma minoria da populao letrada, os grandes proprietrios

e membros da igreja, demonstrando que a principal fraqueza dos movimentos revolucionrios

ocorridos antes da independncia residia no profundo receio que os lderes dos movimentos

experimentavam em relao s massas (VIOTTI DA COSTA apud COUTO, 2010, p.81).

Nesse sentido, observa-se o repdio aproximao de uma igualdade social pelos movimentos

revolucionrios da poca.

Outra peculiaridade percebida a foi a preponderante participao da igreja catlica

nesses movimentos, que defendia o direito de no interferncia direta do Reino. No caso dos

movimentos liberais europeus, estes se deram revelia da igreja, reivindicando, inclusive, o

27

direito liberdade de credo (COUTO, 2010).

Com a vinda da Corte para o Brasil no incio do sculo XIX, foi intensificada a economia

agroexportadora, sendo decretada, em 1808, a liberdade de comrcio com outros pases, bem

como, intensificou-se tambm o movimento pela independncia brasileira. Com o retorno de

D. Joo VI para Portugal em 1820, D. Pedro I assume dando mais acesso aos grupos que

defendiam a independncia e que tinham influncia junto ao Rei.

Com a independncia proclamada em 1822, a Constituio Imperial de 1824 foi

promulgada com o objetivo de organizar o Brasil independente. Entretanto, demonstrou em seu

texto diversas contradies na absoro dos preceitos do liberalismo, influenciada pelos ideais

das revolues francesa e norte-americana (SIMES, 2013). Conforme afirma Couto (2010,

p.83), [...] a formatao dessa Constituio passou a retratar, especialmente no campo dos

direitos, os elementos de sua herana histrica: dependncia poltica, processo de trabalho

escravocrata e relaes de poder, centralizadas nos grandes proprietrios.

A defesa dos direitos individuais tinha por base a liberdade, a segurana individual e a

propriedade. Os direitos polticos eram particularmente bastante restritos, sendo estipulada

renda mnima anual para acesso ao direito a voto (a partir dos 25 anos) e eleio indireta

atravs de assembleias paroquiais.

Quanto aos direitos sociais, a Constituio de 1824 limitava-se meno aos

denominados socorros pblicos e ao direito educao primria gratuita de forma meramente

programtica, destinados aos escravos e pobres destitudos de direitos civis e polticos

(SIMES, 2013). Nesse campo, as aes eram desenvolvidas por religiosos, o que, conforme

aponta Couto (2010), representam o princpio da relao dessa rea com a filantropia e as

iniciativas privadas.

Bovolenta (2010) se refere Irmandade das Misericrdias como bastante influente desde

a colonizao brasileira, sendo considerada a primeira e duradoura instituio de amparo social

de expresso no pas. Era composta por homens bons (e ricos), cuja sua vinculao

irmandade os atribua status que garantiam privilgios polticos. Dentre as aes da

Irmandade estava a prestao de caixes para enterro de alunos pobres e dote aos rfos5.

Em 1850, o Cdigo Comercial passou a regular as relaes de trabalho na prtica

comercial urbana, identificando-se como direitos precursores dos trabalhistas (SIMES, 2013).

5 Em 1825, na cidade de So Paulo, foi criada a Roda, para ateno aos expostos e crianas abandonadas. A

roda era um simples instrumento formado por cilindro oco com abertura que girava em torno do seu prprio

eixo, permitindo que crianas fossem deixadas pelo lado externo da instituio e, aps o toque de uma campainha,

eram recolhidas no interior do prdio. O Sistema de rodas foi legalmente extinto pelo Cdigo de Menores, em

1927.

28

So exemplos de suas garantias: pagamento de salrios por at 03 meses no caso de acidente

imprevisto e sem culpa; indenizao por dano extraordinrio a servio do empregador; e aviso

prvio de 01 ms no caso de contrato por tempo indeterminado.

Com a proclamao da Repblica e diante do interesse em superar o regime anterior, foi

promulgada a Constituio Republicana de 1891, expandindo e fortalecendo, formalmente, os

direitos civis e polticos. Nesse sentido, Couto (2010, p.89) afirma que os governos que se

sucederam aps a Proclamao da Repblica e a promulgao da Constituio de 1891

reiteraram a condio do pas de escrever como lei aquilo que no se pretende cumprir.

Na ocasio foi institudo o Regime Federativo e as Constituies Estaduais, com

garantia de autonomia poltica, financeira e administrativa, bem como o Regime

Presidencialista com mandato para 04 anos sem reeleio imediata. Foi criado o Congresso

Nacional com representantes eleitos diretos pela populao. O voto tornou-se universal no

sentido da exigncia de rendimento mnimo, extensivo aos maiores de 21 anos, entretanto ainda

mantendo excludas as mulheres, os mendigos, os analfabetos, os praas de pr e os religiosos.

Houve o reconhecimento constitucional da igualdade de todos perante a lei e da extino

de privilgios de nascimento, de foros de nobreza e de ordens honorficas existentes at ento.

Foi contemplada, ainda, a laicizao do Estado, determinando o ensino leigo pelas instituies

pblicas.

Apesar dos crescentes conflitos prprios da ordem liberal em processo de

industrializao e da dificuldade para absoro do contingente de ex-escravos expulsos do

campo, a questo social permaneceu desconhecida pela Constituio, sem significar, entretanto,

a inexistncia de movimentos pela regulamentao e institucionalizao dos direitos nesse

sentido.

A estrutura social estabelecida passou a ser tensionada mais contundentemente nos

primeiros anos do sculo XX com a chegada dos imigrantes europeus diante de sua condio

de trabalhador assalariado e pela concepo dos direitos que importavam do outro continente.

