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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
MEDIDAS DE SEGURANÇA: O PRAZO MÁXIMO DE CUSTÓDIA E
TRATAMENTO
Edson Cardoso de Oliveira Filho1
RESUMO
O presente trabalho pretende contribuir para uma reflexão acerca do tempo de execução das medidas
de segurança, explorando as contradições existentes e a necessidade de um prazo máximo de duração.
Para tanto, fez-se necessária a discussão sobre possível identidade entre a natureza jurídica das
medidas de segurança e a das penas, o que obrigou à interpretação da norma restritiva constitucional
(art. 5º, XLVII, “b”, CF/88) a partir da confrontação de princípios próprios do Estado Democrático de
Direito. Finalmente, tornou-se imperativa a análise dos posicionamentos que enfrentaram o caráter
perpétuo das medidas de segurança e das alternativas decorrentes de sua interrupção.
Palavras-chave: Medidas de Segurança – Execução – Duração Máxima.
1 Advogado, pós-graduando em ciências criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia/UFBA.
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Sumário: 1. Introdução; 2. Observações Históricas; 3. Superando as Fronteiras entre Penas e
Medidas de Segurança; 4. Interpretando o “Silêncio Eloqüente” do Legislador Constitucional;
5. Limites e Alternativas para a Segurança da Medida; 6. Considerações Finais.
1. Introdução
Ao longo dos tempos, o homem sempre perseguiu medidas de pacificação social com o
natural e compreensível propósito de preservar a coesão social ou, pelo menos, as estruturas
sociais mais complexas. As medidas de segurança, efetivamente, inserem-se como uma das
intervenções sócio-penais destinadas a uma dada situação-problema, definida como aquela
praticada por um inimputável e cujo fundamento clássico é a sua periculosidade.
É oportuno destacar que a tarefa de pacificação social não é tão fácil como aparenta ser. A
dicotomia existente entre o jus puniendi e o jus libertatis sempre demandou, e continua
demandando, profundos e dedicados estudos, na medida em que a prerrogativa do Estado em
punir está condicionada à observância de garantias que, pela natureza e pela relevância, não
podem ser valoradas sob o plano periférico de um Estado Democrático de Direito.
No ordenamento pátrio, nota-se que as medidas de segurança são aplicadas por tempo
indeterminado, perdurando até a cessação da periculosidade do agente, a teor do art. 97,
parágrafo único, do Código Penal. Em contrapartida, a Constituição Federal determina
categoricamente, em seu art. 5º, XLVII, “b”, a vedação da perpetuidade das penas. Nesse
diapasão, não seria possível afirmar o caráter perpétuo das medidas de segurança e, por
conseguinte, a sua inconstitucionalidade?
É evidente que a ausência de um critério objetivo capaz de esclarecer o termo final da
execução da medida de segurança contraria os princípios consignados na Carta Magna, na
medida em que o referido instituto jurídico se revela como um autêntico “depósito de doentes
mentais”, sob o disfarce de sanção terapêutica, agredindo a dignidade da pessoa humana.
Adotando-se uma interpretação sistemática e teleológica, é possível expandir o raio de
incidência da vedação constitucional do caráter perpétuo das penas, de modo a alcançar
3
também as medidas de segurança, já que se trata de conseqüências do crime, isto é, espécie de
sanção penal tal qual a pena.
Cumpre advertir, no entanto, que o tema tratado não surpreende pelo ineditismo nem a
reflexão proposta destaca-se pela originalidade, haja vista que já foi objeto de enfrentamento
em tempos pretéritos. O que se constata, porém, é que se trata de assunto carente de um maior
aprofundamento, porquanto abordado, geralmente, de modo superficial no contexto dos
manuais doutrinários, a despeito da singular e incontestável relevância que o instituto
resguarda para as Ciências Criminais, seja pela complexidade, seja pelas controvérsias
oriundas de sua aplicabilidade. Assim, é justamente a lacuna de uma análise mais percuciente,
há muito reclamada pela questão, que o presente trabalho visa a preencher.
A propósito, muito já se afirmou que o debate acerca das medidas de segurança encontra-se
em estado letárgico no Brasil, consistindo em “um tema doutrinário e dogmaticamente mal-
amado”.2 Talvez essa indiferença quanto às repercussões práticas do tema encontre explicação
na má compreensão de seus fundamentos. Talvez se explique pela própria condição dos
destinatários da medida, normalmente pessoas privadas do status da cidadania, sob o estigma
da negatividade e da distância, não raro da demonização que nutre o fértil imaginário popular,
o que faz despertar mais o interesse das Ciências Médicas do que dos operadores do direito.
Sem esgotar o assunto, o presente artigo busca trazer à tona a exata compreensão acerca das
medidas de segurança, mais especificamente os limites de sua execução. Tudo isso a partir de
um olhar principiológico e interdisciplinar, mesclando o direito penal com as demais
legislações existentes, em especial a Constituição Federal da República, com a presença de
fontes estrangeiras e com a experiência emprestada por renomados juristas e operadores do
direito pátrio.
A discussão, para além de um interesse teórico-acadêmico, é de crucial importância na
medida em que possibilita a influência e a reavaliação das opções de política criminal na
direção de um sistema penal reduzido ao mínimo indispensável à convivência social e ao
respeito à classe humana.
Novos horizontes já podem ser vislumbrados por conta das diretrizes constitucionais, as quais,
como se verá, contemplam a cidadania enquanto ingrediente crucial para as revoluções
paradigmáticas no campo das ciências jurídicas. O futuro aponta para conquistas que tornarão
2 PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A medida de segurança de internamento para inimputáveis e seu prazo
máximo de execução. Disponível em: <editorajuspodivm.com.br/i/f/%7B1D000601-34CD-453A-A7CD-F866160363D4%7D amedida.pdf>.
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possível um direito mais humanizado, de modo a suplantar as fronteiras fixadas pela
indiferença ou pela repetição sistemática e irrefletida de equívocos teóricos.
2. Observações Históricas
Na análise da história jurídico-penal, vislumbra-se a existência de mecanismos cautelares e
preventivos, não raro sob aparência de pena, que antecedem as modernas medidas de
segurança.
Tais providências são conhecidas desde o antigo direito, referentes aos menores (infans) e aos
loucos (amens ou furiosus). Entre os romanos da época clássica, observa-se a submissão dos
impúberes, menores de 07 a 12 anos, à verberatio, uma espécie de medida admonitória. O
furiosus, no entanto, apesar de equiparados ao infans, eram submetidos a medidas cautelares
de polícia ad securitatem proximorum, de modo que se não pudessem ser contidos por seus
parentes, eram aprisionados.3
O direito longobardo, por sua vez, assim como o antigo direito canônico, excluía o
mentecapto de pena, considerando-o como incapaz de delinqüir. Todavia, na prática, a lógica
se manifestava de modo diverso, pois quando não eram mortos, os loucos sofriam o
encarceramento e a prisão em cadeias, com horríveis padecimentos.4
Pode-se afirmar, portanto, que é na antiguidade clássica que se encontram os primórdios das
medidas de segurança, que aparecem com o objetivo primário de aperfeiçoar a intervenção da
justiça penal, que encontrava respostas somente na vingança e no castigo inerentes à pena.
