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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO GABRIEL TEIXEIRA RAMOS CATRAIA-PESCA-SAVEIRO ENTRE PRÁTICAS DE CIDADE PELO MAR E DISPOSITIVOS DE ORLA Salvador 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA

FACULDADE DE ARQUITETURA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

GABRIEL TEIXEIRA RAMOS

CATRAIA-PESCA-SAVEIRO ENTRE PRTICAS DE CIDADE PELO MAR E DISPOSITIVOS DE ORLA

Salvador 2016

GABRIEL TEIXEIRA RAMOS

CATRAIA-PESCA-SAVEIRO ENTRE PRTICAS DE CIDADE PELO MAR E DISPOSITIVOS DE ORLA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia PPG-AU/FAUFBA como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. rea de concentrao: Urbanismo. Linha de pesquisa: Processos Urbanos Contemporneos.

Orientadora: Profa. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela

Salvador 2016

R175 Ramos, Gabriel Teixeira. Catraia-pesca-saveiro entre prticas de cidade pelo mar e dispositivos de

orla / Gabriel Teixeira Ramos. 2016. 118 p. : il. Orientadora: Profa. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, Salvador, 2016.

1. Sociologia urbana . 2. Transporte martimo - Salvador (BA). 3. Transporte martimo - Vitria (ES). I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. III. Portela, Thais de Bhanthumchinda. III. Ttulo.

CDU: 711.4:316

Dedicado s sobrevivncias das prticas de cidade pelo mar: navegantes dum oceano de disputas; reminiscncias de temporalidades; modos outros de fazer cidade e perseverar na vida.

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho s existe porque muitas pessoas participaram dele, portanto, fundamental agradecermos, neste espao, a algumas delas. Primeiramente, agradeo

imensamente ao carinho, amor e fora de meus pais, Silvio e Sidirlene; e aos sbios

comentrios de minha irm, Carolina; e sabedoria de minha vov, Adelaide, sempre em

memria. Ao amor, pacincia e dedicao da Ma, seja na dissertao ou na imensido do mar

de sua existncia em minha vida. Agradeo especialmente professora e amiga Thais, por ter

feito meus dias como mestrando muito mais serenos e de aprendizado sobre escuta.

grande generosidade e ateno da professora Paola, por ajudar tanto a abrir os olhos

para o mundo, especialmente, nas reunies do Laboratrio Urbano e tirocnio docente. Ao zelo

e s palavras certeiras do professor Luis Antonio, que aceitou fazer parte desse momento de

aprendizado. Aos marujos que tivemos contato durante essa jornada pelos mares,

principalmente, Lascado, Ronye, Tata, Hrcules e Davi. A Tio Ozias e Catiau, por todo o

carinho e cuidado na chegada a Salvador; a Tia Nanalva, Cila, Malili e Solzinha, em nome da

enorme e bela famlia Ramos, pelos carinhos e cuidados distncia; a Tio Toninho pela fora

com ensinamentos e aberturas; a Luiz Fernando pela maravilhosa conversa sobre histria,

poltica e portos; a Rita, Joo, Augusta e Osmar, em nome da famlia piracicabana que ganhei,

pela acolhida extraordinria.

s amigas que me instigam a continuar nessa jornada, Samira, Carol Vallandro e Clara

Miranda, e que tanto fazem parte desse trabalho. Aos irmos que fizeram Salvador ser mais

incrvel: Santi, Oz, Titi, Cicerontes & Samilla e Gui; aos queridos Leo Santos, Lari Rocha,

Milene, Igor & Leo, Gabi Amado, Thairo, Lume, Jana & Marcelo, Lorena Costa, Clarinha Pa, Pri

& Tet, Jureminha, Pablito, LG, Lucas, Tai Rebouas, Amine, Bel, Flix & Bel; aos lindos

capixabas-baianos pelas portas abertas, Lutero, Serginho, Clara Pi e, especialmente, Gaia (e

Sofia); aos queridos do PPGAU, Margaridas e disciplinas, em geral, obrigado por tudo; ao trio

danarino de belos encontros: Lud, Aline e Dai. Ao professor Pasqualino Magnavita, pela

maestria em tornar doce o viver, meu sincero carinho; e aos professores Washington

Drummond, Fabiana Britto, Fernando Ferraz, Heliodrio Sampaio e Angela Gordilho, um

afetuoso agradecimento pelos aprendizados nas disciplinas e pesquisas.

Aos amigos-pesquisadores Leandro e Leo pelos maravilhosos encontros nessa vida;

aos pesquisadores-massarocas que foram to fundamentais no trabalho: Andr, Guilherme e

Rafael. Agradeo ainda queles que estiveram de longe, mas sempre bem pertinho: Jiu, Lu

Esteves, Carole, Samya, Lassa, Barbara Veronez, Mila Dini, Mi Tangerino, Gi Gavazza,

Wanisy, Renan Bono, Rafa Machado, Thi Pelissari, Rafa e R Segatto, Fabs e Vitor Lopes.

Muito obrigado. Por fim, agradeo ainda ao CNPq, pelo financiamento da pesquisa.

por isso que o azul

Cor de minha devoo

No qualquer azul, azul

De qualquer cu, qualquer dia

O azul de qualquer poesia

De samba tirado em vo

o azul que a gente fita

No azul do mar da Bahia

a cor que l principia

E que habita em meu corao

Gilberto Gil, Beira-mar

RAMOS, Gabriel Teixeira. Catraia-pesca-saveiro: entre prticas de cidade pelo mar e dispositivos de orla. 2016. 118 f. il. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

RESUMO

Esta pesquisa investiga relaes entre prticas de cidade pelo mar e dispositivos de orla, no cotidiano de duas capitais brasileiras, Vitria (ES) e Salvador (BA). Denominamos prticas de cidade pelo mar aquelas articuladas pelo agenciamento (Deleuze) catraia-pesca-saveiro, das quais nos aproximamos para investigar algumas de suas relaes com dispositivos de orla, compreendidos enquanto rede estratgica de enunciados, discursos, tcnicas e aparatos que tm por objetivo controlar aqueles que devem usar, produzir e consumir territrios de orla. Observamos, durante o estudo, diferentes modos como as prticas de cidade (Certeau), mesmo sendo codificaes produtivistas e consumistas, por vezes, escapam aos dispositivos (Agamben). Assim, a dissertao aponta para uma configurao metodolgica prpria, atravs do uso expandido de diferentes conceitos, engendrados no trabalho de campo como meio de se produzir encontros (Espinosa-Deleuze) com esse. Por meio dessa trama, que envolve conexo de conceitos e trabalho de campo, articulamos modos de escrita da Histria a contrapelo (Benjamin), tensionando invenes de identidades e folclores impostos a sujeitos, que, por meio de suas prticas, sobrevivem nas franjas do capital, e colocam em xeque produes de verdades da cidade contempornea, reproduzidas pelo Urbanismo hegemnico.

Palavras-chave: Prticas de cidade pelo mar. Dispositivos de orla. Catraia-pesca-saveiro. Encontros. Histria a contrapelo.

RAMOS, Gabriel Teixeira. Catraia-pesca-saveiro: between practices of city by the sea and waterfront devices. 2016. 118 pp. il. Dissertation (Master in Architecture and Urbanism) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

ABSTRACT

This research investigates relations between practices of city by the sea and waterfront devices, on the everyday life of two Brazilian capitals, Vitria (ES) and Salvador (BA). We denominated practices of city by the sea those that are connected by the assemblage (Deleuze) between catraia-pesca-saveiro, of which we approached to investigate some of their relations with waterfront devices, known as a strategic net of enunciations, discourses, technics and displays that aim to control those who should use, product and consume waterfront territories. We observed, during the study, many ways that practices of city (Certeau), even being productive and consumerist codifications, for many times, escapes of the devices (Agamben). Thereby, this research is configured in its own methodological procedures, through the expanded use of different concepts understood in the fieldwork as a way to produce encounters (Espinosa-Deleuze) with that. Through this plot, that involves connections of concepts and the fieldwork, we articulate writing ways of the History against the grain (Benjamin), calling into question inventions of identities and folklores imposed to people that, through their practices, survive on the capital fringes, putting in shock productions of truths of the contemporary city, reproduced by the hegemonic Urbanism.

Keywords: Practices of the city by the sea. Waterfront devices. Catraia-pesca-saveiro. Encounters. History against the grain.

SUMRIO

INTRODUO 11

1 CATRAIA-PESCA-SAVEIRO: UMA PROBLEMTICA URBANA 20 1.1 QUESTES EM TORNO DE PRTICAS DE CIDADE PELO MAR 22

1.2 EVOCAES CONCEITUAIS 28

1.3 ENCONTRO COMO PROCEDIMENTO 38

2. INVESTIGAES DE CAMPO 44 2.1 ESCAVAO METODOLGICA 45

2.2 NARRATIVAS DE CAMPO 48

2.3 BREVES CONSTATAES 74

3. URBANISMO ENTRE GRAFIAS: A CONSTRUO DE UMA CRTICA 77 3.1 HISTRIA OFICIAL 78

3.2 INFMIA, TRAIO E ESCRITA A CONTRAPELO 81

3.3 URBANISMO COMO CAMPO EM EXPANSO 93

CONSIDERAES 102

REFERNCIAS 107

ANEXO I 116

11

INTRODUO

APROXIMAES INICIAIS

Por volta de 2011, uma amiga da graduao em Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), em seu projeto final, se aproximou dos

catraieiros1 da Baa de Vitria (ES),2 a partir de uma explorao de registros visuais,

fornecendo algumas cmeras fotogrficas para eles e selecionando imagens de

acervos histricos. De posse disso, realizou junto com eles uma exposio dentro do

antigo cais de Paul (bairro de Vila Velha, que faz parte da Grande Vitria/ES),

convidando pessoas mais prximas e interessados, fato que fez com que nos

aproximssemos deles.3 Este dia foi uma celebrao em forma de churrasco, onde tais

homens puderam expor um pouco de suas vidas, e, ao mesmo tempo, uma espcie de

protesto, pois reivindicavam melhorias no espao onde trabalhavam diariamente.

No decorrer do mesmo ano, nos aproximamos mais ainda deste contexto,

quando fizemos parte de um grupo heterogneo que envolvia estudantes, intelectuais e

professores interessados, tentando reivindicar melhorias de trabalho, j que o cais em

que trabalhavam era sucateado, com instalaes precrias, rampas escorregadias,

paredes quebradas e dejetos por toda parte. Mais grave que isso: viviam em

constantes disputas pelo espao de trabalho, nas turbulentas brigas com a Companhia

Docas do Esprito Santo (Codesa), gestora do Porto de Vitria.

