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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA MONOGRAFIA ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841) São Luís 2013

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

    CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

    CURSO DE HISTÓRIA MONOGRAFIA

    ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES

    LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)

    São Luís 2013

  • ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES

    LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)

    Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciada em História.

    Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula

    Borralho.

    São Luís 2013

  • Moraes. Isabel Cristina Medeiros de.

    Letras Negras: representações escravas nos jornais maranhenses

    – anos 1830 a 1841/ Isabel Cristina Medeiros de Moraes – São Luís,

    2013.

    93 fls.

    Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade

    Estadual do Maranhão, 2013.

    Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho

    1. Escravidão. 2. Jornais. 3. Anúncios. 4. Representações. 5.

    Permanências I.Título

    CDU: 070. 326.3 (812.1)”1830/1841”

  • ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES

    LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 -

    1841)

    Monografia apresentada ao Curso de História, da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciado em História.

    Aprovada em / /

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________ Prof. José Henrique de Paula Borralho (Orientador)

    Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão

    _______________________________ Prof. Marcelo Cheche Galves

    Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão

    _______________________________ Profa Tatiana Raquel R. Silva

    Doutora em Estudos Afro-brasileiros

    Universidade Estadual do Maranhão

  • A Antônio Neres de Morais, Bernardo

    Mascarenhas e tia Maria.

    Todos in memoriam, mas presentes em

    emoções, intuições, lembranças e

    saudades constantes...

  • AGRADECIMENTOS

    Como não é possível se realizar um trabalho solitariamente, sempre

    teremos alguém a nos auxiliar, agradecemos sinceramente:

    A Deus, a Oxalá, a Ogum, aos Pretos-velhos, aos amigos de luz e

    mentores espirituais de longas datas, aos familiares que já partiram, agora

    transformados em vigilantes atentos. Acredito que todos me sustentam

    incondicionalmente, independente da experiência da fé. Obrigada pela presença

    constante, especialmente na realização desta tarefa.

    À minha querida mãe Izete Féques Medeiros, pela oportunidade que

    tenho de proporcionar-lhe esta alegria. À Douglas Medeiros, único irmão de sangue,

    à cunhada Marliete, pela paciência durante este período, onde a responsabilidade

    com este trabalho falou mais alto. A todos, a gratidão por entenderem as ausências.

    Aos pequenos da família, Antônio, Heitor e Sophia, fontes inesgotáveis de

    amor e alegrias.

    Um agradecimento especial às filhas queridas, Cláudia, Ana e Fernanda,

    as quais certamente encerram esta etapa comigo, com o orgulho estampado no

    rosto.

    A todos os primos queridos, tios(as) e outros familiares. Trago um

    reconhecimento maior por alguns, mas prefiro não citá-los diretamente.

    Aos amigos do coração, de todas as idades, endereços, crenças,

    convicções e opiniões diversas, os quais de alguma forma engrandecem minha

    existência e me fazem prosseguir: Sâmara Lima (pelo carinho e amizade),

    Mariazinha (pelo incentivo, pelo notebook), Jandira Paiva (pelo carinho), Drª

    Bethânia (pela amizade e respeito), Enfª Carla Azevedo (pelos bons momentos),

    Rafah Valadão (pela alegria de sempre), Kris Maciel (pelos longos papos) e tantos

    outros de Brasília – DF, assim como de Morros-MA.

    Aos caríssimos e inesquecíveis amigos da turma 2005.1 da UEMA,

    Nayara Meggie, Elizabeth Ferreira, Marcelo Fortaleza, etc. Seus lindos, muito

    obrigada pelas alegrias compartilhadas, pela companhia durante a graduação, e

    especialmente, nas viagens por este Brasil afora.

  • Ao irmão de alma, Uslan Mesquita o qual amo incondicionalmente. Pela

    companhia, pelo amor, pelo colo, pela paciência, pelas loucuras, pelas gargalhadas,

    por enxugar as lágrimas, pelas “ogrices”, pelas “viagens”...

    Só um beijo no coração poderá expressar a gratidão a Samira Tércia,

    pelo apoio irrestrito ao entregar em minhas mãos a chave da casa, onde pude me

    recolher durante meses e conseguir a tranquilidade necessária para esta tarefa. Meu

    carinho total à Lacerda Júnior.

    Um agradecimento mais que especial à Profª Cirana Porto. Desse

    contato, em 2003, que se transformou em amizade sincera e extremo respeito, veio

    o incentivo de que eu era capaz de adentrar o seleto mundo da universidade pública,

    aos 39 anos. Por se emocionar e comemorar junto comigo todas essas conquistas.

    Nossos momentos serão para sempre. Sem esquecer o caro Luis Guilherme.

    À Mariza Bezerra, o meu mais irrestrito reconhecimento pela

    intelectualidade e disposição, as quais me auxiliaram sobremaneira. Obrigada

    mesmo!

    Ao querido orientador/amigo/professor Dr. Henrique Borralho (Papai

    Urso), pela ajuda indispensável nesta árdua tarefa.

    Aos professores do curso de História da Universidade Estadual do

    Maranhão, pelo suporte intelectual, pela ampliação do conhecimento e da cultura,

    critérios que estarão comigo por toda a vida.

  • “Pelo bastão de Xangô e o caxangá de

    Oxalá, filho Brasil pede a benção de Mãe

    África”.

    Clara Nunes

  • RESUMO

    Vastas e consistentes pesquisas existentes acerca da escravidão africana no Brasil

    demonstram a notoriedade do tema. Nesse contexto, este trabalho analisa as

    representações e/ou imagens sobre esse africano submetido ao trabalho

    compulsório, contidas nos anúncios de jornais ludovicenses, na primeira metade do

    Século XIX, especificamente entre os anos 1830 a 1841. Para tanto, necessário se

    torna entender essa “colcha de retalhos” chamada economia maranhense, debater a

    situação do escravo e do negro, suas vivências nesta província, assim como a

    influência da imprensa – chamada de “quarto poder” – na elaboração dessas

    representações e ambiguidades, inclusive a formação do racismo.

    Palavras - chave: Escravidão. Jornais. Anúncios. Representações. Permanências.

  • ABSTRACT

    Vast consistent and existing research about African slavery in Brazil demonstrate the

    notoriety of the subject. In this context, this paper analyzes the representations and /

    or images on this African subjected to compulsory labor, contained in newspaper

    advertisements ludovicenses in the first half of the nineteenth century, specifically

    between the years 1830 to 1841. Therefore, it becomes necessary to understand this

    "patchwork" economy called Maranhão, discuss the situation of slave and black, their

    experiences in this province, as well as the influence of the press - called "fourth

    estate" - in making such representations and ambiguities, including the formation of

    racism.

    Keywords: Slavery. Newspapers. Ads. Representations. Stays.

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Quantidade de escravos em anúncios entre os anos 1841-1856 ............ 48

    Tabela 2 – Incidência nos jornais de avisos sobre a Balaiada .................................. 74

    Tabela 3 – Diferentes categorias de anúncios sobre os escravos nos jornais .......... 75

  • SUMÁRIO

    LISTA DE TABELAS .............................................................................................. 11

    1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13

    2 A ECONOMIA E ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE ...................... 19

    2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”

    econômica ................................................................................................................. 19

    2.2 Conflitos sociais: a Balaiada ................................................................................ 29

    2.3 Novos hábitos: importação de luxos, prosperidade econômica e intelectual....... 34

    3 ÁFRICA-BRASIL-SÃO LUÍS: aspectos da Escravidão ...................................... 38

    3.1 Escravidão em São Luís – anos 1830 – 1841 ..................................................... 41

    3.2 Jornais na Província Maranhense ....................................................................... 50

    4 A IMPRENSA NO SÉCULO XIX: o “quarto poder” na sociedade e as

    representações sobre os escravos ....................................................................... 57

    4.1 Imprensa Jornalística no Maranhão .................................................................... 59

    4.2 Jornais como fonte histórica ................................................................................ 60

    4.3 O escravo e o negro como mercadoria na propaganda brasileira ....................... 62

    4.4 Anúncios dos escravos africanos nos jornais maranhenses ............................... 65

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 77

    REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 82

    ANEXOS ................................................................................................................ 88

  • 1. INTRODUÇÃO

    Em 13 de maio de 1888, às vésperas da Proclamação da República, no

    Brasil, após assinatura da “famosa” Lei Áurea, a princesa Isabel declarou

    oficialmente extinta a escravidão no Brasil. Esse ato representou um grande avanço

    para o país, mas ocasionou problemas os quais permaneceram até os dias atuais.

    Houve uma “Abolição” da escravatura, sem que se pensasse na inserção dos

    negros, agora homens livres e cidadãos dessa nação. Ou, como diz Lopes1 (2010, p.

    50) “[...] a sociedade brasileira conseguiu um negócio impressionante, que é criar

    uma cultura negra sem negros”.

    Há que se considerar que, após a instituição dessa lei, os barões do café

    incentivaram a imigração de trabalhadores europeus, em detrimento do negro que

    continuou a perder seu lugar nas propriedades rurais. E, temos o negro, agora livre,

    relegado à própria sorte, às margens da sociedade, alijado de direitos básicos2. Esse

    quadro termina por se configurar em preconceito racial e exclusão social. Esse

    negro descobre que aquelas lutas pró Abolição, foram apenas os primeiros e

    incipientes passos em busca de igualdade, especialmente, a racial.

    O estigma da inferioridade do negro foi reforçado no Brasil, com o

    advento de ideias europeias, como o darwinismo social, o positivismo, as teorias

    evolucionistas de cunho racial, propagadas pela etnografia europeia do século XIX,

    que transformava o negro em “subproduto do racialismo europeu” (HERNANDEZ,

    2005, p.131).

