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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CCHLA – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROLING – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA MINTER–LIN – MESTRADO INTERINSTIUCIONAL EM LINGÜÍSTICA ADRIANA DI DONATO O GÊNERO CANTIGA DE NINAR: DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO João Pessoa – PB 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CCHLA – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROLING – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA

MINTER–LIN – MESTRADO INTERINSTIUCIONAL EM LINGÜÍSTICA

ADRIANA DI DONATO

O GÊNERO CANTIGA DE NINAR:

DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO

João Pessoa – PB

2008

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ADRIANA DI DONATO

O GÊNERO CANTIGA DE NINAR:

DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO

Dissertação apresentada à Universidade

Federal da Paraíba - UFPB para obtenção do

título de Mestre em Letras (Área de

Concentração: Lingüística Aplicada)

Orientadora: Profa. Dra. Evangelina Maria

Brito de Faria.

Co-orientadora: Profa. Dra. Beliza Áurea de

Arruda Mello.

João Pessoa – PB

2008

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da UFPB. – JOÃO PESSOA

D677g Donato, Adriana Di.. O gênero cantiga de ninar: do mundo ouvinte ao mundo surdo /

Adriana Di Donato.- João Pessoa, 2008. 113p.

Orientadora: Evangelina Maria Brito de Faria Co-orientadora: Beliza Áurea de Arruda Mello Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA

1. Linguística. 2. Oralidade. 3. Cantigas de ninar – gênero – análise. 4. Cantigas de ninar - mulheres ouvintes. 5. Cantigas de ninar – mulheres surdas.

UFPB/BC CDU: 801(043)

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O GÊNERO CANTIGA DE NINAR: DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO

Por:

ADRIANA DI DONATO

Orientadora: Profa. Dra. Evangelina Maria Brito de Faria.

Co-orientadora: Profa. Dra. Beliza Áurea de Arruda Mello.

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Lingüística, da

Universidade Federal da Paraíba - UFPB, como parte dos requisitos necessários à obtenção

do título de Mestre em Lingüística.

Aprovada por:

________________________________________________

Presidente, Profª Drª Evangelina Maria Brito de Faria – UFPB.

________________________________________________

Profª Drª Maria Claurênia de Andrade Abreu– UFPB.

________________________________________________

Profª Drª– Wanilda Maria Alves Cavalcanti – UNICAP.

João Pessoa

Outubro de 2008

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à Nirma Di Donato, como mãe, por seu amor e dedicação,

em todas as fases da minha vida. Como educadora e pesquisadora, exemplo irretocável;

Ao meu amor Roberto, esposo e companheiro apaixonado, presente e

participativo em todo o processo do meu crescimento neste trabalho e em nossa vida

comum;

À minha sogra, D. Helena, por sua amorosa escolha da cantiga de ninar,

perpassada de geração em geração em nossa família;

Aos meus enteados, Roberto Júnior e Oton, amores meus;

A todas as minhas amigas e amigos, por contribuírem por eu ser quem sou;

Em particular e principalmente, aos meus filhos Natan e Lorenzo, estrelinhas de

amor, que Deus materializou gêmeos e os presenteou durante o processo de construção

desta pesquisa. Aos nossos encontros, diurnamente cantados, acalantados, aconchegados

e profundamente amados, banhados nas águas do lírio branco do meu coração.

A vocês dedico todo o meu trabalho, a minha vida e o meu amor.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço minha introdução/paixão pela lingüística à Virgínia Colares, pela

inspiração, incentivo e exemplo de generosidade acadêmica e pessoal;

Às queridas orientadoras e co-orientadoras: Evangelina de Faria, pessoa

dulcíssima, por sua paciência e por suas valorosas e pontuais contribuições; e Beliza

Áurea, responsável direta por meu encantamento pelo tema “Cantigas de ninar”, em seu

entusiasmo contagiante;

A todos os meus mestres, sem eles meu presente não se configuraria desta forma;

À Gesilda Leal, companheira de vida, pela grandeza de inserir-me na educação

de surdos;

À Jaqueline Martins, pelas diversas parcerias, por me acolher em seu mundo e no

mundo dos surdos;

À Angela Barbosa, parceira, por acreditar comigo na escolha e no percurso do

tema;

À Cristina Antonino, por sua amizade atemporal e por trilharmos juntas o prazer

do conhecimento;

Ao apoio técnico: Roberto Nepomuceno, Givanildo Amancio, Pr. Neto, Renata

Allain, Evandro Alves e Fábio Freire;

Às surdas e surdos que fizeram e fazem parte da minha vida, meus sinceros e

emocionados agradecimentos;

Hoje e sempre: a DEUS.

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RESUMO

Esta investigação propõe-se analisar o gênero cantiga de ninar, em mulheres ouvintes e

mulheres surdas, considerando as suas vozes, os seus corpos, as suas performances, as

suas canções e os seus desdobramentos. Como suporte teórico, apóia-se em três

perspectivas centrais: na lingüística, diante da oralidade, os princípios de Zumthor e

quanto às cantigas de ninar, os fundamentos de Leite de Vasconcelos; e ainda a sócio-

antropológica como política da diferença da surdez, com Skliar. Além desta tríade, conta

com contribuições relativas aos estudos de gênero com Bakhtin e Schneuwly; da

psicanálise de base freudiana e lacaniana, com Jorge; e, por último, apóia-se nos estudos

etnolingüísticos de Castro. O estudo consta da análise da canção de domínio público

Neném quer dormir, de influências portuguesa e africana, em performance com duas

mulheres ouvintes e suas variantes; a performance do ninar autêntico de duas mulheres

identitariamente surdas; e as considerações de uma filha ouvinte de pais surdos acerca da

sua experiência como acalantada por cantigas de ninar surdas. Para isto, defendem-se

como hipóteses aspectos divergentes e aspectos convergentes das cantigas de ninar de

mulheres ouvintes e de mulheres surdas, do ponto de vista lingüístico. Este estudo

aponta na direção da possibilidade de um maior conhecimento do gênero cantiga de

ninar na perspectiva da oralidade, como também descortinar o universo do acalantar

pertinentes ao mundo surdo. Não há a pretensão de exaustão do tema, mas de trazer

contribuições para o mesmo, quiçá, ampliando o interesse por profissionais da

lingüística e das áreas afins.

Palavras-chave: Lingüística. Oralidade. Cantigas de ninar. Surdos/ouvintes.

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ABSTRACT

The present research has the purpose to analyse the genre of lullaby with listeners and

deaf women, considering theirs voices, their bodies, their performances, their songs and

things like that. The theoretical bases are supported by Zumthor’s linguistic principles

concerned with oral production; by the ideas of Leite de Vasconcelos, concerned with

lullabies, and also by Skliar whose social anthropological studies investigated the

differences between listerns and deaf people. Besides this triad, this research takes

account of the studies of genre by Bakhtin and Schneuwly; the psychoanalysis bases of

Freud and Lacan described by Jorge, and, finally, the search takes a stand on the

ethonolinguistic studies of Castro. The studies constitute the analysis of the lullaby of

public domain Neném quer dormir, the influences of Portuguese and African culture on

the performance of two listeners women and with subsequent variations; the

performance of two deaf women singing authentics lullabies; and the considerations of a

child of deaf adults and used to sing deaf lullabies to her. In order to do that, the

hypotheses of divergent and convergent aspects of lullabies sung by listeners and deaf

women are analysed under the view of Linguistics. These studies point out to the

possibilities to enlarge the knowledge of the genre lullaby under an oral perspective, as

well as to unveil the range of lullabies prevailing in the word of deaf people. There is no

intention to exhaust the theme, but to bring contributions to it, perhaps to open up

interest of researchers in Linguistics an related areas.

Key-words: Linguistics, oral production, lullabies, deaf/listeners.

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Quando estou nos braços teus

Sinto o mundo bocejar

Quando estás nos braços meus

Sinto a vida descansar.

No calor do teu carinho

Sou menino-passarinho

Com vontade de voar

Sou menino-passarinho

Com vontade de voar

Prelúdio pra ninar gente grande

Luiz Vieira

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................12

CAPÍTULO I

QUADRO TEÓRICO........................................................................................................15

1.1 - Importantes registros da oralidade ............................................................................15

1.2 - Sobre as cantigas de ninar, acalantos ou canções do berço.......................................22

1.2.1 - Divindades soníferas ..............................................................................................32

1.2.2 - A presença das amas na cultura do ninar ...............................................................38

1.2.3 - O gênero cantiga de ninar.......................................................................................42

1.3 - A pessoa surda...........................................................................................................47

1.3.1 - A vez do cantar surdo.............................................................................................53

CAPÍTULO II

ASPECTOS METODOLÓGICOS....................................................................................57

2.1 - As condições da pesquisa..........................................................................................57

2.2 - A constituição do corpus...........................................................................................58

2.3 - Sobre os sujeitos da pesquisa ....................................................................................59

2.4. - Instrumentos e coleta de dados.................................................................................60

2.5 - Transcrição dos dados ...............................................................................................64

CAPÍTULO III

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...........................................................70

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3.1 - A canção....................................................................................................................70

3.2 - As vozes, as performances, os ninares ......................................................................78

3.3 - A experiência CODA no ninar ..................................................................................93

3.4 - Cruzando dados .........................................................................................................99

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................100

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.................................................................................103

REFERÊNCIA DAS ILUSTRAÇÕES ...........................................................................106

ANEXOS

ANEXO A - Cantigas de ninar ........................................................................................110

Variante 1 ou variante de referência; ...............................................................111

Variante 2 .........................................................................................................112

Variante 3; .......................................................................................................113

Variante 4 .........................................................................................................114

Variante 5: Jorge nº 69; ...................................................................................115

Variante Jorge nº 70; nº 71 ..............................................................................116

Variante Jorge e 77 e nº 78...............................................................................117

Variante Leite de Vasconcelos nº 77 e A .........................................................118

Acalanto............................................................................................................119

Partitura “Neném quer dormir” ........................................................................120

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INTRODUÇÃO

Os estudos sobre as cantigas de ninar ou acalantos, apesar de serem objetos

inscritos em uma gama bastante extensa dos saberes científicos, mais freqüentemente,

tem sido alvo do interesse de musicólogos, pedagogos que atuam na Educação Infantil,

dentre outros. Encontra-se com relativa facilidade publicações onde se dispõem

elencadas, descritas, cifradas. Entretanto, sobre este tema, há escassas investigações pelo

universo acadêmico na área da lingüística, em língua portuguesa. Como resultado do

levantamento bibliográfico, destaca-se Leite de Vasconcelos, lingüista, filólogo e

etnógrafo, com Canções do Berço, publicada pela Revista Lusitana em 1907, sendo até

os dias atuais, a obra mais completa sobre o tema. No percurso dos estudos da oralidade,

incluem-se as cantigas de ninar ou acalantos, como um dos primeiros gêneros de acesso

das crianças, em sua primeira infância.

Inicialmente, o objeto investigado fora trabalhado circunscrito na oralidade,

sobre questões pertinentes à voz, ao corpo, à performance, com uma cantiga de domínio

público de acalanto, a Neném quer dormir. Por ser de domínio público a canção

pesquisada assim será nomeada para fins didáticos. No desenvolvimento da pesquisa, foi

feita uma constatação: mães (ou cuidadoras) surdas também ninam seus filhos com suas

vozes, com suas performances, com suas canções. Um caminho a mais a ser percorrido.

Ao que parece, novo, senão, pouco estudado. Um mundo surdo, possivelmente,

desconhecido por muitos.

Ora, se já se tem em pauta oposicionamentos do tipo escritura e oralidade,

litterati e illitterati, surge um outro, em um lugar um tanto inusitado, o cantar no mundo

ouvinte e o cantar no mundo surdo. Este último vem celebrar a ruptura de mais um

paradigma: a pessoa surda, constituída identitariamente como sujeito surdo, falante

natural da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS – é usuária e criadora de seu próprio

referencial de voz, de canto. Um referencial, quiçá, latente de uma identidade materno-

cultural do inconsciente coletivo. Não obstante, um canto surdo autêntico.

Diversos setores da sociedade, mesmo que de maneira ainda discreta, já

vislumbram a comunidade surda em um outro lugar, que não o caritativo ou

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assistencialista, mas o do direito e o da diferença. Uma das maiores contribuições

acadêmicas e que vem refletir para este novo olhar, deve-se aos estudos lingüísticos.

Não se poderia deixar de reconhecer que os movimentos sociais das comunidades surdas

também possuem um braço de força nas relações de poder para estas mudanças.

Para uma leitura mais adequada deste trabalho, cabem aqui alguns

esclarecimentos relativos às terminologias empregadas. O primeiro, refere-se à

terminologia ouvinte, ora como contraposição ao sujeito surdo, ora na perspectiva da

oralidade, como intérprete, ou auditório. Quanto ao segundo, não há conflitos

conceituais às nomenclaturas oralidade e oralismo. Oralidade, aqui, reporta-se ao

conceito zumthoriano de modalidade de expressão da comunicação através da voz, do

corpo, da performance; já o oralismo, é uma filosofia da educação de surdos,

considerada por alguns como uma metodologia de reabilitação oral para pessoas com

perdas auditivas. Ao se estabelecer relação da voz à pessoa surda, este estudo não se

propõe a um referencial ouvintista, preconizado por autores como Carlos Skliar (1997,

1998, 1999) e Skliar; Quadros (2000). O ouvintismo apóia-se em um modelo de

imposição da cultura de dominação das pessoas ouvintes, em todas as suas implicaturas,

ao qual subjazem os povos surdos como minoria lingüística e minoria nas relações de

poder. Por último, a palavra objeto como objeto de estudo, assunto sobre o qual se dá a

investigação, neste caso, as cantigas de ninar e objeto em uma perspectiva psicanalítica,

como alvo de uma pulsão que pode ser uma pessoa, ou coisa física, tangível e real ou

imaginária. O uso de objeto para fins deste estudo está vinculado à mãe, à cuidadora ou à

pessoa substituta.

Esta investigação traz como objeto de estudo um lugar singular para a voz, o

corpo, a performance, a canção das pessoas ouvintes e das pessoas surdas. Elementos,

estes, instigantes à pesquisadora: acalantos ouvintes e acalantos surdos e seus

desdobramentos. Para tanto, defende-se como hipóteses aspectos divergentes e

convergentes no gênero cantiga de ninar de mulheres ouvintes e de mulheres surdas, do

ponto de vista lingüístico.

Apresenta-se como suporte teórico três perspectivas centrais: na lingüística, a da

oralidade e a das cantigas de ninar, especificamente; e a sócio-antropológica da surdez.

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Posicionando-se diante da oralidade, os princípios de Paul Zumthor e sobre as cantigas

de ninar, os fundamentos lingüísticos de Leite de Vasconcelos, como mencionado acima.

Para os estudos surdos como política da diferença, as obras de Carlos Skliar. Além desta

tríade, a investigação conta com contribuições dos estudos relativos à psicanálise de base

freudiana e lacaniana, com a Ana Lúcia Jorge e, ainda, apóia-se nos estudos das

literaturas africanas, com Yêda de Castro.

Nesta perspectiva, este estudo centra-se em sua parte prática na análise do

acalanto em mulheres ouvintes e surdas, demonstrando seus cantares com suas vozes,

suas performances, seus usos particulares das linguagens, a partir de imagens captadas

em residências .

A pesquisa encontra-se organizada do seguinte modo: o primeiro capítulo

discorre sobre o quadro teórico na oralidade, nas cantigas de ninar e na área da surdez.

Trata da oralidade em nosso país e como se deram os seus primeiros registros. Nas

cantigas de ninar, destacam-se os estudos lingüísticos e suas apreciações; as

contribuições das mulheres africanas e afro-descendentes; e algumas considerações de

cunho psicanalítico. No segundo capítulo apresentam-se os aspectos metodológicos,

descrevendo os elementos pertinentes à investigação. Por último, o capítulo III,

apresentando as análises e discussões apoiadas nos resultados obtidos. Seguem-se os

referenciais bibliográficos e das ilustrações e os anexos.

A relevância desta investigação aponta na direção da possibilidade de um maior

conhecimento do gênero cantiga de ninar na perspectiva da oralidade, como também

descortinar o universo do acalantar pertinentes ao mundo surdo. Não há a pretensão de

exaustão do tema, mas de trazer contribuições para o mesmo, quiçá, ampliando o

interesse por profissionais da lingüística e das áreas afins.

Por fim, este estudo que traz por título “Gênero cantiga de ninar: do mundo

ouvinte ao mundo surdo” não envereda na relação de grandeza, maior/menor,

contém/está contido. Quem se encontra contido é o gênero cantiga de ninar nestes dois

universos da manifestação humana.

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CAPÍTULO I

QUADRO TEÓRICO

1.1 - IMPORTANTES REGISTROS DA ORALIDADE

A história da humanidade encontra-se marcada por antes da invenção da escrita e

depois dela. Período comumente denominado por pré-histórico e histórico. Criação dos

sumérios, na antiga Mesopotâmia, a escrita cuneiforme deu o primeiro passo ao registro

de um conhecimento ou dado desejado. A escrita alfabética, inventada na Palestina,

depois de 1700 a.C., originária dos ideogramas, aos poucos assume a função de

representação puramente fonográfica, isto é, relação dos sons da fala para a modalidade

escrita. Este percurso do oral ao escrito perdurou séculos. A respeito deste processo,

muitos autores desenvolveram diversas teses.

Em uma dimensão humana da ciência, o medievalista suíço Paul Zumthor (1993,

2000), desenvolve suas proposições acerca da oralidade sob uma perspectiva onde a

teoria da literatura, de fato, surpreende-se diante de um olhar diferenciador do objeto em

questão. Sua teoria, poética e científica, considera a produção oral em seus diversos

aspectos, afastando-se de um paradigma cartesiano, indo ao encontro de um exercício do

holismo na oralidade.

A oralidade da primeira infância permeia o encantamento e o deleite da

comunicação, singularmente, tanto na linguagem das crianças, quanto nos gêneros a elas

direcionadas. As cantigas de ninar à luz dos princípios zumthorianos, assumem uma

leitura pertinente, onde a performance tem um lugar particular e o mesmo pode-se

colocar em relação à voz. O preconceito literário afastou a intelectualidade da sua

essência oral ou vocal, como prefere Zumthor, derivado da sua materialidade não-

palpável, isto é, longe da escritura. Observa-se a marca da tradição escritural em relação

à oralidade, pelo modo marginalizado como esta vem sendo tratada nos últimos séculos.

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Daí a dicotomia dos termos popular por letrado ou erudito (Zumthor, 1993, pp.118-

121), carregados por uma ideologia de superioridade da escritura. Mais que isso, o

lettrati e o illettrati assumiam uma conotação além do simples decodificar ou não o

sistema alfabético, relacionava-se à autoridade, à razão e ao poder que aos letrados era

imputada, isto é, uma forma de regular o comportamento social, ao passo que aos não-

letrados a primazia era a sensibilidade do oral com seu corpo, sua voz e sua

performance.

Refletindo sobre o modo de organização cultural e seu trajeto do oral ao escrito,

o autor (1993, 18-19) propõe os seguintes tipos de oralidade: a) primária (imediata ou

pura), onde não há contato com a escrita, presentes nas sociedades ágrafas ou de

isolamento social; b) mista, a escrita e a oralidade existiam de modo simultâneo, mas

ainda o oral com maior peso; c) secundária (ou segunda), a escrita inscreve-se de modo

predominante; d) mediatizada, a expressão oral encontra-se afastada mecanicamente no

tempo e o espaço, não há a presença física.

Os textos de natureza poética direcionados a um auditório de oralidade

secundária, inscrevem-se em cinco operações históricas : a produção, a comunicação, a

recepção, a conservação e a repetição, segundo Zumthor (1993, p.18). Estas operações

efetivam-se através do canal oral-auditivo, podendo também ser por registro visual ou

ainda, no caso dos surdos, via a modalidade espacial-visual da língua. A performance se

constitui à medida que a comunicação e a recepção ocorram no mesmo momento.

Outro ponto de destaque na teoria de zumthoriana é o atribuído ao suporte. De

acordo com o prestígio da tradição de determinado grupo social, em dado período

histórico, a voz ou o livro (na atualidade, também outros suportes midiáticos) podem ser

o objeto ao qual se imputa o poder e a autoridade. Para os estudos de Zumthor, a voz tem

um destaque particular, tanto que em sua obra afirma preferir o termo vocalidade ao de

oralidade. Em A Letra e a Voz (1993, p.21) declara que a vocalidade é a historicidade

de uma voz: seu uso, (...) já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades

significantes, compreende a voz como a materialidade do texto oral e questiona os

porquês da cisão e afastamento do ser humano da sua essência de vocalidade, de

corporeidade.

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Não obstante, o que deve nos chamar mais a atenção é a importante função da voz, da qual a palavra constitui a manifestação mais evidente, mas não a única nem a mais vital: em suma, o exercício de seu poder fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e de organizar a substância. Essa phône não se prende a um sentido de maneira imediata: só procura seu lugar. (ZUMTHOR, 1993, p.21)

O ato da audição vai significar ao sujeito do discurso a intenção do outro. E é na

superficialidade do texto escrito, que os leitores carecem em vislumbrar o dito sob a

tessitura fluída da vocalidade, com suas marcas não-explicitadas, não-finalizadas. A voz

e sua onipresença. O texto a ser ouvido, visto, sentido. A voz concretiza-se no corpo, que

por sua vez, desencadeia o efeito da performance. Sobre o corpo, Zumthor (2000, p.45)

discorre que existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico)

como sendo da ordem do indizivelmente pessoal, estando na ordem da relação de

subjetividade.

Como ponto de reflexão sobre a performance, o autor discute o conceito a partir

do próprio ato, no acontecimento oral e gestual e a indexação do corpo neste processo

final, a obra. Adiante, inclui a discussão do corpo e sua relação com a performance via

espaço. Performance, espaço, corpo, voz, acrescente-se a teatralidade. O conjunto destes

elementos só significa na alteridade, em um outro espaço perceptual de um Outro. Por

fim, apreende o conceito de performance como originário, tomado por fonte perceptiva

e não como representação do primitivo, da origem. Originário por ser o lugar inicial do

qual se constrói a obra, a função da cognição.

O Brasil permaneceu na oralidade primária, segundo tipologia de Zumthor, por

quase três séculos. Na primeira metade do século XVIII, por apenas cinco meses,

instala-se na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro a primeira tipografia. A capital

da província só retoma as atividades tipográficas em 1808, sob censura do governo

português. Em 1822, o Rio de Janeiro já contava com mais quatro tipografias.

Neste mesmo ano, é editada a “Introdução à História da Literatura Brasileira”, do

crítico, professor e historiador da literatura brasileira, Sílvio Romero. A memória oral

brasileira ganha destaque na “História da Literatura Brasileira”, no capítulo “Tradições

Populares. Cantos e Contos Anônimos. Alterações da Língua Portuguesa no Brasil”,

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publicada em 1888. Neste tomo, além de registrar a oralidade do universo da literatura

infantil, o autor discorre sobre as contribuições étnicas na formação literária brasileira,

destacando o caso de mestiçamento de nossa literatura popular e anônima, indicando as

várias origens de nossos cantos e contos, destacando as fontes portuguesas, indianas e

africanas (Romero, 1888, p.43). Tece algumas considerações quanto ao menor número

de registros de origem africana e maiores da indígena, pois, objetivando a cristianização,

os estudos tupis desenvolveram-se em maior escala. Aos negros eram impostas uma

nova língua e não despertava interesse dos colonizadores para o estudo das suas línguas

nativas, por conseqüência das relações de poder e dominação pertinentes à escravatura.