Todavia, foi na Inglaterra do ano de 1800 que surgiram os primeiros manicômios judiciários,
época em que o rei Jorge III havia sido vítima de uma tentativa de homicídio praticada por um
insano que, apesar de absolvido, fora internado por motivo de segurança pública. Aliás, foi
nesse tempo que se fortaleceu a idéia da internação por tempo indeterminado, “during the
3 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 520. 4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 7º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 403.
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king’s pleasure”, expressão consagrada no Criminal Lunatics Act, e elidida pelo Criminal
Procedure (Lunatics) Act, de 1964. 5
Logo, destaca-se o segundo marco histórico, que se remete ao início do século XIX, quando é
possível detectar, inclusive, o aparecimento de medidas de correção e disciplina aplicadas a
vagabundos e mendigos. O Código Penal francês de 1810, por exemplo, ordenava a
segregação indefinida dos vagabundos (art. 271), colocados, depois de cumprida a pena, à
disposição do governo, pelo tempo que este determinasse. Somente a partir de 1832, os
vagabundos liberados eram submetidos à vigilância especial da polícia, providência que
apareceria também no código italiano de 1889, ao incorporar disposições assegurativas, como
internação de alienados e medidas relativas aos menores, aos ébrios habituais e aos
reincidentes.
O Código Penal brasileiro de 1890, a seu turno, previa a entrega dos doentes mentais a suas
famílias ou o seu recolhimento a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o
exigisse, por motivo de segurança pública (art. 29). Previa ainda o internamento em colônia
penal para os vadios e capoeiras (art. 400), estabelecendo o internamento curativo de
toxicômacos ou intoxicados habituais (art. 159, § 12), além dos ébrios habituais, perigosos ou
nocivos, em estabelecimento correcional (art. 396).
Com o avanço da ciência e a Revolução Industrial, as discussões filosóficas implantadas pela
Escola Clássica de Direito Penal passaram a ceder espaço para uma racionalidade menos
especulativa e mais prática. Eis que surge, no final do século XIX, a Escola Positivista e seus
representantes mais ilustres: Cesare Lombroso (1835 – 1909), Enrico Ferri (1856 – 1929) e
Rafael Garófalo (1851 – 1934).
O advento do positivismo revela uma mudança paradigmática, qual seja a renúncia da ideia de
livre arbítrio e a adoção do determinismo (biopsicossocial) como parâmetro na busca das leis
que governam os fenômenos naturais e humanos. A partir do determinismo, a resposta social
não é dada mais pela pena, mas por uma medida, que encontra fundamento no fato a partir de
suas causas, sejam elas patológicas, como queria Lombroso, sejam sociais, como acrescentou
Ferri. À Garófalo restou a sistematização jurídica da Escola, ao compreender a
“periculosidade como base da responsabilidade e a prevenção especial como fim da pena”. 6
5 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 7º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 404. 6 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 521
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Nesse novo viés, a periculosidade passa a justificar a intervenção penal, ofuscando a distinção
entre imputável e inimputável. A tradicional pena retributiva perde a sua utilidade, dando azo
para a prevenção especial, convalidada no tratamento apropriado à pessoa do delinqüente,
com vistas à neutralização das causas exógenas e, por conseguinte, à reintegração social.
Certamente, a Escola Positivista foi uma das principais responsáveis pela evolução das
medidas de segurança, conferindo-lhe legitimação ideológica, não só por viabilizar uma
melhor compreensão acerca do conceito de periculosidade, mas, sobretudo, por disseminar a
ideia da individualização das penas.
No entanto, alimentada do progresso humanitário, a mencionada doutrina foi recebida pelo
legislador facista, que a introduziu em um “sistema penal duplamente vexatório, desamparado
do princípio de estrita legalidade penal, e dos corolários conexos garantistas próprios do
regime das penas”. 7 No mesmo sentido, observa Figueiredo Dias que apesar de eivada de
nobres intenções, por ser considerada até as duas primeiras décadas do século XX como um
instrumento mais humano, progressista e democrático do que a “pena retributiva”, a medida
de segurança criminal foi utilizada pelos regimes ditatoriais e pelas ideologias que lhe
presidiam (da nazi-facista à corporativista e à marxista-leninista) como instrumento por
excelência de domínio, opressão e mesmo de extermínio. 8
Apesar da inegável contribuição dos códigos penais de tempos pretéritos, e a despeito do
importante legado da doutrina positivista, somente em 1893 as medidas de segurança seriam
objeto de autêntica sistematização, com a elaboração, por Karl Stooss, do anteprojeto do
Código Penal Suíço, cujas disposições projetaram a internação de multi-reincidentes, em
substituição à pena, internação facultativa em casa de trabalho, em caso de crime cometido
por pessoa de vida irregular ou ociosa, asilo para ébrios contumazes, confisco de instrumentos
perigosos, etc.
É nesse contexto histórico que surge o chamado critério vicariante, adotado pelas legislações
contemporâneas, e que permite a substituição da pena pela medida de segurança. Talvez esse
tenha sido o grande feito de Stooss, ao pensar num sistema completo de medidas de
segurança, difundindo-se vastamente nos códigos promulgados a posteriori.
7 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 625. 8 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 139.
7
Noutro quadrante, encontra-se o sistema do duplo binário, ou “duplo trilho”, que traduz a
convicção sobre a insubsistência da retribuição das penas nos casos de criminosos multi-
reincidentes e habituais. Nesse diapasão, algumas legislações passaram a tratar, paralelo à
pena, da aplicação sucessiva de medida de segurança detentiva (para imputáveis),
consubstanciada em internação em colônia agrícola ou em institutos de trabalho e de
reeducação.
Durante a vigência do Código Penal pátrio de 1940, era esse o sistema que prevalecia, no qual
a medida de segurança era aplicada ao agente considerado perigoso, que havia praticado um
fato previsto como crime, cuja execução era iniciada após o condenado cumprir a pena
privativa de liberdade ou, no caso de absolvição, de condenação à pena de multa, depois de
passada em julgado a sentença, conforme incisos I e II do art. 82 do CP de 1940. 9
No entanto, verifica-se que o referido sistema, difundido em período localizado entre as duas
grandes guerras, encontra-se hoje em completo descrédito. A “crise do duplo binário” se
revela na impossibilidade de se diferenciar, na execução, a pena privativa de liberdade da
medida de segurança detentiva para imputáveis. “Uma imposição irracional de um duplo
castigo”, para Luiz Flavio Gomes. 10
A respeito, Fragoso11 acrescenta que a suscitada falência deve-se também à precariedade do
juízo de periculosidade12, bem como à inexistência de estabelecimentos adequados e de
pessoal técnico.