A elite nacional passou a responder antecipadamente de forma estratgica a essas demandas, na

maioria das vezes sob a lgica da concesso e do favor e, quando no, reagiam atravs da

represso (COUTO, 2010).

Diante da omisso constitucional, leis ordinrias e decretos foram implementados

durante a Repblica Velha, principalmente para mediar as novas relaes sociais de produo

que a partir de ento se apresentavam, vindo a decretar, por exemplo, a descriminalizao da

greve, as leis sobre a jornada de trabalho, frias, acidentes de trabalho e a sindicalizao rural.

De acordo com Simes (2013, p.78),

29

[] a garantia e o fortalecimento dos direitos civis e polticos foi um dos

fatores que asseguraram, aos trabalhadores, classe mdia e setores

corporativistas, durante a Repblica Velha, a legitimidade para a reivindicao

dos direitos sociais. Por exemplo, o direito de greve. Embora de natureza

coletiva e social, tinha fundamentos apenas no direito civil, sob a tica dos

interesses privados pelas relaes contratuais []. Isso porque a relativa

inefetividade dos direitos civis e polticos extremava a contradio de sua

instituio (igualdade formal) [].

Estas legislaes desenvolveram-se com pfia significncia e defasagem temporal

quanto a sua efetividade, entretanto, observa-se a expressividade da Lei Eloy Chaves (Decreto-

lei n. 4.682 de 1923), que instituiu as Caixas de Aposentadorias e Penses (CAPs)6, no sentido

de formao do perfil de proteo social contributiva que viria a se expandir a partir da dcada

1930.

Enfim, observamos que a industrializao brasileira se processou diante de um quadro

poltico-econmico atrasado e que, ainda, resultou em fatores como a ampliao da massa

trabalhadora, o crescimento da populao urbana e o desgaste da hegemonia oligrquica.

O impacto da crise econmica mundial de 1929 na economia agroexportadora cafeeira

reforou a necessidade de reestruturao da economia, exigindo, portanto, uma soluo

institucional para as novas expresses dos conflitos sociais que se apresentavam. Ao mesmo

passo, a teoria keynesiana7 mostrava ao mundo a necessidade da interveno do Estado na

economia como forma de estmulo ao consumo e de reestruturao econmica.

No cenrio poltico nacional, caminhava-se para o rompimento da Repblica Velha,

caracterizada pela alternncia do poder entre as oligarquias paulista e mineira, tambm

conhecida como poltica do caf com leite. O processo eleitoral para sucesso ao governo de

Washington Lus reflete esse rompimento e resulta na denominada Revoluo de 1930, que

culmina na instaurao do Governo Provisrio de Getlio Vargas.

Pela tentativa de conciliao entre capital e trabalho e entre as oligarquias e as novas

classes, a partir da dcada de 1930 teve incio o processo de institucionalizao e expanso da

proteo social brasileira atravs do modelo previdencirio e basicamente compensatrio,

conforme se verifica a seguir.

6 As CAPs eram fundos com esquema de financiamento compulsrio por parte de empregados e empregadores

garantia parte do fluxo da renda normalmente auferida pelo trabalhador nos momentos de perda da capacidade

laboral e aposentadoria e, ainda, penso aos dependentes em caso de morte e assistncia mdica. 7 Teoria do economista Ingls John Maynard Keynes que questionava o princpio liberal de autorregulao do

mercado e de defendia a necessidade de interveno do Estado, atravs de medidas sociais, no sentido de garantir

as condies de consumo e a estabilidade econmica.

30

1.2 As Constituies de 1934 e 1937 e o Estado Social: a industrializao e a

institucionalizao da proteo social

Diante do desgaste da Constituio de 1891 frente realidade imposta, o Governo

Provisrio de 1930 passou a legislar atravs de Decretos-Lei e, ainda, dissolveu os rgos

legislativos e deliberativos. Ainda que sem legitimao constitucional, iniciativas na rea dos

direitos sociais foram manifestadas atravs dos referidos decretos, onde destacamos algumas

delas (SIMES, 2013):

Criao do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio em 1930;

Regulamentao da sindicalizao (classes operrias e patronais) com prvio

reconhecimento pelo Ministrio do Trabalho em 1931;

Criao da Carteira de Trabalho e Previdncia Social (CTPS) em 1932;

Regulamentao do trabalho feminino, tambm em 19328;

Criao da Lei de acidentes de trabalho em 1934.

Ressalta-se a criao, em 1933, dos Institutos de Aposentadoria e Penso (IAPs), criadas

nos moldes das antigas CAPs, mencionadas anteriormente, agora com esquema de

financiamento tripartite e institucionalizado em nvel de categoria profissional.

Nessas circunstncias, a forma de distribuio dos benefcios previdencirios passou a

ser operada de acordo com o valor da contribuio e com o lugar estratgico ocupado no

processo acumulativo por cada categoria profissional. Em uma breve anlise, essa prtica, entre

outras consequncias no menos importantes, resultou na criao de padres desiguais de

proteo social, destinados a uma clientela hierarquizada (VIANNA, 1998).

Para o entendimento da forma pela qual se d a reorganizao do processo acumulativo,

Santos (1987) sugere o conceito de cidadania implcito na prtica poltica do governo nesse

8 Igualdade salarial entre homens e mulheres, proibio de trabalho insalubre e perigoso, licena gestante de quatro

semanas antes e quatro semanas aps o parto, obrigatoriedade da existncia de creches nos locais de trabalho e

proibio da demisso injustificada gestante.

