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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO INGRID WINKLER A CONSTRUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DIGITAL E O PAPEL DA TECNOLOGIA: O CASO DA CONSULTA PÚBLICA VOCÊ NO PARLAMENTO NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Salvador 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAO

NCLEO DE PS-GRADUAO EM ADMINISTRAO

INGRID WINKLER

A CONSTRUO DA PARTICIPAO DIGITAL E O PAPEL DA TECNOLOGIA: O CASO DA CONSULTA PBLICA VOC NO

PARLAMENTO NO MUNICPIO DE SO PAULO

Salvador 2012

INGRID WINKLER

A CONSTRUO DA PARTICIPAO DIGITAL E O PAPEL DA TECNOLOGIA: O CASO DA CONSULTA PBLICA VOC NO

PARLAMENTO NO MUNICPIO DE SO PAULO

Tese apresentada ao Ncleo de Ps-Graduaao em Administrao, Escola de Administrao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Doutora em Administrao. Orientador: Prof. Dr. Jos Antonio Gomes de Pinho

Salvador 2012

Escola de Administrao - UFBA

W775 Winkler, Ingrid

A construo da participao digital e o papel da tecnologia: o caso da

consulta pblica voc no parlamento no municpio de So Paulo / Ingrid

Winkler. 2012.

225 f.

Orientador: Prof. Dr. Jos Antonio Gomes de Pinho.

Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia, Escola de

Administrao, Salvador, 2012.

1. Sociedade da informao Estudo de casos So Paulo.

2. Tecnologia da informao Aspectos sociais. 3. Inovaes tecnolgicas

Participao do cidado. 4. Tecnologia Teoria crtica. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administrao. II. Ttulo.

CDD 303.483

AGRADECIMENTOS

Uma tese de doutorado resulta no apenas dos esforos de seu autor, mas

tambm das contribuies das diversas pessoas que o apoiaram nessa trajetria.

Assim, gostaria de agradecer s pessoas que me ajudaram a escrever este trabalho.

Ao Professor Pinho, agradeo pela valiosa orientao, pelo conhecimento

transmitido e pela compreenso nesse processo de idas e vindas que a elaborao

de uma tese exige.

Professora Marlei Pozzebon, sou grata pelas inestimveis contribuies em

todos os aspectos deste trabalho, bem como pela concesso da bolsa de estudos na

HEC Montreal. Aos colegas do Groupe de Recherche en Affaires Internationales e

Centre de Recherche sur les Innovations Sociales (CRISES), agradeo as sugestes

que me possibilitaram aperfeioar o estudo. A Alexandre Barbosa e Tnia

Christopoulos, agradeo as valiosas sugestes ao trabalho e a convivncia que se

transformou em amizade.

Ao Professor Sandro Cabral, minha gratido pelo incentivo nesse caminho

nem sempre plano que o percurso acadmico.

Agradeo aos colegas do Ncleo de estudos sobre Internet, Democracia,

Estado e Sociedade (NIDES) pelas sugestes que possibilitaram aprimorar esta

pesquisa, especialmente Ktia Morais, pela constante disposio em ajudar.

s Professoras Maria do Carmo, Bete Santos e Maria Alexandra Cunha,

agradeo as valiosas recomendaes na qualificao do projeto de tese. Aos

professores do NPGA, sou grata pelos conhecimentos transmitidos ao longo do

curso, que contriburam muito para o resultado final deste trabalho.

Aos funcionrios do NPGA da UFBA, em especial a Dacy, Analia e Artur,

sempre solcitos e prestativos no atendimento s solicitaes, minha gratido.

Aos meus amigos e minha famlia, agradeo a confiana, o estmulo e a

compreenso frente ausncia que o processo de elaborar uma tese demanda.

A Renato, agradeo a cumplicidade e apoio irrestritos, sem o qual este

trabalho no teria sido escrito.

RESUMO Este trabalho teve como objetivo analisar as potenciais contribuies da Teoria Crtica da Tecnologia na avaliao dos efeitos de uma iniciativa de participao digital. Embora as prticas de participao digital fundamentem-se no pressuposto de que a tecnologia tem o potencial de estender formas de participao tradicionais, a capacidade de a tecnologia incentivar a participao no tem sido to significativa como se acreditava. Frente a obstculos demogrficos, sociais e econmicos, a participao digital tem a tendncia de favorecer uma elite poltica e tecnolgica, reforando dficits democrticos existentes. Nesse contexto, a Teoria Crtica da Tecnologia oferece um enfoque distinto ao afirmar que no possvel avaliar a priori os efeitos de uma iniciativa de participao digital - os mesmos sero to mais democrticos quanto mais interesses tiverem sido representados na concepo da tecnologia que a facilita. A compreenso desses efeitos demandaria, assim, estudar caractersticas tcnicas da tecnologia, bem como sua concepo. Visando acomodar essa perspectiva terica, foram propostas alteraes ao principal framework analtico adotado na participao digital, como a centralidade da tecnologia e foco em seu processo de design, atravs da criao de uma categoria Tecnologia e das subcategorias Atividade Social, Abertura e Inclusividade, Precocidade e Deliberatividade. Visando testar a plausibilidade do modelo proposto, uma consulta pblica digital foi adotada como ilustrao emprica, investigada atravs de um estudo de caso instrumental, numa abordagem qualitativa, em que os dados foram coletados atravs de navegao orientada, anlise documental, observao direta e entrevistas. Os resultados revelaram uma relao clara entre fatores contextuais, a tecnologia projetada e os efeitos da iniciativa. A investigao das variveis contextuais revelou que dificuldades como a desigualdade de oportunidades de participao, escassez de recursos e resistncia institucional e poltica na forma de pouco envolvimento da instituio governamental, polticos e cidados constituam um desafio para os efeitos democrticos da iniciativa. Apesar desses potenciais obstculos, a concepo da tecnologia que facilitaria a consulta, realizada por um grupo reduzido e homogneo de designers, no reconheceu as dificuldades contextuais como potenciais limitaes tcnicas participao digital e a consulta pblica foi promovida no formato de voto eletrnico. A anlise dos efeitos da iniciativa revelou que a linguagem complexa adotada e o fato de ter sido respondida quase exclusivamente pela Internet podem ter levado a que os resultados da consulta contemplassem a maior participao dos cidados mais escolarizados. Por outro lado, foram observados aspectos positivos como a mesma ter sido inovadora em relao a formas tradicionais de participao, alcanando grande quantidade de respondentes, representando oportunidades de aprendizado poltico a mdio e longo prazo. O estudo conclui que o framework analtico proposto possibilitou uma melhor identificao das relaes entre variveis contextuais, o design da tecnologia adotada e os efeitos da iniciativa do que o framework analtico corrente da participao digital. Assim, ao abordar aspectos como a equidade das iniciativas e o design da tecnologia, desafios atuais da pesquisa em participao digital, a abordagem da Teoria Crtica da Tecnologia pode contribuir para fazer avanar a pesquisa na rea. Palavras-chave: participao digital, Teoria Crtica da Tecnologia, consulta pblica digital

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Modelo Panormico para iniciativas de participao digital................ 65

Figura 2 - Novo Modelo Panormico proposto.................................................... 91

Figura 3 - Entrega Cmara Municipal de So Paulo questionrios

preenchidos por estudantes................................................................................

109

Figura 4 Sesso de divulgao dos resultados da Voc no Parlamento......... 109

Figura 5 Prioridades escolhidas pelos respondentes no tema Educao........ 110

Figura 6 - Novo Modelo Panormico proposto.................................................... 111

Figura 7 Conta da consulta Voc no Parlamento na rede social Twitter.......... 126

Figura 8 Banner disponibilizado pela Rede Nossa So Paulo......................... 126

Figura 9 Ao presencial de divulgao no Conjunto Nacional....................... 127

Figura 10 Software questionrios online.......................................................... 152

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Posicionamento no contexto da pesquisa em participao digital.... 22

Quadro 2 Relao dos entrevistados............................................................... 28

Quadro 3 - A categoria Atores e suas subcategorias......................................... 66

Quadro 4 - A categoria Atividades e suas opes............................................... 69

Quadro 5 - A categoria Fatores Contextuais e suas subcategorias.................... 70

Quadro 6 - A categoria Efeitos e Avaliao e suas subcategorias...................... 74

Quadro 7 - A nova categoria Tecnologias e suas subcategorias........................ 82

Quadro 8 Grupos de Trabalho temticos em atividade em 2012..................... 98

Quadro 9 - Despesas da Secretaria Executiva em 2011..................................... 102

Quadro 10 Composio do Conselho dos Associados Organizacionais.......... 102

Quadro 11 - Temas abrangidos pela consulta Voc no Parlamento................... 107

Quadro 12 - Opes de resposta no tema Educao......................................... 108

Quadro 13 - Atores da iniciativa Voc no Parlamento......................................... 112

Quadro 14 - Candidatos a vereador eleitos que aderiram carta-compromisso 118

Quadro 15 Resultados do item Avaliao e confiana em servios e

instituies pblicas............................................................................................