    Desde o século XVIII, filósofos iluministas na busca por uma “ciência geral

    do homem”, reforçavam a imagem pejorativa transmitida ao longo do tempo. O

    europeu, dito homem branco ocidental, referencial de inteligência, civilidade, pureza

    1Palavras de Nei Lopes (Advogado, escritor, militante social e pesquisador da cultura afro-brasileira)

    em entrevista concedida aos jornalistas Vivi Fernandes de Lima e Rodrigo Elias, da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, Nº 53, Fev 2010. 2 Além de deixados à própria sorte, ficaram sem o chamado “capital social” – um espécie de conjunto

    de relacionamentos ditos sociais, necessários à sua manutenção e reprodução - que Santos nos esclarece como sendo “[...] um conjunto de recursos atuais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de intercâmbio e de inter-reconhecimentos, ou em outros termos, à vinculação de um grupo, como conjuntos de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos) mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU apud SANTOS, 2005, p.21).

  • e moralidade, viu na escravidão e submissão do homem africano, o caminho para

    que o mesmo se salvasse.

    Têm-se no século XIX, o pensamento predominante do “culto da raça”,

    onde as pessoas eram divididas em raças distintas e desiguais - negra, amarela e

    branca - o meio ambiente influenciava a construção de diferenças culturais e a

    biologia mostrava uma diferença estrutural no cérebro do branco e do negro levando

    consequentemente ao pensamento de que o negro era realmente inferior ao branco.

    Em Montelo (1985, p.348) há dois trechos importantes, que convém transcrever para

    ajudar a entender os pensamentos que grassava essa época:

    A maldição de cor é uma falsidade e uma estupidez. A circunstância de ter nascido com esta pele não exclui a minha condição de homem; sou um ser humano como vocês; tenho uma alma, tenho a consciência de meus direitos e deveres, e também o sentimento de minha dignidade e de minha honra. O cativeiro é um crime e crime que se pratica para com outros homens. Não há nada que justifique a escravidão.

    Em outro momento, reitera o autor|:

    [...] com o tempo é isso que vai acontecer no Brasil: o brancos comem as negras, os negros comem as brancas, e os filhos dessas benditas trepadas irão desbotando de uma geração para a outra. Em menos tempo do que se pensa, está saindo um tipo novo, bem brasileiro, que nem é preto, nem também é branco e que vai mandar aqui, como hoje mandam os senhores [...] nossos mestiços vão pensar que são brancos e com mais esta novidade: sem ter ódio dos negros, até gostando deles. Um belo dia, vai se ver, não há mais branco para mandar em preto, nem preto para ser mandado e aí, acabou o cativeiro (MONTELO, 1985, p.428).

    Mas, saindo do universo de Montelo (1985), têm-se Munanga (1988), a

    dizer que esse processo não foi fácil. A sociedade impôs situações ao negro,

    impedindo-o, inclusive, de reagir muitas vezes:

    [...] colocado à margem da História, da qual nunca é sujeito e sempre objeto, o negro acaba perdendo o hábito de qualquer participação ativa, até o de reclamar. Não desfruta de nacionalidade e cidadania, pois a sua conduta é contestada e sufocada e o colonizador não estende a sua ao colonizado (MUNANGA, 1988, p.23).

    Portanto, estava justificada “cientificamente” a situação a qual o negro

    estava submetido, incluindo-se aí, sua pouca rentabilidade, preguiça e possível

    tendência à marginalização. Para a baixa remuneração, trabalho degradante, falta

    de políticas públicas, agressões psicológicas, físicas, ou seja, exclusão social e

  • miséria foi um pulo. Ideias e mecanismos que perduram até os dias atuais, inclusive

    ideológicos de dominação.

    Considerando o dinamismo histórico que circunscreve a presença

    escrava na formação da estrutura social brasileira, assim como os três séculos que

    marcam essa história e suas ambiguidades, a proposta desse trabalho é analisar as

    representações sobre o escravo e seus dependentes, a partir dos anúncios dos

    jornais ludovicenses, Estrela do Norte do Brasil (1830), Echo do Norte (1834, 1836),

    O Publicador Official (1833), O Investigador Maranhense (1836) e Chrônica

    Maranhense (1838, 1839, 1840 e 1841). Reafirma-se que esses anúncios continham

    uma descrição detalhada do sujeito escravizado, dependendo do objetivo

    pretendido: compra/venda/aluguel ou as fugas. Um ponto a ser descerrado e

    analisado é a construção das permanências advindas desses anúncios de jornais,

    as quais acompanharam o negro até os nossos dias.

    Pretende-se verificar de que forma essas descrições fornecem elementos

    subjetivos na construção de uma percepção da sociedade em relação aos escravos,

    levando-se em consideração que dentro dessa sociedade, mais da metade era

    negra. Essa inquietação surge do quadro de contradições de uma sociedade, que

    embora profundamente miscigenada, reserva aos descendentes de africanos uma

    carga de valores negativos.

    Para se chegar aos jornais e consequentemente aos anúncios, foi

    necessário efetuar uma pesquisa na Biblioteca Pública Benedito Leite, através de

    uma disciplina ministrada na graduação, em 2009. Houve o acesso a esse

    instrumento – o jornal Chrônica Maranhense - e abriram-se as possibilidades de se

    trabalhar o tema escravidão, quando do trabalho de conclusão de curso.

    O recorte temporal da pesquisa (1830 - 1841) foi decidido pelo fato de

    que, no primeiro trabalho - em 2009 - as edições do referido jornal do ano de 1838,

    foram analisadas e todos os anúncios sobre escravos devidamente transcritos. No

    entanto, se percebeu que para uma empreitada maior como um trabalho

    monográfico, esse recorte temporal seria insuficiente para abarcar as conjecturas

    necessárias.

    Outro ponto a ser considerado foi a quantidade de periódicos a serem

    analisados: somente o Chrônica Maranhense não daria conta de responder às

    inquietações que o tema suscitava. Portanto, foi decidido estender o período e a

    quantidade de jornais a se pesquisar.

  • De início, foram analisados superficialmente 12 periódicos, para

    finalmente haver uma concentração específica em cinco jornais, os quais supririam

    as necessidades, ao se aproximarem sobremaneira do período escolhido.

    Quanto à estrutura, os jornais pesquisados se encontram devidamente

    encadernados – alguns microfilmados - e em muito se assemelham: poucas

    páginas, linguagem prolixa e rebuscada, ênfase nas críticas, sem uma organização

    nítida das sessões. Em se tratando dos assuntos, ali se encontra desde romances e

    piadas, passando por ordens do dia, ofícios variados, desagravos, ocorrências de

    violência, relatórios da província, além dos avisos/anúncios. Ou como observou

    Ferreira:

    [...] tratavam das notícias do exterior, da Capital do Império, das outras províncias e do Maranhão, aqui se publicavam ofícios, relatórios, novidades da Câmara Legislativa e da Tesouraria da Fazenda, além das ocorrências policiais, dos obituários, das correspondências, das transcrições [...] [Através desses jornais], podemos perceber em que nível estava o comércio com a Europa, com a chegada constante de navios que traziam tecidos, chapéus, roupas, mobílias e outros acessórios que enchiam os olhos consumidores de uma elite que se espelhava nos moldes europeus. Esta seção nos dá uma noção das transformações pelas quais passava a cidade de São Luís (FERREIRA, 2007, p.22).

    Convém lembrar que isso foi possível devido à abertura propiciada pelo

    advento da Nova História Cultural. Devido esse tema envolver costumes, relações

    de poder entre grupos sociais, representações, além do comportamento humano e

    suas vertentes, a Nova História Cultural é apropriadamente eficaz para tal análise. A

    partir dos novos interesses que passaram a circundar o objeto de estudo foi possível

    substituir também a forma de analisar seu conteúdo. Antes, se compreendia um

    documento, enquanto histórico de outra forma. Ele necessitava oferecer

    credibilidade, ser “oficial”, passar segurança para que os dados compilados

    pudessem ser corroborados a partir de certos critérios. Era necessário haver

    exatidão.

    Mas, a partir do momento em que houve essas mudanças na concepção

    de documento histórico e foi percebida a necessidade de se ampliar os campos de

    estudos, as cartas, os escritos de viajantes estrangeiros, os processos judiciais, as

    músicas, os panfletos, sermões de pregadores, receitas médicas e gastronômicas,

    diários e correspondências oficiais e particulares e até mesmo as tradições orais,

  • passaram a serem estudados e considerados documentos e/ou herança cultural,

    passíveis de reconstruções históricas.

    E os jornais se encaixam nessa concepção, pois que se apresentam

    como fonte de debates e instrumentos de pesquisas variadas. Sua característica

    peculiar de “ideias em movimento”, sua interação e alcance social, os torna um forte

    instrumento na divulgação de imagens. “[...] Os impressos, suas ideias e

    informações relacionavam-se de forma dinâmica com a sociedade, circulavam, eram

    repetidas e podiam ser reapropriadas.” (MOREL apud FERREIRA, 2007, p.44).

    Importante se torna entender os olhares da chamada elite acerca do

    sujeito escravizado nesses anúncios. Essas visões são baseadas em percepções e

    padrões distintos, quase sempre gerando estereótipos, os quais advêm dos

    interesses dessa elite. Fica perceptível então, que as chamadas representações são

    determinadas pelos grupos. Portanto, as representações escravas geradas a partir

    daí se espraiaram pela sociedade ludovicense – e brasileira - fundindo o africano, o

    negro e o escravo em um só elemento. Conforme Oliveira (2008, p.49):

    [...] essa forma de representar e explicar a condição a que eram submetidos os africanos [...] adquire descomposturas cotidianas muito comuns no Maranhão [...] as representações dos negros escravizados eram reforçadas nos textos jornalísticos, nas memórias, nas propostas dos governantes, a literatura pela força das ideias evolucionistas [...] a manter a representação dos negros, de um modo geral como integrantes de uma espécie num estágio inferior de evolução humana.