Os povos africanos oriundos de diversas regiões, por conseguinte, diversas

línguas, dispostos em um mesmo espaço, aos poucos tinham apenas fragmentos de suas

origens lingüísticas, principalmente, em seus descendentes. O autor descreve este

fenômeno, tomando por exemplo os cantos das tradições populares, como uma

justaposição de duas línguas num mesmo canto, e da existência de certos cantos

espalhados em nosso idioma, os quais são de feição evidentemente tupi ou africana

(Romero, 1888, p.29). Pode-se ler também como uma forma de resistência, para a

preservação da sua língua, diante da língua dominante. Os versos abaixo foram colhidos

em Pernambuco e, segundo o estudioso, foram os primeiros registros do canto

luso/africano (Romero, 1888, p.43):

Você gosta de mim,

Eu gosto de você;

Se papai consentir,

Ó, meu bem,

Eu caso com você...

Alê, alê, calunga

Muçunga, muçunga-ê”

A escassa literatura destinada aos pequenos vinha, em sua maioria, de Portugal e

os raros exemplares aqui editados no Brasil não apresentavam a modalidade falada no

país. Com o movimento regionalista brasileiro, destaca-se a questão identitária e são

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publicadas as primeiras coleções de livros infantis em português do Brasil, em 1894,

pela Livraria Quaresma. A primeira parte da coleção da Biblioteca Infantil da Livraria

Quaresma, foi Contos da Carochinha, oriunda da tradição oral popular organizada pelo

jornalista Figueiredo Pimentel.

O expoente dos registros das tradições orais brasileiras, sem dúvida, foi o

potiguar Luis da Câmara Cascudo, autor da obra mais completa sobre a brasilidade o

Dicionário do Folclore Brasileiro, de 1954. Outra obra relacionada à temática em

questão do Cascudo, trata-se da Literatura Oral no Brasil, de 1956.

No Brasil, as edições oriundas das narrativas orais organizam-se em três

momentos, de acordo com Almeida e Queiroz (2004). As autoras descrevem este

primeiro momento marcado

pela iniciativa particular dos estudiosos e pela prioridade à coleta sobre a reflexão analítica; o segundo, pela busca de rigor metodológico, com ênfase no registro de informações sobre o contador e na fidelidade ao dialeto da narração oral no registro escrito, de certa forma facilitada pelo desenvolvimento de equipamento de gravação magnética; no terceiro ciclo, o videofilme e o desenvolvimento das teorias da enunciação parece voltar a atenção dos pesquisadores para a cena performática. (ALMEIDA e QUEIROZ, 2004, p. 123)

Uma parcela expressiva das produções literárias de cunho oral caracteriza-se por

compilações, coletâneas, recriações, atribuindo autoria como anônima, coletiva, como

também desconsiderando o modo pela qual a oralidade se apresenta. Relegam-se os

gestos, a voz, o modo da expressão: a autoria da obra oral. Em 1960, Deoscóredes M.

dos Santos, o Mestre Didi, publica o primeiro registro autêntico das narrativas orais no

Brasil, em Os Contos Negros da Bahia.

Atento a tais questões, o NUPPO – Núcleo de Pesquisa e Documentação da

Cultura Popular – da UFPB, traz por princípio descrever e arquivar a forma das

narrativas dos contadores. O pesquisador do NUPPO, Altimar A. Pimentel, em 1995,

publica a obra Estórias de Luzia Tereza. Além do próprio título aludir à contadora Luzia

Tereza dos Santos a autoria das 236 narrativas contidas na coletânea, descreve, ainda, o

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modo de suas narrações. A performance passa a ser um elemento agregador ao conjunto

da obra.

Os tipos de publicações mais encontrados dos gêneros orais são os contos

populares. Almeida e Queiroz (2004) afirmam que o ápice nas publicações dos livros de

contos orais é o período de 1961 a 2000. Observa-se, contudo, que as cantigas de ninar

raramente são contempladas por estas obras literárias. Quando a são, restringem-se em

elencar e registrar as cantigas, que tecer considerações a seu respeito ou analisá-las.

Pode-se, então, levantar algumas reflexões: como já foi posto, as expressões da literatura

oral, de modo geral, são tidas como de menor valor pela intelectualidade; dentre as

manifestações da oralidade, as cantigas de ninar apresentam uma forte característica

performática; por último, na perspectiva dos gêneros discursivos, deve-se considerar

como pertinente ao universo doméstico peculiar aos elementos feminino e infantil. Sabe-

se que homens também podem (e devem) acalentar suas crianças, todavia,

historicamente esta incumbência destina-se ao gênero feminino, particularmente às mães

ou cuidadoras.

Pode-se verificar tal premissa baseado na análise da obra Canções do Berço de

Leite de Vasconcelos (1907), onde em suas 147 páginas, relativas aos posicionamentos

teóricos e as letras das canções de ninar, temos as seguintes citações: 42 vezes para a

palavra mãe, 10 para ama, 06 para avó, 02 para madrinha, 01 para tia. Somando-se 61

citações de figuras femininas para apenas 04 citações da palavra pai. Claro está o ano de

edição da obra datar do início do século passado, todavia, reflete em que proporção o

elemento feminino, particularmente a mãe, figura no universo da performance do

acalantar. Hoje, possivelmente este perfil encontre-se com as distâncias diminuídas,

graças ao perfil da mulher e do homem contemporâneos em dividir as responsabilidades

com a criação e educação dos filhos.

A linearidade da modalidade escrita, mesmo que buscando descrever a oralidade,

percorre um caminho diferenciado em seu modo de representação. Mesmo na escritura,

os elementos (extra)lingüísticos pertinentes à palavra oral encontram-se constituídos,

segundo as concepções de Zumthor, nos “índice de oralidade”, compreendendo tudo o

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que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua

“publicação” (Zumthor, 1993, p.35).

A preocupação com o uso da oralidade na literatura no Brasil despontou de modo

singular com os modernistas, revisitando e relendo os românticos, todavia, com traços

nacionalistas, de forma a falar a “nossa língua”. Mário de Andrade foi um dos

defensores da tecnologia a serviço do registro oral, através das filmagens, fotografias e

gravações. O sentido vanguardista via-se também nas artes plásticas. Artista brasileiro

por adoção, Lasar Segall, pintor, ou poderia ser dito, o sociólogo dos pincéis, retratou de

modo ímpar a singeleza e os contrates do Brasil. Precursor do modernismo brasileiro,

Segall, em sua obra, Mãe Preta (fig. 1), o arquétipo da ama negra, de tons terra e outros

de leveza tropical, traz a essência da brasilidade e seu povo, suas relações étnicas,

culturais, sociais, humanas.

(Fig. 1 - Mãe Preta; Lasar Segall, 1930)

Há na peça uma voz murmurada, embalada com o cheiro da voz, parafraseando

Barthes (2004, p. 400). Vê-se uma oralidade performática, percebendo-se o movimento

do embalar. Tem-se um cantar silencioso ou uma canção silenciada, como resposta

apresentada pelos conflitos do poder, dos lugares sociais de dominância. Talvez, uma

resposta silenciosa, amorosa, valente. As relações sociais se entrelaçam em uma

vocalidade zumthoriana, pelos pincéis de Lasar Segall: a “mãe preta”, a escrava, a

cuidadora, a ama-de-leite, a que acarinha o seu senhorzinho, ou melhor, o sinhozinho; o

“filho” branco, prole do dominador, seguro, alimentado, amado que acarinha a sua mãe

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negra e aos poucos, tomando para si a negritude da sua ama, sua face tomando a cor de

quem lhe permite a continuidade da vida. Não há palavras. Há sons, vozes, corpos,

performance, discursos.

A incursão na oralidade pelos modernistas na literatura, através de uma “língua

brasileira”, segundo reflexões de Dino Preti (apud Almeida; Queiroz, 2004, p.151-152), não

obteve o êxito pretendido devido aos matizes aristocráticos do movimento.

1. 2 - SOBRE AS CANTIGAS DE NINAR, ACALANTOS OU CANÇÕES DO BERÇO

O escritor pernambucano Mário Souto Maior (2007) nomeia o acalanto por

cantiga pra fazer menino pequeno dormir – menino chorão, manhoso, malcriado. O

pesquisador pontua as contribuições mais marcantes nas cantigas de ninar brasileiras

como sendo portuguesas, trazidas pelas mulheres que guardavam boa parte da tradição

oral. Outra forte influência foi a dos povos africanos. O contato das mulheres africanas e

afro-descendentes nos primórdios da colonização brasileira, enriqueceu-as com o que

elas já traziam das suas culturas orais, agregando beleza e sonoridade às cantigas de

ninar portuguesas. O ninar malemolente, caminhando e cantando. Línguas que se

entrecruzaram e formaram novas palavras e novos versos nos cantares brasileiros de

novos mundos.

O lingüista, filólogo e etnógrafo português Leite de Vasconcelos, um marco na

cultura lusa dos séculos XIX e XX, apresenta dentre sua vasta obra, em Opúsculos:

Etnologia (parte II) Canções do Berço. Publicada originalmente em 1907, Canções do

Berço foi revista e atualizada em 1938. Justifica a escolha do título por considerar mais

pertinente à primeira infância, uma vez que, segundo o autor, não há em nosso léxico

palavra que defina com precisão o ato de acalantar as crianças no berço, nos braços ou

no regaço, tal como há em outras línguas, tal como o francês, com berceuse. Esta obra é

resultado de pesquisa bibliográfica, contando com diversos colaboradores citados, de

coletas em Portugal e no arquipélago da Madeira. Constitui-se, até os dias de hoje, como

uma das obras mais completas sobre a temática, em língua portuguesa.

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O estudioso descreve o ato maternal do acalantar como um segredo universal,

independente ao grau de civilização. O conhecimento do mélico, tátil-cinestésico e

afetivo resulta em um produto en(canta)tório do adormecer. A transmissão desta

expressão poética da linguagem humana é feita de geração em geração, geralmente por

mulheres, acolhendo a criança para acalmá-la e adormecê-la nos braços, no berço, na

cesta, na rede.

Resultado de suas investigações, Leite de Vasconcelos (1907, pp.782-783)

registra a presença deste gênero além dos limites europeus: nos índios do Chiloé

(província do Chile), nos Dindjie de Alasca, nos Sioux (Lowa), no Haiti, nos Índios do

Brasil, nos Árabes e Berberes, nos Hottentotes, em várias ilhas da Oceania. Segundo o

autor, haveria uma quantidade maior de registros dos acalantos na Europa, porque os

etnógrafos acumulam aí constantemente grande riquesa de matérias1. Já na Grécia

Antiga, encontra-se uma variedade de termos relacionados ao ato do acalantar. No

século IV-III a. C, Teócrito descreve em seu idílio, uma canção de acalanto cantada por

Alcmena para seus filhos gêmeos, Heracles e Íficles (Leite de Vasconcelos, 1907,

p.784):

Dormi, meus meninos,

Um sono doce e brando;

Dormi, almas minhas,

Irmãos um do outro,

Filhos afortunados;

Repousai felizes,

E felizes chegai até amanhã de manhã.

Alguns escritos romanos decorrem sobre o poeta Pérsio, do primeiro ano depois

de Cristo, referindo-se ao cantar de uma ama-de-leite. Em 327, Arnóbio também faz

referência a cantos para ninar crianças, chamando-os por doces cantigas. Na Itália dos

séculos XIII-XIV, o singular poeta Dante Alighieri apresenta alguns versos, reportando-

____________________

1 Todas as citações de Leite de Vasconcelos (1907) nesta pesquisa são transcritas conforme os originais do

português de Portugal em sua data de publicação.

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se ao termo nanna. A melodiosa palavra nanna e a sua congênere ninna, conjuntas

ninna-nanna, no plural ninne-nanne, “canções do berço”, mostram por si mesmas de

quanta poesia os Italianos revestem o cuidado da primeira infância (Leite de

Vasconcelos, 1907, p.786). As cantigas de ninar italianas podem ser de origem profana

ou religiosa, neste caso, são entoadas nos autos natalinos. A França conta com

considerável número de canções de ninar e são denominadas por berceuses. A memória

das canções francesas, de acordo com os registros de Leite de Vasconcelos (1907,

p.789), está representada em diversas obras, muitas vezes contando com partituras. Além

destes, o pesquisador elenca uma série de outros países onde se encontram registros das

cantigas de ninar, tais como: Suíça, Alemanha, Áustria, Hungria, Croácia, República

Checa, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Espanha, Bulgária, Romênia, Rússia, Polônia,

Turquia, Lapônia, Finlândia, Dinamarca.

As canções do berço portuguesas conservam seus escritos a partir do início do

século XVI, segundo os estudos de Leite de Vasconcelos (1907, p.793). Neste período,

ilustres personalidades portuguesas figuram entre os que aludem as canções do berço em

suas obras: o dramaturgo e poeta Gil Vicente, o poeta maior da língua portuguesa Luís

Vaz de Camões e o escritor António Prestes. Neves de Melo, em 1872, publica o

primeiro livro contendo uma relação de cantigas de ninar. Outros autores que tratam da

temática: Rodrigues de Azevedo (1880), Adolfo Coelho (1881), o próprio Leite de

Vasconcelos (1882), Theófilo Braga (1886) e A. Tomás Pires (1905).

Há apropriação dos acalantos em composições musicais, cartões postais, trovas e

romances, a exemplo de um antigo romance conhecido por “Conde Alarcos (ou Conde

Iano)” ou “D. Silvana (ou D. Infanta)”, dentre outros títulos, onde a condessa nina seu

filho amamentando-o com ternura antevendo a sua morte ordenada pelo rei. (Leite de

Vasconcelos, 1907, pp. 798- 799).

A psicanalista Ana Lúcia Jorge (1988, p.38), em O Acalanto e o Horror, relata

alguns depoimentos obtidos pela mesma de Cláudio, Marina e Orlando Villas-Boas

sobre acalantos de povos indígenas do Alto Xingu. Consoante os informantes, esses

acalantos não apresentam textos, apenas um som contínuo sibilado. Pelo chiado –

“como o de cobra”, dizem os três depoimentos – a mãe encanta a resistência infantil,

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encanta a “serpente” que impede o sono (Jorge, 1988, p.39) O som seria produzido

junto ao ouvido da criança ao embalo da rede ou mesmo nos braços. Estes dados diferem

de outras informações de acalantos indígenas contendo letra, como as cantigas de

mucuru, pertencentes à língua indígena amazônica nheengatu (Leite de Vasconcelos,

1907, p. 872 e Souto Maior, 2007). Tais diferenças apenas projetam a diversidade dos

povos da floresta, haja vista as dimensões continentais de um país como o Brasil. A

produção destes sons silabados e/ou silabados, na verdade, podem ser encontrados no

acalantar universal.

O Instituto Auditório Ibirapuera (2008), em São Paulo, dentre outras iniciativas,

conta com o Projeto Acalanto com um arquivo com áudios, textos e vídeos com cantiga

de ninar em diferentes idiomas, dentre eles, em línguas indígenas. Dos Waurá, do Alto

Xingu, há dois registros de acalantos em seu idioma Arawak e outra cantiga de ninar dos

Sateré-Mawé. Como nos acalantos em outras línguas, aparecem personagens míticos do

sono infantil. A Sateré-Mawé de nome Piã deixa registrada em vídeo uma cantiga de

ninar aprendida com sua mãe e já cantada para seu bebê que irá nascer. A sua

performance consta de uma vocalidade doce e suave em acalanto de um macaquinho

ninado por ela em uma rede de palha. Diz a cantiga de ninar:

“Tonen tonte kukuton”

Tonen tonte kukuton Tonen tonte kukuton

Tuape w’i milítão Tuxímaka’tu’ mima’ karato

Tuap’e’te’ru w’i milítão.

“Sapo cururu debaixo do girau” (Tradução)

Sapo cururu debaixo do girau Empresta teu sono pro nenê dormir

Se ele não dormir O sapo grande vai te pegar.

Uma cantiga de ninar de notada influência africana, recolhida por Castro (1965,

p. 47) em 1962, em Lagos, Nigéria, de uma senhora recifense carinhosamente chamada

por “tia” Romana, também apresenta os elementos míticos Tutu, um dos sinônimos do

Papão (Souto Maior, 2007), e o sapo como se lê abaixo:

Sum, sum, sum

Dorme, dorme, que vem tutu,

Lá no mato tem um bichinho

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Que se chama cururu

A repetição constitui uma das principais características das cantigas de ninar

observada independentemente de aspectos étnicos, culturais, sociais. Das cantigas acima,

ambas se iniciam por repetições. Todos os rituais e práticas sagradas privilegiam a

repetição – seu efeito, catártico e encantatório, participa do efeito de elaboração de

uma passagem, como pontua a psiquiatra e psicanalista Nayra Ganhito (2001, p.90).

Verifica-se na repetição de um único fonema (vocálico, fricativo ou nasal), de uma

sílaba (ex.: rô, rô, rô), de palavras (ex.: boi, boi, boi) e, finalmente, a repetição da própria

canção como um todo. O uso desse recurso possibilita uma cadência, propiciando o

relaxamento e posterior adormecimento. Leite de Vasconcelos (1907, p.892), seguindo a

linha de pensamento ritualístico, afirma que do mesmo modo que há substituição de

umas religiões por outras, as divindades mudam de caráter, quando dormem: as

canções em que as mãis o mandam embora constituirão vestígios de fórmulas mágicas e

excretórias2.

O acalanto resulta das ações mecânicas do embalar/cantar e de outros processos

mais complexos, atualizados principalmente através da significação subjetiva que os

temas das cantigas de ninar adquirem no espírito das crianças, segundo Florestan

Fernandes (1959, apud Jorge, 1988, p. 46). O autor privilegia as figuras femininas ao

listar os atores na situação do acalanto, referindo-se à ação paternal como esporádica. Ao

tratar da temática melodia, Jorge (1988, p. 187) analisa as descrições de diversos

pesquisadores e aponta como convergência descrições do tipo simplicidade e suavidade.

A melodia pode ser compreendida como o elemento que traz brilho, que significa a

composição musical.

Os corpos foram censurados em diversas fases da história. O acalantar, trazendo

a criança ao corpo, envolvendo-a com a sensualidade da voz, foi compreendido como

algo inadequado à educação infantil durante séculos, apesar da ação persecutória das

____________________

2 Respeitando o texto original, conforme rodapé 1.

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mães e cuidadoras. Tal censura deve-se ao fato de o corpo falar, muitas vezes mais do que o

pretendido, do que o desejado.

É nesse sentido que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele; ação dupla, reversível igualmente válida nos dois sentidos. (ZUMTHOR 2000, p.89)

Em análise etimológica de alguns léxicos correlacionados às cantigas de ninar,

Leite de Vasconcelos (1907, p. 806) tece algumas considerações. Segundo o autor, em

Portugal, de acordo com a localidade pode-se dizer arrolar e rolar para designar o canto

acompanhado do movimento do berço, como em Castelo Branco. Todavia, em Fozca

usa-se apenas rolar. Sua origem seria o arrulhar, som produzido pelos pombos e rolas.

Em Castelo Branco, como termo afim, há o acalentar, empregado para quando as

mulheres cantam às crianças aconchegadas e aquecidas em seu colo.

O étimo destas palavras não é lat. calere, como inexactamente dizem alguns A.A.;pois o –L– latino devia sincopar-se, como em aquecer= aqueecer<acaecer=a-caecer<calescere, ao passo que acalentar tem A. O verbo acalantar vem de calar; o sentido nos é dado pelo hespanhol acallar “hacer callar”. (...) Já F. Evaristo Leoni, no Genio da Lingua Portuguesa, liv. I, 1858, pp. 319-322, estudou êste processo derivativo, e explicou bem o verbo calentar com derivado de calar. (LEITE DE VASCONCELOS, 1907, p. 806).

Nos relatos do autor, constam que em regiões onde não se faz uso destas

nomenclaturas, como no concelho de Alandroal, as palavras embanar e embalar trazem

o sentido de movimentar a criança ao berço, nos braços ou colo.

Em Houaiss (2001), o verbo acalantar, com datação do registro conhecido ou

estimado do século XIII, tendo por fonte o Índice do Vocabulário Português Medieval

(p.21), com a seguinte definição: ou relacionada a quente sob a f. calente- (<lat.

calens,entis ‘quente’) ou relacionada ao v. calar na acp. ‘tornar silencioso’;cp. esp.

acallantar ‘fazer calar, aquietar, sossegar’ e port. acalentar (p.38).

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Cascudo faz referência à definição de acalanto elaborado pela musicista Oneyda

Alvarenga:

Canção para adormecer crianças. É palavra erudita, designando o ato de acalentar, de embalar. No seu sentido musical equivale, por exemplo ao da palavra francesa berceuse e da inglesa lullaby, foi utilizado por extensão e pela primeira vez pelo compositor brasileiro Luciano Gallet. Popularmente, nossos acalantos são chamados cantigas de ninar. (CASCUDO, apud Jorge, 1988, p.34).

Na obra Canções do Berço, Leite de Vasconcelos (1907, p.800) propõe uma

forma de organização das cantigas de ninar ao qual denominou por espécies de canções

e seus temas. Optou por agrupar obedecendo a dois princípios gerais: às que servem

como que de prelúdio e às que aludem aos momentos ou fases do sono.

Às que se apresentam como que de prelúdio (p.800), referem-se à fase

anunciadora, predecessora ao estado de sono. Nestas canções são expressos, de modo

geral, os cuidados que as mães dispensam aos seus filhos. Foram colhidas treze canções.

Abaixo uma canção recolhida de Morcovo (p. 821):

A cantiga do rô rô

Minha mãi m’a ensinou;

Quando eu estava no berço,

Logo m’a ela cantou.

Às que aludem aos momentos ou fases do sono (p.800), correspondem desde a

etapa em que a criança demonstra o desejo de dormir, até quando adormeceu de fato.

Este grupo totaliza sessenta e sete canções. A princípio, o estudioso apresenta este grupo

composto por duas espécies de canções, entretanto, mais adiante faz referência a uma

terceira categoria. Explica que esta organização, de fato, serve mais para fins didáticos.

No conjunto, apresenta a seguinte classificação, as cantigas de ninar: a) de acalentar; b)

do berço (ou embalar); c) de uso para o acalanto ou o embalar simultaneamente.

As canções de acalentar (p.808) somam sete canções na obra. Neste grupo não

há uso do suporte material. Para a função do acalanto lança-se mão dos braços, do colo

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ou do regaço. Em seu conteúdo podem apresentar o uso da linguagem infantil ou o

contentamento da mãe por ter a criança nos braços, como na canção da região de Minho

(p. 821):

Quem tem meninos pequenos

Alivia a criação:

De dia tem-nos nos braços,

À noite no coração.

Mas, em outros momentos, volta-se nostálgica a rememorar sua vida sem a

responsabilidade do rebento, vê-se assim nesta cantiga de Alvações do Corgo (p. 822):

Quando eu era solteirinha,

Usava fitas e laços:

Agora, que sou casada,

Trago o meu filho nos braços.

No segundo grupo, as canções do berço propriamente ditas (p.808), destinam-se

ao ato efetivo de adormentar as crianças ao berço ou semelhante em movimento. Na

obra, o autor afirma serem as de menor número, todavia, publicou dez canções. Pautada

nos princípios do cristianismo, roga aos anjos, à Maria e ao Cristo proteção ao seu filho.

Em algumas delas, rogasse aos anjos que embalem a criança imprimindo ritmo ao berço.

Há uma transferência da figura infantil do menino Jesus para a criança a ser embalada,

da mesma forma, a Virgem Maria para a mãe. As letras referem-se aos berços como

cobertos em ouro, tecidos delicados ou por plantas aromáticas. De Valpaços (p. 823):

Rola, rola, meu filhinho,

No teu berço de alecrim...

Lençóis de cambraia fina,

Cobertores de cetim.

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Por último, estão as canções de acalentar e embalar (p.810), em que se observa

uma maior complexidade, pois há pontos comuns, tanto no sentido, quanto na forma.

Este grupo totaliza quarenta e cinco canções. Subdividem-se em quatro etapas:

• a primeira (p.810) consta no período inicial do sono infantil. Há a solicitação

da proteção aos elementos míticos-religiosos, como também um chamamento

ao sono. Aqui há também uma personificação mítica do mesmo. O grupo

conta com seis canções. Recolhida em Minho (p. 827):

O menino quer dormir,

O sono num le quer vir:

Anda, sono, anda tu,

para o menino dormir.