31

perodo, classificando-a, neste caso, como uma cidadania regulada, definida, ento, sob trs

parmetros: a regulamentao das profisses, o sindicalismo pblico e a carteira de trabalho.

Ao atribuir o carter ocupacional previdncia e ao institucionalizar a segmentao

corporativa pelos IAPs, o Estado desenvolveu uma ao discriminatria ao identificar como

pr-cidados9 toda a populao cuja profisso no era reconhecida pela lei, cabendo mencionar,

poca, os autnomos, as domsticas e os trabalhadores rurais, ou seja, grande parte da

populao.

Essa perspectiva se reflete tambm no tocante aos direitos polticos, quando, ao instituir

o Cdigo Eleitoral de 1932, assegurou o voto feminino, entretanto, sendo este condicionado

alfabetizao e ao vnculo de trabalho formal (SIMES, 2013).

A vacncia de uma norma constitucional que estabelecesse limites s aes polticas do

governo passou a gerar conflitos entre as elites depostas do poder pelo Governo Provisrio,

principalmente a elite paulista, que passa a ganhar o apoio popular. A Revoluo

Constitucionalista acontece em So Paulo, em 1932, e, apesar da derrota militar em combates

desvantajosos da populao contra o governo, este levado a convocar em 1933 uma

Assembleia Constituinte com o objetivo de acalmar os conflitos sociais.

Simes (2013) aponta que a composio da Assembleia foi reflexo do cenrio

econmico e social do momento, predominando a participao dos lderes das oligarquias

regionais e inovando pelo registro da presena feminina10 e da participao popular, ainda que

vinculada esfera do trabalho. O governo, por sua vez, demonstrava o interesse de incorporar

Constituio as inovaes que havia implantado na rea poltica, econmica e social atravs

dos decretos.

A nova Constituio foi promulgada em julho de 1934 oferecendo mudanas profundas

em relao organizao poltica da Repblica Velha, entretanto, apresentou sua maior

fragilidade pelo ecletismo de princpios liberais, autoritrios e corporativistas que incorporou.

No campo dos direitos civis houve sua reafirmao de acordo com os ideais do

liberalismo. Quanto aos direitos polticos, houve a expanso do direito ao voto s mulheres,

entretanto ainda permanecendo a proibio aos praas, mendigos e analfabetos.

9 Termo utilizado por Santos (1987). 10 Mdica paulista Carlota Pereira de Queirs, representante classista.

32

Na rea social, foi contemplada a regulamentao do trabalho formal e, para assegurar

sua eficcia, foi instituda a justia do trabalho. O termo proteo social surge no artigo 121

da Constituio referindo-se ao trabalhador formal e revelando o interesse do Estado em intervir

nas relaes de produo visando o progresso econmico do pas.

Essa unificao entre a ordem social e econmica, segundo Simes (2013), atribui

Constituio a concepo de Estado Social e de cidadania restrita e expressa, de certa forma, o

reconhecimento da questo social como decorrente das relaes de trabalho: A ordem social

foi assim reconhecida como contrapartida da ordem econmica, o que no deixou de ser um

avano, porm demarcando a natureza institucional dos direitos sociais (SIMES, 2013,

p.100).

Aos indigentes, restava o compromisso do amparo pelo poder pblico atravs da

previso da criao de servios especializados e da animao e coordenao dos servios

sociais. O texto se referiu, brevemente, ao amparo da maternidade e da infncia e o socorro s

famlias de prole numerosa, entretanto sem mencionar a forma de sua implementao.

O dever do Estado em prover aes de assistncia social estava formalmente garantido

de forma bastante precria, sendo competncia de cada esfera de governo o financiamento de

apenas 1% de suas respectivas rendas tributria (SIMES, 2013).

Ainda nesse contexto de falta de organicidade para viabilizao dos direitos, foram

reconhecidas as necessidades geradas a partir da formao dos grandes centros urbanos,

reconhecendo os direitos da populao educao, ao trabalho, sade e cultura.

No caso da educao, especificamente, foi garantido o ensino primrio pblico gratuito

e foi institudo o princpio da vinculao oramentria para a educao em patamares bem

elevados em relao assistncia social11, tendo em vista a necessidade gerada pelo processo

de industrializao do pas.

Alm do ecletismo ideolgico da Constituio de 1934, fatores polticos levaram sua

deteriorao. O embate entre integralistas e comunistas resultou, primeiramente, na decretao

da Lei de Segurana Nacional, em abril de 1935, suspendendo os direitos polticos e,

posteriormente, sob a justificativa de segurana frente s manifestaes que ficaram conhecidas

11

Mnimo de 10% e 20% para a Unio na zona urbana e rural, respectivamente; mnimo de 20% para os estados;

e mnimo de 10% para os municpios (SIMES, 2013).

33

como Intentona Comunista, ainda em 1935 a Constituio de 1934 foi suspensa e houve o

retorno ao governo por decretos (SIMES, 2013).

Mais tarde, a descoberta do suposto plano comunista de tomar o governo do pas,

conhecido como Plano Cohen, deu margem para a instaurao da ditadura varguista do Estado

Novo, em 1937, regida por uma nova Constituio que, por sua inspirao nos ideais fascistas

da Polnia, ficou conhecida como polaca. Com o fechamento do Congresso, a Constituio

de 1937 previa a necessidade de um plebiscito para sua vigncia, entretanto, a assegurou desde

logo por declarar estado de emergncia.

Por meio da Constituio de 1937, o governo no apresentou mudanas to profundas

em relao Constituio anterior, entretanto, criou mecanismos que asseguravam a suspenso

dos direitos, principalmente os polticos, sempre que necessrio (SIMES, 2013). Alm disso,

instituiu a censura prvia e imps restries liberdade de imprensa.

