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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
Presidente Prudente 2005
DISCURSOS EM CONFRONTO NO TERRITÓRIO DA LUTA PELA TERRA NO/DO PONTAL DO
PARANAPANEMA: MST E IMPRENSA
SÔNIA MARIA RIBEIRO DE SOUZA
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SÔNIA MARIA RIBEIRO DE SOUZA
DISCURSOS EM CONFRONTO NO/DO TERRITÓRIO DA LUTA PEL A
TERRA NO PONTAL DO PARANAPANEMA: MST E IMPRENSA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade Estadual Paulista –
Unesp, Campus de Presidente Prudente, para a obtenção
do título de Mestre em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Thomaz Jr.
Co-orientação: Prof. Dr. María Franco García
Presidente Prudente
Abril- 2005
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AGRADECIMENTOS
Existe em grego uma espécie de sentença, um ditado que expressa um consenso: entre amigos tudo é comum. Conhecemos bem a distinção grega entre o privado e o público: o privado que pertence a cada um propriamente, em sua singularidade, sua diferença; o publico é o que deve ser posto em comum e igualmente repartido entre os membros do grupo. A amizade aparenta-se a ambos os campos; ela liga e rege a ambos. Toda amizade é, de fato, “particular”: a cada indivíduo cabe seu círculo pessoal de amigos, mas este círculo forma uma comunidade que é como a imagem reduzida da cidade. Para que exista cidade, é preciso que seus membros estejam unidos entre si pelos laços da philía, de uma amizade que os torna entre si, semelhantes e iguais. No espaço privado que desenham os amigos, tudo é repartido entre iguais, tudo é comum, como no espaço público da cidadania. A amizade se tece na articulação do privado, do próprio, do diferente com o público, o comum, o mesmo. Eu diria, depois que vivi em diferentes circunstâncias, que são amigos aqueles com os quais temos as coisas essenciais em comum: as lembranças, as experiências, os valores... Dizer que entre amigos tudo é comum significa que existe, como na cidade grega, uma relação particular de igualdade em virtude da qual a própria vida privada, ao menos em muitos de seus componentes, é compartilhada com os outros. Não é só porque podemos dizer aos amigos coisas que não diríamos a outros; mas as recordações, as alegrias, as tristezas, que nada têm a ver com o domínio público, no sentido grego do termo, e sim com o que eu chamaria de próprio, particular, são vivenciadas na participação com os outros em uma relação de troca igualitária. ... a amizade se inscreve em realidades psicológicas, históricas e sociais que mudam segundo os contextos. Aconteceu-me de encontrar pessoas muito diferentes, as quais chamarei realmente de amigos simplesmente porque, de repente, tive o sentimento de descobrir neles uma dimensão da existência completamente diversa da minha e, ao mesmo tempo, com ressonâncias nela; ela me tocava e me emocionava... Existe amor nesses casos...
Jean-Pierre Vernant
Este texto não poderia ter sido escrito sem as diversas parcerias que estabeleci. Por
mais solitária que nossa tarefa de pesquisadores/as possa parecer, ela é sempre uma tarefa
coletiva, resultado de ajudas mútuas, tanto no âmbito da academia como fora dela. Esta
página inicial é, portanto o espaço que reservo para, publicamente agradecer às pessoas que
de diferentes formas contribuíram na transformação de minha dissertação de mestrado. O
trabalho que ora apresento é, então fruto de estudos e reflexões, discussões e muitos afetos.
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Por isso, agradeço com carinho distinto aos homens e mulheres trabalhadores rurais
protagonistas centrais deste estudo.
De modo particular, agradeço ao Doutor Antonio Thomaz Júnior, professor e
orientador que, com paciência soube respeitar meus limites e também minha formação.
Estendo minha gratidão aos professores e professoras do Curso de Pós-Graduação em
Geografia da UNESP. Especialmente aos professores Raul Borges Guimarães, Unesp, e
Rosemeire Aparecida, da Universidade Federal de MS/ Três Lagoas, pelas contribuições no
exame de qualificação.
Agradeço profundamente à admirável María Franco García (María de Ares), pelo
tempo que dedicou à co-orientação deste trabalho com leituras e sugestões valiosas as quais
contribuíram decisivamente para o acabamento deste trabalho.
À família Montenegro: Jorge, Fernanda e Marininha. Agradeço especialmente ao
Jorge e Marcelino pela leitura minuciosa e pertinente deste trabalho. À Flávia Ikuta, Sílvia,
Renata, Lima, Denis, Eliana, André, Fabrício, Maria Bernardete, Clóves e Ângela Cristina,
pela valiosa ajuda com os mapas e capa deste trabalho. Aos amigos e amigas de Grupo de
Pesquisa: Marcelo e Terezinha Carvalhal, José Roberto, Ivanildo, Marcelo “Catalão”,
Ivanildo, Ana Maria, Alex, Léo. Àqueles que de longe foram um importante apoio afetivo, de
forma especial: Ana Lúcia Espíndola, Marli Lúcia Zibetti e Mônica Ribeiro Feo; aos queridos
Neuci e Pedro pela acolhida e, sobretudo pela amizade e alegria com que sempre iluminam
nossos encontros.
E, finalmente, àqueles que estarei sempre em débito: meus familiares e meu
companheiro Divino, parceiro-afeto, cuja convivência possibilitou-me, e possibilita, tornar-
me melhor e pela crença de que a convivência entre as diferenças pode ser uma das mais
fascinantes experiências da vida. Agradeço, também pela paciência nas leituras minuciosas
deste texto.
Aos funcionários da sessão de Pós-Graduação: Márcia, Ivonete, Washington e Erinate.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo
financiamento desta pesquisa.
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RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo analisar, a partir de uma prática discursiva, a da
imprensa, como o discurso enquanto uma prática social, organiza, produz e reproduz noções
que governam e controlam o espaço identificando mecanismos que, controladores desse
espaço, expressam, sustentam e determinam territorialidades.
Buscamos por meio da construção do discurso dos jornais O Imparcial, de Presidente
Prudente, e Folha de S. Paulo, de São Paulo, na década de 1990 até abril de 2004, evidenciar
como forma sendo construídas representações sobre o MST, as quais têm rebatimentos no
território da Luta pela Terra e que não contribui para a discussão sobre a questão da reforma
agrária.
Destacamos a imagem da instituição jornalística tentando evidenciar que, com relação
ao MST, a posição político-partidária dos jornais, ao contrario do que normalmente se diz,
encontra-se assujeitada a um dizer já posto pela formação social dominante.
Deste modo, a compreensão da recepção dos jornais, ou no modo como os leitores
significam o discurso sobre o MST, pode ser detectada na própria prática discursiva da
imprensa. Ou melhor, se a instituição jornalística não funciona sem leitores, e se ela busca
atraí-los como consumidores, há que se considerar que o jornal noticia para segmentos da
sociedade, produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento. Essa imagem pode
ser depreendida a partir da própria prática do discurso jornalístico: no ‘como se diz’ já se
encontra embutido ‘o quem vai ler’.
Palavras-chave: Discurso, espaço, imprensa, MST, luta pela terra.
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ABSTRACT
This research aims to analyze how the discourse, as a social practice, organizes,
produces and reproduces notions that govern and control the space. Through these notions we
can identify control mechanism of this space, which express, sustains and determines
territorialities. The arguments develop considering press as a discursive practice.
The core is attempt to evidence in which ways the representations of MST were
constructed. For this we study the discourse of O Imparcial journal from Presidente Prudente
and Folha de S. Paulo from São Paulo, from nineties to April of 2004. the representations of
MST have consequences in the territories of the land struggle, that don’t contribute to the
concern of the agrarian reform.
We highlight the image of the journalist institution as an attempt to evidence the
political position of journals about MST. This position is connecting to a way to say forced by
the social dominant formation.
Thus, the understanding of the reception of journal, or the way as the readers give
signification the discourse about MST, it can be just detected in the discursive practice of de
press. Much better, if the journalistic institution doesn’t work without readers and if it’s
seeking to attract them as consumers, it is necessary to consider that journal makes news to
segments of society, working to a readers’ image which is suppose for each segment. This
image can be just perceived through the practice of journalistic discourse: in “how it says” it’s
“who is going to read it”.
Key-words: Discourse, Space, Press, MST, Land Struggle.
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SUMÁRIO
Agradecimentos................................................................................................................... iii Resumo................................................................................................................................ v Abstract................................................................................................................................ vi Sumário................................................................................................................................ vii Lista de Figuras................................................................................................................... viii Lista de Quadros.................................................................................................................. viii Lista de Siglas...................................................................................................................... x Apresentação........................................................................................................................ xi Introdução.......................................................................................................................... 1 A construção da pesquisa..................................................................................................... 3 O lugar da Análise do Discurso........................................................................................... 4 Uma prática discursiva: a imprensa..................................................................................... 6 O MST e a Luta pela Terra no Pontal do Paranapanema.................................................... 16 Capítulo 1. Espacialização de um discurso..................................................................... 24 1.1. O MST do/nos jornais O Imparcial e Folha de S. Paulo (1990-1994): a escalada do conflito................................................................................................................................
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1.2. Os enquadramentos para a violência (1995-1999)....................................................... 37 1.3. O MST e o perigo vermelho........................................................................................ 48 1.4. O perigo consolidado e o retorno do mesmo (2000-2004)........................................... 52 Capítulo 2. Discurso e resistência na Luta pela Terra................................................... 61 2.1. Contando a história outra vez....................................................................................... 63 2.2. Ocupar, resistir e produzir............................................................................................ 69 2.3. Reforma Agrária: uma luta de todos............................................................................. 80 2.4. Por uma Brasil sem latifúndio...................................................................................... 85 2.5. Luta pela Terra: movimento constituidor de sujeitos................................................... 89 Capítulo 3. Espaço, discurso e território......................................................................... 98 3.1. Enunciado, formações discursivas e discurso............................................................... 101 3.2. Análise do discurso, sujeito e ideologia....................................................................... 105 3.3. Subjetividade, representação e sujeito.......................................................................... 116 3.4. Espaço, discurso e território......................................................................................... 120 3.5. Dimensão espacial do discurso..................................................................................... 125 Capítulo 4. Discursos em confronto no território da Luta pela Terra......................... 130 4.1. Na radicalidade do MST a construção de sentidos e territorialidades.......................... 132 4.2. A imposição do mesmo sentido no discurso dos jornais.............................................. 139 4.3. Os silenciamentos e as repetições................................................................................. 148 4.4. Controle e delimitação do discurso............................................................................... 153 4.5. Ouvidos dominantes, vozes silenciadas........................................................................ 155 Considerações Finais......................................................................................................... 161 Bibliografia .......................................................................................................................... 166 Anexos.................................................................................................................................. 174
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LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Localização de área de conflito............................................................... 20 FIGURA 2 – Localização de área de conflito............................................................... 20 FIGURA 3 – Área Desapropriada para Assentamentos- 1990 – 2003......................... 40 FIGURA 4 – Assentamentos originados das ocupações do MST a partir da década de 1990.......................................................................................................................... 41 FIGURA 5 – Número de Famílias assentadas por Município...................................... 79
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LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Jornal O Imparcial – Períodos consultados............................................... 13 Quadro 2 – Jornal Folha de S. Paulo – Períodos consultados..................................... 13 Quadro 3 – Jornal Sem Terra – Períodos consultados................................................. 16 Quadro 4 – Títulos – Jornal O Imparcial..................................................................... 38 Quadro 5 – Títulos – Jornal Folha de S. Paulo............................................................ 38 Quadro 6 – Títulos – Ocupações e Desocupações....................................................... 42 Quadro 7 – Títulos – Negociações............................................................................... 45 Quadro 8 – Títulos – Jornal O Imparcial...................................................................... 52 Quadro 9 – Títulos – Jornal Folha de S. Paulo............................................................. 53 Quadro 10 – Títulos – Ocupações antes das eleições (2000-2002)............................... 53 Quadro 11 – Títulos – Ocupações após as eleições (2002-2004)..................................55 Quadro 12 – Estrutura organizativa do MST.................................................................74 Quadro 13 – Seqüências discursivas para ameaça e radicalidade do MST................ 127 Quadro 14 – Das denominações para o perigo comunista......................................... 134
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LISTA DE SIGLAS
AD Análise do Discurso
CEGeT Centro de Estudos de Geografia do Trabalho
CEMOSI Centro de Memória, Documentação e Hemeroteca Sindical “Florestan Fernandes”
FD Formação Discursiva
FDA Formação Discursiva Antagônica
FI Formação Ideológica
FSP Folha de São Paulo
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo
FDB Formação Discursiva Brasileiro
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
JST Jornal dos Trabalhadores Rurais SEM TERRA
MAB Movimento dos Atingidos por Barragem
MPA Movimento dos Pequenos Agricultores
MAST Movimento dos Agricultores Sem Terra
OI O Imparcial
PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária
PT Partido dos Trabalhadores
UDR União Democrática dos Ruralistas
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APRESENTAÇÃO
O presente relatório do projeto de mestrado “A luta pela terra, o MST e o papel da
imprensa” demonstra o conjunto de atividades desenvolvidas no período de março de 2003 a
julho de 2004, relacionados ao nosso desenvolvimento e amadurecimento como pesquisadora.
O relatório está organizado, estruturado em três partes.
Na parte A – Trajetória na Pós-Graduação relaciona as atividades acadêmico-
científicas realizadas em 2003 a julho, sendo que o produto dessas atividades explicita-se a
partir do desenvolvimento dos três capítulos da dissertação. Apresentamos o conjunto de
disciplinas realizadas e destacamos nossa participação em eventos científicos em que
expusemos nosso trabalho em que, por meio dos debates pudemos avançar nos
encaminhamentos da pesquisa. Outras atividades que merecem destaque são as relacionadas
ao CEGeT e CEMOSI, principalmente os colóquios de pesquisa e as Jornadas Sobre o
Trabalho, os quais nos auxiliam no desenvolvimento da pesquisa.
Na Parte B – Redação Parcial da Dissertação estão concentradas as análises que
realizamos sobre o tema da pesquisa, a bibliografia que estudamos e consultamos nesse
período e que constituem o escopo principal deste relatório. Está dividida em três capítulos:
Capítulo 1 – Espaço, Discurso e Território;
Capítulo 2 – O MST dos jornais: espacialização de um discurso;
Capítulo 3 – O lugar do outro no discurso da imprensa.
Na Parte C – Perspectivas da pesquisa procuramos destacar os próximos
encaminhamentos da pesquisa com as atividades que serão desenvolvidas e a confecção do
quarto capítulo para a conclusão da Dissertação.
Salientamos, porém, que esta estrutura não é nem tampouco está fechada, dependendo
das contribuições que a Banca do Exame Geral de Qualificação nos apontar para a conclusão
do trabalho de pesquisa.
Uma outra ressalva que fazemos diz respeito ao discurso que estamos enunciando,
pois sabemos que quem fala, fala a partir de algum lugar, com regras e procedimentos e, nesse
sentido, sabemos que nosso discurso é controlado, que não estamos falando qualquer coisa e
de qualquer lugar. O nosso discurso, portanto, pertence a uma rede de filiação de sentidos a
qual nos auxiliou e auxilia na discussão que fizemos; que a nossa fala não é só nossa; ela
reflete outras falas, outros discursos com os quais convivemos e aprendemos na nossa
trajetória na graduação e posteriormente na Pós-Graduação. Daí ser importante colocar que
xii
não estamos fechados a outros discursos que venham contribuir com a nossa formação não só
acadêmica, mas também como sujeito social.
xiii
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás de clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma.
Manoel de Barros, 2003.
1
INTRODUÇÃO
Desde sua criação, em 1984, o MST caracterizou-se como um dos poucos movimentos
– senão o único – a desafiar francamente o status quo brasileiro contemporâneo, propondo-se
a romper com os limites usualmente aceitos da legalidade. A luta do MST tem se dado no
sentido de forçar a realização de seus objetivos, em especial a redistribuição da propriedade
fundiária no Brasil, por meio da reforma agrária.
É desnecessário dizer que a interdição da palavra sempre fez parte do discurso da
imprensa sobre o MST, mantendo o predomínio de uma formação discursiva hegemônica: “O
MST é um movimento perigoso”. Este enunciado fixa um sentido (uma materialidade) sempre
negativo para os sem-terra. Na maneira de enunciar já se encontra um significado reiterado
nas mais diversas formas de denominações.
Podemos observar em alguns enunciados jornalísticos sobre a questão agrária e,
posteriormente sobre o MST, o ressurgimento do sentido dessa formação discursiva (FD) a
qual apresenta um já-dito, nos recortes abaixo reproduzidos,
1- O povo mesmo, não um ajuntamento suspeito e longamente preparado, reuniu-se ontem, espontaneamente, nas ruas desta cidade [São Paulo], para exprimir seu sentimento e sua vontade. Foi uma dura lição para aqueles que necessitam de demorada propaganda, manipulação de cúpulas e tremendos dispositivos de força para concentrar massas humanas. E não se diga que a “Marcha da Família” reuniu defensores de “estruturas arcaicas”. Ao contrário, os manifestantes de ontem reconhecem a necessidade de reformas, mas sabem que elas podem e devem ser dentro da ordem e da lei.
2- Não há dúvidas de que o País necessita de mudanças estruturais. Trata-se de corrigir as distorções agravadas pelo desenvolvimento vertiginoso e desordenado das últimas duas décadas. Trata-se de introduzir, no capitalismo brasileiro, reformas que promovam o dinamismo da livre iniciativa mas que assegurem, ao mesmo tempo, a participação dos não-proprietários nas vantagens do sistema. Trata-se de criar uma estrutura legal e política capaz de operar mudanças ordeiras, administrando os conflitos da sociedade (...) dentro de certos critérios e mecanismos aceitos pelas partes.
3- O tema andava meio esquecido, justamente quando se celebram os 30 anos de um golpe militar movido, entre muitas outras, pela questão agrária. Voltou, entretanto à superfície com as declarações do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Gilmar Mauro, prevendo que em 1994 tripliquem no Brasil as invasões a propriedades. O uso da terra como reserva de valor é não apenas imoral, mas também atenta contra a ordem natural das coisas, dado que a terra tem como finalidade precípua servir de abrigo e propiciar a sobrevivência, como produtora de alimentos. A invasão de terras, contudo, é inaceitável. O caminho correto para evitar a manutenção de terras improdutivas são pesadas sanções econômicas, objetivas e compatíveis com o Estado de Direito.
2
4- A Justiça impõe seu poder ou o Pontal será uma nova Sierra Maestra: José Rainha, representando o MST, uma articulação do PT e da Pastoral da Terra, age no Pontal do Paranapanema como um novo “el comandante”, invadindo propriedades, destruindo-as, seja queimando suas pastagens, derrubando suas cercas ou carneando suas reses e impondo o terror. Ele afronta o Poder Judiciário porque mal cumprida uma ação de despejo para uma reintegração de posse, sua turba, sob seu comando, já está invadindo outra propriedade.
5- O AGITADOR-MOR do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stédile, voltou à cena para prometer que abril será um “mês vermelho” e que os movimentos sociais irão “infernizar” o país. O timoneiro da baderna rural e seus seguidores já começaram a ensaiar o espetáculo do desrespeito às leis com que ameaçam a sociedade no mês vindouro. (...) Se a inoperância do governo acaba por incentivar novas mobilizações, isso não justifica que a liderança dos Sem Terra continue a afrontar a legalidade. Por mais fantasioso e improvável que possa parecer, Stédile tem como objetivo maior promover uma revolução socialista a partir dos conflitos que se verificam na área rural do país. Sendo assim, não hesita em instrumentalizar miseráveis para criar fatos políticos, semear tensões e gerar um ambiente de radicalizações entre os sem-terra e os ruralistas.
é possível perceber a semelhança quanto ao modo de tratar a questão da terra: como
uma questão legal e não como uma questão social. E é também importante observar que esse
tratamento foi dado em períodos diferentes. Os recortes 1, 2, 3 e 5 foram publicados no jornal
Folha de S. Paulo nos anos de 1964, 1985, 1994 e 2004, respectivamente; o 4 recorte foi
publicado no jornal O Imparcial em 1995.
O que será que esses enunciados têm em comum quando traçada uma linha temporal
entre eles? Será que o discurso produzido pela imprensa sobre os trabalhadores que
reivindicam e ocupam a terra no Brasil manteve-se inalterado? Nessa pesquisa estudamos a
produção de sentidos para o MST: trata-se de um dizer marcado espaço-temporalmente de
modo recorrente no discurso jornalístico. Daí uma das nossas indagações: quais as condições
que propiciaram esse discurso e uma forma específica de enunciar o MST?
Ao observarmos a recorrência desses sentidos nos sentimos influenciados para pensar
esta pesquisa – a partir de uma representação do MST como um movimento perigoso e
inimigo a ser combatido. Nesse sentido formulamos um dos objetivos deste trabalho: como
foi construído e posto em circulação os sentidos negativizados para o MST no discurso dos
jornais e o que tais sentidos mobilizam em termos de memória?
Tomando esse cenário formulamos o principal objetivo desse trabalho: analisar, a
partir de uma prática discursiva, a da imprensa, como o discurso, enquanto uma prática social,
organiza, produz e reproduz noções que governam e controlam o espaço identificando
3
mecanismos que, controladores desse espaço, expressam, sustentam e determinam
territorialidades.
A construção da pesquisa
Analisamos o discurso jornalístico que, no Estado de São Paulo, foi se constituindo
sobre o MST, no Pontal do Paranapanema a partir de 1990, período de intensificação da Luta
pela Terra, até abril de 2004, o qual foi evidenciando e reafirmando a existência de uma única
paisagem, imposta por filtros de interpretação.
Durante todo esse tempo, o MST foi representado como uma ameaça aos proprietários
e, por conseguinte à Lei. Entre os anos de 1990 e 2004, a crítica nos jornais ao MST sempre
foi feita, independente da natureza das suas reivindicações, reforçando um imaginário1 que,
imposto pela formação social capitalista, endossa a homogeneização de uma práxis social
estratégica que se expressa no controle social sobre os trabalhadores, e sobre o trabalho em
particular. Todavia, essa estratégia nunca foi empecilho para a organização dos sem-terra ou
que ficassem em silêncio e imobilizados perante o discurso da imprensa. Os enunciados Sem
reforma agrária não há democracia, e Terra para quem nela trabalha2 sempre foram ditos e,
em maior ou menor intensidade, fizeram parte dos noticiários da imprensa independente dos
sentidos que lhes foram atribuídos.
Por outro lado, há uma outra questão que, de certa forma, reverbera no discurso
jornalístico sobre o MST, que tem a ver com os enunciados do próprio Movimento. Trata-se
da redistribuição de terra e, por sua vez, da mudança do sistema societário. Com a queda do
muro de Berlim divulgou-se amplamente o fim do socialismo e o fim das utopias, neste
contexto as reivindicações do MST tornaram-se anacrônicas.
Uma outra questão norteou nossa análise. Como o MST ocupou um lugar de inimigo
no discurso jornalístico?
Assim, para analisar o processo de construção do MST como inimigo buscamos o
processo de produção dos sentidos, as formas de sua circulação e da manutenção, tanto do
sentido quanto de uma memória já fixados para determinados agentes sociais. Isso levou-nos
1 Imaginário aqui é entendido como o jogo de imagens constituído em torno dos lugares de onde se fala que precisa ser observado no processo histórico da produção de enunciados e de sentidos. Segundo Sergovich (apud, MARIANI, 1998, p. 32), “a dimensão imaginária de um discurso é sua capacidade para a remissão de forma direta à realidade. Daí seu efeito de evidência, sua ilusão referencial”. O imaginário é, então, esse dizer já colocado interdiscursivamente, uma forma de “depósito” de sentidos para o sujeito. 2 Enunciado retirado do Relatório do 1º Encontro Nacional do MST, em 1984 (apud FERNANDES, 2000, p. 83).
4
a uma outra indagação: o discurso jornalístico detém o poder construir – ou de manter – essa
imagem do MST como inimigo por meio da sua vinculação ao perigo e a ameaça?
Estas questões, no plano teórico-metodológico, levou-nos a incorporar a discussão
sobre o funcionamento do discurso, considerando, de acordo com a Análise do Discurso
(AD): a relação de constituição entre linguagem e história na produção de sentidos, e espaço,
discurso e território.
O lugar da Análise do Discurso
A AD constitui-se como uma disciplina que investiga as relações entre a linguagem, a
história, a sociedade e a ideologia; a produção de sentidos e a noção de sujeito. Propõe-se a
discutir e a definir a linguagem e a natureza da relação que se estabelece com a exterioridade,
buscando compreender as formas de determinação histórica dos processos de produção de
sentidos por meio de uma semântica materialista. Um dos seus fundadores, Michel Pêcheux,
procurou articular três áreas de conhecimento: o materialismo histórico, a lingüística e a teoria
do discurso. As três áreas, de acordo com Pêcheux, são articuladas por uma teoria da
subjetividade de cunho psicanalítico (BRANDÃO, 2002; MARIANI, 1998).
Pêcheux, por meio da AD questiona as seguintes noções: 1) a linguagem como
instrumento de comunicação de informações; 2) sujeito como indivíduo; 3) ideologia como
ocultação ou máscara; e 4) sentido ligado às condições de verdade. Seu pressuposto teórico
principal está nas definições de discurso “efeito de sentidos entre interlocutores” e de
discursivo “processo social cuja especificidade reside na materialidade lingüística”
(PÊCHEUX, 1990). Abordaremos essa relação no capítulo 3.
Consideramos o discurso, de acordo com a AD, um acontecimento lingüístico,
histórico e social, portanto sujeito a variação de sentidos. Consideramos, também, que é
heterogêneo, na medida em que reflete a multifacetação cultural do tecido social, pois há
diferentes formações discursivas que possibilitam a construção dos múltiplos sentidos das
práticas sociais. Não é por nada que o discurso tem sua produção condicionada a regras e
procedimentos institucionais, o que nos remete à concepção de que os sentidos de todo e
qualquer discurso precisam ser controlados em função dos conflitos sociais. (VOESE, 1998).
Por isso todo discurso é ideologicamente determinado (BAKHTIN, 1996; PÊCHEUX, 1999).
Desta forma, ao analisarmos o discurso, devemos levar em conta as suas condições de
produção. Essas condições nos levam a firmar que as escolhas de quem diz não são aleatórias.
5
As condições de produção do discurso não visam apenas ao estudo dos elementos que
constituem o texto, mas principalmente as formas de instituição de seu sentido. Como afirma
Maingueneau (1997, 14) “não se trata de examinar o corpus como se tivesse sido produzido
por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa
posição sócio-histórica” (grifos do autor).
Assim, as condições de produção do discurso não devem ser entendidas apenas como a
situação empírica do discurso que está em jogo, mas como sua representação no imaginário
histórico-social. Os protagonistas dos discursos3 (interlocutores) não devem ser considerados
como seres empíricos, mas também como lugares determinados na estrutura social: o lugar do
jornalista, o lugar do leitor, o lugar do professor, do aluno, do pai etc. As relações entre esses
lugares acham-se representadas por uma serie de formações imaginárias que, segundo
Pêcheux (1969), “designam o lugar que A e B [“ os protagonistas do discurso”] se atribuem a
cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”.
Buscamos destacar a imagem da instituição jornalística tentando evidenciar que, com
relação ao MST, a posição político-partidária dos jornais, ao contrário do que normalmente se
diz, encontra-se assujeitada a um dizer já posto pela formação discursiva (FD) dominante. No
capítulo 1, mostramos como são indissociáveis a discursivização que se engendrou sobre o
MST, isto é, como o discurso jornalístico construiu uma determinada imagem em torno do
MST.
Outra característica importante dessas formações discursivas é a reversibilidade nos
lugares ocupados pelos protagonistas/interlocutores. Pêcheux (1969) assinala que, nos
mecanismos de antecipação, um dos protagonistas pode representar imaginariamente aquilo
que seu interlocutor pretende dizer ou espera que ele diga etc, enfim, um protagonista pode se
colocar na posição do outro e “dirigir” sua produção a partir disso.
Deste modo, a compreensão da recepção dos jornais, ou no modo como os leitores
significam o discurso sobre o MST, pode ser detectada na própria prática discursiva4 da
imprensa. A instituição jornalística não existe sem leitores, por isso trabalha para atrai-los
3 Pêcheux utiliza “protagonistas do discurso” referindo-se a forma pela qual emissor e receptor representam o lugar ocupado na estrutura de uma formação social, assim como sobre o que falam. Essa forma de defini-los não designam, então, nem o indivíduo em termos físicos, tampouco em traços genéricos sociológicos. Considerá-los dessa maneira, implica tomá-los como sujeitos, cuja determinação histórica não anula a possibilidade de troca ou de inversão nas posições enunciativas ocupadas: “o sujeito é múltiplo porque atravessa e é atravessado por vários discursos, porque não se relaciona mecanicamente com a ordem social da qual faz parte, porque representa vários papéis” (ORLANDI, 1988, p. 11). 4MAINGUENEAU (1997, p.56), sem falar sobre a questão ideológica, definirá prática discursiva como “a reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso.” Os rituais enunciativos, por sua vez, correspondem a práticas de linguagem constitutivas da subjetividade.
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como consumidores, há que se considerar que o jornal noticia para segmentos da sociedade,
produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento. Essa imagem, entretanto, pode
ser depreendida a partir da própria prática do discurso jornalístico: no ‘como se diz’ já se
encontra embutido ‘o quem vai ler’.
Uma prática discursiva: a imprensa
Os jornais
A fim de esclarecer a razão que nos levou a optar pela análise do discurso da Folha de
S.Paulo e de O Imparcial, talvez não seja desnecessário assinalar algumas observações sobre
o gênero de jornal no qual ambos estão inseridos, principalmente a Folha, a saber: os jornais
da grande imprensa. Acompanhamos a sugestão conceitual proposta por Alves Filho (2000,
p.106) para a classificação deste tipo de jornal:
(Jornais) que se estruturam como indústria cultural e freqüentemente são apontados pelas instituições de pesquisa entre os de maior vendagem. Posição de preferência que assumem por terem construído e consagrado, perante o mercado consumidor, a imagem de isenção e independência frente aos poderes formais do Estado e aos informais, como as classes sociais e outros "grupos de pressão". Jornais (...) que, funcionando como indústria cultural, representam-se e são representados por segmentos substantivos da população - independentemente de serem rotulados "progressistas", "conservadores", etc. - como comprometidos com o bem comum, com a informação objetiva e com a interpretação correta dos acontecimentos.
Este tipo de jornal, como veículo de comunicação que atua como indústria cultural5,
visa atingir ao máximo diferentes setores do público, por meio da oferta de diversas seções e
cadernos, como os destinados à mulher/família, aos esportes, cultura/eventos de lazer, etc.,
mas dando uma ênfase especial às seções de política e economia. Evidentemente seu público-
alvo é composto por estratos sociais detentores de um poder aquisitivo alto e de um nível de
5 O termo indústria cultural criado por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento, em substituição à expressão cultura de massa. Definem a indústria cultural como a integração deliberada e não espontânea, como que sugerir o termo cultura de massa, que o mercado realiza dos consumidores, dirigindo-lhes o gosto e necessidades. Dito de outra modo, entendem os autores que a produção cultural e de bens simbólicos no capitalismo tardio passou a ser regulada pelos interesses do mercado, minando nos indivíduos o poder da crítica e de escolha.
7
escolaridade mais elevado que a média nacional6. Seu público é formado, pois, por grupos
mais influentes junto aos centros de tomada de decisão econômica e política.
Um requisito é indispensável para a manutenção e ampliação de consumidores e
anunciantes: a credibilidade social. Segundo Alves Filho (2001), o instrumento utilizado por
esses jornais para atingir tal meta é o pluralismo político-ideológico das colunas. Esse
instrumento possibilitaria a criação de uma imagem isenta, independente e democrática.
Evidentemente, como argumenta Alves Filho, o pluralismo das colunas não impede a
ocorrência de um fenômeno concreto: a linha ideológica (ou editorial) que se materializa nos
textos dos editoriais e do noticiário cotidiano, ordenando tanto as interpretações sobre os fatos
noticiados quanto o processo de seleções e combinações existentes na produção jornalística -
como imagens, símbolos, estereótipos e palavras que integram seus textos. Assim, podemos
justificar a escolha dos dois jornais, lembrando que O Imparcial, numa escala local, assume a
mesma referência atribuída aos jornais da grande imprensa, em função da sua circulação
regional.
Folha de S. Paulo
O jornal Folha de S. Paulo foi fundado em 1921, com o nome de Folha da Noite, com
oscilações e variações ocasionadas pelas mudanças de proprietários da empresa nesses 83
anos de existência. Não temos a pretensão de contar essa história, mas apenas situá-la em
nosso estudo. Nesse sentido, nos deteremos em alguns fatos que explicam um pouco a atuação
do jornal, para então, situá-lo no período em que ocorreu uma significativa reordenação do
seu enfoque em função da sua virada mercadológica. Estas mudanças foram implementadas a
partir de um novo Projeto Editorial para esse jornal que, coincidentemente, aparece em 1984
junto com a Campanha das Diretas Já!
O jornal Folha de S. Paulo não apresenta uma continuidade em sua trajetória. Dos
anos de 19217, data de sua fundação, até 1945, ganhou dimensões que o colocaria no debate
6 Em pesquisa sobre o perfil do seu leitorado, publicada em Suplemento Especial 21, em 18/02/2001, percebe-se que o jornal Folha ainda mantém, como seu principal leitorado a classe média. Segundo a pesquisa o leitor da Folha tem a média de 40,3 anos; apresentam alta escolaridade: 47% têm nível superior e, destes, 13% fizeram pós-graduação; 53% têm renda mensal individual acima de 30 salários mínimos. Ainda, de acordo com a pesquisa, 47% têm interesse por política; 85% são a favor da reforma agrária; 59% são a favor da descriminação do aborto; 50% são a favor da união civil entre homossexuais; 61% são contra a adoção da pena de morte no Brasil e 63% são contra a descriminação da maconha. Fonte: Pesquisa “Perfil do Leitor 2000”, realizada pelo Datafolha, de 10/11 a 22/12/2000.
8
do período. A partir de uma visão urbana e fiscalista, circunscrita aos horizontes de frações da
classe média paulista, o jornal adquiriria força dada pelos projetos de classe de uma burguesia
agrária voltada para seus próprios interesses.
Segundo Mota e Capelato (1981) a “Folha” nos seus primeiros tempos era um jornal
agrarista, um jornal que se afinava com a burguesia agrária, tendo inclusive, como um dos
seus diretores, um representante da classe agrária, na época8. Nesse sentido, não é demais
afirmar o perfil conservador do jornal desde sua fundação. Ainda segundo os autores, o jornal
se manteria um bom tempo fiel a essas origens vindo a adquirir um perfil mais moderno a
partir de 1940, com a crise do café e a urbanização de São Paulo e a conseqüente
industrialização.
De 1945 a 1962, o jornal será dinamizado por uma nova concepção, mais moderna,
urbana e empresarial, dirigido por José Nabantino Ramos, que fará o jornal assumir um perfil
fiscalista e modernizador. O jornal, nessa fase, tem um contorno mais nítido, dado tanto pelo
seu perfil de um jornal de classe média quanto pelo contexto da Guerra Fria.
A quarta fase do jornal será iniciada quando o Grupo Frias-Caldeira assume o controle
das Folhas (Folha da Noite e Folha da Manhã), em 1962, quando a empresa está imersa em
uma grave crise econômica. A recuperação se deu com iniciativas na reorganização
administrativa propiciando o acúmulo de capitais o que permitirá inovações tecnológicas entre
os anos de 1967 e 1974, com a instalação da imprensa offset alterando, inclusive as relações
de trabalho (MOTA & CAPELATO, 1980).
A Folha foi entendida, no estudo realizado por Mota & Capelato (1980), como um
jornal de classe média, o que justificaria, para os autores características que o marcariam
nesse período, tais como: “jacobinismo, fiscalismo em relação ao Estado, reformismo,
antipopulismo e democratismo. Como regra geral, suas flutuações acompanham as alterações
das chamadas classes médias urbanas de São Paulo...” (p. 5).
Os então Frias-Caldeira que assumiria a “Folha” em 1962 eram, o primeiro, vindo do
capitalismo financeiro e o segundo, da construção civil. Segundo os autores a crise financeiro-
administrativa do jornal, as dificuldades resultantes de uma greve demandaram, nesse
momento, a reformulação da empresa em três etapas: a) reorganização financeiro-
7Dos anos de 1920 os proprietários do jornal foram Olival da Costa e Pedro Cunha. De 1931 a 1945 o jornal teve como proprietário Octaviano Alves de Lima. A partir de 1945 até 1962 seu dono foi José Nabantino Ramos. Em 1962 o grupo Frias-Caldeira assumirá o jornal. 8 O jornal Folha de S. Paulo, nessas oito décadas teve muitas oscilações que envolveram mudanças de proprietários e de colocariam no debate político como um dos jornais de maior circulação do país.
9
administrativa e tecnológica, de 1962 a 1967; b) a “revolução” tecnológica, de 1968 a 1974; e
c) definição de um projeto político-cultural, de 1974 a 1981.
Reafirmando a trajetória de rupturas que tem marcado o percurso do jornal Folha de S.
Paulo, em junho de 1981, em documento de circulação interna, “A Folha e alguns passos que
é preciso dar”, fixa três metas: informação correta, interpretações competentes sobre essa
informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos, este contendo o germe do que seria a
sistematização de um projeto editorial9. Em 1984, vislumbrou a possibilidade de dar um
salto na história e tornar-se o veículo impresso mais influente do Brasil10. As bases para essa
mudança estavam asseguradas graças ao sucesso da ousada estratégia de se aliar ao
Movimento das Diretas Já! num momento em que toda a imprensa brasileira se mostrava
cética quanto aos seus resultados (NOVELLI, 2002).
O instrumento para se obter tal façanha foi idealizado na forma de um projeto editorial
que, embora viesse sendo esboçado há muito tempo, em 1981, ganhou um novo fôlego a
partir daquela data e introduziu mudanças radicais no comportamento do jornal. O projeto
ofereceu subsídios e parâmetros para a produção de um jornalismo agressivo e dinâmico,
capaz de se reestruturar rapidamente e assimilar as mudanças na sociedade; no início, com o
objetivo de conquistar o primeiro lugar na imprensa nacional e, depois, com o objetivo de se
manter nesse primeiro lugar.
Em 1994, o Projeto Editorial Folha de S. Paulo, conhecido como Projeto Folha,
completou dez anos de implantação. Durante esse período incorporou novos e importantes
elementos tanto à sua atividade jornalística quanto ao jornalismo desenvolvido no Brasil de
maneira geral. O Projeto pretendeu derrubar mitos bastante arraigados na imprensa nacional e
inserir definitivamente o jornalismo brasileiro na lógica de mercado. Como um dos
documentos produzidos pelo Conselho Editorial da Folha mesmo assegura: “O Projeto Folha
se tornou, em poucos anos, patrimônio coletivo do jornalismo brasileiro” (Folha de S. Paulo,
1988, p. 22).
Em seu Manual de Redação, de 1992, a Folha apresenta-se como um jornal que “se
enraíza nas forças de mercado e adota uma atitude de independência diante de grupos de
poder”, considerando “notícias e idéias como mercadorias a serem tratadas com rigor
técnico”. Em 1997, em seu Projeto Editorial 9711, reafirma essas proposições justificando-se
9 Em Suplemento Especial do dia 18/02/2001, p. 27. 10 De acordo com seu projeto editorial, a Folha implanta, em junho de 1984, o “Manual de Redação, como um dos elementos de inovação do jornal, inaugurando a “era dos manuais”, sendo seguida por outros jornais (O Estado de São Paulo, O Globo, entre outros). 11 Publicado em duas páginas no caderno principal de domingo, 17/08/1997, p.19.
10
por meio de análises das mudanças recentes que ocorreram no mundo, em que se tem o
mercado como regulador da atividade jornalística12. Nesse contexto, o jornalismo não
precisaria “aplacar a sua disposição para a crítica”, mas “refiná-la e torná-la mais aguda num
ambiente em que não é mais dicotômico, no qual o debate técnico substituiu, em boa medida,
o debate ideológico” (Folha de S. Paulo, 17/08/97, p.19).
O que queremos salientar é que o Projeto Editorial 97 sintetizava as discussões
travadas internamente na empresa, cujo objetivo era “organizar a experiência recente e
apontar perspectivas para o futuro”. Um dos seus editores, Alcino Leite Neto publicou, em 27
de julho de 1998, um artigo13, em que ressaltava a “morte” do jornalismo tradicional em
detrimento da incorporação de mecanismos de publicidade e de entretenimento, evidenciando
e radicalizando a proposta desse projeto editorial. Segundo ele, encarar a informação como
produto não faz com que esta perca seu caráter simbólico, mas que “o próprio conteúdo
passou para a escala do consumo”. Se formos analisar os cadernos, hoje, que fazem parte do
jornal, teremos uma idéia clara do que o seu editor quer ressaltar14.
Os vinte anos de implantação do projeto editorial são prova de que a estratégia deu
certo. O jornal Folha de S. Paulo é o órgão de informação de maior prestígio no cenário
brasileiro. Do ponto de vista comercial, o jornal tem investido na área de marketing e vem
aumentando significativamente sua arrecadação publicitária.
Mas, do ponto de vista da prática do jornalismo, hoje, esses vinte anos do Projeto
Folha não podem ser vistos como uma efetiva contribuição qualitativa, pois segundo Novelli
(2002, p. 192), “as mudanças propostas pelo projeto e implantadas na Folha de S. Paulo
geraram muitas distorções sobre a essência da atividade jornalística”.
O Imparcial
O jornal O Imparcial também, desde sua fundação, em 1939, passou por várias
mudanças, ao longo de todas essas décadas. Talvez seja importante assinalar que é um dos
12 “A dualidade política foi substituída por um consenso. Uma só superpotência impôs seu predomínio ao mundo, quase todas as sociedades procuram se aproximar de seu modelo. Com pouca variação de grau, há uma só receita econômica (o mercado), uma só fórmula institucional (a democracia), num mundo que tende inevitavelmente à ‘globalização’. Pois não se trata de um sistema estanque, mas que se propõe a enquadrar toda diversidade étnica ou cultural num mesmo modelo, já batizado como ‘fim da história’, desde que cumpridos os preceitos da livre competição e da técnica” (Folha de S. Paulo, 17/08/1997, p. 19). 13 NETO, Alcino Leite. Admirável novo jornalismo. Folha de S. Paulo, 27/07/1998, p. 2. 14 É só pegarmos, nessa mesma edição, a manchete “Ganhe dinheiro com a crise asiática”, em que chamava a atenção para o lançamento do caderno Folhainvest, nesse mesmo dia!
11
mais lidos na região de Presidente Prudente. Desde sua fundação o jornal teve como propósito
“ser mais que um jornal local”, que atende mais de 60 municípios, em circulação diária.
Segundo um dos seus proprietários, Mario Peretti, o jornal acompanhou e sobreviveu a
todas as crises políticas e econômicas do país, inclusive por não estar ligado a nenhum grupo
econômico e político, considerado um jornal que tem bastante “credibilidade regional”.
O jornal atende a 6.500 domicílios com aproximadamente 17.500 leitores. De seu
leitorado 35,55% têm curso superior, 57,6% são casados e têm uma renda acima de 10
salários mínimos15. Apresenta uma organização semelhante aos jornais da grande imprensa,
isto é, com sessões de cidades, esporte, economia, colunas sociais. Para dar conta do
noticiário nacional e internacional, O Imparcial conta com um quadro de jornalistas
colaboradores de várias agências de notícias, os quais, garantem “ao leitor uma pluralidade de
opiniões”, e “uma tribuna verdadeiramente liberal”.
Embora seja um jornal que tenha como característica atender toda a região, sua
tiragem pode ser considerada pequena frente aos números checados. A característica principal
desse jornal, não difere em termos de concepção de jornalismo de uma tendência verificada
nos jornais da grande imprensa, ou seja, a idéia difundida de imparcialidade e objetividade,
típicos de um jornalismo liberal.
Assim, para verificarmos o funcionamento concreto de um gênero de discurso e sua
espacialidade, escolhemos os dois jornais paulistas, O Imparcial, de Presidente Prudente e
Folha de S. Paulo, de São Paulo; um jornal de circulação local e regional, e outro de
circulação nacional com o intuito de observar como, a partir de construções discursivas sobre
um movimento de Luta pela Terra, são construídos saberes, preconceitos, por meio de
denominações que vão produzindo sentidos e uma representação sobre o MST como inimigo
em potencial, desviando a discussão sobre a questão social que envolve a distribuição de
terras e a necessidade da reforma agrária. No amplo “espaço discursivo” (MAINGUENEAU,
1997) constituído pelos jornais, trabalharemos com o recorte de 1990 a 2004, sobre as ações
do MST publicadas nos dois jornais.
Objetivando descrever e analisar os enunciados do discurso jornalístico, delimitamos o
corpus da pesquisa16. Fizemos um levantamento das notícias publicadas sobre o MST nos
15 Conforme dados obtido no IVC (Instituto Verificador de Circulação) de 2003. 16 Inspiramo-nos fortemente, para montar nosso dispositivo de leitura e de análise em alguns trabalhos já desenvolvidos: Berger (1998), Courtine (1981), Serrani (1993), Fontana (1994), Indursky (1994) e Mariani (1998).
12
jornais O Imparcial e Folha de S. Paulo17, desde 1990 (ano em que o MST iniciou suas ações
no Pontal do Paranapanema) até 2004. Este levantamento, realizado nos arquivos dos jornais,
corresponde à construção de um primeiro corpus amplo de análise, a partir do qual
delimitamos as reportagens, traduzidas em recortes, títulos e editoriais, que seriam mais
significativos para a nossa análise. Abaixo, Quadros 1 e 2, enumeramos os jornais e os
períodos (mês/ano) em que as reportagens foram publicadas:
Quadro 1- Jornal O Imparcial – Período Consultado
Mês Ano Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
1º R
ecor
te 1990 T
empo Longo da m
emória
1991 1992 1993 1994
2º R
ecor
te 1995
1996 1997 1998 1999
3º R
ecor
te 2000 T
empo C
urto da atualidade
2001 2002 2003 2004
Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2003.
Quadro 2- Jornal Folha de S. Paulo – Período Consultado
Mês Ano Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
1º R
ecor
te
1964
Tem
po Longo da mem
ória
1985 1990 1991 1992 1993 1994
2º R
ecor
te 1995
1996 1997 1998 1999
17 No jornal Folha de S. Paulo, também pesquisamos alguns períodos de 1964 e 1985, dos quais selecionamos dois textos para evidenciar que no discurso dos jornais há um já-dito atuando.
13
3º R
ecor
te 2000 T
empo C
urto da atualidade
2001 2002 2003 2004
Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2003.
Para construir o corpus de análise, iniciamos o trabalho de recorte18 de fragmentos de
textos e títulos sobre os quais realizamos a análise. Construímos nosso arquivo composto por
um conjunto de seqüências discursivas recortadas deste levantamento inicial. Trabalhamos,
neste momento, com os textos das reportagens, pois assim nos possibilitaria uma leitura de
como foram sendo construídos os sentidos e os enunciados para o MST.
Dividimos a análise em três recortes temporais:
O primeiro recorte situou o período de estudo entre 1990 e 1994. Neste período foram
86 ocupações19. Escolhemos as ocupações das fazendas Nova Pontal e São Bento pelas
seguintes razões: a fazenda Nova Pontal foi a primeira ocupação feita no Pontal do
Paranapanema e a ocupação da fazenda São Bento foi um dos processos mais longos de
ocupação (foram 22 ocupações) e, além disso, porque estas contêm, na essência as demais.
Desse período, além das ocupações, também selecionamos notícias em que os jornais
evidenciavam e reforçavam o caráter ‘revolucionário’ do Movimento e, portanto, ameaçador
do establishment e da ordem dominante.
Nosso segundo recorte temporal corresponde aos anos de 1995 a 1999, com 242
ocupações20. Consideramos, nesse período, nas notícias de rotina sobre as ocupações, os
enunciados para o MST que contivessem a potencialidade de ameaça representada pelo
Movimento (tiroteios, prisões etc.). Isto é, onde pelo excesso – a violência exacerbada –
confirma-se uma rotina – as ‘invasões’ são violentas – e, conseqüentemente, configura-se um
cenário de violência para a Luta pela Terra e do MST, logo, a necessidade da intervenção do
aparato judicial21. Desse período selecionamos os títulos sobre as ocupações, as desocupações
e também alguns editoriais em que era possível verificar as “modalidades do dizer” sobre o
Movimento e que compunham a sua imagem de perigoso e ameaçador.