    Corroborando esse ponto de vista, Ferreira (2007, p.49) relata que essas

    representações traduzem a realidade mental dessa elite maranhense, na primeira

    metade do século XIX, as quais certamente se fazem presentes nos anúncios dos

    jornais pesquisados:

    [...] acreditamos que o imaginário ludovicense na primeira metade do século XIX teve sua base concreta de existência na euforia material vivenciada pela cidade de São Luís, adquirido em consequência dos lucros da lavoura agroexportadora sustentada pelo trabalho escravo, e em conjunto com as representações elaboradas pela elite maranhense sobre esse momento e sobre a composição da estrutura social maranhense, que incluía a si própria e os outros estratos sociais.

    Esta pesquisa foi organizada em três capítulos distintos, considerando as

    especificidades necessárias. No capítulo intitulado “A Economia e a Escravidão na

    Província Maranhense”, se busca entender a economia maranhense, essa “colcha

  • de retalhos”, sua suposta decadência e/ou crises e as exportações no período.

    Sempre relacionando à escravização do africano – força motriz, nesse contexto.

    Como pano de fundo, as questões sobre a Balaiada e o letramento, o “aumento” da

    intelectualidade da elite maranhense.

    No capítulo seguinte, “Formação do Racismo - África – Brasil”, a proposta

    é debater a situação do negro, sua chegada a este continente, suas vivências diárias

    na cidade de São Luis entre os anos 1830 a 1841. Paralelo a isso tudo a formação

    do racismo, as teorias raciais, os jornais.

    Para encerrar a sequência de capítulos, “A Imprensa no Século XIX: o

    “quarto poder” na sociedade e as representações sobre os escravos” trata da

    imprensa no Século XIX, as imagens e/ou representações do negro e do escravo

    nessa dita imprensa, o detalhamento das características dos mesmos nos anúncios,

    obviamente em São Luís, foco desta pesquisa.

  • 2. A ECONOMIA E A ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE

    Na tentativa de se entender a relação entre desenvolvimento econômico e

    escravidão no Maranhão no século XIX, é necessário analisar o cenário econômico

    que se esboça em períodos anteriores, especialmente no que diz respeito às

    exportações. O Maranhão, enquanto engrenagem de uma estrutura colonial centrou

    suas atividades na agricultura mercantil orientada para o mercado internacional,

    empregando o trabalho compulsório como força motriz.

    A economia maranhense foi se moldando, ao longo do século XVIII, em

    função das oscilações do mercado externo, para atender inicialmente às demandas

    decorrentes das crises provenientes das guerras de independência das Treze

    Colônias e o crescente mercado consumidor de matérias-primas na Europa a partir

    da Revolução Industrial.

    No entanto, do ponto de vista econômico o Maranhão é tradicionalmente

    percebido sob o signo ideológico da decadência. A construção dessa “ideologia”

    corresponde a um discurso empregado largamente pelas elites e repetido de forma

    acrítica pela imprensa local afim de consolidar uma imagem de dois momentos

    díspares e complementares da economia maranhense.

    Um primeiro que corresponderia a uma “idade de ouro da lavoura da

    província (fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX)” - identificada

    como uma fase de prosperidade – reflexo direto das Reformas de Pombal com a

    criação de uma companhia comercial e a abundante entrada de escravos africanos

    para incrementar a produtividade. Posteriormente, a fase da ruína econômica, social

    e cultural provocada pela abolição do sistema escravista (COSTA, 2001, p.81).

    2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”

    econômica

    Sobre a economia do Brasil em tempos imperiais, Fragoso (apud

    ASSUNÇÃO, 2010, p.144), esclarece que existia “[...] um substancial setor da

    economia orientado para o mercado interno [...] formado por fazendas escravistas,

  • unidades camponesas (usando ou não o trabalho escravo) e estâncias utilizando

    trabalho livre não assalariado”, sendo que essa produção poderia ser de

    subsistência, para exportação e/ou para o mercado interno.

    Algo semelhante ocorria na economia da província do Maranhão: algumas

    fazendas produziam arroz e algodão para o mercado externo – e alimentos para sua

    própria sobrevivência - enquanto as de gado e de mandioca produziam para sua

    sobrevivência interna. Por isso, segundo Assunção (2010, p.144) é possível

    entender e “[...] diferenciar claramente entre o setor monetário e o setor não

    monetário da economia interna e distinguir três setores e não apenas dois, na

    economia: a produção de (auto) subsistência (Setor A), a produção para o mercado

    interno (Setor B) e a produção para exportação (Setor C)”.

    Mas, para Lisboa (apud FARIA, 2003, p.9), antes nenhuma atividade

    lucrativa se desenvolveu por aqui e por volta de 1685, São Luís “[...] era uma

    cidade pequena e pobre com pouco mais de mil habitantes, residindo em rústicas

    casas, umas de madeira cobertas com folhas de palmeiras, outras de taipa ou

    adobe com telhado de telhas vãs”.

    E assim, a partir do litoral, com pequenas povoações, fazendas de gado e

    engenhos quase sempre às margens dos grandes rios maranhenses, ou seja, por

    esses “[...] caminhos naturais aventuraram-se senhores de engenho, criadores de

    gado, apresadores de índios e coletores de ‘drogas do sertão’ que iam

    descortinando o interior do continente [...]” (BERREDO apud FARIA, 2003, p.9).

    Importante lembrar que já havia uma frente devassando o sul do

    Maranhão, vinda da Bahia, eram os criadores de gado, a partir do rio São

    Francisco. Por volta do século XVIII – primeiras décadas – já existiam fazendas de

    gado espalhadas por essas áreas. São encontradas algumas roças e currais,

    enquanto povoações e engenhos se espalham. São os primeiros cento e quarenta

    anos da colonização portuguesa.

    Para Galves (2007, p.2), houve uma expansão nas lavouras de arroz e

    algodão, desde meados do século XVIII, mas com significativo aumento no início do

    século XIX, especialmente no caso do algodão. O autor também ressalta que a

    abertura dos portos, oficializou uma imensa movimentação de navios ingleses,

    trazendo variados produtos manufaturados e levando daqui, a produção de algodão.

    Com base nesses argumentos, o propósito é perceber de quais formas, a

    economia maranhense e o fenômeno da escravidão estão intrinsecamente ligados.

  • Ademais, busca se compreender também como essa relação alterou as

    representações produzidas a partir dos anúncios dos jornais desse período.

    São Luís – capital da Província e cidade portuária – sempre teve papel

    importante nesse contexto, sendo o Maranhão envolvido com a produção mercantil e

    escravista. Havia intensa redistribuição de escravos para as várias fazendas

    existentes no continente, o que levou Pereira (2001, p.33) a dizer que “[...] a base da

    sustentação material da Província esteve assentada, majoritariamente, na

    escravidão de povos africanos, entre a segunda metade do século XVIII até os anos

    80 do século XIX”.

    Nesse período, mais de quarenta produtos eram exportados do

    Maranhão, como a cera, couros secos, farinha de mandioca, entre outros. Mas,

    principalmente, algodão, arroz e açúcar. Sempre lembrando que essa economia

    continuava limítrofe, insuficiente até mesmo pra suprir as necessidades básicas.

    Some-se a isso, a falta efetiva de mão de obra e tem–se um quadro de continuação

    da pobreza. Encontramos o milho, o feijão e a mandioca como os produtos básicos

    da alimentação da província 3. Importante considerar que a mandioca ainda é um

    dos produtos mais consumidos pela população pobre do Maranhão.

    Mesmo com as oscilações, os altos e baixos do mercado internacional, a

    concorrência dos Estados Unidos e da Índia, o algodão foi o principal produto de

    exportação durante toda a primeira metade do século XIX, seguido da produção do

    arroz. Obviamente, isso requereu um número expressivo de escravos, chegando-se

    a realizar grande importação dos mesmos – fator primordial nesse processo.

    Apesar da presença de diversos estudos sobre a economia brasileira,

    percebem-se as dificuldades para tal análise, pois que “[...] se baseavam em dados

    e estatísticas muito pouco confiáveis” (ASSUNÇÃO, 2010, p.145). Como pensar

    essas questões em relação ao Maranhão, com suas diferenças regionais, sua mão

    de obra escassa e outros fatores, se os trabalhos acerca da economia maranhense

    e as suas dificuldades, quase sempre mostram a repetição dos dados já existentes?

    Ainda há muito a ser analisado sobre esse cenário local para que se

    tenha uma visão mais ampla. Fatores diferenciados certamente interferiram e

    ajudaram a compor e/ou desmistificar esse processo. Existem muitas relações

    3 “[...] da mandioca fabricava-se a farinha, a tapioca (um tipo de polvilho) um aguardente – a tiquira. A

    farinha era o produto mais consumido, acompanhando tanto os alimentos salgados como os doces, costume que foi preservado pelos maranhenses até os dias atuais” (FARIA, 2003, p.14-15).

  • intrínsecas que compõem essa “colcha de retalhos” chamada economia

    maranhense.

    E nesse processo é necessário citar Faria (2003) e seus posicionamentos

    acerca dessas nuances, já que em meados do século XVIII, há a tentativa de

    dinamizar a produção agrícola com a implantação da Companhia de Comércio do

    Grão-Pará e Maranhão pelo Marquês de Pombal. A partir da criação da Companhia,

    a qual é “[...] considerada pela historiografia nacional e regional como um marco da

    colonização maranhense que aí encerraria a sua primeira fase [...], visava-se

    incrementar a economia da Colônia, (FARIA, 2003, p.10). Apesar dessas tentativas

    essa fase é considerada de extrema pobreza:

    Gaioso, que escreveu sobre o Maranhão no início do século XIX (1813) [...] Dizia esse escritor que a produção da capitania era bastante reduzida, destinada apenas a consumo interno e que o comércio era insignificante. Limitava-se à produção das culturas do arroz vermelho, farinha de mandioca, milho, mamona, algum café, etc. [...] havia uma pequena produção de algodão, que os nativos fiavam transformando em novelos e rolos de pano usados em suas permutações de compra e venda (CABRAL apud FARIA, 2003, p.10).

