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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA Edilene Pereira Vale “CAUZAS DE TODOS OS BENS E MALES DESTE ESTADO”: índios, dinâmica conquistadora e prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará (século XVII) SÃO LUÍS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

Edilene Pereira Vale

“CAUZAS DE TODOS OS BENS E MALES DESTE ESTADO”: índios, dinâmica

conquistadora e prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará (século XVII)

SÃO LUÍS

2016

EDILENE PEREIRA VALE

“CAUZAS DE TODOS OS BENS E MALES DESTE ESTADO”: índios, dinâmica

conquistadora e prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará (século XVII)

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura

em História pela Universidade Estadual do

Maranhão como parte dos requisitos necessários à

conclusão e colação de grau da discente Edilene

Pereira Vale, sob orientação da Prof. Dra.

Helidacy Maria Muniz Corrêa.

SÃO LUÍS

2016

Vale, Edilene Pereira. “Cauzas de todos os bens e males deste Estado”: índios, dinâmica conquistadora e prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará (Século XVII) / Edilene Pereira Vale. – São Luís, 2016. 63 f Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2016. Orientador: Profa. Dra. Helidacy Maria Muniz Corrêa. 1. Índios. 2. Conquista. 3. Dominação. 4. Maranhão e Grão-Pará. 5. Serviços. I. Título CDU: 94(812.1).027

EDILENE PEREIRA VALE

“CAUZAS DE TODOS OS BENS E MALES DESTE ESTADO”: índios, dinâmica

conquistadora e prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará (século XVII)

Aprovado em: ____ / ____ / ____

BANCA EXAMINADORA

Helidacy Maria Muniz Corrêa

(orientadora)

Universidade Estadual do Maranhão – UEMA

Carlos Alberto Ximendes

Universidade Estadual do Maranhão – UEMA

Marcelo Cheche Galves

Universidade Estadual do Maranhão – UEMA

AGRADECIMENTOS

“Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho...” (Tom Jobim). O

trecho desta canção me faz lembrar a minha trajetória acadêmica que se tornaria quase

impossível sem a ajuda e incentivo de algumas pessoas, e hoje, no final desta caminhada,

devo agradecer a cada uma delas.

Em primeiro lugar, agradeço a Deus, por ter me dado força a prosseguir o meu

caminho, manter-me sempre de pé e atender aos meus anseios. Sem minha fé nada disso seria

possível.

Aos meus pais, Antônio e Enise, por terem, desde a infância, acreditado em minha

educação como forma de me tornar uma pessoa melhor e com um futuro próspero, por terem

incentivado e motivado cada momento dessa caminhada. A minha querida irmã Eliane e

minha prima Carol, por terem acompanhado de perto a escrita deste trabalho. Palavras são

pouco para agradecer, amo vocês!

A toda minha família, em especial minhas avós Josefa, Carmelita e Maria, meu avô

Edmilson Lobato – meu historiador mais querido, suas histórias e relatos são incríveis! As

minhas tias Rosângela, Tatiane, Regina e Shirley, um dos meus maiores exemplos. Aos meus

tios Fernando e Iron, primos Rodrigo, Luziene, Brenda e meu cunhado Luís. A todos vocês, o

meu muito obrigada, vocês são minha base.

Ao meu namorado e companheiro Alexandre Muniz, por ter me dado apoio desde o

início, por me “pressionar” em alguns momentos à conclusão deste trabalho e sempre torcer

pelo meu sucesso, amo-te. A sua família também agradeço!

A uma das pessoas mais importantes nesse período de escrita, minha orientadora

Helidacy Corrêa, pessoa na qual tenho uma profunda admiração. Obrigada pelo incentivo,

pelos “choques de realidade” e puxões de orelha, pela paciência, atenção, pelos elogios e,

principalmente, por ter acreditado em mim desde o início e me feito trilhar meu caminho,

você fez com que eu enxergasse mais adiante.

Aos meus professores da UEMA, pessoas que contribuíram não só para a aquisição de

conhecimento, mas para enxergar o mundo com um novo olhar. Em especial, Marcelo

Cheche, Alan Kardec, Carlos Alberto Ximendes, Henrique Borralho, Mônica Piccolo, Júlia

Constança, Elisabeth Abrantes e Yuri Costa, vocês foram fundamentais!

Para as bibliotecárias mais queridas da UEMA, Lauisa e Rejane, pessoas maravilhosas

que tive a sorte de conhecer, sempre dispostas a ajudar os outros com um sorriso contagiante

no rosto, por me socorrerem, tirarem dúvidas, aos empréstimos de livros e momentos de

descontração, meu muito obrigada.

Não poderia esquecer os meus amigos, das nossas conversas, trocas de informações e

ajuda no momento que cada um precisava; se por acaso eu desanimasse, sei que vocês me

animariam novamente. Agradeço especialmente a meus amigos da turma 2010.2, Joyce,

Werbeth, Mônica, Isaias, Luanne, Ingrid, Fracinete e Karlleyde, vocês foram meus primeiros

amores. Também devo agradecer a turma 2011.2, sala que me acolheu tão bem, especialmente

Rafaela, Juliana Beatriz, Kenya, Diogo e Lucas.

Às colegas do núcleo de pesquisa MAREGRAM, principalmente Kelma –

acompanhamos de perto a escrita da monografia uma da outra. A Jaciara e Marina, pela

amizade e incentivo.

Às coordenadoras de escola que já trabalhei e da que atualmente trabalho, Mayara e

Vanda, respectivamente. Agradeço pela amizade, compreensão e torcida por meu sucesso.

Aos meus alunos, vocês me proporcionam a certeza de que escolhi a profissão certa.

Enfim, agradeço a todos que me auxiliaram de alguma forma ao longo desse período,

por terem me dado sugestões, leituras ou que, mesmo na distância, torceram por mim, muito

obrigada!