O termo social excludo do Ttulo Da Ordem Social e Econmica, o que no

resulta em alteraes significativas para os direitos sociais. O trabalho aparece como dever

social, mas sendo formalmente assegurado como direito do trabalhador a ser provido pelo

Estado.

A legislao social permaneceu centrada no Estado como forma de controle da classe

trabalhadora, donde as legislaes trabalhistas eram ofertadas como concesso (COUTO,

2010). De forma repressiva, as greves e lock-out foram proibidos ao serem declarados como

recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatveis com os superiores

interesses da produo nacional (BRASIL, 2015 a, art. 139).

Houve inovao em relao previso de indenizao proporcional aos trabalhadores,

sem estabilidade, pelos anos de servio, no caso de demisso injustificada. O salrio mnimo

foi regulamentado enquanto de abrangncia regional e de carter individual considerando as

necessidades do trabalhador em detrimento das necessidades da famlia.

O ensino primrio reafirmado enquanto obrigatrio e gratuito, mas menciona-se o

dever de solidariedade dos menos com os mais necessitados (BRASIL, 2015 a, atr. 130). O

direito educao pr-vocacional aos menos favorecidos apareceu como primeiro dever do

Estado, reafirmando o interesse em criar bases para expandir a industrializao brasileira ao

mesmo passo que legitimava o autoritarismo do governo. Ainda nesse sentido, s indstrias e

sindicatos cabia a criao de escolas de aprendizagem profissional para os filhos dos operrios.

34

Foi sob o Ttulo Da Famlia que a Constituio de 1937 atribuiu aos pais miserveis

o direito de invocar auxlio e proteo do Estado para a subsistncia e educao de sua prole

(BRASIL, 2015 a, art. 127), entretanto, sem ao menos prever ou especificar as formas de auxlio

e proteo.

A forma de governo do Estado Novo perdurou at 1945 e, por ignorar o plebiscito e no

convocar eleies para o legislativo, foi feita atravs de Decretos. Cabe mencionar que nesse

perodo houve, em 1942, a criao da Legio Brasileira de Assistncia (LBA)12 e a

Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943, tendo, esta ltima, reunido toda legislao

trabalhista criada desde 1930.

1.3 A Constituio de 1946 e os planos de governo populistas: expanso da

industrializao e continuidade do modelo previdencirio

Com a participao brasileira na Segunda Guerra Mundial, lutando contra o fascismo, e

a derrota desta mesma orientao poltica, qual Getlio Vargas seguira, houve, por

consequncia, o desgaste do ordenamento poltico que procedeu em seu governo. Diante disso,

Vargas tentou, tardiamente, abrir algumas concesses quanto ditadura imposta no Estado

Novo, chegando a convocar eleies estaduais e para o Congresso, atravs de Decreto em 1945.

Alm disso, foi proposta a elaborao de uma nova Constituio para dar incio a um

segundo perodo presidencial do Estado Novo. Mesmo assim, as manifestaes pblicas

exigindo a volta da democracia e o governo constitucional se sobressaram ao movimento de

apoio permanncia de Getlio, conhecido como queremismo, e o ento presidente foi

deposto por um golpe de Estado organizado por generais e substitudo provisoriamente por Jos

Linhares, ento Presidente do Supremo Tribunal Federal (SIMES, 2013).

Em janeiro de 1946 foram realizadas eleies para a presidncia da Repblica, onde foi

eleito o General Eurico Gaspar Dutra e, em seguida, foi eleita uma nova Assembleia Nacional

Constituinte. A referida Assembleia, composta ao mesmo tempo por opositores e favorveis ao

12 Caracterizada com detalhamento em seo posterior.

35

Estado Novo, inclusive o prprio Getlio, promulgou, em setembro do mesmo ano, a nova

Constituio.

A Constituio de 1946 apresentou caractersticas tradicionais e clssicas, retomando,

em muitos aspectos o que fora institudo pela Constituio de 1934. As maiores inovaes desta

Constituio foram: a abolio dos mecanismos de cerceamento da liberdade dos cidados,

garantindo o direito de greve e a liberdade de associao sindical; a participao do trabalhador

nos lucros da empresa; e o condicionamento do uso da propriedade privada sua funo social

(COUTO, 2010; SIMES, 2013).

Ficou assegurado o direito ao voto, universal e secreto, para os maiores de 18 anos,

entretanto com restries aos analfabetos, aos estrangeiros que no tivessem habilidade para se

comunicar em lngua nacional, e a algumas categorias de militares, donde essas restries

estendiam-se tambm no caso do direito elegibilidade.

Cabe destaque a anlise feita por Couto (2010) de que a omisso da categoria

mendigos entre as restries mencionadas no se considera um avano na medida em que se

pode afirmar, diante da realidade brasileira, que a categoria mendigos est contida na

categoria mais abrangente dos analfabetos.

O Ttulo V retomou a nomenclatura Da Ordem Econmica e Social que, subordinada

ao princpio da justia social, reafirmava o trabalho como um direito social universal, provedor

do bem-estar individual, e os direitos trabalhistas anteriormente assegurados. A Justia do

Trabalho foi integrada ao poder judicirio, atribuindo Corte maior independncia quanto s

presses de interesses particulares ou de outros poderes.

No Ttulo VI, Captulo I, que tratava sobre a famlia, a Constituio de 1946 ficou

restrita ao seu conceito pela instituio do casamento, remetendo-se, novamente de maneira

apenas programtica, ao dever do Estado em prestar assistncia maternidade, infncia e

adolescncia, bem como em amparar as famlias de prole numerosa.