Tentamos nos reunir durante alguns meses a fim de dar continuidade ao

trabalho, mas o movimento se tornou praticamente disperso, por motivos distintos,

mas, especialmente, pela dificuldade de juntar interessados e, tambm, os prprios

trabalhadores, que ainda no eram habituados a esses debates. De qualquer forma, na

maioria das ocasies, nos vamos obrigados a reivindicar junto com eles, a partir de

eventos ou falas em mdias diversas. Neste momento, vislumbramos que poderia ser

1 PACHECO; NEVES, 1995, p.13. O dicionrio do Aurlio define catraia como pequeno barco tripulado por um homem. vocbulo de etimologia obscura, que remonta ao sculo XVIII. J a expresso catraieiro, segundo Antnio Geraldo da Cunha, em seu Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa, surge grafada pela primeira vez em 1844. No parece, porm, ter no Brasil circulao correntia, embora permanea viva, e bem viva, em nossa capital. 2 PASSOS, 2015. A Baa de Vitria se conforma, precisamente, pelas guas que rodeiam a ilha de Vitria, e se assemelha, atualmente, a um canal, devido ao fato da capital ter sofrido vrios aterros. Pode, no entanto, ser definida por trs trechos: Baa de Vitria (sul), Baa Noroeste (oeste) e Canal de Camburi (norte). Diariamente, h muitos anos, os catraieiros fazem, a remo, a travessia Vila Velha-Vitria levando passageiros. 3 PROZA, 2011. Numa investigao e proposta cartogrfica, esta monografia rompe paradigmas dentro da prpria produo de projetos de graduao na Arquitetura e Urbanismo, onde se aproxima de diferentes modos de se fazer cidade, dentre eles, os tecidos pelos catraieiros da Baa de Vitria.

12

interessante para os trabalhadores participarem de um evento especfico, j quase no

fim do ano.

Uma pessoa prxima que organizava festivais musicais de parte internacional,

pela primeira vez, faria algo semelhante na cidade de Vitria, com diferentes grupos e

indivduos das artes e msica, no intuito de promover um intercmbio entre msicos e

artistas do estado e outros internacionais, propiciando, de certa forma, uma visibilidade

para diferentes temas. Fazendo interlocuo com este projeto, apostamos que poderia

ser uma oportunidade de trazer tona os remadores e expor a fragilidade de suas

condies de trabalho.

Dessa maneira, convidamos artistas internacionais para conhecer o cais de Paul

e expusemos as situaes dos trabalhadores, tocando muito um grupo de arte ingls,

que se tornou, dentro do festival, o responsvel por provocar situaes nestes locais: o

Friction Arts,4 que, com este nome, busca exatamente fazer frico com indivduos e

propor modos de serem ouvidas suas vozes. Aps idas dirias aos locais, o grupo

fazia provocaes a ns, os participantes mas ainda sem nos explicar muito, como

uma espcie de jogo ,5 tentando retirar, a partir de palavras e imagens que

produzamos, algumas de nossas experincias do local, sobretudo, com os catraieiros.

Ao fim do intenso processo imersivo, de aproximadamente uma semana, chegamos a

uma proposta interessante e provocativa para o espao do cais e, consequentemente,

da vida dos catraieiros.

Dividida em dois momentos, uma sexta e um sbado, a ideia consistiu em, no

primeiro dia, fazermos mutiro para uma limpeza geral no cais, pintando, grafitando

paredes e jogando fora entulhos, para que, no dia seguinte, realizssemos um evento

no local, convocando, durante a semana, a sociedade em geral; explorando, assim,

mdias diversas para a divulgao. Na sexta, mais ou menos trinta pessoas

participaram da atividade, transformando o lugar de uma maneira surpreendente. No

sbado, o nmero de pessoas foi muito maior, provavelmente, cinco vezes mais; muita

gente at para a quantidade que o espao comportava. Apareceram pessoas diversas,

inclusive jornais, representantes de rgos e governo e, naquele momento, vamos

4 FRICTION ARTS (Website). Friction Arts faz arte onde voc vive por mais de 23 anos. Friction ouve as pessoas, trabalha com elas e, ento, traduz seus pensamentos e ideias em trabalhos de arte contempornea de alta qualidade, comunicando ao resto do mundo, mantendo-se fiel s vozes originais das pessoas. Traduo nossa da apresentao do site do grupo de intervenes artsticas ingls. 5 Idem. Intitulado The full story (A histria completa), nesta postagem, de 14/05/2012, possvel ter acesso aos procedimentos que o grupo ingls se muniu e as concluses que chegaram.

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como necessrios todos os holofotes possveis, valorizando mais a quantidade de

pessoas, acessos, curtidas e compartilhamentos nas redes sociais; logo, mais as

imagens produzidas do que a qualidade do acontecimento, e at mesmo do que seria

legado daquele espetculo.

Uma das propostas era que os catraieiros trouxessem as pessoas de Vitria de

catraia at Vila Velha, fazendo com que elas tivessem a experincia da travessia e,

dessa maneira, compreendessem parte das tramas dirias que esses sujeitos teciam

com as cidades e seus usurios. O evento Casa Catraia6 consistiu em comes e bebes,

regados msica de uma dupla inglesa de folk, com participaes de msicos de

Vitria, amplificando este intercmbio. Foi um processo interessante que nos renderam

imensas indagaes.

Depois disso, ainda no decorrer de 2012, tentamos continuar os encontros com

os catraieiros, atravs de sua Associao, sempre no bairro Paul, do lado de Vila

Velha, onde os trabalhadores tecem relaes muito antigas com os moradores da

regio. Infelizmente, depois de trs reunies espaadas, o movimento se pulverizou e

os catraieiros seguiram com pouco apoio. Algumas dessas experincias foram

registradas por ns e acabaram fazendo parte de um primeiro experimento audiovisual

de relacionar o que acontecia na Baa de Vitria com outros movimentos urbanos do

Brasil, a partir de um vis de interveno urbana e produo artstica.7

Posteriormente, por conta de outras experincias, houve um distanciamento

nosso daquele contexto. Somente no segundo semestre de 2013, uma outra amiga de

Vitria, tambm elaborando questes para sua dissertao de mestrado,8 nos pedira

uma ajuda combinando uma videoconferncia, em que salientamos algumas questes

a partir das aproximaes aos trabalhos e condies, destacando suas relaes com

as cidades de Vitria e Vila Velha, onde faziam o nico trajeto de passageiros. Depois

dessa reunio, decidimos tambm pensar modos de criticar a situao de dentro da

academia, culminando na escrita do anteprojeto de mestrado para o processo seletivo

da Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia

6 EXPURGAO (Website). O evento tomou esse nome, principalmente, aps o registro elaborado pelo coletivo Expurgao, de Vitria. 7 RAMOS, 2013. Na monografia, intitulada desinvento: por uma aventura na cidade contempornea, nos aproximamos, pela primeira vez, de um debate crtico sobre os processos urbanos que estavam acontecendo em Vitria (ES) e Belo Horizonte (MG), e uma das experimentaes foi o vdeo homnimo. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=Igw9y_vOis8. Acessado 23/09/15. 8 COSTA, 2015. De cunho etnogrfico e investigativo, mas, sob uma perspectiva diferente deste trabalho, a tima dissertao de Caroline Vallandro Costa se aproxima estritamente aos catraieiros da Baa de Vitria.

14

(UFBA), para incio no ano seguinte, tensionando debates entre ativismo urbano e o

grupo dos catraieiros.

QUESTO URBANA

Aps aprovao na seleo de mestrado, nos encontramos com a cidade de

Salvador, agora como moradores, no incio de 2014, no bairro Federao, prximo

Faculdade de Arquitetura da UFBA, de modo que, a curtas caminhadas dirias para as

aulas, se intensificava o processo imersivo na ps-graduao, nos grupos de pesquisa

e estudo, bem como na realizao das primeiras disciplinas. No semestre seguinte,

porm, acabamos indo morar no Rio Vermelho, deciso que mudaria radicalmente a

rota dessa pesquisa.

Vivendo num bairro muito mais movimentado, com forte apelo turstico, muitos

bares, boates e restaurantes, inevitavelmente, observamos como a cidade de Salvador

tem sido produzida com interesse estratgico de mercantilizar sua orla, ou pelo menos

parte dela. Em andanas pela regio, confirmamos a necessidade de compreender o

entorno e suas histrias no-oficiais, porm, no decorrer do ano, as aproximaes

ainda foram insipientes nesse sentido, pois a pesquisa era ainda bastante conectada

s catraias em Vitria sob um ponto de vista do ativismo, em que nos questionvamos

se os catraieiros poderiam ser compreendidos enquanto ativistas urbanos.

Ao mesmo tempo, outras reverberaes emergiram, principalmente, a partir de

comentrios rememorados em reunio do grupo de pesquisa pelo professor Pasqualino

Magnavita, que nos sugeriu observar outra prtica do mar que tambm tecia fortes

relaes com a cidade e nos auxiliaria a complexificar uma problemtica urbana, no

nos limitando mais ao ativismo social. Sua sugesto era a incluso do saveiro, que,

outrora houvera sido a principal via de articulao de algumas cidades baianas, com

grandes fluxos e intercmbios de mercadorias, alimentos, sobretudo, costumes e

culturas diferentes; e, tal qual a catraia, sofrera processos intensos de transformao.

De modo que, quando o capital, agenciado pelos interesses do Estado, se apoderara

da situao baiana, fora por um vis exclusivo do turismo, mesmo que tivera se munido

de um discurso preservacionista da prtica.

Comeamos a notar, ento, estruturas muito maiores do que imaginvamos,

sendo necessrio o deslocamento e abertura a conceitos outros para formularmos o

projeto final de mestrado e definirmos quais questes abordaramos, finalmente. Alm

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disso, passou a ser cada vez mais necessrio irmos a campo e investigarmos de perto

o que acontecia com os remanescentes da prtica dos saveiros. Mas, no meio disso,

acabamos por parar na prtica da pesca, to comum em vrias cidades brasileiras.

Tudo por conta de uma ideia descompromissada de perguntarmos a um pescador do

Rio Vermelho, em Salvador, se ele sabia onde poderamos encontrar os saveiristas,

fisicamente, para elucidarmos um pouco mais desses acontecimentos, quando ele nos

respondera que seria muito difcil encontr-los.9 Assim, nosso horizonte de pesquisa se

conformou quando decidimos estudar um pouco mais da histria oficial das prticas,

pesca e saveiro, no contexto de Salvador e do Recncavo Baiano, para que novas

incurses pudessem nos auxiliar a compreender a problemtica urbana, em que a

Histria tambm fosse colocada em xeque.

Nesse momento, foi fundamental repensar a guia do trabalho, redirecionando, do

tensionamento entre ativismo urbano e o grupo dos catraieiros, para relaes entre

prticas de cidade pelo mar apropriando-nos do termo prticas de cidade, de Michel

de Certeau e dispositivos de orla, fazendo-nos mo do conceito de dispositivo de

Giorgio Agamben. As prticas de cidade pelo mar so por ns desenvolvidas na ideia

de escapes cotidianos a lgicas produtivistas e consumistas de cidade, por meio de

sujeitos enquanto mediadores dessas prticas. J os dispositivos de orla se

apresentam, para ns, numa trama estratgica de discursos, enunciados, tcnicas e

aparatos que so produzidos e agenciados por diferentes meios, inclusive, pelos

sujeitos das prticas, em prol de uma configurao especfica dos territrios de orla,

voltada para manuteno e potencializao da produo mercantil.