119

Quadro 16 Composio do Corpo Tcnico da consulta Voc no Parlamento. 158

Quadro 17 Exemplo de Projeto de Lei apresentado pelo Vereador 1.............. 191

SUMRIO

1 - INTRODUO ..................................................................................................... 12

1.1 - QUESTO DE PESQUISA E OBJETIVOS ............................................... 15

1.2 - CONTEXTO DE ESTUDO ........................................................................ 16

1.3 - CONTRIBUIES ESPERADAS ............................................................. 18

Para a pesquisa em participao digital ....................................................... 18

Para a pesquisa em Sistemas de Informao .............................................. 23

1.5 - TRAJETRIA METODOLGICA ............................................................. 25

Estratgia da pesquisa ................................................................................. 25

Coleta de dados............................................................................................ 26

Anlise dos dados ........................................................................................ 29

1.6 - ESTRUTURA DO TRABALHO ................................................................. 30

2 - A TEORIA CRTICA DA TECNOLOGIA .............................................................. 32

2.1 - POSICIONAMENTO E PROBLEMTICA BSICA .................................. 32

2.2 MARX E A CRTICA SUBSTANTIVA TECNOLOGIA ........................... 35

2.3 A CONTRUO SOCIAL DA TECNOLOGIA .......................................... 38

2.4 A ESSNCIA DE UM ARTEFATO TECNOLGICO ................................ 44

2.5 - UMA APLICAO DA TEORIA CRTICA DA TECNOLOGIA .................. 49

2.6 - CRTICAS TEORIA CRTICA DA TECNOLOGIA .................................. 53

2.7 DESDOBRAMENTOS ............................................................................. 57

3. UM FRAMEWORK ANALTICO PARA A PARTICIPAO DIGITAL ................. 60

3.1 - PRESSUPOSTOS TERICOS DA REA DE PESQUISA....................... 60

3.2 - O FRAMEWORK ANALTICO DE SAEBO, ROSE E FLAK (2008) .......... 63

Atores ........................................................................................................... 66

Atividades ..................................................................................................... 68

Fatores Contextuais ...................................................................................... 70

Efeitos e Avaliao ....................................................................................... 73

3.3 - DESAFIOS DA PESQUISA E CONTRIBUIES DA TEORIA CRTICA

DA TECNOLOGIA ............................................................................................ 78

Centralidade da tecnologia ........................................................................... 82

Foco no processo de design ......................................................................... 84

Abertura e Inclusividade no design ............................................................... 88

Precocidade no design ................................................................................. 90

Deliberatividade no design ........................................................................... 90

4 - A REDE NOSSA SO PAULO E A CONSULTA PBLICA VOC NO

PARLAMENTO ......................................................................................................... 92

4.1 - A REDE NOSSA SO PAULO ................................................................. 92

4.2 - PRINCPIOS DA ORGANIZAO ............................................................ 93

4.3 - ESTRUTURA ORGANIZACIONAL ........................................................... 97

Grupos de Trabalho temticos (GTs) ........................................................... 97

Colegiado de Apoio ...................................................................................... 99

Secretaria Executiva ................................................................................... 100

4.4 - EIXOS DE ATUAO E PRINCIPAIS INICIATIVAS .............................. 103

4.5 - A CONSULTA PBLICA DIGITAL VOC NO PARLAMENTO ............... 106

5 - ILUSTRAO EMPRICA: A INICIATIVA DE PARTICIPAO DIGITAL VOC

NO PARLAMENTO SEGUNDO O FRAMEWORK ANALTICO PROPOSTO ....... 111

5.1 - ATORES ................................................................................................. 112

5.2 - FATORES CONTEXTUAIS .................................................................... 123

Disponibilidade de Informao ................................................................... 124

Acessibilidade ............................................................................................. 129

Infraestrutura .............................................................................................. 130

Organizao Governamental ...................................................................... 131

Questes Legais e de Polticas Pblicas .................................................... 140

5.3 - TECNOLOGIA ........................................................................................ 145

Atividade Social embutida .......................................................................... 146

Abertura e Inclusividade no design ............................................................. 157

Precocidade ................................................................................................ 169

Deliberatividade .......................................................................................... 170

5.4 - EFEITOS E AVALIAO ........................................................................ 171

Tom e Estilo ................................................................................................ 172

Quantidade de Participao ....................................................................... 173

Demografia dos Participantes ..................................................................... 175

Engajamento Cvico .................................................................................... 179

Deliberativo ................................................................................................. 180

Transparncia e Abertura ........................................................................... 181

Democrticos .............................................................................................. 187

6 - CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 194

REFERNCIAS ....................................................................................................... 204

ANEXO A ................................................................................................................ 212

ANEXO B ................................................................................................................ 213

12

1 - INTRODUO

Desde os anos 90, com a expanso da Internet, o fenmeno da participao

digital vem recebendo crescente ateno. Esse crescimento atestado pela grande

quantidade de atividades, como iniciativas e relatrios governamentais, surgimento

de empresas especializadas em tecnologias participativas e de programas de

pesquisa especficos sobre o tema (ROSE; SANFORD, 2007; SAEBO; ROSE; FLAK,

2008; UNITED NATIONS, 2010). Ainda em 2006, um relatrio do British Council j

listava cerca de 40 diferentes iniciativas governamentais na Alemanha e Reino

Unido, com 16 mecanismos distintos de participao digital em uso (JANSEN, 2006).

Os argumentos a favor de uma maior participao baseiam-se no conceito

normativo de democracia de Habermas (1996) e van Dijk (2000), segundo o qual a

democracia e o processo poltico formal dependem de uma comunicao eficaz e

uma tomada de decises informada sobre as questes pblicas dos cidados,

polticos, executivos e outras partes interessadas que podem ser afetadas por suas

decises coletivas (ROSE; SANFORD, 2007; SAEBO, ROSE; FLAK, 2008). Assim,

as prticas de participao digital fundamentam-se no pressuposto de que as

tecnologias da informao e comunicao (TIC) seriam instrumentos propcios para

reduzir alguns dos constrangimentos da democracia representativa.

Nessa perspectiva, possibilidades oferecidas por essas tecnologias, como a

comunicao muitos-para-muitos sem mediao, a facilidade do acesso e o baixo

custo das informaes, se reverteriam em benefcios democrticos atravs da

reduo da dependncia da mdia na comunicao entre governo e cidados, o

aumento da transparncia governamental, a simplificao de acesso a servios

governamentais, o barateamento de campanhas e informaes polticas para grupos

de interesse e partidos com baixo oramento, a facilitao de encontros

assncronos, em que os participantes no precisariam estar fisicamente reunidos na

mesma hora para poderem chegar a decises coletivas. De uma perspectiva mais

ampla, esse processo oportunizaria ento uma renovao do engajamento cvico,

com potencial de facilitar, mudar e aprimorar os padres de deliberao e tomada

democrtica de decises.

13

Entretanto, a capacidade das tecnologias incentivarem a participao no tem

sido to significativa como originalmente se acreditava (MACINTOSH; COLEMAN;

SCHNEEBERGER, 2009). Para alm da falta de efetividade, os autores destacam

os potenciais efeitos negativos das iniciativas de participao digital para a

democracia. Diante da existncia de obstculos demogrficos, sociais, econmicos

e cognitivos, h uma tendncia de os cidados que j participavam fazerem melhor

uso da participao digital, criando um espiral de pessoas j ativas, que parecem ser

mais propensas a fazerem uso de ferramentas de participao digital para expressar

sua voz poltica. Diante dessa tendncia que a participao online tem de favorecer

a elite poltica e tecnolgica, um desafio central da rea engajar participantes

representativos de todos os grupos da sociedade. Assim, para alm do senso

comum de que a Internet um novo suporte para democracia, o interesse atual dos

pesquisadores da rea de participao digital tem sido investigar a efetiva

capacidade dessas tecnologias para alterar ou estender as formas de participao

tradicionais (ROSE; SANFORD, 2007).

A iniciativa Voc no Parlamento, objeto de investigao deste trabalho, um

exemplo dessa tenso. A ao consistiu de uma consulta pblica realizada em 2011

pela Cmara Municipal de So Paulo, em parceria com a Rede Nossa So Paulo,

uma organizao no governamental apartidria da qual fazem parte atualmente

cerca de 700 organizaes. A Rede Nossa So Paulo, criada em 2007, tem como

objetivo encorajar o dilogo entre o setor pblico e a sociedade civil sobre questes

relativas qualidade de vida na cidade, articulando para isso diversos mecanismos

de atuao e mobilizao, com grande nfase na Internet. A consulta Voc no

Parlamento, por exemplo, foi operacionalizada na forma de um questionrio e,

realizada majoritariamente pela Internet, solicitava que os cidados escolhessem

prioridades para atuao do setor pblico em reas como sade, educao e

transporte, entre outras. O objetivo da iniciativa que as prioridades escolhidas

pelos cidados orientassem o trabalho da Cmara Municipal, na elaborao de

novos projetos de lei, na sugesto de emendas ao oramento municipal e na

fiscalizao do Executivo.

Ao final, a consulta Voc no Parlamento foi respondida por cerca de 33 mil

pessoas, tendo sido descrita como um questionrio de 29 perguntas que vai mudar

a sua vida e a histria de So Paulo (CAMARA ABERTA, 2011b) e a criao de

uma nova relao entre o Legislativo e a sociedade (REDE NOSSA SO PAULO,

14

2012a), entre outras avaliaes positivas. Por outro lado, entretanto, houve srias

crticas acessibilidade da iniciativa pelos respondentes e ao fato de que seus

resultados no teriam sido levados em considerao pelos vereadores.

Essa polaridade na avaliao dos efeitos da consulta Voc no Parlamento um

exemplo do debate sobre os efeitos das iniciativas de participao digital mais geral.

Enquanto alguns pesquisadores consideram a participao digital como uma

oportunidade eficiente para ampliar a transparncia poltica e reinventar a

participao poltica, por exemplo, outros as vem como mecanismos que tendem a

automatizar a poltica e inibir o debate poltico, concentrando-se sobre o potencial

impacto negativo da participao digital fornecer possibilidades adicionais de

participao para os j privilegiados, reforando dficits democrticos existentes

(MACINTOSH, 2004).

Considerando essa polaridade entre as duas vises, a Teoria Crtica da

Tecnologia oferece um enfoque alternativo. Baseadas em premissas tecnolgicas

determinsticas, essas perspectivas polarizadas se detm sobre a maneira segundo

a qual a tecnologia ir, para o bem ou para o mal, transformar a participao poltica.

Para Feenberg (2005), por outro lado, a Teoria Crtica da Tecnologia pode ampliar o

escopo desse debate ao enfatizar as negociaes realizadas durante o design da

tecnologia como um processo sociopoltico. Sob essa abordagem, a tecnologia

socialmente determinada, incorpora valores e no est livre de influncias histricas,

polticas e culturais. Assim, a tecnologia possui natureza ambivalente e seu

desenvolvimento um processo suspenso entre distintas possibilidades, de forma

que uma iniciativa de participao digital representa simultaneamente tanto uma

possibilidade de inovao democrtica quanto uma afirmao da tendncia ao

controle tecnocrtico que caracteriza as sociedades modernas.