No Captulo seguinte do mesmo Ttulo, em que foram abordadas a educao e a cultura,

deu-se a continuidade da obrigatoriedade das empresas em prover educao primria gratuita

aos funcionrios e filhos, bem como em ministrar a aprendizagem aos trabalhadores menores.

Essa obrigao foi expandida para, alm das empresas industriais, as comerciais e agrcolas

com mais de 100 funcionrios, reforando o interesse na formao de mo de obra especializada

para o desenvolvimento da industrializao brasileira.

36

Quanto previso do direito sade, na Constituio de 1946 foi negligenciada

qualquer meno que a institusse enquanto poltica de Estado, restando assegurado apenas o

direito assistncia mdica previdenciria.

Para Simes (2013), nesse contexto a ao estatal era compreendida atravs de

planejamento e metas, uma vez que a concepo de polticas pblicas algo prprio do

Estado Democrtico de Direito. Regidos pela Constituio de 1946, os governos que se

seguiram tiveram suas especificidades, mas, de acordo com Couto (2010), apresentavam

orientao poltica com caractersticas democrticas e trabalhistas de orientao populista

(COUTO, 2010, p. 104-105), voltados para a expanso industrial.

O governo de Eurico Gaspar Dutra (1945-1950) apresentou caractersticas prprias do

processo redemocratizante. Com o aumento cada vez maior da migrao para os centros

urbanos e diante da falta de infraestrutura e de assistncia social, foi instituda por Decreto, em

1946, a criao do Servio Social da Indstria (SESI) e do Servio Social do Comrcio (SESC),

mantendo essa assistncia restrita aos trabalhadores formais com emprego nas respectivas

reas13.

Dutra estabeleceu como meta para o seu governo a implementao do plano Salte, em

1948, com diretrizes para atuao nas reas de sade, alimentao, transporte e energia,

introduzindo o atendimento questo social na agenda governamental. Entretanto, mesmo com

o destaque dado para as aes na rea da sade, os recursos alocados eram insuficientes diante

da necessidade de interveno e o plano Salte, de modo geral, obteve resultados pouco

impactantes com a sua implementao.

O governo de Dutra manteve uma postura de represso aos movimentos dos

trabalhadores, apesar da previso constitucional do direito de greve, demonstrando

insensibilidade aos apelos da classe. Essa postura fortaleceu a posterior candidatura e vitria de

Getlio Vargas (1951-1954), apoiado pelos trabalhadores, sindicatos, setores nacionalistas do

empresariado, intelectuais brasileiros e foras armadas (COUTO, 2010).

Getlio Vargas atribuiu o vis populista ao seu novo governo, com nfase, mais uma

vez, nas polticas trabalhistas, mas sob a promessa de criao de programas na rea social. O

13 Mediante contribuio dos empregadores e trabalhadores tais servios deveriam planejar e executar medidas que contribussem para a melhoria do bem estar e do padro de vida das famlias e trabalhadores.

37

ento Ministro do Trabalho de seu governo, Joo Goulart, chegou a propor o aumento de 100%

do salrio mnimo para os trabalhadores.

Cabe mencionar que foi tambm durante o referido de Vargas que foi institudo o

Decreto n. 35.448/54 (alterado posteriormente pelas Leis n. 3.807/60 e 5.890/73). O Decreto,

ao regulamentar os IAPs, previu o direito aos auxlios maternidade e funeral no mbito da

previdncia social, fato considerado elementar para o que, atualmente, se concebe como

benefcios eventuais da assistncia social, objeto deste estudo.

Essa forma de governo causou o descontentamento do empresariado e foi usada como

pretexto para ataque da oposio, que, no contexto mundial da Guerra Fria, apontava a ameaa

do comunismo pela relao com o movimento dos trabalhadores. Por outro lado, a necessidade

de medidas na rea social foi motivo para a realizao de diversas manifestaes pblicas.

A presso feita sobre o governo, apesar de repelida por um forte esquema repressivo, e

o temor de uma deposio resultou no suicdio de Vargas, em 1954. At a realizao da eleio

seguinte, o Vice-Presidente Caf Filho assumira o cargo e vivenciou um perodo de

instabilidade poltica, donde, pelo seu afastamento, assumiu o posto o presidente da Cmara

Carlos Luz.

Ainda nesse perodo, pela ameaa de um golpe militar pelo ex-ministro de guerra

Henrique Lott, Carlos Luz foi deposto e o retorno de Caf Filho no foi aceito, sendo o

Presidente do Senado, Nereu Ramos, o Presidente da Repblica que passaria, em seguida, o

cargo para o vencedor das eleies de 1955, Juscelino Kubitsckek (1956-1961).

O governo de JK e seu Vice, Joo Goulart, seguiu a base do nacionalismo

desenvolvimentista, fundamentao ideolgica que assegurava s naes latino-americanas que

a industrializao era a nica via possvel de torna-las livres da misria (COUTO, 2010). As

aes desenvolvidas neste governo compunham o Plano de Metas, estruturado em cinco

eixos: energia, transporte, indstrias bsicas, alimentao e educao.

Para a realizao destas metas, foi criado logo no incio do governo o Conselho de

Desenvolvimento, rgo diretamente subordinado presidncia da Repblica composto por

todos os ministros e chefes de gabinete civil e militar e, ainda, o presidente do Banco do Brasil

e do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE), do qual o presidente era o Secretrio-

Executivo do referido Conselho.

38

Era funo do Conselho de Desenvolvimento canalizar recursos pblicos e incentivar,

atravs de concesses, o setor privado, visando garantia das metas previstas no Plano.