Resumo: Este trabalho trata do índio no Maranhão e Grão-Pará durante o século XVII a fim

de observar a maneira como o nativo foi inserido e se integrou no processo de conquista e

dominação do Brasil colonial. A investigação se preocupou em entender o papel do índio no

processo de ocupação do território de modo a fugir da visão dualista de selvagem e vítima,

marcadamente presente nos estudos sobre o tema. Para tanto, a discussão historiográfica

clássica e revisionista sobre o nativo, a fim de identificar as mudanças na abordagem sobre o

assunto, foi essencial. Da mesma forma, foi determinante o levantamento das tipologias

indígenas nos documentos dos Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís, entre os anos de

1646 e 1657, e do Arquivo Histórico Ultramarino (AUH), para os anos de 1614 a 1699, para

demonstrar as várias formas de participação dos índios na dinâmica colonizadora local. Por

fim, apresento os trabalhos executados pelos nativos para realçar a importância da

participação indígena na conquista do território e faço um paralelo entre o uso do trabalho

nativo e as leis e regimentos expedidos pela coroa portuguesa, entre os anos de 1646 e 1657.

Com esse trabalho pretendo contribuir para uma compreensão histórica da presença indígena

na conquista do Maranhão e Grão-Pará com base na diversidade das situações vividas pelos

sujeitos envolvidos no processo colonial.

Palavras-chave: Índios. Conquista. Dominação. Maranhão e Grão-Pará. Serviços.

Abstract: This text analyses the Indian in Maranhão and Grão- Pará during the XVII century

to observe the way that the native was inserted and integrated himself actively in the process

of the conquer and domination of Colonial Brazil. The investigation if bothered to understand

the indian function in the occupation process in the territory to escape of the dualist vision of

wild and victim markedly presents in the studies about this theme. For this, the classic

historiographical discussion and revisionist about the native realized in the first chapter to

identify the changes in the approach about the issue was essential. In the second part, I did a

survey about the kinds of Indians in the documents of the judgment books of the São Luis

Chamber between 1646 and 1657 and of the Historical Ultramarine Archive between 1614

and 1699 to demonstrate the various ways of the Indians participation in the local colonizing

dynamic. In the end, I present the works run by the natives to enhance the importance of the

Indians participation in the conquer of the region and I do a king of parallel between the use

of the native work and the laws and regiments issued by the Portuguese crown between 1646

and 1657. I pretend, with this work, to contribute to the historical comprehension of the indian

presence in the conquer of Maranhão and Grão Pará based on diversity of the situations lived

by the involved at the colonial process.

Key-words: Indians. Conquer. Domination. Maranhão and Grão-Pará. Services.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9

1. OS BRASIS VISTOS PELOS CONSTRUTORES DE UM BRASIL......................... 12

1.1 Os clássicos e os primeiros passos da História sobre o nativo ............................... 13

1.2 Novos olhares ........................................................................................................... 19

2. UM DOMÍNIO, DOIS ESTADOS, UM PROTAGONISTA NA CONQUISTA ........ 25

2.1 Os índios na documentação do AHU ...................................................................... 26

2.2 Os índios na Câmara de São Luís ........................................................................... 34

3. “O OURO VERMELHO DA CAPITANIA DO MARANHÃO E OS ORDENAMENTOS

DA NOVA SOCIEDADE”: índios, trabalho, leis e regimentos ......................................... 42

3.1 Índios e trabalho no Maranhão ............................................................................. 42

3.2 Leis de Regulamentação do trabalho indígena ...................................................... 51

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 57

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 59

9

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata do indígena no período colonial e se propõe a compreender o papel

desempenhado por esse sujeito histórico na colonização do Maranhão e Grão-Pará, durante o

século XVII. Para tanto, relaciono dinâmica conquistadora portuguesa e índios da região, a

fim de identificar a diversidade das atividades exercidas pelos nativos no decorrer da

colonização.

O território do Maranhão e Grão-Pará se constituía, na época, em um espaço de

intermediação entre duas áreas coloniais fundamentais: os domínios espanhóis na América e o

Estado do Brasil1. Como tal, diferentes indivíduos foram integrados ao processo colonizador.

É nessa perspectiva que a meta geral desta pesquisa pretende identificar as formas de

participação efetivas dos índios no processo de colonização do Maranhão e Grão-Pará para

compreender o papel exercido pelo nativo na conquista do extremo norte da América

portuguesa.

A escolha da temática surgiu com a pesquisa “Índios, dinâmica conquistadora e

prestação de serviços no Maranhão e Grão-Pará, durante o século XVII/XVIII”, no âmbito

de um plano de trabalho desenvolvido no Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UEMA2.

Neste período tive contato estreito tanto com a historiografia sobre o nativo que dialoguei ao

longo do texto quanto com a documentação. Nessa fase, pude conhecer a diversidade da

participação do indígena na colonização da região, a partir das situações vivenciadas nos

âmbitos econômico, político e social.

Uma das dificuldades – e impulso ao mesmo tempo – desta pesquisa foi justamente a

carência de trabalhos sobre o indígena no Maranhão colonial na historiografia local e,

especialmente, nas universidades de São Luís. Contudo, apesar desses entraves, esta

investigação surgiu com o intuito de refletir sobre a percepção da historiografia local a

respeito dos índios: Por que os nativos, sendo a base e agentes fundamentais na colonização

do Maranhão, permaneceram praticamente ausentes da nossa historiografia? Na busca de

superar esta situação e contribuir com novas interpretações sobre a história indígena,

especialmente no Maranhão, é que foram trilhados os seguintes caminhos desta investigação.