• a segunda (p.810-811) caracteriza-se ainda com a marca do cristianismo.

Contudo, neste grupo, a mãe deseja entregar a criança aos anjos ou à Virgem

Maria, com a intenção de que a devolva em tempos vindouros, ou com o

intuito de proteção, ou, ainda, por motivos relacionados à necessidade de

trabalho para sustento do lar. São sete as canções desta etapa. Como

ilustração de Moncorvo (p. 829), segue abaixo:

O meu menino é d’ouro,

D’ouro é o meu menino:

Hei-de entrega-lo à Virgem

Emquanto é pequenino.

• a terceira (p.811) lança mão do vocabulário infantil, assimilam-se as figuras

da Virgem, do Menino-Jesus e dos Anjos, imputando a José a função de

embalar o neném. O autor acredita que a origem destas cantigas sejam os

períodos natalinos, onde o povo haveria se identificado com a imagem da

Sagrada Família. Outra característica encontrada neste grupo refere-se em

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solicitar o auxílio da Natureza e das entidades sobrenaturais. Configura o

grupo com maior número de canções recolhidas, somando um total de trinta.

De Fozcoa (p. 836):

Rola, rola, meu menino,

Ca mãizinha logo vem:

Foi lavar os cueirinhos

À fontinha de Belém.

• a quarta e última (p.811-812) trata das dificuldades da vida e sugere que a

criança adormeça para ir aos ofícios laborais. Recolhida de Fozcoa (p. 836),

encontra-se uma das duas canções descritas neste grupo:

Dorme, dorme, meu filhinho,

Porque eu tenho o que fazer:

Eu quero ir ganhar o pão

Que precisamos comer.

Tratadas separadamente, são descritas mais trinta e sete canções relacionadas ao

período onde a criança já adormeceu (p.812). O autor retrata a maioria delas onde a mãe

ordena às entidades míticas para não incomodarem o sono da criança. Elas estão

relacionadas ao Papão, às aves entre outros seres fantásticos. Além das canções

propriamente para ninar crianças, o autor descreve também o uso de quadras, trovas,

provérbios e ditados musicados, ou canções populares para a mesma finalidade. As

temáticas geralmente são de origem religiosa, outras voltadas às entidades sobrenaturais

ou atividades do cotidiano. A influência dos textos religiosos, particularmente os

cristãos, é bastante presente na poética popular portuguesa. É comum a recorrência ao

Cristo, à Virgem, ao José, aos Anjos e a um considerável número de santos e santas, de

acordo com as crenças da região. Algumas das crendices populares foram incorporadas à

tradição cristã, santificando-lhes.

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Os papéis desempenhados pelas figuras religiosas e míticas supracitadas,

encontram-se com o mesmo sentido nas considerações acerca das entidades do

imaginário infantil. Algumas vezes, os entes ou as figuras religiosas são solicitados a

proteger a criança e, outras vezes, para levá-la se não dormir logo.

1.2.1 – DIVINDADES SONÍFERAS

O gigante Argos Panoptes (aquele que tudo vê) tinha cem olhos e quando

dormia, fechava apenas a metade deles. Hera, enciumada com o romance de seu marido

Zeus com a jovem princesa Io, transformou-a em novilha, determinando que Argos a

vigiasse. Zeus, inconformado, mandou Hermes salvar sua amada. Hermes narrou vários

contos, cantou e tocou flauta para adormentar o gigante. Argos dormiu, cerrando todos

os olhos. Hermes cortou-lhe a cabeça, salvando Io para Zeus.

A mítica grega nos mostra essa força encantatória, capaz de derrotar até um

gigante resistente ao sono. É neste imaginário mítico, fantástico, que se descreve um

fato: a palavra, a voz ritmada e a performance quebram as resistências deste outro.

Muitos povos personalizam e mitificam o sono. Hipnos e Sonho eram os deuses

do sono na mitologia grega e romana, respectivamente. O sono pode ser compreendido

como um fenômeno fisiológico do corpo ou como um deslocamento da alma. Estes

posicionamentos derivam da cultura dos povos em questão. De acordo com Leite de

Vasconcelos (1907, p. 889), os Karens da Birmânia, groenlandeses e certos índios da

América do Norte crêem no desprendimento espiritual durante o sono.

Há um conto alemão onde o rei Gunthram (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 890)

dormia e, por estar com a boca aberta, sua alma saiu em forma de serpente. Ainda sobre

o mesmo país, há uma crença que ao virar para o lado, a alma poderá esvair-se pela

boca. Uma variante dessa crença conta que se a criança deixar a boca aberta durante o

sono, sai um ratinho branco por ela.

Também, em algumas comunidades indígenas no Brasil, nas cantigas de murucu

recorre-se aos entes acutipuru e murucututu (coruja) para papar os pequenos, que

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insistem na vigília (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 872). Segundo Cascudo (1954, apud

Jorge, 1988, p.37), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o acutipuru, também

conhecido por quatipuru ou caxinguelê, significa cutia enfeitada ou salta-sem-barulho.

Assim com ocorre em outros povos, eles crêem que, ao morrer, a alma se deslocaria ao

céu sob a forma de acutipuru. Já em Leite de Vasconcelos (1907, p. 872), a palavra

acutipuru traz como sinonímia o termo macaco.

Para outros povos a alma se encontra associada às aves. No cancioneiro

nordestino de acalanto, encontra-se o Pavão em cima do telhado. Leite de Vasconcelos

(1907, pp.890-891) cogita a possibilidade de nos primórdios da cultura portuguesa,

como em outras culturas, houvesse uma associação entre o sono infantil e a vinda do

papão para levar/comer/papar a alma, personificando o próprio Sono.

Diversas são as entidades míticas encontradas nas cantigas de ninar para espantar

as crianças que se recusam a dormir, em diferentes períodos históricos e em diferentes

culturas. Na cultura lusa, Leite de Vasconcelos (1907, pp.893-897) elencou algumas

delas: o Velho (das Unhas/ do Cobertor/ das Calças Vermelhas); a Preta; a Ronca; a/o

Sarronca; o Papa-ronquilhos; o Gadunha; o(a) Velho(a); a Feiticeira ou a Bruxa; o

Diabo; o Lobo; a Raposa; o Medo; a Moça; a Maria-da-Manta; o Coco (a Côca/ a Cuca);

o Pavão; o Feio. E seguiu com outros povos que também possuem seus seres míticos

terroríficos para o sono dos pequenos: Itália – Strega, il Baú, l’Orco, la Belfana; Espanha

– Coco, el Duende, el Bu, la Mano Negra, el Moro, los Judios, Ogre, o Preto, o Homem

do Saco; Romênia – Striga; Alemanha - Cão Pastor (negro), Ovelha (preta), a Morte e o

Bubu, Wuotan e Frau Holle; Argélia – Beauprétre; Bélgica – Knochesur-mer; Escócia –

Mab; e dos povos Hebreus– Lilith; Coptos-católicos – Berselia; Persas – Aal; e Boêmios

– Polednice. A forma como os entes sobrenaturais povoam o imaginário é concebido

como constitutivo dos seres humanos. Quanto ao conceito do feio, mais uma vez

recorrendo à mitologia, tem-se a górgona Medusa e no cristianismo o Diabo. O negro e

o velho também são elementos bastante freqüentes nas cantigas de ninar, esteriotipados

como elementos medonhos, refletindo os valores culturais de uma determinada

sociedade.

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Popularizada no Brasil pelo escritor paulista Monteiro Lobato, na obra Sítio do

pica-pau amarelo, a Cuca é uma das figuras presentes do universo infantil. Personagem

conhecida por gerações e gerações, presente nos contos populares e nas cantigas de

ninar, muitas vezes sendo substituída pelo Papão. A sua origem é narrada por Leite de

Vasconcelos, oriunda da personalidade Côca portuguesa, que por sua vez, seria um

desdobramento do feminino da palavra coco. O autor relata haver citações em textos de

Gil Vicente e João de Barros (séc. XVI) a respeito do coco.

Também o médico judeo-português Amato Lusitano (séc. XVI), referindo-se ao côco índico, diz que êste fruto, “como apresenta à superfície depressões que lhe dão o aspecto de uma cabeça de macaco, recebêra o nome de côco com que as mulheres costumavam meter mêdo às crianças. Vê-se desta notícia (a qual concorda com a de João de Barros) que no séc. XVI não existia o Côco só na imaginação, como hoje a Côca, mas tinha representação figurada, espécie de máscara. (LEITE. DE VASCONCELOS, 1907, p. 902).

Máscaras são usadas para assustar crianças ou adultos desde a antiguidade e em

culturas com grau de civilização variado, como no caso da Grécia.

As cantigas brasileiras mais populares são Nana (Dorme) Neném e Boi da Cara

Preta. O cantor e compositor Dorival Caymmi introduziu em sua música Acalanto

(anexo A), como refrão, a canção Boi da Cara Preta. O mítico oral das cantigas de ninar

também esteve representado na abertura dos Jogos Pan Americanos Rio – 2007,

interpretado pela cantora Adriana Calcanhoto (Energia do Homem, 2007), na música do

Caymmi. A apresentação intitulada “Energia do Fogo” trazia elementos do universo

onírico infantil e das tradições brasileiras: o Boi da Cara Preta, a Coruja, a Bernúncia (de

Santa Catarina), o Cazumbá (do Maranhão) e a Carranca (da região do São Francisco).

Um estádio embalado pelas vozes de várias vozes. Entram os palhaços para espantar os

bichos feios. O arquétipo da essência humana, onde colidem, dialogam, todos os outros

em todos os eus: o palhaço. O medo no jogo infantil, do temível Papão, passa por um

deslizamento de sentidos. As crenças humanas não podem ser desconstruídas, pois elas

mesmas se adaptam, somam, transmutam.

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O principal ponto de concordância nas obras de Ana Lúcia Jorge (1988) e nas

trinta e quatro cantigas de ninar registradas por Leite de Vasconcelos (1907) pauta-se na

constatação do Papão como entidade do imaginário infantil mais recorrente nas cantigas

de ninar. Personificando o sono, tem-se o Bicho-papão, que em seu deslocamento

assume diversas conotações, mas mantendo-se na função de assustar as crianças mais

resistentes à hora de dormir. O Papão Negro se apresenta como variante do Papão.

O teórico (1907, p.889) descreve a aparição do Papão de duas formas: num caso

as mãis falam nêle para amedrontarem o menino, e êste dormir ou se aquietar; no outro

esconjuram-no para que se vá, e deixe repousar o menino. Em sua descrição do Papão, o

autor relata um ser malévolo e perseguidor das crianças. Abaixo a canção recolhida da

região de Fozcoa (p. 838):

Vai-te d’aí, ó Papão,

De cima dêsse telhado,

Deixa dormir o menino

O soninho descansado.

Sobre o elemento medo presente nas cantigas de ninar, Leite de Vasconcelos

(1907, p.797) relata que em sua obra Tradições Populares de Portugal, publicada em

1882, haver inserido algumas poesias do berço, formando um capítulo sobre “Mêdos

das crianças”, com versos populares. Tendo o mesmo objeto de estudo à luz da

Psicanálise, Jorge (1988) discorre sua obra O Acalanto e o Horror. Nesta mesma área do

conhecimento, Nayra Ganhito (2001) traz diversas reflexões pertinentes a este estudo,

em Distúrbios do Sono.

A simples existência das cantigas de ninar evidencia a necessidade da

intervenção de uma segunda pessoa neste processo da elaboração do estado do sono.

Portanto, cantar, ninar, acalentar, embalar, de fato, é um desejo do adulto, segundo Jorge

(1988, p.35). Segue a autora (p.33) só há acalanto se há algum conflito: a dialética entre

um medo indeterminado ou angústia, e uma relação reasseguradora.

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O bebê, acordado no meio da noite, perscruta na escuridão os signos que anunciam a chegada de sua mãe: o ritmo de seus passos, sua voz, o seu cheiro, uma fresta de luz que se acende embaixo da porta. A vigília como espera, o sono como separação e, ao mesmo tempo, tentativa de reencontro com o objeto materno das primeiras satisfações: “quando ela era o alimento e o sono”. O bebê só dorme com a mãe, a mãe tranqüiliza-se ao ver o seu bebê dormir. Quem espera quem, quem adormece quem? (GANHITO, 2001, p. 43)

Este duo consta de um desejo materno de complementaridade, fundamentado no

desamparo infantil (Jorge, 2001, p. 40). A relação de maternação poderá ser efetuada,

não apenas pela mãe, mas por outra pessoa que esteja nesse lugar. Como já posto

anteriormente, muitas vezes a ama assumia este papel integralmente. A relação mãe-

bebê se apresenta como a mais comum em nossos dias, devido às conquistas dos

movimentos sociais pelo direito à licença maternidade para as mães trabalhadoras.

Refazendo a cena: a mãe e seu bebê entremeados por uma cantiga de ninar. Esta

cantiga de ninar, comumente traz em seu conteúdo, um elemento mítico-folclórico ou

mítico-religioso. Assusta/acalma, entrega à sorte/protege; atrai/afasta; chama/manda ir

embora. Interdita. A mãe ao mesmo tempo em que elabora esta separação necessária

para o filho, o faz também para si própria, tanto através dos elementos lingüísticos,

como extralingüísticos. Ao invocar os mitos, há a aceitação da não onipotência materna,

implicando na Lei da Interdição.

Um Papão, um significante metonímico do medo e da angústia presente na

relação mãe-bebê, instrumentalizada de modo doce, terno, suave. Jorge, (1988, p.41) cita

Veríssimo de Melo (1949) que verifica esta contradição pertinente aos elementos

lingüísticos das cantigas de ninar. Jorge continua (idem): uma relação de

complementaridade (da qual (a mãe) tem saudade, fonte de ternura) barrada por uma

Lei que corresponde ao recalcamento do desejo edipiano. Na teoria freudiana, a

angústia infantil permanece presente na maioria dos adultos, sendo reativada por

elementos exteriores, em detrimento de convicções aparentemente resolvidas de seus

complexos infantis recalcados. Entenda-se complexos infantis recalcados aqueles que se

nuclearizam em torno do Complexo de Édipo (Jorge, 1988, p. 58). Os princípios

freudianos tratam da diferenciação conceitual do medo e da angústia, onde o medo

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encontra-se relacionado ao elemento concreto (real ou imaginário) e a angústia ao que

figura no desconhecido. Sobre o medo presente nas cantigas de ninar Jorge (idem, p.49)

afirma ser mais apropriado falar em um medo de nível simbólico, pois trata-se de uma

representação através dos mitos folclóricos da angústia frente à interdição (...) que se

opera na separação diária pelo sono. A psicanalista afirma ser uma etapa delicada no

cotidiano na relação mãe-bebê.

Para o bebê, ele e a mãe compreendem um uno. A identidade da criança se

constitui através do olhar da mãe3, ao passo que a mãe se complementa com o olhar do

bebê. A ação complementar funciona articulada pelo fantasma, isto é, pelo desejo de

união do par imaginário perdido, mas este sofre a interdição da Lei. Mãe-bebê

apresentam o medo e a angústia da separação simbolicamente representada nas cantigas

de ninar, seja por um ser folclórico medonho (temer) ou um ser religioso (adorar), ou

com outra configuração, mas cumprindo a mesma proposta, pela labuta materna

(conformar-se). Há um movimento de ausência/presença/ausência. Este fantasma – ou

desejo de união – é que pode fazer com que se acalentem bebês ainda incapazes de

corresponder ao adulto no plano simbólico (Jorge, 1988, p.50). O elemento responsável

pela interdição, um terceiro, encontra-se personificado nas cantigas de ninar: o Papão, a

Cuca, a Virgem, os Anjos, o trabalho materno.

As cantigas de ninar tomam o contorno de um jogo repetitivo, em que a mãe assume

o papel de reasseguramento da criança. O adulto como agente responsável por garantir à

criança o descanso (separação simbólica) necessário. A repetição se significa na cadeia das

ações, buscando responder ao vazio do desejo de complementação. Para Lacan (Jorge,

1988, p.65) separar é criar o desejo de reunir, desejo impossível. Há, então, o que a

psicanálise denomina por fantasma, isto é, a representação do elemento a ser substituído

pela separação em nível imaginário. Sustentada pela relação narcísica, o olhar especular

mãe-bebê cumpre a função para ambos como suporte do fantasma.

Na célula narcísica, para a criança a mãe é o que se chama de eu-de-puro-prazer, daí que sua ausência apareça como desprazer. Até aí, além da mãe

_________________________

3 O olhar pode ser compreendido subjetivamente, como (re)conhecimento e, ainda, no plano denotativo. Nas crianças e/ou nas mães com deficiência visual total ou baixa visão, outros mecanismos substituem a função do olhar na perspectiva fisiológica.

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nada existe para a criança, por isso é fálica. E se a mãe é tudo, é porque nada existe além dela. No entanto, pelo discurso da mãe apresenta-se a referência à Lei. Pela palavra, a mãe torna-se castrada simbolicamente, pois há algo além dela: o mundo da cultura que sua linguagem representa. Falar é nomear o ausente. Então, mesmo ausente, há um outro além da mãe. (JORGE, 1988, p. 67)

Portanto, a mãe suficientemente boa, isto é, aquela na qual a interdição se processa

de maneira satisfatória, trazendo a presença do Outro (para Lacan) ou do terceiro (para

Freud). A sua presença afasta a necessidade do fantasma, pois ele se concretiza na

linguagem ou em presença física do pai ou quem substitua o seu papel. Jorge (pp. 176-184)

sistematizou oito grupos para as cantigas de ninar de acordo com seus temas, partindo de

preceitos psicanalíticos.

1.2.2 - A PRESENÇA DAS AMAS NA CULTURA DO NINAR

As amas se apresentam como sujeitos marcantes na primeira infância. Denominadas

por amas-de-leite, quando na função de amamentadoras que poderão também ser

cuidadoras e amas-seca, apenas como cuidadoras. Conforme Leite de Vasconcelos (1907,

p.31), registra-se a presença das amas-de-leite pelo poeta romano Pérsio no ano primeiro da

era cristã. No curso da história, as amas poderiam ser trabalhadoras livres ou mão-de-obra

escrava.

A partir de registros em dois cordéis4 portugueses do século XVIII, a historiadora

Maria José M. Santos ([1987] 2008, pp. 213-226) investigou as condições sócio-históricas

das mulheres que exerciam a atividade como amas-de-leite. Descreveu-as em dois tipos

gerais: as internas e as externas.

Na Europa Central, as amas internas se apresentavam comumente nas camadas

sociais mais abastadas. Entretanto, esta prática ecoava em grupos de menor poder

aquisitivo, possivelmente, como forma de ascensão social. A ama atuava profissionalmente

_____________ 4 “Alcorão das Amas de Leite” e “Entretenimento (...) acerca das Amas de Leite”. Manuel Rodrigues

Maia, Lisboa: Miscelâneas da Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1786. (apud Santos, [1987] 2008,

p.213)

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e possuía boa remuneração. O período recomendado ao aleitamento chegava a dois anos,

aos quais a mulher deveria cumprir abstenção sexual. Neste caso, possibilitava à mãe

usufruir de sua vida conjugal e social, deixando esta cessão a cargo da ama-de-leite. Havia

um cuidado criterioso na alimentação de tais mulheres, o que para uma parcela delas

indicaria melhora na qualidade de vida, como se pode ver: V.M. não sabe o que he hir ser

Ama (...) Elle pode haver cousa melhor debaixo do Sol, do que hir huma de nós (...) para

huma casa, onde he tratada às mil maravilhas (...) a troco de numas gotinhas de leite que a

gente dá a huma creancinha?... (Entretenimento, p. 9 apud Santos, [1987] 2008, p. 219).

As amas externas poderiam ser funcionárias de particulares ou trabalharem para órgão

público, como as Casas dos Expostos. (Santos, p.221), também conhecida como Casas da

Roda.

A Casa da Roda pernambucana foi fundada em 1786, de acordo com a pesquisadora

Alcileide Nascimento (2007, p. 80). Apoiada nos aproximados 70% de óbitos dos expostos

institucionalizados, a historiadora refuta o discurso humanizador, de enfrentamento do

infanticídio e do abandono por parte do poder público, afirmando ser um modo de depurar

a experiência da morte, enclausurá-la, retirá-la do espaço público e construir outras

sensibilidades coletivas e individuais na esteira do investimento civilizatório.

Ainda nos estudos históricos, Isabel G. Sá ([1994], 2008), investigando sobre as

amas-de-leite das Casas dos Expostos, define a função como uma ocupação

especificamente feminina e própria de sociedades pré-industriais em que o

desenvolvimento tecnológico não tinha ainda criado alternativas eficazes ao aleitamento

(idem, p. 235). As amas de maior valia constavam nas de pouca idade, com apenas um

parto, poucos dias de parida, gozando de boa saúde. A vigilância da família era constante

no trabalho das amas particulares. Poderiam atuar na casa dos patrões ou em sua própria,

onde ficava com a criança. Sá (idem, p.236) toma como exemplo a Casa da Roda do Porto,

fundada em 1689, constituindo em uma entidade de acolhimento das crianças abandonadas.

Estas crianças eram colocadas em uma roda que entremeava o muro da instituição,

possibilitando o anonimato do depositante.

Um grupo específico constava nas amas que atuavam nas Casas dos Expostos.

Havia as que prestavam serviços particulares e as que atuavam internamente para

instituições públicas/caritativas. As amas dos expostos poderiam ser as amas de dentro,

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com rendimentos superiores (mensalistas) e o primeiro contato dos bebês, em contrapartida,

mais susceptíveis à contração de doenças; as amas de empréstimo atuavam externamente

como prestadoras de serviço (diaristas); as amas de fora, responsáveis pelos sete primeiros

anos da guarda da criança, recebimento trimestral. A autora analisa dados de 1699 a 1776

(idem, pp.248-249), referentes à adoção das crianças por parte das famílias da amas,

constatando uma variação decrescente entre 90% a 51%. Ressalta a presença dos laços

afetivos construídos na família, sendo freqüente nos documentos constarem citações como:

pelo muito amor que lhe tem.

Herdadas das tradições lusas, a presença das amas no Brasil foi exercida,

principalmente, pelas africanas escravizadas e suas descendentes. Estrangeiras brancas, em

menor número, também exerceram tal atividade, de modo remunerado. Os documentos

elencados para esta pesquisa não registram esta prática entre os escravos ameríndios.

Em uma visão mais romântica, diversos autores brasileiros (romancistas, poetas) se

referem às amas-de-leite, mães-pretas ou mucamas em suas obras, advindo das suas

próprias experiências com as narrativas orais, influenciando de modo singular o universo

literário.

A velha negra, ama das crianças, adquire um estatuto paradigmático e se fixa no imaginário brasileiro como um símbolo no qual os romancistas investem uma carga emotiva que a remete à mãe arquetípica, ao veio original, ao leite primeiro. Como os seios fartos da mãe preta, as palavras jorraram, fluíram e fertilizaram a escrita nacional como sua representação legítima. Desloca-se tanto a velha índia como força motriz, nativa e autóctone, como a voz e a imagem da avó européia, em favor da voz sonora da mãe preta, enquanto símbolo nacional do contador de historias à ninhada branca brasileira. (COUTINHO, 2006, p. 41)

Yeda Pessoa de Castro (1965, 1990, 1995, 199?), etnolingüista especialista em

literaturas africanas e imortal pela Academia de Letras da Bahia, refere-se à condição da

mulher africana no Brasil de ama escrava como

no papel de dublê, silente e anônimo, (...) servindo de mãe-preta, (...) sem perdão pelo erro, na função ingrata de criar o filho da mulher branca do colonizador europeu, autores e executores reconhecidos do seu drama (...). Sua personagem representava a imagem do conformismo, feito de uma abnegação irracional, quase covarde, perante uma platéia tão alheia à sua condição humana de mulher e mãe que a identificava como preta da

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cor de um animal ou de uma coisa inanimada circundante à margem de um elenco de protagonistas brancos, que, no entretanto, dela extorquiam o instinto maternal e o afeto, em benefício próprio. (CASTRO,1990, p.1).