18 A noção de recorte com a qual estamos trabalhando foi formulada por Orlandi (1984 p. 14): “O recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de linguagem-situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva (...). Pretendemos que a idéia de recorte remeta à polissemia (vários sentidos) e não à de informação”. 19 Dados do Relatório 2003 do DATALUTA, Banco de Dados da Luta pela Terra do NERA (Núcleo de Estudos, Pesquisa e Projetos de Reforma Agrária), UNESP/Presidente Prudente. 20 Dados do DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2003.
14
O terceiro recorte vai corresponder aos anos de 2000 a 2004. Aqui, nossa intenção foi
deixar visível a dimensão do processo da produção de sentidos para o MST e a Luta pela
Terra, a partir de dois momentos da conjuntura atual: o primeiro situado no período que
antecedeu as eleições presidenciais, entre 2000 e 2002, o segundo após as eleições tendo o
governo Lula como um dos oponentes do Movimento.
Buscamos mostrar a paisagem que foi construída para o MST nos dois jornais,
evidenciando que o discurso-político dos jornais, ao contrário do que se diz, encontra-se
assujeitado a um dizer já posto por uma formação discursiva dominante.
Nas seqüências discursivas buscamos evidenciar as denominações, os enunciados e o
discurso relatado. Também procuramos trabalhar com duas características da prática
jornalística: as matérias assinadas e os editoriais, por entendermos que estes traçam a linha do
jornal e dão a medida certa para questionarmos a tríade objetividade, imparcialidade e
neutralidade, princípios defendidos pela imprensa.
O corpus de análise envolve, dessa forma, dois momentos: um mais distante (1990-
1999), cujo processo discursivo-ideológico constitui o cerne da pesquisa; e um mais recente
(2000-2004, com o qual o primeiro mantém ligação. Nosso objetivo é apreender nesses dois
momentos da história do MST e da Luta pela Terra, por meio dos jornais O Imparcial e Folha
de S. Paulo, como se processa o saber próprio à formação discursiva dominante e de que
maneira se dá a continuidade, a ruptura, a descontinuidade histórica entre eles.
Também buscamos evidenciar o discurso do MST, nesse período. Para tanto,
realizamos um terceiro corpus de análise, mobilizado a partir do Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, sobre suas ações de 1990 a abril de 2004. O objetivo ao mobilizarmos esse
corpus, era o de contrapor, paralelo ao discurso dos dois jornais, o discurso do outro,
destacando em seus enunciados, formações discursivas em confronto, portanto, um discurso
outro, permeado por outras vozes, as quais o discurso jornalístico procura silenciar e manter
sobre controle. Abaixo, Quadro 3, enumeramos o período (mês/ano) consultado.
21 Convém destacar que foi gestada, neste período, a Medida Provisória 2027, a qual foi editada em maio de 2000 e que coibia as ocupações de terra. Esta MP é responsável por uma caça às lideranças e, conseqüentemente à prisão de integrantes do MST.
15
Quadro 3 – Jornal Sem Terra – Período Consultado22
Mês Ano Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2003.
Uma primeira questão que nos acompanhou, no trabalho de compor o corpus de
análise do discurso do MST, foi a seguinte: o que faz com que um movimento social tenha o
seu próprio instrumento de comunicação? Acreditamos que o que faz movimentos sociais,
como movimentos sindicais, partidos políticos de esquerda, entre outros, criarem seus
próprios mecanismos para informar se deve ao fato de com isso poder escapar aos gestos
interpretativos da imprensa. Pois se analisarmos quantas outras organizações têm os seus
jornais é uma indicação de que o papel da imprensa e sua função de informar devem ser
questionados.
Assim, o Movimento também se situa entre aqueles que, ao construíram um espaço
para veicular seu discurso, evidencia que existe uma formação discursiva dominante que se
sobrepõe aos enunciados da Luta pela Terra e pela Reforma Agrária, deixando de veicular os
seus sentidos.
16
O MST na imprensa e a Luta pela Terra no Pontal do Paranapanema
O processo de organização do espaço nessa região se deu por meio da “indústria da
grilagem” de terras, o que explica, em muito, a origem dos conflitos, hoje. Entretanto, como
esse processo pode ser apreendido pelo discurso jornalístico, hoje, e que explica as ações dos
movimentos de luta pela terra? E, ainda, como esse processo foi sendo “apagado” do discurso
dos jornais, a ponto de se construir uma imagem de região do conflito agrário, a partir das
ações do MST?
Embora, os conflitos pelo acesso a terra, no Pontal, com o decorrer do processo de sua
ocupação, remontam aos séculos XIX e XX, certamente foram construídas e reconstruídas
representações sobre essa região.
Segundo Moraes (1988), é fundamental que compreendamos o espaço como categoria
construída tanto num contexto histórico determinado quanto numa cultura específica. E, neste
caso, as representações sobre o espaço também só podem ser entendidas num tempo e cultura
definidos; em suas palavras “a necessidade de não diferenciar o produtor, o produzido e o
contexto de sua produção” (MORAES, 1988, p. 21), introduzindo, nesta perspectiva, o sujeito
nos processos socais que a geografia busca entender.
Na produção do espaço, sob este ponto de vista, implica considerar a historicidade do
processo que produz espaços e as “leituras” e interpretações sobre ele, sua subjetividade,
embora essas duas dimensões do processo não possam ser desvinculadas dada a interferência
que uma exerce sobre a outra. A “leitura” de um espaço, a forma de sua apreensão e
concepção vão se refletir na sua produção material.
Daí a nossa compreensão de que o espaço não é somente objeto de disputa entre várias
forças sociais presentes numa área, mas que também é produzido como forma de luta. Sendo
produto do trabalho humano, fruto das relações que se estabelecem num determinado
momento das forças produtivas, o espaço é produzido concomitantemente ao processo de
existência humana. A sociedade ao mesmo tempo que produz sua existência, produz o espaço.
Assim, o espaço é o lócus da reprodução das relações sociais de produção, portanto,
socialmente produzido (LEFÉBVRE, 1976). Entretanto, a sociedade não é apenas um
aglomerado indiferenciado de pessoas. Ela está dividida em classes sociais. E toda relação
social tem uma dimensão espacial e outra temporal, existindo uma prática social do Estado,
das classes dominantes e das classes trabalhadoras.
22 Os meses que aparecem em branco no quadro correspondem ao período que não tivemos acesso ao Jornal.
17
O espaço produzido no Pontal do Paranapanema pode ser apreendido enquanto espaço
por excelência de acumulação e reprodução capitalista, o que explica a tentativa de
manutenção de uma cartografia fomentadora dos interesses das camadas dominantes,
impedindo que eventuais transformações possam significar rupturas nas suas formas de
apropriação.
Vivemos em uma sociedade hierarquizada e desigual que evidencia e diferencia os
espaços e, há, concomitantemente, um discurso que disciplina essa hierarquização, isto é,
procura-se definir quais os lugares em que se deve manter as classes subalternas, bem como
os lugares dos que lutam pela ruptura dessa hegemonia. Assim, uma sociedade hierarquizada
e excludente, busca ‘apagar’ antagonismos e contradições artificialmente no discurso da
imprensa por meio do controle do discurso e ação do MST, os quais são colocados enquanto
transgressores, uma vez que colocam em perigo ou questionam a idealização da ordem e da
lei, portanto, são combatidos com tanto rigor.
O espaço é construído, estruturado e hierarquizado socialmente em que forças
econômicas, políticas e culturais atuam forjando significados, moldando subjetividades e
territorialidades; enfim definindo espaços e territórios específicos de exercício de poder.
A produção de sentidos do discurso jornalístico, no espaço, dá-se para atender
interesses dominantes que tratam de se perpetuar e manter privilégios por meio dos tempos.
Para desvendar e compreender tais mecanismos partimos do pressuposto de que é necessário
reconhecer o discurso como um elemento que ajuda a ordenar esse arranjo espacial.
Procuramos dar visibilidade a um processo de institucionalização que, associado ao discurso,
evidencia uma construção definida por uma ordenação espacial.
A compreensão de espaço pressupõe admiti-lo como um conjunto de práticas espaciais
e práticas sociais: valores, desejos, significações, projetos, ideologias, ou seja, práticas
discursivas. O conjunto de práticas discursivas vai constituindo e redesenhando o espaço. Os
discursos são atuantes, o território é consolidado à medida que constitui o próprio discurso
que lhe dá sentido.
Assim, quando pensamos nas paisagens hegemônicas do Pontal do Paranapanema
veiculadas no discurso jornalístico, sabemos que este está inserido no mecanismo de exclusão
e reprodução da acumulação capitalista. Por isso veicula as notícias por meio de filtros
ideológicos, os quais não permitem a produção de outros sentidos, ou que os sentidos
veiculados no discurso do MST venham a fazer sentido.
As possibilidades de análise são infindas. É nesta perspectiva que este estudo vem
atuar, isto é, constituindo uma possibilidade a mais de recompor estratégias de dominação e
18
resistência, inseridas num lócus disciplinarizado pelo padrão do discurso neoliberal. Este
trabalho procurou destacar, as representações sobre o MST, divulgadas e defendidas pelos
segmentos dominantes tradicionais, evidenciadas como domínio e repressão. A sua
representação torna-se visível no interior das condições de produção do discurso articulado
pela ordem burguesa vigente. É neste espaço que intervêm os discursos que policiam,
condenam e controlam os discursos do outro – MST – os quais servem do auxílio da imprensa
e do poder das classes dominantes para que a construção do espaço/território sirva a interesses
bem delimitados.
Aspectos da ordem moral e jurídica são utilizados para darem sentidos aos múltiplos
espaços a partir de um contexto de luta entre capital e trabalho, sem negligenciar as
dimensões do simbólico. O discurso jornalístico sobre as ações do MST serviu para delimitar
territórios e territorialidades, estigmatizar condutas e ampliar ou manter áreas de atuação dos
poderes hegemônicos.
A compreensão da produção dos sentidos que são construídos sobre o MST, no
discurso jornalístico, no período delimitado nesse estudo, pode contribuir para a
inteligibilidade da ordem política econômica tanto em escala local como em escala nacional.
Os discursos hegemônicos, em nome de uma mascarada harmonia e ordem social, ignoram
deliberadamente a realidade, uma realidade que é feita de contradições e tensões de classes
distintas que atuam na disputa pelo espaço e territórios.
Nesse sentido, interessa-nos muito mais, para a finalidade desta pesquisa, entender, a
partir daí, a construção de um discurso sobre um agente social, cuja atuação interfere e
contraria a lógica da produção desse espaço.
Há uma representação do MST e da região construída por meio dos discursos. Os
discursos construídos sobre o Movimento não são construções sobre a realidade23, nas muitas
denominações que estão ligadas a outros movimentos de caráter reivindicatório ou
revolucionário, tais como o das Ligas Camponesas, permanecem associadas ao MST.
Denominações como “guerrilheiro”, “el comandante”, como veremos ao longo do trabalho
foram ressignificadas, mas ainda preservam, ou fazem parte de uma formação discursiva (FD)
predominante, e fazem com que a referência à região, por tabela, seja incorporada sempre a
esse universo.
23 Não é demais lembrar que, para efeito social, a realidade é, hoje, e há muito tempo, construída pelos meios de comunicação. A realidade compartilhada é aquela que a mídia oferece. Evidentemente ao afirmarmos isso, não queremos dizer que a realidade deixe de ser o que é em função da influência da mídia. O que estamos afirmando é que a realidade social, aquela que acaba se tornando senso comum, se afirmando enquanto verdade, é construída essencialmente pala mediação da mídia.
19
A construção do discurso sobre o MST no jornal Folha de S. Paulo foi estruturada, a
partir da década de 1990, por meio de relatos: as notícias eram transmitidas, por meio de
informações obtidas da reportagem local e eram acrescentados os desenhos, croquis e figuras,
enfim a representação da região foi sendo incorporada aos relatos das ações do MST. Algum
tempo depois vieram as imagens dessas ações, tanto das “cidades de plástico”, como de cercas
sendo derrubadas que foram construindo o processo de constituição de um imaginário sobre o
Movimento e a região. Como podemos avaliar (figuras 1 e 2) a partir dos recortes abaixo,
ambos publicados no jornal Folha de S. Paulo, em 1991.
Figura 1: Localização da área de conflito. Fonte: Folha de S. Paulo, 27/03/91.
Figura 2: Localização da área de conflito Fonte: Folha de S. Paulo, 02/04/91
Discursos e imagens que privilegiam o destaque para a violência são recorrentes e
reforçam, além do caráter de violência do MST, a idéia de uma região assolada pelo “crime de
invasão de terras”. Dificilmente se encontram nos textos das reportagens informações que
possam desfazer essas impressões ou que informem, por exemplo, sobre a grilagem dessas
terras que o Movimento reivindica.
Esses discursos são comuns tanto na mídia escrita quanto na televisiva. Os
estereótipos associados ao MST e, por conseguinte ao Pontal do Paranapanema, são
atualizados pela imprensa por meio de formações discursivas (FDs) que vêm sendo
construídas e reconstruídas há muito tempo. O cenário construído pelo discurso jornalístico
das “invasões” (foices, enxadas e cercas sendo derrubadas, os barracos de lona preta nas
cercas das fazendas) está associado ao poder dos meios de comunicação, que normalmente
mostram o Pontal de um ponto de vista destrutivo, como denúncia dos latifundiários e menos
da apropriação, por parte destes, de terras devolutas.
20
Assim, na década de 1990, as ocupações de terra, especialmente a partir de 1996, têm
sido um dos assuntos mais recorrentes nos jornais por meio das ações do MST no Pontal do
Paranapanema, sem que estes, no entanto, informem sobre as conquistas24, traduzidas em
implantação de assentamentos realizados a partir dessas ações.
O padrão do discurso tem sido mantido, o do conflito e da radicalidade do Movimento,
em detrimento da necessidade de reforma agrária ou da distribuição dessas terras apropriadas
por grileiros. Assim, o discurso jornalístico ao mesmo tempo em que constrói uma
representação do MST como violento e inimigo da pátria, também constrói uma idéia de
região, isto é, funda a capital do conflito agrário.
Discurso não faz parte de temas estudados na geografia enquanto análise espacial. Isto
nos forçou a buscar referências de outras áreas e autores, sobre a relação espaço-discurso-
território, o que pode induzir a ousadias e também equívocos no tratamento do tema. Sendo
assim, a nossa discussão procura entrelaçar preocupações acerca da espacialidade do discurso
com os marcos concretos que se reveste na prática da imprensa. Preocupamo-nos, contudo,
em delimitar um ponto de partida razoável e, sendo assim, não há neste estudo a pretensão de
argumentar que estudar o discurso em geografia seja suficiente e capaz de explicitar a
natureza mesmo da ciência geográfica.
Pensar, aqui, na construção e constituição dos discursos significa desvendar os
mecanismos sociais que constroem desigualdades e que são legitimadores dos processos
sociais que definem os territórios. A compreensão da dinâmica destas relações, materializadas
espacialmente, nos coloca a necessidade de entendermos os processos e mecanismos de
controle social que estão enraizados nas diferentes formas de “gestão territorial da sociedade”
(THOMAZ JR, 2002).
Estudar o MST dos jornais possibilita-nos conhecer uma paisagem construída
especificamente sobre os trabalhadores sem terra, através dos signos que os nomeiam, mas,
também do MST como uma construção acerca dos movimentos políticos que se opõem ao
sistema/governo, ou de acordo com Thomaz Jr (2002) aos fundamentos da ordem metabólica
do capital. Entretanto, as condições sociais inerentes a essa lógica envolvem questões que vão
além da distribuição desigual de renda, de bens materiais e de condições mínimas de
sobrevivência. Envolvem, também, as necessidades de comunicação e seus vínculos com a
produção da linguagem.
24 Nesse período, o Movimento intensificou as ocupações que, consideradas como instrumento de luta e resistência, resultaram em 57 assentamentos , o que evidencia que esse quadro de assentamentos está vinculado
21
Visando a essa apreensão, o texto está dividido em quatro capítulos, interligados a
partir da compreensão de que o discurso não acontece solto em espaço nem é vazio de
significado. Esses capítulos se articulam tendo em vista três nós privilegiados: o sujeito, o
discurso e o espaço. Centrados nessa problemática, mostramos as formas de manifestação do
discurso no espaço geográfico, o qual tem rebatimentos num território: o território da Luta
pela Terra, no Pontal do Paranapanema, por meio de territorialidades manifestas na forma de
representação dos trabalhadores organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (bandido, guerrilheiro, ladrão, invasores etc.).
Assim, no capítulo 1, evidenciamos por meio das reportagens dos jornais O Imparcial,
de Presidente Prudente e Folha de S. Paulo, as condições de produção do discurso
jornalístico, os mecanismos enunciativos nele articulados, que marcam a posição ideológica
dos enunciadores (jornalistas, articulistas, governo, latifundiários etc) e sua constituição em
relação ao discurso do Outro, o MST.
O capítulo mostra como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi
discursivizado pelos jornais, desde sua organização no Pontal do Paranapanema, isto é, a
partir de sua primeira ocupação, em 14 de julho de 1990 até abril de 2004. A intenção é
evidenciar que os jornais, mais do que informar, cumprem outro papel nesse processo, pois se
mostraram o MST, mostraram a partir de alguns aspectos, seja evidenciando o caráter de
violência do Movimento, seja destacando os elementos que serviram para demonstrar a
necessidade de intervenção do aparato judicial.
O capítulo 2 destaca o surgimento e as condições que propiciaram a existência do
MST. Mostramos o que os jornais não mostram o que vai repercutir nos arranjos
paisagísticos dos lugares, principalmente no Pontal do Paranapanema. O desenho territorial
que o MST construiu é muito diferente do desenho territorial construído pelos jornais. Ou
seja, se no Pontal do Paranapanema a paisagem era do latifúndio, o MST construiu uma
paisagem outra seja pelos assentamentos seja pelos acampamentos na beira das estradas e nas
ocupações de terras. Neste capítulo, vamos construindo um discurso sobre o MST por meio
do seu discurso veiculado no Jornal SEM TERRA, evidenciando os mecanismos enunciativos
do MST, nos quais também dialogam diversos discursos.
O capítulo 3 procura destacar as concepções teóricas que buscamos construir para
discutir o discurso da imprensa sobre o MST. Discurso, espaço e território são os conceitos
básicos que utilizamos para demonstrar o norte teórico que estamos utilizando. Nesse sentido
ao aumento das ocupações, as quais estão diretamente relacionadas à intensificação das formas de resistência dos trabalhadores a um intenso processo de desterritorialização.
22
procuramos dialogar com Foucault, Pêcheux, Bakhtin, estabelecendo um viés de análise com
Santos, Moreira, entre outros. O capítulo evidencia nesse encontro a necessidade da interface
com outras áreas do conhecimento, entendendo que o conhecimento é relacional, daí a
necessidade de buscar outras áreas do conhecimento para explicar ou pelo menos tentar e
explicar, uma dada realidade.
No quarto capítulo 4 mostramos como, a partir das análises dos recortes das notícias,
convivem no discurso da imprensa conflitos e confronto de vozes, de formações discursivas
presentes no discurso jornalístico, buscamos mostrar que o discurso não surge livremente,
como fruto da escolha ou da vontade do sujeito.
Assim, a relação entre MST e o discurso político da imprensa define um campo de
investigação que busca identificar as formas possíveis de utilização de aspectos particulares
da Luta pela Terra na construção de um imaginário coletivo de uma sociedade e a
instrumentalização deste imaginário para ações de base política em seu território. Portanto,
tomar o discurso da imprensa um recurso político supõe, não apenas seu desvelamento no
plano do ideológico, mas a forma como ele atua e é percebido coletivamente.
25
Ao final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, num contexto histórico marcado
pelo recrudescimento da crise do regime militar que se instalara no país em abril de 1964, o
MST começa a se constituir. Várias lutas localizadas anunciavam o surgimento de um novo
movimento de Luta pela Terra no Brasil, quando em diferentes lugares surgem manifestações:
em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, em setembro de 1979, 110 famílias ocuparam as
glebas Macali e Brilhante; em Campo Erê, Santa Catarina, em 1980, ocorre a ocupação da
fazenda Burro Branco; no Paraná, mais de dez mil famílias, que teriam suas terras inundadas
pela construção da barragem de Itaipu, organizavam-se contra o Estado; em São Paulo,
ocorria a luta dos posseiros da fazenda Primavera, nos municípios de Andradina, Castilho e
Nova Independência; em Mato Grosso do Sul, nos municípios de Naviraí e Glória de
Dourados, milhares de trabalhadores rurais arrendatários lutavam pela permanência na terra
(FERNANDES, 1996).
Poderíamos, para efeito didático, dividir a trajetória do MST em três fases. A primeira
delas, inserida na crise do regime ditatorial militar, começou com as ocupações de terra que,
desde 1979, ‘pipocavam’ em vários pontos do país. Essa é a fase da luta dispersa e localizada.
Ela encerra-se em 1984/85 com a criação de um movimento unificado em escala nacional. A
segunda fase desenvolve-se sob o governo Sarney, no bojo do Plano Nacional de Reforma
Agrária (PNRA) e com o tratamento dado à questão no Congresso Constituinte. Nessa fase, as
ocupações de terra multiplicavam-se, ao mesmo tempo em que surgiam iniciativas por parte
do Estado visando a oferecer uma resposta - retórica ou real - ao problema colocado pelo
MST.
Um balanço desse período – final de 1970 e meados de 1980 – mostra que a realização
de uma Reforma Agrária praticamente não extrapolara o nível das propostas e das “boas
intenções”. Na terceira fase, contemporânea dos governos de Fernando Collor/Itamar Franco,
a ofensiva do MST expande-se, ao mesmo tempo em que as desapropriações são feitas em
menor quantidade que as do governo Sarney. Finalmente, numa última fase, sob o governo de
Fernando Henrique Cardoso e com forte atuação do Poder Judiciário, o MST passa a ocupar
um lugar de destaque nos meios de comunicação e no discurso político-partidário e a luta pela
Reforma Agrária ganha projeção nacional e mesmo internacional. No Estado de São Paulo
esses períodos vão corresponder aos governos de Paulo Maluf (1982), Franco Montoro (1982-
85), Orestes Quércia (1986-89), Luis Antonio Fleury (1990-93), Mário Covas (1994-2001) e
Geraldo Alkmin (2001-2004), respectivamente.
Ressaltamos que o cenário sob o qual o MST se insere é o da concentração de terra e
de renda, que tem como fundamento a precarização das relações de trabalho. As
26
desigualdades sociais no campo nada mais são do que resultados da concentração da
propriedade, dos grandes latifúndios, e da modernização da agricultura. A esse contexto
soma-se os segmentos sociais da classe trabalhadora que, nas cidades, conhecem as
redefinições tecnológicas do trabalho, ou seja, a desqualificação, a informalização e o
desemprego em massa. Conforme Thomaz Jr (2002, p. 8):
Os desdobramentos espaciais e territoriais ocasionados pelo complexo da reestruturação produtiva do capital, tendo em vista o novo choque de competitividade imposto pelas transformações neoliberais a partir da década de 1980, rebateu sobre o mundo do trabalho, tanto no campo quanto na cidade, especialmente para os diversos sentidos que o trabalho assume na viragem do século XXI.
A Luta pela Terra no Brasil desvenda os impasses e as contradições do processo de
modernização da agricultura, a qual levou os camponeses desterreados para os centros
urbanos “sendo que para garantir seu sustento se enquadram em atividades (...) assalariadas,
semi-assalariadas, autônomas, mas todas reunidas no quadro da precarização do trabalho”
(THOMAZ JR, 2002, p. 9). Esse processo de reterritorialização do trabalho e de busca pela
terra explica os novos atores sociais (acampados e assentados), os trabalhadores organizados
pelo MST.
1.1. O MST dos/nos jornais O Imparcial e Folha de S. Paulo (1990-1994): a escalada do
conflito
O MST25, no Pontal do Paranapanema realiza sua primeira ocupação, na fazenda Nova
Pontal, em Rosana, distrito de Teodoro Sampaio, em 14 de julho de 1990. As ocupações dessa
fazenda ‘estrearam’ o MST dos jornais O Imparcial e Folha de S. Paulo. Desde então, as
ações do Movimento mereceram a cobertura dos jornais e, muitas vezes, na perspectiva de
contextualizar um acontecimento novo: ocupação, marchas, caminhadas, prisões, a história é
contada outra vez. Inserida no texto, separada em um Box26 ou em comentários de colunistas,
articulistas, ações anteriores dos sem-terra retornam para reiterar pelo discurso, a repetição
das lutas e a sua interpretação.
25 A Luta pela Terra, no Pontal do Paranapanema, não se limita à atuação do MST. Existem outras frentes de luta, como MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra). A esse respeito LIMA (2004) vem desenvolvendo sua pesquisa em que analisa as dissensões entre os movimentos sociais implicados na Reforma Agrária. 26 Box é o espaço em destaque, geralmente num quadro, em que se tem uma descrição com mais detalhes de uma informação inserida no texto.
27
Essa primeira ocupação de terras foi realizada sobre uma das maiores áreas griladas do
Estado. Esse fato foi enunciado pelo jornal Folha de São Paulo (doravante FSP) e O
Imparcial (OI):
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra anuncia que mais de 700 famílias ocuparam anteontem uma fazenda de 2.500 hectares no Pontal do Paranapanema. Teria sido a maior operação do gênero em território paulista. (FSP, p. A4, título: Invasão, 15/07/90).
No dia seguinte, o jornal FSP, também numa nota de fim de página, volta a enunciar o
acontecimento:
A família Rocha Cunha, proprietária da Fazenda Nova Pontal, invadida na madrugada de sábado passado por 700 famílias de trabalhadores sem terra, deverá impetrar hoje na Justiça o pedido de reintegração de posse da área ocupada. (FSP, p. A6, título: Invasão, 16/07/90).
Depois de uma semana que estas famílias estavam acampadas e após medida de
reintegração de posse expedida pelo juiz à proprietária da fazenda, esses trabalhadores
decidem manter, no acampamento, dois oficiais de justiça que foram entregar a ordem de
desocupação. Esse fato motivou uma reportagem mais detalhada sobre o assunto:
O juiz Camilo Lellis dos Santos Almeida, da Comarca de Teodoro Sampaio (SP), deverá se reunir hoje pela manhã com as polícias Civil e Militar para decidir a ação de despejo dos trabalhadores sem terra que invadiram na madrugada de sábado a fazenda Nova Pontal, em Primavera (830 km a oeste de São Paulo). [o juiz] concedeu anteontem a liminar de reintegração de posse à proprietária da fazenda (...), mas diante da reação dos sem-terra – que mantêm há dois dias dois oficiais de Justiça como reféns – preferiu tentar uma negociação antes de decidir pelo despejo. O prefeito de Teodoro Sampaio (...) pediu à polícia para que recue o cerco. Segundo ele, os invasores prometem matar os dois oficiais de Justiça caso a polícia tente o confronto. (...) A polícia informou que o clima é tenso mas que os oficiais de Justiça estão bem-tratados (FSP, p. A 8, Título: Invasores prometem matar 2 reféns e juiz tenta negociação, 19/07/90).
Nos dias 20 e 21/07 os jornais OI e FSP, publicam a desocupação da fazenda
determinada pela Justiça através de ação judicial. Desse episódio, segundo o jornal, “a polícia
indiciou Josmar Chaption, um dos líderes dos sem-terra, no inquérito aberto para apurar as
responsabilidades pela invasão e por cárcere privado” . (FSP, 21/07/90, p. A8).
28
Essas famílias saíram da fazenda e, segundo o jornal, “a maioria voltou para suas
cidades de origem”, ficaram acampadas às margem da rodovia SP-613. A ação de despejo foi
realizada por 900 policiais civis e militares, além de cachorros e jagunços (FERNANDES,
1996, p.163).
E assim o jornal relatou, “Fim pacífico da invasão da fazenda” (OI, 21/07/90, p.01).
Em agosto de 1990, há quase um mês acampadas às margens da Rodovia SP-613,
essas famílias voltam às páginas dos jornais:
As famílias acampadas às margens da rodovia SP-613, desde julho, quando foram despejadas da fazenda Nova Pontal, assaltam um caminhão carregado de bois (...) mataram cinco bois.(OI, p. 12, título: Acampados “Sem-terra” assaltam caminhão, 11/08/90.).
Cerca de 200 famílias sem terra acampadas às margens da rodovia SP-613, na região do Pontal do Paranapanema (650 km a oeste de São Paulo), impediram anteontem a passagem de um caminhão carregado de bois, renderam o motorista, (...) e abateram cinco animais para o consumo. Na última quarta-feira, saquearam um caminhão de leite (...). Cem PMs foram para o local. A polícia indiciou lideranças pelos saques” (FSP, p A4, título: Sem-terra fecham estrada no Mato Grosso, 11/08/90).
No dia 23 de março de 1991, essas famílias ocuparam a Fazenda São Bento, localizada
no município de Mirante do Paranapanema. Desse episódio, e o período que durou esse
processo, acompanhamos nos jornais OI e FSP, entre os anos de 1991 e 1994, e durante o
mesmo período 28 reportagens. Se aqui, numa escala local o MST fez parte dos noticiários
com matérias diárias, o mesmo não ocorreu com o jornal FSP. Mas o interessante não é a
periodicidade e sim o discurso enunciado nos jornais, conforme veremos nos recortes
selecionados.
Um dia após a ocupação da São Bento os jornais publicaram:
Antonio Sandoval Neto, proprietário da fazenda São Bento, em Mirante do Paranapanema (SP), deve solicitar hoje à Justiça a reintegração de posse a área invadida na madrugada de sábado por 247 famílias de sem-terra. Os invasores – cerca de 700 – passaram o dia construindo barracos (FSP, p. 1-4, título: Dono de fazenda pede a reintegração de posse, 25/03/91). Os acampados da fazenda São Bento estão confiantes na decisão da Justiça. (...) tombaram uma área para o plantio de feijão.(OI, p. 02, título: Acampados da fazenda São Bento estão confiantes, 24/03/91).
No dia seguinte, a Justiça acata o pedido do proprietário e:
29
O Juiz Lauro Mens de Mello (...), concedeu ontem liminar de reintegração de posse a Antonio Sandoval Neto, proprietário da fazenda São Bento, invadida sábado por 247 famílias sem-terra (FSP, p.1-4, título: Justiça concede reintegração de posse a dono de fazenda, 26/03/91).
Como as famílias se recusaram a sair “O governo estadual decidiu enviar um
emissário” (FSP, 27/03/91, p. 1-10), para negociar a saída da fazenda, já que o proprietário
obteve da Justiça liminar de reintegração.
Essa área era de terras devolutas27 e “A Procuradoria entrou na Justiça com uma ação
para desapropriar a Fazenda São Bento, em Mirante do Paranapanema (SP), invadida por
sem-terra no sábado” (FSP, 28/03/90, p. 1-4). O fato do Governo entrar com o pedido de
desapropriação gerou um impasse e, depois de uma semana, as famílias continuavam
acampadas, esperando a decisão da Justiça em acatar ou não o pedido: “O imóvel rural, de
Antonio Sandoval Neto, foi invadido há uma semana por 247 famílias de sem-terra e o
governo pretende desapropriá-lo, alegando que os 5.200 hectares da fazenda são terras
devolutas” (FSP, 29/03/91, p. 1-8). Em compasso de espera, proprietário, governo e as
famílias sem-terra, aguardavam a decisão, enquanto isso o jornal publicava no dia 01/04/91,
entrevista, assinada pelo jornalista Ulisses de Souza, com o administrador da fazenda, Tydeo
Gonçalves:
Folha – O que o senhor acha das invasões de terra? TG – São inadmissíveis. Não é coisa de país sério. (...). Folha – Elas ferem o direito de propriedade? TG – Sem dúvida. Por isso é angustiante. Estamos aqui há 45 anos, trabalhamos a terra bruta e corremos o risco de perder nossos direitos. Folha – Quem está por trás da invasão? TG – Tem o pessoal da CUT, do PT, da Pastoral da Terra e uma ala do PMDB comandada pelo deputado Mauro Bragato. O que está acontecendo aqui é uma perseguição política ao meu sogro (...). Folha – O que acontecerá se o governo reivindicar a posse de outras fazendas na região? TG – Será o caos, uma convulsão social e não sei o que pode acontecer. Folha – O senhor acredita na Justiça? TG – Graças a Deus que no Brasil a Justiça corresponde, é honesta. Se não fosse isso, estaríamos perdidos (SOUZA, 1991, p. 3, Subtítulo: Ex-prefeito quer invasores fora de fazenda).
Em 02 de abril, o jornal publica a decisão da justiça:
27 São consideradas terras devolutas áreas que não foram registradas e legitimadas de acordo com a Lei de Terras, de 1850. Deste modo, as terras que foram ocupadas e não registradas são consideradas do patrimônio público.
30
O juiz Lauro Mens de Mello, (...) indeferiu ontem o pedido de desapropriação da fazenda São Bento, formulado pelo governo estadual. O imóvel foi invadido há onze dias por 247 famílias sem terra (...) [ele] afirma que ‘não existe qualquer disputa corporal entre os co-réus (sem-terra e fazendeiros) e a autora (Fazenda Estadual) para justificar a ação de desapropriação (FSP, p. 1-8, título: Desapropriação de fazenda é indeferida, 02/04/91).
Assim, “Cerca de 300 policiais retiraram ontem da fazenda São Bento, em Mirante
do Paranapanema (SP), as 247 famílias de sem-terra que invadiram o local no dia 23 do mês
passado” (FSP, 10/04/91). Neste contexto e na iminência de novas ocupações os fazendeiros
se organizam:
Sindicato Rural de Presidente Prudente (...) propõe, em nome de 100 proprietários rurais, um acordo para as terras do Pontal do Paranapanema. No documento, (...) oferecem ao Estado, em dinheiro, o correspondente a 15% das áreas das terras que não possuem titulação e que estão localizados nos municípios de Mirante do Paranapanema e de Teodoro Sampaio para aquisição de terras para os sem-terra. (...). O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra é contra todos os acordos” (FSP, p.1-8, título: Em SP, sem-terra deixam fazenda após negociação, 30/05/91).
Em 3 de junho, conforme publicado, “Proprietários de terras do Pontal do
Paranapanema enviaram ao governo estadual na semana passada uma proposta para tentar
pôr fim aos conflitos fundiários da região” (FSP, 03/06/91, p. 1-6).
Passada uma semana, o jornal enuncia que “Invasão tem trégua em Mirante do
Paranapanema”. Segundo o jornal,
O promotor de Mirante do Paranapanema (SP), Júlio Sobotka (...) conseguiu trégua entre sem-terra e administradores da fazenda São Bento. A fazenda foi invadida ontem pela terceira vez este ano. Houve disparos no local mas ninguém se feriu (...). (FSP, p.1-8, título: Invasão tem trégua em Mirante do Paranapanema, 12/06/91).
No mesmo mês o governo requisita uma área da fazenda para assentar essas famílias,
conforme notícia divulgada pelos jornais “Governo demarca área requisitada em
Paranapanema: Técnicos do Instituto de Terras da secretaria de Justiça iniciaram ontem a
demarcação de 2,8 mil hectares da Fazenda São Bento, em Mirante do Paranapanema (...)”
(FSP, 28/06/91, p. 1-8). Passados quase dois meses:
31
Antonio Sandoval Neto, proprietário da fazenda São Bento, em Mirante do Paranapanema (SP), obteve na Justiça liminar de manutenção de posse dos 2.862,5 hectares requisitados em junho pelo governo do Estado para assentar 247 famílias de sem-terra. Eles devem ficar em uma área de dez hectares até o julgamento final da ação (FSP, p. 1-8, título: Fazenda terá terras de volta, 10/08/91).
Segundo Fernandes (1996) uma parte dessas famílias continuou acampada e a outra
parte foi para essa área. Passados seis meses, essas famílias fazem nova ocupação:
Cerca de 250 famílias sem-terra, acampadas há seis meses em dez hectares da fazenda São Bento, invadiram no fim-de-semana outras áreas da propriedade (...). O fazendeiro (...) pediu a reintegração de posse (FSP, p.1-8, título: Colonos ocupam áreas da fazenda São Bento, 07/01/92).
Um grupo que teve origem dessas famílias acampadas na São Bento ocupa no dia 1 de
setembro de 1991 a fazenda Santa Clara, em Mirante do Paranapanema e, noticia o jornal:
Acordo entre o governo do Estado e o fazendeiro Manoel Roberto Barbosa vai possibilitar a ocupação pacífica de uma parte da Fazenda Santa Clara por 316 famílias de trabalhadores rurais sem-terra. (...) No dia 1º, o governador Luiz Antonio Fleury Filho autorizou uma comissão dos sem-terra a organizar a entrada da fazenda, “de forma comedida” (FSP, p. 1-8, Estado faz acordo para que sem-terra ocupem fazenda, 17/04/92).
Em 2 de março de 1993, as famílias de sem-terra acampadas na fazenda São Bento
voltam as páginas dos jornais:
Cerca de 200 famílias de sem-terra, segundo a polícia, invadiram anteontem às 4h a fazenda São Bento, em Mirante do Paranapanema. (...) O funcionário da propriedade Flávio de Andrade ficou ferido durante conflito (...). (FSP, p. 1-11, título: Famílias invadem fazenda em São Paulo, 02/03/93).
No dia 26/04/93 o jornal FSP, traz a notícia com o título: “Mil trabalhadores invadem
fazenda em São Paulo”, e com o subtítulo “Lavradores sem-terra ocupam Fazenda São Bento
e ameaçam resistir às tentativas de remoção judicial”, assinada por Carlos Eduardo Alves,
dedica uma página inteira, inclusive com fotos, Box, e com entrevista de um dos
organizadores do Movimento no Pontal. Pelo destaque dado, vamos dividir em vários recortes
a notícia, para evidenciar o caráter didático que foi assumido.
32
Cerca de mil pessoas invadiram no sábado a fazenda São Bento em Mirante do Paranapanema (...). Trata-se do foco mais explosivo do conflito fundiário no Estado de São Paulo. É a décima vez que o local é invadido. Os lavradores, liderados pelo Movimento dos Sem-Terra, disseram que vão resistir se a Justiça determinar a apreensão de tratores, foices e enxadas utilizadas na “ocupação” da propriedade (...). (FSP, p. 1-8, subtítulo: Lavradores sem terra ocupam Fazenda São Bento e ameaçam resistir às tentativas de remoção judicial, 26/03/93). “Sandoval tem um latifúndio improdutivo, fruto de grilagem, e nós só queremos trabalhar”, afirma José Rainha Jr., líder dos invasores. A invasão foi “profissional” O Movimento dos Sem-Terra mantém uma “cidade de plástico” do lado de fora da fazenda São Bento. Cerca de 1.200 barracas cobertas com folhas de plástico abrigam 400 famílias que há dois anos reivindicam a terra. (...). Os “ocupantes” – eles recusam o termo “invasores” – são em geral bóias-frias (...).
Antônio Sandoval Neto, 86, diz que está cansado da “novela” Fazenda São Bento. (...) acha que parte do problema é causado ‘pela ação de comunistas no meio dessa gente’. O fazendeiro admite que a propriedade das terras é passível de discussão. ‘Comprei aquilo na década de 30, de boa fé. Não tenho culpa se depois descobri que havia discussão sobre a propriedade’, diz. (FSP, p. 1-8, Subtítulo: Sandoval vê ‘comunistas’, 26/03/93 ).
No meio da página, o jornal traz uma matéria assinada por Carlos Eduardo Alves, cujo
título é “Líder é um profissional da invasão”:
O grupo que luta pela posse da fazenda São Bento obedece a um discurso claro. É um dos pontos de investimento do Movimento dos Sem-Terra, organização ligada ao PT. Discursos em defesa do socialismo são comuns nas assembléias. O movimento tende à radicalização e, no interior do PT, costuma se alinhar nas lutas internas de setores mais radicais do partido. “Acho que as transformações no Brasil só vão acontecer com a ruptura, não pelo voto”. A forma pode precisar de foice e fuzil, afirma o líder José Rainha Júnior, 32. Com um discurso sofisticado para a maioria de seus seguidores, José Rainha Júnior já conseguiu incorporar ao vocabulário dos lavradores sem-terra termos como “burguesia agrária”, “reacionário” e “via institucional”. CEBs: Rainha é hoje um profissional da invasão ou, como ele prefere, “da luta por comida, terra e trabalho”. (...) Começou a militar nas Comunidades Eclesiais de base (CEBs) e participou da fundação do Movimento dos Sem-Terra. José Rainha afirma “ainda” ter esperanças de que um eventual governo Lula resolva a questão agrária. Mas já ensaia um possível rompimento com o PT (ALVES. FSP, p. 1-8, Subtítulo: Líder é um profissional da invasão, 26/03/93)
33
Logo em seguida com “Regulamento é militar”, o enviado especial, explica a gênese
do Movimento:
A organização do Movimento dos Sem-Terra em Mirante do Paranapanema é rígida. Existem grupos de coordenadores para as áreas de trabalho, saúde e alimentação. Os moradores do acampamento são divididos em 45 grupos, que discutem os próximos passos contra Sandoval. Uma espécie de “corpo de segurança” resolve questões como furtos, brigas, alcoolismo. Não é raro algum integrante do movimento ser expulso. (...). (ALVES, FSP, p. 1-10, Subtítulo: Regulamento é militar, 26/03/93).
A ocupação da fazenda São Bento foi um dos episódios mais longos do processo de
Luta pela Terra no Pontal do Paranapanema. Essas famílias permaneceram num processo de
despejo e reocupação, tendo sua situação regularizada com a conquista do assentamento em
1994.
A partir de 1994, o MST tornou-se o protagonista do debate sobre a questão agrária, os
novos assentamentos e as formas de luta social no campo, bem como em todas as polêmicas,
decorrentes do acirramento das disputas políticas em relação às ações governamentais, ou
confrontando-se com seus oponentes diretos, os grandes proprietários de terra. Alçado à
esfera pública a partir desse período, a face do MST e da Luta pela Terra no Pontal do
Paranapanema e no Brasil, tornada visível pela imprensa, será a das ocupações e reocupações
– “despejos” – de terra, permeada pela violência, truculência e ilegalidade.
Mas é também, aí que o discurso dos jornais vai assumindo uma forma “didática” de
narrar (BERGER, 1998). Se o Movimento é notícia só por meio das ocupações, essas vão
conter no discurso uma produção de saber sobre o MST, em que são mostrados o seu
funcionamento, sua forma de organização e sua vinculação aos partidos de esquerda.
Em 04/04/94 o jornal FSP traz a seguinte manchete “Sem-terra querem triplicar
invasões este ano”. Segundo o repórter, Américo Martins,
Mais de 150 fazendas podem ser invadidas; líder diz que o objetivo é pressionar futuro governo a fazer reforma agrária (...). O principal incentivo para a mobilização dos sem-terra é a realização das eleições para presidente da República (...) Na avaliação dos sem-terra, invadir propriedades rurais é a forma mais eficiente de pressionar o governo para a realização da reforma agrária. Como os presidentes Fernando Collor de Mello e Itamar Franco fizeram poucas desapropriações, o movimento julga que é importante dar uma demonstração de força para que o próximo governo dê mais atenção ao tema. (MARTINS, FSP, p. 1-7, título: Sem-terra querem triplicar invasões este ano, 04/04/94 ).
34
Na mesma edição, assinada pelo mesmo jornalista e com o título “Movimento vai
apoiar a candidatura Lula”, temos um cenário muito claro de associações em torno de uma
disputa que não apenas envolvia a questão da terra, mas de vínculos do Movimento com o PT
e o perigo que essa aliança representava. E continua o jornalista:
(...) Segundo Gilmar Mauro, um dos coordenadores nacionais da entidade, os sem-terra vão ‘entrar na campanha’ e ‘fazer todo o possível’ para eleger Lula. (...) Os sem-terra vão apresentar sua proposta de reforma agrária (...) o MST ‘exige’ o assentamento de pelo menos 500 mil famílias por ano (MARTINS, FSP, p. 1-7, título: Sem-terra querem triplicar invasões este ano, 04/04/94).
Ainda nesta edição, e sob o título “UDR vê táticas de guerrilha”:
O presidente da UDR (União Democrática Ruralista), Roosevelt Roque dos Santos, acusa o MST de usar os sem-terra como ‘massa de manobra’ em anos eleitorais. (...) afirma que o MST aproveita essas ocasiões ‘para aparecer na mídia e mostrar que existe a necessidade de se fazer a reforma agrária’. (...) o presidente da UDR diz que o MST adota cartilhas que mostram como deve ser feita uma invasão de propriedade. (...) Além do aumento do número de invasões, os proprietários rurais temem uma possível vitória do PT nas próximas eleições. (...) O deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), ex-presidente da UDR, acha que o PT não vai conseguir fazer a reforma agrária e isto pode aumentar a violência no campo. (...) Para Santos, a conseqüência do possível aumento da violência vai levar a uma ‘reação’ dos fazendeiros e pode gerar uma ‘tragédia’. Ele afirma que já alertou várias vezes o Ministério da Justiça sobre a situação do campo, mas nada foi feito até agora. (MARTINS, FSP, p. 1-7, Subtítulo: UDR vê táticas de guerrilha, 04/04/94).
Ainda com o mesmo intuito, o jornal no dia seguinte traz a manchete “Incra duvida do
aumento de invasões”. Segundo o jornalista Carlos Alberto de Souza:
A intenção do MST de aumentar o número de invasões foi revelada ontem pela Folha. O movimento pretende aproveitar a eleição presidencial para dar impulso às invasões. O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Marcos Lins (...) não acredita que o MST (Movimento dos Sem Terra) vai triplicar as invasões de terra este ano. ‘Não possuo elementos de comparação, mas não me consta que em 1989 (...), essa estratégia tenha sido aplicada’, disse Lins. O próprio Incra não sabe quantas invasões ocorreram no país nos últimos anos. (SOUZA, FSP, p. 1-9, título: Incra duvida do aumento de invasões, 105/04/94).
35
Ainda respeitando o ‘tom didático’ de informar, o jornal publica no dia 22/05/94 que
“Movimento obedece a modelo paramilitar”, essa reportagem não traz assinatura de quem a
elaborou.
Cartilhas e documentos do MST mostram que a organização segue um modelo paramilitar. As áreas invadidas transformam em “Estados paralelos”, com lei e polícia próprias. A “justiça” nas áreas invadidas é exercida por “tribunais” formados pelo MST e chamados de “comissões de disciplina”. As comissões (...) julgam a “conduta política e pessoal” dos militantes.(...) Os sem-terra são proibidos de criticar o movimento ou seus líderes em público. (...) Os tribunais dos sem-terra tem o poder para determinar punições políticas ou aplicar multas em dinheiro (...). As “fronteiras” da área invadida são rigidamente controladas pelos sem-terra. Grupos indicados pela direção do movimento se revezam em vigilância armada. (...), a Polícia Militar paulista encontrou documentos mostrando que os militantes só deixavam o acampamento com passes especiais. Os “salvos condutos” eram fornecidos pela direção (...) e os militantes precisavam comprovar a necessidade de sair. Uma invasão equivale a uma operação militar. (...) a organização dos sem-terra copia modelos de organizações “revolucionarias” de outros países. (KRIEGER, FSP, p. 18, título: Movimento obedece a modelo paramilitar, 22/05/94).
Com “Movimento arma arsenal para invasões”, de Gustavo Krieger, matéria
publicada em 30/5/94, confirma-se a que veio o MST. Segundo o autor:
Dois relatórios sigilosos de órgãos de informações oficiais afirmam que o MST (Movimento do Sem-terra) estaria acumulando armas de fogo para usar em invasões de terra. (...) Armas viriam do Paraguai, segundo a SAE28; sem-terra têm apoio do PT e dizem usar apenas foices e facões (KRIEGER, FSP, p. 18, título: Movimento arma arsenal para invasões, 30/5/94 )
Em 16/06/94, o Editorial da FSP, com o título “Sem-terra quer o marxismo no país,
diz PM” e, também por meio de um documento sigiloso da PM de São Paulo “afirma que o
Movimento dos Sem-terra (...) está tentando organizar república marxista no país” (FSP,
16/04/94, p 1-1) A mesma edição traz uma matéria, agora assinada por Cláudio Julio Tognoli,
com o detalhamento da informação obtida. Segundo o jornalista:
A Polícia Militar de São Paulo entregou à SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) documento em que afirma que o Movimento dos Sem-Terra (MST) recebe verbas do exterior para financiar invasões e organiza uma república marxista-leninista.(TOGNOLI, FSP, p. 1-8, título: MST quer república marxista no país,16/06/94).