Logo, a reforma da legislação penal, em 1984, orientou-se pelo abandono do sistema de
“dupla via”, passando a adotar o critério vicariante, restando consagrado na legislação
brasileira o ideal de Stooss, já que “ao réu perigoso e culpável não há razão para aplicar o que
tem sido, na prática, uma fração de pena eufemisticamente denominada medida de
segurança”. 13
9 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 9º ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 675. 10 GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García Pablos de. Direito penal: parte geral: vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 881. 11 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 7º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 406. 12 O art. 77 do Código Penal de 1940, com redação dada pela Lei nº. 6.416/77, assim prescrevia: “Quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o agente: I – se seus antecedentes e personalidade, os motivos determinantes e as circunstâncias do fato, os meios empregados e os modos de execução, a intensidade do dolo ou o grau da culpa, autorizam a suposição de que venha ou torne a delinqüir; II – se, na prática do fato, revela torpeza, perversão, malvadez, cupidez ou insensibilidade moral.” 13 Item n.º 87, Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do CP.
8
Nessa esteira de raciocínio, as penas destinam-se aos imputáveis, enquanto que os
inimputáveis tornam-se submissos à medida de segurança de internamento ou de tratamento
ambulatorial, restando aos semi-imputáveis (art. 26, § único, CP) a alternativa de um dos
instrumentos penais, conforme a conveniência e a recomendação social, e não havendo
prejuízo na substituição da pena privativa de liberdade pela medida de segurança, ex vi do art.
98 do Código Penal.
Contudo, a impressão que se vislumbra, ao término desta retrospectiva histórica, é a
necessidade de aperfeiçoamento do instrumento ora abordado, notadamente no que tange à
(in) determinação temporal, em prol da sadia continuidade do processo evolutivo, iniciado a
partir das diversas discussões a respeito da pena em sua acepção finalística.
3. Superando as Fronteiras entre Penas e Medidas de Segurança
O primeiro ponto a ser enfrentado diz respeito à análise de uma eventual identidade entre a
natureza jurídica das medidas de segurança e a das penas, sendo certo que a doutrina
majoritária sustenta entendimento que nega a aproximação de ambos os institutos, pontuando
algumas diferenças clássicas.
A primeira delas descansa sobre o fundamento: enquanto as penas baseiam-se na
culpabilidade, conceito voltado para o passado, porquanto proporcional à infração cometida,
as medidas de segurança encontrariam fundamento na periculosidade do agente, direcionada
para o futuro, em virtude de um juízo de presunção que só desaparece com a averiguação,
mediante perícia médica, da cessação do perigo.
Outrossim, é comum diferenciar ambas as espécies a partir da função que desempenham, sob
o registro de que as medidas de segurança possuem uma finalidade diversa da pena, pois se
destinam à cura ou ao tratamento daquele que praticou um fato típico e ilícito14, não sendo
14 GRECO, Rogério. Curso de direito pena: parte geral. 9º ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 676.
9
possível considerar “penal” um tratamento médico e nem mesmo a custódia psiquiátrica. Sua
natureza nada tem a ver com a pena, que desta diferencia por seus objetivos e meios15.
Nesse diapasão, as penas traduziriam um caráter retributivo-preventivo, visto que se associam
a um sentimento de reprovação social e de vingança punitiva, ao passo que as medidas de
segurança ostentariam apenas o caráter preventivo, por que não representam nada mais que
meios assistenciais e de cura do indivíduo perigoso, para que possa readaptar-se à
coletividade.
Por fim, mister se faz esclarecer as duas últimas diferenças: quanto aos destinatários, as penas
são aplicáveis aos imputáveis e semi-imputáveis, e as medidas de segurança somente aos
inimputáveis; quanto à duração, as penas são fixas e temporalmente determinadas, enquanto
que as medidas de segurança perduram por prazo indeterminado.
Noutro quadrante, uma parcela crescente da doutrina, conquanto ainda minoritária, coloca em
cheque o discurso dominante ao promover uma análise mais detida sobre o assunto,
explorando as contradições entre as diversas teorias dogmáticas e a lonjura de um consenso
que pudesse convalidar as diferenças conceituais, que parecem servir mais à didática do que
ao conhecimento científico.
Para algumas teorias, as penas teriam somente a finalidade preventiva, tal como as medidas de
segurança, não havendo que se falar, no plano abstrato, de repressão, mas sim de
ressocialização. Nessa perspectiva, penas e medidas de segurança compartilham da mesma
justificação e do mesmo fundamento, constituindo mecanismos de defesa social, com os quais
se procura evitar, de forma geral e especial, a conduta delituosa, protegendo valores de alta
relevância no ordenamento jurídico16.
Ademais, a diferença quanto ao fundamento não seria suficiente para afastar a defendida
identidade, posto que para alguns17 a culpabilidade não seria um fundamento, mas um critério
de limitação das penas. A propósito, observa Winfried Hassemer que:
15 ZAFFARONI, Eugênio Rául; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte
geral. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 855. 16 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: a nova parte geral. 7º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 407. Corroborando o respeitável entendimento, Paulo Queiroz afirma que “no essencial as medidas de segurança perseguem os mesmos fins assinalados à pena: prevenir as reações públicas ou privadas arbitrárias contra o criminoso inimputável (prevenção geral positiva) e evitar a reiteração de crimes (prevenção especial). Finalidade da intervenção jurídico-penal é em ambos os casos a proteção subsidiária de bens jurídicos relevantes” (QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 398). 17 Consoante o entendimento de Claus Roxin, a culpabilidade se revela por “um meio de limitar sanções jurídico-penais, mas não de fundamentá-las. Sua função político-criminal consiste em impedir que por razões de prevenção geral ou especial se abuse da pena”. (SPOSATO, Karyna Batista. Culpa e castigo: modernas teorias
10
“ante el creciente interés político criminal en la producción de consecuencias
favorables a través del Derecho Penal, el principio de culpabilidad va
perdiendo cada vez más el poder de fundamentar o de medir la pena en base
a la culpabilidad” 18.
Quanto à periculosidade, não escapa a constatação de sua indiscriminada utilização no Direito
Penal para os imputáveis (v.g., na aplicação da pena, na decisão acerca da progressão de
regime, do livramento condicional, da liberdade provisória e sobre o regime inicial de prisão,
etc). Tal confusão por certo resulta da tentativa de aplicação do conceito de periculosidade
apenas aos semi e inimputáveis, que fere a lógica, haja vista o imputável também poder ser
perigoso, ou seja, poder reincidir em ato considerado criminoso19.