Sob essa perspectiva, ento, no seria possvel avaliar, a priori, os efeitos da

consulta pblica Voc no Parlamento. Os efeitos de uma iniciativa de participao

digital sero tanto mais democrticos quanto mais inclusivo tiver sido seu design, ou

seja, quanto mais interesses tiverem sido representados na concepo da tecnologia

que facilita essa iniciativa, bem como quo deliberativo tiver sido o processo de

negociao entre fatores tcnicos e sociopolticos nessa concepo (FEENBERG,

1991). Assim, avaliar os efeitos da consulta Voc no Parlamento sob essa

abordagem equivale a afirmar que o carter dos efeitos dessa iniciativa para a

democracia depende de como o dilema da desigualdade, um desafio crucial para as

15

iniciativas de participao digital em geral, foi abordado no design e

consequentemente embutido na tecnologia - da iniciativa de participao digital.

1.1 - QUESTO DE PESQUISA E OBJETIVOS

Nesse contexto, considerando a discusso apresentada at aqui, este estudo

tem como problema de pesquisa: Quais as contribuies da Teoria Crtica da

Tecnologia na avaliao dos efeitos democrticos de uma iniciativa de

participao digital?

Nessa perspectiva, tomando como ilustrao emprica uma iniciativa especfica

de participao digital, a consulta pblica Voc no Parlamento, o objetivo deste

trabalho analisar as potenciais contribuies da abordagem da Teoria Crtica

da Tecnologia para a avaliao dos efeitos de uma iniciativa de participao

digital. Para alcanar esse objetivo geral, foram definidos os seguintes objetivos

especficos:

Descrever os pressupostos tericos e principais conceitos da Teoria Crtica da

Tecnologia;

Identificar e descrever o principal framework analtico adotado atualmente na

pesquisa em participao digital, bem como os principais desafios da rea de

pesquisa em participao digital;

Propor alteraes nas categorias e subcategorias analticas desse referido

framework que, sob o ponto de vista da Teoria Crtica da Tecnologia, contribuam

para fazer avanar a pesquisa na rea;

Aplicar o framework proposto na anlise da consulta pblica Voc no

Parlamento, visando testar as potenciais contribuies e lacunas do novo modelo

analtico.

16

1.2 - CONTEXTO DE ESTUDO

Este trabalho pretende contribuir para o avano da rea de pesquisa em

participao digital sob a perspectiva disciplinar dos Sistemas de Informao, que

consiste no estudo da interao de participao e de sistemas de computador em

seu contexto social.

A rea de pesquisa em participao digital complexa. Essa complexidade dos

processos eparticipativos resulta das diferentes reas de participao, partes

envolvidas, nveis de engajamento e estgios na formulao de polticas, que

caracterizam as prticas, bem como as investigaes sobre o tema (SAEBO; ROSE;

FLAK, 2008). Mais especificamente com relao pesquisa, a dificuldade de se

investigar a participao digital agravada porque se trata de uma rea ainda

emergente e de natureza interdisciplinar (ROSE; SANFORD, 2007; MACINTOSH;

COLEMAN; SCHNEEBERGER, 2009).

Assim, embora existam sinais de que a pesquisa na rea esteja caminhando

em direo maturidade, e que, em breve, emergir como uma rea independente,

com foco particular prprio (SAEBO; ROSE; FLAK, 2008), hoje a participao digital

ainda uma rea em formao (MEDAGLIA, 2011). Para a pesquisa,

especialmente complicado compreender uma rea em formao porque no h um

consenso sobre a definio do campo, uma viso clara sobre as disciplinas ou

mtodos, assim como ainda no esto definidos seus limites (SAEBO; ROSE; FLAK,

2008).

Mas alm desses obstculos, a natureza interdisciplinar da rea que leva a

que a participao digital seja um domnio de pesquisa particularmente desafiador. A

investigao atual deriva do reenfoque de outras reas de pesquisa preexistentes,

uma gama variada de disciplinas possveis na abordagem do tema, que pode ser

observada na seguinte descrio:

A Participao uma atividade comunicativa, e as tecnologias, ou mdia, que a suportam so viabilizadores. Participao tambm estudada como uma atividade poltica e normalmente posicionada no domnio da poltica formal ou Cincia Poltica - e no como um processo mais abrangente da sociedade comunicativa. Isso a torna interessante para pesquisadores que estudam formas e processos democrticos. A participao digital tem um aspecto de computao puro (Cincia da Computao), no entanto, tambm entendida como tecnologias de informao e comunicao em seus contextos sociais (Sistemas de Informao) (ROSE; SANFORD, 2007, grifo nosso).

17

Ao longo dos anos, o grande nmero de perspectivas disciplinares no vem

diminuindo, de forma que o carter interdisciplinar da rea tem se mantido

(MEDAGLIA, 2011). Essa interdisciplinaridade alimenta um ciclo desafiador: uma vez

que impossvel obter uma nica abordagem ao assunto, a pesquisa sobre o tema

fragmentada, dificultando a definio de agendas de pesquisa coordenadas. Essa

falta de coordenao, por sua vez, leva a atividades de pesquisas isoladas, carentes

de uma terminologia comum e conceitos compartilhados. Essa ausncia dificulta a

identificao de literatura relevante e leva frequentemente produo de estudos de

caso idiossincrticos que fomentam o desenvolvimento de nichos (MACINTOSH;

COLEMAN; SCHNEEBERGER, 2009), ao invs de apoiar um framework comum

para a pesquisa. Esse ciclo dificulta o avano do campo para alm de sua atual

fragmentao e subdesenvolvimento terico. Assim, as dificuldades resultantes da

fragmentao prosseguem constituindo obstculos para a integrao da pesquisa e

ameaando, de uma forma mais ampla, a prpria produo de conhecimento na

rea, assim como o futuro desenvolvimento de ferramentas.

Uma estratgia para enfrentar essa fragmentao atual seria a busca por uma

pesquisa integrada, que compartilhasse terminologia, mtodos, ferramentas e dados

(ROSE; SANFORD, 2007; SAEBO; ROSE; FLAK, 2008; MEDAGLIA, 2011), em

projetos de pesquisa que pudessem tirar proveito de resultados j alcanados em

outras disciplinas (MACINTOSH; COLEMAN; SCHNEEBERGER, 2009).

Considerando essa necessidade, portanto, pesquisas futuras em participao digital

deveriam assegurar comunicao transversal que permitam aos pesquisadores de

diferentes disciplinas transferirem mtodos e traduzir seus vocabulrios. Os autores

defendem que se a pesquisa puder ser canalizada para um framework global, a

interdisciplinaridade poder ser at mesmo positiva participao digital, que se

beneficiar das ricas abordagens epistemolgicas e metodolgicas necessrias para

compreender esta rea em que tantas perspectivas esto envolvidas.

Nesse cenrio, Rose e Sanford (2007) conclamaram os pesquisadores a um

esforo multidisciplinar coordenado para fazer avanar a participao digital. Esse

esforo em direo integrao vem ocorrendo, por exemplo, na forma de produo

de diversas revises de literatura, que tem objetivo de prover vises panormicas da

pesquisa na rea. Outro avano nesse sentido tem sido observado na proposio de

ferramentas epistemolgicas que possam ser compartilhadas por diversas

18

disciplinas, como os frameworks, modelos e esquemas analticos propostos por

Saebo, Rose e Flak (2008), Rose e Sanford (2007) e Macintosh, Coleman e

Schneeberger (2009), entre outros.

1.3 - CONTRIBUIES ESPERADAS

Considerando os obstculos que a fragmentao representa para a pesquisa

na rea e os esforos que tem sido feitos para sua integrao, passamos a apontar

as contribuies esperadas deste trabalho para esses desafios atuais da pesquisa

em participao digital, bem como suas potenciais contribuies para a disciplina de

Sistemas de Informao.

Para a pesquisa em participao digital

Espera-se que este trabalho possa contribuir para a pesquisa em participao

digital em trs frentes: para sua integrao epistemolgica, para seu

desenvolvimento terico e para a diversificao dos objetos empricos investigados.

A primeira frente visa o compartilhamento de ferramentas e vocabulrio

epistemolgicos. Do ponto de vista das ferramentas, por exemplo, mencionamos

que tem sido produzidas revises da literatura visando prover vises panormicas

da pesquisa na rea, mas estas revises mapeiam apenas a produo da literatura

em ingls. Diante disso, a identificao da produo de conhecimento sobre o tema

no Brasil pode identificar elementos que complementem essas revises

internacionais. Com esse intuito, seguindo metodologia similar adotada nos

levantamentos anteriores, como o uso dos mesmos descritores de busca, por

exemplo, realizou-se uma reviso da produo cientfica brasileira sobre a

participao digital no campo da Administrao1.

1 Uma diferena que as revises de literatura anteriores pesquisaram o conhecimento produzido em todas as disciplinas, enquanto aqui investigamos apenas o campo da Administrao. O campo da Administrao foi investigado por incluir - mas no se restringir a - disciplina Sistemas de Informao, que a perspectiva adotada neste trabalho. Reconhecemos a importncia de uma reviso de literatura que mapeie a produo de conhecimento sobre o tema no Brasil em todas as

19

Os resultados dessa reviso revelaram que o tema da participao digital

bem como a temtica mais ampla da democracia digital - tem sido pouco investigado

pela pesquisa em Administrao. Alm disso, os raros trabalhos relacionados ao

tema, a exemplo de Pinho (2008), que investiga a relao entre governo eletrnico

e aprofundamento da democracia por meio de processos digitais, no adotam os

termos participao digital, democracia digital nem suas variantes, tendo sido

identificados somente quando descritores relacionados a Governo Eletrnico foram

includos na busca. Cunha e Santos (2005) j haviam afirmado que os conceitos de

governo eletrnico e democracia eletrnica parecem se confundir, ora so utilizados

como sinnimos, ora como subconjuntos, e as fronteiras dos campos que os

distinguem no ficam sempre claras (p.5).

Essa caracterstica da produo de conhecimento brasileira alinha-se com os

resultados observados na literatura internacional, em que o termo eParticipation,

embora esteja lentamente amadurecendo na academia, ainda pouco adotado, e

muitas pesquisas relevantes o abordam sob outras palavras-chaves, como

eGovernance, eDemocracy e eVoting (SAEBO; ROSE; FLAK, 2008). O que

distingue o conhecimento produzido internacionalmente para o observado no Brasil,

nesse caso, que embora l o termo eParticipation esteja menos estabelecido que

eDemocracy e eGovernment (ROSE; SANFORD, 2007), estes ltimos j esto

relativamente consolidados. No Brasil, chama a ateno o fato de que mesmo o

tema mais amplo da democracia digital ainda no esteja sendo investigado, pelo

menos no campo da Administrao2. Isso leva concluso de que o campo carece

de pesquisas tanto sobre o tema mais amplo da democracia digital quanto sobre o

tema mais especfico da participao digital.

