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LUCIELEN PORFIRIO A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE Vol. I SALVADOR 2013 Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística Rua Barão de Jeremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 3263 - 6256 Site: www.ppgll.ufba.br E-mail: [email protected]

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LUCIELEN PORFIRIO

A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE

SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE

Vol. I

SALVADOR

2013

Universidade Federal da Bahia

Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística Rua Barão de Jeremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA

Tel.: (71) 3263 - 6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected]

2

LUCIELEN PORFIRIO

A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA E O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE

SENTIDOS TEXTUAIS: A FUNÇÃO DA PALAVRA-CHAVE

Vol. I

Trabalho de tese apresentado ao Programa de Pós-

graduação em Letras e Linguística, do Instituto de

Letras da Universidade Federal da Bahia, como

requisito parcial para obtenção do grau de Doutora

em Letras.

Orientadora: Prof. Dra. Serafina Maria de Souza

Pondé

Coorientadora: Prof. Dra. Denise Maria Oliveira

Zoghbi

SALVADOR

2013

3

Sistema de Bibliotecas da UFBA

Porfírio, Lucielen. A competência comunicativa e o processo de construção de sentidos textuais : a função da palavra-chave / Lucielen Porfírio. - 2013. 2 v.: il. Inclui apêndices e anexos.

Orientadora: Profª. Drª. Serafina Pondé. Co-orientadora: Profª. Drª. Denise Zoghbi. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2013.

1. Língua portuguesa (Ensino médio) - Estudo e ensino. 2. Literatura (Ensino médio) - Estudo e ensino. 3. Palavras-chave. 4. Competência comunicativa. I. Pondé, Serafina. II. Zoghbi, Denise. III. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. IV. Título.

CDD - 469.8 CDU - 811.134.3(07)

iv

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de

comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e

fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia.

Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de

pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos

pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por uma extrema

simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Clarice Lispector

v

O cansaço não me abandona. Nos últimos dias ele tem sido meu companheiro de dia todo,

mesmo que eu tente dispensar a sua presença.

Mergulhada nas palavras e em frente ao computador, as ideias borbulham e por vezes me

assustam e me deixam ansiosa e com medo da força com que vêm à mente. Em meio a tantas

palavras e possibilidades que elas evocam, eu fico tímida, pequena, com medo de não

conseguir concretizar tudo o que penso!

Palavras... Como pode algo tão simples causar tantas sensações?

São elas que me fazem expressar tudo o que quero em frente a uma página branca.

São elas que concretizam o meu desafio de defender um projeto acadêmico.

São elas que por um lado explicam quem eu sou, de onde eu vim e o que eu quero!

São elas que, quando faltam, causam tristeza, desconforto...

São elas que, quando vêm na hora errada, pedem passagem para a expressão de emoções tão

fortes que fica difícil concretizar em “simples” palavras.

E são elas também que transformam em realidade os sonhos, as carícias, os sentimentos...

E são elas... Somente elas que podem me ajudar a alcançar alguns dos desafios que tenho pra

mim! Saber usá-las nesse momento é o desafio que se impõe antes de chegar ao ponto final...

E será que existe ponto final?

Lucielen Porfirio

vi

Este trabalho é dedicado a:

Miguel e Nilva Porfirio, meus pais, pelo exemplo de dedicação,

compreensão e apoio constante. Por me ensinarem a buscar

meus sonhos e por serem exemplos de honestidade e caráter.

Everton D. Porfirio,

meu irmão mais velho,

pela sua presença constante nas conversas,

puxões de orelha, incentivo, apoio e consolo nos momentos mais difíceis.

Geison M. Porfirio e Wagner A. Porfirio,

meus outros dois irmãos

por me incentivarem a aceitar os riscos e a batalhar por meus objetivos,

pela presença constante e, por vezes, confortante.

Ângela Brandalise Gavazzoni,

minha “nona”,

pela preocupação contínua e pelo seu jeito simples

de achar que sua neta já era uma doutora

pelo simples fato de ter escolhido o magistério como profissão.

7

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a Deus, pelo dom da vida, por me acariciar e sempre estar pertinho

de mim em todos os momentos da minha vida.

À minha orientadora, Prof. Serafina Pondé, que, ao aceitar se encontrar com aquela

menina, ainda um pouco perdida na UNIOESTE – Cascavel – PR, me deu a chance de

ter uma orientadora sempre presente, me auxiliando e incentivando nos meus planos, se

fazendo sempre disponível para todo o tipo de apoio que eu precisei durante esse longo

percurso de quase quatro anos.

À minha coorientadora, Prof. Denise Zoghbi, pelas contribuições de suma importância

durante o processo de qualificação e por ter abraçado a coorientação de uma forma

sempre muito presente, constante, disponível e amiga.

À professora Terezinha Costa-Hübes que, ainda em processo inicial do projeto, acalmou

a ansiedade daquela menina ávida por realizar um bom trabalho; pelo apoio e orientação

durante montagem e envio do projeto junto ao comitê de ética.

Aos colegas da turma DINTER UFBA-UNIOESTE, pela troca de experiências, pelos

lanches animados que incendiavam e aqueciam nossas manhãs e tardes, pelas conversas

amigas, apoio para os momentos difíceis da pesquisa e por proporcionarem momentos

de grande crescimento, aprendizagem, diálogo e reflexão, por fazerem parte da minha

história e tornarem esse processo inesquecível e um pouco mais alegre e cativante.

Em especial, aos colegas Otacílio e Larissa, pela parceria, troca de palavras, apoio,

amizade, companheirismo nessa caminhada pessoal e acadêmica.

Ao Prof. Sávio Siqueira, pela amizade e apoio demonstrados sempre, pelas inúmeras

conversas de incentivo, auxílio e questionamentos. Em especial, por incendiar ainda

mais os desejos dessa menina de buscar novas terras, novas possibilidades, novos

desafios.

Aos professores da UFBA, pela disponibilidade em ir até Cascavel e lecionar módulos

intensos, discutir, refletir, orientar, trocar ideias e incentivar os questionamentos da

turma DINTER. Pelos momentos de crescimento e aprendizagem proporcionados.

Também, aos professores da UFBA que me receberam de braços sempre abertos para

auxiliar no que fosse preciso e pela preocupação constante em me fazer sentir sempre

em casa.

Ao Núcleo de Educação da cidade de Cascavel – PR que prontamente me auxiliou ao

contato com as escolas envolvidas na pesquisa.

À direção, à coordenação e às professoras das escolas participantes da pesquisa, que não

mediram esforços para que as aulas fossem cedidas e os dados pudessem ser coletados

de forma tranquila.

Aos alunos informantes pelo aceite, envolvimento e participação na pesquisa.

8

Aos colegas e alunos da UNEB – Campus II - que, em meio ao processo de

doutoramento, também me receberam de forma aberta e disponível como parte

integrante daquele colegiado. Pela paciência demonstrada mediante os momentos finais

de construção e defesa desta pesquisa.

A todos aqueles que já faziam parte da minha história, amigos queridos, e também às

novas amizades que chegaram durante essa trajetória do doutorado, em Salvador ou em

Cascavel e que, direta ou indiretamente, estiveram presentes durante momentos

importantes de reflexão, afastamentos necessários, conversa ou lazer.

9

RESUMO

A interpretação de textos é um processo complexo por natureza, que depende de

aspectos não apenas linguísticos, mas também cognitivos e extralinguísticos. Para

interpretar um texto, todo leitor deve, inicialmente, identificar quais as informações são

relevantes e formular as representações mentais sobre o que é veiculado como

mensagem para estabelecer comunicação. Para tanto, o leitor deve levantar hipóteses,

fazer inferências e ativar seus conhecimentos prévios, que incluem tanto conhecimentos

linguísticos que o leitor toma como ponto inicial quanto os de mundo – extralinguísticos

(ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). E mais, o leitor deve localizar as

principais ideias contidas num texto, as quais estão expressas nos itens lexicais e nas

relações lexicais, semânticas e pragmáticas estabelecidas entre eles. É razoável admitir,

assim, que a identificação de palavras de um texto e a análise das relações estabelecidas

a partir delas constituem elementos de alta relevância para um trabalho de análise

interpretativa. Tal identificação leva o leitor a ativar sua competência comunicativa e a

estabelecer uma interação mais próxima com o texto, destacando elementos,

descartando outros, (re)construindo estratégias de leitura que o levam a produzir sentido

textual. Desse modo, a identificação das palavras-chave pode auxiliar o leitor nesse

trabalho. Isso porque essas palavras possuem o poder de conduzir a construção de “fios

condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que ajudam a identificar o tema

principal do texto e as informações dado/novo, ativar conhecimentos de mundo do

leitor, auxiliar no estabelecimento de opiniões próprias do leitor, hierarquizar sentidos

globais ou macroestruturas (DIJK; KINTSCH, 1983). O que se propõe neste trabalho é

que, a partir da localização de palavras-chave e de relações que ocorrem a partir delas, o

leitor possa desenvolver a sua competência comunicativa ao interpretar um texto,

ancorando-se em marcas linguísticas ali presentes e tecendo relações de sentido com

todos os conhecimentos por ele armazenados. Assim, assumindo que as interações entre

as palavras de um texto e os conhecimentos prévios do leitor são elementos importantes

na interpretação textual, o objetivo desta pesquisa é analisar de que maneira essas

relações auxiliam o leitor no desenvolvimento da comunicação com o texto, partindo da

identificação das palavras-chave. Para a coleta de dados, duas turmas de 3º Ano de

ensino médio de uma escola pública da cidade de Cascavel-PR foram selecionadas e

pediu-se aos alunos para identificarem até cinco palavras-chave em três textos com

gêneros e temas diferentes, justificando suas escolhas. A análise foi conduzida com o

intuito de verificar como as palavras-chave apontadas pelos alunos revelam sentidos e

os auxiliam no processo interpretativo. Os dados demonstraram, de forma genérica, que

as palavras-chave funcionaram como uma superestratégia (KATO, 1999), ou como um

elemento importante da competência estratégica dos leitores (HYMES, 1995) na

ancoragem de diversos processos do ato interpretativo, tais como a hierarquização de

sentidos, a organização das informações textuais, a ativação de conhecimentos de

mundo armazenados pelo leitor, e que influem na produção do sentido, na confirmação

ou reformulação das possibilidades de leitura construídas pelo leitor e na negociação de

sentidos.

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação de textos, palavras-chave, competência

comunicativa, sentidos textuais.

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o resumo de

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10

ABSTRACT

Text comprehension is a complex process which depends either on linguistic aspects or

cognitive and extra linguistic ones. To interpret a text, the reader must, initially, identify

which information is relevant and formulate mental representations about what the

message is in order to establish communication. So, the reader has to hypothesize,

make inferences and activate his previous knowledge, which include either linguistic

and text knowledge, which are taken as an initial point, or world knowledge – which

means extra linguistic information (ECO, 1979; KOCH, 2009; KLEIMAN, 2002). Also,

the reader must locate the main ideas inside the text, which are expressed in the relation

among lexical items and its lexical, semantic and pragmatic features. It seems

reasonable to admit that the identification of specific words of a text and the analysis of

the relation established based on them are considered relevant elements to text

comprehension. Such identification makes the reader activate his communicative

competence and establish a closer interaction with the text, highlighting some elements,

rejecting others, (re)constructing reading strategies which lead to text meaning

production. Therefore, keywords identification can help the readers on text

interpretation activity. This is so because such words have the power of conducting the

semantic guide strings (CAVALCANTI, 1989) which help to recognize main theme or

given-new relations on the text, activate reader´s world knowledge, assist on the

establishment of readers own opinions, detach global meanings or macrostructures

(DIJK; KINTSCH, 1983). What is mainly proposed in this research is that considering

the keywords location in a text and the observation of their relations as a primary base,

readers can develop their communicative competence in order to interpret a text, getting

fixed on linguistic marks and constructing meaning relations with previous knowledge.

So, assuming that text words interaction and readers’ previous knowledge are relevant

elements in text interpretation, the goal of this research is analyzing the way these

relations help readers on developing their communication with the text, based on

keywords identification. For the data collect, two groups of third grade students in a

public high school in the city of Cascavel – PR were selected. They were requested to

identify up to five keywords in three texts with different genders and themes, and

explain why they selected such words. Analysis was conducted in order to discuss how

the keywords indicated by the students revealed text meaning and helped them on the

interpretation process. Data have shown that, in a general way, keywords were used as a

super strategy (KATO, 1999), or as an important element of readers strategic

competence (HYMES, 1995) on fixing different processes of interpretation acts, such as

identifying main meanings, organizing text information, activating readers previous

knowledge which influence on the way meanings are constructed, text interpretation

possibilities are confirmed or reformulated by the reader, and meanings negotiation are

established.

KEYWORDS: Text interpretation, keywords, communicative competence, text

meanings.

11

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Modelo de interação verbal............................................................................. 82

FIGURA 2 – Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) ............................................ 84

FIGURA 3 – A função da palavra-chave ............................................................................. 285

12

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – Os níveis de cooperação textual ................................................................... .. 41

QUADRO 2 – Relação entre processos e participantes ........................................................ .. 87

QUADRO 3 – Relações entre função, organização e sistema .............................................. .. 88

QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva .................................... 143

QUADRO 5 – Organização da discussão de dados .............................................................. 146

13

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B ................... 135

GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B .................................................... 136

GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B .......................................... ..137

GRÁFICO 4 – As dimensões da competência comunicativa nos extratos da escolha das

palavras-chave ....................................................................................................................... 157

GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas justificativas dos

estudantes .............................................................................................................................. 179

GRÁFICO 6 – Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais .............. 200

14

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave ...................... 153

TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos .......... 158

TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos .......... 162

TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01 ............................................... 164

TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02 ............................................... 169

TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03 ............................................... 175

TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos

alunos ..................................................................................................................................... 182

TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores sociointerculturais........... 198

TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas

justificativas dos alunos ......................................................................................................... 203

TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1........... 226

TABELA 11 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – texto 1 ............... 228

TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2........... 239

TABELA 13 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2 .............. 240

TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – Texto 3 ......... 249

TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3 .............. 252

15

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DINTER – Doutorado Interinstitucional

UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná

UFBA - Universidade Federal da Bahia

LC - Linguística de Corpus

LA - Linguística Aplicada

LE - Língua estrangeira

LM - Língua materna

A.1.3.4 Classificação dos informantes por turma (turma A), Texto de

pesquisa (texto 1), Atividade considerada (atividade 3), leitor

(informante 4).

Cap. Capítulo

16

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 18

1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ....................................................... 24

1.1 LÍNGUA E SUJEITO LEITOR ...................................................................................... 24

1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA................................................. 29

1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO ..... 39

1.4 OS TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO .. 46

1.4.1 O conhecimento linguístico .......................................................................................... 47

1.4.2 O conhecimento textual ................................................................................................ 49

1.4.3 Os conhecimentos de mundo ........................................................................................ 54

1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento .................................................................................. 64

1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA ...................................................................................... 68

2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ..... 73

2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA ............................................................................ 75

2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA......................................................................... 77

2.2.1 A competência gramatical ........................................................................................... 81

2.2.2 A competência sociointercultural ................................................................................. 88

2.2.3 A competência discursiva ............................................................................................. 98

2.2.4 A competência estratégica ............................................................................................ 105

2.3 A PALAVRA-CHAVE ................................................................................................... 109

3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................................. 128

3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S) ...................................... 130

3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS .................................................................. 131

3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA................................................................ 138

3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS ................................................................................. 142

3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE DE DADOS ............................................... 146

3.5.1 A análise do primeiro questionamento de pesquisa ..................................................... 147

3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa .................................... 148

4 O USO DA PALAVRA-CHAVE COMO ESTRATÉGIA PARA

COMPREENSÃO TEXTUAL – A UTILIZAÇÃO DA COMPETÊNCIA

COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS .............................................. 151

4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL ............ 151

4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical. ....... 157

4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva ......... 162

4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência

sociointercultural. ................................................................................................................. 181

4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa

como forma de interagir com o texto .................................................................................... 200

5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, CONSTRUÇÃO E

NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ...................................................................................... 223

5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A

FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS .................................................................... 225

5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS ................................................................................ 261

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 289

17

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 298

Volume II

APÊNDICES

Apêndice A - Plano de trabalho da coleta piloto ................................................................... 307

Apêndice B - Plano de trabalho da coleta definitiva ............................................................. 311

Apêndice C - Questionário sociocultural aplicado às turmas ................................................ 318

ANEXOS

Anexo A - Os dados dos questionários socioculturais .......................................................... 322

Anexo B - Dados das turmas A e B ....................................................................................... 332

Anexo C - Levantamento das palavras-chave indicadas pelos alunos .................................. 405

18

INTRODUÇÃO

Interpretar um texto é um processo que envolve diferentes aspectos que não a

simples leitura e decodificação das palavras ali presentes. As questões linguísticas

presentes no texto levam o leitor a compreender os objetivos do autor com a produção

textual e a estabelecer relações com o seu próprio conhecimento para construir a

compreensão. Pode-se dizer com isso que o processo interpretativo se inicia nas

relações linguísticas entre as palavras em um texto e prossegue na interação com os

mais diversos tipos de conhecimento armazenados pelo leitor no contato com a

realidade por intermédio da língua.

Pesquisadores têm demonstrado a importância de se considerar os níveis de

compreensão dos alunos, tais como o conhecimento de mundo ou enciclopédico, o

processo de reconstrução das informações presentes na leitura, o conhecimento textual,

as capacidades cognitiva e de decodificação linguística envolvidos na interação autor-

leitor (KLEIMAN, 2001, 2004; KATO, 1999; KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). O

que chama a atenção, no entanto, é um ponto em comum entre as pesquisas realizadas

em leitura: considerar os aspectos envolvidos no processo de interpretação textual.

Argumenta-se a favor de um processo interacional e dialógico entre autor e leitor

por meio daquilo que está exposto no texto (KLEIMAN, 2002; COLOMER;CAMPS,

2002; CAVALCANTI, 1989). Nessa relação, o leitor depara-se com o que está

linguisticamente exposto na página e movimenta todos os seus conhecimentos prévios

que incluem aspectos linguísticos, textuais e de mundo, para formular uma

representação do texto. Ou seja, o leitor não é passivo na leitura; ao contrário, ele ativa

toda sua carga de conhecimentos e os utiliza de forma estratégica para realizar

inferências, conectar informações, procurar marcas linguísticas e, assim, construir

sentido(s) para o texto.

Desse modo, o processo de compreensão textual é complexo e demanda de uma

série de atitudes por parte do leitor para construí-lo. Vários autores afirmam que há

pistas linguísticas no texto que servem de apoio para que o leitor estabeleça essa

interação durante a leitura (KLEIMAN, 2002, 2004; CAVALCANTI, 1989;

ANTUNES, 2012; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Reforça-se, portanto, com base

nesses pesquisadores, a ideia de que há, de fato, na manifestação textual, elementos que

possibilitam o estabelecimento de uma relação interacional durante a leitura, e que

19

levam à ativação de aspectos já conhecidos pelo leitor que incluem o conhecimento da

língua em si, dos gêneros e tipos textuais e dos conhecimentos construídos social e

culturalmente que o levam à representação formal do texto.

O que se quer dizer com isso é que, ao ler um texto, o leitor ativa a sua

competência comunicativa (HYMES, 1995; LLOBERA, 1995; SAVIGNON, 1997)

para estabelecer comunicação e construir sentidos. A competência comunicativa inclui a

habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para interagir com o

outro, neste caso, o autor, a partir de: a) características próprias da língua, tais como as

organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e o contexto em que ocorrem; e b)

das atitudes a ela relacionadas, tais como construir e negociar sentidos, juízos de valor e

características socioculturais (HYMES, 1995). Ou seja, é uma ativação de diferentes

dimensões da competência comunicativa que faz com que o usuário estabeleça uma

comunicação eficaz com o texto e produza representações a partir dele. Tais dimensões

envolvem:

a) A competência gramatical: a movimentação dos conhecimentos a respeito

dos elementos da língua e a combinação entre eles (HORNBERGER, 1995),

tais como aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais;

b) A competência discursiva: a conexão realizada entre o uso da língua e

enunciados ou textos previamente conhecidos que levam o leitor a

estabelecer laços textuais que ligam os sentidos intra e intertextos (CELCE-

MURCIA, 2007);

c) A competência sociolinguística: a ativação e o desenvolvimento de

conhecimentos que envolvem a adequação do uso da língua a fatores e a

regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995). Considera-

se também, para este trabalho, a ideia de que fatores de contexto

(SCOLLON; SCOLLON, 2001) e a movimentação da cultura influenciam na

produção de sentidos (KRAMSCH, 1998; MENDES, 2008; 2011). Sendo

assim, propõe-se que o leitor desenvolve tanto aspectos sociais, quanto o

contexto de vivência e as diferentes culturas movimentadas ao interpretar um

texto. (cf. cap. 2.2.2). Com base neste argumento, a competência

sociolinguística será, então, renomeada competência sociointercultural;

d) A competência estratégica: o domínio das estratégias de comunicação verbal

e não verbal que podem ser utilizadas para estabelecer comunicação

(CANALE, 1995).

20

Parte-se, assim, nesta pesquisa de tese, do pressuposto de que leitura é um

processo interacional entre autor e leitor por meio do texto (KLEIMAN, 2002; 2004), o

qual demanda uma atitude estratégica do leitor para a ativação de sua competência

comunicativa (HYMES, 1995) na produção de sentidos. Antunes (2012) afirma que o

léxico - ou as palavras - é um elemento da composição do texto que apresenta funções

de “criar e sinalizar a expressão dos sentidos e intenções, os nexos de coesão, as pistas

de coerência” (ANTUNES, 2012, p. 24). Neste mesmo sentido, Cavalcanti (1989)

argumenta que, a partir de itens lexicais chave, é possível estabelecer uma interação

entre leitor - autor - texto, desenvolvendo-se uma interpretação. A autora explica ainda

que há itens considerados “contextualmente relevantes” (CAVALCANTI, 1989, p.

122), os quais refletem o ponto de vista do leitor na compreensão geral. Neste sentido, é

possível observar a forma como tais itens se relacionam ou tecem “fios condutores

semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 111) que possibilitam ao leitor a construção da

interpretação. E, ainda, é importante, na visão da autora, considerar a maneira como os

chamados itens lexicais chave e as consequentes relações semânticas podem ser

observados pelo leitor na compreensão de um texto.

Assim, considera-se que as palavras escolhidas pelo autor para a construção

textual não são aleatórias, pois elas estão ali justamente porque produzem sentidos que

concretizam o objetivo do autor numa relação de sentidos. Desse modo, o leitor, ao

perceber essas relações, encontra no texto um sentido específico e o reconstrói em

macroestruturas (DIJK, 1977a; 1997b; DIJK; KINTSCH, 1983) impondo um sentido

global que interage com os seus conhecimentos prévios (KLEIMAN, 2002; 2004;

KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; COLOMER; CAMPS, 2002). Há, então, uma

relação constante entre: a) marcas linguísticas identificadas pelo leitor em um texto, as

quais são denominadas nesse trabalho de palavras-chave; b) os conhecimentos prévios

do leitor; e c) a forma estratégica como os dois primeiros elementos interagem na

produção de sentidos.

Sendo assim, o problema principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de

que maneira a seleção das palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu

conhecimento prévio e funcionar como uma estratégia para estabelecer comunicação

durante a leitura e construir interpretação textual. Com base neste problema, três

questionamentos norteadores são propostos para esta pesquisa:

1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características

diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical da palavra ou suas

21

relações semânticas), sociointerculturais (ex. um sentido social, ideológico

ou cultural construído para a palavra) ou discursivas (ex. a relação tema-

rema na frase ou no texto) relacionadas à competência comunicativa do leitor

e que o levam a (re)construir sentido(s) do texto(s)?

2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou

reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo

de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de

sentidos?

3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar

sentidos intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o

texto e para si mesmo?

Para que se possam responder os questionamentos apresentados, organiza-se este

trabalho de tese em cinco capítulos. No primeiro deles, discute-se como o processo de

leitura é compreendido e os conhecimentos envolvidos no processo de interpretação.

Fala-se sobre o funcionamento da leitura, os fatores envolvidos, a visão de língua e

texto, e esclarecem-se pressupostos teóricos que baseiam todo o processo de construção

desta pesquisa.

No segundo capítulo, fala-se sobre o conceito de competência comunicativa e a

maneira como os leitores a desenvolvem para construir comunicação, no caso deste

texto, interação durante a leitura. Discute-se também sobre o conceito de palavra-chave

e se argumenta a favor do uso dessas palavras como uma estratégia (portanto, também

como uma forma de desenvolver a competência estratégica dos leitores) na construção e

organização dos sentidos textuais.

No terceiro capítulo, descrevem-se os aspectos metodológicos utilizados para a

construção da pesquisa. Selecionam-se duas turmas do 3º ano de ensino médio de uma

escola pública da cidade de Cascavel – PR e três textos utilizados para a observação das

leituras dos estudantes. Também se explica a construção dos planos de trabalho, os

quais foram realizados em dois momentos – coleta piloto e definitiva - com atividades

escritas para a verificação da maneira como os alunos interagem com o texto durante a

leitura e os motivos pelos quais selecionam as palavras-chave.

No quarto capítulo, discute-se a seleção das palavras-chave pelos alunos visando

responder ao primeiro questionamento da pesquisa. Sendo assim, analisam-se, nos

dados, os argumentos dos leitores para a construção da sua interpretação, considerando

aspectos discursivos, gramaticais ou sociointerculturais. Busca-se demonstrar, neste

22

capítulo, a maneira com que a maioria dos leitores construiu interpretação e como eles

basearam suas escolhas de palavras-chave para desenvolver uma série de aspectos da

competência comunicativa envolvidos no processo.

No quinto capítulo, discutem-se as atividades apresentadas aos alunos como um

todo, procurando responder os segundo e terceiro questionamentos da pesquisa, e

demonstrando a maneira como os leitores constroem, fixam e negociam sentidos

estabelecendo relações de sentido intra e intertexto. A partir da seleção de informantes

participantes da pesquisa, demonstram-se como eles relacionaram os fios semânticos

condutores (CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o momento da pré-

leitura até o processo de discussão do texto.

Nas Considerações Finais, tecem-se discussões a respeito das observações feitas

nos dados que embasam as respostas às questões norteadoras e que levam a reflexões

mais intensas sobre o processo de leitura, o desenvolvimento da competência

comunicativa e a consideração dos diferentes fatores envolvidos quando se fala em

compreensão de textos.

Além disso, apresentam-se as referências utilizadas para a construção, tessitura

das reflexões e propostas realizadas para esse trabalho e ainda, mostram-se, nos

apêndices, os planos de trabalho utilizados para as coletas de dados e o questionário

sociocultural aplicado aos alunos. Nos anexos, expõem-se os dados classificados e

utilizados para a análise.

Em suma, nessa pesquisa, investiga-se a maneira como os alunos ancoram seus

conhecimentos a partir do desenvolvimento da competência comunicativa para

compreender os mais diversos tipos de texto. Nesse sentido, discutiu-se a maneira com

que os leitores teceram relações de sentido durante o processo de interação na leitura

com o intuito de desvendar alguns dos elementos envolvidos ali que auxiliam

professores e leitores no desenvolvimento de um diálogo mais eficaz nas aulas de

interpretação textual.

É importante destacar que a análise foi realizada tendo como ponto de partida a

palavra-chave o que não esgota as possibilidades de discussão sobre a função dessas

palavras no desenvolvimento da competência comunicativa e no estabelecimento de

guias interpretativos pelos leitores. Ao contrário, esta pesquisa visa fomentar ainda mais

discussões em que se possa considerar o processo estratégico que ocorre no momento da

leitura, desenvolvendo a competência comunicativa dos alunos leitores e os levando a

23

um processo constante de negociação de sentidos que podem enriquecer ainda mais o

trabalho com leitura em contexto pedagógico.

24

1 LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS

O processo de ler e interpretar um texto implica no conhecimento, dentre outros

aspectos, sobre quais caminhos percorrer para organizar as ideias que nele estão

contidas (CASTELLO-PEREIRA, 2003). No entanto, esse processo de procurar e

organizar as informações textuais não é uma tarefa das mais fáceis, pois envolve vários

aspectos, complexos por natureza, que incluem questões cognitivas, linguísticas e

extralinguísticas.

A compreensão de um texto representa uma possibilidade de desenvolvimento

intelectual, de representação e formulação do conhecimento. Quando um leitor

consegue interpretar e compreender as ideias contidas num texto, o exercício mental a

que ele se submete envolve múltiplas possibilidades e esquemas, além de exigir

aprendizado. Embora ainda não se tenha certeza sobre tudo o que ocorre no nível

cognitivo do indivíduo durante a leitura, evidências apontam para vários mecanismos

desencadeados no processo, dos quais, provavelmente, nem mesmo o leitor tem

consciência.

Discutem-se, nesse capítulo, as formas pelas quais o processo de leitura e

interpretação é construído. Não se pretende, nesse trabalho, esgotar todas as formas de

(re)pensar o processo de leitura, mas fala-se sobre um processo de interação entre leitor

e autor via texto, no qual o sentido vai, aos poucos, sendo construído. Assim, divide-se

este capítulo em subtópicos que perpassam o conceito de língua e sujeito (leitor), texto,

a discussão sobre o processo de leitura e interpretação, os mecanismos envolvidos nele,

assim como a apresentação dos vários tipos de conhecimento que devem ser

considerados ao trabalhar-se com interpretação textual.

1.1 LÍNGUA E SUJEITO (LEITOR)

O ser humano, enquanto ser basicamente social, tem a necessidade de se

comunicar com seus pares para transmitir informações, convencer, persuadir, informar.

Essa necessidade é satisfeita pela utilização da língua enquanto manifestação verbal, a

qual pode se realizar a partir das mais variadas formas de concretização dos signos

linguísticos, tais como oral, imagético, gestual ou escrito. Sendo assim, a língua (e suas

diferentes formas de manifestação) é um objeto de pesquisa, com muitas possibilidades

de discussão e que vem há muito tempo tentando ser explicada por pesquisadores.

25

Destaca-se que não se pretende discutir aqui sobre todas as diferentes formas de pensar

a língua. Ao invés disso, vai-se explicá-la, basicamente, como forma de interação verbal

entre indivíduos participantes de uma comunidade.

Mas como a língua se constitui? Na visão de Bakhtin (2009), a língua só pode

ser pensada a partir da interação entre indivíduos de uma comunidade. Isso quer dizer

que a língua é produto das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade,

organizados de uma determinada maneira, e, ao mesmo tempo, é a partir dela que essas

relações se constroem. O autor afirma que a língua ganha vida a partir das interações

entre falantes de uma comunidade podendo ser alterada conforme a evolução social

dessa comunidade. Para ele, “a língua aparece como uma corrente evolutiva

ininterrupta” (BAKHTIN, 2009, p. 93), em que significados sociais são construídos, os

signos.

Pode-se dizer que, nessa visão, a língua não é apenas um sinal linguístico gráfico

ou fonético, mas a produção de uma realidade compartilhada e construída pelos

membros de uma sociedade na qual questões ideológicas, sociais, culturais estão

inseridas, constituindo também as consciências individuais. Essas consciências são

resultado de construções resultantes da interação pela linguagem. Em outros termos, a

língua é constituída de signos que resultam de uma interação pela linguagem. Essa

interação interfere, por sua vez, na compreensão da língua - em qualquer tipo de

compreensão dada por meio da linguagem, no caso desta pesquisa por meio de textos

escritos - e na constituição das consciências individuais. Nas palavras de Bakhtin

(2009),

[...] não basta colocar dois homo sapiens quaisquer para que os signos

se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam

socialmente organizados que formem um grupo (uma unidade social);

só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência

individual não só nada pode explicar, mas ao contrário, deve ela

própria ser explicada a partir do meio ideológico e social (BAKHTIN,

2009, p. 35).

A língua é, assim, produto de uma construção dos sujeitos de uma comunidade,

o que se dá pela interação das consciências individuais, as quais, por sua vez, foram

previamente construídas também pela língua. Ou seja, há uma relação constante de

construção e reconstrução da língua e da consciência dos indivíduos no processo de

interação verbal. Isso significa que quando se usa a língua para interagir verbalmente

com membros da comunidade se (re)constroem signos e pode-se estar alterando a forma

26

como as consciências e a própria língua se constituem. Sendo assim, “realizando-se no

processo da relação social, todo signo ideológico, e, portanto, também o signo

linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social

determinados.” (BAKHTIN, 2009, p. 45).

Ao perceber-se como parte da construção da língua o usuário se dá conta que é

necessário utilizar o contexto do qual a língua emerge para dar a ela sentido. Isso

significa que, na visão bakhtiniana, a língua não pode ser resumida a formas linguísticas

utilizadas para comunicação e sim como resultado do processo de construção sígnica

ocorrido entre falantes. Na ótica do autor:

para o locutor, o que importa é aquilo que permite que a forma

linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo

adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor

a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e

sempre igual em si mesmo, mas somente enquanto signo sempre

variável e flexível [...] o receptor, pertencente à mesma comunidade

linguística, também considera a forma linguística utilizada como um

signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre

idêntico a si mesmo (BAKHTIN, 2009, p. 96).

Há assim, a participação de um conjunto de contextos possíveis para a

construção da enunciação1. É na relação das consciências dos sujeitos com as relações

mais diversas ali presentes (sociais, econômicas, culturais) que a língua se constitui

como tal. Isso significa que, ao ser utilizada para comunicação, a língua está carregada

de sentidos vivenciais.

Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra2’ para referir-se a essa língua dotada de

significado social. Sem essa significação ela é apenas um sinal não compreensível pela

comunidade. Para que seja compreendida, a palavra precisa ser transformada em

enunciação, que se realiza como resposta a alguma coisa na construção de um diálogo.

Assim, a palavra está em um território comum entre o locutor e o interlocutor, fazendo

com que os sujeitos da interação dela tomem posse dentro de um contexto social. Em

outros termos, a palavra é influenciada pelas relações interacionais entre indivíduos

1 Enunciação, na visão de Bakhtin (2009), é um produto de um ato de fala, com objetivos específicos e

concretizado numa situação comunicativa. É de natureza social, isto é, produto de dois indivíduos

socialmente organizados. 2 Bakhtin (2009) utiliza o termo ‘palavra’ para referir-se à manifestação da língua como enunciação. Isso

significa que o termo ‘palavra’ utilizado aqui está voltado a um contexto mais amplo, como língua ou

enunciação. Neste trabalho, mais adiante (cf. cap. 2.2) fala-se mais sobre o conceito de ‘palavra’. Ainda,

utiliza-se o termo palavra-chave que se refere às palavras utilizadas pelos leitores para interagir com o

texto, carregar e construir sentidos textuais.

27

numa relação dialógica de (re)construção. Nas palavras de Dahlet (1997), “a língua

aparece então sob o efeito da dialogização da memória dos locutores como

necessariamente ouvida e construída por cada um através de um jogo de signos –

palavras instáveis” (DAHLET, 1997, p. 68).

Neste trabalho, admite-se que o texto constitui-se como uma enunciação,

resultado de um ato de fala, com objetivos estabelecidos e voltados para um interlocutor

que deve, por sua vez, compreendê-lo na situação real de produção, ou seja, na

comunidade linguística. Nesse sentido, a interpretação de textos seria uma forma de

construção na qual o texto (ou a enunciação conforme denominada por Bakhtin, 2009)

torna-se meio de expressão e de criação dos interlocutores. Assim, o texto torna-se, de

acordo com Koch e Elias (2010), uma forma de manifestação da língua enquanto

lugar de interação de sujeitos sociais, os quais dialogicamente se

constituem e são constituídos, e que por meio de ações linguísticas e

sociocognitivas constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido,

ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de

organização textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que

a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS, 2010, p. 07).

Em suma, a língua é produto da interação de sujeitos sociais, que numa relação

de (re)construção constante nela interferem e ao mesmo tempo são por ela influenciados

armazenando para si uma carga de conhecimentos (também socialmente construídos –

vide ‘conhecimentos de mundo’ no cap. 1.3.4 e competência comunicativa no cap. 2).

Neste trabalho, assume-se que o texto constitui-se como uma das formas de

manifestação da língua construída socialmente. Mas qual o papel do sujeito perante o

texto?

Se tomarmos a visão de leitura enquanto uma interação entre autor e leitor via

texto3 (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989), esse sujeito não apenas recebe o

texto como sinal linguístico, mas com ele interage, construindo conhecimento

(LENCASTRE, 2003). Na visão de Bakhtin (2009) o sujeito torna-se parte do processo

de construção da língua e é o corresponsável pela concretização da palavra enquanto ato

enunciativo. É na interação da palavra com os infinitos conhecimentos que o sujeito

possui e utiliza durante o processo que significados são construídos.

Viu-se que o sujeito tem uma consciência individual construída por meio da

utilização da língua e essa consciência, por interferência da língua, tem características

3 Discute-se a concepção do processo de leitura na seção 1.3 deste trabalho.

28

compartilhadas com a comunidade em que ele vive. Ao interagir com outros usuários da

língua ele utiliza sua consciência e, ao mesmo tempo, deixa-se (re)construir pelo

processo da interação verbal. Ou seja, o sujeito não é nem produto e nem produtor, mas

um coprodutor da língua ao trocar enunciações constantes.

Neste trabalho, fala-se sobre o processo de interpretação textual, o que permite

denominar o sujeito, daqui em diante, como sujeito leitor, ou simplesmente leitor. Este

deve ser percebido como aquele que constrói significado, utilizando as pistas do texto e

relacionando-as com sua consciência já existente (LENCASTRE, 2003). Isso porque, no

ato de compreensão textual o sujeito leitor se coloca na posição de interlocutor e é na

interação com as palavras proferidas pelo autor que ele consegue construir

compreensão. A interpretação dada ao texto é a contrapalavra. Ou seja, ela não é nem a

palavra única dada pelo leitor e nem a palavra única do autor (BAKHTIN, 2009); é,

portanto, resultado da interação entre ambos.

Neste sentido o sujeito leitor é ativo, utilizando seus conhecimentos, formulando

perguntas, criando estratégias de leitura, (re)formulando pensamentos e dialogando com

o autor. Ele segue as pistas linguísticas deixadas no texto e com elas interage

construindo conhecimento. Sendo assim, as palavras do texto só assumem um sentido4 a

partir da construção de uma representação feita pela atividade interativa do sujeito

leitor. Em sua atividade de leitura, o sujeito tem uma responsabilidade para com a

construção da interação: isso inclui releituras, análise de palavras e frases, inferências,

ativação de conhecimentos, construção da representação do sentido global (KLEIMAN,

2002).

Para Dijk e Kintsch (1983) o sujeito leitor faz adivinhações a partir de um

conjunto de informações textuais iniciais as quais são sustentadas por vários tipos de

informação tais como títulos, palavras, sentenças tópico, conhecimento sobre possíveis

ações ou eventos subsequentes, e informação contextual (DIJK; KINTSCH, 1983).

Assim, o leitor entra não somente com a decodificação do material linguístico do texto,

mas com todo o seu sistema cognitivo construído pela utilização da língua na

compreensão leitora. Sendo assim, também na visão de Dijk e Kintsch (1983), o sujeito

leitor não é um mero observador do discurso, mas um participante ativo na relação

comunicativa. O discurso é feito para afetar ações verbais e não verbais ou suas

condições tais como conhecimento, crenças, opiniões ou motivações.

4 Fala-se mais sobre o conceito de palavra e significado, sentido no cap. 2.3 deste trabalho de tese.

29

Reitera-se aqui a visão de língua e sujeito (leitor) para este trabalho: língua é

compreendida como uma construção de sujeitos inseridos em uma situação social, que

auxilia na formação das consciências individuais e ao mesmo tempo é (re)construída por

estas. O sujeito (leitor) é aquele que ao deparar-se com a enunciação (no caso deste

trabalho o texto escrito), utiliza ativamente sua carga de conhecimentos socialmente

construídos para interagir e produzir novos conhecimentos e compreensão.

Tendo definido alguns dos conceitos que embasam o processo de construção da

leitura (língua e sujeito leitor), trata-se, a partir de agora, do objeto da leitura: o texto.

Procura-se explicar como ele é visto nesse processo de interação autor-leitor.

1.2 O TEXTO COMO MANIFESTAÇÃO LINGUÍSTICA

Conforme foi discutido na seção anterior, a língua pode manifestar-se de diferentes

formas a partir da interação entre os indivíduos de uma determinada comunidade. Para

os fins do presente trabalho de tese, foca-se a discussão em textos escritos. Assim, antes

de falar sobre a leitura e seu processo propriamente dito, faz-se necessário explicar o

ponto de partida pelo qual ela se realiza, ou seja, o texto escrito. Este deve apresentar

uma série de características para que possa, de fato, transmitir comunicação.

De acordo com Koch (2009), o texto escrito deve ser considerado como uma forma

de atividade verbal humana que se utiliza de signos linguísticos escritos para

demonstrar ações individuais com objetivos e motivados por alguma coisa. Isto é, para

que um texto se concretize enquanto tal, parte-se de uma motivação psicossocial que se

materializa numa manifestação linguística (KOCH, 2009). Essa pesquisadora procura

demonstrar ainda que o objeto textual é caracterizado a partir das intenções do usuário

da língua (o autor) que, em uma determinada situação comunicativa, seleciona o que e

como vai dizer. Nas palavras da autora:

[...] existe em primeiro lugar a necessidade social, para cuja realização

se elabora um texto, cujo conteúdo se fixa de acordo com a situação

comunicativa e a intenção do falante, passo a passo chega-se ao nível

superficial do texto em forma de elementos linguísticos sucessivos [...]

(KOCH, 2009, p. 17)

Ou seja, para atingir seus objetivos, o autor faz uso de elementos de cunho

linguístico em interação com um contexto social e cultural com a intenção de atingir

seus interlocutores. Para tanto, ele precisa planejar, escolher o léxico mais adequado e

30

considerar os conhecimentos compartilhados com o leitor. Isto quer dizer que há sempre

um determinado objetivo para a produção textual, que só pode tornar-se aparente por

meio da utilização do código linguístico.

Numa linha de pensamento similar, Beaugrande e Dressler (1981) postulam que

um texto funciona como uma ocorrência comunicativa que segue determinados

princípios5, os quais funcionam como um conjunto de elementos interligados. Nesse

funcionamento, eles tornam-se um sistema real no qual opções foram realizadas dentro

de uma estrutura particular para transmitir objetivos de comunicação. Assim, o texto é

um sistema de elementos interconectados, no qual se inserem diversos tipos de

conhecimento da comunidade linguística dos falantes, e, a partir do qual, o autor faz

determinadas escolhas com um objetivo estabelecido. Para Beaugrande e Dressler

(1981), a manifestação textual é uma forma global de estabelecimento de sentido por

meio de diferentes processos cognitivos e utilizações de diferentes tipos de

conhecimentos revelados no uso da língua.

Na visão de Dijk (1977a; 2002), o texto é um elemento macroestrutural que

fornece subsídios sintáticos, semânticos e pragmáticos para a construção de um sentido.

Para este autor, o produtor do texto, tendo uma determinada intenção, vai desdobrando

na estrutura linguística uma ideia global e vai construindo sentidos que devem ser

recuperados pelo leitor, que, no ato comunicativo, utiliza-se também de elementos

sociocognitivos.

Kramsch (1993) afirma que geralmente os aprendizes são expostos ao texto

como se esse fosse um objeto fechado sobre o qual não se tem o controle do significado.

A autora lembra que, ao contrário, é necessário pensar no texto como um ato

comunicativo que interage com um contexto específico e nessa interação produz

sentidos. Ou seja, o texto é produto da interação entre o que está escrito em uma página

e o contexto, principalmente cultural e histórico (KRAMSCH, 1993).

Sendo assim, o texto não é simplesmente um conjunto de sequências de frases

que se juntam para formar um sentido6 genérico. Antes, ele constitui-se como um

elemento linguístico que interage com um contexto social e cognitivo do autor e do

leitor e, nessa interação, determinadas proposições são construídas. Em outros termos,

há uma concretização de elementos linguísticos no texto que são compreendidos na sua

5 Vide os princípios da textualidade na seção 1.2.

6 Fala-se mais sobre o conceito de sentido na seção 2.3 deste trabalho de tese.

31

interação com diversos tipos de conhecimentos extralinguísticos (sociais, culturais,

cognitivos) e é a partir dessa relação que eles fazem sentido.

Ainda, deve-se dizer que, para que se considere um texto enquanto tal faz-se

necessário haver entre leitor e autor a pressuposição de um compartilhamento de

conhecimentos da mesma comunidade (KOCH, 2009), isto é, conhecimentos de mundo,

convicções, e pressupostos os quais são concretizados por meio das escolhas lexicais do

autor. Tal escolha não se dá aleatoriamente, mas é feita especificamente para levar o

leitor a ativar esquemas de conhecimentos7 que expressem as intenções do autor ao

escrever. Não se quer dizer com isso que o texto baseia-se somente nas intenções do

autor. Pelo contrário, essas intenções se caracterizam como uma atividade primária para

a realização textual. No entanto, para que haja a concretização do elemento textual, faz-

se necessário a inserção de ambos, autor e leitor, em uma comunidade, além da

organização dos elementos linguísticos, da pressuposição do compartilhamento dos

mesmos conhecimentos e da consideração dos conhecimentos de mundo. Koch (2009)

argumenta que se deve considerar texto como um elemento que

se constitui enquanto tal no momento em que os parceiros de uma

atividade comunicativa global, diante de uma manifestação

linguística, pela atuação conjunta de uma complexa rede de fatores de

ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional são capazes

de construir, para ela, determinado sentido (KOCH, 2009, p. 30)

Pode-se dizer, assim, que para que se constitua um texto, é preciso estabelecer

para ele um sentido. Do contrário, poderia ser caracterizado somente como um

amontoado de palavras que não transmite informação alguma.

Na visão de Eco (1993), o texto não é apenas um elemento no qual o autor entra

com as palavras e o leitor com o sentido. Para ele, “as palavras trazidas pelo autor são

um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar

passar em silêncio, nem em barulho” (ECO, 1993, p. 28). Isso quer dizer que o texto, na

situação de elemento comunicativo, expõe para o leitor alguns sentidos que devem ser

observados a partir do léxico selecionado e das suas relações linguísticas. Sendo assim,

a interpretação tem limites dentro dessa estrutura linguística. Em outros termos, pode-se

dizer que o texto forma-se pelos elementos linguísticos que estão ali presentes e que,

também devem ser respeitados na produção de sentido.

7 Vide conceito de esquemas de conhecimento na seção 1.4

32

A partir da discussão dos autores mencionados acima, deve-se enfatizar qual a

visão de texto eleita para o presente trabalho. Toma-se como ponto de partida a visão de

Koch (2009) de que texto é um elemento comunicativo feito com determinados

objetivos para uma situação comunicativa. Ainda, considera-se que, para que se tenha,

de fato, um texto, vários tipos de conhecimento sociocognitivo devem se fazer presentes

tanto na sua produção quanto na sua leitura, os quais auxiliam na construção de sentidos

(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; DIJK, 2002; DIJK; KINTSCH, 1983). E mais, é

preciso levar em conta que os elementos linguísticos presentes em um texto limitam a

sua interpretação e devem ser ativados com seus significados intrínsecos e textuais e

observados pelo leitor para o estabelecimento de compreensão textual (ECO, 1993).

Falou-se até aqui sobre o conceito de texto e o que subjaz a esse conceito, e

destacou-se que há, para o texto, uma produção de sentidos que não é aleatória –

depende dos elementos linguísticos ali presentes – e que interage com diversos tipos de

conhecimento – sociais e cognitivos – para que a compreensão se estabeleça. Ou seja,

há a influência de uma série de conhecimentos que entram em jogo na produção de

sentido textual.

Pode-se dizer que os sentidos do texto são construídos a partir da relação entre

as palavras formando uma informação global ou uma macroestrutura (DIJK, 1977a;

DIJK, 1977b; 2002). Beaugrande e Dressler (1981) elencam dois grupos de elementos

que fazem com que a manifestação textual seja concretizada: os elementos linguísticos

(ex. coesão e coerência) e os elementos pragmáticos (ex. intencionalidade,

aceitabilidade, informatividade, situacionalidade, intertextualidade). Para os autores,

esses aspectos constituem o que se pode chamar de “princípios da textualidade”, os

quais garantem para o texto a característica de ser comunicativo.

Os elementos linguísticos auxiliam no sentido da construção semântica à medida

que possibilitam a criação de um determinado retrato para o texto em termos

superficiais. Um desses elementos é a coesão, ou seja, a utilização de elementos da

língua que têm por função específica estabelecer relações textuais e ir, aos poucos,

tecendo a estrutura do texto (KOCH; ELIAS, 2010). Essas relações são internas ao texto

e são consideradas semânticas por estabelecer relações de sentido. Nas palavras de

Koch e Elias (2010): “A coesão, por estabelecer relações de sentido, diz respeito ao

conjunto de recursos semânticos por meio dos quais uma sentença se liga com a que

veio antes, aos recursos semânticos mobilizados com o propósito de criar textos”

(KOCH; ELIAS, 2010, p. 16).

33

Beaugrande e Dressler (1981) também concebem a coesão textual como sendo

uma interdependência entre os elementos da superfície textual – palavras, frases e

orações – e a maneira como estão ligados entre si a partir desses elementos. Para os

autores, pode-se dizer que a coesão seria o processo pelo qual uma sequencialização

mantém-se no texto por meio da utilização de componentes linguísticos, o que pode

ocorrer por diferentes mecanismos, tais como a referência, a substituição, a elipse, a

conjunção e a coesão lexical8.

No que diz respeito à coerência, Beaugrande e Dressler (1981) a definem como

sendo relações não explícitas no texto, mas que são utilizadas pelo leitor para construir

sentido. Em outras palavras, coerência é o estabelecimento de uma continuidade de

sentidos textuais dados pelas expressões ali presentes em relação com os conhecimentos

do leitor. Tais conhecimentos são classificados pelos autores como:

a) Conhecimento determinado: aquilo que é aceito para todos os indivíduos de

uma mesma comunidade linguística (ex.: todos os humanos são mortais);

b) Conhecimento típico: aqueles comuns à maioria dos usuários da língua (ex.:

humanos geralmente vivem em comunidades);

c) Conhecimento acidental: aqueles que são verdadeiros numa classificação de

situações (ex.: alguns humanos podem ser loiros).

Ou seja, a coerência não é um elemento dado pelo texto em si mesmo, mas pela

relação daquilo que ali está exposto com o que já se conhece dentro de uma cadeia de

possibilidades. A coerência é, então, o que permite que os sentidos sejam construídos a

partir dos conhecimentos prévios do leitor na interação com a manifestação textual, ou o

que permite que o leitor tenha reações do tipo: “este texto faz sentido”.

Na visão de Koch e Travaglia (2011) e Beaugrande e Dressler (1981), a

coerência é um princípio de interpretabilidade e liga-se ao sentido de forma global. Para

os autores a continuidade estabelecida pela coerência se dá num plano conceitual entre

os elementos do texto e os processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor

e receptor) e não são apenas do tipo lógicos, mas dependem de fatores socioculturais

diversos e de fatores interpessoais tais como as intenções da comunicação, as

influências do falante, as regras sociais. Nas palavras dos autores:

8 Koch e Travaglia (2011) discutem cada um desses fenômenos separadamente. No entanto, não se atém

aqui a eles porque embora façam parte da constituição do texto, não são objetos específicos e principais

desse estudo.

34

Considera-se, pois, a coerência como princípio de interpretabilidade,

dependente da capacidade dos usuários de recuperar o sentido do texto

pelo qual interagem, capacidade essa que pode ter limites variáveis

para o mesmo usuário dependendo da situação e para usuários

diversos, dependendo de fatores vários (como grau de conhecimento

sobre o assunto, grau de conhecimento de um usuário pelo outro,

conhecimento dos recursos linguísticos utilizados, grau de integração

dos usuários entre si e/ou com o assunto, etc.) (KOCH, TRAVAGLIA,

2011, p. 36)

Para Dijk e Kintsch (1983), a coerência também é entendida como o

estabelecimento de conexões significativas entre sentenças sucessivas no discurso e é a

maior tarefa de compreensão. Para os autores, os usuários da língua estabelecem

coerência assim que possível sem esperar pelo resto das orações ou sentenças. Ainda

segundo eles, a coerência pode acontecer em diferentes níveis:

a) semântico: a relação entre os elementos do texto e seus sentidos. Ou seja,

deve haver um respeito com as relações de sentido entre os significados dos termos

linguísticos presentes no texto;

b) sintático: o uso de meios sintáticos (tais como conectivos, pronomes) para

expressar uma coerência semântica. Ou seja, é a utilização de meios sintáticos para

(re)estabelecer a continuidade do sentido do texto;

c) pragmático: a relação do que está no texto com os atos de fala, ou seja, para a

satisfação de necessidades comunicativas, tais como um pedido, uma ordem, uma

promessa, uma súplica etc.

Deve-se lembrar, no entanto, que a coerência não se dá somente por um desses

níveis, mas pela conexão entre eles, o que de uma forma geral auxilia na produção de

uma macroestrutura do texto, ou seja, de um sentido geral para ele (DIJK; KINTSCH,

1983).

Assim, a coesão e a coerência indicam a maneira pela qual os elementos do texto

se juntam para fazer sentido. No entanto, não são capazes, por si mesmas, de garantir a

constituição de um texto. Beaugrande e Dressler (1981) elencam, além delas, elementos

pragmáticos que também constituem ‘princípios da textualidade’. Tais componentes

referem-se às atitudes dos usuários dos textos (tanto produtor9 quanto receptor) e ao

contexto de produção e recepção textual.

9 ‘Produtor’ nesse trabalho está sendo usado como referência a quem produz o texto. ‘Receptor’, por sua

vez, está sendo usado como referência ao leitor. Opta-se por essa nomenclatura para não se confundir

com o termo ‘autor’ quando utilizado no singular para referir-se aos estudiosos escolhidos para construir a

posição teórica deste trabalho.

35

Desses elementos, um trata das atitudes do produtor – a intencionalidade – e o

outro, do leitor – a aceitabilidade. A intencionalidade refere-se à atitude do produtor de

confirmar suas intenções ou objetivos por meio do texto. Isso quer dizer que, ao

produzir um texto, o produtor tem objetivos a cumprir e pretende ser coeso e coerente

ao utilizar a língua para que seu receptor compreenda esses objetivos. Toda a produção

linguística tem uma intencionalidade e procura alcançar objetivos comunicativos.

Ainda na discussão sobre a intencionalidade, os pesquisadores utilizam as

máximas de Grice (1978 apud BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981) para demonstrar a

forma pela qual a produção linguística visa preencher objetivos e intenções. Assim as

seguintes características devem ser apresentadas pelo produtor:

1) cooperação: dar uma contribuição conversacional de maneira cooperativa a

partir daquilo que lhe é requisitado com um propósito e uma direção

estabelecida;

2) quantidade: contribuir numa quantidade adequada à informação almejada (não

deve fornecer mais informação que o necessário);

3) qualidade: não dizer o que acredita ser falso ou aquilo em que não há

evidências de verdade;

4) relação: ser relevante e usar tipos de conhecimento relacionados ao tópico,

úteis para atingir o seu objetivo;

5) maneira: usar formas adequadas de organizar e entregar textos. Deve ser

perspicaz (procurar demonstrar que aquilo que serve aos seus objetivos), evitar

obscuridade, evitar ambiguidade, ser breve, ser organizado (apresentar seu

material na ordem que lhe for requisitado).

A partir da aplicação das máximas de Grice, os usuários da língua planejam sua

interação comunicativa para alcançar determinados fins e assim gerenciam a situação

(atividade de conduzir a situação a um objetivo específico) e a monitoram (fazem uma

descrição ou narração das evidências necessárias para o seu objetivo).

Deve-se reiterar aqui que as atitudes do receptor também são importantes na

constituição do texto como ato comunicativo (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A

aceitabilidade diz respeito à atitude dos receptores da língua na comunicação, ou seja,

os receptores devem aceitar um enunciado como sendo coesivo e coerente, o que inclui

a sua capacidade de restaurar a continuidade do texto quando houver algum tipo de

confusão. É um princípio de cooperação do receptor à construção e à recuperação das

informações textuais.

36

De acordo com os princípios da intencionalidade e da aceitabilidade, pode-se

dizer que, para que um texto constitua-se enquanto comunicação, o falante monta seu

plano, prevê a sua contribuição, estabelece suas estratégias de organização das

informações e o interlocutor utiliza sua carga de conhecimentos compartilhados para

recuperar essas informações e dar sentido para o texto. Se não houver essa cooperação,

a textualidade pode ser prejudicada.

Observa-se, então, que outros dados também importantes na constituição do

texto são a quantidade e a qualidade das informações ali presentes, o que Beaugrande e

Dressler (1981) denominam informatividade. Para os autores, é a partir desse princípio

que se pode perceber a extensão pela qual uma manifestação linguística é constituída

por informação nova ou inesperada para os interlocutores. Na visão dos autores (ibidem,

p. 142-143), há diferentes graus de informatividade:

a) de primeira ordem: informações (ou nas palavras do autor, “ocorrências”)

que são esperadas e têm alto grau de probabilidade de acontecer no texto,

geralmente no que diz respeito ao conteúdo;

b) de segunda ordem: informações que ultrapassam a probabilidade de

frequência mais óbvia e que são necessárias para compor o cenário das

informações de primeira ordem;

c) de terceira ordem: informações completamente novas e inesperadas dentro

do conteúdo textual e são as mais interessantes, embora exijam do leitor

maior grau de atenção e recursos de processamento (buscar informações

específicas na estrutura textual, no contexto de ocorrência ou nos

conhecimentos prévios).

É no princípio da informatividade que o receptor do texto utiliza-se de

estratégias – tais como inferências, organização de linguagem, sequencialização de

informações, identificação de tipos textuais - para ligar o contexto do texto ao mundo

real. Pode-se dizer, assim, que a informatividade exerce uma medida de controle

importante na seleção e organização de opções sobre o conteúdo informativo presente

na comunicação.

Há ainda um princípio que indica os fatores pelos quais um texto torna-se

relevante para as situações de ocorrência, chamado situacionalidade (BEAUGRANDE;

DRESSLER, 1981). Este princípio está relacionado à competência sociolinguística10

10

Fala-se sobre a competência sociolinguística no cap. 2.2.2

37

dos usuários da língua para identificar o momento, o local, o contexto de produção e

recepção de um texto. Para os autores há duas formas de adequar a situação de

produção/recepção de um texto:

1) monitoramento: a função dominante de um texto é fornecer uma descrição da

situação geral de ocorrência;

2) gerenciamento: a função dominante é guiar a situação de maneira a favorecer

os objetivos do produtor do texto.

Os usuários da língua podem utilizar-se de diferentes estratégias11

para controlar

(monitorar ou gerenciar) a situação em que um texto ocorre e atingir objetivos

comunicativos.

Ressalta-se que os constituintes textuais acima elencados manifestam-se no nível

linguístico, mas recebem influências extralinguísticas. No interior do texto (produção ou

recepção), várias ligações podem ser estabelecidas, como, por exemplo, quando se

retoma outros textos para compor uma determinada manifestação linguística. É o que se

chama intertextualidade e que diz respeito à relação de dependência que se estabelece

entre os processos de produção/recepção de um texto e o conhecimento que os

participantes têm de textos anteriores a ele relacionados. (BEAUGRANDE;

DRESSLER, 1981).

A intertextualidade é importante porque a recuperação de leituras prévias é de

fundamental relevância para se estabelecer sentido para a produção ou leitura do texto.

Nas palavras de Koch e Elias (2010),

intertextualidade ocorre quando, em um texto, está inserido outro

texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória

social de uma coletividade. [...] é o elemento constituinte e

constitutivo do processo de escrita/leitura e compreende as diversas

maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende

de conhecimentos de outros textos por parte dos interlocutores, ou

seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com outros

textos (KOCH; ELIAS, 2010, p. 86).

Para as autoras, a retomada de outros textos propicia a construção de novos

sentidos, visto que eles estão inseridos em uma nova situação comunicativa, ou seja,

precisam ser adaptadas pelo leitor no processo de compreensão textual. A

11

Fala-se mais sobre as estratégias em dois momentos deste trabalho: a) leitura enquanto processamento

estratégico em que o leitor lança mão de diferentes ações para compreender um texto (seção 1.4); e b)

conhecimento estratégico em que o usuário da língua utiliza ações para moldar sua competência

comunicativa à interação estabelecida (cap. 2.1.4).

38

intertextualidade pode ser explícita – quando há citação direta da fonte utilizada – ou

implícita – quando cabe ao leitor recuperar a fonte de citação para construir sentido.

O que se quer esclarecer com as explicações acima é que vários fatores

influenciam na constituição de um texto e que, esse, por sua vez, é um elemento

complexo, mas forma-se a partir de uma cadeia de constituintes que, interligados, o

constroem. Vê-se, assim, que o texto não é simplesmente a junção de uma palavra com

outra respeitando normas ortográficas ou regras impostas pela gramática normativa.

Embora as regras e organizações influenciem, para que se torne de fato a concretização

de um determinado objetivo, o texto precisa obedecer aos princípios de interação entre

falantes de uma mesma comunidade e expor ali um determinado posicionamento,

pensamento, ideia. No entanto, deve-se reiterar aqui que é a partir da utilização das

palavras dentro de um texto e da interação linguística que elas mantêm entre si que se

pode estabelecer as suas possíveis leituras e verificar quais objetivos são pretendidos.

Quando se fala em produções de língua, como é o caso do texto escrito, não se

pode analisá-las apenas cortando-as em partes pequenas tais como em frases ou

sentenças. Deve-se olhar para o texto como uma forma global de estabelecimento de

sentido por meio de diferentes processos cognitivos e usos de diferentes tipos de

conhecimentos (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). Assim, concebe-se que, para

recuperação de sentidos textuais, ou seja, para interpretá-los pela leitura, é necessário

considerá-los como parte constituinte de uma situação global de comunicação, em que

objetivos e intenções materializam-se numa manifestação linguística concreta,

obedecendo a determinados princípios linguísticos e extralinguísticos, os princípios de

textualidade (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).12

Falou-se até aqui sobre o texto, um dos elementos de pesquisa deste trabalho, a

forma como é constituído, e os princípios a ele subjacentes, os quais são considerados

no tratamento dos dados (cap. 4 e 5). Discute-se daqui em diante o processo de leitura

propriamente dito e os fatores envolvidos nesse processo.

12

Destaca-se que há trabalhos mais recentes que encaram os princípios da textualidade de forma em que

se classifica os elementos do texto propriamente ditos e os elementos que são condições para sua

efetivação enquanto texto. Antunes (2010) argumenta a esse respeito: "Nos estudos que tenho feito, na

sequência dessa e de outras propostas, optei por fazer uma pequena reordenação no quadro dessas sete

propriedades, concedendo certa saliência àquelas que, mais diretamente, pertencem à construção mesma

do texto. Assim, proponho, como propriedades do texto, a coesão, a coerência , a informatividade e a

intertextualidade. Proponho, como condições de efetivação do texto, a intencionalidade, a aceitabilidade e

a situacionalidade.Para justificar essa reordenação, alego que a intencionalidade e a aceitabilidade

remetem aos interlocutores e não ao texto propriamente." (ANTUNES, 2010, p. 33-34)

39

1.3 A LEITURA E O FUNCIONAMENTO DO PROCESSO DE INTERPRETAÇÃO

Assim como o processo de produzir um texto é composto de vários elementos

complexos, o processo de interpretá-lo vai muito além da mera decodificação. Tal

procedimento implica em saber quais são esses elementos e como organizar as ideias

expostas pelo autor. Contudo, saber identificar tais aspectos é uma tarefa também

complexa que inclui processos cognitivos, linguísticos e extralinguísticos, os quais são

discutidos nesta seção do trabalho.

Freire (1983) afirma que “o ato de ler não se esgota na decodificação da palavra

escrita pura, ele se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (FREIRE, 1983, p.

11). Ao dizer isso, o autor demonstra que ler um texto vai muito além de decodificar as

palavras que ali estão expostas, mas supõe-se saber conectá-las a uma gama de

representações que envolvem questões sociais, culturais e pessoais que não deixam de

dialogar com as palavras que se encontram ali expostas. O que permite que um leitor, de

fato, compreenda um texto é a percepção de que há uma interdependência contínua

entre o que se encontra na materialidade linguística do elemento textual e o

conhecimento que ele, de fato, já possui sobre questões mais amplas do ambiente em

que vive.

Ainda, na visão de Freire (1983), “a leitura de um texto, tomado como pura

descrição de um objeto e feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura nem dela,

portanto, resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala” (FREIRE, 1983, p. 18).

Isto quer dizer que não se pode tomar o texto como um objeto passivo de junção de

informações codificadas, mas como algo que deve ser construído num processo

interativo entre informações linguísticas, mentais e sociais.

Lencastre (2003) reforça essa ideia ao conceituar o processo de interpretação

como algo dinâmico e construtivo em que os estímulos linguísticos encontrados no

texto associam-se a informações pré-existentes dispostas na memória do leitor para que,

assim, significados mais globais sejam construídos.

Alliende e Condemarin (1987) lembram que a interpretação de textos é uma

atividade que depende tanto de quem os produz quanto de quem os lê. Isso porque

conforme se discutiu na seção anterior, quando o autor se propõe a escrever um texto,

ele adota suas próprias estratégias para indicar seus objetivos. O leitor, por sua vez, ao

se deparar com um texto, tem diante de si uma quantidade de novas ideias, as quais

precisam ser apreendidas e compreendidas para que haja leitura efetiva.

40

Deve-se ressaltar que, ao se propor a ler um texto, o leitor utiliza sua gama de

conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, encontra um código ali exposto que deve ser

compreendido. É o que, por exemplo, crianças em fase de alfabetização devem aprender

a fazer: decifrar o código linguístico e compreender o que está escrito (KATO, 1999).

Assim, pode-se dizer que as ideias veiculadas por um texto requerem do leitor um

trabalho cognitivo bastante intenso, em que, no mínimo, duas etapas estão sempre

presentes: a decodificação e a compreensão.

A decodificação consiste na identificação de um elemento gráfico, ou seja, na

decifração do código13

linguístico utilizado pelo escritor. Nessa etapa, os sentidos

podem não estar desvelados ainda, pois o leitor pode decifrar o código, mas não ter a

devida compreensão da ideia presente no texto. Entretanto, para que o leitor possa

desenvolver uma compreensão do texto, esse código deve se apresentar dotado de

sentidos. Dessa forma, seria somente na etapa da compreensão que o leitor começaria a

montar imagens mentais sobre o conteúdo do texto por meio do levantamento de

hipóteses, de inferências e da busca dos significados que vão produzir um sentido

completo para o texto lido (ALLIENDE; CONDEMARIN, 1987).

As etapas de entendimento de um texto podem abranger ainda outros aspectos,

de certa forma, atrelados a esses. Para Eco (1979), a interpretação de textos é resultado

de um processo que depende, necessariamente, da cooperação do leitor. De acordo com

o autor, que faz uma discussão baseada em textos narrativos, esse processo se

desenvolve em duas ramificações principais: a das intensões14

e das extensões. No

âmbito das intensões, estariam as informações como a enciclopédia mental do leitor, o

conhecimento do código linguístico, o saber do indivíduo a respeito da tipologia e

organização dos textos (as estruturas discursiva e narrativa), as estruturas actanciais, isto

é, os papéis ocupados pelos personagens presentes no texto, e, ainda, as estruturas

ideológicas (julgamentos de valor, tais como a noção de bom e mau). No outro ramo da

bifurcação, estariam outros tipos de informação, incluindo aspectos tais como as

circunstâncias e o momento em que o texto foi produzido, a formulação de hipóteses e

as inferências primárias e, ainda, o conhecimento de mundo, que leitor usaria mais tarde

para a reformulação do texto.

13

Entende-se código aqui como os elementos da língua (morfemas, palavras, sintagmas, sentenças)

expostos em um texto. 14

Eco (1979) escreve intensões com ‘s’ para expressar o conceito semântico do termo. Intensões seria o

conjunto dos traços semânticos que as palavras/sentenças possuem como propriedades inerentes e que

podem ser alteradas ou mantidas a partir da combinação com outras (CASTILHO, 2010).

41

Embora Eco apresente seu modelo de processamento como uma composição de

vários submódulos (quadro 1), sugerindo um funcionamento sequencial consecutivo, ele

observa que não há caminhos obrigatórios na ordem de execução. Para o autor, a ordem

depende, fundamentalmente, da proficiência do leitor. O quadro (1) demonstra o

funcionamento do sistema de cooperação entre leitor e autor no momento da leitura.

QUADRO 1 - Os Níveis de cooperação textual.15

INTENSÕES EXTENSÕES

C O N T E Ú D O A C T U A L I Z A D O

Avaliando o diagrama de baixo para cima, verifica-se que o primeiro movimento

do leitor é tomar o texto como objeto de leitura (manifestação linear do texto) e aplicar

sobre ele todos os seus “códigos e subcódigos”16

. Esses são obtidos paralelamente a

partir de acessos feitos à sua enciclopédia mental por meio de seleções de contexto e da

combinação de quadros textuais (frames ou esquemas), a fim de transformar o texto em

um nível primário de conteúdo.

15

In: ECO (1979, p. 76). 16

Segundo Eco (1979), os códigos e subcódigos abrangem o conhecimento linguístico do leitor aplicado

ao texto, como, por exemplo, o acesso ao léxico e a localização de propriedades semânticas das palavras.

ESTRUTURAS IDEOLÓGICAS

ESTRUTURAS DE MUNDOS

ESTRUTURAS ACTANCIAIS

ESTRUTURAS NARRATIVAS

ESTRUTURAS DISCURSIVAS

PREVISÕES E PASSEIOS

INFERENCIAIS

EXTENSÕES

PARENTETIZADAS

EXPRESSÃO

Manifestação linear do texto

CÓDIGOS E SUBCÓDIGOS

CIRCUNSTANCIAS DA

ENUNCIAÇÃO

42

Paralelamente, ele também promove a ativação das estruturas do texto que está

sendo lido, do tipo de enunciado, da linguagem utilizada, para, com base nisso tudo,

fazer suposições sobre o contexto social do texto. Eco denomina essa fase do

processamento “circunstâncias da enunciação”17

. Todavia, ressalta-se que essas etapas,

por assim dizer, básicas de execução não são independentes do restante do

processamento. Para o funcionamento do sistema, deve haver uma dinâmica articulação

com os níveis superiores do diagrama, representados, de um lado, pelo ramo das

intensões, e de outro, pelo das extensões.

Ao aplicar o “código linguístico” e as “circunstâncias da enunciação” ao texto, o

leitor encontra indícios que lhe permitem fazer inferências primárias: as “extensões

parentetizadas”, que são indícios inferenciais ativados pelo leitor, mas deixados em

suspenso até que o texto seja melhor atualizado; as inferências são checadas conforme o

desdobramento da leitura. Em outras palavras, o leitor espera encontrar os indícios

necessários para confirmar as informações iniciais percebidas no material escrito; caso

contrário, ele tem de reformulá-las de acordo com as informações do texto.

Mediado pelas inferências primárias, o leitor tenta, a partir daí, encontrar uma

explicitação semântica de algumas partes do texto que ele já sabe serem essenciais para

a sua compreensão. Para tanto, ele vai se basear na “estrutura discursiva” e nos traços

semânticos fornecidos pelos itens lexicais, a fim de fazer o reconhecimento do tema –

denominado pelo autor de “topic” - do texto. É no módulo das estruturas discursivas,

portanto, que o assunto do texto é identificado (ECO, 1979). Esse reconhecimento não

se dá de uma única vez, mas vai acontecer em partes, conforme as hipóteses primárias

do leitor vão sendo confirmadas ou reconstruídas. Com base nas partes representadas

mentalmente a partir do assunto e dos itens lexicais já reconhecidos, o leitor consegue,

enfim, ampliar as propriedades semânticas do texto e estabelecer um nível de coerência

interpretativa - denominado pelo autor de “isotopia” - ou seja, “um conjunto de

categorias semânticas redundantes que tornam possível a leitura uniforme de uma

história” (ECO, 1979, p. 97). Conforme o autor, “o reconhecimento do tópico é um

movimento cooperativo (pragmático) que orienta o leitor para o reconhecimento das

isotopias como propriedades semânticas de um texto.” (ECO, 1979, p. 107).

Para que o leitor logre êxito quanto ao reconhecimento das redes semânticas de

um texto, é necessário que ele ative os itens lexicais com os quais se depara durante a

17

A utilização de aspas neste trecho de explanação do quadro de Eco (1979) refere-se aos termos

utilizados pelo autor.

43

leitura e que ele próprio considera como sendo os mais importantes. A representação

desses itens lexicais, segundo Eco (1979), constitui estruturas mentais do tipo frames18

,

que são quadros de representações ativados pelo leitor durante todo o processo de

compreensão de um texto. À medida que a leitura evolui, esses quadros se reorganizam

e ocorre um processo de formulação do pensamento. O modo de organização das

informações a partir de frames constitui uma característica fundamental para o processo

de interpretação de textos.

A partir desses esquemas de representação, o leitor deve, na etapa seguinte, ser

capaz de sintetizar em uma única estrutura todos os quadros obtidos até o momento, a

fim de produzir uma “estrutura da narrativa” da história. Nesse módulo, denominado

por Eco “macroposição” de esquemas, o leitor identifica uma sequência de ações

percorridas durante o texto e as “encaixa” para formular a representação da narração.

Se, no entanto, durante a evolução da leitura, o leitor percebe algo no texto que

seja contrário à hipótese que já formulou e que, de alguma maneira, provoque a

“quebra” da representação que fez, ele se vê forçado a estabelecer novas expectativas e

possibilidades e a fazer disjunções, baseado em seu próprio conhecimento, promovendo

novas inferências. Trata-se, segundo Eco (1979), das previsões e dos passeios

inferenciais. Ao identificar uma nova ação que não era esperada em sua análise, o leitor

é levado a fazer uma previsão sobre qual será o novo curso dos acontecimentos. Para

isso, tem de “sair do texto” e fazer passeios sobre as possíveis inferências e, baseando-

se em seu conhecimento de mundo, estabelecer os chamados “mundos possíveis” para a

história. Nessa revisão, o leitor estabelece um mundo cultural com certo número de

personagens, que possuem determinadas propriedades e que assumem determinadas

atitudes de acordo com o texto, ao mesmo tempo em que se apoia em sua própria

cultura, confrontando esses “mundos possíveis” com o seu “mundo real”. Isso é

realizado no módulo das “estruturas de mundos”, fase em que o leitor faz julgamentos

de valor-verdade que estariam formados no seu léxico mental e no contexto em que

vive.

Por meio das inferências realizadas com base na narrativa, o leitor passa a

construir algumas lacunas abstratas ocupadas pelos “participantes” do texto e por suas

respectivas características e funções – as “estruturas actanciais”, na denominação de

Eco. O estabelecimento de actantes guia as opções, previsões e macroposições de

18

Na seção 1.4.3.1 deste trabalho, discute-se mais sobre frames, esquemas mentais e as formulações

mentais ativadas por meio do código linguístico.

44

quadros feitas pelo leitor no decorrer da leitura. A formulação e o preenchimento dessas

lacunas são essenciais no processo interpretativo pois indicam que o leitor foi capaz de

reconstruir as informações do texto adequadamente.

Sobre estas lacunas formadas a partir do texto, o leitor aplica seus próprios

julgamentos, formados por “estruturas ideológicas” presentes no seu código

enciclopédico, as quais se manifestam por juízos de valor (tais como a noção de

verdadeiro e falso). Assim, o leitor confere às lacunas actanciais marcas ideológicas,

que podem ser tanto negativas quanto positivas, presentes no seu conhecimento, e é

induzido a conferir perspectivas ideológicas ao texto.

Apesar da análise de Eco (1979) estar baseada em textos narrativos, há

elementos considerados por ele que são válidos para qualquer processo relativo à

interpretação. Para o autor, uma vez que os níveis não ocorrem de maneira hierárquica,

mas concomitantemente, todas as estruturas de representações semânticas formuladas

tornam-se mais claras conforme a evolução da leitura, ainda que nem sempre de forma

completa. Um leitor proficiente não decodifica, mas percebe as palavras, globalmente,

guiado pelo seu conhecimento prévio e por suas hipóteses de leitura. Durante o

processo, ele faz inferências e levanta hipóteses sobre significados que não estão

diretamente presentes no texto e os incorpora ao seu conhecimento.

Pode-se dizer, portanto, que o leitor faz um passeio constante entre o que está

linguisticamente marcado no texto e os conhecimentos outros que ele utiliza para

construir um sentido. É a relação constante entre os vários tipos de conhecimento que

fazem com que o processo de interpretação se realize.

Ainda, baseando-se nas postulações de Eco (1979), nota-se que o processo de

inferenciação e levantamento de hipóteses são essenciais para a interpretação, porque ao

testá-las em confronto com o texto, o leitor depreende o conteúdo e reconstrói sentidos

textuais e, consequentemente, o seu próprio conhecimento. Quando o objetivo da leitura

está claramente definido, as hipóteses são formuladas previamente pelo leitor e a

compreensão é facilitada, pois ele percebe mais rapidamente os sentidos presentes no

texto por meio da ativação mental dos itens lexicais e da percepção da relação entre

eles.

Numa visão similar à de Eco (1979), compreendendo a leitura enquanto

processo interativo, Colomer e Camps (2002) salientam que

45

o leitor baseia-se em seus conhecimentos para interpretar o texto, para

extrair um significado e esse novo significado, por sua vez, permite-

lhe criar, modificar, elaborar e incorporar novos conhecimentos em

seus esquemas mentais (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 23).

Em outras palavras, observa-se que o texto escrito propicia converter as

interpretações em realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação

intensa entre pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002;

KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o leitor não registra tudo o que lê de forma

uniforme; pelo contrário, ele só registra aquilo que julga necessário. Tudo o mais

permanece semanticamente latente. Desse modo, o leitor deve perceber as relações entre

os itens registrados durante a leitura e formula a representação do texto.

Ainda para Colomer e Camps (2002), o leitor tem a possibilidade de apropriar-se

de diferentes tipos de conhecimento por meio da leitura e converter suas interpretações

em realidade material. É na interação que ocorre durante o processo de leitura que o

leitor consegue estruturar suas próprias ideias e operar de forma mais consciente com a

realidade linguística para construir sentidos diversos. Nas palavras das autoras:

[...] o leitor deve raciocinar e inferir de forma contínua. Isto é, deve

captar uma grande quantidade de significados que não aparecem

diretamente no texto, mas que são dedutíveis: informações que se

pressupõem, conhecimentos compartilhados entre emissor e receptor,

relações implícitas (temporais, de causa e efeito, etc) entre os

elementos do texto, etc (COLOMER, CAMPS, 2002, p. 31).

Para Kleiman (2002), a leitura compreensiva depende da interação à distância

entre autor e leitor por meio do texto, que se consolida por meio dos indícios deixados

nos textos pelo autor sobre suas intenções, opiniões etc., e que o leitor deverá identificar

para, a partir daí, tentar reconstruir o significado que estaria presente no texto.

Para a compreensão do que está lendo, então, o leitor precisa lançar mão de itens

linguísticos, tais como palavras, conectivos, sintagmas, e, a partir deles, estabelecer

ligações que o auxiliam nesse trabalho. De acordo com Kleiman (2002), “o leitor

constrói e não apenas recebe um significado global para o texto. Ele procura pistas

formais, antecipa essas pistas, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita

conclusões” (KLEIMAN, 2002, p. 65).

Para a autora, a partir do conhecimento já elaborado, o leitor se vê em condições

de transformar os sentidos pretendidos no texto em um novo conhecimento. Para isso,

46

entretanto, é necessário que o leitor aprenda a dominar as estratégias de controle do ato

de interpretação, percebendo as marcas formais e estabelecendo relações entre as ideias

do texto.

Ainda de acordo com Kleiman (2002), o leitor constrói sentidos estabelecidos no

texto por meio de um diálogo mental com o autor. Para tanto, o leitor utiliza seus

conhecimentos prévios, isto é, seus conhecimentos linguísticos, textuais, e

extralinguísticos que, de várias maneiras, contribuem para a interpretação.

Percebe-se, assim, que não se pode tratar a leitura de um texto como uma

atividade simplificada em que o leitor conhece apenas o código linguístico utilizado.

Juntamente às informações linguísticas, diversos tipos de conhecimento são ativados. A

próxima seção fala sobre esses conhecimentos e sua influência na forma como os

leitores compreendem um texto.

1.4 TIPOS DE CONHECIMENTO E SUA INFLUÊNCIA NA INTERPRETAÇÃO

Viu-se até aqui que, para interpretar um texto, há vários tipos de conhecimento

que interagem entre si. Pode-se classificá-los em três tipos: a) os conhecimentos que

envolvem questões linguísticas propriamente ditas, ou seja, o léxico de acesso ao texto

mais as organizações sintáticas e semânticas. Este conjunto é denominado

‘conhecimento linguístico’; b) os conhecimentos que envolvem a estrutura textual, ou

seja, conhecimentos relativos à organização do texto, denominados ‘conhecimentos

textuais’; e c) os conhecimentos que envolvem questões extralinguísticas e comuns à

comunidade da qual o leitor faz parte, tais como a sequência de eventos que envolvem

um acidente, por exemplo, ou a ida a um restaurante, denominados ‘conhecimentos de

mundo’. Deve-se destacar o fato de que todos estes tipos de conhecimentos se articulam

no processo interpretativo. Conforme Kleiman (2002),

O conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento

de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao

momento da compreensão, momento esse que passa despercebido, em

que as partes discretas se juntam para fazer um significado.

(KLEIMAN, 2002, p. 26).

Isso porque, de acordo com o que já se discutiu na seção anterior, a leitura é um

processo interativo em que se reconstroem constantemente representações culturais

(FREIRE, 1983). Ainda, destaca-se que essa interação entre leitor e autor não é

47

aparente, mas mental e silenciosa de forma que ela “se dá por meio do inter-

relacionamento não hierarquizado de diversos níveis de conhecimento do sujeito (desde

o conhecimento gráfico até o conhecimento do mundo) utilizados pelo leitor durante a

leitura” (KLEIMAN, 2004, p. 31).