Imprescindível anotar, com a devida vênia de opiniões em contrário, que o juízo de
periculosidade se revela pela complexidade e pelo subjetivismo na psicopatologia forense,
seara mais adequada para a formulação e para o empréstimo de um critério seguro ao saber
jurídico. Assim, não se pode dizer que exista uma “personalidade normal”, não há um limite
rígido, uma linha divisória clara entre o que se convencionou chamar de normalidade e
anormalidade20, conceitos que muitas vezes se resolvem por um critério de exclusão, quando
não de presunção21.
Noutra perspectiva, a periculosidade que emana da loucura pode ser compreendida como uma
construção social, moldada pela opinião pública e dando azo a um mito que é falado, repetido,
assimilado e que se tornou uma verdade, mas que não pode ser provado cientificamente: o
“mito da negatividade” 22. Corolários desse entendimento são as múltiplas facetas que a
loucura assumiu perante as sistematizações normativas e que, consoante o processo histórico,
da culpabilidade e os limites ao poder de punir. in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 13, nº. 56, Setembro-Outubro, 2005, p. 41). 18 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?; Trad. por: Francisco Muñoz Conde. Disponível em: <http://www.cienciaspenales.org/REVISTA 03/hassemer03.htm>. 19 RAMOS, Maria Regina Rocha; COHEN, Cláudio. Considerações acerca da semi-imputabilidade e
inimputabilidade penais resultantes de transtornos mentais e de comportamento. in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 10, n°. 39, Julho-Setembro, p. 227. 20 DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina legal. 3º ed. Saraiva. 2007, p. 288. 21 TJBA: “Homicídio. Agente. Isento de pena nos termos do art. 22 (art. 26 vigente) do CP. Periculosidade presumida. Necessidade de aplicação da medida de segurança adequada” (RT 585/362). 22 MARCHEWKA, Tânia Maria Nava. As contradições das medidas de segurança no contexto do direito penal
e da reforma psiquiátrica no Brasil. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Criminais, ano 1, n.º 00, 2004, p. 183.
11
já se confundiu com a figura do vagabundo, do mendigo e do criminoso, hoje compreendida
na categoria específica dos “doentes mentais”.
Com a propriedade que lhe é peculiar, assegura Paulo Queiroz que a periculosidade não é
bastante para ensejar a aplicação de medida de segurança, considerando que em favor do
inimputável também militam, além das excludentes de tipicidade e ilicitude, todas as causas
de exclusão de culpabilidade, bem como causas extintivas de punibilidade (prescrição,
decadência, etc.), conforme prevê o art. 96, parágrafo único, do Código Penal23. Aliás, a
dubiedade também se verifica no art. 97 do Código Penal, no que tange ao uso do conceito de
periculosidade ou de culpabilidade como critério para a aplicação de sanção aos semi e
inimputáveis, de modo que embora tenha sido a periculosidade a motivadora da medida de
segurança, é o tipo de ilícito penal cometido que definirá se a medida de segurança será
ambulatorial ou em regime de internação integral, pelo menos a princípio24, o que robustece o
reconhecimento do papel da culpabilidade no âmbito das medidas de segurança, não lhe sendo
idéia absolutamente estranha ou alheia.
Não obstante, as penas estariam também concentradas para o futuro, de acordo com o
conceito de prevenção positiva (especial e geral), e as medidas de segurança voltadas ainda
para o passado, uma vez que pressupõe a prática antecedente de um fato típico punível.
Por fim, cumpre mencionar a circunstância de que tanto as penas quanto as medidas de
segurança se equivalem na prática. Paulo Queiroz adverte que por melhores que fossem as
intenções do legislador ao criar as medidas de segurança, fato é que implicam sérias restrições
à liberdade de quem as sofre e, na prática, a execução da internação em hospitais de custódia e
tratamento (HCT) é, geralmente, mais gravosa e nociva para o interno do que a própria pena
imposta ao imputável, resultando na “cronificação da enfermidade mental”. 25 E essa
constatação talvez se explique pelo que Hassemer designa de desequilíbrio entre Lei Penal e
culpabilidade, já que:
“Quien actualmente es absuelto por falta de culpabilidad no abandona
generalmente la sede del Tribunal como un hombre libre, sino que Le
aguarda una medida de seguridad y corrección que no lleva consigo el 23 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 p. 397. 24 RAMOS, Maria Regina Rocha; COHEN, Cláudio. Considerações acerca da semi-imputabilidade e
inimputabilidade penais resultantes de transtornos mentais e de comportamento. in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 10, n°. 39, Julho-Setembro, 2002, p. 227. 25 QUEIROZ, Paulo. Inconstitucionalidade das medidas de segurança? Disponível em: <http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=1742>..
12
estigma de la pena, pero sí sus mismas graves consecuencias e incluso a
veces otras mucho más graves”26.
Ora, se o paradigma fosse absolutamente terapêutico-preventivo, logicamente não deveria
haver a previsão de um prazo mínimo de duração (art. 97, §1º, do CP), considerando que a
periculosidade pode cessar antes do prazo legal. Aqui, mais uma vez, a legislação entra em
conflito com o objetivo precípuo da medida de segurança, que é o tratamento e a busca da
cura do agente27. Nessa esteira de raciocínio, seria o mesmo que obrigar uma pessoa a
continuar tomando um medicamento, depois de curados os sintomas que justificaram a
prescrição da medicação, afirma Eduardo Ferrari28.
Depreende-se ainda, da leitura do art. 97 do Código Penal, que o magistrado não tem outra
escolha a não ser aplicar a medida de internação quando da prática de crime punido com
reclusão, mesmo que, do ponto de vista médico, esta medida não seja a mais adequada ou se
revele ineficaz, sistemática que entra em conflito com o argumento de que a medida de
segurança, ao contrário da pena, não visa punir (retribuir) o mal praticado.
Destarte, conclui Paulo Queiroz pela falta de diferença ontológica, esclarecendo que “a
distinção reside, portanto, unicamente nas conseqüências [...], atendendo-se a critério de pura
conveniência político-criminal ou de adequação”. 29
Facilmente observa-se que a discussão aqui levantada está distante de uma conclusão
definitiva, tendo logrado o entendimento minoritário a abstração do sentido e da finalidade
das penas e medidas de segurança, permitindo concluir que ambas são nada mais que
conseqüências jurídicas do crime, instrumentos do jus puniendi estatal, e que devem ser
limitadas pelos mesmos princípios, na medida em que determinam a privação/restrição de
direitos fundamentais da pessoa humana.