28 Secretaria de Assuntos Estratégicos, ligado à Presidência da República.
36
O documento é organizado com os seguintes tópicos:
Sobre a questão financeira:
(...) menciona informações sobre suposta ajuda econômica que o MST estaria recebendo do exterior);
Sobre partidos políticos:
(...) os partidos políticos que servem de base para as ações do MST são o PT e o PC do B.
Sobre o PT:
(...) recebe ajuda da agremiação Tendência Brasil Socialista (...), isso justifica ‘a forma radical de atuação do MST e sua concepção orgânica centralizada, o centralismo democrático’. (...) o documento sustenta que, com esse dinheiro e apoio partidário, o MST já teria alvos bem definidos, de acordo com os resultados das próximas eleições. (...) o dossiê afirma que o MST estaria tentando construir uma ‘autentica’ republica marxista. ‘A tão sonhada aliança operário-camponesa, segundo a doutrina marxista, é um fator indispensável para que se possa construir um Exército Popular Revolucionário’, afirma o dossiê (TOGNOLI, FSP, p. 1-8, título: MST quer república marxista no país, 16/06/94).
E por fim, no dia 03/07/94, o jornal publica uma matéria sobre a forma de atuação do
MST, bastante didática e com a qual encerramos essa primeira parte da história do MST
narrada nos jornais: “MST atua em 19 Estados”. Não traz assinatura:
O MST está organizado em 19 Estados. A organização é mais forte na região Sul do país, onde o movimento foi criado, em 1984, mas sua sede fica em São Paulo. A direção do MST é exercida por 15 coordenadores nacionais. Cada um deles é responsável pela organização do movimento em um ou dois Estados. (...) A maioria dos integrantes do MST vai apoiar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência. Um dos maiores segredos do grupo é seu orçamento (FSP, p. 1-10, título: MST atua em 19 Estados, 03/07/94).
Nesse primeiro recorte temporal de análise, 1990 a 1994, nos ocupamos das notícias
sobre as ocupações das fazendas Nova Pontal e São Bento porque, em ambas, estão contidos
os elementos que se apresentariam posteriormente, no discurso dos jornais, para narrar as
37
ações do MST, no Pontal do Paranapanema. Ou seja, as formas de denominações e de todo
tipo de desqualificações às quais o Movimento é submetido.
No próximo recorte – 1995-1999 – nos deteremos, então, nos títulos das reportagens e
em alguns editoriais os quais reforçam e confirmam a leitura do que foi assinalado nos títulos.
1.2. Os enquadramentos para a violência (1995 a 1999)
Iniciamos aqui, o recorte para análise dos títulos29 levando em consideração que é por
meio destes que o leitor tem seu primeiro contato com o acontecimento. E, também por ser o
lugar da página do jornal que está mais próxima da voz oficial. Pois, ainda que o título seja
sugestão do repórter, este só será publicado após aprovação do editor e, enquanto resumo do
relato do acontecimento, os elementos privilegiados são os que representam o ponto de vista
da empresa jornalística. Por meio dos títulos queremos observar os enunciados para um certo
desenho territorial que foi construindo os sentidos para o MST, sob a imagem da
intransigência e da radicalidade. Para este fim recolhemos todos os títulos e manchetes30 dos
jornais OI e FSP referentes ao MST entre 1995 e 1999 que estão assim distribuídos, nos
Quadros 4 e 5:
Quadro 4. Títulos – Jornal O Imparcial
Ano Manchetes Títulos Box Total 1995 32 92 - 124 1996 41 166 1 208 1997 23 172 3 198 1998 18 135 2 155 1999 8 42 2 52 Total 122 607 8 737 Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2003.
Quadro 5. Títulos – Jornal Folha de S. Paulo
Ano Manchetes Títulos Box Total 1995 72 146 - 218 1996 87 209 4 300 1997 163 178 6 347 1998 36 113 3 152
29 Utilizamos os títulos, pois estes contêm uma intenção de leitura e, segundo Fausto Neto (apud, BERGER, 1998, p. 130), “o titulo é o lugar da nomeação onde se dá o início à própria identidade do acontecimento”. No caso do MST, a manchete e o título, constituem, para muitos leitores, a única informação, pois a disputa de terra não interessa, diretamente, a quem não é proprietário de terra. 30 Manchete é o título principal e aparece na primeira página do jornal.
38
1999 12 18 3 33 Total 334 664 16 1050
Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2003.
Destes, selecionamos os enunciados de 42 ocupações, desde a primeira ação até seu
desenlace – isto é, o corpo discursivo31 que constrói a paisagem de uma ‘invasão, isto é, o
conjunto de manchetes e títulos que relatam cada ocupação, para, posteriormente, formar o
conjunto de manchetes e títulos das ocupações e, assim, verificar, na forma de denominação, a
formação discursiva predominante para o MST.
Nos títulos, portanto buscamos destacar nas denominações as formas de identificação
do MST na ocupação e evidenciar os sujeitos que mobilizam e decidem a ação. Destacamos,
inicialmente, neste percurso: 1) ocupação; 2) negociação; e 3) desocupação.
Numa seqüência de repetição dos enunciados das ocupações, nos diferentes lugares:
Mirante do Paranapanema, Teodoro Sampaio, Sandovalina, Presidente Bernardes, Presidente
Venceslau.
Se há repetição do acontecimento é porque não há solução política para a questão
social e a ocupação e acampamentos configuram-se nos discursos do MST, como forma de
trazer à tona suas reivindicações. Nos jornais OI e FSP o elemento permanente e redundante
do discurso é um ponto de vista sobre a questão fundiária, logo, um problema social que
reside na estrutura fundiária do país que ocasiona desigualdades sociais e dá origem aos sem-
terra e às ocupações. Ou seja, na mesma medida em que se enuncia a questão esta passa a ser
problema que exige uma solução, mas que não é a solução buscada pelo Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra: a redistribuição fundiária e o assentamento de milhares de
trabalhadores. Ao observarmos os mapas (figura 03 e 04, p. 40 e 41) temos uma paisagem
transformada a partir das ações do MST e que os jornais não mostram.
A seguir trabalharemos com os títulos nos quais procuraremos evidenciar o desenho
territorial construído pelos jornais a partir das ocupações e desocupações. O que queremos
salientar, aqui, como o cenário inicial é identificado, pois é uma ação que se manifesta pela
ocupação, o desfecho vai sendo anunciado através das múltiplas vozes que se enfrentam nos
discursos, caracterizando a negociação. A desocupação é enunciada quando acontece depois
da negociação, mas o registro dela perde-se quando ultrapassa um tempo já não memoriável
31 Corpo discursivo é, segundo Pêcheux (1969, p. 58) “(...) um conjunto de seqüências discursivas estruturadas segundo um plano definido de referência a um certo estado de condições de produção do discurso. A constituição de um corpo discursivo é um efeito, uma operação que consiste em realizar por um dispositivo a hipótese dentro da definição dos objetivos de uma pesquisa”.
39
pelo leitor para associar com a paisagem de origem ou quando a área é arrecadada pelo
Governo com posterior pagamento das benfeitorias, por se tratar de terras devolutas, e se
transforma em assentamento então, deixa de ser notícia. É o caso das ocupações de nº 1, 2, 3,
4, 5, 9, (Quadro 6) que, sabemos, foram transformadas assentamento, conforme podemos
verificar no mapa (figura 04, p.41).
42
Quadro 6. Títulos – Ocupações e Desocupações Nº Ocupações Data Desocupações Data Jornal 01 Invasão: Sem-Terras
ocupam três fazendas no Pontal (Faz. Haroldina, Arco-Íris, Canaã).
04/04/1995 Fazendeiros e sem-terra tentam acordo (Faz. Haroldina).
11/04/1995 OI/OI
Polícia Militar transfere despejo de sem-terra acampados na Arco-Íris.
18/04/1995 OI
02 Mais três fazendas invadidas em Mirante (Faz. Flor Roxa, Washington Luiz, Santa Cruz).
27/08/1995 Sem-Terra abandonam fazendas apenas oito horas depois da invasão (Washington Luiz, Flor Roxa, Santa Cruz).
28/08/1995 OI/FSP
03 Sem-Terra invadem três fazendas em SP.
27/08/1995 Mais 2 liminares concedidas em Mirante (Faz. Washington Luz, Santa Cruz).
30/08/1995 OI/FSP
04 Sem-Terra anunciam invasão de três fazendas no Pontal (Faz. Washington Luiz, Marco II e Alvorada).
02/10/1995 Desocupação em Mirante foi pacífica (Faz. Washington Luiz).
02/10/1995 FSP/OI
05 Sem-Terra invadem outra fazenda (Faz. São Domingos).
08/10/1995 Saída pacífica das obras da CESP.
12/10/1995 OI/OI
06 Sem-Terra descumprem acordo com juiz (Faz. São Domingos).
13/10/1995 OI
07 Fazenda é invadida pela segunda vez: sem-terra voltam para São Domingos.
28/10/1995 OI
08 Sem-Terra devem reocupar a área da CESP.
28/10/1995 PM faz despejo em área da CESP.
15/11/1995 FSP/OI
09 MST invade 2ª fazenda em 48 h (Faz. Santa Rita).
23/01/1996 OI
10 Líderes dos sem-terra são presos.
26/01/1996 OI
11 Mulheres invadem fazenda no Pontal (Faz. São Domingos).
09/03/1996 OI
12 MST invade cinco fazendas na região.
18/05/1996 OI
13 MST invade fazenda em Venceslau.
21/05/1996 Justiça manda sem-terra desocupar fazenda.
23/05/1996 FSP/FSP
14 Sem-terra deixam fazenda ocupada em Sandovalina (Faz. Santa Irene).
15/08/1996 OI
15 Sem-terra deixam a fazenda ocupada em Sandovalina (Faz. Santa Irene).
15/08/1996 OI
43
Continuação do Quadro 6. Nº Ocupações Data Desocupações Data Jornal 16 MST pressiona com novas
invasões. 03/09/1996 PM cumpre reintegração de
posse da Santa Rita. 18/09/1996 OI/OI
17 Sem-terra desocupam fazenda. 25/10/1996 OI 18 MST volta a invadir São
Domingos. 31/10/1996 OI
19 Sem-terra incedeiam fazenda no Pontal.
26/11/1996 OI
20 Sem-terra invadem fazenda. 12/12/1996 Sem-terra são despejados. 20/12/1996 OI/FSP 21 Invasão gera tensão no
Pontal (Faz. Santa Tereza). 08/01/1997 Sem-terra deixam área de
tensão. 23/01/1997 OI/OI
22 MST invade novas fazendas. 10/01/1997 OI 23 MST invade mais uma
fazenda. 21/01/1997 OI
24 Fazenda invadida na região. 27/05/1997 FSP 25 Pressão no Pontal faz o MST
recuar: ruralistas montam resistência e sem-terra suspendem invasão.
18/08/1997 FSP
26 MST invade fazendas e pôe fogo em pasto no Pontal (Faz. Primavera e Maturi I).
19/08/1997 Justiça determina que deixem a área.
19/08/1997 FSP/FSP
27 Ordem é para matar, diz ruralista.
20/08/1997 FSP
28 Fazenda sofre nova invasão no Pontal (Faz. Maturi).
16/09/1997 OI
29 MST invade fazenda e abate gado no Pontal (Faz. Santa Tereza).
18/09/1997 FSP
30 Mais uma fazenda é invadida no Pontal (Faz. Boa Vista).
20/12/1997 Juiz convoca reforço da PM para despejar sem-terra.
30/09/1997 FSP/FSP
31 Fazenda Primavera também é invadida.
18/01/1998 Sem-terra deixam a fazenda Primavera.
23/01/1998 OI
32 Juíza manda MST deixar fazenda (Faz. Santa Clara).
10/02/1998 OI
33 Justiça dá prazo aos sem-terra (desocup. Santa Clara).
01/04/1998 FSP
34 MST volta invadir fazendas. 14/04/1998 Sem-terra resistem à desocupação de fazendas no Pontal.
17/04/1998 FSP/FSP
35 MST invade fazenda no Pontal (Faz. Rancho Alto).
16/07/1998 OI
36 MST invade sete fazendas em São Paulo (no Pontal: Faz. Santa Clara).
31/08/1998 OI
44
Continuação do Quadro 6. Nº Ocupações Data Desocupações Data Jornal 37 MST faz nova invasão e
ameaça com ação nacional: sem-terra invadem e incendeiam parte de fazenda no Pontal (Faz. Santa Zélia).
02/09/1998 FSP
38 Invasões no Pontal recomeçam hoje (Faz. Santa Clara).
10/09/1998 MST ameaça reagir à desocupação de área no Pontal.
15/09/1998 FSP/FSP
39 Justiça reintegra Santa Clara. 16/09/1998 FSP 40 MST rompe trégua e invade
3 áreas em SP (Santa Clara, Santa Terezinha, Rancho Alto).
13/10/1998 FSP
41 MST destrói cercas de fazendas.
22/10/1998 FSP
42 MST invade fazenda em Mirante (Santa Clara).
08/11/1998 FSP
43 Sem-terra invade fazenda Santa Izabel.
13/12/1998 OI
44 Sem-terra invade fazenda e promete intensificar invasões.
13/12/1998 FSP
45 PM expulsa sem-terra da fazenda (Santa Clara).
08/12/1998 FSP
46 MST invade fazenda Nova Esperança.
22/01/1999 OI
47 MST invade na região do Pontal (Faz. Nova Esperança).
22/01/1999 Fazenda no Pontal têm reintegração de posse.
27/01/1999 FSP/FSP
48 MST promete resistir à desocupação no Pontal.
23/04/1999 FSP
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza.
Os trabalhadores no primeiro cenário (Quadro 6), os sem-terra ou acampados, são
significados como invasores (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9). Eles ocupam a área três ou mais vezes (7,
18, 28, 34). Uma das ocupações, realizada só por mulheres (11), é feita após a prisão dos
líderes, quando o Movimento já está identificado pela violência e ilegalidade. Como numa
ação mais contundente, os trabalhadores ateando fogo em pastagens, (26, 29) ou quando a
Justiça manda desocupá-la (faz. Sta Clara), o que prova sua eficiência, como no caso dos
títulos 26, 32 (Quadro 6).
A veracidade da informação é a localização, que tanto pode vir no título (1, 2, 4, 13)
(Quadro 6) ou complementando-o, com o nome da cidade ou da fazenda e o mapa com a
localização exata da área em disputa, conforme podemos verificar nas figuras (1 e 2, p. 20).
45
A negociação vai da ocupação à desocupação em que, cada uma delas, se diferencia
das outras: seja pela duração, pelos sujeitos envolvidos e pelos enunciados que recebem:
alguns exemplos de títulos das desocupações, como veremos logo a seguir, nos títulos que
envolvem a negociação (Quadro 7).
Quadro 7: Títulos – Negociações32
Nº Título Data Jornal
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Polícia Militar transfere despejo de sem-terra acampados na Arco Íris. Invasores não acatam ordem de desocupação. Presidente pede trégua aos sem-terra. Darcy propõe emenda para conter o MST. Justiça manda reintegrar fazenda. Sem-terra e governo selam trégua. Polícia prende dois líderes dos sem-terra: Juiz também decreta prisão preventiva de José Rainha Jr., principal liderança na região, que está foragido. Governo de SP dá verba para sem-terra: Secretaria invadida por trabalhadores empresta R$ 1,5 milhão ao MST com prazo de pagamento de 5 anos Secretário da Justiça teme violência no Pontal. Medo de conflito leva governos ao Pontal: Em reunião entre Incra, governo de SP e MST, Covas vai dizer que busca áreas para ampliar assentamentos este ano. MST propõe acordo para conter invasões: Sem-terra prometem parar ocupações se governo assentar 2.100 famílias até final de 95; Covas diz que meta é atender 1.000. Sem-terra fecham acordo com governos: Covas se compromete a assentar 2.100 famílias até junho de 1996 em troca da suspensão das ocupações na região.
18/04/1995
27/09/1995
29/09/1995
04/10/1995
06/10/1995
19/10/1995
31/10/1995
01/11/1995
01/11/1995
03/11/1995
03/11/1995
05/11/1995
FSP
FSP
FSP
FSP
FSP
FSP
FSP
FSP
OI
FSP
OI
OI
32 Os títulos/negociações incidem sobre as mesmas ações dos títulos/ocupações.
46
Continuação do Quadro 7. Nº Título Data Jornal 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
Acordo não impede ocupações na região: Pacto fechado sábado entre o governo Mário Covas e o MST pode ser quebrado por colonos “independentes”. MST rompe acordo com governo. Suplicy intervém na crise do Pontal Prazo para assentar sem-terra termina hoje Governo pede cadeia para sem-terra Confronto agrava crise no Pontal. Fazendeiros pedem reforço policial contra invasões. Pontal terá assentamento (faz. Santa Irene, Bom Pastor/Flora). Preço de terra gera impasse (faz. Santa Irene). Belisário consegue acordo. Rainha e Jungmann agendam discussão. Ministro da Justiça é intermediário com o MST. Sem-terra acusados de atear fogo em fazenda. PM tenta desocupar fazenda Santo Antonio.
MST vai radicalizar ainda mais.
MST resistirá à desocupação
Sem-terra resistem à desocupação de fazendas no Pontal Justiça protege fazendas contra o MST
Invasões no Pontal recomeçam hoje.
Ministro que discutir Reforma Agrária com MST
MST fará marchas
MST ocupa quatro prefeituras na região
MST rompe negociação com o Incra
Bancos no Pontal voltam a sofrer bloqueios do MST
06/11/1995
29/12/1995
27/01/1996
31/03/1996
19/06/1996
14/07/1996
07/07/1996
09/11/1996
09/11/1996
07/11/1996
01/05/1997
02/05/1997
14/09/1997
28/09/1997
22/10/1997
17/03/1998
17/04/1998
13/05/1998
10/09/1998
10/03/1999
10/04/1999
21/05/1999
23/07/1999
21/09/1999
OI OI OI FSP FSP OI OI FSP FSP OI OI FSP FSP OI
OI
FSP
OI
FSP
OI
FSP
OI
OI
FSP
FSP
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo Organização: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2004.
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O cenário da negociação (Quadro 7) é evidenciado pelo confronto entre seqüências
discursivas. Os grupos em atuação que se confrontam, avaliam os resultados, medem forças e,
então, concluem a ação. De um lado, o governo, o ITESP, a Justiça, a PM, os ruralistas, os
deputados, os prefeitos e os ministros; de outro, os trabalhadores e aliados, como por
exemplo, o PT, de Eduardo Suplicy.
A produção do sentido é de que os primeiros buscam a ordem, garantem a lei,
defendem o que é seu e sua ação corresponde à sua função. Nessa paisagem a negociação é
pacífica (Quadro 7): deputados buscam acordo (4, 15, 22), o governo dá garantias (6,12), o
ITESP compra terras, a Justiça dá prazo (5,10), os ruralistas ameaçam (19) o ministro quer o
fim das invasões (23, 24) ou libera dinheiro. E os trabalhadores reivindicam, ocupam e
aguardam.
Em seguida, a disputa se acirra: o governo não negocia (17), a Justiça manda sair (5,
9), o governo suspende as negociações e a PM expulsa (7, 26) e os fazendeiros pedem reforço
da polícia (19,30). Enquanto isso os trabalhadores põem fogo e ocupam prefeituras e bancos
(25, 35, 36) e vão desenhando o mapa e um território da resistência.
No cenário inicial (Quadro 6) os trabalhadores sem-terra são caracterizados pela ação
de reivindicar, o que se justifica até pela nomeação do Movimento (MST). A falta os autoriza
a solicitar terra, tempo, prazo, solução, alimentos, providências e negociação. Em seguida, o
cenário é de enfrentamento, a falta os torna ameaçadores. Descumprem acordo, reiniciam as
‘invasões’ e definem novas formas de resistência e de pressão: fazem marchas, ocupam
bancos, bloqueiam rodovias etc. E os outros sujeitos dos títulos – governo, secretário,
ministro, deputados, ruralistas –, buscam formas de resolver o problema. Cada um com sua
forma de solução, mas que se apresenta também como ameaça.
Os sujeitos se confrontam no tempo e no espaço. Para cada ameaça de expulsão se
contrapõem ameaças de resistência. A partir daí, surge um novo discurso e legitimidade para
o uso da força física, a Polícia Militar passa a intervir. E a desocupação adquire estatuto de
notícia e busca espaço no jornal, o fato ganha o status de manchete, sendo violenta ou
pacífica. Como as desocupações da fazenda São Domingos e Cesp que acabaram na capa do
OI e FSP com um final pacífico. Depois há nos jornais, promessas: do governo, de reforma
agrária; dos trabalhadores sem-terra, novas ocupações; dos ruralistas, a defesa do seu direito
de ser latifundiário.
Essa paisagem que desenhamos até aqui, pode ser sintetizada nos enunciados – títulos
das ocupações –, que indicam uma formação discursiva predominante para o MST e para a
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Luta pela Terra. E, também, indicam a produção de um sentido para o leitor. Retomaremos
essa idéia no quarto capítulo.
1.3. MST e o perigo vermelho
Quando o MST começa a freqüentar as páginas dos jornais esse momento precisa ser
compreendido como não só uma forma de tornar o Movimento visível, isto é, denominá-lo,
mas como uma forma de torná-lo intencionalmente visível a partir de denominações, como já
salientamos. Não é somente o potencial e a escalada de violência que o MST e suas atuações
representam nos enunciados dos jornais. Uma outra associação está presente em todos esses
anos e tem a ver com a questão do comunismo, como já foi mostrado em alguns recortes.
Uma análise em torno de enunciados para ‘comunismo’ e ‘comunistas’, e suas
variações, seja nos títulos ou no texto das reportagens, evidentemente que não pode ser
reduzida a associação de rótulo verbal a um estado de coisas no mundo. Também seria
simplismo considerar que a linguagem jornalística, por si só, ou por força de um locutor
onipotente teria o poder de construir uma realidade, tornando os leitores vítimas passivas. No
entanto, além de indicar uma ideologia partidária, o uso dessas expressões nos jornais, passou
a determinar um sentido sempre negativo e, também, a produção de um sentido que gira
sempre em torno de ‘inimigo’, vamos explorar essas associações no capítulo 4.
Tendo em vista os objetivos deste trabalho, o que estamos buscando evidenciar aqui, é
que há formações discursivas hegemônicas que atuam no discurso jornalístico. Que seu
procedimento na forma de enunciar os trabalhadores sem terra encontra-se assujeitado a uma
formação ideológica que, para além de designar, deixa-os sob controle, ou seja, o lugar social
do inimigo já está assinalado e, mesmo tornando-os visíveis ao nomeá-los, isso é uma forma
de mantê-los controlados, isolados como todo inimigo deve estar.
Conforme anunciamos no início deste tópico, uma outra forma dos jornais referirem-se
ao MST, fora da cobertura do dia, é por meio dos editoriais e articulistas em seus espaços
assinados. Como é o caso dos editoriais do O Imparcial,
Instalado no governo Franco Montoro, comprometido com as esquerdas radicais, um dos primeiros atos do Palácio dos Bandeirantes, transmitido às suas lideranças políticas em Presidente Prudente, na época, foi o de iniciar a reforma agrária no Pontal do Paranapanema. Sem qualquer planejamento mas representando apenas uma vontade política e ideológica, criaram a gleba XV de Novembro que até hoje é um simulacro de reforma agrária (...) Os tempos mudaram, agora sem os motivos políticos de Denari e Adilson
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Gil, mas com uma pesada carga ideológica, do MST, Pastoral da Terra, da Igreja Católica, via CNBB. (...) É a apregoada reforma agrária que estamos assistindo: a destruição de propriedades altamente produtivas. (OI, Plantão, p. 02, título: A reforma agrária no Pontal nasceu sob o signo da violência, 18/04/95).
Apenas para ilustrar citaremos um outro editorial em que comparece a mesma idéia
para reforma agrária e o Movimento:
Muita gente estranha porque o MST utiliza nas invasões às fazendas do Pontal sempre o mesmo grupo de famílias e a razão é uma só: hoje há mais terras do que famílias interessadas em novos assentamentos. Assim, esses sem/terra são obrigados a subir em caminhões, ir para novas fazendas, destruir-lhes as cercas, queimar as pastagens mesmo que haja bois nelas e fingir que estão começando novas lavouras. Essa é a rotina no Pontal do Paranapanema. (...) Aos poucos se descobre que o sr. José Rainha não está interessado em qualquer reforma agrária, mas apenas em agitar, destruindo fazendas produtivas. (OI, Plantão, p. 02, título: Há mais terra do que gente interessada no assentamento, 03/09/95).
No jornal Folha de S. Paulo, a depender do momento, os enunciados mudam
provocando um deslocamento de sentidos, configurando uma conciliação com a disposição do
governo em atender as reivindicações dos trabalhadores. Acompanhemos o texto:
O presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Francisco Graziano, quer instituir uma taxação "escandalosa" do latifúndio improdutivo. O recado parece claro: o ex-assessor presidencial entende que reforma agrária se faz com instrumentos econômicos, não com retórica, populismo ou violência. Eis aí um escândalo desejável, face à já escandalosa história de assentamentos insuficientes e à progressão da violência no campo. Entretanto, o próprio Graziano coloca obstáculos em seu caminho ao querer supertaxar escandalosamente também as grandes propriedades produtivas. Um absurdo, como se faltassem no Brasil impostos onerando a produção! Amparado num Imposto Territorial Rural pesado sobre a terra improdutiva, a reforma agrária entraria numa fase nova. Fase cujo primeiro sinal é a disposição de diálogo do novo presidente do Incra, com reação positiva do Movimento dos Sem Terra (MST). A tributação, se usada com sabedoria, pode ser um importante fator de democratização do acesso à terra. Resta esperar para ver se mais essa mostra de boas intenções não acabará soterrada pela também escandalosa falta de vontade política para fazer a reforma agrária. (FSP, Editorial, p. 2, título: Escândalo desejável, 24/10/95).
Um outro editorial também é revelador das associações que são feitas em torno do
MST:
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O líder do MST José Rainha Jr. anunciou ontem que, além de terras e sedes do Incra, integrantes da entidade passarão agora a invadir agências do Banco do Brasil e do da Banespa. O pretexto seria protestar contra a suposta falta de financiamento federal e estadual a assentamentos do Pontal do Paranapanema. A nova ameaça do MST vêm agravar o ambiente de tensão no Pontal (...) O governo Mário Covas (PSDB) tem demonstrado esforço em resolver o conflito na região e viabilizar o assentamento de sem-terra. Desde 1995, foram entregues lotes para 2.500 famílias, segundo o Secretário da Justiça, Belisário dos Santos Jr. O andamento das negociações, porém, está ameaçado pelas duas organizações antagônicas que atuam no Pontal: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a União democrática Ruralista. O primeiro, voltou a invadir fazendas da região, sob a alegação de que o governo não tomou providências depois da assinatura do decreto. A segunda, por sua vez, ameaça boicotar a aplicação do decreto (...) Igualmente deplorável é a disposição anunciada de invadir bancos, atitude provocativa que só vem acentuar a imagem do MST como entidade que opta sistematicamente pela trilha da ilegalidade. (FSP, Editorial, p. 1-2, título: Radicalismo no Pontal, 97).
Uma outra notícia, esclarecedora para a análise que buscamos, com o título
“Dissidente faz denúncia contra o movimento”. A título de denunciar uma possível
conspiração vermelha, a narração continua:
Um dissidente do MST e a UDR afirmam que o movimento planeja criar uma área de insurgência unindo o noroeste do Paraná, o Pontal do Paranapanema (SP) e o sul do Mato Grosso do Sul.(...) Segundo Gisleine Isso, advogada da UDR, na região o afastamento de Brito [o dissidente] do MST e suas revelações sobre a forma como o Movimento atua comprovam a existência da preparação pra criar um Estado independente – a Republica do Pontal. Segundo o vice-presidente da UDR-noroeste, Arthur Risso de Brito, o aumento das invasões na região a partir de 1994 mostra as intenções insurgentes do movimento, com apoio de instituições estrangeiras – por exemplo, da Alemanha e de Cuba (...).(MASCHIO, FSP, p. 1-18, título: Dissidente faz denúncia contra o movimento, 17/08/97,).
Esta informação, como devem ser fatos com este teor, não foi perseguida pelo jornal.
Ficou na narração do repórter, sem uma reportagem mais aprofundada da questão, onde os
sujeitos do enunciado falam e o leitor recebe, pelo menos, alguns argumentos dos dois lados.
Em um outro editorial, em 1998, temos:
O MST anuncia que vai para o confronto armado na região do Pontal do Paranapanema, extremo oeste de São Paulo. “É o massacre anunciado do Pontal”, disse José Rainha Jr. Parece evidente que os líderes do movimento estão à cata de um fato político que possa ter efeito desestabilizador no período pré-eleitoral, já marcado por uma crise econômica sem precedentes
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desde a origem do Real. Infelizmente, de nada mais adianta pedir sensatez e responsabilidade a um movimento que vem tomando de assalto e depredando prédios públicos, invadindo fazendas, mantendo pessoas em cárcere privado e semeando a desordem país afora. O alerta do Ministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, de que o próximo objetivo dos radicais do MST é produzir um confronto armado para “provocar mortes” deve ser levado muito a sério (FSP, EDITORIAL, p. 1-2, título: Procuram-se cadáveres, 11/09/98).
E o texto continua, mais revelador de uma formação discursiva e ideológica
mobilizadas para o Movimento:
O governo foi tolerante e leniente demais com um movimento que há tempos aderiu a práticas terroristas. É mais do que hora de agir com firmeza. Seria um equívoco imaginar que o MST abrandaria suas atividades criminosas à medida que lhe fosse prometido um programa de atendimento a reivindicações pontuais. O governo obviamente não tem como atender às demandas do MST no volume por eles pretendido, até porque esse movimento tomou uma dinâmica que o empurra a exigir sempre mais por meio de ameaças e ilícitos. O MST deixou de ser um movimento social, legítimo, saudável numa democracia, para se constituir num partido não-parlamentar, com um discurso genérico contra o “sistema” e que se alimenta de sabotar de forma demagógica a ordem pública. Não é decerto fácil enquadrar esse movimento dentro da legalidade. Mas é uma tarefa que o governo não pode mais se esquivar. (FSP, Editorial, FSP , p. 1-2, Título: Procuram-se cadáveres, 11/09/98).
Não deixa de ser interessante, quando relacionamos com o editorial publicado no FSP
em 24/10/95 (p.49), o que os diferencia? Qual o contexto que permitiu que estes sujeitos
enunciassem assim? Por que a diferença de posicionamento do jornal, num mesmo período?
Tratar-se-ia de um tipo de liberdade da qual se valeria o enunciante? Seria essa a dimensão da
liberdade de imprensa? Ou será preciso considerar que o discurso de uma prática social pode
vir perpassado pelas determinações de formações discursivas e ideológicas?
O primeiro contato com o material de estudo permite constatar como o discurso do
jornal narra as ações do MST. O repórter, ao descrever a cronologia do acontecimento, dá
lugar às diversas vozes presentes, conferindo veracidade ao seu relato; já os títulos inclinam o
leitor a uma posição contrária ao Movimento enfatizando o discurso da lei; enquanto os
colunistas, os editoriais, desabonam suas lutas e, como vimos, ironizam os integrantes do
Movimento. As posições não são apresentadas com argumentos que opõem o capitalismo e o
socialismo e seus respectivos projetos em relação à propriedade da terra e à Reforma Agrária,
esclarecendo o lugar da crítica e, assim, a opção por invadir ao invés de ocupar. Ao contrário,
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as posições são construídas com artifícios e manipulação, que jogam o MST na ilegalidade ou
no folclórico, ridicularizando-o e a seus aliados.
Portanto, os enunciadores, ainda que jornalistas e exercendo sua função de
“expositores do real” no mesmo lugar da enunciação – OI e FSP – respaldados pela mesma
gramática da produção, não produzem um discurso uníssono. Ao contrário, são exemplos de
uma prática discursiva em que diversos sujeitos dialogam e que, traz um já-dito de uma
determinada formação discursiva. Não devemos nos esquecer que no campo do discurso
jornalístico dialogam interesses mercadológicos, os quais por sua vez influenciam na
confecção da notícia. Nos próximos recortes, nos deteremos em títulos e editoriais dos anos
de 2000 a 2004.
1.4. O perigo consolidado e o retorno do mesmo (2000-2004)
Nos próximos recortes selecionados vamos acompanhar dois momentos bastante
interessantes da cobertura dos jornais para o Movimento. Um período em que antecede as
eleições e um outro posterior a elas. Embora as formas de enunciar o MST não tenham
mudado, vamos ter uma vinculação direta entre Governo, Poder Judiciário e imprensa,
principalmente no jornal FSP, por essa razão acabamos por privilegiá-lo nos recortes dos
Editoriais. Assim, vamos ilustrar, por meio dos Quadros 8 e 9, os títulos e manchetes
recolhidos de 2000 a abril de 2004, nos jornais OI e FSP:
Quadro 8- Títulos Jornal O Imparcial- 2000-2004
Ano Manchetes Títulos Box Total 2000 15 38 1 54 2001 23 52 2 77 2002 16 47 1 64 2003 12 32 - 44 2004 8 22 - 30 Total 74 191 4 269
Quadro 9 - Títulos – Jornal Folha de S. Paulo- 2000-2004
Ano Manchetes Títulos Box Total 2000 18 126 1 145 2001 8 34 - 42 2002 32 55 2 89 2003 42 104 2 148 2004 23 53 1 77 Total 123 372 6 501
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Destes, títulos e manchetes, selecionamos os que relacionavam diretamente o MST ao
PT e à Lula, formando um cenário bastante ilustrativo da importância do MST em São Paulo e
de que a posição em relação à propriedade da terra contribui para a definição de uma eleição.
No Quadro 10, temos, então, uma direção de sentidos para essa questão. Mesmo que não se
mude as formas de enunciar, a insistência na mesma forma é ilustrativa.
Quadro 10 – Títulos- Ocupações antes das eleições ( 2000-2002)
Nº Títulos/Ações Data 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
MST ameaça iniciar onda de invasões no Pontal Rainha anuncia mais invasões após eleições Rainha é processado por incêndio e furto Pontal tem guerra à vista Juiz decreta prisão de nove sem-terra Sem-terra saqueiam caminhão no Pontal PF prende 16 após acordo em Buritis Falta de seguranças facilitou ação do MST Planalto monta operação de guerra Jornais internacionais destacam a invasão Rainha declara ‘guerra’ e anuncia invasões AGU pedirá pressa ao STF para conter MST Lula ataca ação, mas nega ruptura com MST Invasão no Pontal: MST invade fazenda em SP do sócio do filho de FHC Invasão em Buritis: Dois líderes presos vêm do Pontal e um é filiado ao PT Rainha diz que haverá 3 invasões no Pontal Fazendeiros ‘terceirizam’ segurança MST invade duas áreas na região do Pontal
16/09/00 27/09/00 21/11/00 21/12/00 10/05/01 08/06/01 25/03/02 25/03/02 25/03/02 25/03/02 25/03/02 25/03/02 25/03/02 26/03/02 26/03/02 16/04/02 17/04/02 28/04/02
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo Organização Sonia Maria R. de Souza, 2004.
Nesse período também temos os espaços de editorias e opinativos com posições
bastante esclarecedoras sobre o posicionamento do jornal FSP. Vejamos:
Em março de 2002, em função da ocupação da fazenda do presidente FHC, em Buritis,
Minas Gerais, o jornal FSP dedicou várias edições a esse episódio, tanto em manchetes e
editoriais quanto nos espaços chamados opinativos. Essa ação do Movimento teve como
reação do governo a atuação do Exército e da Polícia Federal na desocupação, com a prisão de
16 trabalhadores. Essa atuação, e a truculência com que foi realizada, motivou vários debates
na imprensa, tanto em função da violência da ação do governo quanto o fato do Movimento,
‘exagerar’ em criar um fato para dar visibilidade à causa da Reforma Agrária. Além de todo
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tipo de especulação, principalmente a mais imediata, ou seja, a vinculação ao pré-candidato
do PT às eleições, como podemos acompanhar a seguir:
Com a sorte que está, o tucano José Serra poderia jogar na Mega-Sena. Ganharia sozinho. As coincidências a favor do pré-candidato do PSDB a presidente acumulam. A mais recente ocorreu no fim de semana. O MST invadiu a fazenda da família do presidente Fernando Henrique Cardoso. É evidente o dano para a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. (...) Ficará na defensiva explicando as ligações entre seu partido e o MST.(RODRIGUES, FSP, p. A2, título: Coincidências, 25/03/2002).
No dia seguinte, em Editorial o jornal FSP acentuava:
O significado político da invasão da fazenda Córrego da Ponte, Buritis (MG), é gravíssimo. Toda violação de privacidade é condenável. Mas, quando o ato se propõe a atingir o presidente da República, consuma-se, pelo efeito do exemplo, uma afronta aos fundamentos do sistema lastreado no domínio da lei. E é pelo caráter exemplar do acontecimento que se exige a aplicação rígida da lei penal aos responsáveis pela ocupação da fazenda. Agiu corretamente a Polícia Federal ao prender em flagrante os líderes da violação (...).Foi criminosa, estúpida, afrontadora e sem nenhum sentido para a luta por reforma agrária a violação da privacidade do presidente da Republica. O MST que já vinha perdendo força, agiu diretamente em prol da desmoralização.(FSP, EDITORIAL, p. A2, título: Estúpida Invasão, 26/03/2002).
As escolhas do jornal giraram em torno desse episódio (ocupação da fazenda de FHC)
e a reação do Movimento com mais ocupações, aqui no Pontal uma ocupação semelhante
(fazenda de amigos de FHC) motivou uma reação no discurso do jornal para além da ação do
MST. E nos parece um exemplo esclarecedor de que o discurso do jornal FSP conduz a
interpretação pública do Movimento pela via da propriedade privada/ilegalidade em que o
sujeito do enunciado encontra-se na ilegalidade e ao destinatário (leitor) é oferecida uma pista
de leitura em que a transgressão tem permissão para ser punida. Embora essa ligação sempre
tenha sido feita, ou tenha estado presente nos jornais, ou seja, a ligação do MST com partidos
políticos de esquerda, esse momento é bastante peculiar, pois nessa disputa Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) tem grandes possibilidades de ser eleito. Após as eleições o MST tem uma
escalada de noticiário, seja especulando sobre sua atuação, seja especulando em torna da ação
do governo, agora do PT, que sempre esteve de braços dados com o Movimento.
Acompanhemos os títulos no Quadro 11.
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Quadro 11 – Títulos- Ocupações após as eleições (2002-2004)
Nº Títulos/Ações Data 1 2 4 6 7 8 9 10 11 13 14 15 16 17 18 19 21 22 23 24 25 27 28 29 30
MST condiciona trégua a agenda com governo. MST fixa prazo para Lula cumprir lista de exigências. Sem terra ganha cesta básica se não invadir: Cesta básica é usada para pressionar sem terra. MST “ultrapassou limite democrático’, diz governo em nota. MST descarta trégua, e MP das invasões não muda já. Rainha pede presença da PF no Pontal. Tensão no campo: Cerca de 1.000 sem-terra ligados ao MST invadem áreas em SP e RN. Desemprego leva ‘novos sem-terra’ ao Pontal (Pres. Epitácio). Conflito agrário: Rainha anuncia marcha de sem-terra no Pontal. MST faz saques, e Lula antecipa reunião. Tensão aumenta e governo antecipa reunião com MST (manchete). MST vai a Lula, mas não acerta trégua (manchete). Presidente intervém para conter crescimento das invasões e saques (“Se não pode controlá-los, tente seduzi-los. Essa foi a estratégia aplicada ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no encontro com a cúpula do MST” Kennedy Alencar ). MST invade área pública e monta mais um acampamento no Pontal. Conflito agrário: Rainha é preso após audiência no Pontal. Secretário da Justiça tenta evitar que decisão judicial acirre conflitos. Prisão do líder sem-terra é a quarta desde 94. MST prepara nova ação no Pontal. Rainha é condenado por porte de arma. MST diz que fará reforma agrária ‘no tapa’. Polícia Militar reforça proteção a juiz no Pontal (o magistrado é criticado por lideranças regionais do MST de “criminalizar” e “perseguir” a organização). MST acusa Judiciário de ‘parcialidade’. Questão agrária: Diolinda Alves pegou 32 meses de prisão por formação de quadrilha. Apos condenação, mulher de Rainha é presa no Pontal.
22/11/02 29/11/02 03/03/03 06/03/03 26/05/03 02/06/03 23/06/03 01/07/03 02/07/03 02/07/03 03/07/03 03/07/03 06/06/03 07/07/03 14/07/03 17/07/0324/07/03 31/07/03 06/08/03 08/08/03 18/08/03 19/08/03
Continuação do Quadro 11. Nº Títulos/Ações Data 31 32 33 34 35 36
MST chama de “ridícula” a reforma agrária de Lula. Questão agrária: líder diz que ações do governo são insuficientes. Só invasão resolve problema do campo, defende Stedile. No Pontal, MST marcha e dá ultimato a Alckmin. Campo minado: sem-terra invadem mais 3 fazendas em SP. MST invade no Pontal; ação no país já atinge 67 fazendas (4 fazendas Sta Terezinha, Sul Mineira e Tupiconã.
21/09/03 21/09/03 09/03/04 15/03/04 21/08/04 02/04/04
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo Organização: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2004.
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Os títulos das reportagens e os editoriais publicados sobre o Movimento a partir de
então, seguem reforçando a sua radicalidade e a incoerência com o governo que ajudou a
eleger. Nesse sentido, é legítimo cobrar do governo ações mais enérgicas e que visem a coibir
seus atos, conforme podemos acompanhar neste editorial, após as eleições:
Será lamentável se o governo vier a propor mudanças na medida provisória baixada em maio de 2000 para coibir as invasões promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A medida – que proíbe o Instituto de Colonização e Reforma (Incra) de vistoriar, por dois anos, terras, invadidas, paralisando o processo de desapropriação – foi um mecanismo engenhoso que contribuiu de modo inequívoco para reduzir a violência no campo. (...) Agora, as declarações do governo contrárias à MP tiveram por conseqüência o estímulo ao incremento da tensão no campo. O MST promove invasões praticamente todos os dias desde o Carnaval, em um rompimento da trégua decretada no fim do ano passado. (...) o MST obteve influência inédita na atual administração. Parte dos superintendentes do Incra é ligada aos sem-terra. Essa boa vontade, porém, não levou o movimento a moderar suas táticas. Para que haja paz na reforma agrária, as autoridades do setor devem assumir as obrigações e o ônus de ser governo.(FSP, EDITORIAL, p. 2, título: Paz no campo, 19/03/2003).
Houve também, nesse período um número razoável de reportagens publicadas sobre as
escolhas feitas pelo governo para determinados cargos. O jornal FSP adotou como prática o
questionamento dessas escolhas evidenciando o risco que estas podiam significar, podendo
inclusive aumentar a violência no campo, além do perigo representado pela simpatia do
governo ao Movimento, como acompanhamos o editorial da FSP:
Em campanha, Luiz Inácio Lula da Silva apresentou- se ao eleitorado como único candidato capaz de realizar uma reforma agrária pacífica no Brasil. No poder, tal promessa não vai apenas deixando de ser cumprida, como dá lugar a realidade diametralmente oposta. Decorrido um semestre de mandato, assiste-se a uma escalada de invasões, que já superaram em numero as de todo o ano passado – agora acrescidas de novas modalidades, como a tomada de praças de pedágio. Seguidos alertas foram ignorados pelas autoridades.(...). Diante dos microfones, as autoridades afiançam compromissos com o cumprimento da lei. Na prática é violada sistematicamente pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sem que o poder público tome providência. Contribui decisivamente para o clima de radicalização o fato de que Brasília tenha emitido sinais contrários à medida provisória, editada na gestão anterior, (...). Até aqui, a proximidade histórica entre Partido dos Trabalhadores e MST serviu para insuflar invasões e lotear a máquina pública entre representantes dos movimentos sociais que atuam na área.(...). (FSP, EDITORIAL, p. 3, título: Terra sem lei, 25/04/2003)
O parecer do procurador-geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), revelado ontem pela Folha, é mais uma evidente indicação de que o poder público está decidido a só cumprir as leis que não contrariem os interesses do MST. De fato, o governo anterior havia editado
57
uma medida anterior impedindo que terras invadidas fossem vistoriadas e desapropriadas pelo Incra por um período de dois anos. Tal medida, que o Congresso já converteu em lei, vem sendo acintosamente ignorada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva desde seus primeiros dias (...). A ratificar mais uma vez essa lamentável atitude, surge o memorando do procurador-geral, que interpreta a lei formulada pelo governo anterior de maneira claramente favorável aos interesses dos invasores de terra (...). As reivindicações por uma reforma agrária que contemple as numerosas famílias rurais vítimas da miséria e do desemprego, permitindo-lhes participar da produção, auferir renda e fixar-se à terra têm merecido o apoio dos brasileiros. Bem diferente são os objetivos descaradamente políticos de alguns membros do MST, a arregimentar massas com o intuito de criar um clima de radicalização que, em seus delírios abriria perspectivas para umas “revolução” socialista a partir do campo. É inadmissível, numa situação como essa, o governo, que prometera promover uma reforma pacifica, ocultar-se atrás de pareceres comprometidos com a desordem para deixar de cumprir a lei. (FSP, EDITORIAL, p.2, título: A lei do Incra, 14/07/2003).
O editorial publicado no jornal FSP evidencia mais um dos anacronismos do
Movimento, nesse período:
As recentes ações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que promoveram invasões num engenho, na sede de um banco e numa prefeitura, fazem prever um relacionamento difícil entre o governo e os militantes da organização, cujo histórico é de estreita proximidade com o PT. São atitudes inadmissíveis no quadro da legalidade democrática. Não é de hoje que o MST procura desafiar a ordem com ações espetaculares, muitas vezes fadadas a desfechos violentos. Cultiva com isso – a pretexto de chamar a atenção para os problemas do campo – um clima de intolerância na área rural, que serve aos propósitos de uma liderança tão perseverante quanto anacrônica em suas fantasias “revolucionarias”(...). Cabe ao poder público cumprir o que determina a lei, inclusive o dispositivo que proíbe a utilização de terras invadidas para fins de reforma agrária. (FSP, EDITORIAL, p. 2, título: A volta do MST, 21/05/2003).
Assim, evidencia-se um outro momento quando se encontra em curso uma campanha
subliminar contra o MST, por ter apoiado o governo Lula, por manter a postura de ocupação
de terra e prédios públicos e ainda ter influenciado na escolha do Ministro da Reforma
Agrária e de Superintendentes Regionais do INCRA.
A grande imprensa amplia a importância das ações do MST, questiona o ministro
diretamente quanto à natureza dessas ações, especula sobre a permanência do ministro no
cargo devido a relações de confiança que o mesmo manteria com o Movimento, enfim
constrói uma imagem de um MST ultra-radical que não convive democraticamente nem
mesmo com o governo que apoiou. Cada vez mais à imprensa interessa construir os fatos de
acordo com a ótica da conciliação com o Planalto e, nesse caso, com os interesses dos
latifundiários “assustados”, por isso, seguindo tendência já verificada no segundo governo
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FHC, o MST torna-se alvo preferencial de editoriais, entrevistas e notícias sobre novas
"invasões" de terra.
Nos próximos editoriais do jornal FSP, também evidencia-se o interdiscurso, ou seja,
há no discurso dos jornais uma memória discursiva, isto é, um já-dito que sempre é
mobilizado para se referir ao MST . Nesse sentido, há uma formação discursiva (FD)
dominante que procura apagar os sentidos da Luta pela Terra e desloca os ditos para uma
outra região. Nesse sentido, nos apoiamos em Orlandi (1999, p. 11) quando afirma que “os
sentidos que podem ser lidos, em um texto, não estão necessariamente ali, nele”. Há sempre,
numa leitura, uma relação tensa e isso se deve a uma correlação de forças na qual estão
implicados os interlocutores e o lugar que estes ocupam faz parte do processo de significação.
O que corresponde a dizer que os sentidos que o texto tem são determinados pelo lugar
ocupado por quem o produz. A esse propósito acompanhemos:
Visando coibir possíveis invasões do MST na cidade, prefeito Agripino Lima decreta ponto facultativo: (...) Cerca de 600 integrantes do movimento de toda a região participam da marcha, que tem como objetivo, segundo o líder do MST, José Rainha Júnior, discutir com lideranças do poder público estadual sobre algumas questões judiciais contra integrantes do MST e cobrar da Justiça a agilização da reforma agrária e a emissão de posse de áreas desapropriadas.(...).