1 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: o papel da

Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do território do Maranhão (1615-1668). Tese

(Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. 2 Refiro-me ao projeto de pesquisa PIBIC-UEMA “A dinâmica dos poderes locais no Maranhão e Grão-Pará:

vínculos e tensões (século XVII)”, coordenado pela professora doutora Helidacy Maria Muniz Corrêa, em 2012

com bolsa UEMA.

10

No primeiro capítulo, apresento a percepção de algumas obras clássicas sobre o

indígena no período colonial do Brasil para, em seguida, realçar como o mesmo objeto tem

sido tratado pelas obras mais recentes. A proposta é observar como a visão sobre o indígena

se alterou, bem como a noção de que a sua participação na colonização se deu de várias

formas. Essa visão parte do pressuposto de que a colonização, em especial do Maranhão e

Grão-Pará, durante o século XVII, só se tornou possível, em grande parte, devido à presença

indígena.

Para entender a dinâmica da inserção indígena na região, no segundo capítulo,

apresentei várias formas de incorporação dos nativos no processo colonizador no Maranhão e

Grão-Pará. Dessa forma, exponho a variedade de documentos que selecionei acerca dos

indígenas nos Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís e no Arquivo Histórico Ultramarino

(AHU), para mostrar os diversos assuntos relacionados aos nativos, tanto no tratamento de

questões pelas autoridades locais e régias, como nas várias formas de participação dos

indígenas ao longo do período em estudo.

No terceiro capítulo, realizei um mapeamento das tipologias dos serviços prestados

pelos índios à Coroa ou para as autoridades locais do, então, Estado do Maranhão e Grão-

Pará. A importância desses serviços, além de serem de utilidade pública, no zelo do “bem

comum”, como cuidar das estruturas da cidade, nas construções de prédios, auxiliando

também nas comunicações entre as capitanias do Maranhão e do Grão-Pará, favoreciam o

êxito da economia local, nas atividades pesqueiras e agrícolas. Além disso, nessa parte do

trabalho, apresento as leis que foram expedidas pela Coroa portuguesa entre os anos de 1646 a

1657 que regulamentavam o uso da mão de obra indígena.

Para efeito de esclarecimento, é importante ressaltar que a acepção de integração que

adoto ao longo do texto, não omite, minimiza ou exclui as tensões, estratégias, defesas e

resistências presentes (e inerentes) ao processo colonizador na luta pela coexistência e defesa

de diferentes modus vivendis. Com a acepção de incorporação e integração, quero ressaltar a

marcante presença indígena na deflagração do processo colonizador, seja como sujeito, ator

ou objeto. Trata-se de um exercício de percepção e análise dos diferentes papéis

desempenhados pelos nativos na conquista do Maranhão e Grão-Pará. Não é, portanto, um

olhar em defesa ou de negação, mas uma avaliação histórica acerca do grau de participação do

nativo no processo conquistador da região, com base no estudo dos manuscritos digitalizados

pelo projeto resgate do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e dos Livros de Acórdãos da

Câmara de São Luís, documentos guardados pelo Arquivo Público do Estado do Maranhão

(APEM).

11

Por fim, reitero que este estudo é fruto de uma primeira experiência de pesquisa e, por

sua natureza, não se pretende uma investigação exaustiva sobre um mundo ainda a

descortinar, mas, ao contrário, um fim de uma etapa e um importante suporte para uma

próxima jornada ainda a ser conquistada.

12

1. OS BRASIS VISTOS PELOS CONSTRUTORES DE UM BRASIL

Por muito tempo, na historiografia tradicional, o indígena foi apresentado como sujeito

de cultura “pura” e com características “originais” que, a partir do contato com o europeu,

passou por um processo de assimilação cultural com a progressiva perda de seus costumes.

Nessa história, os nativos foram apresentados como vítimas, passivos ou até mesmo

irrelevantes no processo de colonização, sem quaisquer sinais de resistência.

Nessa perspectiva assimilacionista, o índio, integrado na colonização, era identificado

como “aculturado”, vítima de um sistema que, ao incorporá-lo, iniciava um processo de

descaracterização étnica e perdas culturais progressivas que o conduziria à ausência de

identidade e ao assimilacionismo, deixando, portanto, de constituir uma categoria social

específica digna da investigação por parte dos historiadores3.

No final do século XX, essa visão historiográfica sofreu profundas mudanças. O

indígena passou a ser visto como agente histórico, adquirindo uma participação ativa no

processo de colonização. Essa nova interpretação se deu graças aos autores revisionistas da

historiografia indígena que se constituem em importantes referenciais teóricos deste trabalho

monográfico. Refiro-me, especialmente, a John Monteiro (1994) com sua obra sobre os

indígenas da capitania de São Paulo4, Maria Regina Celestino de Almeida (2000) acerca dos

índios aldeados no Rio de Janeiro colonial5 e Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005) em seu

trabalho sobre os índios cristãos na Amazônia Portuguesa6.

Neste primeiro capítulo, em especial, apresento como o indígena foi percebido em

algumas obras clássicas no período do Brasil colonial para, em seguida, apontar a

reverberação de tais análises em obras mais recentes. A proposta é observar como a visão

sobre o indígena passou por alterações, modificando completamente a noção da sua

participação na colonização. A partir de tais considerações, passou-se a considerar as várias

formas de atuação desses sujeitos. No caso do Maranhão e Grão-Pará, especialmente durante

o século XVII, passamos a considerar que o processo só se tornou possível, em grande

medida, devido à efetiva participação indígena.

3ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial: novos súditos cristãos

do império português. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, 2000, p.1. 4 MONTEIRO, John Manuel Monteiro. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São

Paulo, Companhia das Letras, 1994. 5 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. Cit. 6 CARVALHO Jr, Almir Diniz. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653-1769).

Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005.