Eis o entendimento compartilhado pelo ilustre prof. Cezar Roberto Bitencourt, ao afirmar, em
seu respaldado magistério, que a medida de segurança e a pena privativa de liberdade
constituem duas formas semelhantes de controle social e, substancialmente, não apresentam
26 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?; Trad. por: Francisco Muñoz Conde. Disponível em: <http:// www. www.cienciaspenales.org/REVISTA 03/hassemer03.htm>. 27 PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito penal, parte geral. São Paulo: Manole, 2003, p. 172. 28 FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 185. 29 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 p. 399.
13
diferenças dignas de notas. Consubstanciam formas de invasão da liberdade do indivíduo pelo
Estado.30
Superadas as fronteiras entre penas e medidas de segurança, torna-se forçoso enfrentar mais
um obstáculo que desafia o manifesto da hermenêutica constitucional, na busca por um marco
executório cuja ausência afigura-se desproporcional e, de certa forma, incoerente, posto que
pessoas teoricamente irresponsáveis pelos seus atos se submetem a privações por deveras
cruentas quando cotejadas com aqueles considerados responsáveis.
4. Interpretando o “Silêncio Eloqüente” do Legislador Constitucional
A Constituição Federal dispõe em seu art. 5º, XLVII, “b”, que não haverá penas de caráter
perpétuo, redação que se coaduna com o disposto no art. 75 do Código Penal, ao consignar o
parâmetro de 30 (trinta) anos como tempo máximo de cumprimento das penas privativas de
liberdade.
Aderindo-se à tão tentadora e cortejada interpretação literal, poder-se-á inferir do comando
constitucional a exclusão ou omissão proposital das medidas de segurança, raciocínio que
legitimaria a imprevisibilidade do parágrafo único do art. 97 do Código Penal.
Decerto que a interpretação literal ou gramatical resguarda especial importância aos
operadores jurídicos, na medida em que exprimi o primeiro contato com a lei posta (prima
facie), sendo forçoso reconhecer a sua utilidade e, da mesma forma, rechaçar as vozes que, em
flagrante hipocrisia, a qualifica como antiga e ultrapassada.
Paradoxalmente, cada vez mais a interpretação literal se apresenta deturpada e
incompreensível para aqueles que nela se socorrem, conduzindo geralmente a soluções não
tão felizes ou desejadas, com o perdão do eufemismo.
Tratando-se da linguagem constitucional, observa-se que a democratização do processo
constituinte, marcado pela dialética da discussão, participação e composição política, em nada
favoreceu para uma linguagem jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa, evidenciando o
30 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 641.
14
caráter sintético, esquemático e de maior abertura das normas constitucionais. Disso resulta
que a linguagem do Texto Constitucional é mais vaga, com emprego de termos polissêmicos e
conceitos indeterminados, sendo desnecessário enfatizar que tal característica amplia a
discricionariedade do intérprete, que há de adicionar um componente subjetivo resultante de
sua própria valoração para integrar o sentido dos comandos constitucionais.31
Com efeito, a eventual equivocidade ou omissão do Texto deve ser contornada com a procura
do espírito da norma, além de outros recursos interpretativos, de modo a integrar a vontade
normativa e evitar iniqüidades provenientes de um apego inexplicável aos termos transcritos.
A respeito, sobreleva-se a lição do renomado professor J. J. Gomes Canotilho, ao afirmar, em
sua obra mor, que “interpretar as normas constitucionais significa compreender, investigar e
mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto
constitucional”.32
Logo, orientando-se por tais ingredientes e admitindo-se como válida a premissa que enxerga
as penas ao lado das medidas de segurança, como modos de intervenção jurídico-penal,
ofuscando as fronteiras articuladas pela concepção tradicionalista, é possível compreender a
expansão do raio de incidência da discutida vedação constitucional, de modo a concluir que as
medidas de segurança também não podem ostentar caráter perpétuo.
Aliás, a própria interpretação filológica permite a concepção da nomenclatura “pena” tal
como um hiperônimo, objeto da semântica lingüística que viabiliza uma leitura conglobante
de conceitos congêneres e que, por conseguinte, dispensa a transcrição de palavras que se
subentendem, facilmente identificáveis pelo contexto. A acepção da discutida expressão, na
conjuntura a qual foi inserida, não comporta uma interpretação restritiva, posto que assume os
contornos de um termo genérico, como sinônimo de resposta do Poder Judiciário à pratica de
um crime, após o devido processo legal, justificando-se a equiparação conceitual das medidas
de segurança, já que ocupam o mesmo “espaço semântico” ou “campo de denotação” por
paridade de motivos e origem.
Eis a conclusão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal ao se debruçar, no julgamento de
um Habeas Corpus, sobre a apontada omissão legislativa:
31 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 128/130. 32 CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina. 2008, p. 1.206.
15
“[...] diversamente de outras Constituições, tal como a de Portugal e da
República de Cabo Verde, a Constituição brasileira não foi expressa ao
disciplinar a limitação temporal das medidas de segurança. Nem por isso, se
valeu do que a doutrina alemã denomina ´silêncio eloqüente´: ao vedar as
penas de caráter perpétuo, quis a Constituição de 1988 (art. 5º, XLVII, b) se
referir às sanções penais e, dentre elas, situam-se as medidas de segurança.
(Grifo nosso)” 33
Nada obstante, o processo informal de interpretação evolutiva, mais conhecido por “mutação
(ou transição) constitucional”, autoriza a reforma do Texto Constitucional, atribuindo-lhe
novos conteúdos sem modificar o seu teor literal, tratando-se portanto de mais uma
ferramenta a serviço da tese defendida.
Vê-se, portanto, que a exclusão não reside na Constituição, mas na fértil interpretação de
quem, à revelia da técnica primária de hermenêutica, nega amplitude às normas destinadas a
abolir ou remediar males, tal qual a perpetuidade que aflige o cumprimento das medidas de
segurança e aniquila a esperança de liberdade.
Observa-se que a doutrina contemporânea34, assim como a jurisprudência, já vem se curvando
à compreensão semântica e extensiva da aludida proibição constitucional, em homenagem à
regra da “máxima efetividade” que se deve depositar na interpretação das disposições da
Carta Maior, enquanto norma fundamental da sociedade.