    Outras fontes que atestam a pobreza e a miséria desse período foram as

    deixadas pelo Pe. Antonio Vieira, o qual viveu nesta colônia e foi rigoroso em seus

    escritos, como diz Faria (2003, p.10). Ele relata a falta de açougues, de hortas, de

    locais para comercializar os produtos, que os alimentos se resumiam a peixe e carne

    – algumas vezes – e caça, sendo que esta já andava escassa. Descreve a falta de

    terras boas para plantação de cana-de-açúcar e tabaco e que mal se tinha a

    mandioca por comida diária. Enfim, havia somente uma economia de subsistência,

    resultando na falta de gêneros, na escassez de produtos e, consequentemente, o

    fantasma da fome a rodar.

    Percebe-se que muitos dos trabalhos reafirmam a pobreza da colônia até

    a segunda metade do século XVIII, e que seu desenvolvimento viria atrelado à

    política mercantil do Marques de Pombal e Companhia Geral do Grão Pará e

    Maranhão. Havia toda uma expectativa que esse fosse um dos caminhos para se

    solucionar as inúmeras dificuldades econômicas da colônia. Para Sobral (apud

    CAMPOS, 2004, p.120), a Companhia de Comércio Grão Pará e Maranhão –

    implantada em 1755 – assim como as de Pernambuco e Paraíba, em 1775 - tinha o

  • propósito de reativar ou mesmo reverter esse quadro “[...] através da introdução de

    maiores fornecimentos de mão de obra escrava africana”.

    Apesar de se entender que a Companhia pode ter criado condições para

    o desenvolvimento da economia gerando produção para “[...] o mercado europeu,

    semelhante às demais capitanias do Nordeste e do Sudeste” (ASSUNÇÃO, 2010,

    p.147) é importante considerar as consequências disso, visto que “[...] em poucas

    outras regiões brasileiras, existia dependência tão grande dos fazendeiros em

    relação à burguesia comercial” (ASSUNÇÃO, 2010, p.147).

    Por volta de 1780, com a industrialização europeia e a consequente

    expansão do mercado de algodão, tem – se o Brasil exportando aproximadamente

    75% desse produto, sendo o Maranhão a segunda região exportadora e São Luís, o

    quarto porto exportador do Brasil.

    A queixa maior dos fazendeiros contra a Companhia eram os juros

    abusivos, pois segundo Assunção (2010, p.147) “[...] os lucros dos comerciantes era

    de 45% na importação de fazendas secas da Europa, com adicionais de 5% se a

    compra fosse a crédito [...] e mais altos na exportação”. Essa situação parece que

    não se modificou após o encerramento da atuação da Companhia, já que estudos

    sobre São Luís do final do século XVIII ainda fazem alusões a ricos comerciantes

    portugueses influentes, com grandes fortunas e levas de escravos, gerando assim,

    uma desigualdade social maior que em outras capitanias. Ou seja, não houve

    pobreza absoluta e nem opulência e fartura geral, mas sim camadas sociais

    estabelecidas.

    Outra questão relacionada à exportação, é que os produtos enviados para

    a Europa garantiam altos lucros, enquanto as importações mantinham índices

    variando entre 12% a 51%. Os lucros dos fazendeiros maranhenses eram aquém do

    obtido pelos comerciantes portugueses e os altos preços dos produtos importados

    os deixavam sem solidez financeira. Outro fator preponderante nesse processo foi a

    aquisição de escravos a altos preços, contribuindo para o endividamento dos

    fazendeiros junto a esses comerciantes. Soma-se a esse cenário, o monopólio

    criado pelos traficantes e os altos impostos.

    Em 1808, houve a abertura dos portos brasileiros ao comércio das nações

    europeias, o que parece não ter melhorado a situação dos fazendeiros

    maranhenses. Mesmo com os produtos brasileiros chegando ao mercado inglês

    através dos Tratados Anglo-portugueses (de 1654 e 1730), o era baseado em baixas

  • tarifas de importação “[...] ao passo que os produtos brasileiros continuavam a pagar

    impostos altos para entrar na Inglaterra” (ASSUNÇÃO, 2010, p.149).

    Por volta de 1812, mais da metade das exportações já iam rumo à

    Inglaterra e menos da metade (45%), era importado de lá. Por isso, “[...] o Maranhão

    constituía assim uma província atípica no Império Brasileiro e mesmo na América

    Latina: aqui os negociantes ingleses compravam mais do que vendiam”

    (ASSUNÇÃO, 2010, p.150).

    Referindo-se a tal fato, Galves (2007, p.2) reafirma que a abertura dos

    portos provocou uma movimentação de navios ingleses trazendo produtos

    manufaturados e levando daqui a produção de algodão. Esses mesmos ingleses

    financiavam lavouras e a compra de mais escravos, provocando assim o

    endividamento dos agricultores.

    Essa força econômica e monetária inglesa desencadeou a necessidade

    de medidas protecionistas para os comerciantes portugueses, visto que “[...] os

    ingleses determinavam as taxas de câmbio, os fretes, o valor das moedas e dos

    produtos do país. Tinham papel preponderante na importação e na exportação”,

    segundo Assunção (2010, p.150).

    Essas “desavenças” comerciais e econômicas entre comerciantes

    portugueses e ingleses certamente afetaram os fazendeiros maranhenses. Os

    ingleses tiravam proveito dessa situação, pois que, provavelmente fizeram “[...]

    acordos secretos – monopólio oculto” (ASSUNÇÃO, 2010, p.151) com os

    portugueses. Isso sem falar que os ingleses negociavam direto com os fazendeiros,

    vendendo-lhes a crédito, estabelecendo a forma de pagamento – moedas de prata

    ou ouro e também algodão.

    Essa “reorientação” das atividades dos comerciantes portugueses eram

    os empréstimos a juros altos – prática então controlada, pois o permitido era 6% ao

    ano. Mas os juros cobrados eram de 4 a 6% mensais, o que gerou “[...] execuções

    cruéis por parte dos negociantes” (ASSUNÇÃO, 2010, p.152), ou seja, no momento

    da cobrança dessas dívidas, não havia respeito da parte dos comerciantes

    portugueses em relação aos da Colônia.

    Um fato que pode ajudar a entender essa crise da economia maranhense,

    é que os fazendeiros “[...] gastavam seus lucros na compra de mais escravos (até

    1840) e em importações de luxo [...] seda francesa [...] tecidos de algodão ingleses

  • [...] o Maranhão exportava, portanto, algodão cru para reimportar, sobretudo, tecidos

    de algodão” (ASSUNCÃO, 2010, p.152).

    Não houve tentativa de modernização para enfrentar a concorrência

    internacional, especialmente os Estados Unidos, cujos investimentos propiciavam

    qualidade melhor ao algodão e consequente queda nos custos, o que os levou a

    substituir o Maranhão no comércio com a Inglaterra e essa concorrência provocou a

    queda nas vendas do dito produto.

    Na Europa o preço de algodão já estava em queda entre os anos 1815-

    1817 e aqui no Maranhão ainda havia preços altos entre 1817-1819, levando

    fazendeiros a adquirirem mais escravos a crédito e os negociantes a comprar

    algodão, visando mais lucros. Com a queda dos preços a partir de 1819, ambos

    sofreram grandes prejuízos, ficando sem condições de pagar suas contas.

    Mais fatores ajudaram a compor o cenário da crise na agricultura: a

    Guerra da Independência, a qual desorganizou a produção entre 1822-1823; a

    queda da produção local por questões climáticas, entre outros.

    Enfim, torna-se relevante analisar a “[...] economia regional, a relação

    entre seus diferentes segmentos e os problemas que enfrentavam os agentes

    econômicos no Maranhão” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156). Aparentemente a prioridade

    das autoridades era a exportação, deixando à margem variadas questões internas,

    como a comercialização de alimentos - visto que a população era escassa e mal

    distribuída - o sistema de transportes precaríssimo e a economia de subsistência

    que servia a grande parte da população de escravos e livres pobres.

    Desses alimentos, cita-se a carne seca e verde, além da farinha de

    mandioca, produtos bastante comercializados. Em outra escala mais limitada,

    vinham os produtos lácteos, hortaliças e frutas, peixe, milho, feijão, etc.

    Abastecida por Guimarães, Icatu e Alcântara, São Luís era o principal

    mercado de alimentos. Itapecuru-Mirim “[...] também chamada simplesmente de ‘a

    feira’, era o grande mercado de gado do interior” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156) e

    Caxias tinha uma importância além do regional, pois que servia de porta para várias

    rotas comerciais.

    É importante estudar essas crises na economia maranhense a partir de

    um dos principais produtos comercializados nesta Província, fonte alimentar para os

    maranhenses: a farinha de mandioca. Sua falta no mercado leva os estudiosos a

    várias interpretações. É questionável se o desabastecimento teria sido provocado,

  • em parte, pela preocupação de se produzir para exportação ou pela importação da

    mesma por alguns fazendeiros – o que encarecia os preços na capital.

    Importante mencionar que as Câmaras Municipais eram responsáveis por

    abastecer a população. Por exemplo, a carne verde, cujos contratos previam o abate

    e a venda – sempre por preços fixados pela Câmara – deveria ser em quantidade

    diária suficiente. Como era previsto, esses fatores levavam ao:

    [...] monopólio lucrativos para alguns membros da Câmara ou à sua clientela. Em São Luís, o já referido Antonio José Meireles foi acusado, em 1819, de estar [...] fazendo subir o preço da carne, contra expressa cláusula do contrato [...]. Ainda em 1838, o jornalista Rafael Estevão de Carvalho denunciava as intrigas do chefe informal [...] acusando-o de tentar, outra vez obter lucros ilícitos através do monopólio da carne verde” (ASSUNÇÃO, 2010, p.162).

    Para Assunção (2010, p.162), “[...] a prática de arrematar contratos para a

    venda de carnes verdes continuou no interior, depois da Independência [...]”,

    gerando conflitos, como na chamada Vila do Rosário. E, essas questões estendiam-

    se aos campos de Anajatuba e Brejo, onde os grupos envolvidos nesses conflitos

    seriam os latifundiários, os fazendeiros de gado, as Câmaras Municipais e o

    Governo da Província, todos tentando controlar o mercado local de carne, o que

    certamente prejudicava a população e aumentava a insatisfação.