Leite de Vasconcelos (1907, p.901) corrobora o exposto por Castro na associação da

cor preta aos elementos negativos, oriundos da superstição de diversas nacionalidades

européias, concluindo ser natural a sua vinculação ao elemento Papão das cantigas de ninar.

Do mesmo modo, à conhecida cantiga “Boi da cara preta” assume um caráter

preconceituoso (Castro, 199?, p.2), aludindo ao povo negro um juízo de valor entre

branco/belo/puro e preto/horrendo/medonho. Neste sentido, Castro traz No canto do

acalanto (1990), um título polissêmico aludindo ao canto das cantigas de ninar e ao cantar à

margem, estigmatizado das escravas. Reporta-se ao antagonismo da relação de

repulsa/atração pelo pequeno em seus braços. Boa parte das vezes, o seu rebento lhe havia

sido arrancado para executar a função maternal com o menino branco, quiçá, um futuro

algoz do seu povo. Uma questão de vida ou morte para si e seu bebê. Entretanto, seu

instinto maternal aflorava nas canções de acalanto, como também o fazia em resistência, de

forma sutil e ardilosa, como se pode observar na cantiga de ninar cantarolada pela

população baiana ainda nos dias atuais, segundo Castro (1990, p. 2):

Su, su, su, menino assu Cara de gato, nariz (inho) de peru

Su, su, su, menino mandu Cara de gato (pato) nariz de peru

Su, su, su, menino mandu Quem te pariu que te dê caruru

As escravas ladinas, isto é, que tem por segunda língua o português, afrontavam

os seus opressores, sem que os mesmos o percebessem. A sonoridade marcante pela

repetição do /u/ desvia a atenção de seu discurso irônico. Castro (1990, p.2) analisa as

suas significações: “assu” – aço, branco ou alguma espécie de bichinho estranho, de

cara esquisita; “mandu” – visualizado com a delicadeza infantil de um boneco fora do

comum. Na última sentença, também pode ser dita com a variante “quem te pariu, que te

beije no cu”, traz o sentido do seu inconformismo em ser obrigada a assumir o

aleitamento e a responder pela criação indesejada do estranho e pequeno branco.

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Na qualidade de negra nascida no Brasil, ou crioula, a mãe negra já apresentava

certo grau de hibridismo cultural, intensificado a cada geração. A mãe negra dialogava

entre as culturas de dois mundos, o afro e o europeu, interagindo na intimidade da casa-

grande, particularmente, através dos seus herdeiros, em um movimento implícito de

africanização do português e, em sentido inverso, do aportuguesamento do africano

(Castro, 1990, p. 3). O poder impetrado pela língua do dominante aos negros bilíngües,

implicitavam a sua capacidade cognocente e de intercâmbio entre os dois espaços. Como

maioria absoluta da população no Brasil de 1822, totalizando 75% (Castro, 1995, p. 25),

os negros contribuíram nos mais diversos aspectos lingüísticos e socioculturais. No

aspecto da linguagem, introduziu componentes do seu universo simbólico e emocional,

(...) contos populares e cantigas de ninar (...) seres fantasmagóricos, expressões de afeto

e de repúdio, crenças e superstições (idem, p. 33).

A representação social da mãe-preta como um sujeito submisso e avesso às

rebeldias, como figura doce e suave da infância dos colonizadores portugueses e seus

descendentes, atendia aos propósitos de um

processo constante de luta, paciente e corajosa, contra a crueldade brutal de que era duplamente vítima, como mulher e mãe. Desmascarando, portanto, todo o tipo de preconceito contido sob a conotação afetiva que foi dada à alcunha de mãe-preta pelo seu criador, a começar da cor preta que qualifica animais e objetos, é possível revelar e reconhecer a atuação daquela mulher solitária e heróica na História que ela, com carinho, se dedicou a fazer para o Povo Brasileiro, mais por uma tenacidade sobre-humana do que pela comiseração do seu sofrimento dramático, romanceado pela literatura brasileira em prosa e verso. (CASTRO, 1990, p. 4)

1.2.3 – O GÊNERO CANTIGA DE NINAR

As cantigas de ninar ou acalantos compreendem um dos primeiros gêneros para a

maioria das crianças, em diversas partes do mundo, possivelmente surgido no início das

interações da linguagem humana. Este gênero trabalha de modo singular o imaginário, o

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mítico, o lírico, o afetivo, o mélico, o lingüístico, enfim, os elementos socioculturais e

lingüísticos de um povo.

Apesar dos registros da oralidade relacionados à infância apenas terem se

constituído como tal a partir do século XVII, as cantigas de ninar forjaram-se em todos

os tempos nas relações humanas. Uma tradição da oralidade pouco estudada até os dias

atuais. Este é um gênero oral, prioritariamente feminino e doméstico. Há, então, um

círculo de exclusão. As questões a cerca da oralidade foram tratadas no capítulo 1.1 do

presente trabalho. Os itens feminino e doméstico transitam no mesmo campo de

discussão. A representação social projeta no feminino o menor, o menos produtivo, o

secundário, o menos qualificado. O preconceito sexista coabita os espaços sociais ao

longo dos tempos, ora mais explícitos, ora travestidos pelo princípio da igualdade das

minorias. Minoria em relação às relações de força e poder. Em Também mulher, imagem

de Deus (199?), Castro reflete sobre a condição de ascendência da mulher na sociedade:

foi sempre no interior dos canais tidos como apropriados para um tipo determinado de mobilidade social. Isso em outros termos, (...) “conhece o seu lugar”, ou seja, a mulher em ofícios domésticos (as chamadas “prenda domésticas”) ou atividades afins no campo profissional (entre outras secretária, enfermeira, assistente social). CASTRO, 199?, p.1)

Uma imagem construída para delimitar os espaços sociais. Talvez não seja de tal

modo uma surpresa as cantigas de ninar serem um gênero de parcas investigações, assim

como tudo o que está relacionado às ditas minorias, mulheres, negros, idosos, surdos,

índios. A comunicação humana se constitui através dos inúmeros gêneros. Estes, por sua

vez, finitos. Estudo centrado inicialmente na literatura, nas últimas décadas passou a ser

objeto do interesse da Lingüística, com maior foco nos estudos discursivos. Segundo

Marcuschi (2008), os estudos sobre gênero no Brasil podem ser organizados da seguinte

forma:

1) Uma linha bakhtiniana alimentada pela perspectiva de orientação vigotskiana sócio-construtivista (...) Schneuwly/Dolz e pelo interacionismo sócio-discursivo de Bronckart. Esta linha (...)desenvolvida (...) na PUC/SP; 2) Perspectiva (...) de gêneros de

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Swales (...) UFC, UFSC, UFSM e outros pólos; 3) Uma linha (...) sistêmica-funcional (...) de Halliday com interesses na análise lingüística dos gêneros; 4)(...) perspectiva menos marcada por essas linhas e mais geral, com influências de Bakhtin, Adam, Bronckart e autores alemães (...) desenvolvidas na UFPE e UFPB e em parte na UNICAMP e USP. (MARCUSCHI, 2008, p. 3)

Ao trazer o tema gênero para o foco das suas investigações, o pesquisador suíço

Bernard Schneuwly (2004), apresenta-o inicialmente como instrumento psicológico na

perspectiva do interacionismo social de Vigotsky, assim como se apóia nos princípios

bakhtinianos. Schneuwly (2004, cap. 1, p. 25), propõe gênero como instrumento. Explicita

(2004, p. 23-24) os mecanismos do interacionismo social como composto pela tríade: ação/

instrumento/ intervenção. Em leitura para o gênero cantiga de ninar, tem-se, então: o ninar/

a canção/ a performance. O ninar ou acalantar, como resultado do produto socialmente

construído, ao longo das gerações; a canção, instrumento determinador do comportamento

do sujeito sobre o objeto/situação vigente; por fim, a performance, a materialização da

intervenção do instrumento, mediando-lhe a forma e o uso. Continua o autor refletindo a

cerca do instrumento mediador, a partir de Rabardel, que o descreve em dois pontos: o

artefato material ou simbólico (a cantiga de ninar), o elemento de concretização da

atividade proposta, com sua formatação (performance); e o sujeito (a mãe) o qual responde

aos esquemas de possibilidade de uso, uma vez apropriados pelo mesmo.

A apropriação da cantiga de ninar, como tipo relativamente estável, só se dá nas

trocas das esferas sociais, considerando nos sujeitos participantes as suas propostas de

enunciação e a forma como um e Outro interagem, de acordo com os postulados de Bakhtin

(1953/1979, apud Schneuwly, 2004, cap. 1, p. 26). Os gêneros podem ser organizados

como primários e secundários, na concepção bakhtiniana. No caso das cantigas de ninar,

classificam-se como gêneros primários, pois se constituíram em circunstâncias de uma

comunicação verbal espontânea, ao passo que os secundários aparecem em circunstâncias

de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída,

principalmente escrita: artística, científica, sócio-política (Bakhtin 1953/1979, p. 281 apud

Schneuwly, 2004, cap. 1, p. 29). Os gêneros primários possibilitam a instrumentalização da

linguagem na criança, neste contexto, as cantigas de ninar contribuem de modo ímpar.

Pode-se tomar como ilustração de uma cantiga de ninar de gênero secundário, a canção

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Acalanto do Dorival Caymmi (anexo A), pois apresenta uma elaboração complexa, sendo

um acervo da cultura musical brasileira, sem perder as características pertinentes ao gênero,

de modo análogo ao que Leite de Vasconcelos (1907, pp.794-795) apresenta alguns acervos

de Gil Vicente. Como metáfora, Schneuwly (2004, p. 28) considera o gênero como um

“mega-instrumento”, como uma configuração estabilizada de vários sub-sistemas

semióticos (sobretudo lingüísticos, mas também paralingüísticos), permitindo agir

eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação.

Os gêneros são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos

mais variados tipos de controle social e até mesmo de poder. (...) são a nossa forma de

inserção, ação e controle social (Marcuschi, 2008, p.7). Esta relação de força, poder e

controle social se estabelece e se explicita na relação mãe-bebê desde a enunciação dos

primeiros cantos.

Fazendo alusão ao suporte escolhido para fazer a criança para ser acalantada,

além dos braços, há o colo, os berços, os cestos, as cadeiras e as redes, variando de

cultura para cultura. Os suportes organizam práticas sociais, influenciando na expressão

do comportamento humano. Já para Bakhtin seria a voz e os gestos (sinais). Zumthor

acrescentaria o olhar performatizado.

Alguns berços são descritos por Leite de Vasconcelos (1907, pp.800-805) como

embaladeiras (fig. 2) compostas por tábuas de madeira. Este suporte cumpre função

semelhante ao moisés para bebê, quando traz em alguns modelos contemporâneos, a

base curva para embalar os pequenos. Algumas regiões, como o Alentejo, utilizam

móvel (fig. 3) semelhante ao que conhecemos nos dias de hoje, com detalhe para os pés

abaloados. Em Trás-os-Montes, usa-se a canastra (fig.4), que permite ser posta sobre a

cabeça e quando tem um formato que possibilite maior movimentação são chamadas

canastra (ou berço) de verga (fig.5), encontradas nas feiras em Fozcoa.

(Fig. 2) (Fig. 3)

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(Fig. 4) (Fig. 5)

Ini, assim a tribo tupinambá nomeava na língua tupi o que conhecemos hoje por

rede. Em 1500, por Caminha, houve o primeiro registro desta palavra, graças à

semelhança às redes de pescar, segundo Dias (1972). O estudioso relata que no século

XVII, os jesuítas ofereceram ao Conde de Nassau uma rede, dentre outros regalos. De tal

modo impressionou ao Nassau e sua comitiva, que em diversas obras dos pintores Franz

Post e Albert Eckhout a mesma se encontra presente.

Luís da Câmara Cascudo (2003, p.15) em sua obra Rede de Dormir a descreve

desta forma: A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete,

dócil e macia, a forma do nosso corpo. Desloca-se, incessantemente renovada, à

solicitação física do cansaço. A rede colabora com a movimentação dos sonhos.

Elemento da herança indígena, incorporada às tradições da cultura nacional, a

rede de dormir constitui um elemento de referência nas relações da maternação, de modo

singular nas regiões norte e nordeste do país, em suas diversas camadas sociais. Cascudo

(apud Jorge, 1988, p.37) em Dicionário do Folclore cita que em nheengatu, macuru,

significa berço, daí as cantigas de mucuru. A primeira referência ao termo rede data de

1899, no Novo Dicicionário da Língua Portuguesa, de acordo com Houaiss (2001,

p.1807). Confeccionadas originalmente com palhas de árvores, as redes hoje podem ser

encontradas a partir de diversos materiais, como algodão, nylon etc. Uma rede é um

abraço de corpo inteiro.

A cadeira de balanço é outro artefato comumente utilizado para a função do

acalanto. Há um mito americano que atribuiria a Benjamin Franklin a invenção da

cadeira de balanço, entretanto, em sua biografia não há dados confirmando tal

informação. Em Designboom (2008) encontram-se registros do mobiliário em meados

do século XVIII e acredita-se ser derivada dos princípios dos berços com arcos (fig.6) e

dos cavalos de balanço (fig.7). Consta ainda, que a palavra inglesa rocker significou no

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século XV pessoa responsável por balançar o berço e no século 18, um orador que

coloca outras pessoas para dormir, da qual se originaria mais tarde rocking chair

(cadeira de balanço).

(Fig. 6) (Fig. 7)

O uso das cadeiras de balanço no Brasil se deve aos portugueses. Um artefato

que na memória de muitos estão ancoradas lembranças suaves, podendo-se até ouvir o

seu barulho em movimento, em performance, pronto para acolher a quem quer que

chegue. Ainda hoje, elemento fundamental em um quarto de bebê para um acalanto

delicado, à espera da voz da mãe, que alimenta o corpo e a alma. Podem ser só de

madeira, de madeira e palhinha, acolchoadas ou mais populares, feitas com ferro e fios

plásticos coloridos.

Contemporaneamente, em função secundária, o carrinho de bebê também

funciona como outro suporte utilizado para acalentar as crianças. Em muitos casos,

enquanto canta e balança o carrinho para que seu filho adormeça, a mãe exerce outras

atividades.

1.3 – A PESSOA SURDA

Múltiplos recortes foram atribuídos às pessoas surdas ao longo dos anos. Uma

trajetória percorrida podendo ser descrita sob três aspectos: o primeiro deles é o

caritativo, advindo da influência do pós-cristianismo, como segundo apresenta-se o

médico-clínico, onde a concepção de (a)normalidade, da doença, deficiência, da falta e

por último, o da diferença política, pautado nos princípios de constituir-se em uma

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minoria lingüística, da identidade, da alteridade e da diversidade humana. Entende-se

por diferença não uma sinonímia de deficiência, tampouco de diversidade, mas como

construção política e social expressa pelo discurso, assim postulada por Skliar (1998,

p.6) afirmando ser um processo e um produto de conflitos e movimentos sociais, de

resistências às assimetrias de poder e de saber, de uma outra interpretação sobre a

alteridade e sobre o significado dos outros no discurso dominante.

Para o senso comum, as pessoas surdas são denominadas, equivocadamente, por

surdas-mudas ou simplesmente mudas. Isto porque a implicatura do termo mudez e seus

congêneres referem-se à ausência da fala e/ou da voz. Há, então, dois aspectos a serem

discutidos: fala e voz das pessoas surdas. Desconhece-se não somente que a comunidade

surda possua a sua língua, a língua de sinais, como também não a reconhece como uma

língua falada, uma vez que falar é fazer uso de uma língua. A língua de sinais é a língua

natural das comunidades surdas, pertencente à modalidalidade espaço-visual, enquanto

as línguas orais, à modalidade oral-auditiva (Quadros, 1997, p.46). As línguas de sinais,

ao contrário do que uma significativa parcela da sociedade acredita, não são universais,

logo que apresentam todos os parâmetros lingüísticos de qualquer língua oral-auditiva.

Oliver Sacks (1998) registra o pesquisador William Stock, nos Estados Unidos, na

década de 60, como responsável pelos primeiros estudos lingüísticos, no sentido estrito

do termo, acerca das línguas de sinais.

O segundo aspecto a ser observado é a mudez como sinonímia da ausência da voz

nas pessoas surdas. A produção vocal é o resultado da ação dos aparelhos respiratório e

digestório, respectivamente. Em um conceito clínico simplificado, as pessoas surdas são

aquelas com perda da acuidade auditiva, em graus variados. O aparelho auditivo com

suas estruturas é o responsável pela audição. Portanto, não há relação fisiológica entre a

produção da voz e o déficit auditivo. O que geralmente ocorre na sociedade é uma

distorção do conceito de voz, língua e fala, uma vez que o modelo de representação da

“normalidade” encontra-se relacionado ao “seu modo” de expressão da linguagem, isto

é, oral e auditivamente.

Os estudos etnográficos de surdo-mudo, segundo Houaiss (2001, p. 2645) traz

seu primeiro registro em 1858 na obra do Antonio de Morais Silva, na 7ª. edição do

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Diccionario da Lingua Portugueza, ao passo que para sordo há datação do século XIII e

século XIV para surdo, conforme o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua

Portuguesa, de autoria do Antonio Geraldo da Cunha, publicado em 1982. Logo, entre o

registro de um e outro termo há um hiato de seis séculos. Tal constatação,

provavelmente encontrará suporte na necessidade de nomear a ausência não apenas da

audição, como também o fora considerado, a ausência da fala. Esta perspectiva aponta

na direção do surgimento da Filosofia Oralista, em 1880, na Itália, no evento que ficou

conhecido como o Congresso de Milão, onde as línguas de sinais foram proibidas na

maior parte dos países do mundo.

De fato, a ligação do conceito de mudez às pessoas surdas encontra-se no lugar

da negação da diferença. Os referencias hegemônicos de saúde, de perfeição, de

normalidade, mostram-se um continuum na nossa sociedade.

Os termos Surdo e surdez trazem este modo de entender alinhado ao da

pesquisadora Perlim (1998, p.4) é uma marca que identifica nós os surdos em crescente

posição de termos próprios no interesse de gerar poder “para si e para os outros”. Os

surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva. Já as

palavras Surdo e surdo compreendem diferentes modos de conceber a pessoa com

surdez. Ao se fazer uso do “S” para Surdo, implica a referência de identidade de um

determinado grupo nos seus diversos desdobramentos: lingüísticos, políticos, culturais,

antropológicos etc. O termo surdo com “s”, relaciona-se à pessoa com perda auditiva,

todavia, se distancia das questões pertinentes a uma construção identitária. Esta

distinção "s/S" foi feita pela primeira vez em 1972, pelo sociolingüista James

Woodward, mas agora é amplamente compreendida e usada pela maioria dos escritores

no campo (Wrigley, 1996, p. 29).

As pessoas surdas apresentam uma singularidade em detrimento a outras

minorias lingüísticas, uma vez que se encontram no seio de uma língua majoritária, isto

é, crianças surdas nascidas em famílias ouvintes, na maioria dos casos da surdez.

Segundo Skliar (1997, p.128-129), só 4% ou 5% das crianças surdas – segundo as

estatísticas internacionais – nasce e se desenvolve em seus primeiros anos de vida

dentro de uma família com pais surdos. É uma parcela significativa da sociedade que

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coabita os mesmos espaços sociais, todavia, há uma barreira comunicativa entre estes

segmentos: surdos e ouvintes. Barreira esta, evidenciada pela própria modalidade

lingüística, sendo uma espacial-visual e outra oral-auditiva.

As línguas de sinais são línguas espaço-visuais, ou seja, a realização dessas

línguas não é estabelecida através dos canais oral-auditivos, mas através da visão e da

utilização do espaço (Quadros,1997, p.46). Ser surdo ganha, então, uma conotação de

um estrangeiro em seu próprio país.

O reconhecimento legal das línguas de sinais pode ser considerado

historicamente como uma conquista recente das comunidades surdas. No Brasil, apenas

em 2002, com a aprovação da Lei Federal nº 10.436 de 24 de abril, deu-se a

oficialização da Língua Brasileira de Sinais e sua regulamentação com o Decreto nº

5.626 de 22 de dezembro de 2005.

Pesquisas no campo da lingüística sobre as línguas de sinais contam com

relevantes contribuições dadas por Brito (1993,1995), Felipe (2001), Quadros (1997) e

Quadros e Karnopp (2004), a partir da década de 80. Em outros campos, como a

educação de surdos em estudos sócio- antropológicos temos Skliar (1997, 1998, 1999),

Skliar e Quadros (2000) e ainda os estudiosos surdos no Brasil, tais como Perlim (1998),

Perlim e Miranda ([2003], 2008), Rangel (2006), Strobel (2006, 2007).

A marginalização de uma língua marcada pela ignorância com fulcro da

intolerância ouvintista tentou calar os falares surdos durante séculos, não fossem os

segmentos de resistência organizados socialmente por esta comunidade em manter a sua

língua e a sua cultura. O ouvintismo pós-colonialista, termo oriundo dos estudos de

Carlos Skliar (1997), lingüista e pesquisador da Educação, imprime um modelo de

normalidade às comunidades surdas, desconsiderando-as nas suas diferenças

lingüísticas, culturais, estéticas, históricas, através da imposição da língua majoritária, a

oral-auditiva, e suas implicações sócio-culturais e políticas. Os princípios da alteridade e

da diversidade humana nos mostram os surdos como sujeitos visuais e, como tal,

apresentam um modo particular de apropriação de mundo.

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Há aqui a possibilidade de uma contribuição para o desmitificar do julgo do

preconceito e da desinformação os falares surdos como incapazes, reduzidos, simplórios,

concretos.

Hoje, há um empoderamento dos povos surdos nos mais diversos setores da

sociedade e uma ruptura com os antigos paradigmas, principalmente com o

reconhecimento e respeito a sua língua. Wrigley (1996) discute a questão das definições

e limites da identidade e do conceito de etnia surda. Segundo o autor, como um processo

pertinente a qualquer grupo no qual há o movimento de resistência aos elementos

opressores, busca-se as similitudes e os aspectos excludentes que caracterizariam o

pertencimento ou não a um determinado grupo. Um dos elementos de maior exercício de

poder é o lingüístico. A partir dele e seus desdobramentos, o conceito de cultura, de

identidade e de etnia se constituem. Além dos Surdos e dos surdos há ainda navegando

neste meio os sujeitos ditos periféricos, no falar de Wrigley: os pais ouvintes, os filhos

ouvintes ou CODA4, os educadores de surdos, os tradutores/intérpretes.

Como ilustração do exposto por Wrigley, Castro (1965, pp. 41-55) relata

condições de similitude relativas a duas mulheres negras descendentes de escravos

africanos, que retornam à capital da Nigéria, Lagos, em 1962, como membros da

“Brasilian Community”, assim denominada por ser constituída em sua quase totalidade

por descendentes de brasileiros. A brasilidade inerente aquele grupo em terras africanas,

explicita-se no uso do português e suas tradições, tais como o catolicismo, utilizado

como estratégia para evitar a reabsorção pela cultura africana, e a arquitetura. Outro

fator de identidade jaz no sentimento de inconformação por não mais estarem em seu

país, por força da vontade dos avós das senhoras em pesquisa, sem o seu consentimento.

Mesmo passadas décadas, os membros daquela comunidade permaneciam com a língua

de sua referência identitária. Não está posto em discussão quaisquer juízos de valor em

relação à comunidade afro-descendente, mas analisar as estratégias que a mesma lançou

____________________ 4 CODA é a sigla em língua inglesa, Children of Deaf Adults, usada para identificar pessoas ouvintes

filhas de pais surdos. Podendo ser traduzido por filhos de surdos adultos ou ainda por filhos de pais surdos. (SKLIAR, C.; QUADROS, R., 2000, p. 14)

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mão, no intuito de resistência para a manutenção de sua identidade escolhida.