13

1.1 Os clássicos e os primeiros passos da história sobre o nativo

Observar o lugar que os índios ocupam na História do Brasil Colonial implica

entender como o indígena foi representado em nossa História, como a escrita da História

elaborou e imprimiu uma imagem do índio. Longe de querer dar conta de toda a história sobre

o Brasil colonial e a percepção historiográfica, apresento aqui algumas obras que ajudaram e

marcaram nossa formação escolar, acadêmica e visão acerca dos nossos aborígenes. A

finalidade é refletir sobre como, apesar de toda a participação no processo colonizador, o

indígena passou tão despercebido a nossa historiografia.

Algumas obras auxiliaram bastante na elaboração de trabalhos sobre o Brasil Colônia

e, em especial, sobre o indígena, como as crônicas escritas, em sua maioria, no século

XVII/XVIII. Esses livros trazem uma série de informações sobre a sociedade colonial, porém,

devem ser analisados com uma crítica prévia, para não se assimilar tudo o que está relatado

como absoluta verdade.

Muitos relatos do século XVII, repletos de descrições de plantas, animais e índios, se

caracterizam pela constante repetição de estereótipos e imagens consolidados pelos primeiros

cronistas-informantes7, refletindo os paradigmas da época. Entre os autores que se

enquadraram nesse tipo de literatura, e que são fundamentais para o estudo do Maranhão

colonial, destaco Claude D‟Abbeville (primeira publicação, c.a 1874), Pe. José Bettendorf

(publicada em 1910, pelo IHGB) e Pe. José de Moraes (c.a 1860-74).

Essas obras feitas por religiosos devem ser lidas não só a partir das informações que

trazem, mas de situações pelas quais foram escritas, bem como a finalidade de quem a

escreveu. Considerar o lugar de fala, a intenção do autor e o público para quem escreve8

promove uma atitude questionadora frente à narrativa da obra. Um exemplo são os textos da

Companhia de Jesus. Retoricamente construídos, visando persuadir por uma noção de

verdade, sua narrativa utiliza recursos para que o discurso se torne mais atrativo a um

determinado público que, no caso, pode ser tanto composto por autoridades portuguesas

quanto por superiores da Ordem9.

É necessário também que não se analise tais narrativas a partir de referenciais estéticos

atuais. Essa atitude incorre em erros de interpretação e mal entendidos que atrapalham a

7 MESGRAVIS, Laima. A sociedade brasileira e a Historiografia Colonial. In: FREITAS, Marcos Cezar (org).

Historiografia em Perspectiva. 5º Ed., São Paulo: Contexto, 2003, p. 39. 8 CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de

Janeiro: Forense-Universitária, 1982. 9 CARVALHO, Roberta Lobão. História e retórica nas narrativas jesuíticas no Maranhão (séc. XVII e XVIII).

Artigo apresentado no XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011, p. 2.

14

análise sensivelmente. Tem-se que examinar as fontes jesuíticas como aquilo que Adolfo

Hansen chama de letras coloniais, ou seja, devem ser percebidas em um contexto específico

para serem devidamente estudadas e compreendidas10

.

Além disso, mesmo com uma enorme riqueza de detalhes, essas obras vêm fortemente

carregadas de estereótipos e imagens seguindo pensamentos, tendências ou modelos

civilizacionais da época. Desse modo, noções negativas acerca dos nativos, como a ideia de

que eram preguiçosos, passivos, sem mecanismos de resistência, selvagens, dentre outras,

foram elaboradas e reproduzidas a partir desses olhares e interpretações. No entanto, tomadas

como documentos, essas obras têm sido importante fonte de informação a pesquisadores

interessados no revisionismo das interpretações históricas. Por isso, são lidas, estudadas e

analisadas de maneira cuidadosa, crítica e sempre com base em novos suportes teórico-

metodológicos.

Tomo como exemplo “História dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras

circunvizinhanças”, de Claude d‟Abbeville que traz uma série de informações sobre os

primeiros anos de colonização do Maranhão. Na sua obra podemos observar uma visão do

território, bem como dos ameríndios que aqui habitavam, os Tupinambás. Ele fala do número

aproximado de indígenas, aldeias, dos costumes, rituais, relações com os colonizadores,

formas de trabalho e suas práticas religiosas.

Creio que não existe debaixo do céu nação mais bárbara e cruel que a dos índios do

Maranhão e circunvizinhanças... Creio que tenha jamais havido nação mais bárbara, mais cruel e desumana do que essa.

Vivem eles em permanente estado de alegria, de festa, contentes e satisfeitos, sem

preocupações, sem inquietações nem tristezas, sem fadigas nem angústias que

modificam e consomem o homem em pouco tempo11.

Abbeville retrata os valores e a cultura indígena como inferior em relação aos

costumes europeus e pauta toda sua prática evangelizadora, visando a retirar os Tupinambás

das trevas da ignorância e levá-los à civilização. Porém, em outros momentos, ele faz elogios

e louva os aborígenes, ao descrever, por exemplo, o sistema de educação dos filhos, no

cuidado com as crianças, a união entre eles, a falta de ambição, sua constituição física sempre

forte e saudável, entre outras valorizações culturais. Abbeville chega mesmo a questionar a

conduta dos franceses e sua própria ação. Sua narrativa torna-se, aparentemente, contraditória,

10

HANSEN, João Adolfo. Ler e Ver: Pressupostos da Representação Colonial. Disponível em:

<http://www.geocities.ws/ail_br/lerverpressupostos.htm>. Acesso em 09/10/2015. 11 D‟ABBEVILLE, Claude. História dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhanças.

Belo Horizonte; Ed. Italaia; São Paulo, Ed. Universidade de São Paulo, 1975, p. 7.

15

integrando no mesmo discurso expressões de censura fundadas numa ética ortodoxa, bem

como declarações de elogios e questionamento do comportamento dos franceses12

.