Com isso, visamos destacar o que acontece em duas capitais brasileiras,

banhadas pelo mar, porturias e fortemente atravessadas pela cultura martima, no

contexto desta problemtica. Tal mudana de rota na pesquisa passou a fazer sentido

para ns, pois, como um percurso metodolgico, tentamos chegar aos saveiros a partir

da pesca, mas, acabamos por voltar, novamente, catraia; todas relacionadas

enquanto uma questo urbana. Por isso, esta pesquisa se configura enquanto

conexes de cidade, no somente as prticas enquanto elas mesmas (catraia, pesca,

9 No decorrer da pesquisa, fomos assimilando que os saveiros fazem parte da Baa de Todos os Santos e que, o Rio Vermelho, por ser j parte ocenica da capital, no compreendia o territrio destas prticas. Por isso, afirmamos que o encontro se deu por conexo e no, somente, fsico. No fim do primeiro captulo, explicaremos melhor a proposta conceitual de encontro por ns utilizada (Ver p.37).

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saveiro), mas, principalmente, a partir de agenciamentos,10 no formato: catraia-pesca-

saveiro, configurando-se uma amalgamada problemtica urbana.

sempre um agenciamento que produz os enunciados. Os enunciados no tm por causa um sujeito que agiria como sujeito da enunciao, principalmente porque eles no se referem aos sujeitos como sujeitos do enunciado. O enunciado o produto de um agenciamento, sempre coletivo, que pe em jogo, em ns e fora de ns, as populaes, as multiplicidades, os territrios, os devires, os afetos, os acontecimentos.

Tratamos, portanto, de inventar uma conexo entre trs prticas semelhantes e

diferentes, possibilitada por meio do aparato discursivo da dissertao, produzindo

certas relaes que julgamos ser interessantes para esta pesquisa, a fim de que

fossem tensionadas questes locais, mas amarradas a uma problemtica urbana

especfica.

OBJETO DE PESQUISA, OBJETIVOS E METODOLOGIA

Ao compreendermos, por fim, nossa pesquisa, definimos alguns procedimentos

de estudo: fomos de Vitria a Salvador e de Salvador a Vitria, muitas vezes

fisicamente, mas, na maioria delas, a partir de encontros11 com pescadores, catraieiros

e saveiristas; em falas, gestos, arquivos e modos de fazer presentes nas prticas.

Dessa maneira, o objeto desse trabalho se desenhou como prticas de cidade pelo

mar, com enfoque do estudo na catraia, pesca e saveiro.

Os captulos deste trabalho foram configurados em torno da problemtica urbana

apresentada: relaes entre prticas de cidade pelo mar e dispositivos de orla. Com

isso, a pesquisa se desenha a partir da ida ao campo, quando pudemos observar

questes importantes interligadas a conceitos que estvamos estudando. Portanto,

para tessitura dessa escrita, primeiramente, trataremos de apresentar prticas e

exposies conceituais para depois alcanarmos nossa metodologia de aproximao

ao campo e desenvolvimento dos problemas, finalizando com a construo de uma

crtica disciplina do Urbanismo.

No primeiro captulo, intitulado CATRAIA-PESCA-SAVEIRO: UMA

PROBLEMTICA URBANA, apresentamos as prticas e seus contextos urbanos,

auxiliados pela Histria, observando as singularidades de cada uma, nas trocas

relevantes entre cidade e mar, a partir dos servios e comrcio, intercmbios de

10 DELEUZE; PARNET, 1998, p.65. 11 DELEUZE, 2002. Este conceito ser desenvolvido a partir da p.37.

17

culturas. Alm disso, expomos a base conceitual da pesquisa que auxilia a

compreender os problemas atrelados lgica de produo da cidade contempornea,

auxiliados pelos conceitos de dispositivo (Agamben) e as visuais sobre o capitalismo.

Tambm apresentamos a ideia de prticas de cidade que escapam a essa lgica,

denominadas por ns de Desviantes, munidas dos conceitos de prticas, modos de

fazer e tticas (Certeau); e as Incorporadas, atravs dos conceitos de sujeito

corporificado (Ribeiro) e formas de resistncia (Foucault), bem como a proposio

metodolgica que expande do conceito de encontro (Espinosa-Deleuze) em diferentes

saberes, para alcanar a discusso posterior.

No segundo captulo, INVESTIGAES DE CAMPO, apresentamos as

observaes em campo, no dia a dia, pelo transbordo de saberes (Urbanismo,

Antropologia, Filosofia), cidades (Vitria, Vila Velha e Salvador) e prticas (catraia-

pesca-saveiro), tomando como mtodo uma narrativa que analisa o campo e constri

categorias baseadas nos conceitos propostos pelo primeiro captulo, organizando

constataes gerais sobre os modos de escapes possveis das prticas de cidade aos

dispositivos estudados.

Por fim, no terceiro captulo, URBANISMO ENTRE GRAFIAS: A CONSTRUO

DE UMA CRTICA, apresentamos uma segunda proposta de escrita, uma Grafia

Traidora, que, enquanto memria da pesquisa, expande o campo do Urbanismo e se

engaja politicamente na histria oficial, produzindo uma crtica a ela enquanto um dos

mecanismos que sedimentam singularidades enquanto identidades. Assim, nela

reunimos narrativas (montagens e textos), no intuito de serem ampliadas as

possibilidades de compreenso das prticas e das vidas dos praticantes; alm de,

fatalmente, colocarmos a memria enquanto inveno.

Dessa maneira, a dissertao desenhada tem como objetivo geral desvelar, sem

revelar,12 prticas de cidade pelo mar, que surgem em diferentes relaes com

dispositivos, dos quais muitas vezes o Urbanismo hegemnico, enquanto disciplina

ordenadora, faz mo e tambm cria meios para apagamento ou transformao das

prticas. Alm disso, como objetivos especficos, o trabalho aponta para a construo

de narrativas que complexificam encontros, e que se transformam em eventos de

criao (Pires), visando produzir crticas e expanses para o campo do Urbanismo;

12 PRIBERAM Dicionrio Online. Se pensarmos a palavra velar, pelo menos, a partir de dois aspectos de cobrir com o vu ou estar de vigia , veremos que ambas as formas nos levam a pensar numa espcie de cuidado com o outro, que podemos assumir enquanto desvelar, no sentido de no dormir para estar atento ao outro.

18

alm de criar ferramentas para ns enquanto pesquisadores de cidade , lidarmos

com a vida praticada sem a transformar em folclore e identidades palatveis para a

indstria do turismo.

20

CAPTULO 1.

CATRAIA-PESCA-SAVEIRO: UMA PROBLEMTICA URBANA

Desejamos fazer deste captulo uma investigao da cidade contempornea por

meio de prticas de cidade,13 colocados em choque produo urbanstica

desenfreada em torno dos dispositivos14 de orla, articulada a interesses mercantilistas,

que primam por um alijamento dos sujeitos praticantes da urbe. Mais do que isso,

reivindicamos uma dissertao que enfrente criticamente tais modelos e seu

engendramento em prol do projeto capitalstico entre Estado e mercado, que, de

diferentes maneiras possveis, tecem tramas e se encravam em nossas vidas.

Apostamos ainda que essa modelizao se diferencia bastante dos modos tecidos no

cotidiano por prticas, estudadas por ns atravs do nosso objeto de pesquisa: prticas

de cidade pelo mar.

Sendo assim, evocamos prticas e sujeitos que se relacionam com o mar e

produzem outras relaes com a cidade, devido ao fato de termos observado na urbe a

peleja pela sobrevivncia de suas atividades, em meio a uma lgica funcionalista,

utilitria, turistificada, acelerada e monetizada de se produzir cidade. Tais prticas nos

mostram ainda a necessidade de complexificar a histria, escovando-a a contrapelo,15

tendo em vista sua utilizao tambm enquanto instrumento de confeco de verdades

e identidades interessantes para o capital.

Desse modo, nossos esforos se concentraro em contar, bem de perto,

algumas questes que ulularam em nossa frente e que escolhemos no deixar de lado,

tendo sempre em vista que enquanto um, somos muitos,16 fazemos agenciamentos e

conexes diversas, de modo que nossa vida sequer s nossa, mas, sim, produzida

por fluxos externos e internos a ns; ou seja, num ponto de vista, h vrios de ns,

destacando uma multiplicidade de problemas.

13 CERTEAU, 1988. Este conceito ser desenvolvido a partir da pgina 26. Atentamos que, neste trabalho, ampliaremos a ideia de prticas de cidade de Michel de Certeau, por meio de outros dois conceitos: sujeito corporificado (RIBEIRO) e formas de resistncia (FOUCAULT). 14 AGAMBEN, 2005. Este conceito ser desenvolvido a partir da pgina 34. 15 BENJAMIN, 1994, p.225. E, assim como a cultura no isenta de barbrie, no o , tampouco, o processo de transmisso da cultura. Por isso, na medida do possvel, o materialista histrico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a histria a contrapelo. Este tema ser retomado no terceiro captulo da dissertao. 16 DELEUZE; GUATTARI, 1995. Sobre a primeira publicao dos autores, Anti-dipo, eles afirmam: Escrevemos o Anti-dipo a dois. Como cada um de ns era vrios, j era muita gente.

21

Daremos destaque, neste momento, aos registros histricos das prticas, para,

no captulo seguinte, focalizarmos naquilo que fora observado nas cidades percorridas

durante a pesquisa, que acabam por destoar do que a Histria nos conta. Tais

aproximaes, inicialmente, aconteceram de modo despreocupado, mas, por

necessidade da crtica, nos permitiram alcanar discusses conceituais, apresentadas

neste contexto, e nos auxiliaro no captulo seguinte. Alm disso, indicamos ainda que,

por alguns momentos, talvez o leitor sinta necessidade de abarcar locais a partir de

imagens ou mapas, mas afirmamos ser tambm inteno do trabalho tensionar

produes imagticas que necessariamente acabam por territorializar e serem

instrumentos para o capital. Contudo, isto ser apresentado no terceiro captulo, ao

discutirmos questes do campo, a partir de montagens imagticas e audiovisuais.

De certo modo, o que desenhamos nessas linhas acontece enquanto rupturas a

lgicas existentes e produes de modos especficos de sobrevivncia, que salientam

uma problemtica urbana contempornea. As configuraes territoriais das cidades

percorridas passam a se tornar paradigmticas, j que no mais se atm s

caractersticas dos locais; mas, ao mesmo tempo, especficas, pois as prticas

presentes constroem outras relaes, nos fazendo notar que nem tudo o que se deseja

pelo capital , de fato, alcanado.