    São muitos os fatores que ajudaram a provocar a interiorização da

    economia maranhense: a já citada queda do preço do algodão no exterior; a

    reorientação da economia da província devido ao crescimento da população pobre e

    livre, já na primeira metade do século XIX, entre outros. Grupos de fazendeiros

    percebiam e até denominaram esse processo de interiorização da economia de

    “decadência” da lavoura, visto a diminuição dos altos lucros anteriores a 1820.

    É necessário levar em consideração diferentes elementos que

    provavelmente interferiram em todo esse processo. Pereira (2001, p.38), reitera que:

    [...] as circunstâncias do mercado externo, as lutas escravas por autonomia e liberdade interferiram nos rumos da vida econômica, política e social da Província maranhense no século XIX [...] outros elementos que impactaram [como a] presença inglesa na atividade comercial de exportação e importação, promovida pela abertura dos portos brasileiros em 1808, o fim do tráfico internacional de escravos.

  • De qualquer forma, após analisar os pontos de vista desses autores, não

    se pode ignorar as considerações acerca da economia maranhense elaboradas por

    Faria (2003), Suas observações certamente contribuem, sobremaneira, para

    entendimento desta “colcha de retalhos”.

    Na historiografia “tradicional”, há discrepâncias acerca da entrada de

    escravos africanos nesta província. Autores como Viveiros e Meireles apresentam

    estudos com diferentes resultados: 3.000 ou 23.000 escravos africanos entre 1655 e

    1755? Essa é uma das questões levantadas por Faria (2003). São diferentes

    estudos e compilações, ressaltando-se as dificuldades das fontes.

    Mas é provável que a escravidão indígena tenha predominado naqueles

    tempos. Afinal, estes estavam disponíveis na própria região sem grandes custos. Até

    o momento em que começaram a se dispersar, a se embrenharem na mata,

    afastando-se cada vez mais do litoral fugindo dos caçadores, das doenças, do

    extermínio iminente. Mas, possivelmente, só com a “proibição” da escravidão

    indígena – 1757 - acentuou-se a escravidão africana no Maranhão.

    Outra questão analisada por Faria (2003) é a produção de algodão, o qual

    inicialmente foi utilizado como moeda, em pequena quantidade, sendo de má

    qualidade e com fios grosseiros. Assim como o cultivo do fumo, do couro, das

    ‘drogas do sertão’4, por exemplo. Esses produtos eram destinados à exportação.

    Devido às condições climáticas e geográficas5, a colônia do Maranhão

    também desenvolveu economia extrativista, apesar de que essa produção foi mais

    intensa no Grão-Pará – inserido no meio da floresta – e, consequentemente, mais

    abundante. Essa colônia chegou a exportar volumes bem maiores que o Maranhão.

    Continuando a análise sobre a economia maranhense, se percebe que a

    pecuária bovina também teve sua fase por aqui6. Consumia-se a carne e exportava-

    se o couro, além da venda do boi “em pé” para outras localidades. Para Faria

    (2003), a situação do gado bovino foi semelhante ao ocorrido em outras paragens:

    4 Drogas do sertão compreendiam “[...] produtos extrativos como cravo, canela, salsaparrilha, âmbar,

    urucu, bálsamo, copaíba, anil e madeiras diversas; e outros que eram nativos mas foram cultivados, como a pimenta,a baunilha e o cacau” (FARIA, 2003, p.15). 5 “[...] que por estar situado em uma zona de transição entre as regiões Norte e Nordeste, possui uma

    diversidade de vegetação que varia de cerrado (nas proximidades do rio Parnaíba) à floresta equatorial (do centro para o oeste) [...] (FARIA, 2003, p.15). 6 Sobre isso, Faria (2003, p.16) diz: “[...] sua expansão acompanhou o avanço da frente colonizadora

    que partiu do litoral espalhando fazendas de criação nas margens dos rios e na baixada maranhense [...] penetrou no Sul do Maranhão como um prolongamento dos rebanhos nordestinos [...] em meados do século XVIII existiam aproximadamente ‘[...] duzentas e três fazendas a criar gado.

  • chegou para acompanhar o processo da cana de açúcar nos engenhos, como força

    de tração e depois se tornou uma atividade independente produzindo o couro e a

    carne.

    Faria (2003), assim resume a economia do Maranhão, em seus primeiros

    cento e quarenta anos de colonização: não havia produção agrícola suficiente para

    atender as necessidades locais; era pautada na escravidão indígena; quase

    nenhuma transação comercial com a metrópole, somente um navio por ano; sem

    necessidade do uso de moedas devido à escassez de negócios e muita pobreza.

    Mas, apesar da historiografia oficializar, cristalizar certas informações

    sobre esse período econômico do Maranhão, sempre caberão novos estudos e

    consequentemente, novas interpretações. Necessário se torna rever alguns

    conceitos.

    Através de FARIA (2003), se faz a releitura desse período em três

    tópicos:

    1 – Se Viveiros (apud FARIA, 2003, p.16), afirma que havia falta

    constante de algodão e gêneros alimentícios, por que foi necessário que o Senado

    da Câmara de São Luís criasse Leis restritivas, regulamentando o comércio desses

    produtos para fora da província?7 Segundo esse autor, em várias ocasiões houve

    proibição da venda do algodão para fora daqui, já que sua produção não era

    suficiente para suprir as necessidades da província e o mesmo era considerado

    matéria prima e moeda de troca e negociação. Então essa produção não seria tão

    exígua assim? Haveria produção suficiente para suprir a província, a vizinhança e a

    Metrópole?

    2 – Andrade (apud FARIA, 2003, p.17), pesquisou que uma carta da

    época pombalina menciona “[...] a região do rio Mearim produzia açúcar que era

    exportado para Portugal, na primeira metade do século XVIII”, ou seja, mais

    produtos além dos já citados eram vendidos para o exterior. E Ximendes (apud

    FARIA, 2003, p.17), identificou em livros da Câmara de São Luís informações que

    mais de seis navios saíam destes portos no começo da segunda metade do século

    XVIII, contrariando a informação de, somente um navio por ano. Ressalta-se que

    navios de outras nacionalidades – não somente os autorizados pela Coroa –

    praticavam contrabando por aqui e negociavam com os colonos.

    7 Argumento relatado na obra História do Comércio do Maranhão, segundo esclarece Faria (2003,

    p.16).

  • 3 – Pode-se questionar a imagem da São Luis atrasada descrita pelo Pe.

    Vieira - 1680 – a qual não possuía sequer açougues, quase nenhum profissional ou

    local coberto para se efetuarem pequenos negócios, através das pesquisas de

    Ximendes (apud FARIA, 2003, p.18). Esse autor efetuou a pesquisa Livros da

    Câmara 8 e descobriu que havia uma cidade e uma economia muito mais dinâmicas

    que o retratado anteriormente.

    Enfim, acerca da economia maranhense e suas ligações com os escravos

    presentes nos anúncios dos jornais, cumpre serem efetuados mais estudos. Mas é

    esse um dos papéis do pesquisador: revisar constantemente a historiografia,

    acrescentando-lhe novas informações sempre que necessário.

    2.2 Conflitos sociais: a Balaiada

    Entre 1831 e 1840 houve várias rebeliões, com características, motivos,

    ideologias e questões sociais distintas. Em 1838, havia um forte clima de disputas

    políticas acontecendo também nesta Província e se tenta compreender de quais

    formas isso tudo pode ter interferido na economia, e/ou na questão escravista.

    Afinal, os bem-te-vis (considerados liberais) e os cabanos (chamados

    conservadores), alternavam entre si o governo provisório.

    Com a ascensão da maioria cabana na Assembleia Provincial, os liberais

    foram afastados das decisões políticas, inclusive através de fraude e manipulação

    nas eleições. Ao se sentirem preteridos e até mesmo marginalizados, os liberais

    iniciaram uma forte oposição ao governo provincial.

    Ferreira (2007, p.17) reforça essas questões, expressando-se da seguinte

    forma:

    [...] esses conflitos atingiram seu ápice durante o governo cabano de Vicente Camargo em 1837, quando foram aprovadas duas leis de caráter centralizador pela Assembleia Provincial do Maranhão – a Lei dos Prefeitos e a Lei das Guardas Nacionais – que estendia o poder do presidente da Província por todo o interior do Maranhão, formalizando uma ligação direta do poder policial ao governo e anulando, assim, qualquer participação dos

    8 “[...] tendo Corporações de Ofício (alfaiates, tecelões, sapateiros, serralheiros, ferreiros, pedreiros, e

    carpinteiros e trabalhadores forros indígenas e negros) [...]” (XIMENDES apud FARIA, 2003, p.18).

  • fazendeiros do interior, principais colaboradores dos Liberais [...] foi reforçado o recrutamento indiscriminado, de forma sistemática e arbitrária [...] ficou conhecido como popularmente como ‘tempo do pega’.

    Tem-se, nesse momento, um motivo suficiente para acirrarem tais

    disputas, visto que os fazendeiros aliados dos liberais foram bastante prejudicados e

    essas medidas atingiram especialmente as classes populares.

    E, como o aporte documental desta pesquisa está fundamentado em

    jornais da época, é importante salientar que a imprensa maranhense participou

    ativamente desse processo político e dos conflitos que ora aconteciam na província.

    Tanto o é, que em 21 de dezembro de 1838, está na seção “Notícias

    Extraordinárias” o seguinte anúncio no jornal Chrônica Maranhense:

    Consta-nos que há poucos dias uma partida de proletários (ao muito 15 homens) atacaram o quartel de destacamento da Villa da Manga, da qual se apossaram, por haver ali poucos soldados, roubando depois o armamento, soltando os presos, prendendo o ajudante João Onofre e fazendo fugir o sub-prefeito. Até as últimas notícias ficaram ainda estes homens na Villa; mas attento o seu pequeno número, é de crer que sejam facilmente dispersados ou presos [...] um destacamento de 30 homens que saiu em busca delles desta capital no dia 21 do corrente [...] Ainda não sabemos ao certo da occasião e motivos desse desaguisado [...] o descontentamento de uns, a turbulência de outros, a audácia de alguns faccinorosos [...] Depois de havermos escripto o artigo à cima, soubemos que o chefe dos amotinadores da Manga é um tal Raimundo Gomes que foi vaqueiro do Padre Ignacio no Miarim [...] já correm por ahi uns vagos rumores que essa tropa já se eleva a 70 homens e que tem por um de seus cabeças o famoso João Nunes [...] mas ainda insistimos em dizer que não há motivos para grandes receios (CHRÔNICA MARANHENSE, 21.12.1838).