Logo após tomar ciência da presença de integrantes do MST, em Presidente Prudente, no dia de hoje, o prefeito Agripino Lima, em entrevista à rádio Presidente Prudente AM, disse que receberá “a pau” o líder do movimento Rainha e seus integrantes.O prefeito também acusou o líder do movimento de ser um dos bandidos que estão soltos no país.Visando coibir possíveis invasões do MST na cidade, o prefeito Agripino Lima, decreta ponto facultativo na cidade no dia de hoje em Prudente. Com isso todas as instituições municipais estarão fechadas. (...) o prefeito declarou que o MST só entrará na cidade depois de matá-lo. “Não sou perseguidor de ninguém, sou a favor da reforma agrária, como a do Banco do Povo que dá terra dentro da lei. O cangaço já acabou há muito tempo, mas nosso virgulino, cangaceiro faz e desfaz...”, argumentou. Dando apoio à manifestações do prefeito de Presidente Prudente, estiveram membros da União Ruralista (UDR), que criticaram a política de reforma agrária no Pontal do Paranapanema. “A gente vê essas manifestações com muita apreensão, pois se tivesse sido feita uma reforma agrária séria e com competência, como deve ser feita, nós não estaríamos passando por toda essa confusão...”, declarou o presidente em exercício da UDR. Ele também ressaltou que o MST é um grupo que age ilegalmente. “É um grupo que não tem sede fixa, não tem CNPJ, não tem diretoria, não tem estatuto, portanto é ilegal”, concluiu.(OI, p. 1-4, 9/01/2002).
O AGITADOR-MOR do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stedile, voltou à cena para prometer que abril será um “mês vermelho” e que os movimentos sociais irão “infernizar” o país. O timoneiro da baderna rural e seus seguidores já começaram a ensaiar o
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espetáculo do desrespeito às leis com que ameaçam a sociedade no mês vindouro. (...) Se a inoperância do governo acaba por incentivar novas mobilizações, isso não justifica que a liderança dos Sem Terra continue a afrontar a legalidade. Por mais fantasioso e improvável que possa parecer, Stedile tem como objetivo maior promover uma revolução socialista a partir dos conflitos que se verificam na área rural do país. Sendo assim, não hesita em instrumentalizar miseráveis para criar fatos políticos, semear tensões e gerar um ambiente de radicalização entre os sem-terra e os ruralistas. (...). (FSP, EDITORIAL, p. 2, título: Abril vermelho, 04/04/2004). O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST) vem intensificando suas ações dentro da ‘jornada de luta” para relembrar no dia 17, as mortes de 19 trabalhadores em Eldorado dos Carajás (PA), ocorridas em 1996.Essa verdadeira jornada de abusos nada mais é do que uma nova rodada de desafio à ordem legal, na qual a liderança do MST prossegue instrumentalizando massa miseráveis com propósitos meramente políticos. (FSP, EDITORIAL, p.A2, título: Jornada de abusos, 08/04/2004).
Temos, então, pela história dos jornais OI e FSP, uma paisagem construída da luta
pela terra e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – no Pontal do
Paranapanema, entre os anos de 1990 a abril de 2004.
Buscamos mostrar, neste capítulo, como a história do MST foi sendo construída pelos
dois jornais na década de 1990 a abril de 2004, evidenciando por meio dos títulos das
ocupações e dos editoriais as denominações para a luta pela terra e para os trabalhadores sem-
terra.
Um dos objetivos foi identificar os padrões dos discursos visíveis nos recortes dos
jornais, na caracterização dos sujeitos, na definição dos termos do conflito, em coisas simples
como a adjetivação dos agentes políticos e eventos, a elementos, algumas vezes sutis, outras
nenhum pouco. Essa forma de narrar os fatos, aparentemente insignificante e imperceptível
para a maioria dos leitores submetidos à avalanche de informações, para as quais
normalmente têm pouco interesse, ganha importância na recorrência, na forma rotineira de
enunciar. Constituindo-se em um padrão de cobertura a partir da qual pode-se explicar um
fenômeno político complexo como o MST e a Luta pela Terra.
Tentamos com a reconstrução da história da luta pela terra, no Pontal, lida pelos dois
jornais, evidenciar que o que em vários momentos se leu como verdade continha, na
realidade, uma leitura, uma interpretação, um sentido para o MST em que se deu para o leitor
uma interpretação dos fatos a partir de um já-dito.
Tendo como ponto de partida alguns ‘achados’: as diversas formas de expor os
indivíduos; os modos de excluir, incluir sujeitos; as múltiplas formas de tratar os diferentes,
especialmente o trabalhador rural, e de transformar vidas privadas em espetáculo; e
60
finalmente, as estratégias de “pedagogizar” dos meios de comunicação. Buscamos evidenciar
de que forma se constrói um discurso sobre os trabalhadores rurais sem-terra nos dois jornais
e como esse discurso territorializa um espaço constituindo e produzindo distintas
territorialidades negativas.
Ao noticiar os fatos sobre o MST nas ocupações de terras, marchas etc. mais que
relatar os fatos, a imprensa o faz a partir de uma tomada de posição sobre, isto é, de um lugar
já dado, ou seja, de uma posição dada historicamente. A imprensa ao falar do pequeno, da
parte, do fragmento, reduz o conflito, atrofia a reivindicação e a luta pelo acesso à terra. O
sujeito direciona o sentido para a região da ilegalidade, ameaça, organizando as relações de
poder de modo a convencer o leitor de que o trabalhador rural, de vítima da violência, passa a
ser narrado/significado como causa e a origem dela.
No próximo capítulo nos deteremos nas condições de produção do discurso dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, mostrando através das suas ações, uma outra paisagem da
luta pela terra no Pontal do Paranapanema. Ou seja, evidenciaremos, como por meio da sua
atuação o MST constrói a sua discursividade e que, na maioria das vezes, os jornais ignoram,
reforçando apenas o potencial de violência e tensão inerentes ao conflito.
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Como discutimos no capítulo 1, o MST, a partir da década de 1990, ganhou mais
espaço na imprensa, fazendo com que a questão agrária ganhasse mais visibilidade nos
centros urbanos. Isso se deveu, sobretudo, quando definiu suas formas de luta por meio das
ocupações de terra, marchas, greves de fome, interdição de rodovias, ocupação de bancos e do
Incra. Isso o levou a ocupar as páginas dos principais jornais do país. Entretanto, ao longo
desse período, a face mais visível do MST nos jornais foi a do conflito. Uma vez definida e
estruturada enquanto representação negativa, o seu poder de fogo e de negociação foi anulado.
O conflito evidenciado nas ocupações de terra levou à construção e sedimentação de um
discurso que isolou o Movimento de sua principal reivindicação: a luta por reforma agrária e
por uma distribuição mais justa de renda no país.
A reflexão que gostaríamos de trazer, a partir daqui, é de que existem enunciados para
o MST nos jornais que negam a sua trajetória, que negam que a sua existência se deve, como
já salientamos, aos processos de exclusão e desigualdade social e é a este enunciado que
buscamos contrapor aqui: os enunciados do discurso do MST que dão evidência ao espaço da
formação de um sujeito social chamado sem-terra.
Para buscar o discurso do outro, buscamos no Jornal dos Trabalhadores SEM TERRA
(doravante JST), do MST, as publicações sobre suas ações desde 1990 até 200433. Estas
correspondem à construção de um terceiro corpus de análise, que tem como objetivo
acompanhar, paralelo à construção do discurso dos jornais O Imparcial e Folha de São Paulo,
o contexto de produção do discurso do Movimento, destacando os elementos que põem em
evidência, nos seus enunciados, os seus mecanismos discursivos.
O Movimento também se situa entre aqueles que, ao construíram um espaço para
veicular seu discurso, evidencia que existe uma formação discursiva dominante que se
sobrepõe aos enunciados da Luta pela Terra e pela Reforma Agrária, deixando de veicular os
seus sentidos. Conforme o MST:
Todos os nossos desafios devem ser vistos na perspectiva de um desafio maior na luta dos trabalhadores: a aliança entre o campo e a cidade. Urge começarmos a avançar do discurso e da boa vontade para ações concretas, lutas conjuntas e organizativas (JST, abr/90, nº 91, p. 5).
Organizar, Unir, Lutar: apesar de todas as dificuldades econômicas, repressão policial e ataques dos meios de desinformação, conseguimos aumentar o número de ocupações de terra. (...) soma-se a esses avanços as
33 Para este corpus de análise consultamos o arquivo existente no CEMOSi (Centro de Memória e Hemeroteca Sindical “Florestan Fernandes”), na Unesp/Presidente Prudente.
63
lutas desenvolvidas em conjunto com os trabalhadores urbanos, especialmente os sem-teto (JST, nov/dez/91, nº 110, p.2).
E, de acordo com a nossa proposta de estudo, o ato de enunciar do MST revela
formações discursivas (FD) em confronto, e há a predominância de uma, a dos jornais OI e
FSP, as quais induzem a leitura de que o problema que envolve os trabalhadores sem terra tem
origem no próprio MST: o problema vem das propostas “anacrônicas” dos líderes e “chefes” e
só é grave no que se refere à violência do Movimento. A gravidade não estaria na situação
social e econômica que explica sua origem, mas nas propostas dos dirigentes do MST,
tampouco numa estrutura fundiária arcaica que expropriou e condenou milhares de
camponeses a perambular, numa trajetória errante em busca de condições de sobrevivência.
2.1. Contando a história outra vez
O cenário da luta pela terra construído ao longo do processo histórico de constituição
do Brasil é revelador de um processo que remonta ao período de colonização do país. Na
formação do espaço agrário brasileiro as marcas dos embates são evidenciadas nos conflitos
que vão desde o período da escravidão (Quilombos, Canudos, entre outros), até hoje, quando
os conflitos reatualizados pelos movimentos sociais de luta pela terra34 refletem que as formas
de resistência assumidas pelos trabalhadores ao longo de mais de 500 anos no interior da luta
de classe.
Hoje, o MST está organizado em praticamente todos os Estados e segue com os
mesmos objetivos definidos em 1984 e ratificados no I Congresso Nacional realizado em
Curitiba, Paraná, em 1985, cuja preocupação foi reforçar os ideais da luta pela terra, pela
reforma agrária e pela construção de uma sociedade mais justa.
Somente através das mobilizações, da pressão, da luta concreta a classe trabalhadora fará frente a essa política ditada pelo capital internacional. (JST, abr.,1990, nº 91, p. 3).
Somente grandes mobilizações de massa colocarão esses governos contra a parede e arrecadarão as conquistas de melhores salários, terreno para moradia, terra para trabalhar e melhores condições de vida (JST, abr.,1991, nº 103, p. 2).
34 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MLT (Movimento de Luta pela Terra), FERAESP (Federação dos Empregados Rurais do Estado de São Paulo), MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra), MUST (Movimento Unificado dos Sem Terra), entre outros.
64
Nos seus recém completados 20 anos, o MST contabiliza um número de
aproximadamente 6.116 assentamentos e 660.340 famílias assentadas em todo o Brasil35. No
Estado de São Paulo, especificamente no Pontal do Paranapanema, são 95 assentamentos,
com 4.985 famílias assentadas. Um número pequeno diante da realidade existente no país. O
MST registra em sua trajetória de luta áreas conquistadas que se tornaram territórios, lugares
de produção e reprodução da vida, nos assentamentos, nas unidades agroindustriais etc., e,
também, registra em sua história, a alfabetização de crianças, jovens e adultos e a formação de
técnicos e de educadores em cursos de nível médio e superior, assim como outras iniciativas
de formação de sua militância por meio de convênios com Universidades no Brasil e no
exterior, especialmente com Cuba. São conquistas de uma luta coletiva em que muitos
perderam sua vida, vítimas da violência do latifúndio e da inoperância do Estado em fazer a
Reforma Agrária.
É assim que o MST tem, ao longo desses anos, construído sua história e recolocado na
pauta política brasileira a questão da Reforma Agrária: fazendo a luta pela terra e afirmando
em suas iniciativas, a possibilidade de novas relações sociais e de um novo projeto de
desenvolvimento para o campo e para o país. Ou seja, “Organizar e mobilizar para resistir: os
anos de luta têm ensinado que os trabalhadores somente têm seus direitos e conquistas
garantidos mediante luta” (JST, mar.,1990, nº 92, p.3).
As lutas sociais, a partir do final da década de 1970, tanto no campo quanto na cidade,
tinham como causa fundamental a situação de empobrecimento da classe trabalhadora. Na
cidade, além dos movimentos sindicais surgiram, nesta conjuntura, movimentos específicos
(feministas, negros, homossexuais) e movimentos a partir de lutas mais gerais (ecológico, pela
anistia), entre outros.
Grzybowski (1990, p. 13), ao contextualizar e situar cada um destes movimentos
apresenta suas características internas como fazendo parte do processo democrático no Brasil.
Afirma que “A democracia é vista, portanto, como um produto social, como um processo
inscrito na condição conflitiva do social, e os movimentos sociais como possíveis práticas
constitutivas da democracia”.
A percepção desses vários fatores intervenientes na conformação da realidade rural
permite apreender a pluralidade das relações sociais no campo e as formas sob as quais se
manifestam as demandas dos diversos segmentos. É, portanto, nos contornos da mencionada
35 Cf. Dados do DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra - NERA, 2003.
65
multiplicidade de situações empiricamente observadas, que se desenvolvem iniciativas de
mobilização e de organização que têm como eixos de luta questões igualmente diversificadas,
como Reforma Agrária, salários, barragens, cultura indígena, direitos da mulher, dentre
outras. Em todas a questão da terra aparece, com maior ou menor intensidade, como móvel de
ações concretas ou apenas como um elemento de retórica do discurso político de alguns
desses grupos.
Na realidade, esta variedade de movimentos representa a complexidade das
contradições que emergiram das políticas de modernização da agricultura. Os vários
segmentos de trabalhadores, a partir de sua inserção na estrutura fundiária, organizam-se em
torno de reivindicações específicas. A esse respeito Grzybowsky (1990, p. 17) afirma, “é
necessário ver as formas assumidas pelas contradições do capital. Mas as estruturas precisam
ser fecundadas para gerarem movimentos”.
Afirma que a demanda por Reforma Agrária, ao mobilizar tantos setores da sociedade,
extrapola os limites de uma Luta pela Terra, configurando-se conforme Martins (1991, p. 10-
12), em “instrumento de luta pela vida (...), pela sobrevivência, pela dignidade, pela
preservação daquilo que eles [os trabalhadores] presumem ser um direito”.
A abordagem da Luta pela Terra revela-se, pois, perpassada por novas propostas de
interpretação, as quais se articulam com a percepção das redefinições empiricamente
verificadas nos espaços rurais brasileiros. Prevalece, no entanto, a constatação de identidades
que se constroem “a partir de memórias coletivas de necessidades compartilhadas, de utopias
comuns e de experiências de práticas coletivas e de lutas” (MESTRIES, 1995, p.164). Ou
conforme Santos (2002, p.120), “se dá exatamente nos espaços sociais, econômicos e
geográficos ‘não conformes’ com a racionalidade dominante”.
Ao recolocar em questão a função social da terra e a necessidade da Reforma Agrária
o MST se tornou um dos movimentos que apresenta maior grau de articulação interna entre os
movimentos de luta, razão porque revela maior homogeneidade nas formas de luta e também
porque, em função da sua forma de atuação, da crítica mais contundente à ordem vigente do
capital e do Estado burguês. Ou, ainda, seguindo seu enunciado:
O MST responde à incompetência política do governo na Reforma Agrária realizando ocupações massivas em vários estados. São os trabalhadores cansados de esperar por promessas de palanque que nunca são cumpridas e por planos que nunca saem do papel. (JST, jun/90, nº 94, p.3).
66
O acontecimento que marca o reinício da luta pela terra no Estado de São Paulo, foi a
ocupação da fazenda Pirituba, em Itapeva. Segundo Fernandes (1996, p.115)
No início dos anos oitenta, um grupo de pequenos arrendatários da região que se dedicava à lavoura de feijão (...) resolveu ocupar as terras dos boiadeiros-grileiros (grifos do autor). (...) quatro meses depois (...) foram despejados por força policial (MÉDICI, 1981, apud FERNANDES, 1996: 115).
Ainda segundo Fernandes (1996) essa foi a primeira ocupação no Estado em 1980.
Mesmo que esse grupo tenha sido despejado e reocupado a área, num longo processo, essa
experiência resultou no Assentamento Pirituba II.
Na seqüência ocorreu mais um episódio envolvendo ocupação de terra, o qual se
originou em Sumaré. A formação dos assentamentos de Sumaré teve início no ano de 1982,
ano em que o centro comunitário Nossa Senhora de Fátima estava organizando uma horta
comunitária, partindo de experiências anteriores de mobilização pela obtenção de água, luz e
asfalto. O trabalho acabou por revelar as origens rurais da maioria dos moradores dos bairros
populares daquela cidade.
Por meio de reuniões, com leituras de textos bíblicos e de relatos de lutas históricas
pela terra em nosso país, foi preparada a primeira ocupação, no dia 03/11/83. A ocupação foi
realizada em terras da Usina Tamoio, em Araraquara, mas foi somente a primeira de uma
seqüência, devido às expulsões efetuadas por jagunços e pela Polícia Militar. “De Araraquara
foram para Araras e, no dia 5 de novembro, ocupam o Horto Florestal da estação Loreto, de
propriedade da Ferrovia Paulista (Fepasa).” (FERNANDES, 1996, p. 121).
Depois de um processo de negociação, em 1984, o governador Franco Montoro
concede uma área do Horto Florestal de Hortolândia, pertencente à FEPASA (Ferrovia
Paulista Sociedade Anônima), onde hoje é o Assentamento I. O chamado Grupo II nasceu do
processo de luta do primeiro, tendo sido formado conjuntamente à fundação do MST.
Algumas lideranças do Movimento dos Sem-Terra de Sumaré participaram da articulação estadual, coordenada pela CPT e, em janeiro de 1984, estiveram presentes no Primeiro Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, em Cascavel –PR. (FERNANDES, 1999, p. 122).
O Grupo II realizou a primeira ocupação no Horto Florestal Boa Vista, também
propriedade da FEPASA, em Sumaré, em maio de 1985, sendo também despejado pela PM.
67
Foi num processo de idas e vindas e de muita negociação, mas que culminaram no
Assentamento II36.
É a partir desses episódios que o MST, reunindo filhos de trabalhadores rurais,
arrendatários, agregados, assalariados temporários, expropriados de barragens e um
significativo contingente de trabalhadores rurais, começa a estruturar-se com o propósito de
lutar por uma reforma agrária radical.
Segundo Silva (1996, p.179):
Entre os sem-terras que ocupam fazendas no Pontal do Paranapanema, por exemplo, dominam parceiros expulsos dos cafezais do Paraná, ex-sitiantes arruinados, assalariados despedidos das fazendas paulistas e desempregados urbanos ainda com vinculação com o campo.
Assim, esses trabalhadores organizados e na Luta pela Terra evidenciam as marcas da
estrutura social brasileira, isto é, a heterogeneidade e as desigualdades acentuadas pelo
distanciamento provocado pelos padrões de acumulação do capital (MARTINS, 1995;
THOMAZ JR., 2002) e a trajetória dessa luta é evidenciada e sintetizada pelo Movimento em
todos esses anos (vide anexo A).
As resoluções no 1º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra indicam
que os sem-terra depositavam poucas esperanças na Nova República de Sarney, o que fica
evidente na sua pauta de reivindicações: reforma agrária sob o controle dos trabalhadores;
desapropriação de todas as propriedades com área acima de 500 hectares; distribuição
imediata de todas as terras em mãos do Estado e da União; expropriação das terras das
multinacionais; extinção do Estatuto da Terra e criação de novas leis que contassem com a
participação dos trabalhadores e levassem em conta suas práticas de luta. Além disso, as
ocupações das terras ociosas foram consideradas como estratégicas para a realização da
Reforma Agrária, com o enunciado “Terra não se ganha, se conquista”.
Essa proposta política do Movimento teve como contrapartida o surgimento, em junho
de 1985, da União Democrática Ruralista (UDR) entidade de direita que congregava os
latifundiários e proprietários rurais e se propunha através de contratação de advogados
impedir as desapropriações de terras, financiar campanhas eleitorais, contratar e sustentar
milícias armadas para defender terras dos membros da organização.
Segundo Bruno (1997, p. 58):
36 Não temos a intenção de aligeirar esse processo, que certamente foi longo e difícil para esses grupos. A nossa intenção é, apenas, situar espacial e historicamente os antecedentes organizativos do MST e da luta pela terra no Estado de São Paulo, para, a partir dessa contextualização superficial, chegarmos ao Pontal do Paranapanema.
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É certo que são distintos os tempos em que dois movimentos [o MST e a UDR] emergem e se impõem. Mas eles têm em comum a questão do monopólio e do acesso à propriedade fundiária (...). Esses dois movimentos (...) expressam momentos de lutas e conflitos que apontam para alternativas opostas no processo de constituição do capitalismo.
O MST de um lado e a UDR de outro acabaram politizando a luta pela terra no Brasil,
no sentido de que as várias instâncias do aparelho do Estado – executivo, legislativo e
judiciário – não podiam mais ignorar a existência de uma questão agrária, geradora de
conflitos e de violência no campo.
Ao definir suas formas de luta por meio da ocupação de terras e acampamentos em
locais estratégicos; tomadas de prédios públicos, como a sede do Incra, Banco do Brasil,
bloqueios de rodovias, marchas, visitas aos gabinetes de autoridades estaduais e federais, além
de greves de fome, essa articulação e organização do Movimento teve como conseqüência,
além da criação da UDR, a criação de novos espaços de representação e de alianças políticas
que passavam por dentro da máquina estatal, isto é, passam pela criação das oportunidades
políticas e econômicas (BRUNO, 1997).
De acordo com Plínio de Arruda Sampaio, citado por Brumer (1990), o sucesso dos
latifundiários na sua pressão contra a Reforma Agrária deve-se a cinco fatores:
1- contam com o apoio da grande imprensa;
2- dispõem de recursos financeiros elevados para gastar no lobby anti-reforma agrária;
3- estão umbilicalmente ligados a setores dinâmicos do capitalismo. De modo que
conseguem neutralizar pressões reformistas de setores industriais e comerciais que só se
beneficiariam com uma repartição mais eqüitativa da terra e da renda rural;
4-continuam a manter estreitos laços com a cúpula política do país; e
5-apesar de sua divisão e disputas, eles souberam compor suas diferenças para fazer
frente à ameaça comum a todos.
Ao mesmo tempo, afirma Sampaio (apud BRUMER, 1985, p: 3):
(...) enfrentando a má vontade dos meios de comunicação, os trabalhadores rurais não conseguiram obter um apoio efetivo do operariado e das classes médias urbanas para sua causa, não obstante a adesão formal das cúpulas sindicais e de algumas entidades da sociedade civil. Pior que isso: não conseguiram sequer forjar uma sólida unidade na luta pela reforma.
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Sabemos que são várias as formas da representação, organização da sociedade e,
portanto, muitas formas também de confronto. O MST evidencia com a Luta pela Terra e pela
Reforma Agrária, momentos em que o confronto se dá em torno de dois oponentes, de um
lado os latifundiários e de outro o Estado e o aparato judicial, sendo o Estado o seu maior
oponente.
Frente ao descaso dos governos estaduais e federal, a repressão à luta dos trabalhadores sem terra, o MST reafirma sua posição: os problemas sociais no campo tem causas estruturais, na concentração na terra e do poder, e somente se resolverão com uma ampla reforma agrária. (JST, jul/agos.1990, nº 95, p.2).
De forma que sem avançar no projeto de Reforma Agrária, o MST se territorializa e
segue nos anos 90 o enunciado – ocupar e resistir – acrescentando para esta conjuntura o
produzir.
2.2. Ocupar, resistir e produzir (1990 a 1994)
Conforme pudemos acompanhar até aqui, entre o final dos anos de 1980 até 1990, o
Brasil passou por um processo de transição democrática, por eleições para presidente e, nessa
conjuntura, a questão agrária colocada em pauta pelo Movimento, não passou de reforma de
papel, se houve avanços estes se deram em função da atuação e organização dos
trabalhadores. O Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), no Governo Sarney não passou
de uma falácia e mostrou que, para que a democratização do acesso à terra acontecesse, os
trabalhadores deveriam continuar mobilizados.
No início dos anos de 1990, o MST, territorializado se organiza para o seu II
Congresso Nacional:
O II Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pretende ser um marco na luta pela reforma agrária no Brasil.Pretende ser um impulso para o movimento se fortalecer nesta nova conjuntura da luta pela terra, porque os inimigos da reforma agrária permanecem com ações cada vez mais fortes no campo da repressão com os grupos paramilitares, agindo em conjunto com as polícias estaduais.E se as eleições presidenciais trouxeram à tona o debate em torno da reforma agrária como uma condição para que se diminua as diferenças sociais no Brasil e para que os trabalhadores tenham melhores condições de vida, a luta tem confirmado que a reforma agrária somente será realizada se os trabalhadores a fizerem (JST, abr.,1990, nº 91, p. 3).
70
Nessa conjuntura, o MST havia apostado na eleição de Lula (PT) e, com sua derrota
nas eleições, se tem a legitimação de um projeto de sociedade. Nesse sentido e no que se
refere à Reforma Agrária e o governo Collor, o MST acentua:
No que diz respeito à reforma agrária, está mais do que claro que o novo governo não fará nada. Tudo que vier a ser feito de positivo nesse campo será pela pressão da luta dos trabalhadores.Os trabalhadores mostraram grande disposição para resistir na terra ocupada. Mesmo onde houve despejo, a luta não parou. Isso demonstra que, apesar da derrota nas eleições presidenciais e da indisposição do novo governo em tocar na questão agrária, os trabalhadores estão determinados a fazer valer os seus direitos através da mobilização de massa, que é a nossa principal arma (JST, abr., 1990, nº 91, p. 5-6).
O governo de Collor ficou no poder de março de 1990 a novembro de 1992. Nesse
período cresceu a repressão ao Movimento:
O governo Collor além de não fazer reforma agrária, resolveu reprimir o MST. Acionou a Policia Federal, o que é um agravante, pois não é uma tropa de choque, é repressão política pura. O agente da Polícia Federal é um sujeito mais preparado, mais sedimentado. Não batiam mais nas nossas canelas, batiam na cabeça. Essa repressão nos afetou muito, muita gente foi presa. Começaram a fazer escuta telefônica. Tivemos, no mínimo quatro secretarias estaduais invadidas pela Polícia Federal (STÉDILE e FERNANDES, 1999, p. 69).
Num contexto em que as ocupações eram rechaçadas a força pelo aparato policial, o
MST enunciava:
Ocupar, resistir e produzir: A luta já nos ensinou que não é possível ficar esperando pela boa vontade de quem historicamente já demonstrou que não quer realizar a reforma agrária, segundo os interesses dos trabalhadores (JST, abr/mai. 1990, nº 93, p.3).
Fazer uma ofensiva massiva e radical: O MST responde à incompetência política do governo na reforma Agrária realizando ocupações massivas em vários estados. (JST, jun.,1990, nº 94, p.3)
Nesse período o MST mais organizado nacionalmente e, com a preocupação em
atualizar e ampliar as bandeiras de luta, se articula com outras organizações da classe
trabalhadora participando das Jornadas Nacionais de Luta:
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Avançar em todas as frentes: As jornadas de julho e setembro demonstram que continuamos com a bandeira da reforma agrária firmemente empunhada. E continuaremos avançando contra todo tipo de latifúndio, mesmo o que se esconde por trás da fachada ‘produtiva’(JST, set. 1990, nº 96, p.3). Rurais unidos vão à luta: Vem aí as grandes jornadas de luta. Perspectivas para 1991: este ano será marcado fundamentalmente pela crise econômica e pela ‘arrumações’ políticas em Brasília e nos estados mais influentes, visando as eleições presidenciais de 1994.Somente através das mobilizações, da pressão, da luta concreta a classe trabalhadora fará frente a essa política ditada pelo capital internacional. No campo as coisas não serão pacíficas. Tanto os pequenos proprietários, assalariados e os sem terra, terão dificuldades ainda maiores (...) A questão agrária continuará com as medidas anunciadas no ano passado: não haverá desapropriações e sim arrendamentos, colonização e legalização de antigas posses (JST, jan/fev., 1991, nº 100, p. 2-3).
No II Congresso Nacional, em maio de 1990, o Movimento já estava consolidado e o
seu perfil marcadamente “sulista” vai modificando e passa a ter um perfil nacional.
Mobilizados e participando de outras frentes de luta, os trabalhadores definem seus desafios e
prioridades, o que expressa a resposta dos trabalhadores em face dessa nova situação:
1-avançar na massificação das lutas: lutas mais massivas e que envolvam outras entidades e organizações da sociedade civil; 2-avançar na qualificação dos nossos dirigentes e militantes: a luta exige conhecimento cientifico e estudo, afim de que tenhamos condições de levar adiante nosso Movimento, formular propostas concretas e enfrentar os inúmeros desafios; 3-avançar na organização: se as mobilizações e lutas de massa sofrem variações naturais, nossa organização deve ter um crescimento constante; 4-avançar no sistema cooperativista dos assentados: diante de uma política econômica e agrícola que penaliza o pequeno agricultor, o assentado não pode se contentar com a conquista da terra (JST, mar., 1991, nº 101).
Desta forma, Organizar, Unir e Lutar é um dos seus enunciados nesse período.
Participam das greves organizadas por Centrais Sindicais:
Greve geral: contra o governo e contra os patrões: os trabalhadores rurais deverão participar com todas suas forças nessa greve geral. Se mobilizando. Ocupando as cidades. Interrompendo as rodovias. Ocupando os bancos. E juntamente com os operários da cidade, parar a economia do país, que depende de nosso trabalho (JST, mai., 1991, nº 103, p.3) Greve contra violência da fome: contra a violência da exploração (JST, jul., 1991, nº 104, p.3).
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E vai desenhando o perfil de um movimento que tem propostas mais amplas e que
envolvem mudanças para além da conquista da terra e que as implicações políticas dessas
alianças poderia ser um ponto de partida para a formação de um novo coletivo político e de
uma nova concepção de luta.
Em várias capitais nos juntamos com os trabalhadores rurais e urbanos. Devagarinho estamos construindo na prática uma unidade cada vez maior. Dos trabalhadores da cidade, com os trabalhadores da roça. (JST, agos., 1991, nº 106, p.2).
A luta dos trabalhadores: Diante da política contrária aos interesses da classe dos trabalhadores, da repressão e do desgoverno do país, a classe trabalhadora tem mostrado sinais de solidariedade, apoio e decisão firme de lutar. (...)a firme participação das entidades no repúdio aos atos ilegais e torturas cometidas pelas autoridades, mostram a disposição de lutar por uma sociedade mais justa (JST, set.,1991, nº 107/108 p.2). Organizar, Unir, Lutar: Apesar de todas as dificuldades econômicas, repressão policial e ataques dos meios de desinformação, conseguimos aumentar o numero de ocupações de terra. (...)soma-se a esses avanços as lutas desenvolvidas em conjunto com os trabalhadores urbanos, especialmente os sem teto (JST, nov/dez., 1991, nº 110, p.2).
O Movimento vai traçando os caminhos de luta e compondo no discurso uma unidade
com outras frentes que refletem em sua participação no impeachment de Fernando Collor e
em outras campanhas e greves gerais:
Não à exploração: Vamos dizer NÃO ao Collor! Embora isolado da sociedade, o governo continua com sua política ditada pelo FMI massacrando a classe trabalhadora. De parte dos trabalhadores existe desespero, por causa da gravidade da crise, do desemprego e da falta de reforma agrária. Mas existe também a disposição de lutar (JST, fev., 1992, nº 112, p. 2). Basta de miséria: desmascarar a tocaia liberal: Somente a mudanças profundas poderão fazer frente a esse plano estratégico da burguesia, de acelerar a acumulação de capital as custas da marginalização da população. (JST, mar., 1992, nº 113, p. 2)
Assim, em seu discurso o Movimento vai descortinando uma aproximação maior entre
trabalhadores do campo e da cidade em torno de alguns objetivos comuns, como por exemplo,
a necessidade de ampliação da prática política e a organização dos trabalhadores enquanto um
processo de unificação dos explorados e da classe trabalhadora. E, ao mesmo tempo, vai
encaminhando a Luta pela Terra por meio das ocupações. Mas é aí também que ao adquirir
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mais visibilidade as especulações sobre sua organização passam a ser freqüentemente
explorada pela imprensa, como acompanhamos em matérias publicadas nos jornais e em
discursos dos ruralistas: quem é que financia o MST? É importante lembrar aqui, que os
discursos produzidos na imprensa são geradores de saber e poder, conforme salientamos no
capítulo 1. Assim, quanto mais informação, mais saber e controle se tem sobre ele. E a sua
forma de organização37 é estampada nos jornais, conforme podemos acompanhar no Quadro
12, abaixo:
Quadro 12 – Estrutura Organizativa do MST
Coordenação Nacional: Coletivo composto de 65 membros dos 21 Estados e do Distrito Federal: Traça as linhas gerais do Movimento e tem poder deliberativo. Direção Nacional: Coletivo composto por 21 integrantes. Executa as metas da Coordenação Nacional. Coordenações Estaduais: são vinte e duas coordenações com até 30 integrantes. Responsáveis pela definição de metas e ocupações de terra. Direções Estaduais: Coletivos que reúnem de 7 a 16 membros. Desempenham nos Estados o papel que a Direção Nacional exerce no país. Continuação do Quadro 12. Regionais: é uma divisão administrativa e operacional. Cada Estado define o número de regionais. O Estado de São Paulo tem cinco. Coordenação de Acampamentos: formada por até sete pessoas, que organizam as ocupações. Dividem-se em setores: educação, alimentação, saúde, segurança, produção e negociação em conflitos. Fonte: CPT e MST, 1992.
Em São Paulo, no Pontal do Paranapanema, na década de 1990, o Movimento realiza
sua primeira ocupação, em 14 de julho:
A jornada de lutas de março: 1800 famílias sem terra ocupam no Pontal do Paranapanema: nos diais 13 e 14 de março, as famílias reocuparam a fazenda São Bento. Desta vez, através de uma ‘ação de massas motorizada”, usando 7 tratores de arrendatários acampados e tombando 30 alqueires de terra.O poder incontrolável da Policia Militar: armada, sentindo-se impune e com os meios de comunicação distorcendo os fatos, a PM deu uma demonstração do que é capaz de fazer, quando o alvo é os trabalhadores. É evidente que a PM não atua sozinha na repressão aos trabalhadores. A união do latifúndio com setores da PM completa-se com a participação de
37 Essa estrutura foi publicada, por meio de consulta ao MST, no jornal Folha de S. Paulo (ALONSO, 24/09/95, p.12). A esse respeito consultamos FERNANDES, 2000, p. 246, como não diferia, a reproduzimos.
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membros do poder judiciário e com o acobertamento da imprensa. (JST, abr., 1993, nº 124, p. 2).
Conforme o Movimento, há no país cerca de 5 milhões de famílias sem-terra, sendo
que 6.76238 famílias estão acampadas no Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo.
Hoje, no Pontal do Paranapanema, o MST tem, mobilizadas, muitas famílias participando de
ocupações.
O primeiro passo na formação de um novo acampamento é uma ocupação de terra.
Todas as famílias acampadas já participaram de pelo menos uma ocupação de fazendas.
“Todos os dias tem gente nova batendo em nossas portas” (Rainha, OI, 22/10/96). O
cadastramento dessas famílias é feito e depois são realizadas reuniões, nas quais são
explicados os motivos que levaram o MST se organizar, as conquistas da luta pela terra, assim
como as derrotas e os riscos que envolvem a vida nos acampamentos, como explica Walter
Gomes, um dos líderes no Pontal: “Atualmente, no desespero que os agricultores estão, o
desemprego, a falta de perspectiva, não precisa conversar muito para convencer as pessoas de
que a única maneira de resolver o problema da terra é através de pressão”, (FSP, 22/09/96,
p.12); “Não vou ganhar a terra, vou lutar por ela. Não estamos aqui de graça” (Leonil J.
Nocete, acampado, OI, 22/10/96).
Um dos maiores obstáculos à Reforma Agrária, e que explica as ocupações de terra, é
a lentidão da Justiça, sendo que esta lentidão pode ser justificada pelo interesse daqueles que
não querem que ela aconteça. Entre os anos de 1990 a 1995, o Estado impetrou várias Ações
Discriminatórias39 visando incorporar as terras devolutas ao Estado para fins de assentamento.
A lentidão nesses processos também dá origem a fraudes envolvendo os valores de
desapropriação. O Governo e o Executivo ao não conseguirem conciliar promessas com ações
efetivas, “acabam aprisionados” nas teias de um aparato judiciário e policial que favorece
mais aos interesses dos grandes proprietários do que aos do Estado, da sociedade e
trabalhadores. Dessa forma, justifica-se o tratamento dispensado aos trabalhadores rurais e a
conivência do aparato judicial, no qual o jornal se fundamenta para construir seu argumento.
A esse respeito Bruno (1997, p.11) aponta que:
38 Conflitos no Campo, Brasil 2003. Comissão Pastoral da Terra, 2004. 39 Segundo Fernandes (1996, p. 159), (...) o Pontal do Paranapanema possui 444.130,12 hectares que estão com processos de ações discriminatórias a iniciar ou em andamento. A maior parte destas terras estão sob o domínio dos grandes grileiros-latifundiários. O Itesp tem instaurado diversas ações discriminatórias na região que se encontram nas seguintes condições: 1) em andamento, são perímetros em que as ações já foram ajuizadas e aguardam decisão judicial definitiva; 2)concluídas e aguardando conclusão ou reavaliação do Plano de Legitimação de Posses. 3) processos de legitimação em andamento.
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As leis, as instituições políticas, os tribunais e o direito consubstanciam este ethos da grande propriedade fundiária, com o cuidado de, ocasionalmente, conceder alguns direitos aos trabalhadores rurais e, continuamente, preservar o monopólio e os privilégios dos grandes. Hoje, a propriedade está mais protegida e cercada pelas leis, pela força, pelo capital territorializado e pelo Estado.
Mas, as dificuldades não se resumem apenas à lentidão desse processo, se devem
também à acentuação dos problemas internos, os quais os jornais buscam explorar. Os jornais
OI e FSP têm enfatizado o conflito entre duas posições que buscam a hegemonia do MST.
Muitas vezes essa disputa termina em dissidências40, nas quais os jornais aproveitam para
evidenciar o radicalismo do Movimento, seu sectarismo e também sua vinculação à guerrilha,
enfim busca reforçar o perigo que representa41. Ou seja, os conflitos moldam internamente o
Movimento e sustentam sua ação externa.
O MST justifica sua existência na posição antagônica com os grandes proprietários de
terra e com o Estado. Com os primeiros, por meio da disputa da terra; com o segundo, pela
oposição à política fundiária e agrícola. Mas a disputa pela terra inicia entre as vítimas do
processo de modernização do campo: entre índios e colonos, entre caboclos e colonos, entre
pequenos proprietários e sem-terra. Na seqüência, com o processo de politização e
mobilização desses setores, entre os engajados e os não engajados. E, logo, os militantes
entram em conflito por filiações e simpatias partidárias e na luta pelo poder de liderança.
O MST surge na paisagem política nacional no contexto de contestação ao governo
militar, associado às experiências de resistência, às tentativas de expropriação para
concentração do capital no campo. Expulsão e resistência, combinadas às condições objetivas
e subjetivas, foram inscrevendo o rosto do MST na paisagem agrária em escala local e
nacional e, ao mesmo tempo, informando sub-repticiamente a origem e organização dos sem-
terra, dos sem-trabalho, dos sem-saúde, dos sem-educação, dos sem-cidadania, nos quais
identificamos, também, as marcas perversas do capitalismo no Estado de São Paulo e no
Brasil. Conforme podemos acompanhar no seu discurso:
As conquistas da luta: milhares de famílias de trabalhadores que se mobilizaram para conquistar um pedaço de terra. Da mesma forma,
40 A esse respeito Lima (2002; 2004) tem desenvolvido pesquisas que apontam para os vários fracionamentos das frentes de Luta pela Terra no Pontal. Se até 1994 o MST representava e orientava as ocupações e lutas pela terra no Pontal, nos últimos anos têm comparecido em público algumas divergências e dissensões, inclusive com o reconhecimento na imprensa da existência de outros grupos: MAST, MSLT, UNITERRA, entre outros. 41 Em entrevista a um dos dissidentes do MST e publicada no jornal Folha de S. Paulo em 17/08/97 (cap.1, p. 59) e 05/04/94 e no dia 16/04/94, (citadas no capítulo 1, p. 33-34 e 35-36) temos exemplos claro da forma como o jornal busca explorar e evidenciar esses aspectos.
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caminhadas, atos públicos, passeatas e ocupações de Incras, Secretarias de Agricultura e Assembléias Legislativas, aconteceram em 15 estados. Rompemos assim, em nível de estado, um isolamento que a burguesia procura nos manter a todo custo (JST, mai., 1992, nº 115, p. 2).
Assim, num contexto em que as “condições de produção” do discurso justifica o
avanço em todas as frentes, o Movimento acentua, “continuamos com a bandeira da reforma
agrária firmemente empunhada. E continuaremos avançando contra todo tipo de latifúndio,
mesmo o que se esconde por trás da fachada ‘produtiva’” (JST, set/90, nº 96, p. 4).
Ao referirem-se à organização do MST, Alves e Paulillo (1996) chamam a atenção
para componentes de natureza estrutural e conjuntural que incidem sobre a sua formação:
Trata-se de um grande conjunto de pessoas formado por ex-trabalhadores rurais expulsos do campo pelo processo de modernização conservadora; de ex-operários urbano-industriais que perderam seus empregos e não têm qualificação para assumir outros; e de ex-prestadores de serviços (p. 2)
No que se refere a essa discussão, acrescentamos que a política neoliberal implantada
no Brasil, a partir do governo Collor, mas principalmente no governo Fernando Henrique
Cardoso, ao mesmo tempo em que não consegue desmobilizar a luta pela terra encaminhada
pelo MST, acaba contribuindo para a expansão das bases sociais desse Movimento. O MST
não se coloca, na atual conjuntura política, na defensiva – ao contrário do que ocorre, por
exemplo, com o movimento sindical – porque se alimenta dos efeitos sociais perversos
produzidos pelo neoliberalismo.
À medida que aumentam a marginalização e a exclusão social que atingem em cheio
as classes populares, aumentam as bases sociais do MST que repõe a essa população
marginalizada o sonho do trabalho, da sobrevivência, da reprodução social.
Poderíamos dizer que a força política do MST deriva, em grande parte, do desemprego
gerado pela abertura da economia brasileira ao mercado internacional, da recessão e/ou do
baixo crescimento econômico provocados pelos juros altos e pela busca a qualquer preço da
estabilização monetária, da importação de maquinário computadorizado que atinge as
indústrias de ponta da economia brasileira e que reduz drasticamente o estoque de empregos
nesse setor, da própria mecanização das atividades agrícolas, da impossibilidade de ter
emprego nesta sociedade do capital, fatores estes que se fizeram e se fazem presentes como
nunca nas políticas econômicas e neoliberais da atualidade. Ou como afirma Thomaz
Jr.(2004. p.01):
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As novas territorialidades que estão sendo engendradas pelo metabolismo do capital e que repercutem no processo social como um todo, especialmente para a esfera organizativa do trabalho [são] aspectos importantes do processo social que (re)definem o metabolismo do capital e as mutações no universo do trabalho.
Assim, os conflitos no campo revelam uma face marcada pelas contingências locais,
mas, ao mesmo tempo em que se evidencia que estes se inscrevem numa dinâmica mais
ampla que reflete, em uma escala nacional e global, uma crise do mundo do trabalho.
Segundo Ferrante (1994, p. 129):
(...) a demanda pela terra, no presente, [possui] um perfil ímpar, aglutinando trabalhadores rurais e urbanos. Suas ligações com problemas de desemprego, de habitação, de revigoramento de estratégias patronais, de fortalecimento de organizações empresariais, dão-lhe a configuração de uma alternativa buscada para suprimento das necessidades de reprodução social.
Nesse sentido, a estrutura social evidenciada a partir dos mecanismos, ou dinâmica do
capital, seja pela divisão técnica e territorial do trabalho, seja pelo reflexo dessa divisão, os
excluídos da terra, os trabalhadores proletarizados e semi-proletarizados acabam por
evidenciar um conflito de classe e, conforme Thomaz Jr. (1999, p.16) “expressa as
contradições das diferentes faces das desigualdades sociais” .
É também nessa escala que surge o debate sobre novas temáticas, como gênero42, meio
ambiente e sustentabilidade43, as quais passam a integrar o cotidiano das lutas no campo. No
geral, observa-se que a luta política, que coloca no cenário nacional os problemas decorrentes
das paisagens desiguais da distribuição fundiária é, sem dúvida, a face mais visível da questão
agrária.
Se na conjuntura nacional o discurso do Movimento é de mobilização e de
radicalização44 (no sentido de ir a fundo, na raiz do problema), nos Estados os trabalhadores,
seguindo as orientações e diretrizes tiradas nos Congressos e Encontros, vão respondendo
ocupando terra, prédios públicos, bancos, realizando marchas e passeatas. De forma que, de
1990 a 1995, no Pontal do Paranapanema, a paisagem agrária já não é tão homogênea,
apresenta uma configuração territorial não só de latifúndios, tinham sido efetuados 16
42 A esse respeito Franco García (2004) e Valenciano (2004) vêm desenvolvendo pesquisas sobre os encaminhamentos das discussões de gênero no movimento. 43 Soares (2003) desenvolveu pesquisa ligada à discussões que envolviam as inovações tecnológicas no corte de cana de açúcar e as implicações do uso dessas tecnologias no mundo do trabalho. 44 É interessante, aqui, esse termo, pois a depender de quem o usa, do lugar em que ele é enunciado, assume sentidos diferentes. Quando os jornais acusam o Movimento de ser radical, certamente o sentido mobilizado não é esse.
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assentamentos, abrigando 1.695 famílias, num total de 40.477 hectares de terra45, o que pode
ser observado nas fig. 03 e 04.
Por meio das ocupações dessas terras, griladas e devolutas, o espaço se transforma em
território e são criadas novas formas de gestão do território. Lugares de investimentos sociais,
políticos e que representam a conquista de um território.
45 Fonte: NERA – DATALUTA – Banco de Dados de Luta pela Terra, 2003.
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2.3. Reforma Agrária: uma luta de todos
É claro que não é suficiente organização, novas concepções de luta, construção de
novas identidades políticas para que os interesses dos trabalhadores prevaleçam. As lutas
sociais no campo, por si só, não bastam para se contraporem ao poder da burguesia e a partir
delas construir uma base para a construção de uma nova sociedade. No entanto, nem por isso
a organização e a luta perdem seu sentido ou a importância como meio de recriação de novas
relações de solidariedade e de novas alternativas. É nessa crença que o Movimento, a partir de
1994 põe em evidência um novo enunciado: Reforma Agrária: Uma luta de todos!.
O novo enunciado do Movimento, nesse contexto, significa a sua constituição como
um importante debatedor da questão agrária, a partir do segundo semestre de 1994, embora o
cenário dessa luta não possa ser atribuído só a ele, pois inúmeras ações de ocupação de terras
têm sido desencadeadas por movimentos ligados a Contag/CUT, ou por outros movimentos.
Mas as glórias ou as penalizações, na maioria das vezes as penalizações, têm sido recolhidas
pelo MST.
Significa, também, uma tentativa de reforçar ou consolidar um leque de relações que
até então já havia constituído em torno da luta pela terra e pela Reforma Agrária com a
obtenção de vitórias dos trabalhadores, principalmente com a mudança da lei de reforma
agrária, nesse sentido, comemora:
A luta dos trabalhadores obtém vitórias A lei e a Reforma Agrária: A função social na Lei Agrária: este conceito, fez transcender o conceito de função social da propriedade apenas para as desapropriações de reforma agrária. Agora, temos uma definição de toda PROPRIEDADE imobiliária rural que não cumprir todos os requisitos que lhe caracterizam como função social, deixará de ter proteção jurídica (JST, set., 1993, nº 129, p. 2).
Essa vitória a que se refere o MST diz respeito ao acréscimo, na lei, do conceito de
função social da terra e que representou um avanço na questão da reforma agrária46.
Entretanto, na prática, fica a mercê de interpretação de juízes, pois a julgar pelo número de
despejos a que os trabalhadores são submetidos e a agilidade em que são impetrados
mandados de reintegração de posse quando uma área é ocupada, significa que não há
questionamento se a função social da terra está sendo comprida. Por essa razão, a necessidade
da ocupação como forma de agilizar o processo.
46 O direito de propriedade rural era garantido pelo Código Civil, lei de 1804, este garantia o direito absoluto sobre qualquer imóvel.