Essa perspectiva comeou a se configurar quando abrimos os olhos para o mar

de Vitria, capital do Esprito Santo, pelo vis de suas prticas de cidade,17 e notamos

catraias e seus trabalhadores, catraieiros, que, em seu cotidiano, elaboram as mais

diversas venturas, desventuras e, porque no, aventuras na cidade. A visual se

expandiu a ritmos acelerados, fazendo-nos chegar s prticas presentes nos mares de

Salvador, capital da Bahia: saveiros e saveiristas, pesca e pescadores. As trs prticas

e seus praticantes sobrevivendo por meio das atividades nas franjas do capital.

Sendo assim, este captulo discorrer sobre o contexto das prticas, atravs do

que se conta em seus registros e arquivos histricos, que tambm ser alvo de nossa

crtica no terceiro captulo, j que a histria oficial tem sido instrumento pelo qual

intervenes urbansticas articulam supostas verdades. Em segundo momento,

partiremos discusso conceitual que nos auxilia para a construo da metodologia de

aproximao.

17 CERTEAU, 1988.

22

1.1 QUESTES EM TORNO DE PRTICAS DE CIDADE PELO MAR

CATRAIAS NA BAA DE VITRIA

A prtica da catraia, primeira da qual nos aproximamos, se mistura s memrias

e histrias que temos acesso sobre a Baa de Vitria, sendo difcil distinguir umas das

outras. No decorrer desta pesquisa, suas atividades se concentravam na travessia de

doze barcos a remo do bairro Paul,18 em Vila Velha, ao centro da capital, Vitria, e

vice-versa; vencendo uma distncia de quase 500m de dez a quinze minutos, como

tambm contam os catraieiros. Com dimenses de, aproximadamente, 1,5m de largura

por cinco de comprimento, chegam a comportar oito passageiros, e seus trabalhadores

ficam, de segunda sexta-feira alm de realizarem passeios nos sbados e

domingos no perodo da manh at o incio da noite, na catraca e/ou nos barcos,

cobrando a tarifa de R$ 2,00 por pessoa ou R$ 4,00 para quem atravessa com

bicicleta , indo ou voltando de um dos lados.19

A prtica foi se transformando e se adaptando aos mais diferentes contextos,

sendo possvel at mesmo traar um paralelo entre a apario das catraias e o

crescimento econmico da cidade de Vitria,20 provavelmente, aps o incio da

exportao de caf, por volta de 1860, dada a gradativa formao a partir de ento, de

um pblico usurio dos botes.21 Isso permitiu que comunidades ribeirinhas se

transportassem para a capital do Esprito Santo, j que a primeira ligao por ponte s

foi construda em 1928. Alm disso, o canal serviu durante muitos anos como principal

barreira contra os ataques de holandeses, ingleses e franceses, bem como limitante

locomoo dos invasores, uma vez que os atracadouros eram grandes escoadores de

mercadorias que chegavam de outros estados e pases.22

Mesmo aps a construo da ponte, as catraias ainda foram, por muitos anos, o

principal modo de transporte para quem precisava fazer a travessia entre o norte de

Vila Velha e Centro de Vitria. Mais do que mercadorias, quela poca, tambm j

transportavam pessoas, por se tratar de um negcio vantajoso, pois, por terem

18 Veremos, no decorrer da dissertao, muitas vezes, esta quantidade mudar. Tal fato se deve a uma oscilao do nmero de trabalhadores que, de acordo com o que acontecia nas cidades de Vitria e Vila Velha, ora era maior, ora menor. A partir de nossa primeira aproximao aos catraieiros, em 2011, tal nmero chegava a dezesseis. 19 Esta tarifa era cobrada na data da nossa pesquisa de campo, em julho de 2015. 20 PACHECO; NEVES, 1995, p.15. 21 Idem. 22 Ibidem.

23

domnio, conhecimento e permanente permisso dos proprietrios de canoas, o

Mestre podia carregar de dez a quinze sacas [de caf] a menos e admitir igual nmero

de passageiros.23

H ainda outros fatores simultneos que favoreceram as catraias a se tornarem

fluxos de ligao entre as cidades, no incio do sculo XX:24 a implementao de uma

malha ferroviria em Cariacica e em Vila Velha (ambos municpios da Grande Vitria),

j em frente a Vitria pela Estrada de Ferro Sul do Esprito Santo (que se transformou

em Leopoldina Railway e, por fim, na atual Vitria a Minas); a criao do servio de

bondes eltricos da Companhia Central Brasileira de Fora Eltrica de Vila Velha a

Paul, que se conectavam, por trilhos. Alm disso, para ir a Vitria, os usurios

precisavam ainda pegar as catraias, e, principalmente, o eixo comercial e de servios

que beiravam orla, do lado de Vitria, que fazia com que muitos moradores de Vila

Velha se deslocassem para a capital. Dessa forma, o perodo compreendido entre 1940

e 1965 se configurou como apogeu do uso das catraias, acentuado pelo aumento

populacional e criao de diversos polos de interesses, servios, negcios e

entretenimento.

Contudo, a partir dos anos 50, houve dois acontecimentos que acarretariam,

anos frente, numa primeira queda dos passageiros no acesso ao cais das barcas: a

desativao da Estao Pedro Nolasco (Vila Velha) e a separao do principal

mercado da cidade de Vitria do mar (o Mercado da Capixaba); e, posteriormente,

novas implementaes no transporte pblico, como o incio das atividades do sistema

de nibus de massa e a retirada dos bondes, na dcada de 60. Como as catraias e os

bondes atuavam praticamente de maneira complementar, isso afetaria profundamente

a prtica.25 Na dcada de 70, a pequena Vitria comea a sofrer processos intensos de

transformao urbana, com a implementao das barcas de transporte aquavirio pelo

governo do estado, sendo o movimento derradeiro para queda na procura, j que havia

uma preferncia no transporte motorizado pelo mar.

No ano de 1995, a partir da coleo Memria Viva, projeto da Prefeitura

Municipal de Vitria, tendo como autores Pacheco e Neves, pela primeira vez, temos

registro de uma pesquisa especfica sobre a prtica da catraia e os catraieiros da Baa

23 COSTA, 1951, p. 54. 24 PACHECO; NEVES, 1995, pp.16-17. 25 Idem.

24

de Vitria. Embora pequena, com 32 pginas e de carter memorialista, apresenta-se

bastante significativa para se compreender as transformaes pelas quais passou a

prtica, posto que at ento o que se observava eram pequenos excertos em

dissertaes, teses, livros ou relatos sobre a baa de Vitria e, geralmente, dentro do

tema da paisagem visual.

De certa maneira, isso reverbera ainda mais a marginalidade da prtica que,

somente nos fim dos anos 1990, foi organizada pelos catraieiros a partir de uma

associao, fundada devido ao aumento do nmero de viagens.

Em 2002, 16 trabalhadores realizam esta atividade diariamente, transportando em mdia 50 passageiros por dia a um custo de passagem individual de R$ 1,00, utilizando 11 barcos a remo. [...] A Associao dos Catraieiros da Baa de Vitria constituda em 1998 [...].26

Isto se deu, provavelmente, ao novo contexto pelo qual passava a prtica, j

com o uso do transporte rodoviarista cada vez mais intenso e predominante, o aumento

da malha viria e nmero de veculos individuais, consequentemente, dos

congestionamentos do trnsito, alm do sucateamento do aquavirio. No incio dos

2010, o sistema de nibus coletivo, Transcol, j era consolidado, com diversificao e

ampliao de terminais de nibus, assim, as catraias continuaram na sobrevivncia

pelas bordas da cidade, em constantes disputas com a Companhia Docas do Esprito

Santo (Codesa) pelo espao da baa. Neste perodo, pudemos nos aproximar um

pouco mais e o narraremos no captulo seguinte, onde articularemos as prticas a

diferentes cidades. Desse modo, necessitamos compreender tambm o contexto das

demais prticas que nos aproximamos: pesca e saveiro, ambas na Bahia, as quais

trataremos a seguir.

PESCA E SAVEIRO NOS MARES DA BAHIA

A pesca e a mariscagem na Baa de Todos os Santos so atividades praticadas principalmente pela populao geralmente excluda do mercado de trabalho formal, que obtm do mar o seu sustento. Mas, para a maioria dessas populaes, a pesca no realizada apenas como alternativa de sobrevivncia, na falta de empregos gerados pela economia regional e de qualificao profissional. A pesca , sobretudo, uma herana cultural secular, que d sentido existncia individual, cimenta e regula a vida em grupo e prov matria imaginao social.27

Nas primeiras dcadas do sculo XX, apareceria, no contexto brasileiro das

prticas da pesca, a ideia de saneamento, to presente nos primrdios da disciplina do

26 COSTA, 2015, p.61 apud CAMPOS, 2004, pp. 213-214. 27 BANDEIRA; BRITO, 2011, p.304.

25

Urbanismo ;28 uma das quais regeram o contexto de transformaes na Europa 29 a

fim de justificar o ordenamento dos trabalhos do mar.30 Anos frente, esta lgica se

fortaleceria a partir da aprovao dos Estatutos das Colnias de Pescadores e da

Confederao Geral pela Marinha (1923), seguidos das conquistas trabalhistas

presentes no governo provisrio de Getlio Vargas (1930-1934), alm de maiores

intervenes estatais, com a reabertura dos portos ao interesse pblico,31 a criao da

Diviso de Caa e Pesca, que tinha a funo de gerir a pesca no pas.