Ainda do ponto de vista do compartilhamento das ferramentas epistemolgicas,

este trabalho pretende contribuir para apoiar a construo de um framework analtico

comum para a rea de participao digital. A partir da constatao que o Modelo

Panormico proposto por Saebo, Rose e Flak (2008) no consegue dar conta da

disciplinas, mas isso fugiria do escopo deste trabalho. Para estudos preliminares nesse sentido, ver SAMPAIO (2011). 2 possvel que esses termos j estejam sendo adotados em trabalhos como dissertaes, teses e artigos publicados em eventos cientficos de Administrao, mas que ainda estejam em processo de submisso nos peridicos.

20

anlise de uma iniciativa de participao digital sob uma perspectiva sociotcnica

como a Teoria Crtica da Tecnologia, por exemplo, ao invs de propor um novo

modelo que possibilitasse essa anlise, optamos por propor adaptaes ao modelo

Saebo, Rose e Flak (2008), com objetivo de possibilitar que o mesmo tambm venha

a ser usado sob a perspectiva terica sociotecnica.

Alm de apoiar o um framework comum para a rea, atendendo ao alerta de

Rose e Sanford (2007), buscou-se, sempre que possvel, compartilhar o vocabulrio

adotado na literatura em participao digital. Um exemplo foi a opo pelo termo

organizao voluntria visando aderir terminologia comum pesquisa na rea -

quando no Brasil os termos organizao no governamental, Organizao Social

de Interesse Pblico (OSCIP) ou rede de mobilizao civil (GOHN, 2010) so

usados mais frequentemente para se referir a organizaes desse tipo.

Nesse ponto, alis, cabem algumas observaes sobre a terminologia adotada

neste trabalho. Com relao traduo de termos estrangeiros, por exemplo, optou-

se por no traduzir o componente e da grafia em ingls (como em eParticipation)

para eletrnico (seu equivalente literal em portugus), mas para digital, sempre

que esta era a opo mais usada na literatura brasileira sobre o tema. Assim, o

termo eParticipation foi transcrito como participao digital que, embora ainda

pouco pesquisado no Brasil (como mencionado antes), ainda mais freqente do

que a traduo literal participao eletrnica, ou suas variantes participao

virtual e participao online. Assim, essa lgica foi seguida na transcrio de todos

os conceitos e, exceto nos casos em que outra traduo j estava mais

consolidada no Brasil, como em governo eletrnico e voto eletrnico, por

exemplo.

Com relao segunda frente de contribuio esperada deste trabalho, a do

desenvolvimento terico da pesquisa, a abordagem da Teoria Crtica da Tecnologia

pode trazer uma contribuio relevante para a participao digital. Macintosh,

Coleman e Schneeberger (2009) destacam as extensas conseqncias do

determinismo tecnolgico para o campo, destacando a necessidade de mais

investigaes que adotem a perspectiva sociotcnica. Nesse sentido, a autora

destaca que reivindicaes determinsticas que vinculam as TIC a efeitos mais

democrticos tm sido corretamente criticadas, por negligenciarem as formas pela

qual as prprias tecnologias so socialmente formatadas e por conceberem os

relacionamentos polticos de uma maneira funcional e mecanicista, deixando

21

escapar suas dinmicas culturais e ideolgicas. Por um lado, Medaglia (2011)

identificou que h um discurso antideterminista entre pesquisadores da rea, mas

que em grande parte das vezes a posio mais retrica do que incorporada aos

modelos de anlise de fato.

Alm disso, embora o design da tecnologia seja um desafio central para a rea

(MACINTOSH; COLEMAN; SCHNEEBERGER, 2009), consenso entre os

pesquisadores que o desenvolvimento das tecnologias de participao digital tem

sido trivialmente pesquisado (ROSE; SANFORD, 2007; SAEBO, ROSE; FLAK, 2008;

MEDAGLIA, 2011). Diante disso, h a necessidade de mais estudos que subsidiem

a concepo de tecnologias adequadas para as atividades de participao digital.

Nesse sentido, assim como a perspectiva sociotcnica da Teoria Ator-Rede,

sugerida por Macintosh, Coleman e Schneeberger (2009), a Teoria Crtica da

Tecnologia tambm pode trazer contribuies relevantes necessidade que a

pesquisa em participao digital tem atualmente de dedicar mais ateno natureza

controvertida da democracia. Uma vez que esse um argumento central deste

trabalho, ser discutido mais detalhadamente no Captulo Trs, quando da

proposio de alteraes no framework analtico de Saebo, Rose e Flak (2008) para

acomodar a perspectiva terica proposta.

Finalmente, com relao s contribuies no nvel emprico, enquanto a

pesquisa em participao digital tem investigado majoritariamente iniciativas

concebidas em pases desenvolvidos, o caso investigado possibilita compreender

uma iniciativa conduzida em um pas em desenvolvimento. Medaglia (2011) afirma

que, com a popularizao da participao digital em outros pases, a pesquisa

deveria esforar-se para diversificar aspectos como, por exemplo, a gama de fatores

contextuais que podem explicar o sucesso ou falha dessas iniciativas. Nesse

sentido, a experincia brasileira em formas tradicionais de participao tem tido

destaque no cenrio internacional, por sua dimenso e vitalidade. Diversos autores

(DAGNINO, 2002; SANTOS, 2002; AVRITZER, 2008) destacam que o Brasil, pelas

reformas constitucionais, movimentos sociais e inovaes polticas que abrigou nos

ltimos anos, tem sido um dos mais importantes laboratrios do mundo de iniciativas

de democracia participativa. Diante disso, analisar uma iniciativa como a consulta

pblica Voc no Parlamento, conduzida em um contexto distinto do comumente

investigado, pode trazer novos elementos para a pesquisa em participao digital.

22

Uma vez apresentadas as contribuies epistemolgicas, tericas e empricas

que este trabalho pretende trazer pesquisa em participao digital, importante

tambm definir como o mesmo posiciona-se neste contexto de estudo. Rose e

Sanford (2007) realizaram um mapeamento identificando as principais

preocupaes, teorias e mtodos da pesquisa nessa rea. Adotando como

referncia esse Esquema de Definio proposto pelos autores, o Quadro 1 situa este

trabalho com relao caracterizao geral dos estudos na rea.

MOTIVAAO Imperativo de participao (stakeholders na sociedade tm um direito intrnseco de participar na formao e execuo de polticas pblicas, especialmente quando se trata de seus interesses).

DISCIPLINA DE REFERENCIA

Sistemas de Informao

TEORIA DE REFERENCIA

Teoria Crtica da Tecnologia

DESAFIOS DE PESQUISA

Desafio estratgico + Desafio de design para contribuir com elementos para compreender qual a melhor tecnologia para a melhor participao

Quadro 1 Posicionamento no contexto da pesquisa em participao digital Fonte: Rose e Sanford (2007)

Assim, o posicionamento deste trabalho pode ser descrito resumidamente da

seguinte forma: motivado por um desejo de entender, melhorar ou remodelar as

formas de participao da sociedade (em contraponto a outras motivaes

possveis, como uma justificativa instrumental ou um foco na tecnologia), adota

Sistemas de Informao como referncia disciplinar, ou seja, a disciplina mais

estabelecida em que o novo campo baseia seus temas, teorias e mtodos, e como

referncia terica a Teoria Crtica da Tecnologia, visando contribuir para a discusso

normativa sobre qual a melhor tecnologia para a melhor participao.

Finalmente, tendo descrito as contribuies esperadas e o posicionamento

deste trabalho no contexto de estudo da participao digital, passamos a descrever

as contribuies esperadas para a disciplina Sistemas de Informao em geral.

23

Para a pesquisa em Sistemas de Informao

Embora o foco principal deste trabalho seja contribuir para a pesquisa em

participao digital, pretende-se que seus resultados possam tambm trazer

contribuies para a pesquisa em Sistemas de Informao (SI).

Do ponto de vista terico, ao combinar as abordagens sociotcnica e crtica, a

perspectiva da Teoria Crtica da Tecnologia pode enderear lacunas atuais da

pesquisa em Sistemas de Informao. Avgerou (2008) afirma que, em SI, o potencial

desenvolvimentista das TIC frequentemente dado como certo, como, por exemplo,

na pesquisa sobre ICTD (TIC para o Desenvolvimento). Nesse sentido, o

indeterminismo tecnolgico introduzido pela Teoria Crtica da Tecnologia pode

contribuir para ampliar as alternativas possveis de desenvolvimento tecnolgico.

A abordagem sociotcnica no novidade na pesquisa em Sistemas de

Informao, uma vez que muitos estudos adotam, por exemplo, a perspectiva do

Construtivismo Social da Tecnologia (SCOT) e o debate da no neutralidade e

indeterminismo do design tecnolgico no novo na rea. Entretanto, embora exista

ainda uma necessidade de mais estudos crticos na pesquisa em Sistemas de

Informao (WALSHAM; ZHENG, 2008), a perspectiva da SCOT acrtica

(DAGNINO, 2007). Nesse sentido, a participao digital, por exemplo, um tipo de

temtica em que a abordagem crtica pode abrir a caixa preta, contribuindo para

uma compreenso mais profunda sobre as formas aceitas de se fazer as coisas

(WALSHAM; ZHENG, 2008). Alm disso, ainda do ponto de vista terico, a

perspectiva da Teoria Crtica da Tecnologia pode contribuir para a rea de SI por

sua natureza disciplinar, mais voltada s cincias polticas e sociais (HEEKS, 2006).