Ademais, se a intenção do legislador constituinte foi a de designar a expressão “pena” em
sentido estrito, estar-se-ia não só legitimando, por via oblíqua, o caráter perpétuo às medidas
de segurança, mas também a não-individualização (art. 5º, caput), a ilegalidade (art. 5º,
XXXIX), a transcendência (art. 5º, XLV), a crueldade (art. 5º, XLVI, “e”), o não-
cumprimento em estabelecimentos distintos (art. 5º, XLVIII) e o desrespeito à integridade
33 Supremo Tribunal Federal – 1º Turma – Hábeas Corpus nº. 82.219-4/SP, voto-vista, rel. Min. Sepúlveda Pertence,votação unânime, j. 16.08.2005, DJU 23.09.2005. 34 Com acuidade, informa Luiz Carlos dos Santos Gonçalves que “o rol constitucional das ‘penas’ pode, sim, ser considerado como compreensivo das medidas de segurança, pois elas envolvem efetiva ‘privação ou restrição da liberdade’. Por outro viés, o Código Penal é, e precisa ser, um texto técnico. Já a Constituição é um texto político, cujos termos nem sempre atendem aos rigores da linguagem jurídica. E, por mais tradicional que seja a distinção celebrada pelo Código Penal, sua natureza de norma infraconstitucional não recomenda que a Constituição seja interpretada através dele. Deve-se prestigiar a regra da ‘máxima efetividade’ para as disposições constitucionais, interpretando-se o termo ‘pena’ de maneira genérica, para nele alcançar, por igual, as medidas de segurança, ao menos no que não for uma especificidade irredutível deste tipo de sanção” (GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. As garantias da execução penal e as pessoas portadoras de
deficiência. in: ARAUJO, Luiz Alberto David. Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 225).
16
física e moral (art. 5º, XLIX), já que os respectivos preceitos não contemplam
categoricamente as expressões “medidas de segurança” e “internos”, tal como procedeu, com
maior precisão técnica, o legislador português. 35
Por outro lado, ad argumentandum tantum, ainda que não se vislumbre autenticidade na
discussão sobre a congruência da natureza jurídica dos instrumentos em exame, ou ainda que
se valha de uma interpretação literalmente deturpada e mal-compreendida, o alcance da
proscrição constitucional em favor dos sujeitos submetidos à execução de medida de
segurança é providência que se impõe sob a égide de um Estado Democrático de Direito,
consagrado decisivamente no primeiro artigo da Constituição.
A compreensão do Estado Democrático de Direito consubstancia-se na disciplina do quando e
do como exercer o poder punitivo, e orienta-se pela necessidade de reconhecimento e de
“afirmação da prevalência dos direitos fundamentais, não só como meta da política social,
mas como critério de interpretação do Direito e, de modo especial, do Direito Penal e do
Processo Penal”. 36
A despeito do aparente silêncio constitucional, percebe-se que a generosidade com que foram
estabelecidas algumas garantias individuais relativas à fixação e execução das penas permite
uma leitura favorável a respeito dos direitos das pessoas portadoras de deficiência que tiverem
praticado delitos. 37
Dentre as garantias que conservam o Estado Democrático de Direito e que repercutem na
temática da indeterminação temporal das medidas de segurança, invoca-se o princípio da
legalidade (art. 5º, XXXIX, CF/88), que informa a certeza jurídica quanto à conseqüência e
quanto ao tempo do qual a liberdade permanecerá tolhida, aspectos que só se fazem
exeqüíveis com a duração pré-determinada. Ressalvadas as singularidades da execução (o
ideal da individualização), é possível invocar ainda a atração do princípio da igualdade (art.
5º, caput, CF/88), não sendo coerente que a qualificação quanto à imputabilidade oriente a
35 O art. 30 da Constituição da República Portuguesa assim dispõe sobre os limites das penas e medidas de segurança: 1. “Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. 2. “Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial”. 5. “Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativa da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução”. 36 PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de processo penal. 10º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008, p. 23/24. 37 GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. As garantias da execução penal e as pessoas portadoras de
deficiência. in: ARAUJO, Luiz Alberto David. Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 225.
17
(im) prescindibilidade de um limite máximo de internação. Com maior satisfação e
suficiência, o princípio da humanidade ou da dignidade da pessoa humana repudia a idéia de
uma segregação perpétua, agravada pelo desaparelhamento dos manicômios.
Não é ocioso obtemperar também que um Direito Penal alicerçado no Estado Democrático de
Direito não pode ser calculado somente por seus objetivos, mas sobretudo pelos meios
empregados para alcançá-los. Em outras palavras, é dizer que o Direito Penal só se constrói a
partir da observância de princípios normativos os quais, por meio de critérios que escapam à
perspectiva meramente finalística, limitam a mobilização de seus instrumentos. Estabelecidas
tais premissas, exsurge a eficiência jurídica do princípio da proporcionalidade, que se espraia
tanto à amplitude do direito penal como à intensidade das sanções.
Tais advertências, para além de um mero devaneio intelectual, apontam no sentido de uma
disciplina balizadora capaz de garantir um mínimo de segurança, tal como os lacres utilizados
em embalagens de produtos perecíveis. Do contrário, o rol constitucional dos direitos
fundamentais, dentre eles a liberdade e a dignidade, se resumiria num mero simbolismo
proveniente de uma visão romântica do legislador que, aliás, esgota o seu real propósito no
exato momento em que o transcreve em texto, competindo aos intérpretes a descoberta do
sentido e do alcance conforme os anseios de um contexto histórico-social.
Logo, é possível pontuar que, ainda que possuam fundamentos diversos, a medida de
segurança deve se valer dos mesmos princípios que irradiam a execução das penas (v.g.,
proporcionalidade, dignidade, previsibilidade, etc.), sob o risco de se operar uma verdadeira
subversão ou “perturbação do esquema organizatório-funcional constitucionalmente
estabelecido quanto ao sistema de proteção dos direitos fundamentais” 38, não sendo aceitável
que sob a égide de um aparelho democrático de direito as garantias deixem de ser
proporcionadas aos que, conforme o grau de vulnerabilidade ou debilidade, delas necessitam.
Mais que louváveis ou bem-vindas, tornam-se imperiosas as iniciativas voltadas para a
formulação de um prazo máximo de execução das medidas de segurança, uma vez que a
indeterminação da duração se resolve muitas vezes em uma espécie de segregação perpétua
para os internos nos hospitais psiquiátricos, concebidos como “prisões-hospitais ou hospitais-
prisões, onde se consuma uma dupla violência institucional – cárcere mais manicômio – e
38 PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A Medida de segurança de internamento para inimputáveis e seu prazo
máximo de execução. Disponível em: <editorajuspodivm.com.br/i/f/%7B1D000601-34CD-453A-A7CD-F866160363D4%7D amedida.pdf>.
18
onde jazem, esquecidos do mundo, aqueles sentenciados por enfermidade mental” 39, daí se
extraindo as razões da cogitada desconformidade constitucional, a justificar a demanda por
uma postura mais consentânea à discorrida exegese do artigo 5º, XLVII, “b”, da CF/88.