Movimento de exclusão e de inclusão, pela força motriz da língua: português sim, ioruba

ou inglês não. Eles formavam o povo brasileiro.

A surdez na perspectiva da diferença política compreende a língua como uma

construção social produzida historicamente pela humanidade. O modelo sócio-

antropológico surge a partir da década de 60, onde dois aspectos provocaram

antropólogos, sociólogos e lingüistas relacionados à surdez. Por um lado, o fato de que

os surdos formam comunidades cujo fator aglutinante é a língua de sinais, argumenta

Skliar (1998, p.140-141) e prossegue com o segundo aspecto, onde há a confirmação de

que os filhos surdos de pais surdos apresentam melhores níveis acadêmicos, assim como

uma identidade surda constituída. Percebe-se, então, o fracasso da concepção dos

ouvintes acerca dos surdos e da surdez, uma vez que a língua de sinais demonstra-se

uma unidade de resistência, de poder e de representação das comunidades surdas.

O conceito de povos surdos ganha concretude no Brasil com os estudos de

Strobel (2006) e traz a colaboração das identidades surdas defendida por Perlim (1998).

Strobel (2006, p.17) diferencia o conceito comunidade surda e povo surdo. Para a autora,

o primeiro refere-se aos surdos e ao conjunto dos atores que participam e compartilham

os mesmos interesses, presentes em associação de surdos, federações de surdos, igrejas

e outros. Quanto ao povo surdo, afirma ser um

grupo de sujeitos surdos que tem costumes, história, tradições em comuns e pertencentes às mesmas peculiaridades, ou seja, constrói sua concepção de mundo através da visão, isto é, usuários defensores do que se diz ser povo surdo, o mesmo seria o grupo de sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por um código de formação visual independente do nível lingüístico. (STROBEL, 2006, p.18)

Não se trata de uma bandeira a mais em tantas excluídas em/por nossa

organização social. A bandeira da comunidade ou dos povos surdos reverbera no

princípio do direito à diferença. Diferença, que deve ser respeitada, precisa ser

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entendida não como uma construção isolada e sim como construção intercultural, no

dizer de Strobel (2006, p. 21).

1.3.1 – A VEZ DO CANTAR SURDO

Pensar a pessoa surda íntegra é pensá-la em um modo próprio de ser, sem valorar,

por ser pertencente à unidade humana. E no conjunto desta pessoa está, dentre outros

elementos, a sua voz e o seu cantar. Voz do surdo, cantar surdo?

Ao se ingressar em uma aula de canto, a primeira tarefa é aprender a respirar.

Inspiração. Pausa. Expiração. Pausa. Um movimento contínuo automático, mas passível de

coordenação voluntária. Ar que se desloca, alterando os batimentos cardíacos. Emoção que

desloca o ar e pulsa o coração. O som evocado pelo ato de expirar, movido pela emoção. Se

cantar é respirar – e, portanto, seu ritmo e tonalidade expressam o nível de ansiedade e o

estado das emoções de quem canta – cantar equivale a outras “expirações”, como o riso e

o choro (Jorge, 1988, p. 192).

O cantar surdo extrapola os conceitos convencionais e eruditos. Rompe paradigmas,

isto é, quebra com modelos engessados pela valoração de uma ótica limitadora do belo, do

certo, do agradável, do harmonioso. Uma das relações mais imperiosas no que concerne à

música e ao cantar, relaciona-se às figuras dos Anjos. A eles se atribuem a arte de

(en)cantar. Quem ousaria competir com um mito litúrgico? Apenas os iluminados por eles

ou os que “cantam como anjos”. Leite de Vasconcelos (1907, p.859) chamou a atenção para

a reiteração da máxima da voz e canto dos anjos pelas artes plásticas, quando os

representou freqüentìssimamente com harpas, rabecas e outros instrumentos, ou em

posição de cantarem, assim como na poesia literária, afirmando que os fatos são tão

conhecidos que não vale a pena fazer citações (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 860).

As pessoas surdas cantam com suas inspirações e expirações, com suas

experiências, com suas emoções, com as suas pulsações, com seus falares, com suas

vozes. Cria o seu próprio ritual musical ao embalar seus pequenos. Um ritual repleto de

sentimento, autêntico por natureza, pois não há referências sobre o que ou com que

entonação as mulheres ouvintes cantam aos seus filhos quando os ninam. Cantam com as

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vozes e cantam com as mãos, de modo consecutivo e harmônico. Os signos se

engendram em uma linguagem de encantamento, cumprindo com excelência todo o

ritualismo mágico do ninar. Mauss disse:

Eis porque dizemos que não há verdadeiramente ritos mudos, pois o silêncio aparente não impede este encantamento que é a consciência do desejo. Deste ponto de vista, o rito manual é apenas a tradução desse encantamento mudo; o gesto é um signo e uma linguagem. Palavras e atos equivalem-se absolutamente; por isso vemos que enunciados de ritos manuais apresentam-se como encantamentos. Sem algum ato físico formal, só por sua voz, por seu sopro, ou mesmo por desejo, um mágico cria, destrói, expulsa – faz todas as coisas. (MAUSS, apud JORGE, 1988, p.193)

A este ritual mudo, leia-se, sem o uso da voz/ língua. Retomando a afirmação dos

sertanistas Villas-Boas descrita na presente pesquisa (p. 32), entre as tribos do Alto

Xingu não há registros do uso da fala cantada e, sim, de um chiado sibilado como de

uma cobra. Todavia, a Lei da tribo reconhece o direito ao olhar mútuo durante todos os

primeiros anos da criança, (...) talvez se possa deduzir que o olhar mútuo prescinde da

simbolização pela linguagem articulada (Jorge, 1988, p.39). O som vocalizado

associado ao olhar em ritual acalantador. Um encantar da resistência ao sono dos

pequeninos. Um canto sem cantar. A estes bebês, o som da voz de suas mães significam,

do mesmo modo que o canto das mães surdas significam para seus filhos.

Há uma outra perspectiva na leitura para o cantar não-ouvinte, não-erudito, não-

colonizador. O canto surdo não necessita da autoridade ouvinte para existir. Ele está na

história de muitas famílias de e com pessoas surdas. Equivalente às experiências das

pessoas ouvintes, não são todas as mães surdas que ninam com suas vozes. Para tanto,

deve-se considerar alguns aspectos: uma avaliação negativa e frustrada no uso da própria

voz, a partir da perspectiva de aproximação do modelo ouvinte, imposta pela filosofia

oralista; o desejo de não mais usar a voz em oposição política aos cem anos de silêncio,

isto é, de proibição da livre expressão nas línguas de sinais em quase todos os países do

mundo; a não identificação com o processo do acalantar vozeado, algumas vezes apenas

embalado.

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A respeito da imposição ao surdo do modelo vocal ouvinte, o depoimento do ator

e contador de histórias Bernard Braga, no vídeo For a deaf son (1994), relata uma

experiência pessoal da sua infância. Ele e seus colegas de classe eram repreendidos pelo

modo como davam risadas. A professora lhes disse ser desagradável para os ouvidos das

pessoas normais. Obrigava-os a seguir uma seqüência de inspirações e expirações com

as mãos sobre o abdômen, posteriormente, introduzir o som há, há, há, há (neste

momento, Braga exprime um ar tonto voltando o rosto para os lados com olhar vago, e o

“sorriso” no rosto). O riso saía do abdômen e não da mente, disse Braga. E prossegue:

Então ela dizia: o som está bonito, tão agradável que nenhum ouvinte iria saber que são

surdos. Braga ainda relata agressão física a um colega que não executava

satisfatoriamente o treinamento oral. A este conjunto caricatural de movimentos, o seu

modelo ouvinte chamou de “sorriso adequado”.

Em analogia ao proposto por Zumthor (1993, p. 158) sobre a canso (gênero

composicional do trovador medieval), está a produção vocal da pessoa surda: a voz é

pura, gesto sonoro que emana das pulsões primordiais; prolonga, semantizando a cada

dia, o grito do nascimento. É a linguagem que gera o relato. E sua narrativa exige a

constituição de actantes, eu, o objeto, o Outro que fala de nós. Acrescenta o autor:

O discurso poético valoriza e explora um fato central, no qual se fundamenta, sem o qual é inconcebível: em uma semântica que abarca o mundo (...), o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo; o que é verdade na ordem lingüística, na qual, segundo o uso universal das línguas, os eixos espaciais direita/esquerda, alto/baixo e outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo. É por isto que o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido. O mundo tal como existe fora de mim, não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível. (ZUMTHOR, 2000, p.90)

Identidades múltiplas para o canto e o acalanto. (Re)conhecer, conviver e

respeitar os diferentes modos da linguagem, proporciona aos representantes dos grupos

majoritários um enriquecimento de experiências. A voz da pessoa surda não é a da

ouvinte, nem precisa ser. O modo de apreensão do mundo por via da visão pelo ouvinte,

não precisa ser igual ao do surdo. A singularidade posta está na diferença. Zumthor

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(1993, pp. 149-150) fala sobre a condição de humanidade que rege a todos: a voz dos

portadores de poesia não cessa (como voz mesmo e o que quer que ela diga) de

proclamar essa identidade.

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CAPÍTULO II

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Neste capítulo consta o detalhamento dos procedimentos metodológicos

aplicados à presente investigação. A organização do mesmo descreve as etapas

percorridas para a execução da pesquisa, desde sua fase inicial até a fase de tratamento

dos dados.

Para a presente investigação, optou-se pela utilização de pesquisa de campo com

metodologia mista, com abordagens qualitativas.

2.1 - AS CONDIÇÕES DA PESQUISA

O enfoque desta investigação consta na análise do gênero cantiga de ninar com

pessoas ouvintes e pessoas surdas em suas performances. Cabe reforçar que não se trata

de uma análise oposicional. Refuta-se a perspectiva do modelo ouvinte como

“normalidade”, trazendo para tanto o posicionamento teórico pautado no respeito à

diferença humana, por conseguinte, da pessoa surda como sujeito da diferença,

constituído caracteristicamente por sua visualidade e sua cultura.

Propôs-se a análise de dados que elucidem o seguinte questionamento:

a) haveriam aspectos convergentes e divergentes no gênero cantiga de ninar de

mulheres ouvintes e de mulheres surdas em suas performances?

E como questionamento secundário:

b) qual o significado do ninar surdo para um ouvinte filho de pais surdos

(CODA)?

Do ponto de vista operacional a pesquisa foi estruturada com as seguintes etapas:

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a) Captação da imagem de duas mulheres ouvintes em performance de acalanto;

b) Captação da imagem de duas mulheres surdas em performance de acalanto;

c) Captação da imagem de uma mulher ouvinte CODA com depoimento;

d) Produção e edição do vídeo, adequando-o aos objetivos propostos.

2.2 - A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

Dentre o amplo repertório das cantigas de ninar, respeitando o critério da

seletividade, a canção Neném quer dormir, de domínio público, foi a escolhida para a

efetivação deste trabalho. Assim como em diversas canções populares, esta cantiga

também apresenta algumas variações. A variante postulada para o trabalho em questão

será denominada por variante 1 ou de referência. Esta e as demais variantes recolhidas

encontram-se registradas no anexo A.

O corpus está composto pela cantiga de ninar Neném quer dormir cantada por

duas mulheres ouvintes e o ninar de duas mulheres surdas e suas performances. Conta,

ainda, com o depoimento de uma mulher ouvinte, sobre sua experiência como CODA,

com suas apreciações sobre o cantar surdo e suas repercussões, e no uso da voz ao ninar

crianças surdas.

As coletas foram realizadas em ambientes residenciais, a fim de garantir uma

situação mais próxima do cotidiano. Para as quatro performances com o acalanto,

realizou-se uma intervenção intencional, uma vez que as imagens foram produzidas para

fins didáticos. As imagens foram coletadas na região metropolitana do Recife, no

segundo semestre de 2008.

2.3 - SOBRE OS SUJEITOS DA PESQUISA

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A pesquisa apresentou um instrumento para a coleta de dados: a produção de um

vídeo. Como critério de seleção para grupo das pessoas surdas participantes da

investigação, optou-se pelas que se auto-definissem identitariamente como sujeitos

surdos. Este critério se apóia em dois dos principais elementos de referência da

constituição de uma identidade surda, como sendo o uso da língua de sinais e como um

sujeito visual de participação ativa na comunidade surda. As pessoas auto-definidas

como deficientes auditivas não apresentam estas características, portanto, não possuem

perfil compatível com o corpus desta investigação, que traz por princípios a identidade

ouvinte e a identidade surda (Perlim, 1998).

Entretanto, para os sujeitos surdos que participaram da pesquisa, a surdez foi

descrita clinicamente, a fim de eliminar quaisquer dúvidas da relação estabelecida pelas

informantes em relação ao seu uso da linguagem oral, uma vez que, além de falarem em

sinais naturais e LIBRAS, também fazem uso da linguagem oral. Dos participantes do

vídeo oito sujeitos colaboraram diretamente com a pesquisa. Das oito pessoas, três são

crianças e cinco adultos, onde uma participa com depoimento. No total das mulheres que

acalantam, duas são ouvintes e duas são surdas.

A constituição identitária de AS1 e AS2, segundo manifestação das informantes,

é de sujeito surdo. Quanto à caracterização da surdez, os sujeitos apresentam etiologia de

natureza congênita hereditária, do tipo neurossensorial bilateral de grau profundo, com

período de instalação pré-lingüística. São falantes de sinais naturais e Língua Brasileira

de Sinais concomitantemente e nunca participaram de terapia de reabilitação oral. A

família das informantes é formada em quase cinqüenta por cento por pessoas surdas,

portanto, período de aquisição da língua de sinais apresenta-se adequado.

A caracterização dos sujeitos da pesquisa quanto à faixa etária e escolaridade

encontram-se descritas abaixo:

• Adultos ouvintes: AO1 - 69 anos, Ensino Fundamental I incompleto; AO2 -

52 anos, Ensino Fundamental I incompleto; AO3 - 31 anos, Ensino Médio

incompleto.

• Adultos surdos: AS1 - 62 anos, não alfabetizada; AS2 - 58 anos Ensino

Fundamental I incompleto;

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• Crianças ouvintes: CO1 - 04 meses; CO2 - 08 meses; CO3 - 04 - anos,

Educação Infantil;

2.4 - INSTRUMENTOS E COLETA DOS DADOS

Os instrumentos utilizados com o objetivo da coleta e formação do banco de

dados, conforme já citado anteriormente, foram a captação das imagens e posterior

produção de um vídeo, contando com a participação direta de mulheres ouvintes e

mulheres surdas. A transcrição do vídeo encontra-se presente no corpo do trabalho.

A primeira fase desta pesquisa contou com o levantamento das participantes

ouvintes e surdas para a produção do vídeo. A partir dos dados colhidos em vídeo,

elaborou-se as análises. Solicitou-se às duas colaboradoras ouvintes que embalassem as

crianças, cantando a canção variante de referência Neném quer dormir (anexo A).

As imagens foram coletadas em um final de semana, devido aos equipamentos só

poderem ser disponibilizados para empréstimo neste período. O primeiro sujeito a ser

filmado foi AO2 com a participação de CO2, em uma residência de bairro popular na

cidade do Recife-PE. Não há consangüinidade entre AO2 e CO2, a qual foi convidada

através da sua mãe a participar da filmagem.

A fotografia do vídeo foram produzidas pela pesquisadora, como uma leitura das

performances das cantigas de ninar vivenciadas nas comunidades de classes populares

de uma parcela significativa do povo brasileiro, contendo elementos que o pudesse

representar, tais como: a cadeira de balanço de ferro e fios plásticos coloridos, uma

antiga máquina de costura ainda em uso, um café preto em copo americano, tendo por

fundo uma parede pintada sem reboco. O espaço utilizado foi a sala de estar. Os sons

incidentais foram mantidos, buscando a maior aproximação de uma vivência real.

Para que AO2 e CO2 se sentissem confortáveis mutuamente, a captura das

imagens só foi feita após um tempo de adaptação à situação do acalanto. O mesmo não

foi necessário com a dupla AO1 e CO1, pois entre elas há consangüinidade e contato

constante. Mesmo tendo havido uma produção para a elaboração do vídeo, este contém a

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fidedignidade do objeto em estudo, uma vez que o acalantar deu-se de modo natural. A

resposta a esta questão pode ser verificada com o adormecer tranqüilo de CO2, embalada

pela canção e pelo acolhimento de AO2.

A segunda etapa consta da coleta das imagens das informantes AS1 e AS2, em

outro bairro popular, situado na cidade do Paulista, localizada na Região Metropolitana

do Recife-PE. Para as colaboradoras surdas, a solicitação referiu-se não a canção da

música em português, mas que ninassem de modo similar ao que acalantavam seus

familiares quando bebês. Nestas filmagens não foi possível a presença de crianças em

idade de acalanto. Com a ausência de um bebê real, propôs-se o cancelamento da coleta

de dados, contudo, as colaboradoras afirmaram não haver problema e sugeriram fazer

uso de uma boneca envolta em uma manta, sendo aceito de pronto pela pesquisadora. As

imagens foram coletadas na varanda (ou terraço) de uma residência, tendo por suporte

uma rede de algodão. Como tela de fundo há uma planta e uma poltrona infantil.

A forma elocutória de AS1 e de AS2 é composta pelo uso de sinais naturais e

pela LIBRAS. Na situação de acalanto, além destas duas expressões da linguagem

espaço-visual, as informantes também fizeram uso da linguagem oral espontânea. Para

fins de transcrição fidedigna dos dados, contou-se com a participação da pesquisadora

do presente trabalho e de um membro da família das informantes surdas, também

tradutor e intérprete da LIBRAS. Pode-se constatar ao final da produção do vídeo tanto

com AS1, quanto com AS2, resultado com vasta produção lingüística, potencializada por

uma entrega poética e emocional de ambas as informantes.

A próxima etapa contou com a participação de AO3 com CO3. Neste caso, não

se trata de uma performance de acalanto, mas de um depoimento de uma CODA,

narrando suas experiências no lugar de alguém que experienciou ser ninado por pessoas

surdas e suas apreciações a respeito da temática. O espaço físico e o suporte do acalanto

utilizado para a coleta das imagens foram os mesmos de AS1 e AS2. Não houve

intervenções quanto aos elementos presentes na cena. O depoimento de AO3 deu-se em

situação de acalanto, apenas com o embalar a rede. Em um dado momento, CO3

demonstra-se inquieto e AO3 o ajuda a descer da rede, continuando o seu relato.

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As imagens do vídeo encontram-se distribuídas da seguinte maneira: CENA 1 -

apresentação narrada pela pesquisadora. Como pano de fundo encontram-se imagens de

AO-1 (adulta/ouvinte) em performance com CO-1 (criança/ouvinte) e a canção Neném

quer Dormir cantada também pela pesquisadora; CENA 2 - performance de AS-1

(adulta/surda) em situação de simulação de um bebê. Como suporte há uma rede; CENA

3 - performance de AO-1 (adulta/ouvinte) com CO-1. (criança/ ouvinte). O suporte

utilizado é uma cadeira de balanço; CENA 4 - performance de AS-2 (adulta/surda) em

situação de simulação de um bebê. Há uma rede utilizada como suporte; CENA 5 -

performance de AO-2 (adulta/ouvinte) com CO-2 (criança/ ouvinte). A cadeira de

balanço é o suporte para o acalanto; CENA 6 - performance e depoimento de AO-3

(adulta/ouvinte/CODA) com CO-3(criança/ouvinte). O suporte para esta cena é uma

rede; CENA 7 - conclusão pela pesquisadora, contendo o mesmo pano de fundo da cena

1. Apresentam-se frases de Zumthor e Barthes.

Para fins didáticos, o depoimento da informante AO3 se encontra dividido em

seis blocos definidos da seguinte forma: bloco 1 – apresentação; bloco 2 – o ninar surdo:

a intolerância, o aconselhamento, a voz; bloco 3 – o aconchego, a mélica; bloco 4 –

ninar ouvinte e ninar surdo; bloco 5 – o sujeito surdo; bloco 6 – surdo: sujeito visual.

A última etapa de coleta das imagens realizou-se em outro bairro popular, ainda

na cidade do Paulista, onde foi possível registrar as imagens de AO1 e CO1 em situação

de acalanto. Os elementos de composição da cena não foram manipulados, apenas

alterou-se a posição da cadeira de balanço, visando um melhor enquadramento. O

suporte material do acalanto também constou de uma cadeira de balanço de ferro com

fios plásticos. AO1 posicionou CO1 verticalmente, abraçando-a com os dois braços. Por

já ter certo grau de autonomia, devido à sua idade (oito meses), CO1 se reposicionou de

modo a sentir-se mais confortável, ficando de costas para AO1, apoiada no braço direito

do adulto. A razão pela qual o sujeito que teve a sua performance coletada inicialmente

não receber a numeração AO1 e sim AO2, deve-se ao fato da informante denominada

neste trabalho por AO1 ser a fonte de recolhimento do objeto em estudo.

A fase da edição das imagens contou com a colaboração voluntária de

profissionais da área, tendo a direção da presente pesquisadora. Como critérios para a

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edição foram observados tempos equivalentes em suas performances para todas as

informantes e apenas para AO1 e AO2, suas performances mais significativas. O critério

do tempo teve por referência as performances de AS1 e AS2. A pós-edição resultou no

material que totaliza o tempo de quatorze minutos. Um novo vídeo em formato reduzido

foi elaborado a fim de apresentação à banca examinadora, uma vez que as imagens

poderão expressar os elementos do corpus que fogem às melhores descrições e análises.

2.5 - TRANSCRIÇÃO DOS DADOS

Os dados coletados serão transcritos observando os aspectos relativos aos

informantes surdos e aos informantes ouvintes.

Quanto aos informantes surdos, a transcrição da Língua Brasileira de Sinais

(LIBRAS) e dos sinais naturais utilizados nas imagens do vídeo em situação de acalanto,

apóia-se em convenções lingüísticas utilizadas por Tanya Felipe (2001). Para tanto a

pesquisa serve-se do Sistema de Notação em Palavras (SNP), o qual aproxima a

representação dos sinais por meio de palavras escritas da modalidade oral-auditiva do

país (idem, p. 21). Além da língua de sinais, em alguns momentos os sujeitos fizeram

uso da linguagem oral natural e da linguagem oral natural cantada.

Em relação aos informantes ouvintes, a modalidade oral da Língua Portuguesa

será transcrita para a modalidade escrita.

Para todos os sujeitos, será descrita a linguagem em seu conceito mais amplo, isto

é, contemplando o universo constitutivo da comunicação em toda a sua performance, em

todas as formas que o próprio ser humano utiliza para comunicar e expressar idéias e

sentimentos além da expressão lingüística (expressões corporais, mímica, gestos etc)

(Quadros, 2004, p.8)

Considera-se para fins desta pesquisa por linguagem oral natural, a comunicação

utilizada por pessoas surdas pré-lingüísticas, de perda sensorial de grau profundo, a

emissão de pequenas cadeias sonoras significativas adquiridas apenas pela observação

da oralidade das pessoas ouvintes, sem nunca terem sido submetidas à terapia

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fonoarticulatória. A linguagem oral natural nas pessoas surdas, geralmente, é

compreendida pelas pessoas ouvintes do seu convívio pessoal e/ou doméstico. Os

episódios de uso da linguagem oral natural em estudo referem-se aos momentos do

acalanto.

Cada evento enunciado apresenta a identificação do sujeito da pesquisa, e a

indicação da modalidade de língua utilizada. Zumthor (1993) recorda a limitação natural

em se deslocar uma obra, entendendo-se como o que é poeticamente comunicado, aqui e

agora, (...) a totalidade dos fatores da performance (p.220) para um outro suporte,

afirmando que o que tenho diante dos olhos, impresso ou manuscrito, é apenas um

pedaço do tempo coagulado no espaço da página ou do livro (p.221).

SISTEMA DE NOTAÇÃO SIMPLIFICADO

Como forma de notação da modalidade de língua espaço-visual, este estudo

apresenta uma compilação do Sistema de Notação em Palavras (SNP) (Felipe, 2001, pp.