Ao tratar-se de interpretação textual neste trabalho, considera-se que todos esses

tipos de conhecimento devem ser observados no processo de leitura. Discute-se cada um

dos conhecimentos em seções separadas desse trabalho.

1.4.1 O conhecimento linguístico

Kleiman (2002) refere-se ao conhecimento linguístico como sendo o processo no

qual o leitor identifica as palavras, ou unidades linguísticas, e as agrupa em frases (ou

unidades maiores) para, em seguida, ativar significados com base em seu conhecimento

sintático, lexical e semântico. Sem o domínio do conhecimento linguístico, a

compreensão do texto torna-se impossível.

Segundo Castello-Pereira (2003), as marcas linguísticas ativam os

procedimentos intelectuais do leitor. Tais marcas devem ser observadas para que haja a

compreensão do que se está lendo, pois é por meio delas que o leitor seleciona,

compara, faz inferências e vai aos poucos tecendo relações de sentido. Isto quer dizer

que o leitor parte do conhecimento linguístico como ponto inicial para estabelecer

interação com o texto. Em seu estudo, a autora apresenta algumas técnicas de auxílio à

interpretação de textos, considerando a ideia de que a boa interpretação depende da

localização dos indícios deixados pelo autor e da coleta das informações para construir

o sentido do texto. À medida que o leitor percebe as palavras e estabelece para elas

conteúdo semântico, sua mente vai construindo e reconstruindo significados gerais,

recriando, percebendo e avaliando o texto.

Ainda de acordo com a autora, a marcação formal (tais como sublinhados,

marcações de parágrafos etc.) auxilia o leitor a concentrar sua atenção em determinadas

informações linguísticas e a interagir melhor com o texto a partir da relação estabelecida

entre o linguístico e outros conhecimentos do leitor.

No que diz respeito ao conhecimento linguístico, vale enfatizar a importância da

representação dos itens lexicais em relação ao conhecimento de mundo do leitor como

fatores fundamentais no processo interpretativo. Contudo, deve-se ter o cuidado de

notar que não é apenas a soma dos itens lexicais isolados e da sua representação

48

mental19

que levará o leitor a uma construção dos sentidos de um texto, mas a

identificação das relações estabelecidas entre as palavras, de um lado, e as sentenças,

parágrafos e o próprio texto, de outro. Isso porque as palavras, ou ainda, todos os

conhecimentos relativos ao código linguístico, não se relacionam apenas

estruturalmente, mas também semanticamente. Conforme Colomer e Camps

(COLOMER; CAMPS, 2002, p. 129), “as relações semânticas entre as palavras do texto

é uma das bases de compreensão da coerência de um texto e um elemento importante

para dar-lhe coesão”. Ou seja, as relações semânticas entre os itens lexicais (e, portanto,

armazenadas no conhecimento linguístico) levam o leitor a estabelecer conexões

essenciais para o processo interpretativo20

.

Kleiman (2002) lembra que associados aos conhecimentos linguísticos de

construção de sentenças ou frases é que outros tipos de conhecimentos interagem para a

compreensão:

a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e

sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos,

de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange

muitas das possíveis dimensões do ato de compreender (KLEIMAN,

2002, p. 10)

Ainda de acordo com Kleiman (2004), para que se crie uma atitude de leitura

estratégica perante o texto, deve-se sensibilizar o leitor para os indícios linguísticos

encontrados na superfície textual, pois são eles que possibilitam a criação de um quadro

hierarquizado das informações ali expostas, e auxiliam o leitor a encontrar as

referências do autor que dão coesão e funcionam ao nível macroestrutural do texto

marcando a linha temática.

Em suma, os conhecimentos linguísticos envolvem tudo o que o leitor conhece

sobre questões lexicais, sintáticas, semânticas e estruturais do texto que o ajudam a

estabelecer um ponto de partida para o estabelecimento dos sentidos mais gerais do

texto. Por tratar-se de um dos focos de discussão dos dados - as relações linguísticas e

extralinguísticas que acontecem entre palavras-chave e as demais palavras do texto para

estabelecer interpretação –, no capítulo 2 deste trabalho fala-se mais sobre o modo como

19

O processo de representação mental é de fato importante na construção da interpretação (ex.: modelo

de ECO (1979) e conceitos de frames de DIJK (2002)). O que se procura destacar é que o processo das

relações entre palavras auxiliam nessa representação. 20

Discorre-se especificamente sobre as relações linguísticas entre palavras e a maneira como os usuários,

a partir da ativação da sua competência comunicativa, codificam significados no sistema linguístico

propriamente dito no texto no cap. 2 deste trabalho.

49

o leitor utiliza e organiza o sistema linguístico para que as formas codifiquem diferentes

sentidos. Destaca-se uma questão importante: o processo de leitura envolve

conhecimentos linguísticos necessários. Tais conhecimentos são possibilitados pelo uso

do sistema linguístico o que permite a construção e a codificação de sentidos a partir da

competência gramatical e lexical do usuário. (cf. cap. 2.2.1).

1.4.3 O conhecimento textual

No que diz respeito aos conhecimentos textuais, esses constituem o “conjunto de

noções e conceitos sobre o texto” (KLEIMAN, 2002), ou seja, correspondem à

identificação do tipo de texto e da forma de discurso que o leitor está lendo. Quando o

leitor tem alguma proficiência, ele já dispõe tanto de uma estrutura formada do tipo do

texto (narrativo, informativo, descritivo, expositivo, argumentativo etc.) quanto da

manifestação concreta deste tipo, os gêneros, (ex. carta, notícia, artigo científico etc.), e

ativa essa estrutura quando se depara com um determinado texto. Quanto maior for seu

conhecimento textual e contato com os diferentes tipos de texto, mais fácil será sua

compreensão (KLEIMAN, 2002).

Em outros termos, os conhecimentos textuais “são aqueles que possuímos acerca

dos elementos de textualidade, dos tipos e gêneros textuais” e “não se confundem com

os conhecimentos linguísticos, embora estejam estreitamente relacionados a eles”

(OLIVEIRA, 2010, p. 60).

De fato, tipos textuais e gêneros textuais abarcam conceitos diferentes, mas

ambos influenciam a forma como olhamos para um texto e o compreendemos. Koch e

Elias (2010) denominam o conhecimento textual de conhecimento superestrutural ou de

gêneros textuais21

, e afirma que eles são “a distinção das macrocategorias ou unidades

globais que distinguem os vários tipos de texto ou que permitem a identificação de texto

como exemplares da vida social” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 54) levando a extrair

informações mais ou menos esperadas dentro daquela categoria. Por exemplo, se o leitor

está diante de uma tirinha, espera encontrar ali alguma forma de humor, ou diante de

uma carta, espera encontrar ali o destinatário e o remetente. Os conhecimentos textuais

são capazes de influenciar a interpretação porque há uma estrutura esperada para a

21

As autoras classificam esse conhecimento como um subtipo do conhecimento interacional que seriam

todos aqueles conhecimentos relacionados às formas de interação por meio da linguagem.

50

retirada de informações que guia o leitor durante a leitura e o faz hierarquizar

determinadas informações dentro da estrutura global de sentido do texto.

De acordo com Bakhtin (2000), a língua vai-se compondo a partir da interação

dos sujeitos de uma comunidade, e nessa interação constitui-se com formatos aparentes

– embora possam ser constantemente alterados - que podem ser identificados pelo leitor.

Para o autor, “a língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e complexo

constituído pelos estilos da língua, cujo peso respectivo e a correlação, dentro do

sistema da língua escrita, se encontram num estado de contínua mudança” (BAKHTIN,

2000, p. 285).

Nesse sentido, Bakhtin (2000) afirma que os enunciados que se realizam no

processo interacional da língua são concretos e pertencentes a uma determinada

realidade independente do conteúdo que possuam. Ou seja, de acordo com os objetivos

do usuário da língua, ele seleciona o conteúdo e a composição adequados a uma forma

mais ou menos constante de apresentação, os gêneros do discurso. Para o autor:

o discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um

sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que

sejam o volume, o conteúdo, a composição, os enunciados sempre

possuem, como unidades da comunicação verbal, características

estruturais que lhes são comuns, e, acima de tudo, fronteiras

claramente delimitadas. (BAKHTIN, 2000, p. 293)

Em outros termos, na visão de Bakhtin (2000), ao emitir um enunciado o autor

tem um objetivo e leva em conta uma série de situações que interferem no cumprimento

desse objetivo, como o grau de informação, os conhecimentos de área, opiniões,

convicções, preconceitos. Tudo isso vai determinar a escolha do gênero do enunciado e

a sua composição. Nas palavras do autor, “o querer dizer do locutor se realiza acima de

tudo na escolha de um gênero do discurso. [...] todos os nossos enunciados dispõem de

uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (BAKHTIN,

2000, p. 301, destaques do autor).

Deve-se destacar aqui que os conhecimentos textuais referem-se a duas

dimensões diferentes da manifestação linguística do texto: uma com relação à estrutura

e à organização linguística textual e outra com relação à realidade sócio-comunicativa

do texto em determinada situação de comunicação. Respectivamente, tais dimensões são

chamadas de tipos textuais e gêneros textuais. De acordo com Marcuschi (2003), tipos e

gêneros textuais são diferenciados conceitualmente da seguinte maneira:

51

a) usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de

sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua

composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações

lógicas). Em geral os tipos textuais abrangem meia dúzia de categorias

conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição,

injunção. b) usamos a expressão gênero textual como uma noção

propositalmente vaga para referir os textos materializados que

encontramos em nossa vida diária e que apresentam características

sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades

funcionais, estilos e composição característica. Se os tipos textuais são

apenas meia dúzia os gêneros textuais podem ser inúmeros, como, por

exemplo, telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance,

bilhete, reportagem [...] (MARCUSCHI, 2003, p. 22-23, destaques do

autor).

Pode-se perceber, portanto, que um determinado texto apresenta ambas

dimensões de formas diferentes. Por um lado, tem-se a manifestação organizacional e

linguística, ou seja, as tipologias textuais, que apresentam determinados traços

identificados pelo leitor e que o ajudam a estabelecer coesão para o texto. Isso quer

dizer que o tipo do texto auxilia no estabelecimento de uma sequência linguística visível

o que, por sua vez, auxilia no estabelecimento das relações semânticas no interior do

texto. Marcuschi (2003) afirma que:

entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles

serem definidos por seus traços linguísticos predominantes. Por isso,

um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma

sequência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da

coesão textual está precisamente na habilidade demonstrada em fazer

essa “costura” ou tessitura das sequências tipológicas como uma

armação de base, ou seja, uma malha infraestrutural do texto.

(MARCUSCHI, 2003, p. 27)

Por outro lado há o caso dos gêneros, no qual a influência é das organizações

sociais e culturais típicas em que a situação comunicativa geralmente ocorre, ou seja,

são os propósitos da comunicação. Para que se caracterize como um determinado

gênero, o texto apresenta, de fato, sequências linguísticas (ou tipologias) definidas, mas

também apresenta um propósito comunicativo22

. De acordo com Marchuschi (2003), os

aspectos principais dos gêneros são sócio-comunicativos, o que não significa que a

forma (estrutural ou linguística) deva ser descartada. Ou seja, a definição de um gênero

é feita tanto pela forma quanto pela função.

22

O propósito comunicativo constitui também um dos princípios da textualidade discutidos na seção 1.2,

o que reforça a necessidade da identificação do gênero para a compreensão textual.

52

Para Koch e Elias (2010), os gêneros constituem formas padrão, no entanto

maleáveis, de estruturação da linguagem que permitem a comunicação. As autoras,

assim como Marcuschi, definem o gênero como uma realidade sócio-comunicativa e

dinâmica.

Destaca-se aqui um fato importante com relação ao gênero: os autores que

trabalham com a sua definição afirmam que eles têm um vínculo profundo com a

realidade social e cultural contribuindo para organizar as atividades comunicativas

(BAKHTIN, 2000; SWALES, 1990; MARCUSCHI, 2003; KOCH; ELIAS, 2010).

Swales (1990), também assumindo a posição do gênero enquanto ato

comunicativo, o define como uma formatação que contém uma classe de eventos

comunicativos, nos quais se compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Tais

propósitos são reconhecidos pelos membros da comunidade discursiva de origem e,

portanto, constituem o conjunto de razões (“rationale” – SWALES, 1990, p. 58) para o

gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e influenciam e

impõem limites à escolha de conteúdo e de estilo.

Sendo assim, os gêneros apresentam aos indivíduos da comunidade uma

determinada variedade de opções de uso da língua e também fornecem aos usuários da

língua um poder preditivo e interpretativo (BAKHTIN, 2000; MARCUSCHI, 2003) das

ações humanas nos contextos em que acontecem. Ao mesmo tempo permitem a sua

maleabilidade na composição textual.

Chega-se, aqui, a mais um apontamento interessante para este trabalho, sobre os

gêneros no que diz respeito à leitura: os gêneros recebem influência direta de estruturas

sociais recorrentes e típicas da cultura o que faz com que a leitura do texto dependa em

grande escala da compreensão da situação comunicativa em que está inserido o texto.

Por exemplo, se o leitor depara-se com um texto do gênero propaganda, espera

encontrar ali o motivo para que compre o produto anunciado, mesmo que a estrutura do

texto seja apresentada diferentemente do gênero proposto, como a de um poema (o que

Koch e Elias, 2010, denominam hibridização ou intertextualidade intergêneros). O que

faz com que o gênero seja caracterizado como uma propaganda, nesse caso, é sua

função de comunicação (convencer o leitor a consumir um determinado produto), e o

leitor, ao deparar-se com o gênero, já ativa, mentalmente, expectativas para determinada

ocorrência textual (p. ex. o que a propaganda está vendendo?).

Bakhtin (2000) procura explicitar a ideia de gênero enquanto base do processo

comunicativo, afirmando que:

53

Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a

organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar

nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de

imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero,

adivinhar-lhe o volume, a dada estrutura composicional, e prever-lhe o

fim, ou seja, desde o início somos sensíveis ao todo discursivo que,

em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se

não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se

tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se

tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação

verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 2000, p. 301-302).

Bonini (2002) faz uma releitura do conceito de superestruturas de Dijk e Kintsch

(1983) e procura demonstrar a forma como esse conceito é capaz de demonstrar a

identidade do texto na memória do leitor/produtor, objetivando estabelecer um conceito

psicolinguístico para a noção de gênero. Para o autor,

a partir do modelo de Kintsch e Van Dijk, a identidade do texto passa

a ser considerada um elemento importante do processamento, um

recurso imprescindível para se obter o seu conteúdo global, seja no

processamento de entrada (input) seja no processamento de saída

(output) (BONINI, 2002, p. 20)

Isto quer dizer que a identidade do texto, ou o seu gênero, é capaz de fornecer

aos falantes/leitores uma forma de estabelecer para o texto um conteúdo global

(macroestrutura) a partir de categorias convencionadas socialmente que preenchem um

propósito comunicativo. Os tipos textuais, que ajudam na composição microestrutural

dos textos, ou, como afirma Bonini (2002) na sua identidade, organizam essa ocorrência

na mente dos usuários da língua. Em sua pesquisa, o autor chega a alguns resultados

interessantes com relação ao estabelecimento do gênero como uma categoria cognitiva.

Para o autor,

as características microestruturais são apontadas constantemente pelos

sujeitos da pesquisa, o que o leva a supor que tenham importância

similar às próprias partes do esquema textual do gênero; ainda as

sequências textuais (ou como denominamos nesse trabalho os tipos

textuais), no geral, não são vistas como gêneros (com uma função

social específica). Funcionam assim como aparatos de textualização

ao que parece, quase sempre, como conhecimento automático

(BONINI, 2002, p. 160).

54

Tudo isso leva a supor que a identificação do gênero influencia fortemente a

forma como o leitor interage com o texto. Se ele está diante de um bilhete, por exemplo,

ele espera encontrar ali fatores linguísticos que confirmem a expectativa da informação:

há um recado importante para alguém. Por meio da identificação do gênero (e das

tipologias textuais nele usadas), o leitor é capaz de estabelecer expectativas importantes

com relação à leitura do texto que o guiam durante o processo e o auxiliam a estabelecer

um sentido.

Assim, os gêneros seriam uma manifestação concreta com formas mais ou

menos estáveis que se encontram na realidade social e cultural e que ajudam a

estabelecer comunicação (BAKHTIN, 2000). Os tipos textuais (ou sequências como

denominam alguns autores – Bonini, 2002; Swales, 1990) compõem tais gêneros e

estabelecem para eles uma forma linguística de ocorrência.

Este trabalho de tese não objetiva falar exaustivamente da influência de tipos e

gêneros textuais na interpretação de texto, mas admite que a sua identificação auxilia o

leitor na busca de sentidos. Assim, fala-se de gêneros textuais abrangendo o conceito de

tipos textuais e considerando que esses fazem parte da constituição dos primeiros,

contribuindo para a sua manifestação. Em outros termos, ao usar, aqui, o termo ‘gêneros

textuais’, não se desconsidera as tipologias. Ao contrário, admite-se a influência de

ambos, gênero e tipo textual, na composição do texto e de seus sentidos, compondo um

elemento único a que se vai denominar conhecimento textual. O leitor ativa tal

conhecimento a partir da competência discursiva (cap. 2.2.3) e a desenvolve aplicando-a

sobre o texto lido e construindo interpretação.

1.4.4 Os conhecimentos de mundo

Deve ser lembrado, conforme discussão realizada sobre o processo de leitura até

aqui, que, em qualquer trabalho de interpretação, o leitor necessita aplicar

conhecimentos previamente adquiridos, que podem ser linguísticos ou extralinguísticos.

Esses últimos são denominados conhecimentos de mundo e estruturam-se em quadros

mentais, os quais, para serem verbalizados ou escritos, precisam ser ativados. Ao

escrever o texto, o autor ativa esses conhecimentos de mundo e utiliza determinado

conjunto de palavras para expressar suas ideias; o leitor, por sua vez, ao deparar-se com

essas palavras, deve ativar suas próprias estruturas mentais, seus conhecimentos de

mundo e as representações semânticas para compreender as informações do texto.

55

Kleiman (2004), citando os trabalhos de Luria (1976), afirma que

é através da palavra - que não é apenas portadora de significados, mas

também de “unidades de consciência básica que refletem um mundo”

(LURIA, 1976 apud KLEIMAN, 2004) - que analisa-se e sintetiza-se

a informação externa que chega aos sentidos pessoais; que ordena-se,

do ponto de vista perceptual, o mundo; que codifica-se as impressões

individuais em sistemas. (KLEIMAN, 2004, p. 192)

Assim, os conhecimentos de mundo se organizam de forma relacionada a tudo o

que se conhece da realidade, tais como sequências de ações, possibilidades de

ocorrência contextual de determinadas palavras, atuando diretamente no

estabelecimento de coerência textual e fazendo com que se possa impor um sentido ao

texto.

A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que,

para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre

frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente

explícitos no texto. Assim, o leitor utiliza todo o conhecimento que não está exposto no

texto para perceber indícios reveladores para sua leitura, ou seja, ele utiliza um

mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para compreender o texto.

Koch e Elias (2010) reforçam a necessidade de se considerar o conhecimento de

mundo do leitor no momento de realizar leitura e afirmam que:

Se, como vimos, a leitura é uma atividade de construção de sentido

que pressupõe a interação autor-texto-leitor, é preciso considerar que,

nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto oferece,

entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH;

ELIAS, 2010, p. 37).

As autoras denominam os conhecimentos que o leitor tem sobre fatos gerais da

sua realidade sociocognitiva de conhecimentos enciclopédicos e os conceituam como:

“conhecimentos gerais sobre o mundo – uma espécie de thesaurus mental – bem como a

conhecimentos alusivos a vivências pessoais e eventos situados de forma espaço-

temporal, permitindo a produção de sentidos” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 42). Isto quer

dizer que vários conhecimentos subjacentes ao texto são ativados e interagem com os

demais tipos de conhecimento para que o sentido seja produzido.

De acordo com Lencastre (2003), “a compreensão é um processo construtivo,

em que a informação de um estímulo se associa com informação já existente na

56

memória. O ser humano constrói o conhecimento ao invés de simplesmente o receber”

(LENCASTRE, 2003, p. 16). Pode-se dizer, assim, que a interpretação de um texto tem

também dimensões subjetivas que dependem dos fatores contextuais, sociais, culturais,

o que determina quais significados recebem atenção e quais serão desconsiderados.

Nesse sentido, há uma ativação e uma ligação de significados que são pessoais e

que auxiliam o leitor a deduzir relações que não estão explícitas no texto, mas se

armazenam em um tipo de conhecimento sobre aquilo que o leitor conhece a respeito da

sua comunidade e da realidade em que vive. Ou seja, o conhecimento de mundo seria

um conjunto de relações extralinguísticas armazenadas pelos falantes previamente que

são ativadas durante a leitura e possibilitam ao leitor dizer quando um texto faz ou não

sentido na sua realidade.

Beaugrande e Dressler (1981) chamam atenção para o fato de que, subjacente às

informações linguísticas presentes em um texto, configura-se um mundo textual que se

relaciona com os conhecimentos do leitor limitando os sentidos possíveis a serem

estabelecidos. Para os autores, o mundo textual é uma configuração do conhecimento

que pode ser recuperado ou ativado, e, para defini-los é necessário estabelecer uma série

de probabilidades porque é um tipo de conhecimento que não é estanque ou clivado da

mesma maneira para todos os falantes da língua. Torna-se necessário assim, que o leitor

considere os demais conhecimentos necessários para interpretar um texto.

O leitor conhece muito do que pode ou não acontecer em um texto a partir do

estabelecimento de possibilidades reais para as sequências linguísticas de um texto. Por

exemplo, em um texto narrando um diálogo entre professora e alunos, um dos alunos

chega atrasado para a aula e diz: “Havia um congestionamento no caminho”. O leitor

que conhece a situação provocada por congestionamentos, já sabe que este é fator

causador de trânsito lento, horas de deslocamento e, consequentemente, do atraso para

aula. Isso tudo faz parte do conhecimento de vivência do leitor e não está

linguisticamente explícito no texto, mas pode ser inferido a partir dele por causa dos

conhecimentos de mundo envolvidos.

Stubbs (2001) afirma que as interpretações dependem muito do conhecimento

não linguístico, ou seja, do conhecimento de mundo. Isso porque as interpretações feitas

dependem também de um conhecimento não linguístico sobre ações recorrentes no

cotidiano (como p. ex. porque um policial pode estar cavando em um jardim – Stubbs

(2001)). A questão principal é que os falantes podem utilizar esse conhecimento para

57

dizer mais do que de fato dizem, pois há conhecimentos sedimentados na língua que

subjazem ao ato de comunicação, inclusive na leitura.

Em outros termos, pode-se dizer que muito do que está dito em um texto passa

por uma avaliação do conhecimento de mundo previamente armazenado e é somente

parcialmente especificado por questões linguísticas e gramaticais. As relações entre o

linguístico e o não linguístico é que capacitam o leitor a construir sentido e a impor para

o texto uma sequência possível de eventos. Dijk (2002) afirma que:

Para sermos capazes de interpretar um discurso, isto é, de atribuir-lhe

significado e referência, precisamos também de uma avaliação

substancial do conhecimento de mundo e este conhecimento pode ser

só parcialmente especificado no interior da linguística ou da

gramática, precisamente, no léxico (DIJK, 2002, p. 38).

O autor procura investigar a maneira como o conhecimento do leitor o auxilia a

construir macroestruturas para o texto, ou seu sentido global. Ele afirma que a análise

semântica do texto permite investigar como as sentenças presentes em um discurso

interagem/relacionam-se entre si para produzir uma representação conceitual. Os

aspectos relevantes do conhecimento de mundo são, assim, parte da representação

conceitual ou macroestrutura do texto que o leitor constrói na leitura. Em outros termos,

há um processo de construção que se inicia a partir das relações semânticas da estrutura

linguística do texto, é organizado de forma estratégica pelo leitor e produz as

macroestruturas, ou seja, o sentido global.

Reitera-se, assim, que há um processo de construção que se dá a partir das

relações linguísticas entre as palavras na superfície do texto, o que se chama

microestruturas (DIJK; KINTSCH, 1983). Essas interagem com questões

extralinguísticas para produzir um resumo mental do sentido textual, ou seja, a

macroestrutura do texto.

Em outra obra de Dijk, escrita em parceria com Kintsch (DIJK; KINTSCH,

1983), é dito que há uma relação intrínseca entre a microestrutura e a macroestrutura de

forma a levar o leitor a construir um sentido global. Colomer e Camps (2002) explicam

o modelo de Dijk e Kintsch (1983) da seguinte maneira:

para processar o conjunto do texto, o leitor elabora o que esses autores

chamam de macroestrutura mental do texto. Esta corresponde à

descrição semântica abstrata de seu conteúdo, ao resumo mental que o

leitor efetua do tema e das ideias principais. O leitor constrói essa

58

representação aplicando a cada uma das proposições macrorregras que

consistem em uma série de estratégias de síntese – operações de

supressão, generalização e construção da informação do texto, que

atuam da seguinte forma: a partir das primeiras informações, o leitor

contrasta a nova informação com a que possui. Se a nova informação

lhe parece redundante ou secundária, ele a descarta (macrorregra de

omissão); se encontra uma proposição com um conceito capaz de

englobar várias informações procede a isso (macrorregra de

generalização); e se não há uma proposição capaz de agrupar um

mesmo tipo de informação, passa a construir ele próprio a proposição

resumo (macrorregra de construção) (COLOMER; CAMPS, 2002, p.

45).

Isto significa que os conhecimentos do leitor, sejam linguísticos ou

extralinguísticos, são utilizados por ele de forma estratégica para que interprete um

texto. Mesmo sem ter consciência desses conhecimentos, o leitor lança mão daquilo que

já está armazenado em sua memória para dar sentido ao texto.

Dijk (2002) afirma ainda que os sistemas de conhecimento são responsáveis pela

adequação entre os sistemas cognitivos e os atos de fala23

nos contextos de ocorrência.

O autor diz que:

as condições sociais relevantes envolvidas nas formulações das regras

pragmáticas, como nas relações de autoridade, poder, papel e polidez,

operam sobre bases cognitivas. Isto é, elas só são relevantes na

medida em que os participantes têm conhecimento dessas regras,

podem usá-las e são capazes de relacionar suas interpretações sobre o

que está ocorrendo na comunicação às características sociais do

contexto (DIJK, 2002, p. 76).

Isto significa dizer que a compreensão textual envolve não somente o

processamento e interpretação de informações do texto – conhecimento linguístico -

mas também a ativação de informações internas e cognitivas. Reitera-se que, nesse

armazenamento, estariam presentes as experiências do leitor, as situações de eventos e

os conhecimentos de cultura e sociedade.

Assim, as palavras presentes em um texto constituem-se como um gatilho para a

ativação de diversos tipos de conhecimento a elas relacionados (armazenados em frames

– vide exposição na próxima seção deste trabalho). Isso porque nosso conhecimento

sobre a língua não é apenas relacionado às palavras enquanto forma linguística, mas

23

Atos de fala são entendidos nesse trabalho como as relações pragmáticas estabelecidas em um texto, os

quais permitem que o leitor compreenda as intenções e objetivos ali presentes tais como uma ordem, um

pedido, uma reclamação. (SEARLE, 1995)

59

também às combinações possíveis e previsíveis e de conhecimentos diversos, inclusive

os culturais, evocados por tais combinações (STUBBS, 2001)24

.

Durante o processo de interpretação, a interação entre conhecimento linguístico,

textual e de mundo é, assim, recorrente e constante fazendo com que as expectativas do

leitor sejam confirmadas ou refutadas (ECO, 1979). Nesse sentido, o leitor vai

preenchendo de significados a manifestação linear do texto – realizando uma

interpretação semântica –, podendo também explicar o motivo pelo qual determinadas

compreensões são ou não possíveis (ECO, 2000).

É importante ressaltar que os traços da superfície textual levam a sinalizar e a

interpretar informações semânticas importantes na construção de um sentido. Esses

traços são as pistas de contextualização que contribuem para a construção de

pressuposições com relação ao texto (GUMPERZ, 1992). Dijk (2002) destaca a relação

entre questões linguísticas e contextuais, afirmando que,

podemos usar palavras, talvez palavras temáticas, para construir as

macroestruturas; e podemos ainda, usar macroestruturas na

compreensão das palavras (...) partimos da compreensão de palavras

para a compreensão de orações nas quais essas palavras tem várias

funções, e daí para sentenças complexas, sequências de sentenças e

estruturas textuais gerais. Mesmo assim, existe uma realimentação

contínua entre unidades menos complexas e unidades mais

complexas” (DIJK, 2002, p. 22).

É justamente essa possibilidade de interação contínua entre unidades menos e

mais complexas e a utilização de palavras temáticas para construir o sentido global do

texto que leva à suposição, neste trabalho, de que as palavras-chave concentram mais

informação do que dados puramente linguísticos. Elas guiam o leitor na ativação de

significados importantes, pessoais, sociais e culturais. Ou seja, além de concentrarem

conhecimento linguístico e textual, também auxiliam na ativação dos conhecimentos de

mundo. Isso porque, nas palavras de Dijk,

figuras de palavra podem chamar a atenção para conceitos

importantes, fornecer pistas de coerência global e local, sugerir

interpretações pragmáticas plausíveis (p. ex. uma promessa X uma

ameaça) e, de forma geral, dar mais estrutura aos elementos da

representação semântica para que a recuperação seja mais fácil (DIJK,

2002, p. 33)

24

Fala-se mais no cap. 2 deste trabalho sobre a maneira como o sistema linguístico é capaz de codificar

conhecimentos sociais, culturais, linguísticos, discursivos.

60

Ou seja, na escolha das palavras para um texto, o autor e o leitor concentram

todos os tipos de conhecimentos de que necessitam para a produção e para a

compreensão textual. No caso da leitura, especificamente, é a junção entre o

conhecimento das palavras e o conhecimento de mundo que leva o leitor a estabelecer

um dos princípios da interpretabilidade – a coerência (BEAUGRANDE E DRESSLER,

1981). A coerência é estabelecida, portanto, como um sentido para o texto (vide cap.

1.1) utilizando-se de elementos contextuais. Assim,

sempre que for possível aos interlocutores construir um sentido para o

texto, este será, para eles, nessa situação de interação, um texto

coerente. Ou seja, sempre que se faz necessário realizar algum cálculo

de sentido, com apelo a elementos contextuais – em particular os de

ordem sociocognitiva e interacional – já estamos entrando no domínio

da coerência. (CHAROLLES 1983 apud KOCH; ELIAS, 2010,p. 189)

Deve-se ressaltar ainda que a cultura faz parte desse conhecimento de mundo

que ajuda a compreender um texto. Para Kramsch (1993), a cultura de uma sociedade

contém previsões para assegurar a compreensão de significados, e os falantes dessa

sociedade fazem sua voz previsível para serem compreendidos em atos de comunicação.

Ou seja, a inserção de falantes dentro de uma determinada sociedade faz com que eles

precisem considerar questões culturais para a compreensão dos significados próprios a

tal comunidade linguística.

A autora trabalha numa visão de aprendizagem de língua estrangeira e afirma

que para que aprendizes possam compreender de fato a língua é necessário visualizar a

cultura não só como fatos e como significados, mas também como um lugar em que

aprendizes se esforçam para negociar sentidos. Isso porque os usuários da língua podem

emitir ecos do ambiente social em que vivem e, nesse caso, é preciso expressar os

pensamentos de uma maneira que sejam compreensíveis e originais num processo

dialógico. Para a autora, é por meio do diálogo com outros falantes, nativos e não

nativos, que aprendizes descobrem quais maneiras de falar e pensar eles compartilham

com outros e quais são únicas a eles (KRAMSCH, 1993, p. 27). A autora destaca ainda

que por meio da língua, pode-se ter acesso à cultura do outro e é pelos olhos dos outros

que se pode conhecer a si mesmo e ao outro. Sendo assim, o conhecimento armazenado

pelos falantes inclui aspectos culturais que permitem compreensão entre a comunidade

linguística, bem como a reconstrução do próprio pensamento.

61

Embora a autora discuta questões relativas à aprendizagem da cultura de uma

língua alvo (não nativa, portanto), o que, de certa forma, distancia-se da perspectiva

desse trabalho, percebe-se a importância da compreensão da cultura enquanto

significados sociais para a compreensão de qualquer língua, inclusive a língua materna.

A cultura faz parte de uma dimensão do uso da língua que se insere na interação entre

sujeitos de uma comunidade e, portanto, influi na forma de compreensão de textos

escritos25

. De acordo com Bakhtin (2009) “nenhum signo cultural, quando

compreendido e dotado de sentido permanece isolado: torna-se parte da unidade da

consciência verbalmente construída.” (BAKHTIN, 2009, p. 38).

Stubbs (2001) faz um estudo baseado em corpus sobre como determinadas

palavras (chamadas pelo autor de palavras-chaves26

) demonstram formas culturais de

compreensão da língua. O autor afirma que as palavras ganham significado cultural a

partir de seu uso em determinados contextos, pois, para o autor, o repertório de

significados compartilhados que circulam em uma comunidade é justamente parte do

significado de cultura (STUBBS, 2001, p. 165). Ele salienta que parece não haver

maneiras de separar o conhecimento linguístico do conhecimento cultural (STUBBS,

2001, p. 167) e demonstra como palavras tais como ‘ethnic’, ‘racial’ e ‘care’ ganham

conotações específicas devido ao uso frequente em determinados contextos. Em seu

estudo as duas primeiras palavras tem uma conotação relativa a algum tipo de violência

e a última tem uma conotação política (como em health care, political care etc). Essa

conclusão não é aleatória, mas empírica, pois o autor analisa quais os contextos mais

frequentes e recorrentes para o aparecimento dessas palavras em corpora

significativos27

da língua inglesa. O intuito do autor é demonstrar a forma como as

palavras são carregadas de sentidos culturais, os quais são automaticamente ativados

pelos falantes ao utilizá-las para a comunicação.

O fato é que há uma interface entre língua e cultura expressa nos conhecimentos

de mundo do leitor porque “a cultura é forma de ver e perceber o mundo que, de alguma

25

Fala-se mais sobre a maneira como a cultura é capaz de influenciar o uso do sistema linguístico pelos

falantes na seção 2.2.2. 26

As palavras-chave (keywords) utilizadas por Stubbs (2001) seriam as palavras núcleo utilizadas, em seu

estudo, a partir de uma frequência de ocorrência. O autor fala do campo da linguística de corpus com uma

perspectiva probabilística da língua e procura demonstrar a forma como tais palavras carregam

significados contextuais da comunidade falante. A perspectiva utilizada para palavra-chave neste trabalho

é diferente já que não considera a perspectiva quantitativa em um corpus (vide cap. 2.3) 27

Os corpora utilizados na pesquisa de STUBSS (2001) foram: LOB (Lancaster-Oslo-Bergen) Corpus;

FLOB and FROWN corpora; London-Lund Corpus; Longman-Lancaster Corpus; The Bank of English –

COBUILD (STUBBS, 2003).

62

forma é manifestada na linguagem, quer verbal quer não verbal” (DOURADO;

POSHAR, 2010, p. 44). Para essas autoras,

Conceber a cultura como só tendo existência no contexto social

implica reconhecer que ela é socioculturalmente construída nas

práticas discursivas, nas formas de ser, dizer e agir. Essa cultura,

denominada invisível; cultura que se constrói nas e pelas práticas

discursivas, sendo, portanto, constitutiva da língua (DOURADO;

POSHAR, 2010, p. 42).

Assim, as formas de construção de sentidos por meio da língua incluem as

formas de se fazer cultura. Ou seja, leitores se deparam com uma série de sentidos

culturais construídos a partir das palavras utilizadas por eles que estão, de algum modo,

implícitos no texto e são ativados pelo conhecimento de mundo.

Kramsch (1993) destaca a relação próxima entre língua e cultura e afirma que a

última tem implicações na forma como se produz conhecimento (e, consequentemente,

interpretação textual). A autora afirma ainda que a maneira como os leitores produzem e

partilham significados na língua são também codificados pela cultura numa interface

entre cultura e relações semântico-pragmáticas. Almeida Filho (2011), de certa forma,

concorda com esse ponto de vista ao afirmar que “a capacidade de desempenhar

comunicativamente numa língua inclui a incorporação dos sentidos culturais que

criaram o esteio invisível de sustentação de tudo o que se diz ou ouve nessa língua”

(ALMEIDA FILHO, 2011, p. 168).

Nesse sentido, língua e cultura encontram-se em um espaço comum para a

produção de sentidos e aos poucos permitem a construção de uma rede coletiva de

conhecimentos dos usuários que possibilita a comunicação. Kramsch (1993) destaca que

ao se estabelecer interação comunicativa em uma língua aparecem não somente vozes

individuais, mas conhecimentos históricos armazenados em uma sociedade - um

estoque de metáforas vividas pelos sujeitos –, além de categorias que os falantes de uma

comunidade usam para representar experiências previamente armazenadas. É como se

os interlocutores possuíssem uma memória comunitária socializada que lhes

permitissem a previsão, a construção, e a manutenção de sentidos.

Na visão de Lakoff e Johnson (1980) os falantes estruturam a língua e os

conceitos de forma metafórica fazendo com que todos os usuários da língua armazenem

conhecimentos comuns. Eles citam como exemplo a metáfora: “Discussão é guerra”. O

fato de se usar palavras tais como ganhar ou perder uma discussão, derrubar um

63

argumento, usar estratégias de convencimento, defender um ponto de vista, levam a crer

que isso só é possível porque o conhecimento do leitor está culturalmente ligado à

metáfora discussão=guerra (logo há ganhadores, perdedores, estratégias de combate e

de defesa etc). Caso haja culturas em que as discussões não sejam vistas como uma

guerra, os usuários deverão estruturar a língua de forma diferente. Isso significa que na

visão dos autores, a cultura vivida pelos usuários da língua influenciam nas formas que

armazenam os conhecimentos de mundo e automaticamente nas formas de (re)utilizar a

própria língua. Assim, pode-se dizer que há um ciclo em que as metáforas, construídas

culturalmente, são armazenadas na mente dos falantes (que compartilham esses

conhecimentos entre si) e criam novas formas de produção da língua e,

consequentemente, geram novas interpretações dos sentidos produzidos.

Isso quer dizer que, para compreensão de textos escritos, os quais são o foco

deste trabalho de tese, o leitor precisa ativar todos os conhecimentos relativos a

interações comunicativas prévias que interferem na forma de ler e compreender o que

inclui fatores culturais, sociais e experiências individuais. Solé (1998) argumenta que:

a leitura nos aproxima da cultura, ou melhor de múltiplas culturas e,

neste sentido sempre é uma contribuição essencial para a cultura

própria do leitor. Talvez pudéssemos dizer que na leitura ocorre um

processo de aprendizagem não intencional, mesmo quando os

objetivos do leitor possuem outras características, como no caso de ler

por prazer (SOLÉ, 1998, p. 46).

Reitera-se com isso que o conhecimento cultural que se acumula na vida em

sociedade, armazenado pelo leitor a partir da utilização da língua, é também ativado

durante o processo de interpretação textual. É uma rede de sentidos socioculturais que

extrapolam os limites do linguístico e interagem de forma constante em contextos

específicos e que possibilitam o leitor questionar, refletir, imaginar as possibilidades

para um determinado texto.

Em suma, considera-se ‘conhecimento de mundo’ todos os tipos de

conhecimentos extralinguísticos (discursivos, culturais, sociais e individuais) utilizados

pelo leitor para compreender um texto. É esse conhecimento armazenado pelo leitor, o

conhecimento de mundo, que o permite “preencher as lacunas do texto, isto é,

estabelecer os ‘elos faltantes’ por meio de inferências-ponte” (KOCH; ELIAS, 2010, p.

66). Durante a compreensão, os leitores ativam tais estruturas puxando alguns pacotes

64

particulares de conhecimento, chamados frames ou esquemas, usando-os para fornecer

um quadro geral do texto que estão lendo (DIJK; KINTSCH,1983, p. 46).

1.4.3.1 Os esquemas de conhecimento

A partir da discussão exposta na seção anterior, vê-se que o leitor, durante a

leitura, aplica ao texto uma carga de conhecimentos previamente armazenados,

produzindo sentido. Essa carga de conhecimentos pode ser armazenada em fatias de

informação agrupadas de acordo com as possíveis ocorrências, as quais são

denominadas esquemas de conhecimento ou frames. De acordo com Koch e Elias

(2010):

os conjuntos de conhecimento, socioculturalmente determinados e

vivencialmente adquiridos, sobre como agir em situações particulares

e realizar atividades específicas vêm a constituir o que chamamos de

“frames”, “modelos episódicos” ou “modelos de situação” (KOCH;

ELIAS, 2010, p. 56).

Para a autora, esses conjuntos de conhecimento permitem criar um quadro de

representação para o texto que possibilita avançar na leitura sem a geração de

ambiguidades ou estranhamento do conteúdo por parte do leitor. Por exemplo, numa

sequência textual em que é narrado um diálogo entre garçom e cliente em um

restaurante, o leitor espera encontrar certos tipos de situação e prevê muito daquilo que

pode ou não ser dito nessa narração. Seria estranho para ele deparar-se com uma frase

do tipo: “O guarda de trânsito pediu os documentos do rapaz” no meio dessa narrativa

pois os conjuntos de conhecimento para as situações são diferentes, embora a frase

esteja sintaticamente bem construída. Ou seja, o leitor ativa esquemas e subesquemas

numa sequência de situações e vai predizendo muito do que pode ou não ser dito no

texto (KATO, 1999).

Kleiman (2002) afirma que os esquemas permitem que o leitor seja econômico

nas possibilidades de representação para um texto. Isso porque eles limitam uma série

de eventos, impressões e ocorrências possíveis para a compreensão do texto. A autora

exemplifica tal situação a partir da frase: “vimos um acidente na estrada hoje. – Ah! por

isso você chegou tarde.” (KLEIMAN, 2002, p. 21). A codificação da palavra ‘acidente’

inclui a sequência de eventos: policiais na rua, trânsito intenso, congestionamento,

carros com vidros estilhaçados e amassados etc. Ou seja, acidente inclui aí uma série de

65

informações que dizem respeito à realidade que temos e estão armazenadas em

esquemas de conhecimento, os quais são acionados para a palavra ‘acidente’. A

interpretação do atraso é dada por esse compartilhamento de informações intrínsecas em

que, se houve acidente, houve também essa série de elementos que possibilitam a

interpretação de que o atraso é devido ao tempo perdido no trânsito por causa do

acidente.

Assim, para a autora, os itens lexicais motivam a ativação do conhecimento de

mundo do leitor de forma inconsciente. Ou seja, itens lexicais não são simplesmente

dados linguísticos. Eles são também insumo para ativações culturais e sociais da mente

do indivíduo (KLEIMAN, 2002), o que acontece por meio de um conhecimento

“estruturado que temos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa

cultura” e que “é chamado de esquema. O esquema determina em grande parte, as

nossas expectativas sobre a ordem natural das coisas” (KLEIMAN, 2002, p. 23).

Dijk (1977b) conceitua frames afirmando que são o conjunto de proposições

expressas em uma passagem, ou seja, um subsistema de conhecimento sobre algum

fenômeno no mundo. Mais especificamente, o frame contém informações sobre estados

do componente, ações ou eventos, sobre condições necessárias ou prováveis e

consequências. O autor acrescenta, ainda, que frames são “representações de

conhecimento sobre o mundo que nos capacitam a desempenhar atos cognitivos básicos

como percepção, ação, e compreensão de língua” (DIJK, 1977b, p. 19). Em outra obra

produzida com Kintsch (DIJK; KINTSCH, 1983), os autores ressaltam que

o esquema fornece ao leitor as bases para interpretar um texto. Uma

base textual coerente é obtida pela ligação de unidades semânticas

derivadas do texto com o insumo textual para o esqueleto conceitual

fornecido pelo esquema de conhecimento. Bases textuais são o

resultado do casamento entre esquemas de conhecimento e texto

(DIJK;KINTSCH, 1983, p. 48).

Nesse sentido, os esquemas de conhecimento parecem codificar aquilo que é

convencional na comunidade linguística e auxiliam o leitor na busca de sentidos por

meio da estruturação dos conhecimentos em fatias de informação. O nosso

conhecimento estaria assim organizado a partir de determinadas possibilidades de

comunicação.

É necessário ressaltar aqui que os esquemas de conhecimento não são porções

arbitrárias organizadas aleatoriamente. Eles são unidades cognitivas que trabalham em

66

paralelo ao conhecimento semântico do discurso e ativam conhecimentos socioculturais,

fazendo com que o texto possa ser reconstruído numa macroestrutura. O léxico do texto

e as informações mais genéricas sobre o seu uso são armazenados nos esquemas e

fornecem relações conceituais que definem parte da coerência semântica de um discurso

(DIJK, 2002).

A importância dos esquemas mentais na interpretação de textos reside

justamente no fato de que podem auxiliar na renovação ou atualização dos modelos

mentais previamente formados durante o processo de leitura de um discurso. Ou seja,

eles não são estanques, mas são reconstruídos à medida que novas informações

possíveis aparecem dentro de um determinado texto, fazendo com que o leitor

reconstrua seu conhecimento, ou complete-o. Dijk (2002) explica a importância dos

esquemas na compreensão do texto, afirmando que

as estratégias e esquemas constituem as bases para os processos

normais de interpretação hipotética: dada uma certa estrutura textual e

contextual eles permitem suposições sobre possíveis significados e

intenções – mesmo que as regras em um momento posterior levem á

rejeição daquelas hipóteses (DIJK, 2002, p. 81).

Colomer e Camps (2002) comparam o conceito de esquemas a uma tela online

na qual é possível inserir e organizar novas e velhas informações de forma que sejam

pertinentes e consistentes, ou seja, uma informação deve estar necessariamente

conectada à outra. Para as autoras, os esquemas são estruturas mentais que o sujeito

constrói à medida que interage com a sua comunidade linguística e auxiliam o leitor a

organizar todas as informações que recebe a partir da sua experiência. Nesse sentido, o

texto seria um ativador de vários esquemas mentais que se sobrepõem para a produção

de um sentido.

Beaugrande e Dressler (1981) classificam as formas de armazenamento mental

em diferentes conceitos. Para os autores:

a) frames28

: são padrões globais que contêm um conhecimento de sentido comum

sobre o conceito central. Esses padrões afirmam a que pertencem as coisas e os

fatos que se encontram na realidade, mas não a ordem de acontecimento;

28

Neste trabalho pode-se encontrar também o termo frames como o termo utilizado por grande parte dos

autores (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2010) para referir-se a esse pacote de conhecimentos. Desta forma,

em alguns momentos, pode-se encontrar o termo esquemas e em outros frames, referindo-se ao mesmo

conceito.

67

b) esquemas: são padrões globais de eventos e estados na ordem de sequências

ligadas por proximidade ou causalidade. São usados em progressão e em ordem

para o estabelecimento de hipóteses;

c) planos: são padrões globais de eventos e declarações que levam a um objetivo

geral;

d) scripts: são planos estabilizados usados frequentemente para especificar papéis

aos participantes e suas ações esperadas. Isto é, eles têm uma rotina específica

de acontecimento.

Na compreensão de um texto, esses padrões se sobrepõem de forma a explicar

como um tópico deve ser desenvolvido (frames), como uma sequência de evento vai

progredir (esquemas), como os personagens do mundo textual vão buscar seus objetivos

(planos), como situações são organizadas para que certos textos possam ser

apresentados no momento oportuno (scripts) (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981, p.

91). No entanto, como todos esses conceitos tratam da forma como o leitor organiza

cognitivamente as informações durante a leitura do texto, utiliza-se, neste trabalho, o

termo esquemas (e, por vezes, frames) assumindo que essas são as unidades básicas de

armazenamento de informações do léxico em correlação com informações

extralinguísticas (KATO, 1999; DIJK, 1977a; DIJK; KINTSCH, 1983). Em suma, ao

referir-se ao termo esquemas nesse trabalho, assume-se que eles relacionam-se a pacotes

de conhecimento previamente armazenados pelo leitor que limitam as possibilidades de

aparecimento das situações textuais.

Lencastre (2003) afirma que são os esquemas que ajudam o leitor a estabelecer

uma filtragem das informações do texto, integrando-as num processo de constante

interação aos conceitos já arrolados em sua mente. A partir dessa relação, o leitor faz

inferências, organiza informações, (re)constrói hipóteses, ou seja, interpreta o texto. A

autora afirma ainda que a quantidade de conhecimento prévio de cada indivíduo influi

na maneira pela qual ele retira informações dos textos. Ou seja, há um processo de

controle das informações textuais de acordo com o que o leitor já conhece sobre o

assunto do texto. Os esquemas de leitores com um grau mais elevado de conhecimento

possuem mais variáveis disponíveis, o que pode auxiliá-los na identificação de

informações novas ou mais relevantes. Quando o leitor tem maior conhecimento prévio

do assunto textual ele antecipa mais informações e consegue perceber mais pormenores

no texto porque possui uma classificação de esquemas maior e mais organizada.

68

Em suma, pode-se dizer que os esquemas restringem as interpretações possíveis

a partir da ativação de seus possíveis elementos constitutivos, fazendo com que o leitor

realize inferências, destacando alguns conhecimentos e diminuindo a importância de

outros no interior do texto. Os esquemas são os responsáveis pela organização do

conhecimento exposto no texto, pela produção de pressuposições, inferências e

hipóteses, e pela atribuição de coerência ao texto. Ou seja, são eles que possibilitam a

utilização do conhecimento prévio do leitor sobre a situação textual exposta. No

entanto, eles não são utilizados aleatoriamente, mas de forma estratégica pelo leitor para

produzir sentido.

1.5 ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Nota-se, pelo que se discutiu até o momento, que a leitura é um processo ativo

em que o leitor decide engajar-se num processo de estabelecimento de sentidos,

lançando mão de vários de seus conhecimentos. Em outras palavras, a leitura não é um

processo natural que acontece como um ato biológico, como caminhar, olhar etc. Ao

contrário, ela é um processo que demanda aprendizado de estratégias específicas para

compreender o que o autor diz por meio de um texto. Dijk e Kintsch (1983), ao procurar

estabelecer um modelo de trabalho cognitivo para a compreensão do discurso afirma

que a leitura é um processo estratégico. De acordo com os autores,

o processamento do discurso, assim como outros processamentos de

informações complexas, é um processo estratégico no qual uma

representação mental é construída do discurso na memória, usando

tanto tipos internos quanto externos de informação, com o objetivo de

interpretar (compreender) o discurso (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 6).

Para os autores, uma estratégia envolve a ação humana durante interação

comunicativa, um comportamento controlado, consciente e intencional orientado por

um objetivo. Solé (1998), ao defender a ideia da leitura como um processo estratégico,

afirma que durante tal processo o leitor realiza ações diversas e conscientes, tais como

levantar hipóteses, checá-las, reconstruir significados, reler determinados trechos, fazer

marcações. Se o leitor percebe que não compreende algo no texto, ele deve repensar

suas estratégias29

para tentar resolver o problema de forma que a interpretação possa ser

29

Ou seja, o leitor utiliza sua competência estratégica para estabelecer comunicação com o texto. Tal

conceito será melhor explicado no cap. 2.2.4 deste trabalho.

69

construída. Assim, a leitura é sempre guiada pelos objetivos (sejam eles quais forem; até

mesmo a leitura por prazer ou como passatempo tem um objetivo) e pela ação do leitor

que interage com as palavras do texto para construir sentidos.

Pensar em leitura como um processo de elaboração de estratégias demanda que

se fale sobre o termo estratégia. O dicionário Houaiss (UAISS, 2009) traz o conceito de

estratégia como:

Estratégia: s.f. (1836) 1 MIL arte de coordenar a ação das forças

militares, políticas, econômicas e morais implicadas na condução de

um conflito ou na preparação da defesa de uma nação ou comunidade

de nações 2 MIL parte da arte militar que trata das operações e

movimentos de um exército, até chegar, em condições vantajosas, à

presença do inimigo 3 p.ext. arte de aplicar com eficácia os recursos

de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que

porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos

4 p.ext. ardil engenhoso; estratagema, subterfúgio ETIM gr.

stratégía,as 'o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a

dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas,

pretor, em Roma; manobra ou artifício militar' (UAISS, 2009)

Percebe-se que os dois primeiros conceitos relacionados ao verbete são de

categoria militar (MIL) e referem-se a uma “arte de coordenar ações” para realizar uma

organização que chegue “em condições vantajosas” na presença do inimigo. Ou seja, há

um objetivo a alcançar, há uma formação de plano para chegar nesse objetivo e há a

execução da ação. O terceiro conceito, que é apresentado como uma extensão por

derivação (p.ext), está relacionado a uma explicação eficiente de recursos que se utiliza

para alcançar um determinado objetivo. Pode-se dizer, a partir disso, que o termo

estratégia relaciona-se às ações empenhadas de maneira otimizada para alcançar um

determinado objetivo. Transpondo esse conceito para o caso da leitura, interesse dessa

pesquisa, pode-se dizer que estratégia de leitura são todas as ações empenhadas pelo

leitor e guiadas por um objetivo pré-estabelecido para alcançar a compreensão das

ideias presentes em um texto.

Na visão de Solé (1998), as estratégias de leitura tendem à obtenção de uma

meta; permitem avançar o custo da ação do leitor, embora não a determinem de forma

fixa e total; não estão sujeitas de forma exclusiva a um tipo de conteúdo ou a um tipo de

texto, podendo adaptar-se a diferentes situações de leitura. Dessa maneira, estabelecer

estratégias demanda esforço do leitor, ações que envolvem questões mais automatizadas

pelo leitor (cognitivas) e questões mais conscientes (metacognitivas) (KATO, 1999).

70

Kato (1999) afirma que o leitor recorre a mais de uma estratégia durante a

leitura, e as classifica em duas grandes ramificações: as cognitivas, que “são princípios

que regem um comportamento automático e inconsciente do leitor”, e as

metacognitivas, que são as que “regulam a desautomatização consciente das estratégias

cognitivas” (KATO, 1999, p. 124). Em sua pesquisa, a autora vai demonstrando a forma

como leitores controlam a sua leitura para depreender sentidos dos extratos textuais

utilizando elementos sintáticos, lexicais, semânticos, pragmáticos ou seus

conhecimentos de mundo para realizar tal tarefa, ou seja, como se dá a utilização de

estratégias cognitivas. E também descreve sobre a forma como se controla

conscientemente o processo ao estabelecer objetivos, identificar aspectos, alocar a

atenção em partes específicas do texto, revisar, avaliar, tomar ações corretivas, o que

seriam estratégias metacognitivas.

Dijk e Kintsch (1983), ao criarem um modelo de compreensão do discurso de

base cognitiva, procuram estabelecer uma série de estratégias necessárias para explicar a

maneira pela qual se compreende um texto. Os autores chegam a algumas conclusões

sobre as estratégias, as quais podem ser resumidas em:

a) são componentes essenciais da nossa habilidade cognitiva para produzir e

entender enunciados de fala;

b) são partes ordenadas hierarquicamente pelo leitor;

c) são flexíveis e operam em vários níveis ao mesmo tempo, usam informações

incompletas, e combinam processamentos de leitura ascendentes e descendentes30

;

d) são sensíveis ao contexto, ou seja, podem ser alteradas de acordo com

conhecimento de mundo armazenado pelo leitor.

Ainda, na visão dos autores, a utilização de estratégias compreende questões

linguísticas e extralinguísticas, as quais são utilizadas constantemente durante a

produção de sentidos. Nas palavras dos autores,

usuários da língua sempre manipulam estruturas de superfície,

palavra, frase e orações, informações pragmáticas do contexto assim

como dados interacionais, sociais e culturais. Isto é, um usuário da

língua tentará efetivamente avaliar os significados das partes de

discurso, corresponder referência, funções pragmáticas ou valores de

30

Processamento descendente, ou top-down, é uma abordagem não linear, que faz uso intensivo e

dedutivo de informações não visuais e cuja direção é da macro para a microestrutura e da função para a

forma. Processamento ascendente, ou bottom-up, faz uso linear e indutivo das informações visuais,

linguísticas, e sua abordagem é composicional, isto é, constrói o significado por meio da análise e síntese

do significado, das partes (KATO, 1999, p. 50).

71

atos de fala do discurso assim como outras funções interacionais,

sociais e culturais. (DIJK; KINTSCH, 1983, p. 78)

Ou seja, as estratégias utilizadas por qualquer leitor ao interagir com um texto

envolvem o controle, consciente ou não, de todos os conhecimentos prévios (já

explicados na seção anterior do presente trabalho de tese). Isso porque as estratégias

representam o conhecimento procedimental que se tem sobre a compreensão do

discurso como um conjunto aberto de opções (KINTSCH, DIJK, 1983) das quais o

usuário serve-se para estabelecer um conteúdo global para o texto (superestruturas).

Para os autores, essas estratégias precisam ser aprendidas e reaprendidas até serem

automatizadas.

Solé (1998) também argumenta sobre a necessidade da aprendizagem das

estratégias em idade escolar. São elas que vão guiar a forma como o leitor realiza a

representação dos diversos textos que se propõe a ler. Elas devem ser ensinadas de

forma consciente pelo professor, que demonstra a forma pela qual elas são utilizadas

para estabelecer sentidos textuais. Para a autora, ainda, o ensino dessas estratégias

compreendem a utilização de indicadores linguístico-textuais (como os títulos,

subtítulos, palavras específicas) e também de previsões, hipóteses, confirmações

baseadas nos conhecimentos extralinguísticos do leitor. Solé (1998) afirma também que

tais estratégias não são rígidas como um conjunto fixo de regras que deve ser seguido

com rigor no currículo escolar. Ao contrário, são procedimentos de ordem elevada que

envolvem o cognitivo e o metacognitivo e não podem ser consideradas como receitas

infalíveis, porque são individuais. Ou seja, são construções de procedimentos gerais.

Kato (1999) também argumenta sobre a necessidade dos leitores aprenderem

questões linguísticas e extralinguísticas associadas à construção de estratégias para a

leitura. Para a autora, a leitura pode ser entendida como um conjunto de habilidades que

envolvem estratégias de vários tipos. Essas habilidades seriam: a) encontrar parcelas

(fatias) significativas do texto; b) estabelecer relações de sentido e de referência entre

certas parcelas do texto; c) construir coerência entre as proposições do texto; d) avaliar a

verossimilhança e a consistência das informações extraídas; e) inferir o significado e o

efeito pretendido pelo autor (KATO, 1999, p. 107). Para que tais atividades sejam

realizadas, o leitor cria suas próprias estratégias e aos poucos as automatiza tornando-se

um leitor mais proficiente.

Em suma, a leitura de um texto para produzir sentidos ou para compreender as

ideias ali presentes envolve, de fato, a aprendizagem de estratégias e,

72

consequentemente, o controle de ações do leitor. Deve-se ressaltar, porém, que as

estratégias são construções individuais que demandam todos os conhecimentos que o

leitor tem para a construção de sentido, ou seja, a utilização de conhecimentos prévios

(linguísticos, textuais e de mundo) e, portanto, cognitivos, em associação à construção

de ações conscientes lideradas por decisões do leitor, as quais são metacognitivas. Neste

sentido, destaca-se que, no processo estratégico, não há um sucesso garantido na

representação e nem uma única representação do texto. As estratégias aplicadas são

como hipóteses de trabalho aplicadas sobre a estrutura e significado de fragmentos de

texto, e estas podem ser desconfirmadas por processamentos adicionais (DIJK;

KINTSCH, 1983).

No capítulo 2 desse trabalho, foca-se a discussão sobre a competência

comunicativa que seria a forma como o sistema linguístico é constituído no uso da

língua e como ele é codificado. Uma das dimensões da competência comunicativa

envolve justamente o uso de estratégias para estabelecer a comunicação e recuperar

sentidos, o que se denomina competência estratégica (cap. 2.1.4) e é o que se vai a

explicar no próximo capítulo.

Destaca-se aqui que nessa pesquisa procura-se considerar tanto estratégias

cognitivas quanto metacognitivas para a construção de sentidos, focando-se a maneira

pela qual o leitor seleciona marcações linguísticas (palavras-chave) para interagir com o

texto e a maneira pela qual ele fornece a essas marcações os mais variados sentidos,

procurando concentrar ali sentidos textuais gerais. Admite-se o fato de que leitores

podem usar as palavras-chave como uma estratégia de compreensão textual, o que os

auxilia na construção de sentido para o texto. Isso porque ao selecionar a palavra-chave

o leitor ativa toda a sua carga de conhecimentos prévios (linguísticos, textuais e de

mundo) e os utiliza para interagir com o texto.

73

2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS.

Viu-se pela discussão apresentada no cap. 1, que a língua, por meio de textos, é

capaz de demonstrar sentidos que o leitor precisa reconhecer no processo de leitura e

interpretação. Assim, procura-se agora discutir as formas pelas quais o sistema

linguístico é capaz de construir sentidos a partir das relações estabelecidas entre seus

componentes (intra e extra língua). De que maneira as formas escolhidas (palavras,

frases, orações, parágrafos e discurso) por um autor para produção de um texto

constroem e revelam sentido textual? Ou seja, quais seriam os aspectos presentes na

língua e dominados pelos usuários que os levam a compreender e produzir expressões

linguísticas?

Assume-se que a língua, enquanto meio de comunicação entre sujeitos, possui

características que permitem a comunicação e que atende aos objetivos dos usuários na

interação (vide seção 1.1). Isso significa que, por meio da língua, os usuários realizam

ações, tais como convencer, reclamar, pedir, desculpar-se etc., as quais se efetivam a

partir de um sistema que codifica várias dimensões – tanto linguísticas quanto

extralinguísticas – dessas ações e da comunicação em si.

Para Halliday (1985), a língua é um recurso que os falantes têm para construir

significados realizando seleções de determinadas expressões e suas organizações, as

quais se enquadram em um ambiente e atendem a um conjunto de possibilidades. Para o

autor, os enunciados da língua visam o cumprimento de três objetivos principais de

produção da língua(gem)31

:

a) Ideacional: os enunciados servem para a expressão de um conteúdo e um

objetivo específicos. A organização estrutural das frases permite que se

identifique o conteúdo interno e qual o objetivo do autor. É nesse nível que

Halliday propõe que sejam identificados quais os processos (ações sendo

desenvolvidas) e os participantes (o que e/ou quem está envolvido nas ações);

b) Interpessoal ou interacional: enunciados servem para estabelecer e manter

relações. Essa função compreende o fato de que os usuários da língua trocam e

negociam significados com o intuito de manter a comunicação ativa e alcançar

31

A obra (HALLIDAY, 1995) foi consultada em inglês e as traduções são de minha autoria. O autor

utiliza do termo language, o que pode significar tanto língua quanto linguagem. Optou-se, aqui, pelo uso

de língua(gem) visto que tanto a língua quanto a linguagem são usadas para cumprir com os objetivos de

produção expostos.

74

efetivamente a interação entre dois indivíduos situados em uma comunidade e

mediados pela língua;

c) Textual: enunciados servem como um suporte para fazer ligações com os

próprios enunciados e com as características da situação comunicativa. Isso

significa dizer que a estrutura temática32

das orações compõe o caráter de

mensagem do texto, indicando de que se fala (tema) e o que se fala (rema) sobre

isso. É na composição das ligações entre essas mensagens que o texto se

solidifica criando uma unidade de sentido genérico capaz de ser extraído pelos

usuários.

Sendo assim, a análise linguística de um texto contribui para sua compreensão

porque capacita a mostrar como e porque o texto significa o que significa (HALLIDAY,

1985), e ainda capacita a dizer se o texto é bem sucedido ou fracassa em seus objetivos,

ou se é capaz de ligar características linguísticas a um contexto de situação e de cultura.

Para Halliday (1985), o texto deve ser considerado como uma unidade semântica e não

gramatical. No entanto, ele destaca que os significados são construídos por meio das

palavras e sem uma gramática – em outros termos sem uma teoria sobre isso - não há

maneiras de tornar a interpretação do texto explícita (HALLIDAY, 1985).

Nesse sentido, a análise linguística deve permitir o encontro dos sentidos

presentes nas palavras de um texto. Savignon (1997) afirma ainda que a Linguística se

subdivide em dois itens: a língua e a consciência da língua. Para a autora, o primeiro

conceito – a língua - está estritamente ligado às formas de comunicação pertencentes às

comunidades. Por sua vez, a comunicação é determinada pelos sentidos construídos

socialmente num compartilhamento de significados que, aos poucos, se refletem nas

mudanças sociais e, consequentemente, nas formas de interação. Ela afirma que língua

é cultura33

em movimento, uma combinação de significados que responde e influencia a

mudança social.

Sobre o segundo conceito - a consciência linguística - Savignon (1997) afirma

que essa extrapola a questão do código e concentra-se no reconhecimento de diferentes

aspectos, tais como: os recursos linguísticos e a compreensão de como a língua é usada

para negociar e criar sentidos; as formas linguísticas, as maneiras de construção do

discurso e compreensão do poder da língua; os direitos numa sociedade multicultural e

multilingual.

32

Explica-se mais sobre a estrutura temática e na relação tema-rema na seção 2.2.3 deste trabalho de tese. 33

O conceito de cultura será discutido na seção 2.2.2

75

Sendo assim, a língua sofre uma influência direta de fatores sociais, e o usuário

precisa desenvolver habilidades que permitam o uso da língua em correlação a tais

fatores socioculturais. No entanto, a maneira como essa língua é utilizada pode ser

refletida de forma diferenciada dentro dos estudos linguísticos.

Uma dessas diferenças de percepção conceitual reside no termo “competência”.

A partir dos estudos gerativistas de Chomsky (1965), tal conceito tem se alterado e foi

(re)construído diferentemente por outros autores que corroboram ou se opõe à visão

gerativa. Visto que esse é um conceito primordial para a construção deste trabalho,

expõe-se na seção seguinte qual a visão de competência para este trabalho.

2.1 O CONCEITO DE COMPETÊNCIA

Chomsky (1965), ao realizar seus estudos, procurou investigar as intuições e o

conhecimento que o falante tem sobre o sistema linguístico que o permite se expressar

em qualquer idioma, em qualquer situação de fala, e passou a chamar esse

conhecimento de ‘competência’. Ou seja, para o autor, o usuário já nasce com uma

marca genética que o capacita a construir a sua competência, já que o aprendizado

linguístico é espontâneo, bastando a exposição a uma língua. Para ele, “competência é o

conhecimento que o falante-ouvinte possui da sua língua” (CHOMSKY, 1965, p. 84,

grifos do autor). Por outro lado, o autor admite que a língua tem um lado pragmático,

que permite que os usuários a utilizem de acordo com suas necessidades momentâneas

e individuais, o que ele chama de performance e a conceitua como “o uso efetivo da

língua em situações concretas” (CHOMSKY, 1965, p. 84). No entanto, ele procura

demonstrar que sua preocupação está na determinação de um sistema subjacente de

regras dominado pelo falante ouvinte e não elege a performance como objeto de

estudos, embora a utilize como forma de observação do sistema 34

.

Em outros termos, na visão de Chomsky (1965), a competência é uma

característica do falante-ouvinte ideal e a preocupação do linguista deve ser a sua

descrição a partir das exposições feitas nas combinações das formas linguísticas. Em

suas palavras: “a gramática de uma língua particular deve ser completada por uma

gramática universal que dê conta do aspecto criativo do uso da linguagem e que formule

as regularidades profundas que, por serem universais, são omitidas da gramática

34 Deve-se notar, no entanto, que a definição de competência proposta por Chomsky em 1965 já sofreu

várias alterações, estando, no momento, voltada para as questões biológicas da linguagem.

76

propriamente dita” (CHOMSKY, 1975, p. 86). Assim, o pesquisador deve estar

preocupado com a descrição do que existe como realidade mental do sujeito que o

permite utilizar as formas linguísticas em associação.

Hymes (1995), de certa forma, se opõe ao pensamento gerativista proposto por

Chomsky (1965), elegendo para seus estudos a maneira como a língua se dá na

realidade e estudando, além dos aspectos gramaticais, também os culturais, sociais e

discursivos. Para Hymes (1995), a competência do falante está relacionada ao modo

como se utiliza a língua para interagir com os outros a partir de características próprias

da língua e das atitudes a ela relacionadas. Sendo assim, o usuário não nasce com um

dispositivo inato para a aquisição da língua, mas aprende a usá-la e a realizar atos de

fala35

, tomando parte em interações linguísticas bem sucedidas e avaliando seus avanços

por meio de outros. Na visão de Hymes, é esse desenvolvimento da língua em uso que

o linguista deve estar preocupado em descrever e compreender.

Na oposição a Chomsky, Hymes (1995) constrói o conceito de competência

diferentemente da ideia gerativista. Na concepção do autor, o conceito está ligado à

noção de habilidade de usar o conhecimento das regras abstratas de uma língua nas

correspondências entre sons e significados de forma social e culturalmente apropriada.

O autor propõe então o conceito de competência comunicativa que envolve não só um

sistema de regras linguísticas, mas também um sistema de regras do uso da língua pelo

falante.

Hymes (1995) afirma ainda que a participação da língua na vida social é positiva

e produtiva, pois existem regras de uso sem as quais as regras gramaticais seriam inúteis

(HYMES, 1995). Pode-se dizer, então, que as realizações linguísticas dos falantes

compõem-se da forma linguística em si juntamente aos atos por ela realizados. Dentro

do processo de aquisição de uma língua, o usuário adquire não somente o conhecimento

da organização das orações, mas também um conhecimento de um conjunto de formatos

sociais, culturais e discursivos em que elas podem ser utilizadas. Para o autor, a

competência comunicativa é então definida como capacidade individual de uso da

língua em termos de conhecimento e de habilidade.

Elege-se para este trabalho de tese a proposta de competência comunicativa de

Hymes (1995), na qual aspectos linguísticos são utilizados em associação a aspectos

culturais, sociais e discursivos produzindo sentidos para um texto.

35

Os atos de fala, na visão de Searle (1995), são ações específicas realizadas pela linguagem as quais

dependem do objetivo do falante, tais como solicitar, desculpar-se, abrir uma reunião, queixar-se etc.

77

2.2 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

Conforme discutido acima, a competência, na visão de Hymes, inclui a

habilidade de usar as formas da língua em contextos adequados para produzir

comunicação. Assim, competência comunicativa seria o conhecimento que o usuário

tem sobre a língua que o capacita a interagir com os outros a partir de características

próprias da língua - tais como as organizações linguísticas de frases, parágrafos, textos e

o contexto em que ocorrem - e das atitudes a ela relacionadas, construindo e negociando

sentidos, juízos de valor e características socioculturais (HYMES, 1995).

Savignon (1997) afirma que a língua é comunicação e, nesse sentido, todas as

formas de uso da língua - no caso deste trabalho de tese, textos escritos - são meios de

se estabelecer comunicação. A autora, mesmo falando mais especificamente de uma

perspectiva de aprendizagem de língua estrangeira, admite que o desenvolvimento da

competência comunicativa é válida para falantes nativos de uma língua, e que é

necessário que se pense nas formas de garantir a sua evolução contínua para aumentar

as formas com que os indivíduos se comunicam. Vale lembrar que essa afirmativa é útil

também para a questão da leitura, uma vez que, conforme explicado no cap. 01, esse

processo é interativo, contextual e depende da negociação e construção dos sentidos

para que haja compreensão da informação textual.

Sobre a maneira como a língua é capaz de garantir comunicação e construção de

sentidos pelos usuários, Canale (1995) afirma que comunicação é a troca e negociação

de informações entre pelo menos dois indivíduos por meio do uso de símbolos verbais e

não verbais de modos orais, escritos e visuais e de processos de produção e

compreensão (CANALE, 1995). O ponto de vista adotado pelo autor é de que tanto o

conhecimento quanto a habilidade subjazem à comunicação real de modo sistemático e

necessário, sendo que ambos estão incluídos na competência comunicativa. Para ele, a

competência comunicativa deve ser desenvolvida no sentido de garantir algumas

características básicas da comunicação. O autor afirma que a atividade verbal

(CANALE, 1995):

a) é uma forma de interação social e, em consequência, é adquirida e usada a

partir de tal interação;

b) implica um alto grau de imprevisibilidade e criatividade em forma e

conteúdo;

78

c) tem lugar em contextos discursivos e socioculturais que regem o uso

apropriado da língua – enquanto sistema primordial de comunicação - os quais oferecem

referências para a correta interpretação das expressões linguísticas;

d) realiza-se sob limitações psicológicas e outras condições como restrições de

memória, fatiga e distrações;

e) sempre tem um propósito;

f) implica em uma linguagem36

autêntica oposta à linguagem inventada dos

livros didáticos;

g) realiza-se com sucesso ou não a partir da análise de resultados concretos.

Percebe-se com isso que, para a comunicação, faz-se necessário a utilização de

uma série de conhecimentos e habilidades individuais para interagir com outros falantes.

Ou seja, a noção de competência comunicativa compreende o fato de que há

conhecimentos particulares os quais se ligam a conhecimentos sociais para construir

interação, comunicação e sentidos.

Savignon (1997) afirma que a importância de se considerar a competência

comunicativa na compreensão do uso das expressões linguísticas está justamente no fato

de se garantir aos aprendizes um uso significativo da língua. Para a autora, a produção e

interpretação de um discurso estão relacionadas às necessidades dos usuários (e

apresentam seus conhecimentos). Além disso, os significados se desenvolvem em uma

relação dinâmica entre leitores (ou ouvintes) e suas experiências e expectativas, fazendo

com que a construção organizacional do texto seja importante somente dentro de uma

perspectiva de demonstrar os sentidos construídos. A autora destaca, ainda, que o

usuário da língua37

precisa saber selecionar as expressões linguísticas e respectivos

encaixes gramaticais inseridos em um contexto para garantir o alcance de determinados

objetivos tanto na compreensão quanto na produção de enunciados durante a interação.

Isso garante que os propósitos funcionais e sociais da língua determinem as

características semânticas de um enunciado.

Hymes (1995) procura pensar o processo de descrição e análise linguística

considerando que, dentro dele, as regras de uso social da linguagem devem estar

incluídas a fim de garantir uma descrição real para a maneira como os usuários

36

Para este trabalho, assume-se a noção corrente de que linguagem é o sistema mais amplo de

comunicação entre os seres humanos, a partir do qual a língua, com seu sistema específico de

funcionamento, é organizada (LYONS, 1977). 37

No caso da discussão realizada por Savignon (1997), esses usuários são os aprendizes de uma língua

estrangeira. Tal fato não anula a necessidade exposta pela autora de se compreender a seleção das

expressões linguísticas ligadas aos objetivos que se pretende com elas.

79

manipulam a língua para atingir determinados objetivos na interação. Para o autor, o

estudo comparativo que se faz do papel da língua mostra que a natureza e avaliação da

capacidade linguística variam de forma transcultural; inclusive as línguas que se

consideram parte de uma mesma língua – tais como as variações linguísticas ou os

dialetos - dependem em parte dos fatores sociais (HYMES, 1995).

O autor destaca ainda que, ao adquirir a língua, o usuário apreende não apenas o

conhecimento sobre suas formas de organização, posições sintáticas, possibilidades de

uso em uma determinada estrutura, mas também um conhecimento de um conjunto de

padrões e possibilidades em que tais formas podem ser utilizadas.

Destaca-se, então, a importância de se refletir, neste trabalho, sobre a utilização

do conhecimento do leitor na interpretação textual relacionado à sua competência

comunicativa: na identificação e escolha das palavras-chave, o leitor estaria fazendo

uma tentativa de usar a competência comunicativa na construção dos sentidos textuais,

seja pela posição sintática da palavra, pela posição textual, pelos sentidos discursivos ou

pela ativação de conhecimentos genéricos e sociais do aprendiz.

Salienta-se também que a noção de competência comunicativa se configura

como uma maneira de observar a construção dos sentidos da informação – no caso deste

trabalho, informação textual. Isso porque a junção de elementos linguísticos e

pragmáticos faz com que as construções de sentenças sejam analisadas de modo a se

perceber como os sentidos relacionam-se às formas escolhidas para construir um texto.

Tais questões linguísticas e pragmáticas são divididas em 4 dimensões, caracterizando o

conhecimento subjacente individual e a habilidade de uso da língua dividindo-se em

(HYMES, 1995; LLOBERA, 1995):

a) o grau de possibilidade: o que é possível construir usando o sistema

linguístico do indivíduo (léxico, sintaxe, morfologia, fonologia etc...). Ou seja, “se e

em que grau algo é formalmente possível” (HYMES, 1995, p. 37);

b) o grau de viabilidade: o que é possível construir dada a capacidade

psicolinguística do indivíduo (ex.: memória e percepção do sujeito). Isto é, “se e em

que grau algo é factível a partir dos meios de atuação disponíveis” (HYMES, 1995,

p. 37);

c) o grau de adequação: o que é conveniente dada a natureza do

acontecimento comunicativo (características do lugar, posição dos participantes,

fins, ato, instrumentos etc). Em outros termos, “se e em que grau algo é apropriado

em relação ao contexto em que se utiliza e se avalia” (HYMES, 1995, p. 37);

80

d) o grau de ocorrência: o que pode ou não ocorrer dada a possibilidade,

viabilidade e adequação de ocorrência ou a sua falta. Nas palavras de Hymes, (1995)

“se e em que grau algo se dá na realidade e, de fato, efetiva-se e a que

consequências ele leva” (HYMES, 1995, p. 37).

Percebe-se, assim, que o modelo de Hymes leva em consideração aspectos da

competência comunicativa em, pelo menos, quatro pontos diferentes: a habilidade do

uso das formas da língua, a dimensão mais ampla do controle do usuário da língua, a

viabilidade e a perspectiva etnográfica do contexto. Há uma combinação entre forma,

função e contexto social, fazendo com que o uso adequado da língua leve consigo tanto

a formulação estrutural de um enunciado para alcançar o objetivo, quanto o

reconhecimento das condições (contexto) e da adequação.

Autores que trabalham com a perspectiva da competência comunicativa

(CANALE, 1995; HYMES, 1995; HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995;

SAVIGNON, 1997) afirmam, a partir dessas quatro dimensões, que a competência

comunicativa efetivamente realiza-se, e deve ser observada também, no contexto

pedagógico, em quatro componentes:

1) Competência gramatical38

: compreensão de como os elementos da língua

combinam-se sistematicamente. Essa competência está ligada à habilidade

do uso dos componentes linguísticos (lexicais, morfológicos, sintáticos,

fonológicos), assim como componentes não verbais que auxiliam na

construção das expressões linguísticas;

2) Competência sociolinguística: compreensão do contexto social no qual a

língua é usada – papéis dos participantes, informações compartilhadas,

funções da interação;

3) Competência discursiva: a conexão realizada pelo uso da língua com uma

série de sentenças e enunciados para formar um todo dotado de unidade de

sentidos. Aqui estariam incluídas as habilidades de estabelecimento de

coesão e coerência para um texto;

4) Competência estratégica: as estratégias utilizadas pelo usuário para

compensar o conhecimento deficitário de algumas regras da língua, o que

pode incluir a paráfrase, a hesitação, a mudança em estilos e formas de

38

Autores que trabalham com competência comunicativa denominam essa dimensão de competência

gramatical. Para esse trabalho, admite-se que tal competência inclui aspectos linguísticos como sintáticos,

semânticos e também lexicais. Optou-se pela não utilização do termo competência linguistica para que

não se confunda com o termo utilizado por Chomsky na perspectiva gerativista.

81

registro, ou a repetição. Tal competência vai ser dependente do nível das

competências anteriores, pois a depender do tipo de conhecimento falho, o

usuário cria estratégias de compensação desse conhecimento em particular.

Destaca-se, assim, que a noção de competência comunicativa compreende todas

as formas de uso da língua que permitem interação, e, consequentemente, a leitura de

um texto. É na adequação das formas da língua ao uso permitido por ela que o leitor

pode, de fato, construir relações de sentido. Desse modo, Hornberger (1995) explicita

que a competência comunicativa é capaz de descrever o conhecimento e a habilidade

dos indivíduos para o uso adequado da língua nos acontecimentos comunicativos no

interior das comunidades linguísticas. Essa competência é variável dentro das relações

entre indivíduos (de acontecimento a acontecimento), através dos indivíduos e por

intermédio das comunidades falantes, e inclui tanto regras de uso quanto regras

linguísticas. (HORNBERGER, 1995)

A produção e compreensão de um texto39

são, de fato, um tipo de ação ou

acontecimento comunicativo. Portanto, é necessário que se compreenda como a

competência comunicativa é produzida para garantir a construção de sentidos nas

relações linguísticas estabelecidas em um texto. Fala-se, na sequência do trabalho, sobre

cada uma das dimensões da competência comunicativa, explicando seu funcionamento e

sua influência na produção e compreensão de expressões linguísticas em um texto.

2.2.1 A competência gramatical

De acordo com Canale (1995) a competência gramatical está relacionada ao

domínio do código linguístico verbal e não verbal. Nela estão incluídas as

características formais e informais da língua tais como o vocabulário, a formação das

palavras e frases, a pronúncia, a ortografia e a semântica. Essa competência centra-se

diretamente no conhecimento e na habilidade necessários para se empreender e

expressar adequadamente o sentido das expressões.

Halliday (1985) propõe uma linguística de base conceitual na qual as formas da

língua seriam utilizadas para um determinado fim, e não como um fim em si mesmas. O

autor afirma que existe uma multiplicidade funcional que se reflete na organização

interna da língua e a investigação da estrutura linguística revela, de algum modo, as

39

Cf. conceito de texto na seção 1.2.

82

várias necessidades a que a linguagem serve. Pode-se dizer que, nessa abordagem, a

pluralidade funcional se constrói claramente na estrutura linguística e forma a base de

sua organização lexical, semântica e sintática.

Há uma percepção, assim, de que o uso das formas é definido também por

razões pragmáticas. A organização das palavras na frase é vista na sua função de

organização da informação. Segundo Halliday (1985) a gramática codifica o significado

sem relacionar pequenas porções uma a uma. Ao contrário essa codificação se dá por

meio do isolamento de variáveis e de suas possíveis combinações na consecução de

funções semânticas específicas (HALLIDAY, 1985). Para o autor, as escolhas relativas

a elementos e posições gramaticais revelam sentidos diferentes. Em outros termos, os

sentidos dependem, de certa forma, da escolha de um item particular, do seu lugar no

sintagma, da sua combinação com outro elemento ou da sua organização interna. Então,

o que a gramática faz é separar todas essas possíveis combinações e ordená-las em suas

funções semânticas específicas.