Uma contribuio especfica para a pesquisa no Brasil, que em SI no se

tem, em geral, investigado a relao entre a democracia e as TIC (como revelou a

reviso da literatura mencionada anteriormente). Mais especificamente sobre o caso

estudado neste trabalho, por exemplo, a Rede Nossa So Paulo configura-se como

uma nova forma de ao coletiva que emergiu nos ltimos anos, um tipo de

associativismo que difere dos movimentos sociais que os precederam, por exemplo,

pelo seu foco em novos temas, engajamento de novos atores e adoo de novas

estratgias em sua atuao (GOHN, 2010). O papel das novas tecnologias vem

sendo apontado como fundamental para a emergncia desse fenmeno (JACOBI;

MONTEIRO, 2007; SCHERER-WARREN, 2008; GOHN, 2010). Gohn (2010), por

24

exemplo, afirma que a difuso do uso das novas tecnologias e a expanso dos

meios de comunicao tem refletido na conjuntura sociopoltica em que atuam os

movimentos sociais no associativismo existente. Entretanto, embora esse tipo de

organizao j tenha sido investigado sob a perspectiva disciplinar da Administrao

Pblica (ALVES et al, 2010; FIABANE, 2011; SCHOMMER; MORAES, 2010), o

processo de concepo e uso dessas tecnologias, bem como a maneira como esse

uso se reflete em novas formas de organizao e articulao sociopolticas, no tem

sido investigados (WINKLER, 2010).

Finalmente, alm das contribuies esperadas para a pesquisa nas reas de

participao digital e Sistemas de Informao, este trabalho pode ainda contribuir

para o desenvolvimento das prprias tecnologias participativas. A Rede Nossa So

Paulo uma organizao relevante por sua forte influncia poltica e, sobretudo, por

sua busca pela exemplaridade. Nesse aspecto, a organizao tem servido de

modelo para a criao de dezenas de organizaes similares no Brasil, de forma

que em 2011, por exemplo, j eram 32 organizaes, articuladas em uma Rede

Brasileira de Cidades Justas e Sustentveis (REDE NOSSA SO PAULO, 2012a).

Essa busca por exemplaridade reflete-se, ento, em uma grande probabilidade de

que a consulta digital Voc no Parlamento venha a ser reproduzida em outros

municpios. Essa tendncia se expressa, por exemplo, na fala da coordenao da

organizao no-governamental, como em isso [a consulta Voc no Parlamento]

no apenas um evento, um processo que, esperamos, seja exemplar para outras

cidades (REDE NOSSA SO PAULO, 2012a) ou no interesse demonstrado pela

Cmara Municipal de outras cidades em reproduzir a iniciativa em seus municpios

(CAMARA MUNICIPAL DE SAO PAULO, 2012a). Para alm da potencial

multiplicao da iniciativa em outros contextos, a Cmara Municipal pretende

realizar a prpria consulta pblica Voc no Parlamento novamente em 2013. Nesse

sentido, abrir a caixa preta da concepo da iniciativa, como recomenda Walsham

(2008), pode contribuir para identificar pontos fracos a serem melhorados, de forma

que, enquanto iniciativa de participao digital, seus efeitos para a democracia

possam ser mais conhecidos.

25

1.5 - TRAJETRIA METODOLGICA

Nesta seo, so descritos os procedimentos metodolgicos adotados para

empreender a investigao.

Estratgia da pesquisa

A pesquisa foi delineada como um estudo de caso, numa abordagem

qualitativa. Optou-se por esse delineamento porque, sendo uma investigao

emprica que investiga um fenmeno contemporneo dentro de seu contexto de vida

real, os estudos de caso permitem gerar conhecimento sobre fenmenos individuais,

organizacionais, sociais, polticos e de grupo, configurando-se como a melhor

estratgia quando os limites entre o fenmeno e o contexto no esto claramente

definidos (YIN, 2005). Por essas caractersticas, Eisenhardt (1989) afirma que o

estudo de caso tambm o delineamento de pesquisa mais apropriado para o

estudo de novas reas e tpicos recentes ou pouco analisados, possibilitando a

construo de novas teorias testveis e empiricamente vlidas. Particularmente nas

pesquisas sobre participao da sociedade civil, Brlaz (2012) informa que os

estudos de caso vm sendo amplamente adotados na investigao de conselhos de

polticas pblicas e oramentos participativos, por exemplo, j que estas so

iniciativas recentes de participao.

Alm disso, esta pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso

instrumental. Sobre esses tipos de investigao, Stake (1998) esclarece que o

objetivo do estudo de caso instrumental contribuir para a construo de uma teoria

e o caso utilizado para ilustrar um problema, ou seja, examinado para fornecer

informaes sobre um cenrio mais amplo. Assim, diferente de um estudo de caso

intrnseco, no estudo de caso instrumental o interesse no est no caso em si, este

de interesse secundrio e visa facilitar a compreenso de alguma outra coisa

(EISENHARDT, 1989). Nessa perspectiva, o caso da consulta pblica Voc no

Parlamento desempenha um papel de apoio neste trabalho, uma vez que seu estudo

visa facilitar a compreenso do tema mais amplo da avaliao dos efeitos de uma

iniciativa de participao digital e as potenciais contribuies da perspectiva da

Teoria Crtica da Tecnologia para essa temtica.

26

A unidade de anlise de um estudo de caso pode ser uma organizao, um

processo decisrio, um grupo ou indivduos. Neste trabalho, a unidade de anlise

investigada a consulta pblica Voc no Parlamento, realizada pela Rede Nossa

So Paulo em parceria com a Cmara Municipal de So Paulo.

Coleta de dados

A coleta de dados das evidncias que subsidiaram a anlise foi realizada

atravs dos seguintes instrumentos: navegao orientada em websites, anlise

documental, observao direta e entrevistas. A coleta em diversas fontes de dados

visou atender os trs princpios propostos por Yin (2005), ou seja, utilizar vrias

fontes de evidncia, criar um banco de dados para o estudo de caso e manter o

encadeamento das evidncias. A sequncia em que esses dados foram coletados e

o processo de coleta adotado para cada instrumento so descritos a seguir.

Num primeiro momento, exploratrio, os dados foram coletados atravs de

navegao orientada em pginas da Internet especificamente dedicadas consulta

pblica ou que faziam referncias mesma, como os seguintes websites: Voc no

Parlamento; Cmara Municipal de So Paulo; Rede Nossa So Paulo; redes sociais

Twitter, Facebook, Orkut e Youtube; busca genrica no Google em busca de notcias

referentes iniciativa Voc no Parlamento, votao do oramento municipal 2012,

Rede Nossa So Paulo e pesquisa IRBEM. As evidncias coletadas nessa

navegao orientada foram registradas em notas de campo.

Em seguida, procedeu-se a coleta de evidncias em documentos. A anlise

documental proveu acesso ao discurso oficial das organizaes envolvidas, em

textos que permitiram apreender seus valores, crenas e interesses. Alm disso, a

anlise de documentos foi importante, especificamente do ponto de vista da

perspectiva terica adotada neste trabalho, porque permitiu reconstruir a trajetria

de desenvolvimento da iniciativa. Nesse sentido, os documentos revelaram detalhes

fundamentais para a compreenso da concepo da consulta, que, posteriormente

assimilados e encapsulados no estgio atual da iniciativa, teriam passados

despercebidos pelo pesquisador por no mais fazer parte mais do discurso dos

entrevistados sobre o processo.

27

Para investigar a concepo da consulta pblica foram analisados os seguintes

documentos:

- Rede Nossa So Paulo: documentos referentes fundao da organizao, como

Estatuto de constituio, Manifesto de lanamento e Carta de Princpios; publicao

anual Realizaes e Balano de 2007 a 2011; resultados da pesquisa IRBEM de

2010 a 2012; Atas das reunies dos Grupos de Trabalho temticos3; boletins de

divulgao publicados entre 2008 a 2012;

- Cmara Municipal de So Paulo: Termo de Cooperao Tcnica 21/2011

(celebrado entre a CM e o Instituto So Paulo Sustentvel estabelecendo integrao

e intercambio tcnico para desenvolvimento de estudos e pesquisas); Parecer 107/

2011 da Procuradoria Jurdica analisando o referido Termo de Cooperao; 1 e 2

Termos de Aditamento ao referido Termo de Cooperao; Notas taquigrficas das

sesses legislativas ordinrias (registros das falas dos parlamentares) realizadas

entre 1/2/2011 e 2/8/2012, edies do jornal Cmara Aberta entre jun/11 (primeira

edio lanada) e jul/12;

O passo seguinte navegao orientada e anlise dos documentos foi a

realizao de entrevistas semiestruturadas. De posse de informaes detalhadas

sobre o processo de desenvolvimento da iniciativa, as entrevistas foram importantes

para esclarecer pontos especficos sobre o processo que no tinha sido possvel

identificar nos documentos, bem como para explorar mais profundamente valores e

percepes dos atores chaves que tinham sido observados anteriormente no

discurso oficial das organizaes. A escolha dos entrevistados foi realizada pelo

mtodo bola de neve (BIERNACKI; WALDORF, 1981). Essa tcnica uma forma

de amostra no probabilstica utilizada em pesquisas sociais onde os participantes

iniciais de um estudo indicam novos participantes, que por sua vez indicam outros

participantes e assim sucessivamente, at que seja alcanado o ponto de

saturao. O ponto de saturao atingido quando os novos entrevistados

3 Disponveis apenas dos GTs Assistncia Social, Cultura, Educao, Meio Ambiente,

Acompanhamento do Oramento Municipal e Juventude

28

passam a repetir os contedos j obtidos em entrevistas anteriores, sem acrescentar

novas informaes relevantes pesquisa (WHA, 1994). Adicionalmente a esse

critrio de escolha, certos atores que no tinham sido indicados pelos entrevistados,

mas identificados pela pesquisadora como tendo ocupado um papel relevante na

iniciativa, tambm foram ouvidos. O Quadro 2 relaciona os atores entrevistados e o

processo de escolha.