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A definição de novas estratégias de luta incluía, também, apostar na candidatura de
Lula, do PT, já que como aliados históricos do Movimento, a sua vitória representaria os
interesses dos trabalhadores:
A reforma agrária que queremos O que esperar de 1994?: A política nacional anda de mal a pior. No governo Itamar ninguém acredita.Decidimos apoiar abertamente e nos envolver na campanha do companheiro Lula, porque acreditamos ser a única que, se vitoriosa, pode implantar um programa democrático-popular e realizar a reforma agrária. (JST, jan/fev., 1994, nº 133, p. 2).
Com a decisão de apoiar a candidatura de Lula, o Movimento passou a sofrer mais
ataque da imprensa. Participando ativamente dos embates nesse período começa a ser
representado com todo tipo de qualificações47. Este enunciado “A luta pela terra sobe os
palanques” (JST, jul. 1994, p. 2), deixa claro a posição assumida e a aposta nesta candidatura
e avaliação que faz sobre o papel da imprensa:
As eleições e a reforma agrária: a sociedade brasileira já se deu conta há muito tempo que a causa de muitos problemas que acontecem na nossa economia, tem suas raízes na injusta propriedade da terra. Os ataques da imprensa ao MST: como parte dessa guerra psicológica que a burguesia está travando para evitar a vitória do Lula, os setores conservadores do governo orientaram os serviços secretos (Informantes da Secretaria de assuntos Estratégicos) para produzirem documentos contra o MST. Nos acusaram na imprensa dos maiores absurdos: que temos contrabando de armas do Paraguai, que temos centro de guerrilha, que somos assessorados por estrangeiros de todo tipo. Não nos calamos. Nossa luta só tem uma motivação: nossa necessidade! (JST, jul., 1994, nº 138, p. 2).
Essa forma de ofensiva da imprensa ao Movimento vai se dever em grande parte a
preocupação de vários setores da burguesia em fazer com que a luta pela terra e pela reforma
agrária sejam consideradas pela população como um dos entraves à democracia, daí a
exploração, na imprensa de enunciados de radicalização e perigo representado pelo
comunismo. E é interessante ressaltar aqui, conforme mostramos no capítulo 1, que essa
forma de enunciar o Movimento vai comparecer, com mais ou menos intensidade, em
períodos eleitorais em que o MST se posicionou apoiando a candidatura de Lula. Esta é uma
das questões que exploramos no capítulo 4: que memória do discurso a imprensa mobiliza
quando vincula o MST ao perigo vermelho?
47 No capítulo 1 (p.33 e ss.) evidenciamos algumas reportagens que exploram a vinculação do MST ao PT e a forma como essa denominação acontece.
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É hora de mudar o Brasil com Lula na presidência.Burguesia versus trabalhadores: na história do Brasil nunca houve eleição que estivesse tão claro o enfrentamento entre dois projetos: o da burguesia e o dos trabalhadores. A disputa desta eleição é entre a continuidade e a mudança. Entre o medo e a esperança. Entre os que exploram e os explorados. Entre os ricos e os pobres. (JST, set., 1994, nº 140, p. 2)
Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso, em outubro de 1994, ficou claro o
projeto que venceu. Nesse sentido, o Movimento vai atribuir um papel fundamental aos meios
de comunicação:
A falsa democracia: o controle dos meios de comunicação por parte das oligarquias políticas e econômicas brasileiras impede que, dez anos após o final da ditadura militar, se possa constituir uma vida democrática no país e determina que a luta política se dê de forma acentuadamente desigual. O resultado das eleições é a prova mais cabal das manipulações feitas pela elite para garantir a vitória de seu candidato.(JST, out., 1994, nº 141, p. 2).
Assim, manifesto no discurso do MST, está um embate entre as forças contrárias ao
projeto de sociedade que garantiria a mudança necessária para se buscar soluções que
visassem uma melhor distribuição de terra e de renda, que procurasse “varrer do mapa” as
paisagens desiguais no campo. No discurso do Movimento sobre o papel da imprensa na
eleição de FHC também está presente uma forma de denúncia, uma vez que argumentam que
a imprensa é a favor da democracia, mas fazem uso da manipulação para garantir a
propriedade.
Desse modo, delineia-se um outro cenário de lutas, com mobilizações, marchas
ocupações de prédios públicos etc., e também a posterior criminalização da luta pela terra,
com prisões de lideranças e a edição da Medida Provisória nº 2027, de 2000, que proíbe o
Incra de vistoriar, por dois anos, área ocupada pelo MST, o que vai provocar uma
desarticulação e desmobilização.
Um governo velho e conservador: Nunca ganhamos nada de graça. Vamos redobrar esforços para melhorar nossa organização. Preparar grandes mobilizações e conquistar com muita luta nossos direitos, enfrentando esse governo das elites. O governo FHC mostrou muito rápido sua verdadeira cara (JST, jan/fev., 1995, nº 144, p.2).
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No Pontal do Paranapanema, São Paulo, como acompanhamos nos recortes
selecionados nos jornais, a intensificação das ocupações se dá na mesma medida em que, em
nível nacional, o Movimento reforça as mobilizações. Embora como já acentuamos, se
tenham algumas conquistas, a morosidade no processo leva a que milhares de trabalhadores se
aglomerem em torno da busca pela terra. Mas as repercussões das medidas do governo federal
atingem em cheio as lideranças no Pontal que começam a ser presos. São presos nesse
período, janeiro de 1996, e acusados de formação de quadrilha: José Rainha Jr. e sua esposa,
Diolinda Alves de Souza, Márcio Barreto, Laércio Barbosa, Claudemir Cano e Felinto
Procópio. Destes, José Rainha e Laércio Barbosa conseguiram fugir. Essa medida, prender as
lideranças, acabou por provocar uma reação de apoio de vários setores da sociedade, entre
Igreja, sindicatos, partidos políticos (deputados, senador), entre outros. Foram muitas as
prisões a partir daí, agravando a situação de assentados e acampados, mas não diminuindo a
capacidade de dar respostas com marchas, mais acampamentos, ocupações etc, e também
muitas mortes e perseguições a sem-terra no país48.
E, assim, se passa boa parte dos anos de 1990, com poucas medidas concretas por
parte dos governos estadual e federal, além das já mencionadas prisões e perseguição às
lideranças e como conseqüência o aumento dos conflitos no campo. Em 1997, o MST
mobiliza as atenções do país com a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e
Justiça, sendo esta uma das maiores mobilizações populares das últimas décadas49:
17 de abril: Brasília parou contra FHC.Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça. A marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça contagiou a sociedade de que é possível mudar a sociedade.Nós do MST continuaremos a nos organizar e a lutar por Reforma Agrária. E estaremos presentes em todos os assuntos que dizem respeito ao futuro do nosso país. É um direito de cidadania. Saberemos exercê-lo. Vamos à luta. Mostrar o Brasil real para o Brasil oficial (JST, abr/mai., 1997, nº168, p. 2; 10, 8 6,)
Nesse momento colocou na agenda nacional a questão da Reforma Agrária, que em
função do modelo de desenvolvimento econômico adotado, e denunciado pelos movimentos
organizados, até então não era tratada de forma adequada. Após a Marcha para Brasília,
organizada em conjunto com outros movimentos, o governo federal anuncia e lança o Plano
Nacional de Reforma Agrária, mas nem de longe contemplava as reivindicações dos
48 É desse período o massacre de Corumbiara (1996) e de Eldorado dos Carajás (RO), que até hoje estão impunes os responsáveis.
84
movimentos. Em 1998, organiza novas marchas, mas sem a mesma visibilidade alçada em
1997. Em 1999, perde popularidade em função dos saques realizados, principalmente na
região NE, e de uma orquestração entre o governo e a imprensa.
Em 1999 o MST realiza um balanço das ações que foram implementadas para resolver
os conflitos em torno da terra e da reforma agrária.
1999: muita propaganda, repressão... e pouca reforma agrária: 1-modelo econômico: subordinação ao capital 2-crise da agricultura brasileira 3-estratégia do governo para a Reforma Agrária: Banco da Terra (compra de terras: propaganda para evitar desapropriações) e Novo Mundo Rural (transfere para os assentados a “liberdade” deles mesmos fazerem o assentamento, ou seja, o Incra transfere recursos para uma conta dos assentados, recursos por família e estes assumem todos os encargos): na prática a adoção tardia do neoliberalismo. 4-orçamento do Incra: pouco recurso e sucateamento do mesmo 5-recursos para a produção: acabou com o Procera, não houve recursos suficientes para os pequenos agricultores familiares. 6-acampamentos de sem terra: resultado da falsa reforma agrária. Final do ano com mais de 500 acampamentos com mais de 72 mil famílias. (JST, dez., 1999; jan., 2000 nº196).
O discurso do MST, nesta década de 1990, foi construído tendo como um dos seus
princípios as ocupações de terra, como uma das formas de resolver as desigualdades sociais e,
justamente aí que o seu projeto de sociedade sofreu maior ataque, tanto da imprensa quanto
por meio de setores organizados dos proprietários de terra e latifundiários. Em particular, aos
enunciados de seu discurso que referendam, contrapondo-se aos enunciados nos jornais, a
atualidade da reforma agrária como possibilidade de formação de uma sociedade mais justa.
Atualidade legitimada pela luta, pelo conflito e pelo questionamento do monopólio fundiário.
49 Neste período, abril de 1997, o MST foi alvo de 163 manchetes só no jornal Folha de São Paulo, sendo manchete principal por quase 15 dias.
85
2.4. Por um Brasil sem latifúndio (2000-2004)
Em torno da conjuntura atual (2000-2004) o MST realiza o seu 4º Congresso
Nacional, com o enunciado: Reforma Agrária: por um Brasil sem latifúndio, em Brasília e
define as ações para esse contexto. Denuncia a paralisação do processo de reforma agrária, a
situação de conflito e aumento de tensão no campo.
A reforma agrária de FHC é uma farsa Governo FHC: inviabilizou a pequena agricultura e os assentamentos; beneficiou as grandes propriedades e garantiu amplo controle das empresas multinacionais sobre o comercio agrícola, as agroindústrias e as sementes. Sem Terra, uma identidade conquistada. Fórum Social Mundial: a luta por um mundo melhor econômico cada vez mais perverso socialmente. Em diferentes fóruns e articulações já existem acordos para mobilizações de massa contra o governo FHC e seu modelo econômico: -08/03: mobilização de mulheres trabalhadoras rurais; -21/03: paralisação nacional convocada pela CUT; MAB e MPA: mobilizações contra a política de hidrelétricas e exploração do leite. Lutas e mudanças para 2002: em suas diferentes formas de organização: popular, eclesial, social, política, teremos muitas tarefas de enfrentamento de um modelo econômico cada vez mais perverso socialmente. Em diferentes fóruns e articulações já existem acordos para mobilizações de massa contra o governo FHC e seu modelo econômico 17 de Abril: Jornadas de Luta pela Terra , Dia Internacional de Luta Camponesa maio: unificação de forças com todos os movimentos de trabalhadores do campo, com a Contag e com as entidades do Fórum Nacional de Reforma Agrária: jornada nacional dos rurais contra o modelo agrícola, a política do governo e por mudança no campo. Julho a setembro: mutirão de conscientização, organização das bases sobre o perigo da implantação da Alca, plebiscito popular.(JST, jan.,2002; nº 217, p. 2-3; fev., 2002, nº 218, p.2).
A partir de 2000 até meados de 2002, o Movimento sofre um refluxo em função da
perseguição às lideranças. No Pontal do Paranapanema, nesse período, foram efetuadas as
prisões de José Rainha, Diolinda Alves, Felinto Procópio, e outros tantos ficaram foragidos.
Isso, de certa forma, refletiu nos encaminhamentos e obrigou o MST a rever as estratégias de
luta.
86
Segundo a CPT50, só no ano de 2003, o Poder Judiciário emitiu mais de 30 mil ações
de despejo envolvendo 176.484 pessoas. Em relação a 2002, ainda segundo os dados da CPT,
houve um aumento de 263,2% de ações de despejos. As prisões também giraram em torno de
140% a mais em relação a 2002. Esses números revelam o papel do poder público,
particularmente do Poder Judiciário, nesse processo. Revelam, ainda, que a atuação do
Estado, no que se refere à questão agrária se explicita na sua forma mais autoritária, por meio
do seu aparato repressivo. Isso evidencia como, pensando o espaço agrário em sua
diversidade, a sociedade brasileira explicita as suas contradições: de um lado, a reprodução de
um modelo agrário concentrador, tanto de poder político quanto social e econômico na figura
de grandes latifundiários; e de outro, os trabalhadores que lutam por uma reforma agrária
como forma de democratização e de uma sociedade mais justa. É nesse sentido, que estamos
buscando analisar o discurso jornalístico, como uma instância em que o embate, o confronto,
se dá em torno de formações discursivas que procuram legitimar sua hegemonia apagando o
sentido de outras vozes que estão presentes no discurso jornalístico.
Em 2002, os governos estadual e federal pouco ou nada fizeram para atender a
demanda de terras e cumprir a reforma agrária e o Movimento organiza uma marcha e realiza
novas ações de ocupação:
Sem terra marcham por Reforma Agrária e contra a violência: mil e duzentos trabalhadores de todas as regiões do Estado (SP) participaram, de 3 a 8 de março da Marcha por Reforma Agrária e contra a violência, de Campinas a São Paulo. (JST, mar/abr., 2002 n. 219).
Movimentos do campo lutam por uma Agricultura soberana: Defendemos a realização de uma ampla e massiva reforma agrária e a ampliação e o fortalecimento da agricultura familiar, garantindo o direito ao trabalho para a população rural, através de uma mudança no atual modelo de desenvolvimento agrícola, excludente, predatório e concentrador de terra, renda e poder (JST, jun/jul., 2003, n.º 230 e 231).
E mais uma vez decidem o apoio à candidatura Lula. E, nesse contexto temos o
mesmo movimento de desqualificação, de desfavorecimento da luta pela terra, enfim do
mesmo deslocamento de sentidos para as ações do MST já mencionadas e realçadas no
capítulo 1 .
A recorrência desse enquadramento dos jornais já não representa novidade, senão
questionamentos.
50 Conflitos no campo – Brasil 2003, CPT.
87
No período que antecedeu as eleições o MST freqüentou as páginas do jornal FSP com
edições diárias dedicadas à avaliação das suas ações e comportamentos. Afinal, num contexto
bastante desfavorável para o governo e com um aliado histórico do Movimento disputando as
eleições, o perigo estava colocado. Nesse período temos a reiteração de um mesmo
enquadramento para as ações do MST. E um episódio bastante explorado pelo jornal FSP,
envolvendo a ocupação da fazenda do presidente FHC. São muitas as especulações em torno
dessa ação. Como havia há algum tempo uma forte tensão na região, especula-se que o
governo, para explorar a “radicalidade” do Movimento facilitou a ocupação da fazenda. Em
que pese a veracidade ou não disso, o certo é que os jornais estamparam em suas capas a
ocupação e a operação envolvendo o Exército e a Polícia Federal. Um dos editoriais da Folha
de São Paulo, no capítulo 1 (p. 54) merece uma leitura atenta nesse aspecto.
Conforme destacamos no capítulo 1 por meio dos títulos de algumas reportagens e dos
editoriais, esse período é muito rico no que chamamos de forma didática de narrar os fatos. Os
jornais e, principalmente a FSP, destacou, em suas reportagens sempre o que poderia
representar a aliança entre o PT e o MST. Entretanto isso não interferiu no resultado das
eleições para presidente e Lula foi eleito. Aí, vamos ter outro deslocamento no papel que o
jornal assumiu ao narrar as ações que envolviam as reivindicações do Movimento. Neste
cenário, outros deslocamentos, outras formas de enunciar um mesmo acontecimento, mas
agora como formas de pressão, como evidenciamos.
Nesta trajetória do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, de 1990 a abril
de 2004, o resultado importante a ser destacado é que o ciclo de suas reivindicações e de
protestos deflagrados nesse período ganhou notoriedade e se tornou um referencial
significativo para a classe trabalhadora. As marchas, as ocupações, os atos públicos, os
acampamentos etc, criaram, como bandeira a construção de uma identidade, em que a
ausência, a falta (ser “sem”) passou a ser referência para a maior parte dos movimentos e os
protestos que ressurgiram na cidade, a partir do final da década de 1990, mostram isso.
No processo de Luta pela Terra e pela Reforma Agrária, o MST forjou uma identidade
social, a de sem-terra, conferindo-lhe existência, estatuto político e um sentido de dignidade.
Nesse sentido, sem-terra é mais do que uma categoria social de trabalhadores que não tem
terra e emprego; é uma identidade que mostra uma memória e uma cultura de luta, de
contestação, de confronto.
Assim como afirma Thompson (1987, p. 09), “A classe operária não surgiu tal como o
sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se”, da mesma forma, os
trabalhadores rurais sem-terra fizeram-se ou se fazem sujeitos sociais com identidade e
88
consciência que lhes insere nos embates atuais. Ou seja, os trabalhadores organizados no
âmbito do MST não surgiram como sujeitos e categoria política dada, sua origem e
constituição são anteriores e constituem um processo em desenvolvimento. Através da
consolidação dessa identidade particular, de forma paradoxal, ele passou a enfeixar
retoricamente a ampla gama de marginalizados sociais, em nome dos quais articula, no
discurso e na prática, o questionamento do modelo de “modernização” implantado no Brasil.
O modelo concentrador/modernizador da agricultura, requalifica o perfil dos
trabalhadores rurais sem terra no Brasil, como salienta Thomaz Jr. (2001, p. 20):
A demanda por terra não se restringe tão somente aos trabalhadores que já têm ou que tiveram ligação com a terra, mas um conjunto diversificado de trabalhadores, ex-assalariados urbanos, engrossam as fileiras dos sem terra no Brasil, passam a compor os movimentos sociais afins e as frentes de luta pela terra, particularmente nas fileiras do MST, portanto, de modo geral, redefinem o perfil e o conteúdo societal do trabalho envolvido na luta pela terra.
Dessa forma podemos concluir que existem inúmeras facetas ou desdobramentos
oriundos do processo de reestruturação que tiveram rebatimentos para o universo do trabalho.
Esses desdobramentos trazem alguns elementos para a reflexão na reorganização territorial da
sociedade, isto é, a relação capital x trabalho.
As principais formas de atividade política empreendidas pelo MST realizam-se através
de pressão sobre o aparato de poder mediante mobilização coletiva e pública, em nome de
interesses coletivos, reivindicando direitos sociais. Ocupando fazendas e órgãos públicos,
acampando na beira das estradas e em praças públicas, realizando marchas, caminhadas e
realizando saques de alimentos, os sem-terra afirmam-se como sujeitos sociais, sujeitos de
direitos – embora direitos sempre negados. É através dessas ações coletivas, tidas como
transgressoras da ordem legal, que a identidade de sem-terra é estabelecida e o MST se
constitui como sujeito coletivo. Assim, de acordo com Fernandes (1996, p. 136) “O MST,
esse sujeito coletivo, se espacializa pela sua práxis, por meio da (re)produção das suas
experiências de luta”.
Impelir a demarcação consentida de ação política e a concordância em torno do
ordenamento jurídico-político da sociedade, buscando ao mesmo tempo conservar-se no
domínio de interlocução com os poderes constituídos supõe, por outro lado, a permanente
construção da legitimidade e o enfrentamento eficaz dos processos de deslegitimação
89
capitaneados pelas forças sociais oponentes ao propósito da reforma agrária. O embate
renova-se em todas as ações coletivas empreendidas pelo MST. A cada vez, recoloca-se a
necessidade de conciliação dos sentidos aparentemente contraditórios da pressão política, pela
ação.
2.5. Luta pela terra: movimento constituidor de sujeitos
No que se refere ao discurso evidenciado nos jornais OI e FSP, a dinâmica salientada
nos jornais, como mostramos no capítulo 1, se delineia a partir de ocupações e despejos. Não
se revelam as paisagens que, nesse processo de luta, vão sendo redesenhadas pelo
Movimento:
A luta pela terra na região do Pontal do Paranapanema está florescendo. A demonstração da seriedade dos trabalhadores rurais em tornar produtivas aquela imensidão de terras devolutas e latifúndios mal aproveitados já criou um grande respeito à sua luta. A atuação do MST nesta região começou há quatro anos e hoje mostra como uma tediosa paisagem de pastagens pode ser alterada através da persistência e do trabalho dos sem-terras. (JST, abr., 1994, nº 135, p. 2).
Assim, as paisagens da narrativa sobre o MST, no Pontal do Paranapanema, não são
silenciosas, mas são silenciadas pelos jornais. No entanto, quando se olha o entorno, percebe-
se as marcas; em todo lugar, há impressões digitais. As paisagens construídas trazem os sinais
daqueles que as possuem. Esses sinais são visíveis quando, num acampamento e num
assentamento, observamos seus arranjos espaciais.
Na organização dos lotes, dos barracos de lona, revela uma forma de organização
espacial e territorial, isto é, uma divisão do espaço. Na divisão do trabalho, na educação, na
distribuição e renda dos produtos, nas cores, nos instrumentos de trabalho e de luta, nos
símbolos religiosos e políticos, na solidariedade, na hierarquia, na memória da luta, nas fotos
dos heróis da luta (Che Guevara, Pe. Josimo, Oziel Alves, Madre Cristina), nas palavras de
ordem, nas vestes etc.
São sinais ou marcos simbólicos, assim como as manifestações em praça pública ou
centenas de homens e mulheres em marcha pelo território nacional. Em datas e locais
específicos (Marchas, Encontros etc), através de ações coletivas, valores sociais e políticos
são enunciados pelos sem-terra, constituindo modos de expressão e comunicação com a
sociedade mais abrangente, de legitimação de suas reivindicações e de embate político com
seus oponentes, o Estado e os grandes latifundiários:
90
Grito da Terra Brasil unifica as vozes dos trabalhadores rurais brasileiros na busca por sua cidadania (JST, mai., 1994, nº 136, p. 2). 17 de abril: protesto contra a impunidade e a injustiça: 17 de abril Dia Internacional de Luta Camponesa São Paulo: cerca de 4 mil trabalhadores sem terra, junto com outros setores da sociedade, se concentraram na Praça da Sé onde realizaram ato ecumênico pela vítimas de Eldorado do Carajás. Cerca de 60 homens da Tropa de Choque da PM tentaram impedir a manifestação usando bombas de gás lacrimogêneo, cães e cassetetes, no conflito vários manifestantes ficaram feridos (JST, mar., 1998, nº 178, p.2-3).
Assim, nas passeatas, nas marchas, nos bloqueios das rodovias, esses trabalhadores
delineiam paisagens que, portadoras de sentido não se revelam apenas como quadro onde se
estampa a trama das práticas sociais: configuram-se em representações de práticas sociais que
lhes dão um novo conteúdo. As paisagens construídas revelam sua estrutura social e
conformam lugares, territórios. As paisagens do trabalho e os territórios da Luta pela Terra.
Os acampamentos e os assentamentos são signos mais evidentes de reconhecimento
desse lugar. São marcas que revelam diferenças, desigualdades, acontecimentos e personagens
que fizeram e fazem a história desse lugar. Localizam tanto espacialmente quanto
historicamente. São símbolos que homens e mulheres erguem como testemunhas de sua
passagem e pertencimento a um lugar.
O lugar, nesse sentido, constitui a dimensão da existência que se manifesta por meio
de um cotidiano partilhado, dessa forma, tanto a cooperação quanto o conflito são alicerces da
vida em comum (SANTOS, 1997).
A idéia de lugar nos remete a reflexão de nossa relação com o mundo. Induz a análise
geográfica a uma outra dimensão - a da existência- "pois refere-se a um tratamento geográfico
do mundo vivido" (SANTOS, 1997, p. 32). Isto implica em compreender o lugar através de
nossas necessidades existenciais quais sejam, localização, posição, mobilidade, interação com
os objetos e/ou com as pessoas. Identifica-se esta perspectiva com a nossa corporeidade e, a
partir dela, o nosso estar no mundo, no caso, a partir do lugar como espaço de existência e
coexistência. Mas o lugar pode também ser trabalhado na perspectiva de um mundo vivido,
que leve em conta outras dimensões do espaço geográfico.
Para Santos (1997), o lugar expressa relações de ordem objetiva em articulação com
relações subjetivas, relações verticais resultado do poder hegemônico, imbricadas com
relações horizontais de coexistência e resistência. Daí a força do lugar. De acordo com Santos
(2002, p. 3), “(...), em outras palavras, a identidade do indivíduo realiza-se na construção da
91
identidade dos lugares, (...) a construção cultural da humanidade é, entre outras coisas, a
construção de sua geografia”.
Quando os trabalhadores rurais sem terra ocupam as estradas, seus registros na
paisagem – como passantes silenciados – são figuras estratégicas que, em meio ao asfalto,
carregando instrumentos de trabalho, atrapalham o trânsito e destoam da paisagem.
Da mesma forma os acampamentos na beira da estrada promovem rupturas com o
desejado. Eles não são estradas nem fazendas, estão entre a propriedade pública e a
propriedade privada. São terras de ninguém, mas são de todos e não disputam a categoria de
terra de trabalho ou terra de propriedade. Ao contrário, são espaços indisputáveis, logo
marginais. Por isso, apropriados pelos marginalizados que só aceitam estar ali porque não têm
outro lugar e não têm para onde voltar.
Este intervalo físico entre propriedades, que recebe os fugitivos da miséria é, no
entanto, também o intervalo entre o trabalhador sem-terra (desterritorializado) e o trabalhador
sem-terra em luta e que se transforma no lugar central da condução do movimento, tornando-o
visível ao passante e ameaçador ao proprietário. Instalando suas lonas nas margens das
rodovias, são famílias fora de lugar e constroem, conforme Fernandes (2003), “a Geografia
da beira das estradas”.
Dos campos, das cidades, das frentes dos palácios, os Sem-Terra, esse povo de beira de quase tudo, retiram suas lições e sementes da história. Assim, espremidos nessa geografia perdida que sobre entre as estradas, que é por onde passam os que têm para onde ir e as cercas, que é onde os que têm onde estar, os Sem-terra sabem o que fazer: plantam. E plantam porque sabem que terão apenas o almoço que puderem colher, como sabem que terão apenas o país que puderem conquistar (PINTO, 1996).
É uma referência num mapa que aos poucos vai sendo construído, vai sendo traçado
como um componente a mais no quadro cuja estampa reflete as paisagens geográficas das
desigualdades sociais. As bandeiras, os instrumentos de trabalho aos poucos vão construindo
nas estradas marcas que são impossíveis de não serem notadas. Eles transfiguram a ameaça.
Delineiam significados que até então eram silenciados.
É preciso fazer a paisagem falar, introduzir linguagem onde tudo é silêncio. Os
trabalhadores rurais, nas estradas, nos acampamentos, nas marchas, são aqueles que fazem a
paisagem falar, são aqueles que vão identificando lugares sem perfil ou os perfis do
desenvolvimento desigual. Morando em barracos de lona os trabalhadores enfrentam uma
rotina de vida precária:
92
Não queremos outra coisa que não seja a terra (A.O.F., acampada, OI, 04/10/95). Todo mundo está do lado da gente, querendo ver uma vitória que não será apenas da gente, mas de todo o país (W. G., OI, 04/02/96). A reforma agrária é uma guerra de todos (D.A. OI, 13/03/96); Temos de resgatar a dignidade do homem do campo (D.A.S, OI, 06/04/96). Não vou ganhar a terra, vou lutar por ela. Não estamos aqui de graça (L. J.N., 38 anos, acampado, JST, mar., 1999). Não se vê na cidade essa união, esse companheirismo, um ajudando o outro. Estou aprendendo a lutar por um ideal, tendo uma história pra contar” (L. S., 22 anos, acampado, JST, mar., 1999). Vou ter meu cantinho, meu pedacinho de terra para tocar a vida. Lá na cidade é só par moradia. Aqui é para plantar, para viver (G. M. N., 49 anos, acampada, JST, mar., 1999). Eu vou acampar pra pegar terra para sobreviver. E não tem que ficar com vergonha. Quem tem que ter vergonha é o governo que não faz a distribuição de renda e de terra (F. A. S., anos acampado, JST, mar., 1999).
São enunciados inscritos nas paisagens da Luta pela Terra e pela Reforma Agrária. Em
suas manifestações eles levam bandeiras, enxadas, foices. Enunciam discursos: políticos,
religiosos:
A realidade se constrói sonhando junto; Rebeldia necessária para fazer a reforma agrária!51; Queremos terra e liberdade e isso não se ganha, se conquista” (G.M., liderança, OI, 06/04/2004).
São palavras de ordem, de denúncia usadas no cotidiano da luta, a fim de fazer “ouvir”
as falas das desigualdades sociais, dos cenários da exclusão a que está submetida grande parte
da população brasileira:
Vamos mobilizar os sem-teto, os desempregados e todos que nos apóiam (J. R., liderança, FSP, 16/06/97); Uma das nossas lutas é contra a lentidão da máquina do governo (J. R., liderança, FSP, 13/06/97); Se o governo não der solução para os nossos problemas até lá, voltamos a fazer de tudo para alimentar nossas famílias (J. M. S., acampado, FSP, 07/08/97); Ocupação é um princípio e não uma proposta (J. R., liderança, OI, 04/10/95).
São falas inscritas na paisagem que vão desenhando o mapa de um longo processo de
exclusão: exclusão da possibilidade de viver na terra, exclusão da divisão do “bolo” da renda
51 Palavras de ordem pronunciadas pelos militantes do MST, em uma marcha realizada em abril de 2003 em Presidente Prudente.
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nacional, exclusão da infraestrutura social e dos direitos trabalhistas, exclusão dos frutos do
crescimento econômico, do sistema educativo.
A reconstrução do espaço e do tempo constituída pelos sujeitos sociais, isto é, a
reconstrução das apropriações e das idealizações a partir da memória relatada nos discursos,
permite reunir o que podemos chamar um espaço-desejo; - um espaço qualquer, abstrato, um
outro espaço potencial, as heterotopias, que, conforme Foucault (1986, p. 27)
[são] espaços criados que superpõem num lugar real vários espaços; (...) consiste em criar um espaço de ilusão que expõe todos os espaços reais, todos os lugares em que se divide a vida humana, (...) Ou então (...), um outro espaço real, tão perfeito, meticuloso e bem disposto quanto o nosso é desarrumado, mal construído e confuso.
As paisagens do tempo e do espaço tornaram-se então instrumentos para construírem,
além ou aquém da ordem produtiva já estabelecida guiada pelo capital, uma outra ordem
produtiva alternativa, sob forma de uma busca de realização de potencialidades deixadas
abertas e de onde as representações e as idealizações são uma maneira de dar sentido e
transformar o mundo das realidades cotidianas da Luta pela Terra.
A articulação do tempo e do espaço faz desembocar os conflitos do passado,
compondo o pano de fundo da Luta pela Terra52 em que o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, hoje, é um dos principais protagonistas. São recorrentes os conflitos pela
propriedade e posse da terra ao longo de todo o processo histórico-econômico brasileiro,
portanto, do longo processo de desterritorialização ao qual a figura do sem-terra remonta. Ou
como afirma Martins (1995 p. 17):
A história dos camponeses-posseiros é uma história de perambulação. A história dos camponeses-proprietários do sul é uma história de migrações. Há pouco mais de cem anos, foram trazidos da Europa para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Espírito Santo. Há pouco mais de trinta anos deslocaram-se para as regiões novas do Paraná. Hoje, o deslocamento do posseiro quanto o deslocamento do pequeno proprietário são determinados fundamentalmente pelo avanço do capital sobre a terra.
Portanto, o sem-terra será particularmente aquele destituído da propriedade da terra. A
questão agrária é a questão do capital e de suas leis no movimento orgânico da sua
territorialização. Dessa forma, o capital expropria e expulsa, e as lutas dos camponeses
52 São recorrentes os conflitos pela propriedade e posse da terra ao longo de todo o processo de povoamento do país. Guerra de Canudos (1897), Guerra do Contestado (1912-16), Cangaço (1926-38), Revolta de Porecatu (1950-51), Revolta de Trombas e Formoso (1948-64), revolta do Sudoeste do Paraná (1957), O Demônio no Catulé (1955), Ligas Camponesas (1955-64), entre outras. Com suas especificidades, todos tiveram em comum o final trágico de aniquilamento pelas forças governamentais.
94
adquirem uma dimensão estratégica contra o capital e ganham um forte sentido anticapitalista
(OLIVEIRA,1982).
A partir de sua fundação, na década de 1980, por meio da criação e recriação de
eventos coletivos de ação direta, o MST recolocou na agenda política brasileira o tema da
Reforma Agrária. Nesse processo forjou uma identidade social, sem-terra, conferindo
existência, dignidade e estatuto político aos despossuídos da sua condição de brasileiro. Para
além das divergências existentes entre os estudiosos da questão agrária no Brasil, análise que
não pretendemos desenvolver, pois escapa aos objetivos deste trabalho, a questão é que no
Brasil, hoje, há um sujeito social que participa ativamente da luta de classes, com sua
identidade: o Sem-terra.
Levando-se em conta as considerações já feitas, é possível dizer que o MST não surgiu
de um discurso aleatório. O Movimento nasceu das contradições sociais, isto é, a partir de
uma estrutura societária em que a grilagem de terras, a exploração do trabalho, da violência,
dos assassinatos no campo, das desigualdades e injustiças sociais são geradas pelo sistema
metabólico do capital. (THOMAZ JR, 2000).
O discurso do MST insere-se no quadro dos discursos sobre a função social da terra.
O seu sujeito é o trabalhador que não fica mais mudo nem mais repete as “evidências” que
promoveram, historicamente, a exclusão social do homem do campo. Possuindo um discurso
próprio, que consiste numa ruptura com o discurso do poder e das instituições, assume, agora,
uma voz, enquanto aquele que luta pelo acesso a terra, pela reforma agrária, que expõe outros
enunciados como novas evidências. Ao dizer, agora, que, como camponês tem direito à terra,
esse novo sujeito, o sem-terra, re-significa a “universalidade dos direitos”, prevista em lei
(Estatuto da Terra e Constituição, por mais questionáveis que estes instrumentos sejam).
Mais do que isso, o MST organiza-se enquanto um movimento de massa e incentiva as
ocupações:
Somente grandes mobilizações de massa colocarão esse governo contra a parede e arrecadarão as conquistas de melhores salários, terreno para moradia, terra para trabalhar e melhores condições de vida (JST, abr., 1991, nº 102, p.2).
Numa etapa posterior chama os trabalhadores do campo e da cidade:
Aliança operário-camponesa: Todos os nossos desafios devem ser vistos na perspectiva de um desafio maior na luta dos trabalhadores: a aliança entre o campo e a cidade. Urge começarmos a avançar do discurso e da boa vontade para ações concretas, lutas conjuntas e organizativas (JST, abr., 1990, nº 91, p. 3)
95
Greve geral: contra o governo e contra os patrões: os trabalhadores rurais deverão participar com todas suas forças nessa greve geral. Ocupando as cidades. Interrompendo as rodovias. Ocupando os bancos. E juntamente com os operários da cidade, parar a economia do país, que depende de nosso trabalho (JST, mai., 1991, nº 103, p.3).
Proclama, finalmente, o seu projeto, que é promover a mudança da ordem social, ou
seja, construir uma sociedade mais justa.
Luta sem trégua: A luta dos trabalhadores: Diante da política contrária aos interesses da classe dos trabalhadores, da repressão e do desgoverno do país, a classe trabalhadora tem mostrado sinais de solidariedade, apoio e decisão firme de lutar. (...)de lutar por uma sociedade mais justa (JST, set., 1991, nº 107/108 p.2)
Ora, a Reforma Agrária num país em que o latifúndio sempre representou o poder das
elites é um objeto-tabu. A questão da terra, desnuda todo um sistema de desigualdades e
privilégios e de leis que não se cumprem. Exigir a Reforma Agrária é exigir que o Estado
cumpra o que ele mesmo determinou em seu discurso como garantias universais a todo
cidadão (o Estatuto da terra prescreve a Reforma Agrária e a Constituição a confirma). Tabu
do objeto, diria Foucault (1999), parte da interdição da palavra, que compreende, também, o
ritual da circunstância e o direito privilegiado de quem fala. Que direitos tem os sem-terra de
exigir que se cumpra o que acham que a lei determina e de propor um projeto que distribua a
riqueza e renda, e diminua as diferenças sociais?
Sabe-se que o discurso é controlado, selecionado, organizado e redistribuído a partir
de determinados procedimentos que colocam em jogo seus poderes e perigos (Foucault,
1999). É preciso, então, controlar os discursos e sua distribuição quando representam qualquer
ameaça à permanência do poder instituído. Se não é possível ao discurso do poder calar um
sem-terra, é possível controlar seus dizeres e a distribuição de seu discurso, através de outros
processos de interdição. Como afirma Orlandi (1999, p. 66), os discursos do MST
(...) são uma ruptura no discurso político neoliberal, têm dificuldade de significar-se nessa margem em que muitos sentidos não podem fazer o sentido do político, onde as palavras como ‘movimento’ podem significar algo sujeito a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como ilegal.
O que funda, portanto, o discurso do sem-terra é a busca e a posse da terra. É fugindo
da miséria e buscando um lugar que lhe dê dignidade, através do trabalho, que ele chega. Esta
é uma porta de entrada à história do MST. Isto revela que esse camponês só o é pela posse da
terra e sua identidade se constrói por esta relação. Logo, este sujeito não detém aquilo que o
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qualifica como tal, ele não existe. É um sujeito desabitado de si, se permanecer isolado. Ao
ingressar no Movimento, conscientizando-se de sua falta, ele reencontra sua identidade de
sujeito que luta por aquilo que reconhece ser seu. No duplo sentido: terra que é sua e que lhe
sustenta, e terra que lhe permite (re)construir sua história. Ou seja, é a perda da identidade
juntamente com a perda da terra que moldam o movimento que se autodefine pela falta: eles
são sem-terra.
Quando os trabalhadores sem-terra “invadem” as cidades frustram a imagem idílica de
uma vida no campo tranqüila e feliz. E quando acampam nas margens das estradas destroem a
imagem do camponês, passivo e respeitoso, com enxada nos ombros, parando para acenar aos
motoristas com a mão direita. Ao perder a terra, perdem também a ingenuidade e a mansidão
e fazem, também, os urbanos perderem a ilusão de que ainda há algum lugar para viver em
paz (o campo).
O MST sabe, com mais ou menos certeza, que a Luta pela Terra e pela Reforma
Agrária não são, em si, notícia no Brasil. Por um lado, porque ela é a mesma há muitos anos
e, assim, não corresponde ao critério de novidade para ser notícia; por outro, porque não vai
ao encontro dos interesses dos que detêm o poder político e de seus representantes na mídia.
Por isso, o MST precisa “reinventar” sua luta. Se a questão da terra não é notícia, os
modos de reivindicá-las podem vir a ser. Se na sociedade contemporânea importa menos o
acontecimento do que sua projeção, é compreensível que um movimento social necessite
projetar-se para existir, justificando-se, assim, que busque estratégias para constar na pauta da
mídia. Como afirma Orlandi (2002, p. 21),
Os objetos simbólicos que estão envolvidos na formação de um país são de muitas e variadas naturezas. E é da produção desses objetos e da relação estabelecida pelos sujeitos com essa produção que resultam tanto os sentidos atribuídos ao país como os que dão sentido a esses sujeitos enquanto se definem como súditos, servos ou cidadãos, ou seja, enquanto eles se definem em relação à formação de “seu” país, nas formas que as políticas das relações sociais significar sua história.
Da mesma maneira é que vemos que na construção da identidade sem-terra um
paralelo dessa relação, isto é, na perspectiva discursiva, o sujeito ao significar, se significa, de
tal modo que podemos dizer que na construção desse pertencimento, dessa busca do direito de
Ser do MST, está estruturalmente ligada à constituição da forma histórica do sujeito
sociopolítico, que se define assim na relação com o território, com o lugar, com a busca de
pertencimento por meio da mobilização para a conquista da terra. Nesse sentido, os
97
acampamentos e os assentamentos são lugares de re-significação dessas identidades. São
lugares de visibilidade dos processos sociais, políticos, históricos e espacialmente constituídos
de identificação.
Procuramos, neste capítulo, reconstruir a paisagem da luta pela terra no Pontal do
Paranapanema, buscando evidenciar o contexto e as condições que propiciaram e explicam o
surgimento e a atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Nosso objetivo foi explicitar as diversas vozes que compõem os discursos do e sobre o
Movimento, salientando as condições de produção do discurso do MST, o que o discurso dos
jornais, na maior parte das vezes não mostra, ainda que seja pela imprensa que os sujeitos
ligados ao MST divulgam sua luta e suas idéias. Assim, temos o desenho territorial ou a
paisagem construída pelos trabalhadores e pelo MST enquanto organização social, os quais
juntos constroem o que os leitores não vêem, pois estão distanciados dos fatos que geraram a
notícia nos jornais.
No próximo capítulo, traçaremos os aportes teóricos que nortearão a parte analítica
deste trabalho. Discutiremos noções sobre o discurso para então situar o discurso sobre o
MST construído e produzido nos jornais O I e FSP, a partir de 1990.
99
Em seu processo de construção teórica e constituição de seu estatuto enquanto ciência,
a Geografia se consolidou por meio de discursos que se explicitam em seus quadros
conceituais. São saberes que ordenam, organizam e definem o espaço. Ao especificar a
natureza do discurso geográfico e suas formas de regulação tomamos como referência a idéia
segundo a qual toda e qualquer prática não é isolada de um espaço que a ordena e a regula. Ou
ainda, que o jogo de forças em qualquer situação histórica particular, torna-se possível no
interior mesmo das regulações espaciais pelo espaço que o define. Portanto, pensar, aqui, os
vínculos entre Geografia e discurso significa qualificá-los numa relação dialética em que
ambos se fazem e são interdependentes, isto é, o espaço não é neutro, mas socialmente
produzido.
Deste modo, ao tratarmos o discurso temos em vista que não é acontecimento isolado,
nem pode ser concebido fora de um espaço. A reflexão que pretendemos desenvolver ampara-
se na concepção de que se o espaço geográfico pode ser “lido” por meio dos conceitos de
paisagem, território, lugar, essa “leitura” só pode ser feita porque existe um conjunto de
enunciados que a tornou possível, que fez da Geografia um saber, uma ciência. Ou seja, foi a
partir de um conjunto de práticas discursivas, de constituição de saberes, que a Geografia se
institucionalizou.
Antes de iniciarmos nossa reflexão, um esclarecimento quanto ao uso que aqui
fazemos do termo discurso. Situamo-nos fora e, ao mesmo tempo, dentro dos estudos
lingüísticos, pois o nosso objeto de reflexões não é a materialidade lingüística, mas a
constituição dos discursos e a possibilidade de serem enunciados. Entretanto, só é possível
analisar os discursos porque eles têm uma existência material, isto é, eles contêm as regras da
língua, de um lado, e aquilo que foi efetivamente dito, de outro. Assim, essa concepção
distancia-se de um uso corrente na lingüística, na qual a preocupação é apenas com a estrutura
da linguagem. O termo discurso aqui está muito mais próximo do conteúdo e contexto da
linguagem, da qual a AD, de orientação francesa53, é tributária. A AD considera: a) as
instituições em que o discurso é produzido; b) os embates sociais que se consolidam nos
discursos; c) o espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior do
interdiscurso54 (BRANDÃO, 2002, p. 18).
53 Embora haja, atualmente, uma impossibilidade de tratar a análise do discurso como uma teoria homogênea. Muitos autores, e entre eles CHARAUDEU & MAINGUENEAU (2004), assinalam a diversidade desse campo de pesquisa. Algumas publicações após a morte de Pêcheux indicam três épocas em que seus pressupostos teóricos teriam sofrido modificações, principalmente questões relacionadas às suas concepções sobre o sujeito e o discurso. 54 Interdiscurso refere-se ao fato de um discurso não existir isolado de outro discurso, isto é, um discurso sempre existe em relação com outro discurso (ORLANDI, 1987).
100
Destarte, ao fazermos referência a discursos, nossa intenção é assinalar uma
preocupação não tanto com o que as palavras significam, mas com a forma como as palavras,
conjuntos de sentenças e práticas relacionadas funcionam ou expressam conteúdos sociais,
espaciais e territoriais.
Neste esforço de aproximação entre os conceitos geográficos, espaço e território e a
AD duas questões norteiam nosso trabalho: 1) pensar o discurso jornalístico enquanto uma
prática social que fundamenta, organiza, produz e reproduz noções que governam e controlam
o espaço, isto é, uma dinâmica espacial numa determinada formação social; 2) identificar no
discurso jornalístico, mecanismos que, controladores desse espaço, expressam, sustentam e
determinam territorialidades.
Para tanto nos aproximaremos de alguns autores, primeiramente Foucault, numa
leitura bastante específica e pontual, uma vez que suas idéias colocam diretrizes para a AD. É
sob a influência dos trabalhos de Foucault que um dos teóricos da AD, Michel Pêcheux,
elabora seus conceitos, principalmente o de “formação discursiva”, do qual se apropriará. Por
essa razão iniciaremos este capítulo com o desenvolvimento das idéias de Foucault sobre
enunciado e formações discursivas, as quais fundamentam o conceito de discurso.
Pêcheux (1997, p.32) apresenta uma crítica marxista da concepção foucaultiana do
discurso e conclui que há a necessidade “de uma apropriação do que o trabalho de Foucault
contém de materialista”, articulando a concepção foucaultiana de discurso a uma teoria
materialista do discurso.
Logo após, aproximamo-nos de Bakhtin, apropriando-nos da discussão sobre o papel
que o sujeito desempenha num processo discursivo. A noção de sujeito em Bakhtin é
fundamental, pois marcado espacial e temporalmente, o sujeito é essencialmente histórico.
Considera que sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado
tempo e, a essa concepção de sujeito, articula-se outra noção fundamental: a de sujeito
ideológico. Como ser projetado num tempo e num espaço e orientado socialmente, o sujeito
situa seu discurso em relação aos discursos do outro, caracterizando-se para Bakhtin o
conceito de dialogismo, o que leva à noção de heterogeneidade. Ou seja, o sujeito caracteriza-
se por um discurso heterogêneo que incorpora ou assume diferentes vozes sociais; o discurso
se tece num jogo de vozes, cruzadas, complementares, antagônicas e contraditórias.
Finalmente vinculamos o discurso aos conceitos e categorias geográficos como
espaço, território e lugar, passando-os em revista, tentando, a partir das discussões sobre estes,
estabelecer as aproximações/vinculações para o estudo do discurso jornalístico enquanto uma
prática social. Ao considerarmos o discurso jornalístico como uma prática social, temos em
101
conta que se o espaço é essencialmente a produção do homem a materialização das relações
sociais é o lugar, essa prática discursiva acontece num espaço produzindo territorialidades.
Avançando já o esquema do capítulo, nos propomos refletir teoricamente a interface
da AD, com a perspectiva geográfica, para que possamos apreender as práticas sociais, como
a da imprensa (prática discursiva) e seu discurso sobre a Luta pela Terra no Pontal do
Paranapanema, que constroem e medeiam as regulações que ordenam o espaço geográfico.
3.1. Enunciado, formações discursivas e discurso
Sabe-se desde Foucault (2001), que os sistemas de coerção têm duas formas: a de
discursos e a de instituições. Foucault assinala o fato de que nada do que dizemos pode ser
compreendido sem levar em conta as relações que um discurso mantém com outros discursos
que circulam em nossa sociedade a partir de certas práticas sociais espacialmente
identificadas.
Quem fala, fala de algum lugar determinado na instituição que o legitima e o autoriza.
Sustenta sua posição a partir de uma rede de referenciais teóricos, filosóficos ou políticos.
Situa-se em determinado momento histórico e fala sob determinadas condições físicas,
lingüísticas, geográficas, psicológicas e sociais. E o discurso se organiza sob determinadas
normas que fixam lugar para aquele que fala e visam controlar o acontecimento, o acaso.
Segundo a perspectiva de Foucault (2001) para analisar o discurso precisamos
abandonar as explicações e interpretações fáceis, além da busca de um sentido oculto das
coisas. É preciso ficar no plano da existência das palavras, das coisas ditas. E uma das
condições para que se possa trabalhar com o próprio discurso é tentar desprender-se de um
aprendizado que nos faz ver os discursos somente como um conjunto de signos, como
significantes que se referem a determinados conteúdos, carregando esse ou aquele significado,
dissimulando, ocultando conteúdos e representações, escondidos nos e pelos textos, não
imediatamente visíveis.
Para Foucault (2000) há enunciados55 e relações que são postos em funcionamento
pelo próprio discurso. Portanto, analisar o discurso nos exige levar em consideração as
relações históricas, as práticas sociais que estão presentes nos discursos.