Dik (1997), baseado no modelo funcionalista de Halliday, propõe que as

expressões linguísticas movem intenções e interpretações dos usuários da língua

permitindo interação. O modelo abaixo é proposto por Dik (1997):

FIGURA 1: Modelo de interação verbal40

.

Informação pragmática Informação pragmática do

do falante destinatário

Formas do falante Construtores do destinatário

INTENÇÃO antecipa INTERPRETAÇÃO

reconstrói

Expressão linguística

Para o autor, “a relação entre a intenção do falante e a interpretação do

destinatário é mediada, mas não estabelecida pela expressão linguística” (DIK, 1997, p.

08). Com base na figura 1, nota-se que as expressões selecionadas para construir um

40

In: DIK, 1997, p. 08

83

enunciado ativam duas ações diferentes: uma em relação ao objetivo do locutor, ou às

suas intenções, e outra em relação à recepção dada pelo interlocutor, ou à sua

interpretação. Assim sendo, o processo de produção e compreensão dos enunciados tem

uma base comum: a expressão linguística, a qual ativa conhecimentos de ambos

usuários em interação, incluindo seus conhecimentos pragmáticos que estabelecem as

possibilidades de uso da expressão. Isso quer dizer que as expressões linguísticas e as

formas de suas combinações são capazes de ativar representações mentais dos usuários,

ou os esquemas de conhecimento e suas relações41

.

Para Dik (1997), a expressão linguística é uma função da intenção do locutor,

sua informação pragmática, e sua antecipação da interpretação do interlocutor, enquanto

a interpretação do interlocutor é uma função da expressão linguística, a informação

pragmática e a sua conjuntura sobre o que pode ser a intenção comunicativa do falante

(DIK, 1997).

O uso das expressões linguísticas selecionadas para a comunicação organiza,

antecipa, expõe possíveis interpretações entre os usuários da língua, pois ativam, entre

outras, informações pragmáticas as quais se encadeiam no sistema linguístico. Tanto a

produção quanto a interpretação possuem em comum a expressão linguística, base do

conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos sejam (re)construídos e a

interação aconteça.

Moura Neves (1997) destaca que é na percepção das funções dos elementos

linguísticos em funcionamento que se pode compreender as relações ali estabelecidas e

as possíveis interpretações:

o exame dos itens de uma classe, vistos em seu funcionamento (em

sentido multifuncionais) leva à explicitação dos diversos processos

existentes na língua. O exame dos substantivos, por exemplo,

exploraria: a semântica vocabular (referenciação), a semântica das

relações (participação em eventos), a sintaxe (posição e função na

estrutura), a pragmática (organização da interação em termos de

definição de papeis na interlocução), a composição textual (a

organização da mensagem com unidades em termos de delimitação e

extensão, independem das unidades sintáticas) (MOURA NEVES,

1997, p. 66).

Desse modo, para que os sentidos textuais sejam construídos, há uma

combinação de pequenos significados construídos e relacionados nas frases, orações,

41

Vide cap. 1.4.3.1 sobre a noção de esquemas

84

parágrafos e discurso. Eles estão entrelaçados em uma teia de conexões, tecendo fios

semânticos (CAVALCANTI, 1989), os quais são identificados pelo leitor na

compreensão. Para que a competência gramatical seja desenvolvida, tais fios devem ser

reconstruídos pelo leitor por meio da identificação dos significados ali expressos e suas

ligações.

Na organização e construção dos sentidos, as classes das palavras e as posições

dos elementos na sentença são fundamentais. Isso porque as palavras têm funções

específicas nas frases ou sintagmas em que atuam e classificam-se de acordo com

características mais ou menos parecidas, tais como a posição no sintagma e a função

que exercem na construção de sentido (HALLIDAY, 1985). Isso significa que o foco

principal estaria na estrutura gramatical sendo explicada de acordo com os sentidos por

elas produzidos.

Halliday (1985) esclarece a sua proposta funcional concentrando-se na

explicação de unidades tais como os sintagmas. O autor propõe a figura abaixo para a

divisão dos sintagmas:

FIGURA 2 - Divisão dos sintagmas segundo Halliday (1985) 42

comuns

substantivos próprios

pronomes

adjetivos

Nominais: numerais

Determinantes

lexicais

Verbo auxiliares

Formas verbais43

Verbais: Preposição

Adverbiais: advérbio

conjunção

Para o autor, esses grupos de palavras seriam os elementos, (ou, como ele

denomina, partes do discurso), da gramática funcional e não podem ser representados na

forma de estruturas completas separadas, mas, ao contrário, contribuem parcialmente

para uma linha estrutural única da oração.

Os grupos expostos na figura 2 devem ser analisados no sentido de perceber as

relações lógico-semânticas que mantém com as palavras a que se combinam. Ou seja,

42

In: Halliday (1985), p. 191 43

Do inglês: finite verbs (tradução minha)

85

há um motivo para o qual a organização dos sintagmas é utilizada pelo falante para

fazer sentido.

Como se percebe na figura acima, Halliday (1985) discute três grupos principais:

i) um que se concentra ao redor do substantivo, grupo nominal; ii) outro que se

concentra ao redor do verbo, grupo verbal; iii) e outro ainda que se concentra ao redor

do advérbio, grupo adverbial. A partir desses três grandes grupos, as classificações e

ocorrências linguísticas são analisadas tendo como base a função na sentença e a forma

como produzem comunicação. O autor procura demonstrar também que as preposições

e conjunções em algum ponto da oração têm sua função demarcada em relação às

demais categorias lexicais e também merecem atenção do ponto de vista funcional.

Na perspectiva funcionalista, a classificação é sustentada pelas suas funções

exercidas pelas palavras e pela forma como essas se posicionam para construir sentidos

e informações. Assim, num âmbito mais geral, elementos mais fixos (classe fechada,

tais como preposições, artigos, conjunções) se ligam aos elementos mais variáveis

(classe aberta, tais como substantivos, adjetivos e advérbios – LYONS, 1977) para

organizar os sintagmas e frases. Talvez seja exatamente esse o motivo pelo qual a

maioria dos sujeitos estudados neste trabalho tenha escolhido elementos de classe aberta

como palavra-chave (palavras que estão categorizadas nos três grupos principais

expostos por Halliday, 1985). As palavras de classe aberta auxiliam na organização do

conteúdo semântico das sentenças sem excluir a possibilidade de elementos de classe

fechada também auxiliarem na construção de sentidos. Ainda, tais palavras ocupam

funções sintáticas proeminentes na organização das sentenças, tais como sujeito, objeto,

predicado, ou, como veremos adiante no cap. 4, na estrutura tema-rema ou na

informação dado-novo.

Para Halliday (1985), uma propriedade fundamental da língua é que ela capacita

os seres humanos a construir um quadro da realidade, a fim de dar sentido à sua

experiência e àquilo que ocorre ao seu redor. A oração é a unidade gramatical mais

significante, porque ela corporifica um princípio geral para modelar a experiência, isto

é, o princípio de que a realidade é composta de processos.

Nesse sentido, os sistemas de significação geram estruturas léxico-gramaticais

que são plausíveis: há, então, verbos e substantivos para enquadrar a análise da

experiência tanto de processos quanto de participantes, formando um todo integrado

entre os elementos e os significados presentes no texto. Os conceitos de processo e

participante, na compreensão desse autor, são categorias semânticas que explicam, de

86

maneira bem ampla, como os fenômenos do mundo real são representados como

estruturas linguísticas. Ou seja, há um sistema de transitividade em que os processos são

as ações que são realizadas pela língua caracterizadas semanticamente no uso de verbos.

Já os participantes são aqueles que estão diretamente envolvidos no processo, pois se

referem diretamente ao verbo e realizam uma ação por meio desse verbo.

É o sistema de transitividade que, para Halliday (1985), constrói o mundo da

experiência em um conjunto manejável de tipos de processos que são reconhecidos na

língua e a estrutura pela qual eles são expressos. O autor afirma que a estrutura

semântica básica para a representação de processos consiste de três componentes: o

próprio processo, os tipos particulares de função participante e as circunstâncias

associadas ao processo, na oração. Cada um desses acontecimentos deve ser

caracterizado de acordo com a sua função e expressam um determinado significado. Os

processos geralmente são realizados pelo grupo verbal, os participantes pelo grupo

nominal e as circunstâncias pelo grupo adverbial ou preposicional. O autor classifica os

processos em:

1) Processos materiais: ato de fazer ou realizar algo como em:

a. O prefeito dissolveu o comitê 44

(os participantes são um agente – o prefeito - e um objetivo45

– o comitê);

2) Processos mentais: ato de sentir, pensar, perceber, passar por uma experiência,

como em:

b. Ela gostou do presente.

(o participante que sente o processo precisa ser humano e o outro pode ser tanto

um objeto quanto um fato);

3) Processos relacionais – processos de ser, estar, tais como:

c. Ela é uma linda mulher.

(pode ser intensivo em que o participante é alguém ou algo; circunstancial em

que há uma relação de tempo, lugar, maneira, causa, acompanhamento, questão

ou papel; possessivo em que há uma relação de posse);

4) Processos comportamentais – processos fisiológicos ou de comportamento

psicológico (ex. sonhar, tossir, respirar, sorrir). Ex.:

d. Ela estava chorando por mim;

44

Os exemplos foram retirados da obra de Halliday (1985) e foram traduzidos do inglês (traduções de

minha autoria). 45

Do inglês: goal. (tradução minha)

87

5) Processos verbais – processos de dizer algo (ex. dizer, falar, proferir etc.), tais

como o que segue:

e. João disse que estava com fome;

6) Processos existenciais – algo existe ou acontece, como em:

f. Tem uma festa hoje à noite46

.

Para Halliday (1985), é na interposição dos elementos envolvidos no processo

que os sentidos são construídos. Ou seja, a organização da frase revela, além de uma

combinação de elementos lexicais, uma relação de processos semânticos entre esses

elementos que possibilitam a codificação de sentidos ali associados. Esses sentidos

constroem a função do ato comunicativo do falante e regulam a interpretação do

ouvinte. O autor propõe o seguinte quadro para resumir os processos, significados e

participantes:

QUADRO 2 - Relação entre processos e participantes47

.

Tipo de processo Significado da categoria Participantes

Material:

Ação

Evento

Fazer

Fazer

Acontecer

Agente

Objetivo

Comportamental Comportar-se Aquele que se comporta

(behaver)

Mental

Percepção

Afeição

Cognição

Sentir

Ver

Sentir

Pensar

Experienciador

Fenômeno

Verbal Dizer Falante

Alvo

Relacional

Atribuição

Identificação

Ser

Atribuir

Identificar

Símbolo (token), alvo

Carregador, atributo

Identificado, identificador

Existencial Existir Existente

Na visão do autor, os sentidos textuais vão aos poucos sendo construídos por

meio da organização que os usuários fornecem à língua. Moura Neves (1997) demonstra

que há organizações no nível da frase e no nível do texto que atendem às funções da

linguagem propostas por Halliday (1985), tal como explanado no início deste capítulo.

Cada uma das funções atende a um nível de organização fazendo com que as relações

entre função, organização e sistema linguístico sejam assim estabelecidas:

46

O autor propõe isso a partir da estrutura da língua inglesa: verbo there to be. 47

In: HALLIDAY (1985, p. 131).

88

QUADRO 3 - Relações entre função, organização e sistema 48

FUNÇÃO ORGANIZAÇÃO SISTEMA

Ideacional Dos significados Coesão

Interpessoal Da interação Relações humanas

Textual Da informação Estruturação da informação

(dado/novo)

Percebe-se com os dois últimos quadros acima que há uma ligação constante

entre a maneira como os significados são codificados no sistema da língua e a forma

como eles organizam os sentidos gerais da comunicação. Ainda, a maneira como as

palavras são organizadas na função ideacional (carregar um conteúdo intencionado e se

organizar em processos e participantes) auxilia na construção das funções interpessoal e

textual da língua numa relação constante e intrínseca formando uma rede de relações.

O que se pode observar é que nessa explicação do funcionamento dos elementos

linguísticos há um aspecto fundamental: a língua codifica sentidos, intenções e permite

interpretações. Essa codificação seria o que os usuários armazenam como conhecimento

gramatical e os utilizam para efetuar ações em sua realidade. O conhecimento

linguístico seria o ponto de partida para ativar outros tipos de conhecimento a ele

atrelados, sejam esses conhecimentos culturais, sociais ou discursivos.

2.2.2 A competência sociointercultural

A segunda dimensão da competência comunicativa, na visão dos autores

estudados (HYMES, 1995, CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; SAVIGNON,

1997), seria a competência sociolinguística. Canale (1995) propõe que esse conceito

relaciona-se à identificação da medida em que as expressões são produzidas e

entendidas adequadamente em diferentes contextos sociolinguísticos, tais como a

situação social dos participantes, os objetivos, a interação e as normas e convenções da

interação.

Para o autor, a adequação dos enunciados está relacionada ao equilíbrio entre o

significado, a forma e o contexto. Em outros termos, os enunciados devem ser

48

In: Moura Neves (1997 p. 72).

89

compreendidos na medida em que um significado dado - incluindo funções

comunicativas, atitudes e proposições/ideias - é representado por meio de uma

configuração verbal/não verbal, que é característica em um contexto sociolinguístico.

De acordo com Kramsch (1993), o contexto é formado por pessoas em diálogo

uma com a outra, dizendo coisas sobre o mundo em que vivem e fazendo declarações

sobre elas mesmas e suas relações pessoais. Em meio a esse diálogo, há uma troca e

negociação de significados que pertencem ao estoque de conhecimentos gerais comuns

da comunidade e que desenham uma variedade de textos presentes e passados. Em

outros termos, contexto é a matriz criada pela língua enquanto discurso como uma

forma de prática social.

Partindo-se do princípio de que o contexto envolve pessoas, mundo em que se

inserem, troca de significados, conhecimentos da comunidade, o que, em processo

relacional, permite a formação de uma matriz de compreensão, pode-se dizer que o

contexto admite uma complexidade de elementos que contribuem para a construção de

sentidos na língua. Hornberger (1995) e Hymes (1995) propõem que o contexto seja

analisado diante do acrônimo SPEAKING49

, sendo assim definidos:

S - Setting (lugar): lugar, hora, circunstâncias físicas e definição cultural da

ocasião;

P - Participants (participantes) - quem são os envolvidos e quais as

características e relações dos indivíduos no processo comunicativo;

E - Ends (fins): resultados esperados da interação e objetivos;

A - Act sequence (sequência dos atos): forma e conteúdo que a mensagem deve

ter para carregar sentidos pretendidos;

K - Key (entonação) – o tom e a maneira selecionados pelo usuário para

comunicar-se;

I - Instrumentalities (instrumentos) – canais e formas utilizadas para a realização

do ato de fala;

N - Norms (normas) – as regras de interação e interpretação necessárias;

G - Gender (gênero) – o gênero do texto escolhido para a interação tal como um

poema, mito, piada, conversa, conferência.

49

Optou-se por manter o termo original da obra em inglês (SPEAKING) pelo fato das traduções não

apresentarem um acrônimo específico no português que mantenha o sentido do termo. Sendo assim,

mantém-se o termo em inglês com a respectiva tradução (de minha autoria) para explanações.

90

Conclui-se, com a ideia de Hymes (1995), que contexto envolve tanto fatores

sociais (pessoas, lugares, comunidade de fala etc.) quanto fatores culturais

(comportamentos, intenções, regras culturais), a partir dos quais se pode propor uma

competência sociolinguística. Tal competência é crucial na interpretação de enunciados

por seu significado social – a função comunicativa e a atitude do usuário (p. ex. quando

uma expressão não está clara pelo seu significado literal pode-se interpretá-la a partir de

indicações não verbais, tais como o contexto sociocultural e gestos).

Nesse sentido, Scollon e Scollon (2001) indicam que as regras do contexto são

tão importantes quanto as regras linguísticas para a produção de sentidos textuais. Eles

chamam esse aspecto de ‘gramática de contexto’ e o definem como o elemento utilizado

pelos usuários da língua para compreender os sentidos dos atos de fala dentro das

circunstâncias em que ocorrem. Os autores procuram explicar as características

envolvidas nos fatores contextuais, e desenvolvem, nesse sentido, explicações mais

específicas que Hymes (1995) e Hornberger (1995). Eles destacam que a gramática de

contexto deve considerar sete elementos:

a) Cena: localização – saber que lugar é mais adequado para que determinados

objetivos da comunicação sejam atingidos (ex. se for uma reunião de

negócios deve acontecer provavelmente numa sala comercial e não no meio

de uma praça); tempo - saber qual o horário para a realização de um ato de

fala (ex. se for uma reunião de negócios para discutir políticas de empresa

ela deve acontecer em horário comercial); espaços - saber os espaços ou o

lugar ocupado pelo usuário no ato de fala (ex. o juiz, ao começar um

julgamento, deve estar sentado no lugar a ele apropriado. Ele não poderia

fazer isso na mesa de um bar); o tópico – criam-se expectativas sobre o que

se está falando durante um evento comunicativo (ex. numa reunião de

negócios não se espera a discussão do filme que foi assistido na noite

anterior. Caso isso aconteça e o chefe da reunião diga “Talvez seja melhor

nos concentrarmos nos pontos de pauta de hoje”, é provável que ninguém

mais fale no assunto); o gênero – reconhecer o tom e a forma que o ato

comunicativo deve tomar (ex. não se pode contar uma piada em meio à

discussão das políticas de uma empresa);

91

b) Entonação50

– o tom ou a maneira de uma comunicação (ex. um tom

relaxado de muitas risadas combina mais com uma festa do que com uma

reunião de negócios);

c) Participantes: quem são eles e que papéis eles apresentam;

d) Forma da mensagem: decidir o meio em que se veicula a mensagem

(televisão, telefone, voz, discurso, email etc.) Isso não é só uma questão de

meio utilizado, é também uma questão de conteúdo e estrutura social. (ex.

um acordo de negócios feito oralmente ou por telefone não tem valor legal

algum);

e) Sequência – a ordem em que os eventos devem ocorrer. É ela que define a

participação e a alternância dessa participação nos eventos comunicativos.

Eventos, principalmente os formais, têm uma agenda de acontecimentos que

ocorrem a partir dos atos de fala realizados (p. ex. se estivermos diante de

uma crônica que narre a rotina de uma aula de ensino básico, por exemplo,

espera-se encontrar ali a sequência dos eventos, tais como sinal de entrada,

chegada da professora, início da aula, alternância entre as falas professor e

aluno etc. Se essa sequência for quebrada o autor deve apresentar uma

intenção clara para isso para que o leitor possa compreender o texto);

f) Padrões de coocorrência: componentes contextuais que se associam durante

o acontecimento do ato de fala. (p. ex. o componente de gênero ‘piada’

geralmente acontece com a entonação de ‘humor’ (o que é esperado e

padronizado). Uma piada pode até ser contada de forma séria – p. ex., se

alguém se ofender, o tom de humor pode deixar de existir - mas isso seria um

resultado inesperado51

).

Deve-se destacar que alguns desses componentes contextuais são manifestados

de forma explícita e outros permanecem implícitos. O usuário da língua, ao engajar-se

no evento comunicativo, procura tais elementos de contexto e os utiliza para construir

sentido. Por exemplo, se o leitor está diante da leitura de uma narrativa literária, espera-

se encontrar ali um tópico sendo narrado, a participação dos personagens em sequência,

50

Do inglês “Key” (chave) – tradução minha. Optou-se pelo uso da palavra ‘entonação’ por representar

melhor o sentido do termo nesse contexto. 51

Os autores denominam os fatores esperados de “marked” e os fatores inesperados de “unmarked”.

92

a localização adequada ao tópico discutido, a comunidade em que ela se realiza, entre

outros fatores contextuais que devem ser percebidos para que o texto faça sentido52

.

Bakhtin (2009) afirma também que a língua configura-se de acordo com um

conjunto de contextos possíveis, nos quais os elementos linguísticos assumem uma

forma social e interacional. Para o autor, “na prática viva da língua a consciência do

locutor e do receptor (...tem a ver...) com a linguagem no sentido do conjunto de

contextos possíveis de cada forma em particular” (BAKHTIN, 2009 p. 98). Sendo

assim, para a construção de um ato comunicativo, há uma relação nítida e necessária

entre os elementos utilizados para compor um enunciado (competência gramatical) e o

contexto social e cultural em que ocorrem (competência sociolinguística).

Viu-se anteriormente que Halliday (1985) propõe que a linguagem tem uma

função interacional, ou seja, ela assume o papel de trocar informações, posições,

necessidades e objetivos entre os interlocutores. Ao usar a língua, o falante tem um

objetivo e um propósito e ele faz uso das expressões para deixar esse propósito claro.

No entanto, é na troca das expressões que esses objetivos são expostos e se

(re)constroem como uma oferta, uma reclamação, uma declaração, uma necessidade etc.

Halliday (1985) afirma que a língua funciona como um meio de alcançar recursos

especiais e essencialmente não linguísticos, tais como comandos ou ofertas. Por meio da

língua desenvolvem-se recursos léxico-gramaticais para declarações e questões os quais

servem como ponto de partida para uma série de funções. Assim, ao interpretar a

estrutura das sentenças pode-se ganhar uma compreensão geral da função que ela

apresenta na interação.

Reitera-se aqui que o contexto envolve tanto fatores sociais quanto culturais.

Assim, no interior da competência sociolinguística desenvolvida por Canale (1995),

Hymes (1995), Hornberger (1995), há um elemento importante e não trabalhado de

forma clara: a cultura. Celce- Murcia (2007) propôs, no mínimo, uma alteração na

terminologia de Canale (1995): que a terminologia competência sociolinguística seja

modificada para competência sociocultural. A autora faz isso mediante o

reconhecimento do fato de que há um conhecimento cultural anterior necessário para

interpretar e usar uma língua efetivamente.

Na visão da autora, a competência sociocultural refere-se ao conhecimento

pragmático do falante inserido em um momento cultural e em um contexto de

52

Cf. seções 1.4.3 e 1.4.3.1 sobre o conhecimento de mundo e a forma como este é formatado

cognitivamente em esquemas mentais que interagem durante a leitura.

93

comunidade específicos. Isso inclui o conhecimento de variação linguística com

referência às normas socioculturais da comunidade (CELCE-MURCIA, 2007). Ainda,

para a autora, os componentes dessa competência seriam:

a) Fatores contextuais sociais: idade, gênero, status, distância social e suas relações

uns com os outros, poder e afeição;

b) Apropriabilidade estilística: estratégias de polidez, adequação, sentido de

gêneros e registros;

c) Fatores culturais: conhecimento anterior do grupo ou comunidade, diferenças

dialetais e regionais, e consciência transcultural.

Assim, além daqueles elementos expostos acima por Hymes (1995), deve-se

destacar que no interior da competência comunicativa, ou mais especificamente da

competência sociolinguística, deve-se considerar a importância do conceito de cultura

(CELCE-MURCIA, 2007; SCOLLON;SCOLLON, 2001).

Para Almeida Filho (2011), a cultura sempre está em constante movimentação e

consiste nas crenças, conhecimentos, comportamentos, pensamentos, concepções de

uma comunidade. Nas palavras do autor,

cultura é para o homem o seu conjunto de crenças, conhecimentos e

técnicas, além de modos de pensar e agir formulados durante a história

de seu determinado grupo ou sociedade. Representa, portanto, a

interação humana com o meio (a natureza) em que vive e viveu certo

grupo de seres humanos. Podemos dizer que cultura é uma eterna

catalisadora e que nunca vai se caracterizar como alguma coisa

estática ou imutável. Sua mutabilidade é, sem dúvida, alguma coisa

inerente à sua existência. Vale lembrar que a cultura nasce com a

operação social via linguagem e é nela mantida em constante

reajustamento ao longo do tempo. (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 160)

Pode-se dizer, portanto, que língua e cultura, juntas, refletem uma forma de

compreender e representar a realidade. Para Kramsch (1998), a cultura deve ser

entendida como parte de uma comunidade discursiva que compartilha um espaço social,

uma história e imaginários comuns53

. A autora afirma ainda que seus membros podem

reter, nas comunidades onde estiverem, um sistema comum de padrões de percepção,

crença, avaliação e ação. A esses padrões a autora denomina cultura.

53

Na seção 1.4.3 discutiu-se a maneira como a cultura faz parte do imaginário comum de uma

comunidade e auxilia na construção dos esquemas mentais dos indivíduos os quais são utilizados durante

a leitura.

94

Reitera-se, então, que a cultura faz parte de como o usuário da língua percebe o

mundo ao seu redor e é codificada no uso que se faz da língua, tanto na fala quanto na

escrita. Kramsch (1998) também destaca que, se falantes de línguas diferentes não

conseguem se entender, não é porque as línguas que falam não podem traduzir tudo o

que se diz uma para outra. Até certo ponto isso pode acontecer de forma mais ou menos

adaptável e tranquila. O que acontece é que eles não compartilham alguns conceitos

subjacentes às palavras e codificados nelas pela comunidade de fala. Ou seja, eles

recortam a realidade e categorizam a experiência de forma diferenciada por pertencerem

a culturas diferentes.

A autora destaca que a língua apresenta minimamente três aspectos: a)

expressão, b) corporificação e c) simbolização da realidade cultural. O primeiro aspecto,

da expressão, acontece porque as palavras podem refletir as atitudes e crenças do autor e

podem relatar experiências dos usuários dentro da comunidade. O segundo, da

corporificação, significa que enunciados permitem que as experiências dos usuários

sejam (re)criadas e que novos significados no uso da língua sejam (re)construídos e

compreendidos. O terceiro, da simbolização, expressa que a língua é um sistema de

signos que tem um valor cultural, pois os usuários identificam a si mesmos e aos outros

no uso da língua, como uma identidade social.

Nesse sentido, a língua não é um código livre da cultura, distinto da maneira

como as pessoas pensam ou se comportam, mas, ao invés disso, ela tem um papel

primordial na perpetuação da cultura. Segundo a autora, o uso da língua escrita é

também formado e socializado por meio da cultura. Isso significa dizer que se deve

pensar tanto no que é apropriado escrever a alguém quanto em quais circunstâncias,

quais gêneros textuais devem ser empregados (formulário, carta comercial, panfleto

político), pois tais aspectos são sancionados por convenções culturais. As formas de uso

da língua e ainda, as normas de interação e interpretação formam parte do ritual

invisível imposto pela cultura. Ou seja, seguir tais padrões é uma maneira cultural de

trazer ordem e previsibilidade para o uso que as pessoas fazem da língua (KRAMSCH,

1998).

Percebe-se, portanto, que em adição ao contexto social (sincrônico) e histórico

(diacrônico), existe o imaginário de representação de uma comunidade, ou a cultura, o

qual também é mediado pela língua. O fato primordial desse imaginário e

representações é que os sentidos são construídos não somente por meio do que os

falantes dizem uns aos outros na expressão linguística em si, mas também a partir do

95

que eles fazem com as palavras em sua comunidade para responder a demandas desse

meio.

Tais representações organizam o conhecimento sobre o mundo dos usuários da

língua, o qual é utilizado para prever interpretações, informações, eventos e

experiências assim como (re)construir significados sociais e pessoais54

. Sendo assim, há

um processo de relação entre culturas diferentes para a produção de sentidos.

Kramsch (1998) aponta justamente para a necessidade de se produzir

conhecimento a partir de uma relação próxima entre língua e cultura. A autora destaca

que os termos transcultural ou intercultural podem referir-se tanto a limites políticos de

nações-estado, quanto a limites de culturas diferentes dentro de uma mesma

comunidade. Para a autora, o termo “intercultural pode referir-se a comunicação entre

pessoas de diferentes culturas étnicas, sociais e de gênero dentro dos limites da mesma

língua nacional” (KRAMSCH, 1998, p. 82), e essa comunicação pode se dar por meio

do diálogo entre classe trabalhadora e classe alta, por exemplo, ou entre as posições de

homem e mulher, ou entre gays e heterossexuais. Assim sendo, o termo intercultural

considera a comunicação entre pessoas que transitam em diferentes áreas da mesma ou

de outras comunidades (MENDES, 2008).

A autora também atenta para outro termo que deve ser considerado: o conceito

de multicultura. Para ela, “multicultural” (KRAMSCH, 1998) é mais frequentemente

usado de duas maneiras: a) em termos de sociedade, indicando a coexistência de pessoas

de várias etnias e formações diferentes como uma sociedade multicultural; e b) em um

sentido individual, caracterizando que pessoas pertencem a várias comunidades

discursivas e, portanto, têm os recursos linguísticos e estratégias sociais para se

identificarem como parte de muitas culturas e maneiras de usar a língua. Ainda, a autora

indica que a identidade cultural de indivíduos multiculturais não é aquela de falantes

nativos múltiplos, mas se realiza a partir de uma multiplicidade de papéis sociais ou

posições do sujeito que eles ocupam seletivamente a depender do contexto social no

qual eles se encontram no tempo (KRAMSCH, 1998).

Isso quer dizer que intercultura e multicultura fazem parte da formação dos

sujeitos que se comunicam e interpretam um texto. Assim, ao se falar sobre intercultura,

considera-se membros de formações discursivas diferentes em contato para (re)construir

54

Conforme discussão apresentada na seção 1.4.3.1, os esquemas mentais são capazes de (re)codificar

relações do mundo (inclusive cultura) no conhecimento individual.

96

um sentido textual e o termo multicultura refere-se a diferentes posições ocupadas pelos

sujeitos e que interferem nas suas maneiras de interpretar a realidade.

Foca-se a discussão, agora, em uma questão primordial para a compreensão dos

dados deste trabalho de tese: i) parte-se da ideia de que, em uma sala de aula, indivíduos

com diferentes discursos e culturas encontram-se em um ambiente interacional, no qual

a língua é usada como mediadora na construção de conhecimento (ou seja, é um

ambiente multi e intercultural por natureza); ii) fala-se sobre leitura como um processo

interativo em que se utiliza todos os conhecimentos do leitor para (re)construção dos

sentidos textuais (vide cap. 1). Desse modo, os sentidos individuais e sociais das

diferentes formações e discursos, interferem, ao mesmo tempo, na forma como, quantos

e quais sentidos textuais são construídos.

Portanto, considera-se que há uma multiplicidade de culturas que perpassa a

linguagem textual e auxilia na interpretação e construção de sentidos, o que poderia ser

chamado de abordagem intercultural na compreensão de textos. De acordo com

Mendes (2011), a abordagem intercultural considera que a cultura deve ser incorporada

em qualquer trabalho com a língua (ou “língua-cultura” nas palavras da autora

(MENDES, 2011, p. 148)) a partir de uma visão flexível, constituindo-se de ações,

informações, símbolos, práticas os quais só podem ser compreendidos numa visão

dialógica.

Em trabalho anterior, Mendes (2008), apoiada na visão de Kramsch (1998),

defende a necessidade do esforço de professores para promover interação, integração e

cooperação entre indivíduos e suas culturas, partilhar experiências, construir diálogos

para refazer significados. Para a autora, quando se ensina línguas (materna ou

estrangeira), mundos e culturas entram em interação representados na língua. Ela dá a

essa interação o nome de abordagem intercultural e afirma que, em um processo de

ensino e aprendizagem de línguas, deve haver um ir e vir constante e uma negociação de

conflitos entre culturas para a edificação de um novo conhecimento, mais sólido e

comum a todos. A autora destaca que:

através da criação de um diálogo entre culturas, no qual a troca e

análise de experiências, o respeito às diferenças, a intersubjetividade

tenham lugar, é possível construir um espaço de um terceiro tipo,

formado pela interseção das experiências de professores e aprendizes,

formado em parte pelas interpretações de mundo de cada um e de

todos ao mesmo tempo, da comunhão de vontades, desejos, anseios;

da busca pela descoberta de um lugar no qual (con)viver com a

97

diferença seja a porta para que as diferentes vozes possam ser ouvidas.

(MENDES, 2008, p. 73).

É a partir da criação de um terceiro espaço, comum entre as diferentes

perspectivas dos envolvidos no processo de interação, que os usuários podem construir

um diálogo pelo qual é possível reformular a própria cultura e também compreender a

do outro. Kramsch (1993) declara que a única maneira de construir compreensão da

língua é desenvolver uma terceira perspectiva, ou seja, um espaço comum de

negociação entre locutor(es) e interlocutor(es), que os capacita a terem uma visão

individual e ao mesmo tempo social. É esse terceiro espaço que uma educação

intercultural deve estabelecer (KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008).

Assim, destaca-se a necessidade de se abordar as diferentes culturas no processo

de leitura. Se o processo de leitura é interativo, em que leitor e autor dialogam e

constroem sentidos baseados no texto, então seria impossível conceber o ensino da

leitura como se somente o que está na página deve ser compreendido. Há sentidos

presentes na construção da vida social e cultural do leitor que devem ser utilizados no

momento da leitura. Desse modo, utilizar esses conhecimentos na construção da

habilidade de realizar comunicação durante a leitura e no desenvolvimento da

competência estratégica (vide cap. 2.2.4) nada mais é que priorizar a história de vida do

aprendiz e sua cultura para a construção de novos significados que reforcem os seus

posicionamentos e o façam dialogar com o texto ao produzir sentidos.

Mendes (2010) destaca que

de fato, o que está além da língua, ou antes da língua, que não pode

ser descartado, com certeza, é toda a rede sociocultural que a envolve

e faz com que ela seja usada de um modo específico, em determinado

contexto; uma entre tantas outras possibilidades (MENDES, 2010, p.

77).

Sendo assim, pode-se dizer que, no uso desses conhecimentos construídos

culturalmente e subjacentes à língua, o leitor produz sentidos.

Deve-se destacar que neste trabalho considera-se a necessidade de se pensar no

uso da língua a partir de uma visão em que aspectos socioculturais subjazem a esse uso.

Considera-se, assim, para as análises realizadas nesta pesquisa, que tanto o conceito de

multiculturalidade proposto por Kramsch (1998) - em que cada usuário pertence ao

mesmo tempo a várias comunidades discursivas - quanto a ideia de interculturalidade no

98

ensino de línguas proposta também por Kramsch (1998) e por Mendes (2008; 2010;

2011) - em que há uma diversidade de culturas étnicas dentro de uma mesma

comunidade – contribuem para a posição de que o conhecimento que o usuário tem

codificado para a produção de interação comunicativa o auxilia na construção da

interação e o faz (re)construir sentidos, tanto individuais quanto sociais.

Portanto, para esse trabalho de tese, propõe-se o uso do termo “competência

sociointercultural” ao invés de “competência sociolinguística”, considerando: 1) a visão

inicial de Hymes (1995) de que há fatores e regras sociais que influenciam no ato

comunicativo, o que ele chama de competência sociolinguística; 2) a visão de Scollon e

Scollon (2001) de que há uma gramática de contexto (para além da gramática da língua

em si) que contribui para a maneira como as interações acontecem produzindo sentidos;

3) a visão de Kramsch (1998) e Mendes (2008) de que há um diálogo constante entre os

diferentes discursos, contextos, comportamentos, ações, pensamentos – o que vem a ser

a(s) cultura(s) - dos quais o indivíduo faz parte, levando à produção de sentidos e à

(re)significação da realidade e do próprio texto. Partindo-se dessa ideia, considera-se

que a maneira como os alunos justificam suas escolhas de palavras-chave para a

interpretação textual pode estar sendo influenciada por questões de contexto que

incluem tanto fatores sociais quanto interculturais.

2.2.3 A competência discursiva

Na visão de Canale (1995) a competência discursiva está relacionada ao modo

como se combinam formas gramaticais, estruturas e significados para produzir e

compreender um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. É a partir da

competência discursiva que o usuário estabelece relações textuais intra e intertextos.

Segundo Halliday (1985), a descrição de uma língua e a análise de textos não

são – ou não deveriam ser – duas operações distintas ou não relacionadas. Ao contrário,

são dois aspectos da mesma tarefa interpretativa que acontecem lado a lado. Para o

autor, textualmente, os elementos da língua organizam-se para a produção de uma

mensagem, dividindo-se em dois aspectos55

:

55

Moura Neves (2001) explica os termos tema e rema da seguinte forma: “Enquanto mensagem a oração

se compõe de tema – o ponto de partida da mensagem – e rema, a mensagem propriamente dita. O tema é

geralmente a peça recuperável, ou dada, da informação, enquanto o rema, é em geral, a parte nova, a parte

que o usuário apresenta como de impossível recuperação, seja no texto, seja na situação” (MOURA

NEVES, 2001, p. 33).

99

1. o tema: que seria o ponto de partida da mensagem, aquele sobre o qual o

conteúdo é produzido ou do que se fala. É o elemento com função de foco da

sentença (o rótulo é funcional e não depende necessariamente da posição na

sentença) numa determinada estrutura organizacional. Assim, parte do

sentido da sentença depende do elemento escolhido como tema. Em outros

termos, elementos com função de foco da sentença podem assumir a posição

de tema, quando é deles que se fala. (p. ex., na frase: “Se a princípio você

não for bem sucedido” – o elemento principal aqui, ou o tema, é a condição

exposta pela conjunção ‘se’ (HALLIDAY, 1985, p. 51));

2. o rema: aquilo que se fala sobre o tema ou o que se desenvolve enquanto

informação sobre o objeto referido. É o desenvolvimento do tema. De acordo

com a proposta do autor, o tema geralmente apresenta-se primeiro na

sentença e depois vem o rema organizando a estrutura da sentença em partes

para análise.

Dentro dessa estrutura, processos semânticos simultâneos ocorrem dando a ela

aspectos de experiência, de troca interativa ou de mensagem. Ou seja, a oração acaba

sendo identificada com um tema, um sujeito e um agente num complexo que faz com

que funções comunicacionais, sintaxe e semântica, estejam em constante interação.

A estrutura tema-rema é a base da organização da sentença como mensagem.

Essa construção pode-se dar em vários níveis: na frase, no parágrafo, no texto, e todos

eles inter-relacionados constroem a ideia de sentido textual. Todos os componentes das

metafunções da linguagem expostas por Halliday (1985) – ideacional, textual e

interacional – auxiliam na construção total do tema, por vários aspectos:

a) o elemento ideacional revela que, no tema, há sempre um conteúdo que pode

incluir processos, participantes, ou circunstâncias;

b) o elemento textual que pode ter qualquer combinação no tema: i) continuativa –

sinais que assinalam que a interação está em percurso tais como sim, agora, oh etc.;

ii) estruturais – elementos temáticos tais como pronomes relativos que auxiliam na

ligação dos elementos do texto; iii) conjuntivas – elementos que impõe algum

sentido dentro da sentença e que são importantes para a sua compreensão, tais como

as conjunções;

c) o elemento interpessoal que garante a troca de interlocutores tais como

vocativos, perguntas simples de sim e não, entre outros.

100

Reitera-se aqui que, para Halliday (1985), a estrutura temática pode ser dar no

nível da oração, da sentença ou do texto como um todo. Essas relações entre o elemento

de que se fala (tema) e o que se fala sobre isso (rema) se constroem numa relação de

continuidade textual. Em outros termos, os temas se interpõem numa cadeia de relações

se estendendo e incluindo temas anteriores e posteriores. Dentro da organização de um

parágrafo, por exemplo, haveria a sentença tópico – como um tema – e as sentenças de

apoio – como um rema. O autor afirma que “a organização temática das orações (e

complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o método de

desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67).

Para o autor, há uma conexão contínua entre a estrutura temática e as unidades

de informação fazendo com que o discurso se construa na língua. Essas “unidades da

informação” são denominadas por Halliday (1985) de relação dado-novo. Para ele, o

novo é aquilo que o interlocutor é convidado a perceber como elemento importante ou

inesperado, e o dado é aquilo que já foi apresentado ao interlocutor ou que ele já

conhece. Essa estrutura tem a especial função de guiar o leitor para interpretar a

estrutura do texto da forma pretendida pelo autor. O autor esclarece que as estruturas

dado-novo e tema-rema não são a mesma coisa, embora haja uma relação entre elas. O

tema é o que eu, falante, escolho como meu ponto de partida. O dado é o que o ouvinte

já sabe ou tem acessível quanto a conhecimentos da mensagem. Em suma, para o autor,

a relação de tema-rema é orientada pelo falante e a de dado-novo é orientada pelo

ouvinte (HALLIDAY, 1985).

Pode-se dizer que há um entrelaçamento constante entre os tópicos selecionados

pelo autor e aqueles usados para compreensão do leitor. Nessa relação, a interação da

leitura se constrói e os fios semânticos são tecidos (CAVALCANTI, 1989), produzindo

um sentido global para o texto (macroestrutura56

- DIJK, 1977a; 1977b).

Beaugrande e Dressler (1981) também afirmam que o texto se constrói numa

cadeia de informações que se relacionam de forma contínua. Para os autores, há uma

configuração subjacente ao texto (como elemento linguístico) – o “mundo textual”57

-

que permite o estabelecimento de laços e possibilidades dentro do texto, os quais podem

ou não ligar-se ao mundo real (tome-se o exemplo de textos fictícios: há um mundo

textual possível que se distancia do mundo real). Para os autores, a construção de

mundos textuais é uma atividade rotineira da comunicação humana porque para

56

Vide cap. 1.4.3 sobre explicação do conceito de macroestrutura. 57

Vide cap.1.4.3.1.

101

qualquer ato comunicativo construímos hipóteses, reconstruímos possibilidades,

relacionamos elementos.

Essa relação de elementos é permitida pela organização dos elementos em si e

pelas possibilidades que elas carregam no texto, fazendo com que novas informações

sejam sempre adicionadas, formando uma cadeia de relações que levam ao sentido. Dijk

(2002) afirma que

em cada ponto do discurso deve haver, pelo menos uma nova

informação, (nós não podemos repetir a mesma sentença

seguidamente), e que esta nova informação deve ser apropriadamente

ligada à informação antiga, a qual pode ser textual (introduzida antes

no mesmo discurso) ou contextual (derivável do conhecimento do

ouvinte sobre o contexto comunicativo e sobre o mundo em geral)

(DIJK, 2002, p. 48).

A competência discursiva (HYMES, 1995; CANALE, 1995; LLOBERA, 1995)

é justamente o elemento desenvolvido pelos usuários que permite que o texto seja

construído como uma concatenação de informações que interligam o exposto e o não

exposto – que pode ser inferido. Percebe-se, pela discussão acima, que o texto é uma

construção que expõe um sentido global pela ligação entre vários elementos, sejam eles

linguísticos ou extralinguísticos. Essa junção só é possível pela utilização e

engajamento dos interlocutores no (re)estabelecimento desse sentido.

No modelo de Celce Murcia (2007), a competência discursiva é um componente

central da competência comunicativa pois, para ela, a criação de textos como atos de

fala é o coração da linguagem. De acordo com a autora, a competência discursiva

refere-se à seleção, à sequenciação e à organização das palavras, estruturas e enunciados

para alcançar uma mensagem total. É nesse ponto que o conhecimento sociocultural e o

objetivo comunicativo entram em intersecção com os recursos léxico-gramaticais

(competência gramatical) para expressar mensagens e atitudes na criação de textos

coerentes (CELCE-MURCIA, 2007). A autora descreve algumas subáreas da

competência discursiva, tais como o encontro/estabelecimento de:

- coesão58

: convenções com relação ao uso de referência (anáfora/catáfora),

substituição, elipse, conjunções e redes lexicais;

58

Falou-se no cap. 1.2 sobre o conceito de texto e os princípios da textualidade. Dentre tais princípios, as

ideias de coesão e coerência foram discutidas com maior especificidade. Admite-se que tais conceitos,

enquanto princípios da textualidade, fazem parte da compreensão de texto dos usuários da língua ou da

construção de competência discursiva.

102

- dêiticos: base situacional alcançada por meio do uso de pronomes pessoais,

termos de espaço, e referências internas do texto (p. ex., ‘na tabela seguinte’, ‘a figura

acima’);

- coerência: expressão de propósito/objetivo por meio de um conteúdo adequado,

esquemas, organização das informações velhas e novas, manutenção da continuidade

temporal e outros esquemas de organização por meio de meios reconhecidamente

convencionais;

- estrutura de gênero: esquema formal que permite ao usuário identificar um

segmento do discurso como uma narrativa, uma entrevista, um encontro, uma palestra,

um sermão etc.

Percebe-se que o discurso pode ser concebido como uma questão de textualidade

(coesão, coerência, organização de gênero). No entanto, ele também pode ser percebido

como uma questão que envolve aspectos mais amplos de comunidade e formação

discursivas das quais um usuário faz parte.

Scollon e Scollon (2001) propõem três aspectos diferentes da construção do

conceito de discurso: a) a percepção das relações gramaticais e semânticas entre

sentenças capazes de construir um texto (p. ex. noção de coesão e coerência); b) a

consideração dos usos mais funcionais da língua em contextos sociais, tais como a

influência dos aspectos sociais e culturais na construção do sentido textual (p. ex., a

formação do gênero e seus aspectos sociais adequados); e c) a consideração de sistemas

mais amplos de comunicação os quais contém linguagens específicas de áreas com

posições ideológicas bem definidas e com formas de relações interpessoais entre

membros bem claras (p. ex., a posição dos sujeitos por meio de relações de poder, ou as

questões ideológicas implícitas no discurso). Para os autores, quatro características

definem um discurso como um sistema (SCOLLON; SCOLLON, 2001):

a) ideologia59

: os membros mantêm uma posição ideológica e reconhecem um

conjunto de características extra-discursivas que os definem como um grupo;

b) socialização: é alcançada primeiramente por meio de formas preferenciais de

discurso construídas dentro e fora de casa, em situações públicas, em contextos

governamentais e de negócios;

59

A ideologia, para Scollon e Scollon (2001), é vista como as características históricas, sociais e de

crenças de um grupo que interferem na forma como as relações sociais são compreendidas pelos

indivíduos dessa comunidade.

103

c) formas de discurso: um conjunto de formas preferidas de organização

discursiva serve como um guia ou símbolos de pertencimento do indivíduo a um grupo

e sua identidade60

;

d) as relações de face (identidade interpessoal dos indivíduos em comunicação

ou, em outros termos, a forma como eles se veem socialmente): são prescritas para o

discurso entre os membros da comunidade ou entre tais membros e os de fora61

.

Todas essas características concatenadas fazem com que o discurso seja uma

construção social e necessária para a ideia de comunicação. A partir da ideia das

relações semânticas entre palavras e frases, pode-se construir um sentido, o tópico

discursivo, que se liga a outros tópicos presentes na sociedade e que ecoam entre

falantes durante a interação da leitura.

Dijk (1977a) afirma que da mesma maneira que sentenças se combinam com

sentenças para produzir discursos, e esses, por sua vez, também se combinam com

outros discursos para produzir conversações e diálogos. Se o processo de leitura é

concebido como uma interação entre leitor e autor por meio de um texto, pode-se dizer

também que ali há um diálogo constante que é capaz de produzir novos sentidos. Tal

diálogo se dá, de forma relacional, pela relação entre diferentes discursos e que são

utilizados pelo leitor, por meio do uso de sua competência discursiva.

Ainda, na visão de Dijk (1977a), a categorização semântica do discurso deve

receber um nível de organização: o de macroestruturas, as quais são associações de

sentidos de sequências organizados hierarquicamente para formar sentido global. Em

particular, mostra-se que condições semânticas de coerência ocorrem em noções como

tópico da conversação e tópico do discurso. Estes últimos estariam relacionados ao

nosso comportamento linguístico e discursivo, capaz de demonstrar o assunto sobre o

qual trata o discurso ou parte dele. Isto é, somos capazes de produzir outros discursos,

ou partes de discurso, expressando esse “sobre algo”, assim como se faz quando se

estabelece sentido para o texto na produção de resumos, títulos, conclusões ou

pronunciamentos (de certa forma, o que se produz durante a interpretação de texto é um

novo discurso – ou parte dele -, a partir de um texto lido, permeado pelos sentidos

produzidos pelo leitor). Dijk (1977a) se preocupa em desvendar a questão que

60

Scollon e Scollon (2001) concebem identidade como uma construção que o indivíduo faz de si mesmo

baseada nas relações sociais que ele mantém. Em outros termos, o indivíduo percebe sua própria

identidade como pertencente aos grupos em que atua. 61

Do original: outsiders (tradução minha). A melhor tradução encontrada para o termo foi relacionada a

membros de fora de uma determinada comunidade.

104

possibilita que regras semânticas permitam a habilidade dos usuários da língua de

resumir um texto em um tópico principal.

Embora o autor trabalhe com uma abordagem discursiva e cognitiva para a

leitura, e não com a ideia de desenvolvimento da competência comunicativa, pode-se

dizer que, para ele, há uma ligação intrínseca e constante entre questões semânticas (o

que para Hymes (1995) estaria presente na competência gramatical) e questões

discursivas (o que para Hymes (1995) estaria presente na competência discursiva). Para

Dijk (1977a), as relações entre proposições e sentenças em um discurso não podem ser

descritas somente em termos semânticos e há uma ligação forte entre essas proposições

(por meio da repetição, p. ex., ou do uso do conhecimento de mundo do usuário) que

permite que conceitos sejam relacionados e uma macroestrutura global do texto seja

construída. Há uma organização hierárquica das informações do texto que vai se

sobrepondo e possibilitando o estabelecimento de um sentido geral e sentidos a ele

relacionados.

Em outra obra, Dijk (1977b) afirma que são os fatos linguísticos do texto que

apoiam a visão de construção de macroestruturas. Isso porque o texto contém sentenças

tópico e porque se usa pronomes e artigos definidos pressupondo a presença de

macroproposições. Ainda, pode-se ter macroconectivos no discurso que ligam uma

proposição a uma sequência geral ou a sequências gerais62

. Essa utilização e

possibilidade de formação de macroestruturas são permitidas pela existência dos frames

(vide cap. 1.4.4.1) que facilitam a representação do conhecimento e a ligação de

relações lógicas de ação e percepção.

O fato principal da discussão feita por Dijk (1997a; 1977b) é a percepção de que

as macroestruturas indicadas por ele possibilitam que o usuário da língua crie formas

textuais mais convencionais, ou discursos, que agem no estabelecimento da

comunicação textual. Tal comunicação é dada por meio do uso da competência

discursiva do falante, o que é justamente a proposta de Hymes (1995), Canale (1995),

Llobera (1995).

Tanto Dijk (1977a) quanto Hymes (1995), e ainda Celce-Murcia (2007), indicam

a necessidade de se perceber que há estruturas comuns no discurso que se compõem

como ações necessárias para o estabelecimento do processo comunicativo. Na visão de

62

É o que pode ter acontecido, por exemplo, na indicação da conjunção “mas” por um aluno como

palavra-chave: o intuito da escolha estava em abordar a oposição nítida apresentada entre os personagens

do texto. Fala-se mais sobre isso na análise de dados deste trabalho de tese cap. 4.1.1

105

Dijk (1977a; 1997b), essas estruturas são essenciais porque: a) cada texto é um

subconjunto do conjunto de ações discursivas que ocorre na comunidade; b) a

consideração cognitiva ou filosófica da ação humana deve ser geral em natureza e

pertencer a fatores discursivos da sociedade; c) textos são, em essência, ações

discursivas; e d) para cada cultura há limites semântico-pragmáticos no estabelecimento

de macroestrutura global (ou sentido global), os quais podem se tornar convencionais.

Isso significa que participantes não somente reconhecem propriedades específicas do

texto, mas também as tornam normativas para as demais ações discursivas que

vivenciam.

Considera-se, assim, neste trabalho de tese, a ideia inicial de competência

discursiva proposta por Hymes (1995), a partir da qual essa competência relaciona-se ao

modo em que os usuários combinam formas gramaticais e significados para

compreenderem um texto falado ou escrito em diferentes gêneros. Adiciona-se a isso o

fato de que há formatos sociais de texto, os gêneros, os quais são reconhecidos e

normatizados pelos usuários, fazendo com que se criem superestruturas textuais que

permitem a construção de sentido (DIJK, 1977a; 1997b). Ainda, considera-se que todo o

texto é um discurso e que com ele outros discursos interagem e envolvem questões tais

como cultura e ideologia, que auxiliam na formatação do discurso e interferem em sua

interpretação (DIJK, 1977a; SCOLLON; SCOLLON, 2001). A isso, vai-se denominar

daqui em diante competência discursiva.

2.2.4 A competência estratégica

Canale (1995) destaca que a competência estratégica compõe-se do domínio das

estratégias de comunicação verbal e não verbal que podem ser utilizadas para

estabelecer comunicação. As duas razões principais indicadas pela autora para a

proposição da existência dessa competência são:

a) compensar as falhas na comunicação devido a condições limitadoras na

comunicação real ou a insuficiente competência em uma ou mais das outras áreas da

competência comunicativa;

b) favorecer a eficácia da comunicação por meio do uso de recursos retóricos,

entonação, manutenção do laço comunicativo etc. Por exemplo, falar de forma lenta e

baixa deliberadamente com uma intenção retórica ou então, usar uma paráfrase como

estratégia, caso o falante não se lembre de uma palavra ou frase em específico.

106

Celce-Murcia (2007) também conceitua o termo competência estratégica como

um mecanismo, composto de diversos elementos, que o usuário da língua utiliza a seu

favor para produzir enunciados que cumpram com seus objetivos. Para tanto, alguns

tipos de estratégia são descritas:

a) cognitivas: essas são as estratégias o usuário faz uso da lógica e da análise

para ajudar a si mesmo a aprender a língua delineando, resumindo,

destacando, organizando e revisando materiais;

b) metacognitivas: envolvem o planejamento da aprendizagem separando

tempo de análise e estudo, autoavaliando a produção feita com vistas ao

objetivo proposto, e ao progresso alcançado. Ela é alcançada pelo

monitoramento e percepção dos erros que os alunos aprendem do professor e

do feedback dos colegas. Neste ponto o aprendiz compensa falhas de

conhecimentos parciais ou incompletos adivinhando significados de palavras

do contexto ou a função gramatical das palavras a partir de pistas formais;

c) relacionadas à memória: estratégias que ajudam aprendizes a lembrar ou a

recuperar palavras pelo uso de acrônimos, imagens, sons ou outras pistas.

Nessa visão, o uso da competência estratégica pode ser tanto algo inconsciente

(cognitivamente - automatizado por meio de conhecimentos linguísticos, discursivos ou

socilinguísticos) quanto algo realizado de forma consciente (metacognitivamente – em

que o leitor seleciona ações planejadas e pensadas para realizar interação com a língua).

No que diz respeito à leitura (vide cap. 1.5), Kato (1999) também propõe o uso

de estratégias, por parte leitor, para que esse processo seja desenvolvido de forma

efetiva. Para a autora, é na aprendizagem de habilidades conscientes (metacognitivas)

que o leitor desenvolve proficiência leitora automatizando seus conhecimentos

(habilidades cognitivas) e fazendo ligações durante a leitura.

Existe, portanto, uma ligação intrínseca entre as estratégias cognitivas e

metacognitivas. A proposta de Hymes (1995) considera a competência estratégica como

habilidade de compensar falhas de qualquer tipo de conhecimento para não quebrar a

comunicação entre usuários da língua. Sendo assim, a aprendizagem das estratégias e a

sua automatização fazem parte do desenvolvimento da competência estratégica e

auxiliam na efetivação das atividades comunicativas dos usuários da língua. Celce-

Murcia (2007) também destaca a utilização de estratégias tais como:

- realização: aproximação, circunlocução, alternância de códigos, mímicas etc.;

107

- protelar ou ganhar tempo: uso de frases do tipo: “onde eu estava mesmo?”;

“você poderia repetir?”;

- o auto-monitoramento: usar frases que permitem a auto correção tais como:

“quer dizer...”;

- interação: apelos para esclarecimento, negociação de significados, ou que

envolvam a compreensão e a checagem da confirmação;

- social: (no contexto de aprendizagem de língua estrangeira) a procura por

falantes nativos para praticar, ativamente procurando oportunidades de usar a língua

alvo.

Ou seja, a competência estratégica seria o desenvolvimento de formas de

utilização da língua que permitem ao usuário manter a comunicação e alcançar seus

objetivos. No caso específico da leitura e tendo como pressuposto que este é um

processo estratégico (vide cap. 1.5), deve ser lembrado que há um conjunto de

habilidades necessárias para utilização dos conhecimentos para que se produza de fato

interação com o texto.

Dijk e Kintsch (1983) destacam que no processo estratégico não há um sucesso

garantido na formulação e nem uma única representação do texto. Para o autor, aplicam-

se hipóteses de trabalho sobre o ato comunicativo (discursivo na visão do autor) em que

estruturas e significados interagem no processamento de construção de sentido.

Ainda na visão de Dijk e Kintsch (1983), há várias estratégias usadas na

produção, compreensão, e reprodução do discurso. Parte dessas estratégias pode ser

chamada de linguísticas especialmente as que ligam a superfície sentencial e textual às

representações semânticas subjacentes. Outras envolvem o uso de conhecimento de

mundo, conhecimento episódico, opiniões, crenças, atitudes, interesses, planos e

objetivos. Hymes (1995), de certa forma, corrobora com essa ideia ao afirmar que a

competência estratégica atua em consonância com as competências linguísticas,

sociolinguísticas e discursivas, criando mecanismos associados a cada uma dessas

habilidades para interagir no ato comunicativo.

Percebe-se, portanto, que a construção do conceito de competência estratégica

está ligado não a uma habilidade específica, mas às outras três competências

(gramatical, sociointercultural e discursiva) de forma constante e não hierárquica.

Quando o usuário apreende determinadas formas de compensar conhecimentos não

adquiridos para estabelecer comunicação, ele também está atuando sobre seu próprio

aprendizado para tornar-se comunicativamente eficiente.

108

Destaca-se aqui que a leitura pode ser entendida como um conjunto de

habilidades que envolvem estratégias de vários tipos (ou seja, a leitura é considerada um

processo estratégico conforme discutido no cap. 1.5). De acordo com Kato (1999), o

leitor constrói mecanismos variados – as estratégias – para ler e restabelecer sentido do

texto. Nessa construção, ele pode utilizar fatores linguísticos (destacar sintagmas ou

parcelas de informação sintática ou semântica do texto); fatores textuais (p. ex.

estabelecer ligações de sentido entre referentes ou construir coerência); fatores

extralinguísticos ou pragmáticos (avaliar a consistência das informações de acordo com

a realidade). Essa visão de leitura como um processo estratégico (SOLÉ, 1998; DIJK;

KINTSCH, 1983; DIJK, 1977a; KATO, 1999) corrobora com a ideia do usuário da

língua precisar desenvolver um tipo de competência específica, a estratégica (HYMES,

1995; CANALE, 1995; HORNBERGER, 1995; CELCE-MURCIA, 2007), para criar

sentidos na língua, o que no caso deste trabalho, referem-se aos sentidos textuais.

Reitera-se que a questão principal estabelecida na noção de competência

estratégica como uma das dimensões da competência comunicativa é o fato de que

usuários da língua sempre manipulam as estruturas de superfície (palavras, frases,

orações), ou então informações pragmáticas do contexto (social e cultural) para avaliar,

(re)construir, encontrar sentidos.

Solé (1998) destaca que são as estratégias – ensinadas e aprendidas - que ajudam

a construir uma interpretação para o texto. Para a autora, elas devem ser desenvolvidas

como uma habilidade aprendida (ou como a competência estratégica, na visão de

Hymes (1995)) que leva o leitor a criar ações durante a leitura ou a comunicação com o

texto.

Destaca-se, agora, a importância da competência estratégica como parte

integrante da competência comunicativa do usuário, mais especificamente do leitor:

quais seriam as estratégias que o permitem utilizar seu acervo de conhecimentos para

construir sentido para um texto? Falar sobre todas as estratégias de compreensão

utilizadas pelos leitores seria impossível ou, minimamente, cansativo. No entanto, o que

se propõe para este trabalho é que o reconhecimento da palavra-chave para um texto

pode funcionar como um mecanismo de ativação – ou como uma estratégia - das várias

dimensões da competência comunicativa, permitindo ao leitor construir sentidos

textuais. Isso porque para que o leitor possa reconhecer uma ou mais palavras-chave do

texto, ele deve inserir nessa escolha um conjunto de sentidos construídos durante a

leitura. Ou seja, pensa-se que ele usaria a seleção da palavra-chave como uma estratégia

109

para diferentes ações tais como: lembrar-se do assunto abordado pelo texto (estrutura

tema-rema), focalizar a relação dado-novo, identificar aspectos culturais e ideológicos

do texto, destacar aspectos linguísticos importantes para a construção de um sentido

principal (tais como selecionar verbos de um determinado campo semântico ou

adjetivos que caracterizem as descrições realizadas no texto), entre outras.

No entanto, que aspectos estariam envolvidos no conceito de palavra-chave e o

que permite que ela seja considerada como uma estratégia de leitura? Discute-se, assim,

na próxima seção, o conceito de palavra-chave para este trabalho de tese.

2.3 A PALAVRA-CHAVE

Reiterando: para interpretar um determinado texto, as relações linguísticas e

extralinguísticas ali presentes tornam-se cruciais para que o leitor possa estabelecer uma

interação com o autor por meio da página escrita, estabelecendo para ela sentidos. Pode-

se concluir que, pela explanação realizada, as palavras de um texto e suas relações com

as demais palavras selecionadas pelo autor contribuem para a interpretação. Mas de que

maneira algumas palavras de um determinado texto se destacam nessa relação de

sentidos e auxiliam na interpretação? O objetivo dessa seção concentra-se na elaboração

do conceito de palavras-chave (itens lexicais chave – CAVALCANTI, 1989), as quais

são capazes de tecer fios semânticos interpretativos e fornecer as principais ideias

presentes em uma manifestação textual.

Antes de iniciar a conceituação de palavras-chave, é importante observar o que,

convencionalmente, é chamado de palavra e de item lexical. Para Kempson (1980), o

termo palavra deve ser reservado para a manifestação concreta de elementos

morfológicos, fonológicos e semânticos em combinação fazendo com que tal arranjo

produza um determinado elemento verbal. Em outro plano, aquilo que se encontra

registrado no léxico com diferentes sentidos particulares seria o item lexical, como o

que, por exemplo, acontece com a palavra ‘manga’ que tem, no mínimo, dois registros

de itens lexicais: um como a fruta, e outro como parte de uma roupa. Ou seja, para a

autora, a caracterização do significado do item lexical é feita em termos de uma única

representação semântica para cada item. A autora fornece o exemplo do item lexical

‘correr’, que deve ser representado distintamente, para as sentenças:

1) Ele correu na São Silvestre.

2 ) O carro está correndo bem.

110

Embora em ambas as sentenças possa-se perceber um componente semântico em

comum (movimentar-se de um lugar para outro), elas apresentam uma distinção clara

quanto à maneira de realização do verbo ‘correr’. Na sentença (1), tem-se característica

de movimento corporal do ser humano, e na (2) de um movimento passivo em que o

carro recebe uma ação humana. O falante do português consegue estabelecer essa

diferença pela manifestação desse item lexical nas sentenças acima. Isto quer dizer que

embora o item lexical ‘correr’ tenha um significado - ou vários – intrínseco(s) a ele, a

sua manifestação em uma sentença ou texto e as relações com as demais palavras ali

encontradas fornecem os componentes semânticos que ele pode ou não ter.

Castilho (2010) também procura conceituar ‘palavra’ num âmbito de discussão

sobre o léxico do falante. Para o autor, a palavra é tida como um elemento que dispõe de

características fonológicas (apresenta um esquema rítmico), morfológicas (apresenta

uma organização dada por morfemas), sintáticas (é organizada em um dado sintagma),

semânticas (repassam uma ideia) e gráficas (vêm separadas por vírgulas ou espaços em

branco). Já os itens lexicais seriam aqueles que, por convenção, estão registrados no

léxico, o qual o autor define como: “um conjunto de categorias cognitivas e traços

derivados que são representados nas palavras por meio da lexicalização63

(CASTILHO, 2010, p. 110).

Assim, há, no léxico, os chamados itens lexicais que são o produto de um

inventário de categorizações cognitivas com traços semânticos próprios. Esse inventário

é virtual, ocorre anteriormente à sua utilização e, na condição de usuários de uma

língua, lança-se mão desse inventário para a criação de palavras, o que o autor chama de

lexicalização. Em outras palavras, o léxico, composto de itens lexicais, é pré-verbal e

nos permite usar o vocabulário, ou palavras, as quais são usadas como elementos

concretos pós-verbais. Deve-se chamar a atenção aqui para o fato de que se os itens

lexicais são pré-verbais e registrados mentalmente, eles concretizam-se em palavras e,

por isso, ocorrem tantos problemas ao conceituar um termo e outro. De fato, utilizam-se

itens lexicais registrados cognitivamente para a expressão e comunicação social, e a

concretização desses itens com características fonológicas seriam o que Castilho (2010)

denomina ‘palavras’. Ou seja, pode-se dizer que palavras e itens lexicais seriam duas

faces do mesmo elemento: o léxico.

63

Lexicalização para o autor é entendida como “o processo por meio do qual conectamos o léxico,

entendido como um inventário pós-verbal, a um conjunto de produtos concretos, ou seja, as palavras”

(CASTILHO, 2010, p. 110)

111

O autor chama a atenção ainda para o fato de que, durante a interação verbal

com a língua, o falante toma decisões sobre como usar seu léxico mental por meio dos

itens lexicais registrados, e como adaptar, ativar ou desativar as propriedades

semânticas ali presentes para se comunicar. Nesse sentido, a lexicalização, ou a

verbalização do léxico, não é individual, mas social, o que implica que tal fenômeno

ocorra associado a sentidos culturais, sociais, enciclopédicos construídos e armazenados

pelos usuários da língua.

Antunes (2012) corrobora essa ideia e afirma que

as palavras que ocorrem em um texto não cumprem apenas a função

de ‘significar’; elas não são relevantes, apenas, porque carregam um

determinado significado. São parte constitutiva de uma armação que

dá sustentação à unidade do texto, e, portanto, interferem em sua

coerência (ANTUNES, 2012, p. 66).

Isto significa que não se deve olhar apenas para o significado literal das

palavras, mas para suas relações no texto capazes de formar uma unidade total. A autora

ainda aborda o fato de que a utilização do léxico para expressão de sentidos textuais se

dá não apenas pela escolha das palavras em si, mas também para que o autor possa

expor seus objetivos e o leitor, por sua vez, seja capaz identificá-los durante a leitura.

Ou seja, o léxico refletido na seleção das palavras é capaz de codificar sentidos culturais

e sociais aliados às questões linguísticas.

Numa visão similar em que cultura e ambiente social influenciam na

concretização lexical, Biderman (2001) postula que cada comunidade traduz, em sua

língua, a sua visão do mundo e a realidade que lhe é própria por meio do léxico e da

gramática. Pode-se dizer, então, que a realidade da comunidade linguística vai sendo

traduzida e codificada no léxico da língua. Ao procurar discorrer sobre o conceito de

‘palavra’, a autora afirma que tal denominação depende da sua caracterização dentro da

comunidade linguística. Assim, para ela:

a nossa tese é a de que não é possível definir palavra de maneira

universal, isto é, de uma forma aplicável a toda e qualquer língua. A

afirmação mais geral que se pode fazer é que essa unidade

psicolinguística se materializa, no discurso, com uma inegável

individualidade. Os seus contornos formais situam-na entre uma

unidade mínima gramatical significativa – o morfema – e uma unidade

sintagmática maior – o sintagma. Pode-se afirmar também que a velha

gramática grega não estava errada, ao considerar que a sentença é

composta de palavras (BIDERMAN, 2001, p. 115).

112

De acordo com a autora, para que se delimitem as unidades léxicas dentro de

cada língua, deve-se partir de critérios fonológicos, gramaticais (morfossintáticos) e

semânticos. Nos critérios fonológicos, deve ser possível observar na unidade léxica uma

sequência fônica para a sua concretização que impõe a ela limites de início e fim.

Acentuações e pausas são partes importantes da delimitação da palavra. No que diz

respeito aos critérios gramaticais, considera-se a classificação da palavra de acordo com

critérios morfológicos e sintáticos e a função por ela exercida na sentença. Como

critérios semânticos, considera-se que cada palavra deve ter um valor de significação no

interior da língua. Tal critério é a chave decisiva que identifica a unidade léxica

expressa no discurso. A autora admite ainda que as unidades léxicas (ou lexemas)

podem e, de fato, são caracterizadas no interior de cada língua, mas deve-se considerar

o todo e os significados globais do enunciado e do discurso para determinação do item e

de seus significados.

Outro autor que procura trabalhar na conceituação dos itens lexicais e na

representação de seus sentidos é Cruse (1987). Para ele, uma forma de conceituar item

lexical - usada na maioria dos dicionários -, seria: i) por sua forma (fonológica e

gráfica); ii) por sua função gramatical; e iii) por seu significado. O autor considera três

aspectos da delimitação do item lexical:

a) Delimitar a forma do item lexical sintagmaticamente, isto é, conseguir

definir em uma sentença onde estão os limites entre os itens lexicais;

b) Observar que muitos deles operam diferentemente em uma variedade de

ambientes gramaticais, por exemplo, a palavra ‘abaixo’ pode funcionar como

preposição de localização ou como verbo;

c) Separar os itens lexicais pelo caráter semântico, mesmo dentro da mesma

forma, como por exemplo, a palavra ‘banco’ pode significar tanto a

instituição financeira, quanto, o objeto utilizado para sentar-se.

De acordo com Cruse (1987), um determinado item lexical mantém relações

contextuais com outros itens, ou seja, “o significado de uma palavra é refletido nas suas

relações contextuais” (CRUSE, 1987, p. 16). Isso quer dizer que o item lexical em si e

as relações de contexto que ele assume em determinada sentença ou texto são

mutuamente influenciáveis e interdependentes, fazendo com que o leitor olhe para tal

item dentro desse contexto específico. Em outros termos, para Cruse (1987), o item

113

lexical ganha sentido na interação com os outros itens da sentença e os seus

constituintes semânticos são construídos nessa interação.

No entanto, é importante dizer aqui que não se pode apoiar a ideia de que o item

lexical não apresenta características internas e que só ganha significado a partir dos

outros itens. Cada item lexical tem, de fato, significado por si mesmo, ou seja, o

significado literal (OLIVEIRA, 2008; ULMMANN, 1964). Por outro lado, admite-se

que esses significados internos, em determinados contextos, como em um texto

específico, por exemplo, constroem sentidos maiores e mais completos, os quais o leitor

não pode deixar passar incólumes para a construção do processo interpretativo. Para a

compreensão de um item lexical o leitor deve, assim, partir do sentido primário ou

literal (OLIVEIRA, 2008) e procurar perceber na relação com outros itens textuais os

sentidos ali estabelecidos.

Alguns autores adicionam ao conceito de item lexical, uma correlação semântica

com outras palavras do código. Para Lyons, (1977) pode-se dizer que os lexemas -

termo utilizado pelo autor para se referir a item lexical - e outras unidades

semanticamente relacionadas dentro de um dado sistema linguístico, pertencem a um

mesmo campo semântico ou são membros dele, o que significa que eles relacionam-se

entre si semanticamente. Na visão do autor, o significado das palavras e frases é

apreendido e mantido pelo uso da língua em situações de comunicação. Para ele, os

lexemas não possuem uma única forma, mas são entidades abstratas associadas a um

conjunto ou mais de formas. Por exemplo, as palavras ‘digo’ e ‘disse’ seriam ambas

formas do mesmo lexema: o verbo ‘dizer’. Em suma, pode-se dizer que “lexemas são as

palavras e sintagmas que um dicionário registraria sob entradas separadas” (LYONS,

1977, p. 28).

Percebe-se, a partir da discussão acima, que as palavras relacionam-se a outros

elementos no interior da língua e a partir dessa relação sentidos podem ser construídos.

Ou seja, há uma relação próxima entre palavras que ocorrem num mesmo contexto para

a produção de sentidos. Nesse sentido, Miller (1981) afirma que questões sintáticas e

semânticas dos itens e suas relações linguísticas influem nas interpretações que lhes são

dadas. Para o autor, as definições das palavras sempre vêm, de uma forma ou outra,

juntamente com as sentenças em que estão, ou seja, as interpretações dos traços

semânticos das palavras devem ser dadas a partir das sentenças em que se inserem.

Tudo o que uma pessoa sabe ou acredita está armazenado em seu léxico mental e as

114

palavras que utiliza para se comunicar não são aleatórias, mas aparecem numa cadeia de

relações com outras que expressam sentido comunicativo.

Ullmann (1964), por sua vez, afirma que as palavras64

são elementos com

características fonológicas, sintáticas e semânticas, e embora tenham um significado

literal a elas sofrem a influência do contexto para o estabelecimento de seus

significados. Assim, os contextos em que uma palavra ocorre, ou seja, suas associações

em contextos imediatos e culturais são capazes de construir sentidos na comunicação.

Para o autor, “Todas as palavras, por muito precisas e inequívocas que possam ser,

extrairão do contexto uma certa determinação que pela própria natureza das coisas, só

pode surgir em elocuções específicas” (ULLMANN, 1964, p.109).

Pode-se dizer, então, que as palavras são entidades complexas, pois recebem

cargas culturais, emocionais e sociais de acordo com sua utilização e suas associações

contextuais. Assim, embora seus sentidos próprios também sejam ativados, o contexto

em que ocorrem é capaz de fornecer às palavras o significado de uso imediato. Essa

relação de sentidos possíveis deve ser recuperada pelo interlocutor ao interagir com o

texto escrito.

Antunes (2012) também dá destaque a essa relação de sentidos estabelecida

pelas palavras na produção de textos. Para a autora, as relações de sentido, no texto, são

significativas porque promovem a sua continuidade semântica. Sendo assim, é pela

configuração das palavras relacionadas entre si e pela representação linguístico-

cognitiva que se dá a elas que se pode estabelecer uma unidade semântica. A autora

afirma que “Não é o sentido particular de cada palavra que confere unidade ao texto. É a

rede de sentidos criada, explícita ou implicitamente, pelas palavras presentes à linha do

texto” (ANTUNES, 2012, p. 40).

Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos item lexical e palavra

e tendo em vista a discussão acima apresentada, considera-se: i) a ideia de Castilho

(2010), de que a utilização do léxico não ocorre independente dos sentidos culturais,

sociais e enciclopédicos trazidos pelo falante e ii) as palavras têm, de fato, um sentido

literal intrínseco a elas (ULLMANN, 1964; OLIVEIRA, 2008), mas, ao mesmo tempo,

assumem sentidos específicos em determinados textos pela configuração relacional dada

entre elas. Utiliza-se, assim, daqui por diante, o termo palavra65

para referir-se a

64

Utiliza-se o termo palavra por ser o termo usado pelo autor para sua explanação. No entanto observa-se

que o autor não teve a preocupação de diferenciar palavra e item lexical. 65

O uso de sublinhados neste trabalho de tese é para chamar a atenção ao conceito específico.

115

determinadas concretizações linguísticas daquilo que a comunidade linguística dos

falantes armazena socialmente e registra por itens lexicais. Essa concretização dos itens

lexicais em palavras é utilizada em contextos específicos (como nos textos a serem

trabalhados com os alunos). Em outros termos, palavras e itens lexicais são ambos parte

do léxico: os itens lexicais contribuem com seu significado intrínseco, pré-verbal, e

assumem sentidos na cadeia de relações semânticas entre palavras na manifestação

textual.

Destaca-se, com isso, que, ao usar o termo palavras-chave66

, neste trabalho,

admite-se que tais palavras referem-se a itens lexicais que possuem um inventário de

caracterizações cognitivas com traços semânticos definidos para além da mera junção

de elementos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos.

Fala-se, ainda, neste trabalho, sobre dois termos importantes e que ainda não

foram devidamente explanados: significado e sentido. Conforme se discutiu, para Lyons

(1977), o lexema é composto de um significado que não acontece sozinho, mas está

ligado aos significados de outros lexemas. A partir dessa associação, o sentido da

expressão é produzido como afirma o autor: “o sentido de uma expressão é uma função

dos sentidos dos lexemas que a compõem e da sua ocorrência numa construção

gramatical particular” (LYONS, 1977, p. 170). O autor ainda afirma que sentidos teriam

a ver com referência, a qual é a relação existente entre uma expressão e aquilo que ela

designa ou representa em ocasiões particulares de enunciação. Assim, a referência seria

os sentidos produzidos por um item lexical (lexema) em contexto.

Ao discutir questões relativas ao significado, Ullmann (1964) considera que os

diferentes elementos linguísticos possuem algum tipo de significado. Morfemas, por

exemplo, são significativos, assim como as combinações mantidas por eles. Todos os

significados dessas combinações desempenham seu papel na construção de um

significado total para a expressão. O autor sugere três termos para a configuração de

significado: a) nome: que seria uma configuração fonética da palavra, os sons que a

constituem além de outros aspectos fonéticos, tais como o acento; b) sentido: que seria a

informação que o nome comunica ao ouvinte; e c) coisa: aspecto ou acontecimento não

linguístico acerca do qual falamos. Para ele, todos esses termos estão em associação na

construção de significados tanto da palavra, quanto da sentença. Isso porque, na visão

do autor, a relação existente entre nome e sentido é recíproca e reversível e é a isso que

66

Fala-se do conceito específico de palavra-chave na sequência do trabalho.

116

ele chama de significado (ULLMANN, 1964, p. 119). A preocupação do autor está

voltada à discussão do significado referencial que trata justamente dessa relação

recíproca e reversível entre nome e sentido, considerando significados múltiplos e

relações associativas entre as palavras e não discute o significado operacional que trata

das coisas, ou da ocorrência da palavra na fala dos indivíduos de uma dada comunidade.

No entanto, deve-se atentar para o fato de que, neste trabalho, considera-se que a

ocorrência do item lexical em contextos específicos e que conhecimentos de mundo

(sociais e culturais) diversos influem na forma como o leitor interpreta um texto. Em

outras palavras, na visão proposta por este trabalho, as palavras teriam, além das

relações internas com outras palavras, um significado operacional no texto e na

comunidade de fala. Assim, com o intuito de padronizar a utilização dos termos -

significado e sentido - parte-se do pressuposto: i) de Biderman (2001), de que a

conceituação da palavra depende da sua caracterização dentro de uma determinada

comunidade linguística; e ii) de Ullmann (1964), de que palavras trazem inerentes a si

traços semânticos, que permitem a sua caracterização em dicionários, por exemplo.

Utiliza-se, desta maneira, o termo significado para o que está relacionado inerentemente

aos itens lexicais em si mesmos. Ainda considerando que: i) palavras não acontecem

aleatoriamente (LYONS, 1977; ULLMANN, 1964; MILLER, 1981; BIDERMAN,

2001), e que ii) sua associação com outras palavras é capaz de fornecer a ela sentidos

específicos (inclusive influenciados por fatores sociais e culturais), vai-se reservar o

termo sentido para aquilo que é produzido pelo enunciado específico em que um item

ocorre.

Chama-se atenção, agora, para a questão de que, para os objetivos desse trabalho

de tese, ao falar-se em palavras–chave, focaliza-se em determinados itens lexicais que

auxiliam na busca da unidade de sentidos para um determinado texto. Para alguns

autores da Linguística de Corpus (LC) (p. ex. SARDINHA 1999a; STUBBS, 2001),

uma das várias possibilidades de estudos linguísticos baseados em palavras-chave seria

a de identificar, por meio delas, os possíveis conteúdos discutidos em um texto.

Segundo SARDINHA (1999b) que teoriza a partir de uma perspectiva probabilística e

estatística da linguagem, as palavras-chave, por definição, são aquelas que possuem

uma frequência estatisticamente superior em um corpus de pesquisa em comparação a

um corpus de referência, e que, em conjunto, refletem a ideia principal do conteúdo

textual. Nessa perspectiva, a palavra-chave pode aparecer como um núcleo semântico

sobre o qual o pesquisador lança seu olhar, faz o seu recorte e procura perceber o que

117

ela revela dentro de seu corpus de pesquisa. Assim, a presente pesquisa concentra-se no

objetivo de perceber a influência da palavra-chave na interpretação de textos, mas se

distancia da área da Linguística de Corpus por não apresentar uma perspectiva

quantitativa da linguagem. Justifica-se a não opção por essa linha de pesquisa porque

não seria possível incluir aí a visão particular dos alunos na busca pela palavra-chave e

a sua interpretação para tais palavras, fato esse que se procura investigar na análise de

dados desta tese.

Entre os vários objetivos das pesquisas em LC, pode-se analisar o gênero de um

texto, as diferenças lexicais de ambiente linguístico em que uma determinada palavra

ocorre no corpus, ou ainda os padrões léxico-semânticos (ou padrões lexicais) de

ocorrências das palavras no corpus de pesquisa. Apresentam-se, nos próximos

parágrafos, algumas formas de discussão sobre tais padrões a título de exemplificação

de como uma palavra-chave pode ser analisada tendo em vista suas manifestações

linguísticas em determinados contextos.

Padrões lexicais são todas as regularidades que acontecem com uma palavra e as

associações que ela mantém e que fornecem a ela e ao seu contexto significados

importantes (STUBBS, 2001). Autores da área (SARDINHA, 1999a; 2000a; STUBBS,

2001) procuram definir os padrões lexicais de uma palavra a fim de encontrarem no uso

da língua informações que revelem seus comportamentos linguísticos. Na maioria das

vezes, é por meio destes padrões lexicais que os pesquisadores têm a possibilidade de

identificar ambientes linguísticos importantes para o significado das palavras. Neste

campo de pesquisa (SINCLAIR,1991; PARTINGTON,1998; SARDINHA, 2000c), as

ocorrências dos padrões se distribuem em três grandes grupos: colocação, coligação e

prosódia semântica.