Essas crônicas devem ser lidas sempre levando em conta o contexto histórico em que

foram escritas, identificando-se os objetivos que deseja alcançar. A crônica de Abbeville

constitui obra na qual se encontram juízos de valor que traduzem os ideais do colonizador

europeu permanentes do final dos Quatrocentos aos Setecentos. Por isso, entre outros fatores,

nela há referências favoráveis a quem aprovava o empreendimento colonizador e

desfavoráveis a seus contrários e opositores13

.

Um pouco mais adiante, no século XIX e início do XX, foram produzidas algumas

obras sobre a História do Brasil Colonial com grande impacto na formulação do pensamento

historiográfico brasileiro sobre o entendimento do que era ser índio no Brasil Colonial, bem

como o papel desempenhado por eles na colonização. Destaco aqui somente duas delas:

História Geral do Brasil (1854-1857) 14

, de Adolfo Varnhagem15

e Capítulos de História

Colonial (1907), de Capistrano de Abreu16

. Proceder a uma avaliação das representações de

Adolfo Varnhagen e Capistrano de Abreu sobre o aborígene é importante para o entendimento

do lugar e do papel dado ao índio na História do Brasil.

Obra considerada pioneira na análise de documentos coloniais, História Geral do

Brasil apresenta os índios como “povos na infância [que] não há história: há só etnografia” 17

.

Essa compreensão marcou profundamente os resultados dos estudos sobre os índios,

comprometendo um entendimento mais alargado a respeito da cultura e atuação do nativo na

História do Brasil.

Somente no final século XX, o entendimento sobre o índio passou a ser objeto de

questionamento de vários autores. O princípio básico da crítica reside no revisionismo das

percepções historiográficas, elaborações conceituais e ausências documentais na História do

Brasil Colonial sobre o índio em especial. O entendimento foi que as afirmações elaboradas

12 CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Uma leitura da obra de D‟Abbeville. Humanae Res. São Luís, v. 1, n. 1,

jul./dez. 1990, p. 6. 13 CALDEIRA, José de Ribamar Chaves. Dois estudos: os discursos de Japi-açu e de Momboré-uaçu e

Vadiagem no Maranhão, 1800 – 1850. São Luís: Edufma, 2004, p. 15. 14 VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. Visconde de Porto Seguro [1854-57]. História Geral do Brasil, 7a ed.,

5 vols., São Paulo e Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1980. 15 Francisco Adolfo de Varnhagen ocupou função de sócio, secretário e orador do IHGB. Varnhagem assumiu a

tarefa de escrever a primeira História Geral do Brasil, entre 1857 e 1860, utilizando grande quantidade de

documentos coloniais e sistematizando uma visão totalizante da formação da nação brasileira. Em sua obra, o

Visconde de Porto Seguro dedicou as primeiras páginas para refletir sobre os índios brasileiros. CANCELA,

Francisco. “Você quer voltar à oca?”: armadilhas, artimanhas e questões da pesquisa histórica sobre os povos

indígenas. Revista História em Reflexão: Vol. 3 n. 5 – UFGD - Dourados jan/jun 2009, p. 4. 16 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca

Nacional/Ministério da Cultura, 1907. 17 VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. Op. Cit., p. 30.

16

sobre o indígena brasileiro, além de não darem conta da atuação desses indivíduos na História

do Brasil Colonial, promoveram uma sistemática desqualificação desses povos e de sua

cultura. Consequentemente foram reduzidos a simples objetos da ciência com, no máximo, a

função de nos dizer algo sobre as origens da humanidade como se fossem fósseis vivos18

.

A ideia defendida por Varnhagem de que os indígenas seriam povos na infância e que

não haveria história também limitou os índios a um capítulo anterior ao início da colonização

e, portanto, anterior à própria História do Brasil, tornando-os objetos de estudo, sobretudo, de

antropólogos19

. Dessa forma, a temática foi muitas vezes abordada preferencialmente por

antropólogos e etnólogos a fim de conhecer os aspectos da sua cultura, costumes, práticas

religiosas, não se observando as populações indígenas em uma perspectiva histórica, como

um sujeito que se integrou à sociedade colonial.

Essa afirmativa de Varnhagem sobre os indígenas como “povos na infância [que] não

há história: há só etnografia” parte de uma noção de um suposto primitivismo típico desses

povos, evidenciado pela ausência da escrita e na constituição de modos de vida comunitários,

o que impedia o estudo de seu passado e a inteligibilidade de sua historicidade20

. Porém,

apesar das críticas, a obra de Varnhagem é, ainda hoje, uma referência para a pesquisa sobre a

colonização, pois nos oferece uma série de informações fundamentais sobre a História do

Brasil Colonial, e do índio, em específico.

Outra obra que marcou a historiografia brasileira colonial é “Capítulos de História

Colonial”, de Capistrano de Abreu21

. Escrita em 1907, com a promessa de elaborar uma

“nova história” do Brasil, aborda temas ainda não tratados, além de fazer uma narrativa

diferente de Varnhagem. Capistrano pretendia fazer uma crítica à obra de Varnhagem.

Incomodava-o seu estilo de escrita fria, a cronologia rígida e também o caráter oficial da

história por ele produzida. Uma história empenhada em sustentar a coerência do Império

desde as origens coloniais22

. É, portanto, uma história que prioriza as elites, valorizando os

portugueses e desconsiderando a participação histórica de índios.