Ator Critrio de escolha

Atuao na iniciativa Voc no Parlamento

Professor da Fundao Getlio Vargas (FGV-SP)

Primeiro entrevistado, escolhido intencionalmente

Integrante do Comit Tcnico que desenhou a consulta

Vereador Presidente da Cmara Municipal

Indicado por outro entrevistado

Responsvel por iniciar a parceria para realizao da consulta

Coordenador da Secretaria Executiva da Rede Nossa So Paulo

Indicado por outro entrevistado

Integrante do Comit Tcnico que desenhou a consulta

Assessora Legislativa da Presidncia da Cmara Municipal

Indicado por outro entrevistado

Coordenadora do Programa Voc no Parlamento na Cmara/ Integrante do Comit Tcnico que desenhou a consulta

Vereador Relator do Oramento Municipal 2012

Includo por papel relevante

Afirmou que no utilizou resultados da consulta porque seus critrios tcnicos no foram debatidos

Coordenador do GT Democracia Participativa da Rede Nossa So Paulo e Diretor da Escola de Governo

Indicado por outro entrevistado

Integrante do Comit Tcnico que desenhou a consulta

Jornalista da Rede Nossa So Paulo

Indicado por outro entrevistado

Responsvel por cobrir notcias na Cmara Municipal

Coordenadora GT Educao da Rede Nossa So Paulo

Includo por papel relevante

Integrante do Comit Tcnico que desenhou a consulta

Quadro 2 Relao dos entrevistados Fonte: Elaborao prpria

Concomitantemente navegao orientada, anlise documental e entrevistas,

realizou-se observao direta em eventos especficos relacionados iniciativa. Foi

realizada observao no participante no evento de divulgao dos resultados da

consulta pblica Voc no Parlamento e divulgao dos resultados das edies da

pesquisa IRBEM e observao participante - como cidado respondente - da prpria

consulta Voc no Parlamento. As observaes coletadas nesses processos tambm

foram registradas em notas de campo.

29

Anlise dos dados

Os dados coletados foram analisados empregando-se a tcnica de Anlise de

Contedo, utilizando-se para isso o software Atlas/Ti. O uso desse software

possibilitou organizar a grande quantidade de informaes oriundas de documentos,

entrevistas e notas de campo, atravs da codificao e rotulao dos dados.

O processo de codificao consiste de uma associao de um rtulo (cdigo)

a um segmento de texto que permite a identificao de um tema ou uma ideia com

um significado importante para aquela pesquisa. O processo de codificao pode

basear-se em dois tipos de cdigos: aqueles predefinidos por outros trabalhos e

aqueles emergentes (open coding), ou seja, rtulos gerados durante a prpria

pesquisa. Neste trabalho, a codificao dos dados coletados adotou os dois tipos,

tanto cdigos predefinidos, oriundos das categorias e subcategorias do framework

analtico de Saebo, Rose e Flak (2008), quanto novos cdigos, emergentes da

Teoria Crtica da Tecnologia, visando propor novas categorias e subcategorias ao

modelo analtico existente.

O processo codificao dos dados, bem como as demais fases da anlise,

seguiu o protocolo de pesquisas qualitativas (MILES; HUBERMAN, 1984). Assim, o

procedimento seguido na criao dos novos cdigos consistiu nos seguintes passos:

1. Identificao das unidades de significados (segmentos que representam uma

mesma ideia) dentro dos textos;

2. Associao do(s) cdigo(s) que pertencem s mesmas unidade de significado;

3. Exame de todos os segmentos codificados com o mesmo cdigo para verificar a

coerncia;

4. Recodificao na direo inversa a fim de verificar a estabilidade;

5. Solicitao que algum faa parte da codificao para verificar a confiabilidade

inter-codificador.

Tendo seguido esses passos na criao dos cdigos, passamos avaliao da

coerncia e validade dos novos cdigos propostos. Essa validao foi realizada

seguindo o quinto passo listado acima (solicitar a um especialista que fizesse parte

da codificao), bem como buscando atender ao critrio de Plausibilidade,

recomendado por Pozzebon (2004) para avaliar os resultados de pesquisas que

30

adotam uma abordagem crtica interpretativa. Para tanto, os novos cdigos

propostos foram submetidos apreciao de pesquisadores da rea de Sistemas de

Informao em diversas reunies de grupo de pesquisa e em trs eventos

cientficos: no consrcio doutoral da ANPAD em 2010, em seminrio na Ecole des

Hautes Etudes Commerciales (HEC Montreal) em 2011 e no consrcio doutoral da

Academy of Management em 2011. As avaliaes recebidas desses pesquisadores

foram uma contribuio fundamental para a validao e aperfeioamento dos novos

cdigos apresentados no modelo analtico proposto neste trabalho.

Sendo um argumento fundamental deste trabalho, os novos cdigos criados a

partir da Teoria Crtica da Tecnologia e posteriormente propostos como novas

categorias no framework analtico de participao digital -, bem como a justificativa

para sua criao, so discutidos detalhadamente no Captulo Trs.

1.6 - ESTRUTURA DO TRABALHO

Alm desta Introduo, este trabalho possui mais cinco captulos.

No captulo Dois, so descritos os pressupostos tericos e principais conceitos

da Teoria Crtica da Tecnologia, que constitui o framework terico adotado neste

estudo.

Tendo apresentado a perspectiva terica proposta, no Captulo Trs passamos

a identificar as potenciais contribuies dessa abordagem para um modelo analtico

aplicvel na investigao emprica de iniciativas de participao digital. Para tanto,

em primeiro lugar apresentamos os pressupostos tericos da rea de participao

digital, bem como algumas definies adotadas para conceitu-la e sua relao com

o conceito de democracia digital. Em seguida, descrevemos as categorias que

compem o Modelo Panormico de Saebo, Rose e Flak (2008), o principal

framework analtico adotado na pesquisa em participao digital. Finalmente, so

propostas alteraes ao Modelo Panormico que, sob o ponto de vista da Teoria

Crtica da Tecnologia, poderiam contribuiriam para enfrentar alguns dos desafios

atuais da rea, sobretudo aqueles relacionados equidade e ao design da

tecnologia.

No Captulo Quatro, descreve-se a estrutura organizacional, reas de atuao e

principais iniciativas da organizao no-governamental Rede Nossa So Paulo,

31

responsvel por realizar a consulta Voc no Parlamento, a iniciativa de participao

digital adotada como caso instrumental investigado empiricamente neste trabalho.

Em seguida, descreve-se a prpria consulta pblica digital Voc no Parlamento.

No Captulo Cinco, o framework analtico proposto aplicado na anlise do

caso Voc no Parlamento, visando ilustrar empiricamente as potenciais

contribuies e lacunas do novo modelo.

Finalmente, no Captulo Seis apresentamos as Consideraes Finais deste

trabalho.

32

2 - A TEORIA CRTICA DA TECNOLOGIA

Neste captulo a Teoria Crtica da Tecnologia, que constitui o framework terico

adotado neste estudo, ser descrita. Para tanto, nas prximas sees sero

apresentadas a problemtica bsica e o posicionamento da teoria em relao s

demais abordagens sobre o tema, bem como as premissas filosficas, principais

conceitos e um exemplo ilustrativo de aplicao da Teoria Crtica da Tecnologia na

anlise emprica de uma tecnologia.

2.1 - POSICIONAMENTO E PROBLEMTICA BSICA

O principal formulador da Teoria Crtica da Tecnologia o filsofo da

tecnologia Andrew Feenberg. A Teoria Crtica da Tecnologia desenvolvida em trs

obras, que formam o conjunto principal do trabalho. Do incio dos anos 90 a meados

dos anos 2000, diferentes aspectos dessa mesma abordagem bsica foram

apresentados em Critical Theory of Technology (1991), Transforming Technology

(2002) e Questioning Technology (2005).

Os argumentos que embasam a Teoria Crtica da Tecnologia so

influenciados por pelo menos duas experincias do autor, que so ter sido aluno de

Herbert Marcuse nos anos 60 e sua participao em projetos de educao online no

incio dos anos 80. Esse contato direto com o campo emergente teria possibilitado

observar o papel da ao humana orientando o desenvolvimento da tecnologia.

Naquele contexto, segundo o autor, aspiraes democrticas para a tecnologia

adquiriam sentido na medida em que era possvel, sob seu ponto de vista,

reinventar o computador para servir a propsitos humanos de educao

(FEENBERG, 2002). Nessa trajetria, buscando desenvolver uma orientao mais

emprica para o estudo da tecnologia, Feenberg passa progressivamente de uma

posio ps-marxista para um construtivismo crtico.

Arikasa afirma que, frente centralidade que a cincia e tecnologia

assumiram no mundo contemporneo, as anlises de Feenberg levam-no a ser um

33

dos (seno o) mais importantes membros da gerao atual dos tericos crticos

(MELO-MARTN et al, 2011).

Situando a abordagem da Teoria Crtica da Tecnologia, Rdiger (2002) define o

trabalho de Feenberg como uma proposta de crtica razo tecnolgica, cujo

sentido seria devolver tcnica seu contedo poltico. Sob essa perspectiva, a

tecnologia est sempre sujeita ao poltico e s um processo de orientao no

tecnolgica poder em tese resolver os problemas econmicos, sociais e

ambientais criados com o desenvolvimento no mundo capitalista.

Embora seu trabalho dialogue com a Teoria Crtica e a Filosofia da Tecnologia

e relacione muitas disciplinas, est mais claramente situado dentro da tradio da

Teoria Crtica. Na acepo de tecnologia, Feenberg considera no somente outras

posies da Filosofia da Tecnologia e os Estudos Sociais da Tecnologia, mas

tambm dialoga com a Histria da Filosofia e questes relacionadas natureza da

causa e essncia (MELO-MARTN et al, 2011). Assim, alm de Habermas e

Marcuse, Latour e Pinch, Marx e Weber, dialoga tambm com Hegel, Kant, Bacon,

Descartes, Aristteles e Plato. Sendo uma acepo globalizada, a Teoria Crtica da

Tecnologia considera ainda a tecnologia moderna em diferentes contextos, como a

Frana e Japo. Arikasa (MELO-MARTN et al, 2011) define o trabalho de Feenberg

como empiricamente rico e teoricamente complexo, abordando problemas como o

essencialismo tecnolgico, determinismo tecnolgico, autonomia da tecnologia,

teoria da modernidade e vises socioconstrutivistas da cincia e tecnologia.

A Teoria Crtica da Tecnologia constri-se fortemente em oposio

abordagem dominante do Determinismo Tecnolgico. A perspectiva determinista

entende que a tecnologia determina a organizao social, e tem como teses

fundamentais que a mudana tecnolgica a causa da mudana social e a

tecnologia autnoma e independente das influncias sociais (DAGNINO, 2007).