A colocação baseia-se no item lexical associando-o ao cotexto67

, ou seja, refere-

se a uma relação sintagmática entre as palavras, ou em outros termos, à coocorrência de

itens lexicais em uma frase ou texto. Por exemplo, o item lexical ‘causar’ tende a (co)-

ocorrer de maneira mais frequente com itens tais como ‘problemas’, ‘prejuízo’, ‘danos’,

‘morte’, ‘impacto’, como mostra o exemplo:

1) O vendaval causou grandes prejuízos para a população do local;

67

Co-texto: seria o ambiente verbal imediato em que uma palavra acontece fazendo com que ela assuma

sentidos. (Koch, 2010)

118

Além da coocorrência, os itens lexicais podem associar-se gramaticalmente. Os

autores denominam essa associação de coligação. Mais especificamente, a coligação é a

companhia gramatical mantida pelo item lexical e as posições que ele geralmente tem

na sentença. Um exemplo de coligação (SARDINHA, 2000b), tomando por referência o

item lexical ‘só’ do português ilustra essa situação68

:

2) Eu só vi alguns cartazes por aí. (sentido de restrição, exclusão, seleção);

3) O PFL prevê que a tensão só vai diminuir após a volta de FHC. (sentido de

condição);

4) Ninguém lá faz benfeitoria. Só fazem filhos e feitiçaria (sentido de crítica).

A coligação ‘só + verbo’ fornece à palavra núcleo como em 2, um sentido de

restrição, exclusão e seleção. Já a coligação ‘só + vai’ indicando futuro assume o

sentido condicional como em 3 e a coligação ‘só + faz,’ ‘fazem’ assume o sentido de

crítica como em 4. O autor explana sua posição baseado em ocorrências retiradas de seu

corpus de pesquisa e esses exemplos são apenas algumas das coligações mantidas pelo

item lexical ‘só’. Outras possibilidades ainda são discutidas no estudo, inclusive

comparando exemplos da fala e da escrita.

Destaca-se que é necessário reparar na interligação dos padrões para que se

produza sentido, ou seja, a coligação ou a colocação por si só não podem garantir o

significado de uma palavra núcleo ou o sentido da sentença em que ocorre. A coligação

do item lexical ‘só’ com verbos, por exemplo, não é capaz de fornecer significados

gerais da palavra, mas se dissermos que ela ocorre com um determinado tipo de verbos

pode-se ter uma ideia de seus possíveis sentidos.

Desse modo, além da colocação e da coligação, os itens lexicais também podem

se associar por meio de um uso frequente em determinado ambiente semântico, a

prosódia semântica (SARDINHA,1999ª; 2000b). A prosódia semântica é exatamente a

carga semântica que esse item assume a partir das suas associações mais frequentes.

Esse fenômeno pode levar o item a receber uma carga semântica tanto negativa, quanto

positiva ou neutra a depender das palavras com que mais frequentemente aparece e das

suas cargas semânticas. Por exemplo, o item lexical ‘acontecer’ tem uma prosódia

semântica que poderá ser tanto negativa quanto neutra, dependendo do contexto em que

68

Exemplos extraídos de um estudo de caso da língua portuguesa feito por Sardinha (2000a)

119

ocorre ou da carga semântica das palavras que coocorrem com ele. Assim, quando

acompanhado por itens que não contém um conteúdo semântico nítido, como ‘coisa’ e

‘algo’, será neutro:

5) Algo aconteceu para que ela tenha mudado sua opinião;

Porém se acompanhado de palavras como ‘crime’ e ‘acidente’ o efeito é

negativo, pois tais palavras têm características semânticas socialmente negativas:

6) Um crime horrível aconteceu no bairro noite passada 69

;

A determinação da prosódia semântica não só depende do que o próprio item

lexical traz em si, mas também do contexto e das palavras associadas com as quais

aparece. Ou seja, a palavra recebe determinadas características semânticas a partir da

relação linguística com outras, as quais, por sua vez, caracterizam o ambiente

linguístico, positivo, negativo ou neutro, em que se inserem.

Nota-se que os três padrões podem fornecer insumos lexicais, sintáticos e

semânticos para a interpretação de palavras e destas nas sentenças em que

frequentemente ocorrem. Isso acontece porque o nosso conhecimento não está

relacionado somente a palavras individuais, mas às suas combinações e ao

conhecimento cultural nelas enxertado (STUBBS, 2001)70

. Segundo este autor, às vezes

uma palavra pode acionar esquemas ou referências a outras palavras correlacionadas a

ela, podendo-se extrair dessas combinações a identificação do assunto do texto. Ele

parte da ideia de que o significado está disperso entre as palavras que coocorrem no

texto e que elas compartilham características semânticas (STUBBS, 2001, p. 63). Ou

seja, a partir das palavras e seu ambiente é possível descrever significados mais

extensos e que não fazem parte apenas do significado primário de uma determinada

palavra71

.

Utiliza-se aqui o exemplo dos padrões lexicais da colocação, coligação e

prosódia semântica, para demonstrar que a distribuição das palavras observadas em um

69

Os exemplos 5 e 6 são de minha autoria. 70

A questão do componente cultural e do conhecimento de mundo foi discutido também no cap. 1.4.3 do

presente trabalho. 71

Embora o autor não faça a conceituação entre palavra e item lexical, observa-se que ele utiliza o termo

palavra com o mesmo sentido que se usa nesse trabalho: como a concretização dos elementos listados no

léxico dos falantes da língua.

120

corpus, pode fornecer subsídios linguísticos interessantes para o auxílio à identificação

dos tópicos dos textos, proporcionando uma base empírica para sua interpretação

(STUBBS, 2001). Isso acontece porque, ao ler um determinado texto, o leitor procura

estabelecer para ele um sentido a partir das relações linguísticas que ali são

estabelecidas e que incluem relações sintáticas, semânticas, pragmáticas, textuais e

também discursivas. Entretanto, deve-se notar que os padrões, per se, não dariam conta

de explicar de que forma as palavras utilizadas para a construção de determinadas

sentenças são capazes de revelar sentidos culturalmente construídos e que fazem com

que o leitor ative esquemas mentais (DIJK, 2002; KRAMSCH, 1993) específicos dessa

cultura. Como se disse, a perspectiva de estudos da LC é quantitativa e empírica e

procura, na frequência de ocorrência, questões linguísticas intrínsecas às palavras, não

se preocupando com a maneira pela qual essas relações influem na interação entre autor

e leitor.

O que Sardinha (1999a; 2000c), no campo empírico e probabilístico da

Linguística de Corpus, denomina palavras-chave, para Cavalcanti (1989), teorizando

no campo da Linguística Aplicada (língua estrangeira) são itens lexicais chaves. A

autora parte do pressuposto de que problemas de interpretação de textos em língua

inglesa estão relacionados a sinais-chave: os denominados itens lexicais chaves. Para

ela,

[...] os itens lexicais chaves são um elo de ligação entre leitor e texto e

entre as suas características; a partir deles e da sua relação com outros

itens lexicais do texto, molduras, esquemas e valores são ativados pelo

leitor. O conceito de um elemento chave no texto depende

imediatamente dos outros itens a ele associados, fazendo com que a

integração das palavras estabeleça um sentido para o texto.

(CAVALCANTI, 1989, p. 81).

A autora afirma ainda que itens lexicais chaves são expressões cujo significado

baseia-se no contexto no qual eles são usados, ou seja, são caracterizados na relação

com outros itens identificados. O argumento da autora é que:

[...] itens lexicais chaves centralizam informação que tem relações

diretas no texto e relações pragmáticas indiretas na interação leitor-

texto. Eles servem como espinha dorsal para o estabelecimento de

conteúdo proposicional e força ilocucionária, ativam estruturas de

conhecimento (esquemas ou frames) e os sistemas de valores do leitor;

e subjazem à construção do pressuposto em relação ao todo ou parte

do texto (CAVALCANTI, 1989, p. 75).

121

O que se quer dizer com isso é que a observação de itens lexicais chaves é

essencial no processo interpretativo auxiliando na ativação dos esquemas (vide item

1.4.4.1 deste trabalho) e ainda centralizando informações textuais importantes para a

compreensão.

Associados aos itens lexicais chaves aparecem outros itens72

- denominados por

Cavalcanti (1989) de associativos, contextualizantes e iterativos - os quais são

responsáveis pela indicação do conteúdo semântico, da coesão textual, de como as

orações se relacionam entre si e, ainda, servem como ponto de apoio para o leitor no

estabelecimento da força ilocucionária e do conteúdo proposicional do texto. Para que

itens sejam considerados chaves, na visão de Cavalcanti (1989), devem apresentar

algumas características básicas:

a) Não podem ser itens isolados. Eles vêm com outros itens dentro do texto (p.

ex. associativos e generalizantes);

b) Aparecem repetidas vezes no texto e guiam o leitor através da organização

retórica;

c) Ativam potenciais estruturas de conhecimento do leitor e são resultado da

escolha cuidadosa do autor;

d) São alvos de modificação através de itens restritivos (ex. adjetivos ou

palavras com essa função);

e) Associam-se aos itens associativos (de coocorrência frequente) para construir

coesão lexical – se relacionam semanticamente com tais itens;

f) Apoiam-se a itens iterativos, os quais são aqueles que concretizam a

repetição dos itens lexicais com base na referência ou remissão;

g) Associam-se a itens contextualizantes, isto é, itens que auxiliam o leitor a

identificar intenções do autor – ex. modalizações, comparações,

generalizações – e estabelecem força ilocucionária ao texto.

Em outros termos, os itens lexicais chave, na visão da autora, teriam o poder de

ativar a interação do leitor com o autor por meio das relações linguísticas estabelecidas

no texto. Adicionadas às características acima, duas propriedades básicas são intrínsecas

aos itens lexicais chave: a propensão à saliência e à direcionalidade de âmbito.

72

A referida autora não utiliza o termo palavra-chave, mas item lexical chave. O termo escolhido para

análise de dados nesse trabalho é, no entanto, palavra-chave por se tratar da concretização específica de

um elemento lexical em contexto e situação específicos (vide conceito específico de palavra-chave ao

final desta seção).

122

A propensão à saliência seria a propriedade de um item lexical de ser localizado

e repetido em partes importantes do discurso, de servir de referente para manter a

coesão textual, de associar-se a outros itens lexicais chave, de ser modificado para

limitar sua interpretação e de ser incluído como membro importante de relações

clausais. Tal propriedade, na visão da autora, pode ser explicada em subitens da

seguinte maneira:

a) Localização: plano principal do discurso que focaliza o fenômeno em

questão (nível global); ou plano principal de uma oração como informação

dado-novo;

b) Colocação: coocorrência de itens comumente associados formando um

ambiente coesivo;

c) Iteração: é repetido nos planos do discurso pela repetição propriamente dita,

pelo uso de sinônimos ou quase sinônimos, uso de superordenados (ex. o uso

no texto do item ‘comportamento’ referindo-se a um item anterior como

‘desobediência’), uso de termos generalizantes (p. ex. o uso do item

‘pessoas’ ao invés de ‘estudantes’), referência pronominal e elipse;

d) Restrição: modificado para restringir seu significado (p. ex. o uso de

adjetivos) e limitar o escopo interpretativo (embora para a autora essa é uma

propriedade menos forte);

e) Relação: membro de relações de contraste, ou comparações, ou sequenciação

do tipo causa-consequência. (ex. coordenação e subordinação).

A segunda característica, da direcionalidade de âmbito, está relacionada à

propriedade de itens lexicais chaves de direcionar a ativação de esquemas e de sistemas

de valores do leitor. É essa propriedade que permite a delimitação do tópico do texto e a

determinação das intenções da comunicação presentes no texto e pode acontecer em três

perspectivas:

1) Semântica: o item supre insumo semântico que canaliza a ativação das

estruturas de conhecimento do escritor e do leitor em direção ao tópico do

texto. Ou seja, ajuda a canalizar as pressuposições e expectativas realizadas

durante as predições do processo de leitura;

2) Pragmática: direciona as intenções subjacentes potenciais no texto e ativa

sistemas de valores do leitor que baseiam a força ilocucionária do texto;

3) Semântico-pragmática: ativa estruturas de conhecimento e sistemas de

valores simultaneamente.

123

Reitera-se aqui que as palavras, embora tenham significados intrínsecos a elas,

ganham sentido nas relações que assumem nos textos em que ocorrem e que sua análise

pode revelar informações importantes presentes na manifestação textual. É o que

Cavalcanti (1989) faz em seu estudo. Ela procura demonstrar que os leitores de língua

estrangeira focalizam algumas palavras (“itens lexicais chave” na terminologia da

autora) dentro dos seus textos de estudo para produzir sentido textual e pragmático. Para

tanto, demonstra como tais itens interagem no texto e com o leitor para a produção de

interpretação numa negociação de sentidos entre autor e leitor por meio do texto. O

argumento da autora é que a centralização da informação textual é dada nas relações

semânticas que acontecem de forma direta no texto e ainda, nas relações pragmáticas

que acontecem indiretamente na relação leitor-autor (CAVALCANTI, 1989, p. 75).

Em sua pesquisa, ainda, a autora faz uma seleção dos itens lexicais chave numa

comparação entre as características dos itens por ela selecionados com os identificados

pelos leitores demonstrando a maneira pela qual os sujeitos da pesquisa os focalizam

durante a leitura para produzir sentidos. Como resultado, a pesquisadora propõe que, em

livros didáticos de língua estrangeira, assim como em LM, atividades de leitura incluam

questões como a identificação de itens lexicais chave como itens salientes do texto, os

quais devem ser estudados como elos semânticos e pragmáticos estabelecidos no texto,

assim como analisados no que diz respeito à organização retórica textual e ao conteúdo

proposicional. Isso porque, para ela, tais itens representam instrumentos úteis para

analisar o aspecto pragmático da interação dos informantes com o texto base.

Ainda em seu trabalho, a autora seleciona alunos de pós-graduação da

Universidade de Lancaster, que já estão convivendo com a leitura em língua estrangeira

(LE) há alguns anos. Isso quer dizer que sua proficiência em LE pode ser considerada

de bom nível, e pode ser, como de fato foi, comparada com a leitura em língua materna.

Embora as leituras tenham ocorrido em tempos distintos, os problemas e indicações dos

informantes não foram de grande diferença. De acordo com a própria autora, a

perspectiva dos itens lexicais chave pode também ser utilizada no âmbito da língua

materna, o que, de fato, acontece no presente trabalho. Esta pesquisa concentra-se

justamente na leitura em língua materna, partindo do pressuposto de que os itens

lexicais chave constituem-se como focalizadores de sentido(s) textual(is) e auxiliam na

construção de estratégias para a compreensão de textos.

Deve-se argumentar que a ocorrência de itens lexicais chave (ou como são

denominados, neste trabalho, palavras-chave) não é aleatória. Se fosse assim,

124

ferramentas computacionais, como os buscadores virtuais, não teriam sucesso algum, e

ainda a seleção de determinadas palavras como chave para a produção de textos

acadêmicos não faria sentido. Antunes (2012) destaca justamente o fato de que algumas

palavras aparecem em um texto com determinada saliência. Para a autora,

pensar nos efeitos decorrentes da escolha das palavras é reconhecer

que, em um texto, uma palavra expressa mais que um sentido; ela

serve também à expressão de uma intenção, de um propósito (às vezes

mais de um!), em função do que determinadas palavras (e não outras)

são particularmente escolhidas. (ANTUNES, 2012, p. 43).

Sendo assim, a escolha de uma palavra em si não significa que sozinha ela é

capaz de dar sentido a um texto todo, mas que ela lidera uma cadeia de relações

específicas como se fosse uma agulha costurando os pontos e amarrando partes para a

construção de uma roupa toda.

Na perspectiva da interação autor leitor via texto, Kleiman (2002), trabalhando

na perspectiva da língua materna, busca descrever aspectos que constituem a leitura, a

qual, para ela, é uma atividade complexa, que envolve processos cognitivos e na qual o

leitor deve estar engajado para construir sentido. Para a autora:

a compreensão de um texto escrito envolve a compreensão de frases e

sentenças, de argumentos, de provas formais e informais, de objetivos,

de intenções, muitas vezes de ações e de motivações, isto é, abrange

muitas das possíveis dimensões do ato de compreender, se pensamos

que a compreensão verbal inclui desde a compreensão de uma charada

até a compreensão de uma obra de arte (KLEIMAN, 2002, p. 10)

A autora explica que há uma série de conhecimentos que entram em jogo

durante a leitura: conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo (vide cap. 1) e que

tais conhecimentos são ativados por meio das palavras presentes no texto de forma

inconsciente. Isso significa que palavras não são simplesmente dados linguísticos, mas

são também insumo para ativações culturais e sociais da mente do indivíduo e que o

leitor faz inferências por meio das relações entre elas no texto. São essas inferências que

permitem a compreensão. Daí a importância de se analisar a forma como essas

interações entre palavras, leitor, autor e texto ocorrem linguisticamente na produção de

sentidos e consequentemente na compreensão textual, conforme discutido no cap. 1. E

ainda, a maneira como o usuário utiliza a língua como forma de expressão de sentido ou

125

construtora de sentidos linguísticos e extralinguísticos tal como discutido no conceito de

competência comunicativa neste capítulo.

Kleiman (2002) ainda afirma que o leitor, ao perceber algumas palavras

presentes no texto e as organizações entre elas, prevê muito daquilo que ele vai

encontrar no texto. Essa tarefa é importante na leitura, pois o auxilia na busca de

informações que confirmem previsões e hipóteses já realizadas. Como se vê no decorrer

deste trabalho, as palavras-chave são capazes de auxiliar o leitor nessa busca de

informações que confirmam expectativas e o ajudam a compreender melhor o texto.

Assim, os elementos formais do texto (p. ex. determinadas palavras, coesão, coerência)

funcionam como um elo que permite ligar as diferentes partes do texto semanticamente

para produzir sentido (KLEIMAN, 2002).

A autora afirma, ainda, que marcas formais do texto - tais como nominalização,

adjetivação, uso de elementos coesivos - auxiliam na reconstrução das intenções do

autor. Por exemplo, a utilização do advérbio ‘talvez’ relativiza o comprometimento do

autor com a verdade da afirmação, ou da conjunção adversativa ‘mas’ demonstra para o

leitor que há uma refutação ali implícita. O leitor não pode deixar tais marcas passarem

despercebidas, pelo contrário, ele deve estar ciente dessas marcas para a reconstrução de

sentidos. Assim, elementos lexicais do texto devem ser identificados para que se

construam posições argumentativas internas ao texto e objetivos implícitos sejam

determinados.

Em suma, Kleiman (2002) assume a postura de que há um esquema de

cooperação entre autor e leitor via texto (o que se denomina interação leitor autor –

CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002) que leva à construção de sentidos mediante o

encontro de marcas linguísticas específicas ou de saliências, tais como, coerência, itens

lexicais, coesão, ativação de conhecimento de mundo. Tanto para Kleiman (2002),

quanto para Cavalcanti (1989) e Antunes (2012), o autor faz escolhas conscientes das

palavras para a produção textual e o leitor, para interagir com o texto, procura nessas

escolhas a construção de sentidos internos e a posição do autor. As atitudes do autor e

do leitor perante o texto só podem ser percebidas/ construídas a partir dos traços

linguísticos que ali estão. É essa percepção de elementos linguísticos que auxiliam o

leitor a reconstruir um quadro referencial, hierarquizar informações, estabelecer coesão.

Kleiman (2002) não fala em palavras-chave propriamente ditas, mas admite a existência

de marcas lexicais que auxiliam o leitor na tarefa de dar sentido ao texto, o que reforça a

ideia de que atividades de interpretação que consideram a presença de marcas

126

linguísticas salientes podem, de fato, ajudar o leitor na compreensão efetiva e ainda,

levá-lo a um posicionamento mais consciente perante os argumentos expostos no

discurso sob leitura.

Da mesma maneira, Antunes (2012) também não conceitua o termo palavra-

chave, mas admite a importância da escolha de determinadas palavras para a construção

de sentido textual. Para a autora, as palavras não têm a função única de possuir um

significado intrínseco que se junta a outros significados. Para ela, as palavras são parte

constitutiva de uma rede de relações que sustenta a ideia de texto e interferem na forma

como se produz sentidos para ele. A autora afirma ainda que é importante, de fato, a

identificação de algumas palavras no texto, pois elas são capazes de se ajustar a

determinações semânticas e pragmáticas construídas no texto. Há, a partir das palavras

escolhidas, uma “operação interpretativa, reflexiva, que mobiliza, além de outros, o

conhecimento do léxico da língua” (ANTUNES, 2012, p. 83).

Ao que parece, esse reconhecimento do léxico perpassa as dimensões da

competência comunicativa explorada na seção 2.1. O léxico parece ser o elemento

utilizado para desenvolver tais competências e apreender formatos de uso da língua que

se adaptam aos objetivos dos usuários e estabelecem iteração comunicacional. Segundo

Antunes (2012):

Aplicar-se à análise de como os textos são construídos, são

estruturados e expressos em sequências, de quais recursos lexicais nos

valemos para torná-los capazes de funcionar como peças da interação

verbal é tentar compreender, também, a função das unidades lexicais

no exercício da linguagem verbal (ANTUNES, 2012, p. 91).

É justamente a compreensão das unidades lexicais na interação verbal do texto

que se procura investigar nesse trabalho. Admite-se que a seleção das palavras-chave é

um recurso estratégico utilizado pelos leitores para construir um sentido global a partir

das várias relações (linguísticas e extralinguísticas) estabelecidas durante a leitura.

Antunes (2012) também admite que as palavras funcionam como pistas para guiar o

processo de interpretação. A autora afirma:

É isto: as palavras são “pistas de superfície”; pistas não totalmente

autônomas, mas pistas, indicações, instruções. É como se, por meio

delas, quem fala ou quem escreve fosse nos indicando, a nós, leitores

e ouvintes: ‘por aqui’, ‘por lá’, ‘ao contrário’, ‘volte’, ‘relacione’,

‘adicione’, ‘compare’, ‘exclua’, ‘conclua’ etc. [...] as palavras, em

127

geral, respeitam as demarcações de seus significados de base.

(ANTUNES, 2012, p.96-97 – aspas da autora).

Diante dessa explanação, reforça-se a importância das palavras na construção de

sentidos para o texto. Ainda, pode-se dizer que elas funcionam como um componente da

competência estratégica que possibilita a utilização das demais competências -

linguistica, sóciointercultural e discursiva. Ou seja, o usuário pode empregá-las como

um elemento de apoio para a utilização da sua competência comunicativa. Neste

trabalho, daqui em diante, opta-se pela utilização do termo palavra-chave ao invés de

item lexical chave, considerando que se tem uma concretização de um elemento lexical

em um contexto e situação específicos73

. Parte-se da ideia de que elas focalizam

sentidos textuais – proposta de Cavalcanti (1989) – acrescentados à argumentação de

Kleiman (2002) de que marcas linguísticas formais são importantes na construção de

sentidos textuais. Essa afirmação tem o intuito de demonstrar que, por meio das

denominadas palavras-chave, pode-se estabelecer uma relação estratégica do leitor com

o texto que facilite a sua compreensão.

Em suma, utiliza-se o termo palavra-chave para referir-se aos itens salientes no

texto que auxiliam o leitor a construir uma cadeia de relações semânticas e pragmáticas

para a construção de sentido textual. Admite-se ainda que tais palavras são marcas

formais do texto que levam o leitor a interagir com ele e a identificar sentidos. Reitera-

se que se considera que palavras-chave são uma ferramenta da competência estratégica

capaz de ativar elementos linguísticos, discursivos e sociointerculturais que auxiliam na

construção de um sentido global para o texto, assim como para a identificação de

sentidos particulares.

Discutem-se, agora, os procedimentos metodológicos adotados para chegar-se a

uma situação de escolha das palavras-chave pelos sujeitos da pesquisa e a maneira como

os dados são tratados.

73

Parte-se da diferença entre item lexical e palavra exposta nas p. 110-115 deste trabalho.

128

3 PERCURSO METODOLÓGICO

Partindo de uma abordagem qualitativa, de cunho interpretativista (LUDKE;

ANDRE, 1986; MOITA LOPES; ERICKSON, 1992), a presente pesquisa de tese tem a

intenção de observar as relações estabelecidas entre as palavras-chave e o texto como

um todo na construção de sentidos pelo leitor, a partir de pressupostos linguísticos e

extralinguísticos.

Sendo assim, toma-se como ponto de partida a escolha, pelos alunos, de

palavras-chave presentes nos textos selecionados para a pesquisa, com o objetivo de

demonstrar a forma como esses itens interagem com outros no texto e com o

conhecimento prévio do leitor construindo assim sentido(s) textual(is). O problema

principal que se coloca neste trabalho é pesquisar de que maneira a seleção das

palavras-chave pode ajudar o leitor na movimentação de seu conhecimento prévio, na

identificação do sentido e do propósito global do texto e funcionar como uma estratégia

para estabelecer interação durante a leitura e construir interpretação textual.

Com base nesse problema colocado para a pesquisa, os questionamentos

norteadores são expostos, a seguir, para que guiem as escolhas metodológicas realizadas

para o desenvolvimento do trabalho:

1) Certas palavras encontradas em um texto podem fornecer pistas

linguísticas relacionadas às informações presentes nesse texto, as quais

devem ser identificadas pelo leitor (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998;

ANTUNES, 2012). Então, pode-se dizer que ao selecionar as palavras-

chave, os leitores, mesmo que de forma intuitiva, consideram

características diversas tais como gramaticais (ex. a classe gramatical

da palavra ou suas relações semânticas), sociointerculturais (ex. um

sentido social, ideológico ou cultural construído para a palavra) ou

discursivas (ex. a relação tema-rema na frase ou no texto) relacionadas

à competência comunicativa do leitor e que o levam a (re)construir

sentido(s) do texto(s)?

2) Ao iniciar a interação com um texto por meio da leitura, o leitor

considera algumas relações léxico-semântico-pragmáticas entre as

palavras que observa e formula possibilidades interpretativas. Essas

possibilidades interagem com todo o conhecimento do leitor na

produção de sentidos como num diálogo entre leitor e autor por meio

129

do texto (KLEIMAN, 2002; CAVALCANTI, 1989). Assim, a seleção

das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou

reconstrução das interpretações iniciais74

feitas pelo leitor durante o

processo de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na

construção de sentidos?

3) As palavras selecionadas pelo autor para produzir um texto estão

organizadas e relacionadas a partir de conhecimentos linguísticos,

textuais e de mundo compartilhados na comunidade linguística em que

tal texto está inserido (KLEIMAN, 2002; KOCH; ELIAS, 2010;

KOCH; TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).

Então, o leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para

identificar sentidos intra e inter texto, assim como para negociar novos

sentidos para o texto e para si mesmo?

Faz-se necessário, portanto, o desenvolvimento de alguns passos metodológicos

que serão descritos neste capítulo. A princípio, deve-se ter em mente que, para que

fosse feita uma coleta de dados a partir da qual se pudesse contar com maiores detalhes

e informações, optou-se por realizar uma coleta piloto com duas turmas diferentes em

duas escolas públicas estaduais da cidade de Cascavel – PR. Uma delas foi selecionada

para a pesquisa definitiva e a outra foi descartada por possuir características similares.

Tal coleta foi realizada no segundo semestre do curso de doutorado (2010.2) e a partir

dela chegou-se a algumas conclusões importantes para a coleta definitiva, tais como a

adequação do número de textos e de questões propostas nas atividades.

Após as devidas adaptações, a coleta definitiva foi realizada com a intenção de

arrolar os dados necessários para responder os questionamentos da tese. A referida

coleta foi feita depois da formulação do plano de trabalho75

, o qual foi construído

durante os últimos meses do segundo semestre (2010.2) e os primeiros meses do

terceiro semestre do curso (2011.1), sendo esse também o período em que tal coleta se

74

Alguns autores que trabalham com leitura denominam essas interpretações primárias de “hipóteses de

leitura” (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, (1998); COLOMER;CAMPS, 2002). No entanto, deve-se lembrar que

o termo não se refere a hipóteses de pesquisa e sim às formulações de interpretação feitas pelo leitor ao se

deparar com um determinado título, formato textual ou palavras em um texto. Com o intuito de evitar

confusão de termos, nesta pesquisa utiliza-se o termo “questionamentos” ou “questões norteadoras” para

referir-se aos pontos principais que suscitam a investigação aqui apresentada. E utiliza-se o termo

“possibilidades, interpretações ou formulações iniciais de leitura ou interpretação” para as primeiras

ideias que o leitor constrói ao iniciar a interação com um determinado texto. 75

Os planos das coletas piloto e definitiva encontram-se, respectivamente, nos anexos A e B deste

trabalho.

130

realizou. Para essa coleta foram selecionadas também duas turmas – uma do período

matutino e outra do período noturno – na mesma escola pública da cidade de Cascavel.

A seguir, explicam-se todas as decisões metodológicas tomadas, incluindo o

processo de seleção das turmas, dos textos, das atividades realizadas e das palavras-

chave. Todos os instrumentos de coleta de dados utilizados nessa pesquisa foram

pensados e criados pela pesquisadora com o intuito de alcançar os objetivos expostos no

projeto de tese e responder os questionamentos norteadores da pesquisa.

3.1 AS DATAS E O NÚMERO DE AULAS DA(S) COLETA(S)

A coleta piloto foi realizada com duas turmas de ensino médio entre os dias 28

de setembro e 05 de outubro de 2010, com o objetivo de testar tempo, atividades e

outros detalhes que eventualmente pudessem surgir para a coleta definitiva. A escolha

da data foi realizada devido a dois fatores principais:

a) Em contato com a escola, as professoras da disciplina de língua portuguesa

alertaram para o fato de que ao final do mês de outubro seria difícil para elas

cederem algumas aulas para a coleta devido à realização dos trabalhos e provas

finais do ano letivo;

b) A coleta piloto precisaria ser finalizada ainda antes do fim do segundo semestre

de 2010, visto que, no primeiro semestre de 2011, haveria o estágio de pesquisa

a ser cumprido em Salvador. A intenção era a de que entre a coleta piloto e a

definitiva, se tivesse algum tempo para reorganização, reflexão e replanejamento

das atividades. Assim, visto que a coleta piloto foi feita em início de outubro,

ainda se teria 3 (três) meses para repensar a coleta definitiva.

Já a coleta definitiva de dados foi realizada entre os dias 14 e 24 de fevereiro de

2011 (semestre 2011.1), anterior ao período de cumprimento de estágio de pesquisa em

Salvador. A razão para a data foi aproveitar o início das aulas na escola pública

selecionada em Cascavel-PR e ainda trazer os dados para as orientações que deveriam

ser realizadas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O número de aulas utilizadas para a aplicação das atividades também foi

diferenciado para a coleta piloto e para a definitiva. Na coleta piloto foram selecionadas

duas aulas (geminadas) para o trabalho com dois textos. No entanto, viu-se que o

número de aulas não foi suficiente para aplicação das atividades, principalmente pela

131

necessidade de que os alunos escrevessem todas as respostas76

, o que demandou muito

tempo. Assim, para a coleta definitiva, foram selecionadas 5 aulas para o trabalho com

os três textos (duas aulas geminadas77

, outras duas aulas geminadas, e mais uma aula).

Três fatores principais foram pensados para as coletas de dados (tanto a piloto

quanto a definitiva) e serão descritos na sequência deste trabalho: 1) a escolha e o perfil

das turmas; 2) a seleção dos textos de pesquisa; 3) a elaboração e a aplicação das

atividades.

3.2 A ESCOLHA E O PERFIL DAS TURMAS

Escolheu-se realizar a pesquisa de tese com alunos de 3º ano de ensino médio

porque se supõe que tais alunos já têm familiaridade com a língua, uma caminhada

escolar e proficiência maior de leitura se comparados com alunos de séries anteriores.

Em contato com as escolas, escolheram-se duas turmas para a coleta piloto – uma do

período matutino e outra do noturno – em duas escolas públicas. O motivo da escolha

de duas turmas em períodos e escolas diferentes foi justamente o de observar se, de fato,

contextos diversos poderiam trazer resultados diferenciados com relação às

interpretações e ainda validar a utilização de turmas diferentes para a coleta definitiva.

Uma das turmas de 3º ano de ensino médio tinha 26 alunos e a outra 21 alunos,

totalizando 47 alunos em duas escolas Estaduais da cidade de Cascavel78

.

Notou-se, a partir da coleta piloto, que a quantidade de dados de duas turmas já

era suficiente para que se pudesse responder os questionamentos norteadores79

da

pesquisa. Isso porque cada uma das turmas teria em média 30 alunos e para cada aluno

seriam aplicados três textos durante a coleta definitiva de dados, o que significaria, em

média, 180 atividades a serem analisadas. Assim, para tal coleta, optou-se por manter o

número de duas turmas.

Outro ponto interessante com relação às turmas foi a diferença das respostas e da

participação observadas entre os trabalhos realizados com os grupos da coleta piloto. A

participação e o envolvimento dos alunos do matutino pareciam ser maiores que os dos

alunos do período noturno. Ainda, as respostas dadas aos questionamentos feitos

76

Vide descrição das atividades na seção 3.4 77

A sugestão das turmas que tinham aulas geminadas foi da professora da escola, pois segundo ela,

trabalhos com leitura e interpretação são mais efetivos quando não se tem o corte para aulas posteriores. 78

Opta-se por não incluir, durante a análise de dados ou descrições metodológicas, os nomes das escolas,

professores ou alunos envolvidos no processo. 79

Cf. início do cap. 3 (p. 129-130).

132

apresentavam possibilidades diferenciadas entre os dois turnos. Procurou-se verificar se

essa diferença se dava entre as escolas ou entre os turnos. Conversou-se, então, com a

coordenação e com professoras de ambas as escolas (que possuíam turmas em outras

escolas) que, quando questionadas se a maior diferença estaria entre turnos ou escolas, a

resposta foi, no geral, a mesma: os alunos de turnos diferenciados geralmente

apresentavam posicionamentos distintos com relação à leitura, o que nem sempre

acontece com escolas diferentes, embora todos os grupos, de fato, tenham suas

peculiaridades.

A partir disso, optou-se por realizar a coleta definitiva dos dados em uma mesma

escola, visto as grandes semelhanças entre as duas instituições escolares utilizadas na

coleta piloto. Tais semelhanças devem-se principalmente ao fato de que ambas as

escolas situam-se em locais próximos da cidade, atendendo, de acordo com as

coordenações, o mesmo perfil socioeconômico de alunos. No entanto, mantiveram-se os

turnos diferenciados – um matutino e outro noturno.

Além disso, percebeu-se outro fator importante para a coleta definitiva: delinear

o perfil dos alunos a serem trabalhados em cada grupo, uma vez que atividades de

interpretação podem ser influenciadas pelas experiências dos alunos com culturas,

comportamentos e estilos de vida diferentes80

. Criou-se, então, um questionário

sociocultural81

, que foi aplicado nas turmas da coleta definitiva com o intuito de traçar o

perfil dos sujeitos pesquisados e observar se algumas das informações por eles

fornecidas poderiam, de alguma maneira, ser influenciadas pela classe econômica,

gostos pessoais, profissão dos pais etc.

Em suma, as turmas selecionadas para a coleta definitiva foram compostas de

dois grupos de 3º ano de ensino médio, assim classificadas: Turma A: matutino – 32

alunos e Turma B: noturno – 42 alunos.

A escola selecionada para a pesquisa está localizada no centro da cidade e abarca

aprendizes de várias regiões da cidade, embora sejam priorizados alunos que morem

próximo ao local da escola. Apresenta-se, em seguida, uma descrição feita com base nas

respostas dadas ao questionário sociocultural aplicado aos alunos das turmas A e B

selecionadas para o trabalho.

Na turma A, notou-se que, dos 32 alunos pesquisados, a maioria tem 16 anos

(somente dois com 17 anos) e dividem-se em 26 meninas e 6 meninos. Ainda, desses

80 Cf. cap. 1.3.4 sobre conhecimento de mundo e cap. 2.2.2 sobre competência sociointercultural. 81

O questionário sociocultural encontra-se no apêndice C deste trabalho.

133

alunos, somente 3 nasceram fora de Cascavel ou da região Oeste do Paraná. Já a turma

B possui 44 alunos, dentre eles, 20 meninas e 22 meninos, a grande maioria também

nascidos em Cascavel ou região Oeste do Paraná (30 alunos). Ressalta-se o fato de que

nem todos os alunos de ambas as turmas participaram de todas as atividades, fazendo

com que as atividades destes alunos faltosos fossem descartadas. Assim, o total de

alunos incluídos na análise são 29 para a turma A e 26 para a turma B.

Com relação à idade da turma B, notou-se uma diferença grande, se comparada à

turma A: a maior parte dos alunos encontra-se na faixa etária dos 16 aos 18 anos (pouco

mais que 50% dos alunos pesquisados), embora houvesse alunos de diferentes idades -

acima de 20 anos - incluindo um participante de 42 anos de idade. Observou-se,

também, que as turmas são bastante diferenciadas no que diz respeito a gênero: a

primeira turma é predominantemente feminina, enquanto a segunda possui um número

balanceado de meninas e meninos.

No que diz respeito ao perfil de formação educacional dos alunos da turma A,

foi demonstrado que a grande maioria dos alunos cursou ensino fundamental em escola

pública e todo o ensino médio na escola da pesquisa (somente 7 cursaram parte do

ensino médio em outra escola pública). Os alunos são, na sua maioria, estudantes

(embora 9 deles trabalhem como estagiários para auxiliar na renda familiar) e sempre

frequentaram a escola no período diurno.

Na turma B, ficou evidenciado também que a maior parte cursou todo o ensino

fundamental e médio em escola pública, mas 18 participantes sempre estudaram na

escola da pesquisa. Os demais cursaram parte de seu ensino médio em outras escolas

públicas da cidade. Ainda com relação à turma B, 17 alunos afirmaram que estudaram

quase todo o ensino médio no período diurno e os demais sempre estudaram no noturno.

O motivo para haver diferença entre os alunos que sempre estudaram no diurno – turma

A – para os que estudaram parte no diurno e parte no noturno ou totalmente no noturno

pode ser explicado pelo número de alunos que trabalham na turma B: 20 dos alunos

pesquisados. Ou seja, no que diz respeito ao perfil estudantil e profissional dos alunos,

verificou-se que na turma A, a maior parte dos sujeitos é estudante, enquanto que na

turma B, mais de 50% da turma já possui atividades profissionais. A maioria dos

134

trabalhos dos alunos volta-se à área de prestação de serviços gerais (recepcionista,

auxiliar de escritório, auxiliar de serviços gerais etc.)82

.

O perfil familiar dos alunos da turma A inclui famílias de 4 a 5 pessoas, na sua

grande maioria, com renda média de 3 a 7 salários mínimos. Ainda, a maior parte dos

pais possui ensino médio completo e há uma tendência maior para mães mais

escolarizadas (4 mães têm ensino superior completo e apenas 2 pais o possuem). Com

relação à turma B, as famílias possuem na sua maioria 4 membros (13 alunos), notando-

se a presença de famílias grandes (6 alunos têm famílias com 6 ou mais membros). A

renda das famílias é menor que a turma A, uma vez que quase todos os alunos possuem

renda familiar de 1 a 5 salários mínimos. Na turma B ainda, os dados revelam que o

nível de escolarização dos pais é relativamente baixo: a maioria possui nível de ensino

fundamental incompleto (8 mães e 10 pais) e um número maior de mães (8 mães e 5

pais) com nível médio completo.

O nível socioeconômico das turmas pode ser percebido também no perfil de

atuação profissional dos pais: tanto na turma A quanto na turma B a maior parte dos

pais possui trabalhos ligados à prestação de serviços (autônomo, gerente de vendas,

pedreiro, professora, operador de máquinas, motorista de caminhão etc). Com relação às

mães, tanto na turma A quanto na B houve um grande número de mães que são donas

de casa (8 na turma A e 15 na turma B).

Com relação às expectativas profissionais demonstradas pelos alunos, também

nota-se uma diferença grande entre os grupos A e B. No primeiro grupo, 100% dos

alunos pesquisados declararam que pretendem prestar ENEM (Exame Nacional de

Ensino Médio) e um maior número (comparados à turma B) pretende frequentar

universidade pública (17 alunos – mais de 65% da turma), sendo que nenhum aluno

declarou que não pretende cursar universidade. Ainda, os dados revelam que em média

50% dos alunos da turma A pretende fazer algum curso relacionado às ciências médicas

ou da saúde (medicina, psicologia, enfermagem etc).

No segundo grupo, 7 alunos declararam que não pretendem prestar ENEM e 4

afirmaram que não pretendem prestar vestibular. Cerca de 44% da turma pretende

cursar universidade pública (13 alunos) sendo que um número igual de alunos declarou

que pretende estudar em universidade pública ou privada. Entre os cursos pretendidos

82

Vide anexo A deste trabalho os dados dos questionários socioculturais tabulados. Não se pode observar

um padrão nítido quanto à profissão dos alunos, visto que na maioria dos casos são profissões bem

diferentes. Todas, no entanto, voltadas à prestação de serviços.

135

para os alunos desse grupo, a maior parte planeja cursar graduações da área de ciências

exatas (engenharias, arquitetura, agronomia) e um número similar pretende cursar

graduações relativas à área administrativa. Veja-se o gráfico I a seguir para a

observação das carreiras profissionais desejadas pelos informantes:

GRÁFICO 1 – Expectativas profissionais dos informantes das turmas A e B

Nota-se, portanto, uma grande diferença entre o perfil de interesses profissionais

da turma A e B: o primeiro grupo tem maior interesse em ciências médicas e da saúde e

o segundo tem maior interesse em cursos orientados para as ciências exatas. Tal

interesse pode influenciar a interpretação da turma A no texto 2, cujo tema é engenharia

genética o que, em princípio, seria mais interessante para os sujeitos dessa turma. Ou

seja, o tema do texto 283

pode provocar uma maior interação dos alunos da turma A.

Esse fato é analisado na discussão dos dados.

Quanto ao perfil das turmas com relação à leitura, viu-se nas respostas dos

questionários que a maioria dos alunos, tanto na turma A quanto na turma B, declarou

ter dificuldades para realizar avaliações de interpretação textual. Os sujeitos

pesquisados ficaram divididos entre as respostas em que afirmavam possuir dificuldades

ou em que pretendiam progredir até a data dos testes do ENEM e do vestibular. Quando

questionados com relação às suas maiores dificuldades, grande parte dos alunos tanto da

83

A descrição dos textos de pesquisa são realizadas na seção 4.1 deste trabalho uma vez que ao descrever

os textos algumas interpretações já realizadas na análise podem ser trazidas à discussão.

136

turma A quanto da B, afirmou ter algum tipo de dificuldade, seja para responder as

questões da professora ou as do livro, seja para entender o assunto geral do texto.

Outro dado importante é a forma como os alunos selecionam os textos para sua

leitura. A maior parte deles, de ambos os grupos, afirmou selecionar os livros pelos

temas específicos, pelo título ou por resumos o que, a princípio, confirmaria a afirmação

de que dados iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades

interpretativas e, consequentemente, na escolha das palavras-chave (questionamento 2).

Tal afirmação também será discutida na análise dos dados.

Ainda, há um número diferenciado entre os alunos das turmas A e B que

declararam realizar leituras frequentes como se pode ver no gráfico II abaixo:

GRÁFICO 2 – Frequência das leituras das turmas A e B

Na turma B, notou-se uma diferença grande entre os alunos que declaram não ler

com frequência para os que leem todos os dias, dividindo a turma em dois perfis de

alunos bem diferentes no que diz respeito à preferência em leitura. Já na turma A,

observou-se um maior número de alunos que declara ler quase todos os dias ou de duas

a três vezes por semana, o que caracteriza a turma A como de leitores mais frequentes.

Esse dado é ainda reforçado pelo número de livros que os alunos dizem ter lido no ano

anterior: para a turma A, 13 alunos dizem ter lido mais de três livros e outros 13

afirmam ter lido no máximo 2, o que faz com que a turma tenha um comportamento

mais assíduo com relação à frequência das leituras; para a turma B, o maior número de

137

alunos (17 alunos) afirma ter lido no máximo dois livros, o que caracteriza a turma

como de leitores menos aplicados.

Vejam-se, agora, os tipos de leituras realizados pelos alunos. O gráfico III a

seguir auxilia nessa observação:

GRÁFICO 3 – Tipos de leituras realizados pelas turmas A e B

Entre os tipos de leitura favoritos estão livros de literatura em geral – maior para

a turma A (os quais foram indicados como na sua grande maioria romances – 8 alunos

para a turma A e 2 para a turma B) e revistas que tem um número similar para ambos os

grupos. Entre as revistas mais citadas estão aquelas de conhecimentos gerais ou notícias

tais como Veja, Super Interessante, Isto é, Época, não se excluindo apontamentos a

revistas de fofocas ou femininas84

(Caras, Capricho, Toda Teen). Um apontamento

interessante está no número igual de livros técnicos indicados pelos sujeitos dos dois

grupos. No entanto, os temas indicados foram bem diversificados estando, na sua

maioria, relacionados às respectivas profissões dos leitores que já trabalham.

Outro dado importante diz respeito à utilização da internet. Conforme os

gráficos acima há um grande número de alunos que afirma não ler frequentemente ou

que diz ler pouco. No entanto, a maioria dos alunos declarou possuir na internet a

ferramenta de uso diário para se manter informado e fazer trabalhos escolares, o que

significa que há um grande número de leituras realizadas na internet. Em ambas as

84

Vide dados no anexo A deste trabalho.

138

turmas, os alunos declararam possuir computador com internet em suas residências

(98% dos alunos pesquisados). O número de 2% que afirma não possuir computador

com internet é relativo a estudantes da turma B (5 estudantes), o que reforça os dados de

que alunos dessa turma realmente têm menor acesso a atividades de leitura diária. Entre

os sites mais visitados pelos alunos estão os de redes sociais (50 indicações85

para a

turma A e 16 para a turma B) e de portais de notícias (15 indicações para a turma A e 14

para a turma B).

Com relação ao tempo gasto na internet diariamente, nota-se também uma

diferença. Para a turma A, a maioria dos alunos passa um tempo médio de 3 a 4h na

internet por dia e para a turma B, a maior parte dos alunos declarou usar o recurso entre

1h e 2h diárias. Tal dado pode ser justificado pelo fato de que nessa turma um número

maior de alunos possui, além dos estudos, atividade profissional, o que reduz

consideravelmente o tempo livre para utilização da internet como atividade de lazer,

assim como para atividades de leitura diversificadas ou para estudo. Essa observação é

ainda reforçada pelos dados fornecidos pelos alunos: na turma A o número de horas

semanais dedicadas aos estudos é maior (entre 2 e 5h) do que na turma B (menos de 1h

até 2h).

As descrições expostas sobre o perfil dos alunos certamente são importantes para

a análise de dados deste trabalho de tese. Isso porque a maior ou menor interatividade

dos alunos com determinados contextos e interesses influencia na maneira como leem

os textos. Por exemplo, na primeira crônica, cujo tema é educação e profissão, os dados

do perfil econômico das famílias e das pretensões profissionais dos alunos podem trazer

algumas diferenças com relação à forma com que interagem com o texto por meio da

palavra-chave. Outro exemplo pode estar no que diz respeito ao segundo texto. Este

possui um tema relativo às ciências da saúde (engenharia genética) o que poderia

produzir uma interação diferenciada da turma A com relação à turma B pelo fato dos

interesses da primeira com relação ao assunto serem maiores do que a segunda. Tais

observações são discutidas na análise dos dados.

3.3 A SELEÇÃO DOS TEXTOS DE PESQUISA.

85

Na tabulação dos dados, os sites foram contabilizados pelo tipo de site indicado, o que justifica o

número maior (50) que o número de alunos da turma (34). Assim, se um aluno indica Facebook e Orkut

como sites mais pesquisados, eles serão contabilizados duas vezes na indicação para redes sociais.

139

O passo metodológico seguinte foi selecionar os textos de pesquisa. Essa fase é

importante porque os textos são a base da qual se está partindo para analisar as relações

linguísticas e extralinguísticas mantidas entre as palavras que auxiliam na produção de

sentido textual. Ou seja, é dos textos que se parte para a discussão da questão de que o

leitor, por meio da palavra-chave, identifica as relações mantidas entre as palavras e os

demais conhecimentos subjacentes à manifestação textual, e, a partir disso, seu trabalho

de encontrar um sentido global é facilitado. É ainda com base nos textos que se pode

analisar se, partindo da identificação das interligações entre as palavras-chave, o texto e

os conhecimentos de mundo, o leitor interpreta e expõe sua compreensão textual,

influenciado por tais relações.

Assim, com o intuito de verificar as relações linguísticas mantidas entre palavras

e de descrever que tipo de comportamento linguístico as palavras desse corpus mantêm

entre si que são capazes de revelar significados textuais importantes, optou-se pela

seleção de textos, tanto da coleta piloto, quanto da definitiva, seguindo os seguintes

critérios:

a) Pertencer ao uso comum, diário dos alunos. Devido ao fato da pesquisa

se realizar em ambiente pedagógico – ensino médio – decidiu-se fazer a

seleção de textos presentes em livros didáticos das escolas de pesquisa,

uma vez que esses materiais contêm textos que devem ser compreendidos

em aulas de interpretação;

b) Apresentar tipologias e gêneros textuais diferentes, a fim de verificar se a

seleção de palavras-chave é influenciada pela identificação do próprio

leitor com determinadas formas construtivas dos textos. De fato, sabe-se

que o tipo textual, assim como seu gênero, influi na interpretação

(KLEIMAN, 2002; KOCH, 200986

). Isto é, alguns alunos podem ter um

maior conhecimento linguístico de textos informativos, tais como

reportagens, por exemplo, e consequentemente teriam maior facilidade

de interpretação nesse gênero. A utilização de tipos e gêneros diferentes

pode auxiliar na observação sobre a relação que existe entre os gêneros

(conhecimentos textuais) e a interpretação construída pelos alunos;

c) Expor temas diversificados. O fato de o aluno conhecer um determinado

tema mostra que seu conhecimento enciclopédico com relação àquele

86

Cf. cap. 1.3.3.

140

assunto é maior, o que indica maior interação do leitor com o texto

(KOCH, 2009). Assim, com diferentes temas, é possível verificar os

vários modos de interação com os diferentes assuntos tratados;

Os mesmos textos foram selecionados para serem aplicados às duas turmas

selecionadas, com o intuito de realizar uma análise comparativa e observar as

interpretações de grupos diferentes. O motivo para isso foi o de realizar uma descrição

mais criteriosa das diferentes relações mantidas pelos itens, a partir do ponto de vista de

diferentes leitores.

Sendo assim, primeiramente para a coleta piloto, dois textos foram escolhidos

com base nesses critérios:

- Texto 1: uma crônica de Rubem Alves, intitulada “Política e jardinagem”

presente em um dos livros didáticos trabalhados da rede pública estadual de Cascavel

(“Português: Língua, literatura, produção de texto”87

) e trata do tema relações

políticas.

- Texto 2: uma poesia de Manoel Bandeira, intitulada de “Poética” retirado de

outro livro utilizado na rede pública estadual de ensino (Português linguagens.

Literatura, Produção de texto, gramática Vol.388

) e fala sobre o tema lirismo.

Ambos os textos89

seguem os critérios estabelecidos: são retirados de livros

didáticos escolhidos pelas professoras para trabalhar nas turmas da(s) escola(s), têm

gêneros diferentes (crônica e poesia), e expõem temas diferentes (respectivamente

política e lirismo).

A partir do trabalho com os textos, percebeu-se que os critérios foram válidos

para a coleta piloto, sendo que a diferença entre gêneros textuais se destacou entre eles.

Então, optou-se por aumentar o número de textos a serem trabalhados na coleta

definitiva para três a fim de verificar quais as reais diferenças de interação o assunto, o

gênero e o formato textual podem trazer. Tal decisão foi baseada na primeira questão da

pesquisa, ou seja, saber se o leitor utiliza a palavra-chave para canalizar diferentes

níveis da competência comunicativa (gramatical, discursiva, sociointercultural). O

objetivo principal com essa escolha foi utilizar um maior número de textos para

demonstrar nas palavras-chave os motivos pelos quais alguns sentidos se sobrepõem a

outros na interpretação dos alunos e observar a forma como as dimensões da

87

ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo,

2005. 88

CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5 ed., Atual editora, São Paulo, 2005. 89

Os textos encontram-se no apêndice A deste trabalho de tese juntamente com as atividades propostas.

141

competência comunicativa foram utilizadas pelos informantes em manifestações

textuais diferentes.

Assim, no caso da coleta definitiva, foram selecionados três textos com base nos

mesmos critérios da coleta piloto, os quais são listados90

a seguir:

1) O primeiro texto: uma crônica de Moacyr Scliar intitulada “Nada como a

instrução”. A crônica foi retirada do livro didático Português linguagens.

Literatura, Produção de texto, gramática Vol.391

. O texto selecionado tem

tipologia narrativa e apresenta três personagens: o narrador, o senhor e o menino

que dialogam em torno de um assunto cotidiano: a escolarização e suas

consequências na classe social dos personagens;

2) O segundo texto - um artigo de opinião intitulado “O dilema genético” de

Marcelo Gleiser, o qual também foi retirado do livro didático Português

linguagens. Literatura, Produção de texto, gramática Vol.3. Esse texto é de

formato dissertativo informativo com tipologia argumentativa, em que o autor

procura demonstrar críticas e benefícios da evolução da ciência genética

focalizando três subtemas principais: os transgênicos, a clonagem e as células-

tronco;

3) O terceiro texto: um poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Poema

de sete faces”. O texto foi retirado do livro “Português: Língua, literatura,

produção de texto”92

. No poema, construído em sete estrofes, Drummond relata

algumas fases de vida apontando emoções vividas, principalmente tristeza,

comoção e angústia.

Os três textos apresentados são trabalhados com os alunos a partir de atividades

de leitura que visem responder os questionamentos da pesquisa. Os exercícios

realizados são analisados nos capítulos 4 e 5 observando-se a escolha das palavras-

chave pelos alunos e a maneira como eles constroem as interpretações, bem como

focalizam sentidos textuais.

90

Todos os textos de pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho e uma descrição dos textos é

realizada no cap. 4.1 91

CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. 5ª edição, Atual editora, São Paulo,

2005. 92

ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Ed. Moderna, São Paulo,

2005.

142

3.4 AS ATIVIDADES REALIZADAS

Os planos de trabalho93

elaborados tanto para a coleta piloto quanto para a coleta

definitiva visaram à observação da interpretação realizada pelos alunos. Vale a pena

lembrar que, uma semana antes das atividades serem aplicadas, fez-se uma visita à

escola para conversar com os alunos sobre quais atividades seriam realizadas para que

eles não se sentissem avaliados com o trabalho. Explicou-se a pesquisa e esclareceu-se

que o objetivo principal era refletir sobre a construção do processo de interpretação que

leitores de ensino médio apresentam com relação aos mais diversos textos.

Para a elaboração dos planos de trabalho, pensou-se em atividades94

divididas

em três momentos para contemplar a leitura como um processo interativo e global: pré-

leitura – exercício 1; leitura - exercícios 2 e 3; discussão do texto - exercício 4. No

entanto, deve-se notar que se verificou, na coleta piloto, que as atividades, por serem

todas escritas, demandavam muito tempo para sua realização por parte dos alunos.

Embora se tenham mantido os três momentos, o número de questões foi adequado da

seguinte maneira:

a) Na coleta piloto foram propostos dois exercícios na atividade de pré-leitura,

incluindo a análise do título a ser realizada de forma oral; um exercício na atividade de

leitura - a escolha das palavras-chave; e quatro perguntas na discussão do texto. Já para

a coleta definitiva foram realizados um exercício de análise do título na fase de pré-

leitura; dois exercícios na leitura; e um exercício com três perguntas na atividade de

discussão do texto;

b) Na coleta piloto, o momento de leitura foi realizado em um único exercício - a

seleção das palavras-chave. Já para a coleta definitiva, esta fase foi subdivida em duas

partes – as primeiras interpretações (exercício 2) e o levantamento das palavras-chave

(exercício 3). A divisão desta fase em duas partes teve o intuito de observar, mais

claramente nos dados, a maneira como os leitores construíam os fios semânticos

(CAVALCANTI, 1989) que conduziam sua interpretação (questionamento de pesquisa

2). Com o intuito de esclarecer a apresentação das atividades, foi elaborado o quadro a

seguir que demonstra as diferenças entre as coletas e a escolha das atividades:

93

Os planos de trabalho da coleta piloto e definitiva estão, respectivamente, nos anexos A e B deste

trabalho de tese. 94

Vide atividades expostas no plano de trabalho – Apêndice B

143

QUADRO 4 – Atividades realizadas nas coletas piloto e definitiva

Atividade Questão de

pesquisa

observada

Coleta Piloto Coleta definitiva

Pré-leitura 2

2

1) Análise do

título – atividade oral

2) Primeira

leitura – anotação das

interpretações

1) Análise do título

– atividade escrita

Leitura 2

1

3) Escolha das

palavras-chave

2) Primeira leitura –

anotação das

interpretações

3) Escolha das palavras-

chave

Discussão 3 Quatro (4) perguntas –

atividade escrita

Três (3) perguntas –

atividade escrita

Assim sendo, as atividades são descritas a seguir organizadas de forma a

responderem os questionamentos da pesquisa, os quais são retomados e relacionados à

escolha das atividades:

1) Para a checagem do primeiro questionamento - a relação entre a escolha da

palavra-chave e a utilização da competência comunicativa do leitor na

construção de sentidos95

:

Num primeiro momento, explicou-se aos alunos o conceito (genérico e não com

detalhes teóricos) das palavras-chave, afirmando que são palavras que auxiliam na

focalização de sentido textual e na construção de um sentido global para o texto.

Na sequência, foi proposta uma atividade de leitura (exercício 3), na qual os alunos

deveriam imaginar que teriam que explicar o texto uma semana depois e não poderiam

ter acesso a ele. Deveriam, assim, escolher até 5 palavras para anotar e lembrar do texto.

Os alunos foram solicitados então a selecionar as palavras-chave e explicar os motivos

para a sua escolha. Essa atividade foi primeiramente realizada de forma oral para que

todos os alunos realmente a compreendessem e, logo após, foi fornecido tempo para que

todos os alunos anotassem suas justificativas.

Essa foi a terceira atividade proposta de leitura do texto (momento de leitura), pois

os alunos precisavam ter uma familiaridade maior com o texto para que selecionassem

as palavras-chave. As anotações feitas pelos alunos nessa atividade foram analisadas

95

Todos os questionamentos norteadores são encontrados na primeira seção do cap. 3 (p. 129-130). Eles

estão respectivamente relacionados aos passos 1, 2 e 3 da escolha das atividades.

144

com o intuito de observar quais sentidos textuais os leitores estavam hierarquizando no

texto e a maneira que, para o leitor, a palavra-chave estaria tecendo relações de sentido

com base em aspectos gramaticais, discursivos ou sociointerculturais.

2) Para a verificação do segundo questionamento - a utilização da palavra-chave

como um guia para a confirmação ou reconstrução das interpretações iniciais do

leitor:

Antes de começar efetivamente os exercícios de leitura, realizou-se uma

conversa a fim de preparar os alunos para as atividades e deixá-los mais confortáveis

com a presença da pesquisadora. Neste sentido, perguntas que abrangem aspectos gerais

sobre leitura foram realizadas tais como: “Que tipo de texto você gosta de ler?” “Você

acha difícil de ler crônicas/ artigos informativos/ poemas?”, “Onde você encontra esse

tipo de texto?”96

etc.

Na sequência, um exercício de análise do título (atividade 1) para levantamento

das possibilidades de interpretação dos alunos (ou hipóteses de leitura – KLEIMAN,

2002; KATO, 1999; SOLÉ, 1998; COLOMER;CAMPS, 2002) foi proposto na

atividade de pré-leitura. A utilização de atividades de leitura prévia, como a discussão

sobre o título (SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2001; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002;

CASTELLO-PEREIRA, 2003), é um recurso importante para a construção do processo

de leitura, pois ativa as expectativas do leitor e o faz formular possibilidades

interpretativas as quais ele procura confirmar ou refutar durante a interação com o texto.

É, portanto, uma estratégia97

para orientar os conhecimentos do leitor na interação com

o texto e guiar suas interpretações.

Nesse sentido, propôs-se como pré-leitura (atividade 1 de todos os textos

trabalhados) um exercício de ativação das possibilidades de interpretação a partir da

leitura do título para que os alunos pudessem construir suas primeiras ideias a respeito

do conteúdo do texto. Discutiu-se, então, com os estudantes quais conhecimentos o

título do texto lhes trazia e quais as possibilidades de interpretações a que poderiam

recorrer. Os alunos foram solicitados a anotar essas primeiras ideias.

Na sequência do trabalho, uma atividade de leitura (atividade 2) foi realizada, na

qual os informantes tiveram um tempo para fazer uma leitura rápida do texto e anotar as

primeiras interpretações que construíram. O intuito, nesta atividade, foi o de analisar

96

Vide questões discutidas no plano de trabalho da coleta de dados definitiva do anexo B deste trabalho. 97

Cf. cap. 1.4 – estratégias de leitura e cap. 2.2.4 – competência estratégica.

145

como as interpretações dadas na atividade da análise do título ligam-se às compreensões

construídas quando o aluno lê o texto de maneira mais efetiva.

Nessa fase do trabalho, os alunos se envolveram com o texto e com a atividade. No

entanto, como em todas as turmas, os estudantes mais tímidos preferiram não se

manifestar oralmente, mas tiveram a oportunidade de participar de forma escrita. Isso

fez com que as atividades de todos os alunos pudessem ser consideradas, observando-se

maneira pela qual formulações iniciais construídas pelos leitores para interagir com o

texto (atividade 1) ligam-se às interpretações dadas na atividade de leitura (atividade 2)

e no apontamento das palavras-chave (atividade 3).

3) Para o terceiro questionamento – a palavra-chave pode auxiliar tanto na

identificação, quanto na criação e negociação de sentidos:

Sabe-se que é necessário que os alunos possam evocar e reconstruir seus

próprios pontos de vista com relação aos mais diversos textos para que se formem bons

leitores (FREIRE, 1983; MENDES, 2008; KRAMSCH, 1993). Assim, os alunos foram

solicitados a demonstrar como julgavam a posição do autor e suas opiniões, ou como se

posicionavam perante o texto.

Foi proposto, então, um exercício de discussão do texto (Atividade 4) no qual os

estudantes foram solicitados a: i) destacar características do conteúdo textual (qual o

objetivo (posição) do autor do texto?; alguma das palavras-chave te ajuda a perceber

esse objetivo?; qual o tema abordado pelo autor?); e ii) indicar qual opinião eles

construíam a respeito do texto (Você concorda com o que o personagem narrador pensa

da instrução?; O que você acha da engenharia genética?; Inclua comentários seus a

respeito do texto – textos 1, 2 e 3 respectivamente)98

.

O intuito foi observar a maneira como os leitores reforçam ou negociam sentidos

a partir da relação entre a focalização de algumas informações textuais mais salientes –

dadas nas atividades 1, 2 e 3 da construção de possibilidades de leitura e da escolha das

palavras-chave – e a construção das opiniões dos alunos – dadas na atividade 4 da

discussão do texto.

Um apontamento importante a ser realizado aqui é que todas as atividades foram

realizadas de forma oral em um primeiro momento e depois foi dado um determinado

tempo aos alunos para que anotassem suas respostas. A intenção não foi realizar uma

98

Vide as perguntas da atividade 4 e de todas as demais atividades de cada texto no apêndice B deste

trabalho.

146

coleta baseada nas informações orais que os alunos forneceram, mas sim nas

informações escritas para que fosse possível analisar com maior critério as atividades

realizadas por cada aluno. Isso porque muito da oralidade se perde durante a coleta dos

dados, apesar das aulas terem sido gravadas99

. Assim sendo, optou-se por manter, na

coleta definitiva, todas as atividades escritas para que os alunos pudessem, de fato,

expor o seu ponto de vista e as suas palavras-chave, mesmo que tenham sido oralmente

discutidas com a turma.

Após a aplicação das atividades de leitura, sentiu-se a necessidade de organizar a

maneira pela qual se pretendia discutir os dados arrolados para que os questionamentos

da pesquisa fossem devidamente respondidos. Sendo assim, fala-se agora sobre a

organização da análise apresentada nesta tese.

3.5 OS PROCEDIMENTOS PARA A ANÁLISE DOS DADOS

Com os dados em mãos, o primeiro ponto observado foi o de que havia um grande

número de informações a serem utilizadas na análise o que demandaria muito espaço

para ser discutido em apenas um capítulo. Optou-se, então, por dividir a análise em dois

momentos diferentes – capítulos 4 e 5 – organizados conforme quadro a seguir para que

respondessem às três questões de pesquisa:

QUADRO 5 – Organização da discussão de dados

Questão de pesquisa Atividade analisada Organização dos dados

Capítulo 4 1 Leitura – a seleção

da palavra chave

(terceira atividade)

1) Dimensões da

competência comunicativa –

gramatical, discursiva,

sociointercultural

2) Texto

Capítulo 5 2 e 3 Todas – Pré-leitura,

leitura e discussão

1) Leitor

2) Texto

Com base no quadro 5 acima, explica-se a seguir, com maiores detalhes, a maneira

pela qual a discussão é realizada.

99

O motivo para a gravação das aulas não foi utilizar os dados orais, mas o de verificar, se necessário,

alguma adequação ou algum apontamento que possa ser realizado durante a análise dos dados. Ou seja, os

dados orais não serão utilizados efetivamente, mas se necessário poder-se-á contar com eles para suporte

aos dados escritos.

147

3.5.1 – A análise do primeiro questionamento de pesquisa.

O capítulo 4 foi reservado para discussão do primeiro questionamento:

1) Ao selecionar as palavras-chave, os leitores consideram características diversas

tais como linguísticas, sociointerculturais ou discursivas relacionadas à sua

competência comunicativa e que o levam a (re)construir sentido(s) para o

texto(s)?

Para a análise, se estudou a atividade de escolha das palavras-chave. Esta foi a

terceira atividade proposta aos alunos com a intenção de analisar a primeira questão de

pesquisa. Procurou-se discutir nesta fase a maneira como as palavras escolhidas pelos

alunos para interagir com o texto e suas respectivas justificativas demonstram a

utilização de algum dos níveis da competência comunicativa: gramatical, discursiva e

sociointercultural ou de todos eles em interação.

Foram selecionados excertos das atividades dos alunos que pudessem

demonstrar a maneira pela qual os aspectos gramaticais (ex. classe gramatical, a

organização sintática, ou a semântica da palavra), discursivos (ex. o gênero do texto e

sua organização, a relação tema-rema, a sequenciação textual), sociointerculturais (ex.

aspectos culturais, ideológicos, sociais ou contextuais) e a interação entre eles, foram

utilizados pelos alunos para focalizar ou canalizar os sentidos por eles construídos a

partir da escolha da palavra-chave.

No capítulo 4, organizou-se a discussão dos dados sob dois aspectos principais:

a) em cada um dos textos selecionados foi analisada a maneira como as

diferenças entre os textos (gênero, tema e conhecimentos subjacentes) influenciavam a

forma como os leitores estavam utilizando sua competência comunicativa para produzir

sentidos;

b) em cada uma das duas turmas (A e B), para a análise de cada texto, foram

incluídos excertos do material produzido pelos alunos de forma que conhecimentos de

mundo de ambas as turmas pudessem ser observados na produção de sentidos. Neste

caso, dados dos questionários socioculturais aplicados foram utilizados em comparação

às interpretações apontadas pelos alunos.

A discussão é feita com base na tabulação das palavras-chave com relação à

utilização da competência comunicativa em suas diferentes dimensões – gramatical,

148

discursiva, sociointercultural100

- para estabelecer interação do leitor com o texto. Essa

observação gerou uma subdivisão do capítulo, sendo feita, em primeiro lugar, a análise

das dimensões separadamente e, num momento seguinte, a análise de todas as

competências em interação.

Outro fato importante que a análise toma como ponto de partida é a escolha de

extratos de informantes que demonstrem essa relação. A escolha dos extratos foi

realizada a partir de aspectos observados na maioria dos alunos como forma de

exemplificação e não com o intuito de esgotar as possibilidades de interpretação de

todos os leitores. Sendo assim, a escolha de determinados alunos para a análise justifica-

se pelo fato de mostrar o que a maioria dos alunos faz em seus apontamentos sem tornar

a discussão exaustiva. Por exemplo, se grande parte dos extratos dos alunos demonstra

que há uma sequenciação textual ou uma influência do gênero textual na escolha das

palavras-chave - o que demonstra a utilização da competência discursiva - seleciona-se

então extratos de alunos, de ambas as turmas, que mostram esse aspecto e realiza-se

uma discussão a respeito dele.

Ainda, deve-se alertar para o fato de que se pode apresentar um número

diferenciado de extratos analisados (p. ex., selecionam-se 4 extratos para a discussão de

aspectos gramaticais e 12 para a discussão da competência discursiva). Isso acontece

principalmente porque houve uma indicação maior para as competências discursiva e

sociointercultural, o que demanda um maior número de extratos para a explicação da

maneira como os leitores constroem a interpretação.

Em suma, no cap. 4, a discussão é realizada observando-se, em cada texto e nas

duas turmas, somente a atividade da palavra-chave e nela a construção dos sentidos a

partir da utilização da competência comunicativa subdividida em suas dimensões:

competência gramatical, competência discursiva, competência sociointercultural e a

interação entre todas elas.

3.5.2 A análise do segundo e terceiro questionamentos de pesquisa.

O capítulo 5 foi reservado para a discussão do segundo e terceiro questionamentos:

100

A competência estratégica (cap. 2.2.4) compreende estratégias utilizadas pelo leitor que se diluem nas

demais competências para compensar conhecimentos não adquiridos e manter a comunicação verbal.

Sendo que a palavra-chave é justamente uma estratégia de utilizar conhecimentos diversos para canalizar

sentidos, supõe-se que toda vez que se fala em palavra-chave, fala-se também na utilização da

competência estratégica. Volta-se a falar sobre isso de forma mais clara no início do cap. 4.

149

2) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou

reconstrução das interpretações iniciais feitas pelo leitor durante o processo de

interação da leitura organizando os conhecimentos do leitor na construção de

sentidos?

3) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos

intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si

mesmo?

Para a análise, observaram-se as possibilidades de leitura construídas desde o

início da interação com o texto, bem como suas confirmações ou reconstruções e a

posterior negociação de sentidos pelos informantes.

Nessa fase, examinou-se a maneira pela qual os estudantes indicaram suas

interpretações na atividade de pré-leitura e como confirmaram ou reconstruíram suas

interpretações a partir da seleção das palavras-chave (questionamento 2). Ainda nesse

momento da pesquisa, analisou-se como os estudantes negociaram sentidos com o texto,

posicionando-se com relação a ele e expondo algumas de suas opiniões (questionamento

3).

A fim de organizar a discussão realizada neste capítulo, optou-se por selecionar

excertos de alguns alunos e discuti-los a partir da observação de todas as atividades

desse mesmo informante (desde a pré-leitura até a discussão do texto). Sendo assim, a

discussão foi realizada verificando-se dois aspectos principais:

a) os textos: a maneira como os leitores constroem as interpretações em cada um

dos textos propostos para a pesquisa;

b) os leitores: ao selecionar-se um leitor, analisam-se todas as atividades deste

informante (p. ex., seleciona-se o aluno 2 da turma A e discutem-se as atividades

produzidas por ele desde a pré-leitura até a discussão do texto. Da mesma forma, o

leitor 4, 10 ou 20 da turma A ou B101

).

Para que a análise não se tornasse repetitiva, optou-se pela seleção de

informantes que representassem observações feitas em grande parte dos excertos da

turma, tais como o apontamento de algumas palavras em detrimento de outras ou a

indicação, nos excertos, de aspectos sociais ou culturais similares. Também no cap. 5,

não se pretendeu fazer uma análise que esgotasse as possibilidades de discussão dos

101

A numeração dos alunos foi separada primeiramente por turma, depois pelo número do texto (1, 2 ou

3), pelo número da atividade proposta e pelo número do aluno. Por exemplo, a numeração A.1.3.4 refere-

se a uma atividade da turma A, texto 1, atividade 3, aluno 4.

150

dados, com a mesma intenção de evitar repetições desnecessárias, mas procurou-se

demonstrar como grande parte dos estudantes relatou a construção de sentidos. Reitera-

se que se partiu da utilização dos apontamentos de alguns dos estudantes como exemplo

das observações feitas.

Para que fosse possível validar os exemplos, demonstrou-se, de forma

quantitativa, em tabelas, os aspectos observados, tal como o apontamento da mesma

palavra por vários alunos na atividade de pré-leitura.

Assim sendo, o que vai se notar no cap. 5 é que a análise é organizada,

metodologicamente, em duas frentes principais: i) a indicação das possibilidades de

leitura no início da interação com o texto e a confirmação ou reconstrução dessas

possibilidades durante todo o processo de leitura; e ii) a negociação ou criação de

sentidos demonstrada pelos leitores.

Em resumo, no cap. 5, discutem-se, por texto e por leitor, os dados de todas as

atividades propostas, do início ao fim, com o intuito de analisar a confirmação ou

reconstrução das possibilidades iniciais de leitura e a negociação de sentidos.

Com a metodologia devidamente descrita e as escolhas justificadas, parte-se

agora para a análise dos dados no intuito de responder aos questionamentos

apresentados para esta tese.

151

4 O USO DA PALAVRA-CHAVE COMO ESTRATÉGIA PARA

COMPREENSÃO TEXTUAL – A UTILIZAÇÃO DA COMPETENCIA

COMUNICATIVA NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS.

Neste capítulo, discutem-se os dados a partir de um aspecto principal de análise:

a maneira pela qual os informantes produzem sentidos, baseando-se na escolha das

palavras-chave como estratégia de leitura. Em outros termos, o que se pretende neste

capítulo é responder a primeira questão de pesquisa: ao selecionar as palavras-chave, os

leitores consideram características diversas tais como gramaticais, sociointerculturais ou

discursivas relacionadas à sua competência comunicativa e que o levam a (re)construir

sentido(s) para o texto(s)?

Com o intuito de organizar as informações encontradas neste capítulo, duas

frentes principais são consideradas, conforme apresentado no cap. 03:

a) Discutir o desenvolvimento da competência comunicativa em suas diferentes

dimensões, a partir da observação das justificativas dos alunos para a escolha

das palavras-chave para as turmas A e B. Para tanto, utiliza-se tabelas além

das informações indicadas pelos próprios alunos;

b) Analisar, em cada texto, a maneira pela qual os estudantes revelam fatores

gramaticais, discursivos, sociointerculturais, isoladamente e em interação,

durante a sua interpretação na escolha estratégica da palavra-chave e na

construção de sentidos. Assim, seleciona-se também, em cada texto, extratos

da atividade de escolha das palavras-chave pelos alunos, os quais foram

considerados relevantes para demonstrar tais questões.

Admite-se, contudo, que não se tem a intenção de fazer uma análise exaustiva de

todos os aspectos da competência comunicativa em todas as justificativas. O que se

pretende é destacar pontos para o debate sobre a importância da competência

comunicativa na construção de sentidos textuais.

4.1 A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA NA INTERPRETAÇÃO TEXTUAL

Conforme discutido nos capítulos 1 e 2 do presente trabalho de tese, pressupõe-

se que o processo de leitura aconteça a partir da interação leitor-autor via texto. Isto

quer dizer que as palavras escritas em um texto interagem com os conhecimentos

152

individuais e sociais do leitor e, a partir disso, promovem um diálogo que o capacita a

produzir sentidos.

Parte-se ainda do pressuposto de que o usuário desenvolve a habilidade de usar a

língua em contextos adequados para produzir comunicação, o que vem a ser a já

referida competência comunicativa (HYMES, 1995; SAVIGNON, 1997;

HORNBERGER, 1995; LLOBERA, 1995102

). Se leitura é um processo de interação -

ou de utilização da competência comunicativa - que se passa entre leitor e autor, de que

modo tal competência é usada para produzir os sentidos textuais?

De fato, o primeiro e principal questionamento colocado nessa tese tem o intuito

de pesquisar de que maneira a competência comunicativa auxilia o leitor a canalizar

seus conhecimentos para construir sentido(s) para o texto103

. Assim, vai-se analisar, em

cada um dos três textos, as justificativas dadas pelos alunos para a escolha de suas

palavras-chave e a maneira como esses argumentos revelam o uso dos níveis da

competência comunicativa – gramatical, discursivo, ou sociointercultural –, notando

também o diálogo existente entre todos esses níveis e demonstrando como tal

competência auxilia na interpretação.

É importante ressaltar que se parte do pressuposto de que a utilização de uma

palavra-chave é uma das formas de se utilizar a competência estratégica para interagir

com o texto e estabelecer sentido. Isso porque, conforme explicitado no cap. 1, a

escolha de palavras temáticas ou de marcações linguísticas (KLEIMAN, 2002) é uma

forma de ativar conhecimentos diversos, sejam eles linguísticos ou extralinguísticos,

pertencentes ao conhecimento prévio do leitor, que dialogam com o texto e levam à

produção de macroestruturas significativas (DIJK, 2002). Sendo assim, assume-se que,

ao escolher as palavras-chave104

, a competência estratégica já é utilizada na

movimentação dos conhecimentos prévios do leitor, sendo considerada como ponte de

interação para todas as demais competências105

. Então, fala-se em competência

estratégica toda vez que se utiliza uma palavra-chave para interagir com o texto e para

movimentar conhecimentos do leitor e, portanto, não se utiliza um espaço específico

neste texto para discorrer sobre essa competência, pois ela é considerada durante toda a

análise a partir da observação das palavras-chave.

102

Cf. cap. 2. 103

Cf. cap. 3. 104

Cf. cap.2.3. 105

Cf. cap. 2.2.4 – competência estratégica.

153

Outro destaque importante é que o léxico106

(ANTUNES, 2012), escolhido pelo

estudante, ganha efeitos de sentido a partir das relações que estabelece no texto e fora

dele, na realidade do estudante. Isso porque “as palavras tem a cor, o cheiro, o gosto da

terra em que circulam, da casa em que habitam” (ANTUNES, 2012, p. 47). O léxico

assim está completamente vinculado às experiências linguísticas, discursivas, sociais e

culturais do usuário da língua e faz com que o repertório de escolhas constitua pistas do

pertencimento dos usuários a certos grupos. Isso acontece na interação que os leitores

estabelecem com os três textos a partir da escolha da palavra-chave: há uma relação

importante e básica entre a forma como a palavra é usada, as relações discursivas

expostas no texto e o pertencimento social e cultural dos usuários a uma comunidade.

Para iniciar a discussão, vale notar que as justificativas utilizadas pelos alunos

para a escolha das palavras revelam que algumas das competências foram usadas de

forma mais contundente que outras. A tabela 1 abaixo demonstra a classificação das

indicações sobre a utilização das palavras-chave nas dimensões da competência

comunicativa. Os números contabilizados e tabulados são referentes às indicações

realizadas para cada competência nos extratos dos alunos para a atividade 3, o que

significa que em um excerto pode haver mais de uma competência sendo observada,

conforme se discute na sequência deste trabalho. Veja-se a tabela:

TABELA 1 – A utilização das competências na escolha das palavras-chave

Competência Gramatical Discursiva Sociointercultural

Turma A Turma B Turma A Turma B Turma A Turma B

Texto 01 2 1 17 28 21 17

Texto 02 0 0 25 21 23 21

Texto 03 0 1 17 22 28 24

Total 2 1 59 71 72 62

Total de indicações 04 130 134

A partir da tabela 1, verifica-se que, em especial, duas competências se destacam

e se sobrepõem na interação dos alunos com o texto para produzir sentido:

a) discursiva : foram 130 ocorrências no total entre as turmas A e B contendo

um grande número de justificativas (75 indicações o que significa mais de

106

Considera-se a palavra-chave como uma escolha lexical, ou como uma seleção do léxico do estudante

para interagir com o texto (vide cap. 2.3). Sendo assim, quando se fala em palavra-chave, fala-se também

em léxico. Antunes (2012) destaca justamente a importância do léxico na construção de sentidos da

língua.

154

57% do total) em que há uma interação com a competência

sociointercultural. Embora se explique mais sobre as ocorrências da

competência discursiva na próxima seção deste trabalho, alguns exemplos

dessas ocorrências são colocados aqui. No primeiro deles, logo abaixo, nota-

se a preocupação do aluno em concentrar a mensagem do texto nas palavras-

chave107

, ou seja, construir uma macroestrutura (DIJK, 2002) que dê sentido

informativo ao texto:

B.2.3.18 transgênicos108

, clonagem, infertilidade, célula-tronco,

curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a

meu ver, elas resumem a mensagem do texto.109

No segundo, verifica-se que o estudante, aluno 23 da turma A, escolhe as

palavras-chave como forma de demonstrar os personagens e a sequência

narrativa da crônica:

A.1.3.23 instrução: um guia, um caminho, um conhecimento.

Senhor: sabe que há alguém mais velho. Jovem: saber que há

alguém mais novo. Ensinamento alguém vai ensinar algo a

outro, o senhor, ou o rapaz. Estudo: sabendo que a um diálogo,

senhor, e jovem e um ensinamento sabe-se tem por fim o estudo,

a educação de um deles.

Como se pode ver nos exemplos acima, o que se observa nas ocorrências da

competência discursiva são fatores tais como a sequenciação do texto, a

construção de coerência e coesão, a remissão, a relação tema-rema ou dado-

novo, a relação entre o gênero textual e a interpretação dada, os quais são

demonstrados e discutidos na seção 4.1.2 deste trabalho.

b) sociointercultural: Foram 134 ocorrências no total. Assim como na

competência discursiva, viu-se, em muitas das ocorrências, uma interação

mais clara entre a competência discursiva e a sociointercultural, o que

107

Tabelas das palavras-chaves escolhidas e a classificação para sua escolha de acordo com as

justificativas dos alunos são mostradas na sequência deste trabalho. Pode-se encontrar a lista completa

das palavras-chave indicadas pelos alunos no anexo C. 108

O destaque em itálico nas justificativas dos alunos é utilizado para demonstrar as palavras-chave

selecionadas pelos informantes. No caso do sublinhado, quando aparecer, é aplicado aqui para destacar

alguns trechos das justificativas feitas pelos alunos. Para realizar explicações das palavras utilizadas pelos

alunos nos excertos durante a discussão, utiliza-se aspas simples. 109

A indicação da numeração é referente a: 1) turma a que o aluno pertence (neste caso turma A), 2)

texto interpretado (texto 01), 3) número do exercício proposto na atividade (exercício 03), 4) numeração

do aluno analisado (aluno 2). Todas as justificativas serão assim numeradas daqui em diante.