Conjuntamente, os setores de energia, transportes e indstrias de base foram contemplados com

93% do total de recursos alocados (SILVA, 2015), deixando explcito o menosprezo pelas reas

de alimentao e educao.

A maioria das metas econmicas alcanaram resultados positivos, donde o crescimento

das indstrias de base foi de praticamente 100% nesse perodo (SILVA, 2015). Para isso, houve

total abertura para o investimento do capital estrangeiro e para a acelerao do processo de

industrializao acarretando numa urbanizao descontrolada e no aprofundamento das

expresses da questo social.

Outro fator importante, reflexo dessa conjuntura, foi o processo inflacionrio gerado

pelo desenvolvimento econmico, resultando na queda do poder aquisitivo do salrio dos

trabalhadores e no carter combativo atribudo aos movimentos dos sindicatos que

reivindicavam melhores condies de vida.

Nesse sentido, a interveno na rea social permaneceu centrada na legislao

trabalhista. Em 1960 foi aprovada a Lei Orgnica da Previdncia Social (LOPS), que unificou

os benefcios previdencirios e os tornaram universais aos trabalhadores urbanos inseridos no

mercado formal.

O cenrio de inflao e endividamento externo brasileiro foi rebatido fortemente pelo

discurso moralizante do candidato presidncia, Jnio Quadros, eleito em 1960 e empossado

na nova capital federal, Braslia, em 1961. O governo de Quadros foi breve, uma vez que o

mesmo renunciou ao mandato em agosto do mesmo ano de sua posse, pois imaginava que

movimentos reivindicando seu retorno o tornaria mais fortalecido, o que no aconteceu.

Com a renncia de Quadros, assumiria a Presidncia o Vice eleito Joo Goulart. Jango

se encontrava em viagem oficial China e sua vinculao aos movimentos sindicais deu flego

criao de movimentos de resistncia a sua posse, resultando na instituio do regime

Parlamentarista.

O governo de Jango foi mediado per este regime at 1963, quando um plebiscito decidiu

pelo retorno ao Presidencialismo. Foi um governo marcado por muitos movimentos sociais,

principalmente dos trabalhadores urbanos, que continuavam a reivindicar melhores condies

de vida diante do cenrio social vivenciado. Como resposta a essas movimentaes, Joo

39

Goulart instituiu o dcimo terceiro salrio, em 1962, e o salrio famlia, em 1963, todos esses

restritos aos trabalhadores urbanos.

Jango lanou o chamado Plano Trienal para tentar pr limites crise econmica e

desigualdade social atravs de reformas de base, buscando negociao com os trabalhadores e

o apoio da igreja catlica e parte do exrcito. Dentre estas, estava prevista a reforma agrria,

chagando a criao de um Conselho Nacional de Reforma Agrria, em 1962, mas que no

tomou nenhuma medida efetiva.

Observou-se na rea rural durante esse perodo a expanso do movimento conhecido

como Ligas Camponesas, criado em 1955 inicialmente no estado de Pernambuco, espalhando-

se, posteriormente, para outros estados como Paraba e Rio de Janeiro. O movimento tinha

finalidade prioritariamente de assistncia jurdica e mdica aos trabalhadores, que se estendiam

luta pelas terras improdutivas, e teve papel importante na conquista de seus direitos.

Em 1963 foi sancionado o Estatuto do Trabalhador Rural, instituindo consigo a Carteira

Profissional de Trabalhador Rural e garantindo direitos quanto remunerao, ao descanso

remunerado, e associao sindical, entre outros. A lei passou a regulamentar ainda os

contratos de trabalho, com especificidades para o trabalho das mulheres e dos menores.

A concesso desses direitos aos trabalhadores, principalmente na rea rural, foi

observada com receio por parte da elite conservadora. De acordo com Couto (2010, p. 114), at

ento o campo era ainda domnio exclusivo das relaes paternalistas e autoritrias dos donos

de terra. Assim sendo, sindicalizar trabalhadores era muito ameaador a esse poderio, sendo

observado que, no ano de 1964 os sindicatos rurais atingiram o patamar dos 263.

As reformas pretendidas por Goulart eram, ento, temidas pelos partidos liberais, pelas

oligarquias e por parte do Exrcito e, diante disso, com o apoio da classe mdia anticomunista,

foi deflagrado o golpe militar em 1964.

1.4 O Golpe Militar de 1964: Entre a represso aos direitos e a afirmao do Regime

O discurso utilizado pelos militares para sustentao do Golpe de 1964 se baseava na

restaurao da ordem econmica e na esconjurao do comunismo para pr ordem internamente

40

e colocar o Brasil em posio de prestgio internacional. Era de interesse maior, no entanto,

fundar uma nova fase do capitalismo no Brasil, de forma associada ao capital internacional.

De acordo com Simes (2013), para que isso fosse vivel, era necessrio criar novas

regras e reduzir drasticamente o espao da classe trabalhadora, onde, entre as prticas

despendidas, destacou-se a burocratizao das decises e canais de intermediao entre o

Estado e os trabalhadores.

Para ter o respaldo jurdico que assegurasse "Revoluo Gloriosa" o exerccio do

poder, o governo se utilizou, inicialmente, apenas dos chamados Atos Institucionais (AI), que

no total foram 17. O primeiro AI foi decretado em 09 de abril de 1964, expressando a deciso

de manter a Constituio vigente (1946), com as alteraes necessrias aos interesses do

governo militar, declaradas no referido Ato, que manteve tambm o Congresso, mediante a

limitao de seus poderes.