Assim, o desenvolvimento da tecnologia considerado como uma varivel

independente que determinaria o comportamento das outras variveis do sistema

produtivo e social. O desenvolvimento econmico determinado pelo avano da

tecnologia e esta uma fora condutora da sociedade e um determinante da

estrutura social. A concepo determinista entende ento a tecnologia como sendo

uma forma de controle social da natureza ou uma coleo de dispositivos, isentos de

valores (NOVAES; DAGNINO, 2004). Dagnino (2007) afirma que o determinismo foi

criticado pela Escola de Frankfurt, que rejeita a separao entre valores e fatos no

34

pensamento moderno e trata a tecnologia como moldura das prticas sociais; no

como racionalidade pura, mas como expresso de um sistema governado por

valores. Entretanto, essa viso mecanicista e unilinear do progresso cientfico e

tecnolgico ainda permanece para muitos estudiosos da Tecnologia.

Nesse contexto, a problemtica bsica da Teoria Crtica da Tecnologia

contrape-se abordagem determinista. Sob a perspectiva de Feenberg, a

tecnologia no possui uma essncia prpria e pode tanto perpetuar silenciosamente

a dominao de uma minoria sobre uma maioria (tecnocracia) quanto contribuir para

o enriquecimento da vida democrtica (CALLON, 2010). Ou seja, por um lado, a

tecnologia pode ser - e -, configurada de modo a reproduzir o domnio de poucos

sobre muitos. Feenberg (1991) entende que esse poder realiza-se estreitando a

extenso de interesses e preocupaes que possam ser representados pelo

funcionamento normal da tecnologia e das instituies que dele dependem. Por

outro lado, entretanto, possvel introduzir controles mais democrticos e reformular

a tecnologia, ou seja, abrir a tecnologia a uma extenso mais ampla de interesses e

propsitos poderia levar a seu replanejamento rumo a uma maior compatibilidade

com os limites humanos e naturais da ao tcnica.

Os fundamentos filosficos dessa proposta esto em duas abordagens que

dividem a filosofia da tecnologia: a vertente substantiva e a vertente

socioconstrutivista da tecnologia (NAGEL, 2008). O Substantivismo, adotado por

Heidegger e, em menor grau, por Marcuse e Habermas, sustenta que a tecnologia

uma forma objetivada da racionalidade instrumental e possui uma essncia que

deve ser entendida, para se compreender e criticar nosso mundo tecnolgico. O

Construtivismo Social, por outro lado, sustenta que a tecnologia no tem uma

essncia prpria em oposio esfera social e poltica. A tecnologia tanto

representa as foras sociais, quanto contribui para a construo dessas mesmas

foras.

Nesse contexto, a Teoria Crtica da Tecnologia proposta por Feenberg (1991)

busca contribuir com a filosofia da tecnologia tirando o melhor de ambas as

abordagens, a substantiva e a construtivista, levando a que o autor se defina, como

mencionamos antes, como um construtivista crtico. Os fundamentos dessas duas

abordagens, bem como a forma como Feenberg incorpora-os em sua teoria so

apresentados mais detalhadamente nas prximas sees.

35

2.2 MARX E A CRTICA SUBSTANTIVA TECNOLOGIA

Nos anos 60, Marx estava desacreditado e, naquele contexto, uma revoluo

poltica parecia at mais implausvel do que hoje em dia (FEENBERG, 2005).

Embora Marcuse continuasse um crtico da sociedade industrial, sua teoria refletia o

fracasso do conceito marxista de que tenses internas entre trabalhadores e

capitalistas abalavam o capitalismo (idem, pg. 1).

Por outro lado, havia tenses de outro tipo naquela sociedade sessentista que

impunham questes sobre o que significavam, de quais fontes se originavam e qual

eram o objeto e destino dessas tenses. Feenberg propunha respostas diferentes

das de Marcuse para essas questes. Enquanto este, por um lado, acompanhava

Heidegger, sustentando que o universo tecnolgico da sociedade industrial

avanada era um sistema fechado ou quase fechado, em que a oposio era quase

impossvel. Feenberg, por outro lado, considerava essa teoria negativa demais e a-

histrica (FEENBERG, 2011). Entretanto, embora percebesse que aes polticas

produziam impactos sobre essas tenses internas, o autor no era ainda capaz de

explicar isso sem recorrer ao conceito marxista de revoluo proletria,

desacreditado naquele momento.

Aps os anos 60, as foras que sobreviveram na instncia da esquerda foram

os novos movimentos sociais no marxistas, como o feminismo e o ambientalismo. A

sociedade que tinha sido objeto de condenao global na dcada de 60 agora passa

a ser desafiada de maneira concreta e especfica. Questes como poluio

industrial, inseminao artificial, tratamentos experimentais de doenas eram

contestadas por movimentos como feminismo e o ambientalismo em termos das

consequncias dos designs tcnicos sobre a vida, sade e dignidade. No movimento

trabalhista, questes semelhantes evidenciavam averso tecnologia da produo.

Nesse contexto, Feenberg (2005) defende que uma compreenso adequada

da substncia da vida cotidiana no poderia ignorar a tecnologia. A forma como as

cidades, sistemas de transporte, meios de comunicao de massa, produo

agrcola e industrial so tecnologicamente desenhados matria poltica. Alm

disso, os tipos de coisas que parecem plausveis de propor como avanos ou

alternativos so em grande medida condicionados pelos fracassos das tecnologias

existentes e pelas possibilidades que sugerem. Ou seja, a antiga alegao de que a

tecnologia era poltica evidencia-se agora.

36

O autor toma como exemplo a questo da poluio do ar para ilustrar esse

argumento. Enquanto os responsveis por ela puderam escapar das consequncias

de suas aes sade em bairros arborizados, deixando que os pobres habitantes

urbanos respirassem o ar sujo, houve pouco apoio para solues tcnicas ao

problema (FEENBERG, 2005). Os controles antipoluio eram vistos como custosos

e improdutivos para os detentores do poder para implement-los. Com o tempo, um

processo poltico democrtico incendiou-se pela expanso do problema

acompanhada de protestos pelas vtimas e seus advogados legtimos deram corpo

aos interesses das vtimas. Segundo o autor, somente ento foi possvel constituir

uma temtica social que inclua tanto os ricos quanto os pobres para fazer as

necessrias reformas. Essa temtica finalmente forou um novo design do

automvel e de outras fontes de poluio que levassem a sade humana em

considerao. Esse caso seria um exemplo de poltica do design holstico que

acabaria por conduzir a sociedade um sistema tecnolgico mais holstico.

Sendo assim, para muitos crticos da sociedade tecnolgica, desde Mumford

e Marcuse at os tericos atuais, a teoria marxista irrelevante (FEENBERG, 2005).

Os crticos radicais da tecnologia geralmente concordam que Marx um crtico

antiquado da economia capitalista e que a emergncia do poder tecnocrtico

eclipsou o conceito marxista de luta de classes. Entretanto, considerando esse

carter poltico da tecnologia, Feenberg discorda dessa posio, defendendo que a

teoria marxista tem insights importantes para a filosofia da tecnologia. O autor

esclarece que Marx centralizou seu interesse na produo porque este era o

principal domnio de aplicao da tecnologia em seu tempo. Entretanto, com a

penetrao da mediao tcnica em toda esfera da vida social, as contradies e

potenciais que ele identificou na tecnologia continuam vlidos. Nesse ponto, o autor

retoma a teoria marxista para explicar a temtica geral do poder tecnocrtico.

Feenberg (1991) prossegue argumentando que em Marx, o capitalista , em

termos finais, definido no tanto pela propriedade da riqueza como pelo controle das

condies de trabalho. O proprietrio de uma fbrica no tem apenas um interesse

econmico no que ocorre dentro dela, mas tambm um interesse tcnico. Ao

reorganizar o processo de trabalho, pode aumentar a produo e os lucros. O

controle do processo de trabalho, por sua vez, conduz a novas ideias para o

maquinrio e logo depois cresce a mecanizao da indstria. Isso leva com o tempo

inveno de um tipo especfico de maquinrio que desabilita os trabalhadores e

37

exige gerenciamento. O gerenciamento age tecnicamente sobre pessoas,

estendendo a hierarquia de sujeito e objetos tcnicos em relaes humanas em

busca de eficincia. s vezes, gerentes profissionais representam e, de certa

maneira, substituem os proprietrios no controle das novas organizaes industriais.

Eis o que Marx qualifica como domnio impessoal inerente ao capitalismo para

distingui-lo do domnio pessoal das formaes sociais anteriores. Trata-se de um

domnio incorporado no design das ferramentas e na organizao da produo.

Diante disso, num estgio final que Marx no previu as tcnicas de gerenciamento e

a organizao e os tipos de tecnologia anteriormente aplicados no setor privado so

exportados ao setor pblico, onde influenciam campos como administrao

governamental, medicina e educao. O autor defende que o ambiente total da vida

social submete-se regra da tcnica e que, dessa forma, a essncia do sistema

capitalista pode ser transferido aos regimes socialistas construdos sob o modelo da

Unio Sovitica.

Feenberg (1991) prossegue na argumentao afirmando que, ento, todo o

desenvolvimento das sociedades modernas marcado pelo paradigma do controle

desqualificado sobre o processo de trabalho, sobre o qual se apoia o industrialismo

capitalista. esse controle que orientaria o desenvolvimento tcnico na direo da

despotencializao dos trabalhadores e da massificao do pblico. O autor

denomina esse controle de autonomia operacional, ou seja, a liberdade que o

proprietrio dos meios de produo ou seu representante tem de tomar decises

independentes sobre como efetivar o comrcio da organizao, sem considerar as

opinies ou interesses dos agentes subordinados e da comunidade em que se

insere. Segundo o autor, essa autonomia operacional de gerenciamento e

administrao os coloca numa relao tcnica em referncia ao mundo, a salvo das

consequncias de suas prprias aes. Em acrscimo, possibilitalhes reproduzir as

condies de sua prpria supremacia em cada repetio das tecnologias que

comandam.