21-23) e do Sistema de Notação Simplificado apoiado nos estudos de Quadros

(Brochado, 2003, pp.123-126).

LIBRAS REPRESENTAÇÃO EM SNP/SNS

1. Sinal simples. 1. Itens lexicais da Língua Portuguesa.

Ex.: CASA; ESTUDAR; CRIANÇA

2. Sinal composto. 2. Palavras separadas por hífen.

Ex.: CORTAR-COM-FACA “cortar”;

QUERER-NÃO “não-querer”

3. Sinal composto por dois ou mais sinais.

3. Palavras separadas pelo símbolo ^.

Ex.: CAVALO^LISTRAS “zebra”

4. Datilologia (alfabeto manual). Usada para nomes próprios ou outras palavras que não possuam sinal.

4. Palavra separada por hífen, letra por letra.

Ex: J-O-Ã-O; A-N-E-S-T-E-S-I-A

5. Sinal soletrado (soletração rítmica), por empréstimo da LP.

5. Soletração total ou parcial em itálico.

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Possui movimento próprio, podendo apresentar todas as letras ou parte delas.

Ex.: R-S “reais”; N-U-N-C-A.

6. A) Gênero – não apresenta sinal próprio.

B) Se o contexto exigir, usa-se o sinal de HOMEM ou MULHER posposto.

A) Para marcar a ausência da desinência de gênero, usa-se @.

Ex.: AMIG@ “amiga ou amigo”, FRI@ “fria ou frio”

B) Ex.: AMIG@ HOMEM “amigo”

7. Traço não-manuais: expressões facial e corporal simultâneos ao sinal.

7. A) Tipo de frase: uso simplificado por sinais convencionais das língua orais-auditivas, ou seja . ! ? ?!

B) Advérbios de modo ou um intensificador sobrescrito, em negrito :

interrogativa exclamativo muito

Ex.: NOME; ADMIRAR; LONGE

C) Topicalização: OSV (objeto-sujeito-verbo), elevação de ambas as sobrancelhas. Uso de uma linha acima do item ou da frase, completada por “t” no final do traço.

_____t

Ex.: CASA, MARIA IR.

8. Verbos com concordância verbal (pessoa, coisa, animal), através de classificadores.

8. Os classificadores serão representados pelas letras CL, em caixa alta, seguidos de dois pontos e a configuração de mão. Ex.: ANDAR-PARA-LÁ PARA-CÁ CL:V

9. Verbos com concordância de lugar ou número-pessoal

9. Uso do movimento direcionado, em subscrito.

A) Variável para lugar:

i = ponto próximo à 1ª pessoa

I = ponto próximo à 2ª pessoa

K e k’ = ponto próximo à 3ª pessoa

e = esquerda

d = direita

B) Pessoas gramaticais: dual, trial, quatrial, plural

Ex.:

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1s, 2s, 3s = 1ª, 2ª ,3ª pessoas do singular

1d, 2d, 3d = 1ª, 2ª ,3ª pessoas dual

1p, 2p, 3p = 1ª, 2ª ,3ª pessoas do plural

1sDAR2s “eu vou dar para você”; 2sPERGUNTAR3p “você pergunta para eles/elas; KdANDARk’e “andar da direita (d) para a esquerda (e).

10. Não há desinência para o plural 10. Pode-se usar a repetição do sinal, aumentar a tensão ou alongar o movimento. Representada por uma cruz no lado direito sobrescrito.

Ex.: MUIT@ “muito(s), muita(s); ÁRVORE+ “muitas árvores”

11. Sinal feito com uma das mãos ou dois sinais feitos pelas duas mãos simultaneamente.

11. Registra-se um abaixo do outro, com a indicação das mãos: direita (md) e esquerda (me).

Ex.: IGUAL(md)

IGUAL (me)

pesso@-muit@ANDAR(me)

pesso@EM PÉ (md)

Para fins didáticos, foram utilizadas as seguintes convenções afim de notação

anteriores a cada enunciação: Língua Brasileira de Sinais (LS) e sinais naturais (SN):

como exposto no quadro acima; linguagem oral natural (LON) e linguagem oral natural

cantada (LOC). Quando simultânea ao uso da LS ou SN, sobrescrito em itálico,

conforme Brochado (2003, p.126); para qualquer evento de comunicação, as

performances encontram-se descritas entre parênteses; pausas [PAUSA]; e para

enunciação não compreendida usa-se (...) (Brochado, 2003, p.126). Para a marcação de

expressões não-manuais, além das contempladas nos estudos acima, a pesquisadora fará

uso de expressões utilizadas em bate-papo pela internet, assim como descrições

detalhadas, quando necessário. Por exemplo: para boca arqueada :( ; para sobrancelhas

elevadas e boca arqueada <:( ; para sobrancelhas elevadas, boca arqueada, com a língua

para fora <:p ; expressão de choro :’( . A direção do olhar para marcação do sujeito e

todas estas transcrições não-manuais encontram-se em sobrescrito e negrito.

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Para a transcrição dos sinais naturais, primeiro segue sinal efetuado e entre

parênteses o sinal oficial da LIBRAS. Será utilizada imagem da configuração de mão

que no contexto não seja sinal na LIBRAS.

TRADUÇÃO DA LIBRAS PARA O PORTUGUÊS

Para possibilitar uma leitura dos dados a partir de um outro instrumento, optou-se

pela tradução da língua de sinais para a LP. A tradução-interpretação pode ser executada de

duas formas: simultânea ou consecutiva. Consoante a Quadros (2004, p. 9 e 11), o

profissional tradutor/intérprete atua na interação entre línguas. Na tradução há a presença

da escrita na língua fonte, ou seja, a primeira a ser recebida, e/ou na língua alvo, a língua

destinatária. Na interpretação, o processo da língua fonte para a língua alvo envolve as

línguas faladas/sinalizadas, ou seja, nas modalidades orais-auditivas e visuais-espaciais

(idem). Na tradução e interpretação simultânea, isto é, concomitantemente. Isso significa

que o tradutor-intérprete precisa ouvir/ver a enunciação em uma língua (língua fonte),

processá-la e passar para a outra língua (língua alvo) no tempo da enunciação (idem,

p.11).

Na tradução e interpretação consecutiva, o profissional atua em tempos diferentes,

ou seja, após cada enunciação. É possível fazê-la em tempo real ou a posteriori. No tocante

a esta pesquisa, as imagens foram captadas e posteriormente interpretadas. Contou com o

trabalho de duas profissionais experientes, sendo uma delas qualificada também em sinais

naturais. Com fins de simplificação, não se optou pela transcrição fonética da LON. Neste

caso, usa-se a representação grafo-fônica.

TRANSCRIÇÃO DO PORTUGUÊS ORAL

Esta transcrição refere-se ao depoimento da informante ouvinte AO3, uma vez

que AO1 e AO2 apenas cantam a cantiga de ninar. A transcrição da Língua Portuguesa

oral para a modalidade escrita, conta com alguns dos princípios descritos acima:

performances descritas entre parênteses; pausas [PAUSA]; enunciação não

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compreendida usa-se (...). No caso de prolongamentos e hesitações os mesmos estão

representados pela repetição do grafema.

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CAPÍTULO III

A Análise

3.1 – A CANÇÃO

Neném quer dormir, cantiga de ninar de domínio público, incorpora a tradição de

maternação doce, ao mesmo tempo lamuriada ao ter que deixar seu pequeno amado para

o sono o embalar sozinho.

Neném quer dormir (variante 1 ou variante de referência)

Vai dormir neném,

Eu tenho o que fazer

Vou lavar, vou engomar

As roupinhas pra você

As roupinhas do neném

Não se lava com sabão

Se lava com lírio branco

Água do meu coração

A, a, a, a, a...

Neném quer dormir!

Esta obra foi recolhida em 2004 de uma senhora nascida no agreste da Paraíba e

adotada na juventude por Pernambuco, com a qual foi ninada e ninou seus filhos e, hoje,

seus netos. As cantigas de ninar perpassam as gerações, percorrendo o mesmo trajeto de

todas as expressões da oralidade. Como tal, a presença de variantes torna-se previsível.

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Da origem da cantiga de ninar analisada, além das quatro variantes oriundas de

uma mesma informante (ver anexo A), registram-se outras cinco em língua portuguesa,

recolhidas no Brasil de Bom Retiro e Pari (SP), Propriá (SE) e Minas Gerais; em

Portugal, de Valpaços; e duas na Espanha de Burgos e de Salamanca. Totalizando onze

variantes. Sobre a presença de variáveis de uma mesma canção em língua espanhola,

deva-se, talvez, graças à proximidade geográfica e/ou aos períodos de ocupações

relatados pela história. Leite de Vasconcelos (1907, p.919) conclui que outras

semelhanças, quer entre estas, quer entre as nossas canções e as de várias nações da

Europa extra-peninsulares, dependerão de relações étnicas antigas.

Pensar sobre a resistência de uma mesma cantiga em terras brasileiras e em

diferentes regiões, sofrendo diferentes influências étnicas possibilita a reflexão da língua

portuguesa ser a de prestígio dentre as relações de poder e dominação estabelecidas com

os principais grupos formadores da cultura brasileira: o indígena e o africano. A seu

favor, os colonizadores portugueses contavam com uma única língua falada, ao passo

que os dois grupos étnicos possuíam uma considerável diversidade lingüística, muitas

vezes os obrigando ao uso de pidgin.

Vista através do prisma zumthoriano (1993), a cantiga de ninar compreendeu

inicialmente o tipo primário ou puro da oralidade, onde inexistia a escrita. Na

contemporaneidade, circunscreve-se no tipo secundário, pois preserva sua característica

de vocalidade apoiada nas tradições culturais, artísticas, maternais, mesmo coabitando

com o registro escrito. A sua natureza poética voltada para um determinado auditório

perpassa as cinco operações históricas, são elas (Zumthor, 1993, p.18): a produção, a

comunicação, a recepção, a conservação e a repetição, em um processo intermitente,

mítico e mágico, materializada na performance.

Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o engloba e

no bojo do qual ele gravita com outros textos e outros espaços-tempos; movimento

perpétuo feito de colisões, de interferências, de transformações, de trocas e de rupturas

(Zumthor, 1993, p.150).

Sob a perspectiva de Bakhtin (1953/1979, p. 281 apud Schneuwly, 2004, p. 29)

vista neste trabalho, esta cantiga de ninar se inscreve como gênero primário. Assim,

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pode-se verificar em Neném quer dormir como fruto de um processo acumulativo dos

saberes culturais dos povos através da linha do tempo. Performance vozeada em forma

de acalanto a um auditório específico, conservada na memória individual e na memória

cultural coletiva, repetida a cada nova experiência de maternação.

Sobre a repetição, Jorge (1998, p.189) se reporta a Mauss e Lévi-Strauss em seus

estudos acerca da magia, quanto ao efeito ritualístico da cantiga de ninar. Diz a autora,

que o cantar se repete, às vezes uma canção chega mesmo a insistir pela repetição. Pela

canção, algo procura solução. Pelo encantamento? Uma repetição macro, da essência

da condição humana em cuidar dos seus descendentes, de sua própria continuidade. A

insistência da própria canção, no dizer de Jorge, pode ser considerada uma instância

intermediária da repetição. Tantas vezes cantada, outras tantas repetidas

ritualisticamente. Posteriormente, em uma etapa micro, repete-se no interior da cantiga.

Castro (1965, p.46) revela que das cantigas de ninar cantaroladas na Bahia, por

ordem de popularidade, encontra-se a Boi da cara preta, seguida por Menino Mandu.

Esta última foi encontrada pela autora (1965, pp. 41-55) em 1962, na Nigéria, na

memória da “tia” Maria, uma bahiana descendente de nigerianos, com a variante mais

conhecida no estado, iniciada por um sonoro Su, su, su, menino mandu (...) e a recifense,

dita à época “ricifiana”, “tia” Romana, nascida em 1877, também da comunidade

brasileira daquele país, variando com a nasalização Sum, sum, sum, como posto acima

no item 1.2.2 ( p. 41). A autora aponta a similitude desta sonoridade com o “sùn” da

língua Iorubá, significando dormir. Afirma ser procedente tal análise, à medida que foi

para a Bahia e outros estados do nordeste que a maioria dos escravos nagôs, como ali

são chamados os Iorubás, durante os últimos séculos de tráfico, ao lado de terem sido

os mais cotadas nos mercados, principalmente para os trabalhos domésticos (1965, p.

50).

Leite de Vasconcelos (1907, p.780) inicia a sua obra afirmando ser do

conhecimento do senso comum o efeito de repetição na cantiga de ninar, da acção

soporizada que exerce em nós, principalmente quando estamos em repouso, a repetição

rítmica de um e mesmo som. Gil Vicente (1946, apud Castro, 1965 p. 46) se reporta às

formas européias arcaicas do “ro, ro, ro” e “ru, ru” e a estas neumas, Leite de

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Vasconcelos (1907, pp. 794, 795 e 873). Um som, uma vogal ou sílaba como na obra

pesquisada: “A, a, a, a, a. Neném quer dormir”. Por fim, em uma repetição nano, a que

ecoa no interior de cada um, vozeada pela mãe, resgatada em processo mnemônico. Uma

macro. Uma circularização.

Seguindo com o Leite de Vasconcelos (1907, p. 800), ao analisar a cantiga

Neném quer dormir, consoante à classificação proposta em relação à função das canções

do berço, a mesma caracteriza-se como as que aludem aos momentos ou fases do sono,

tendo dupla função acalentar e embalar. Esta cantiga descreve um discurso laborioso,

portanto, reporta-se ao quarto tipo do acalanto, onde se deseja que a criança durma para

prosseguir com os afazeres domésticos.

Há nesta canção particularidades, quando comparadas ao conjunto das cantigas

de ninar pesquisado. A ausência das entidades mítico-folclóricas do imaginário infantil,

como o Papão, a Cuca, o Tutu. Um considerável número das cantigas de ninar possui um

ente sobrenatural, fantástico, fantasmagórico, conforme descrito neste trabalho no item

intitulado “Divindades Soníferas” (pp. 32-38). Não há nomeação de elementos mítico-

religiosos das entidades cristãs, característica comum na expressão poética das canções

do berço portuguesas e de tantas outras européias, dos quais herdamos um significativo

repertório (idem, p. 41).

Atentando às considerações de Jorge (1988) e Ganhito (2001) detalhadas no

presente trabalho no capítulo supra-citado (pp.34-38) acerca das questões subjetivas do

inconsciente, a cantiga em análise apresenta elementos lingüísticos pertinentes a um

discurso reassegurador da relação mãe-bebê. Há a explicitação do desejo materno da

separação necessária na primeira estrofe, pois a labuta faz a interdição do uno mãe-bebê.

Na segunda, reelabora a sua ausência, tanto para si, quanto para o bebê, justificando-se

em forma de um lamento lírico e reafirmando o sentido de complementaridade.

Na canção Neném quer dormir o narrador aparece na primeira pessoa do

singular. Não há personificação do narrador, conforme se verifica em outras canções.

Implicitamente, trata-se de uma figura feminina, uma vez que as funções domésticas

culturalmente destinam-se às mulheres. As figuras da ama, do pai, da avó, da madrinha,

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da tia presentes como variantes nas cantigas de ninar, cumprem a função materna como

denomina Lacan (Jorge, 1988, p.136).

Um destaque deve-se ao fato das variantes registradas da cantiga de ninar em

questão, apenas as recolhidas pela informante AO1 apresentarem duas estrofes, o que

leva a supor uma contribuição além da comprovada portuguesa. Ao fazer o levantamento

das mesmas ocorreu em Paulista, Pernambuco, todavia, sua informante migrou para esta

cidade vinda do agreste da Paraíba. A ocorrência das duas estrofes aparece restrita a uma

região geográfica, visto que Pernambuco e Paraíba fazem limite geográfico, o que leva a

apontar a contribuição de origem africana. Ambos os estados foram prósperas capitanias

no período colonial, recebendo um considerável contingente de negros escravos para

atuarem na agricultura e nas atividades domésticas. No item “A presença das amas na

cultura do ninar” (pp. 38-42), encontra-se as considerações a respeito das relações

estabelecidas entre os senhores da casa-grande os negros escravizados. As amas negras,

na condição de ladinas, já intervinham com seus valores culturais no uso das canções

voltadas aos filhos dos senhores. Uma situação natural de bilingüismo na qual estas

mulheres se encontravam. Mais adiante, mesmo com uma identidade brasileira, as

descendentes africanas adaptavam as canções portuguesas aos seus saberes e aos seus

valores.

Em Casa-Grande e Senzala, o sociólogo Gilberto Freire (1964, pp.455-456, apud

Castro, 1965, p.48) discorre sobre a influência da mãe negra na formação dos pequenos

brasileiros. Afirma que ao cantarolarem as canções do berço, as amas as alteravam,

trazendo elementos de sua própria cultura, dialogando com a cultura indígena.

Assim sendo, os traços marcantes de influência regional em nossos acalantos devemos à sensibilidade da mãe-preta africana que, não só chegou a alterar nêles palavras portuguêsas, como até mesmo a substituir aquelas sem expressão para ela por outras de sua própria língua, cujo efeito significativo, harmonioso e sonoro lhe facilitaria mais ainda a tarefa de fazer o ioiôzinho, adormecer (FREIRE, 1964, pp.455-456, apud Castro, 1965, p.48).

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As desigualdades sociais não permitem uma análise ingênua sobre a composição

do povo brasileiro. As relações entre os brancos portugueses e os negros africanos

sempre foram tratadas no lugar da pretensa superioridade cultural européia. Sem falar

nos povos indígenas, que se nos primórdios da colonização eram alvo de interesse de

jesuítas de uns poucos intelectuais, hoje possuem apenas pouco mais de 180 línguas

vivas e nenhuma delas oficializada.

Entretanto, também não se pode negar a singeleza e a brandura trazidas pelas

contribuições africanas. Ao fechar dos olhos é possível ver a ama-de-leite acolhendo em

seu colo a criança da senhora de engenho, que por ser escrava, tem tantos outros

afazeres, contando com um sono eficaz e reparador do rebento que traz aos seus

cuidados. Portanto, cabe apontar a composição da segunda estrofe da cantiga de ninar

Neném quer dormir na direção da influência da cultura negra, marcadas pela presença

das questões sensoriais olfativas do sabão, negando-o e a do lírio como o aroma que

tenha a suavidade cabida a uma criança, a sensação da visão através da flor, a sensação

térmica, acústica e cinestésica da água. O dia-a-dia da ama negra ao cuidar do seu

branco mandu.

Deste modo prefaciada, segue a análise da cantiga de ninar em suas etapas. Para

tanto, estarão identificadas da seguinte forma: as estrofes representadas por A, B e C em

letras maiúsculas, respectivamente, e cada verso pelas letras minúsculas a, b, c e d.

Todas as sentenças e suas sinalizações encontram-se em itálico. Todas as variantes desta

canção encontram-se no anexo A.

Aa – Vai dormir neném

O uso do imperativo na ordem indireta, reforça a relação de poder da mãe sobre o

filho. Coloca a interdição necessária na relação mãe-bebê. A mãe como elemento de

controle da relação. Enunciação encontrada em outras variantes com pequenas

mudanças, reiterada por Zumthor (1993, 223) sobre a intervenção dialógica. Diz o autor:

a fórmula tem mais energia fática quando apresenta um pedido, uma ordem ou um

apelo à ação; por vezes, ela se cristaliza na forma de um clichê (...) com suas variantes.

Ab – Eu tenho o que fazer

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Após o comando, a justificativa. Introdução do elemento de separação do Outro

tratado por Freud ou o terceiro elemento: a labuta. O emprego do verbo “ter” marca a

ausência de opções. Justificada pelo medo e pela angústia da separação da mãe para o

bebê e vice-versa. Esta enunciação encontra-se registrada em variantes quase

integralmente, inclusive em espanhol.

Ac – Vou lavar, vou engomar

Referência às funções domésticas desenvolvidas pela necessidade da

intervenção. O verbo lavar remete aos cuidados com as vestimentas infantis e

subjetivamente, com o seu objeto de amor. Remete, ainda, à limpeza por analogia ao uso

da água que protege como o ventre materno, a água que mantém a vida. Engomar, para

dar forma. O mesmo que carinhar com o calor do ferro-de-engomar (ou de passar

roupas). Modelar ao gosto da mãe. Mais uma vez, sob o controle da mesma.

Ad – As roupinhas pra você

Ad complementa o enunciado de Ac. O objeto direto descreve os elementos de

proteção da pele e define através do objeto indireto o objeto da ação do laboro, o seu

objeto de amor. Elementos esses, de proteção que configuram a substituição da proteção

do olhar, do calor do toque, do abraço, do aconchego, do cheiro da voz materna ou do

objeto da teoria freudiana.

Ba – As roupinhas do bebê

Há uma repetição do conteúdo do último verso da estrofe Ad. Ao retomar o

conteúdo, propõe uma reafirmação do elemento protetor de Ad, contudo o apresenta no

diminutivo, indicando a delicadeza denotada em “pra você”, direcionando a ação. Leite

de Vasconcelos (1907, p. 915) atenta para o uso do diminutivo como recurso para dar

meiguice à linguagem, por se estar falando com crianças. Neste verso, o objeto indireto

indica o pertencimento do qual a mãe se volta, à proteção do bebê. Subjaz um olhar

direcional nesta referência ao auditório. Tem-se a troca na díade mãe-filho.

Bb – Não se lava com sabão

A presença do elemento indeterminante se, aponta na leitura de inviabilizar a

ação de ruptura da díade verificada em Ba, nem pela narradora, nem por uma terceira

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pessoa ou pelo Outro freudiano, materializado na substância sabão. Este último,

responsável pela limpeza, pela eliminação da sujeira. Traz a função do expurgo ou o que

põe medo. Dito de outra forma, elimina toda a ternura depositada nas “roupinhas” em Ad

e Ba. Não se lava para o corte efetivo e definitivo, mas com o elemento de retorno de

negação da separação e agora é o filho quem precisa dar o corte, castrar-se.

Bc – Se lava com lírio branco

O lírio branco também conhecido como lírio da paz traduz um dos elementos

mais freqüentes em rituais religiosos. O lírio é associado à limpeza (espiritual ou

energética), à pureza ou à simplicidade, estando presente em diversas religiões. Em

Pernambuco e na Paraíba com maior expressão tem-se o catolicismo, a umbanda e o

candomblé.

O substituto do sabão que higieniza e branqueia, mas é rude, abrasivo,

exterminador. O lírio branco de puro olor, pureza, formato delicado, textura macia, no

sentido metafórico, como a pele do bebê, como o próprio amor materno.

Bd – Água do meu coração

Complementa o sentido proposto em Bc. A pureza que brota dos olhos, do olhar

da mãe. Um olhar íntimo de reciprocidade. A mãe que sofre a angústia , a dor da perda

do filho para o sono, resgatando o recalque infantil quando, um dia, era ela mesma a

perder a sua mãe-metade para o sono. Águas que em ondas embolam o rosto da mãe que

chora a perda. As águas de maior proteção, o útero materno, deslocando seu sentido para

o meu coração. Não para qualquer lugar ou para qualquer pessoa, mas àquela da qual se

vem e se vai continuamente, a mãe.

Ca – A, a, a, a, a

Uma das características de maior visibilidade nas cantigas de ninar. Uma

expiração sonorizada contínua, intercalando as notas (vide anexo A - partitura),

remetendo ao movimento do embalar. Distancia e reaproxima. A repetição do fonema

/a/, o mais aberto dentre todos, vozeado pelo coração que derrama a sua água (Bd). A

sensação acústica com a repetição de a, considerando um modo nordestino de acalentar

as crianças apenas com a sua aliteração. Repete-se para o preenchimento do vazio da

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criança e da mãe pela interdição. A repetição circula do espaço macro ao nano, conforme

explicitado acima (pp. 89-90).