    Existia uma clara divisão entre os periódicos maranhenses, de apoio ou

    não à Balaiada: enquanto os jornais A Chrônica Maranhense e o Bentevi lideravam a

    oposição chamada de liberal, O Investigador Maranhense e A Revista cuidavam de

    apoiar o governo provincial.

    Para Santos (1983, p.77), “[...] Raimundo Gomes, imediatamente após

    tomar de assalto a Vila da Manga e receber as primeiras adesões à causa [...]”

    tratou de preparar um manifesto – rapidamente divulgado por toda a província – em

    que constavam as principais reivindicações do movimento. Reivindicações essas

    que também faziam parte do “repertório” da chamada oposição liberal da província:

    respeito às garantias individuais, demissão do Presidente da Província, abolição dos

    prefeitos, subprefeitos e comissários devido à inconstitucionalidade da sua criação.

  • E, se referindo à economia maranhense, convém lembrar que dentre

    essas exigências estava a que tratava da expulsão dos comerciantes portugueses9.

    Para Santos (1983, p.77), os portugueses eram considerados símbolos de opressão

    dos cabanos – grupo político dominante do momento. Estes impediam de certa

    forma, a abertura comercial e econômica na província e a essas alturas já havia

    interesse em substituir a lavoura do algodão pela cana-de-açúcar.

    É importante frisar que, para os moradores de São Luís, os portugueses

    eram responsáveis por boa parte dos seus problemas – a alta dos preços,

    monopólio de muitas atividades comerciais, especulações – além das questões

    nacionalistas: na consciência popular do sertanejo havia as relacionadas à sua

    brasilidade.

    E continuando sobre a Balaiada, em 1839 tal conflito já contava com a

    adesão de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira10 e havia se estendido até o Piauí,

    alcançando “[...] proporções gigantescas, culminando com a tomada de Caxias, o

    maior centro comercial do sertão maranhense” (SANTOS, 1983, p.79). Além de que,

    o conflito havia sido ampliado por toda a parte oriental da Província a partir de,

    [...] uma via terrestre, atravessando toda a zona, desde o Itapicuru até o Parnaíba, passando pela Chapadinha (Alto Munim) e atingindo a vila do Brejo, era um escoadouro tradicional dos gêneros do sertão maranhense [...] Essa foi a principal área de incidência da Balaiada (SANTOS, 1983, p.79).

    Por todas essas análises, com base em teses levantadas por Assunção

    (2004) e Santos (1983), fica a dúvida de que formas esse conflito interferiu na

    economia maranhense e especialmente no que se refere aos escravos. Afinal, para

    Assunção (2004, p. 217) não houve uma aceitação iminente por parte da elite de

    que as classes “inferiores” – subalternas – participassem de questões políticas. Por

    isso, de certa forma, o caráter político do conflito foi ignorado.

    9 Santos (1983, p.77) a partir do “Manifesto Balaio”, cita o artigo referente a expulsão dos portugueses

    da Província: “4º Que sejam espulçados empregos portuguezes e dispejarem a província dentro balde 15 dias com exseção dos cazados com famílias brasileiras e os de 60 anos para cima”. 10

    Considerado importante líder no conflito, conhecido como Balaio, mal sabia ler, era alto e branco [...] fabricante de balaios. Juntou-se a Raimundo Gomes, pelo fato de ter suas filhas desonradas pelo comandante da força legal [...] retornou à sua vida de roceiro e fabricante de balaios. (SANTOS, 1983, p.85). Apesar de que “[...] Dunshe de Abranches e outros o caracterizam como “pardo”, “índio” ou “de cor” (ASSUNÇÃO, 2004, p.216).

  • Apesar de que a presença escrava provavelmente, só “[...] foi sentida um

    ano depois, em 1839, quando Cosme Bento das Chagas11 iniciou uma insurreição

    em algumas fazendas do interior, facilitada pela evasão de famílias inteiras para a

    Capital” (FERREIRA, 2007, p.17).

    Certamente que os negros encontraram formas de protestar contra suas

    condições “sociais”, já que se envolveram – ou foram envolvidos - no conflito. Pode-

    se citar que alguns rebeldes mais abastados levaram consigo seus escravos. Alguns

    não foram utilizados como soldados e nem combateram, mas serviram nos

    acampamentos.

    Para Assunção, (2004, p.219), foi formado um verdadeiro exército

    paralelo de até três mil escravos rebelados, fugidos ou oriundos de quilombos,

    chefiados pelo Cosme Bento das Chagas. Sua ousadia chegou ao ponto do mesmo

    estabelecer seu quartel general na fazenda “Lagoa Amarela” e obrigar o antigo

    proprietário a alforriar todos os escravos.

    [...] não somente prometendo a liberdade, mas de fato extorquindo cartas de alforria ou firmando-as do seu próprio punho, contribuiu para que escravos unir-se ao grupo [...] na sua grande maioria, escravos e escravas das fazendas do Itapecuru. Sobretudo crioulos, congos e angolas, mas também mulatos e africanos de outras nações seguiram o Cosme. Várias fontes atestam a força da sua liderança (ASSUNÇÃO, 2004, p.220).

    Sendo este trabalho relacionado às questões dos escravos e às

    representações acerca dos mesmos, não se pode deixar de ressaltar a

    personalidade de Cosme. Este ultrapassou as expectativas da sociedade

    escravocrata da sua época assim como dos representantes políticos, fossem liberais

    ou conservadores.

    11

    Sousa (2004, p.3-6) nos diz que: “[...] 19 de Setembro de 1842 – era executado na Vila de Itapecuru-Mirim, um dos mais valentes homens da História do Maranhão e do Brasil. Refiro-me a Cosme Bento das Chagas, o ‘Negro Cosme’, um dos líderes da maior revolta popular da História do Maranhão, a Balaiada (1838 – 1841) [...] Nascido por volta de 1802, em Sobral no Ceará, Cosme chegou como negro alforriado ao Maranhão, ainda jovem [...] visto por muitos como um bandido sanguinário, um facínora sem escrúpulos e até como feiticeiro chegou a ser tratado. Muitos desconhecem suas qualidades de grande líder. [...] fundou uma pequena escola. Para ele, a leitura poderia oportunizar uma reflexão e uma consciência maior na luta e resistência à escravidão [...] O Negro Cosme foi o último grande líder da Balaiada a ser derrotado, resistiu enquanto pôde. Muitos tiveram o privilégio da anistia, eram considerados inimigos políticos. Agora, ‘um preto, era um preto’. Cosme foi julgado como inimigo social. Claro, nunca uma sociedade escravista deixaria de punir exemplarmente um negro subversivo. Nunca se reconheceria que um “homem de cor” fosse capaz de possuir intuições políticas, sociais e mesmo educacionais”.

  • O mesmo apresentou a sua visão política, por diversas vezes propôs

    alianças com os rebeldes - como atestam cartas - apesar de não ser aceito

    inicialmente pelos líderes do movimento. Tanto o é que se apresentava como “Tutor

    e Imperador da Liberdade” e “Defensor dos Bem-te-vis”12.

    O reconhecimento dos escravos como legítima propriedade era uma das

    ideias que grassavam os ideais liberais no período e os rebeldes não intentavam ir

    contra essa elite, pois que mantinham o interesse em unir-se a esse grupo. Portanto,

    se percebe omissão para com as causas da escravidão, apesar das “[...] aspirações

    igualitárias de pelo menos uma parte dos rebeldes. Reivindicavam direitos iguais

    para o ‘povo de cor’, tanto ‘cabras’ quanto caboclos” (ASSUNÇÃO, 2004, p.220),

    constantes nas cartas e proclamações de Gomes, já na última fase do conflito. Para

    este autor, o escravo estava inserido em tudo isso, mas de forma genérica.

    Independente disso havia cooperação entre os chamados rebeldes livres

    e escravos – inclusive os quilombolas – os quais informavam a movimentação das

    tropas legalistas aos rebeldes. Essa proximidade levou o Presidente da Província

    Luis Alves de Lima a propor anistia aos rebeldes, mediante a entrega de escravos

    fugidos, assim como fomentou discórdia, causando confusão entre os próprios

    rebeldes e as tropas. Eram os ex-rebeldes e alguns capitães do mato, agora

    transmutados em caçadores de rebeldes e de escravos fugidos – o que certamente,

    ajudou a enfraquecer o movimento, apesar de que alguns não se renderam às essas

    tentações, continuaram “fiéis” aos seus ideais liberais e não se voltaram contra os

    escravos.

    Dentro desse contexto, fala-se, em certa animosidade entre Raimundo

    Gomes e o negro Cosme. Quando Raimundo Gomes e seu grupo sofreu forte

    ataque e refugiou-se junto a Cosme, este o teria mantido preso e quase o executou,

    mas não há muitas evidências desse fato, pois tal relato é atribuído a Luis Alves de

    Lima13.

    Enfim, nesse episódio conhecido como Balaiada torna-se importante

    avaliar alguns fatos. Em primeiro lugar, Raimundo Gomes não somente incitava

    escravos à sublevação, como os recrutava para o seu exército. Em segundo, o

    12

    [...] Por obra e graça do sempre lembrado Dom Cosme Bento das Chagas [...] tutor e defensor dos Bem-ti-vis, injustamente enforcado pelo Governo de São Luis (MONTELLO, 1985, p.23). 13

    Luis Alves de Lima denotou o episódio dessa forma: “[...] Raimundo Gomes, porém, [...] evadiu-se sem armas, sem bagagem, e indecentemente vestido, foi se oferecer ao negro Cosme, que o reduziu a ser fabricante de pólvora e o tem em guarda; talvez que Raimundo Gomes não se entregue por se reconhecer assaz criminoso e indigno de perdão” (ASSUNÇÃO, 2004, p.222).