155

aconteceu em 75 indicações, ou seja, cerca de 55% dos casos. Pode-se

observar a partir de algumas das ocorrências da competência

sociointercultural, expostas abaixo, a maneira como fatores sociais,

ideológicos ou culturais dialogam na produção de sentidos. No primeiro

exemplo, da turma A, nota-se a maneira como o aluno destaca o preconceito

causado por fatores sociais entre pobre e rico, construindo para o texto uma

interpretação ligada a uma posição superior do rico em relação ao pobre.

A.1.3.7 pobre, rico, diversão, exames, conhecimento. Eu escolhi

essas palavras pelo fato que existe um vasto preconceito entre o

pobre e o rico, em que o rico defende que tem mais estudo que

faz mais exames e que possuem muito conhecimento e julga que

o pobre não tem nada disso e “nunca” vai se dar bem na vida.

No segundo exemplo, da turma B, abaixo, o estudante 14 destaca, na sua

interpretação, fatores de crença, ao relacionar a palavra-chave ‘fertilidade’ à

palavra ‘vida’, dando a ela características de beleza - ‘acho ela muito bonita’.

Ainda nesse exemplo, ele escolhe a palavra-chave ‘rejeitados’, e a liga a

fatores culturais e sociais justificando-a por causar ‘dor’ em seres humanos:

B.2.3.14 possibilidades: eu escolhi essa palavra porque acho que

a vida é feita de possibilidades, tudo pode acontecer.

Fertilidade: escolhi essa palavra, primeiro porque acho ela

muito bonita e que na minha opinião significa vida. Embriões:

na minha opinião esperamos já são vidas são seres indefesos que

são destruídos. Tudo pela “ciência”. Humanidade: eu escolhi

essa palavra porque somos nós, eu, vc, todos, vida. Rejeitados:

essa palavra me dá arrepios, porque a pior dor para um ser

humano é a rejeição.

No terceiro exemplo, o leitor utiliza um conhecimento de mundo cultural – a

existência de casas de prostituição – a um fator exposto no texto – ‘casas que

espiam os homens’:

B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna

onde mulheres vão se prostituir.

156

Assim, nas justificativas da competência sociointercultural, analisou-se a

influência de fatores tais como contexto, cultura(s), ideologia e crenças no

estabelecimento de sentido textual.

É importante destacar que o fato de que muitas das justificativas apresentam

uma relação entre as competências – discursiva e sociointercultural - revela que a

competência comunicativa é utilizada como um todo e que as estratégias são, de fato,

utilizadas como uma forma de canalizar todos os conhecimentos do leitor na interação

com o texto. No entanto, conforme discutido no cap. 03, referente à metodologia,

procura-se dividir as competências em partes como instrumento metodológico de

análise de dados e de construção do texto desta tese.

Ainda, de acordo com a tabela 01 exposta acima, observa-se que a competência

gramatical foi utilizada com menor evidência do que as outras, o que não significa que

fatos linguísticos, como os sintáticos e semânticos, não tenham sido utilizados. Com

efeito, tais aspectos estão sempre atrelados ao uso da língua e, se não fossem utilizados,

a língua não poderia se constituir enquanto tal. Na verdade, o que acontece na questão

da leitura é que a escolha de algumas palavras funciona como uma pista que auxilia o

leitor a concentrar sua atenção em algumas informações linguísticas e a interagir melhor

com o texto a partir da relação que estabelece com uma série de conhecimentos

(PEREIRA, 2003; KOCH; TRAVAGLIA, 2011). Pode-se dizer assim que o leitor se

baseia em fatos linguísticos, seja na semântica da palavra ou na sua função sintática,

como um ponto de início da interação, mas não se detém a isso. Ele estabelece relações

com outros conhecimentos, os quais ficam mais evidentes nas justificativas.

A análise dos extratos dos alunos, nos quais eles indicam as palavras-chave,

demonstrou que as competências discursiva e sociointercultural são as que apresentaram

incidência maior, como mostra o gráfico 4, na página seguinte. Nota-se, pelo gráfico,

que as competências discursiva e sociointercultural apresentam um equilíbrio em seu

uso, revelando que os leitores dispõem de vários de seus conhecimentos para a

construção de sentidos. O equilíbrio entre as competências discursiva e

sociointercultural nos textos 01 e 02 demonstra que os leitores se ancoram tanto em

pontos discursivos para basear a construção da sua interpretação, quanto em aspectos

sociais ou culturais. Observa-se também que a competência sociointercultural é mais

utilizada no texto 3, o qual por ser um poema, demanda maiores inferências e

ancoragem em aspectos do conhecimento de mundo para produzir interpretação.

157

GRÁFICO 4 - As dimensões da competência comunicativa nos extratos da

escolha das palavras-chave

No entanto, reitera-se que, a título de organização da análise, opta-se aqui por

analisar aspectos característicos de cada uma das competências - gramatical, discursiva

e sociointercultural (cap. 4.1.1 a 4.1.3) – e, em um segundo momento, falar mais sobre

as competências em interação (cap. 4.1.4). No entanto, embora a discussão apresentada

seja subdividida pelas competências expostas, admite-se que a competência

comunicativa é uma construção desenvolvida pelo usuário que interage com o texto de

uma forma completa, o que de fato se observa no gráfico 4 acima. O que se pretende

destacar aqui é que, em alguns momentos, algumas dessas habilidades são usadas de

forma mais explícita pelos leitores conforme se pode ver na análise a seguir. Não se

supõe que, ao analisar características de uma das competências, as demais dimensões de

uso da língua sejam descartadas pelo leitor. Ao contrário, elas são utilizadas para

construir sentido, mas serão analisadas em dois momentos distintos: ao se focalizar

aspectos típicos de uma das competências, e ao se apresentar um diálogo mais nítido

entre todas elas.

4.1.1 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência gramatical.

Viu-se no capitulo 2.2.1 que a competência gramatical é a habilidade do usuário

de utilizar o código linguístico e suas características formais e informais tais como o

vocabulário, a formação das palavras e frases, além da semântica, para apreender o

158

sentido das expressões. Ou seja, a competência gramatical centra-se na compreensão de

como os elementos da língua combinam-se sistematicamente.

Nas indicações dos alunos, tal competência aparece como uma maneira dos

leitores demonstrarem de que modo partem da organização interna da língua para

estabelecer laços com outros conhecimentos que os auxiliam a determinar sentido para o

texto, tais como os conhecimentos textuais e de mundo110

(KLEIMAN, 2002; KOCH,

2010; KATO, 1999), que podem acabar por ficar mais aparentes nas justificativas dos

alunos conforme se apresenta na sequência do trabalho. Veja-se a tabela 2 para a

ocorrência da competência gramatical:

TABELA 2 – A incidência da competência gramatical nas justificativas dos alunos

Competência gramatical

Turma A Turma B

Texto 01 2 1

Texto 02 0 0

Texto 03 0 1

Total 2 2

Total de indicações 04

Notou-se um total de 04 ocorrências da competência gramatical nos excertos dos

alunos, mas nessas indicações outras competências também aparecem como parte das

justificativas dos leitores. Em outros termos, nos 04 extratos analisados, há uma

indicação nítida para a ativação da competência gramatical e observou-se, nas

justificativas, que os alunos procuram focalizar alguma questão gramatical ligada a

fatores textuais ou sociointerculturais, conforme se pode verificar nos excertos

analisados na sequência. Isso deixa ainda mais claro o fato de que há uma

multiplicidade de funções que se refletem na organização interna da língua

(HALLIDAY, 1985), isto é, a classe gramatical ou a semântica podem refletir diferentes

funções da língua, entre elas fatores relacionados à cultura, à ideologia, ou à sequência

textual.

As expressões linguísticas são utilizadas como mediadoras da interpretação dos

usuários, caracterizando estruturas linguísticas que canalizam a comunicação. Essa

comunicação, reitera-se, fica mais aparente na utilização das outras competências o que

110

Cf. cap. 1.

159

não significa que a competência gramatical tenha sido utilizada em escala tão pequena

assim.

De fato, notou-se que um dos pontos linguísticos destacados em quase todas as

escolhas - classificadas em todas as competências - é a seleção de palavras de conteúdo

tais como substantivos, verbos ou adjetivos, para demonstrar que ali há, para o leitor,

um conteúdo semântico mais nítido na construção de sentidos. Em alguns momentos, os

estudantes deixam clara essa relação entre classe gramatical e conteúdo semântico,

como no exemplo abaixo:

A.1.3.21 trocado: substantivo que dá o ponta pé inicial da

narrativa; lição: as falas do personagem principal são todas

sobre o determinado ensinamento. Estudo: pois é o tema de

critica no texto. teorema de Pitágoras: ironia principal do texto.

conhecimento: é o debate principal da narrativa.

O estudante justifica a escolha da palavra ‘trocado’ justamente pela relação

existente entre o conteúdo semântico, a classe gramatical – substantivo - e sua posição

na narrativa como um todo. É necessário dizer aqui que tanto a produção do enunciado

pelo autor, quanto a interpretação do leitor possuem em comum a expressão linguística

(HALLIDAY, 1985), base do conhecimento gramatical dos falantes para que sentidos

sejam (re)construídos e a comunicação da informação aconteça. Nesse caso, o leitor

destaca uma relação existente entre fatores gramaticais e textuais, os quais são

esclarecidos por ele na justificativa que relaciona o substantivo como foco e a sua

posição principal na narrativa.

Em outro exemplo, observa-se também a relação existente entre a função

gramatical da palavra no interior do texto e sua função no texto como um todo. Veja-se

o exemplo:

A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do

texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o

menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre

no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como

exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que

no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro.

O leitor, nesse caso, expõe uma das funções gerais da classe gramatical dos

adjetivos – caracterizar um substantivo (no caso do texto ‘o menino’), identificando o

160

personagem a partir do significado da palavra – e colocando-o em uma função de classe

social inferior. Note-se que a função do adjetivo, como classe gramatical, mistura-se

com a sua função textual de dividir os personagens em classes sociais. Essa mistura fica

evidente quando o aluno afirma que ‘esfarrapado é a palavra em que o texto caracteriza

o menino’. Isto é, para o leitor, o texto tem um papel importante porque tem o poder de

‘caracterizar o menino’. É a percepção do próprio texto e das relações que nele se

estabelecem que leva o leitor a construir características para o menino, e, por extensão,

para o texto, a partir da seleção do adjetivo ‘esfarrapado’. O estudante admite e indica

que essa caracterização é, além de gramatical, discursiva. Na ocorrência acima, a

maioria das palavras escolhidas são substantivos, além de alguns adjetivos (ambos de

classe aberta), o que, como se discutiu, auxilia o leitor na canalização de conteúdo

semântico principal do texto.

No entanto, deve-se observar que, mesmo na escolha de palavras de classe

fechada, tais como ‘não’, e o advérbio indefinido, ‘talvez’, o leitor procura estabelecer

uma ligação entre o seu conhecimento de mundo (sociointercultural) e a sua

competência gramatical. Ele parte daquilo que é próprio da língua e do sistema

linguístico – a negação ou a indefinição do ‘talvez’ - para estabelecer relações que

façam sentido para o texto que está lendo. O excerto abaixo demonstra o caso da

escolha do ‘não’:

B.1.3.22 esfarrapado pois se trata de um menino esfarrapado

pedindo dinheiro; jovem pois era um jovem normal que recebe

um pedido de dinheiro; estudo: pois o jovem tem estudo;

teorema de Pitágoras: pois o jovem faz essa pergunta para o

menino. Não: pois não sabe o que se trata o teorema de

Pitágoras.

A escolha do ‘não’, como palavra-chave para o texto 01, aqui está voltada para a

crítica principal do texto estabelecendo coerência. O leitor observa que o personagem

pergunta-se qual seria o teorema e, baseando-se nisso, infere que ele não o conhece.

Veja-se que a negação - valor semântico inerente e básico à palavra ‘não’ - está voltada

para uma questão textual exposta a partir da narrativa. Em outros termos, a semântica da

palavra ‘não’ mistura-se com a sua função de estabelecer a coerência como um

princípio da textualidade111

(BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981): se o personagem

111

Cf. cap. 1.2.

161

pergunta o que é o teorema, então, ele não sabe o que é ou do que trata tal fórmula

matemática.

Note-se, também na justificativa acima, que a utilização do adjetivo

‘esfarrapado’ indica a observação feita pelo leitor com relação ao personagem do texto,

explicitando a ligação existente entre substantivo e adjetivo, para a qualificação do

personagem, colocando-o na classe social de pobreza, assim como no exemplo anterior.

Na utilização do ‘talvez’, a dúvida presente na semântica do advérbio também é

demonstrada na justificativa do leitor:

B.3.3.14 quando nasci: deve ser quando ele se descobriu.

Talvez: tudo pode acontecer. Coração: ele quis passar

sentimento. Deus: ele deve ser religioso. Mundo vasto deve ser

mundo vazio, mundo triste.

Pela escolha da palavra ‘talvez’, para o texto 03, o leitor indica as possibilidades

de vida apontadas para o personagem principal, ou seja, ‘tudo pode acontecer’ na vida

dele. A semântica do advérbio – expor uma incerteza, possibilidade ou dúvida – é ligada

ao conhecimento de mundo do leitor para dar ao texto um sentido de possibilidades,

caminhos a serem seguidos na vida do personagem.

É importante considerar, também nesse exemplo, que o leitor procura

estabelecer para a expressão ‘mundo vasto’ uma semântica própria no interior do texto.

Na justificativa para a sua escolha, o leitor a conceitua e impõe a ela um sentido textual

de sentimento de tristeza. Veja-se que essa é uma construção do leitor a partir do texto,

o que só é possível pelas relações locais e discursivas ali estabelecidas. Isso acontece

porque a utilização do léxico não ocorre independente de sentidos textuais e culturais

dados a ele (CASTILHO, 2010), e há uma ligação próxima entre o seu significado e os

sentidos que se constroem a partir dele (ANTUNES, 2012)112

.

Destaca-se, ainda, que, mesmo que a competência gramatical não tenha sido

utilizada na justificativa dos alunos para as demais ocorrências, ela está sendo de

alguma forma explicitada quando o aluno, por exemplo:

- seleciona a relação verbo-objeto;

- seleciona a relação substantivo-adjetivo;

- reconceitua a palavra no interior do texto, ou seja, fornece a ela traços

semânticos de acordo com o contexto.

112

Cf. cap. 2.3.

162

Tais relações estão constantemente presentes nas justificativas para as demais

competências, conforme se poderá observar na sequência deste trabalho.

4.1.2 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência discursiva.

De acordo com o cap. 2 desta pesquisa, a competência discursiva compreende o

nível da competência comunicativa responsável pela maneira como o usuário da língua

estabelece relações intra e intertextos, e ainda como tais textos são organizados

socialmente em gêneros. Assim, é a partir da competência discursiva que o usuário

organiza a estrutura temática de um texto, indicando a forma como o entrelaçamento

constante de tópicos possibilita a construção textual de coesão e coerência. Para iniciar a

discussão sobre as justificativas que se encaixam na utilização dessa competência,

recorta-se a tabela 1, dada anteriormente, e mostram-se somente os dados considerados

para a competência discursiva na tabela 3 abaixo:

TABELA 3 – A incidência da competência discursiva nas justificativas dos alunos

Competência discursiva

Turma A Turma B

Texto 01 17 13% 28 21%

Texto 02 25 19% 21 16%

Texto 03 17 13% 22 17%

Total 59 45% 71 54%

Total de indicações 130

Um fator interessante é que, comparando-se as turmas A e B, a competência

discursiva apresenta-se percentualmente mais usada na turma B (54% do total de

indicações), a qual se mostra como uma turma que possui uma interação menor com a

leitura de acordo com os questionários socioculturais113

. Utilizar questões discursivas e

de gênero como âncora para o estabelecimento de sentido funciona como uma

possibilidade de fornecer um maior conforto aos leitores menos assíduos na interação

com o texto. Isso acontece porque o conhecimento das realidades textuais é armazenado

também em esquemas mentais (DIJK, 2002; KOCH, 2009) e auxilia a sequenciar uma

narrativa mais nítida para o texto. Talvez seja esse o motivo pelo qual a maior parte das

justificativas procura explicitar a sequência textual (nos três textos apresentados) por

113

Cf. cap. 3.

163

meio da escolha das palavras-chave, conforme se apresenta nos excertos mostrados na

discussão subsequente.

Outro número interessante é que do total de 130 indicações (somando-se os

resultados das turmas A e B) para a competência discursiva, 75 (média de 57% do total

de ocorrências) apresentam uma interação mais nítida com a competência

sociointercultural. Ou seja, em muitas das ocorrências há uma relação constante e

contínua entre fatores discursivos e sociointerculturais para a construção de sentido.

Tais justificativas serão analisadas mais adiante. Nesta seção, fala-se de aspectos

pertencentes à competência discursiva nas justificativas de alunos selecionadas para esta

discussão.

Sendo assim, o que se pretende analisar agora é a maneira como fatores

discursivos tais como sequência textual, focalização do tema(s) principal, construção de

coesão e coerência textual ou o apoio a características do gênero (p. ex. a crítica no caso

do texto 01 ou a argumentação no texto 02), são utilizados nas justificativas dos

estudantes para indicar a forma com que lidam textualmente com a produção de

sentidos. A tabela 4, na página seguinte, demonstra todas as palavras escolhidas como

chave para o texto 01, o número de alunos que as indicaram em cada turma e, em cores,

a classificação observada nas justificativas.

Deve-se ressaltar o fato de que ainda pode haver outras classificações para as

palavras. No entanto, as indicadas acima com cores foram as que se destacaram. Note-se

desde já que as questões de organização textual, tais como a divisão e caracterização

dos personagens (em azul) e a sequência textual da narrativa (em verde), se destacam na

escolha das palavras. Outro fator importante é que a caracterização do assunto principal

– ‘educação’ ou ‘estudo’ – e o estabelecimento da crítica do texto como reflexo do

gênero estão em equilíbrio na indicação dos alunos (um com 8 palavras indicadas em

vermelho e outro com 7 indicadas em amarelo respectivamente), o que reforça e apoia a

ativação da competência discursiva na construção do sentido global para o texto.

164

TABELA 4 – Levantamento das palavras-chave – Texto 01

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Estudo/ estudar 22 21 43

Teorema de Pitágoras 16 18 34

Pobre 15 16 31

Ensinamento/ ensinar 12 12 24

Rico 13 9 22

Dinheiro/trocado 10 5 15

Lição/lição preciosa 11 4 15

Conhecimento 11 3 14

Esfarrapado 4 7 11

Aprender 6 3 9

Instrução 5 3 8

Cinco/ cinco anos 5 2 7

Garoto/ menino 1 6 7

Senhor 2 4 6

Saber 5 0 5

Indigente 4 1 5

Diferença (de classe) 3 2 5

Destino 2 3 5

Estatísticas 2 3 5

Jovem 2 2 4

Oportunidade 2 2 4

Ofendido 3 1 4

Assombrado 1 2 3

Transmitir 1 2 3

Hipotenusa 1 2 3

Livro(s) 1 2 3

Divertir/diversão 2 0 2

Moro bem 1 1 2

Sofrendo 1 1 2

Bem vestido 0 2 2

Pessoas 0 2 2

Sua gente 1 0 1

Não 0 1 1

Legenda:

Palavras que caracterizam o assunto principal – 8 palavras

Palavras que caracterizam a divisão dos personagens/temas – 12 palavras

Palavras que marcam sequências textuais – 12 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a crítica do texto – 7 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao

estabelecimento de coerência – texto 1: diferença de classes, superioridade,

menosprezo114

- 12 palavras

114

Os fatores relacionados a essas indicações são analisados na seção 4.1.3 – competência

sociointercultural

165

No texto 01, tanto para a turma A quanto para a turma B, nota-se que a

sequência narrativa colocada na crônica evidencia-se na escolha das palavras-chave

como forma de demonstrar a oposição de classe social que se dá entre os personagens

no texto, bem como a estrutura temática. Num todo de 26 indicações (08 para a turma A

e 18 para a turma B) nas quais se observou mais fortemente a utilização da competência

discursiva, todas indicaram de alguma forma a focalização do tema principal do texto -

a educação (indicados com seta azul) - ou a sequência da narração (demonstrados com

seta verde). Deve-se lembrar que a classificação em cores acima demonstra cada palavra

em particular e não o extrato como um todo. Como cada leitor indica um total de 5

palavras, em alguns extratos a indicação para a competência discursiva foi maior e em

outros foi a sociointercultural, o que levou à classificação do extrato como um todo

conforme exposto nas tabelas 1 e 3 já indicadas acima sobre a incidência das

competências.

O exemplo do estudante abaixo ilustra a maneira como ele utiliza a competência

discursiva na produção de sentidos:

A.1.3.2 – lição, pobre, rico, estudo, teorema. Pobre e rico:

lembram os personagens. O senhor e o menino esfarrapado e

suas diferenças de classe social. Lição o ensinamento que o

senhor deu ao menino. Estudo conselho que o menino recebeu

pois o senhor disse que a diferença entre eles era o tempo de

estudo. Teorema de Pitágoras utilizado pelo senhor para

enfatizar o conselho dado ao menino pobre.

A partir da justificativa exposta, pode-se verificar que o aluno procura, em

primeiro lugar, mostrar a divisão dos personagens na narrativa - pobre e rico - e adequá-

los à classe social que fica marcante no texto. Ainda, o estudante procura demonstrar, na

escolha das palavras-chave, a maneira como os temas do texto vão se amarrando em

torno da lição, do ensinamento, do conselho dado para construir uma sequência

narrativa e estabelecer coerência para o texto: lição - momento inicial do texto em que o

senhor procura travar um diálogo com o menino e ‘dar’ um ensinamento; estudo -

momento do texto em que a questão principal centra-se no personagem mais pobre que

‘recebe’ o ensinamento, e os personagens são divididos em duas classes diferentes; e

teorema de Pitágoras - momento do texto em que há a crítica realizada a partir do

ensinamento dado. Observe-se na tabela 4, acima, que todas essas palavras foram

166

indicadas por um grande número de alunos e, na maioria das justificativas, verificou-se

a focalização da sequência da narração (indicadas com a seta verde).

Neste extrato também há uma ligação constante entre tema-rema115

(HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997): o elemento que identifica de que se fala

na sentença ou no texto é evidenciado: ‘conselho’, ‘ensinamento’, ‘lição’. Veja-se que

essas três palavras são caracterizadas pelo leitor como relacionadas ao mesmo elemento

dado no texto. Na sequência, o leitor evidencia o que é dito sobre o tema: ‘a diferença

entre eles era o tempo de estudo’. Ao dar destaque a essa relação tema-rema, o leitor

demonstra a maneira como os personagens se posicionam em classes sociais e a forma

como a narrativa se constrói.

Ainda um detalhe importante: a questão da identificação do gênero evidencia-se

quando os leitores procuram estabelecer uma crítica no texto expondo a diferença de

classes entre os personagens (indicados com setas amarelas na tabela 4). O leitor acima

destaca justamente ‘o senhor e o menino esfarrapado e suas diferenças de classe social’.

Note-se que é nesse ponto em que o autor constrói a crítica social, característica da

crônica, de que nem sempre altos níveis de escolarização se equiparam a um maior

conhecimento ou a uma alta posição na sociedade de classes. Os alunos estão

conscientes de que o gênero auxilia na identificação do texto e indicam, em algumas

palavras, a construção da crítica.

Outro aspecto frequente nas justificativas dos alunos foi focalizar o assunto

principal, o que é uma das funções das palavras-chave, conforme indicado na tabela 4

acima (palavras com seta vermelha). Na justificativa abaixo, embora o aluno não

fundamente todas as suas escolhas, a sua intenção é demarcar o ‘assunto principal’, ou

seja, a forma como a escolha das palavras-chave o auxilia na construção de um texto

dotado de sentido, ou como um texto coerente:

A.1.3.17 estudo, pobre, rico, lição, destino. Todas essas

palavras fazem parte do texto e todas elas tem um significado

diferente. Mas todas são englobadas no mesmo assunto.

O aluno demonstra claramente que há uma diferença semântica entre as

palavras, e que soltas, talvez não façam sentido. No entanto, ele explica que quando ‘são

englobadas’, constroem sentido textual e o auxiliam a estabelecer uma coerência, pois

115

Cf. cap. 2.2.3

167

estão relacionadas dentro do ‘mesmo assunto’. Isso demarca o princípio de textualidade

da cooperação (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981116

), em que o leitor decide

estabelecer para o texto sentido a partir da recuperação da coerência. No exemplo

acima, ainda, pode-se verificar que a marcação dos dois personagens fica nítida na

escolha de ‘pobre’ e ‘rico’, e que a questão do tema principal também fica evidente na

escolha de ‘estudo’ e ‘lição’, assim como na justificativa anterior, do aluno 2 da turma

A.

Na proposta de Halliday (1985) o tema é altamente carregado de comunicação

textual, sendo reconhecido como elemento da mensagem em si. É ele que carrega o

sentido principal das sentenças, as quais vão se encadeando para construir unidade

textual. É o que acontece, por exemplo, na justificativa abaixo:

B.1.3.4 transmitir, ensinamento, estatísticas, estudo,

assombrado. Transmitir ensinamento: de passar uma mensagem.

Estatísticas, assombrado: comparando pobre com o rico;

estudo: pobre estuda menos que o rico.

O elemento do tema principal focalizado pelo leitor fica marcado na escolha de

‘transmitir ensinamento’, em que tal expressão é ligada à ‘mensagem’ do personagem

rico em direção ao personagem pobre. A ligação entre o elemento escolhido e a

mensagem do texto é, de fato, estabelecida pela narrativa, num contexto do discurso

construído. A escolha de verbo e objeto como palavras-chave revela que as questões

sintáticas (competência gramatical, conforme discutido na seção anterior) não são

descartadas no momento de interpretar um texto. Ao contrário, são elas que auxiliam a

organizar a mensagem (HALLIDAY, 1985).

Note-se também aqui que, embora o estudante tenha escolhido palavras que não

revelam nitidamente os personagens em si - ‘estatísticas’ e ‘assombrado’ -, a sua

intenção é justamente de demarcar a comparação existente entre pobre e rico. Ainda, ele

argumenta na escolha de ‘estudo’ o seu enfoque em uma das relações dado-novo117

(HALLIDAY, 1985; MOURA NEVES, 1997, KOCH, 2009) presente no texto – pobre

estuda menos e rico estuda mais.

Veja-se mais um exemplo:

116

Cf. cap. 2.2.3 117

Cf. cap. 2.2.3

168

B.1.3.12 instrução, pobreza, trocado, estudo, Pitágoras.

Selecionei essas cinco pois com elas conseguiria remontar em

minha cabeça o desenrolar do texto citando estudo e como

exemplo o Pitágoras.

No exemplo acima o estudante expõe nitidamente a sua intenção com a escolha

das palavras-chave: ‘remontar [...] o desenrolar do texto’. Isso quer dizer que a escolha

das palavras ativa de forma contundente as questões discursivas do gênero narrativo, já

armazenadas pelo leitor, o que o auxilia na reconstrução da sequência do texto

(indicados com setas verdes na tabela 4).

Outro detalhe importante, nesse exemplo, é que o estudante destaca o tema

principal, ‘estudo’, e liga a ele o fator utilizado para construir a crítica principal do texto

‘teorema de Pitágoras’. Halliday (1985) afirma justamente que “a organização temática

das orações (e complexos de orações quando relevantes) expressam e também revelam o

método de desenvolvimento do texto” (HALLIDAY, 1985, p. 67). De certa forma, o

estudante procura escolher as palavras-chave, nessa justificativa, como forma

estratégica de apresentar o tema principal e as ramificações que se seguem a ele para

‘remontar’ o texto.

No texto 2, a exposição da sequência textual na escolha da palavra-chave fica

ainda mais nítida por se tratar de um texto argumentativo em que três tópicos principais

são discutidos como ramificações da engenharia genética: transgênicos, clonagem e

células-tronco. Há um total de 44 indicações em que surgem aspectos relacionados à

competência discursiva, sendo 25 para a turma A e 19 para a turma B. Dessas, 32

demonstram uma interação com a competência sociointercultural e serão analisadas na

seção 4.1.4 deste trabalho.

Dos 12 extratos em que a competência discursiva se destaca, a maioria inclui os

três tópicos como palavra-chave (9 indicações ao todo). A tabela a seguir demonstra

todas as palavras escolhidas pelos estudantes e as classificações, em cores para a sua

escolha:

169

TABELA 5 – Levantamento das palavras-chave – Texto 02

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Células (tronco) 22 24 46

Clonagem 20 23 43

Transgênicos 16 15 31

(Engenharia) genética 13 16 29

Embrião 6 12 18

Fertilização 4 12 16

Ética 7 4 11

manipulação 2 8 10

Natureza 3 2 5

Humano 2 3 5

Consequencia 3 1 4

Vida 3 1 4

Dilema 3 1 4

Sociedade 3 1 4

Impacto 4 0 4

Cura 2 1 3

Descobertas 2 1 3

(Engenhar) vegetais 1 2 3

Experimento 2 0 2

Fome 1 1 2

Doenças 1 1 2

Estudo 1 1 2

Problema 1 1 2

Turbilhão 1 1 2

Genes 1 1 2

Cadeia alimentar 1 1 2

Adotar 1 1 2

Possibilidade 0 2 2

Ecologia 0 2 2

Reino (vegetal/animal) 0 2 2

Posição 1 0 1

Profissionais 1 0 1

Arrastados 1 0 1

Realidade 1 0 1

Frágil 1 0 1

Maravilhas 1 0 1

Perigos 1 0 1

...

170

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Oportunismo 1 0 1

Clara 1 0 1

Benefícios 1 0 1

Sobreviver 1 0 1

Destruídos 1 0 1

Riscos 1 0 1

Escolha 1 0 1

Nova chance 1 0 1

Desequilíbrio ambiental 0 1 1

Rejeitados 0 1 1

Favoravelmente 0 1 1

Dúvida 0 1 1

Alimento 0 1 1

Crítico 0 1 1

Debate 0 1 1

Hipocrático 0 1 1

Necessidades 0 1 1

Complica 0 1 1

Legenda:

Palavras que caracterizam o assunto principal – 22 palavras

Palavras que caracterizam a divisão dos temas/assuntos – 26 palavras

Palavras que marcam sequências textuais – 26 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a argumentação do texto – 13 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao

estabelecimento de coerência – Texto 2: ética, benefícios, riscos118

- 25 palavras

Note-se que, na tabela acima, a divisão dos temas e a marcação da sequência

textual (respectivamente em azul e verde na tabela) são os fatores de maior número de

indicações dos estudantes. Veja-se o exemplo do estudante abaixo que demonstra a

divisão dos temas:

B.2.3.13 genética – para lembrar que o texto fala sobre genética.

Transgênicos: para lembrar dos alimentos geneticamente

modificados. Clonagem: para lembrar da clonagem humana.

Embrião: para lembrar que os embriões são destruídos no

processo de retirada de célula tronco. Células: para lembrar que

o texto se refere à células tronco.

118

As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3

...

171

Na justificativa acima, se destaca a ramificação dos temas discutidos no texto:

genética – transgênicos, clonagem, células. O estudante ainda declara que utiliza tais

palavras ‘para lembrar’ de tais temas que considera como principais no texto.

Observe-se, no texto, que o autor expõe claramente que há uma sequenciação de

temas afirmando: “Primeiro, os alimentos transgênicos”. Fica fácil para o leitor notar

que, se há um primeiro tema (os alimentos transgênicos), é provável que haja um

segundo, um terceiro e talvez outros na sequência. Ou seja, o leitor procura encontrar

essa sequência de elementos no interior do texto. De fato, de acordo com Koch (2009) e

Koch e Elias (2010), a sequenciação textual é um dos elementos da produção do texto

que auxilia o leitor na organização dos elementos e garante a construção da coesão e da

coerência. Ainda, de acordo com os princípios da textualidade de Beaugrande e Dressler

(1981), ao aceitar o texto como contendo coerência e um elemento que segue regras

sociais de produção (princípio da aceitabilidade119

), o leitor interage com ele procurando

os elementos que o constroem como um texto. O que se quer dizer com isso é que

mesmo que o autor não tenha exposto os demais elementos (segundo e terceiro)

nitidamente no texto, o leitor é capaz de encontrá-los pela sequência da exposição de

um primeiro e a alternância de temas expostos nos parágrafos seguintes do texto. De

fato, é o que o leitor acima faz: ele expõe o tema principal do texto – ‘genética’ – e a

partir dele os subtemas percebidos na sequência argumentativa do texto –

‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’. Na tabela 5, colocada acima, essas são

justamente as palavras mais frequentes indicadas pelos alunos com a intenção de marcar

a divisão temática do texto (indicados com seta azul).

Observe-se, ainda, que a escolha de embriões também está ligada a um fator da

competência discursiva: destacar uma das argumentações principais dadas no texto a

respeito da utilização de células-tronco - a destruição dos embriões no momento da

retirada das células-tronco. A escolha dessa palavra pode, de fato, estar associada a

algum conhecimento do aluno a partir do qual ele concorda ou não com essa atitude,

fazendo com que haja uma força ilocucionária dada ao texto pela escolha da palavra-

chave. Ressalta-se que a canalização da força ilocucionária do enunciado é, de fato, uma

das características da palavra-chave120

(CAVALCANTI, 1989).

No exemplo seguinte, o informante destaca as palavras dos três tópicos

discutidos no texto, ligadas à sequência da exposição:

119

Cf. cap. 1.2. 120

Cf. c cap. 2.3.

172

A.2.3.21 engenharia genética: tema principal do texto. posição:

pois o texto fala da posição do autor diante de determinado

assunto. Transgênicos: tema principal do 1º assunto abordado.

Clonagem: tema principal do 2º assunto abordado. Células-

tronco: tema principal do último assunto abordado.

Veja-se que a escolha se dá justamente pelo ‘tema principal’ e pelos subtemas

(1º. assunto, 2º. assunto, último assunto) a ele ligados como uma sequência que faz com

que o leitor acompanhe o raciocínio argumentativo do autor. O leitor indica, ainda, a sua

observação sobre a força da argumentação do texto indicando ‘posição’ como uma

forma de recuperar ou reconstruir o tipo textual exposto no texto (tipologia

argumentativa): ‘o texto fala da posição do autor diante de determinado assunto’. Na

tabela 5, há também outras palavras indicadas pelos leitores que os auxiliam a construir

a argumentação típica do gênero artigo de opinião (indicados com seta amarela).

Outro detalhe importante nas indicações para o texto 2, é que a escolha das

palavras-chave auxilia os leitores a delinear o caminho percorrido pelo autor na

exposição do assunto principal do texto, fazendo com que os fios semânticos

(CAVALCANTI, 1989), utilizados para a construção de sentidos, sejam tecidos. Na

tabela 5 acima, verifica-se que a maior quantidade de indicações de palavras-chave foi

por conta da focalização do assunto(s) principal (s), temas ou sequência textual

(indicados em vermelho, azul e verde, respectivamente), o que corrobora o fato de que

os leitores procuram basear suas interpretações em características discursivas. Na

indicação abaixo o estudante não justifica a sua escolha palavra por palavra, mas explica

que elas foram selecionadas representando o texto como um total, evidenciando as

relações de sentido indicadas por ele:

B.2.3.16 engenharia genética, transgênicos, clonagem, células-

tronco e embriões. Eu escolhi essas palavras porque elas estão

representando todo o fogo do texto, deixando bem claro o

assunto tratado pelo autor.

No entanto, é importante notar que a sequência exposta no texto fica nítida pela

escolha das palavras: há um tema principal – ‘engenharia genética’ – e subtemas –

‘transgênicos’, ‘clonagem’, ‘células-tronco’, ‘embriões’.

O leitor ainda utiliza uma metáfora, ‘o fogo’ do texto, para destacar um tópico

textual, ou para demarcar a tipologia argumentativa, o que é importante para ele: ali

173

existem pontos em oposição, os quais podem gerar discussões e polêmica. A escolha

final da palavra ‘embriões’ busca demonstrar justamente a argumentação mais forte

feita no fechamento do texto, na qual o autor declara-se a favor do uso de células-

tronco, o que é diferente das argumentações anteriores, em que o autor posiciona-se

contrário às práticas de transgenia e clonagem. Nota-se que a construção da opinião do

autor durante o texto se dá de forma diferenciada para os três tópicos: No primeiro

tópico, transgênicos, o autor declara-se contrário ao afirmar que esses podem causar um

“desequilíbrio na cadeia alimentar” e que a “natureza é frágil”. No segundo tópico, a

clonagem, o autor também se declara contrário à sua prática afirmando que há

experimentos sendo realizados para os quais ele espera que “o navio jogue tanto que as

pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. No entanto, no terceiro tópico,

o autor constrói uma posição argumentativa diferenciada: declara-se a favor à utilização

das células-tronco expondo a crítica e a sua argumentação favorável de que estas são

usadas para curar doenças e salvar vidas. O leitor acima destaca, justamente, que o

‘fogo’ do texto está na sequência dos temas expostos pelo autor na construção de suas

opiniões, e no fechamento do texto, quando o autor expõe uma posição diferente das

anteriores.

Antunes (2012) explica que além de fornecer uma estruturação propriamente

dita, as palavras escolhidas para a produção de um texto (ou o léxico – ANTUNES,

2012) também fornecem “pistas” claras em que o leitor se apoia como se fossem

“pedras” (ANTUNES, 2012, p. 100), para a reconstrução do texto. Isso leva à afirmação

de que nenhuma escolha de palavras como chave é aleatória. Tais escolhas são uma

forma de estabelecer o valor semântico das palavras encontradas no texto juntamente a

todo o seu valor de sentido textual estabelecido pelos fios que conduzem a interpretação

(CAVALCANTI, 1989) e auxiliam na construção da coerência (KOCH; TRAVAGLIA,

2011).

Esse apoio nas palavras para o estabelecimento de sentidos e da sequência

argumentativa do texto também se dá na escolha de palavras-chave que não revelam,

necessariamente, os três tópicos, mas que, nas justificativas dos leitores, estão

claramente ligados a eles. Por exemplo:

A.2.3.14 células-tronco: entendi que ajudam pessoas a

sobreviverem e até curar doenças que não tinham cura.

Engenhar vegetais: são um engenho que eles produziram que é

capaz de alimentar plantas e matando praga. Clonagem

174

humanos: no texto entendi que antes eles clonavam animais e

agora eles querem testar em humanos. Destruídos: no texto que

eu entendi que os cientistas dizem que podem matar “destruir”

os embriões para dar vida a outros. Embriões: que são parte da

célula tronco para que possa salvar vidas.

Observe-se que não há a escolha da palavra ‘transgênicos’, mas o argumento

usado para falar desse tópico fica claro na escolha do elemento verbo-objeto ‘engenhar

vegetais’. Ainda, não aparece nitidamente a escolha da palavra célula-tronco, mas o

leitor a ressalta a partir do argumento dado a ela – uso de ‘embriões’ - e justifica sua

escolha se fundamentando no ponto de vista textual de que as células-tronco retiradas de

embriões, que são descartados, ajudam a salvar vidas. Nota-se, também, que o leitor

salienta a argumentação – tipologia textual própria do gênero artigo de opinião -,

destacando as palavras ligadas à construção dos tópicos explicados pelo autor:

‘alimentar plantas’ e ‘matar pragas’ - transgênicos; ‘testar’ clonagem ‘em humanos’ -

clonagem; ‘destruir’ os embriões para ‘dar vida a outros’, ‘salvar vidas’ - células-tronco.

Nos exemplos expostos acima fica claro que a competência discursiva do leitor

demonstra, na escolha das palavras-chave, o assunto sobre o qual trata o discurso ou

parte dele, destacando no texto um falar sobre algo (DIJK, 1977a), ou seja, uma

coerência. A coerência é estabelecida pela recuperação do tópico da conversação e do

tópico do discurso (DIJK, 1977a; KOCH; TRAVAGLIA, 2011;

BEAUGRANDE;DRESSLER, 1981). É o que o leitor faz quando escolhe as palavras-

chave como forma de estabelecer um resumo para a argumentação exposta pelo autor, o

que significa que as regras semânticas colocadas nas palavras e suas relações permitem

a utilização das habilidades discursivas dos usuários de resumir o texto em uma

macroestrutura global (DIJK, 1977a).

A tentativa de recuperação da coerência do texto também fica clara nas

justificativas das palavras-chave para o texto 3. Nesse texto, do total de 36 justificativas

para a competência discursiva, 5 delas relatam nitidamente questões mais discursivas,

tais como focalização da relação tema-rema ou sequência textual. As demais estão em

ligação com a competência sociointercultural. Essa observação pode ser explicada pelo

gênero do texto – poema – uma vez que, em textos poéticos, a organização superficial

do texto é motivada por correspondências especiais ao significado e propósito da

comunicação geral (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981).

175

Na tabela 6, abaixo, fica aparente o fato de que a maioria dos estudantes justifica

a escolha das palavras-chave como forma de caracterização do(s) personagem(s)

(indicadas com seta azul), ou como forma de estabelecer uma coerência por meio da

criação de uma sequência narrativa (indicadas com seta verde).

Observe-se também que há uma alta indicação para palavras que ativam

conhecimentos de mundo dos leitores (indicadas com seta rosa), o que será analisado na

seção 4.1.3 deste trabalho.

TABELA 6 – Levantamento das palavras-chave – Texto 03

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Deus 8 11 19

Gauche 8 10 18

Anjo (torto) 6 10 16

Fraco 9 4 13

Abandonar 8 5 13

Nascer 6 7 13

Coração 5 8 13

Homem 3 10 13

Mundo 3 9 12

Desejos 5 6 11

Pernas 4 7 11

Bigode 4 5 9

Bonde 3 6 9

Mulher 1 8 9

Carlos 3 5 8

Diabo 1 7 8

Amigos 6 1 7

Comovido 3 4 7

Raimundo 2 4 6

Solução 3 2 5

Sombras 2 3 5

Conhaque 1 3 4

Dizer 1 2 3

Sabias 2 0 2

Azul 2 0 2

Vasto 1 1 2

Sério 1 1 2

...

176

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Espiar 0 2 2

Simples 1 0 1

Raros 1 0 1

Pergunta 1 0 1

Forte 1 0 1

Cheios de pernas 1 0 1

Vida 0 1 1

Talvez 0 1 1

Óculos 0 1 1

Conversa 0 1 1

Legenda:

Palavras que caracterizam o assunto principal – 10 palavras

Palavras que caracterizam a caracterização dos personagens/temas – 22 palavras

Palavras que marcam sequências textuais - 23 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do texto – 9 palavras

Palavras que auxiliam o leitor a ativar conhecimentos de mundo que levam ao

estabelecimento de coerência – texto 3: emotividade, tristeza, comoção, desespero121

-

22 palavras

Veja-se no excerto de um dos estudantes selecionados, a maneira como o aluno

procura estabelecer coerência, sequenciando ações de uma narrativa:

B.3.3.8 anjo torto: o anjo fala com Carlos. Carlos: o rapaz fora

de rumo. Pernas e bonde: fala das mulheres. Meu Deus:

apelação a Deus/ porque me abandonastes.

Nesta justificativa do aluno 8 da turma B, a tentativa de estabelecer uma

coerência do texto pela sequência fica aparente pela escolha das palavras e nelas a

separação dos acontecimentos textuais. O leitor procura separar as estrofes em pequenas

sequências de acontecimentos e o faz a partir da seleção de palavras que possam auxiliá-

lo nesta relação de uma história sendo narrada: primeiro o personagem do texto – Carlos

e uma narrativa primária – um anjo falando com ele. Na sequência, o leitor relata um

segundo momento da narrativa, no qual o personagem se depara com as mulheres. E

num terceiro momento narrativo, o leitor procura estabelecer a tristeza do personagem

por ser abandonado por Deus. Ou seja, o leitor realiza um cálculo de sentido apelando a

fatores contextuais de ordem sociocognitiva e interacional, o que o faz construir a

coerência ou organizar as informações do texto em sequência (KOCH; ELIAS, 2010).

121

As indicações que apresentam esse tipo de classificação são analisadas na seção 4.1.3

...

177

Na tabela acima, a indicação da organização de informações sequenciais de uma

narrativa, representadas pelas setas verdes, são justificativas frequentes para a escolha

das palavras-chave.

Nesta segunda justificativa, abaixo, acontece mais ou menos a mesma

sequenciação, mesmo sem haver uma explicação nítida para as escolhas feitas pelo

leitor:

B.3.3.3 carlos, bonde, deus abandonaste porque é as palavras

que mais marcaram o texto.

Veja-se que o leitor utiliza palavras presentes em estrofes sequenciais do poema

e diz que seleciona as palavras para ‘marcar’ o texto, o que pode ter acontecido para

identificar pontos na sequência textual ou destacar sentidos. Essa marcação também se

dá na seguinte justificativa:

B.3.3.25 Deus: porque é uma palavra que marca; pernas: porque

fala várias vezes; Raimundo: porque é bem massa; diabo:

porque me lembra algo.

No exemplo acima, além do leitor apresentar a marcação temática dada na

escolha das palavras-chave, ele procura indicar a remissão presente ao indicar ‘pernas’

por ‘falar várias vezes’. Na verdade, a palavra aparece três vezes no texto como

indicativo de que o autor as vê constantemente na construção do próprio poema (“pra

que tanta perna meu Deus?”). O leitor procura indicar essa palavra-chave como algo que

é constante no texto em uma das sequências textuais e divide a escolha das outras

palavras em momentos diferentes do poema. De acordo com Antunes (2012) as palavras

repetem-se em um texto não por mero acaso, mas porque isso é um recurso de

textualização que provoca efeitos discursivos. A repetição serve para marcar a

continuidade do tema, reiterar algo, provocar efeito de ênfase, reforço ou intensificação,

abrir uma explicação, marcar o final do texto como recurso de fechamento (ANTUNES,

2012). No caso dessa indicação, o leitor identifica um efeito discursivo da palavra-chave

escolhida, observando a ênfase e intensificação dadas à palavra ‘perna’ e indicando-a

como item remissivo que marca um determinado tema do texto.

A palavra ‘perna’ aparece em outra das justificativas também com a intenção de

marcar uma das sequências:

178

B.3.3.9 coração, Deus, abandonaste, perna, conhaque. O texto

coloca essas palavras meio interligadas pois ele fala sobre o

coração dele e coloca Deus do poema pedindo porque o

abandonaste se sabia que era fraco, com tantas pernas porque

meu deus tanta perna pergunta o meu coração se no final

termina com conhaque que deixa comovido como o diabo.

Note-se que, nessa indicação, o leitor seleciona as palavras e as justifica também

pela sua ‘interligação’, estabelecendo entre elas uma relação que liga os fios semânticos

do texto (CAVALCANTI, 1989) e construindo para ele coerência (KOCH;

TRAVAGLIA, 2011). O leitor procura reformular uma pequena história utilizando as

palavras por ele selecionadas e destacando os momentos da narrativa: falar do coração,

falar com Deus, ser abandonado, encontrar com as pernas, beber conhaque, comover-se.

Nessa indicação, o leitor demonstra a forma como as palavras-chave selecionadas o

auxiliam na reconstrução de uma sequência textual e também no estabelecimento da

coerência pela organização da narrativa. Reitera-se que essas foram justificativas

frequentes para a escolha das palavras conforme apresentado (com setas verdes) na

tabela 6 acima.

Destaca-se que a coerência não está no texto em si, mas se constrói na interação

entre leitor e autor por meio das pistas do texto em ligação com os conhecimentos

diversos que se possui da realidade (KOCH; ELIAS, 2010). Nesse caso, o texto faz

sentido para o leitor porque a sequência de ações que ele observa é possível em sua

realidade. Admite-se, no caso do texto 03, que outros conhecimentos, culturais e sociais,

podem estar sendo utilizados para sequenciar as ações narrativas e isso acontece

justamente pelo gênero do texto que deixa as possibilidades de interpretação mais

abertas122

. Vale notar o fato de que, para o texto 3, há algumas indicações de palavras

que auxiliam o leitor a estabelecer a emotividade do poema (indicadas com setas

amarelas). Isso mostra que diversos fatores textuais, entre eles a caracterização do

gênero, interagem entre si pela ativação da competência discursiva na construção de

sentidos.

É importante repetir que a seleção de uma palavra-chave não é aleatória, mas em

seu entorno é possível construir a ideia principal (ou as ideias) do texto (SOLÉ, 1998).

122

Sobre a relação entre aspectos discursivos e conhecimentos de mundo do leitor (competência

sociointercultural), ver a seção 4.1.4 deste trabalho.

179

Grande parte dos alunos, de fato, utilizou fatores discursivos para apoiar a escolha das

palavras-chave e focalizar aspectos nucleares nos três textos como o assunto principal, a

sequência textual, os personagens, os temas e as características do gênero, conforme

apresentado no gráfico a seguir:

GRÁFICO 5 – A classificação da utilização das palavras-chave nas

justificativas dos estudantes

Verifica-se que, com relação ao texto 01, as ideias principais são marcadas pela

narrativa, a focalização dos personagens e suas condições sociais impostas no texto. No

texto 02 as ideias são marcadas principalmente pela sequenciação textual dada pela

argumentação, e no texto 03 as ideias ficam marcadas pela tentativa de estabelecer laços

semânticos que estabeleçam a coerência textual. Observa-se aqui um fator importante na

caracterização da competência discursiva: o gênero textual e a tipologia textual

(MARCUSCHI, 2003; KOCH, 2009). Nas indicações analisadas acima, assim como nas

demais indicações dos alunos, o gênero do texto está em constante diálogo na interação

do leitor com o texto:

a) Texto 01: o gênero crônica - de tipologia predominantemente narrativa – reflete-

se na escolha das palavras-chave pelos estudantes. Notou-se, nas indicações, que

a sequência da narração e a divisão dos personagens, apontados em azul e verde

no gráfico acima, são fatores de constante indicação na justificativa para a

escolha das palavras e, consequentemente, na interpretação dada pelos leitores.

180

O leitor ativa seus conhecimentos com relação ao gênero e sua forma para

reestabelecer a narração do texto, sua sequência e seus personagens. Outro

detalhe importante é a construção da crítica apresentada no texto, característica

do gênero crônica, e indicada pelos alunos também como justificativa na escolha

das palavras-chave conforme apontado em amarelo no gráfico acima;

b) Texto 02: a tipologia argumentativa do gênero artigo de opinião é destacada

pelos informantes na seleção das palavras-chave: a maioria dos estudantes

seleciona as palavras relacionadas ao tópico principal (genética, transgênicos,

clonagem, células-tronco), as quais são demonstradas em azul e verde no gráfico

acima, e a elas ligam os argumentos dados pelo autor procurando indicar que ali

existe uma posição, uma crítica ou uma opinião, características do gênero,

apontadas na construção da argumentação, o que é demonstrado em amarelo no

gráfico;

c) Texto 03: o gênero poema, por possuir características comunicativas que ativam

emotividade da língua, também é evidenciado na escolha das palavras-chave

pelos leitores. Observaram-se nas indicações deste texto dois fatores principais

para relação gênero-interpretação: a) os alunos procuraram, na escolha das

palavras, evidenciar a emotividade própria do gênero (apontado em amarelo no

gráfico) e a relacionaram com as exposições feitas pelo autor a partir da ativação

da competência sociointercultural (é o caso da escolha de ‘triste’ ou ‘tristeza’,

‘coração’, ‘comovido’123

), o que é apontado em rosa no gráfico acima; e b) o

leitor procura estabelecer para o texto uma coerência baseada em uma história

sendo contada pelo autor, sequenciando ações pela escolha de palavras que

identificam diferentes momentos do poema, o que é indicado em azul e verde no

gráfico.

Deve-se destacar que a competência discursiva que faz uso dos conhecimentos

textuais do leitor (de gêneros ou tipologias) tem uma função importante na atividade de

leitura (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009). Isso porque os tipos textuais têm traços

linguísticos predominantes que tecem uma base de compreensão do texto formando uma

sequência (MARCUSCHI, 2003). Por outro lado, os gêneros textuais organizam o

discurso ou as produções textuais (BAKHTIN, 2000) tanto quanto as formas

gramaticais organizam as sentenças que utilizamos. Ou seja, o usuário da língua aprende

123

Fala-se mais sobre indicações desta natureza na seção seguinte sobre a competência sociointercultural.

181

a moldar suas produções linguísticas a um determinado gênero e a adivinhar o que o seu

interlocutor vai lhe dizer pela adequação da situação comunicativa a um gênero. Há uma

sensibilidade do usuário a um todo discursivo que o capacita a evidenciar diferenças de

compreensão (BAKHTIN, 2000).

Em suma, de acordo com o que se discutiu até aqui, a competência discursiva

auxilia o leitor a:

a) Sequenciar o texto em momentos diferentes de ações textuais;

b) Identificar a relação existente entre tema-rema ou informações velhas e

novas (relação dado-novo), costurando sentidos para o texto;

c) Reconhecer a intenção comunicativa do texto relacionada ao tipo e

gênero textual;

d) Destacar tópicos discursivos discutidos pelo autor e que devem ser

identificados pelo leitor como marcas discursivas;

e) Salientar pistas linguísticas que o levam a estabelecer coerência textual.

4.1.3 A palavra-chave como estratégia para a utilização da competência

sociointercultural.

Conforme se apresentou na seção 2.2.2 deste trabalho, a competência

sociointercultural considera fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo

bem como o contexto e o diálogo constante entre discursos e culturas, dos quais o

usuário participa em seu cotidiano e que o leva a produzir sentidos. Em outros termos,

considera-se que a competência sociointercultural constrói-se a partir do

desenvolvimento da habilidade dos falantes de utilizar:

a) Fatores e regras sociais que influem no ato comunicativo (HYMES, 1995);

b) A gramática de contexto (SCOLLON; SCOLLON, 2001124

) que inclui aspectos

como a cena, o tom da fala, o ambiente social entre outros;

c) As diferentes culturas (interculturalidade) vividas pelos usuários bem como os

diferentes discursos e ideologias a que são expostos e que interferem na

produção de sentidos (KRAMSCH, 1993; 1998).

124

Cf. cap. 2.2.2.

182

De acordo com os dados levantados e com a conceituação de competência

sociointercultural desenvolvida para este trabalho, as justificativas, por excertos,

classificadas nessa dimensão, são expostas na tabela 7 abaixo:

TABELA 7 – A incidência da competência sociointercultural nas justificativas dos

alunos

Competência sociointercultural

Turma A Turma B

Texto 01 21 15% 17 12%

Texto 02 23 17% 21 15%

Texto 03 28 28% 24 18%

Total 72 53% 62 46%

Total de indicações 134

O que se nota é que a competência sociointercultural aparece com maior

recorrência do que as competências gramatical e discursiva na classificação das

justificativas para a escolha das palavras-chave dos alunos.

Como se pode observar nos excertos selecionados e expostos na sequência deste

estudo, essas ocorrências incluem, principalmente, fatores (inter)culturais e sociais na

construção de sentidos para o texto. Ainda, como na competência discursiva discutida

na seção anterior, grande parte das justificativas é classificada em interação com outras

competências (75 indicações) e serão analisadas na seção seguinte (4.1.4) deste

trabalho. Procura-se explicar e demonstrar agora a forma como os dados fornecidos

pelos informantes revelam fatores pertencentes à competência sociointercultural.

Para as 28 indicações dessa competência no texto 01, 13 foram da turma A e 15

da turma B. Dessas indicações, a maioria relaciona um aspecto social importante para a

interpretação do texto: a classe social dos personagens. Atrelado a esse fator, questões

socioculturais tais como preconceito, superioridade do rico em relação ao pobre,

oportunidades de sucesso são muito frequentes. No exemplo abaixo é possível verificar

a ocorrência questões socioculturais:

A.1.3.22 indigente: uma pessoa dispensável, sem importância.

Estudo. [na linha seguinte] - Rico: achando que porque tem

dinheiro pode humilhar uma pessoa. Aprender: talves [sic] o

menino não aprendeu não porque não quis mais sim porque não

teve a oportunidade. Ofendido: o senhor não gostou de saber que

o menino não estava nem aí pro teorema de Pitágoras.

183

A escolha da palavra-chave ‘indigente’ procura caracterizar o personagem pobre

dentro de uma compreensão discursiva e social (e, portanto, também cultural) de que o

mais pobre não tem importância. Ainda a escolha de ‘rico’ reforça essa construção do

leitor ao destacá-lo como aquele que ‘humilha’ o outro por sua condição social.

Outro detalhe importante nessa justificativa é a relação que o leitor estabelece

entre a escolha de ‘aprender’ e a não obtenção de uma ‘oportunidade’ de aprendizado.

Destaca-se aqui o perfil socioeconômico dos informantes: a maioria dos alunos possui

uma renda familiar relativamente baixa, de três a sete salários mínimos na turma A, e de

um a cinco salários na turma B125

. Tal fator pode ser utilizado no destaque de questões

relacionadas à diferença de classe social, principalmente quando se indica que o pobre

não tem a mesma oportunidade que o rico. Agora, outro exemplo parecido indicado na

turma B:

B.1.3.9 destino, diferença, estudo, pessoas, trocado. Essas 5

palavras estão relacionadas de uma maneira pois no texto ele

fala que rico é coisa do destino e diferença estabelecida é sim o

estudo entre eles. Pois as pessoas da classe alta estudam mais do

que o pobre e se o garoto tivesse conhecimento ele não ganhou

algum trocado que ele havia pedido e sim ganharia muito

dinheiro.

Nessa justificativa, o estudante seleciona vários substantivos do texto e neles

mostra a diferença de classes entre rico e pobre. Nesse caso, os sentidos textuais são

construídos possuindo como foco a questão da diferença de classes. Ainda, ele liga a

essa diferença à questão do estudo afirmando que ‘ele fala que rico é coisa do destino e

diferença [...] é sim o estudo entre eles’. Veja-se que há uma voz social-discursiva

interagindo na produção de sentidos que diz que para ser rico é necessário ter estudo.

Essa ideia é reforçada quando o leitor afirma que tendo estudo, o que ele destaca na

escolha da palavra ‘conhecimento’, o menino pobre teria ‘muito dinheiro’ e não ‘algum

trocado’.

Por outro lado, o estudante indica ainda que riqueza é também resultado do

‘destino’. Ou seja, somente estudar não é suficiente para que o rico seja rico. Para tanto

é necessária outra força que facilita a vida - o destino. Nota-se que há uma diversidade

de discursos e comportamentos sociais (ou culturas) que entram em diálogo aqui: Para

125

Cf. cap. 3.

184

ser rico é preciso estudar; para ser rico é preciso ser premiado pelo destino; quem é

pobre e não for premiado pelo destino, precisa estudar mais; quem é rico tem mais

oportunidade de estudar do que o pobre.

Observe-se tanto no exemplo da turma A (A.1.3.22), acima, quanto no da B

(B.1.3.9) que a percepção do indivíduo sobre a classe social, ou sobre a diferença de

classes existente na sociedade é evocada a partir de seus conhecimentos de mundo e

dialoga aqui na maneira como e quais sentidos devem e podem ser construídos a partir

do texto. Esses sentidos só podem ser construídos porque na realidade vivida pelos

leitores, a diferença de classes é evidenciada em fatores sociais tais como ter dinheiro

significa mais tempo e mais oportunidades para se dedicar à educação, discriminação

social com relação aos pobres, oposição entre as classes sociais pela divisão de espaços

sociais entre elas.

Há também um processo de ativação de aspectos sociointerculturais nas

interpretações dos alunos quando eles se colocam no lugar do personagem ou assumem

para si um sentido extraído do texto. No exemplo,

A.1.3.26 no texto a palavra estudo me chama a atenção porque

mostra como devemos tê-lo. As palavras pobre e rico passa uma

imagem de desigualdade social. A palavra indigente mostra

como o personagem rico se acha melhor que o menino pobre.

Dinheiro porque como o personagem rico o coloca em primeiro

lugar, antes mesmo do próprio conhecimento.

O estudante se coloca como aquele que recebe o conselho de estudar quando

destaca a palavra ‘estudo’ e a justifica com o verbo em primeira pessoa: ‘me chama

atenção porque mostra como devemos tê-lo’. Ainda, liga a isso o fator de que há uma

‘desigualdade social’ e que o rico possui atitudes de menosprezar o pobre. É perceptível

que isso foi uma inferência do leitor a partir de uma realidade armazenada em seus

conhecimentos, pois o texto não traz essa informação de forma explícita.

No entanto, o leitor reconhece a importância do estudo, mas não concorda com a

ideia de que estudo e dinheiro são equivalentes, pois afirma que o personagem coloca o

dinheiro ‘antes do próprio conhecimento’. Para o leitor, estudo e conhecimento são os

fatores importantes para sua vivência (fatores culturais, portanto), mas o dinheiro é

destacado como fator de desigualdade social e não como resultado do

estudo/conhecimento.

185

Também nesse exemplo, o informante pode estar sendo influenciado por fatores

contextuais sociais, a partir dos quais se diz que é preciso estudar como uma forma de

prática social. Essa ideia dialoga com o leitor anterior, o aluno 9 da turma B, que

destaca que, além de estudo, a pessoa precisa de um auxílio do destino. Ou seja, há um

processo de culturas em diálogo constante criando sentidos possíveis uma vez que o

contexto gera uma matriz na língua enquanto discurso e dialoga na produção de sentidos

(KRAMSCH, 1993). Nesse caso há um diálogo cultural sendo estabelecido mediante o

uso da língua quando os leitores destacam que somente o estudo não faz com que o rico

fique rico. Na relação entre as diferentes culturas vividas pelos informantes, a riqueza

pode ser resultado não só do estudo, mas do ‘destino’, como destaca o leitor, das

‘oportunidades’ que são mais fáceis para quem possui uma classe social mais alta, ou

pela própria diferença de classes que se mantém historicamente na sociedade: o rico tem

mais oportunidades, estuda mais e consequentemente continua sendo rico.

Note-se, no exemplo abaixo, a maneira como o contexto de vivência é utilizado

para a construção de sentidos no texto:

A.1.3.11 dinheiro: ele “puxa” o assunto principal do texto, é

uma coisa frequente que acontece, ver jovens na rua pedindo

dinheiro mas as pessoas incentivam isso dando esmolas;

oportunidade: se tiver espaço, aproveitar as oportunidades saber

ouvir e executar. Pobre: a falta de oportunidades a diferença das

classes como: educação, alimentação habitação, etc. Estudo:

essencial mas não atinge a todos, infelizmente tem essa

diferença , o país teria que desenvolver mais políticas publicas

que abranja a todos. Conhecimento: a cultura que cada um tem

as diferenças, no vocabulário. Na verdade, as palavras estão

todas interligadas.

O leitor destaca na escolha da palavra ‘dinheiro’ o enfoque discursivo dado ao

assunto principal do texto, mas a ele relaciona questões reais de ‘ver jovens na rua

pedindo dinheiro’. Destaca-se aqui a forma como os frames126

(KOCH, 2009; DIJK,

2002; KLEIMAN, 2002) atuam na produção de sentidos. A realidade textual de haver

um menino pobre pedindo esmolas é ligada à vivência real do aprendiz - ‘uma coisa

frequente que acontece’. Talvez, o leitor não conseguisse estabelecer o mesmo sentido

se fosse um menino rico pedindo esmolas ou, certamente, estranharia tal afirmação

126

Cf. cap. 1.3.4

186

tentando recuperar sentido no texto, já que essa informação não estaria de acordo com

os esquemas mentais que caracterizam as pessoas que pedem dinheiro nas ruas.

Veja-se que os esquemas mentais construídos a partir da realidade do aprendiz

são também utilizados quando o leitor liga à palavra-chave ‘pobre’ fatores como falta de

oportunidade, educação, alimentação, habitação. Ainda ligado a essa escolha, o leitor

destaca a necessidade de se resolver o problema com políticas públicas. Vale observar

que esse não é um sentido explícito colocado no texto, mas é evocado a partir de

estruturas de conhecimento que possibilitam essa construção e de outros discursos

sociais aos quais o estudante é exposto e que interferem nos sentidos produzidos.

Outro detalhe importante nessa justificativa é que o leitor está consciente da

cultura na produção de sentidos. Para o leitor, cultura é o ‘conhecimento’ que se tem

sobre a realidade e que interfere inclusive na linguagem - ‘cultura que cada um tem, no

vocabulário’. É interessante notar que o informante destaca que relações culturais

interferem na forma como ele recebe o texto, assim como no vocabulário. O leitor

demonstra que a escolha do vocabulário e do léxico para a construção da narração está

fortemente ligada à cultura dos personagens, as quais são imaginadas pelo leitor a partir

das relações reais vividas por ele na sociedade, o que o faz produzir sentidos. A

justificativa do leitor corrobora o fato afirmado no cap. 1 de que cultura e língua estão

em contínua associação no diálogo com o texto. Isso porque a cultura é entendida como

parte de uma comunidade que compartilha um espaço social e imaginário comum e

auxilia o usuário a reter um sistema comum de percepção, crença, avaliação e ação

(KRAMSCH, 1993; MENDES, 2011).

Com relação ao texto 02, foram 03 indicações para a turma A e 09 para a turma

B totalizando 12 justificativas (as demais foram classificadas a partir da existência de

um diálogo com a competência discursiva e serão discutidas na seção seguinte deste

trabalho). Dentre elas, a maioria relata aspectos sociointerculturais tais como ética,

responsabilidade e ciência como possibilitadores de uma vida melhor ou de perigos.

Em um dos excertos, abaixo, o leitor destaca tanto os benefícios da ciência - ao

selecionar a palavra ‘maravilhas’ - quanto seus perigos, selecionando a própria palavra

‘perigos’ e relacionando-a ao processo de experimento científico que utiliza ‘cobaias’

bem como ‘oportunismo’, destacando a forma como algumas pessoas lidam com a

ciência pensando em seu ‘bem estar’:

187

A.2.3.7 turbilhão: que muitas coisas estão sendo descobertas;

maravilhas – trazem muitos benefícios para nós as descobertas

de como curar doenças incuráveis ou até mesmo conseguir

controlar a doença (AIDS). Perigos: são os riscos que as pessoas

“cobaias” correm ao fazer o tal experimento, pois você não sabe

a reação do seu organismo. Transgênicos: são usados em

alimentos para ficar com a aparência bonita e diminuir o numero

de insetos mas que faz muito mal a nossa saúde. Oportunismo:

muitas pessoas pensam somente no seu bem estar isso acaba

ocasionando muitos perigos.

Um detalhe importante é o conhecimento de mundo do aprendiz que interage

com o texto quando ele identifica a possibilidade de cura proporcionada pela ciência e a

possibilidade de criação de alimentos ‘mais bonitos’ e na ‘diminuição de insetos’.

Chama-se a atenção para o fato de que tais fatores não estão no texto, mas foram

inferidos pelo leitor a partir de seu conhecimento prévio do assunto. O leitor, de forma

clara, destaca também os perigos dizendo que os transgênicos fazem ‘muito mal a nossa

saúde’. Os sentidos são construídos aqui num compartilhamento de conhecimentos

produzidos por intermédio da língua numa relação entre sociedade e relações

semântico-pragmáticas (KRAMSCH, 1993). Ou seja, o que acontece aqui é que não

aparecem simplesmente vozes individuais do leitor ou do autor, mas também

conhecimentos históricos construídos pela sociedade e estocados a partir da vivência

dos usuários da língua (KRAMSCH, 1993). Os falantes utilizam essas categorias para

representar suas experiências e construir sentidos.

Outro fator importante no excerto acima é que o leitor expõe a possibilidade de

controlar doenças incuráveis, tais como a AIDS, como inferência pessoal com relação

ao texto. Observe-se que o autor do texto não expõe sua preocupação com essa doença

em particular, mas cita outras doenças (Alzheimer, Parkinson, diabetes, defeitos

congênitos), ainda incuráveis na sociedade o que justificaria o fato do leitor inferir que a

ciência genética pode colaborar também no combate ao vírus HIV. Ele demonstra sua

inferência de forma bastante clara ao expor: ‘curar doenças incuráveis’, o que foi

exposto pelo autor, ‘ou até mesmo conseguir controlar a doença (AIDS)’, o que foi

inferido pelo leitor na interação com o texto. O diálogo estabelecido pelo informante é

visível: se o autor afirma que a ciência pode curar doenças incuráveis até agora, então

pode também controlar doenças sérias ocorrentes na sociedade, como a AIDS.

Deve-se considerar também, no extrato acima, o fato do leitor indicar os

‘perigos’ relacionados à palavra ‘cobaias’. O leitor aponta a existência de ‘riscos’, o que

188

é explicitamente colocado no texto pelo autor, mas para o estudante esses perigos estão

na participação das pessoas no experimento. Note-se que, no texto em si, não há

informações explícitas sobre o uso de ‘cobaias’, mas há uma declaração de que há

mulheres voluntárias para participação no experimento de clonagem humana. O

processo de inferência acontece de forma nítida: se há mulheres voluntárias para

participar do experimento de clonagem, elas seriam as ‘cobaias’ que correm ‘perigos’,

porque elas não sabem ‘a reação do organismo’. Há um conhecimento de mundo

implícito nesta afirmação: o de que cobaias humanas correm riscos ao participarem de

experimentos científicos. Essa última observação reitera o ponto de vista de que

qualquer conhecimento sobre a realidade interfere na forma como os sentidos são

produzidos a partir do texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010).

Veja-se como o leitor ainda representa suas categorias de vivência no excerto a

seguir:

A.2.3.29 escolha: porque ao ver esta palavra se mostra um

futuro de risco e de decisão múltiplas pelo fato de que não

afetará um mais muitos bem e ruim. Ética: porque pelo tema do

texto, a ética não mais é só um principio mas sim se torna um

problema pela dúvida que nela surge para eles do que fazer.

Clonagem: porque mostra como hoje em dia tudo pode ser

refeito artificialmente e pode ou não ajudar a sociedade hoje.

Embriões: porque são neles que se tem assim por dizer o

“poder” para a manipulação de uma melhora em coisas julgadas

irreversíveis. Nova chance: se enquadra com anterior porque

com embrião possivelmente dará vida ou continuidade para

aquele que o recebe.

A primeira palavra selecionada pelo leitor, ‘escolha’, é destacada como um fator

social de decisão - ‘decisão múltiplas’ - que apresenta riscos - ‘futuro de riscos’- para o

bem ou para o mal -‘bem e ruim’. Observe-se que a palavra demonstra o diálogo que o

leitor estabelece com o texto quando ele pensa no futuro e nas decisões advindas da

ciência, fatores esses não discutidos abertamente no texto. Ainda, o informante afirma, a

partir da escolha de ‘ética’, que essa é um problema porque ‘pelo tema do texto’, ela

representa questões de saber o que fazer em determinadas situações, o que envolve a

compreensão de regras de comportamento social. Destaca ainda a importância de tal

palavra dizendo que ‘não é mais só um princípio’, ou seja, ela deve ser praticada quando

se fala em ciência.

É importante notar também como o leitor estabelece ligações de sentidos

sociointerculturais a partir da palavra ‘clonagem’ – ‘pode ou não ajudar a sociedade’ – e

189

‘embriões’ – por possuírem ‘o poder da melhora’ de fatores ‘irreversíveis’. Tais

sentidos são construídos pela inferência do leitor ligado a discursos já ouvidos

anteriormente ou a crenças que a ciência genética constrói pela divulgação de seus

estudos (p. ex. textos em que se apresentam avanços na cura de algumas doenças pelo

uso da ciência genética). Ainda no mesmo excerto, o estudante liga a embriões o fato de

que eles são capazes de dar ‘vida ou continuidade’ para outras vidas, destacando a

maneira como a palavra-chave é usada para a concentração de um sentido: o poder de

criação da ciência.

Pode-se dizer, assim, que o leitor estabelece para as formas linguísticas por ele

escolhidas possibilidades de contexto numa relação social e interacional (BAKHTIN,

2009). Aqui essa relação entre as formas e o contexto de situação é esclarecida na

ligação entre as escolhas das palavras-chave: i) por regras de comportamento social e

cultural canalizadas pela palavra ética; ii) por discursos outros (intertextos) divulgados

pela ciência genética; e iii) pela adequação de contextos possíveis para o texto dado – a

inferência do que é possível ou não ser feito pela ciência e por sua produção social e

intelectual.

O leitor abaixo também justifica a escolha da palavra ‘ética’ voltada para um

comportamento científico necessário no extrato a seguir:

B.2.3.17 engenharia genética: explica que as pessoas deveriam

se importar mais com as sortes e revés do que um gene pode

causar. Ética: explica que tem que concientizar [sic] sobre o

mundo genético. Alimentos transgênicos: são capazes de

prolongar sua vida, por ter substancias que evitam o

intoxicamento [sic] ao alimento. Clonagem: hoje em dia, a

clonagem de animais está cada vez mais comum na sociedade, e

pode ser um beneficio para nos. Humanos: podem conseguir

clonar as pessoas, não é de se duvidar. Células tronco: beneficia

e muito o ser humano mais é uma questão de ética, manipulados,

pois é uma quase pessoa.

O estudante afirma que ‘ética’ é importante, em seus critérios, pois as pessoas

devem ser conscientizadas com relação ao mundo dos estudos genéticos. Ao que tudo

indica, o leitor está, de fato, dialogando com o autor na produção de sentidos quando

segue uma argumentação principal do texto de que ‘clonagem humana é uma questão de

ética’ e estabelece para isso a necessidade da conscientização. Em outros termos, o

leitor procura direcionar seus conhecimentos para o sentido de que, se a clonagem

190

humana é uma questão de ética, então é preciso conscientizar as pessoas do que está

acontecendo. Veja-se que o leitor retorna à questão de ética quando fala das ‘células-

tronco’, pois os embriões manipulados são uma ‘quase pessoa’. O conhecimento do

leitor está amarrado aqui com o fator primário: se não se pode clonar pessoas porque é

uma questão de ética, então tem que se pensar na manipulação dos embriões porque

estes são uma ‘quase-pessoa’, ou seja, tem-se também uma ‘questão ética’.

O leitor ainda estabelece um diálogo com o texto a partir de seus conhecimentos

de mundo ao escolher a palavra ‘clonagem’, afirmando que esta é uma prática ‘cada vez

mais comum’ e afirmando que isso pode ser um benefício. No entanto, na sequência o

leitor seleciona ‘humanos’ como palavra-chave para destacar que pode acontecer que

seres humanos sejam clonados (‘não é de se duvidar’). Esse sentido está em

consonância com os sentidos de crítica e desaprovação produzidos pelo autor quando

afirma textualmente “Não é surpresa alguma que se fale agora na clonagem de

humanos”. No texto, a crítica e reprovação do autor são construídas relacionadas a

outros fatores atacados explicitamente tais como: “oportunismo”, “desdém com esse

tipo de aplicação” e a declaração do autor de que “espero que o navio jogue tanto que as

pipetas usadas durante o procedimento quebrem todas”. A ação de “quebrar as pipetas”

leva à interpretação de uma posição contrária do autor, pois, se é um experimento e

considerando que pipetas são importantes para tal, a sua quebra provoca o fim do

experimento. Essa relação de coerência não está no texto, mas se constrói a partir dele

na interação com os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; TRAVAGLIA, 2011;

BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981127

). O leitor expõe a reprovação do autor do texto

com relação ao assunto quando afirma ‘não é de se duvidar’ que se possa ‘clonar

humanos’.

É necessário explicar que, nesse exemplo, dois fatores principais são observados: a)

o leitor, ao utilizar a expressão ‘não é de se duvidar’, destaca um sentido construído

socialmente pela realidade de uso da expressão idiomática: a dúvida e a expectativa com

relação a uma ação (ex. não é de se duvidar que ele faça isso; não é de se duvidar que

ela arrisque; não é de se duvidar que o garoto roube; não é de se duvidar que ele passe

no vestibular); e b) no texto, a ação realizada aqui – a clonagem – é, de fato, colocada

em dúvida e em expectativa, mas como ponto de crítica e reprovação pelo autor do

texto. A realidade contextual da ocorrência da expressão, o que para Hymes (1995) é

127

Cf. cap. 1.3.4

191

uma realidade sociolinguística que auxilia o leitor a ligar seus enunciados a um contexto

específico de ocorrência, impõe, na realidade do texto, um sentido de crítica, dúvida e

desaprovação e reforça a justificativa para a escolha da palavra-chave que canaliza tal

sentido.

Destacam-se fatores sociais e culturais envolvidos aqui: a ética com relação à

clonagem humana e à genética, o preconceito com relação à clonagem, a incerteza dos

benefícios da ciência genética e da produção científica, entre outros. Isto quer dizer que

há uma variedade de discursos em diálogo que são trazidos à tona durante a produção de

sentidos pelos leitores. O fato é que o leitor deve estar ciente das relações estabelecidas

pelo uso das palavras em um determinado contexto (HYMES, 1995), para, assim

desenvolver sua competência comunicativa. Ou seja, a forma como a língua é utilizada

em determinados contextos de ocorrência influi na maneira como é compreendida pelos

falantes (HALLIDAY, 1985; HORNBERGER, 1995).

No exemplo a seguir, o leitor também destaca, na escolha das palavras, fatores

de ordem sociointercultural:

B.2.3.20 descoberta: mostra a grande descoberta de se poder

mudar o que antes era um problema irreversível.

Favoravelmente: mostra a posição do narrador em relação as

vantagens de se mudar a genética. Consequências: fala sobre os

males que podem causar a mudança na genética. Complica: é

uma critica quando a genética entra no mundo animal. Vida: a

coisa mais bela que existe mas com alguns males que podem

danificar a vida se tratando de mudança genética.

Veja-se a maneira como o leitor utiliza a palavra-chave ‘descoberta’ para

canalizar um sentido textual e cultural de encontrar soluções para problemas

irreversíveis. O leitor impõe ao texto aqui uma necessidade social depositada na ciência

de que ela é a responsável pela ‘descoberta’ da cura para problemas que assombram a

sociedade. A ciência seria a responsável, cultural e historicamente, por dar soluções a

problemas vividos na sociedade, tais como as doenças indicadas no texto.

Outro ponto importante é a escolha do advérbio ‘favoravelmente’ para

evidenciar a intenção do autor com o texto, ou seja, para demonstrar sua posição

favorável à genética por meio da argumentação. Adianta-se que há uma interação entre

192

as competências128

: a) a competência gramatical utilizada pela escolha de um advérbio

com significado que indica “propício, conveniente, benéfico, proveitoso, vantajoso129

”;

b) a competência discursiva que indica a tipologia argumentativa do texto – argumento

favorável do autor; e c) a competência sociointercultural que indica que a ciência pode

trazer benefícios à sociedade (assim como no exemplo anterior).

Observe-se ainda que as escolhas das palavras-chave neste extrato indicam que o

leitor está muito mais preocupado com o sentido evocado por elas na relação

interacional com o texto do que com o seu significado primário. É o caso da escolha de

‘consequências’: o leitor concentra na palavra um fator ligado aos males causados pela

ciência genética. Ou seja, o leitor não está falando de consequências quaisquer, mas

somente daquelas causadas pelo mau uso da ciência. Isto quer dizer que ele utiliza a

palavra ‘consequências’ dentro dos limites dos esquemas mentais acionados para

compreender o texto, os quais estão voltados ao desenvolvimento da ciência genética.

O leitor reforça ainda um mau uso da ciência destacando outra palavra-chave

que é completamente atrelada aos sentidos construídos no texto: ‘complica’. A escolha

dessa palavra está justamente ligada à crítica estabelecida pelo autor do texto para o uso

da genética em alguns experimentos envolvendo seres humanos ou animais. No texto,

essa crítica fica aparente pela argumentação do autor, mas o leitor, por sua vez, utiliza

uma carga de conhecimentos sociais e (inter)culturais que ativam sentidos: a ciência

está fazendo clonagem de animais, a ciência pode curar doenças (ou outros males) que

atormentam a sociedade, a clonagem humana pode ser eticamente desaprovada, a

clonagem precisa ser mais investigada pela ciência, a ciência genética pode trazer

benefícios, bem como malefícios. Tais afirmações são construídas numa relação entre a

vivência social, a cultura, a crença e os comportamentos dos usuários da língua.

Uma questão cultural importante é destacada também pelo uso da palavra ‘vida’

como chave para a interpretação do texto: o leitor utiliza argumentos construídos social

e culturalmente para concluir que ‘a vida é a coisa mais bela que existe’ - influenciado

por questões de crença, de religião ou por ideias otimistas comuns na sua faixa etária - e

a esse conhecimento ele liga a necessidade de se pensar nos males causados pela

genética. O leitor faz ligações claras entre os sentidos relatando que ele acredita que já

que a vida é ‘a coisa mais bela que existe’, ela não pode ser ‘danificada’ por uma

128

O diálogo entre as competências será discutido de forma mais profunda na seção seguinte deste

trabalho (seção 4.2.4). 129

UAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de

janeiro: Objetiva, 2009

193

ciência sem ética, ou que se propõe a mudar a vida. Note-se a importância do diálogo

que se estabelece entre os sentidos extraídos do texto - a ciência precisa de ética - e os

sentidos construídos pelo leitor - a vida é bela para ser ‘danificada’ pela ciência’. É esse

diálogo que provoca uma negociação de sentidos e que auxilia o leitor na interpretação

do texto130

(KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008).

O diálogo com conhecimentos sociointerculturais é ativado de forma ainda mais

contundente no texto 03, influenciado pelo gênero textual, poema, que traz

possibilidades maiores de diferentes interpretações. Ao todo foram classificadas 20

ocorrências para esse texto, sendo 11 para a turma A e 09 para a turma B. Entre os

extratos, a maioria destaca valores religiosos ou de questionamentos emocionais do

personagem. Tome-se como exemplo o excerto a seguir:

A.3.3.7 anjo torto: que Deus estava nem um pouco interessado

em guiá-lo pois mandara um anjo que não lhe ajudava em nada.

Raros amigos: que ninguém está do seu lado apoiando-o em

suas decisões e os raros amigos que ele tem nem “ligam” pra

ele. Abandonastes: fala que ele não está confiante em Deus e

que Deus não está lhe ajudando a encarar a vida. Coração: seu

coração está vazio pois ele não crê em mais ninguém. Diabo:

que em vez dele correr atrás de Deus ele vai ficar com o que ele

acha que lhe convém.