Nesse sentido, a tecnocracia uma extenso desse sistema a toda a

sociedade, em resposta ao alastramento da tecnologia a todos os setores da vida

social. O poder tecnocrtico se arma contra presses do pblico, sacrifica valores e

ignora necessidades incompatveis com sua prpria reproduo e perpetuao de

suas tradies tcnicas.

38

Mas nesse cenrio, segundo Feenberg (1991), a tendncia tecnocrtica das

sociedades modernas representa apenas um dos caminhos possveis de

desenvolvimento. A tecnologia teria ento outros potenciais benficos, que so

suprimidos e que poderiam emergir ao longo de um caminho desenvolvimentista

diferente. O autor defende que, ao submeter os seres humanos ao controle tcnico

s expensas dos modos tradicionais de vida, quando restringe grandemente a

participao em design, a tecnocracia perpetua as estruturas de fora da elite

herdadas do passado em formas tcnicas racionais. Nesse processo, mutila no

apenas os seres humanos e a natureza, mas tambm a prpria tecnologia.

Sendo assim, uma estrutura de poder diferente poderia inovaria uma

tecnologia de diferentes conseqncias. Nas sociedades tecnocrticas modernas, a

ao humana ento aparece como valor democrtico no apenas para minorias

excludas, mas para todos. Nesse contexto, o autor denomina sua proposta de

abordagem de teoria crtica da tecnologia porque, embora seja informada pelos

estudos tecnolgicos contemporneos, alcanando, portanto um nvel de

concreticidade que Marcuse no alcanou, o autor mantm sua filiao posio

crtica. Nesse sentido, relaciona as tenses sociais s diferenas das experincias

de mundo sentidas por aqueles que o administram (dirigentes) e por aqueles que a

eles se submetem (dirigidos). Nessa perspectiva, o choque de diferentes mundos

seria inevitvel numa sociedade que se baseia no domnio tecnolgico.

Contudo, para alm dessa posio crtica, a abordagem proposta por

Feenberg (1991) , por outro lado, uma teoria sobre a ambivalncia da tecnologia.

Ao contrrio de muitos outros tericos crticos, Feenberg, ao basear a Teoria Crtica

da Tecnologia tambm no construtivismo social, permite identificar ambigidades e

possibilidades de liberdade e democracia no desenvolvimento tecnolgico. Essas

bases construtivistas da teoria so apresentadas nas prximas sees.

2.3 A CONTRUO SOCIAL DA TECNOLOGIA

O campo dos Estudos Sociais da Tecnologia investiga a relao Cincia,

Tecnologia e Sociedade com a inteno de abrir a caixa preta da tecnologia

(AGUIAR, 2002). A abordagem sociotcnica tem sido classificada em trs linhas: a

dos sistemas tecnolgicos (relacionado ao historiador da tecnologia Thomas

39

Hughes), a teoria Ator-Rede (associada a Callon, Latour e Law) e a escola do

construtivismo social da tecnologia (associada a Pinch e Bijker). A virada

construtivista que nos anos 80 revolucionava a abordagem sociotcnica teve forte

influncia sobre Feenberg, de forma que os fundamentos filosficos da Teoria Crtica

da Tecnologia baseiam-se no somente na perspectiva crtica da tecnologia, mas

tambm nessa vertente da sociologia da tecnologia (FEENBERG, 2005).

A tese central do construtivismo, que comea a se conformar em 1984, que

o caminho que vai de uma idia at uma aplicao bem sucedida longa e sinuosa,

entremeada com alternativas inerentemente viveis, que foram abandonadas por

razes que tm mais a ver com valores e interesses sociais do que com a

superioridade tcnica intrnseca da escolha final (DAGNINO, 2007). Assim, as

tecnologias no estariam determinadas por critrios tcnicos, haveria geralmente um

excedente de solues factveis para qualquer problema dado e os atores sociais

tomariam a deciso final entre uma srie de opes tecnicamente possveis. O

resultado que as tecnologias seriam construdas socialmente, no sentido de que os

grupos de consumidores, os interesses polticos e outros similares influenciam a

forma final que a tecnologia assume.

Os fundadores do construtivismo, Wiebe Bijker e Trevor Pinch, ilustram este

argumento com o clebre exemplo da histria do objeto bicicleta. Sob o ponto de

vista do construtivismo, a bicicleta, um objeto que, como outros, visualizado como

uma caixa preta, de fato comeou sua existncia com formas muito distintas. Com

relao finalidade, pode ser tanto um equipamento esportivo e quanto um veculo

de transporte. A bicicleta usada como equipamento esportivo tinha naquele tempo a

roda dianteira mais alta, necessria para alcanar maior velocidade uma vez que a

fora de trao era exercida diretamente na roda dianteira. Mas numa bicicleta

empregada com veculo de transporte, essa configurao causava instabilidade

(PINCH; BIJKER, 1984). Assim, durante certo perodo, os dois designs do objeto

bicicleta - que atendiam necessidades diferentes - conviveram lado a lado. Mas na

forma final assumida pelo objeto, observa-se que foram adotadas rodas de igual

tamanho, privilegiando valores de segurana em detrimento a valores de velocidade.

Pinch e Bijker (1984) usam esse exemplo para apresentar os conceitos de

marco tecnolgico e ensamble sociotcnico. O marco tecnolgico permitiria

compreender como o ambiente social se relaciona com o projeto de um artefato, ao

mesmo tempo explica como o ambiente social estrutura o projeto de um artefato e

40

indica como a tecnologia existente estrutura o ambiente social. J o conceito de

ensamble sociotcnico denota os arranjos entre elementos tcnicos e sociais que

formam uma outra entidade, algo mais que a simples soma desses elementos, e que

se converte num novo objeto de estudo empregado para explicar, tanto a condio

tecnolgica da mudana social, como a condio social da mudana tecnolgica

(DAGNINO, 2007).

Esse processo de construo sociotcnica continua acontecendo

sucessivamente. Relacionando essa dinmica ao caso da bicicleta, por exemplo,

sobre o projeto mais seguro, ganhador, da bicicleta, que alm de rodas de

tamanho diferente, apresentava solues tecnolgicas particulares, se aplicou uma

srie de inovaes posteriores. Apesar de incrementais, elas levaram a um projeto

muito distinto do original. Vendo o produto final em perspectiva, parece que o

modelo de roda alta era uma etapa inicial, tosca e menos eficiente, de um

desenvolvimento progressivo. De fato, os dois modelos conviveram durante anos e

um no pode ser visto como uma etapa de um desenvolvimento que conduziu ao

outro. O modelo de roda alta era na verdade a origem de um factvel caminho

alternativo para o desenvolvimento da bicicleta.

Mas esse processo de construo no acontece indefinidamente. A dinmica

sociotcnica atravs do qual artefatos tecnolgicos vo tendo suas caractersticas

definidas atravs de uma negociao entre grupos sociais relevantes, com

preferncias e interesses diferentes, depois de passar por uma situao de

estabilizao chegaria um estgio de fechamento (BIJKER, 1995). Neste estgio

diminui drasticamente a flexibilidade interpretativa e alguns significados originais

desaparecem. Da multiplicidade de vises inicial emerge um consenso entre os

grupos sociais relevantes que faz diminuir a possibilidade de uma inovao radical.

Diante disso, a abordagem construtivista prope o entendimento dos sistemas

tecnolgicos como construes sociais, isto , como fruto da interao dos distintos

grupos sociais relevantes que convivem no seu interior.

Essa perspectiva proposta pelos construtivistas influenciou fortemente a

formulao da Teoria Crtica da Tecnologia. Se, por um lado, a filosofia da

tecnologia j desmistificava que as decises tcnicas fossem resultado de

reivindicaes tcnicas e universais, por outro lado a perspectiva sociotcnica

passou a oferecer uma abordagem metodologicamente frutfera para confirmar,

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atravs de casos concretos, que a tecnologia socialmente relativa (FEENBERG,

2005).

Uma implicao relevante dessa perspectiva, entre outras, a diferena na

forma como deterministas e construtivistas compreendem a busca por solues para

problemas tcnicos. Sob a perspectiva do determinismo tecnolgico, o nico

princpio que baseia a escolha entre solues para problemas tcnicos a eficincia

(FEENBERG, 2005). Sob essa tica, todos os processos poderiam ser analisados,

entendidos, mensurados, para encontrar uma soluo objetiva e politicamente

neutra. Haveria um consenso de que a tecnologia neutra, que no adiciona nada

substantivo em relao aos fins que serve, simplesmente torna sua realizao mais

rpida, em maior escala, ou de acordo a novas condies (DAGNINO, 2007). Assim,

uma vez que a tecnologia neutra, a deciso de utiliz-la poderia ser tomada

atravs de critrios puramente racionais, relacionados a melhorias mensurveis em

eficincia.

Porm, os estudos de tecnologia contempornea contestam a viso

determinista propondo que muitos fatores, alm da eficincia, representam um papel

na escolha de design da tecnologia. Sob a tica do construtivismo, esse

entendimento da tecnologia como neutra desconsidera que a prpria racionalidade

contm valores. No h um melhor caminho para o desenvolvimento tecnolgico,

uma vez que em qualquer ponto no tempo uma multiplicidade de trajetrias se abre

para os atores envolvidos no projeto e os interesses diversos desses agentes

refletem-se em diferenas sutis sobre funo e preferncias por um ou outro design

do que, nominalmente, o mesmo dispositivo (CALLON, 2010). Assim, diante de um

problema tcnico, pressupe-se haver muitas solues diferentes possveis, de

forma que as escolhas sociais intervm na soluo adotada para esses problemas

(FEENBERG, 2005).

Sendo assim, a viso construtivista rejeita a noo que tecnologia neutra e

apontam que ela uma estrutura cultural que encarna valores prprios, particulares.

Sob essa perspectiva, a eficincia no decisiva para explicar o xito ou fracasso

de designs alternativos desde que vrias opes viveis normalmente competem

com o incio de uma linha de desenvolvimento. O processo tecnolgico se abre

inicialmente em diversas direes, em cada dispositivo tcnico h um halo de

alternativas que so eliminadas em algum estgio, finalmente estabilizando-se em

uma forma nica (CALLON, 2010). Assim, no notamos que a forma final da

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tecnologia desenvolvida dependeu de uma configurao particular de foras sociais

que interpretaram os problemas de uma maneira especfica no incio do processo.