55 Foucault (2000, p. 99) define enunciado como “(...) uma função de existência que pertence, exclusivamente aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que
102
Assim, é impossível enunciado que não esteja amparado em um conjunto de signos.
Entretanto, qualquer que seja a unidade que se apresente só constituirá sentido se puder
encontrar seu correlato no mundo imaginário. O correlato de um enunciado é um conjunto de
domínios em que tais objetos podem aparecer e em que tais relações podem ser assinaladas.
Num enunciado como este: “O timoneiro da baderna rural e seus seguidores já começaram a
ensaiar o espetáculo do desrespeito às leis com que ameaçam a sociedade”56, seguindo as
condições que Foucault (2000, p.12) descreve para que haja enunciado, temos:
1- a referência a algo que se pode identificar: o referente, no caso, a figura da liderança
do MST , Stédile, associada à violência e ameaça;
2- o fato de ter um sujeito, alguém que pode efetivamente afirmar aquilo: o editor do
jornal, mas muitos fazendeiros, latifundiários, ocupam o lugar de sujeito desse enunciado;
3- o fato de o enunciado não existir isolado, mas sempre em correlação (campo
associado) com outros enunciados: no caso, o discurso jurídico, ou de outros discursos e,
finalmente,
4- a materialidade do enunciado, as formas muito concretas com que ele aparece: em
textos do jornal, textos jurídicos em defesa da propriedade da terra, nas falas de proprietários
rurais, no governo etc., nas mais diferentes situações, em diferentes épocas57.
Apresentar ou descrever um enunciado na perspectiva foucaultiana é perceber essas
especificidades, é compreendê-lo como algo que surge num certo tempo, num certo lugar. O
que permitirá estabelecer uma organização para um emaranhado de enunciados é o fato de
eles pertencerem a uma formação discursiva (FD).
O conceito de FD em Foucault (2000) possibilitou a ele analisar como o saber vai se
constituindo a partir de práticas discursivas; como elas vão produzindo os saberes e como
cada formação discursiva constrói os objetos de que fala. Daí a necessidade de se descrever
essas formações discursivas, as quais se chega pelos enunciados que fazem parte do discurso
de uma época. Isto é, os objetos não pré-existem ao saber. Eles existem como acontecimentos,
como aquilo que uma época pôde dizer devido a certos arranjos entre o discurso e as
condições não-discursivas. Esses arranjos determinam as relações circunscritas nos discursos
e, por sua vez, as condições históricas para que apareça um objeto de discurso (SILVA, 2004).
cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço”. 56 Editorial do jornal Folha de São Paulo, publicado no dia 30/04/2004. 57 Basta acompanharmos, na introdução deste trabalho, os fragmentos de textos dos jornais, em 1964, 1985, 1994.
103
Delineadas as condições que Foucault analisou para caracterizar a função enunciativa,
pode-se afirmar que sempre que essas condições forem preenchidas (se numa frase ou
proposição tiver um referencial, um sujeito, um campo associado e uma materialidade) haverá
enunciado. O enunciado não é uma entidade gramatical restrita a orações, frases.
Como as relações entre enunciados são heterogêneas, Foucault (2000) trata as
formações discursivas como conjuntos de enunciados que mantêm uma regularidade (uma
ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), seja no domínio dos objetos,
em razão de um tipo definido de enunciação, com relação ao conjunto de conceitos ou em
função da permanência das escolhas temáticas.
Dessa forma, todo enunciado pertence a uma formação discursiva, que é considerada
por Foucault (2000) como o sistema enunciativo geral que funciona, para os enunciados,
como lei de coexistência. Depois de esclarecer os conceitos de enunciado e formação
discursiva, Foucault (2000, p. 135) define, assim, sua concepção de discurso:
Chamaremos de discursos um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.
O discurso é, então, uma prática social que se produz em relações de poder. Na análise
de Foucault, (2000, p.56),
(...) os “discursos”, tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras (...); (...) não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua; (...) analisando os próprios discursos, vemos desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias de uma prática discursiva (...).
Para Foucault (1979), o poder está em todo lugar, distribuído no interior das
instituições criadas pelos homens. Por isso ele não fala em ideologia determinando aquilo
que o sujeito pode e deve falar, mas em sistemas de interdição, em procedimentos, supressões
que tentam controlar a produção dos discursos na sociedade.
Em Foucault, tudo é prática e está imerso em relações de poder e saber, que por sua
vez estão reciprocamente implicados: enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e
ver estabelecem práticas sociais presas às relações de poder, que as supõem e as atualizam.
Desta forma, o discurso excede a referência a “coisas”, existe para além do simples emprego
104
de palavras e frases, não pode ser percebido como mera expressão de alguma coisa, já que
apresenta regularidades inerentes a si mesmas, a partir das quais é possível determinar uma
organização de conceitos que lhe é própria.
A noção de discurso está intimamente ligada à questão da constituição do sujeito. Os
discursos não são sustentados por qualquer sujeito. Para que o sujeito possa proferir um
discurso é preciso, antes, que lhe seja reconhecido o direito de falar, que ele possa falar de um
determinado lugar reconhecido pelas instituições, enfim que possua estatuto tal que o autorize
a falar de tal lugar; os sujeitos não estão na origem dos seus discursos. Foucault (2000, 2001),
considera que o discurso não é fruto de um sujeito que pensa e sabe o que quer. É o discurso
que determina o que este deve falar, é ele que estipula as modalidades enunciativas. Nesse
sentido, o sujeito não pré-existe ao discurso, ele é uma construção no discurso, sendo este um
feixe de relações que irá determinar o que dizer, quando e como (NAVARRO-BARBOSA,
2004).
Segundo Gregolin (2004, p. 59)
Para Foucault, o sujeito é resultado de uma produção que se dá no interior de espaço delimitado de três eixos da ontologia do presente (os eixos do ser-saber, do ser-poder e do ser-si). Dispositivos e suas técnicas de fabricação (como a disciplinaridade, por exemplo) constituem o que se entende como sujeito.
Acompanhando o pensamento de Foucault (2001) sobre o sujeito, considera-se que as
relações do sujeito são estabelecidas por meio de domínios de saber, do poder e da ética. Estes
domínios permitem ao sujeito considerar como ele se constitui enquanto sujeito e enquanto
saber, enquanto sujeito que exerce ou sofre relações de poder e enquanto sujeito de sua
própria ação. O sujeito tem acesso a si por meio de técnicas de produção, comunica-se por
meio de técnicas do sistema simbólico, conduz o governo de si e do outro por meio de
técnicas de relações de poder e estabelece técnicas para olhar a si mesmo.
Em função de ter integrado em seus estudos as práticas discursivas – tanto para a
compreensão da história dos saberes quanto para o estudo do poder e das técnicas de
subjetivação, Foucault desempenhou um papel fundamental na teorização da AD. Tanto que,
como veremos, suas propostas estão assentadas em muitas das formulações de Michel
Pêcheux.
105
3.2. Análise do Discurso, ideologia e sujeito
Michel Pêcheux, em 1969, publicou o livro A análise automática do discurso, mesmo
ano em que Foucault publicava A arqueologia do Saber, em que propunha um método para a
análise do discurso. Pêcheux vai desenvolver uma teoria materialista do discurso englobando
três áreas do conhecimento: o materialismo histórico, a lingüística e a teoria do discurso.
Para Pêcheux (1997, p. 91) “o sistema língua é o mesmo para o materialista e para o
idealista, para o revolucionário e para o reacionário”. Entretanto, não se pode concluir, a partir
daí, que estes tenham o mesmo discurso. A língua se apresenta assim, como “a base comum
de processos discursivos diferenciados”. Assim, a língua possibilita o discurso, pois é uma
espécie de invariante pressuposta por todas as condições de produção58 possíveis em um
momento histórico determinado e os processos discursivos constituem a fonte da produção
dos efeitos de sentido no discurso; a língua é o lugar material em que se realizam os efeitos de
sentido (PÊCHEUX, 1997).
O conceito de processo discursivo é elaborado a partir da noção foucaultiana de
sistema de formação compreendida como conjunto de regras discursivas que determinam a
existência dos objetos, conceitos, modalidades enunciativas, estratégias. Pêcheux tem como
preocupação registrar o processo discursivo em uma relação ideológica de classes, pois
reconhece, citando Balibar, que, se a língua é indiferente à divisão de classes sociais e à sua
luta, as classes sociais não o são em relação à língua, a qual utilizam de acordo com o campo
de seus antagonismos.
Uma das críticas que Pêcheux tece a Foucault reside no fato deste não ter, na sua
compreensão dos enunciados e da sua noção de formação discursiva, tratado de categorias
luta de classes. Pêcheux, comparando Althusser e Foucault mostra que, a despeito das
diferenças (ditadas pelas “aderências temporais”), estes coincidem teoricamente em alguns
pontos:
58As “condições de produção de um discurso”, as quais Pêcheux afirma, podem ser entendidas tanto como as determinações que caracterizam um processo discursivo – entendido como sistema de relações no interior de uma formação discursiva – quanto como as situações no sentido concreto e empírico do termo, que conduzem à superfície lingüística (isto é, o discurso em sua materialidade física), na produção de um discurso. É importante notar que as “condições de produção”, em relação as quais se define o discurso, podem ser relacionadas aos procedimentos de controle, organização, seleção e redistribuição do discurso, descritas por Foucault (2000), uma vez que, como assevera Pêcheux (1997, p. 82-83) “existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações). Acrescentamos que é bastante provável que esta correspondência não seja biunívoca, de modo que as diferenças de situação podem corresponder a uma mesma posição, e uma situação pode ser representada como várias posições, e isto não ao acaso, mas segundo leis que apenas uma investigação sociológica poderá revelar”.
106
a) sobre o funcionamento dos enunciados: as relações entre língua e o discurso, sendo a
primeira ligada ao campo das virtualidades, que não pode ser “desviado” e o segundo
ao universo do acontecimento, ligado à história e ao poder;
b) as relações entre enunciados: a “divisão do sentido”, a noção foucaultiana de
formação discursiva;
c) as relações entre o discurso e o sujeito: pensado como dispersão de lugares e não como
individual.
A diferença, segundo Pêcheux, está na ausência, em Foucault, da categoria marxista de
“contradição na luta de classes”. Tendo por base a compreensão de Althusser (1985) sobre as
condições ideológicas da reprodução/ transformação das relações de produção – e com
objetivo de salientar que não se tratava, apenas, de reprodução, mas de transformação,
buscaria evidenciar assim, o caráter contraditório de qualquer modo de produção que se
baseasse numa divisão em classes. Para ele, os aparelhos ideológicos são heterogêneos e,
nesse sentido: a) as ideologias não são impostas de forma homogênea; b) não se pode pensar
que cada classe possui sua ideologia como mundos separados; c) os Aparelhos Ideológicos de
Estado (AIE) não são puros instrumentos da ideologia dominante, mas resultado de uma
constante luta de classes (PÊCHEUX, 1997, p.144).
Assim, as condições ideológicas da reprodução/transformação são resultado das
relações de produção que são contraditórias e compostas pelo conjunto complexo de
aparelhos ideológicos que faz parte de uma formação social. O “conjunto complexo dos
aparelhos ideológicos mantém relações de contradição-desiguladade-subordinação entre seus
elementos” (PÊCHEUX, p. 145). É isso, segundo o autor, que vai explicar porque, a
ideologia, em sua materialidade concreta existe sob a forma de “formações ideológicas”
(referidas aos aparelhos ideológicos de Estado) que tem um caráter “regional” e comportam
posições de classe. Havendo, portanto contradição na reprodução/transformação, pois não tem
como se pensar a luta de classe “como oposição de duas forças que se exercem uma contra a
outra em um mesmo espaço” (PÊCHEUX, 1997, p. 147) (grifos do autor).
Na sua concepção materialista de discurso, Pêcheux (1997), vai examinar a proposta
de Althusser sobre a interpelação: “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”, uma
vez que: a) não existe prática a não ser por meio de uma ideologia e dentro dela; b) não existe
ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos. Pela tese da ideologia em geral (ALTHUSSER,
1985), é possível pensar o homem como “animal ideológico” e a história como “um imenso
107
sistema natural-humano em movimento e cujo motor é a luta de classes” (PÊCHEUX,
1997,152).
Sobre o domínio do discurso Pêcheux (1997) considera que, embora o sistema da
língua seja o mesmo para as pessoas com formações ideológicas59 distintas, os discursos por
elas formulados não o são. E sobre a tendência de se entender o discurso como oposição à
língua, abordando-o como uma maneira individual e “concreta” de habitar a “abstração” que é
a língua, Pêcheux (1997, p. 91) adverte que “a discursividade não é a fala (parole)”, no
sentido de que o processo discursivo “se inscreve num campo ideológico e não poderia ser
compreendido como uma atividade individual desvinculada dos sistemas sociais”.
O fato de que é possível encontrar regularidade entre fenômenos lingüísticos de
dimensão superior à frase e que sua análise não é integralmente lingüística são também pontos
de vista de Foucault (2000, p. 56) manifestos tanto no seu conceito de formação discursiva
como, por exemplo, quando se refere ao discurso: “Certamente os discursos são feitos de
signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse ‘mais’
que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”.
Pêcheux (1997, p.79) ao propor uma teoria para a AD afirma:
(...) é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção.
Nesse sentido, o discurso, objeto da AD, não é um conjunto de textos, é uma prática.
Para se encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os processos de sua
produção. Para Pêcheux (1997, p. 160), o discurso supõe uma formação discursiva, uma vez
que:
(...) o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc, não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).
Pêcheux se reporta às formações discursivas como sistemas de controle e organização
do discurso e considera que os elementos de uma formação podem constituir novas formações
59As formações ideológicas são “constituídas por um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas dizem respeito, mais ou menos diretamente, às posições de classe em conflito umas com as outras” (Haroche et al, apud BRANDÃO, 2002, p. 80). Cada formação ideológica pode compreender várias formações discursivas interligadas.
108
discursivas. As relações entre elas são, portanto, interdiscursivas, e todo discurso se acha
impregnado por essas relações.
Na ordem do discurso, as formações discursivas (FDs) representam as formações
ideológicas que lhes correspondem. É a FD que determina o que pode e deve ser dito, a partir
de uma posição dada numa conjuntura dada. O que significa que as palavras, expressões etc.
recebem seu sentido da FD na qual são produzidas. A FD é, segundo PÊCHEUX (1997, p.
132), o “lugar da construção de sentido”. O que corresponde a compreensão de que:
as palavras, expressões, proposições, etc. mudam de sentido segundo as posições mantidas por quem as empregam, o que significa que elas tomam seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem.
A FD, em correspondência com a formação ideológica (FI), define as condições de
exercício da função enunciativa. Ela é essencial porque permite (ao analista de discurso)
apreciar a forma de inscrição histórica pela qual a dispersão de textos pode ser definida como
um espaço de regularidades enunciativas (MAINGUENEAU, 1997).
Segundo Orlandi (1999, p. 108-109), “Na formação discursiva é que se constitui o
domínio do saber que funciona como um princípio de aceitabilidade de formulações (o que
pode e deve ser dito) e, ao mesmo tempo, como princípio de exclusão do não-formulável”.
É preciso salientar que a FD não funciona como uma máquina lógica. É, segundo
Orlandi (1999, p. 109), “uma unidade dividida, uma heterogeneidade em relação a si mesma.
Há um deslocamento contínuo em suas fronteiras, em função das ‘jogadas’ da luta ideológica,
dos confrontos político-sociais”.
Assim, uma FD não é imóvel, nem fechada em si mesma. Cada FD define-se em
relação com várias outras formações, em sua articulação contraditória com a ideologia. Ao
considerarmos o exemplo abaixo:
1. Abraçar uma causa
2. Assumir uma responsabilidade
3. Reivindicar o acesso a terra
Numa situação em que o sujeito deve fazer uma opção frente a um projeto, ao usar
uma ou outra das possibilidades acima, estará definindo diferentes relações com a ideologia,
ou seja, estará inscrevendo seu dizer em uma ou outra formação discursiva, as quais por sua
vez se confrontam, se relacionam, na produção de sentidos. Por isso, o que define o sujeito na
109
AD é o lugar do qual ele fala em relação aos diferentes lugares de uma formação social. Para
compreender o sentido de cada uma das construções acima é preciso pensar sua relação com
as demais. Assim, poderíamos dizer que a diferença de sentido está em que 1 remete a
sentidos matizados pela ordem do discurso religioso, do discurso filantrópico e do discurso
político; 2 ao jurídico, mas também aos sentidos produzidos pelo discurso religioso, e 3 ao
político. Estas diferenças significam e dizem respeito tanto ao sujeito quanto aos sentidos que
são produzidos.
Há as “condições de produção” de um enunciado, ou seja, a relação da seqüência
discursiva com o sujeito e com a situação, relação dos interlocutores com a ideologia numa
conjuntura histórica dada, e há as “condições de formação” da FD específica em que se
inscreve o enunciado – a constituição do saber próprio e essa FD, na dependência do
interdiscurso (o repetível).
É por meio da transparência do sentido do discurso, que a formação discursiva
dissimula sua dependência do interdiscurso (conjunto de formações discursivas com a qual se
relaciona). O interdiscurso segundo Orlandi (1999, p. 18) é considerado como a relação de
sentido, isto é, “todo discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu
futuro discursivo)”.
A noção de interdiscurso surge, então, para assinalar o “exterior específico” de uma
FD que irrompe no interior dela mesma. Ao se colocar a relação da FD com seu exterior, vê-
se obrigado a reconhecer como elementos importantes a serem considerados na análise de
uma FD, “os pontos de confronto polêmico nas fronteiras internas da FD, as zonas
atravessadas por uma série de efeitos discursivos, tematizados como efeitos de ambigüidade
ideológica, de divisão, de resposta pronta e de réplicas ‘estratégicas’” (PÊCHEUX, 1983, p.
58).
O conceito de FD “é concebido como o resultado paradoxal da irrupção de um ‘além’
exterior e anterior” (PÊCHEUX, 1983, p. 58). O sujeito do discurso é concebido como puro
efeito de assujeitamento ao dispositivo da FD com o qual ele se identifica. É um sujeito que
opera em dois níveis:
a) num nível inconsciente, ideológico, em que o sujeito “esquece”, “apaga” a formação
discursiva que serve de matéria prima representacional para a segunda. O sujeito coloca-se
110
como origem daquilo que diz, a fonte exclusiva do sentido de seu discurso – o sujeito tem a
ilusão de que é criador absoluto de seu discurso (Esquecimento60 nº 1).
b) num nível pré-consciente o sujeito elege algumas formas lingüísticas e “esquece” outras e
produz, assim, a ilusão de que o discurso reflete a realidade. Ao formular o discurso,
necessariamente operamos uma seleção e compomos uma formulação possível para o que
pretendemos dizer. Evidentemente que o que foi escolhido se encontra em relação íntima com
a opção rejeitada. Dizemos isto e não aquilo. Ou pretendemos dizer isto para lembrar aquilo
(Esquecimento nº 2).
Essa é uma das dimensões em que se revela “a interpelação do indivíduo em sujeito
como sujeito ideológico” (ALTHUSSER, 1985). Essa interpelação ideológica consiste em
fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas ao contrário, tenha a
impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos
grupos ou classes de uma determinada formação social.
Constituindo o discurso um dos aspectos materiais da ideologia, pode-se afirmar, de
acordo com Pêcheux (1997), que o discurso é uma espécie pertencente ao gênero ideológico.
A ideologia é um mecanismo através do qual coloca-se para o sujeito, conforme as posições
sociais que ocupa, um dizer já dado, um sentido que lhe parece como evidente, isto é, natural
para ele enunciar daquele lugar. O sujeito imagina-se fonte do dizer; da mesma forma, parece-
lhe natural ocupar a posição social em que se encontra. O funcionamento ideológico provoca
as ilusões descritas: apaga-se para o sujeito o fato de ele entrar nessas práticas discursivas já
existentes.
A noção de sujeito em Pêcheux é, portanto, determinada pela posição, pelo lugar de
onde se fala. E ele fala do interior de uma determinada formação discursiva, regrada, regulada
por uma formação ideológica.
Em outras palavras, as formações ideológicas, como acentuamos anteriormente, têm
necessariamente como um dos seus componentes uma ou várias formações discursivas
interligadas. Ou seja, as formações discursivas são formações componentes das formações
ideológicas e determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição e conjuntura
dadas. São as formações discursivas que, em uma formação ideológica específica e, levando
em conta uma relação de classe, determinam “o que pode e deve ser dito” a partir de uma
conjuntura dada.
60 Pêcheux (1999, p. 183) esclarece em nota; “o termo ‘esquecimento’ não está designando aqui a perda de alguma coisa que se tenha um dia sabido, como se fala de ‘perda de memória’, mas o acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito”.
111
A formação discursiva é, enfim, o lugar da constituição do sentido e da identificação
do sujeito. É nela que o sujeito se reconhece em sua relação consigo mesmo e com outros
sujeitos. O discurso em AD é seu objeto teórico, cuja unidade analítica e empírica é o texto;
daí porque um dos seus conceitos chaves ser o de ideologia, já que o texto é um dos aspectos
materiais da ideologia.
Um sujeito que se desdobra em vários papéis segundo as várias posições que ocupa
numa FD – que é atravessada por várias FDs – a ilusão subjetiva da unidade, da origem,
constitui uma “ilusão necessária” para a manutenção da identidade. Identidade cujo
fechamento é colocado em causa pelo reconhecimento da alteridade que irrompe no interior
de um sujeito marcado pela dispersão das várias posições que assume no seu discurso. Aqui
se inaugura uma nova fase da AD, cada vez mais dominada por uma nova preocupação: a
heterogeneidade discursiva.
Pêcheux, aqui, se aproximou de Jaqueline Authier que, a partir de Bakhtin, coloca em
evidência as rupturas no “fio do discurso”, mostrando o aparecimento de um discurso outro
no próprio discurso. Assim, AD é norteada pelo primado teórico do outro sobre o mesmo. As
idéias de Foucault impõem-se a partir daqui, numa leitura “sem filtro” (MALDIDIER, 1990)
que leva à análise da singularidade do acontecimento discursivo.
Denise Maldidier em A inquietação do discurso: reler Michel Pêcheux, hoje61, na
apresentação intitulada (Re)Ler Michel Pêcheux, hoje, historiciza o percurso de M. Pêcheux,
dividindo-o em três grandes momentos: 1) o das grandes construções, em que tinha como base
os postulados althusserianos, tendo construído um dispositivo teórico-analítico de análise
automática do discurso; 2) depois o dos “tateamentos” em que, com a crise do marxismo, revê
muitos dos seus posicionamentos e se propõe a ‘quebrar o estranho espelho da Análise do
Discurso”; e, 3) o da “desconstrução domesticada”, em que aproximando-se de Foucault e
Lacan, tenta precisar os limites entre descrição e interpretação, vendo o discurso na sua
estrutura e no seu acontecimento62.
Esse deslocamento teórico vai acarretar uma mudança metodológica: preconiza-se
agora o primado heterogeneidade tanto como categoria conceitual quanto em relação ao
61 Tradução de Eni P. Orlandi, Maldidier, D. A inquietação do discurso: (Re)ler Michel Pêcheux, hoje. Campinas: Pontes, 2003. 62 Denise Maldidier (1990, p.16), afirma que “O projeto de M. Pêcheux nasceu na conjuntura dos anos de 1960, sob o signo da articulação entre a lingüística, o materialismo histórico e a psicanálise. Ele, progressivamente, o amadureceu,, explicitou, retificou. Seu percurso encontra em cheio a virada da conjuntura teórica que se avolumara na França a partir de 1975. Crítica da teoria e das coerências globalizantes, desestabilização das positividades de um lado. Retorno do sujeito, derivas na direção do vivido e do indivíduo, de outro. (...) Nesse novo contexto, Michel Pêcheux tentou, até o limite do possível, re-pensar tudo o que o discurso, enquanto conceito ligado a um dispositivo, designava para ele”.
112
corpus: adotando-se a formação discursiva no interior da heterogeneidade ela deixa de referir-
se a um exterior ideológico e passa a ser buscada na dispersão dos lugares enunciativos do
sujeito. A noção de formação discursiva, de Pêcheux, que era muito fechada, passa a ser
considerada, a partir de Foucault, como “fronteiras que se deslocam” (COURTINE, 1981). Da
mesma forma que, partindo do conceito foucaultiano de “campos associativos”, Courtine
desenvolve a noção central de “memória discursiva”. A partir de 1980, apoiando-se em
Foucault e Bakhtin, os trabalhos da AD enfocarão a “discursividade”.
Pêcheux propõe tratar, primeiro, do “estatuto social da memória como condição de seu
funcionamento discursivo na produção e interpretação textual”, em que se percebe claramente
a vinculação às formulações de Bakhtin e também de teóricos da “nova história”63. A
memória é entendida enquanto “um conjunto complexo, pré-existente e exterior ao
organismo, constituído por uma série de ‘tecidos de índices legíveis’, que constitui um corpo
sócio-histórico de traços” (PÊCHEUX, 1999, p.55).
A incorporação de novos temas, levados a partir dessas redefinições, como
heterogeneidade, alteridade (presença do discurso do outro), as relações entre intradiscurso e
interdiscurso e as confluências do pensamento pecheutiano com Foucault, Bakhtin e a “Nova
História” definem os caminhos da AD a partir de então.
Pêcheux que, como afirmamos anteriormente, havia feito uma apropriação da noção
foucaultiana de formação discursiva dando-lhe uma interpretação à luz das teses marxistas e
althusserianas, que incluía a noção de luta de classes64, faz uma revisão deste conceito, antes
considerado como “aquilo que pode e deve ser dito, articulado sob a forma de uma arenga, um
sermão, de um panfleto, de um programa etc., a partir de uma posição dada, em uma
conjuntura dada” (HAROCHE & PÊCHEUX 1990, p. 43). A partir dessa conceituação,
Pêcheux e Fuchs (1990, p. 169), acrescentam:
É este fato de toda seqüência pertencer necessariamente a uma formação discursiva para que seja dotada de sentido que se acha recalcado para o (ou pelo?) sujeito recoberto para este último, pela ilusão de estar na fonte do sentido, sob a forma da retomada pelo sujeito de um sentido universal preexistente...
63 Historiadores como Phillipe Áries, Pierre Nora, Jacques Legoff e ‘historiadores do discurso’ como J. Guilhamou, Régine Robin, Denise Maldidier etc. Ver a esse respeito GREGOLIN, 2004. 64 O conceito de Foucault, lido a partir de um ponto de vista althusseriano passa a ser “aquilo que se pode e se deve dizer (...) a partir de uma posição dada e de uma conjuntura dada pelo estado das lutas ideológicas de classe” (PÊCHEUX, 1975).
113
Sem ter domínio sobre o que fala, afetado pela memória e pelos discursos,
institucional ou não, o sujeito ao falar tem a ilusão de sua enunciação como única e, conforme
os autores, todo sentido nasce de outro e aponta para alguma direção: os sentidos migram
entre as regiões constitutivas das FDs. Uma FD, portanto, deve ser considerada como “uma
unidade dividida, uma heterogeneidade com relação a si mesma” (COURTINE, 1982, p. 245).
Nesta caracterização de FDs, em que suas fronteiras estão sempre “em processo de
estabilização e desestabilização, encontra-se a tensão constitutiva dos processos de produção
de sentidos” (MARIANI, 1999, p. 32), que se realiza na oposição entre o mesmo e o diferente,
a repetição e a diferença na repetição , pois toda FD é invadida por outros sentidos vindos de
outras FDs, como resultado das interferência do interdiscurso, na forma de pré-construídos e
“saberes” partilhados socialmente, cuja historicidade se apaga para o sujeito (MARIANI,
1999).
A noção de interdiscurso leva à relação entre memória e discurso. Toda produção
discursiva que se efetua sob determinadas condições de uma dada conjuntura, faz circular
formulações já enunciadas. Para a AD, a noção de memória discursiva diz respeito à
existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas reguladas por aparelhos
ideológicos: como certos enunciados estão na origem de atos novos, como são retomados ou
transformados, qual a força de sua permanência.
A memória, então pode ser interpretada como a reatualização de acontecimentos e
práticas passadas em um dado momento (presente) de diferentes formas de textualização (por
exemplo, produção literária, jornalística), na história de uma formação ou grupo social.
Pensar, portanto, discursivamente a memória é analisar as formas conflituosas de inscrição da
historicidade nos processos de significação da linguagem. O que nos remete a Foucault e a
noção de acontecimento enquanto “lugar do irracional, do impensável, daquilo que não entra e
não pode entrar na mecânica e no jogo da análise, pelo menos na forma que tomaram no
estruturalismo” (FOUCAULT, 1979, p. 4).
Com relação à ideologia, de acordo com Pêcheux esta deve ser pensada de uma forma
mais ampla. Tanto no seu sentido de falseamento e mascaramento da realidade como numa
visão mais ampla. E aqui nos aproximamos de Bakhtin65 que, ao conceber a linguagem como
interação social, considera a enunciação determinada não só pela situação social mais
65 É, também, a partir de Bakhtin que a AD vai considerar, para sua análise a noção de gênero de discurso, o que admite considerar, ao invés de um discurso, mas vários discursos. A AD quando surge considerava como corpora apenas os grandes discursos políticos. Em seu reordenamento a questão dos discursos comuns, do cotidiano, passam a ser levados em conta como objeto de análise. Daí a tipologia dos discursos sugerida por Orlandi (1999) e Maingueneau (1997).
114
imediata (os enunciadores, o tempo, o espaço da enunciação etc.), mas também pelo meio
social mais amplo (pressões sociais a que estão submetidos os interlocutores, ou o conjunto
das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística).
A enunciação é produto da interação social. Somente no instante do ato físico da
materialidade da palavra o locutor é dono da palavra. A palavra é sua propriedade inalienável.
No entanto, a palavra, enquanto ato puramente físico, não é signo. Se considerarmos a
materialização da palavra como signo, então a própria realização deste signo social na
enunciação concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais. A palavra constitui o
produto da interação do locutor e do ouvinte, podendo-se dizer, portanto, que a
constitutividade da subjetividade se dá pela enunciação que é social.
Essa visão da linguagem como interação social, em que o Outro desempenha papel
fundamental na constituição da significação, integra todo ato de enunciação individual num
contexto mais amplo, revelando as relações entre o lingüístico e o social. O movimento que o
indivíduo faz da elaboração mental do conteúdo a ser expresso– a enunciação – é orientado
socialmente, buscando adaptar-se ao contexto do ato da fala e, sobretudo, a interlocutores
concretos. Em outras palavras, o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão,
não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o sujeito.
O sujeito da linguagem não é um sujeito em si, idealizado, essencial; ele é ao mesmo
tempo falante e falado, no sentido de que através dele outros ditos se dizem. Aqui aparece a
idéia do conflito, da pluralidade de vozes que se enfrentam nos discursos. É a concepção de
dialogia de Bakhtin, na qual fica entendido que há inúmeras vozes falando num mesmo
discurso, ou porque o indivíduo está ali presente, ou porque o discurso se refere a outros
discursos.
Nesse sentido, o dialogismo é a condição de existência do discurso, e é duplo: ao
mesmo tempo em que é lei do discurso constituir-se de “já-ditos” de outros discursos (as
palavras são sempre, inevitavelmente, “as palavras de outrem”), o discurso não existe
independentemente daquele a quem é endereçado, o que implica que a visão do destinatário é
incorporada e determinante no processo de produção do discurso.
Segundo Fiorin (1997, p. 230) “não se pode pensar o dialogismo em termos de
relações lógicas ou semânticas, pois o que é diálogo no discurso são posições de sujeitos
sociais, são pontos de vista acerca da realidade”.
Esse diálogo está ‘ancorado’ na pluralidade do discurso que representa as relações
dialéticas entre as diferentes forças sociais. Como se pode observar, o Outro pode estar
representado pelos demais enunciados com os quais o discurso dialoga, sugerindo, assim, que
115
o sentido se constrói em relação ao conjunto de formulações que constituem seu campo
associado, como descreve Foucault (2000). Trata-se de uma forma dialógica, vista sob o
prisma da intertextualidade entre enunciados. Isto é, os discursos se relacionam com outros
discursos, no sentido em que outros discursos estão presentes nele, em escalas variadas,
podendo ser reconhecidos ou não.
Assim, ancorando-nos em Foucault e Pêcheux para pensar o discurso jornalístico e sua
prática num espaço, buscando a relação dos textos dos jornais com os funcionamentos
discursivos que constituem os diferentes tipos de discursos (com suas propriedades), será
possível dizer que um tipo de discurso como o jornalístico é constituído de uma pluralidade
de textos que, por sua vez são marcados por formações discursivas (FD) diferentes, as quais
são produzidas por formações ideológicas diferentes (FI). Em enunciados como estes – “As
invasões de terra são uma ameaça para a democracia” e “Sem reforma agrária não há
democracia”, a construção dos sentidos para democracia tem significados distintos;
pertencem a formações discursivas diferentes, produzem discursos diferentes. O que equivale
a afirmar que o sentido dos enunciados em questão somente é dado na sua relação com a
formação discursiva a que pertence. Como já o dissemos, aquele que fala o faz de um lugar
determinado, que regula o seu dizer. Todo discurso remete à formação discursiva a que
pertence, sendo regido por essa prática.
Cada texto tem, assim, uma unidade discursiva com que ele se inscreve em um tipo de
discurso determinado. Então, no discurso jornalístico, temos textos da formação discursiva x,
outros da formação discursiva y etc., sem esquecer, portanto, que essa unidade textual,
constituída enquanto dominância resulta, ela mesma, de um efeito discursivo.
Apoiando-nos na concepção bakhtiniana de linguagem que, pensada enquanto
discurso, não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de
comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação e um
modo de produção social; ela não é neutra e nem natural, por isso o espaço privilegiado da
ideologia. Como elemento de mediação necessário entre o homem e sua realidade e como
forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é espaço de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade uma vez que os processos que a
constituem são históricos, sociais, geográficos etc.
Há, ainda uma outra questão que devemos abordar: ao discutirmos, até aqui, a relação
sujeito e discurso ou o sujeito enquanto efeito discursivo, precisamos situar a noção de
subjetividade, até porque esta tem raízes antigas; sempre preocupou os filósofos e, como os
116
estudos de linguagem nasceram a partir de suas reflexões, faremos uma passagem breve e
esquemática, para situá-la em relação aos estudos da AD.
3.3. Subjetividade, representação e sujeito
Chaui (1976) afirma que o pensamento contemporâneo contesta um certo conceito e
uso de subjetividade. Segundo Chaui (1976 p. 18),
Os filósofos sempre exigiram um ponto fixo como condição inicial do pensamento, ponto fixo capaz de dar conta da existência das coisas, dos homens e da totalidade do conhecimento de ambos. Para o filósofo grego este ponto fixo é o Ser, princípio de existência e da intelegibilidade do real. O conhecimento aparece como um desvelamento do Ser na sua inteligibilidade, de sorte que o ato de conhecer é um re-conhecer (ou lembrar, como diz Platão) o sentido já inscrito nas próprias coisas por essa força produtora originária que é o Ser.
O ato de conhecer para o filósofo grego era um ato de reconhecimento. O Ser tinha
uma existência autônoma em relação reconhecimento, isto é, não cabia ao homem a
construção do saber e sim a função de reconhecimento, deslocando a unidade do Ser para fora
do mundo; as idéias eram inatas, as verdades eram eternas, criação divina. Deus é o único que
cria, ao homem cabia apenas a imitação. Aqui não havia, segundo Chaui, a exigência da
subjetividade como processo de produção da verdade, havendo, portanto só reconhecimento.
A autora afirma, ainda que o que vai caracterizar o aparecimento da subjetividade na filosofia
é o deslocamento do ponto fixo do Ser para a consciência. Afirma Chaui (1976. p. 19), que a
consciência,
É uma capacidade, (...), um poder de síntese, uma atividade que reconhece ou que produz, a partir de si mesma, o sentido do real, pela produção de idéias ou conceitos dos objetos e dos estados interiores; estas atividades epistemológicas e esse poder definem aquilo que a filosofia denomina Sujeito.
Assim, o ponto fixo situado no Ser, fora do homem, passa para o interior. É, segundo a
autora, “o cogito ergo sum”, o “eu penso, logo existo” de Descartes, tendo como ponto de
partida e referência o homem interior, ou seja, a subjetividade. O ser que eu sou capta o ato de
pensar. A verdade não é somente reconhecida, mas é produzida pelo homem nesse processo
de percepção de si mesmo. É dessa forma que a filosofia da subjetividade “erige a consciência
como a primeira certeza fundadora de todas as outras” (CHAUI, 1976, p.19).
117
Sob a égide do cartesianismo, o nascimento da subjetividade, terá implicações na
transformação do conhecimento sobre a realidade. A realidade não é mais algo que se
manifesta e que se deixa desvelar àquele que conhece, mas que possui uma inteligibilidade
que lhe é conferida pelo sujeito que conhece. Há, então, uma separação entre sujeito e objeto,
vistos agora como interdependentes. Considerado como exterioridade, o objeto passa ser algo
que é representado por um sujeito que lhe atribui sentido. A noção de representação é uma
operação em que “o sujeito se apropria do objeto, de algo que lhe é heterogêneo e,
convertendo-o em idéia, torna-o homogêneo à consciência” (CHAUI, 1976, p. 21).
A separação entre sujeito e objeto é a primeira das operações de separação realizada
pela representação, idéia que será criticada por Hegel (CHAUI, 1976), porque recusa, como
condição da verdade e da realidade, a contradição. Para essa noção, o contraditório é sinônimo
de irreal sendo, portanto, impensável enquanto forma de entendimento. A noção de
representação não admite a contradição, pois pressupõe que o entendimento opera
classificando, compartimentando, dividindo o real (princípio da identidade), segmentando o
real, impedindo que os contraditórios não se “misturem”. Essa operação separadora realizada
pelo entendimento classificatório é comandada pelo desejo da transparência e da identidade
das coisas. Para Hegel, conforme Chaui (1976, p. 20), a realidade é pura contradição:
(...) o real é constituído por realidades que se negam inteiramente uma às outras, e essa negação ou contradição é que produz o movimento próprio do real. O real é processo. É história. É dialética: negação interna dos contraditórios de cuja luta uma realidade nasce.
Assim, na leitura de Chaui, Hegel faz uma crítica à concepção de subjetividade,
atrelada à noção de representação. O ponto fixo, agora é substituído pela dialética. A
subjetividade está na relação de oposição que o Ser mantém com o outro e não na identidade,
e essa relação é contraditória, ocasionando uma ruptura na concepção de subjetividade como
fundante do conhecimento. Essa ruptura se aprofundaria com as questões de Marx sobre a
práxis histórica e sobre a ideologia, bem como sobre o inconsciente de Freud.
Foucault (2002. p. 8) também vai criticar essa noção de subjetividade formulada pelo
cartesianismo, para quem:
as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. Assim (...) se pode formar, no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora
118
da regra, saber (...) que nasceu das práticas sociais (...). (...) este saber se não impôs a um sujeito de conhecimento, (...) mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento.
Assim, subjetividade não emerge com a noção de representação, mas com a noção de
homem. “A subjetividade só pôde nascer quando o ser humano passou a ser reconhecido
como dotado de características que o distinguem da natureza” (CHAUI, 1976, p. 20), ou seja,
capacidade de apropriar-se da natureza pelo trabalho, a capacidade de simbolizar e de fazer
uso da linguagem. Para Foucault, essa concepção de subjetividade só vai se dar a partir do
século XIX.
Se o homem se distingue de outros elementos da natureza pela capacidade de
linguagem, Foucault vai estudar o homem em suas diferentes práticas discursivas, analisando
a constituição da subjetividade e é aí que vai contestar uma concepção de sujeito enquanto
instância fundadora da linguagem. Concebe o discurso como um campo de regularidades em
que diversas posições de subjetividade podem se manifestar. Assim, o discurso se caracteriza
não pela unidade do sujeito e sim por sua dispersão, uma vez que este assume várias posições
no discurso.
Qual é a relação entre linguagem e representação? Ao responder a esta questão,
Brandão (1997) salienta, fazendo um percurso a partir da epistemologia moderna em oposição
ao paradigma clássico66, que há uma forma de ver a língua, em que saindo do lugar da função
representativa do real, livre, pois, de uma concepção centrada na capacidade de exprimir
representações, obtém uma densidade e passa a ser revelada em suas características próprias.
O sujeito passa a ocupar uma posição privilegiada uma vez que a verdade é algo que
se manifesta não mais a partir de uma força interna, mas algo que é representado por um
sujeito que lhe dá sentido. Há um deslocamento da noção de representação como centro da
verdade para se vincular à subjetividade; esta que se constitui na e pela linguagem: é porque
constitui o sujeito que a linguagem pode representar o mundo; por falar, apropriar-me da
linguagem, instauro minha subjetividade e é enquanto sujeito constituído pela linguagem que
posso falar, representar o mundo. (ORLANDI, 1998, BRANDÃO, 1997). Essa concepção de
representação vai dar a base para a construção da noção de representação social.
66 As reflexões sobre a subjetividade na linguagem também herdaram da filosofia cartesiana a noção de representação, tendo duas tendências. Uma que, positivista, cartesiana via a língua enquanto representação do real. Esta tinha como suporte as condições de verdade do enunciado. Esta, mobilizando o conceito de verdade preocupava-se com as formas de representação do real e não com o papel do sujeito. A outra tendência, moderna, desloca a função representativa do real e a língua passa adquire espessura própria, livre das amarras que a prendiam a uma concepção centrada na capacidade de exprimir representações. O sujeito, nessa tendência ocupa uma posição privilegiada (BRANDÃO, 1998).
119
Utilizando-se da linguagem os indivíduos explicitam o que pensam, como percebem
determinada situação, que opinião formulam sobre determinado objeto, fato, que expectativas
desenvolvem a respeito disto ou daquilo e assim por diante. Essas mensagens mediadas pela
linguagem são construídas socialmente e estão, necessariamente, ancoradas no âmbito da
situação real e concreta dos indivíduos que as emitem. Segundo Jodelet (1985) a sociedade
fala, mas o indivíduo emite o discurso, o que permite pensar o subjetivo/individual e voltar ao
campo do geral e do objetivo, num movimento dialético.
As representações sociais, segundo Peluso (2003) fazem parte da realidade material e
mental dos indivíduos, uma vez que estas permitem que um objeto tenha sua concreticidade
tanto em nível de pensamento quanto em nível de materialidade. Entretanto, não é só a
materialidade do objeto que justifica a representação do mesmo e, sim, que ao elaborar
mentalmente o pensamento sobre um objeto os indivíduos trazem aí embutido idéias, valores
e crenças.
Assim, as representações podem ser pensadas “como processos, mediando o espaço
real e os grupos sociais, entre a percepção e a prática” (KOZEL, 2002, p. 229). Nesse sentido,
a relação proposta é de que as representações são construções pela linguagem, portanto, fruto
da comunicação. São historicamente construídas e vincula-se aos diferentes grupos
socioeconômicos, culturais etc, que as expressam por meio de mensagens que se refletem nas
diferentes práticas sociais (FRANCO 2004).
Feito esse percurso sobre discurso e Análise do Discurso passemos aos conceitos e
categorias geográficos, os quais nos permitirão situar esse estudo no âmbito da análise
espacial.
120
3.4. Espaço, discurso e território
Ao longo da história da Geografia, espaço geográfico foi concebido de muitas
maneiras, no entanto, não é nosso objetivo retomar essa discussão. Tomamos como referência
para nossos objetivos, o conceito expresso por Milton Santos (1997) no qual o espaço
geográfico constitui "um sistema de objetos e um sistema de ações", isto é, o espaço
entendido como resultado das formas como os homens organizam sua vida e suas formas de
produção.
David Harvey (l980) em seu livro Justiça Social e a Cidade, discute o espaço sob
outro ponto de vista. Para Harvey o espaço é ao mesmo tempo, absoluto (com existência
material), relativo (como relação entre objetos) e relacional (espaço que contém e que está
contido nos objetos). Desta forma, "o objeto existe somente na medida em que contém e
representa dentro de si próprio as relações com outros objetos".
Para este autor, o espaço não é nem um, nem outro em si mesmo, podendo
transformar-se em um ou outro, dependendo das circunstâncias. Milton Santos (1985) vai se
referir a esta categoria dizendo: "o espaço é acumulação desigual de tempos". O que significa
conceber espaço como heranças, isto é, num mesmo espaço coabitam tempos diferentes,
tempos tecnológicos diferentes, resultando daí inserções diferentes do lugar no sistema ou na
rede mundial (mundo globalizado), bem como resultando diferentes ritmos e coexistências
nos lugares. Constituindo estas diferentes formas de coexistir, materializações diversas, por
conseqüência espaço(s) geográfico(s) carregado(s) de heranças e de novas possibilidades.
Smith (1988, p. 110), considera o espaço geográfico “como o espaço da atividade
humana” e, de acordo com o autor, tudo o que ação humana realiza pode ser considerado
enquanto espaço geográfico, o espaço é socialmente produzido e é intensamente
hierarquizado (classes, raças, gênero etc.) o que vai configurá-lo enquanto uma diferenciação
política dinâmica e multifacetada. Essa hierarquização ou este arranjo espacial segundo
Moreira (1996, p. 35) “exprime o ‘modo de socialização’ da natureza. (...) Tal o modo de
produção tal será o espaço geográfico”.
Aqui, nos parece, podemos vincular o discurso, pois se estamos entendendo-o
enquanto prática social que se organiza no espaço e “o espaço e a organização política do
espaço expressam as relações sociais” (SOJA, 1993, p. 103), significa que expresso enquanto
prática, o discurso tem uma dimensão espacial e tem materialidade nos lugares. Quando o
discurso jornalístico qualifica os trabalhadores como “invasores”, “baderneiros”, “quadrilha”,
entre outras denominações, essa forma de qualificá-los tem desdobramentos nos lugares, ou
121
seja, na forma do leitor significar o trabalhador e a luta pela terra. De acordo com Thomaz Jr
(2002) as reflexões dos/nos lugares não se limitam ao visível e ao imediato, ou seja, as
práticas sociais desenvolvem-se e reproduzem-se nos lugares. E, como afirma Soja (1993, p.
101):
O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes ao ser vivo, exatamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo.
Nesse sentido, o discurso surge de uma prática social pré-estabelecida, com regras,
estratégias, e comportamentos ordenados e controlados, por meio dos quais se produzem
mecanismos e técnicas de dominação que resultam nas formas de organização ou arranjos
sócio-espaciais.
Milton Santos (1987) utiliza-se do conceito de formação sócio-espacial para explicar o
fato de que uma sociedade apenas adquire concreticidade por meio do espaço – espaço
produzido por ela – e sendo assim, o espaço só pode ser compreendido por meio da sociedade.
A formação sócio-espacial é um aprofundamento da categoria formação social, produzida
“por um agente que utiliza, constitui, organiza e transforma o território” (GOMES, 1996, p.
298). Se a formação social tem no espaço sua face empírica, então “uma sociedade só se torna
concreta através de seu espaço; e o espaço só é inteligível através da sociedade” (CORREA,
1995, p. 28). Nesse sentido (Santos apud CORRÊA, 1996, p. 31) afirma que:
Se a idéia de sociedade em geral é abandonada em favor de determinações específicas que tornam a sociedade concreta (formação social), pode ser verificado que sem o espaço estas determinações específicas permanecerão mero potencial, uma simples vocação. Tornam-se realidade através do espaço e no espaço.
Acreditamos que a concepção de discurso que estamos trabalhando assume um papel
importante nesse aspecto tanto no que se refere à gestão e o controle do território quanto à
formatação sócio-espacial daí derivados. Pois, ao mesmo tempo em que o discurso vai
constituindo-se enquanto mais um elemento organizador do espaço, as formas sócio-espaciais
são afetadas por essa relação; o discurso é um dispositivo que se articula com a estrutura
socioeconômica já que não é externo à sociedade, mas a constitui, ou ainda, é parte do próprio
processo através do qual a sociedade se institui enquanto comunidade política, social e
econômica.
122
Da mesma forma que o espaço é concebido enquanto lócus da reprodução das relações
sociais de produção (LEFÈBVRE, 1976, p. 74) também o discurso faz parte desse processo.
Segundo Santos (1977, p.5) “Os modos de produção tornam-se concretos numa base
territorial determinada (...) as formas espaciais constituem uma linguagem dos modos de
produção”. Portanto, é possível vislumbrar, na diferenciação espacial, os efeitos de discursos
que impactam diretamente a construção do espaço, modificando-o ou preservando-o em suas
formas e arranjos espaciais. Ou conforme Moreira, (1996, p. 38):
O arranjo espacial geográfico é a expressão fenomênica do ‘modo de socialização’ da natureza e dos termos de sua configuração em formação econômico-social. Por esta razão, o espaço organizado é uma formação sócio-espacial. Como a formação econômico-social, a formação sócio-espacial encerra complexa trama: toda a complexa trama da formação econômico-social de que é expressão fenomênica.