Entre as alteraes baixadas no Ato pelo Comando Supremo da Revoluo14, alegando

o interesse da paz e da honra nacional, importante destacar: a suspenso das garantias legais

de vitaliciedade e estabilidade pelo prazo de 06 meses e a possibilidade de demisso, dispensa,

aposentadoria e transferncia dos detentores desses cargos mediante processo sumrio; e a

possibilidade de suspenso dos direitos polticos, pelo prazo de 10 anos, e de cassao de

mandatos legislativos, sem as limitaes previstas na Constituio e sem a apreciao judicial.

Essa forma arbitrria de tentar controlar qualquer manifestao subversiva ao governo

resultou, segundo Couto (2010), na cassao dos direitos polticos de inmeros lderes polticos,

militares e sindicais, na interveno e fechamento da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) e

de diversos sindicatos e na demisso de muitos servidores pblicos.

O Segundo AI, decretado em outubro de 1965, introduziu a eleio indireta para

Presidente da Repblica e extinguiu e cancelou os registros dos partidos polticos at ento

existentes, estabelecendo o bipartidarismo, onde a Aliana Nacional Renovadora (Arena)

representava a base de sustentao do governo e o Movimento Democrtico Brasileiro (MDB)

reunia os partidos oposicionistas.

Nesta mesma linha, o AI subsequente estipulou tambm a eleio indireta para

governador, atravs da maioria absoluta dos votos das respectivas assembleias legislativas

14 Formado pelos comandantes-em-chefe do Exrcito, da Marinha e da Aeronutica.

41

estaduais. Dessa forma, para garantir a manuteno do poder e a aprovao de seus atos, o

governo, nesse momento representado pelo Presidente Humberto Castelo Branco (1964-1966),

buscava manter no Congresso uma composio que favorecesse seus interesses e, atravs de

sua influncia, buscava assegurar a eleio de representantes da Arena na maior quantidade de

estados possvel.

A sucessiva decretao dos Atos Institucionais tornou obsoleta a Constituio de 1946

e, atravs do AI n 4, o Congresso Nacional foi convocado para apreciao e votao de uma

nova Constituio, a qual foi promulgada em 24 de janeiro de 1967, ano de incio do mandato

do Presidente militar Arthur da Costa e Silva (1967-1968).

De modo geral, a Constituio de 1967 recolocou os direitos enunciados anteriormente,

inclusive os trabalhistas, mas proibia a realizao de greves no servio pblico e nos servios

essenciais. Houve ainda, a reduo da carga horria semanal e mensal para 44 e 220 horas,

respectivamente, e a reduo para 12 anos (que antes era de 14 anos) da idade mnima para o

trabalho do menor.

A Constituio, no entanto, no previu nenhuma forma de assistncia sade e,

brevemente, mencionou de forma programtica a assistncia maternidade, infncia e

adolescncia.

No campo dos direitos polticos, ousou em modificar a forma de eleio para Presidente

da Repblica, que se daria atravs de Colgio Eleitoral composto pelos membros do Congresso

Nacional e delegados representantes das assembleias legislativas.

Nas disposies finais e transitrias, ainda, a Constituio aprovava e exclua de

apreciao judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revoluo e de outras

instncias, desde que fundados nos Atos Institucionais 1 e 2. De acordo com Couto (2010),

Essa Constituio recolocou, de certa maneira, os direitos j garantidos na

Constituio de 1946 e [...] inaugurou uma peculiar forma de concepo e gesto dos

mesmos, cuja enunciao dos direitos tem como fundamento a tica de que os direitos

s seriam exercidos por aqueles que se submetessem s regras institudas pelo governo

militar. Caso contrrio, era o regime de exceo que valia (COUTO, 2010, p. 123).

O ano seguinte, 1968, ficou marcado por diversas manifestaes contra o regime militar,

tendo como expoentes a luta do movimento estudantil15, a greve dos metalrgicos em Osasco,

15 Emblemtico pelo assassinato do estudante Edson Lus de Lima Souto pela polcia militar em um restaurante

estudantil, no dia 28 de maro de 1968, na cidade do Rio de Janeiro.

42

SP, primeira do perodo militar, e a associao de polticos cassados pelo regime. Na Cmara,

o deputado do MDB, Mrcio Moreira Alves, discursava orientando o boicote ao desfile de 07

de setembro e que as mulheres se recusassem a sair com os oficiais.

Sentindo seu poder ameaado, o governo reagiu com a decretao do Ato Institucional

nmero 5, que simbolizou toda a arbitrariedade e violncia da ditadura militar no Brasil e que

teve vigncia at 1978.

Atravs do referido Ato, o Presidente teve respaldo para decretar o recesso do Congresso

por tempo indeterminado; intervir livremente nos estados e municpios; suspender os direitos

polticos de qualquer cidado por 10 anos16 e cassar os mandatos eletivos; pr fim vitaliciedade

e estabilidade dos cargos pblicos; confiscar bens que entendesse ser fruto de enriquecimento

ilcito por exerccio de funo de cargo pblico; e decretar o estado de stio, podendo prorrog-

lo por prazo indeterminado (BRASIL, 2015, b).

Por fora das mudanas advindas com a decretao do AI 5, logo foi promulgada a

Constituio de 1969, que apresentou em seu texto as diversas formas de violao de direitos,

principalmente quanto aos civis e polticos, praticadas pelo regime militar.

O regime de exceo poderia ser acionado em qualquer situao que emanasse perigo

manuteno da ordem, dando respaldo s detenes e a diversas formas de censura. Alm disso,

de acordo com Couto (2010), durante o governo Mdice (1968-1974), legislaes

infraconstitucionais chegaram a admitir a pena de morte, o banimento de sujeitos e a priso

perptua.