18 MONTEIRO, John M. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese

(Concurso de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001, p. 2. 19 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial: novos súditos

cristãos do império português. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas,

2000, p. 2. 20 CANCELA, Francisco. “Você quer voltar à oca?”: armadilhas, artimanhas e questões da pesquisa histórica

sobre os povos indígenas. Revista História em Reflexão: Vol. 3 n. 5 – UFGD – Dourados jan/jun 2009, p. 4. 21

ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca

Nacional/Ministério da Cultura, 1907. 22 VAINFAS, Ronaldo. Capistrano de Abreu – Capítulos de História Colonial. In: MOTA, Lourenço Dantas,

(Org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 3ª Ed. São Paulo: Ed. SENAC, 2001, p. 177.

17

Entretanto, por mais que Capistrano se propunha a elaborar uma nova história, dando

ênfase a novos temas, tais como os indígenas, natureza, clima, situação geográfica, luta dos

povos, costumes e a chegada dos europeus no que viria ser o Brasil23

, ele não dá um

tratamento necessário a determinados assuntos como a miscigenação e os próprios índios. No

seu primeiro capítulo intitulado “Antecedentes indígenas”, o autor descreve as características

geográficas do Brasil, como vegetação, clima, flora, animais, porém aos indígenas é reservada

menos de duas páginas: um pouco sobre os tupis e outros que dizia falarem “línguas

travadas”, no caso, os gês, cariris e tremembés24

.

Ainda sobre a temática dos índios, Capistrano reconhece que a História do Brasil

começava com os nativos. Porém, é feita uma descrição superficial das culturas indígenas que

aqui habitavam, com a reafirmação de estereótipos sobre os índios, como a ideia de serem

preguiçosos. Apesar dessas inconsistências, a obra de Capistrano é de extrema importância,

fornece, até hoje, conhecimentos aos historiadores que estudam o Brasil Colonial. Para a

historiadora Laura de Mello e Souza, a obra é original, pois observa a formação do nosso país

sob o impacto da cultura material influenciada pela pluralidade étnica dos habitantes25

.

No século XIX, há também um constante embate teórico em torno do indígena. Nesse

cenário, sobretudo de busca da definição de nacionalidade do Brasil, temos três autores que

marcaram época com seus posicionamentos, Adolfo Varnhangen abordado anteriormente,

Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa26

.

A maior ênfase nesses trabalhos se dá em torno de João Francisco Lisboa, maranhense

que, além de historiador, foi também jornalista e político; sua publicação principal, “Jornal de

Tímon” 27

, é considerada uma obra fundamental para o entendimento da situação indígena nos

23 Nesse ponto encontramos uma diferença em relação à Varnhagem e a historiografia anterior a ele: “o olhar de

Capistrano” sobre a chegada dos europeus, como bem caracteriza José Carlos Reis, “é da praia para o oceano

cheio de caravelas, diferentemente do de Varnhagen, que olhava das caravelas para a praia”. REIS, José Carlos.

As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. São Paulo: FGV, 2000, p. 98. 24 VAINFAS, Ronaldo. Capistrano de Abreu – Capítulos de História Colonial. In: MOTA, Lourenço Dantas,

(Org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. 3ª Ed. São Paulo: Ed. SENAC, 2001, p.178. 25 A autora ainda acrescenta que Capistrano via as três raças como irredutíveis. SOUZA, Laura de Mello e.

Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil colônia. In: FREITAS, Marcos Cezar (org). Historiografia

em Perspectiva. 5º Ed.. São Paulo: Contexto, 2003, p. 18. 26 João Francisco Lisboa fora um político liberal, autodidata que enveredara por conta própria no estudo do

Direito e da Filosofia greco-latina. Literato, membro do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), e dentre outras coisas um pantheon maranhense. Nascera em 22 de março de 1812 no distrito de Pirapemas,

município de Itapecuru-Mirim, pertencente à Província do Maranhão. Descendente de famílias tradicionais

ligadas à aristocracia rural instaladas no vale do Itapecuru. COSTA, Alex Silva. João Francisco Lisboa, das

tintas dos jornais ao trono do descaso: um discurso apologético sobre a memória do Tímon Brasileiro. Artigo

apresentado no III Simpósio de História do Maranhão Oitocentista: impressos no Brasil do século XIX. São

Luís, 2013, p. 1. 27 Publicada em 25 de junho do ano de 1852, Jornal de Tímon, marcou época nos anais da imprensa maranhense.

Era uma obra de difícil classificação pela heterogeneidade de assuntos que contém: crítica de costumes e hábitos

políticos, pensamentos e pequenos ensaios, matéria histórica sobre a Antiguidade e sobre o Maranhão.

18

primeiros anos de colonização no Maranhão, bem como a própria história da capitania nesse

período.

João Lisboa, assim como Gonçalves Dias, foi contemporâneo do Romantismo.

Entretanto, não se considerava um romântico e combatia os seguidores dessa linha, e tinha

preferência por valorizar a cultura europeia. O Indianismo para Lisboa seria um movimento

reacionário, próprio de povos sem visão de futuro e que não pretendiam ver o país progredir.

O progresso para Lisboa estava associado à imigração branca28

. Podemos observar esse tipo

de visão quando o autor fala

Ponhamos termo a esta parte do nosso trabalho [Índios] com as seguintes reflexões.

Seria ele indispensável, necessário, útil ao menos? Tal nos pareceu sem dúvida. Esse

falso patriotismo caboclo, espécie de mania mais ou menos dominante, segundo as

circunstâncias, leva-nos a formular, quanto ao passado, acusações injustas contra

nossos genuínos maiores; desperta no presente antipatias e animosidades, que a sã

razão e uma política ilustrada aconselham pelo contrário a apartar e adormecer; e ao

passo que faz conceber esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação

que seria perigosa, se não fora impossível, embaraça, retarda, e empece os

progressos da nossa pátria, em grande parte dependentes da emigração da raça empreendedora dos brancos, e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso,

único meio possível já agora de verdadeira reabilitação29.