Afirma, ainda Moreira (p.38) que, “é a estrutura econômica da formação econômico-
social que determina a organização espacial, mas é a conjuntura política que comanda seus
movimentos (processos e formas)”. Nestes termos, o espaço geográfico não poderia ser
considerado socialmente produzido senão a partir de práticas sociais e, entre elas o discurso,
tal como o estamos concebendo e relacionando-o como um dos elementos da produção do
espaço.
Desta forma, os lugares são atravessados e organizados pelos discursos os quais dão a
estes as formas assumidas pelas relações econômicas, culturais, sociais vigentes no interior de
uma dada formação sócio-espacial.
Os discursos produzem as geografias dos lugares, as geografias das ações e resultam
para os lugares ordenações. Atravessam os lugares e dão visibilidade aos processos sociais,
políticos, históricos e ideologicamente construídos. É desta perspectiva que o discurso produz
uma ordenação e comportamentos também ordenados que levam a diferentes formas de
controle que são organizadores de espaços.
Sob o conceito de território, tratamos o espaço geográfico a partir de uma concepção
que privilegia o político ou a dominação-apropriação. Quando o espaço é dominado e
apropriado pelo homem, o espaço torna-se território. Assim, o território resulta das
possibilidades, resulta da ação humana em um jogo distante de seu fim. Por isso o território é
um trunfo nas mãos de quem o detém e representa possibilidades para quem não o detém,
como aos sem terra. Nesse sentido, o território pode ser interpretado, de acordo com Oliveira
123
(1999, p.74), como “um produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no
processo de produção de sua existência”.
Souza (1995, p. 87) assinala que “territórios, que são no fundo antes relações sociais
projetadas no espaço que espaços concretos (...)”. O autor também salienta que os territórios
existem e que não há nenhuma lei que determine que eles sejam uns justapostos aos outros.
Ao contrário, dependendo dos tipos de territorialidades, vários territórios podem, inclusive,
superpor-se sem nenhuma ordem prévia e, tampouco, nenhum deles tem obrigação de fazer
coincidir o tamanho de sua área com outro qualquer que esteja sobreposto, além da
possibilidade de serem móveis. Segundo ele “o território é fundamentalmente um espaço
definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (SOUZA, 1995, p. 79, grifos do
autor).
Para este autor, “territórios são no fundo relações sociais projetadas no espaço” (p.
87). O espaço geográfico resulta, portanto, das relações sociais e suas materializações. Os
territórios são uma fração desse espaço, no qual determinados agentes sociais se relacionam
com o intuito de reproduzí-lo segundo seus interesses. Os territórios apropriados e
reproduzidos segundo certos processos de gestão, implementados por um agente hegemônico
específico, registram e apresentam características determinadas por esse agente.
E, de acordo com Moreira (2002, p. 22), “o espaço é o plano mais amplo da estrutura
invisível da sociedade” e o território “é a expressão de domínio de uma relação ou de um
corpo”.
Esta flexibilização do conceito permite tratar de territorialidades como expressão da
coexistência de grupos, por vezes num mesmo espaço físico em tempos diferentes. Nestas
territorialidades, a apropriação se faz pelo domínio de território, não só para a produção e para
a circulação de uma mercadoria, mas também, com todas as características naturais e as
socialmente construídas, resultam de relações sociais desenvolvidas entre os diferentes
agentes, mediadas pelas relações de poder e projetadas numa dada porção de espaço
geográfico, que se torna território.
Deste modo, o território ganha uma identidade, não em si mesma, mas na coletividade
que nele vive e o produz. O território é um todo concreto, mas, ao mesmo tempo, flexível,
dinâmico e contraditório, com possibilidades que só se concretizam quando impressas e
espacializadas no próprio território. O território é a produção humana a partir da apropriação e
dominação e uso dos recursos que dão condições a nossa existência.Ou conforme Correa
(1996, p. 32)
124
A ação humana, que gera a organização do espaço, isto é, que origina forma, movimento e, conteúdo da natureza social sobre o espaço, é caracterizada, (...) pela ação de atores que, ao se apropriarem e controlarem os recursos (...) tornam-se capazes de impor sua marca sobre o espaço. (grifo do autor)
Não resta dúvida, então, de que não é possível habitar no mundo sem algum tipo de
ancoragem territorial, de inserção no local, já que é no lugar, no território, que se desenrola a
corporeidade da vida cotidiana. A linguagem – materializada no discurso – aparece, portanto,
como parte da dinâmica geográfica, isto é, das territorializações, (des)territorializações e
(re)territorializações que acarretam mudanças e deslocamentos no espaço e no território. É
desta perspectiva que estamos relacionando espaço, discurso e território. Por essa razão
podemos perguntar: De que lugar fala o MST? Quais discursos representam? Qual o lugar da
imprensa e quais discursos representam?
As palavras que se materializam nos discursos estão ancoradas em um ponto que
determina o lugar de sua produção. O lugar a partir do qual o jornalista fala, determina aquilo
que ele fala. Podemos, então, entender o discurso como uma prática social que expressa
conteúdos territoriais, no caso o território do MST, seja nos assentamentos seja nos
acampamentos na beira das estradas, nas ocupações de prédios públicos, nas marchas,
caminhadas etc.
Nesse caso, é perceber neste espaço a existência de relações de poder, os arranjos
espaciais que dão sentido à realidade. Portanto, não podemos negligenciar que por trás dessa
realidade há uma dinâmica territorial que produz e reproduz o espaço geográfico. O espaço é
veículo dessa dinâmica, na medida em que uma dinâmica territorial cria espaços
determinados, entretanto, para além de uma configuração meramente física há uma trama de
relações entre grupos sociais que delineiam identidades com o espaço que ocupam, criam
formas de apropriação e lutam pela ocupação e pela preservação de seus territórios.
125
3.5. A dimensão espacial do discurso
Dissemos, anteriormente que o espaço, de acordo com Lefébvre (1976) é concebido
enquanto lócus da reprodução das relações de produção. Dissemos, também, apoiados em
Milton Santos (1977) que uma sociedade só se concretiza por meio do espaço, o qual é
produzido por ela, sendo que este só pode ser compreendido por meio daquela. Assim,
podemos “ler” o espaço tanto por sua condição de apropriação quanto de domínio,
entendendo que ambos vão se configurar numa dinâmica territorial em que são reproduzidas
as relações sociais.
De posse destas considerações é que podemos falar em práticas sociais e, dentre estas,
uma específica, o discurso. Ao estabelecermos como premissa que o espaço pode ser fonte e
condição indispensável para a constituição dos discursos e, portanto, para a constituição de
grupos sociais, é natural que haja, nesse espaço disputas que vão se configurar em controle e
domínio de territórios. Sendo assim, importa num espaço ou numa organização sócio-
espacial, tanto sua produção material quanto sua produção simbólico-discursiva, já que o
homem não é isolável nem de seus produtos (cultura), nem da natureza. Se assim é, o estudo
da linguagem não pode ser apartado da sociedade que a produz. Os processos que entram em
jogo na constituição da linguagem são processos históricos, geográficos e sociais. A AD tem
na sua proposta uma adequação a estas nossas afirmações, já que no discurso constatamos o
modo social de produção da linguagem. Ou seja, o discurso é um objeto, cuja especificidade
está em sua materialidade que é lingüística, histórica, geográfica e social.
Embora o discurso não seja considerado uma unidade retórica, há uma materialidade
enunciativa que torna o discurso um objeto empírico: examinando a linguagem – o que foi
dito – sem a intenção de buscar verdades ocultas, revelações, mas perguntando-se de que
maneira a linguagem é produzida e o que determina a existência daquele enunciado; em
outras palavras, mapear os “ditos”, multiplicando as relações que podem ser sugeridas nessa
relação.
O fato de o discurso manifestar-se e constituir-se espacialmente, permite-nos mapeá-lo
enquanto “ditos” e sentidos produzidos a partir de determinadas condições de produção;
portanto, os discursos se concretizam em arranjos e padrões de organização social e territorial.
Os discursos não são produzidos num vácuo. O discurso expressa o modo como está
organizada a sociedade. A forma como os homens se relacionam, as relações sociais, as
práticas sociais fazem juntas o ‘tecido’ da sociedade e o discurso é o resultado da
representação do entendimento do homem acerca dessa organização social.
126
Os quadros teóricos da Geografia, como dissemos, nos diferentes períodos,
manifestam-se como discursos plenos de conteúdos políticos, já que conquista, fronteira,
organização e exploração do espaço são questões políticas. Então, as relações entre espaço,
discurso e território estão inseridas nas relações entre espaço e poder, uma vez que o
desenvolvimento do capitalismo afeta a política dos espaços, com intensidades e maneiras
diferentes. As relações entre espaço, discurso, território acontecem de maneiras e em escalas
variadas, sendo que para compreendê-las é necessário, não apenas enfatizar a produção e
reprodução do espaço como, também, a materialização dos discursos na sociedade capitalista.
Qual a importância, então, do conceito de discurso, como um conjunto de enunciados
que remetem a uma formação discursiva, para pensarmos a relação entre MST e imprensa?
Dado que cada um de nós nasce num mundo em que os discursos já estão circulando há muito
tempo, nós não nos tornamos sujeitos desses discursos?
Para tentar responder essas questões consideramos uma variedade de discursos que
circulam socialmente. Cada um constituindo um espaço de regularidades associadas a certas
condições de produção: o discurso científico, o discurso religioso, o discurso literário, o
discurso médico, o discurso da propaganda, o discurso jornalístico etc. Os discursos não estão
ancorados em nenhum lugar, mas se distribuem difusamente pelo tecido social, pelo território,
pelo espaço, de modo a marcar o pensamento de cada época, em cada lugar e, a partir daí,
construir territorialidades.
Para finalizar, retomemos o percurso que fizemos até aqui:
a) numa primeira parte, num esforço de harmonizar nosso discurso, buscamos situar a noção
de discurso desenvolvida por Foucault percorrendo rapidamente sua “arqueologia”, discutindo
seus conceitos de enunciado, formação discursiva e discurso. Guardaremos sua concepção de
discurso considerada como uma prática que deriva da formação de saberes, como o espaço em
que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar e discurso como gerador
de poder que se faz a partir de determinadas regras, de procedimentos e de controle. Nesse
sentido, o discurso jornalístico é uma prática discursiva que, ao enunciar o Movimento o faz a
partir de determinadas regras em que estão presentes procedimentos de controle.
O conceito de prática discursiva de Foucault, não se refere a expressão de idéias,
pensamentos ou formulações de frases. Exercer uma prática discursiva significa falar a partir
de determinadas regras e mostrar as relações que se dão num discurso. Quando o jornal, a
imprensa, se apropria do discurso da ordem, da lei, para falar das ações do MST, fala e faz
falar esse discurso, fala e faz falar um discurso a partir de suas regras que fixaram enunciados
sobre a figura do trabalhador rural – ameaçador, desordeiro.
127
b) de Pêcheux as concepções de formação discursiva (FD), tanto porque este autor se
aproxima de Foucault no que se refere à consideração de que a linguagem dos jornais é um
discurso, isto é, uma prática social, portanto ela se faz a partir de determinadas regras,
procedimentos e das condições de produção, como também para pensarmos que na forma dos
jornais enunciar o Movimento há o predomínio de uma formação discursiva hegemônica a
qual atua mobilizando formações ideológicas e sentidos para a Luta pela Terra e reforma
agrária. Mas, também as condições de produção que fizeram o Movimento aparecer no
discurso dos jornais evidenciam que há o confronto de formações discursivas e ideológicas
que se fazem presentes, tornando o espaço, um espaço de disputas de formações discursivas
distintas.
c) discutimos também a noção de que a linguagem, enquanto discurso não constitui
um universo de signos que serve de instrumento de comunicação ou suporte do pensamento: a
linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra,
inocente e nem natural, por isso o espaço privilegiado de manifestação da ideologia. A
linguagem é espaço de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser concebida fora da
sociedade uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais. Também nos
apoiaremos na noção de dialogia de Bakhtin, por entendermos que nos discursos dos jornais
há outras vozes que se fazem presentes e que disputam um espaço. Assim, essa é uma das
entradas que escolhemos para discutir o MST nos jornais.
Serão objetos de análise os discursos produzidos e as contradições sociais que tem, na
concentração da propriedade da terra, nos grandes latifúndios, grilos de terra e que não são
evidenciados pelos jornais, os quais mostram a face visível do sistema capitalista e das
desigualdades sociais e geográficas. Se os jornais demonstram o rosto das contradições
sociais, essa forma de demonstrar nos indica que os rebatimentos dessa luta na disputa do
território têm seu projeto de classe mais que evidenciado.
No próximo capítulo, vamos refletir sobre o conflito existente no discurso da
imprensa. Mais especificamente, pretendemos evidenciar o confronto de formações
discursivas (FDs) antagônicas presente no discurso jornalístico. Indicando ao mesmo tempo
um sentido dominante e um dominado, e mostrando que o discurso não irrompe livremente,
como fruto da vontade ou da escolha do sujeito. Há certa inscrição desse sujeito aprisionado,
(pelo que diz) e tal assujeitamento é afetado pela ideologia, que disponibiliza certas zonas de
sentido como permitidas e outras como proibidas para o sujeito. Essa determinação ideológica
materializa, na superfície lingüística, as marcas ou pistas de seu funcionamento que atuam nos
128
discursos veiculados na imprensa sobre o MST, refletindo sobre o conflito existente no
discurso da imprensa.
Evidenciaremos que no discurso da imprensa, as vozes que se fazem presentes não
atuam em uníssono, ou seja, estão presentes, também outras vozes que se fazem ouvir, seja
por meio dos enunciadores dos jornais, empresários, jornalistas, articulista, enfim sujeitos que
enunciam de um determinado lugar, o qual determina seu discurso.
A partir do material empírico colhido nos textos dos jornais, lançamos mão do suporte
teórico da AD para evidenciar que, fundamentalmente, os enunciados do discurso jornalísticos
têm que ver com um jogo complexo de posições e retomadas de discursos. Estas posições e
retomadas fazem com que certos textos produzam – ou ponham em funcionamento – mais
conexões que outros; como textos se relacionam com outros textos, e todos eles com uma
conjuntura que não é estável, uniforme, mas contraditória e heterogênea.
Pretendemos mostrar com a análise é que existe um movimento contínuo que
constitui os sentidos e os sujeitos em suas identidades na história. Mas pretende-se mostrar,
sobretudo, que essa construção de sentidos se dá a partir de uma formação discursiva
hegemônica que acentua o sujeito da luta pela terra como um inimigo a combater e que
evidencia uma paisagem hegemônica. A análise apontará ainda para a heterogeneidade
constitutiva do discurso jornalístico-político sobre o MST, formado por outros discursos:
discurso jurídico, discurso moral, discurso do cotidiano.
131
Atualmente não se pode negar a atuação da imprensa (e também da mídia, em geral)
em situações em que ocorre a tomada de decisões políticas. Se, até hoje, a imprensa se
posiciona como um veículo neutro e imparcial, também, hoje, ela assume seu lado
interpretativo e cada jornal acaba por tomar uma direção política. Embora não possamos
afirmar que esta seja autônoma e totalmente responsável pela forma como produz as notícias.
Afirmar isso seria negar seu caráter institucional enquanto prática discursiva.
O funcionamento do discurso jornalístico introduz o imprevisto (no sentido de que não
há registro ou memória) ou possível/previsível (isto é, fatos sobre o que se pode falar alguma
coisa, pois têm semelhança com outros acontecimentos ocorridos), em uma ordenação,
organizando filiações de sentidos possíveis para o acontecimento não apenas em termos de
uma memória, mas também no que respeita aos desdobramentos futuros. Para isso os jornais
nomeiam, explicam, facilitam a leitura (para o leitor) daquilo que fala, criando, nesse
processo, a ilusão de significação entre as causas e as conseqüências dos fatos ocorridos
(MARIANI, 1998).
O discurso jornalístico pode ser considerado uma modalidade de discurso sobre, e seu
efeito mais imediato é tornar objeto aquilo sobre o que fala. Segundo Orlandi (1990, p. 37),
“O discurso sobre é um lugar importante para organizar as diferentes vozes dos discursos de
(...) [O discurso sobre] organiza, disciplina a memória e a reduz”. A autora, discutindo o
“discurso da seriedade”, também evidencia a relevância que a utilização do ‘discurso sobre’
confere a quem o enuncia. Ao mesmo tempo, não é de qualquer lugar que se pode ‘falar
sobre’.
Nesse aspecto, então, o sujeito enunciador produz um distanciamento – o jornalista
cria a ilusão ou imagem de imparcialidade – marcando a diferença entre o que é falado,
portanto, podendo formular opiniões, juízos de valor etc, pois não tem proximidade e
envolvimento com o fato.
A produção de sentidos na notícia dos fatos acontece a partir de um jogo de influências
e de impressões dos jornalistas, dos leitores e da linha editorial-política dominante do jornal.
Entretanto, há eventos políticos feitos para se imporem como notícia. E, nesse caso, a
imprensa acaba sendo um veículo usado por determinados grupos para ter visibilidade. O
MST adotou esta estratégia, pois sabe que a Luta pela Terra e pela reforma agrária não são em
si notícias, isto é, não correspondem ao critério de novidade para estar na pauta da mídia, até
porque é a mesma há muito tempo67.
67 É por isso que o MST precisa sempre “reinventar” sua luta, fazendo da questão da terra e dos modos de reivindica-la, notícia.
132
Retomando, o discurso jornalístico68 funciona como uma forma de institucionalização
de sentidos e, em decorrência disso contribui na constituição de uma representação e
cristalização de uma memória do passado. No caso específico do MST isso fica evidenciado
uma vez que o seu espaço discursivo, na imprensa de referência, foi sendo construído por
meio de denominações, as quais levam à construção de uma representação anacrônica sobre
ele. E, não havendo espaço para o discurso do MST, os sentidos da formação discursiva (FD)
dominante se instala e se dissemina mais facilmente, se não há espaço para confrontos, o
poder discursivo dos jornais torna-se mais contundente. Veremos que os sentidos sobre o
MST vão aparecendo como se estivessem distantes entre si, mas que vão ganhando densidade
tanto pela repetição quanto pelas críticas nítidas, muitas vezes encobertas por meio de
explicações.
Nesse capítulo, à luz do capítulo 1, nos propomos analisar os enunciados para o MST
no discurso jornalístico, veiculados nos jornais O Imparcial e Folha de São Paulo.
4.1. Na radicalidade do MST a construção de sentidos e territorialidades
Conforme discutimos no capítulo 3, os enunciados presentes no discurso jornalístico
evidenciaria uma FD dominante para o MST. Lembramos que um enunciado nunca está
sozinho, a sua existência supõe outros aos quais está relacionado. Os enunciados surgem de
uma relação com as práticas sociais, histórica e geograficamente contextualizadas. O que
equivale a dizer que não é um indivíduo usando a língua sozinho, ou seja, criando enunciados
inexistentes. É na relação espaço-temporal que surge um (ou vários) enunciado(s)
constituindo o acontecimento social-histórico-geográfico, por isso sua repetibilidade, sua
característica de atuar no nível do interdiscurso. E isso não é evidente para o sujeito. Assim, a
enunciação é, sobretudo relativa à posição que o sujeito ocupa em determinado lugar e seu
produto, o enunciado, se encontra perpassado pela memória e também pela atualidade.
Esta relação da memória do já-dito significa a reatualização de sentidos produzidos em
outras formações discursivas na forma de recuperação e retomada de enunciados que já
existem no momento da enunciação. E é nessa retomada que existe a possibilidade de haver
um deslocamento de sentidos, caracterizando a repetição de um mesmo enunciado na
produção de um outro sentido. Por meio dos enunciados, das palavras e textos se percebe a
68 Referimo-nos a discurso jornalístico, o que pode causar a impressão de generalização, mas como já salientamos, as abordagens de um ou outro jornal, quando o tema é MST, dificilmente ou fundamentalmente não diferem entre si.
133
remissão das enunciações e permite que se veja, em sua historicidade, a materialidade dos
sentidos. Assim, sujeito que enuncia é deslocado e o processo passa a ser a relação entre
textos diferentes e já enunciados. A preocupação, portanto, incide sobre a materialidade
textual, afetada pelo histórico-ideológico que faz com que os sentidos produzidos se tornem
visíveis (MARIANI, 1998).
Aqui chegamos num ponto fundamental para o nosso trabalho na medida em que a
imprensa representa um discurso institucional muito específico e que busca apagar os seus
muitos enunciadores. Assim, podemos afirmar, de acordo com Mariani (1998) que o discurso
jornalístico apresenta em seu texto:
1) o apagamento das posições dos ‘sujeitos-jornalistas’;
2) a evidência ou a fusão de posições enunciativas nas vozes de articulistas, cronistas e
chargistas ou circunscrito em seu espaço editorial.
O resultado dessa prática se percebe na união do conjunto de vozes que interfere no
resultado final do texto; ou seja no processo de produção da notícia há pressuposta a idéia de
que uma prática jornalística é. Entretanto, podemos verificar que se esta se apresenta
heterogênea em seu processo de produção, quanto ao resultado final de seu texto apresenta-se
como uma enunciação homogeneizadora .
A enunciação se realiza e se concretiza conforme a ordem do discurso a que está
vinculada produzindo determinados sentidos, mas sempre assujeitada ao já-dito do
interdiscurso institucional de uma formação discursiva. Em sua dimensão institucional o
discurso jornalístico está sujeito ao conjunto de procedimentos internos e externos de seleção
e exclusão dos discursos, entendidos como práticas de significação (FOUCAULT, 2001).
Se a enunciação do discurso jornalístico se caracteriza por uma prática
homogeneizante na produção de sentidos, mesmo com a diversidade de vozes que a constitui,
então o que sustenta a produção dos mesmos sentidos é a recorrência ao interdiscurso. Essa
homogeneização acontece em função de seu caráter institucional.
As formas de enunciar dos jornais instalam sentidos criando no leitor uma ilusão de
objetividade no discurso. É certo que a ideologia organiza direções de leitura, fazendo circular
alguns sentidos e desviando outros tantos. Ao enunciar o sujeito faz um recorte de filiações de
sentidos, as modalidade do dizer, que contemplam a noção de ‘verdade’, objetividade e
imparcialidade proclamada pela imprensa. Sob o manto da objetividade – neutralidade –
134
distanciamento dos fatos, o sujeito do discurso jornalístico textualiza a ilusão do didatismo de
informar e comunicar a novidade.
Há uma relação de cumplicidade estabelecida com o leitor, em que este com mais ou
menos crítica, permanece na ilusão de receber informações tendo em vista que ele tem
liberdade de escolher o “melhor jornal”. De um ponto de vista discursivo trata-se de uma
escolha feita a partir de uma rede de filiação de sentidos, em que a “escolha” do leitor vai ao
encontro da formação discursiva (FD) do leitor. A capacidade de convencimento não é
resultante de uma persuasão pela manipulação da língua e sim de uma dimensão ideológica,
isto é, o discurso jornalístico envolve o leitor em um processo de interpretação pronto, pois ao
relatar um acontecimento está relacionando sentidos a sentidos já existentes. E esse
mecanismo, quase sempre não percebido pelo leitor, leva à ilusão de que há uma realidade
que pode ser apreendida de forma objetiva. A ideologia dessa prática discursiva reside no fato
de trabalhar com a idéia de que é possível o uso transparente da linguagem.
Os leitores são conduzidos nessa relação com o jornal, sem perceber a permanecer na
sua posição sócio-histórica, que é a posição do seu jornal de referência. Há pressuposta nessa
prática, uma noção de sujeito moral que acompanha os jornais e vamos perceber que, com
relação ao MST isso é bastante evidenciado nas formas de enunciados, nas denominações
atribuídas e no empenho em enquadrar o Movimento nos domínios do que é aceito pela ordem
e pelo status quo.
Vamos retomar, agora um conjunto de seqüências discursivas, ao longo da década de
1990, (Quadro 13) em que a produção de sentidos para o MST gira em torno de ameaça,
violência e sua radicalidade. Evidentemente elencaremos apenas algumas delas, mas sabemos
que, na maior parte das vezes, a construção dos sentidos para o MST já faz parte de uma
rotina e não de uma exceção, como pudemos acompanhar até agora.
135
Quadro 13 - Seqüências discursivas para ameaça e radicalidade do MST
Ano Jornal O Imparcial Jornal Folha de São Paulo 1990 Assaltam caminhão; seqüestram oficial de
justiça; se recusam a sair de fazenda. Invasores prometem matar; fazem reféns; fecham estradas; fazem cerco.
1991 Caos e convulsão social; saqueiam comércio; ateiam fogo em fazenda; ameaçam; podem tomar praça pública; acampamento é barril de pólvora.
Assaltam caminhão; seqüestram oficial de justiça; se recusam a sair de fazenda.áreas de proteção; recebem citação.
1992 Invadem fazenda de novo; descumprem determinação judicial; agitam o Pontal.
Invadem outra área; famílias invadem em SP.
1993 Invadem fazenda e ferem peão; Ameaçam resistir; foco explosivo do conflito; vão resistir; profissional de invasão; tende a radicalização; pode precisar de foice e fuzil; promove recorde de invasões; radical.
1994 Destroem e matam; líder é preso; diz que teme conflito.
Contra o direito de propriedade; prometem invasões massivas; demonstração de força; exige; aumentou a violência no campo; arma arsenal para invasões; tem leis e polícia próprias; agem em represália; ameaça aos empregados; assalta; matam animais.
1995 Descumprem determinação judicial; prepara invasões; delinqüência no Pontal; estimulado pela impunidade; invasão é estratégia; violam o direito à propriedade; bando armado.
Comanda dezenas de invasões; forçaram governo a retirar fazendeiros de áreas; destruíram cercas e queimaram pastagens; recrutam famílias para invasões; é profissionalizado; acossa o governo com invasões; prepara onda de invasões.
1996 Retoma invasões; líderes são presos; ocupa Procuradoria; profissional das invasões; pressiona com novas invasões; ignora ordem judicial; incendeiam fazendas; geram confrontos; foragidos da polícia; afrontamento às leis; vandalismo;
Parece o NE na época do cangaço; planeja invasões; governo vai apressar lei contra invasões.
1997 Recruta famílias sem-teto; pressiona com novas ocupações; incendeiam fazendas; comando da policia chega ao Pontal; é terrorista; abriga bandidos; ameaça invadir prédios públicos; ameaça bancos; desmatam reservas; ateiam fogo em fazendas; abate bois; agride soldados.
Terrorismo é a principal trilha que seguem; se acuados podem reagir de forma perigosa; é homicida e criminoso; ameaça por fogo em banco; atearam fogo em pastagem; é um problema de polícia; radicalismo no Pontal; atua na periferia para arregimentar famílias para invasões; abate gado; crime organizado.
1998 Declara guerra ao governo; bloqueia rodovia; volta a invadir fazendas; lidera saques; impunidade e invasões causam conflito; justiça protege fazenda do MST; destrói cercas de fazendas; deflagra operação fim de ano; interdita agência do BB.
Desencadeou onda de invasões; não se preocupa se invasões de prédios públicos é ilegal; incentiva saques; medo das invasões permitiu que fazendeiros contratassem seguranças; atuaram como assaltantes; ameaça prefeitos; organizam saques.
1999 Protesta contra a justiça; fere funcionários de fazenda; anuncia retomada de invasões; rompe negociações; faz saques; bloqueia bancos; invade prefeitura;
Bloqueia 10 agências bancárias; PM prepara desarmamento; TJ mantém condenação de 8 sem-terra.
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo. Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2004.
136
a) Sobre a ameaça e radicalidade: invasão versus ocupação
O quadro acima representa uma amostragem da manutenção da enunciação jornalística
sobre o MST, isto é, a correlação nominal mantida em períodos diferentes (anos) pelos dois
jornais, estabelecendo para o Movimento um sentido sempre negativo: invasor, perigoso,
ameaçador, violento, etc. Podemos fazer uma relação interdiscursiva entre:
1)Invasores prometem matar 2 reféns e juiz tenta negociação (FSP, 19/07/90);
2)Mil trabalhadores invadem fazenda em São Paulo. A invasão foi profissional (FSP, 26/04/93). 3)Igualmente deplorável é a disposição anunciada de invadir bancos, atitude provocativa que só vem acentuar a imagem do MST como entidade que opta sistematicamente pela trilha da ilegalidade. (FSP, Editorial, 1997, p. 1-2). 4) O MST anuncia que vai para o confronto armado na região do Pontal do Paranapanema, extremo oeste de São Paulo. (...) Infelizmente, de nada mais adianta pedir sensatez e responsabilidade a um movimento que vem tomando de assalto e depredando prédios públicos, invadindo fazendas, mantendo pessoas em cárcere privado e semeando a desordem país afora. (Título: Procuram-se cadáveres FSP, EDITORIAL, 1998, p. 1-2).
Nas situações acima apresentadas, há uma concordância com a formação discursiva
(FD) dominante oficial que construiu ao longo dos anos uma imagem de perigo e uma
representação de bandidagem para o MST. No plano ideológico encaminha o leitor para uma
condenação do Movimento e indica a pena a que deve ser submetido: a prisão. Faz retornar
um estereótipo para produzir um efeito de perigo.
Se observarmos o número de vezes em que nos enunciados comparecem o lexema
invasão podemos acompanhar a construção de uma produção de sentido para a ameaça e
perigos representados pelo Movimento. Em praticamente todos as manchetes essa forma de
enunciar comparece. Não devemos nos esquecer que a manchete e o título constituem, para
muitos leitores, a única informação, pois os conflitos em torno da posse da terra não dizem
respeito, diretamente, a quem não é proprietário de terras. Assim justifica-se porque a invasão
é o primeiro item no critério de noticiabilidade do MST. E nesse caráter de notícia rotineira,
freqüente e redundante se produz a representação do Movimento.
Ao denominar a ação dos sem-terra de invasão quando há, também, a possibilidade de
designá-la por ocupação69, explicita-se uma opção do enunciador que não é gratuita e se
explica pelo sentido que nela está embutido. Ao comentar a opção que o jornal faz pelo uso
do lexema invadir em detrimento de ocupar, Baccega (1989, p. 25) afirma que,
137
Efetivamente, os lexemas invadir e ocupar promovem conotações diferentes sobre o sentido da ação dos sem-terra. Invadir carrega semas como “tomar aquilo que não nos pertence”; já o lexema ocupar nos indica semas como “estar em lugar devoluto”. Assim poderíamos ter de, retoricamente, partir de um mesmo pressuposto, espécie de lexema de anterioridade, determinado por um elemento espacial, a terra e pelos pontos de vista ideológicos sobre ela.
O sujeito enunciador ao optar por invadir faz a escolha de um signo que preserva o
conceito de propriedade privada, em que o sujeito do enunciado (MST) encontra-se na
ilegalidade e ao leitor é oferecida uma pista de leitura em que a transgressão tem permissão
para ser punida.
O discurso jornalístico, como uma das formas de manutenção de poder, atua no
cotidiano ao agendar temas sobre os quais os leitores devem/podem pensar, além de organizar
as direções de leitura para tais temas. No dia-a-dia o leitor nem sempre tem condições de
perceber a rede de filiações de sentidos à qual está submetido ao ler o jornal. Os processos de
filiação de sentidos, os deslocamentos de memória são responsáveis por reforçar, no sujeito, a
ilusão de transparência da linguagem como já o dissemos.
A discursivização do cotidiano, no discurso jornalístico, é ‘apagada’ para o leitor (e
para o sujeito-enunciador jornalístico) e é nessa discursivização que os mecanismos de poder
vão distribuindo os espaços dos dizeres possíveis ao mesmo tempo em que vão silenciando o
que não pode e não deve ser dito.
b) A dimensão da ilegalidade do MST
Nos recortes abaixo, extraídos do jornal OI, podemos observar, em torno das
enunciações, uma direção de sentidos para o Movimento:
5) o prefeito Agripino Lima, disse que receberá “a pau” o líder do movimento Rainha e seus integrantes.O prefeito também acusou o líder do movimento de ser um dos bandidos que estão soltos no país. 6) Visando coibir possíveis invasões do MST na cidade, o prefeito Agripino Lima, decreta ponto facultativo na cidade no dia de hoje em Prudente. Com isso todas as instituições municipais estarão fechadas. 7) (...) o prefeito declarou que o MST só entrará na cidade depois de matá-lo. “Não sou perseguidor de ninguém, sou a favor da reforma agrária, como a do Banco do Povo que dá terra dentro da lei. O cangaço já acabou há muito tempo, mas nosso virgulino, cangaceiro faz e desfaz...”, argumentou.
69 Todas as ocupações de terra realizadas no Pontal do Paranapanema, nesse período, foram realizadas em terras consideradas devolutas, as quais foram griladas por latifundiários.
138
Nos enunciados acima, podemos situar dentro de um campo semântico, mais ou
menos configurado e formulável, que o “MST é um bando, que atua ilegalmente, liderado por
um cangaceiro”. Se pensarmos o que significou o cangaço no imaginário social, veremos que
o mesmo aparece como um movimento marcado por práticas violentas, tais como, saques em
propriedades, estupros, assassinatos, entre outras, o que justificou, na época, ação repressiva
do Estado. Associar a atuação do Movimento ao cangaço significa insistir na idéia de
ilegalidade da ação dos trabalhadores sem-terra, e mais, é reforçar no imaginário, a idéia de
que o Movimento pode entrar na cidade e promover saques ao comércio e invasões das
instituições públicas.
Há um elemento que vai institucionalizando esses dizeres possíveis: a memória
discursiva que vai tecendo um fio que conduz nos jornais as repetições parafrásticas,
misturando passado, presente e futuro.
Quando comparamos as reportagens, verificamos que os modos de dizer ou as
modalidades do dizer são escolhidos intencionalmente, já que a escolha se deu sempre a partir
de lexemas com um forte sentido incriminatório.
Pela análise, ou leitura atenta dos títulos, podemos inferir o confronto das expressões
“invasão” x “ocupação”. Também podemos inferir pelas leituras dos títulos que o enunciante
impede a possibilidade de se concluir a favor da ocupação. Revela uma preocupação em
concentrar o seu esforço em impor uma forma única de entender o problema dos sem-terra, ou
seja, não considerar a miséria do campo, mas desconstruir as ações do MST. A cada
momento, há uma busca de desvalorização do movimento, pois impõe-lhe os traços da
ilegalidade e de violência.
c) MST: bandidos e seqüestradores
Nas seqüências discursivas abaixo também temos vários exemplos da opção do enunciante:
8) Medo de conflito leva governos ao Pontal (FSP, 03/11/95). 9) Presidente pede trégua aos sem-terra (FSP, 29/09/95). 10) Sem-terra fecham acordo com governos (OI, 05/11/95). 11) Acordo não impede ocupações na região (OI, 06/11/95). 12) Prazo para assentar sem-terra termina hoje (FSP, 31/03/96). 13) Governo pede cadeia para sem-terra (FSP, 19/06/96). 14) Confronto agrava crise no Pontal (OI, 14/07/96). 15) Fazendeiros pedem reforço policial contra invasões (OI, 07/07/96). 16) Sem-terra acusados de atear fogo em fazenda (FSP, 14/09/97). 17) MST vai radicalizar ainda mais (FSP, 22/10/97).
139
18) Justiça protege fazendas contra o MST (OI, 13/05/98).
A tentativa do enunciante em desqualificar a ação do MST fica mais nítida,
verificando-se as escolhas feitas, pois tende a considerar que os sem-terra são algozes e os
fazendeiros e governo as vítimas da intransigência, intolerância e violência do MST. Antes se
apropriavam de bens dos fazendeiros; agora eles “ateam fogo em pastagens” e “matam bois”;
antes promoviam a baderna, a desordem no campo, hoje “destroem bens públicos ou dos
fazendeiros”. Fundam e formam quadrilhas e praticam crime de invasão, lesão corporal,
cárcere privado, formação de quadrilha, entre outros.
A violência dos sem-terra é reforçada com as expressões “seqüestram” já que este é
um termo para designar ação de bandidos, e essa ação permite uma implicação dos sem-terra
como foras da lei, portanto marginais.
A análise feita até aqui levou à conclusão de que, para o enunciante, a questão em
torno dos envolvidos – os sem-terra e seus dirigentes, os fazendeiros e governo, tem origem
no próprio MST, já que o problema vem dos planos anacrônicos dos líderes e só é grave no
que se refere à violência do movimento. A gravidade não reside na situação dos trabalhadores
sem-terra, mas nas propostas dos dirigentes do MST.
Entretanto, para além da produção de sentido para ameaça e radicalidade do
Movimento, também verificamos a existência de um processo de significação no discurso
jornalístico sobre o MST que tem como fio condutor as inúmeras denominações para
comunismo e comunista.
4.2. A imposição do mesmo sentido no discurso dos jornais
Quando o MST começa a freqüentar as páginas dos jornais, já está marcado por uma
memória em que o uso de “comunismo” e ‘comunista”, determina um sentido negativizado. A
produção de sentido para o MST, associado a comunista gira em torno de inimigo; portanto
seu o lugar do inimigo já está marcado, mas significar o Movimento, nesse sentido também é
torná-lo visível, e de uma determinada forma mantendo-o sob controle.
a) Comunismo e comunistas: radical, insurgentes e terroristas
Para a AD a produção da memória é resultante de confrontos de sentidos que são
produzidos em uma determinada época, em uma dada formação social. É nesse aspecto que a
exterioridade se configura no discurso enquanto memória do dizer, enquanto interdiscurso.
140
Por meio da língua é possível falar do que está fora dela, e esse estar fora deve ser entendido
como o que uma determinada sociedade produz, num determinado período histórico, tanto na
forma de produção de sentidos quanto no confronto entre eles. Se retomarmos as seqüências
discursivas:
19) Sandoval vê ‘comunistas’: Antônio Sandoval Neto, 86, diz que está cansado da “novela” Fazenda São Bento. (...) acha que parte do problema é causado ‘pela ação de comunistas no meio dessa gente’(Do enviado especial, 1993, P. 1-8) 20) (...) recebe ajuda da agremiação Tendência Brasil Socialista (...), isso justifica ‘a forma radical de atuação .MST já teria alvos bem definidos, de acordo com os resultados das próximas eleições. (...) o dossiê afirma que o MST estaria tentando construir uma ‘autêntica’ república marxista. (TOGNOLI, 1994, p. 1-8). 21) (...) o aumento das invasões na região a partir de 1994 mostra as intenções insurgentes do movimento, com apoio de instituições estrangeiras – por exemplo, da Alemanha e de Cuba (...). (MASCHIO, 1997, p. 1-18). 22) O governo foi tolerante e leniente demais com um movimento que há tempos aderiu a práticas terroristas. É mais do que hora de agir com firmeza. Seria um equívoco imaginar que o MST abrandaria suas atividades criminosas à medida que lhe fosse prometido um programa de atendimento a reivindicações pontuais. (Editorial, FSP, 11/09/98, p. 1-2).
Nestes recortes de seqüências discursivas as denominações comunista, radical,
insurgentes, práticas terroristas, permitem que se depreenda que a reivindicação do
Movimento representa um perigo, pois pressuposto às suas reivindicações está a a mudança
de regime ou a conclamação de uma república marxista, o sentido está acoplado a um
determinado movimento, o qual implica em ameaça ‘comunista’, portanto, as invasões são
realizadas tendo este objetivo.
Com relação ao uso de aspas, que aparece em vários momentos e recortes do texto dos
jornais, é interessante observar que conforme Authier (1982), são indicativas de um
estranhamento e de uma distância por parte do sujeito na posição de enunciador do discurso
jornalístico. Assim, as aspas em ‘comunistas’, ‘autêntica’, pode tanto indicar como se a
expressão estivesse soando anacrônica. Mas podemos interpretar a expressão aspeada como
uma ironia, uma vez que, para o discurso jornalístico não há mais ‘referente’70 para
comunista, ou melhor, os comunistas e insurgentes de hoje, não constituem perigo ou não são
perigosos. O que comparece, nesse sentido é uma cumplicidade com o leitor, mas também
espera-se que o leitor reconheça um dizer já-dito sendo re-significado.
b) Didatismo do discurso jornalístico e reiteração dos sentidos
70 Segundo PÊCHEUX (1990, p. 83) a construção discursiva sobre o referente, em termos discursivo “se trata de um objeto imaginário (a saber, o ponto de vista do sujeito) e não da realidade física”.
141
O didatismo presente no discurso jornalístico sobre a relação do MST e o comunismo
apareceu em vários momentos, mas apresenta uma intensidade maior em meados da década
de 1990, principalmente em 1994. Nesse período há um predomínio de definições ou
explicações sobre o que é o Movimento e, de uma certa forma buscando associá-lo ao
comunismo. Descrevendo ou esclarecendo sua forma de atuação, vai produzindo uma forma
didática de enunciar sobre os novos tempos e alertando contra os ‘comunistas’ abrigados
sobre o MST, conforme podemos verificar nos recortes abaixo:
23)Cartilhas e documentos do MST mostram que a organização segue um modelo paramilitar. As áreas invadidas transformam em “Estados paralelos”, com lei e polícia próprias. A “justiça” nas áreas invadidas é exercida por “tribunais” formados pelo MST e chamados de “comissões de disciplina”. 24)Uma invasão equivale a uma operação militar. (...) a organização dos sem-terra copia modelos de organizações “revolucionarias” de outros países. 25)A Polícia Militar de São Paulo entregou à SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) documento em que afirma que o Movimento dos Sem-Terra (MST) recebe verbas do exterior para financiar invasões e organiza uma república marxista-leninista. (TOGNOLI, 1994, p. 1-8) 26) A reforma agrária no Pontal nasceu sob o signo da violência: Instalado no governo Franco Montoro, comprometido com as esquerdas radicais (...) Sem qualquer planejamento mas representando apenas uma vontade política e ideológica, (...) Os tempos mudaram, agora sem os motivos políticos (...), mas com uma pesada carga ideológica, do MST, Pastoral da Terra, da Igreja Católica, via CNBB. (...). (OI, Plantão, 18/04/95, p. 02). O que, portanto, funda esse discurso nesses sequências discursivas, é a memória do
discurso jornalístico em que o enunciado é retomado de do que já foi enunciado e, nesse
momento é re-significado.
Assim, na AD, de acordo com os autores, o que acontece é que nas diferentes práticas
discursivas do sujeito a interferência do interdiscurso atualiza expressões e enunciados, o que
produz um efeito de algo não-dito, mas aceito como existente e verdadeiro. Os processos
discursivos são produzidos e reconfigurados pela ação do interdiscurso, mantendo uma
determinada memória no imaginário do sujeito/indivíduo. É assim que no discurso
jornalístico, as formas de denominar, isto é, as denominações, pressupõem a objetividade, um
já-dito que se observa na memória do dizer – interdiscurso – da FD que regula o discurso
jornalístico. Visando percorrer o processo desencadeado pelas denominações sobre o MST,
estabelecemos o quadro a seguir (Quadro 14), formado a partir da desconstrução dos cenários
discursivos engendrados pelas reportagens:
142
Quadro 14 - Das denominações71 para o perigo comunista
Ano Jornal FSP Jornal OI 1993 Ação de comunistas; tática de guerrilha; defesa
do socialismo.
1994 Quer o marxismo no país; prepara revolução; república marxista-leninista; copia modelos de organizações ‘revolucionárias’; centralismo democrático; doutrina marxista; aliança operário-camponesa; exército popular revolucionário; método revolucionário de direção; sandinistas nicaragüenses; recebe formação política; cadernos de doutrinação; lê biografia de revolucionário (Guevara); prepara a revolução; movimento de fachada; doutrina contém ingredientes de um partido político; condutor da classe operária; detentor da ciência revolucionária; guerrilha; são uma corrente forte no PT; base para ação do PT e PC do B; características estalinistas.
El comandante e sua turba;
1995 É profissionalizado; se dizem socialistas; simpatia pelo regime cubano; professa um comunismo primitivo e truculento.
perigoso com treinamento de guerrilha; é socialista; esquerdismo; esquerda altamente politizada; esquerda radical.
1996 Agitadores dos anos 60; maoísmo tropical.
1997 Têm outros objetivos; planeja criar uma área de insurgência no Pontal.
Fonte: Jornais O Imparcial e Folha de São Paulo. Org.: Sônia Maria Ribeiro de Souza, 2004.
Partindo das considerações acima, é possível assinalar que as denominações no
discurso jornalístico para o MST ao designá-lo a partir de classificações, o faz reforçando um
imaginário já constituído e o classifica, também a partir de conjunto determinado de valores já
estabelecidos.
Na leitura do quadro acima, podemos verificar que as denominações utilizadas
associam a experiência do comunismo a algo ruim. A direção de sentido para o MST no
discurso jornalístico, por meio das denominações, dão visibilidade a uma forma de enunciar
negativamente tanto comunismo e comunistas quanto o MST, retomando e re-siginificando
um sentido para comunistas como inimigos, logo para o Movimento também.
Podemos afirmar que essas denominações, no discurso jornalístico, dão uma direção
de sentido para o MST silenciando outros significados e, assim, reduzindo-o ao que as
71 Estamos considerando aqui nas denominações só o recorte temporal que estabelecemos para análise. Nos anos posteriores a 1997 ainda comparecem nos textos dos dois jornais associações entre o adjetivo comunista e o
143
denominações significam: comunistas, invasores, bando, quadrilha etc., naturalizando
sentidos e apagando outros, configurando, nesse processo o controle que mencionamos sobre
os sentidos da sua formação discursiva.
Qual é a região de sentido mobilizada, então ? Basta seguirmos as seqüências
discursivas: professa um comunismo primitivo e truculento; é perigoso com treinamento de
guerrilha; esquerda altamente politizada; é movimento de fachada e Agitadores dos anos 60;
tem características estalinistas; prepara a revolução. Em síntese o MST é perigoso, pois não
quer só a reforma agrária, Têm outros objetivos; planeja criar uma área de insurgência no
Pontal.
A leitura do quadro nos permite identificar um enunciado que se mantém repetindo
estes sentidos. As denominações reafirmam uma referência discursiva que vai sendo mantida.
Nesse sentido, há uma paráfrase discursiva negativizada que, associada ao comunismo, se
reconfigura nas denominações do MST: nas adjetivações usadas o mesmo é introduzido por
meio da repetição.
As denominações observadas no corpus possibilitou-nos estabelecer uma linha
demarcatória em que os limites entre o que é o bem e o mal já estão postos “no domínio das
coisas-a-saber” (MARIANI, 1999, p. 134) próprio de uma formação social sendo, portanto,
‘evidentes’ para o sujeito-leitor. O apagamento da discussão política desencadeia um processo
de despolitização do leitor e não contribui para a compreensão da necessidade da reforma
agrária e da luta pela terra travada pelo MST.
Na produção de sentidos formadas, podemos observar as seqüências nas discursivas
dois campos em oposição: de um lado, os bons: que construímos riquezas, de outro os
Agitadores dos anos 60. Podemos esquematizá-los assim:
‘NÓS BRASILEIROS’ ‘OS COMUNISTAS’ ‘O COMUNISMO’ → nosso país → perigoso → doutrina marxista → trabalhamos a nossa terra → agitadores dos anos 60 → ciência revolucionária → construímos riqueza → guerrilheiros → maoísmo tropical
Ao observarmos as seqüências discursivas podemos afirmar que se mantém uma
relação de co-referência entre si à medida em que, por meio de processos parafrásticos,
encontram-se formadas duas redes discursivas: uma em torno de ‘nós brasileiros’ que
direciona um sentido que se opõe e exclui aquela para de comunistas/comunismo. Essas redes
nos permitem considerar a existência de uma formação discursiva nesse processo de produção
MST.
144
de sentidos. As seqüências discursivas apresentadas pertencem a esta FD hegemônica que se
mantém no discurso jornalístico.
Na enunciação jornalística temos, portanto, uma FD dominante que produz os
sentidos para o MST como antagonista por sua condição de comunista e o mal do Brasil. Na
forma de enunciar observamos que é reiterado um nós (nossa terra, nossa justiça honesta,
nosso país ordeiro, nós democratas) que busca estabelecer uma cumplicidade com o leitor
(ORLANDI, 1988), isto é, projeta imaginariamente uma identificação com os bons, que
construímos riquezas, descrevendo e classificando, nesse processo contra eles, os Agitadores
dos anos 60. Enunciadores (jornalistas e leitores) se assemelham nessa forma de significar
essa imagem discursiva de ‘brasileiro’. A posição de onde este ‘nós’ enuncia coincide com a
posição do sujeito-leitor.
em muitos dos recortes que analisamos não são matérias assinadas, aqui, segundo
Mariani (1999) é que se revela a posição institucional da prática jornalística, já que o uso de
um pronome de primeira pessoa do plural nós, configura o resultado de uma posição
enunciativa específica. A posição enunciativa institucional jornalística se aglutina com aquela
representada como sendo dos brasileiros.