O informante destaca duas questões principais na sua interpretação: a primeira é

a intertextualidade com o texto bíblico exposto no texto “Meu Deus, porque me

abandonaste”. O momento evocado é de sofrimento visto que o texto retoma a frase de

Jesus Cristo, que, ao ser crucificado, implora o auxílio de Deus para aliviar seu

sofrimento e sua dor. Ou seja, a intertextualidade exposta aqui leva o leitor a construir

para o texto momentos de tristeza experimentados pelo autor durante essa fase de sua

vida. Isso só é possível pela associação dos conhecimentos do intertexto (crucificação

de Jesus Cristo) e os conhecimentos de mundo (dor, sofrimento, pedido de auxílio).

Toda a carga cultural deste intertexto é trazida ao diálogo durante a leitura quando ele

destaca que Deus não ‘estava nem um pouco interessado em guiá-lo’ ou ‘ele não está

confiante em Deus’ ou ainda, em vez de ‘correr atrás de Deus’, ele ‘vai ficar’ com o

diabo que ‘lhe convém’.

130

No cap. 5.2 deste trabalho fala-se mais sobre a negociação de sentidos.

194

Verifica-se, aqui, que há uma cadeia de enunciados (BAKHTIN, 2009) que são

utilizados para a construção do sentido do poema. Observe-se também que enunciados,

que podem aqui ser considerados intertextos já que ativam conhecimentos produzidos

por outros textos, são trazidos para o diálogo como meio de construção de novos

sentidos textuais: nesse caso, o de que o personagem procura por Deus numa situação

de angústia. Koch e Elias (2010) destacam que justamente que “a inserção de velhos

enunciados em novos textos promoverá a constituição de novos sentidos” (KOCH;

ELIAS, 2010, p. 78).

A segunda é a construção de um sentido ligado a problemas emocionais vividos

pelo personagem. O leitor destaca ‘raros amigos’ como palavra-chave e a justifica

dizendo que tais amigos ‘nem ligam pra ele’. Ainda, o leitor destaca que: o coração do

personagem está vazio, ele não crê em mais ninguém, vai correr atrás do diabo, já que o

anjo não lhe ajudava em nada. Note-se que esses sentidos são construídos pelo leitor a

partir de uma tentativa de estabelecer coerência para o texto. Essa coerência é

construída a partir dos sentidos de tristeza evocados pelo texto bíblico, pela súplica do

personagem a Deus, pela sua reclamação no decorrer do texto, pela sua caracterização

de ‘ser fraco’. São sentidos que se ligam a uma possível realidade conhecida pelo leitor:

se ele está suplicando algo a Deus é porque está com problemas. O leitor procura

encontrar no texto quais seriam esses problemas. Ou seja, ele levanta hipóteses para a

sua leitura (KLEIMAN, 2002; CASTELLO-PEREIRA, 2003) – ele está angustiado, tem

poucos amigos, não crê em ninguém etc. - e aos poucos vai criando um mundo textual

(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; KOCH, 2009) em que procura confirmações

para essas possibilidades e produzindo sentido numa atitude de interação com o autor

via texto. Reitera-se que o leitor, estrategicamente, identifica itens lexicais que

confirmam essa interpretação e constrói sentidos ligados à tristeza: o anjo torto que não

ajuda, o abandono por Deus, os raros amigos que não ligam pra ele, o coração vazio.

Neste outro extrato, vale observar a maneira como o leitor procura, na escolha

das palavras-chave, estabelecer um sentido global que relate os fatores emocionais do

personagem do texto:

A.3.3.10 gauche: deslocado, perdido. Tendo que achar um

rumo. Azul: céu azul cheio de desejos, esperanças. Mundo:

versões maneira de ver as coisas.

195

A escolha da palavra ‘gauche131

’ de início já revela, para o leitor, a situação

emocional do personagem: ‘perdido, deslocado’. Ou seja, o leitor não apenas destaca o

personagem, mas o limita dentro de um esquema mental específico: ele é um

personagem ‘perdido’, sem ‘rumo’. Ao estabelecer o significado da palavra ‘gauche’, o

leitor destaca o personagem e procura encaixá-lo dentro de uma realidade textual a

partir de possibilidades ativadas por ele sociocognitivamente (isto é, por seus

conhecimentos de mundo132

- KOCH, 2009). Em outros termos, o leitor utiliza seus

conhecimentos para estabelecer uma relação entre o que está no texto e inferências

construídas durante a interação: se o personagem está sem rumo – significado da

palavra construído durante a atividade de pré-leitura pela compreensão da palavra

‘gauche’ – ele precisa de esperanças – inferência do leitor.

As próximas escolhas são realizadas tendo esse fio semântico condutor

(CAVALCANTI, 1989) – um personagem sem rumo -, liderando os demais sentidos do

texto e dando a ele força ilocucionária. Note-se a forma como o leitor escolhe ‘azul’ ou

ainda mais especificamente o azul do céu, para evocar sentimentos bons, desejos,

esperanças, os quais seriam necessários para uma pessoa que se encontra ‘sem rumo’. A

ligação entre a cor azul e bons sentimentos também é uma criação possibilitada pela

metáfora construída culturalmente de que tal cor significa alegria, felicidade,

tranquilidade (p. ex.: Hoje está tudo azul na minha vida). A utilização da frase

metafórica133

‘céu azul cheio de desejos, esperanças’ é utilizada aqui como uma solução

para os problemas do personagem ‘sem rumo’. De acordo com Kramsch (1993), os

usuários da língua são altamente sensíveis às maneiras pelas quais as palavras

representam um estado de mundo por meio de formas, sons, metáforas e pelo modo

como essas palavras interagem com o contexto em que são usadas e constroem um

significado simbólico.

No exemplo abaixo, os fatores sociointerculturais, principalmente aqueles

relacionados à crença, ficam também esclarecidos no estabelecimento de sentido pelo

leitor da turma A:

131

Durante a atividade de leitura prévia do texto, os alunos questionaram sobre o significado da palavra

de origem francesa ‘gauche’, e a pesquisadora interveio dizendo que o significado principal, no poema, é

de uma pessoa que está perdida, insegura, que se sente deslocada. 132

Vide cap. 1.4.4 133

Cf. discussão realizada no cap. 1, há uma realidade uma realidade histórica armazenada pelos falantes

que faz com que as metáforas sejam compreendidas. KRAMSCH (1993) afirma que ao estabelecer-se

interação comunicativa em uma língua aparecem conhecimentos históricos armazenados em uma

sociedade, ou um estoque de metáforas vividas pelos sujeitos – vide cap. 1.4.4 p. 62

196

A.3.3.15 anjo torto: é representado por uma força má o diabo,

citado ao final do poema. Sombras – explica a palavra anjo

torto, que é uma coisa ruim, moradia do anjo torto. Homens:

representa que pessoas estão envolvidas (Carlos). Amigos: diz

que Carlos não tem amigos ou se tem são poucos. Deus: força

do bem que o deixou e a má pegou.

Note-se aqui que o informante destaca duas forças em oposição no poema: o

bem, liderado pela palavra Deus, e o mal, liderado pelas palavras ‘anjo torto’ e

‘sombras’. Ao mal, ainda, o leitor conecta a palavra que representa aquele que é

culturalmente oposto a Deus, ou seja, o ‘diabo’. É interessante ainda observar como o

leitor coloca os homens em meio a essa relação entre bem e mal e destaca que, no

poema, a palavra ‘homens’ representa ‘que pessoas estão envolvidas’ e que nesse caso é

a pessoa do personagem principal, ‘Carlos’.

Outro detalhe importante é que o leitor procura também estabelecer o sentido de

sofrimento emocional construído pela ideia de que o personagem não tem amigos, o que

pode ser resultado de construções sociais e culturais que dizem que: amigos ajudam uns

aos outros em momentos difíceis, pessoas que não têm amigos são mais tristes, amigos

são importantes na vida das pessoas, os homens não podem viver sem amigos etc. Em

outros termos, conhecimentos de mundo, tais como a falta de amizades e ser pego por

forças más, justificam, para o leitor, o sentido de tristeza construído para o poema.

No exemplo abaixo, o leitor, além de suscitar questões emocionais, procura

encontrar um motivo para tais problemas:

A.3.3.22 meu deus: em um tom de pânico, de lamentação.

Abandonaste: creio eu que seja uma mulher que o largou. Se

sabias: mesmo que ele era fraco que não ia aguentar. Fraco:

fraco pro amor que não aguenta saber que foi abandonado.

Ele seleciona a primeira palavra-chave para estabelecer o tom do poema, ou

entonação (como uma possível tradução da palavra ‘key’ utilizada por Hymes (1995) e

Scollon e Scollon (2001)); para os autores esse é um dos fatores da gramática de

contexto134

que, nesse caso, seria o ‘tom de pânico, de lamentação’. Depois dessa

escolha o leitor procura um motivo para o sentimento de lamentação: ser abandonado

por uma mulher. E ainda reforça essa ideia ao afirmar que o personagem era ‘fraco pro

134

Cf. cap. 2.2.2 – os fatores de contextos são compreendidos mediante o acrônimo S P E A K I N G

(lugar, participantes, fins, sequencia dos atos, tonalidade, instrumentos, normas e gênero) e fazem parte

da competência sociolinguística (HYMES, 1995; SCOLLON; SCOLLON, 2001).

197

amor’ e que ‘não aguenta saber que foi abandonado’. Veja-se que esta é uma construção

do leitor a partir de seus conhecimentos sociointerculturais: amores não correspondidos

trazem sentimentos de pânico, abandono e lamentação. Este não é um sentido exposto

no texto de forma explícita, mas é uma construção do leitor possibilitada pelos seus

conhecimentos, os quais foram ativados por marcas linguísticas que, para ele, suscitam

questões emocionais que explicam o tom ‘de lamentação’ do poema.

Outros fatores de contexto também são explicados em outros extratos de alunos:

B.3.3.19 torto: achou que um anjo do mal o amaldiçoou.

Sombra: que vive de mau humor, é do mau. Fraco: Deus o

abandonou e ele sendo fraco não podia resolver seus problemas

sozinho. Solução ele precisa de uma solução para algum

problema. Comovido: deixa ele mau.

Aqui, o informante procura encaixar o texto como ato comunicativo, em um

contexto adequado de ocorrência: um anjo o amaldiçoou, ele vive de mau humor, tem

problemas, é fraco e precisa de socorro. O contexto de ocorrência possibilita a

comunicação apresentada no texto. Scollon e Scollon (2001) denominam esse aspecto

de “gramática de contexto” e o define como o elemento utilizado pelos usuários da

língua para compreender os sentidos dos enunciados dentro das circunstâncias em que

ocorrem. Ou seja, nessa ocorrência, assim como nas anteriores, o leitor utiliza sua

competência sociointercultural para a contextualização de uma cena de ocorrência para

o personagem do texto e procura estabelecer o cenário, lugar, espaço, tópicos135

.

Conforme se pode verificar nos excertos expostos até aqui, a competência

sociointercultural age como uma construtora das possibilidades de mundo textual, em

que o leitor utiliza sua cultura, sua vivência, sua realidade sociolinguística para

estabelecer sentido para o texto.

A tabela, a seguir, demonstra todas as palavras indicadas pelos estudantes,

apontando-as por frequência maior de ocorrência de cima para baixo. As palavras

destacadas com seta rosa revelam algum sentido construído a partir da competência

sociointercultural:

135

Cf. cap. 2.2.2.

198

TABELA 8 – Palavras-chave que indicam a ativação de fatores

sociointerculturais

Texto 01 Texto 02 Texto 03

Estudo/ estudar Células (tronco) Deus

Teorema de Pitágoras Clonagem Gauche

Pobre Transgênicos Anjo (torto)

Ensinamento/ ensinar (Engenharia) genética Fraco

Rico Embrião Abandonar

Dinheiro/trocado Fertilização Nascer

Lição/lição preciosa Ética Coração

Conhecimento manipulação Homem

Esfarrapado Natureza Mundo

Aprender Humano Desejos

Instrução Consequencia Pernas

Cinco/ cinco anos Vida Bigode

Garoto/ menino Dilema Bonde

Senhor Sociedade Mulher

Saber Impacto Carlos

Indigente Cura Diabo

Diferença (de classe) Descobertas Amigos

Destino (Engenhar) vegetais Comovido

Estatísticas Experimento Raimundo

Jovem Fome Solução

Oportunidade Doenças Sombras

Ofendido Estudo Conhaque

Assombrado Problema Dizer

Transmitir Turbilhão Sabias

Hipotenusa Genes Azul

Livro(s) Cadeia alimentar Vasto

Divertir/diversão Adotar Sério

Moro bem Possibilidade Espiar

Sofrendo Ecologia Simples

Bem vestido Reino (vegetal/animal) Raros

Pessoas Posição Pergunta

Sua gente Profissionais Forte

Não Arrastados Cheios de pernas

Realidade Vida

Frágil Talvez

Maravilhas Óculos

Perigos Conversa

Oportunismo

Clara

Benefícios

Sobreviver

Destruídos

Riscos

Escolha

Nova chance

...

199

Texto 01 Texto 02 Texto 03

Desequilíbrio ambiental

Rejeitados

Favoravelmente

Dúvida

Alimento

Crítico

Debate

Hipocrático

Necessidades

Complica

Total de palavras: 33 Total de palavras: 55 Total de palavras: 37

Pela observação da tabela acima e pelos extratos analisados nesta seção, notou-

se que:

1) no texto 01, os leitores ativam conhecimentos relacionados principalmente a

diferença de classes, realidade social, política e econômica da sociedade,

além do preconceito com a pobreza;

2) no texto 02, fatores como ética, possibilidades da ciência, crenças baseadas

em religião e/ou produções científicas são constantemente utilizados na

construção de sentidos;

3) no texto 03, a contextualização do poema a uma realidade cultural de ter

problemas emocionais e encontrar solução para eles, possuir vínculos

religiosos é utilizada pelos informantes para construir suas interpretações.

Tais interpretações podem estar ligadas também ao gênero do texto que

inclui a emotividade como ação comunicativa relativa ao acontecimento

deste gênero.

O gráfico 6, abaixo, mostra os percentuais de palavras-chave que foram

utilizadas para canalizar algum tipo de sentido sociointercultural. A partir do gráfico,

observa-se que a incidência da competência sociointercultural apresenta um percentual

maior para o texto 03 (67%), se comparada com o texto 01 e 02 (respectivamente 45% e

49%), o que revela a maior utilização de conhecimentos de mundo diversos na

ancoragem da compreensão dos leitores para o poema:

...

200

GRÁFICO 6 - Palavras-chave indicadas que revelam fatores sociointerculturais

Ressalta-se, ainda, que fatores sociointerculturais, gramaticais e discursivos não

se dissociam durante o processo interpretativo. Reitera-se que se procurou destacar, até

o momento, alguns deles em isolamento, por texto, como metodologia de análise e para

demonstrar a maneira como são construídos nas justificativas dos leitores. Na seção

seguinte, discutem-se exemplos em que a comunicação entre as diferentes competências

aparece dialogando de forma mais nítida.

4.1.4 O diálogo entre as competências – a utilização da competência comunicativa

como forma de interagir com o texto.

Conforme se discutiu no cap. 2 deste trabalho, a competência comunicativa é o

conhecimento que o usuário desenvolve sobre a língua e que o capacita a interagir com

seus pares. É a partir das características que o usuário vai percebendo na língua em uso,

tais como as organizações do sistema, o contexto, as atitudes envolvidas (HYMES,

1995) que o sistema de comunicação se constrói. É também no uso da língua que os

falantes, paulatinamente, formam juízos de valor, constroem aspectos socioculturais da

sua comunidade e negociam sentidos.

Nas seções anteriores, procurou-se demonstrar a maneira como os informantes

relataram traços das competências discursiva, gramatical e sociointercultural. No

entanto, verifica-se que, na maioria dos extratos, as competências aparecem, agora, em

interação mais nítida, demonstrando que a competência comunicativa é utilizada como

uma habilidade geral dos usuários no estabelecimento de interação comunicativa

durante a leitura. As características observadas sobre a competência discursiva

201

(sequenciação textual, remissão, coerência, coesão, gênero textual) e as observadas

sobre a sociointercultural (conhecimentos de mundo diversos tais como crenças,

ideologias, culturas) aparecem agora dialogando umas com as outras e auxiliando o

leitor a utilizar a palavra-chave como uma estratégia para ativar todos os seus

conhecimentos e a construir interpretação textual.

Conforme se discutiu também na seção 4.2.1, a competência gramatical apareceu

de uma forma mais tímida na justificativa dos alunos o que não significa que não tenha

sido utilizada. Por exemplo, o fato dos alunos utilizarem, na maioria das escolhas,

palavras de classe aberta, tais como os substantivos, revela que aspectos gramaticais

estão em interação com o conhecimento discursivo ou sociointercultural.

Neste extrato do texto 2, por exemplo, a competência gramatical aparece

nitidamente indicada pelo aluno 12 da turma A em interação com as demais

competências:

A.2.3.12 engenharia genética: descobertas feitas pela ciência.

Alimentos transgênicos: ponto de vista positivo e negativo para

o bem do homem e da natureza. Ética: interferência do homem

na criação natural da vida. Clonagem humana: existem outras

formas de se ter um filho. Células-tronco: salvar vidas, curar

doenças, preservar vidas através de outras.

Nessa indicação, fica clara a questão do assunto principal abordado em primeiro

lugar – engenharia genética – e, ligados a ele, os três pontos discutidos pelo autor136

. A

questão argumentativa é destacada quando o aluno justifica ‘ponto de vista positivo e

negativo’ e quando indica de forma resumida os argumentos do autor na exposição de

cada um dos temas – ‘outras formas de se ter um filho’ e ‘salvar vidas, curar doenças,

preservar vidas’. A relação existente entre a exposição do tema e seus argumentos está

relacionada ao tipo textual – argumentativo -, e é demonstrada pelo leitor na indicação

dos substantivos escolhidos como palavras-chave. Isso porque, de acordo com Moura

Neves (1997), o substantivo tem uma função de proeminência na organização da

informação, tendo também uma função especial como tema e como organizador entre

informação nova e informação velha, mapeando recuperações, remissões, projeções de

sentido. Isto quer dizer que há uma interação entre a classe gramatical da palavra –

substantivo – com a organização textual – proeminência de informações. Essa interação

136

Cf. cap. 4.1.2 – a divisão do texto de formato argumentativo em tópicos principais do texto foi um

fator analisado nos excertos da maioria dos alunos para a competência discursiva.

202

também é destacada pelos alunos principalmente na seleção dos substantivos em vários

dos extratos a seguir. Entretanto, a interação dada a partir do uso da competência

gramatical não é indicada explicitamente pelos alunos na maioria dos extratos, embora

ela seja, de fato, utilizada, conforme já foi explicado aqui. O que fica em destaque nos

excertos de forma mais nítida são os conhecimentos discursivos ou da realidade social e

cultural em que os estudantes vivem.

Veja-se como exemplo, ainda no excerto acima, a maneira como o estudante

destaca a necessidade de um comportamento ético ao se fazer experimentos científicos.

O leitor destaca que há uma questão ética presente na ciência porque ela interfere ‘na

criação natural da vida’. Ainda é por meio de experimentos científicos que o homem

realiza ações para o seu próprio bem e para a natureza – ‘ para o bem do homem e da

natureza’. Conclui-se, portanto, que há uma interação clara entre as competências no

extrato acima: i) a competência gramatical: ao selecionar substantivos para o diálogo

com o texto, o leitor procura destacar, na classe gramatical, a proeminência de

informações textuais, o que acontece também nos demais extratos analisados; ii) a

competência discursiva: ao destacar a tipologia argumentativa e a sequência de tópicos

do texto; e iii) a competência sociointercultural: ao apontar para a necessidade de se

estabelecer uma ética na ciência pois ela deve visar o ‘bem do homem e da natureza’.

Analisam-se, agora, outros extratos em que os alunos justificam suas escolhas

tanto por conhecimentos discursivos, quanto por conhecimentos sociointerculturais. A

tabela 9, na página seguinte, demonstra as ocorrências em que se considerou que havia

interação entre as competências discursiva e sociointercultural. O número total de 75

ocorrências foi contabilizado nas tabelas anteriores (tabelas 3 e 7 – p. 164 e 184

respectivamente) tanto como competência discursiva (fazendo parte do total de 130)

quanto como competência sociointercultural (fazendo parte do total de 134).

É importante apontar, que, de todas as ocorrências contabilizadas como

discursivas e sociointerculturais, mais da metade delas estão em interação entre si, o que

indica exatamente o fato de que competência comunicativa é um conjunto de

habilidades construído de forma completa e interativa pelos usuários para estabelecer

ações de comunicação em sua realidade (HYMES, 1995). No caso dos textos analisados

aqui, essa comunicação acontece durante um processo de leitura em que os leitores

interagem claramente com o texto para construir sentido(s).

203

TABELA 9 – A incidência da competência sociointercultural e discursiva nas

justificativas dos alunos

Competência sociointercultural

e discursiva

Turma A Turma B

Texto 01 09 12% 03 4%

Texto 02 20 26% 12 16%

Texto 03 17 22% 14 18%

Total 46 61% 29 38%

Total de indicações 75

No texto 01, foram 12 ocorrências no total e a maioria delas transita entre os

pontos já apontados na seção 4.2.2 para a competência discursiva, tais como a sequência

da narrativa, a marcação dos personagens, a remissão, e para a competência

sociointercultural, tais como a diferença de classes ou a relação hierárquica entre pobre

e rico na sociedade. No excerto abaixo, o estudante procura demarcar dois fatores

principais: a) a maneira como as sequências de ações acontecem no texto, o que estaria

dentro da competência discursiva; e b) a maneira como a diferença de classes se destaca

e as razões para isso, o que seria competência sociointercultural:

A.1.3.9 dinheiro: o dinheiro porque o que o menino almeja

naquela situação. Cinco anos: os cinco anos que são o tempo

que ele diz que os ricos se dedicam mais para aprender.

Aprender: porque se ele estivesse [sic] interesse de aprender ele

não estaria pedindo um trocado. Conhecimento: se ele o tivesse

não estaria nessa situação. Teorema: porque foi com essa

palavra que ele constatou que ele não tinha conhecimento.

O estudante marca na escolha das palavras a sequência que acontece na

narrativa: ‘dinheiro’ que é um marcador textual que delimita o início do diálogo entre os

personagens; ‘cinco anos’ utilizado para marcar a diferença de estudo apontada no texto

entre os personagens; ‘aprender’ e ‘conhecimento’, utilizados pelo leitor para sinalizar o

tema principal sobre o qual o diálogo entre os personagens dão continuidade ao texto, o

que é justamente um critério para estabelecer a coesão; e ‘teorema’ para demarcar o

momento do texto em que surgem a dúvida e a crítica ali presentes.

De forma interativa, conhecimentos de mundo entram em ação na construção da

interpretação do leitor. Por exemplo, o informante indica que o pobre deve ter ‘interesse

204

de aprender’, pois se o tivesse, não estaria nessa situação. Ou seja, há discursos

construídos socialmente mostrando que para ser rico é necessário um esforço particular

em aprender e não ficar na rua ‘pedindo um trocado’.

Veja-se, também, no excerto, que o ‘dinheiro’ é indicado pelo leitor como algo

que o pobre ‘almeja’ na situação. O leitor delimita linguisticamente a maneira como o

dinheiro, o estudo, o esforço demandado são características sociais necessárias para

ascensão na sociedade. Kleiman (2002) indica justamente que os itens lexicais ou

palavras de um texto ativam tanto dados linguísticos ou textuais quanto conhecimentos

de mundo do leitor de forma interativa. Pode-se dizer, então, que os conhecimentos que

se tem na memória sobre realidades típicas da nossa sociedade, tais como a diferença de

classes e a oposição entre elas, determinam nossas expectativas para a ordem em que as

coisas acontecem e, em consequência, delimitam as possibilidades de leitura para um

texto. Há uma interação clara entre a marcação linguística feita pelo leitor na indicação

das palavras-chave, e os conhecimentos de mundo usados por ele para ativar aspectos

culturais e sociais que possibilitam a compreensão do texto.

Nesse outro excerto, como em exemplos anteriores, o leitor indica ‘teorema de

Pitágoras’ como assunto principal que ‘foca o texto’ para delimitar uma ação textual

importante na qual a crítica surge:

A.1.3.14 teorema de Pitágoras: porque foi o assunto principal

que foca o texto, por o menino não saber o que é. Ensinamentos:

o homem queria que em vez de dar dinheiro queria lhe oferecer

algo bem melhor como ensinamento. Estatísticas: de se

enriquecer com estudos se você gosta de estudar você vai longe.

Hipotenusa: que o autor foi um pouco irônico de usar como

exemplo a hipotenusa. Instrução: algo que o homem rico queria

desenvolver com o pobre.

O fator interessante neste excerto é que o leitor utiliza como ponto de partida

para suas justificativas uma questão discursiva: o assunto principal do texto. Ele

procura, em primeiro lugar, indicar onde está o sentido global na construção da

coerência para o texto e aponta que ali há uma crítica: ‘o menino não sabe o que é’. A

esse fator discursivo, o leitor vai conectando conhecimentos sociais e culturais de que

ensinamento é melhor que dinheiro, com estudos pode-se enriquecer e alcançar sucesso.

Outro detalhe importante é a maneira como o leitor destaca, na palavra

‘hipotenusa’, a ironia contida no texto. O informante identifica o assunto principal – a

205

crítica levantada pelo não conhecimento do teorema de Pitágoras – e ali ele também

concentra um fator de ironia construído a partir de seus conhecimentos de mundo: o

menino pobre não sabe o teorema, mas o rico também não sabe, pois esse último se

pergunta várias vezes qual é a fórmula do tal teorema. É necessário destacar que

hipotenusa está dentro dos esquemas mentais ativados pelo teorema de Pitágoras (a

hipotenusa está compreendida na fórmula do teorema) e é a partir disso que o leitor

consegue construir um sentido de que há um viés irônico presente no texto. Isso porque

a ativação de esquemas é fundamental no processo de leitura (ECO, 1979; KLEIMAN,

2002; DIJK, 2002137

) e faz com que o leitor logre êxito no reconhecimento das partes

semânticas de um texto ativando todos os conhecimentos ligados a determinados itens

lexicais (ECO, 1979). À medida que a leitura evolui, o leitor vai reorganizando esses

esquemas e construindo o seu pensamento de maneira a fornecer coerência ao texto. Isto

é, fatores semânticos, socioculturais, discursivos são ativados ao mesmo tempo na

escolha da palavra-chave e auxiliam o leitor na interpretação textual. Vale observar que

a ironia é construída a partir de uma ligação entre a) o fator discursivo de que o

personagem rico critica o pobre por não saber o teorema; e b) o conhecimento de mundo

do leitor que infere que o rico também não sabe o teorema e mesmo assim está

criticando o pobre. Veja-se que é justamente neste ponto do texto em que a ironia

auxilia o leitor a construir a ideia da crítica do texto.

É importante relembrar aqui que, como se viu no cap. 1, a leitura é uma

atividade de construção de sentidos que pressupõe a interação autor-texto-leitor. Assim,

é preciso considerar que, nessa atividade, além das pistas e sinalizações que o texto

oferece, entram em jogo os conhecimentos de mundo do leitor (KOCH; ELIAS, 2010).

É o que se destaca no exemplo abaixo, ou seja, a maneira como as sinalizações e marcas

linguísticas do texto dialogam com o que o leitor sabe sobre a realidade:

B.1.3.7 esfarrapado: um menino pedindo dinheiro na rua. Bem

vestido: que quer dar lição de moral no (esfarrapado) e nem

mesmo ele sabe o que ele ta dizendo. Ensinamento e estudo:

duas palavras que começam fazer parte da nossa vida, e só

vamos tirá-las se nós quisermos, e temos que saber aproveitar

nossas oportunidades.

137

Cf. cap. 01

206

O leitor utiliza as palavras-chave para identificar os personagens e, ao mesmo

tempo, separá-los em classes sociais: de um lado o menino ‘esfarrapado’ pedindo

dinheiro e, de outro, o homem ‘bem vestido’. O estudante também procura marcar

claramente a crítica do texto quando afirma ‘nem mesmo ele (o bem vestido) sabe o que

ele ta dizendo’. Atrelado a essa marcação textual, o leitor se coloca no interior da

narrativa do texto utilizando primeira pessoa: ‘começam a fazer parte da nossa vida’,

‘Só vamos tirá-las se nós quisermos’, ‘temos que saber aproveitar nossas

oportunidades’. O leitor se coloca na posição daquele que recebe o conselho de estudar

para alcançar sucesso na vida. Para o leitor, as palavras, de fato, fazem parte da sua

vida, pois ele assume para si mesmo a tarefa de se esforçar, estudar e aproveitar as

oportunidades para chegar à classe social mais alta.

Pode-se, então, dizer que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes

representam estruturas de pensamento que extrapolam o conhecimento linguístico-

gramatical e funcionam como matrizes cognitivas construídas pelo leitor para expor sua

representação da realidade. Uma interação constante entre as manifestações sociais e

culturais e a língua é representada no uso e não acontece aleatoriamente, mas é ativada

pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012). Destaca-se para isso o seguinte

exemplo:

B.1.3.20 esfarrapado: garoto pobre sem estudo. Dinheiro: o que

faz tudo acontecer. Ensinamento: homem querendo ensinar sem

razão. Livros: mostra a oportunidade de pessoas mais ricas.

Ofendido: a raiva que a classe mais pobre sente.

Nesse excerto, o leitor marca de forma muito clara as ações textuais-discursivas

indicando os personagens e os atos realizados por eles no texto: o esfarrapado sem

estudo, o homem rico querendo ensinar, o tempo de estudo das pessoas ricas e a ofensa

sentida pelo pobre. É interessante a maneira como o estudante utiliza essa sinalização

também para demonstrar o diálogo que ele estabelece na comunicação com o texto

expondo os conhecimentos por ele ativados. Note-se que ele indica uma compreensão

da diferença de classes dada pelo dinheiro (‘o que faz tudo acontecer’) e também na

indicação de ‘livros’ porque representam a ‘oportunidade’ que só os mais ricos têm.

Outro detalhe é que o leitor está completamente ciente de que os anos a mais de

estudo e a oportunidade do mais rico não fornece a esse personagem o direito de ensinar

algo ao mais pobre porque quem ‘faz tudo acontecer’ é o dinheiro e não o ensinamento.

207

O leitor aponta também para o adjetivo ‘ofendido’, relatando o sentimento do mais

pobre quando ele não consegue alcançar o mesmo sucesso que o rico ou não tem a

mesma oportunidade que ele. Há uma variedade de manifestações socioculturais sendo

representadas no texto por meio da escolha das palavras-chave: a diferença entre classes

representada no poder do dinheiro, a oportunidade de estudos, a ofensa do pobre por não

ter a mesma oportunidade. Se essas representações não fossem perceptíveis na realidade

do leitor, certamente ele não usaria tais conhecimentos para produzir sentido ou

produziria sentidos completamente diferentes.

Antunes (2012) também destaca que pensar nos efeitos decorrentes da escolha

das palavras é reconhecer que, em um texto, uma palavra expressa mais do que um

sentido. Isso porque ela pode também expressar intenção, propósito, cultura. Sendo

assim, a escolha de umas palavras em detrimento de outras na produção e na

interpretação do texto possibilita a revelação de tais funções da língua. No texto da

crônica, por exemplo, sabe-se que uma das funções comunicativas do gênero é

justamente suscitar uma crítica social. O leitor está consciente disso quando aponta, na

escolha das palavras-chave, o fato de haver diferença de classes e que nem sempre essa

diferença se dá por causa dos anos a mais de estudo, como no exemplo:

A.1.3.3 lição: foi o que o rapaz tentou fazer com o garoto ele

acreditou que daria uma lição para o menino não pedir esmola e

sim estudar. Dinheiro: era do que o menino precisava e o rapaz

tinha sobra, a diferença de classes, como se o dinheiro estivesse

acima de tudo. Destino: no texto essa palavra é relatada como se

nada fosse obra do destino mas sim consequência de suas

escolhas. Conhecimento – é algo que buscamos através do

estudo, o conhecimento que o rapaz tentou passar ao menino foi

de que ele deveria estudar, indiferente se isso não fosse o que ele

fez. Instrução foi a ajuda que o rapaz em tese deu ao garoto.

O leitor, assim como nos exemplos anteriores, indica dois aspectos principais: i)

discursivo: quando indica os personagens, a sequência de ações desenvolvidas por eles e

a continuidade textual que dá ao texto; e ii) sociointercultural: quando aponta que o

mais importante no texto (e na sociedade de classes) é o dinheiro. O leitor expõe

claramente a sua posição quando afirma que dinheiro era o que ‘o menino precisava e o

rapaz tinha de sobra’ e ainda reforça a ideia dizendo que é ‘como se o dinheiro estivesse

acima de tudo’. Para o leitor, o dinheiro é a forma de se dividir a sociedade em classes e

que isso é obra do ‘destino’ e não necessariamente das ‘escolhas’ dos personagens. Ele

208

reforça essa sua indicação ainda quando admite que o rapaz tentou ensinar o menino a

estudar, mas o rico estava ‘indiferente’ - ‘indiferente se isso não fosse o que ele fez’- e

que o fato do menino estar na rua pedindo dinheiro não necessariamente significa que

ele não estava indo pra escola, ou buscando ascensão social por meio do estudo.

O informante relata ainda, que o rapaz ‘em tese’ deu uma instrução, um

conhecimento ao garoto e está ciente que o fato de estudar mais não garante que o pobre

alcance a riqueza que ‘o menino precisava’. Neste excerto, o leitor procura amarrar suas

escolhas das palavras-chave para demonstrar a crítica construída pelo gênero crônica, e

a esse aspecto textual ele sobrepõe seus conhecimentos de mundo que dizem que na

sociedade de classes quem manda é o ‘dinheiro’, ‘o destino’ e as ‘oportunidades’ dos

mais ricos.

A relação entre aspectos discursivos de identificação do gênero e conhecimentos

de mundo utilizados para construir interpretação não se fazem presentes somente no

texto 01. Na verdade, conforme se discutiu na seção 4.2.2, sobre a competência

discursiva, verificou-se que o leitor utiliza seus conhecimentos textuais sobre a função

comunicativa do gênero para auxiliar na construção de suas interpretações. No texto 02,

a posição argumentativa do gênero artigo de opinião é utilizada pelos leitores para

produzir sentidos para o texto.

Foram analisados 32 extratos (20 para a turma A e 12 para a turma B), nos quais

se observou a interação entre as competências discursiva e sociointercultural para

construção de sentidos no momento da leitura. Esse número maior de indicações em que

uma série de conhecimentos é utilizada pelos leitores para construir interpretação pode

ser explicado pelo perfil dos alunos138

: grande parte dos alunos da turma A afirma ter

interesse em seguir uma carreira em ciências médicas e da saúde. Note-se que as

indicações da turma A são mais extensas que as da turma B e é natural que estudantes

que pretendem prestar vestibular para a área de saúde se interessem mais pelo texto que

trata de ciência genética. Abaixo, tem-se um primeiro extrato das justificativas do aluno

11 da turma A:

A.2.3.11 descobertas, sociedade, genes, engenhar, sobreviver.

Descobertas: o texto fala do que está acontecendo hoje, a

ciência está indo cada vez mais longe descobrindo muitas

coisas, mas nem sempre benéficas a todos. Sociedade: qual o

papel da sociedade diante disso, se aprovamos o que não

138

Cf. cap. 3

209

aceitamos o que apoiaremos e o nosso papel de desenvolver

essas tecnologias. Genes: é um dos pontos centrais do texto a

mudança deles, isso é a tecnologia. Engenhar: os estudos

realizados sobre eles, o avanço. Sobreviver: como essa nova

tecnologia é distribuída se vai ser bom para todos, se usam agora

de forma correta, como vamos levar isso.

Nesse extrato, o leitor destaca a separação de alguns dos temas139

(HALLIDAY,

1985; MOURA NEVES, 1997) em evidência no texto: as ‘descobertas’ da ciência, a

manipulação dos genes, o desenvolvimento de tecnologias científicas. O informante

indica ainda que sua tarefa é se concentrar nos aspectos principais do texto e escolhe

‘genes’ como um dos ‘pontos centrais’, ou seja, como um dos temas que lideram o

encadeamento de sentidos. No entanto, o estudante utiliza muitos de seus

conhecimentos vinculados às suas experiências e aos discursos aos quais é exposto,

deixando-os claros na sua justificativa. Note-se o caso da escolha de ‘sociedade’: o

usuário procura indicar a necessidade da sociedade se posicionar com relação à ciência,

pois essa pode ‘nem sempre’ ser ‘benéfica a todos’. Ele ainda procura acionar

conhecimentos culturalmente aprendidos de que é necessário agir em conjunto com a

sociedade para o bem de todos quando destaca que é necessário pensar ‘como a

tecnologia é distribuída’, ‘se vai ser bom pra todos’. O leitor destaca ainda o fato de que

a ciência genética ‘está indo cada vez mais longe’ e é necessário pensar nos benefícios

para a sociedade. Ou seja, o leitor constrói um sentido principal (DIJK; KINTSCH,

1983) – o de que a ciência genética é responsável pela descoberta de fatores importantes

na sociedade – e a isso ele liga sentidos baseados numa necessidade social

(KRAMSCH, 1998) - pensar nas consequências e no ‘bem de todos’.

As experiências socioculturais dos estudantes também são relatadas no excerto

seguinte:

A.2.3.4 células-tronco: é o assunto de destaque que causa um

impacto muito grande por ser polêmico e sério. Curar: palavra

forte por ser algo que muda o curso de uma vida. Problema:

palavra que evidencia que algo está errado que a genética tem

seus problemas. Embriões: da onde pode sair a cura de doenças

que se julgam incuráveis.ética: uma palavra muito discutida e

extremamente importante.

139

Cf. 4.2.2 sobre a competência discursiva.

210

No extrato, o informante destaca o seu conhecimento a respeito da engenharia

genética dizendo que é um assunto ‘polêmico e sério’, atrelando a ele a importância de

comportamentos éticos dentro do ambiente de estudos genéticos. Veja-se que

experiências de vida do leitor são evocadas na interpretação quando ele afirma que a

palavra ‘cura’ é muito ‘forte’ porque pode mudar ‘o curso de uma vida’. O leitor

salienta uma necessidade imposta pela sociedade de se encontrar a cura para doenças

‘que se julgam incuráveis’, e quem pode fazer isso é a ciência genética. O teor

altamente argumentativo do texto pode ter influenciado nessa interpretação do leitor,

pois é justamente no assunto células-tronco que o autor destaca que embriões são

usados na descoberta de doenças graves, aprovando o uso da engenharia genética nesse

aspecto. O leitor indica essa aprovação no texto e a coloca como benéfica, mas ao

mesmo tempo indica que ela interfere na vida em sociedade porque, reitera-se, a palavra

‘cura’ é muito ‘forte’ e o assunto é ‘polêmico’.

Na justificativa abaixo, o informante demonstra a focalização do tema central – a

célula-tronco - pela argumentação textual feita pelo autor:

A.2.3.20 transgênicos: experiência com produtos modificados;

humanidade: quem sofrerá com os efeitos. Clonagem: copias

reais. Experimento: tentativa de melhora. Células-tronco: tema

central.

Note-se que, embora o assunto central do texto seja a ciência genética, o autor dá

um destaque primordial à questão da aprovação da célula-tronco, em oposição aos

temas anteriores, os quais possuem argumentação contrária à sua prática. Mais um fator

importante neste exemplo é a maneira como o leitor destaca ‘humanidade’ e relata que é

quem ‘sofrerá com os efeitos’. O leitor procura indicar no diálogo com o texto que há,

de fato, efeitos ruins produzidos pela ciência genética e que pode haver sofrimento com

relação a isso. É importante lembrar que:

no mundo da nossa percepção e memória, os dados apreendidos

organizam-se em esquemas cognitivos que respeitam as relações, as

proximidades comuns, os cruzamentos de pertencimento natural e

cultural das coisas. Tudo está arrumado, tudo está estruturado para ter

sentido sob o prisma da relação, da pertença coletiva, do destino

comum, do que resulta uma espécie de herança social com que

interpretamos nossas experiências. Consequentemente, é comum que,

em nossos discursos, falemos de coisas afins, de coisas que se

aproximam sob qualquer foco, no interior de determinado grupo ou

cultura (ANTUNES, 2012, p. 88).

211

Aquilo que Antunes (2012) aponta como uma arrumação ou uma estruturação

para fazer sentido na perspectiva do pertencimento corrobora o fato de que os leitores

relacionam aspectos discursivos, como a argumentação, a aspectos culturais, como a

necessidade da cura, ou o sofrimento de efeitos possivelmente ruins. Há uma limitação

do discurso do falante, nas justificativas, a uma área que é possível ser estudada pela

ciência genética. Os informantes não apontam geralmente para quaisquer outros fatores

científicos como a descoberta de novas fórmulas matemáticas, ou a preservação de

animais em extinção. Eles procuram limitar sua interpretação a um campo específico: o

que a ciência genética é capaz de fazer para ajudar a sociedade. Ou seja, os leitores

fazem exatamente o que Antunes (2012) aponta: concentram seus discursos a coisas

afins, a coisas que se aproximam sob um certo prisma, ou à sua cultura.

Veja-se, neste outro extrato, a maneira como os leitores utilizam questões

discursivas – a marcação temática dos pontos principais do texto – atreladas a questões

socioculturais:

A.2.3.1 transgênicos – é uma das causas que estão acabando

com nossa saúde; clonagem: estão fazendo de tudo para que a

natureza não se manifeste, até clonagem, com isso as pessoas já

estão podendo escolher como será seu filho; genética: é um dos

assuntos mais abordados hoje; embriões: hoje as pessoas

guardam para utilizar anos depois e também já está sendo

usados para tratar de doenças; vida – é o assunto mais

importante

O leitor destaca os temas principais expostos na argumentação do texto: genética

- transgênicos, clonagem, células-tronco (‘embriões’) - e ainda afirma que na sua

interpretação ‘vida’ é ‘o assunto mais importante’. Para o leitor, todas as questões

abordadas no texto e indicadas por ele - aspectos discursivos - devem ser pensadas no

que diz respeito à ‘vida’, à sua preservação ou destruição, à natureza, à saúde o que são

considerados aspectos sociointerculturais por fazerem parte dos discursos e defesa de

comportamentos vividos pelos leitores em sua realidade.

O informante aponta ainda para conhecimentos utilizados extratexto para

construir interpretação quando indica que com a clonagem ‘as pessoas estão podendo

escolher até como será seu filho’. O leitor ressalta que os estudos divulgados pela

genética, aos quais ele tem acesso, revelam a possibilidade de escolher a aparência dos

212

filhos. Para o leitor, essa ação é feita por meio da clonagem e da ciência genética, que ‘é

um dos assuntos mais abordados hoje’. Deve ser lembrado que mesmo que isso seja

feito, não pela clonagem, mas pela manipulação genética, o leitor limita seus

conhecimentos a áreas afins: fala-se de manipulação genética e clonagem é uma dessas

práticas.

Outro detalhe é que o leitor indica claramente que utiliza outros discursos para

interagir com o texto a partir dos quais ele é capaz de construir conhecimento. Ele

aponta para uma prática social de congelar embriões: ‘hoje as pessoas guardam para

utilizar anos depois’. Essa indicação só pode ser feita mediante o conhecimento de que

embriões são utilizados pela medicina para dois tipos de práticas: a) a pesquisa em

ciência genética, o que é exposto no texto; e b) a utilização dos embriões em algum

aspecto ou momento da história, como por exemplo, para dar vida a uma criança no

momento em que uma pessoa achar mais oportuno, o que é construído pela inferência

do leitor.

Nesse outro exemplo, a relação entre a sequência textual, a tipologia

argumentativa e os conhecimentos de mundo do leitor também fica exposta:

A.2.3.3 arrastados: essa palavra remete ao objetivo geral do

texto pois de acordo com nosso consentimento ou não a genética

está cada vez mais avançada. Dilema: o assunto tratado pelo

texto é verdadeiramente uma discussão de várias partes que

concordam ou não com todas essas modificações ocorridas.

Natureza: essa palavra é de suma importância, pois as mudanças

genéticas estão ocorrendo e podem afetar tanto a natureza

quanto a humana. Clonagem: de acordo com o texto a clonagem

é algo desnecessário e impróprio pois pode trazer mais

malefícios do que benefícios. Células-tronco: algo necessário

que ajudaria várias pessoas com certas doenças a viverem

melhor, porém algumas pessoas dizem que é como “matar

vidas” mas para o autor do texto seria algo maravilhoso para

restituir a vida de tantos sofredores.

O leitor, assim como nos extratos anteriores, procura demarcar assunto principal,

a genética, indicando a palavra ‘arrastados’. É interessante observar que o estudante

indica que ‘o objetivo geral do texto’ é a genética, mas as pessoas são abordadas por

essa ciência de uma forma intensa, e são, de fato, ‘arrastadas’ por ela porque ela avança

rapidamente ‘com nosso consentimento ou não’. Ou seja, o leitor, utiliza dois tipos de

competência para construir interpretação: i) a discursiva: para encontrar o assunto

213

principal – estabelecimento da coerência global; e ii) a sociointercultural para fornecer a

esse assunto uma característica social de ‘arrastar’ as pessoas para um consentimento.

Note-se também, que o leitor, ao destacar conectivos tais como ‘pois’, ‘porém’ e

‘mas’, utiliza tanto sua competência gramatical por estar ciente da função de tais

elementos na construção das frases, quanto sua competência discursiva ao destacá-los

como fatores de demarcação da posição do autor na argumentação e utilizá-los como

elementos responsáveis pela coesão do texto. Para indicar a posição negativa do autor

com relação à clonagem - ‘algo desnecessário e impróprio’ - o leitor utiliza um

conectivo de consequência, ou explicativo – ‘pois’ – e afirma que a razão para isso é

que a clonagem traz ‘mais malefícios do que benefícios’. Cabe destacar que o leitor faz

isso mediante inferências e generalizações a partir do texto e dos argumentos do autor.

Por outro lado, para demonstrar a posição favorável do autor com relação às células-

tronco, ele utiliza os conectivos adversativos ‘porém’ e ‘mas’, colocando os argumentos

do texto em oposição: por um lado, células-tronco ajudam pessoas doentes a terem uma

vida melhor, e ‘restitui vidas’ e, por outro lado, para alguns, é como posição ‘matar

vidas’. Nessa relação de oposição estabelecida a partir dos conectivos, o leitor marca

claramente a posição do autor: ‘para o autor é algo maravilhoso’. Em outros termos, o

leitor identifica a oposição e, ao mesmo tempo, define a atitude favorável do autor com

relação ao tema. É interessante dizer aqui que o leitor está ciente da relação estabelecida

entre seus conhecimentos gramaticais, discursivos e sociointerculturais. Ele utiliza os

conectivos e suas relações semânticas (oposição, consequência) para dar ao texto

coesão, marcando proposições, bem como sequências expostas no texto, e ainda utiliza

a maneira como seu conhecimento é representado – ‘arrastar as pessoas ao

consentimento’ - para estabelecer relações lógicas de ação e percepção, construindo

coerência.

No exemplo anterior ainda, o leitor indica a tipologia altamente argumentativa

do texto, utilizando seus conhecimentos textuais de que em textos dissertativos

argumentativos há a necessidade da exposição das diferentes posições a respeito do

tema: ‘verdadeiramente uma discussão de várias partes que concordam ou não’, ‘de

acordo com o texto a clonagem é algo desnecessário e impróprio’, ‘algumas pessoas

dizem que é como ‘matar vidas’ mas para o autor do texto seria algo maravilhoso’.

Veja-se como o leitor aponta para questões discursivas na polêmica entre as diferentes

opiniões levantadas e argumentadas pelo autor, e afirma que, ‘de acordo com o texto’,

‘para o autor’, ‘discussão de várias partes’, há ideias em oposição. O informante

214

focaliza, na sua interpretação, questões relativas à competência discursiva (gênero e

tipologia), procurando demarcar a maneira como a argumentação é construída, e

delimita, nas justificativas, as diferentes opiniões em oposição.

Conforme se observou na seção 4.1.3, as questões de gênero também

influenciaram os informantes na interpretação do texto 03. Para esse texto, foram

analisadas um total de 31 justificativas, classificadas para o diálogo entre as

competências discursiva e sociointercultural140

, sendo 17 da turma A e 14 da turma B.

Esse alto número de extratos para o texto pode ser explicado pelo gênero literário

poema, o qual, de fato, comporta mais possibilidades de criação e por consequência da

utilização de diversos conhecimentos. Isso porque de acordo com Antunes (2012),

o léxico é a matéria onde será assentado o jogo da criação literária. As

possibilidades que ele comporta são inúmeras; são hipoteticamente

infinitas, em se tratando de literatura. Mas, no momento mesmo da

criação – da criação mais agudamente criação – o ‘dizível’ entra nos

contornos disponíveis no léxico e, assim, torna-se menos extenso e

mais suscetível de sofrer as restrições das seleções das palavras

(ANTUNES, 2012, p. 127).

Isto significa que, no poema, o leitor procura restringir seus conhecimentos às

seleções das palavras, mas o gênero literário por si só lhe dá mais liberdade de criar e

fazer relações hipotéticas, confirmando ou não suas possibilidades de leitura. O leitor

estabelece para o texto o que pode ou não estar sendo dito a partir do léxico utilizado na

escolha das palavras-chave.

No exemplo abaixo, o gênero poema possibilita uma criação de um mundo

textual diferente do mundo real quando o leitor fornece à palavra ‘mundo’ uma

possibilidade de ser um lugar onde ‘nunca se foi’:

A.3.3.13 gauche: homem que vê a vida de um modo diferente;

bonde: seria lugares cheio de pessoas, na maioria mulher.

Fraco: mandou ver o mundo mais que não resistiu a algo;

mundo: ver como é estar em lugar aonde nunca se foi. Coração:

tem sentimentos, pode estar com sentimentos bons e também

ruins.

O jogo da criação literária de um mundo textual próprio do texto é marcado pelo

leitor em vários momentos, ao indicar: ‘gauche’ como um homem que ‘vê o mundo

140

Cf. tabela 9 na p. 203 que mostra o número de justificativas classificadas em diálogo entre as

competências discursiva e sociointercultural.

215

diferente’; ‘bonde’ - visto pelo leitor como um lugar onde se vê várias pessoas,

principalmente mulheres (esse fator talvez explique a questão apontada pelo leitor da

fraqueza do personagem de ‘não resistir a algo’, o que pode ser mulheres); e ainda

‘mundo’ visto como ‘um lugar onde nunca se foi’. Ou seja, o leitor cria um mundo

textual no qual seja possível estabelecer coerência para o texto (ECO, 1979).

Outro detalhe importante neste extrato é o fato do informante indicar ‘coração’

como palavra-chave, para indicar os sentimentos do personagem, os quais podem ser

tanto ‘bons’ quanto ‘ruins’. Veja-se que uma palavra presente no texto é destacada

como chave para realizar conexões culturais: embora coração seja um órgão do corpo

humano (uma questão fisiológica, portanto), ao falar nessa palavra, questões culturais

relacionadas a aspectos de sentimento, amor, emoções são trazidas à tona. Isto quer

dizer que sentidos também são construídos a partir do uso social de uma palavra na

comunidade da qual o leitor faz parte.

No exemplo anterior da turma A e no extrato a seguir do aluno 12 da turma B, os

leitores utilizam elementos da superfície do texto para ativar sequência textual das ações

e estruturas de conhecimento:

B.3.3.12 carlos me faz lembrar o nome dele. Espiam: que

alguém em casa monitora ele. Pernas: quer dizer que ele gosta

de pernas é mulherengo. Fraco: que ele é fraco a mulheres.

Coração: que ele é mais emotivo que racional.

O leitor procura demarcar o personagem no texto na escolha de ‘Carlos’, um

substantivo próprio, como palavra-chave. Observe-se que as demais escolhas das

palavras estão todas ligadas a esse personagem: o informante utiliza o pronome ‘ele’

sempre como remissivo a Carlos e nas justificativas explica as ações desenvolvidas pelo

personagem no texto. Em outros termos, o fato interessante aqui é a maneira como o

estudante explica tais ações a partir de inferências que faz a partir do texto: ele é

monitorado - ‘alguém em casa monitora ele’; ele é ‘mulherengo’ - inferência do leitor

possibilitada pela afirmação do texto de que no bonde haviam muitas pernas associada à

informação da estrofe anterior de que os homens correm atrás de mulheres; ele ‘é fraco

a mulheres [sic]’; ele se deixa levar por suas emoções - ‘é mais emotivo que racional’.

Note-se a maneira como as informações do texto possibilitam a criação do leitor

dinamizando a língua na escolha das palavras-chave. As inferências são construídas a

partir de informações do texto, ligando-as a possibilidades reais armazenadas em seu

216

conhecimento de mundo, ou seja, o texto afirma em uma estrofe que os homens correm

atrás de mulheres e em outra estrofe que no bonde haviam muitas pernas. A partir disso

o informante infere que ele é ‘monitorado’ porque é ‘mulherengo’, é ‘fraco a mulheres

[sic]’ e se deixa levar por suas emoções. Há uma associação de sentidos possíveis dadas

às frases e a sequência textual em que as palavras ocorrem no poema.

Agora, outro excerto:

B.3.3.20 nasce: mostra o começo da vida, a partir desse ponto

acontesse[sic] o entendimento da vida; mundo: o tema que o

narrador quer falar e fazer críticas. Coração: o que ele quer

mostrar é os seus sentimentos do seu coração. Dizer: mostra o

seu desabafo sobre o mundo e a vida. Comovido: uma certa

ironia sobre o tema abordado.

Neste extrato, o estudante demonstra ações possíveis na vivência de qualquer

pessoa como forma de estabelecer sequência de ações e coerência textual: nascer,

demonstrar sentimentos, desabafar. Juntamente a isso o leitor mostra como a escolha

das palavras indica para ele a possibilidade de criar com a língua: a) o entendimento da

vida acontece a partir do nascimento; b) o autor quer fazer críticas sobre o mundo; c) ele

quer mostrar sentimentos; d) desabafar sobre o mundo e a vida. Veja-se que são as

possibilidades de leitura indicadas pelo leitor na escolha das palavras-chave. Essas

possibilidades são limitadas a duas coisas principais: a sequência exposta no texto e a

estrutura de conhecimentos do leitor que permite essa criação. O leitor, de fato não

poderia tirar a conclusão de que o personagem está muito feliz com sua vida, se no

texto, ele se depara com enunciados que demonstram reclamação, súplica, tristeza,

comoção. Ou seja, a escolha das palavras possibilita a criação imaginária do leitor numa

dinâmica interna, mas ao mesmo tempo essa criação é limitada aos sentidos construídos

no texto.

Antunes (2012) destaca que o léxico é aberto e pode sofrer alterações diversas

mantendo uma dinâmica interna. Isso não quer dizer que as palavras podem ser

destituídas de qualquer significado e se possa dar a ela um estado cognitivo zero, o que,

de fato, não acontece nas justificativas dos alunos. As palavras se associam a outras

criando novos sentidos conforme o contexto em que se inserem. Há uma instabilidade

no léxico que nos permite inventar e (re)criar com a língua, o que é limitado aos

sentidos possíveis construídos pelo encadeamento de palavras, frases e o texto como um

217

todo. No excerto abaixo, o leitor procura relacionar diferentes personagens do texto a

ações ali realizadas:

B.3.3.6 (anjo) que quando o homem nasceu disse vai Carlos vai

ser alguém na vida. Mulheres: que os homens correm atrás delas

na noite. Homem: que se alucina ao um anjo e uni atrás das

mulheres e se desanima e reclama. Deus: que o homem desafia

sobre ele coisas que não conseguiu. Mundo: que o homem

reclama do mundo pelo que não conseguiu.

Veja-se como o leitor separa as ações e os diálogos intratexto a partir da escolha

de palavras que indicam os personagens: em um primeiro momento, o anjo que

conversa com o personagem principal, mulheres que o ‘desanimam’, o homem – Carlos

- que é identificado como aquele que se ‘alucina’ pela imagem do anjo e das mulheres,

‘Deus’ que ‘desafia’ o homem, e o mundo como foco da reclamação. É importante

observar a maneira como o leitor, também neste extrato, cria um mundo textual

(BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981; ECO, 1979) a partir da escolha das palavras-

chave: um mundo em que o personagem reclama, sofre por correr atrás das mulheres,

desanima, é desafiado pelas coisas que não conseguiu realizar. Ao separar a palavra do

texto, o informante, na verdade, a relaciona a um sistema subjacente que possibilita as

ações textuais (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010; KOCH; TRAVAGLIA, 2011).

É importante lembrar que a relação estabelecida pela palavra e suas

possibilidades na vida real é também possibilitada pela realização de um enunciado em

um determinado gênero, que, nesse caso, tem uma função poética de criação. Ou seja,

há uma interligação constante entre a palavra, o enunciado e o gênero em que é

concretizada. O extrato seguinte exemplifica tal interligação:

A.3.3.19 anjo torto: veio para ele anunciando a desgraça da vida

dele. Pernas: não vê o rosto das pessoas por elas não lhe

chamarem a atenção tanto quanto o maquinista. Atrás: que o

homem fica atrás dos óculos e do bigode que ele disfarça o que

ele é ou que ele triste por ficar sempre atrás. Sabias: Deus e o

mundo sabiam que ele era fraco e mesmo assim o deixaram

viver. Conhaque: é a solução prévia para a tortura dele.

Note-se aqui que o estudante destaca as palavras-chave de alguma forma

relacionadas aos personagens – ‘anjo’, ‘homem’, ‘Deus’ - e às ações realizadas no texto

– ‘anunciar desgraça’, se ‘disfarçar’, ficar ‘triste’, ser ‘fraco’, arrumar ‘solução’ - como

218

uma forma de fornecer coerência ao texto. Junto a isso, o leitor procura dar aos

enunciados um tom de tristeza e de sofrimento - ‘triste por ficar sempre atrás’, ‘sabiam

que ele era fraco’, ‘solução para a tortura’ - como forma de estabelecer a função

comunicativa do gênero e ativando a criatividade, a emoção e o imaginário. Bakhtin

(2000) afirma justamente que a palavra é escolhida para qualquer interação verbal

(portanto, na leitura também) como forma de relacionar enunciados às suas

manifestações típicas, ou seja, aos gêneros:

quando escolhemos uma palavra, durante o processo de elaboração de

um enunciado, nem sempre a tiramos, pelo contrário, do sistema da

língua, da neutralidade lexicográfica. Costumamos tirá-la de outros

enunciados e, acima de tudo, de enunciados que são aparentados ao

nosso pelo gênero, isto é, pelo tema composição e estilo: selecionamos

as palavras segundo as especificidades de um gênero. (...) no gênero a

palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a

circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por

conseguinte, a certos pontos de contato típicos entra as significações

da palavra e a realidade concreta. Daí se segue que as possibilidades

de expressões típicas forma como que uma supra-estrutura da palavra.

Essa expressividade típica do gênero, claro, não pertence à palavra

como unidade da língua e não entra na composição da sua

significação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua

significação mantêm com o gênero, isto é, com os enunciados típicos.

(BAKHTIN, 2000, p. 312).

Bakhtin (2000) argumenta que as palavras também ganham sentidos a partir da

sua ocorrência em um “enunciado típico”, ou seja, em um gênero. Pode-se dizer, assim,

que a ocorrência das palavras no gênero poema faz com que o leitor forneça um sentido

ligado à emotividade do gênero em si. Há uma conexão entre as escolhas das palavras, a

expressão típica em que se inserem – ou o gênero – e as funções comunicativas que elas

têm no interior do texto.

Veja-se também, no exemplo anterior, a maneira como o leitor oferece uma

solução ao personagem: o ‘conhaque’. Essa afirmação pode estar sendo influenciada por

um conhecimento sociocultural de que a bebida é utilizada como forma de fugir dos

problemas. É o que acontece também na justificativa seguinte:

A.3.3.24 nasci: a pessoa nasceu desorientada sem ideia do

mundo. Coração: que o coração não conhece as coisas que os

olhos estão acostumados a ver. Fraco: ele era fraco perto de

Deus e Deus abandonou ele. Solução: que o mundo está cheio

de problema e o nome dele não daria solução. Comovido: que

com uma bela lua e um conhaque ele fica bom.

219

O informante utiliza as palavras ‘solução’ e ‘comovido’ como uma forma de

associar os significados a realidades criadas no texto. Ou seja, há uma conexão entre as

palavras e a maneira como o leitor constrói a interpretação de que há um personagem

triste, abandonado por Deus, que procura uma solução e que com ‘uma bela lua’ e um

‘conhaque’, o personagem pode ‘ficar bom’. Antunes (2012) afirma que a associação

semântica entre as palavras que criam o mundo da ficção constitui a esteira por onde

transita tudo aquilo que é inusitado. Ou seja, o leitor utiliza as palavras para associar

possibilidades de interpretação baseado na estabilidade dos sentidos criados por elas

intratexto. Uma das interpretações indicadas pelo leitor neste excerto é justamente o fato

de que ‘Deus abandonou’ o personagem e ‘o mundo está cheio de problema’. Há uma

associação de fatores discursivos e sociointerculturais quando o leitor: a) indica o

sofrimento do personagem, afirmando que é ‘desorientado’, tem ‘problemas’, ‘é fraco’;

e b) salienta o fato de que observar uma ‘bela lua’ e beber ‘conhaque’ podem levar o

personagem a sentir-se ‘bem’, o que é construído pelas inferências do leitor.

No entanto, os dados também revelaram exemplos em que os estudantes

justificaram suas escolhas a partir apenas da hierarquização do assunto principal do

texto. Lembra-se, aqui, que a atividade foi explicada para os alunos no sentido de que

eles deveriam selecionar palavras que os fizessem lembrar do texto ou que os ajudassem

a compreender o sentido global.

Alguns estudantes não expuseram seus motivos e, de uma forma genérica e

intuitiva, explicaram que as palavras foram escolhidas porque ‘são mais importantes’,

‘lembram o tema central’, ‘são mais faladas’, ‘são fundamentais’, entre outras

justificativas. Observou-se que isso aconteceu de forma mais frequente na turma B:

foram 13 indicações classificadas para a turma B, o que significa 50% dos alunos

analisados na turma, tendo sido indicadas da seguinte maneira: sete no texto 1, quatro

no texto 2, e duas no texto 3. Já no caso da turma A, foi observada apenas 1 (uma)

indicação dessa natureza para o texto 1, ou seja, apenas 3% da turma. O fato de uma

maior indicação na turma B pode ser explicado pelos dados dos questionários que

indicam que essa turma é menos assídua às atividades de leitura do que a turma A. Visto

que a competência comunicativa está sempre em desenvolvimento e que quanto mais se

interage com a língua maior a proficiência comunicativa do usuário, tem-se a explicação

do fato: os alunos da turma A, por serem mais assíduos à leitura, conseguem destacar

com mais facilidade fatores diversos dos níveis da competência comunicativa e

220

justificá-los na escolha das palavras-chave. Já os alunos da turma B, por possuírem

menos hábito de leitura, procuram encontrar o sentido principal do texto, mas não

conseguem explicar claramente o motivo pelo qual estão hierarquizando essas

informações. Na sequência, mais um extrato; agora do aluno 2 da turma B:

B.1.3.2 pobre, Pitágoras, lição, estudo, hipotenusa. Porque? São

mais faladas no texto e com elas conseguimos interpretar melhor

o que o texto todo quer dizer.

Note-se, nesse extrato, que o informante destaca palavras que marcam ações

textuais importantes: um dos personagens textuais – o pobre -, os elementos textuais

sobre o qual o autor constrói a crítica – Pitágoras, lição, estudo e hipotenusa. A

justificativa do leitor reside no fato de que, por serem ‘mais faladas no texto’, tais

palavras o auxiliam na interpretação e a compreender o que ‘o texto todo quer dizer’. A

tentativa do informante aqui é justamente destacar o tema principal do texto. Ou seja, a

competência discursiva está sendo usada de alguma maneira para hierarquizar

informações e encontrar sentido global (KOCH; ELIAS, 2010; DIJK, 1977a; 2002).

Para os demais textos, outros leitores também demonstram utilizar a

competência discursiva para concentrar o sentido principal do texto. Veja-se o exemplo:

B.2.3.18 transgênicos, clonagem, infertilidade, célula-tronco,

curar. Eu escolho estas palavras como palavras-chave porque, a

meu ver, elas resumem a mensagem do texto.

Observe-se que o intuito principal do leitor é encontrar a mensagem do texto, e,

estrategicamente, ele seleciona palavras que demonstram a sua construção

argumentativa, expondo assuntos principais – transgênicos, clonagem, células-tronco –

e alguns argumentos utilizados pelo autor – infertilidade e cura. O estudante diz que

essas palavras ‘resumem’ o texto, e embora não explique as suas justificativas de forma

explícita, ele relata que o ponto principal é encontrar o sentido global (DIJK, 1977a;

1977b). O que se quer dizer com isso é que as palavras-chave funcionam, nos casos

acima, como uma estratégia de concentrar a atenção dos leitores na ‘mensagem’

principal embora eles não queiram ou não saibam explicar os motivos e a maneira pela

qual as dimensões da competência comunicativa estão sendo ativadas. O que acontece,

nesses casos, é visto como uma forma dos informantes ativarem a competência

comunicativa para hierarquizar informações textuais salientes, mas que ela ainda precisa

221

desenvolvida para que o leitor tenha maior domínio sobre suas estratégias de diálogo

com o texto.

Em suma, pode-se dizer, a partir dos dados analisados, que há uma interação

constante entre as palavras escolhidas pelos estudantes e seus diversos conhecimentos:

1) para o texto 01, os estudantes procuram ligar a sequência da narrativa à

possibilidades reais e à crítica do texto, utilizando conhecimentos relacionados a

discursos ideológicos e também à realidade da diferença de classes impostos na

sociedade;

2) para o texto 02, a argumentação típica do gênero artigo de opinião é destacada

pelos estudantes numa relação constante com conhecimentos que fornecem à

ciência poder de cura, possibilidades de melhoria da vida em sociedade,

descobertas. Os leitores procuram topicalizar, na escolha das palavras-chave, os

argumentos do autor, e demonstram como seus conhecimentos ligam-se a esses

argumentos por questões sociais e interculturais vividas por eles;

3) para o texto 03, a necessidade dos leitores estabelecerem a criatividade e a

emotividade do texto direciona as interpretações dadas nas escolhas das

palavras-chave. Os estudantes indicam palavras que possam explicar a tristeza

do personagem, guiados pelas ações encontradas no texto e ativadas por seus

conhecimentos de mundo.

Deve-se esclarecer que há outras justificativas que poderiam corroborar os

fatores discursivos e sociointerculturais apontados até aqui141

. No entanto, para evitar

circularidades e repetições, selecionaram-se aquelas consideradas mais relevantes como

amostra da maneira como tais fatores são evidenciados por vários dos informantes.

É importante reiterar que não se tem a pretensão de fazer uma análise exaustiva

de todos os conhecimentos discursivos e sociointerculturais apresentados por todos os

alunos pesquisados. O que se quis demonstrar é que os alunos utilizam sua competência

comunicativa de forma contundente e interativa para produzir sentidos. Vale ainda

lembrar que a competência comunicativa deve ser desenvolvida na interação durante a

leitura para levar os alunos a explorarem diferentes estratégias que os façam criar novas

possibilidades de interpretação e de leitura, dando a eles uma característica de leitores

cada vez mais proficientes.

141

No anexo E, pode-se encontrar os extratos das justificativas apontadas pelos estudantes.

222

A criação de novas possibilidades de interpretação pela utilização da

competência comunicativa a partir da estratégia de escolha de palavras-chave pode

revelar a maneira como os alunos, de fato, interagem com o texto e como eles sentem a

necessidade de dialogar com o referido texto para construir sentidos textuais e pessoais.

A utilização do léxico como ativador dos vários tipos de conhecimento do leitor e como

canalizador da competência comunicativa no ato de leitura revela que a interpretação

textual é rica e abre uma gama de possibilidades que perpassam questões linguísticas,

discursivas e sociointerculturais. Em outras palavras, a partir da estratégia de escolha do

léxico mais relevante para o leitor na interação com o texto, ou seja, as palavras-chave,

é possível demonstrar a necessidade de se fornecer ao estudante ferramentas de diálogo

com o texto a partir da linguagem.

Reitera-se ainda que o objetivo deste capítulo é responder ao primeiro

questionamento de pesquisa142

. Observou-se pelos dados que, de fato, a seleção da

palavra-chave funciona como uma estratégia de estabelecer diálogo com o texto e de

canalizar conhecimentos dos diferentes níveis da competência comunicativa numa

relação constante para a construção de sentidos. Os dados demonstraram que a

competência comunicativa, em suas diferentes dimensões, é, de fato, ativada e

desenvolvida a partir da escolha da palavra-chave, a qual auxiliou os leitores na

consideração de diferentes características textuais que funcionaram como base principal

de estabelecimento sentido. Em outros termos, o que se verificou nos dados, é que além

da palavra-chave funcionar como estratégia de canalização dos níveis da competência

comunicativa, ela também foi utilizada pelos leitores para ancorar conhecimentos

diversos que possibilitaram a hierarquização de sentidos textuais e o diálogo com as

realidades vividas pelos estudantes.

Além de ser uma estratégia para estabelecer interação com o texto na produção

de sentidos, a palavra-chave pode servir como um guia para a confirmação das

possibilidades que o leitor estabelece ao iniciar a leitura do texto e ainda para auxiliar o

mesmo leitor a negociar sentidos importantes. Esse é o foco da discussão do último

capítulo que compõe essa tese.

142

Cf. cap. 3

223

5 A PALAVRA-CHAVE COMO GUIA NA LEITURA, NA CONSTRUÇÃO E NA

NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS

Viu-se no cap. 04 que as palavras-chave são utilizadas como uma estratégia

importante no desenvolvimento da competência comunicativa para produção de

sentidos textuais. Por meio da seleção da palavra-chave, o leitor constrói a compreensão

a partir de características gramaticais, discursivas e sociointerculturais que se revelam

durante o processo de leitura. Essa percepção da palavra-chave não é casual, ao

contrário, é influenciada por relações semânticas estabelecidas no texto e pelos

conhecimentos prévios do leitor no momento da interação (KLEIMAN, 2002; KOCH,

2009; CASTELLO-PEREIRA, 2003). Nesse processo, o leitor pode estar sendo

influenciado por marcas linguísticas percebidas durante a pré-leitura, ou seja, ele

observa as possibilidades interpretativas num momento inicial de leitura e procura

indícios para confirmá-las no texto. Ainda, quando encontra pistas que refutam ou

confirmam tais indícios – mesmo que apenas parcialmente - ele procura realizar um

trabalho de reconstrução ou de adequação das possibilidades estabelecidas para a leitura

(SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 2002; KATO, 1999).

Neste capítulo discute-se a segunda e terceira questões de pesquisa143

, as quais

são aqui retomadas:

a) A seleção das palavras-chave funciona como um guia para a confirmação ou

reconstrução das interpretações iniciais (hipóteses de leitura – KLEIMAN, 2002;

SOLÉ, 1998; CASTELLO PEREIRA, 2003) feitas pelo leitor durante o processo

de interação da leitura organizando os seus conhecimentos na construção de

sentidos?

b) O leitor utiliza as palavras-chave como uma estratégia para identificar sentidos

intra e intertexto, assim como para negociar novos sentidos para o texto e para si

mesmo?

Em outros termos, vai-se investigar, neste capítulo, dois aspectos principais os quais

são divididos por atividades analisadas da seguinte maneira144

:

1) A utilização da palavra-chave como um guia para a confirmação ou

reconstrução das possibilidades de leitura estabelecidas pelo leitor:

143

Cf. cap. 3 144

Vide cap. 3.4 para maiores detalhes sobre as atividades propostas.

224

Na primeira seção do capítulo (seção 5.1), discutem-se as três primeiras

atividades propostas, as quais incluem: uma atividade de pré-leitura a partir da análise

do título para o levantamento das possibilidades iniciais de leitura (hipóteses de leitura),

e duas atividades de leitura - uma em que os estudantes expõem suas primeiras

interpretações com a leitura do texto e outra em que eles selecionam a palavra-chave

para demonstrar os sentidos principais construídos por eles. A intenção, nesta seção, é

observar a maneira pela qual os alunos tecem os fios semânticos condutores

(CAVALCANTI, 1989) da sua interpretação desde o início da interação com o texto, a

partir da exposição das hipóteses de leitura, até a (re)construção de sentidos a partir de

uma leitura mais efetiva. Discute-se, ainda, como as palavras-chave são selecionadas

para confirmar ou reconstruir tais hipóteses.

Pelo fato de se utilizar na análise proposta neste capítulo a atividade de seleção

das palavras-chave, alguns aspectos já discutidos no cap. 4 podem parecer redundantes.

No entanto, deve-se ter em mente que o intuito desta seção é demonstrar a maneira

como os leitores utilizam a palavra-chave com outra função: a ancoragem das

possibilidades iniciais de leitura, o que não descarta o fato das diferentes dimensões

estarem sendo utilizadas de forma concomitante nessa tarefa. Observa-se na análise dos

dados elaborada neste capítulo que vários leitores demonstram, nas suas leituras, que as

dimensões da competência comunicativa também estão, de fato, sendo desenvolvidas.

Aponta-se para o fato de que os leitores selecionados neste capítulo são diferentes, o

que vem a confirmar os resultados já obtidos para o cap. 4, pois os dados apresentam

características semelhantes às já discutidas, e ainda auxiliam na discussão dessa segunda

função da palavra-chave, aqui apresentada.

2) A negociação de sentidos e a produção de opiniões do leitor a partir da

interação ocorrida durante a leitura:

Na segunda parte do capítulo (seção 5.2), analisa-se a atividade de discussão do

texto na qual três perguntas foram feitas aos informantes com o intuito de identificar a

maneira como os sentidos são negociados no diálogo com o texto e na identificação dos

sentidos expostos pelo autor. A intenção aqui é discutir a maneira como os sentidos

foram construídos pelos leitores durante a atividade de leitura e como são reconstruídos,

reposicionados ou negociados quando os leitores são questionados sobre as ideias

presentes no texto.

Deve ser lembrado que, neste capítulo, a análise ocorrerá por texto e por leitor.

Sendo assim, a discussão de ambas as seções serão pautadas na seleção de informantes

225

que expõem aspectos observados em quase todos os alunos. Ou seja, as atividades dos

mesmos informantes são analisadas primeiramente na seção 5.1 com a investigação das

atividades de pré-leitura e leitura, e na seção 5.2 com a análise da atividade de discussão

do texto.

Ainda, tabelas com a quantificação dos dados foram construídas com o objetivo

de demonstrar que os informantes selecionados são exemplos do que se notou nas duas

turmas pesquisadas como um todo. Isto quer dizer que é a partir de uma observação

geral, percebida na quantidade dos dados, que os alunos são selecionados como amostra

do que acontece com o grupo de leitores. Os informantes selecionados são classificados

de acordo com a numeração145

já exposta no capítulo anterior.

Parte-se, então, para a discussão dos dados.

5.1 A (RE)CONSTRUÇÃO DAS POSSIBILIDADES INICIAIS DE LEITURA E A

FOCALIZAÇÃO DE SENTIDOS TEXTUAIS

A análise conduzida na sequência desta seção será exposta em duas frentes

principais: a) por texto de pesquisa; e b) pelos informantes selecionados.

No primeiro texto intitulado “Nada como a instrução146

”, a partir de uma

quantificação dos dados, verificou-se que a maioria dos alunos indica, na atividade de

levantamento das possibilidades iniciais de leitura, fatores relacionados à palavra

‘instrução’ que está presente no título. Na turma A, tal palavra aparece em 22 respostas

do total de 29 alunos e na turma B foram 11 alunos que a utilizaram num total de 26

informantes. A tabela, na página seguinte, auxilia na visualização da maneira como a

palavra ‘instrução’ será reconstruída para os limites dos sentidos textuais como veremos

na sequência.

É importante lembrar que as palavras expostas nesta tabela foram classificadas

por serem utilizadas por vários dos alunos na maioria das atividades analisadas e não

por terem sido consideradas palavras-chave pelos alunos. Também vale lembrar que nas

atividades observadas, as palavras expostas na tabela, foram contabilizadas, na atividade

3, tanto quando foram indicadas como palavra-chave, quanto como argumento na

145

Reitera-se a classificação: uma letra indicando a turma (A ou B), na sequência o número do texto (1, 2

ou 3), o número da atividade (1, 2, 3 ou 4) e o número do aluno. Por exemplo, o extrato B.1.1.5 refere-se

à turma B, texto 1, atividade 1, aluno 5. 146

Repete-se: os três textos selecionados para a pesquisa encontram-se no apêndice B deste trabalho.

226

justificativa da escolha das mesmas. Para analisar somente a palavra escolhida como

chave, expõe-se, mais adiante, outra tabela com tais dados.

TABELA 10 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 1:

Atividade 1

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Instrução147

24 83% 11 42% 35 63,6%

Conhecimento 3 10% 1 4% 4 7,2%

Aprendizagem 1 3,5% 2 7,6% 3 5,4%

Educação 3 10% 0 - 3 5,4%

Estudo 2 7% 1 4% 3 5,4%

Crítica 1 3,5% - - 1 1,8%

Atividade 2

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Instrução 4 14% 1 4% 5 9%

Conhecimento 10 34% 2 7,6% 12 21,8%

Aprendizagem - - - - 0 -

Educação 9 31% 1 4% 10 18%

Estudo 19 65% 10 38% 29 52,7%

Crítica 20 69% 0 - 20 36%

Atividade 3

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Instrução 7 24% 2 7,6% 9 16%

Conhecimento 17 58% 3 11% 20 36%

Aprendizagem 5 17% 3 11% 8 14,5%

Educação 3 10% 0 - 3 5,4%

Estudo 25 86% 19 73% 44 80%

Crítica 2 7% - - 2 3,6%

O que se verifica na tabela acima é que os alunos, na primeira atividade, indicam

uma palavra do título, ‘instrução’, para iniciar a sua interação com o texto e construir

sentidos. No entanto, ao realizarem as atividades 2 e 3, de leitura, essa palavra dá

espaço a outras, mais específicas, tais como ‘educação’, ‘estudo’, ‘aprendizagem’, que

resumem melhor, para os leitores, os sentidos do texto. Nota-se que a palavra ‘estudo’,

por exemplo, que tinha uma ocorrência baixa na primeira atividade (pouco mais de 5%

das indicações), passa a ser a mais utilizada na segunda e terceira atividades

(respectivamente, quase 53% e 80%), como reflexo do sentido extraído do texto sobre o

tema principal: a diferença entre os personagens está no tempo de estudo (cf. cap. 4).

Na maioria dos casos, tanto os alunos da turma A quanto da turma B, indicam,

na primeira atividade que a ‘instrução’ é algo necessário, ‘fundamental’, que tem grande

147

Incluiu-se na quantificação também palavras derivadas da mesma raiz, tais como o verbo ‘instruir’

para a primeira palavra, ou ‘conhecer’ para a segunda, e assim para as demais palavras.

227

‘importância’ para o futuro, é usada para saber o que ‘ira fazer’, ou que ‘não vivemos’

sem ela, tais como nos excertos a seguir:

A.1.1.4 a instrução é algo fundamental. Pelo titulo concluo que

se trata de um momento onde alguém necessitou de uma

instrução.

A.1.1.13 que quando se ta perdido essa instrução acaba

ajudando a pessoa em algo que ira fazer.

B.1.1.8 diz qual a importância da instrução

B.1.1.16 não vivemos sem uma instrução

Observa-se, a partir destes excertos que, em grande parte das indicações, os

leitores utilizam a palavra ‘instrução’ como uma hipótese de interpretação genérica

sobre a palavra, sem um limite bem definido de sentido ainda. Eles constroem

possibilidades interpretativas que podem ser mais facilmente reordenadas ou

reconstruídas durante a interação com o texto. Em alguns casos, os alunos destacam,

com mais nitidez, que há uma possibilidade desta ‘instrução’ estar sendo usada no que

diz respeito à ‘educação’ ou de ‘preparação para a vida’ como nos excertos abaixo,

embora essa não seja uma indicação frequente. Destaca-se que as palavras ‘educação’,

‘conhecimento’ ou ‘estudo’ têm maiores indicações (respectivamente 18%, 21,8% e

52,7%) a partir da segunda atividade:

A.1.1.11 ele precisava de “ajuda” de instrução no sentido de

educação que é essencial.

B.1.1.10 a instrução prepara a pessoa para a vida.

O que se quer dizer com isso é que, na primeira leitura, os leitores estão, de fato,

estabelecendo um diálogo com o texto, baseados na informação e nas possibilidades que

identificam no título. Ao se deparar com a leitura, na segunda e terceira atividades, eles

procuram limitar sua compreensão com base em informações textuais encontradas e

recontextualizam a palavra ‘instrução’ para assuntos de ‘educação’, ‘conhecimento’ ou

de ‘estudo’, palavras mais usadas.

Na atividade de escolha das palavras-chave os leitores descartam a palavra

‘instrução’ e indicam, mais frequentemente, como palavras-chave que: a) caracterizam a

educação, tema principal, tais como ‘estudo’, ‘ensinar’, ‘conhecimento’; e b)

228

caracterizam momentos da sequência narrativa que indicam para eles a crítica, o

preconceito, ou a discriminação observados na leitura, tais como ‘teorema de Pitágoras’,

‘pobre’, ‘rico’, ‘lição preciosa’ (cf. cap. 4). Isso indica a maneira como os leitores

limitam, reconstroem, reorganizam seus conhecimentos aos poucos para construir

interpretação textual: eles iniciam a interação com o texto observando aspectos da

‘instrução’, passam a limitá-la a assuntos de ‘estudo’ e ‘educação’, e, ao selecionar as

palavras-chave, ancoram os sentidos em palavras que confirmam as possibilidades já

criadas para o texto.