A visão de Lisboa e Varnhagem diferia-se da de Gonçalves Dias, eles defendiam a

civilização pelos colonizadores brancos. Lisboa apresentou-se como um anti-indianista

ferrenho e convicto opositor de Dias. Tanto quanto Varnhagem enalteceu as raízes europeias

que consideravam “nossos genuínos maiores”. A grande reabilitação estaria na imigração da

raça empreendedora dos brancos. Nesse momento, Lisboa está muito próximo das ideias de

Varnhagem quanto aos índios, mas num momento posterior é possível vislumbrar rasgos

indianistas na obra de Lisboa quando este reconhece, tal como havia feito Gonçalves Dias,

que tudo que havia no Brasil era devido aos índios30

.

A grandeza do Jornal de Tímon para os pesquisadores da historiografia indígena do

Maranhão colonial se dá também, em grande medida, pela quantidade de informações que

possui sobre os indígenas; o 1° volume contém duas partes que abordam especificamente os

índios. A primeira retrata a impressão dos primeiros colonizadores, a índole e costumes dos

aborígenes, a visão de alguns autores sobe os índios, como Gabriel Soares, Fernão Denis,

Simão de Vasconcelos, os relatos de Claude D‟Abbeville, entre outros. E a segunda, na qual

JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. João Francisco Lisboa: jornalista e historiador. São Paulo: Ática, 1977,

p. 29. 28

COELHO, Elizabeth Beserra. A política indigenista no Maranhão Provincial. São Luís: Sioge, 1990, p. 56. 29 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 114. 30 COELHO, Elizabeth Beserra. Op. Cit., p. 81.

19

considero fundamental nesse trabalho monográfico, aborda a legislação portuguesa e bulas

papais acerca dos índios desde 1570 a 1809.

Outra problemática ainda na escrita da história sobre os indígenas é que, pelo menos

até a década de 1980, a história dos índios no Brasil resumia-se, basicamente, à crônica de sua

extinção, na qual iriam desaparecer gradativamente a partir do contato com os europeus.

Porém é uma abordagem minimamente compreensível, diante do registro de guerras,

epidemias, massacres e assassinatos atingindo populações nativas ao longo dos últimos 500

anos. Um dos perigos desse tipo de abordagem é que deixam os indígenas com um passado

curto, como se vivessem numa realidade distante, isolando a sociedade indígena no tempo e

espaço31

. Esse tipo de visão colocaria os indígenas como parte não integrante da nossa

sociedade, no máximo isolados em suas aldeias e aos poucos iam desaparecendo.

Caio Prado Júnior, um dos autores mais clássicos da historiografia brasileira, se

enquadra nessa perspectiva. Na sua obra, “Formação do Brasil Contemporâneo”, o índio

aparece inserido na história da colonização, porém sua participação é detectada a partir da

relação com os portugueses. O nativo seria dominado pelos conquistadores de várias formas,

seja pela religião ou escravidão, e com o tempo tenderia a desaparecer:

A população indígena, em contato com os brancos, vai sendo progressivamente

eliminada e repetindo mais uma vez um fato que sempre ocorreu em todos os

lugares e em todos os tempos em que se verificou a presença, uma ao lado da outra,

de raças de níveis culturais muito apartados: a inferior é dominada desaparece. E não

fosse o cruzamento, praticado em larga escala entre nós e que permitiu a

perpetuação do sangue indígena, este estaria fatalmente condenado a sua extinção

total 32.

Essa concepção é, no mínimo, pessimista, pois ao mesmo tempo em que o contato

entre europeus e nativos levaria ao desaparecimento do índio, também coloca estes como

inferiores e o branco como superior, sendo assim a raça dominante. Além de dar aos europeus

a responsabilidade da perpetuação do sangue indígena, através do cruzamento com estes.

1.2 Novos olhares

Com o passar do tempo, esse quadro analítico foi se transformando, sobretudo, a partir

do século XX, especificamente na década de 80, com o crescimento do número de pesquisas

impulsionadas pelos Programas de Pós-graduação no Brasil. Com base em novos aportes

31 MONTEIRO, John Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo.

Tese (Concurso de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001, p. 4. 32 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1999, p 105-106.

20

teóricos, esses trabalhos reavaliaram a participação indígena na História do Brasil,

imprimindo-lhes um papel de sujeitos ativos no processo histórico. Começamos a despertar

para novas formas de olhar e compreender a vida, cultura e participação histórica de nossos

aborígenes. Isso se deu, especialmente, com a publicação de livros, resultantes de teses,

dissertações, trabalhos monográficos e extensão, não esquecendo o maior acesso a arquivos

antes inexplorados33

.

Na década de 80 tivemos uma verdadeira explosão de estudos sobre os escravos e a

escravidão, sobre os cristãos novos e a Inquisição, as mulheres, os pobres, os

“desclassificados”, enfim, um vasto elenco de novas personagens, que passaram a desfilar no

palco da história brasileira, junto com novas perspectivas sobre a história social, demográfica,

econômica e cultural34

. Dentre esses novos atores destacam-se os indígenas.

Um motivo que levou ao crescimento do número de pesquisas sobre o indígena é que

no século XX houve uma discussão sobre os direitos indígenas, enquanto direitos históricos,

sobretudo territoriais. E isso estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos

coloniais os fundamentos históricos e jurídicos das demandas atuais dos índios ou, pelo

menos, dos seus defensores35

.

Dentro desses novos estudos sobre o nativo, o livro “Negros da Terra: índios e

bandeirantes nas origens de São Paulo”, de John Monteiro, apesar de centrar seus estudos no

Estado de São Paulo, contribuiu decisivamente para uma reavaliação e discussão do papel do

índio na história social e econômica da colônia. Sua posição historiográfica defende que a

dinâmica interna do Brasil indígena teve suficiente profundidade e densidade histórica e que

muitas vezes foi a consciência de um passado indígena que forneceu as bases para uma ação

perante a situação historicamente nova da conquista36

.