H de se considerar, porm, que, com o declnio da produo aucareira no fim

do sculo XIX e incio do XX, uma grande quantidade de mo de obra foi realocada

para o sul do Brasil, na busca pelas riquezas do cacau, ainda que tenha sido

descoberto petrleo na regio baiana, o que fez crescer o movimento de migrantes

para Salvador e arredores. Dessa maneira, com a consequente modernizao das vias,

extino de caminhos tradicionais e sofisticao na tipologia e porte das embarcaes

de cargas e passageiros, a regio foi sufocada pelo rodoviarismo, transformando

profundamente o modo de construo dos saveiros e sua logstica.32

Assim, o saveiro tal qual a catraia e pesca, assumido enquanto prtica, no

somente embarcao se constituiu como atividade recorrente e parte da paisagem da

Baa de Todos os Santos, contudo, neste processo, acabou sendo praticamente 28 BATISTA, 2014, p.20. Neste momento, fazia-se certa apologia a uma pedagogia militar, tanto da vigilncia quanto do saneamento, devido ao fato, principalmente, do ensino de Engenharia ser vinculado Marinha. Em 1874, contudo, o ensino fora dividido entre a Escola Militar (engenharia militar) e Politcnica (engenharia civil), no Rio de Janeiro. A Escola Politcnica do Rio de Janeiro (EPRJ) usou como modelo a Escola Politcnica de Paris (EPP), fundada em 1794 e profundamente influenciada pelas grandes transformaes porque passava Paris poca, a partir das intervenes do Baro de Haussmann (1853-1870), reverberadas em todo o mundo e aclamadas pelas elites, dilacerando toda a cidade com avenidas e bulevares, num projeto de embelezamento e melhoramentos da regio do Sena. Tal projeto era parte j bem desenvolvida de uma lgica muito marcante no sculo XVIII, na Europa, a partir de uma medicina social para anlise e atuao em prol de uma determinada ordem, aplicada cidade pelo vis da medicina urbana (FOUCAULT, 2012). 29 CRONOLOGIA DO URBANISMO (Website). Destacamos que o contexto era muito amplo, posto que, entre meados do sculo XIX e incio do XX, um conjunto de aes passou a ser vigente num tempo de profundas transformaes porque passavam cidades europeias, seja pelas grandes construes, como as do Baro de Haussmann para Paris; as obras para o metr de Londres; alm das teorias projetuais em ascenso, marcadas pelos planos para Barcelona e Viena, em 1859, com uma variedade de publicaes que ajudam a construir o perodo. Para isso, recomendamos o site da pesquisa Cronologia do Pensamento Urbanstico como importante referncia. 30 BRASIL, Decreto n. 13.496 de 12 de maro de 1919. De 1919 a 1924, foi determinada a Misso de Nacionalizao da Pesca e Saneamento do Litoral, sendo transportado pelo cruzador Jos Bonifcio, partindo do Rio de Janeiro para o Par. Segundo consta no decreto, a misso era dividida em trs partes: nacionalizao da pesca, organizao dos servios de pesquisas oceanogrficas e saneamento do litoral. Nessa misso foram organizadas, aproximadamente, oitocentas colnias, fundadas mil escolas e matriculados cem mil pescadores, a fim de serem institudos locais para fiscalizao, vigilncia e defesa do litoral brasileiro. 31 BRASIL, Decreto n 24.559 de julho de 1934. Aps idas e vindas, os pescadores brasileiros sairiam do Ministrio da Marinha e iriam para o da Agricultura, onde foi elaborado o primeiro Cdigo de Pesca (1934) e que subordinava os pescadores Diviso de Caa e Pesca. Neste contexto, ao surgirem os sindicatos de trabalhadores, os modos como essas relaes ocorriam modificaram bastante. 32 BRANDO, 2007; BRITO, 1994.

26

dizimada. Enquanto forma de embarcao, descendeu da antiga caravela portuguesa:

o valente saveiro de vela de pena, bom para a pesca; o saveiro do Morro de So

Paulo, bom de cara; o pequeno saveiro de trfego de Salvador, outrora utilssimo no

transporte de pequenas cargas e passageiros entre os bairros da cidade.33

Aconteceu que foi criada uma embarcao para transportar mercadorias para Salvador. Eles pegaram alguns carpinteiros l de Portugal e da Espanha e mandaram para c, para recuperar esses barcos e continuar velejando. Esse pessoal que, alm de recuperar os barcos grandes, foram os responsveis por criarem uma embarcao dentro do Rio Paraguau. (...) Porque ele todo construdo com o material: as madeiras especiais, todo material voc encontra no Rio Paraguau at hoje. Ento, eles foram fazendo uma embarcao que fosse adequada ao sistema, j que todas embarcaes so semelhantes, principalmente as de madeira. Elas tm uma quilha, sobre-quilha, a caverna, os braos, a cinta; s muda ser mais larga aqui ou mais comprida ali, mais para poder se adequar ao sistema. Ento foi a que saiu esse nosso saveiro, onde eles chamam saveiro de vela de iar, que um mastro colocado bem na frente do barco.34

Importante ressaltar ainda a construo das cidades do Recncavo atrelada s

prticas especficas presentes na Baa de Todos os Santos pelos saveiristas, enquanto

velejadores e transportadores, mas, sobretudo, grandes mercadores.

Nestes portos, terra adentro, a produo local de acar, cachaa, fumo e farinha era embarcada em saveiros para Salvador para serem exportadas. Outros produtos, como azeite de dend, piaava, peixe seco, cermicos, bem como os vindos do serto bois, carne seca, couro e salitre eram enviados capital e a outras vilas e povoaes da Baa de Todos os Santos, para consumo local. No retorno de Salvador os saveiros, tangidos pela virao da tarde, traziam escravos africanos e produtos importados da metrpole, como tecidos, ferramentas, plvora, bacalhau, azeite e vinho, que nessas vilas parte trocava o saveiro pelo lombo do burro para chegar ao serto e s barrancas do So Francisco.35

Em 1970, ao ser constituda a Regio Metropolitana de Salvador (RMS),36

diretrizes governamentais guiavam a regio em torno da produo acelerada de

cidade, com uma srie de ocupaes que se espraiaram at as reas suburbanas, por

onde se expandem cada vez mais a partir de diversas polticas governamentais

habitacionais e especulaes imobilirias em prol da criao de reas privadas de

moradia, como condomnios e parques residenciais.

33 ARAJO, 2011, p.61. 34 Trecho retirado da transcrio de uma entrevista feita com um ativista dos saveiros e saveiristas, em 07/07/2015. Outras entrevistas foram realizadas com diferentes pessoas e sero retomadas a partir do segundo captulo. 35 ARAJO, 2011, p.61. 36 Tambm conhecida como Grande Salvador, contempla os municpios: Camaari, Candeias, Dias d'vila, Itaparica, Lauro de Freitas, Madre de Deus, Mata de So Joo, Pojuca, Salvador, So Francisco do Conde, So Sebastio do Pass, Simes Filho e Vera Cruz.

27

Com isso, nos ltimos anos, a cidade de Salvador, principalmente atravs de

sua orla, foi se tornando uma experimentao de instrumentos para venda dos espaos

urbanos,37 comprometendo, gritantemente, as prticas prximas, como a pesca. A

complexidade desta trama se desenrola a partir de investimentos capitalsticos em

torno do turismo e marketing, e favorece amplamente empresas, bancos, marcas de

cervejas e tudo quanto mais possa ser cabvel.

Dessa maneira, as prticas so vistas a partir de uma lgica memorialista que

acaba servindo turistificao. A partir do tombamento do saveiro Sombra da Lua,38

bem como a construo da associao Viva Saveiro39 e suas publicaes, o que pode

se observar um incentivo ao retorno das prticas, mas por um vis folclrico, atrelado

preservao visual. Outras publicaes se atm a esse carter, seja pelo objeto ou

pela paisagem visual, por isso passamos a tentar investigar outras narrativas sobre

estas prticas, sendo necessria a aproximao aos locais. Sendo assim, a partir do

prximo subcaptulo, apresentaremos um corpo conceitual que nos auxilia a pensar

nossa problemtica que coloca em tenso a histria e os instrumentos identificadores

desses sujeitos e prticas.

37 PARTICIPA SALVADOR (Website). O que se restringia ao perodo do carnaval foi se transformando e, a cada dia que passa, a investida cada vez maior, como a verticalizao de sua orla. 38 Este tema ser abordado mais algumas vezes nos captulos seguintes. 39 VIVA SAVEIRO, Associao (Website). Importante debate, mas que acaba por fortalecer a materialidade do objeto e menos a prtica.

28

1.2 EVOCAES CONCEITUAIS

Ao passarmos daquilo que compreendamos como um problema especfico de

uma localidade a regio da Baa de Vitria, onde a prtica da catraia sofre processos

de transformao urbana, respaldados por diferentes discursos para desmobilizao

das atividades e atingirmos aos mares da Bahia, seja pela Baa de Todos os Santos,

ou sua poro ocenica, situada no Rio Vermelho, notamos uma lgica muito

semelhante de se produzir a urbe, que nos provocou questionamentos sobre o tipo de

cidade que acontece por meio dessas sobrevivncias.

Contudo, antes de chegarmos, de fato, a um desenvolvimento maior do campo

emprico da pesquisa, destacaremos conceitos que nos apoiam na compreenso da

problemtica capitalstica em torno dos dispositivos de orla, que circundam diferentes

maneiras de expulso das atividades, mas que, agenciadas, se localizam com

caractersticas muito semelhantes: uma produo urbana engendrada em interesses da

especulao imobiliria, turistificao e gentrificao das atividades e usos.

Assim, este subcaptulo pretende fazer, criticamente, escavaes conceituais

que nos auxiliam, primeiramente, a compreender o que so as prticas de cidade pelo

mar, abarcadas por duas vertentes conceituais distintas, para trazer, em segundo, a

orla e a ideia de dispositivos.

PRTICAS COMO DESVIO OU DESVIANTES

Prticas de cidade em Michel de Certeau

A produo de cidade propagada e por ns criticada nesta dissertao se baseia

no territrio estratgico, onde so produzidos os locais a serem consumidos, com as

devidas marcas, lojas e empresas; equipamentos urbanos padronizados (rvores

dentro de vasos, bancos de shoppings centers, pisos compartilhados, etc.) e

pasteurizados; muito bem esquadrinhados e definidos seus espaos de uso. Um

agravamento de uma produo individualista e homogeneizante de cidade que se

mune, h vrias dcadas, de instrumentos de propaganda e marketing, vendendo,

assim, espaos pblicos e selecionando seus compradores. E quem no pode pagar

por isto, est fora do jogo.

Com isso, a produo de um modelo especfico de cidade problema que j era

grande no incio do sculo XX no Ocidente passou a ser o foco principal, j que se

29

pauta pela tentativa de aniquilao da experincia de alteridade nos espaos pblicos,

mantendo uma lgica baseada em alguns fatores, como:

1. produo de um espao prprio: a organizao racional deve portanto recalcar todas as poluies fsicas, mentais ou polticas que a comprometeriam;

2. estabelecer um no-tempo ou um sistema sincrnico, para substituir as resistncias inapreensveis e teimosas das tradies (...);

3. enfim, a criao de um sujeito universal e annimo que a prpria cidade: como a seu modelo poltico, o Estado de Hobbes (...) Nesse lugar organizado por operaes "especulativas" e classificatrias, combinam-se gesto e eliminao. De um lado, existem uma diferenciao e uma redistribuio das partes em funo da cidade, graas a inverses, deslocamentos, acmulos, etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que no tratvel e constitui portanto os "detritos" de uma administrao funcionalista (anormalidade, desvio, doena, morte etc.).40

Ao apontar a estruturao de um espao prprio, um no-tempo e um sujeito

universal, urge o problema da modelizao do que compreendemos como cidade e,

consequentemente, dos modos de pratic-la, a partir do cotidiano. A originalidade da

pesquisa de Michel de Certeau ocorre pela aposta nas prticas que, longe de serem

totalmente capturadas, so transitrias, microbianas, acontecem a todo instante e

diariamente, nas ranhuras dos espaos, de cdigos; por muitas vezes, indiscernveis,

mas incidem como relampejos, dentro desse corpo tentacular, tais quais as prticas de

cidade pelo mar. Observaremos, ainda no estudo do autor, o uso de dois termos

provenientes das guerras: estratgia e tticas. Para o primeiro, destacamos todo um

saber que regula, gere e disciplina, agindo para a manuteno das estruturas que

articulam o poder. As tticas, por sua vez, seriam as prprias prticas; linhas de escape

das membranas governamentais, mas dentro da estratgia, nas suas possibilidade de

decodificao.