A tabela 11, abaixo, mostra somente as palavras elencadas como chave pelos

alunos na atividade 3 de leitura do texto. Pode-se observar, pela tabela, que a palavra

‘instrução’ é indicada como chave por apenas 8 alunos (14%) do total de 55 estudantes

pesquisados. Antes dela, palavras que limitam seu sentido textual, como

‘conhecimento’, ‘estudo’, ‘ensino’ e ‘aprender’, aparecem com indicações bem mais

frequentes:

TABELA 11148

– Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos na

atividade 3 – texto 1

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Estudo/ estudar 22 21 43

Teorema de Pitágoras 16 18 34

Pobre 15 16 31

Ensinamento/ ensinar 12 12 24

Rico 13 9 22

Dinheiro/trocado 10 5 15

Lição/lição preciosa 11 4 15

Conhecimento 11 3 14

Esfarrapado 4 7 11

Aprender 6 3 9

Instrução 5 3 8

É importante lembrar também que, conforme discussão apresentada no cap. 4, os

leitores indicam palavras que confirmem para eles os momentos da narrativa

considerados importantes como reflexo do desenvolvimento da sua competência

discursiva, tais como: i) a divisão dos personagens em classes sociais; ii) a marcação do

tema principal do texto; iii) o momento da narrativa em que a crítica se constrói –

quando o personagem indica o teorema de Pitágoras e não o conhece. No entanto, vale

148

Por uma questão de espaço, a tabela demonstra apenas parte das palavras indicadas como chave. Para

visualizar a tabela completa, vide anexo C deste trabalho.

229

lembrar que a seleção de palavras-chave também é limitada pelas possibilidades de

leitura construídas desde a pré-leitura.

Em outros termos: na terceira atividade em que os alunos realizam uma

interpretação mais efetiva com a indicação das palavras-chave, eles são guiados por dois

aspectos principais: a) a confirmação e limitação das possibilidades que, para eles,

indicam que a instrução se relaciona à educação e aos aspectos sociais envolvidos nela;

e b) a construção dos aspectos discursivos dos textos que marcam para ele os

personagens, o tema, a crítica, os momentos narrativos. Ambos os aspectos são ativados

pelo leitor em interação, corroborando o fato de que a leitura é uma atividade complexa

que movimenta todos os conhecimentos do leitor na construção de sentidos (KOCH;

ELIAS, 2010; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004; COLOMER; CAMPS, 2002;

LENCASTRE, 2003). Ainda, essa observação demonstra a maneira como a

competência comunicativa (HYMES, 1995; CANALE, 1995; SAVIGNON, 1997) do

leitor é desenvolvida a partir de aspectos diversos, que os auxiliam na canalização de

sentidos para o texto e a estabelecer com ele diálogo.

Destaca-se agora a maneira como os leitores, separadamente, conduzem sua

interpretação desde o primeiro momento, da pré-leitura, até a leitura do texto. O leitor

16 da turma A relata, na primeira atividade que:

A.1.1.16 a instrução é essencial para uma boa vida em

sociedade.

A primeira possibilidade de leitura construída pelo leitor é a de que ‘a instrução

é essencial’ pois ela pode possibilitar uma melhor ‘vida em sociedade’. Ou seja, ele já

percebe que a ‘instrução’ de que fala o texto é, de fato, um tema importante. Na segunda

atividade, o leitor procura limitar sua interpretação da ‘instrução’ à ‘educação’ e já

realiza uma ligação com problemas sociais:

A.1.2.16 o texto traz à tona os assuntos de educação,

discriminação, pobreza, riqueza, etc. é um texto crítico. Aponta

a realidade atual, quem tem mais estudo, mais informações pode

se sobressair entre os demais. Mostra também que quem tem

pouca escolaridade não busca novos conhecimentos.

230

Esse informante procura canalizar seus conhecimentos, agora, para o fato de que

embora a palavra ‘instrução’ esteja no título, ela não se relaciona a qualquer tipo de

instrução, como aquelas presentes em manuais. Ele limita o sentido da palavra a

assuntos relacionados à educação, e procura utilizar suas possibilidades interpretativas

como um guia para o estabelecimento da sua leitura: a educação é essencial para a vida

em sociedade - hipótese estabelecida pela palavra ‘instrução’ na atividade 1 - porque se

relaciona a problemas sociais como ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ – sentido

construído na leitura na atividade 2.

Outro fator importante nesse extrato é que o aluno indica que ‘é um texto

crítico’. Essa é uma indicação frequente de vários alunos da turma A na segunda

atividade (20 dos 29 alunos da turma A - cerca de 69% - indicaram que há uma crítica

ou que é um texto crítico na atividade 2). Veja-se que a palavra ‘crítica’ aparece

altamente indicada na tabela, 10 mostrada anteriormente, o que não acontece na

primeira atividade e pouco na terceira. Observa-se também que essa é uma indicação

específica dos alunos da turma A, o que pode ser explicado pelos dados dos

questionários socioculturais: os alunos da turma A afirmam que tem mais frequência em

atividades de leitura o que significa que sua competência comunicativa é diferente em

comparação com a turma B. Sendo assim, eles teriam maior facilidade de compreender

temas, exposições ou aspectos do gênero do texto, tal como a identificação da crítica.

Com base nisso, pode-se dizer que, além dos informantes indicarem que a

‘instrução’ volta-se para fatores de estudo e educação, os alunos reconhecem uma

característica importante do texto – a crítica. Os informantes parecem ter reconhecido o

gênero do texto – crônica – já na segunda atividade, o que pode levá-los a indicar

palavras que confirmem tal expectativa e explicá-las dentro desse contexto. Discutiu-se

no cap. 4.1.2 (p. 167; 169; 173; 179-180) que, de fato, a crítica, uma das características

do gênero textual crônica, é uma indicação frequente nas justificativas para as escolhas

das palavras-chave, a terceira atividade. Pode-se dizer, assim, que as interpretações dos

alunos passam a ser guiadas por dois limites: a educação e a crítica, esta última

característica do gênero.

Na atividade de seleção das palavras-chave, o aluno 16 indica palavras como

‘ensinar’ e ‘estudo’, e procura o fio semântico do texto que mostra, para ele, onde a

crítica está presente: o ‘rico’ que ‘consegue cargos melhores’ e o ‘pobre’ por não ter

‘oportunidades’:

231

A.1.3.16 ensinar: é o que muitos deviam fazer a quem é menos

instruído. Pobre: muitas vezes a pessoa fica pobre por desistir

dos estudos e não ter oportunidades. Estudo: todos devem

completar todo o estudo e sempre buscar mais informações.

Rico: com mais estudo pode conseguir cargos melhores e ficar

rico. Pitágoras: é um conhecimento que se adquire atravéz[sic]

do estudo.

Note-se que, embora o estudante tenha selecionado, a princípio, a ‘instrução’

como algo essencial, agora ele procura destacar ‘ensinar’ e o ‘estudo’ como mais

importantes na sua interpretação. Isso porque a palavra ‘instrução’ foi limitada pelo

aluno a questões voltadas à educação, e parece fazer mais sentido para ele agora elencar

elementos que confirmem essa limitação. Outro detalhe é que ao afirmar que a

‘instrução’ é ‘essencial para a vida em sociedade’ ele procura elementos ou marcas

linguísticas (KLEIMAN, 2002) no texto – as palavras-chave - que confirmem a sua

posição. Para tanto, já na primeira leitura ele afirma que, com mais estudo, as pessoas

podem se ‘sobressair’ na sociedade e na atividade de indicação da palavra-chave ele

aponta que ‘todos devem completar todo o estudo e sempre buscar mais informações’

porque isso pode levá-los à riqueza. Veja-se como a palavra-chave está sendo utilizada

aqui como forma de guia para as possibilidades interpretativas criadas pelo leitor: a

instrução (limitada para os sentidos das palavras ‘estudo’ e ‘ensinar’) - é importante

para a sociedade, portanto, a sua falta pode indicar problemas sociais tais como a

discriminação, a pobreza ou a riqueza, e para que se possa ficar rico, é preciso então

obter a instrução, ou seja, estudar.

Outro caso a se observar é o do aluno 5, abaixo, no qual ele tece fios condutores

para sua interpretação. Ao realizar a atividade de leitura inicial a partir do título, ele

destaca que a ‘instrução é fundamental para ter um futuro estruturado’:

A.1.1.5 a instrução é fundamental para ter um futuro estruturado

e para saber que caminho escolher

Na segunda atividade, ele procura definir que esse futuro está atrelado à

educação, e que ‘sempre há mais o que estudar’. Ainda, assim como nas indicações de

seu colega analisadas acima, ele menciona que há uma crítica presente no texto e que

‘existem pessoas que se acham melhores do que os outros’:

232

A.1.2.5 o texto se refere à educação e faz uma crítica quanto a

isso. A grande critica é que ninguém sabe tudo, sempre há mais

o que estudar, mais a ver, existem pessoas que se acham

melhores do que outros.

A exemplo do informante anterior, esse leitor impõe para sua interpretação dois

fatores principais: a referência à educação e a crítica. No caso do aluno 5, ele já expõe,

na atividade 2, o motivo pelo qual ele acha que é, de fato, um texto crítico. Guiado por

esses dois fatores, ao selecionar as palavras-chave, ele procura encontrar a confirmação

de onde está a crítica e por qual motivo o estudo é importante:

A.1.3.5 teorema de Pitágoras uma das bases fundamentais do

texto. esfarrapado – é a palavra em que o texto caracteriza o

menino. Lição preciosa: um dos fatos principais em que ocorre

no texto. dinheiro: um dos bens que o homem tem como

exemplo de conquista com seu “estudo”. Pobre: palavra em que

no texto mostra o preconceito de um personagem ao outro.

Apesar do fator de crítica ter sido uma observação constante na ativação da

competência discursiva (cf. cap. 4.1.2), pode-se dizer que esse também foi um guia

selecionado pelo leitor desde a segunda atividade, funcionando como uma estratégia

concomitante. O aluno procura confirmar suas hipóteses apresentando as expressões

‘teorema de Pitágoras’ e ‘lição preciosa’ como ‘fatos’ (ou ‘bases’) principais do texto.

Tais palavras parecem completar a lacuna aberta por ele no início - se ‘faz uma crítica’ -

a qual é preenchida sob dois aspectos: 1) o fato do senhor não saber o teorema e ainda

assim ser rico; e 2) o fato do senhor rico querer dar uma ‘lição preciosa’ ao menino

pobre porque ‘se acha melhor que os outros’. O leitor coloca a palavra ‘estudo’ entre

aspas o que pode indicar a ironia do texto - mesmo tendo dinheiro e cinco anos a mais

de estudo ele não sabe o teorema. Assim, o estudo não lhe garante um lugar mais alto na

hierarquia social. O que concede isso a ele é o ‘dinheiro’, palavra selecionada como

chave.

É importante ressaltar aqui que o fator de crítica já analisado no cap. 4 (p. 179-

181), reaparece nessa discussão por ser um guia interpretativo dos leitores. Ou seja, os

leitores percebem já nas primeiras leituras do texto a característica do gênero e a

colocam como uma das âncoras para o estabelecimento da sua interpretação na escolha

das palavras-chave. A palavra-chave funciona aqui com dupla função: canalizar a

competência discursiva do leitor e confirmar suas possibilidades iniciais de leitura.

233

Veja-se também que o aluno afirma que ‘existem pessoas que se acham

melhores do que os outros’ e procura escolher palavras-chave como marcas

linguísticas149

(CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) que

confirmem isso. Ele aponta para a palavra ‘pobre’ porque ela caracteriza o ‘preconceito’

no texto, e a palavra ‘esfarrapado’ porque caracteriza o menino. Ou seja, ele indica que

há alguém ‘que se acha melhor’, o que leva a crer que seria o rico porque ele tem

‘dinheiro’ e ‘estudo’, não sabe o teorema, mesmo assim se acha melhor que o pobre que

é o ‘esfarrapado’ e quem sofre o ‘preconceito’.

Para a turma B, em grande parte das indicações iniciais a palavra ‘instrução’

aparece ainda mais genérica do que para os alunos da turma A e os informantes parecem

realmente estar criando possibilidades diversas de leitura da palavra, sem conectá-la ao

assunto principal do texto ainda.

O aluno 19, abaixo, procura deixar a palavra ainda sem limites específicos de

sentido ao apontar que essa ‘instrução’ deve estar relacionada à ‘algum assunto’:

B.1.1.19 instrução sobre algum assunto.

O informante cria uma lacuna interpretativa: o autor fala de instrução dentro do

assunto “x”. Na segunda atividade ele procura completar essa lacuna e indica que a

instrução é a ‘lição preciosa’ dada ao menino:

B.1.2.19 o começo do texto se refere nele falando de uma “lição

preciosa” que daria ao menino mas nem ele sabia sobre o que

era, além de ter deixado o menino se sentir menosprezado, o

chamando de pobre e ignorante, por não saber.

O leitor procura justamente indicar que, desde o início da leitura, ele quer

encontrar o assunto “x” afirmando ‘o começo do texto se refere [...] a lição preciosa’.

Ou seja, tal instrução é uma ‘lição preciosa’ dentro do contexto do texto. No entanto,

‘nem ele sabia’ a tal lição e ela só serviu para fazer o menino ‘se sentir menosprezado’.

O leitor procura fazer um breve resumo do texto indicando a cadeia de informações

destacadas por ele: instrução – lição preciosa – menosprezar o menino. Observe-se que,

na tarefa seguinte de escolha das palavras-chave, o estudante procura confirmar isso

indicando justamente a expressão ‘lição preciosa’, afirmando que ele não viu ‘nenhuma

lição preciosa’:

149

Vide cap. 2.3 sobre a palavra-chave e suas características.

234

B.1.3.19 lição preciosa: porque não vi nenhuma lição preciosa.

Obra do destino: existi [sic] o destino? Pessoas como eu:

menosprezou o menino. Cinco anos sem nos divertir: pode ser

conciliado o estudo e diversão. Homenagem: não seria uma

homenagem ele dar “muito” dinheiro a um menino de rua, por

ele saber sobre algo.

O leitor 19 da turma B não utiliza as palavras ‘estudo’ ou ‘educação’ como

palavra-chave - como o fazem leitores anteriores -, mas, ao indicar a expressão ‘cinco

anos sem nos divertir’, ele de certa forma limita a palavra ‘instrução’ indicada na

primeira atividade, ao campo do ‘estudo’, indicada na justificativa para a sua escolha

afirmando que é possível conciliar ‘estudo e diversão’. Ainda, nessa terceira atividade, o

leitor explica o sentido que ele constrói para a expressão ‘lição preciosa’. Além de

indicar que ele não vê tal lição, ele também aponta para o fato de que constrói um

sentido de crítica presente no texto ao perceber que o rico menospreza o menino pobre

afirmando dar uma ‘lição preciosa’ que na realidade não existe, para o leitor.

Nesse exemplo, ainda, o leitor estabelece um diálogo intenso com o texto

(CAVALCANTI, 1989; KLEIMAN, 2004; 2001, 2002), posicionando-se com relação a

ele. Ele seleciona a expressão ‘obras do destino’ e se questiona sobre sua existência –

‘existi[sic] o destino?’. A pergunta parece estar relacionada ao fato de que se as pessoas

precisam realmente se esforçar, então não é o destino que lhes dá o sucesso e sim o

esforço. Ainda a atitude de menosprezar o menino, indicada por ele anteriormente, é

justificada pela escolha da expressão presente no texto ‘pessoas como eu’. O leitor ativa

sua competência discursiva ao se concentrar no momento textual em que há um diálogo

em que o personagem rico conversa com o pobre e diz que “pessoas como eu estudaram

mais”, e a partir disso ele completa lacunas interpretativas construídas de que a

diferença de classes está no tempo de estudo e que isso leva a uma posição superior do

rico com relação ao pobre, o que pode não ser obra do ‘destino’. Em outros termos, o

leitor compreende que há uma atitude de superioridade do rico para com o pobre no

diálogo e o destaca como o sentido principal. A competência sociointercultural é ativada

aqui nesse diálogo e leva o leitor a construir a inferência de que pobres são

menosprezados pelos ricos quando se fala em aspectos econômicos e sociais. É

importante ressaltar que há uma cadeia de fios condutores estabelecidos pelo leitor:

instrução – lição preciosa – cinco anos a mais de estudo – menosprezar o menino.

235

Outro detalhe importante na posição do leitor aqui é que ele escolhe uma

expressão do texto e a reposiciona a partir dos sentidos reconstruídos na interação

textual: ‘cinco anos sem nos divertir’ – há um destaque do leitor para o fato de que ele

não concorda com essa ideia. Ele indica que isso não precisa ser assim e que pode haver

conciliação entre ‘estudo’ e ‘diversão’. Os sentidos criados a partir do texto ganham

uma ressignificação pessoal e dialógica (BAKHTIN, 2009): o leitor ressalta um sentido

principal no texto – os ricos estudam cinco anos a mais abrindo mão da diversão – e o

reposiciona para si mesmo dizendo que é possível estudar e se divertir ao mesmo tempo.

Há, nesse excerto do aluno 19 da turma B, três aspectos principais a serem

observados: i) a maneira como ele constrói os fios semânticos que constroem a

interpretação textual indicando ‘instrução’, ‘lição preciosa’ e justificando com a palavra

‘estudo’; ii) a maneira como ele destaca, já na segunda atividade, o sentido de crítica

presente no texto, de que o rico menospreza o pobre, e confirma essa interpretação na

escolha das palavras-chave afirmando que não vê ‘lição preciosa’; e iii) a maneira como

ele utiliza as palavras-chave para iniciar uma negociação de sentidos (cf. cap. 5.2).

Destaca-se aqui, que este leitor fixa sentidos construídos intratexto e já inicia um

processo de negociação de sentidos pessoais afirmando que é possível conciliar ‘estudo’

e ‘diversão’ e que, sendo assim, ele discorda com as palavras do senhor rico com

relação ao pobre. Volta-se a falar sobre a maneira como esse leitor negocia melhor esses

sentidos na próxima seção deste trabalho.

Em outro excerto da turma B, o aluno 14 não indica claramente a palavra

‘instrução’, mas procura estabelecer duas possibilidades claras para a sua interpretação:

a ‘aprendizagem’ ou uma ‘lição de vida’:

B.1.1.14 ele deve falar de aprendizagem ou talvez lição de vida.

Note-se que, ao limitar o assunto do título a essas duas possibilidades, o leitor

utiliza estratégias de restrição das suas interpretações. Na segunda atividade o leitor

reconfigura seus limites interpretativos indicando que, no texto, a abordagem é a

‘educação’ e ainda indica a relação de hierarquia social presente no texto:

B.1.2.14 o texto veio abordar um tema genérico que é a

educação, o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele

mal sabia o que estava falando.

236

Observe-se que, neste, excerto o estudante já indica uma interpretação para o

texto: ‘o senhor se gavando[sic] para o menino sendo que ele mal sabia o que estava

falando’. O leitor reconhece que há um tema genérico, a ‘educação’, e a partir desse

tema há um debate entre o senhor e o menino. Ressalta-se que ele utiliza sua

competência discursiva indicando a presença de dois personagens e destacando um

diálogo textual (cf. cap. 4.1.2), e nesse diálogo textual, um personagem se reconhece

como superior ao outro. O aluno confirma essas possibilidades de interpretação ao

escolher as palavras-chave:

B.1.3.14 esfarrapado, menino, olhar, súplice, filho. Essas

palavras me tocaram muito afinal ninguém tem culpa de não ter

oportunidade essa é uma realidade que a gente vive. Pode ser

que o garoto não teve tantas oportunidades ou teve e não soube

aproveitar. Na minha concepção cada um escolhe seu próprio

destino.

Nessa atividade, o estudante procura realizar duas tarefas estratégicas: a)

confirmar a sua possibilidade interpretativa de que há um personagem inferior ao outro:

ele escolhe palavras como ‘esfarrapado’, ‘olhar’, ‘súplice’, ‘menino’ que indicam a

inferioridade do garoto; e b) posicionar-se com relação à hierarquia de classes exposta

no texto: o estudante, já com sua hipótese confirmada de inferioridade do pobre com

relação ao rico, se compadece da posição inferior do personagem pobre e diz que ‘essas

palavras me tocaram muito’. Ele argumenta ainda que ‘ninguém tem culpa de não ter a

oportunidade’, pois ‘esta é uma realidade que a gente vive’.

Neste exemplo, o diálogo já está, de fato, ocorrendo. A seleção das palavras-

chave aponta para uma confirmação do que ele indicou anteriormente, na atividade 2 - o

senhor inferiorizando o menino - e a esse sentido textual ele sobrepõe outros sentidos

criados por ele de que ‘ninguém tem culpa’ da realidade social, pois muitas pessoas não

têm ‘tantas oportunidades’ ou não sabem ‘aproveitar’. Por meio da palavra-chave o

leitor, de fato, tece fios semânticos condutores (CAVALCANTI, 1989) que o levam à

construção de interpretações baseadas no texto. Mas, além disso, a palavra-chave

também auxilia o leitor a criar novos sentidos atrelados à sua vivência pessoal (cf. cap.

5.2).

Castello Pereira (2003) aponta para o fato de que qualquer tipo de marcação –

neste trabalho de tese, a seleção de palavras-chave - auxilia o leitor tanto na

237

concentração do objetivo da leitura – p. ex., destacar o assunto principal - quanto em

fundamentar uma posição ou relembrar o lido:

a marcação, além de ajudar na compreensão, auxilia na concentração

na hora da leitura, pois, com um objetivo, uma tarefa a realizar, uma

ação concreta, se tem mais facilidade de fixar a atenção na leitura e na

compreensão de ideias. Além disso, possibilita voltar ao texto lido,

num outro momento, quando, por exemplo, for necessário buscar uma

ideia pra fundamentar uma posição ou relembrar o lido ou, por

qualquer outro motivo, fazer uma retomada do texto. É claro que

existem muitas formas de lido, marcar o texto: anotação na margem,

uso de símbolos, uso de pequenos pedaços de papel com anotações;

como existem várias formas de se fazer esquemas e sínteses, mas a

forma em si não importa, o que importa é que o sujeito seja capaz de

intervir no texto apropriando-se de suas ideias (CASTELLO-

PEREIRA, 2003, p. 74).

A autora indica que a forma de marcar o texto não importa porque o resultado

deve ser sempre o mesmo: desenvolver uma atitude estratégica do estudante na

intervenção ao texto, construindo sentidos de forma interativa. Conforme se pode

perceber nos excertos, os alunos, desde o momento construção das possibilidades

iniciais de leitura, já estabelecem um diálogo com o autor por meio do texto, e

procuram, nessa relação, confirmar seus pensamentos, procurando marcas textuais

explícitas e criando novos sentidos.

Os excertos analisados apontam que, no texto 01, os informantes procuram focar

sua atenção nas palavras-chave como marcadores de atenção que os levam a um sentido

global do texto, o que é guiado pelas possibilidades construídas já no início da interação

com o texto. Solé (1998) afirma que ao fazer a leitura de um texto o leitor procura

“prestar atenção nos indicadores, marcas e palavras-chaves que lhes são próprios”,

tarefa essa que o ajuda “a encontrar as ideias principais, pois proporcionam indicadores

para formular perguntas relevantes que levam ao núcleo do texto” (SOLÉ, 1998, p.

136). Nos extratos analisados, os informantes afirmam que há no texto a importância da

instrução, que essa importância está atrelada à hierarquia de classes e ao poder

aquisitivo que uns têm e outros não têm e para confirmar essa interpretação indicam

elementos dos quais fazem uso da sua competência discursiva para marcar personagens

e da sua competência sociointercultural para apontar a hierarquia de classes sociais.

Além disso, há um processo intenso de construção e fixação de sentidos a partir

da primeira atividade, pré-leitura, e da segunda e terceira atividades de leitura. Os

leitores estão conscientes de que os sentidos podem ser reconstruídos, e fazem isso

238

claramente quando alternam a escolha das palavras para suas explicações: começam

utilizando a palavra ‘instrução’, presente no título, a limitam à ‘educação’ e ‘estudo’ e,

ao selecionarem a palavra-chave, fixam sentidos baseados tanto em aspectos expostos

textualmente, que os auxiliam a encontrar os momentos textuais mais marcantes, quanto

em aspectos construídos pelas possibilidades iniciais de leitura e confirmados durante a

interação.

Ao que tudo indica, a palavra-chave é usada como uma superestratégia (KATO,

1999), ou seja, como uma estratégia que tem diferentes funções: a) a indicação da

marcação textual feita pelo leitor para interagir com o texto a partir de aspectos

gramaticais, discursivos e sociointerculturais (cf. discussão realizada no cap. 4); b) o

direcionamento das possibilidades de construção de interpretação textual estabelecendo

um diálogo do leitor com o texto e confirmando ou reformulando tais possibilidades; c)

a promoção do diálogo existente entre o que está no texto e o que o leitor compreende,

sabe ou opina sobre a sua realidade. É também o que se observa na análise das

interpretações para o segundo e terceiro textos.

No segundo texto, intitulado “Dilema genético”, tanto para a turma A, quanto

para a B, os alunos iniciam sua interação abrindo lacunas de interpretação genéricas

dentro do campo da genética do tipo: a discussão sobre a genética, a preocupação das

ciências com as células, o desenvolvimento da genética, o avanço nas pesquisas, entre

outros. A partir dos dados obtidos, 14 alunos da turma A (quase 50% da turma) e 11

alunos da turma B (média de 42%) indicaram já no início da leitura possibilidades de

interpretação relacionadas à dúvida, estudos genéticos ou discussão na área de genética,

tal como demonstrado nos excertos:

A.2.1.12 a discussão sobre questões científicas.

A.2.1.25 discução[sic] sobre o ser humano, debate, clonagem.

B.2.1.8 descobertas da genética, novas tecnologias.

B.2.1.13 vai falar sobre como é complexo o mundo da genética.

Na segunda atividade, os informantes passam a concentrar sua atenção nos três

tópicos discutidos no texto: transgênicos, clonagem e células-tronco. Na atividade

seguinte, de escolha das palavras-chave, os estudantes parecem destacar ainda mais a

239

divisão de tópicos feita pelo autor do texto dentro do ramo da genética, como se pode

observar na tabela a seguir:

TABELA 12 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 2:

Atividade 1

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Genética 16 55% 15 58% 31 56%

Discussão 6 20% 2 7,7% 8 14,5%

Ciência 5 17% 0 - 5 9%

Dúvida 4 14% 0 - 4 7,2%

Transgênicos 1 3,4% 4 15% 5 9%

Clonagem 3 10% 2 7,7% 5 9%

Células-tronco 5 17% 1 3,8% 6 11%

Atividade 2

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Genética 16 55% 8 31% 24 43%

Discussão 2 7% 2 7,7% 4 7,2%

Ciência 4 14% 1 3,8% 5 9%

Dúvida 0 - 0 - 0 -

Transgênicos 10 34% 17 65% 27 49%

Clonagem 16 55% 13 50% 29 53%

Células-tronco 18 62% 6 23% 24 43,6%

Atividade 3

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Genética 17 58% 19 73% 36 65%

Discussão 5 17% 2 7,7% 7 12,7%

Ciência 2 7% 1 3,8% 3 5,4%

Dúvida 1 3,4% 0 - 1 1,8%

Transgênicos 19 65% 19 73% 38 69%

Clonagem 23 79% 20 77% 43 78%

Células-tronco 24 82% 20 77% 44 80%

Note-se que, a exemplo do texto 1, os leitores procuram se basear no assunto

principal exposto no título para estabelecer suas primeiras possibilidades de leitura. Na

primeira atividade, a palavra ‘genética’ é utilizada em 56% do total de alunos de ambas

as turmas e, acompanhada de palavras ‘discussão’ e ‘dúvidas’, reflete que os

informantes buscam criar hipóteses que limitam seus conhecimentos a dois aspectos

principais: a) a ‘genética’ e b) se há um dilema há também ‘discussão’ e ‘dúvida’.

No entanto, ao realizar a leitura proposta para a atividade 2, os leitores

continuam usando a palavra ‘genética’ com bastante frequência (43%), mas agora ela

aparece em equilíbrio com indicações constantes dos três tópicos indicados pelo autor

240

na sequência argumentativa do texto: ‘transgênicos’ (49%), ‘clonagem’ (43%) e

‘células-tronco’ (43,6%).

Outro aspecto importante da tabela acima é que, na atividade 3, da escolha das

palavras-chave, as palavras que relatam os três tópicos aparecem com uma frequência

ainda maior e a palavra ‘célula-tronco’, núcleo de uma das argumentações principais do

texto em que o autor se posiciona favoravelmente ao seu uso (cf. cap. 4.1.2, p. 171-

173), aparece com uma indicação de 80%. Os informantes claramente delimitam o

assunto ‘genética’ aos três pontos de discussão do texto, e indicam tais tópicos como

principais. É importante observar que a palavra ‘genética' não foi descartada, o que pode

ser explicado pelo fato de ser um hiperônimo150

dos três temas.

A tabela 13, abaixo, corrobora esse fato, mostrando que os leitores selecionam

mais frequentemente a palavra ‘célula-tronco’. Tal palavra, discursivamente, aponta

para o tema textual destacado pelo autor a partir dos argumentos textuais mais

polêmicos do texto (cf. cap. 4.1.2, p. 173). Na indicação dos informantes, essa palavra é

seguida dos outros dois tópicos – ‘clonagem’ e ‘transgênicos’ - na indicação dos alunos:

TABELA 13151

– Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 2

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Células (tronco) 22 24 46

Clonagem 20 23 43

Transgênicos 16 15 31

(Engenharia) genética 13 16 29

Embrião 6 12 18

Fertilização 4 12 16

Ética 7 4 11

Manipulação 2 8 10

Destaca-se que os tópicos escolhidos pelos leitores aparecem invertidos na

frequência da tabela se comparados com a sequência de exposição textual. Isto é, no

texto, o autor discute os três temas, começando pelos transgênicos, passando pela

polêmica ética da clonagem, e finalizando com as células-tronco, outra discussão

polêmica do texto por sinalizar que, mesmo com a morte dos embriões, esta célula ajuda

150

Hiperonímia: “relação semântica entre palavras tal que a palavra hiperônima tem um leque referencial

mais amplo, compreendendo várias outras palavras (seus hipônimos), de poder referencial menor. Na

terminologia científica, determinado gênero é um hiperônimo, a que se ligam espécies” (CASTILHO,

2012, p. 679). 151

A tabela completa pode ser visualizada no anexo C deste trabalho

241

a salvar vidas. No entanto, os leitores desenvolvem sua competência discursiva e

destacam em maior número a palavra ‘células-tronco’, com 83% das indicações dos

estudantes como palavra-chave, que aponta para o assunto mais polêmico exposto no

texto, seguido da palavra ‘clonagem’, segundo assunto polêmico com 78% das

indicações e por último os ‘transgênicos’, com 56%, conforme demonstrado na tabela

12.

Note-se também que as palavras ‘embrião’, ‘fertilização’ e ‘ética’ reforçam

ainda mais esse dado, pois são usadas no texto como fontes de argumentos dos três

tópicos, conforme discussão exposta no cap. 4 (p. 173).

O que acontece com o texto 2 é que a partir da leitura efetiva do texto, os

leitores limitam suas possibilidades de leitura a três assuntos específicos expostos no

texto e não à pesquisa, por exemplo, da influência da genética em doenças cardíacas, ou

câncer. Isso significa que a competência comunicativa dos leitores é desenvolvida para

o diálogo com o texto e os auxilia a estabelecer um contexto específico de leitura

(HYMES, 1995). Esse contexto é encaixado e adaptado às possibilidades que o leitor

vai formulando desde a primeira interação com o texto. Destaca-se, nesse momento,

como o leitor 2 da turma A abaixo realiza essa tarefa. Na primeira atividade ele relata

suas primeiras possibilidades de leitura:

A.2.1.2 dúvidas no ramo da genética, mudanças no

comportamento, evolução de alguma espécie.

A partir do título, o estudante já sinaliza que deve encontrar no texto

informações que possam completar três possibilidades diferentes: há dúvidas no ramo

da genética (quais são?), há mudanças no comportamento (que mudanças?) e há alguma

espécie em evolução (qual ou o quê?). Veja-se que, na atividade seguinte, de imediato, o

leitor aponta para o fato de que há ‘dois lados’ da genética e indica as vantagens –

combate à fome por meio da produção de transgênicos, cura de doenças – e também as

desvantagens – o impacto ecológico e a morte dos embriões pelo uso da célula-tronco.

O informante busca completar a lacuna de quais são as dúvidas causadas pela ciência

genética:

A.2.2.2 o texto mostra “dois lados” da engenharia genética. O

quanto seu trabalho pode ser benéfico, alimentos transgênicos

maior produção auxilia no combate à fome e o uso de células-

tronco para curar diversas doenças, porém o texto também

aponta os possíveis pontos negativos como o impacto ecológico

242

causado pelos transgênicos e a polêmica do uso das células-

tronco, que ocasiona a morte de embriões.

Note-se, também, que ao confirmar a primeira possibilidade – o texto expõe

dúvidas no ramo da genética – ele já procura responder quais elas seriam: há benefícios

e, ao mesmo tempo, malefícios. Além disso, ele vê que as demais possibilidades de

interpretação – mudanças de comportamento e espécies em evolução - não estão claras

no texto, o que o leva a descartar tais fios interpretativos na construção de sentidos.

Observe-se ainda que o leitor explica, já na segunda atividade, que no contexto do texto,

a genética limita-se a ‘alimentos transgênicos’ e ‘uso de células-tronco’.

O leitor aponta que ‘pode ser benéfico’ e que há ‘possíveis pontos negativos’, ou

seja, ele utiliza sua competência discursiva para destacar que em um texto

argumentativo se deve encontrar ideias em oposição. Na segunda atividade, ele ainda

não aponta para a questão da ‘clonagem’, mas a indica como palavra-chave na atividade

subsequente. Ao escolher as palavras-chave, ele se concentra na existência de vantagens

e desvantagens da ciência genética e aponta para as palavras que sinalizam esse sentido

no texto:

A.2.3.2 engenharia genética: área de trabalho que pode ser

benéfico a humanidade, porem pode trazer consequências ruins.

Transgênicos: alimentos transgênicos, maior produção, assim

auxilia no combate à fome, porém podem ocasionar um impacto

ecológico. Impacto ecológico: consequência negativa da

produção de alimentos transgênicos como a morte das

borboletas monarcas. Clonagem: o autor se opõe principalmente

quando se trata da clonagem humana ele é a favor da adoção.

Células-tronco: o autor é a favor, pois estas podem curar muitas

doenças tais como câncer diabetes dentre outras, porém traz

consigo as polêmicas, as oposições a seu uso por causa da morte

de embriões.

De início, o leitor seleciona ‘engenharia genética’ e explica que há uma dúvida

quanto ao seu uso porque ela pode ser benéfica ou trazer ‘consequências ruins’,

destacando a confirmação da possibilidade de interpretação construída desde o início.

Na sequência, ele escolhe palavras que indicam quais seriam esses aspectos positivos e

negativos transitando entre os argumentos expostos no texto que, de fato, geram a

dúvida quanto ao uso da ciência genética. Do lado favorável, o informante salienta os

transgênicos, pois podem ‘combater a fome’ e as células-tronco porque podem ‘curar

doenças’. Por outro lado, há a determinação do impacto ecológico do uso de

243

transgênicos, a desaprovação da clonagem humana por existir a opção da adoção, e a

morte dos embriões usados para a produção das células-tronco.

Note-se, também, a maneira como ele desenvolve sua competência gramatical

(cf. cap. 4.1.1, p. 157-161) utilizando em todas as justificativas a palavra ‘porém’. Ele

expõe para cada um dos elementos um fator positivo e um negativo, separados pela

conjunção adversativa. A competência discursiva também entra em cena quando o leitor

destaca a oposição argumentativa do autor em que é ‘a favor’ ou ‘se opõe’ aos assuntos

expostos. Chama-se a atenção para essa observação porque o fato do leitor construir os

fios semânticos do texto desde a primeira atividade até a última, revela que as

dimensões da competência comunicativa são ativadas tanto como uma forma de

movimentar conhecimentos na identificação e focalização dos sentidos principais,

quanto como uma atitude estratégica de confirmação das possibilidades interpretativas

do leitor.

Em suma, nesse excerto o leitor, realiza, minimamente, três tarefas: i) confirmar

suas possibilidades iniciais de leitura de que há dúvidas, ou ‘dois lados’, na ciência

genética; ii) desenvolver sua competência gramatical e discursiva para explicar os

pontos em oposição no texto, como forma de utilização estratégica da sua competência

comunicativa; e iii) indicar os sentidos principais construídos e fixados por ele durante a

leitura.

O aluno 28, também da turma A, indica na primeira atividade uma gama de

possibilidades maior que o colega acima:

A.2.1.28 sobre o DNA, mudança genética, ou manipulação

genética.

No exemplo, o leitor utiliza muito do seu conhecimento de mundo para

estabelecer possibilidades reais de discussão no campo da genética, como o DNA, a

mudança genética ou a sua manipulação. Esses seriam temas possíveis de serem

discutidos em um texto que apresenta como tema principal a genética, exposta no título.

Ou seja, nos limites de conhecimento de mundo do leitor, se o texto fala de genética ele

pode falar de qualquer um desses tópicos. Na segunda atividade, o leitor limita as suas

possibilidades ao contexto do texto e afirma que:

A.2.2.28 deveria estar sendo discutida a manipulação genética,

mas parece que está sendo discutida a ética, e o que é certo ou

errado.

244

O informante ainda procura confirmar sua hipótese de que o texto trata de

‘manipulação genética’, mas logo altera essa possibilidade de leitura afirmando que o

que se destaca no texto é ‘a ética’, pois o texto, de fato, relata aspectos polêmicos com

relação à atitude dos cientistas no campo da genética. De forma objetiva, o leitor

descarta a possibilidade de mudança genética ou de DNA, expostos na primeira

atividade, e reconstrói suas possibilidades de leitura para o que diz respeito à ética nos

estudos da engenharia genética. Na terceira atividade, o leitor seleciona as palavras que

ancoram sua interpretação:

A.2.3.28 ética: muito discutido pela aplicação da engenharia

genética do reino vegetal ao animal. Clonagem: já foi praticada,

apesar das incertezas como por exemplo, se isso daria certo.

Células: células-tronco são retiradas dos embriões que são

destruídos. Podendo se transformar em qualquer célula do

corpo. Adotar: mais correto que clonar. Riscos: são muitos com

a clonagem.

A primeira palavra escolhida como chave é justamente ‘ética’, pois ela se

constitui enquanto marca linguística (KLEIMAN, 2002; ANTUNES, 2012) para apoiar

suas possibilidades de leitura. As demais palavras elencadas pelo leitor destacam os três

pontos de discussão do texto, acompanhados das justificativas que relatam os aspectos

em oposição. Ressalta-se que, no caso do aluno 28, ele reconstrói todas as

possibilidades de leitura expostas na primeira atividade. Ele não encontra elementos

suficientes para confirmar suas hipóteses relativas à manipulação, mudança genética ou

DNA, estranha tal afirmação relatando que o texto ‘deveria falar de manipulação

genética’, e, na sequência, limita seus conhecimentos ao campo da ‘ética’ na ciência. Na

escolha das palavras-chave, elenca os tópicos expostos, argumentando quais seriam os

pontos éticos presentes no texto.

O estudante utiliza também os argumentos expostos no texto para demonstrar os

sentidos fixados por ele sobre os tópicos. Ele indica justamente os argumentos

construídos pelo autor para justificar a seleção das três palavras que caracterizam os

subtemas do texto. Isso significa que sua competência discursiva é ativada para marcar

os tópicos e ainda reconfigurar suas possibilidades de leitura de forma a acomodar os

sentidos encontrados no texto.

Na turma B, vários estudantes também indicaram a existência de uma discussão

entre vantagens e desvantagens o que os leva a apontar quais seriam os extratos ou

245

palavras que completam, para eles, essas informações. Os leitores parecem ser guiados

pelo significado da palavra dilema: se há um dilema, há também pelo menos duas

alternativas para resolvê-lo. Ao perceber essa possibilidade já no título o leitor 12 da

turma B interage com o texto indicando, na primeira atividade, que o texto apresenta

uma discussão sobre ‘pró’ e ‘contras’:

B.2.1.12 transgênico, discussão de pró e contras.

O leitor já percebe que, se o título do texto fala de genética, transgênicos é uma

possibilidade de discussão nesse campo de pesquisa. Na segunda atividade, o estudante

procura encontrar possibilidades que confirmem sua hipótese sobre as alternativas

geradas pelo dilema:

B.2.2.12 notamos no texto que existem várias opiniões

diferentes ao quesito “genética” se é viável ou não a utilização

de células tronco, clonagem e transgênicos o texto aborda quais

seriam os benefícios e quais seriam os riscos da aplicação da

genética para esses usos.

O estudante confirma a possibilidade de que, de fato, no texto existem opiniões

diferentes para o uso da ciência genética e expõe os tópicos que seriam o foco das

discussões: ‘células tronco’, ‘clonagem’, ‘transgênicos’. Ainda, o leitor observa que no

texto há ‘várias opiniões diferentes’ e que é preciso refletir se ‘é viável’ o

desenvolvimento dos aspectos genéticos discutidos no texto. É importante considerar

que o leitor procura direcionar sua interpretação em uma cadeia de informações: prós e

contras – várias opiniões - viabilidade das células-tronco, clonagem, transgênicos.

Na atividade de palavra-chave, as palavras indicadas por ele são utilizadas como

ferramenta para demonstrar o núcleo das discussões apontadas reforçando e fixando os

fios interpretativos construídos para o texto:

B.2.3.12 genética: aborda o assunto geral mesmo, mostra que o

assunto é relacionado a genética. Transgênicos: um dos assuntos

mostrados, quais são as qualidade e possíveis problemas dos

transgênicos. Clonagem: porque é um assunto bastante

comentado e o autor aborda e diz quais seriam os efeitos da

clonagem. Células-tronco: de sua utilização e de seus atributos.

Críticos: porque assim ficamos sabendo que nem tudo é

qualidade e que críticos nos mostram os riscos que todo esse uso

pode causar.

246

O estudante expõe claramente que genética é ‘o assunto geral’, e que dentro dele

os limites são mantidos em três pontos - os ‘transgênicos’, a ‘clonagem’, e as ‘células-

tronco’. O leitor indica também a confirmação de outra possibilidade de leitura: a de

que ‘há efeitos’ e que ‘nem tudo é qualidade’, isso porque há prós e contras na prática

da genética.

Vale observar que o leitor demonstra o seu diálogo com o texto quando

seleciona a palavra ‘críticos’ e notifica a necessidade de se informar sobre os riscos

antes da aprovação da ciência genética, uma vez quem ‘nem tudo é qualidade’. Veja-se

que essa é uma construção do leitor gerada numa rede de relações tecidas pelo texto: há

uma discussão entre prós e contras, os assuntos abordados são os transgênicos, a

clonagem e a célula-tronco e, por consequência, é necessário avaliar os riscos da ciência

genética.

Nesse excerto também se percebe que o diálogo do leitor com o texto se dá em

uma via de mão dupla: i) por meio da confirmação ou reconstrução dos fios condutores

da interpretação e da fixação dos sentidos pelas marcas encontradas no texto: o leitor

declara que há ‘várias opiniões’, ‘prós e contras’ no uso da ciência genética e seleciona

palavras que confirmam essas possibilidades; e ii) por meio do desenvolvimento da

competência comunicativa na ancoragem dos sentidos destacados pelo leitor em fatores

textuais, gramaticais e sociointerculturais presentes no texto: o leitor identifica os

tópicos textuais principais e adiciona ao texto a sua ideia de que ‘nem tudo é qualidade’

porque os críticos mostram ‘os riscos’ que o uso da genética pode trazer. Em outros

termos, há um processo de constante construção, fixação e destaque dos sentidos: a) em

primeiro lugar o leitor estabelece uma possibilidade de leitura – discussão de prós e

contras da ciência genética; b) na sequência, confirma a possibilidade e expõe limites –

observar a viabilidade das pesquisas porque pode causar riscos; e c) destaca os temas

elencados no texto e os argumentos que explicam os riscos e o motivo pelo qual é

necessário refletir sobre a viabilidade da ciência genética.

O excerto do aluno 7 da turma B, abaixo, demonstra como o tema principal do

texto dialoga com os conhecimentos do leitor:

B.2.1.7 um debate sobre questões genéticas

Nessa primeira possibilidade de leitura, o estudante procura substituir a palavra

‘dilema’ do título pela presença de um ‘debate’ sobre questões genéticas. Para o leitor,

esse é o tema central do texto que vai guiando a sua leitura e auxiliando-o a estabelecer

247

fios semânticos (CAVALCANTI, 1989) para a construção de sentidos. Na segunda

atividade, o leitor procura relatar em quais pontos o debate é construído e indica dois

dos temas colocados em destaque: ‘alimentos transgênicos’ e ‘clonagem’:

B.2.2.7 o autor fala sobre alimentos transgênicos uma coisa boa

para nossos alimentos para não causar mau a nossa saúde. Outra

coisa que ele comenta é sobre clonagem de animais tudo bem,

mas clonagem de humanos acho uma coisa sem precisão.

Guiado pela possibilidade interpretativa de haver um debate, o estudante aponta

para os sentidos que ele encontra – transgênicos como uma coisa boa para não causar

mal à saúde e a clonagem de animais sendo aceitável enquanto a humana não. Além

disso, ele já indica a sua própria posição dentro da discussão afirmando que acha ‘uma

coisa sem precisão’. Ou seja, o diálogo vai sendo marcado tanto pelo tema indicado a

princípio – o debate – e confirmado nas marcas linguísticas – benefícios e malefícios de

transgênicos e clonagem – quanto pela posição já estabelecida pelo leitor para a não

concordância com o ato da clonagem humana. Na atividade das palavras-chave, o leitor

procura manter esse guia interpretativo:

B.2.3.7 transgênicos: engenhar vegetais capazes de sobreviver

aos ataques de várias pragas e ainda de produzir bem mais por

planta é de grande importância para humanidade. Clonagem de

humanos: para que clonar pessoas se tem bastante no mundo.

Células-tronco: têm a capacidade de se transformar em qualquer

célula especializada do corpo. Embrião: um ser humano.

Necessidades: de uma pessoa que tem que fazer tratamento para

poder criar um “embrião” dentro dela.

As primeiras palavras indicadas por ele são exatamente ‘transgênicos’ e

‘clonagem’ confirmando a sua interpretação de que o primeiro pode ser benéfico para a

humanidade enquanto a segunda não é necessária por já haver muitas pessoas ‘no

mundo’. O leitor mantém a sua interpretação primária, mas ao mesmo tempo indica

novos sentidos percebidos por ele, agora em um novo assunto: ‘células-tronco’. Veja-se

que, percebendo o novo sentido, o leitor também o coloca como núcleo do ‘debate’

selecionado por ele como guia para sua leitura. O estudante indica a vantagem – ‘se

transformar em qualquer célula especializada do corpo’ e também a desvantagem – o

embrião ‘é um ser humano’ que acaba sendo descartado. O estudante nota que esse foi o

ponto de contraste destacado no texto como uma desvantagem e procura selecionar esse

sentido de forma pontual. Em outros termos, o leitor vai indicando os sentidos atrelados

248

à sua possibilidade primária: há um debate; tal debate gira em torno de transgênicos e

clonagem os quais possuem aspectos positivos e negativos; além disso, o debate

também gira em torno do uso da célula tronco que pode ser tanto benéfica por auxiliar a

salvar vidas quanto maléfica por matar embriões.

Deve-se ressaltar que o texto escrito propicia converter as interpretações em

realidade de conhecimento articulado, o que ocorre numa interação intensa entre

pensamento e linguagem (ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002).

Durante a interação, o leitor registra os pontos que julga necessários na percepção dos

itens na leitura e das representações que formula para o texto.

Para o texto 02, é interessante observar a maneira como os informantes destacam

um aspecto principal do gênero artigo de opinião: a declaração de uma posição colocada

em argumentos textuais (cf. cap. 4.1.2, p. 173; 180). Eles procuram destacar esses

posicionamentos e indicam também suas próprias posições, colocando-se ‘a favor’ ou

‘contra’ os argumentos do texto. A maioria dos informantes destaca como guia

interpretativo a discussão sobre a genética, os prós e contras, o dilema. No diálogo com

o texto, eles demonstram a construção dos argumentos que fazem com que o autor se

posicione e destacam as ideias em oposição expostas no texto. O que acontece é que na

construção dos sentidos do texto, o leitor vai, ao mesmo tempo, se posicionando com

relação ao assunto e utilizando uma carga de conhecimentos culturais para fornecer ao

texto novas possibilidades de discussão. Essa construção de novas possibilidades fica

ainda mais forte quando os leitores são expostos às atividades de discussão do texto

conforme análise a ser apresentada na seção 5.2 deste trabalho.

De forma clara, o gênero do texto influi na maneira como os argumentos são

construídos. O leitor identifica a tipologia argumentativa do gênero e procura completar

lacunas nas quais os argumentos do autor sejam identificados. Isso foi discutido no cap.

4, mas merece atenção também na questão de identificação e consolidação de sentidos,

pois o leitor faz duas tarefas concomitantes: identifica argumentos textuais

(competência discursiva) e também fixa sentidos dentro dos limites permitidos pelo seu

conhecimento de mundo e pelas possibilidades pré-formuladas e confirmadas na

realidade textual pela construção dos fios semânticos condutores. Ou seja, a tarefa de

encontrar sentidos e construir novas possibilidades acontece de forma contínua desde o

início da leitura movimentando conhecimentos, posições, cultura, realidade, ou seja, a

vivência do leitor.

249

Para o terceiro texto, os leitores iniciam a interação também a partir do título,

“Poema de sete faces”. 23 alunos da turma A (79%) e 14 alunos da turma B (54%)

indicam a palavra ‘sete’ como guia na sua interpretação e expõem as várias

possibilidades para o número: ‘sete interpretações’, ‘sete estrofes bem diferentes’, ‘sete

faces de um personagem’, ‘sete maneiras de vida’, ‘sete pessoas’, ‘sete almas’, entre

outras152

. Veja-se, na tabela a seguir, as palavras mais frequentes utilizadas pelos alunos

nas atividades 1, 2 e 3 do texto 3:

TABELA 14 – Palavras mais frequentes indicadas nas atividades 1, 2 e 3 – texto 3:

Atividade 1

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Sete 23 79% 14 54% 37 67%

Fases 1 3,4% 2 7% 3 5,4%

Faces 8 27% 4 15% 12 22%

Vida 7 24% 3 11% 10 18%

Deus 0 - 0 - 0 -

Atividade 2

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Sete 1 3,4% 0 - 1 1,8%

Fases 0 - 2 7% 2 3,6%

Faces 2 7% 2 7% 4 7,2%

Vida 18 69% 8 31% 26 47%

Deus 4 15% 8 31% 12 22%

Atividade 3

Palavra indicada Turma A Turma B Total

Sete 0 - 0 - 0 -

Fases 1 3,4% 0 - 1 1,8%

Faces 0 - 0 - 0 -

Vida 14 54% 8 31% 22 40%

Deus 15 57% 13 50% 28 51%

Com base na observação da tabulação dos dados para a atividade 1, expostos

acima, constatou-se que os estudantes sofrem alta influência do título para o

estabelecimento das primeiras possibilidades de leitura. Os leitores reconhecem que

poema é um gênero que dá maiores opções de criatividade na construção de sentidos e

procuram encontrar no título um elemento que lhes dê maior segurança no

direcionamento da leitura. Mesmo os alunos que não utilizaram a palavra ‘sete’,

152

Cf. anexo E deste trabalho que mostra na íntegra as respostas dos alunos, inclusive as da atividade 1 do

texto 3.

250

indicaram que há diferentes faces ou várias personalidades, como se pode ver nos

excertos a seguir:

A.3.1.2 tipos de comportamento de pessoas

A.3.1.11 que pode ser interpretações diferentes todas[sic] vez

que lê o poema tem uma interpretação.

B.3.1.8 seria as diferentes faces

B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades

Os leitores acima, mesmo sem indicar que a possibilidade interpretativa está no

encontro de quais seriam as ‘sete’ faces, lançam uma ideia interpretativa que pode guiá-

los para o sentido de ‘interpretações diferentes’ ou ‘várias personalidades’. Observe-se

também, na tabela 14, que a palavra ‘face’ é a segunda palavra mais usada pelos leitores

na atividade 1, com 22% das indicações, seguida da palavra ‘fase’ com 5,4%. Ou seja,

as possibilidades de leitura construídas pela maioria dos leitores giram em torno de

compreender quais seriam as faces ou fases de que fala o título.

Na segunda atividade, a palavra ‘sete’ aparece com uma indicação pequena e é

substituída por uma alta indicação da palavra ‘vida’. Os leitores parecem limitar nessa

atividade um sentido importante: sete (fases/faces) – vida. Ou seja, se o autor expõe sete

faces, elas devem estar ligadas a momentos diferentes da vida de uma pessoa. Em

alguns excertos os estudantes limitam sentidos na segunda atividade:

A.3.2.4 eu acho que ele quer descobrir-se. A vida do autor.

A.3.2.6 eu acho que está contando da vida dele, desde a infância

à velhice. Conta sobre sua vida o que ele passou e o que ele não

viveu.

B.3.2.3 ele viaja dizendo o que era para fazer na vida e reclama

que Deus o abandonou.

B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se

questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim

Pelos excertos, os leitores, de fato, limitam as faces expostas no título e

destacadas na primeira atividade, a fatores relacionados à vida do personagem. As ideias

expostas pelos informantes sofrem também influência das palavras que, no texto,

indicam sofrimento, tais como “emoções”, “comovido”, “sem solução”, entre outras.

Nos extratos expostos acima, os leitores utilizam sua carga de conhecimentos de mundo

251

e sua competência sociointercultural para construir sentidos relacionados a momentos

da vida do personagem, tais como ‘descobertas’, o que ‘passou e não viveu’,

‘reclamações’, ‘solidão’ ou ‘momento ruim’.

Ressalte-se, também, que o leitor 3 da turma B já constrói, nessa leitura, sentidos

ligados ao intertexto bíblico “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” afirmando

que ele ‘reclama que Deus o abandonou’. Conforme exposto no cap. 4 (p. 194) a

utilização da intertextualidade na construção de sentidos é de suma importância porque

auxilia na construção da coerência textual (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Essa é

uma observação constante na segunda atividade: 22% dos leitores indicam a presença

forte da palavra ‘Deus’, influenciados pelo momento de pedido de socorro do

personagem, no texto.

Na terceira atividade, os leitores parecem utilizar ainda mais fortemente sua

carga de conhecimentos sociointerculturais atreladas à palavra ‘Deus’ para construir

sentidos (cf. cap. 4.1.3, p. 194-195). Essa palavra é indicada em 51% dos extratos dos

estudantes ao escolher as palavras do texto que os auxiliam na construção de sentidos. É

a partir da palavra ‘Deus’ e da palavra ‘vida’ que os leitores fixam sentidos relacionados

a: faces – vida – sofrimento - Deus. A palavra ‘Deus’ também é indicada como um

socorro para o personagem que sofre durante momentos da sua vida, o que se encaixa na

lacuna aberta na segunda atividade na qual ele ‘reclama da vida’, ‘quer descobrir-se’ e

‘é solitário’.

Na tabela 15, a seguir, percebe-se que a palavra ‘Deus’ foi a mais indicada como

palavra-chave para o texto 3, seguida por palavras que caracterizam o personagem (p.

ex. ‘gauche’) e palavras que confirmam o sofrimento, tais como ‘fraco’, ‘anjo torto’ e

‘abandonar’.

A cadeia de sentidos construídos pelo leitor, a exemplo dos textos anteriores,

também é tecida numa rede de relações estabelecidas na interação com o texto, fazendo

com que haja uma sequência de eventos que confirmam as possibilidades: nas primeiras

interpretações os leitores indicam que há sete faces. Na segunda leitura eles apontam

que as faces estão relacionadas à vida de um personagem que sofre e pede socorro – o

que é produzido na segunda leitura e fixado na escolha das palavras-chave. Destaca-se

que, também no caso do poema, as interpretações dos estudantes na escolha das

palavras-chave são guiadas tanto pela focalização de sentidos intertextuais, quanto pela

confirmação ou reconstrução das possibilidades imaginadas para a leitura. Observe-se a

tabela:

252

TABELA 15 – Palavras-chave mais frequentes indicadas pelos alunos – Texto 3

Palavra-chave Turma A Turma B Total

Deus 8 11 19

Gauche 8 10 18

Anjo (torto) 6 10 16

Fraco 9 4 13

Abandonar 8 5 13

Nascer 6 7 13

Coração 5 8 13

Homem 3 10 13

Mundo 3 9 12

Desejos 5 6 11

Pernas 4 7 11

Bigode 4 5 9

Bonde 3 6 9

Mulher 1 8 9

Não se tem a intenção de afirmar aqui que todas as relações de construção de

sentido são lógicas e seguem uma cadeia sempre sequencial, até porque seria impossível

visualizar tudo o que acontece na mente dos leitores para saber exatamente todos os

pontos em que a competência comunicativa é ativada na construção de sentidos e no

estabelecimento dessas conexões. Na verdade, o que se constata pelos dados é que os

informantes fornecem indícios de que utilizam sua carga de conhecimentos prévios e

sua competência comunicativa para acomodar sentidos possíveis e não possíveis de

acordo com o que conhecem da realidade ou dos textos a que são expostos. No caso do

texto 3, os leitores recorrem mais fortemente a conhecimentos sociointerculturais,

comparando-se aos textos 1 e 2 (vide gráfico 6 cap. 4.1.3, p. 200), para construir o

sentido de que se o personagem reclama a Deus, é porque está sofrendo.

É importante considerar também que a alta escolha da palavra ‘vida’, nas

segunda e terceira atividades, é interpretada como um reflexo da construção do autor do

texto que escreve o poema relatando momentos diferentes. Textualmente, Drummond

relata questões observadas pelos leitores, já no início do texto, quando utiliza a frase

“quando nasci”. Note-se, na tabela 15, que a palavra ‘nascer’ se encontra na quarta

posição entre as mais indicadas, juntamente com outras quatro na mesma posição. Isso

porque conhecimentos de mundo levam o leitor a estabelecer a possibilidade sequencial:

nascer, viver, morrer. Ou seja, há uma inferência do leitor: se o poeta fala de nascer

253

então está expondo momentos de vida. Tal sequência é mantida por Drummond ao usar

metáforas nas próximas estrofes que possibilitam também a inferência do leitor que

ativa sua competência sociointercultural, como:

1. Quando nasci – fase de infância;

2. Homens que correm atrás de mulheres – juventude ou idade adulta;

3. Bonde cheio de pernas – atividades profissionais; ida e vinda do trabalho;

4. Homem de bigode – vida adulta;

5. Homem fraco – tristezas vividas;

6. Não seria uma solução – sofrimento;

7. Comovido como o diabo – continuação e intensidade de um sofrimento.

(destaques como a observação da lua, a bebida – conhaque - culturalmente

afirmam esse sofrimento).

Nesse sentido, a movimentação constante de conhecimentos de mundo ligados

às informações do texto faz com que se estabeleça coerência (KOCH, 2009; KOCH;

TRAVAGLIA, 2011; BEAUGRANDE; DRESSLER, 1981). A indicação de palavras

que confirmam e acomodam as possibilidades de interpretação desde a primeira

atividade, de pré-leitura, até as atividades de leitura confirmam que os conhecimentos

diversos do leitor atuam como uma base de segurança para os leitores na construção de

sentidos textuais.

Veja-se agora como os informantes selecionados como amostra declaram suas

possibilidades, as confirmam e (re)constroem sentidos. No exemplo abaixo, já nas

atividades de pré-leitura, o leitor 21 da turma A declara sua expectativa quanto ao título:

A.3.1.21 sete faces da vida do autor.

Na sequência, ao fazer uma primeira leitura do texto, o aluno declara que entre

os fatores discutidos no texto estariam a ‘personalidade’, o que ele ‘pensa’, as suas

‘perguntas’ e os seus ‘sentimentos’:

A.3.2.21 ele está falando da personalidade dele, das coisas que

ele pensa, das perguntas que ele se faz, dos sentimentos dele.

Observe-se que as expectativas expostas na segunda atividade estão de acordo

com as possibilidades primárias lançadas pelo leitor: se há sete faces da vida, há

também momentos em que se fala sobre personalidade, sentimento, perguntas pessoais,

pensamentos. Ou seja, o leitor está procurando elementos para confirmar suas

254

possibilidades interpretativas: quais são as sete faces do autor? O seu conhecimento de

mundo permite que fatores de personalidade, pensamento, perguntas reflexivas e

sentimentos se encaixem na expectativa de haver ‘sete faces’ da vida.

Ao realizar a atividade da palavra-chave, ele é ainda mais fortemente guiado por

dois aspectos: as sete faces e a vida do autor. Escolhe palavras que preencham

justamente as possibilidades construídas por seu conhecimento de mundo e declara ao

final que ‘queria escrever mais’:

A.3.3.21 gauche: porque ele era deslocado. Desejos: porque ele

era intenso. Vasto: porque o coração dele era vasto. Comovido:

porque o poema é comovente. Pergunta: porque tem indagações

no poema, porque ele é introspectivo. [duas linhas depois]: eu

queria escrever mais!

O diálogo com o texto acontece por meio das possibilidades iniciais de leitura

(SOLÉ, 1998; COLOMER; CAMPS, 2002): as sete faces da vida do autor. O leitor

seleciona exatamente 5 palavras, o limite exposto pela pesquisadora para a atividade,

mas para que ele consiga confirmar suas hipóteses (de que há ‘sete faces’), ele declara

que seria necessário ‘escrever mais’. Veja-se que o leitor deixa duas linhas em branco,

demonstrando que haveria espaço suficiente para que ele escrevesse outras

possibilidades de interpretação suscitadas por outras palavras-chave ou por

interpretações construídas na interação com o texto.

Outro fato interessante é que o leitor escolhe palavras presentes em 5 estrofes

diferentes do poema e quando ele declara que ‘queria escrever mais’, afirma que

necessita de mais espaço para confirmar as demais possibilidades expostas, talvez, nas

estrofes seguintes ou talvez outras interpretações já construídas. O leitor não deixa claro

o motivo pelo qual queria ‘escrever mais’ e não se pode afirmar que ele gostaria de

indicar duas palavras das outras duas estrofes para completar as ‘sete faces’. O fato é

que ele indica de forma nítida que somente as 5 palavras escolhidas não são suficientes

e não resumem os sentidos todos construídos na interação com o texto.

Destaca-se, também, que das 5 palavras que o leitor seleciona, todas

contemplam, de alguma forma, as 4 categorias apontadas na primeira leitura:

personalidade – deslocado, introspectivo; sentimentos – comovido, coração vasto;

questionamentos – pergunta; pensamentos – desejos.

O extrato do leitor acima indica que há vários outros sentidos que podem ser

criados na interação com o texto e que ele se sente limitado pelo exercício. A interação

255

do leitor com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; KOCH, 2009) acontece, nesse

exemplo específico, pela maneira como ele cria para si possibilidades de leitura (‘sete

faces da vida do autor’) e procura encontrar elementos textuais que confirmem essas

possibilidades. O leitor demonstra a maneira como seus conhecimentos estão em

movimentação constante para criar, pensar, refletir suas possibilidades de compreensão.

Pode-se dizer que o texto escrito propicia converter as interpretações em

realidade de conhecimento articulado na interação entre conhecimentos prévios e língua

(ECO, 1979; COLOMER; CAMPS, 2002; KLEIMAN, 2002). Durante esse processo, o

leitor não registra uniformemente tudo aquilo que está lendo (cf. cap. 1). Ao contrário,

no processo de leitura, ele só registra aquilo que julga necessário para perceber as

relações entre os itens e formular uma representação para o texto (ECO, 1979), o que é

válido não somente para o texto 3, mas também para os textos 1 e 2, ou qualquer outro

texto a que os leitores sejam expostos.

O leitor 3 da turma A, abaixo, também cria uma multiplicidade de sentidos

possíveis a partir da primeira atividade e depois os limita, já na sequência da leitura:

A.3.1.3 podem ser as sete faces do autor, as sete faces de uma

mulher, as sete faces de uma situação, enfim.

O informante estabelece no mínimo três possibilidades para a palavra ‘sete’ na

construção das suas interpretações primárias: sete faces ‘do autor’, de ‘uma mulher’ ou

‘de uma situação’ e ainda, ao indicar a palavra ‘enfim’, deixa em aberto outras

possibilidades que possam surgir durante a leitura. O guia principal que direciona sua

leitura dali em diante é observar em qual desses elementos essas ‘sete faces’ poderiam

se encaixar. Na segunda atividade ele limita seus conhecimentos a uma dessas

possibilidades:

A.3.2.3 eu acho que ele está falando das faces da sua vida, desde

antes de nascer até sua velhice.

Ressalta-se que o leitor explica que se fala, no texto, das ‘faces da sua vida’

descartando a ideia das sete faces de ‘uma mulher’ ou de ‘uma situação’. O leitor ainda

aponta para o fato de que dentro dessas sete faces devem estar alguns momentos ‘desde

antes de nascer até a velhice’. Ele utiliza toda sua carga de conhecimentos prévios

(KLEIMAN, 2000; 2002; KATO, 1999; CASTELLO-PEREIRA, 2003; ECO, 1979)

para ativar sua competência comunicativa e dialogar com o texto construindo sentidos.

256

Tais sentidos, no caso desses excertos, estão limitados a dois aspectos principais: a) a

confirmação ou reconstrução das possibilidades construídas antes da leitura - a de que o

texto expõe ‘sete faces’; e b) os seus conhecimentos discursivos, gramaticais e

sociointerculturais para encontrar quais seriam as ‘faces’ e a que momentos elas se

referem.

Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor declara de forma nítida que

está encaixando as palavras-chave em fases da vida do personagem:

A.3.3.3 sério: essa palavra está no 4º verso do poema, como se

fosse a 4ª fase de sua vida onde ele já havia se tronado[sic] um

homem com maiores responsabilidades. Óculos: também da

uma ideia de idade mais velha. Abandonaste: essa palavra está

no 5º. verso do poema e da a ideia de que seria a 5ª fase de sua

vida onde ele estaria passando por alguma dificuldade em que

Deus o abandonou.

O leitor destaca as palavras ‘sério’ e ‘abandonaste’ como chave e as justifica por

estarem presentes no 4º e 5º versos do poema e por fazerem parte, respectivamente, da

4ª e 5ª fase da vida do personagem. Pode-se dizer que o informante está de fato

dialogando com o texto numa tentativa de encontrar quais são as fases da vida. Ele

divide as estrofes em algumas dessas fases e as explicita em suas justificativas.

Outro detalhe importante é que ele focalizou sentidos que respondem melhor à

ideia construída no texto de que há uma tendência do personagem para o sofrimento e

isso acontece na fase adulta. O informante começa a sua explicação justamente

indicando a palavra ‘sério’ porque ele era um homem ‘com maiores responsabilidades’

e na sequência indica ‘abandonaste’ porque é justamente a fase na qual o personagem se

sente triste e passa ‘por alguma dificuldade’. Ou seja, mais uma vez, assim como

aconteceu com alunos nos textos anteriores, o informante confirma suas possibilidades

iniciais de leitura e quando é solicitado a fixar sentidos, utiliza sua competência

comunicativa para confirmar tais possibilidades se concentrando em elementos textuais

que, para ele, são marcas linguísticas nessa confirmação ou reconstrução.

Pode-se dizer que a língua é utilizada aqui como um local de interação entre

autor e leitor. É por meio de ações linguísticas e sociocognitivas que

eles constroem objetos-de-discurso e propostas de sentido, ao

operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de

organização textual e as diversas possibilidades de seleção

257

lexical que a língua lhes põe à disposição (KOCH; ELIAS,

2010, p. 07).

Na turma B, os informantes também demonstram que a palavra-chave pode ser

utilizada tanto na confirmação ou reconstrução das possibilidades de leitura, quanto na

focalização de sentidos particulares. No caso do aluno 13, abaixo, ele não demonstra a

palavra ‘sete’ – como o fizeram os informantes anteriores -, no entanto ele já indica que

o texto vai tratar de ‘várias personalidades’:

B.3.1.13 parece se tratar de várias personalidades

Ou seja, as interpretações do leitor devem estar limitadas aos esquemas mentais

(DIJK, 2002; ECO, 1979) ‘personalidade’. As interpretações do leitor, na segunda

atividade, demonstram que ele encontra características do personagem que se encaixam

nesse esquema:

B.3.2.13 acho que ele diz sobre um homem solitário que se

questiona porque veio ao mundo ou de um momento ruim

O fato de ser um ‘homem solitário que se questiona porque veio ao mundo’

mostra ao leitor quais seriam algumas das possibilidades dessa personalidade. O fato de

ele indicar ‘um momento ruim’ mostra a percepção do leitor de que o texto relata sobre

fases ruins da vida. É importante destacar aqui que a representação daquilo que o leitor

encontra na leitura vai se organizando com base naquilo que ele tem armazenado em

seus esquemas mentais. À medida que a leitura evolui, os esquemas se reorganizam e

ocorre um processo de formulação do pensamento produzindo interpretação, o que é

uma característica fundamental para o processo de produção de sentidos textuais (ECO,

1979).

Na atividade de escolha das palavras-chave, o leitor utiliza a sua seleção para

fixar sentidos textuais que giram em torno das personalidades do autor – ‘vive sem

rumo’, ‘homem sério’, sofre por ter ‘poucos amigos’, ser um ‘Zé ninguém’ ou ‘estar

bêbado’:

B.3.3.13 gauche: para lembrar que ele vive sem rumo. Bonde:

para lembrar da estrofe das pernas. Bigode: para lembrar do

homem sério de poucos amigos. Raimundo: pois Raimundo quer

dizer Zé ninguém. Comovido: pois acho que ele está bêbado.

258

O leitor procura encaixar possíveis sentidos dentro dos limites colocados por ele

na primeira interpretação: ter ‘várias personalidades’. Na segunda atividade, o leitor

indica que essa personalidade é ‘solitária’ e que o personagem ‘se questiona’. Na

terceira, o leitor indica outras características percebidas no texto: ‘vive sem rumo’,

‘homem sério de poucos amigos’ e ‘está bêbado’. Colomer e Camps (2002) relatam que

no processo interativo de leitura, o texto funciona como um ativador de esquemas

mentais. Ou seja, o leitor faz construções interpretativas possíveis mediante algumas

informações observadas e contrasta essas percepções àquilo que ele conhece da

realidade. De forma concomitante, reconstrói ou confirma suas possibilidades a partir de

marcas linguísticas encontradas no texto e é nesse momento que ele fornece ao texto um

sentido global.

No caso dos informantes analisados até aqui, é possível dizer que, ativando sua

competência comunicativa, eles buscaram estratégias linguísticas e extralinguísticas que

possibilitassem a eles um encaixe entre as suas possibilidades de leitura e os sentidos

expostos no texto. A palavra-chave pode estar funcionando como um ativador

importante dessa estratégia de ancorar possibilidades, confirmá-las ou reconstruí-las,

por serem justamente marcas linguísticas textuais (KLEIMAN, 2002;

COLOMER;CAMPS, 2002).

O caso do leitor 10 da turma B também indica que o leitor utiliza estratégias de

confirmação, reconstrução ou limitação das possibilidades estabelecidas pela sua leitura.

Na primeira atividade ele declara que o texto fala que:

B.3.1.10 existem pessoas com diversos tipos de caráter

O leitor aponta que sua interpretação será direcionada para o encontro de

informações suficientes que lhe sirvam para basear a ideia de que há ‘pessoas com

diversos tipos de caráter’. Na segunda atividade o leitor expõe duas possibilidades para

esse ‘caráter’: o alcoolismo e o pensamento constante em mulheres:

B.3.2.10 eu acho que se trata de uma pessoa alcoólatra

transtornado com Deus porque o abandonou e só pensa em

mulheres.

Nesse extrato, o leitor indica que o personagem se encaixa em um determinado

tipo de ‘caráter’. Ainda, ele constrói sentidos textuais, e possibilitados pelo

259

conhecimento de mundo, de que há motivos para o personagem ser alcoólatra e pensar

em mulheres: o fato de ter sido abandonado por Deus. Veja-se a maneira como

informações textuais - o abandono por Deus – se relacionam aos conhecimentos de

mundo do leitor para construir sentido – está transtornado, é alcoólatra, só pensa em

mulheres.

A influência do conhecimento de mundo na interpretação está no fato de que

para que o leitor possa dizer que compreendeu o texto, ele precisa deduzir relações entre

frases, palavras, parágrafos e complementar com conhecimentos não necessariamente

explícitos no texto (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). Assim, o leitor utiliza todo o

conhecimento que não está exposto no texto para perceber indícios reveladores para sua

leitura, ou seja, ele utiliza um mecanismo contínuo de antecipação e confirmação para

compreender o texto. Tal antecipação e confirmação funcionam como fios que

conduzem a interpretação do leitor e relacionam aspectos diversos dos conhecimentos

culturais ativados no momento da leitura. A atividade seguinte mostra como o leitor

reforça essa carga de conhecimentos culturais:

B.3.3.10 as casas que espiam os homens, significa casa noturna onde

mulheres vão se prostituir.

É interessante observar a maneira como o leitor cria sentidos relacionando

possibilidades limitadas pela sua vivência de mundo. Ele indica que a expressão

presente no texto ‘casas que espiam os homens’ poderia confirmar sua possibilidade de

leitura de que o personagem ‘só pensa em mulheres’, pois no texto há uma ‘casa noturna

onde mulheres vão se prostituir’.

O leitor também faz ligações importantes da sua cultura na produção de sentidos,

pois ele indica que o personagem deve se encaixar em um determinado ‘caráter’. Há

uma construção cultural de que as pessoas que apresentam características socialmente

aceitas possuiriam um ‘caráter’ bom, e as que transgridem esses comportamentos, ou

cultura, teriam um ‘caráter’ ruim. A questão principal é que produzimos significados em

meio à interação e à vivência no mundo que nos cerca, e essa produção se reflete na

maneira como compreendemos os significados de um texto, seja ele oral ou escrito

(MENDES, 2011). Assim, há uma relação entre a cultura vivida pelo leitor e as marcas

linguísticas expostas no texto: o fato do personagem ser ‘alcoólatra’, ‘só pensar em

mulheres’ e ir a ‘casas de prostituição’ culturalmente se encaixam no perfil de um

personagem que está ‘sem rumo’, ‘abandonado’, ‘triste’, o que constrói o seu ‘caráter’.

260

O que se percebeu durante a análise dos dados expostos, para os três textos, é

que os informantes utilizam duas frentes principais na construção de sentidos: uma

liderada pelas possibilidades de leitura e outra liderada pela competência comunicativa

que organiza seus conhecimentos. Para a atividade de construção e confirmação das

possibilidades iniciais de leitura, os leitores procuram pontos onde ancorar suas

escolhas de interpretação e as palavras-chave parecem funcionar como esse elemento

em que eles conseguem encaixar os sentidos e formalizar representações para o texto.

É importante lembrar que os leitores declararam, nos questionários

sociointerculturais, que consideram o título um elemento importante na escolha dos

textos que vão ler. Conforme exposto no cap. 3.2 (p. 131), a maior parte dos alunos

pesquisados, de ambos os grupos, afirmou selecionar suas leituras pelos temas

específicos, pelo título ou por resumos. Isso confirma a ideia de que de que dados

iniciais do texto guiam o leitor no estabelecimento de possibilidades interpretativas e,

consequentemente, na escolha das palavras-chave. O que se percebeu ao analisar os

extratos dos informantes é justamente que esses dados iniciais atuaram como um

elemento concomitante à competência comunicativa, fazendo com que os leitores

utilizem estratégias de descarte de algumas informações e saliência de outras para a

construção da interpretação.

Os dados revelaram, também, que os leitores procuram concentrar na palavra-

chave um elemento principal em que podem costurar os sentidos que foram aos poucos

construindo durante a interação com o texto. O diálogo com o texto se estabelece e ao

ligar um elemento a outro, as interpretações são construídas num processo que envolve

aspectos culturais, discursivos, gramaticais. Cavalcanti (1989) afirma que as palavras-

chave são como “fios condutores semânticos” (CAVALCANTI, 1989, p. 122) para o

estabelecimento de sentido textual e a construção de interpretação. O que se observou

aqui é que elas não apenas conduzem os leitores, mas também servem como bases,

como se fossem uma zona de segurança, para ativação de conhecimentos subjacentes

que extrapolam o conhecimento linguístico do código e levam os leitores a ativarem

tudo aquilo que conhecem sobre suas realidades e inferirem sentidos para o texto.

Mas e quando o leitor é solicitado a expor suas opiniões para o texto? Como ele

utiliza o diálogo já estabelecido para negociar sentidos para si mesmo? É o que vai se

falar na seção seguinte deste trabalho.

261

5.2 A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS

Nesta seção, vai-se analisar a maneira pela qual os leitores destacam sentidos

construídos durante a leitura e reconstroem novos sentidos para si mesmos ou para o

texto num processo de negociação. Para tanto, observou-se as atividades de discussão

do texto em que foram propostas três perguntas a partir das quais se objetivou que os

alunos demonstrassem algum tipo de diálogo interativo com o texto para negociação de

sentidos153

(cf. cap. 3).

É necessário lembrar que quando se negocia sentidos com o texto, há um

processo individual em que sentidos previamente construídos para cada leitor podem ser

trazidos à tona. De acordo com Mendes (2011), a língua é um modo de identificação

dos sujeitos numa rede de relações individuais, sociais e culturais. É por intermédio da

língua que as pessoas enxergam a realidade à sua volta, estruturam pensamentos,

interagem socialmente, organizam o mundo em que vivem. Sendo assim, a cultura e a

língua se encontram na produção de sentidos ocupando um mesmo espaço fazendo com

que a interpretação e a reorganização de compreensões sejam processos tanto

individuais quanto sociais.

Embora se tenha observado que há pontos em comum entre todos os leitores nas

discussões já realizadas dos cap. 4 e do 5.1, quando se fala em negociar sentidos, julga-

se que há um diálogo ainda mais intenso com os processos vividos interculturalmente

por cada leitor em particular. Sendo assim, um processo de diálogo entre essas culturas,

de vários sujeitos, com perspectivas diversas, que se juntam em um mesmo momento de

construir sentidos, pode enriquecer o trabalho pedagógico nas salas de aulas de línguas

(MENDES, 2011).

No entanto, para a análise aqui proposta, seria no mínimo exaustivo discutir cada

um dos processos de negociação expostos por todos os 55 informantes participantes da

pesquisa. Para que fosse possível realizar uma discussão sobre a maneira como os

leitores fixam, organizam, reconstroem e negociam sentidos, optou-se aqui por

selecionar os mesmos informantes utilizados na primeira parte do capítulo com o intuito

de analisar como guiaram suas interpretações desde o início, a partir da construção das

possibilidades iniciais de leitura até a discussão. Ou seja, parte-se de uma observação

genérica feita a partir da maioria dos alunos das turmas pesquisadas, conforme exposto

153

Vide questões na íntegra no anexo B deste trabalho.

262

na seção 5.1 acima, faz-se a seleção de alguns informantes para demonstrar como se

analisam tais observações para segunda questão de pesquisa e agora, utilizam-se os

mesmos informantes para discutir a terceira questão de pesquisa e verificar a maneira

que estes reconstroem ou negociam sentidos.

Por uma questão de organização da análise apresentada na sequência, para cada

leitor apresentado a seguir, faz-se uma retomada breve das discussões realizadas na

seção anterior para demonstrar o diálogo entre os sentidos fixados para o texto e os que

estão sendo colocados em negociação pelo leitor na atividade de discussão do texto.

É importante ressaltar o fato de que sentidos são construídos a partir de um

diálogo entre diferentes culturas (KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008; 2010;

2011), o que significa que cada sujeito participante do processo de negociação entra

com sua visão de mundo e perspectivas (cf. cap. 2.2.2, p. 93-97). Isso significa que, em

contexto pedagógico, o professor também entra com suas próprias construções e as

expõe para o diálogo com os sentidos construídos pelos alunos. O mesmo acontece

quando se está na posição de pesquisador. Em outros termos, cada um dos envolvidos

na produção de sentidos entra com uma parcela de participação expondo suas análises e

considerações. Assim, neste trabalho de tese, não se nega a possibilidade de que a

negociação se dê também pelos sentidos percebidos pela própria pesquisadora, além das

observações realizadas pelos estudantes numa relação de conhecimentos sociais e

interculturais.

Para todos os textos, foram realizadas três perguntas na atividade 4 - discussão

do texto -, conforme exposto no cap.3. A ideia principal das perguntas foi a de analisar

em primeiro lugar a posição que o aluno se coloca diante do texto ou dos sentidos

construídos para ele. Outro detalhe importante nas perguntas é que se procurou em, pelo

menos uma delas, oportunizar aos leitores a tomada de posição a partir de suas opiniões

e também de demonstrarem como a palavra-chave os auxiliava a hierarquizar intenções

textuais ou pessoais.

Notou-se, na discussão da seção 5.1 acima que, para o texto 01 a maioria dos

estudantes começou a interação com o texto a partir da palavra ‘instrução’

estabelecendo possibilidades mais genéricas de interpretação e na segunda atividade

eles limitaram tais hipóteses a assuntos relacionados à ‘educação’, ‘estudo’ e diferença

de classes. Na terceira atividade, o que se percebeu em grande parte dos estudantes é

que eles procuraram destacar aspectos textuais que relataram a construção da crítica do

gênero textual, bem como palavras que confirmassem a possibilidade de leitura de que o

263

tema principal – a educação - relacionava-se a problemas sociais tais como

discriminação, pobreza, riqueza, entre outros.

No caso do aluno 16 da turma A, observou-se que o informante lançou a

possibilidade inicial de que a ‘instrução é essencial para a sociedade’, limitou esse

sentido a fatores de ‘estudo’, ‘discriminação’, ‘pobreza’ e ‘riqueza’ e construiu sentidos

que indicam que ali há uma crítica (cf. cap. 5.1, p. 229-230). Nas atividades de

discussão do texto, notou-se que o leitor também utiliza a palavra ‘instrução’ para

estabelecer sentidos pessoais. Ao ser questionado sobre o personagem com quem se

identifica, o informante afirma que é ‘com o senhor’ porque ele ‘pensa em instruir’ e

não ‘dar dinheiro’. O menino, por sua vez, não quis buscar estudo, ele ‘virou as costas e

foi embora’:

A.1.4a.16 três. Dois principais. Com o senhor. Porque ele pensa

em instruir em vez de dar dinheiro ao menino. Ele questionou o

menino sobre Teorema de Pitágoras, mas o menino não quis

buscar o conhecimento virou as costas e foi embora.