No tocante aos direitos sociais, foi mantida a maioria das garantias individuais dos

trabalhadores, entretanto, com alguns aspectos de regresso, como, por exemplo, pela

incumbncia aos trabalhadores de contribuio para os custos dos acidentes de trabalho, que,

at ento, cabia apenas aos empregadores e Unio. Acresce-se, ainda, o fato de as

competncias da Justia do trabalho terem sido restringidas, com a transferncia de diversos

tipos de causas para os mbitos da justia federal e da justia comum estadual.

16 O que previa a aplicao, quando necessria, das seguintes medidas de segurana: liberdade vigiada; proibio

de frequentar determinados lugares; e domiclio determinado (BRASIL, 1968, art. 5).

43

No plano prtico, o contexto socioeconmico vivenciado pelos trabalhadores durante o

regime militar era caracterizado pelo arrocho salarial e pela estagnao dos salrios, donde os

reajustes eram inferiores ao nvel da inflao.

Em 1964 foi criado o Banco Nacional de Habitao (BNH), que, dentre outras

finalidades, deveria executar a construo de habitaes e executar programas de saneamento,

tendo em vista a falta de moradia gerada pela inflao e pelo aumento da migrao de

trabalhadores para a cidade (SIMES, 2013).

Couto (2010) analisa que esse programa, no entanto, beneficiou mais diretamente a

classe mdia, uma vez que as classes mais populares no tinham condies de arcar com as

despesas do financiamento, bem como no eram previstos subsdios do governo aos estratos

com menor capacidade de pagamento, dada a lgica utilizada do autofinanciamento e de retorno

dos investimentos.

Devido s exigncias dos investidores internacionais, foi posto em cheque o direito de

estabilidade do trabalhador17, existente desde a Lei Eli Chaves (1923), e foi criado o Fundo de

Garantia por Tempo de Servio (FGTS), em 1966, o qual foi reconhecido como direito

constitucional pela Carta de 1967 com regulamentao por lei ordinria.

Simes (2013) afirma que tal medida refletiu a contradio prpria do processo de

reformas implementado pelo governo, pois ao mesmo tempo em que promovia a liberalizao

do mercado de trabalho, abria tambm a possibilidade de aumento da liberdade e autonomia

sindical para negociao da fora de trabalho no mercado.

Entretanto, esta ameaa aos interesses do governo foi sanada diante do contexto de

represso aos sindicatos e s greves, agravada pela vasta oferta de mo de obra e pelas leis de

arrocho salarial e previdencirio, onde apenas as empresas foram beneficiadas. Nessa lgica, a

liberalizao do mercado de trabalho proporcionou tambm o aumento no ndice de desemprego

e o rebaixamento dos salrios dos trabalhadores, dando ensejo criao do auxlio-desemprego.

17 medida que aumentavam os anos de trabalho no mesmo emprego, crescia o passivo trabalhista das empresas

no valor equivalente mdias das indenizaes a pagar. Isso dificultava a venda, fuso ou associao de empresas

nacionais, o consumo excessivo da fora de trabalho, criava encargos sociais fixos e permanentes e a consequente

imobilizao de capitais. Alm disso, dificultava a troca de empregados antigos e com salrio mais elevados, por

outros com salrios menores (SIMES, 2013, p. 131).

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Em 1966 foi criado, ainda, o Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS), onde

foram reunidos todos os IAPs, e, a partir da, foram uniformizados os servios e benefcios

previdencirios, retirando, contudo, a participao dos sindicatos na sua gesto.

Couto (2010) afirma que dessa poca, tambm, a extenso de benefcios

previdencirios aos trabalhadores rurais sem a exigncia de contribuio por parte destes e,

principalmente, dos empregadores, como forma de retribuio pelo apoio ditadura. Os

benefcios foram estendidos, ainda, aos autnomos e aos empregados domsticos.

Em 1967, o governo decretou o Regulamento Geral da Previdncia Social e integrou o

seguro de acidentes de trabalho, antes sob a administrao das seguradoras privadas, ao sistema

estatal.

A partir de 1968, pelos motivos elencados mais acima, principalmente por fora do AI

5, houve o endurecimento do regime e, de acordo com Simes (2013), a prtica do arrocho

salarial se tornou permanente, e passou a ser implementada tambm uma poltica de arrocho

previdencirio, sob a justificativa da necessidade do equilbrio financeiro do sistema.

Essa medida acarretou em grande mudana na forma de clculo dos benefcios, com

desvantagem para os beneficirios, e em nova regulamentao sobre os atendimentos mdicos

pelo sistema, estimulando o crescimento do setor privado.

Esse conjunto de medidas adotadas pelo governo foi criando as bases institucionais

necessrias para que fosse dado incio ao ciclo de acumulao do grande capital nacional

associado ao transnacional (SIMES, 2013). Entre os anos de 1970 e 1973, perodo do

milagre econmico, houve elevao das taxas de crescimento econmico com o aumento da

produtividade e reduo do ndice de desemprego.

Entretanto, esse mesmo perodo ficou conhecido por anos de chumbo em virtude da

explorao dos trabalhadores, que tinham os salrios estagnados e at mesmo reduzidos. Era

prtica comum a prorrogao das oito horas de trabalho, sendo desconsideradas as fiscalizaes

das condies de trabalho e higiene, uma vez que essa prerrogativa j havia sido retirada dos

sindicatos por meio do Regulamento de Inspeo do Trabalho, baixado desde 1965. Por isso,

foi atingido o recorde em nmero de acidentes e doenas laborais, onerando os custos para a

previdncia social.

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Resumidamente, a existncia do milagre devido a trs elementos fundamentais: o

aprofundamento da explorao da classe trabalhadora, a garantia da expanso capitalista p