Nos deslocamentos, por exemplo, haveriam vrios modos distintos de responder

a seus cdigos, do que se colocam enquanto usuais. O caminhar que foge a essa

normatividade, em seus trajetos cotidianos, costura outras relaes com a cidade;

irrompe com o silncio e abre brechas em modos que nada tm a ver com aqueles que

muitos projetos funcionalistas tentaram ordenar a partir da linha que visa substituir a

prtica e exprimir a propriedade (voraz) que o sistema geogrfico tem de poder

metamorfosear o agir e legibilidade41 que acaba por fazer esquecer uma maneira de

40 CERTEAU, 2013, p.173. Grifos originais do autor. 41 Idem, p.176.

30

estar no mundo.42 De tal modo que, o ato de caminhar est para o sistema urbano

como a enunciao (...) est para a lngua ou para os enunciados proferidos.43

Este caminhar que escapa se configura como um veculo maior que uma

atividade fsica, um engendrado de sentidos a partir de disposies corprea, a

tecerem relaes de cidade, se tornando, assim, poltico. Ou seja, as prticas de

cidade pelo mar, atravs de seus praticantes, tecem tramas e conectividades com a

cidade muito diferentes; articulam-se queles que moram na vizinhana; produzem

deslocamentos ali e acol; relacionam a memria ao que havia no lugar que vivem; vo

alm de uma ideia de caminhar enquanto uma habilidade em colocar um p na frente

do outro e vaguear, mas, sim, como articulaes corpreas que seriam modos de fazer

a urbe. Tais prticas esto fora do jogo, no enquanto fora do sistema, mas, em

instantes que fogem ao produtivismo e consumismo, pois tecem outros esquemas, que

acontecem por baixo, nas solas do capital; e nas periferias ou no lado b, onde h a

precariedade e/ou desinteresse no controle.

A diviso do trabalho por cima um campo de maior velocidade, com sacrifcio do simblico. Nela, a rigidez das normas econmicas (privadas e pblicas) impede a poltica e toma o seu lugar. Por baixo, h maior dinamismo, maior movimento, mais encontros, maior complexidade, mais riqueza (a riqueza e o movimento dos homens lentos), mais combinaes. Produz-se uma nova centralidade do social, segundo a frmula sugerida por Ana Clara Torres Ribeiro, o que constitui uma nova base para a afirmao do reino da poltica.44

Nesse percurso, encontramos autores que nos auxiliam a notar outras

possibilidades, como a ideia de homens lentos,45 de Milton Santos, em que

observamos uma categoria social que experimenta uma outra temporalidade: a da

lentido. Esta responsvel por dinamismo e encontros, tecendo diversas redes de

conexo, em que se pratica o territrio usado ou os espaos banais. Tais locais esto

distantes ou so desinteressantes para a estratgia, esta que busca conduzir o

contrrio disso: os espaos a serem vendidos. Nessa trama, os homens lentos no

acessam suficientemente o esquadrinhado veloz, atrelado aos exclusivismos

mercantilistas, e, por conta disso, tecem mais combinaes, que, segundo Ana Clara

Torres Ribeiro, produziro outras centralidades sociais, como enxergamos nas

42 Ibidem. 43 Ibid., p.177. 44 SANTOS, 1999. 45 Idem, 1994a.

31

produes perifricas, especialmente nas ltimas dcadas.46 Alm dessa categoria,

observamos os errantes, desenvolvido por Jacques,47 em crtica ao que se predominou

no Urbanismo, na consequente modelizao do projeto moderno que minimizou a

experincia urbana da alteridade.

Valorizamos o estudo destes conceitos para melhor compreenso desse jogo,

contudo nos atentaremos, especificamente, nesta pesquisa, composio proposta por

Michel de Certeau, anteriormente explicitada. Alm disso, no trabalho de campo,

apresentaremos uma caracterstica que se faz presente em todas as categorias: a

corporalidade enquanto poltica. O corpo, sempre negado enquanto inventividade e

pautado enquanto um objeto a ser modelado, reage, j que nesta cidade moderna, o

indivduo sofre uma espcie de crise ttil: deslocar-se ajuda a dessensibilizar o

corpo.48 Criam-se espcies de movimentos no-demarcveis, por isso so

sobrevivncias nas cidades concebidas numa lgica velocista e eficiente e, por conta

disso, esmagam seus passantes, trabalhadores e moradores, imprimindo um ritmo

muito diferente do que existia, transformando, assim, a experincia urbana.

PRTICAS COMO INCORPORAO OU INCORPORADAS

Sujeito Corporificado em Ana Clara Torres Ribeiro

De encontro tambm normatizao, mas sob um vis da conscincia e

incorporao, emergem outras aes, que, segundo Ana Clara Torres Ribeiro, se

configuram enquanto encarnao do sujeito de direitos. Ele, imbudo dos seus

interesses compreendidos pelos movimentos sociais, nos ajuda a elucidar o problema-

chave para a maneira hegemnica de se produzir cidade, deixando clara a urgncia em

compreendermos a vida coletiva contempornea.

O indivduo, projetado por instituies subordinadas ao comando da economia globalizada e por orientaes polticas servis, pura ao e pura estratgia, envoltas numa aura de criatividade e de inesgotvel realizao pessoal. Porm esse mesmo indivduo, apresentado como eficiente e empreendedor, cada vez mais dependente de redes sociais e tcnicas (...).49

46 Os saraus culturais, as ocupaes urbanas do movimento Hip-Hop, com apropriaes do espaos so exemplos rpidos presentes em vrias periferias de cidades brasileiras de mdio e grande porte. 47 JACQUES, 2014, p.19. Os errantes so, ento, aqueles que realizam errncias urbanas, experincias urbanas especficas, a experincia errtica das cidades. A experincia errtica afirma-se como possibilidade de experincia urbana, uma possibilidade de crtica, resistncia ou insurgncia contra a ideia de empobrecimento, perda ou destruio da experincia a partir da modernidade (...). 48 SENNETT, 2008, p.214. 49 RIBEIRO, 2005, p.418.

32

Este sujeito disputa a cidade, enquanto campo de batalha, mas aponta ainda

para a necessidade de ns, enquanto pesquisadores, tentarmos tambm interpretar

suas aes na cidade, nos fazendo compreender no cotidiano outras formas de

expresso.

Existem elos (ir) relevantes entre cotidiano, lugar, indivduo e pessoa. Atravs desses elos, tudo acontece e adquire sentido, permitindo a individuao e o pertencimento, e tambm nada importa ou tem significado, j que cada gesto pode ser envolto em enredos da cotidianidade alienada e na indiferena. (...) nessas condies que a sociabilidade pode ser alimentada ou destruda por uma atitude, um gesto, uma palavra, um sorriso ou um olhar.50

Os modos de expresso, portanto, so cruciais. Dessa maneira, h um jogo nas

prticas enquanto aquilo que se expressa e faz, mas, claramente, atravs de um sujeito

que agencia essas conexes possveis. Os sujeitos so, portanto, meios e no fins

pelos quais as prticas produzem espaos na cidade. Assim, se refletirmos juntos a

Foucault, que nos auxiliar a pensar a dupla conexo para o sujeito em relao a si e

s foras externas ,51 veremos que h um processo de aceitarmos ou no o que nos

imposto.

Assim, a caminho de uma possvel equiparao s formas de resistncia em

Foucault explicada a seguir , a categoria conceitual sujeito corporificado52 se articula

com a fala e o gesto, a acomodao e a insubordinao, a manipulao de

classificaes sociais e a ao que se desenvolve nas fronteiras entre o visvel e o

invisvel, alcanando o direito definio de sua forma de aparecer e acontecer, se

tornando um acontecimento, onde e quando so esperados o seu silncio e o

apagamento de sua individualidade.53

Formas de resistncia em Michel Foucault

Na verdade toda ao moral implica uma relao com o real que ela se realiza, e uma relao com o cdigo ao qual ela se refere; mas tambm implica uma certa relao consigo mesmo; esta no simplesmente conscincia de si, mas constituio de si como sujeito moral, na qual o indivduo circunscreve a parte dele prprio que constitui esse objeto de prtica moral, define a sua posio em relao ao preceito que ele acata.54 No podemos nos colocar fora da situao, em nenhum lugar estamos livres de toda relao de poder. Eu no quis dizer que somos sempre presos, pelo contrrio, que somos sempre livres. Enfim, em poucas palavras, h sempre a

50 Idem, p.416. 51 FOUCAULT, 1984b. 52 RIBEIRO, 2005. 53 RIBEIRO, 2010, p.31 apud SCHVARSBERG, 2012. 54 FOUCAULT, 1984b, p.263.

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possibilidade de mudar as coisas. (...) Veja que se no h resistncia, no h relaes de poder. Porque tudo seria simplesmente uma questo de obedincia. A partir do momento que o indivduo est em uma situao de no fazer o que quer, ele deve utilizar as relaes de poder. A resistncia vem em primeiro lugar, e ela permanece superior a todas as foras do processo, seu efeito obriga a mudarem as relaes de poder. Eu penso que o termo resistncia a palavra mais importante, a palavra-chave dessa dinmica.55

Tais falas, de duas publicaes de Foucault distintas, nos auxiliam a enxergar a

perspectiva diferente que o autor tomar. Tomemos como destaque o verbo acatar e, a

partir dele, notemos enunciaes de um outro ponto de vista, no somente da relao

observada nos estudos anteriores sobre vigilncia, normatividade e gesto.56

Tratam-se de formas de resistncia, no enquanto conceito binrio: acatar ou

dizer no, mas um desejo que precede a forma que ser dada quilo. A grande

contribuio de Michel Foucault foi apontar para um momento anterior forma (Poder)

como potncia: resistncia. Nos escritos do autor sobre o texto de Kant, O que o

Iluminismo?,57 podemos observar uma importante pista para a compreenso do

conceito.

Prestem ateno, diz Kant a seus leitores, no nos grandes acontecimentos que devemos buscar o signo rememorativo, demonstrativo e prognstico do progresso; nos acontecimentos bem menos grandiosos, bem menos perceptveis. No se pode fazer essa anlise do presente no que diz respeito a esses valores significativos sem nos entregar a um clculo que permita dar a isso que, aparentemente, sem significao e valor, a significao e o valor que buscamos.

Nas investigaes das prticas de cidade pelo mar, observamos a necessidade

de compreend-las, tambm, enquanto formas de resistncias; para isso, importante

a discusso filosfica em torno de uma outra ideia para prtica. Assim, atravs das

interlocues assumidas com seus trabalhos finais, especialmente Histria da

Sexualidade II Uso dos Prazeres,58 vemos uma toro filosfica no seu percurso

intelectual, quando o autor se aproximar dos gregos e produzir outras questes.