O leitor aponta para a importância de obter e dar ‘instrução’ ao invés de ‘dar

dinheiro’. O estudante volta a utilizar a palavra ‘instruir’, mas agora com um sentido de

que o senhor dá algo importante ao menino, o conhecimento, e este ‘virou as costas e

foi embora’. O estudante se coloca na posição daquele que quer dar algo, o

conhecimento a alguém, e para isso ele precisa estar no lugar daquele que detém o

conhecimento. Ele ainda afirma que o menino ‘não quis’ buscar o conhecimento e por

esse motivo ele não se identifica com o personagem.

Na atividade seguinte, ele reforça a sua opinião de que se deve, de fato, estudar

mais e buscar o conhecimento, pois é ele que pode lhe dar o poder de ‘instruir’ alguém.

O leitor indica que a posição do personagem é a de que ‘só quem estuda 5 anos a mais é

que é bem instruído’:

A.1.4b.16 ele pensa que só quem estuda 5 anos a mais que é

bem instruído. Sim. Porque se a pessoa estuda todo esse tempo a

menos ela não tem tempo de aprender tudo que o mais instruído

sabe.

Ele ainda afirma que concorda com essa ideia de que é necessário estudar mais,

pois, se a pessoa não buscar estudo, ela vai continuar sem saber o que realmente precisa

saber para também ser ‘bem instruído’. O leitor assume aqui um sentido criado no texto

264

para si mesmo: ele se identifica com o personagem rico porque este tem mais tempo de

estudo e consequentemente pode ser considerado o ‘mais instruído’.

Na sequência da atividade, o estudante ainda declara que, para ele, é pela busca

do conhecimento, ou seja, do ‘estudo’, que se pode ter sucesso, ou se ‘sair melhor na

vida’. O aluno elege a palavra ‘estudo’ como a chave dos sentidos que constrói para si

mesmo: o estudo é importante para que se tenha sucesso.

A.1.4c.16 ele enfatiza sempre o estudo, a busca do

conhecimento, quem tem mais estudo se sai melhor da vida.

Estudo [sic]154

.

Sendo assim, o leitor parece estar utilizando a palavra-chave (de início ele utiliza

‘instrução’ e depois reformula sua interpretação para ‘estudo’) para dois aspectos

principais relacionados ao sentido do texto: a) confirmar sua possibilidade inicial de

leitura de que instrução é ‘essencial para a vida em sociedade’ (cf. 5.1, p. 230); e b)

construir sentidos pessoais de que com estudo ele também pode alcançar sucesso. Ao

negociar sentidos com o texto, o leitor assume para si a posição de buscar o estudo para

poder ‘se sair melhor na vida’ e tornar-se ‘bem instruído’.

Com relação ao aluno 5 da turma A, abaixo, o leitor constrói nas primeiras

atividades um sentido de que a instrução é importante para um futuro de sucesso e que

há uma crítica no texto e uma superioridade do rico com relação ao pobre (cf. cap. 5.1,

p. 230-232). Ele também destaca, nas atividades anteriores, que ‘sempre há mais o que

estudar’ e que ‘existem pessoas que se acham melhores que os outros’. Na atividade de

discussão do texto, o leitor marca justamente sua desaprovação à atitude de preconceito

com o menino e se coloca na posição dele dizendo que ‘não seria o homem’ porque ‘não

tem costume de dar lição de moral’:

A.1.4a.5 dois. O menino e o homem. O menino pois não tenho

costume de dar lição de moral em outras pessoas se não tenho

certeza de que estou certa, portanto, eu não seria o homem.

O estudante estabelece a oposição entre os dois personagens e se identifica com

aquele que sofre o preconceito, desaprovando a atitude do senhor rico. Ele ainda marca

a sua desaprovação ao preconceito reconstruindo a crítica presente no texto:

154

A palavra ‘estudo’ aparece sublinhada na indicação do leitor.

265

A.1.4b.5 que com ela iria ajudar ao menino. Em alguns fatos.

Pois o personagem narrador mostra um certo ar de superioridade

e preconceito durante sua instrução e isso é um ponto negativo.

Note-se que o leitor destaca que a ‘instrução155

’ seria importante no auxílio ao

menino, mas isso não justifica o ‘ar de superioridade’ e de ‘preconceito’ mostrados pelo

personagem mais rico. Ao negociar sentidos com o texto, o estudante expõe a sua

opinião de que não se pode ter um ‘ar de superioridade e preconceito’ porque ‘isso é um

ponto negativo’. Ele também indica que concorda com ‘alguns fatos’ do texto e na

última atividade afirma que a educação é importante para ‘termos uma vida melhor’:

A.1.4c.5 mostrar que todos nós sem a educação não somos nada

e que sempre devemos buscar por ela para termos uma vida

melhor.

O leitor indica a maneira como constrói sentidos e expõe que concorda em parte

com o personagem narrador estabelecendo para si dois sentidos principais: a) o de que a

educação é importante para o futuro – é importante lembrar que este foi um guia

interpretativo exposto pelo leitor desde o início da interação com o texto e que ele o

confirma na última atividade de exposição da sua opinião; e b) o de que há uma crítica

no texto na qual um personagem considera-se superior ao outro – é nesse ponto que o

leitor se posiciona e expõe sua ideia de que o ‘ar de superioridade’ é desnecessário e que

ele não concorda com o preconceito demonstrado no texto.

Ele seleciona palavras que funcionam como marcas linguísticas dos sentidos

construídos durante a leitura e, ao ser indagado sobre sua opinião, ele parece justamente

entrar em um processo de negociação com o texto afirmando que ‘sem educação não

somos nada’ mas o fato de alcançá-la não justifica atitudes de preconceito. Para o leitor,

há dois processos não concomitantes: o fato de ter altos níveis de educação e o fato de

se sentir superior. Ele entra em negociação com o texto a partir de uma realidade vivida:

no texto, o rico se sente superior ao pobre, mas para o leitor, tal atitude é injustificável

seja pelo dinheiro, seja pelo nível educacional.

Observe-se ainda que o leitor declara-se na posição do menino porque não

costuma ‘dar lição de moral’ em ninguém o que indica que ele procura ações realizadas

no seu cotidiano para construir sentido para o texto. Deve ser lembrado que tanto na

vida cotidiana quanto na leitura de textos, compreende-se e incorpora-se o que faz

155

O leitor utiliza o pronome ‘ela’ como remissivo à palavra ‘instrução’ colocada na pergunta da

atividade “o que o personagem narrador pensa da instrução?”

266

sentido a partir dessa vivência (FREIRE, 1983; KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES,

2011). Fica claro neste excerto que o informante, de fato, expõe ações realizadas na sua

vida cotidiana que o fazem se identificar com um personagem e não com outro pela

desaprovação a algumas atitudes, embora concorde que também precisa estudar, assim

como o personagem rico.

Também no caso do leitor 16 acima, fica clara a relação estabelecida entre as

ações sociais dos leitores com os sentidos criados no texto. O leitor declara que sua

posição é igual a do ‘senhor’ porque precisa buscar estudo e ter ‘uma vida melhor’. Em

ambos os leitores acima, a vida cotidiana mistura-se com os sentidos construídos para o

texto e auxiliam o leitor a identificar-se com atitudes demonstradas pelos personagens.

Na turma B, a palavra ‘instrução’ também aparece nas primeiras possibilidades

de leitura dos informantes e com um sentido ainda mais genérico se comparada com a

turma A (cf. cap. 5.1, p. 233-234). O caso do aluno 19, abaixo, discutiu-se na seção

anterior que ele expõe suas primeiras possibilidades de leitura a partir da ‘instrução

sobre algum assunto’. Tal tema é limitado já na segunda atividade na qual o estudante

indica que há uma ‘lição preciosa’ e que o menino se sentiu ‘menosprezado’. Na

sequência, o leitor procura reafirmar tais sentidos na escolha da palavra-chave e já inicia

um processo de diálogo e negociação do texto tentando questionar-se sobre a existência

do destino – ‘existi [sic] o destino?’ - e afirmando que ‘não há lição preciosa’ e que

discorda do argumento do personagem narrador de que são necessários cinco anos sem

se divertir para se dedicar mais tempo ao estudo. O diálogo se intensifica ainda mais

quando o leitor procura demonstrar sentidos pessoais. Ao ser indagado sobre sua

identificação com algum dos personagens, ele declara que não está de acordo com

nenhum dos dois porque o ‘rico se acha esperto e o ‘pobre age como ignorante’:

B.1.4a.19 dois. Narrador personagem, o senhor e o menino; com

nenhum dos dois. O “rico” se acha esperto e o “pobre” age como

ignorante.

Verifica-se como o leitor procura estabelecer sentidos pessoais para o texto

quando afirma, na segunda atividade, que, para ele, ‘não há lição preciosa’, e, na quarta

atividade, que não age como o rico que ‘se acha esperto’ e nem como o pobre que ‘age

como ignorante’. Ou seja, assim como os leitores da turma A, ele se baseia em suas

ações no mundo, o que faz parte da sua cultura (cf. cap. 2.2.2), para afirmar que não se

identifica com os personagens. Isso acontece porque ações, atitudes, crenças, valores,

267

comportamentos se refletem na língua usada na comunidade (KRAMSCH, 1998) e

fazem com que os usuários construam sentidos baseados na realidade que os cerca

(FREIRE, 1983; MENDES, 2011). Na atividade seguinte, o informante declara que

considera a importância de ‘ter conhecimento’:

B.1.4b.19 ele pensa que o estudo deve estar acima de tudo, que

todos devem ter conhecimento.

Veja-se que o leitor constrói relações de sentido entre as interpretações

construídas para o texto (KOCH, 2009; KOCH, ELIAS, 2010) quando indica fatores

textuais – o rico menospreza o pobre, tenta dar uma lição preciosa mesmo sem conhecer

a lição – e fatores de sentido pessoal – não há lição preciosa alguma no texto e todos

devem ter conhecimento. Tais sentidos estão em relação constante nas interpretações do

leitor que procura indicar, desde o início, que se há ‘lição preciosa’, ela deve ser a busca

do conhecimento e não o preconceito.

Na atividade seguinte, ao mesmo tempo em que o estudante utiliza a ‘lição

preciosa’ encontrada como marca linguística no texto para confirmar sua possibilidade

de interpretação de que educação é, de fato importante, ele também indica essa

expressão como a criadora da opinião de que não se pode ensinar o que não se sabe:

B.1.4c.19 mostrar que nem tudo o que achamos que sabemos

realmente podemos transmitir aos outros. Lição preciosa porque

ele não sabia sobre essa lição.

Observe-se que o estudante iniciou a sua leitura com possibilidades bem amplas:

instrução sobre algum assunto. Na sequência, o leitor estabelece que o assunto é uma

‘lição preciosa’ e já inicia um diálogo de negociação com os sentidos do texto tentando

demonstrar que ele não concorda com tal lição e que ter educação não está em equilíbrio

com o fato de ‘menosprezar’ o pobre, de ‘se achar esperto’, de ‘agir como ignorante’, ou

de ‘estar acima de tudo’.

Pode-se dizer que o leitor encontra um sentido principal - o rico que menospreza

o pobre – e, ao interagir com o texto, indica sua desaprovação a tal atitude, procurando

marcas linguísticas que demonstrem a maneira como seus sentidos são reconstruídos e

remodelados a partir das relações culturais construídas social e individualmente

(KRAMSCH, 1993; 1998; MENDES, 2008, 2011). Ele indica que se deve buscar o

conhecimento sem menosprezar ninguém, pois ‘nem tudo o que achamos que sabemos

realmente podemos transmitir aos outros’. A palavra-chave que marca, para o leitor,

268

essa relação foi indicada como sendo ‘lição preciosa’. O leitor ancora nessa expressão

dois aspectos principais: a) a marcação linguística e textual de que o personagem rico

tenta passar uma lição que na verdade, não existe; e b) a relação pessoal com o texto,

isto é, não se deve menosprezar os outros ‘sem saber o que está falando’.

O aluno 14 da turma B começa a sua interação com o texto focalizando o tema

principal – ‘educação’ – e reconhecendo que um personagem se coloca como superior

ao outro. O leitor ainda vai ancorar os sentidos do texto em palavras que confirmam a

oposição entre os personagens – ‘esfarrapado’, ‘menino’, ‘olhar súplice’ – e reconhece

que ‘essa é uma realidade que a gente vive’ (cf. cap. 5.1, p. 236). Nas atividades de

discussão do texto, ele se coloca no lugar do personagem mais rico e indica que há, de

fato, uma tentativa de auxílio:

B.1.4a.14 sem duvidas com o senhor porque eu adoro dar lição

nos outros conselhos e tal, mas no fim eu as vezes nem sei sobre

o assunto eu gosto de ajudar os outros.

O leitor admite que o senhor deu um conselho cujo conteúdo nem o próprio

personagem dominava, e também admite que age exatamente dessa maneira com outras

pessoas com a ideia de ‘ajudar os outros’. Destaca-se a maneira como ele encontra, no

texto, um comportamento cultural que observa na sua própria atitude: dar lição ou

conselho aos outros. A cultura, como forma de comportamento (KRAMSCH, 1998;

ALMEIDA FILHO, 2011; MENDES, 2008; 2010; 2011 – cf. cap. 2.2.2), é revelada

pelo leitor quando ele destaca, na interpretação do texto, ações que realiza na sua vida

em sociedade. O leitor estabelece ligações entre os sentidos do texto – dar um conselho

ao menino pobre – e as ações que ele realiza na sua vida cotidiana – dar lição de moral

porque gosta ‘de ajudar os outros’. Mesmo que o leitor tenha reconhecido que o

personagem rico se acha superior ao pobre, ele também reconhece que há uma intenção

de auxílio e não de menosprezo e é com essa intenção que ele se identifica.

Na atividade seguinte, o leitor destaca a palavra ‘esfarrapado’ para confirmar sua

hipótese de que há um personagem, ‘o narrador’, que quer dar um conselho ao outro e

indica ainda a existência de uma relação entre ‘educação’ e ‘diferenças de

oportunidade’:

B.1.4b.14 esfarrapado, porque o narrador quis chamar nossa

atenção ele puxa muito pelo lado da educação do diploma das

diferenças e oportunidades

269

Durante toda a interação com o texto, o leitor mantém seu fio condutor da

interpretação no assunto ‘educação’, indicada ainda na segunda atividade, e destaca que

esse é o objetivo principal do texto. Aponta também que dentro deste assunto há

‘diferenças de oportunidade’ e ‘uma realidade que a gente vive’. Ainda, ao ser

questionado sobre qual palavra o auxilia a desvendar o objetivo do autor com o texto ele

aponta para a expressão ‘teorema de Pitágoras’ e afirma que ela é o elemento textual

que focaliza a diferença de classes e de oportunidades, pois mesmo com estudo, muitos

não sabem ‘o que isso quer dizer’:

B.1.4c.14 chamar a atenção para a educação. Teorema de

Pitágoras muita gente se confunde ou não sabe o que isso quer

dizer.

Veja-se como o leitor faz uma marcação nítida para os sentidos que vai

produzindo na interação com o texto: ele inicia sua interação afirmando que a

‘aprendizagem’ e a ‘lição de vida’ referem-se a um tema principal: a educação. Nestes

limites, ele reconhece que ‘há uma realidade que a gente vive’ onde alguns têm mais

oportunidades que outros, ou seja, há uma diferença de classes que se reflete no nível de

educação que se obtém. Admite também que há um comportamento cultural de que

aqueles que têm nível educacional acabam dando ‘lição de moral’ ou conselhos para os

que não o têm. O leitor ainda negocia sentidos quando afirma que o narrador chama a

atenção para a educação, para as ‘diferenças’ e para as ‘oportunidades’ e que isso não

está somente no texto, mas também se reflete na sociedade que ‘a gente vive’.

Pode-se dizer com isso que a competência sociointercultural (cf. cap. 2.2.2) do

leitor é ativada de forma preponderante, não só para construir sentidos textuais, mas

também para negociar sentidos pessoais: o leitor reconhece uma atitude particular de

‘dar lição de moral nos outros’, indica que esse é, de fato, um comportamento cultural e

expõe que ‘educação’ e ‘oportunidades’ são dois aspectos em relação constante, pois

alguns têm mais oportunidade à educação que outros e isso se reflete na sociedade ‘que

a gente vive’.

Mais uma vez, os sentidos construídos pelo leitor passam por um processo de

acomodação às ações conhecidas e vividas por eles na sociedade. É nesse processo em

que língua e cultura se encontram em um lugar comum e possibilitam a negociação e o

diálogo entre os aprendizes para a reconstrução, a recriação e a compreensão do mundo

270

à sua volta (MENDES, 2011; KRAMSCH, 1998). Por exemplo, no caso do leitor acima,

mesmo reconhecendo que ‘dar lição de moral’ sem saber muito sobre o assunto não

seria uma atitude aprovada, ele indica que faz exatamente isso, mas com a intenção de

‘ajudar os outros’. Note-se que esse não foi um sentido construído no texto. O

informante se reconhece na atitude do personagem e procura justificar as suas atitudes e

não as do personagem. Afirma, ainda, que há, de fato, uma relação constante na

sociedade entre ‘educação’ e ‘oportunidades’, o que constrói a crítica do texto de que o

rico não teve só maior nível educacional, mas teve também a oportunidade de se dedicar

ao estudo, embora ele saiba a mesma coisa que o personagem pobre. O leitor reconhece

que a diferença principal estaria na oportunidade diferenciada entre as classes sociais e

diz que ‘essa é uma realidade que a gente vive’.

Para o texto 2, discutiu-se na seção anterior que os estudantes, de forma geral,

começam sua interação com o texto ancorando-se em dois aspectos principais: a

genética e a existência de um debate. Nas atividades seguintes, os leitores limitam suas

interpretações a três assuntos expostos no texto para construir sentido: ‘transgênicos’,

‘clonagem’ e ‘células-tronco’. Observou-se também que o último desses temas aparece

hierarquizado na indicação dos alunos para ancorar sentidos textuais, justamente por ser

foco da argumentação mais forte do autor e da exposição de polêmicas maiores com

relação ao assunto. Isso é resultado da competência discursiva dos leitores que

reconhecem no gênero o teor altamente argumentativo e procuram destacar a maneira

como essa argumentação é construída (cf. cap. 4.1.2, p. 171-175; 180). Tais indicações

para as palavras-chave são também resultado de uma cadeia de relações estabelecidas

desde o início do texto que visam limitar os sentidos que vão aos poucos sendo

construídos em direção à focalização da sequência textual.

Conforme discutido na seção anterior, o leitor 2 da turma A indicou, a princípio,

que o texto fala sobre dúvidas com relação aos estudos genéticos (atividade 1),

reconheceu os polos de oposição de argumentação no texto e os destacou na sua leitura

(atividade 2) e, além disso, apontou como bases de construção de sentido os três tópicos

argumentados no texto (atividade 3). Ao realizar a atividade de discussão do texto, o

leitor destacou com clareza os argumentos do autor:

A.2.4a.2 o autor é em grande parte a favor porém discorda em

alguns pontos. Ele é totalmente a favor do uso de células-tronco

para a cura de doenças e até tenta justificar a morte dos

embriões no processo com o intuito de amenizar a polêmica e as

271

oposições. Concorda com os transgênicos até certo ponto e

torna-se contra o mesmo se este causar impacto ambiental. O

autor é totalmente contra a clonagem principalmente a clonagem

humana.

O informante mantém a sua possibilidade de interpretação de que há um trânsito

entre fatores benéficos e maléficos do uso da ciência genética. Ele expõe, com

especificidade, quais os destaques de acordo e desacordo expostos no texto guiado pelo

fio interpretativo que leva a encontrar e expor vantagens e desvantagens da ciência

genética. Destaca-se a maneira como o leitor ativa sua competência comunicativa (cf.

cap. 4.1, p. 151) para estabelecer diálogo com o texto e destacar sentidos ali

construídos: a) a competência discursiva é utilizada para destacar os temas de acordo e

desacordo expostos pelo autor, bem como os argumentos apontados por ele no texto; b)

a competência estratégica para reconhecer a oposição e resumi-las em poucas palavras a

partir da focalização das palavras-chave; c) a competência gramatical para construir o

sentido de oposição a partir da concatenação das ideias em oposição pelo uso de

conectivos como ‘porém’ e a expressão ‘até certo ponto’; e d) a competência

sociointercultural para expressar sua opinião baseado nas conclusões retiradas do texto.

Ao emitir sobre a sua opinião sobre a genética, o leitor conscientemente se mostra

favorável aos argumentos textuais afirmando que sua ‘visão é semelhante a do autor’:

A.2.4b.2 sou a favor da engenharia genética – minha visão é

semelhante a do autor pois apoio totalmente o uso das células-

tronco na minha visão a solução da maior parte dos problemas

humanos, sou a favor do uso dos transgênicos e contra a sua

continuidade se este causa impactos ambientais, porém apoio o

aprofundamento das pesquisas neste ramos. Assim como o autor

sou contra a clonagem humana não só por questões religiosas,

mas por acreditar ser algo desnecessário e desumano.

O guia de interpretação - encontrar benefícios e malefícios da ciência genética -

direciona também a forma como o leitor conduz suas opiniões para o texto. Durante

toda a atividade, o leitor expõe claramente, em primeira pessoa, quais são seus pontos

de acordo e desacordo: ‘apoio’ as células-tronco porque elas são ‘a solução’ para

‘problemas humanos, ‘sou a favor’ do uso de transgênicos e dos estudos para evitar

‘impactos ecológicos’, ‘sou contra’ a ‘clonagem humana’. Nesse último assunto, o leitor

impõe um argumento diferente do autor: é contra a clonagem ‘não só por questões

religiosas’. Ou seja, o leitor está de fato em diálogo com o texto expondo que concorda

272

que clonagem é algo ‘desnecessário’ conforme exposto no texto, mas ao mesmo tempo

ele relata um sentido pessoal de que também não concorda porque isso está em

desacordo com suas próprias crenças ‘religiosas’. A negociação e a acomodação de

sentidos aqui aparecem quando: i) o leitor destaca a posição favorável do autor do texto

de ser contra a clonagem; e ii) a reforça incluindo um argumento pessoal de que

questões religiosas seriam, para ele, um reforço nessa atitude contrária a tal prática.

Note-se também a forma como o leitor expõe seus argumentos pontualmente

indicando que, para ele, o assunto mais importante é ‘células-tronco’:

A.2.4c.2 células tronco – assim como o autor sou 100% a favor

de seu uso. Afinal os embriões que seriam descartados por

clinicas, passam a ter função importante na cura da humanidade.

Acredito que pode ser comparado à doação de órgãos, ao invés

de descartar como se fosse algo inútil, utilizar para o bem de

outras pessoas.

O leitor, mais uma vez, se aproxima da opinião exposta pelo autor do texto,

afirmando que assim como ele, é ‘100% a favor de seu uso’ pois embriões que seriam

de qualquer maneira descartados passam a ser utilizados como fontes de cura, para ‘o

bem de outras pessoas’. É importante considerar também, no extrato, a maneira como o

leitor busca novos argumentos para reforçar a sua posição afirmando que usar as

células-tronco para a cura pode ser ‘comparado à doação de órgãos’, pois em ambos os

casos se pode salvar vidas. Esse não é um sentido exposto no texto, mas é indicado pelo

leitor como fonte de reforço à sua aprovação para a utilização de células-tronco em

ciência genética.

É deveras interessante observar como o leitor é específico ao estabelecer diálogo

com o texto (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2010): ele inicia a interação da

leitura expondo que há vantagens e desvantagens no uso da ciência genética, destaca de

forma clara e contundente quais são esses aspectos, indica as marcas linguísticas que

confirmam tais possibilidades, e ainda reforça a sua opinião transitando entre os lados

da discussão argumentativa e adicionando novos argumentos ligados à sua realidade e

ponto de vista.

No caso do leitor 28 da turma A abaixo, ele reformula suas primeiras

interpretações de leitura que tratavam da ‘manipulação genética’ para o campo da

‘ética’ na ciência dos genes. As interpretações construídas por ele demonstraram que o

informante procurou focalizar os tópicos discutidos com relação às ações dos cientistas

273

ou da sociedade aprovadas ou não, o que se encaixava no fio interpretativo da palavra

‘ética’. Ao realizar as atividades de discussão e responder sobre a atitude do autor do

texto ele declara:

A.2.4a.28 depende, ele é parte contra e parte a favor é contra a

clonagem e a favor dos transgênicos, com tanto que não

comprometam a produção e totalmente a favor das células-

tronco.

Verifica-se que o leitor procura deixar claro para si mesmo as posições do autor

encontradas no texto. Embora a pergunta esteja relacionada à posição do autor com

relação à engenharia genética, o leitor estabelece que, no texto, há argumentos

favoráveis e desfavoráveis a diferentes práticas dentro da engenharia genética. As

primeiras possibilidades de leitura do informante relataram que o texto falaria sobre

‘manipulação genética’, ‘DNA’ ou ‘mudança genética’. De acordo com os dados das

atividades 2 e 3, o leitor precisou reformular seu pensamento para construir uma

interpretação voltada ao comportamento ético na genética e destacar os temas discutidos

no texto. O fato do leitor explicar os pontos em que o autor é a favor e contra

demonstram que para ele não faria mais sentido falar da ciência genética como um todo,

pois há pontos em que se pode concordar ou discordar, como acontece no texto. Ou

seja, ele observa que assuntos genéricos da ciência genética não respondem aos temas

expostos e para que se destaque a opinião do autor é preciso demonstrar as construções

argumentativas e seus resultados no texto.

Ao ser indagado sobre a sua própria opinião com relação à ciência genética, o

leitor retorna a um ponto mais genérico deste campo de estudo:

A.2.4b.28 interessante é a evolução da tecnologia humana

atravéz[sic] dos tempos.

O estudante não expõe sua opinião particular sobre nenhum dos pontos

discutidos no texto, mas sim à ‘tecnologia’ da ciência e à sua evolução. O leitor

reconhece que a ciência genética é importante para a sociedade, e que ela evolui com o

tempo, podendo trazer benefícios tais como os apontados pelo autor do texto. Na

atividade seguinte, ao ser indagado sobre o ponto que lhe chama mais atenção, o leitor

responde:

274

A.2.4c.28 células tronco, sou a favor pois se elas se transformam

em qualquer célula especializada do corpo, as técnicas de uso

devem ser continuadas.

O leitor destaca justamente o tema mais polêmico e utiliza o primeiro argumento

exposto no texto que justifica a sua utilização na genética. Ele ainda dialoga com o

texto, informando que as ‘técnicas devem ser continuadas’, pois tais células são

importantes para a ‘evolução da tecnologia humana’. Vejam-se como as interpretações

do leitor se encaixam entre questões textuais e sentidos construídos para o texto:

a) A reformulação das primeiras possibilidades: o texto não fala de

manipulação genética conforme hipótese estabelecida na pré-leitura, e sim

de ética na ciência genética dentro dos assuntos transgênicos, clonagem e

células-tronco;

b) O destaque das informações emitidas: o leitor não destaca uma opinião geral

do autor sobre a ‘engenharia genética’, mas focaliza os resultados expostos

pelo autor de ser favorável ou contra algumas práticas por questões éticas;

c) A negociação do leitor adicionando outros conhecimentos e opiniões: o

leitor declara que a engenharia genética é interessante, pois ‘evolui

atravéz[sic] dos tempos’ e é necessário que, a célula-tronco, por sua

importância de se transformar em qualquer célula do corpo, demanda que

outras técnicas sejam ‘continuadas’.

Esses encaixes acontecem porque os itens lexicais selecionados pelo autor para

construir um texto motivam tanto o conhecimento linguístico presente neles quanto

ativações sociais e culturais presentes na mente do falante num processo dialógico

(KLEIMAN, 2002; BAKHTIN, 2009). Ao negociar sentidos para o texto, o leitor expõe

alguns desses seus conhecimentos como se estivessem adicionados aos conhecimentos

expostos pelo autor numa rede de relações que constrói sentido(s).

No caso do primeiro informante selecionado para a turma B, o leitor 12, abaixo,

indicou nas atividades iniciais a presença de ‘prós e contra’ e de ‘várias opiniões’ a

respeito da ciência genética. Nas atividades seguintes, assim como os leitores anteriores,

limita o assunto ‘genética’ aos três temas expostos no texto e declara que estes transitam

entre ‘benefícios’ e ‘riscos’ em suas aplicações (cf. cap. 5.1, p. 245-246). Ao ser

indagado a destacar a posição do autor, o informante generaliza a opinião do autor para

uma aprovação, mas aponta para os limites de tal posição favorável:

275

B.2.4a.12 o autor concorda com o uso da genética para evolução

e melhoria de produtos e condições de vida, desde que estas não

apresentem riscos a sociedade ele acredita que o uso de células-

tronco por exemplo podem sim e devem ser utilizadas pois

podemos com elas criar um fim para inúmeras doenças.

O leitor indica que há, de forma geral, uma aprovação por parte do autor, mas

isto está limitado à apresentação de benefícios para a sociedade e não de riscos, e cita

como exemplo a questão da grande vantagem do uso da célula-tronco por ‘criar um fim

para inúmeras doenças’. Ao dialogar com o autor via texto (KLEIMAN, 2002; SOLÉ,

1998; KOCH, 2009), o leitor destaca a opinião do autor – ‘o autor concorda com o uso

da genética’ - e indica em primeira pessoa do plural que também é favorável à utilização

de células-tronco – ‘podemos com elas criar um fim para doenças’. O leitor utiliza sua

competência discursiva para destacar a argumentação do texto e sua competência

sociointercultural para se colocar juntamente ao autor na defesa da utilização do

desenvolvimento da célula-tronco. Ainda, ele traz à tona uma série de conhecimentos de

mundo e negocia sentidos particulares afirmando que tem ‘a mesma opinião do autor’ e

acredita que se for usada para ‘melhorias’ e ‘curas de doença’ a evolução é benéfica:

B.2.4b.12 tenho a mesma opinião que o autor acredito que se a

engenharia genética for usada para fins de pesquisar e criações

de melhorias, curas de doença e et. estes deve sim se aprofundar

e promover uma evolução genética.

Note-se que o primeiro fio condutor se mantém nessa atividade, pois o leitor

declara abertamente seu acordo com a posição do autor e confirma também sua própria

posição favorável uma vez que geram ‘melhorias’ e ‘curas’ mas que isso tudo deve ser

feito mediante a pesquisa para ‘promover a evolução genética’ a fim de evitar os

‘riscos’. Na atividade seguinte, ele expõe também a sua opinião particular e declara o

quanto a ciência genética pode ser benéfica:

B.2.4c.12 indubitavelmente foi as células tronco pois com elas

podemos produzir, recriar, modificar todos os tecidos do corpo

humano, imagine poder curar doenças atualmente sem cura,

corrigir deficiências poderia evitar uma população livre de

doenças e males, seria incrível

Quando o leitor é indagado sobre o assunto que lhe chama mais atenção, ele

indica que ‘indubitavelmente’ é ‘células-tronco’ e aponta para a maneira como se

276

impressiona com as possibilidades que podem ser geradas a partir da pesquisa: curar

doenças atualmente incuráveis, corrigir deficiências, ter uma população livre de doenças

e males. O leitor demonstra que está, de fato, em diálogo com o texto, porque para ele

‘seria incrível’ se tudo isso realmente fosse possibilitado pela pesquisa em ciência

genética.

Destaca-se a maneira como o leitor realiza aqui duas tarefas estratégicas: a)

confirma suas possibilidades de leitura de encontrar prós e contras para a pesquisa em

ciência genética e evitar seus riscos; e b) expõe sentidos criados e percebidos por si

mesmo na relação com o texto – ‘seria incrível’ curar doenças, corrigir deficiências e ter

uma população livre de males.

O leitor 07 também da turma B aponta para a construção de uma cadeia de

sentidos liderada pela ideia de haver um debate em questões genéticas (atividade 1)

especificamente em transgênicos, clonagem (atividade 2) e células-tronco (atividade 3),

os quais apresentam aspectos positivos e negativos. O fato interessante a respeito desse

leitor é que ele declarou já na segunda atividade que acha que a clonagem é ‘uma coisa

sem precisão’ (cf. cap. 5.1 p. 247). Ou seja, desde a primeira leitura efetiva do texto, o

leitor já demonstra que está, de fato, dialogando com o texto e construindo sua opinião.

Na primeira pergunta de discussão do texto, o informante destaca que, no debate, o

autor é a favor da ciência genética, mas possui restrições quanto à influência na vida dos

seres humanos:

B.2.4a.7 ele é a favor desde que isso não influencia os seres

humano.

Quando se posiciona com relação ao texto, ele mantém o guia interpretativo de

haver pontos favoráveis e contrários evidenciando quais são os aspectos de acordo por

parte do autor – ‘ele é a favor’. Embora o autor tenha exposto posições diferentes em

cada um dos tópicos, o leitor generaliza a posição do autor para favorável à prática da

engenharia genética, mas influenciado pelas informações textuais ele limita essa posição

a não arriscar a vida de ‘seres humanos’.

Na atividade seguinte, embora declare que, na sua opinião, a ciência genética é

algo bom – ‘eu gosto’ – ele indica que há limites no uso da genética pela interferência

na cadeia alimentar, mas há também a grande vantagem de ‘usufruir da tecnologia’:

277

B.2.4b.7 eu gosto, porém tem seus prós e contras, se pudermos

não usar tanto a genética melhor. Prós é poder usufruir da

tecnologia e contra é interferir a cadeia alimentar.

Há uma adição de aspectos ao que o leitor observa no texto: ele se diz favorável,

desde que tais aspectos sejam considerados em seus lados positivos e negativos. Ou

seja, ele segue a mesma linha argumentativa do autor do texto: ser favorável à ciência

genética e avaliar riscos e benefícios de seu desenvolvimento.

Ao relacionar sentidos textuais e pessoais, na sequência, o informante ainda

busca expor sua própria realidade na negociação de sentidos quando declara que não

encontra mais ‘frutas saborosas’ no supermercado e que ‘nada é como antigamente’.

Para o leitor, isso é uma consequência dos estudos genéticos aplicados em alimentos

transgênicos:

B.2.4c.7 transgênicos, hoje em dia é difícil entrar em

supermercado e encontrar frutas saborosas, a maioria tem

transgênicos. Nada é como antigamente. Por um lado é bom

porque assim estamos evoluindo grandes estudos, novas

tecnologia. Porem a cada ano que passa as coisas mudam mais.

O informante está consciente dos sentidos criados pelo texto de que há

vantagens e desvantagens no uso da ciência genética e reflete sobre quais serão as

consequências do avanço dos estudos, da nova tecnologia porque a ‘cada ano que passa

as coisas mudam mais’. Em outros termos, o leitor identifica, de fato, os sentidos

criados pelo texto sobre benefícios e malefícios da ciência genética e procura dialogar

refletindo sobre as novas possibilidades que tal ciência poderá agora trazer na vida dele.

Ele reconhece os aspectos benéficos que pode viver em sua realidade, afirmando que

‘estamos evoluindo’ mas também reconhece os aspectos negativos refletidos na sua vida

cotidiana, pois não encontra ‘mais frutas saborosas’ no supermercado.

Note-se a forma como comportamentos cotidianos se fazem presentes no diálogo

com o texto: o leitor reclama do fato da produção de transgênicos influenciar em sua

vida, pois as frutas que ele costuma consumir não são mais tão ‘saborosas’. Ele

reconhece, na manifestação linguística do texto, comportamentos culturais que são

ativados por meio de um armazenamento de conhecimentos em que língua e cultura

sempre se encontram. É uma rede de sentidos socioculturais que extrapolam os limites

do linguístico e interagem de forma constante em contextos específicos e que

278

possibilitam o leitor a questionar, refletir, imaginar as possibilidades para um

determinado texto (KRAMSCH, 1993; 1998 - cf. cap. 2.2.2).

Para o texto 3, discutiu-se na seção anterior que os leitores formaram uma cadeia

de sentidos nas quais procuraram encaixar sentidos limitados a: sete – fase/face – vida –

abandono – sofrimento. Outro aspecto importante da análise foi o fato de que os leitores

utilizaram sua carga de conhecimentos de mundo ainda de forma mais contundente do

que nos textos anteriores, pois, de fato, o gênero poema fornece ao leitor uma

possibilidade de criação maior (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1989). Ao focalizarem a

palavra ‘Deus’ para interagir com o texto na produção de sentidos, eles recorreram a

cargas culturais ativadas pela palavra (cf. cap. 4.1.3, p. 193-194; 196) e focalizaram os

fios semânticos de abandono e tristeza na vida (cf. cap. 5.1, p. 251-252).

O leitor 21 da turma A declara, nas primeiras expectativas, a possibilidade de

falar sobre sete faces diferentes. Na segunda atividade, ele limita tais faces a fatores de

personalidade, questionamento e sentimentos, sendo que na terceira atividade, indica

palavras-chave que justifiquem esse encaixe (cf. cap. 5.1, p. 255-256).

Nas duas primeiras atividades de discussão do texto, o leitor expõe que o tema

principal está, de fato, relacionado às sete faces da vida do autor e que elas se diluem

em sete estrofes com características da personalidade do autor:

A.3.4a.21 as sete faces da personalidade do autor.

A.3.4b.21 são sete estrofes e em cada uma há uma característica

da personalidade do autor

O leitor destaca como tema principal sete faces da personalidade do autor, e

ainda indica que em cada estrofe há uma característica diferente dessa personalidade. O

leitor procurou selecionar essas características ao escolher as palavras-chave (cf. cap.

5.1, p. 254): ‘deslocado’, ‘introspectivo’, ‘coração vasto’, ‘cheio de desejos’. Nas

atividades de discussão do texto, o leitor mantém o mesmo guia interpretativo de que o

tema principal é ‘as sete faces’ e que o título aponta, para ele, que é possível encontrar

em cada uma dessas estrofes uma face diferente.

Ao ser indagado sobre o objetivo do autor, o leitor afirma que o texto foi escrito

para externar sentimentos, sem a preocupação de descrever ‘uma história linear’:

A.3.4c.21 na minha opinião, este texto não foi escrito com a

finalidade de que outras pessoas leiam, poetas são

279

introspectivos, nem sempre escrevem para os outros, na minha

opinião ele escreveu para tentar explicar ou expor sua

personalidade, para passar ao papel sua angústia, sua essência, e

não para construir uma história linear.

Verifica-se, também, que o leitor procura demonstrar os sentidos que constrói

para o texto afirmando que o poeta se faz perguntas, ‘é introspectivo’ e isso justifica o

fato de não escrever uma ‘história linear’ já que ele só quer ‘expor sua personalidade’.

Outro detalhe importante é a maneira como o leitor interage com o texto a partir das

características do gênero, tal como a emotividade. O informante indica que poetas ‘nem

sempre escrevem para os outros’ e que, nesse caso, procura passar ‘sua angústia’, ‘sua

essência’. Ou seja, o leitor constrói fios interpretativos bastante nítidos neste extrato: há

sete faces da vida do autor, expostas em características diferentes da sua personalidade,

que não refletem uma ‘história linear’, mas demonstram introspecção, perguntas,

sentimentos.

É interessante também observar nesse excerto, que o leitor declara em primeira

pessoa – ‘na minha opinião’ – que o autor fala sobre sua ‘personalidade’, sua ‘angústia’,

sua ‘essência’. Fica claro aqui o estabelecimento do diálogo: o autor expõe sete faces da

sua vida e, para o leitor, tais faces relacionam-se a uma angústia e a uma essência

própria do personagem.

Outro fator importante nesse exemplo é que o leitor demonstra que está

consciente da influência do gênero para a construção de sentidos: ‘poetas são

introspectivos’ e não escrevem necessariamente com a ‘intenção de que outras pessoas

leiam’, pois querem apenas demonstrar sentimentos. O leitor utiliza sua carga de

conhecimentos textuais (ECO, 1979; KLEIMAN, 2002; DIJK, 2002) e impõe para o

texto uma possibilidade de interpretação que pode diferenciar da ‘sua opinião’, pois

reconhece que o gênero permite essa esse jogo de criação literária (ANTUNES, 2012) a

partir dos conhecimentos de mundo de leitores diferentes.

O informante 3 da turma A, a seguir, também construiu possibilidades iniciais de

interpretação voltadas para as sete fases de vida do personagem e na terceira atividade,

afirmou que utiliza as palavras-chave para marcar algumas fases, talvez as mais

aparentes no texto (a 4ª e 5ª fases que marcam a fase adulta de ser um ‘homem sério’ e o

‘abandono’ conforme apresentado na seção 5.1, p. 256). Ele ainda marca os aspectos de

sofrimento passados pelo personagem e os liga a uma das fases da vida. Na discussão

do texto, nas duas primeiras perguntas o leitor afirma que o tema principal do texto é a

280

vida do autor, caracterizada em ‘faces’, e que há um acontecimento ‘principal’ para

cada uma delas:

A.3.4a.3 a sua vida dele [sic]

A.3.4b.3 as 7 faces são da vida do autor, caracterizando cada

uma pelo seu principal acontecimento.

O leitor reafirma que o texto trata das faces de vida e procurou, na sua

interpretação, compreender que há um ‘principal acontecimento’ na vida do personagem

o qual seria a ideia de ‘abandono’ ou de ‘passar por uma dificuldade’ conforme exposto

na atividade de seleção das palavras-chave (cf. cap. 5.1, p. 256). Ao ser solicitado a

reconhecer o objetivo do autor e a incluir comentários pessoais a respeito do texto, o

leitor declara:

A.3.4c.3 o objetivo foi de dividir a vida dele em 7 faces e contar

cada uma delas, porem acredito que ele poderia ter sido mais

esclarecedor porque alguns versos não tem como entender do

que ele fala.

Guiado por suas possibilidades de leitura, o leitor declara a sua interpretação de

que o autor relata cada uma das sete faces da vida dele. Ele critica a maneira como isso

foi realizado e afirma que ‘não tem como entender o que ele fala’. Note-se que embora

o leitor declare que o poema poderia estar mais claro, ele constrói um sentido baseado

nas palavras e relações feitas durante a leitura. A declaração do estudante corrobora as

declarações da maioria dos alunos durante as atividades de que o poema foi o texto mais

difícil de compreender.

No entanto, o que se observou, nos dados, é que o leitor movimentou uma gama

maior de conhecimentos de mundo para apoiar suas interpretações o que não acontece

de forma tão frequente e nítida nos textos anteriores. De fato, o gênero do texto e a

construção em sequência fornecem ao leitor um conforto maior na hierarquização de

sentidos. No caso do poema, a recorrência a conhecimentos de mundo leva o leitor a

fazer suposições a partir da sua realidade o que o deixa mais desconfortável porque

segundo ele, é mais difícil de compreender ‘do que ele fala’.

É fundamental o fato da movimentação de conhecimentos de mundo para a

compreensão dos leitores porque a palavra está em um território comum entre o locutor

e o interlocutor (BAKHTIN, 2009), fazendo com que os sujeitos da interação dela

281

tomem posse dentro de um contexto social. Ou seja, a palavra é influenciada pelas

relações interacionais entre indivíduos. Pode-se dizer, assim, que a interpretação de

textos seria uma forma de construção onde a palavra (o texto) torna-se meio de

expressão e de criação dos interlocutores. O sujeito leitor torna-se o corresponsável pela

concretização da palavra enquanto ato enunciativo, pois é na interação dela com os

infinitos conhecimentos que significados são construídos (BAKHTIN, 2009). No caso

do poema, os leitores constroem possibilidades justamente na interação não só com o

texto, mas com realidades e conexões culturais possibilitadas pela relação entre palavras

e realidade concreta. Isso pode acontecer também com outros gêneros textuais, mas, de

acordo com os dados, no poema esse aspecto fica mais nítido na interpretação dos

leitores.

O leitor seguinte também declara a mesma dificuldade na leitura por estabelecer

possibilidades baseadas em conhecimento de mundo, e não exatamente em aspectos

textuais expostos. Na primeira e segunda atividades, o leitor afirma que o tema principal

é a vida de Carlos e que ele acha que o autor ‘quer contar 7 passagens da sua vida’:

B.3.4a.13 sua vida

B.3.4b.13 acho que ele quer contar 7 passagens da sua vida

Deve-se lembrar que o leitor 13 não estabeleceu nas suas primeiras hipóteses de

leitura, possibilidades relacionadas a sete fases de vida, mas procurou encontrar

elementos no texto que confirmassem as ‘várias personalidades’. (cf. cap. 5.1, p. 257).

Ao chegar à atividade de discussão do texto, o leitor considera que o texto trata

de sete passagens da vida de Carlos, nas quais se poderiam encaixar os aspectos de

personalidade já construídos na atividade anterior. O leitor utiliza a expressão ‘acho’,

que expõe a sua incerteza quanto ao assunto, o que também aconteceu na primeira

leitura do texto. Isso indica que o leitor está consciente que usa conhecimentos que não

estão no texto para estabelecer sentido. Na última atividade para expressar a sua opinião

o leitor afirma:

B.3.4c.13 ele quer contar sobre sua vida, mas ele deixou o texto

devasado[sic] difícil de entender logo na primeira leitura.

Veja-se que o leitor mais uma vez confirma suas possibilidades iniciais de que o

texto fala sobre a vida do autor e, novamente, expõe sua incerteza na interpretação

282

afirmando que é ‘difícil entender logo na primeira leitura’. Note-se que no caso dos

textos anteriores, os leitores estabeleceram sentidos baseados em marcas específicas do

texto, tais como a sequência da narrativa e a marcação dos personagens e de suas

diferenças no texto 1 e a divisão dos temas e pontos argumentados no texto 2 (cf. cap.

5.1, p. 236-237; 239-240). Eles utilizam as palavras como uma base de confiança para

afirmar o que está no texto e quais as intenções e adicionam posições próprias ou novos

argumentos às ideias expostas no texto. Isso não acontece com o texto 3 o que não quer

dizer que os informantes não utilizem o processo de negociação e acomodação de

sentidos.

Na verdade, no texto 3, esse processo é ainda mais intenso, pois o leitor recorre

com mais facilidade a conhecimentos de mundo e ativa sua competência

sociointercultural para construir sua interpretação (cf. cap. 4.2.3, p. 199-201). Verificou-

se que o processo de diálogo acontece desde o momento do início da leitura fazendo

com que o leitor realize inferências a partir daquilo que é possível de acontecer na sua

comunidade e na sua cultura (KOCH, 2009; KOCH; ELIAS, 2010). É na relação

estabelecida entre a língua, o texto e o contexto do leitor que ele procura as bases de

construção das suas interpretações para este texto ou para qualquer texto a que seja

exposto.

O leitor 10 da turma B construiu um primeiro fio interpretativo a partir do qual o

personagem tem um determinado caráter, que inclui o alcoolismo e o pensamento

constante em mulheres. Aos poucos, a partir de características percebidas no texto, o

leitor confirma essas expectativas e justifica as atitudes de ‘caráter’ do personagem por

ter sido ‘abandonado’ por Deus (cf. cap. 5.1, p. 258-259). Na atividade de focalização

do tema principal do texto, o leitor declara:

B.3.4a.10 uma pessoa sem expectativa de vida, vive em função

de festas e mulheres e modismos e vive sem rumo

O estudante mantém o guia de suas interpretações voltado para o personagem

que ‘vive sem rumo’, ‘sem expectativa de vida’ e que ‘vive em função de festas e

mulheres’. Ao realizar a atividade de discussão do texto, o leitor confirma suas

expectativas primárias e as destaca tentando colocá-las como uma base de confiança de

suas interpretações. Na atividade seguinte, sobre a relação estabelecida entre o texto e o

poema, o leitor volta à ideia das fases da vida do personagem divididas em estrofes:

283

B.3.4b.10 ele relata sete fazes[sic] da sua vida em 7 estrofes do

texto

O que acontece no caso do poema é que o leitor já reconhece que utilizou

diversos tipos de conhecimento para construir sentido o que pode ser considerado uma

negociação de sentidos. Isso porque os conhecimentos sociais, culturais e individuais

dos estudantes apareceram fortemente na construção de sentidos durante a atividade de

indicação das palavras-chave (cf. cap. 4.2.3, p. 193-198), o que significa que o leitor

reconhece a movimentação maior de possibilidades. Na última pergunta ele utiliza

novamente suas inferências para explicar o objetivo do autor:

B.3.4c.10 passa o ar de melancolia de uma pessoa sem

espectativa[sic] de vida

O leitor claramente costura os fios das atividades anteriores e infere que o autor

quer passar um ‘ar de melancolia’ porque é uma pessoa ‘sem espectativa[sic] de vida’.

Note-se a maneira como os fios da interpretação são tecidos: o texto fala de uma pessoa

com um caráter de alcoólatra e que só pensa em mulheres, é abandonado por Deus, está

sem rumo e por isso resolve escrever para expressar toda a sua melancolia.

No poema, os leitores não demonstraram tão nitidamente sentidos particulares.

Isso porque o diálogo com o texto já se mostrou intenso na construção de sentidos a

partir das inferências realizadas. Os leitores demonstram que esse diálogo, de fato,

existe, mas não expõem suas percepções particulares a respeito do texto porque o texto

é ‘difícil de entender’.

O fato dos alunos não indicarem tais dificuldades nos textos anteriores pode

residir no fato de que eles indicam que há uma base maior de confirmação das

possibilidades de leitura. Nos textos anteriores ficou mais claro que questões relativas à

competência discursiva, tais como a sequência textual, a divisão dos personagens, a

construção de aspectos característicos do gênero são frequentemente utilizadas pelos

leitores para colocar suas interpretações em bases mais fixas. No caso do texto 3, os

informantes estão conscientes que essas bases textuais são mais fluidas e necessitam de

suas inferências pessoais, as quais são possibilitadas pelo compartilhamento de

conhecimentos prévios e da negociação de sentidos o que os leva a (re)construir a

interpretação textual (KOCH, 2009; KOCH; TRAVAGLIA, 2011; KLEIMAN, 2002;

2004)

284

Os leitores indicam suas dificuldades baseados no fato de que, para os textos

anteriores, conseguiram utilizar uma relação mais forte entre fatores discursivos e

sociointerculturais o que os deixou mais confortáveis no estabelecimento de relações

interpretativas, o que não aconteceu com o texto 3. Por terem que basear suas

interpretações em conhecimentos de mundo (cf. cap. 1.4.4), os quais não são

nitidamente identificáveis linguisticamente no texto, os leitores relatam oralmente

durante a realização das atividades que sentem dificuldade na criação dos laços

interpretativos.

Em suma, o que se observou com relação à negociação de sentidos foi que os

leitores utilizaram características importantes da sua competência comunicativa para

realizar tal tarefa:

a) Para o texto 01, os leitores procuraram realizar um diálogo de

posicionamento pessoal quanto ao assunto educação ou diferença de classes,

afirmando a necessidade que sentem de buscar alcançar níveis mais altos de

escolarização. Eles ainda destacam fatores sociais informando que não há a

necessidade de menosprezar os outros ou de apresentar atitudes de

preconceito na busca por um conhecimento maior. Ou seja, eles realizam

duas atividades concomitantemente: i) destacam os sentidos textuais de

construção da crítica; e ii) expõem que também sentem a necessidade de

buscar conhecimento, no entanto, sem as mesmas atitudes culturais do

personagem do texto;

b) Para o texto 02, os leitores ancoram sentidos que destacam a oposição dos

argumentos do texto em relação aos temas propostos. Ao negociarem

sentidos, os leitores demonstram seu diálogo intenso com o texto

adicionando a esses argumentos outros fatores, agora pessoais, que reforçam

tanto a construção argumentativa do autor do texto, quanto a sua posição a

favor dele. Eles aprovam ou reprovam os argumentos baseados em outros

fatores que corroboram ou contrariam o que está exposto pelo autor;

c) Para o texto 03, os estudantes destacam as conexões sociointerculturais

realizadas para a produção de inferências e estabelecimento de coerência

para o texto. Eles reconhecem que sua ancoragem de sentidos está em

inferências estabelecidas e criadas por eles mesmos para o texto e

demonstram a maneira pela qual alguns pontos verificados no texto, podem,

suportar essa relação a conhecimentos não expostos.

285

O que se observou, portanto, nesta seção, foi o fato de que os sentidos são

negociados pelos leitores a partir de um diálogo entre os sentidos fixados e

estabelecidos na atividade de leitura e de seleção das palavras-chave e os sentidos

possíveis de serem adicionados, reconsiderados ou remodelados a partir de suas

próprias experiências de vida. O que acontece é que as palavras-chave podem funcionar

como essa estratégia dupla: confirmar sentidos encontrados no texto e remodelar ou

adicionar novas possibilidades de criação a partir deles.

Assim, pode-se dizer que a palavra-chave é, de fato, uma ferramenta estratégica

importante para o trabalho com interpretação textual, pois, a partir dela, vários

movimentos podem ser estabelecidos. A figura 3, abaixo auxilia a compreender as

múltiplas funções da palavra-chave:

FIGURA 3 – A função da palavra-chave

GUIA

INTERPRETATIVO COMPETÊNCIA

COMUNICATIVA

PALAVRA-

CHAVE

GRAMATICAL SOCIOINTER

CULTURAL

DISCURSIVA

- identificação das

classes de palavras

- relação das

classes de palavras

inter texto

- reconsideração da

semântica da

palavra inter texto

- identificar

elementos coesivos

relacionando-os à

coerência textual

- sequenciação

textual

- identificação da

relação tema-rema

- reconhecimento

de tipo e genero

textual

- salientar pistas

linguísticas na

construção da

coerência

- destacar tópicos

discursivos

- ativar

conhecimentos de

mundo do leitor

- fazer conexões

com a realidade

cultural e social

- contextualização

do texto a partir

da realidade

vivida pelo leitor

- estabelecer laços

de criatividade ou

emotividade

- Confirmar ou

reconstruir

possibilidades

iniciais de leitura

- identificar e

ancorar sentidos

- reconhecer ideias

em oposição

(próprias ou do

autor)

- NEGOCIAR

SENTIDOS:

- adicionar novas

informações ao

texto;

- expor ideias

particulares

relacionadas à sua

cultura

- discordar do

autor

- construir novas

possibilidades

286

O primeiro movimento diz respeito à competência comunicativa, pois, como se

viu no cap. 4, a palavra-chave pode auxiliar na canalização de sentidos de diferentes

dimensões. O fato é que na interpretação dos alunos a palavra-chave não carrega

simplesmente o seu significado literal, mas auxilia o leitor a canalizar vários tipos de

conhecimento a partir das conexões que realiza para entender o texto. O segundo diz

respeito ao processo de construção e negociação de sentidos, pois conforme se discutiu

neste capítulo, a palavra-chave auxiliou os alunos a fixarem sentidos pré-construídos

nas primeiras leituras confirmando ou reformulando suas possibilidades interpretativas e

já impondo ao texto novas interpretações.

Pela figura 3, a palavra-chave funciona como uma ativadora de dois lados no

processo de interpretação: 1) o desenvolvimento a competência comunicativa; e 2) o

estabelecimento de guias que direcionam a interpretação dos leitores. Ambos os

aspectos não aparecem em isolamento e nem se anulam. Ao contrário, eles aparecem em

círculos que indicam a sua movimentação constante e que se encontram em alguns

pontos em comum. Isso explica o fato de que algumas repetições foram necessárias na

análise de dados tanto do cap. 4, quanto do cap. 5: as estratégias de leitura dos

estudantes se encontram durante o momento de construção de uma representação para o

texto.

Outro detalhe importante na figura acima é que cada um dos lados da figura

ativa novas subestratégias que também atuam de forma concomitante. De um lado, ao

desenvolver a competência comunicativa, os leitores estimulam as dimensões a ela

relacionadas e movimentam uma série de conhecimentos prévios que os auxiliam a

organizar as informações do texto para construir sentido global. No caso da

competência gramatical, o que foi observado é que ela auxilia o leitor, principalmente a

identificar classes de palavras, relacionar as palavras sintaticamente e semanticamente

no texto, reconsiderar sentidos da palavra a partir das relações textuais, identificar

elementos coesivos que auxiliam no estabelecimento da coerência. Para a competência

discursiva, os fatores principais ativados pelos estudantes foram o estabelecimento de

uma sequência de eventos para o texto, a identificação da relação tema-rema, o

reconhecimento de tipo e gênero textual, a consideração de pistas linguísticas que levam

à construção de coerência, e o destaque de tópicos discursivos. Quando a competência

sociointercultural é desenvolvida, os leitores são levados a ativar conhecimentos de

mundo, fazer conexões com a sua realidade cultural e social, contextualizar o texto a

partir da sua própria realidade, estabelecer laços de criatividade e emotividade.

287

Deve ser lembrado, no entanto, que esses foram apenas alguns dos aspectos

observados nos dados para esta pesquisa, e que é possível que outros elementos estejam

sendo ativados e utilizados na construção da interpretação a partir da competência

comunicativa. A questão principal aqui é que a palavra-chave, de fato, aparece como um

ponto principal de apoio em meio ao processo de construção e criação de sentidos.

Do outro lado da figura, de forma simultânea, outro fio aparece direcionando as

interpretações dos leitores: as possibilidades construídas em um momento de pré-leitura

e reconstruídas durante a interação com o texto. No cap. 5, os dados levaram à

confirmação do fato de que é importante que os leitores realizem ações estratégicas para

a construção de hipóteses para suas leituras, bem como para o reconhecimento de

marcas linguísticas que possam confirmar ou levá-los à reconstrução de tais hipóteses.

A palavra-chave aparece como uma importante ativadora dessa estratégia auxiliando o

leitor a confirmar ou reconstruir as possibilidades de interpretação para o texto,

identificar e ancorar sentidos, reconhecer ideias em oposição, tanto dele mesmo, quanto

as do autor.

Nesse sentido, o processo de diálogo para a construção da interpretação textual é

intenso e o leitor também inicia um processo de negociação de sentidos que é guiado

pela própria palavra-chave e pelos conhecimentos ativados pela sua identificação. Nesse

processo os leitores adicionam novas informações ao texto, expõem ideias particulares

relacionadas à sua cultura, discordam ou concordam com o autor, constroem novas

possibilidades de leituras.

Pode-se dizer com isso que a palavra-chave provoca um intenso processo

dialógico do leitor com vários elementos: as ideias expostas pelo autor, o texto, os

conhecimentos que ele evoca, os sentidos construídos por vários leitores participantes

de uma aula de compreensão, por exemplo. É esse processo dialógico provocado pela

palavra-chave que pode levar os leitores a utilizarem suas estratégias de leitura de forma

mais eficaz, não somente para encontrar os sentidos intertextuais, mas também para

relacioná-los a outras possibilidades de discussão a partir da sua própria cultura.

Reitera-se o fato de que a discussão realizada neste capítulo está distante de ser

uma discussão única para os fatos. O que se observou é que os leitores, de fato, fizeram

relações de construção de sentidos que possibilitaram a eles o diálogo com o texto e a

(re)formulação de seus pensamentos e compreensão. Pelos dados, os informantes

expuseram sentidos particulares de diversas maneiras, o que significa que cada um dos

excertos incluídos traz um ponto de vista diferente, e provavelmente, ao analisar novos

288

excertos, outras possibilidades, certamente surgiriam. Também se admite que há um

processo de construção de compreensão da própria pesquisadora que perpassa os

sentidos construídos pelos alunos, já que cada participante entra com sua própria visão

de mundo no processo de construção de sentidos.

É importante dizer aqui que, de acordo com a figura 3, acima, os processos não

se anulam ou acontecem de forma isolada. Eles possuem linhas de conexão entre eles

que, de forma global, levam o leitor a construir interpretações. Isso corrobora o fato de

que leitura é um processo complexo que movimenta vários tipos de conhecimentos do

leitor e que demanda uma atitude estratégica de estabelecimento de interação com o

autor, o texto, a realidade (KLEIMAN, 2002; SOLÉ, 1998; CASTELLO-PEREIRA,

2003).

289

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegar ao final de um trabalho intenso de pesquisa como este é deveras

cansativo, mas, ao mesmo tempo, gratificante. A inquietação de refletir sobre o processo

pedagógico da leitura, o seu funcionamento e conhecimentos movimentados que

possam resultar na reflexão das práticas vigentes da sala de aula foi e ainda é um

processo constante desta pesquisa.

O objetivo principal deste trabalho foi o de observar a maneira como os leitores

interagem com a língua para a produção de sentidos textuais, com o intuito de

desvendar como eles desenvolvem suas capacidades tanto para compreender quanto

para negociar sentidos para um texto.

Sendo assim, analisou-se a maneira como os leitores selecionados para essa

pesquisa movimentam estrategicamente seus conhecimentos por meio da língua e como

o diálogo é realizado durante a leitura levando-os a construírem interpretação textual

num processo complexo e interacional.

Nesse sentido, considerou-se não somente os conhecimentos que perpassam o

código linguístico em si, mas todos os conhecimentos subjacentes a esse código que

possam fazer com que os leitores construam interpretação fazendo ligações importantes

para (re)construir e negociar sentidos textuais, sociais e individuais. Como uma

consequência das análises realizadas, considera-se que essas podem se constituir como

um ponto de partida para gerar novas discussões que auxiliem no planejamento de aulas

de compreensão textual, visando interações mais ricas e mais efetivas no

desenvolvimento das habilidades dos estudantes.

Falou-se aqui (cf. cap. 1) que o processo de leitura e interpretação textual é

interativo e que o leitor utiliza toda a sua carga de conhecimentos para compreender os

sentidos e objetivos expostos pelo autor em uma manifestação linguística. Para tanto, há

uma (re)construção de sentidos do texto a partir da percepção da relação entre palavras e

os ditos conhecimentos prévios, que envolvem os conhecimentos linguísticos, textuais e

de mundo (KOCH; ELIAS, 2010, KOCH, 2009; KLEIMAN, 2001; 2002; 2004;

CASTELLO-PEREIRA, 2003).

Isso porque a língua é concebida tanto como produto, quanto como produtora

das relações entre sujeitos inseridos em uma sociedade e organizados de uma

determinada maneira (BAKHTIN, 2009). Sendo assim, a língua ganha vida na interação

entre os usuários, e é importante considerar que ela canaliza também aspectos sociais e

290

culturais (HYMES, 1995; KRAMSCH, 1993; MENDES, 2008), os quais interferem na

produção de sentidos em todo e qualquer processo que envolva comunicação, inclusive

no processo de leitura. Uma vez que a leitura envolve a compreensão da língua, não se

poderia conceber o processo de leitura, neste trabalho, como algo estanque, clivado, em

que o leitor deve simplesmente decodificar sinais expostos em uma página branca.

No processo de leitura, o leitor tem uma tarefa essencial no ato interpretativo:

movimentar todos os conhecimentos perpassados pela língua, considerar marcas

linguísticas, ancorar conhecimentos, ativar culturas e vivências, hipotetizar e construir

sentidos. Sendo assim, a leitura envolve a ativação e o desenvolvimento da competência

comunicativa (HYMES, 1995; SAVIGNON, 1999; CANALE, 1995) do leitor. É a

partir da habilidade dos usuários de dispor das formas da língua, fazer conexões

linguísticas, textuais, sociais e culturais que o processo de comunicação de uma

mensagem durante a leitura é construído.

Supõe-se que a língua forneça elementos que ativam todos esses conhecimentos

e auxiliam o leitor a canalizá-los na construção de sentidos. Antunes (2012) destaca que

as palavras, de alguma maneira, se aproximam e se interligam, têm funções que

permitem a composição do texto, tais como realizar nexos de coesão, criar e sinalizar a

expressão de sentidos, ativar as matrizes cognitivas construídas social e culturalmente.

Para a autora, as palavras funcionam como um guia com instruções e indicações de por

onde o leitor pode seguir para a construção dos sentidos de um texto.

Cavalcanti (1989) argumenta, justamente, a favor dos itens lexicais chave que

funcionam como ilhas de confiança do leitor para tecer a rede de sentidos construída

num texto. Essas marcas linguísticas, denominadas nesse trabalho de palavra-chave (cf.

cap. 2.3), podem funcionar como uma superestratégia na ativação, direcionamento e

canalização dos conhecimentos do leitor em direção à construção da interpretação.

Desse modo, observou-se a seleção das palavras-chave por alunos de 3º. ano de

ensino médio em três textos de diferentes gêneros e temas escolhidos para a pesquisa

(cf. cap. 3). A questão principal foi verificar como a palavra-chave é utilizada pelo leitor

para estabelecer comunicação com o texto e, a partir dessa seleção, como se revelam os

conhecimentos ativados e movimentados pelo leitor no ato de compreender o texto.

Mais especificamente, discutiram-se três questionamentos norteadores (cf. cap. 3, p.

128-130), os quais mostraram, pela análise de dados, resultados que indicam a

necessidade de se pensar em formas estratégicas de usar a palavra-chave como ativadora

291

de diversos conhecimentos dos leitores em sala de aula e motivadora de negociações de

sentidos interessantes para a compreensão da realidade dos estudantes.

No cap. 4, que visou responder a primeira questão de pesquisa, os dados

revelaram que as palavras-chave escolhidas pelos estudantes representam estruturas que

extrapolam o conhecimento linguístico-gramatical e funcionam como matrizes

construídas pelo leitor para expor sua representação da realidade. Uma interação

constante entre as manifestações socioculturais e a língua é representada no uso e é

ativada pela escolha do léxico da língua (ANTUNES, 2012), que é capaz de ativar

conexões diversas para a construção de interpretação dos leitores.

O desenvolvimento da competência comunicativa é um elemento contínuo,

constante e de suma importância na construção de sentidos textuais. Isso porque, pelo

que se observou nos extratos dos estudantes, eles utilizaram a palavra-chave como uma

estratégia de canalização de diferentes conhecimentos: os gramaticais, discursivos e

sociointerculturais. A palavra-chave foi utilizada como um elemento único dotado de

subfunções que perpassam as diferentes dimensões da competência comunicativa e

podem levar o leitor a realizar diferentes tarefas ao construir interpretações, tais como a

hierarquização de sentidos textuais, a organização dos conhecimentos linguísticos dos

informantes bem como das informações construídas a partir deles, a ativação de

conhecimentos que envolvem a cultura e as relações sociais dos leitores.

Os resultados demonstraram que aspectos particulares da língua são utilizados

pelos leitores no diálogo com o texto. No que diz respeito à competência gramatical,

verificou-se que os informantes destacaram palavras-chave de determinadas classes

gramaticais que relatam conteúdos específicos internos ao texto. Por exemplo, eles

utilizaram na maioria das indicações palavras de conteúdo, tais como substantivos ou

adjetivos para identificar conteúdos da mensagem ou personagens do texto (cap. 4.1.1,

p. 157-161). Ainda, no que diz respeito à mesma competência, observou-se que os

leitores utilizaram palavras de classe fechada, tais como conjunções ou alguns

advérbios, para demonstrar a maneira como constataram oposição ou consequência nas

relações textuais (cap. 4.2.4, p. 213).

Outro aspecto importante revelado pelos dados foi a maneira como os

informantes utilizaram aspectos textuais e discursivos para relatar suas interpretações.

Em vários momentos os leitores indicaram, por exemplo, palavras que destacaram para

eles os personagens (textos 1 e 3), os temas (textos 1, 2 e 3), os tópicos discutidos no

texto e a oposição entre eles (textos 1 e 2). Um detalhe importante no que diz respeito à

292

competência discursiva, foi o fato de que se observou, tanto nos dados analisados no

cap. 4 quanto no cap. 5, que a percepção do gênero textual influenciou a interpretação

gerada pelos alunos. Os leitores ao identificarem a característica do gênero textual de

que há uma crítica no texto 01, uma oposição argumentativa no texto 2, ou uma

emotividade no texto 3, por exemplo, selecionaram esse aspecto tanto como indicador

do tema e do sentido textual como um todo (cap. 4.1.2, p. 180-181), quanto como guia

no estabelecimento das possibilidades interpretativas e no direcionamento das

negociações estabelecidas para o texto (cap. 5 p. 230; 248; 263; 270; 278; 283-284).

Destaca-se também a maneira como os leitores utilizaram fatores sociais e

culturais no diálogo com o texto durante a leitura e na negociação de sentidos. Neste

trabalho, denominou-se essa competência de sociointercultural por se considerar que, na

produção de sentidos, é relevante a consideração de aspectos sociais e culturais e a

interação entre eles na sala de aula e na realidade vivida pelos alunos (KRAMSCH,

1993; 1998; MENDES, 2008, 2010; 2011). Os dados demonstraram a pertinência de se

considerar tais aspectos na forma como os estudantes compreendem os textos porque os

leitores indicaram características de suma importância na construção de sentidos:

realidades vividas pelos estudantes, tais como a diferença de classes e a necessidade de

se pensar na evolução da ciência para o bem da sociedade; a necessidade de valores

éticos no trato com seres humanos; a relação estabelecida entre crenças religiosas,

opiniões pessoais, personalidade e emoções (cap. 4.2.3, p. 198-199). Além disso,

observou-se que a cultura e as relações sociais são destacadas pelos informantes ao

interpretar e negociar sentidos para o texto, pois os estudantes indicaram suas opiniões,

crenças e ações realizadas por eles na comunidade em que vivem (cap. 5.2, p. 265-268;

277-278). Esses aspectos socioculturais foram utilizados pelos leitores na indicação de

um diálogo com o autor na leitura do texto e demonstraram a necessidade de se pensar

que tais fatores, de fato, entram em uma interação constante nas aulas de compreensão

textual.

Este trabalho, portanto, aponta para um resultado interessante no que diz respeito

à competência sociointercultural: considerar que aspectos sociais e culturais de todos os

sujeitos envolvidos nos processos pedagógicos, tal como a leitura, são tão importantes

na construção de sentidos quanto aspectos discursivos ou gramaticais, pois eles

auxiliam os leitores a dialogarem com o texto, com o professor e com outros estudantes

de forma mais efetiva e a repensarem seus posicionamentos.

293

Embora se tenha classificado as ocorrências das justificativas e das palavras-

chave para diferentes dimensões da competência comunicativa, não se julga que esses

são caminhos fixos para todos os leitores na construção de sentidos. Ao contrário, os

leitores utilizam vários conhecimentos e ao se admitir que cada estudante tenha uma

relação com uma determinada cultura, construída social e individualmente, considera-se

também que há produções de sentidos que podem ser sempre diferentes. Pode-se dizer

ainda, que há a importância, nesse ponto, de se considerar o diálogo entre essas culturas,

línguas e variedades de posição dos usuários, pois é a partir dele que os estudantes

poderão desenvolver mais e melhor sua competência comunicativa e criar sempre novos

sentidos para a realidade que vivem, interagindo com ela, moldando-a, questionando-a,

acomodando-a de acordo com seus conhecimentos.

Ressalta-se, assim, que o processo de interpretação textual é rico e abre uma

gama de possibilidades de formalização dos conhecimentos dos leitores. É nesse

aspecto que se considera a importância da utilização do léxico – ou das palavras-chave -

em aulas de interpretação textual: elas, de fato, funcionam como ativadoras dos vários

tipos de conhecimento do leitor e como canalizadoras da competência comunicativa no

ato de leitura. Não se fala aqui de aulas em que as palavras sejam selecionadas como

mera construção de vocabulário desconhecido, ou como motivadoras para explicações

gramaticais (leia-se gramática normativa). Ao contrário, argumenta-se a favor da

seleção de palavras dotadas de conteúdos textuais e que possibilitam novos diálogos

entre as culturas que estão em choque na sala de aula e que movimentam a discussão, a

reflexão, a reconstrução de sentidos e que fornecem aos estudantes uma habilidade de

possuir uma consciência estratégica de lidar com a língua de forma mais eficaz.

No cap. 5, discutiu-se a segunda e terceira questões de pesquisa e chegou-se à

confirmação da ideia de que o processo de leitura não é linear, o que significa que o

leitor não segue sempre o mesmo caminho na construção de interpretação para aquilo

que ele lê. O fato principal é que o leitor lança possibilidades de leitura a partir de

indícios encontrados no texto e, de forma interativa, ele reorganiza as informações que

aos poucos vai encontrando na manifestação textual e que o levam a construir um

sentido global e mais seguro para o texto.

Nos dados observados nesta pesquisa, os informantes utilizaram a palavra-chave

como um espaço de segurança para a ancoragem de seus conhecimentos e confirmação

ou reconstrução das possibilidades de interpretação lançadas por eles. Em outros

termos, a palavra-chave aparece aqui como o elemento base em que o leitor se apoia

294

para ali escolher e confirmar o seu caminho de construção da interpretação. Os

estudantes procuraram marcas linguísticas no texto que validassem suas possibilidades

de leitura, e quando não a encontraram, refizeram tais possibilidades, direcionados por

dois aspectos principais: os conhecimentos ativados durante a leitura do texto, ou o

desenvolvimento da sua competência comunicativa, e os guias estabelecidos para a sua

interpretação.

Pode-se dizer, assim, que os leitores costuram sentidos utilizando dois pontos

principais nesse processo: as possibilidades construídas no início da leitura e os indícios

encontrados no texto que confirmam ou reconstroem as possibilidades interpretativas. A

palavra-chave foi utilizada pelos leitores como o ponto em comum entre esses dois

lados, como se eles estivessem costurando dois pedaços de tecido e a palavra-chave

funcionasse como o local onde eles passam a agulha para fixar o fio que eles utilizam

para demonstrar o sentido global.

Se compararmos o processo de compreender um texto com o processo de

costurar uma peça de roupa, poderíamos dizer que a costureira utiliza toda a sua

habilidade para cortar o tecido, fazer as medições, colocar os fios na agulha para

costurar as partes do tecido, e aos poucos, ela produz a peça de roupa imaginada. O

leitor também utiliza toda a sua habilidade – a competência comunicativa – para

observar e utilizar o tecido – o texto – e a partir dele realizar estratégias de medição e

costura de relações semânticas que fornecem a ele sentido. Tanto a costureira quanto o

leitor partem de um objeto que lhes permite a criação: a costureira parte do tecido que

ela escolhe, e o leitor parte da manifestação textual. Ambos manuseiam seus objetos a

partir de sua habilidade e constroem novas perspectivas a partir dessa realidade: a

costureira constrói sua peça de roupa e o leitor constrói sentidos textuais e pessoais.

Ainda, nesse processo de comparação, a costureira precisa aprender onde ela

pode fixar os pontos da costura que mantenham sua roupa inteira, sem buracos

inesperados. Para isso, habilidosamente, ela utiliza a agulha, que pode auxiliá-la no

processo de fixação dos pontos da costura. O leitor também procura fixar os pontos que

podem lhe revelar sentido e a palavra-chave funciona para ele como o guia de fixação

desses pontos, como se fosse a agulha condutora do fio que liga as unidades do texto.

Ele procura, no texto, os pontos por onde essa agulha passa e, aos poucos, estabelece

relações de sentido que revelam para ele onde os fios podem ser fixados fornecendo

uma segurança na (re)construção de seus conhecimentos.

295

Não se quer dizer com isso que o leitor parte de um ponto sempre fixo e

estanque para a construção de sentidos. Ao contrário, ele percebe, no texto, as criações

possibilitadas pela interação e é a partir delas que ele tece relações com o seu

conhecimento e coloca as bases de ancoragem de sua construção: os sentidos.

Outro aspecto importante observado é que a palavra-chave funciona com

subfunções no que diz respeito à negociação de sentidos, tais como: fixar sentidos inter

e intratexto(s), adicionar a esses sentidos construções e percepções criadas na sua

realidade por intermédio da língua, construir ideias em oposição ou de acordo com o

autor.

Os dados revelaram que, já ao selecionar as palavras-chave, os leitores destacam

sentidos importantes para eles mesmos, fazendo com que tais sentidos sejam também

destacados para um diálogo pessoal. Isto quer dizer que a seleção das palavras-chave

não funcionou somente como ancoragem de conhecimentos movimentados no ato de

leitura, mas também como instigadora de conhecimentos pré-formulados pelo leitor que

corroboram ou refutam o que está no texto.

No caso da negociação de sentidos, é como se o leitor fizesse uma análise que

indica, para ele, se seus sentidos estão bem formatados, construídos, organizados e

adicionasse detalhes dos quais ele sente falta. Por exemplo, no texto 01, os leitores

demonstraram a concordância com algumas posições dos personagens ou a reprovação a

atitudes demonstradas ali. Para o texto 02, os leitores destacaram argumentos

importantes expostos pelo autor, mas a eles adicionaram outras possibilidades que

reforçaram a necessidade de pesquisas no campo genético. Para o texto 03, os alunos

indicaram uma série de conhecimentos utilizados durante a interpretação do texto que

reforçaram para eles as possibilidades de criação e inferência.

Voltando à comparação com a costureira, nesse momento é como se a peça de

roupa construída estivesse passando por um exame de produção, no qual ela procura

perceber pontos falhos, ou repensar formas de construir novos detalhes para a mesma

peça ou para peças futuras.

O que se notou também é a necessidade de incentivar os estudantes nesse

processo de negociação. Como as atividades tinham somente o intuito de perceber como

o processo estava se dando para os leitores, não se incentivou novas possibilidades de

diálogo e não se promoveu discussões mais acirradas sobre tais sentidos. Principalmente

no texto 03, que é um texto que suscita maior criatividade dos leitores, verificou-se uma

certa insegurança para a produção de novas possibilidades para o texto como se os

296

conhecimentos que eles já possuíam da realidade e que foram utilizados para a

interpretação não fossem suficientes na indicação de opiniões ou percepções a respeito

do texto.

Isso pode significar que o incentivo aos estudantes a um processo de diálogo

mais constante em que eles tenham consciência da discussão realizada via texto e dos

conhecimentos utilizados para construir sentidos pode levá-los a representações mais

efetivas de seus próprios conhecimentos e a valorizarem aquilo que produzem a partir

da sua realidade. É na discussão do texto com eles mesmos e com os demais alunos que

o processo de diálogo entre culturas, representações, matrizes cognitivas e

comportamentos pode levar os leitores a um processo de reflexão sobre o que o texto

produz e o que ainda se pode produzir a partir disso. Prosseguindo com a metáfora da

costura de uma roupa, a costureira vai aos poucos criando novas peças a partir da sua

experiência e da conversa com seus clientes ou com outras colegas de profissão. O

leitor, por sua vez, também cria novas possibilidades de construção de sentidos a partir

das interações e diálogos que realiza com outros leitores, o professor, textos variados e

com a sua própria realidade sociocultural.

Deve ser lembrado que, se no processo de interpretação, os leitores utilizam seus

conhecimentos prévios, incluindo aí fatores sociais e interculturais particulares. É

necessário considerar também o fato de que os conhecimentos de vários participantes do

processo de leitura podem, de fato, enriquecer ainda mais o processo de construção de

sentidos. Reitera-se que quanto mais reflexões e possibilidades forem evocadas pelos

leitores durante a compreensão, mais sua competência comunicativa se desenvolve,

mais ligações com outros conhecimentos eles constroem e mais eles se sentem

capacitados a realizar intervenções e reinterpretações da sua própria realidade e dos

textos aos quais forem expostos no decorrer de suas vidas.

Neste momento, destaca-se a importância do olhar do outro – do pesquisador e

do professor - no processo de construção de sentidos ao considerar os conhecimentos

dos diversos leitores para a compreensão não só de textos, mas também da realidade.

Conforme se notou nos dados, a leitura de textos está longe de ser um processo fechado

em sentidos expostos no código linguístico. Isso significa que é primordial que sejam

possibilitadas em aulas de leitura, as conexões e ligações a conhecimentos diversos para

que os leitores possam, de fato, iniciar um processo constante de negociação de

sentidos.

297

Reitera-se também o fato de que a palavra-chave pode ser utilizada como uma

ferramenta interessante para promover diferentes atividades nessa construção do

processo interpretativo: a canalização de diferentes dimensões da competência

comunicativa e o auxílio aos leitores na organização das informações a que são

expostos; a ancoragem de sentidos durante a leitura; a incitação ao diálogo com o texto;

a negociação de diferentes sentidos. O incentivo a essas atividades leva o leitor a refletir

sobre suas realidades e aguçar seu senso crítico perante o texto, dialogando com ele,

aceitando perspectivas ali expostas, reconstruindo outras, adicionando novas

possibilidades de reflexão, revisitando sua própria realidade e cultura.

É importante ressaltar que essas foram apenas algumas das possibilidades

observadas para esse trabalho e se admite que outras reflexões ainda possam ser

realizadas, pois a palavra é que carrega os signos sociais, culturais e ideológicos

construídos em uma determinada sociedade e sem ela a comunicação e a consciência

individual não se concretizam (BAKHTIN, 2009). Ou seja, a palavra, ao mesmo tempo,

carrega uma construção social e outra individual permeada pelas relações prévias,

construindo uma espécie de conhecimento coletivo, o qual é dinâmico, reformula-se no

passo a passo e no diálogo com o texto e com o outro, e expressa manifestações

culturais importantes.

Não se teve a preocupação imediata, nesse trabalho, de realizar discussões mais

práticas sobre como aulas de leitura devem ser conduzidas para a movimentação mais

efetiva dos conhecimentos dos leitores e para construção de diálogos. O objetivo aqui

foi compreender de que maneira os informantes desenvolveram seus conhecimentos

para interpretar um texto e negociaram sentidos. Certamente, se forem evocadas novas

reflexões sobre como o processo de leitura se realiza e outros aspectos influentes no ato

de interpretar e compreender não somente o texto, mas aquilo que é trazido à tona por

meio dele, pode-se considerar esta uma pesquisa digna de frutos profícuos para futuros

professores e pesquisadores.

Ressalta-se que é a interação entre diferentes conhecimentos de leitores diversos

que torna o processo de interpretação mais rico e possibilita discussões que possam

levar os leitores a construírem uma habilidade estratégica e consciente de leitura (por

exemplo, ao identificarem a palavra-chave), na qual eles sejam incitados a dialogar com

o texto e a construir novos sentidos para si mesmos, sua comunidade bem como para

todo e qualquer texto a que sejam expostos.

298

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