Cb – Neném quer dormir

Aqui a mãe já evoca o desejo do adormecimento, poderia aparentar como sendo

o da criança, todavia a presença do imperativo, não deixa dúvidas da manipulação do

desejo de separação. Desejo do descanso para ambos, necessário para a reelaboração

metabólica e psíquica.

Do repertório das cantigas de ninar arrolado, somam-se nove variantes, conforme

dito anteriormente. Destas, o primeiro verso varia apenas no léxico, sendo o segundo

mantido quase sempre nomeando o sujeito da ação, completada com a expressão tenho

(tem) o que fazer, incluindo as duas em espanhol, que tengo que hacer. O terceiro e

quarto versos falam de atividades domésticas a serem executadas: lavar, engomar

roupas, coser ou executar atividades remuneradas para trazer o alimento para o lar.

3.2 – AS VOZES, AS PERFORMANCES, OS NINARES

As duas participantes adultas ouvintes, AO1 e AO2, cantaram a mesma canção,

objetivando ampliar o material selecionado para a análise da presente investigação. O

suporte físico do acalanto utilizado para as duas performances foi a cadeira de balanço

de ferro com fios plásticos coloridos.

Em análise das performances das mulheres ouvintes, o cenário do acalanto de

AO1 constou em uma cadeira de balanço instalada na copa de uma residência, ladeada

por uma mesa de jantar antiga de estilo colonial, sobre a mesma, um jarro branco em

forma de cisne e, por outro, um armário de copa. Posicionada em plano mais alto, a

imagem foi capturada inicialmente com CO1 acomodando-se ao colo da AO1. A criança

muda de posição, voltando-se para frente em busca de seu maior conforto. CO1

inicialmente, movimenta-se bastante, mas com o balanço associado ao ato do cantar,

observou-se a chegada do sono como resposta, nos primeiros quinze minutos.

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AO1 abraça a criança em seu colo, porém, a posição não permite o contato

visual. Sua voz é suave, doce e tremula levemente, característica vocal presente em

parcela significativa das pessoas idosas e também pela emoção que a embarga nos

primeiros versos. O registro daquele acalantar significava a cada momento algo mais

para aquela mulher. Um mergulhar em si, pelo desejo materno de complementaridade,

fundamentado no desamparo infantil (Jorge, 2001, p. 40). Uma realização de

maternação, no instante da obra (zumthoriana), por ela mesma como acalantada e pelos

que já acalantou ao longo de sua vida. Com olhos inebriados por lágrimas, abraça mais

fortemente a pequena, respira fundo e retoma de maneira forte a canção. Tomando a fala

de Zumthor:

O discurso que ela pronuncia, ligado mais do que outros às formas experimentadas, mais sujeitos às pegadas de um incontrolável passado, é também mais eficaz do que qualquer outro; o que diz essa boca parece mais opaco, requer atenção de maneira mais insistente, penetra mais fundo na lembrança e aí fermenta, confirma ou resolve os sentidos vividos, alarga misteriosamente a experiência que eu, ouvinte, creio ter de mim mesmo, de ti e desta vida.(ZUMTHOR, 1993, P.150)

A atitude da voz e da fala é firme, mostrando autoridade diante da pequena CO1.

A repetição encontra-se presente e a variante “vovó tem” foi utilizada algumas vezes, em

substituição de “eu tenho” no verso Ab. O mesmo fenômeno é descrito por Leite de

Vasconcelos (1907. pp. 810-811), podendo relacionar-se à região ou mesmo às escolhas

pessoais. O autor cita alterações de ordem morfossintática e semântica. Por exemplo, na

ordem da semântica apresentou substituições dos personagens míticos do imaginário

infantil ou de entes religiosos: côca por cuca; a Virgem pelo Menino-Jesus. A relação

corpórea da dupla CO1 e AO1 mostrou uma interação intensa. Ao final das imagens, vê-

se a chupeta da criança se soltar suavemente da boca, em uma entrega total ao sono.

Na performance de AO2 com CO2, o cenário compõe-se por uma cadeira de

balanço, tendo lateralmente uma antiga máquina de costura de ferro em uso, meio copo

americano com café preto, aludindo à necessidade da mãe manter-se acordada nas

madrugadas acalantando seu bebê. Não há consangüinidade entre os sujeitos. CO2

mostrou-se tranqüila e sorridente nos braços de AO2, chegando acordada ao local da

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filmagem. Inicialmente, AO2 ficou um pouco insegura quanto à reação da criança, mas

tudo transcorreu com naturalidade. A relação de corporeidade mostrou-se confortável

para ambas. CO2 se aconchegou nos braços de AO2. O posicionamento da criança

permitiu o contato visual, mantido em período quase integral. A voz afinada e suave de

AO2, possibilitou uma doçura extra à canção. A receptividade de pequena CO2 foi um

elemento facilitador da composição da obra. Houve um diálogo performatizado,

trazendo o calor do contato, onde o ouvinte-expectador é, de algum modo, co-autor da

obra (Zumthor, 1993, p.222). À medida que a canção ganhava cadência, o sono dava

seus sinais, em tempo aproximado de dez minutos.

No ninar das mulheres surdas os discursos se apresentaram sob forma de diálogo

espontâneo. Ambas fizeram uso do canto com suas vozes e suas performances. A

performance destas mulheres particularizam-se no uso do seu corpo expresso pelo olhar.

As suas memórias se apresentam em sua visualidade, havendo uma reiterabilidade no ato

comunicativo do (o seu) corpo com o (outro) corpo. Com o olhar primordialmente se lê e

se fala, em alguns momentos, ainda mais que com os gestos.

O ninar da AS1 tem seu embalar dialogado, com intervenções da voz cantada e

seu discurso se apresenta em sinais naturais e sinais da LIBRAS, em uso concomitante.

Reitera-se que nem a AS1, nem a AS2 freqüentaram terapia de oralização, nem

apresentam resíduos substanciais da audição, portanto, a expressão oral trata-se de um

uso da vocalidade natural da pessoa surda.

As participantes AS1 e AS2 tiveram suas imagens capturadas no mesmo

ambiente, o qual contava como suporte do acalanto uma rede de algodão bege, ao fundo

um vaso com planta e uma poltrona infantil amarela. Como já exposto anteriormente,

não há presença de uma criança, o que de fato verifica-se com as imagens não haver

interferência substancial nas suas performances, o que foi legitimado por AS1, AS2 e

AO3 como sendo a mesma forma como ocorreu com as crianças de sua família.

Desenvolveu-se a performance com uma boneca de aproximadamente cinqüenta

centímetros, envolta em uma manta branca de bebê. Solicitou-lhes que ninassem tal

como faziam com as crianças de sua família. Durante o processo do acalantar houve um

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rememorar das experiências das mulheres surdas com o ato do acalantar explicitado no

afeto depreendido e materializado na performance, assim como nos seus discursos.

A postura corporal das mulheres surdas analisadas se mostrou similar:

posicionavam o “bebê” verticalmente, trazendo-o rente ao tronco, apoiado no braço

esquerdo, sendo a mão direita a de maior movimentação. Esta postura possibilita em

ambos os sujeitos a reverberação do som através da união das caixas torácicas, o calor da

voz próxima à face, assim como favorece o sentido olfativo e a intimidade na interação

do olhar mãe-bebê. O ninar surdo apresenta referências particulares, está marcado pela

visualidade da sua cultura. Estabelece um diálogo com a criança entremeado pelo uso

melodioso da voz. O uso da voz que poderia ser depreendido com referencia ao universo

ouvinte, perde seu poder de argumentação, pois as informantes são oriundas de um

espaço social composto basicamente por sujeitos surdos.

Possivelmente alguns ouvintes poderão associar o ninar surdo ao pretenso desejo

de uma reprodução da modalidade oral-auditiva, não obstante, as mulheres surdas

investigadas encontram-se distanciadas deste referencial, por apresentarem uma

identidade positiva de não estarem "contaminadas" pelo mundo dos que ouvem e suas

limitações epistemológicas do som seqüencial (Wrigley, 1996, p.32). Para apoiar esta

reflexão, a fala do autor aparece em caráter pertinente a estas considerações em sua obra

Politics of Deaf. Discute acerca das questões das identidades étnicas da surdez,

alvitrando um ponto de vista ouvinte em associar práticas de expressão surda à díade

normalidade/ anormalidade.

Para aquele que ouve, a surdez representa uma perda de comunicação, a exclusão a partir de seu mundo. Em termos cosmológicos, é uma marca de desaprovação. Ela é a Alteridade, um estigma para se ter pena e por isso, exilada às margens do conhecimento social. Seu "silêncio" representa banimento ou, na melhor das hipóteses, solidão e isolamento. (WRIGLEY, 1996, p.31-32)

Quando este “silêncio” de voz e de fala (também política) referendado por

Wrigley é quebrado em uma perspectiva que não a ouvinte, não como normalidade,

descortina-se a obra (zumthoriana) do ninar surdo como objeto constitutivo do humano,

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com seus modos de oralidade, gestualidade, espacialidade, visualidade. As mulheres

surdas e seus ninares trazem componentes universais do acalanto e a integralidade da

relação mãe-bebê: o aconchego, o balançar, o universo feminino, os elementos

lingüísticos próprios do gênero discursivo, tais como: as referências religiosas, a

exaltação do amor maternal, as repetições, o uso da função fática para que a criança não

chore e para o seu adormecer. O corpo não se manifesta apenas como um suporte de

apoio para a criança. As mãos falam e tocam constantemente este outro corpo, somando-

se aos sorrisos, aos beijos e aos abraços. A concepção zumthoriana sobre a memória do

corpo fala sobre

a existência de uma lembrança orgânica das sensações, dos movimentos internos do corpo, ritmo do sangue, das vísceras, toda essa vida impressa de uma maneira indelével em minha consciência penumbral daquilo que eu sou, marca de um ser a cada instante desaparecido, e no entanto sempre eu mesmo. Ora, o corpo tem alguma coisa de indomável; de inapreensível. O corpo não pode jamais ser recuperado. (ZUMTHOR, 2000, pp. 92-93)

O sujeito AS1 sinalizou predominantemente com a mão direita. A mão esquerda

serviu de apoio para o corpo do “bebê” em quase todo o discurso, eventualmente

utilizada na sinalização. Diferente do sujeito AS2, que preferiu utilizar a língua oral

natural falada e cantada. A seguir, as análises serão apresentadas adotando a

metodologia proposta no cap.2, pp. 64-67, deste trabalho. Seguindo o mesmo padrão

para a transcrição da canção descrita com as mulheres ouvintes, a tradução

LIBRAS/Língua Portuguesa será organizada na ordem alfabética em letras maiúsculas

na indicação de cada estrofe, seguida de letras minúsculas indicando o verso, ambos em

itálico. Nas linhas consecutivas seguem na seguinte ordem (quando houver): LIBRAS

(LS); sinais naturais (SN); linguagem oral natural (LON) ou linguagem oral natural

cantada (LOC), conforme cap. 2, p.66. Imagens de configuração de mão foram

adicionadas, quando necessárias para indicar a ausência de sinal na LIBRAS. Marcas

não-manuais seguem o modelo de expressões faciais aplicadas no período inicial dos

chates de bate-papo na internet, representados em sobrescrito e negrito. A localização

das transcrições aproxima-se na mesma direção, objetivando ao leitor verificar a

simultaneidade das diversas formas de comunicação utilizadas pelo sujeito no decorrer

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da sua expressão. Seguem-se as transcrições e as análises abaixo, inicialmente com AS1

e depois com AS2.

Sujeito AS1

Aa – Amor, que saudade!

LON: Amôô saunaum!

Ab – Estava pensando em você.

olhar 2s .

LS: PENSAR(md)

SN: 1s (Fig. 8)

LON: Avapeumneum vô.

Ac – Não precisa chorar.

negativa

LS: PRECISAR(md).

LON: Pessi naum soâum.

Ad _ Você não está com fome.

negativa :(

SN – FOME (COMER) TERMINAR(md/me) (NADA)

LON - Naum.

Ae – E chora. Sonha!

LS – CHORAR(md) SONHAR.

LON – Soeâum pesoêaum.

Af – Amor, você precisa de leite. Sorria [PAUSA]. Pede para brincar.

LS – PRECISAR(md) SORRIR(md) [PAUSA]. PEDIR(md/me)

BRINCAR(md/me)

LON – Abôô lêê sôeum piêip.

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Ag- É sim!

LON - Éum

afirmativa :(

LN -

Ah – Você chora muito, chora, né?

olhar2s confirmação <:(

LS – MUIT@

SN – (Fig. 9) (movimento semicircular em sentido antero-posterior)

LON – Sôa muum sôa.

Ai – Vamos passear, vamos. Tá bom.

afirmativa :(

LS – PASSEAR IR

LON – Passaum baum aum.

Aj – Você está com sono. Tá bom.

afirmativa :(

LS – SONO

LON – Sopum aum.

Al - Eu amo você para sempre.

LS – AMOR SEMPRE.

LON – Amôô pisium.

Am – Quer a mim, não quer papai. Fale! Tá bem.

afirmativa :(

LS – EU NÃO FALAR

LON – Eum papa ûueí fau um.

SN – 3s (Fig. 10) (apontação)

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An – Nem papai, nem titia e pronto. Tudo bem.

afirmativa :(

LS – U-A-I TIA NÃO ACABAR

LON – papa û titia aum.

Ao – Você quer a mamãe, amor.

olhar2s

LS – AMOR.

SN – 1s (Fig. 11) (dois toques)

LON – amamã amô.

LOC – A-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá

Ba – Amor (...).

LOC – Amôô ale.

Bb – Você vai crescer, estudar (...)

LON - ûlê ûemâ uceu maum.

Bc – Precisamos passear.

LS – PRECISAR ANDAR-PARA-LÁ CL:V.

LON – pesum passa.

Bd – Vamos passear um pouco. Tudo bem.

afirmativa :(

LS – MIM POUC@

LON – Vô passa poium.

Be – Podemos ir.

afirmativa

LS – IR

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LON – Poum.

Bf – Você fica chorando.

<:p

LS – CHORAR(md/me em espaço neutro)

LON – Vô pium êêê.

Bg – É chato!

LS – CHAT@ (md/me)!

LON – Soelôe.

Bh – Não precisa chorar. Chorar pra quê?! Não?

:’( interrogativa/exclamativa negativa

LS – PRECISAR(md) CHORAR(md) PRA-QUÊ(md) ACABAR(md)

LON – pessi um aum.

LOC – Ãããã-lá

Ca – Eu não sei por quê. Eu não sei.

negativa/interrogativa (dar de ombros) :(

LS – PENSAR-NÃO EU

LON – Apeaum eum.

Cb – Você pensa que eu falo?

- interrogativa- :(

LS – PENSAR EU FALAR

LON – Peum.

Cc – Pensa? Eu não sei falar nada.

negativa :(

LS – PENSAR? NADA (ACABAR)

LON – Peum? naum.

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Cd – Só sou eu e você, não é?

:* :(

LS – EU-SÓ EU-VOCÊ

LON – Só eum.

Da – Lá-lá-lá. Amor, amor

<:o <:o

LOC – Lâ-lâ-lâ Amôô, amô.

Db – Deus do Céu, do Céu

<:o <:o

LOC – Bu céu bu céu

Dc - Amor, Deus do Céu

<:o <:o

LOC – Abôô zabu céu

Dd – Seja feliz! É pra estudar.

:) <:)

LS – FELIZ (md, espaço neutro)!

LOC – Eizi! ééé uá

De – (...) estudar (...).

LOC – Euba zuda (...)

Df – Desculpa, desculpa,.

<:( <:(

LOC – Deupa deupa.

Dg – Deus do Céu.

LOC – Céu.

Dh – Toma muito amor todo dia.

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LOC – Toma mui amo

SN – TODO-DIA(md) (Fig. 12) (movimento repetitivo no sentido

vertical em espaço neutro) (Fig. 9) (me - posicionada lateralmente como apoio, sem

contato)

Di – Calma.

<:)

LOC – Auma.

Há um lirismo latente no discurso Amor, que saudade!/ Estava pensando em

você diz a AS1, nas primeiras linhas e ao final referenda o sono da criança ao Senhor,

pedindo a clemência divina. A concomitância das diversas expressões de AO1 traz uma

plasticidade performática. Há um vozeamento espacial ao integrar movimentos que se

interligam em um jogo simbólico em importar toda a emoção ao olhar, às expressões

faciais, corporais e à sonoridade da sua voz.

No imaginário da acalentadora ali está uma pequena criança que chora resistente

ao sono, tal como se observa em Ac, Ae, Ah, Bf, Bh, Ca. Este último enunciado traz a

idéia inclusa do choro infantil, diz: Eu não sei por quê (você chora). Eu não sei. O sono

encontra-se presente em Aj. O alimentar o corpo em Ad e Af é complementado com o

alimentar o amor em Ab, Ab, Al-Ao, Ba, Da, Dh e Di. Uma relação onde o terceiro de

Lacan, nas figuras do pai e da tia (Am e An), é apresentado e expurgado da relação mãe-

bebê. Esta fala se inicia com Eu amo você para sempre, isto é, ninguém mudará o que a

mãe sente por seu objeto de amor, também expresso em Cd, reforçado pela expressão

facial de confirmação da simbiose ali preterida. Ao mesmo tempo em que impede a

intercessão da Lei, a (re)constrói subjetivamente lançando mão do passear, sair do lugar

nas duas primeiras estrofes: Ai, Bc, Bd e Be. O diálogo ninado ganha forma de

aconselhamento, continuando a sua interdição em Bb, Dd e De, com ênfase no aspecto

do crescer e estudar. O crescer e o estudar ao mesmo tempo se configuram nas relações

de poder e força da mãe sobre a criança, pois cabe culturalmente ao elemento feminino a

responsabilidade pela orientação e educação da prole.

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A voz de AO1 é intensa, forte. Muitas vezes, cadenciada por prolongamentos

vocálicos e repetições de sílabas, observadas, principalmente na vocalização cantada da

palavra amor e nas lalações.

Cantar é expressar pela sonoridade vocalizada a falta básica, a solidão fundamental humana. Acalentar é embalar pela melodia esta falta que se repete inexoravelmente num ritmo onde ecoa lenta e cadenciadamente a repetição do desejo de complementaridade versus a repetição da Lei. (JORGE, 1998, p. 193)

SUJEITO AS2

Não há sinalização no ninar de AS2. Há bastante expressão facial, sorrisos e

gesticulação em forma de afagos e carinhos. A voz é usada com pouca intensidade,

suave e doce. Alguns trechos não são compreensíveis.

Aa – Mamãe, (nome da filha) saudade!

:)

LON – A mãim (...) saudade!

Ab – (...) filha, que saudade!

:)

LON – (...) firaaa saudade!

Ac – Vamos dormir.

LON – Vã dumi.

Ad – É a mamãe (...) Papai do Céu e mamãe.

:)

LON –mã (...) papá cé mamã

Ae – (...) amor.

:)

LON – A pu sa amo.

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Af – Coração, saudade!

:)

LON – Corassãu, saudade!

Ag – Chora não!

negativa

LON – soraum!

Ah – Filha, cuidado!

<:|

LON – Fira cuidad!

Ai – Vamos dormir.

LON – Vã domi.

Aj – Chora, chora (...)

LON – sorum, sorum (...)

Al – Depois toma o leite.

LON – Depô leitô

Am- A mãe, a mamãe dá muitos beijos.

:)

LON – A bai, ababai bá bá betjo, betjo.

An – Dorme.

LON – Dumi.

Ao – (...)

: * :)

LON – uááá (onomatopéia do beijar)

Am – Meu Deus!

LON – Meu deusu.

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Ba - A ra, ra, ra, ra! Amor!

:)

LOC – A ra, ra, ra, ra! Abô!

Bb – Lá, ra, lá!

:)

LOC – Lá, ra, lá!

Bc – (nome da filha) não chora!

>:(

LON – (nome da filha) soruum!

Bd – Quer chupeta?

LON – zupeta?

Be – Olha a lua, amor.

LON – A rua, amo.

Bf – (...)

Bg – Calma (...)

LON – Cauuma (...)

Bh – Eu amo meu filho (nome do filho).

________t :)

LON – Abô (nome do filho) meu

Bi – Meus cinco netos (nomes dos neto 1, 2 e 3)

________t :)

LON – Cico nitu meu (nomes dos neto 1, 2 e 3)

Bj – Eu amo a todos.

1s 3p (Fig. 11 - ) :)

LON – Abô

Bl – Amo sim.

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afirmativa :)

LON – Abô.

AS2 desenvolve mais o ato do cantar e sua fala enfatiza os cuidados e o afeto por

sua filha e toda a sua família. A fala de AS2, a mesma diz: Coração, saudade/Chora

não! Observa-se a aproximação quanto ao conteúdo da cantiga de ninar elaborada por

AS2 e a canção recolhida por Leite de Vasconcelos (1907, p.844): Porque choras, meu

menino?/ Porque choras, meu amor?/ As tuas lagrimas, meu menino,/ Cortam o meu

coração com dor.

A presença o item estudar nos dois ninares refletem a pouca condição de

escolaridade enfrentada pelas informantes. Sobre esta questão, Quadros e Massutti (2007,

pp. 241-242) atesta a precariedade das ofertas de ensino às pessoas surdas nas décadas de

30 e 40, até então só os estados de São Paulo e Rio de Janeiro dispunham de escolas para

surdos. No nordeste, Pernambuco teve sua primeira instituição na década de 50. Muitos não

tiveram qualquer tipo de educação, e isso também dependia da situação econômica da

própria família (idem, p.241). O desejo das mulheres expressa a importância que elas

atribuem à Educação para a vida de seus descendentes.

A repetição verificada em AO2 dialoga no mesmo lugar de todas as outras

canções de ninar. Nana-na, dorme-dorme, rola-rola, cala-cala são naturais começos das

canções de todos os povos. O nosso verbo nanar “dormir” (em linguagem infantil)

pôsto que de origem obscura, tem, como se vê, paralelos noutras línguas românicas.

(Leite de Vasconcelos, 1907, p.876). Todavia, há uma peculiaridade da repetição como

elemento de (en)cantamento do amor desprendido por seu “bebê”, expressamente em

substituição à sua filha, quando em linguagem oral natural ela diz: A bai, ababai bá bá

betjo, betjo. O som que se repete é o movimento entre lábios que beijam, que dizem

mamãe. Traz à exterioridade o amor para o seu campo visual refletido no olhar do seu

bebê. Mais uma vez, recorre-se à narração de Jorge para discorrer sobre o encantamento.

A função de encantamento do canto aparece nos estudos sobre magia e atos mágicos de Mauss e Lévi-Strauss, mas não se especifica tal função pela melodia porém pelo texto mesmo quando “mudo” ou sub entendido, como viu Mauss. Sobre a melodia, porque se canta, há

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silêncio. Ou quase. Pois a função do encantamento pelo canto aparece no léxico, na literatura, e em certas reflexões sobre elas. (JORGE, 1998, p. 189)

O universo lexical e a estrutura sintática do ninar de AO1 e AO2 são congruentes

e simples. A similaridade na estrutura inicial de ambas pode ser observada nos dois

primeiros enunciados, para AO1 Amor, que saudade!/ Estava pensando em você. e AO2

Mamãe, (nome da filha) saudade!/ (...) filha, que saudade! Tais características podem

ser verificadas também nos ninares da cultura oral-auditiva. Destaca-se a delicadeza de

AO2 em todo o seu vozeamento e no enunciado Be, com referência à lua, elemento da

visualidade. Há referências do elemento religioso cristão na figura do Deus do Céu ou

Papai do Céu em AO1 (Db, Dc e Dg) e AO2 (Ad e Am). AO1 se reporta ao mesmo

tempo implorando a clemência divina para a eliminação de todo e qualquer mal ao seu

objeto de amor protegendo-o, expressa também, com a veemente elocução em Toma

muito amor todo dia. Com um sorriso de “agora está tudo bem, a mamãe está aqui”,

conclui com a sua bênção dizendo: Calma. AO2 também conclui com o acalmar a

criança, relacionando aos que ela devota o seu amor, finalizando com: Eu amo a todos./

Amo sim.