Ocorre uma investida para o terceiro ponto da trade foucaultiana de constituio

do sujeito (saber-poder-sujeito): as relaes pelas quais os sujeitos assimilariam ou

no ao que lhes imposto. Por conta disso, os conceitos de prticas, tcnicas e

55 Idem, 2004, p.268. 56 Foucault estabelece, durante sua trajetria, uma srie de estudos sobre as relaes de saber-poder, como Arqueologia do saber (1969), A ordem do discurso (1970) e Vigiar e punir (1975). Posteriormente, sua investida ser em torno das relaes do sujeito em torno de sua tica, principalmente, atravs da obra inacabada Histria da sexualidade (dividida em trs volumes e publicada entre os anos 1976 e1984) e A hermenutica do sujeito (1981). 57 Ibidem, 1994, pp. 679-688. 58 Ibid., 1984b.

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cuidados de si, retirados da Antiguidade Grega, consideram os modos como o sujeito

se constitui; as relaes de si para consigo.

Dessa maneira, sucintamente, destacamos que as prticas de si se conformam

como uma espcie de base organizacional, racional ou regular, pelo qual os homens se

regem, circulando em torno do saber, do poder e da tica, definindo assim uma

experincia de vida; as tcnicas de si, por sua vez, acontecem por meio de suas

possibilidades de reflexo sobre as prticas exercidas, suas finalidades e caminhos

imaginveis de realizao; e os cuidados de si seriam meios de se pensar a liberdade

individual enquanto tica,59 ou condutas de si.

Para se conduzir bem, para praticar adequadamente a liberdade, era preciso ocupar-se de si mesmo, cuidar de si, ao mesmo tempo para se conhecer (...) e para se formar, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que poderiam arrebat-lo.60

Conduzir-se bem se trata de uma relao com a moral, que se diferencia de um

cdigo moral; para o autor, so duas questes distintas, pois o sujeito responder este

cdigo de vrias maneiras diferentes, acatando ou resistindo, como as formas de

resistncia por ele denominadas contracondutas. Este um ponto fundamental para

compreendermos que as prticas esto intimamente ligadas ao que determinado pelo

saber-poder, mas, tambm, s formas que se lhe responde.

Aliados ao pensamento do autor, devemos considerar que os pontos de

resistncia so, por vezes, transitrios e mutantes, introduzidos em ns por processos

de clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos,

percorrem os prprios indivduos, recortando-os e os remodelando, traando neles, em

seus corpos e almas, regies irredutveis.61 Revel, leitora de Foucault, resumir o

conceito:

a resistncia se d, necessariamente, onde h poder, porque ela inseparvel das relaes de poder, assim, tanto a resistncia funda as relaes de poder, quanto ela , s vezes, o resultado dessas relaes; na medida em que as relaes de poder esto em todo lugar, a resistncia a possibilidade de criar espaos de lutas e agenciar possibilidades de transformao em toda parte.62

59 Ibid. Atentamo-nos aos problemas das simplificaes de conceitos, bem como o esforo pelo qual Michel Foucault desenrolar este tema durante muitas pginas e captulos, contudo, destacamos, prioritariamente, os pontos prximos que podemos travar a partir de Foucault e Espinosa, que tambm far, a seguir, parte do corpo deste debate. 60 Ibid., 2004a, p.262. 61 Ibid., 1988, p.91. 62 REVEL, 2005, p.74.

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Alm disso, Foucault nos aponta as contracondutas que, no dia a dia, so

tecidas por diferentes sujeitos. No percurso desta dissertao, tambm apareceram

algumas dessas, que criam suas formas de resistncias, escapando s tramas do

capital, atravs de prticas de cidade pelo mar, e respondem se articulando ao que

lhes imposto por lgicas que invadem seus cotidianos, sejam atravs de intervenes

estatais, por vezes, amparadas pelos prprios praticantes, que visam a expulso das

atividades ou mesmo sua manuteno, contudo, atreladas a discursos

preservacionistas que primam pela turistificao de seus espaos. Dessa maneira,

passamos a nos questionar: como traz-las ao corpo de um texto, sem nos

escondermos enquanto pesquisadores, mas, ao mesmo tempo, sem denunci-los?

Partindo ainda de Foucault, tomamos nota do ensaio A vida dos homens

infames,63 inspirado em Borges,64 em que decide praticar um ato rebeldia e ironia, ao

publicar vidas de sujeitos que foram legados infmia; em outras palavras, torn-los

famosos, seguindo os pr-requisitos:

que se tratasse de personagens tendo existido realmente; que essas existncias tivessem sido, ao mesmo tempo,

obscuras e desventuradas; que fossem contadas em algumas pginas, ou melhor,

algumas frases, to breves quanto possvel; que esses relatos no constitussem simplesmente historietas

estranhas ou patticas, mas que de uma maneira ou de outra (porque eram queixas, denncias, ordens ou relaes) tivessem feito parte realmente da histria minscula dessas existncias, de sua desgraa, de sua raiva ou de sua incerta loucura;

e que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para ns, ainda, um certo efeito misto de beleza e de terror.65

Enquanto pesquisador do presente, na dcada de 70, Foucault se aproxima

ainda dos contextos de revolta que aconteciam no mundo, passando a migrar sua

ateno no mais revoluo, mas a sublevaes, a partir do que ocorria na chamada

Revoluo Iraniana,66 compreendendo-a enquanto um movimento irredutvel atravs

do qual um homem solitrio, um grupo, uma minoria, ou um povo diz eu no obedeo

mais. Enquanto insurgncias ou emergncias, pela ideia do autor, as sublevaes 63 FOUCAULT., 2003, pp. 203-222. 64 BORGES, 1999 (1935). Sobre o belo livro Histria universal da infmia, do escritor Jorge Luis Borges. 65 FOUCAULT, 2003, p.205. 66 GRABOIS, p.19, 2011. Fato que, segundo Foucault, s foi chamado de revoluo por pessoas de fora, no pelos participantes da insurgncia, da a problematizao do autor em torno do termo, pelas palavras de Grabois: Ao conversar com o povo e com lderes da oposio, o filsofo francs diz no ouvir em momento algum a palavra revoluo, encontra no lugar dela uma vontade manifesta da parte dos sublevados de um outro governo, um governo islmico.

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denotam um certo poder de revolta, diferente das lutas, que se conformariam como

articulao dessas revoltas, num contexto macro, enquanto movimentos conectados.

Por conta disso, o conceito de prticas de cidade pelo mar dessa dissertao, a partir

deste instante, passa a ser por ns concebido na expanso da proposta de prticas de

cidade, de Certeau e engloba, tambm, o conceito de prticas de Foucault.

Desse modo, para pensarmos esse debate e articul-lo ao presente contexto,

precisamos investigar uma aproximao ao conceito de encontro, que nos coloca uma

possibilidade de juno a outras questes, ao auxiliar nossa metodologia de

aproximao s prticas de cidade pelo mar.

DISPOSITIVOS DE ORLA

Dispositivo em Giorgio Agamben

Observamos, a partir da aproximao em campo, uma problemtica conformada

por mecanismos capitalsticos, que so mantidos, agenciados e sofisticados por uma

rede estratgica que engloba discursos, enunciados, aparatos e formas distintas. Para

isso, nos aproximamos do conceito de dispositivo, proposto por Giorgio Agamben,

baseado nos trabalhos de Michel Foucault, em que se afirma, sumariamente:

1) um conjunto heterogneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, lingustico e no-lingustico no mesmo ttulo: discursos, instituies, edifcios, leis, medidas de segurana, proposies filosficas etc. O dispositivo em si mesmo a rede que se estabelece entre esses elementos.

2) O dispositivo tem sempre uma funo estratgica concreta e se inscreve sempre em uma relao de poder.

3) algo de geral (um reseau, uma rede) porque inclui em si a episteme, que para Foucault aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que aceito como um enunciado cientfico daquilo que no e cientfico.67

Utilizando a diviso sinttica da palavra dispositivo, o autor prope pensar o

mecanismo enquanto um destino a uma positividade, ou um meio de tornar algo

positivo.68 O dispositivo atuaria, assim, como uma rede de poder que traria nele uma

suposta verdade, porm, Agamben salienta que qualquer elemento poderia s-lo,

enunciando jogos de poderes, nos alertando para um limiar do controle do qual todos

ns somos agentes.

67 AGAMBEN, 2005, pp. 9-10. 68 Idem.

37

Assim, o conceito surge como importante instrumento para pensarmos as

relaes de poder69 presentes nas prticas da catraia, pesca e saveiro, positivamente

destinadas por meio de uma rede composta por diferentes meios, formas, aparatos;

sendo regidas por lgicas normativas e legislativas; sustentadas atravs de nexos

morais e sociais; amparadas por mecanismos preservacionistas; entre outros. Mais do

que isso, o conceito nos vale ainda para pensarmos que os prprios dispositivos

permitem outras configuraes das prticas de cidade pelo mar, fazendo com que as

sobrevivncias se tornem mais ou menos visveis.

Desse modo, as configuraes da rede proposta pelo autor nos favorece a

construo do conceito de dispositivos de orla, compreendido enquanto articulaes de

falas, gestos, enunciados, discursos, imagens, condutas etc., produzidos e agenciados

por qualquer sujeito, grupo, entidades governamentais ou miditicas, defendendo uma

estratgia de construo da orla enquanto lugar da univocidade, aniquilando

diferenas, a heterogeneidade e multiplicidade de vozes e atores; um pensamento

nico que amplia a ideia de orla como paisagem visual e se expande s prticas de

cidade pelo mar.

Portanto, nos prudente afirmar que, embora muitos desses dispositivos sejam

criados pelo Estado, seus copartcipes comerciais ou instrumentos miditicos, so as

articulaes e difuses e, consequentemente, outras produes subjacentes,

encampadas por indivduos quaisquer at mesmo os prprios praticantes que

amplificam sua fora e existncia. No h, assim, um tom de vilania nessas produes

e reverberaes, j que todos so participantes do esquema, mesmo que por vezes

acabemos tensionando a crtica para as foras maiores desse jogo, como o Estado

seus aliados mercantis.

Sendo assim, precisamos reverter a crtica a partir de um ponto de vista da

aproximao a esses sujeitos. Isto ocorre por meio de um exerccio de escuta, visando

alcanar tais atores, a partir de relaes diversas, sejam de escape, cooptao,

conflito, etc. Para isso, enveredamos as evocaes conceituais para a ideia de

encontro, nas proposies de Espinosa, Deleuze e seus leitores, compreendidas a

seguir.