No plano do discurso este embate ocorre entre formações discursivas diferentes e não
entre agentes concretos. Assim, aquele que enuncia de um outro lugar social (MST), diferente
daquele dos latifundiários e do Estado devem ser criminalizados. A formação discursiva na
qual o discurso dos jornais se inscrevem retoma, retorna um discurso do mesmo (memória,
paráfrase) e retoma a história em lugares específicos. Regulariza o papel da memória através
de substituições, de paráfrases.
c) MST e o perigo representado no seu discurso
É claro que os sentidos não são lineares. A hegemonia de uns não representa,
necessariamente o apagamento total de outros. No final dos anos de 1990 a 2002, vemos que
as denominações se reorganizam , fazendo circular os novos sentidos que vão sendo
produzidos sem apagar os antigos, pelo tratamento irônico que é utilizado. Ao mesmo tempo
em que o resíduo do não-dito no discurso dos jornais comparece por meio das negações.
Mapeamos algumas tendências discursivas nesta direção. Assim, foi possível estabelecer a
partir do conjunto de denominações para o MST-perigoso, um mesmo modo de
movimentação semântica. Vejamos:
145
27) O MST deixou de ser um movimento social, legítimo, saudável numa democracia, para se constituir num partido não-parlamentar, com um discurso genérico contra o “sistema” e que se alimenta de sabotar de forma demagógica a ordem pública. Não é decerto fácil enquadrar esse movimento dentro da legalidade. Mas é uma tarefa que o governo não pode mais se esquivar. (Editorial, FSP, 11/09/98, p. 1-2).
28) (...) São os objetivos descaradamente políticos de alguns membros do MST, a arregimentar massas com o intuito de criar um clima de radicalização que, em seus delírios abriria perspectivas para umas “revolução” socialista a partir do campo. (EDITORIAL, 2003, p.2).
29) Abril vermelho: O AGITADOR-MOR do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, João Pedro Stédile, voltou à cena para prometer que abril será um “mês vermelho” e que os movimentos sociais irão “infernizar” o país. O timoneiro da baderna rural e seus seguidores já começaram a ensaiar o espetáculo do desrespeito às leis com que ameaçam a sociedade no mês vindouro. (EDITORIAL, 2004, p. 2)
30) Por mais fantasioso e improvável que possa parecer, Stédile tem como objetivo maior promover uma revolução socialista a partir dos conflitos que se verificam na área rural do país. Sendo assim, não hesita em instrumentalizar miseráveis para criar fatos políticos, semear tensões e gerar um ambiente de radicalização entre os sem-terra e os ruralistas. (EDITORIAL, 2004, p. 2)
31) Jornada de abusos: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST) vem intensificando suas ações dentro da ‘jornada de luta” (...). Essa verdadeira jornada de abusos nada mais é do que uma nova rodada de desafio à ordem legal, na qual a liderança do MST prossegue instrumentalizando massa miseráveis com propósitos meramente políticos. (EDITORIAL, FSP, 2004). 32) Não é de hoje que o MST procura desafiar a ordem com ações espetaculares, muitas vezes fadadas a desfechos violentos. Cultiva com isso – a pretexto de chamar a atenção para os problemas do campo – um clima de intolerância na área rural, que serve aos propósitos de uma liderança tão perseverante quanto anacrônica em suas fantasias “revolucionárias”(...). (EDITORIAL, FSP, 2003, p. 2).
Essas denominações no discurso jornalístico materializa a retomada de diferentes
discursos simultaneamente: a significação negativa para o MST como movimento comunista
se reatualiza porque retoma algo já-dito e aponta para algo que pode ser, mas que não se
deseja. É uma mesma direção de sentidos que retorna sempre (o mesmo) e, ao mesmo tempo,
sempre com modificações, fazendo ressoar interdiscursivamente a cada retorno o sentido de
que o MST é X, contrário ao sistema e a democracia.
Nesse sentido há pouco ou quase nenhum espaço para a discussão da questão agrária.
Há pouco ou nenhum espaço para vozes ideologicamente divergentes se fazerem entender.
Apenas permanece a ameaça do ora perigo vermelho, ora da quadrilha de invasores. O
processo de produção de sentidos para o MST é direcionado para um lugar que apaga a
polêmica política. O Movimento é significado e reconhecido pelos leitores por um
imaginário, cujas matrizes de sentidos podem ser reconhecidas podemos reconhecer em
outros discursos em outras épocas. É por isso que afirmamos que nas forma de enunciação há
146
a permanência e repetição de determinados modos enunciativos fazendo retornar os mesmos
efeitos de sentido.
Essa análise nos permitiu verificar como as denominações produzem uma ilusão
referencial do MST, ou seja, no discurso jornalístico os sentidos ali constituídos são
“verdadeiros”, únicos e emanam de uma realidade evidente, objetiva. No entanto, como
vimos, no modo como os sentidos são produzidos, entram em jogo relações mantidas com
outros sentidos seja num dado momento histórico, seja da relação com a rede de filiações
evocadas na sua constituição pelo interdiscurso de uma formação discursiva (FD) dominante.
Quando nos reportamos às denominações negativizadas sobre o MST é porque foi
possível detectarmos uma estabilização de sentidos que se mantém; e mesmo hoje, a eficácia
das ironias (entendidas como uma forma de silenciamento) depende de um retorno a esse já-
dito: a eficácia do sentido de “ameaça vermelha”.
Sabemos que fatos podem criar notícias e vice-versa. Entretanto, em qualquer uma das
situações, o que é dito nos jornais depende muito das possibilidades enunciativas específicas
de cada formação social, em cada período histórico, em outras palavras, das suas condições de
produção. Assim, o que estamos buscando evidenciar é que a chamada grande imprensa, ou
imprensa de referência, enuncia de um lugar histórico-geograficamente constituído e o faz em
nome de determinados segmentos de classe. E esse processo é determinante na forma como a
imprensa vai construindo uma representação para o MST.
A seguir, mostraremos o processo enunciativo sobre o MST relacionado ao Governo
Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores (PT), uma vez que nesse processo
também conseguimos detectar um deslocamento inicial dos sentidos postos para o Movimento
antes e após as eleições. Aqui também foi possível verificar o retorno do mesmo em dois
momentos: antes das eleições em que foram mobilizadas, no processo enunciativo dos jornais,
principalmente FSP, a ilusão da referencialidade, a forma didática de informar o leitor sobre o
perigo representado pela aliança histórica entre MST e PT; num segundo momento, após as
eleições em que a pretexto de preocupação sobre os novos rumos do país, também foi
mobilizado uma construção de sentidos para o MST em que se reatualizou sentidos outros,
pela repetição de formações discursivas.
4.3. Os silenciamentos e as repetições
Quando Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, foi eleito, em novembro de 2002, já havia,
nos jornais paulistas, instalada uma discursividade sobre a ligação MST/PT. Tanto em relação
147
à segunda disputa para presidente realizada pelo PT, em 1993, quanto em relação à disputa em
2002, essa mesma estratégia foi usada no discurso jornalístico. E é exatamente por meio desse
viés e dessa vinculação que o discurso jornalístico vai retomar os sentidos produzidos para o
MST. Ou seja, da mesma forma que havia um ‘discurso’ em circulação sobre os
acontecimentos que envolviam a fundação do PT, como um partido marcadamente de
esquerda e de caráter reivindicatório, a ligação entre PT/MST iria constituir uma ameaça72,
ambos por seu caráter ‘revolucionário’. Discurso esse em que os significantes ‘revolução’ e
‘revolucionários’ não aparecem. Em seu lugar, agitador, banditismo e criminoso: é retomado
o direcionamento dos sentidos produzidos para o Movimento buscando, sobretudo
reconfigurar um perigo na figura palpável do futuro presidente. Daí a circulação desse
discurso sempre tematizada como já destacamos.
a) MST e as eleições presidenciais ou MST versus PT
Nos recortes abaixo, uma seleção de fragmentos de reportagens e título extraídos de
nosso corpus, fica patente a caracterização do MST e do governo e a sua aliança:
33) (...) Segundo Gilmar Mauro, um dos coordenadores nacionais da entidade, os sem-terra vão ‘entrar na campanha’ e ‘fazer todo o possível’ para eleger Lula. (...) Os sem-terra vão apresentar sua proposta de reforma agrária (...). (MARTINS, FSP, 1994, p. 1-7). 34) Mais de 150 fazendas podem ser invadidas; líder diz que o objetivo é pressionar futuro governo a fazer reforma agrária (...) O principal incentivo para a mobilização dos sem-terra é a realização das eleições para presidente da República (...) o movimento julga que é importante dar uma demonstração de força para que o próximo governo dê mais atenção ao tema. (MARTINSa, FSP,1994, p. 1-7). 35) Coincidências: Com a sorte que está, o tucano José Serra poderia jogar na Mega-Sena. Ganharia sozinho. As coincidências a favor do pré-candidato do PSDB a presidente acumulam. A mais recente ocorreu no fim de semana. O MST invadiu a fazenda da família do presidente Fernando Henrique Cardoso. É evidente o dano para a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. A ação se deu no mesmo dia em que o PT homologava a candidatura de Lula para presidente. Hoje à noite, o petista aparecerá no tradicional programa de debates “Roda Viva”, da TV Cultura. Esperava falar de propostas de governo. Ficará na defensiva explicando as ligações entre seu partido e o MST. (RODRIGUES, FSP, 2002, p. A2). Trata-se de uma forma de enunciar que, ao logo do período que antecedeu as eleições
concentrou-se em descrever as ações do MST como atrocidades cometidas contra a
propriedade. Essas notícias, bastante numerosas, encontravam um certo eco, embora o
72 Embora não tenhamos pesquisado a década de fundação do PT e a primeira eleição do Lula, nos jornais, não é demais afirmar que os jornais jogaram com o medo que a população tem do comunismo que, aliás, vigora até hoje. E é a esse medo que muitas vezes os jornais recorrem em seus mecanismos enunciativos, como já destacamos.
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comunismo não representasse no país nenhuma ameaça séria, como podemos ver hoje. Às
vezes como foi possível observar no mês de março de 2002, no jornal Folha de São Paulo,
nenhuma notícia era relatada. Mas, mesmo assim, o jornal projetava, então, antecipações
alarmistas, pois colocavam os ‘comunistas’ ocupando previamente esse lugar de inimigo. Por
isso o destaque à aliança MST/PT.
Configura-se, deste modo, a confluência de dois discursos importantes na
representação do MST como inimigo: o que é produzido sobre a sua atuação ‘revolucionária’
nas ocupações (invasões) de terras e aquele que se constrói em torno da atuação do PT em
relação à sua simpatia ao Movimento.
Em síntese, o que de fato freqüentava as páginas dos jornais neste período, e mesmo
num subseqüente, após as eleições, eram notícias que circunscreviam crítica e negativamente
uma região de sentidos contrária aos movimentos sociais.
b) O Governo Lula e o MST
Nos primeiros meses de gestão do Governo Lula, os jornais adotaram como estratégia
a observação do comportamento tanto de um como de outro: primeiro especulando sobre as
ocupações de terra, depois sobre os cargos vinculados à questão agrária (Incra, Ministério do
Desenvolvimento Agrário) e o envolvimento destes com o MST, cobranças no sentido de o
novo governo agilizar medidas que coibissem as ações do MST. Basta acompanharmos alguns
recortes das notícias e títulos desse período:
36) MST, CUT e pastoral vão chefiar Incra.
37) Aliados do MST chefiam instituto (Incra).
38) Incra critica MP para inibir invasões.
39) Cartilha da pastoral incentiva invasões.
40) Governo não cumpre MP feita para inibir invasões
41) Será lamentável se o governo vier a propor mudanças na medida provisória baixada em maio de 2000 para coibir as invasões promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A medida – que proíbe o Instituto de Colonização e Reforma (Incra) de vistoriar, por dois anos, terras, invadidas, paralisando o processo de desapropriação – foi um mecanismo engenhoso que contribuiu de modo inequívoco para reduzir a violência no campo.
42) Agora, as declarações do governo contrárias à MP tiveram por conseqüência o estímulo ao
incremento da tensão no campo. O MST promove invasões praticamente todos os dias desde o Carnaval, em um rompimento da trégua decretada no fim do ano passado.
149
43) (...) O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, e o presidente do Incra, Marcelo Resende, têm argumentado que a medida provisória retarda a reforma agrária. (...) o MST obteve influencia inédita na atual administração. Parte dos superintendentes do Incra é ligada aos sem-terra. Essa boa vontade, porém, não levou o movimento a moderar suas táticas. Para que haja paz na reforma agrária, as autoridades do setor devem assumir as obrigações e o ônus de ser governo.(EDITORIAL, FSP, 2003, p. 2)
44) A lei do Incra: O parecer do procurador-geral do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra), revelado ontem pela Folha, é mais uma evidente indicação de que o poder público está decidido a só cumprir as leis que não contrariem os interesses do MST. De fato, o governo anterior havia editado uma medida anterior impedindo que terras invadidas fossem vistoriadas e desapropriadas pelo Incra por um período de dois anos. Tal medida, que o Congresso já converteu em lei, vem sendo acintosamente ignorada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva desde seus primeiros dias.
45) Em entrevista à Folha o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto,
manifestou-se contrariamente ao dispositivo. (...) com o passar do tempo ficou claro que a nova gestão está mesmo disposta a tergiversar sobre o cumprimento da legislação. A ratificar mais uma vez essa lamentável atitude, surge o memorando do procurador-geral, que interpreta a lei formulada pelo governo anterior de maneira claramente favorável aos interesses dos invasores de terra (...).
46) As reivindicações por uma reforma agrária que contemple as numerosas famílias rurais
vítimas da miséria e do desemprego, permitindo-lhes participar da produção, auferir renda e fixar-se à terra têm merecido o apoio dos brasileiros.
47) É inadmissível, numa situação como essa, o governo, que prometera promover uma
reforma pacifica, ocultar-se atrás de pareceres comprometidos com a desordem para deixar de cumprir a lei. (EDITORIAL, 2003, p.2).
c) Quem governa?
Paralela a essa campanha, temos no discurso do jornal outras vozes, por meio da
atuação dos ruralistas e seus representantes, e da oposição, que cobram a atuação do governo,
no sentido de coibir as ações do Movimento, conforme destacamos a seguir:
48) ‘Comando ruralista’ se arma e pressiona Lula contra MST.Ruralistas vão à Justiça contra Lula
49) Ruralistas preparam carta a Lula por verem influência crescente do MST 50) Pecuaristas cobram de Lula respeito à propriedade rural 51) Deputados acusam ministro de ‘criar clima de violência’ 52) Ruralista afirma que governo prepara estatização das propriedades privadas no
campo, como na URSS
53) Fazendeiros se armam e culpam Lula (“só bala conserta o Brasil”). Ruralistas criam partido político para se opor a ‘reforma socialista’
54) Para ruralistas, Lula foi “servil” ao MST 55) ‘MST tem que ser tratado como uma força que se coloca à margem da lei’, diz líder tucano 56) UDR pede demissão de Rosseto para ‘pacificação’ 57) Para ruralista, Lula ‘agita’ o campo e prejudica produção. Pesquisa diz que 58%
acham MST violento.
150
58) Empresário cobra ‘ação enérgica’ de Lula contra invasão 59) Ruralistas acusam Planalto de ser ‘inerte’ e ‘leniente’com sem-terra 60) em crítica às ações do MST, governador tucano também ataca política econômica do
governo federal. Invasão agrava ‘anemia’ do país, diz Alckmin. 61) Invasões de terra crescem 115% com Lula 62) Invasões deste ano quadriplicam em relação ao 1º trimestre de 2002 63) Governo não cumpre MP para coibir as invasões 64) Governo telefona ao MST e diz que invasões atrapalham 65) foram 40 ações no mês passado, que só perdem para as 101 no mesmo período de
99, no trimestre numero cresceu 19% 66) Invasões de março são as maiores em 5 anos. 67) A volta do MST: as recentes ações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra), que promoveram invasões num engenho, na sede de um banco e numa prefeitura, fazem prever um relacionamento difícil entre o governo e os militantes da organização, cujo histórico é de estreita proximidade com o PT. São atitudes inadmissíveis no quadro da legalidade democrática. (EDITORIAL, 2003, p. 2).
68) Em busca de repercussão e na tentativa de gerar radicalizações, os sem-terra acabam por perder o apoio de que já desfrutaram na sociedade. Se o MST pretende criar embaraços para o novo governo, é de esperar que a resposta de Brasília seja clara. Não se pode tergiversar em questões como essa. Cabe ao poder público cumprir o que determina a lei, inclusive o dispositivo que proíbe a utilização de terras invadidas para fins de reforma agrária. (EDITORIAL, 2003, p. 2).
Assim, podemos verificar que o combate ao MST representa uma luta contra uma
política de transformações radicais. A associação não deixa de ser previsível. Por um lado, as
ocupações de terra semeando uma movimentação popular com desfechos imprevisíveis, no
sentido de fortalecimento de um governo que pudesse vir a ter uma marca de rupturas; de
outro as notícias procuravam enfatizar as violências cometidas pelo Movimento. A produção
de sentidos, no discurso jornalístico que vai sendo construída, neste momento, encontra raiz
numa forma de enunciar cuja característica principal, na forma de repetição de sentidos
outros, ainda é a ameaça e perigo.
É, portanto, da confluência de discursos antagonizando-se com o recente eleito
presidente, que vai sendo construída e determinado nos jornais, a construção discursiva do
referente MST-comunista-perigoso. E, nesse modo de designar, encontra-se a ‘importação’ de
vocabulário pertencente a outros domínios especializados tais como as ciências jurídicas.
Assim, a representação do MST se encontra vinculada à formação de quadrilha, à
bandidagem, bem como ao comunismo.
Essa pressão, na forma de enunciar, vai encontrando aos poucos respaldo dentro do
próprio governo que vai incorporando um ‘novo’ discurso com relação ao Movimento. Se não
se submete a pressões por parte de setores da oposição e dos ruralistas por um lado, também
151
não incorpora as reivindicações do MST com relação a reforma agrária73. É o que vamos
acompanhar nos próximos recortes, em que na seqüência, o jornal dá destaque às ações
governamentais a partir de decisões que afetam a relação MST e governo:
69) Lula afirma que meta não é ampliar reforma agrária 70) Governo reage e ameaça sem-terra: ministros dizem que poderão adotar medidas mais
duras para coibir abusos cometidos por movimentos sociais 71) governo evoca autoridade e ameaça punir os ‘fora da lei’. Lula descarta reforma agrária
‘na marra’ 72) Chefe do Incra ligado ao MST é exonerado. 73) Entidades criticam governo e afirmam que exoneração de Marcelo Resende do Incra é
vitória dos ‘ruralistas’ 74) Para UDR, exoneração é passo pra ‘diminuir radicalização no campo’ 75) MST e CPT dizem que demissão é ‘traição’ 76) Incra vai passar por ‘revolução organizativa’ 77) após promessa de infernizar [do MST], presidente afirma que há gente que não acostumou
com a democracia 78) Reforma agrária não será no grito, diz Lula Quando cotejamos as seqüências discursivas fica evidenciado no fio discursivo, que o
governo, na verdade, vai assumindo uma posição em que o deslocamento/apagamento do
compromisso com os movimentos sociais vai sendo construído no discurso jornalístico.
Evidentemente que foge à nossa análise o comportamento do governo, com relação à sua
mudança, mas nos parece que é como se houvesse uma orquestração. Só a título de exemplo,
se juntarmos as seqüências discursivas: Ruralistas preparam carta a Lula por verem
influência crescente do MST (2); Para ruralistas, Lula foi “servil” ao MST, Ruralistas
acusam Planalto de ser ‘inerte’ e ‘leniente’com sem-terra; Lula afirma que meta não é
ampliar reforma agrária. Podemos depreender daí a grande pressão que foi submetido tanto o
governo quanto o MST, forçando ora o recuo de um ora o de outro, chegando a ponto de
muitos afirmarem que o Movimento não tem saída. Mas isso é uma outra análise.
O que é certo é que o discurso jornalístico direcionou a leitura sobre o Movimento, e
que, do nosso ponto de vista, isso pode ser compreendido como um procedimento de controle.
Funcionando de modo a restringir o processo de produção de sentidos e, ao mesmo tempo,
restringir a circulação de quaisquer enunciados sobre o MST no todo social.
Porém, se há uma formação discursiva dominante funcionando como apresentamos
acima, há uma outra formação discursiva contrária, alocada também no discurso jornalístico.
Trata-se dos enunciados do MST evocados nos seus discursos.
73 É sabido que o governo não encampou o PNRA, cuja equipe chefiada por Plínio de Arruda Sampaio, que estabelecia como meta o assentamento de 1 milhão de famílias no primeiro ano de gestão. É sabido também do descontentamento do Movimento, e de parte de intelectuais ligados à militância da questão agrária, com o governo de Lula. Muitas das críticas que o governo tem sofrido acabou resultando em dissidências no próprio governo.
152
4.4. Controle e delimitação do discurso
Conforme se afirmou, os sentidos de um discurso somente se tornam visíveis pela
formação de uma memória, enquanto condição do legível. Nas reportagens, seguindo as
possibilidades de leitura oferecidas por uma memória do discurso constituída a partir da
ditadura militar no Brasil, o discurso do MST foi significado como “caldeirão ideológico”,
“maoísmo tropical”, “movimento de fachada”, “atrasado”, “fantasioso”, “agitadores dos anos
60”, “anacrônico”. O Movimento foi designado de “formação de quadrilha” e os sem-terra
como “bando de baderneiros” e “invasores”, logo “transgressores da lei”.
Caldeirão ideológico porque em seu discurso há um pouco de tudo: Marx, Lênin,
Guevara, Mao e tantos outros. Anacrônico porque os discursos reivindicatórios de classe,
estão fora de moda – não são próprios do momento atual. Fantasioso, desfocado, porque os
discursos de esquerda não cabem mais nesse contexto de avanço do neoliberalismo
econômico, marcado pelo “fim das ideologias” (e pelo “fim da história”, pelo “fim da
geografia”). Além do mais, segundo o discurso jornalístico, não existe mais uma ideologia
capaz de unificar as diversas minorias socialmente marginalizadas.
O que estamos dizendo é que os sentidos do discurso do MST tornam-se inviáveis pela
nossa história. A formação discursiva no interior da qual os sentidos para o Movimento se
constituem foi interditada por procedimentos de censura, de modo que “ficou-se sem uma
memória” (ORLANDI, 1999, p. 66) que facultasse a leitura desses sentidos e que tornassem
suas paráfrases possíveis.
A possibilidade de formação dessa memória existiu na discursividade dos movimentos
reivindicatórios da década de 1960, em que havia todo um processo de produção de sentidos
colocados na mudança da estrutura social. Porém, este processo, ao ser reprimido pelo longo
período de ditadura militar, vai desembocar na completa dominância do discurso neoliberal.
O discurso do MST pode ser entendido como um indício de uma retomada “para
valer” dos anos de1960 ou um acontecimento que não chegará a inscrever-se na memória dos
discursos?
Pode-se dizer que o sujeito sem-terra nasceu do longo processo de injustiças sociais,
que exclui do processo social o agricultor, o colono, o camponês brasileiro. O “homem da
roça”, ou o homem das periferias das cidades, faz-se o sujeito “sem-terra” quando rompe com
os mecanismos de exclusão ou interdição, desidentificando-se com a formação discursiva que
o constituiu, que o fez sujeito, para identificar-se com uma nova formação discursiva. Em
153
outros termos, o lavrador, o camponês, determinado e constituído pelo discurso da ideologia
capitalista, um sujeito de “direitos e deveres assegurados” pela sociedade, sendo esta também
ordenada e constituída pela mesma ideologia, se desidentifica com a “forma-sujeito” (a forma
de sujeito de direito, jurídico) produzida historicamente pela ordem do capital, para
transformar-se no revolucionário sem-terra, constituído, agora, por um novo discurso, ou
interdiscurso.
No discurso do MST são evocados a Constituição (Estatuto da Terra), as leis de
desapropriação de terras (Ações Discriminatórias), entre outros dispositivos. Ou seja, indica a
ferramenta legal, o dispositivo legítimo de sua luta. Pois a ocupação “só acontece para forçar
o governo a cumprir a lei”. O que indica a oposição, a disputa discursiva na qual os sujeitos se
engajam. Assim, “crimes”, “bandidos”, “baderneiros” apontam formações discursivas
antagônicas presentes nos discursos da luta pela terra.
A discussão em torno do discurso jornalístico abre nova versão do conflito entre
formações discursivas dominantes. Quando a pauta é a terra, o sujeito na posição de jornalista,
porta voz da classe dominante se inscreve em determinada região de sentido para enunciar,
predominantemente contra o MST.
A FD dominante circula na imprensa sempre promovendo a satanização, a
demonização dos sem-terra, expulsando e negando sua condição reivindicatória. A
criminalização dos líderes faz parte de um jogo discursivo promovido pela ideologia,
topicalizando a marginalidade em dose dupla: além de serem expulsos da terra, e das mínimas
condições de sobrevivência, os sem-terra, são expulsos também da legalidade, o que os
potencializa como o grande inimigo, o mal da atualidade brasileira.
Contra essa FD dominante há a resistência do sujeito ou o movimento do sujeito na
posição de resistência. A necessidade urgente de buscar alternativas de sobrevivência, a
desigualdade social e a dificuldade de interlocução com os líderes políticos fixados no
governo, temperam os sentidos de indignação, revolta e mobilização social.
O imperativo da construção de um ethos forte e inclusivo potencializa a Luta pela
Terra. A voz abafada e negada historicamente não se cala, já que a memória discursiva, (o
interdiscurso) também mobiliza e faz significar, nas frestas do discurso, o discurso dos
camponeses e dos trabalhadores ao longo das lutas pela terra desde o século passado. A luta
hoje se inscreve e se reveste nas tentativas do sujeito-sem-terra para legitimar seu discurso,
seu movimento, suas reivindicações, procurando instaurar uma FD antagônica à dominante.
154
4.5. A eficácia ideológica: ouvidos dominantes, vozes silenciadas
Do nosso ponto de vista, a evidência sobre a qual o discurso jornalístico se sustenta, na
negativização do MST, está na noção de uma moral. Dito de outra forma, está sempre sendo
mobilizado no discurso jornalístico interdiscursivamente a memória de uma moral, de um
direito (o do capitalismo) partilhado por leitores e jornais, no processo discursivo de produção
de sentidos para o MST.
A imposição dessa memória determina que não se pode (e nem se deve) falar
positivamente sobre o MST. As denominações, como pudemos observar, são expressivas
nesse sentido. Sendo sempre negativas, essas denominações apontam, então, para a existência
de processos de significação para o MST produzidas em outra matriz discursiva própria ao
Movimento. A internalização desses sentidos produzidos em outra matriz, sob a forma de
negativização e desqualificação indica uma tensão: a FD dominante não pode ignorar a
existência desses outros sentidos e, então, de forma estratégica, internaliza a matriz divergente
para domesticá-la.
Nas seqüências em análise encontra-se, portanto, a tensão entre duas FDs distintas,
oponentes e em luta. Uma, que chamaremos de Formação Discursiva Antagônica (FDA), a
qual comparece enquanto sentido a ser antecipadamente negativizado e rejeitado pelo efeito
da determinação discursiva que se forma com a dominância de sua oponente, a qual
chamaremos de Formação Discursiva dos Brasileiros (FDB).
Nesta última, a FDB, em foco nesta pesquisa em função de sua dominância no
discurso jornalístico-político, encontra-se a organização do que pode e deve se dizer sobre os
brasileiros, instituindo, ao mesmo tempo, o espaço enunciável sobre o MST. É sob o efeito da
FDB que se internaliza, no discurso jornalístico, a direção de sentidos negativizada para o
MST. Ao mesmo tempo, ao incorporar tais sentidos, o discurso jornalístico se torna palco de
rituais enunciativos que vão produzindo e sustentando sentidos para o que seja o brasileiro.
A FDB, hegemônica, se lança como um bloco fechado e homogêneo no que diz
respeito aos processos de significação do MST, embora toda FD seja, por definição, uma
unidade dividida, apresentando contradições internas. Nas seqüências discursivas em análise
detectamos a ação do interdiscurso, permitindo a fixação do que se diz no domínio da
atualidade da enunciação jornalística. Nos enunciados abaixo, podemos ver a importância do
discurso jornalístico, nesse aspecto, uma vez que faz circular formulações que cristalizam a
negativização no processo de significação. Acompanhemos duas entrevistas publicadas, uma
155
no jornal OI com o líder do MST José Rainha Júnior e outra na FSP, com o líder João Pedro
Stédile:
79) O líder do Movimento dos Sem Terra (MST), José Rainha Júnior, comandou na madrugada de ontem, mais uma invasão à fazenda São Domingos, no município de Sandovalina. (...) Apesar da amplitude da ação, o clima era de tranqüilidade entre os invasores (...).“Não temos armas e não pretendemos lutar contra ninguém. Queremos que o governo promova a reforma agrária para que possamos trabalhar em paz” (Título: Sem terra voltam para São Domingos, OI, 28/10/95) (grifos nossos).
80) (...) Quando realizamos o primeiro encontro nacional, nem nome havia. Era apenas um
encontro para dar unidade a um processo de lutas localizadas e estaduais dos movimentos camponeses. (...) Nossa base doutrinária não é sectária nem dogmática. Nós nunca nos expressamos contra o capitalismo porque alguém nos deu uma aula de que o capitalismo é perverso. O movimento sempre se expressou contra a exploração do trabalho dos camponeses. E debatemos a idéia de que a reforma agrária pode ser uma forma de eliminar a exploração. (Título: ‘O MST está numa situação muito boa”. FSP, 19/01/04, p. A6).(grifos nossos)
Do ponto de vista discursivo, então, o que está em jogo neste espaço de tempo, isto é,
da fundação do MST até hoje, é um acontecimento discursivo que inaugurou, nas páginas dos
dois jornais o enunciado fundador “o MST é um inimigo” definindo e fixando um sentido em
função da predominância de uma FD, a da FDB. A fixação deste enunciado, na forma das
muitas paráfrases, se compõe no confronto entre formações discursivas, causando
silenciamentos na linguagem política. O discurso jornalístico sobre o MST tem repercussão
não apenas para o futuro, numa forma de prevenção contra o perigo representado pelo
Movimento, mas também atua em retrospectiva, ao confirmar já-ditos negativizados, ainda
que hipotéticos sobre o comunismo.
O MST então, é uma organização de maus cidadãos, ou ainda um grupo que quer
“desestabilizar a ordem democrática”. Ao mesmo tempo, o núcleo de significância que
emerge da FDB em torno de brasileiro também pode ser delineado mais incisivamente neste
período, um saber que o brasileiro teria de si mesmo e de outras formações, por exemplo, a
comunista.
A despolitização da diferença ideológica se realiza pelo deslocamento da idéia das
ocupações de terra para o processo revolucionário de outros países que levou ao regime
comunista. É o que podemos ler no recorte abaixo, em que o dizer já-dito e dominante contra
o MST evoca uma memória que já se construiu há muito e que se encontra ameaçada de
desestabilização a partir da ameaça desse ‘inimigo’.
156
81) (...) são os objetivos descaradamente políticos de alguns membros do MST, a arregimentar massas com o intuito de criar um clima de radicalização que, em seus delírios abriria perspectiva para uma “revolução” socialista no campo (EDITORIAL, Título: Abril vermelho, FSP, 30/03/2004).
É assim que a FDB internaliza, domesticando FDA. É interessante observar que os
sentidos produzidos pela FDA neste processo de domesticação estão silenciados pela FDB.
Nesse confronto em que é silenciado e domesticado o sentido da FDA temos: para não se
dizer ocupação, diz-se invasão, para não se dizer reforma agrária, diz-se revolução socialista
no campo. Vamos, agora especificar esse silenciamento: no primeiro joga a intercompreensão
(Maingueneau, 1997), no segundo, a negativização se instala sobre algo que não está dito,
mas que é pressuposto pela ausência.
Na seqüência discursiva 79, o outro penetra a FDB apenas para ser interpretado
conforme as categorias da mesma FDB. Dito de outra forma, o manifesto de Rainha não
corresponde ao tipo de texto citável pela FDB. No entanto, se é por meio do discurso
jornalístico que essa FDB ganha visibilidade, então ela se acha submetida ao modus operandi
desta outra ordem discursiva. Queremos dizer que, se na imprensa não há como deixar de
noticiar um evento, a questão é como noticiá-lo.
Nos exemplos 79 e 80, a transcrição do discurso dos líderes do Movimento, ou sua
citação no interior da FDB que se encontra dominante em relação ao discurso jornalístico, é
feita de modo a direcionar o leitor no ato de ler.
No texto Queremos que o governo promova a reforma agrária para que possamos trabalhar
em paz”se encontra aberta uma fresta para a entrada desse outro exterior, isto é, encontra-se o
enunciado pertencente a uma outra FD diferente. Mas, se tem a delimitação prévia da
interpretação que os leitores poderiam fazer do texto citado. O texto de Rainha só é inserido
no intradiscurso em uma formulação preventiva – Apesar da (amplitude da ação, o clima era
de tranqüilidade entre os invasores). Na seqüência discursiva 80, é possível verificar tanto um
silenciamento quanto uma imposição seja no momento em que o líder fala sobre os objetivos
do MST em que não é uma doutrina sectária, pressupondo aí um já-dito ou um discurso
sobre, dando uma direção de leitura.
Na seqüência 81, se tem várias formulações predicativas e afirmativas com valor de
verdades absolutas – o MST tem objetivos descaradamente políticos – e uma posterior, que
revela o objetivo do Movimento – que abriria perspectiva para uma “revolução” socialista no
campo. Esse cerceamento de sentidos construído por meio deste conjunto de formulações,
instaura a fronteira entre as duas FDs, isola a FDA e provoca a incompreensão do discurso do
MST citado no jornal OI ou FSP.
157
Estão representados, nessa organização do discurso jornalístico, nestes recortes, um
jogo de simulação em que já se sabe quais são as idéias dos agitadores dos anos 60. Ou uma
associação bastante redutora em que atacam propriedades produtivas, ameaçam o regime
democrático.
Em resumo o MST, a partir de meados de 1990, teve seu sentido marcado
ideologicamente, constituindo um referente discursivo próprio a um modo de construção da
realidade a partir da qual diferenciam-se FDs e posições enunciativas antagônicas. Trata-se,
desta forma, de um núcleo em que se verifica as sínteses do ‘mal-estar’ da sociedade
brasileira. No discurso jornalístico de referência, a valorização de uma significação negativa
assinala a alteridade necessária para a reafirmação do Mesmo: o MST é o sentido impossível
da FDB, é o Outro que não pode acontecer.
No discurso jornalístico, desta forma, quando se faz uma defesa do direito à terra, mas
dentro da ordem o que se percebe é o jogo de relações instalado entre FDs.
Quando o discurso jornalístico discute a necessidade de rever a distribuição de terras,
mas dentro da ordem, o que faz é mobilizar um sentido que faz parte do processo de
colonização brasileiro, isto é, evoca um sentido para o “povo brasileiro” como pacífico e
ordeiro, portanto, faz parte desse processo, segundo Chauí (2000, p. 7) “conceber a divisão
social e a divisão política sob a forma de amigos da nação e dos inimigos a combater”.
De modo que, presente no discurso jornalístico, essa evocação à ordem, ao legal gera
um confronto direto com a formação discursiva do MST que propõe nas ocupações, nos
acampamentos, formas de territorialidades que provocam rupturas nas formações discursivas
hegemônicas.
Quando o MST realiza as ocupações de terra, principalmente, e não exclusivamente,
no Pontal do Paranapanema, sabemos que o que está fazendo nada mais é do que cobrar
juridicamente algo que existe legalmente, ou seja, a Constituição (1988) garante que toda terra
que não cumpre sua função social deve ser desapropriada para fins de reforma agrária. No
Pontal do Paranapanema, em que as ocupações se realizam em terras devolutas, a
reivindicação é mais do que legítima. Só não é legitimada com o acesso, pois além da demora
do governo em regularizar essa questão, tem-se o aparado judiciário atuando com a repressão.
Então quando os movimentos sociais, entre eles o MST, cobram isso do governo, na verdade
estão de acordo com a ordem constitucional; estão cobrando uma solução para um problema
que é apontado na Constituição. No entanto, no caso das terras que não cumprem sua função
social, como se verifica no Pontal, trata-se de terras devolutas decretadas desde 1952. Terras
158
inúmeras vezes ocupadas pelos trabalhadores para as quais os juízes concedem reintegração
de posse sem levar em conta a questão da função social da propriedade como determina a lei.
Assim, é possível afirmar que o judiciário reflete uma posição hegemônica de acordo
com a burguesia agrária. O judiciário não é uma estrutura diferente, pois é uma estrutura
política e como tal reflete uma posição de classe. Assim temos também, de um lado, o direito
dos trabalhadores de reivindicar terras, porque é constitucional, de outro o governo, que além
de não fazer a reforma agrária, baixa decretos e medidas proibindo a pressão por meio das
ocupações.
Cremos não ser difícil caracterizar por meio dos títulos analisados associados aos
enunciados de recortes de outras reportagens dizem, portanto, que “O MST e os trabalhadores
rurais sem-terra são marginais”. Isso de certa forma exime de culpa aqueles que detêm o
poder. Visto que uma das representações do poder se dá através do discurso. Os que têm mais
acesso aos meios de comunicação têm a possibilidade de não só privilegiar o seu discurso pela
produção da notícia, mas também de controlar o discurso dos próprios meios. Daí
entendermos a linguagem como uma forma de disputa social.
Nossas investigações ao perpassarem pelas dimensões ligadas ao uso do poder,
ideologia dominante e análise dos componentes discursivos na veiculação da notícia,
procuraram demonstrar que o jornalismo produz uma percepção peculiar da realidade que
propõe retratar. Mais do que retratar os fatos, a imprensa impõe filtros que tornam essa
representação dos fatos uma indução e nos indica as maneiras pelas quais o discurso está
ligado. Ou seja, está ligado não somente à reprodução de significados, mas também à
produção de identidades, tanto sociais quanto individuais. Ou, em outros termos, mantendo a
concepção de que não há discurso ideologicamente neutro é que se faz necessário uma análise
em que a relação entre linguagem e o social sejam trabalhadas com o intuito de se fazer uma
“leitura” geográfica ou um modo de ler o espaço, através do qual se possa localizar as pistas
do que estamos chamando de determinações sociais do discurso.
Ou conforme nos diz Foucault (1979) os discursos são investidos em formas materiais
e institucionais e governados por práticas discursivas que referem-se às regras históricas e
anônimas que governam o que deve ser dito e o que deve continuar não dito. Mais do que
encerrar a discussão nos propomos entender essas relações e os processos de determinações
sociais que regulam as práticas sociais e suas formas de organização no espaço e os
reordenamentos territoriais que são resultantes dessas relações.
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tempo pôs a mão na tua cabeça e insinuou três coisas. Primeiro, você pode crer em mudanças quando duvida de tudo, quando provoca a luz dentro das pilhas, o caroço nas pedras, a causa das coisas, seu sangue bruto. Segundo, você pode mudar o mundo conforme o coração. Tua pressa não apressa a história. Melhor que teu heroísmo, tua disciplina na multidão. Terceiro, é preciso trabalhar todo dia, toda madrugada para mudar um pedaço de horta , uma paisagem, um Ser Humano... mas mudam. Essa é a verdade.
Domingos Pellegrini Jr.
162
Ao começarmos este trabalho, nos perguntávamos sobre a forma como havia se
formado no discurso jornalístico uma representação sobre o MST que desqualificava suas
ações, instituindo uma produção de sentido para o Movimento como inimigo em potencial do
sistema de governo e de sociedade, dessa forma não permitindo que a Luta pela Terra e pela
reforma agrária fossem significadas.
Essa questão levou-nos a compreensão de que a imprensa, enquanto uma prática
discursiva institucional, apesar de ter como característica a heterogeneidade, funciona
homogeneizando os sentidos e instituindo como ‘verdades’ o que ela pôs (e põe) em
circulação. Se, por um lado, ao significar o MST o discurso jornalístico abrigou vários
discursos sobre o Movimento, por outro, apagou as diferenças políticas. Por se achar
assujeitado ao interdiscurso da FD dominante, apagou as contradições e estabeleceu uma
direção de sentidos única para o Movimento. Daí considerarmos que a prática discursiva
jornalística inscreve-se num campo histórico, geográfico e social das relações de forças em
luta pela hegemonia na produção de sentidos.
Utilizando-se de denominações que se destacam no texto, pela repetição, pela forma
rotineira de enunciar, pelo excesso de adjetivos, delimitamos o que estabelece a produção de
sentido para o MST nas reportagens e quais as direções de sentidos provocadas pelos
enunciadores. Nosso objetivo foi, ainda, o de apreender a partir dos discursos veiculados nos
jornais OI e FSP como foi sendo estruturado um saber sobre o Movimento por meio de uma
representação sempre negativizada, evidenciando os sentidos para a violência e radicalidade,
conforme explicitado no capítulo I.
No corpus de análise, destacamos algumas denominações do que temos enquanto
direção e produção de sentido, o que estabelece o papel de uma memória que atualiza
enunciados e uma formação discursiva hegemônica para o Movimento:
1990 –1994: Assaltam, seqüestram; saqueiam, ateiam fogo, destroem e matam, tem leis e
polícia próprias; agem em represália, é um problema de polícia; terrorismo é a principal trilha
que seguem, entre outros;
1995 – 1999: Quer o marxismo no país; prepara revolução; copia modelos de organizações
‘revolucionárias’; lê biografia de revolucionário (Guevara); prepara a revolução; é movimento
de fachada; planeja criar uma área de insurgência no Pontal;
2000 – 2004: provoca dano para a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva; obteve influência
inédita na atual administração; leva empresário a cobrar ‘ação enérgica’ de Lula contra
invasão; ruralistas acusam Planalto de ser ‘inerte’ e ‘leniente’com sem-terra.
163
Fundamentalmente buscamos mostrar que o discurso jornalístico, enquanto uma forma
de manutenção de poder atua na ordem do cotidiano, criando uma dinâmica territorial
específica, produzindo territorialidades específicas ao agendar campos de assuntos sobre os
quais os leitores podem/devem pensar e organizando direções de leituras para tais assuntos.
No cotidiano, o leitor nem sempre tem como perceber os processos de filiação de sentidos,
isto é, os deslocamentos e re-alocamentos de memória, reforçando a ilusão de unidade e
transparência da multiplicidade do presente e das indicações do que pode vir a ser.
A partir das análises realizadas, julgamos que uma das principais características do
discurso jornalístico é pretender-se explicativo. Ou seja, os dois jornais procuram “explicar”
as coisas do mundo para seus leitores. Para isso recorrem freqüentemente ao “conhecimento
legitimado” por meio de vozes consideradas autorizadas (juízes, advogados, especialistas) e
de dados que podem ser quantificados em tabelas, gráficos, índices e mapas, datas. Explicar,
portanto, é próprio de quem julga deter um saber.
Os protagonistas do discurso (interlocutores) não são somente seres empíricos, mas
representam lugares determinados na estrutura social. Conforme posto por Pêcheux e
Foucault, as relações entre esses lugares (de quem emite o discurso) acham-se representadas
no discurso por uma série de formações discursivas (FDs) que designam o lugar para aqueles
que enunciam. Assim, aquele que fala (enuncia) o faz de um determinado lugar que regula o
seu dizer. Processo de interdição, como nos diz Foucault: ninguém diz o que quer e de
qualquer lugar. Podemos dizer, então, que o discurso jornalístico enunciado nos dois jornais
enuncia para um tipo determinado de leitor e também, oscila entre o discurso do poder e o
discurso do saber.
Nada é neutro nem transparente quando se refere a práticas discursivas. Os sentidos
são produzidos em formações discursivas e são regulados por rituais contextualizados
histórica e geograficamente, são enfim, mobilizados interdiscursivamente enquanto
exterioridade que afeta constitutivamente o sujeito. Entretanto, a ideologia da transparência
dos sentidos na linguagem se faz presente de várias maneiras e produz o efeito de literalidade
que apaga o processo de imposição hegemônica de uma interpretação.
A ordem do discurso jornalístico com seu sistema de exclusão está marcada por um
tipo de relação com a verdade e com a informação relacionada com a ilusão referencial da
linguagem de um lado e de outro, com seu próprio processo histórico de constituição. Isto
quer dizer que no discurso jornalístico já se tem uma memória da própria instituição da
imprensa agindo na produção das notícias. Memória que atua como filtro na re-significação e
na forma como se atribui sentido ao mundo.
164
Ao fazermos esse percurso tínhamos como pressuposto o vínculo entre o discurso e a
produção do espaço. Analisando os discursos sobre o MST sujeito social, a partir das
construções discursivas da imprensa, somos levados a afirmar que o discurso, enquanto uma
prática social é um elemento ordenador de espaços e territórios. Principalmente em seu caráter
de disciplinarização de condutas.
Partindo do pressuposto de que o homem é um ser situado histórica e geograficamente,
podemos ver como o sujeito enunciador, assim caracterizado, articula as dimensões espaciais
no seu discurso. Por exemplo, nas reportagens, no primeiro corpus de análise (1990-1999),
podemos perceber que a indicação espacial está centrada em torno de uma polarização entre
um AQUI (no Brasil) versus LÁ (em Cuba, Alemanha, Colômbia ou outros países que são
mencionados nas reportagens como aliados do MST), no jogo entre as duas FDs, isto é, a
Formação Discursiva para Brasileiro e a Formação Discursiva Antagônica. Dessa forma,
espaço e discurso se cruzam: o espaço constitui a instância em que a enunciação discursiva
por meio de seu corpo verbal se concretiza, se materializa; não só num espaço físico,
geográfico, mas também num espaço politicamente constituído em que as diferenças e
contradições precisam ser apagadas para que a hegemonia se constitua.
Buscamos evidenciar que a prática discursiva da imprensa, isto é, o discurso
jornalístico se constitui em um espaço, dado que sua construção é socialmente produzida, tem
uma ancoragem territorial. Trata-se de um discurso que constrói territorialidades manifestas
nas várias formas de denominar o MST e os sem-terra. O discurso enquanto uma prática
social é, no nosso modo de ver, condição indissociável para a constituição de grupos sociais,
os quais travam, na luta pelo espaço, disputas que se reproduzem nas dinâmicas territoriais,
evidenciando sua dimensão espacial.
Ao analisarmos um espaço e um território a partir da dimensão do discurso, buscamos
ampliar a compreensão de um espaço de lutas como o do Pontal do Paranapanema, tanto no
seu processo de ocupação, como em seu processo de produção. Verificamos que a construção
um discurso por meio de prática discursiva contextualizada social, histórica e
geograficamente apresenta uma materialidade nos lugares da Luta pela Terra e nas ações do
MST nos acampamentos e assentamentos rurais.
O território da Luta pela Terra foi o nosso viés de “leitura geográfica”, por meio da
materialização dos sentidos produzidos pelo discurso jornalístico para as ações do MST.
A relação entre MST e o discurso político da imprensa define um campo de
investigação que busca identificar as formas possíveis de utilização de aspectos particulares
165
da luta pela terra na construção de um imaginário coletivo de uma sociedade e a
instrumentalização deste imaginário para ações de base política em seu território.
Essa dissertação reflete, de certa forma, nossa busca em apreender essa complexidade
de relações que são postas no funcionamento do discurso jornalístico. Seja a partir das
denominações, das significações presentes no material analisado, seja a partir da tentativa de
identificar as condições de produção do discurso jornalístico, naquilo que o configura. A ação
de denominar, de repetir pode ser tomada como movimento de direção de sentido. De
deslocamento de uma memória que sempre reatualiza um discurso. No caso do MST, como já
o salientamos, uma memória sobre ou um discurso sobre outros movimentos de luta pela
terra. Movimento de produção de sentidos que na linguagem, na repetição ou na imposição do
mesmo repete o mecanismo que inaugura a cada ocorrência, uma nova enunciação, a cada
enunciado uma formação discursiva reatualizada.
Desse modo, pensar o discurso no espaço das especificidades, guardando ou
resguardando o conhecimento específico de uma área, como a geografia, é um caminho que se
configura em possibilidades e trilhas as mais diversas.
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