5. Limites e Alternativas para a Segurança da Medida
Acerca do estabelecimento de um marco executório máximo, manifesta-se com precisão e
autoridade a lição de Eugênio Rául Zaffaroni, com a indignação de não ser
constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça a possibilidade de uma
privação de liberdade perpétua, como coerção penal, concluindo que se a lei não estabelece o
limite máximo, é o intérprete quem tem a obrigação de fazê-lo. 40
No intento de conformar o discurso curativo com um mínimo de garantias para os
inimputáveis, a jurisprudência e a doutrina sugerem possibilidades de limitação do tempo de
duração das medidas de segurança.
A primeira delas provém de um julgado do Eg. Supremo Tribunal Federal que, valendo-se de
uma interpretação teleológica e sistemática, atentou para o prazo de 30 (trinta anos), previsto
no art. 75 do Código Penal, dispositivo que estabelece o parâmetro máximo de cumprimento
das penas privativas de liberdade, raciocínio que se verifica pela ementa a seguir transcrita:
“Medida de segurança. Projeção no tempo. Limite. A interpretação
sistemática e teleológica dos arts. 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código
Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a
garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de
segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos”.41
39 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 628. 40 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – parte
geral. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 858. 41 (HC 84.219/SP – 1ª Turma – Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 16/8/2005, publicado no DJU em 23/9/2005).
19
Nesses termos, o Supremo confere uma maior eficácia ao art. 75 do Código Penal,
viabilizando o atendimento à garantia constitucional de inexistência de prisões perpétuas,
suprindo a indiferença da legislação infraconstitucional a respeito da questão.
Por outro lado, cada vez mais se fortalece a sustentação de que a medida de segurança não
pode ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito, pois seria o
“limite da intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida, na liberdade do
indivíduo, embora não prevista expressamente no Código Penal, adequando-se à proibição
constitucional do uso da prisão perpétua”. 42
Esse, por sinal, é o marco executório máximo objeto das decisões de procedência do ilustre
Desembargador do Tribunal de Justiça/RS Amílton Bueno de Carvalho43, cujo modo de julgar
revela preciosa contribuição.
Desse modo, caso um inimputável viesse a praticar um homicídio simples, delito que
comporta uma pena máxima de reclusão de 20 (vinte) anos, ex vi do art. 121, caput, do
Código Penal, a medida de segurança não poderia ultrapassar esse interregno.
Apresentado pela Comissão presidida por Miguel Reale Júnior, ainda pendente de aprovação,
o Projeto de Reforma da Parte Geral do Código Penal já contempla, em seu art. 98, a
inexistência de prazos mínimos e a limitação da duração das medidas à pena máxima prevista
para a conduta praticada, paradigma que, aliás, já vem sendo abraçado pela legislação
portuguesa. 44
42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 645. 43PROCESSUAL PENAL. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. INCONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE OUTRO MODO ABUSIVAS. NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO. - É inconstitucional a indeterminação de limite máximo, bem como abusivo, prolongado e excessivo o prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade do agente, previstos no art. 97 do Código Penal, a imposição de Medidas de Segurança. - A Constituição Federal veda expressamente a imposição de sanção penal que possa assumir caráter perpétuo ou que possa ser, de qualquer forma, abusiva (art. 5º, XLVII e alíneas) – assim, ancorada nos princípios fundamentais (freios libertários ao poder punitivo estatal) impõe a maior aproximação isonômica possível entre a punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos. - A dignidade da pessoa humana, isonomia e mitigação da dupla violência punitiva – dos delitos e das penas arbitrárias (no dizer de Ferrajole) – restam, então, aqui contempladas da seguinte forma: fixação do limite máximo pelo total da pena estabelecida em cada caso concreto (igualmente ao que se dá com imputáveis), bem como, a fixação do prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade em 01 ano (como não há dogma sobre a cura de um distúrbio mental, melhor que se comece a investigar no menor tempo possível), devendo, cessada a enfermidade mental, ser o apenado posto em liberdade a qualquer tempo. - AUNANIMIDADE DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Crime nº. 70010817724, 5ª Câmara Criminal, Comarca de Cachoeira do Sul, Jorge Eloy Nascimento Barbosa, apelante e Ministério Público apelado). 44 Assim dispõe o art. 92-2 do CP Português: “O internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável”.
20
Porém, na indeclinável hipótese de persistência da patologia mental, e a despeito do
esgotamento prazal, a doutrina propõe a colocação do interno à disposição do juízo cível, para
interdição (arts. 1.767 a 1778 do Código Civil) e, se for o caso, internação em hospital
psiquiátrico comum, soluções que orientam e compatibilizam a “libertação” com a defesa da
ordem jurídica e da paz social.
Sobre o assunto, oportuno se faz destacar a concepção de Eduardo Reale Ferrari, ao asseverar
que findo o limite máximo dos prazos de duração das medidas de segurança criminais,
possível será optar entre a liberação do paciente ou sua transferência para o estabelecimento
comum, constituindo a declaração de interdição civil providência prévia à expiração do prazo
limítrofe. 45
A seu turno, Paulo Queiroz comenta que a Lei de reforma psiquiátrica (Lei nº. 10.216/2001),
expressamente aplicável às medidas de segurança sob a designação de internação compulsória
(arts. 6º, III, e 9º), trouxe importantes modificações, a exigir uma releitura do Código Penal e
da Lei de Execução Penal, ao constelar: a finalidade preventiva especial, consubstanciada na
reinserção social do paciente em seu meio (art. 4º, §1º); a excepcionalidade da medida de
segurança detentiva (internação), priorizando-se os meios de tratamento menos invasivos
possíveis (art. 4º e 2º, parágrafo único, VIII); a revogação dos prazos mínimos, que contraria
os princípios da utilidade terapêutica do internamento (art. 4º, §1º) e da desinternação
progresssiva dos pacientes cronificados (art. 5º); a alta planejada e a reabilitação psicossocial
assistida, para o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação
de grave dependência institucional; dentre outras.46
Noutra quadra, ciente da incapacidade do Estado em fornecer o melhor tratamento para seus
doentes, manifesta-se o professor Rogério Greco ao sugerir o abandono do “raciocínio teórico
e ao mesmo tempo utópico de que a medida de segurança vai, efetivamente, ajudar o paciente
na sua cura”.47 E segue sua doutrina ao ponderar que, “como a internação não está resolvendo
o problema mental do paciente ali internado sob o regime de medida de segurança, a solução
será a desinternação, passando-se para o tratamento ambulatorial”.48 Eis a solução da
conversão progressiva, que passa imperceptível aos olhos do legislador infraconstitucional.
45 FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001, p. 192. 46 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 393/394. 47 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 9º ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 680. 48 ibdem, p. 680.