69 FOUCAULT, 2003.

38

1.3 ENCONTRO COMO PROCEDIMENTO

Embora nossa discusso no seja dentro da Filosofia, apostamos neste campo

por sua fabricao de conceitos, que nos auxilia, tambm, expanso do campo do

Urbanismo. Sendo assim, a partir de Deleuze, munido da literatura de Espinosa, vemos

que o papel da Filosofia produzir liberdade e pensamento; modos criativos de sermos

livres. Por isso, esse debate nos importa para o embasamento metodolgico da

pesquisa. Sendo assim, questionamos: o que seria a ideia de liberdade?

Definir isto no tarefa das mais simples tampouco a meta, mas, sim, traar

linhas de fuga possveis , j que, para Espinosa, vivemos em regime de servido;

presos pelas paixes e conscincia. O desafio trazido pelo pensador iluminista consiste

justamente em assinalarmos outros caminhos, mas, para apontarmos seu conceito de

liberdade, precisamos compreender como aconteceria esta servido.

Chamo de servido a impotncia humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos no est sob seu prprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder est a tal ponto sujeitado que , muitas vezes forado, ainda que perceba o que melhor para si, a fazer, entretanto, o pior.70

Esmiuando este excerto, partamos da afirmativa que afetamos e somos

afetados a todo instante por tudo o que nos rodeia. Afeto em nada se assemelha

singeleza de algo afetuoso ou de afetividade, mas, diferentemente, como tudo se

explica na matria, podemos compreender afeto como um substantivo, traduzvel,

simplificadamente, por contato.71 Dessa maneira, haveriam as afeces, que seriam os

modos, ou seja, aqueles que condicionariam os afetos; j estes seriam as duraes,

variaes ou sentimentos provocados por estas afeces.

Porm, ao passo que se submete aos afetos, o homem se torna impotente para

control-los; ou v o que melhor e aprova, mas segue fazendo o pior,72

permanecendo, assim, na servido. Esta permanncia acontece devido ao fato de

sermos uma pequena parte finita de uma substncia infinita (Deus), tornando-se

impossvel no nos afetarmos pelo que nos circunda. Dessa maneira, a fora pela qual

o homem persevera no existir, limitada e superada, infinitamente, pela potncia das

70 ESPINOSA, 1983, Parte IV, prefcio. 71 ULPIANO, Cludio (Website). Uma metfora trazida pelo filsofo Claudio Ulpiano, que auxilia a compreender ainda mais o conceito, consistiria em ventos que produzem no oceano as ondas; e as ondas produzem novas ondas a partir delas, etc. Assim, ns seramos o oceano e o vento a natureza. Como o pensador muito nos ajudou a entender os conceitos de Espinosa e seus interlocutores e, tendo em vista sua rara produo bibliogrfica, sugerimos o site www.claudioulpiano.org.br como excelente fonte. 72 ESPINOSA, 1983, Parte IV, prefcio.

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causas exteriores,73 em que nos apegamos a supersties, medos, crenas e deuses,

justamente pela dificuldade em perfurar este campo de fora. Contudo, a proposta vai

exatamente na sua epistemologia positiva. O fundamento principal acontece no

encontro. Para esboar este conceito, apresentamos uma fala de Deleuze, a partir da

positividade do pensamento e da proposta libertria de vida.

O importante conceber a vida, cada individualidade de vida, no como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relao complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e acelerao de partculas. Uma composio de velocidades e de lentides num plano de imanncia.74 Acontece tambm que uma forma musical dependa de uma relao complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e acelerao de partculas sonoras. No apenas uma questo de msica, mas de maneira de viver: pela velocidade e lentido que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca comea, nunca se recomea tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraa-se ou se impe ritmos.75

Esse deslizamento que Deleuze prope, aponta a ideia de encontro em

Espinosa, classificados em bons ou maus. Um bom encontro referente a tudo aquilo

que o componha, e mau encontro ao que decomponha; bons encontros nos trazem

alegria e nos permitem agir; maus encontros nos trazem tristeza (ou falta de alegria) e

nos tornam passivos (apaixonados). Dessa maneira, a passagem a uma perfeio

maior ou o aumento da potncia de agir denomina-se afeto ou sentimento de alegria; a

passagem a uma menor perfeio ou a diminuio da potncia de agir, tristeza.76

Tais conceitos foram elaborados cartesianamente, contudo visam elucidar muito

mais o que acontece a partir desses contatos, nas tenses possveis pelas variaes.

Dessa forma, ao contrrio do que possa aparentar nesta irreal dicotomia, viveramos

mais entre as variaes de bom e mau do que num extremo ou noutro, e tais variaes

no se limitariam, necessariamente, a humanos, mas so nossos encontros com

quaisquer coisas.

A possibilidade de liberdade aconteceria no uso da razo para discernir os

afetos, que esto tanto na servido quanto na liberdade. A aposta espinosiana no

define como fazermos, mas porque fazermos nossos prprios modos: quanto mais

esforo (conatus), mais escolhas e bons encontros, que por sua vez aumentam a 73 Idem, prop.3. Grifos nossos. 74 DELEUZE, 2002. Diferente da transcendncia, o plano de imanncia foi desenvolvido por Deleuze e Guattari, mas baseado na lgica espinosiana que afirma que as respostas conceituais da filosofia deveriam ser retiradas da prpria natureza (seu postulado famoso resume, Deus sive Natura, ou seja, Deus natureza). Deleuze, portanto, reafirma que o papel da Filosofia traar um plano de imanncia e, a partir da, criar conceitos. 75 Idem, p.128. 76 Ibidem, p.57. Grifos nossos.

40

potncia de agir; tornamo-nos mais capazes de afetar e sermos afetados. A palavra

latina conatus comumente traduzida por esforo ou perseverana se destaca como

um desejo de viver, que podemos arriscar na resistncia (Foucault)77 uma possvel

atualizao do conceito.

A partir do conatus, aes seriam conduzidas conjuntamente pelos indivduos,

fazendo com que eles se conservem. Dessa maneira, em princpio, como no estado de

natureza o esforo seria precrio, o que acontece uma preservao humana. O

Estado seria, portanto, uma atualizao dos homens em prol da maioria da

populao, a multitude e no uma subordinao.78 Ao ser organizado, passaria a ser

uma concretizao do direito natural individual e, em seu fim ltimo, produzir momentos

de liberdade.

Seu fim ltimo no dominar nem subjugar os homens pelo medo e submet-los a um direito alheio; , pelo contrrio, libertar o indivduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possvel, em segurana, isto , a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuzo para si ou para os outros o seu direito natural a existir e agir. O fim do Estado, repito, no fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autmatos: fazer com que sua mente e o seu corpo exeram em segurana as respectivas funes, que eles possam usar livremente da razo e que no se digladiem por dio, clera ou insdia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O fim verdadeiramente do Estado , portanto, a liberdade.79

Destacamos que a liberdade no plena, mas, sim, em potncia. Desse modo,

retornando a Deleuze, consideramos uma filosofia composta por um plano comum de

imanncia, construdo por ns e em que tambm nos encontramos; lugar em que o

autor ainda nos convoca a criarmos modos de produo de vida, em seu poder,

tensionando um suposto controle total.

Dessa forma, assumindo a convocao, propomos o conceito de encontro

trazido pelo escritor Ericson Pires, poeta com grande estudo no filsofo francs, a fim

77 DELEUZE, 1998, p.73. Arriscamos ainda atualiz-lo aos conceitos de vontade de potncia (Nietzsche) e desejo (Deleuze). Tais conceitos se diferenciam da falta, presente na psicanlise freudiana, apontando como a fora que a vontade tem de agir e resistir no mundo; uma afirmativa na vida enquanto produo. Desejo: quem, a no ser os padres, gostaria de chamar isso de falta? Nietzsche o chamava de Vontade de Potncia. 78 HOBBES, 2003, s/p. Aqui fazemos aluso ao estado de natureza proposto por Thomas Hobbes, em que os homens so exatamente iguais e desejam as mesmas coisas, tendo por isso o mesmo instinto de autopreservao. Dessa maneira, no estado natural hobbesiano, tudo barbrie. Junto a outros pensadores, as propostas de Hobbes sedimentam alguns dos mecanismos bsicos que regem a legislao moderna, fundamentada no princpio de igualdade entre todos. Contudo, ressaltamos no ser nossa inteno, obviamente, desconsiderar as conquistas sociais que nos regem, mas, sim, fazermos uma apologia abertura do que acreditamos ser a potncia da vida, tendo vista que h, predominantemente, uma produo das necessidades pautadas por uma normatividade e outros comportamentos ditos desejveis. 79 ESPINOSA, 2008, p.302.

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de evocarmos a nossa ideia, articulando ao que foi observado em campo atravs das

prticas da catraia, pesca e saveiro.

No encontro realizo o outro. E realizo a mim mesmo como (o) outro. Ao mesmo tempo, cada um de ns se torna fragmento desses encontros com o mundo. O encontro realiza a traduo efetiva de um evento de criao. Todo texto criao. A imensa teia tecida pelas singularidades preenche o vazio da indiferena produzida pela reproduo ad infinitum do mesmo. Esta teia a arte de criar encontros, ou seja, de produzir pensamento como experimentao do outro, como busca do outro, da realizao do outro que eu tambm sou. Nesse sentido, produzir pensamento necessariamente uma aventura.80

Em Espinosa, os encontros acontecem atravs da potncia de agir, em que

somos atravessados pelas paixes, traduzidas por bons encontros, aqueles onde

temos a alegria como fora-motriz para criarmos outros modos de viver. Dessa forma, o

encontro um meio que possibilita a criao. Em Pires, por um caminho adjacente, h

a conexo dos encontros a uma alteridade, traduo de um evento de criao e a

uma aventura; acontecendo junto produo do outro, destacando suas potncias.

Aproximarmo-nos aos praticantes da catraia, pesca e saveiro ocorre, portanto,

numa via de mo-dupla: para isso acontecer, precisamos cri-los; e essa aproximao,

ao mesmo tempo, passa por um processo de criao. Ou seja, no h praticantes sem

ns, bem como no somos sem eles. Assim, o encontro se conforma,

necessariamente, como um evento de criao. Indo adiante, sugerindo a sada de uma

abordagem conceitual e avanando para uma perspectiva metodolgica, Kofes coloca

em questo o encontro filosfico em Deleuze em contrapartida ao mesmo conceito,

mas do ponto de vista majoritrio da Antropologia.

Deleuze, na ltima entrevista que deu antes de morrer, evoca que logo depois que escrevera o livro sobre Leibniz sobre uma noo aparentemente importante para Leibniz e importante para Deleuze, a noo de dobra recebera duas cartas distintas das que costumava receber de intelectuais comentando o livro. Uma das duas cartas, dizia: Mas, a sua histria de dobra, somos ns. A carta fora enviada por uma associao que agrupava na poca 400 pessoas na Frana, a associao de dobradores de papis. Diziam na carta Concordamos totalmente, o que voc faz o que fazemos. A segunda carta fora enviada por surfistas, dizendo: concordamos totalmente, pois, o que fazemos?