Nas cantigas de ninar surdas se encontram os traços do grão de Barthes: o grão

da voz, quando a voz tem uma postura dupla, uma produção dupla: de língua e de

música (apud Almeida; Queiroz, 2004, p. 162). A voz do surdo não-oralizado que canta

às suas crianças corrobora para a ruptura das regras sociais homogeneizante. Para que

não se crie a tolerância da aparência, é preciso confrontar o politicamente correto. O

surdo é um sujeito com marcas sociais singulares pela modalidade natural de sua língua

e pela expressão da sua cultura. Aceitar o outro na sua diferença longe está em apagar os

conflitos culturais. Pensar a diferença se aproxima do outro, quando algo move, quando

há visibilidade, senão não há poesia, nem voz, nem corpo, nem existência. Rebelar-se

para sorrir e estudar e se alimentar e sonhar e falar a sua língua e ser amado. É deste

lugar que o ninar surdo dialoga. Com sua corporeidade essencialmente lingüística.

3.3 – A EXPERIÊNCIA CODA NO NINAR

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Este item apresenta uma filha ouvinte de pais surdos (CODA) e suas

considerações acerca da sua experiência como criança ninada por mulheres surdas. Além

do exposto, reflete sobre o olhar do mundo ouvinte (filho ou não de surdos) no tocante

às cantigas de ninar do mundo surdo. Visto a riqueza de informações dispostas no

depoimento da informante CODA, esta análise fará alguns recortes. O que seria ser uma

pessoa CODA? Quadros e Massutti (2007) compreendem que

a experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais surdos faz com que a percepção das representações culturais, sociais, políticas e lingüísticas sejam atravessadas por substratos filosóficos, éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças de contato. O universo surdo e o ouvinte marcam as fronteiras dos CODAs. Pratt (1999, 2000) define a zona de contato como aqueles espaços sociais em que as culturas se encontram, e se constroem em linhas de diferenças, em contextos assimétricos de poder. (QUADROS; MASSUTTI, 2007, p.246)

AO3 é filha de pais surdos, tendo aprendido português aos quatro anos de idade,

sendo considerada surda até o momento de seu ingresso à escola. A língua de

modalidade espacial-visual como primeira língua para uma criança ouvinte, apresenta as

possibilidades de construções cognitivas, sociais, afetivas, culturais similares à de

modalidade oral-auditiva, resguardando as especificidades peculiares a visualidade da

expressão surda e suas implicaturas. Após este acontecimento, passou períodos com sua

avó ouvinte. Assumiu o papel de intérprete de seus parentes mais próximos e dos amigos

surdos desde muito pequena.

Para o depoimento de AO3, o cenário permaneceu o mesmo das informantes

surdas. CO3 posicionou-se na rede aconchegando-se junto à mãe, apoiando a cabeça em

seu colo (tronco). Na performance de AO3, sua voz oscilava diversas vezes entre

tranqüila e fortemente emocionada, outras, chegava a falar de modo embargado. Seu

corpo se dispunha deitado com uma das pernas flexionadas, envolvendo o pequeno CO3

com seus braços, mas deixando mobilidade para as mãos se expressar livremente.

Apresenta-se a seguir a transcrição do depoimento de AO3 estando sua narrativa

organizada em seis blocos, dispostos por conteúdos significativos e representados por

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títulos em itálico. Para fins de simplificação, a transcrição segue o modelo grafo-fônico.

A transcrição apresenta prolongamentos representados pela repetição da letra; para os

breves intervalos na elocução [PAUSA]; para hesitação, o uso de ... ; para os trechos

cantados uso em itálico.

SUJEITO: AO3

Bloco 1 – Apresentação

– Têm, têm nove surdos na minha família. Éé sou filha de pai e mãe surdos,

tenho um irmão surdo, sobrinha de seis surdos, entre eles, três tias surdas, três tios

surdos e a minha primeira língua foi LIBRAS. Tive que aprender por necessidade.

[PAUSA] Tinha que me comunicar com todo mundo. Aonde eu só tinha minha vó que

falava. E eu tinha de diferenciar quem era ouvinte, quem era surdo.

Bloco 2 – O ninar surdo: a intolerância; o aconselhamento; a voz

– Minha tia que cuidava de mim, também ... ela ... me ninava. Minha mãe, me

ninou muito. Na hora da dor, assim, muitas vezes, eu, pequenininha, minha vó contava,

que minha mãe me ... cantava muito de madrugada e muito alto. E os vizinhos ficava, às

vese, zombando da minha mãe, porque ela cantava alto. Como se ela quisesse passar pra

mim o conforto. Aquelas palavras pra mim, pra ela é como se dissesse: “Cala-te,

neném!. Mamãe tá aqui. Vá dormir! Amanhã você vai tá boa. Mamãe te ama. Você vai

crescer, vai se formar uma mulher”. Sempre é como se fosse um conselho. Nina... a

ninada de um surdo é como se fosse um conselho de surdo, é como se tivesse passando

amor dele, nas palavras dele. Ele num olha se tá falando errado ou certo. Pra ele, ele fala

com o coração. E deixa que a voz nasc... saia natural. Tá! Ééé, a música dele é natural.

Certo? É a música dele é... passando o verdadeiro amor que ele tá sentindo por aquela

criança.

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Bloco 3 – O aconchego; a mélica

– E... eu me lembro quando eu fui internada, quando eu tavaa... no soro, lá.

Minha mãe me colocar no braço, no meio do hospital. Ficava cantando lá e alguém

carregando o... um... um pede... o... o apoio do soro e minha tia também, minha tia me

educou. Ela cantava demais. Minha tia... a música da minha tia só é amor, amor,

saudade! E que a gen... vai me amar sempre. E o amor dela éé e desde pequeninha que

escuto isso: amor, amor! O amor dela parece vai esticando assim um ó ó amôôô! É

muito bonito, é muito bonito um surdo ninar. É muito natural. Ele num leva estresse para

a criança. Ele é natural, é assim mesmo. Ele passa o amor dele, aonde a minha mãe, elaa

ninou meus filhos, ninou. Minha tia também, meu filho mais velho. Minha mã, minha tia

cantava no meio da rua. Muitas veze, ela... ficava olhano assim... ela ficava olhando pro,

pra rua (CO3, filho de AO3, ficou inquieto na rede e ela o colocou para descer). Nem

ligava que o povo tavaa olhando para ela. Se ela tava cantano certo ou errado. Pra ela,

ela tava cantando para ninar mesmo, preu dormir, pro meus filhos dormirem.

Bloco 4 – Ninar ouvinte e ninar surdo

– Nós ouvimos a avó da gente cantar. Depois, a gente ouve o vizinho cantá e

passa, para nossos filhos. E... o surdo, não. O surdo fala com o coração, fala como um

conselho, fala com a alma! É maravilhoso ser filha de surda.

Bloco 5 – O sujeito surdo

– E... eu tenho muito, muita tristeza, filho de surdo. Muita tristeza. Filho de surdo

que cresce falando LIBRAS e chega a um certo ponto aonde, tem vergonha do surdo, do

grito do surdo. Se pega um filho para ninar, diz : “Não! Canta baixinho!” Não pode!!! A

gente tem que ser natural. A gente tem que aceitar. [PAUSA] Hoje, eu olho o surdo com

o coração. E respeito muito, muito, muito, muito... o surdo! Sempre vou respeitá.

Bloco 6 – Surdo: sujeito visual

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– E... se um dia Deus me der oportunidade, de sempre passar isso pra todo

mundo, todas as pessoas que tiver do meu lado, que fale com surdos, com os olhos, com

o coração.

– Se hoje eu tivesse um filho surdo, eu não ia, jamais, cobrar isso de Deus.

Jamais! Eu ia agradecer sempre, sempre! Deus, muito obrigada, porque é...o Senhor me

deu uma dádiva, me deu um presente, é um novo mundo.

No primeiro bloco AO3 contextualiza o seu lugar de CODA em uma família de

maioria surda e destaca as suas descobertas dos mundos ouvinte e surdo. O segundo,

envereda na sua experiência de criança ninada por mulheres surdas, falando inicialmente

da tia e depois da mãe. Traz a figura da avó como referência para relatar a mãe a

ninando. Expressa em sua fala faces da intolerância ao Outro surdo, quando descreve a

postura dos vizinhos que zombavam da mãe surda por cantar alto.

Os filhos de pais surdos passam a perceber tais estereótipos quando começam a interagir com os ouvintes. Eles sofrem e passam por crises de identidade, pois precisam entender as diferenças existentes entre ser surdo e ser ouvinte, entre ser surdo do ponto de vista surdo e do ponto de vista ouvinte com seus estereótipos de surdez. (SKLIAR; QUADROS, 2000, p.20)

AO3 quando afirma que o surdo ao ninar não olha se tá falando errado ou certo.

Pra ele, ele fala com o coração. E deixa que a voz (...) saia natural, (...) a música dele é

natural, aponta para a consciência da mulher surda sobre o olhar colonial em relação à

sua expressão de amor materializada no seu canto, evidenciando na reflexão sobre o não

se importar com a apreciação de errado ou certo, que para Skliar e Quadros (2000, p.

06) encontra-se localizada no extremo negativo de certas dualidades culturais. Este é

um discurso que se constitui em um espaço discursivo colonial, consoante Carbonell e

Cortés (1998, apud Skliar e Quadros, 2000, p. 06), como um conjunto heterogêneo de

interesses e práticas que tem como objetivo principal a instauração de um sistema de

domínio e sua perpetuação. Uma representação sobre a alteridade, circunscrita neste

Outro. As diferenças existem independentemente da autorização, da aceitação, do

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respeito, da tolerância, da oficialização ou da permissão outorgada desde a

normalidade (idem, p.09).

O bloco 3, descreve a mélica da cantiga de ninar surda, o prolongamento da

vogal ao cantar o amor à criança, a beleza da sua naturalidade expressa. O depoimento

de AO3 ilustra o exposto neste trabalho (p. 55) sobre o uso da voz, reportando-se a

Zumthor (1993, p. 158) a voz é pura, gesto sonoro que emana das pulsões primordiais.

Em sua fala no bloco 4, AO3 descreve o uso e a transmissão das cantigas de

ninar da comunidade ouvinte e faz um paralelo ao uso do gênero por pessoas surdas. Aos

ouvintes a tradição da repetição por via oral se faz secularmente, entre as pessoas mais

próximas. Mesmo com as conquistas tecnológicas, não há mídia que substitua o afagar

da voz, o calor do corpo. O ninar surdo é descrito pela informante por um falar passional

e um aconselhamento. Também Leite de Vasconcelos (1907, p.813-814) descreve o

fenômeno do aconselhamento em duas cantigas de ninar, sendo uma de Sardenha no

qual a mãi pertende que o filho seja belo de maneiras, vida e confôrto do pai, alegria de

todos, esplendor e honra da família, nascido para o bem e cheio de prudência; e uma

segunda canção de Spinoso a qual deseja plena felicidade ao pequeno e que cresça tão

alto como o sol e a lua.

Os relatos da AO3, nos blocos 2 e 5, trazem algumas questões relativas à não

aceitação da diferença, mesmo em famílias de pessoas surdas. A língua de sinais é visual

na recepção, portanto, predominantemente marcada pelo movimento. A necessidade de

comportamentos homogeneizantes condiciona as relações sociais ao cumprimento das

normas que, no caso, é falar oralmente. O conceito de “normalidade” precisa ser

transgredido. Afirmar que a maioria das pessoas fala a modalidade oral-auditiva,

teremos por oposição uma minoria falante da modalidade espaço-visual. Esta é uma

proposição de natureza da diferença, pois se sabe ser menor o universo da população

surda em detrimento à ouvinte. Contudo, trazer esta discussão para o lugar da

normalidade, suscita a necessidade da reflexão do que é ser normal. Falar uma língua de

modalidade espaço-visual seria então uma anormalidade?!

Finalmente, o último bloco trata da visualidade do sujeito surdo e do olhar

CODA por este mesmo prisma. O que é importante é “ver”, estabelecer as relações de

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“olhar” (que começa na relação que os pais surdos estabelecem com os seus bebês).

(...) A experiência é visual desde o ponto de vista físico (...) até ponto de vista mental

(Skliar; Quadros, 2000, p. 21). A experiência visual é proposta pela informante como um

novo mundo, isto é, o lugar de discussão da diferença.

3.4 – CRUZANDO DADOS

No gênero discursivo cantiga de ninar, pautado nos princípios bakhtinianos, traz

seu objetivo inscrito na função do adormecer a criança através do uso da voz cantada em

performance, independente se esta se estabelece entre mulheres ouvintes ou mulheres

surdas.

Os aspectos gerais do gênero, portanto, os elementos convergentes: cantiga de

ninar como prática discursiva; cantar por herança materno-cultural; relações de controle

social, força e poder na relação mãe-bebê; linguagem materializada para o exercício da

mãe suficientemente boa.

Quanto à estrutura composicional, o gênero cantiga de ninar apresenta as

seguintes características: performance do corpo em balanço; performance da voz;

presença do olhar mãe-bebê; letras simples.

As convergências quanto ao conteúdo temático elencam-se em: temas mítico-

religiosos; temas sobre o amor materno; temas sobre o choro infantil; temas referentes à

relação mãe-bebê; tema sobre alimentação (leite); temas a respeito ao ato de “dormir” e

“chorar”.

No tocante ao estilo: estrutura sintática simples; vocabulário simples e muitas

vezes infantil; repetição de sons e enunciados; função fática.

Em seguida, encontram-se descritos os aspectos divergentes do gênero cantiga de

ninar do grupo ouvinte e do grupo surdo em análise.

No ninar ouvinte: a intensidade da voz é mais baixa; há preocupação com

afinação/entonação; a canção é pré-existente; o diálogo é reproduzido apenas com o

próprio texto da canção; há pouco uso das mãos, usa-se mais como apoio para o bebê;

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99

uso exclusivo da linguagem oral-auditiva; maior distância corporal; razoável

comunicação com o olhar; prestígio social; vocalidade aprendida.

No ninar surdo observa-se: a intensidade da voz mais alta; não há preocupação

com afinação/entonação, a voz é usada de modo natural; canção improvisada; diálogo

explícito; uso mais freqüente das mãos para afagar, apertar o bebê junto ao corpo; uso da

linguagem oral-auditiva natural e espacial-visual; maior proximidade corporal; grande

comunicação com olhar; desprestígio social; vocalidade espontânea.

Estes dados são pertinentes ao universo investigado e não se deve compreender

tais análises em um viés reducionista, posto está, que poderão haver alguns elementos

com apresentação diferentes dos encontrados no presente trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A amplitude deste objeto de estudo exigiu recortes maiores do que, de fato, era o

desejo da pesquisadora. Não obstante, este é um final. Estes são cantares oriundos de uma

maternação universal: ninares surdos, ninares ouvintes.

A interlocução vivida em todas as performances apresentou-se como resultado de

situações organizadas para fins acadêmicos, entretanto, a conclusão das mesmas deixa

evidenciada que a obra, o aqui e agora, não pode ser manipulada. É um momento único e

irretornável. As performances analisadas nos acalantos comprovam a premissa da

importância do vozeamento, baseado nos princípios zumthorianos, na relação afetiva e

social e na realização da obra no instante.

Os elementos que compuseram as bases desta pesquisa possibilitaram uma leitura

ampliada das contribuições pertinentes ao tema cantiga de ninar. A rede, o berço, os

braços, o colo, todos estes suportes propiciam o balançar que nina a história de cada um.

A mãe negra que trouxe o “dengo” para a linguagem do acalanto (Castro, 199?, p. 4)

também pariu a brasilidade, expôs em sua oralidade o seu poder de resistência e a

grandeza do seu amor reportado aos pequenos brancos, fazendo deles pessoas mais

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100

humanas. Enfim, as amas de todas as épocas, doadoras do alimento, do afeto, das

performances.

Em Canções do Berço, Leite de Vasconcelos (1907, p. 919) conclui sobre a

existência de elementos comuns às canções de outros povos. Destaca as fórmulas do

começo, as quais afirma serem indepedentes das circunstâncias históricas e as origens

relativas às condições que reflectem crenças cristãs. Segue em suas conclusões (idem, p.

920): Se nas canções há elementos que, segundo mostrei, vieram de longe, há muitos

outros que lhes pertencem como próprios; e em qualquer caso a forma poética é

genuïnamente nacional. A constatação do autor reforça as premissas lançadas para a

discussão e análise nesta investigação. As duas hipóteses propostas puderam ser

comprovadas, há aspectos de convergência e de divergência nos ninares ouvintes e nos

ninares surdos. Assim como o gênero cantiga de ninar transita entre os ouvintes com

elementos de congruência, do mesmo modo o faz nos espaços ouvintes e nos espaços

surdos. As especificidades dos ninares surdos fortalecem a identidade da pessoa surda na

figura da mulher surda inteira, íntegra, com o referencial da sua performance com sua

língua, com sua visualidade, com sua voz, com seu canto, exercendo sua função de

maternação. A co-autoria dos ninares surdos e ouvintes por um espectador pré-

lingüístico impele a uma reflexão alinhada ao discurso zumthoriano na qual a

obra performatizada é assim diálogo, mesmo se no mais das vezes um único participante tem a palavra (...). Desde que exceda alguns instantes, a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis porque o verbo poético exige o calor do contato; e os dons da sociabilidade, a afetividade que se espalha (...). Mas também porque o ouvinte-espectador é, de algum modo, co-autor da obra. (ZUMTHOR 1993, p.222)

Refletindo a partir de algumas considerações de Barthes (2004), é possível

perceber o quanto nossa sociedade ocidental, desconhece o humano. Cada vez mais

dependente da tecnologia, descorporificando-se e sem transcendência. A linguagem, a

cultura e o poder mantêm uma relação íntima e simbiótica. Questionado sobre como

pensar a cultura, Barthes (2004, p. 110) disse que para responder, precisamos a despeito

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101

do paradoxo epistemológico do objeto, arriscar uma definição. A mais vaga possível,

bem entendido: a cultura é um campo de dispersão. De quê? Das linguagens. As

linguagens são elementos de concretude da humanidade. A possibilidade de

convivermos na diferença: na oralidade e na escritura, nas línguas orais-auditivas e nas

línguas espaciais-visuais, no vozeamento acústico e no vozeamento espacial, no ser

surdo e no ser ouvinte. Dialogar, acordar e entrar em conflitos, é necessário quando se

caminha para os deslocamentos das verdades redutoras dos eus e de todos os Outros.

Acalantar o onírico, ouvir com os olhos, falar com as mãos, sentir na pele o grão

da voz em uma materialidade não escrita. Inscrita. Parafraseando o falar zumthoriano

diante desses universos áporos que são os ninares ouvintes e surdos, cabe-nos jouer e

jouir (brincar e aproveitar) no que há de essencialmente humano: embalar o amor.

Na intimidade noturna que este gênero oferece, encontra-se a criança pousada

nos braços da mãe, aconchegada no seu amoroso ninho. Um amor para o crescer, para

fazer voar. Talvez, não acidentalmente, as palavras finais da concretização de um

período de investigações, descobertas, confirmações de hipóteses, indignações,

encantamentos recorra-se ao menino passarinho com vontade de voar.

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______ A Letra e a Voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Fig 3

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Fig 4

GAMEIRO, Guilherme. Berço do Alentejo (de cortiça). Gravura, p&b. In:

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Fig 5

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Fig 8

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Fig 9

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Fig 10

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CG_id=106&CG_di=cg42.jpg> Acesso em: ? 2000.

Fig 11

Configuração de mão 55. Disponível em: <www.ines.org.br/libras/framemais.asp?

CG_id=121&CG_di=cg55.jpg> Acesso em: ? 2000.

Fig 12

Configuração de mão 02. Disponível em: <www.ines.org.br/libras/framemais.asp?

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108

ANEXOS

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109

ANEXOS A

Cantigas de ninar

• Quadro 1 - VARIANTES DA CANÇÃO NENÉM QUER DORMIR

• Partitura “Neném quer Dormir”

• Acalanto

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VARIANTES DA CANÇÃO NENÉM QUER DORMIR

(QUADRO 1)

Variantes Variante 1 ou de

variante de referência

Variante 2

Variante 3

Variante 4

Variante 5: Jorge nº 69

Estrofe

1

Vai dormir neném,

Eu tenho o que fazer

Vou lavar, vou engomar

As roupinhas pra você

Vai dormir neném,

Eu tenho o que fazer

Vou lavar, vou engomar

Camisinhas pra você

Vai dormir neném,

Vovó (ou papai) tem o

que fazer

Vai lavar, vai engomar

As roupinhas pra você

Vai dormir (o nome do bebê),

Eu tenho o que fazer

Vou lavar, vou engomar

As roupinhas pra você

Dorme nenê

Mamãe tem que fazer

Lavar e engomar

A roupinha de você

Estrofe

2

As roupinhas do neném

Não se lava com sabão

Se lava com lírio branco

Água do meu coração

Camisinhas de neném

Não se lava com sabão

Se lava com lírio branco

Água do meu coração

As roupinhas do neném

Não se lava com sabão

Se lava com lírio branco

Água do meu coração

As roupinhas de (o nome do

bebê),

Não se lava com sabão

Se lava com lírio branco

Água do meu coração

X

Refrão

A, a, a, a, a...

Neném quer dormir!

A, a, a, a, a...

Neném quer dormir!

A, a, a, a, a...

Neném quer dormir!

A, a, a, a, a...

Neném quer dormir!

X

Recolhida

em:

Paulista, PE, por

Adriana Di Donato.

Paulista, PE, por

Adriana Di Donato.

Paulista, PE, por

Adriana Di Donato.

Paulista, PE, por

Adriana Di Donato.

Bom Retiro, SP, por

F. Fernandes

(Jorge, 1988, p.139)

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111

Variantes Variante Jorge

nº 70

Variante Jorge

nº 77

Variante Jorge

nº 78

Variante Leite de

Vasconcelos nº77

Variante Jorge

nº 71

Variante Leite de

Vasconcelos A

Estrofe

1

Menino, vá dormir,

Eu tenho que fazer

Vou lavar ou engomar

Vou sentar para coser.

Dorme meu filhinho

Mamãe tem que fazer

Quem não trabalha

Não pode viver

Dorme, filhinho

Mamãe tem que fazer

Quem não trabalha

Não tem que comer

Dorme, dorme, meu filhinho,

Porque eu tenho que fazer:

Eu quero ir ganhar o pão

Que precisamos comer.

Duermete, mi niño

Que tengo que hacer,

Lavarte la ropa

Ponerme a coser

Calla, niño, calla

Que tengo que hacer

Lavar los pañales,

Poner-me á coser.

Estrofe

2

X

X

X

X

X

X

Refrão

U, u, u, u, u...

X

X

X

X

X

Recolhida

em:

Propriá, SE, por

E. Trigueiros

(Jorge, 1988, p.137)

Pari, SP, por

F. Fernandes

(Jorge, 1988, p. 139).

MG, por L. Gomes.

(Jorge, 1988, p. 139)

Valpaços (PT)

(Leite de Vasconcelos,

1907 p. 836).

Tamares, Salamanca

(ESP), por Lorca.

(Jorge, 1988, p. 137)

Olmeda, (ESP)

Folk-Lore

de Burgos, p. 43

(Leite de

Vasconcelos,

1907 p. 884).

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Partitura Neném quer dormir

Variante 1 ou variante de referência

Partitura: Givanildo Amâncio (maestro; 2008)

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113

Acalanto

É tão tarde

A manhã já vem

Todos dormem

A noite também

Só eu velo por você, meu bem

Dorme, anjo

O boi pega neném

Lá no céu deixam de cantar

Os anjinhos foram se deitar

Mamãezinha precisa descansar

Dorme, anjo

Papai vai lhe ninar

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

Pega essa menina

Que tem medo de careta

Compositor: Dorival Caymmi (Projeto Acalanto, 2008)

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