  • Negro Cosme optou pelas tentativas de aliança – campo em que não foi bem

    sucedido ao perceber que suas reivindicações na defesa dos escravos passariam

    invariavelmente, pelos rebeldes bem-te-vis. Em terceiro, os rebeldes não estavam

    preparados para derrubar o governo – talvez nem o pretendessem, tanto que,

    sequer investiram contra São Luis, concentrando suas ações somente no interior.

    Além de que esperavam a participação da elite liberal, o que não aconteceu.

    Assim, se percebe a falta de coesão, a inexperiência em liderança

    política, a desunião entre os líderes do movimento, alguns elementos que ajudaram

    a provocar o “fracasso” da Balaiada.

    2.3 Novos hábitos: importações de luxo, prosperidade econômica e intelectual.

    O que se pode constatar é que, certamente essas questões na economia

    maranhense provocaram mudanças profundas em várias outras áreas. E a aquisição

    de grandes proporções de escravos na produção foi uma delas. Afinal, possuir

    muitos escravos era sinal de opulência e prestígio social, como afirma Ferreira (2007

    p.15).

    Outra forma dos fazendeiros gastarem seus lucros foi com a importação

    de artigos de luxo, o que certamente não contribuiu para dinamizar essa economia e

    apesar dessas crises e desses momentos de expansão e retração na economia da

    Província do Maranhão, o trabalho escravo proporcionou enriquecimento das elites

    entre o final do século XVIII e o início do século XIV. Corrêa (apud FERREIRA,

    2007, p. 19), “[...] nos fala de dois poderes que se complementam, o material e o

    cultural”. Para este autor, os ganhos das lavouras de algodão e arroz foi o

    sustentáculo para a formação dos intelectuais maranhenses.

    “[...] Entretanto, toda essa prosperidade econômica e cultural só foi

    possível graças ao sistema escravista que possibilitou o enriquecimento de uns

    poucos à custa da exploração do trabalho de muitos” (FERREIRA, 2007, p.18), ou

    seja, se aconteceu uma evolução econômica e cultural, o foi alicerçado na estrutura

    escravista.

    Houve então um refinamento de hábitos, uma grande assimilação de

    costumes europeus. Pode – se falar de um “aumento” da intelectualidade

  • maranhense e citar igualmente, uma elevação cultural, o que gerou uma espécie de

    projeção nacional desta província.

    Enfim, essas crises não impediram que essa elite gastasse, investisse os

    seus lucros das mais variadas formas, com o intuito de seguir padrões, sempre

    ditados pela Europa:

    Os anos seguintes até o surgimento e incentivo à empresa açucareira, a partir de meados de 1840, o Maranhão vive um período de transformações econômicas e de redefinição das relações sociais, bem como passa por uma seleção de valores que guiarão essa nova sociedade. O escravo também terá lugar nessas mudanças, visto cada vez mais como símbolo de opulência e prestígio social para quem os possuía. A forma de produção baseada no trabalho escravo do negro é que vai definir as relações sociais no Maranhão oitocentista, as quais eram rigidamente divididas e hierarquizadas de acordo com a condição jurídica e econômica das pessoas. (FERREIRA. 2007, p.15)

    Ferreira (2007, p.18), cita que em fins de 1830, há uma espécie de

    aprimoramento cultural, um cultivo pelas artes, um modelo de comportamento em

    voga – a partir da “euforia econômica da agro-exportação”, elevando esta província

    a destaque nacional. “[...] O letramento da elite maranhense foi um destaque na

    primeira metade do século XIX [...] o Maranhão passa por um deslumbramento

    cultural” (FERREIRA, 2007, p. 18).

    Naturalmente, se deve usar de parcimônia ao efetuar a análise dessa

    suposta elevação cultural e intelectual maranhense. Afinal, Ferreira (2007, p.17-18)

    diz que “[...] Todas essas transformações possibilitaram a projeção da Província no

    âmbito intelectual [...] que aos poucos cria o mito da Atenas Maranhense [...]”

    assunto devidamente tratado por Maria de Lourdes Lauande Lacroix, em sua obra A

    Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos.

    Assim, segundo Ferreira (2007, p. 19), “[...] os jornais do início do século

    XIX foram a arma mais poderosa nas mãos dos intelectuais da elite maranhense” e

    certamente, fatores como a escravidão e economia maranhense perpassaram pelas

    penas e tipógrafos dessa elite. Ferreira (2007 p.12) ainda reafirma:

    Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgação de ideias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipular interesses e intervir na vida social. Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, a imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de discursos e ideologias que expressam o movimento de ideias circulantes numa

  • determinada época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.

    Portanto, a simpatia – ou não – pelas fugas dos escravos e/ou abolição

    da escravatura tornam-se assuntos recorrentes na sociedade maranhense, por volta

    dos anos 1880. Segundo Soares (1988, p.4), nesse período os anúncios sobre

    escravos nos jornais, reduziram-se sobremaneira acompanhando a ascensão do

    antiescravismo no seio da sociedade. Por esse tempo, já havia jornais recusando-se

    a publicar tais anúncios, no embalo dos abolicionistas ou mesmo receosos dessas

    ideias. Já não era de “bom tom” publicar avisos anunciando vendas, compras, trocas

    ou aluguel de pessoas. Inclusive porque “[...] sociedades abolicionistas animavam e

    favoreciam a fuga de negros e com tal eficiência que se faziam temer pelos

    proprietários de diários e não apenas odiar pelos proprietários dos escravos”

    (FREYRE apud SOARES, 1988, p.5).

    Mas, como se está a discorrer sobre a economia maranhense, dentro do

    recorte temporal de 1830 a 1841 e sua ligação com a escravidão, a partir dos avisos

    nos jornais, se reafirma que o Maranhão implantou mais tardiamente uma

    escravidão agrícola – final do século XVIII - sendo considerada, portanto, uma

    sociedade escravista tardia, apesar de que desde o século anterior, escravos

    africanos tivessem sido utilizados como mão de obra.

    Mas o escravismo maranhense assume, portanto, particularidades que

    dizem respeito à sua formação sócio-histórica: inicialmente, os silvícolas foram

    bastante utilizados, no sistema de regime escravo, afinal, devia existir cerca de

    200.000 índios por estas bandas. Foi a primeira mão de obra utilizada, com direito a

    captura, escravização e venda dos mesmos, pois que “[...] era considerado

    ‘insubstituível’ na coleta de drogas do sertão, pelo conhecimento que possuía da

    região e das diferentes espécies vegetais; como remeiro era muito elogiado [...]”

    (FARIA, 2003, p.12).

    Mas esses indígenas receberam o apoio dos jesuítas, que os queriam

    livres para seu projeto de evangelização. Chegou um momento em que os religiosos

    foram “radicais”: não aceitaram mais que os mesmos fossem escravizados, nem

    mesmo nas chamadas guerras justas – apesar de que no geral, as Ordens

    Religiosas se utilizassem do trabalho compulsório do gentio. A sugestão para

    resolver tal celeuma, seria a introdução de escravos africanos.

  • A escravização do africano, a partir do século XVI, portanto, constitui

    elemento base do sistema colonial, ao reduzir o escravo à condição de suporte da

    empresa comercial explorada pelos portugueses. A escravidão tornou-se viável em

    função das condições históricas e econômicas, decorrentes da configuração do

    mercado transatlântico. O escravo é apropriado nessa conjuntura, como mercadoria

    capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os agentes

    escravocratas.

    Todavia, torna-se válido pensar a escravidão para além do aspecto

    econômico, considerando para tanto, o dinamismo histórico que circunscreve a

    presença escrava na formação social brasileira. Afinal, a partir dessas vivências,

    interferências e nuances, houve a construção do racismo no Brasil, o qual

    permanece até os dias atuais, segregando, destruindo vidas, dificultando a inserção

    do afro descendente na sociedade de forma plena e absoluta, deixando-o a mercê

    dos direitos sociais. E essas imagens do negro – geralmente negativas - vinculadas

    a partir dos anúncios nos jornais no início do século XIX, certamente contribuíram

    para essas (des) construções.

    Essas construções histórico/sociais, que forjaram as imagens negativas

    sobre os afrodescendentes, continuam inseridas nos seus cotidianos. São

    permanências baseadas nos resquícios da escravidão, mas que felizmente tem

    levado a sociedade a uma reflexão intermitente sobre o assunto.

  • 3 ÁFRICA – BRASIL – SÃO LUÍS: ASPECTOS DA ESCRAVIDÃO

    A década de 1990 e os primeiros anos do terceiro milênio trouxeram e

    reavivaram um intenso debate acerca da situação do negro no Brasil. O interesse

    pela temática deve-se principalmente, à atuação do movimento negro que mesmo

    expressando uma diversidade de interesses e longe de uma convergência

    ideológica, conseguiu articular politicamente suas principais bandeiras de luta em

    torno do reconhecimento pelo Estado brasileiro, da permanência de uma “chaga”

    social difícil de mensurar: o racismo.

    Este tem atuado como uma silenciosa máquina de exclusão que está

    estruturalmente enraizado através dos tempos e cujo cerne é a escravidão negra.

    Somando-se às pressões internas - movimento negro, partidos políticos e/ou

    parlamentares engajados, setores da igreja, universidades, movimentos sociais -

    tem-se a comunidade internacional exigindo do Estado a construção de mecanismos

    de reversão das exclusões econômicas e étnico-raciais.

    Esse escravismo – moderno – ajudou a impulsionar as engrenagens

    embrionárias do chamado Capitalismo. Essa estrutura político-econômica, mesmo

    carregando em si marcas dessa modernidade, surge como agência promotora do

    sistema colonial posto em prática, neste contexto pela burguesia europeia.