21
À Peluso coube o arremate final, ao concluir em apertada e suficiente síntese que o mais
importante é que “o indivíduo, nesse caso, é afastado do sistema penal – com todas as suas
vicissitudes e efeitos negativos – e passa a ser tutelado pelo sistema terapêutico civil e
administrativo”,49 sendo desnecessário frisar o notável progresso da medicina no tocante ao
uso de tranqüilizantes, a permitir que a grande maioria dos doentes mentais permaneça em
segurança no seio familiar ou social.
Nada obstante, e para além de uma previsão máxima, resta ainda o esclarecimento da tese que
proclama pela fixação de uma pena ao caso concreto, ainda que para ulterior substituição por
medida de segurança, a partir do reconhecimento desta como derivada de sentença de índole
sancionatória, como resposta prevista pelo descumprimento de um preceito primário fixado na
norma jurídica, mas dissociada do aspecto psicológico ou funcional da reprovação,
desprezando-se o caráter absolutório (impróprio) ou condenatório como há muito se discutiu,
“não sendo de maior relevo se, para beneficiar o inimputável, se façam cálculos como se de
pena se tratasse”.50
Esta sugestão viabilizaria o fornecimento de vários benefícios para as pessoas portadoras de
deficiência mental, haja vista que determinados direitos pertencentes aos condenados, tais
como a prescrição, a redução da pena por lei posterior, o indulto e a detração da pena,
subordinam-se à quantidade de pena que lhes é fixada.
Muito embora consagrada a não-imposição e a insubsistência da medida de segurança por
força da extinção da punibilidade, conforme reza o artigo 96, II, do Código Penal, não escapa
a constatação de que tal vantagem nem sempre alcança os inimputáveis, posto que a sanção a
eles imposta não contempla um prazo definido, o que dificulta a mensuração se lhes
aproveitam ou não os benefícios.
Evidente que a rigidez de um prazo fixo e temporalmente definido só se faz pertinente na
coexistência da periculosidade, não podendo obstar a liberação antes do prazo imposto se já
cessado o estado que justificou a restrição, raciocínio subserviente do ideal da estrita utilidade
terapêutica do internamento.
49 PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A medida de segurança de internamento para inimputáveis e seu prazo
máximo de execução. Disponível em: <editorajuspodivm.com.br/i/f/%7B1D000601-34CD-453A-A7CD-F866160363D4%7D amedida.pdf>
50 GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. As garantias da execução penal e as pessoas portadoras de
deficiência. in: ARAUJO, Luiz Alberto David. Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 235.
22
Findo o prazo estabelecido na sentença “sancionatória”, e se razões médicas indicarem a
necessidade da continuação da internação, de igual maneira esta deveria ser operada sob novo
fundamento – uma medida autônoma de defesa social – e não por aquela já antiga incursão
em conduta criminal. Eis uma solução mais pragmática, da qual não se vislumbra qualquer
prejuízo social.51 Pelo contrário, confere uma máxima consagração aos princípios
constitucionais indicados.
Destarte, é possível resumir em 03 (três) as hipóteses de modulação temporal das medidas de
segurança que, frise-se, não importará numa sociedade mais indefesa ou vulnerável, conforme
as alternativas que orientam a libertação, e independente da eleição de qualquer das
possibilidades explanadas, cada qual com sua sistemática própria, mas com um ponto em
comum: a tão esperada disciplina limitadora do tempo.
6. Considerações finais
Sem embargos, a responsabilização criminal em face de comportamentos “anti-sociais”
encontra validade constitucional e utilidade social, sendo forçoso reconhecer como necessária
a existência de mecanismos – tal como a medida de segurança – para a consecução da
tranqüilidade social e da tutela da confiança comunitária nas normas a que a política criminal
não pode subtrair o fornecimento de uma resposta, ainda que perante inimputáveis.
Entrementes, não se pode permitir a condução de tais providências de defesa social às últimas
conseqüências, negligenciando o respeito aos princípios que norteiam o autóctone sistema
jurídico-constitucional e, sobremaneira, as necessidades especiais dos sujeitos da medida de
segurança a qual, de forma desarrazoável, e ao revés da similitude que resguarda, apresenta-se
menos guarnecida de direitos do que a pena.
A proposta de analisar o caráter perpétuo das medidas de segurança associou-se a um
despertar da sensibilidade humana, que deverá sempre estar voltada para os princípios
basilares que irradiam o ordenamento jurídico e que, infelizmente, acabam sendo
inobservados. Fechar os olhos para a consabida realidade, para não dizer caoticidade, do
51 ibdem, p. 236.
23
manicômio judiciário, aceitando o exercício desmedido e arbitrário do poder de punir, é nada
mais que um convite à incivilidade, vez que a condição de doente mental não exclui a
condição de ser humano e de ter preservada a natural dignidade.
Há de se ressaltar que o desaparelhamento Estatal para promover a reinserção dos sujeitos não
pode justificar a perpertuidade da execução, tratando-se de um ônus o qual o Estado não pode
se furtar, e causando estranheza o entendimento do qual se compraz considerável parcela da
comunidade jurídica, no sentido de conduzir o desejo ou a “sede” de prevenção até o castigo a
quem atua sem culpabilidade.
Longe de se promover meros silogismos acadêmicos, ou de se limitar a deduzir ou conjecturar
da letra da lei o grande triunfo para os problemas da vida prática, o que se pretende, em
verdade, é a assunção da responsabilidade de se perquirir a resposta mais justa e adequada à
situação sob análise. E a hermenêutica jurídico-constitucional autoriza a eleição do caminho
inverso ao pensamento penal tradicional, muito mais preocupado com a justificação e
fundamentação do que com a aplicação.
Considerando a relevância do tema em análise e a inadequação teórica à qual foi submetido, é
possível que as propostas elencadas não sejam soluções definitivas para o problema do
cumprimento indeterminado, o que, afortunadamente, apresenta-se como garantia da
continuidade da reflexão acadêmica e da busca persistente pelo aperfeiçoamento das
alternativas disponíveis. Só não se pode ignorar, entretanto, que ao fim deste estudo ficaram
evidentes as mazelas do sistema atual e que foram apresentadas razões que podem orientar ou,
pelo menos, motivar a necessária alteração legislativa.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma
dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
24
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2000.
BRASIL. Constituição Federal (1988). 7ª ed. São Paulo: Rideel, 2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº. 82.219-4/SP, 1º Turma, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, votação unânime, j. 16.08.2005, DJU 23.09.2005. Disponível em
<www.stf.jus.br>. Acesso em 23 de julho de 2007.
BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº. 70010817724, 5ª
Câmara Criminal. A unanimidade deram parcial provimento ao apelo. Comarca de Cachoeira
do Sul. Disponível em <www.tj.rs.com.br>. Acesso em 11 de julho de 2007.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 8ª ed.
Coimbra: Almedina, 2008.
DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina legal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de
direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
25
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