    Escravizar o africano - a partir do século XVI - portanto, constituiu elemento básico

    do sistema colonial, já que o reduziu à condição de suporte da empreitada comercial

    explorada pelos portugueses.

    Percebe-se que a escravidão torna-se viável em função das condições

    históricas e econômicas e das características apresentadas pelo mercado

    transatlântico. O cativo africano é visto nessa conjuntura, como uma peça, um bem.

    Uma mercadoria capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os

    agentes escravocratas.

    Mas, é importante tentar compreender porque o africano é retirado do seu

    habitat – o continente africano – e passa a ser escravizado, já que:

    desde a chegada dos primeiros europeus ao território africano, em meados do século XV, já se encontravam estabelecidos no continente, Estados, política e economicamente organizados e norteados por uma ordem social [...] as estruturas políticas tradicionais africanas se baseavam nas

  • instituições familiares [...] economicamente a agricultura era tida como a atividade principal (COSTA apud HERNANDEZ, 2005, p.1).

    Possivelmente, havia uma estrutura social, cultural e econômica vigente

    na África e não indícios de atraso ou “incivilidade”, como disseram os europeus

    quando adentraram tal continente. Porque o mesmo foi praticamente demolido em

    sua essência e se tornou exportador de mão-de-obra e de riquezas naturais?

    Inaugurou-se assim o tráfico de escravos, o qual perdurou por séculos,

    sustentando a economia das Américas e os portugueses, pioneiramente inseriram

    os escravos africanos numa rota transatlântica, dando impulso à engrenagem

    capitalista de compra-transporte-venda-revenda.

    Respaldados na vigorosa ideologia cristianizadora dos textos bíblicos -

    “tanto católicos quanto protestantes - encontrariam na Bíblia quanto nas tradições

    das interpretações cristãs”, argumentos que legitimassem a prática da escravidão,

    como em Levítico 25:38, 44/6: “[...] todos os vossos servos e servas que possuirdes,

    devem vir dos povos pagãos que vos rodeiam [...] serão vossos servos para sempre”

    (BLACKBURN, 2003, p.88).

    Os negros podiam ser escravizados de várias formas. Dentre essas havia

    maneiras legais (consideradas tradicionais) e os meios ilegais. Robert Conrad (1985)

    mostra que, dentre as formas “legais”, estavam: a condenação por juízes locais

    africanos por adultério ou roubo; a substituição de familiares por escravos

    masculinos e prisioneiros de guerra. Podiam ser consideradas “ilegais”: o rapto e

    venda de parentes próximos por chefes de família; grupos africanos que capturavam

    cativos injustamente e diziam que eram prisioneiros de guerras justas; e finalmente

    portugueses que escravizavam parentes livres de fugitivos.

    A chegada do europeu ao continente africano pontuou o chamado modelo

    de “civilidade”, o qual deveria ser repassado aos negros. Se existia uma espécie de

    estrutura político-histórico-cultural há muito por lá, a mesma foi ignorada e

    considerada primitiva, selvagem e o negro, um bárbaro. A partir desses

    desdobramentos, passa-se a considerar a raça negra como inferior e a missão do

    branco, civilizatória e com o intuito de elevar o nível dos africanos ao da Europa.

    A partir dessas percepções - simbolicamente falando - a cor preta passa a

    ser relacionada a impurezas, brutalidades e imoralidades, ou seja, a representação

    do pecado e maldição divina, enquanto o branco remeteria à inocência, paz.

  • Portanto, necessário se fazia evangelizar o povo africano, imerso no pecado e

    perdição. Necessário salvar das penas eternas esse povo considerado inferior,

    mesmo que para isso o homem escravizasse outro homem.

    Aliado a esses fatos, se tem no século XIX, a corrente filosófica

    evolucionista a permear o seio intelectual, onde se afirmava que o meio ambiente

    influenciava nas diferenças culturais. Obviamente, para se possuir superioridade

    evolutiva o modelo a ser seguido seria o europeu. Paralela a essa corrente, outra,

    fundamentada em estudos biológicos indicava diferenças entre os cérebros do

    homem branco e do negro. Pregava-se uma inferioridade nata no homem negro.

    Com a disseminação de tais ideias, a inferioridade atribuída ao negro,

    deixou de pertencer apenas ao fator biológico e estendeu-se a outros pontos,

    conforme Munanga (1988, p.20):

    o continente, os países, as instituições, o corpo, a mente, a língua, a música, a arte, etc. Seu continente é quente demais, de clima viciado, malcheiroso, de geografia tão desesperada que o condena à pobreza e à eterna dependência. O ser negro é uma degeneração devida à temperatura excessivamente quente.

    Alicerçado nesses aspectos, o próprio africano assume esse discurso do

    dominador participando - involuntariamente - da criação de mecanismos de

    dominação, especialmente os ideológicos. Isso o leva inclusive, a tentar assimilar a

    cultura do outro – o colonizador/dominador.

    E o que se vê daí em diante é o negro tentando assimilar a educação do

    branco, apreendendo sua história, sua memória, sua geografia, substituindo seus

    valores religiosos pelo cristianismo – lembrando que isso também pode ser

    considerado estratégias de sobrevivências. Mas ao mesmo tempo, esse negro vai

    descobrindo que a internalização dos valores e conceitos da cultura europeia não

    acontecera até então. Seus esforços pareciam em vão, não havia sido alcançado o

    objetivo, a equiparação com o branco.

    Portanto, verifica-se que, praticamente durante todo o século XIX, os

    africanos – e sua história - foram considerados inferiores. E logicamente essa

    concepção foi disseminada em nosso país. À mercê de teorias raciais, pensava-se

    que a mistura do negro com o restante da população poderia comprometer o futuro

    do país, já que o ‘correto”, o desejado seria o embranquecimento. Essa forma de

    pensar - advinda das teorias raciais - ultrapassava a elite intelectual e espraiava-se

  • pela população, a qual também se preocupava que essa mistura entre as três raças,

    pudesse gerar uma espécie de descendência degenerada.

    Esses estudos e debates sobre o negro só foram iniciados no final do

    Século XIX e, a partir de 1930, muda-se o panorama: intelectuais passam a ver os

    negros como provenientes de uma raça e cultura inferior, mas ao mesmo tempo,

    com algo de positivo a agregar. Um desses estudiosos é o sociólogo Gilberto Freyre,

    com a obra Casa Grande & Senzala (1999), que revolucionou gerações de cientistas

    sociais e pesquisadores não só dentro como fora do país.

    Para este sociólogo, havia uma espécie de paternalismo nas relações

    senhores/escravos e essa relação era harmônica, sem conflitos. O autor constrói

    uma narrativa sociológica na qual tende a diluir os antagonismos de uma sociedade

    escravocrata, partindo do pressuposto da evolução social por meio da miscigenação.

    Esses estudos formatados por vários pensadores ajudaram a criar o mito

    da “democracia racial”: o Brasil passa a ser visto como o local onde várias raças

    conviviam em harmonia, onde não se viam preconceitos e/ou discriminações sociais.

    O mundo volta os olhos para o Brasil e a sua – suposta – democracia racial,

    especialmente após os desastres ocorridos durante a II Guerra Mundial, onde povos

    exterminaram povos.

    Todavia, torna-se válido pensar a escravidão a partir de uma visão macro,

    considerando para tanto o dinamismo histórico que circunscreve a presença escrava

    na formação social brasileira. Afinal, três séculos de escravidão marcam a história da

    formação do povo brasileiro com ambiguidades em torno das representações sobre

    o escravo e seus descendentes.

    3. 1 Escravidão em São Luís – anos 1830-1841

    É sabido que o Brasil recebeu e abrigou uma enorme quantidade de

    africanos durante o período em que o tráfico de escravos prevaleceu – entre os

    séculos XVI e XIX, como nos informa Parrone (2004, p. 6-7). Segundo ela, o “Navio

    Infame”, “navio negreiro” ou “tumbeiro” – arrastou mais de 11 milhões de africanos

    para a América. Em caravelas ou barcos a vapor “[...] os traficados eram em maioria,

    homens de 8 a 25 anos”.

  • Semelhante informação nos fornece Farias (2010, p.18) ao esclarecer que

    os negros eram submetidos a condições hostis no momento do transporte “[...]

    Espremidos nos porões dos navios negreiros, milhares de homens, mulheres e

    crianças [que] suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataques de ratos e piolhos,

    surtos de sarampo ou escorbutos. Muitos não resistiam e eram jogados ao mar”.

    Têm sido constantes as pesquisas e/ou estudos, onde se tenta determinar

    – ou pelo menos, aproximar-se – do volume de negros africanos que aqui estiveram,

    segundo Pantoja (apud MEIRELES, 2009, p.131). Devido à sua complexidade, não

    há um consenso acerca do assunto, mas alguns autores falam de 6 a 11 milhões de

    negros desembarcados por aqui.

    Os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e a Bahia foram os

    precursores da escravidão na América Portuguesa, devido à lavoura da cana-de-

    açúcar com a importação de escravos nos séculos XVI e XVII. A mineração no

    século XVIII, também sobreviveu a partir da escravidão de maneira semelhante ao

    lucrativo ciclo açucareiro do Nordeste.

    O desembarque de africanos nos portos de Belém e São Luís está

    registrado a partir da segunda metade do século XVIII, com a criação da Companhia

    Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 06 de Junho de 1755, pelo

    Marques de Pombal. A administração era feita diretamente por Portugal e possuía o

    objetivo de fortalecer o comércio com nossos patrícios. A dita Companhia oficializou

    e monopolizou o comércio de escravos, inclusive a venda dos mesmos.

    Outros estudos referem-se à entrada de africanos nesta Província em

    data anterior, já que em 1655, foi instituído o cargo de Juiz da Saúde, antes da

    criação da Companhia de Comércio. Esse cargo foi criado para que todos os navios

    que chegassem com negros fossem visitados, evitando os surtos de doenças, muito

    comu