John Monteiro ainda mostra como todos os aspectos da formação da sociedade e da

economia paulista durante seus primeiros dois séculos se confundem, de modo essencial, com

os processos de integração, exploração e destruição de populações indígenas trazidas de

33 Até a primeira metade do século XX, a história do Brasil era escrita, com poucas exceções, por autores que

enfatizavam alguns acontecimentos que pareciam mais importantes – Descobrimento, Capitanias Hereditárias,

Guerra Holandesa, Entradas e Bandeiras, Independência, Abolição e Proclamação da República -, sem estabelecer um nexo maior entre estes acontecimentos e a sociedade que fora gerada pela colonização e pela

miscigenação. ANDRADE, de Manoel Corrêa. Prefácio. In: CABRAL, Maria do Socorro Cabral. Os Caminhos

do Gado: conquista e ocupação do Sul do Maranhão. 2° Ed. São Luís: EDUFMA, 2008, p. 19. 34 MONTEIRO, John Monteiro. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo.

Tese (Concurso de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001, p. 7. 35

Estes figuram com destaque entre os primeiros exemplos deste renovado interesse pela história dos índios

alguns dossiês e laudos antropológicos que buscavam dar substância às reivindicações de grupos tais como os

Potiguara da Baía da Traição, os Xocó de Sergipe e os Pataxó do sul da Bahia, entre outros. Ibidem, p. 5 a 6. 36 Ibidem, p. 18.

21

outras regiões37

. Logo, percebemos a centralidade da participação indígena na formação da

sociedade e economia colonial, pois em todos os processos o nativo estava presente, mesmo

que, em vários casos, de modo negativo para eles.

Ao invés de vítimas passivas de um processo de perdas culturais sucessivas que os

conduzia inevitavelmente à extinção étnica e cultural, os índios inseridos no império colonial

português e, mais tarde, no império brasileiro, podem ser vistos como agentes sociais ativos

neste processo38

. Essa mudança é acarretada também pelo maior acesso a fontes documentais,

consequentemente aos arquivos, tanto no Brasil, quanto em Portugal. Isso nos fez conhecer de

forma “mais próxima” a relação entre o nativo e a política colonizadora.

Vale ressaltar que essa mudança na historiografia não desconsidera a extrema

violência, os imensuráveis prejuízos e o alto índice de mortalidade causada aos índios pela

conquista e colonização. É possível perceber, através da documentação interpretada à luz das

novas concepções interdisciplinares, que os índios foram também agentes de seu processo de

metamorfose e encontraram diferentes meios de rearticular suas culturas, identidades e

histórias para sobreviverem às diversas relações de contato que estabeleceram na colônia e no

império39

.

Assim, o papel central que os indígenas ocuparam na colonização, o desenvolvimento

e declínio da escravidão indígena passaram a ser considerados e ricamente explorados. Tais

análises demonstraram que as principais estruturas da sociedade colonial surgiram de um

processo específico com parcela das nações nativas submetidas a uma estrutura cuja

finalidade era controlar e explorar a mão de obra indígena40

. A partir daí, podemos considerar

que nos primeiros anos da colonização, a formação da sociedade colonial se deu, em grande

parte, pela participação indígena, sendo objetivo dos colonizadores explorarem sua mão de

obra. Todavia, a participação do nativo se dá de múltiplas formas, não se reduzindo somente

ao controle e utilização da sua força de trabalho.

É possível entender que colaborar com os europeus e aldear-se podia significar uma

forma de resistência adaptativa, através da qual os povos indígenas ressocializavam-se,

reelaborando valores, culturas e tradições no contato cotidiano com as aldeias, repleto de

37 MONTEIRO, John Manuel. O desafio da história indígena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da;

GRUPIONI, Luís Donizete Benzi (Org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º

e 2º graus. Brasília: MEC; MARI; UNESCO, 1995, p. 9. 38ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Disponível em:

<http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=381&sid=51>. Acesso

em 24 de setembro de 2015. 39 Idem. 40 MONTEIRO, John Manuel Monteiro. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São

Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 9.

22

tensões, negociações e conflitos, entre todos os agentes sociais ali envolvidos41

. Os defensores

dessa corrente historiográfica acreditam que a relação entre indígenas e europeus

ultrapassaram os limites estabelecidos, estes foram capazes de negociar, criar conflitos, aliar-

se, na verdade, o próprio aldeamento entre os indígenas e colonizadores era um local de

ressignificação ou reelaboração de muitos dos seus valores.

Até mesmo o processo de evangelização dos indígenas não é visto como uma simples

imposição – positiva ou negativa – do colonizador sobre uma massa amorfa e indefesa de

indivíduos inconscientes da catástrofe que se lhes abatia. Fugindo-se do binarismo vencedor x

vencido (criticado com veemência), vê-se na evangelização, mais do que uma imposição, um

complexo processo de traduções mútuas, no qual os missionários europeus liam as práticas e

discursos indígenas com chaves de interpretação retiradas dos textos bíblicos e do paganismo

clássico, enquanto os próprios índios percebiam os missionários como seres semelhantes aos

seus pajés e caraíbas, com extraordinários poderes de cura e de comunicação com a

alteridade42

.

De fato, não podemos generalizar nenhuma dessas situações vivenciadas pelos índios e

colonizadores, muito menos excluir formas de resistência à evangelização, mas, ao contrário

do que foi colocado pela historiografia tradicional, em que o processo de catequização foi

uma simples imposição, na verdade, esses índios podiam enxergar os missionários de

diferentes formas.

A própria ideia de que os indígenas eram preguiçosos foi desmistificada,

principalmente, por Stuart Schwartz, que se propôs a estudar o cotidiano na colônia, as

relações de poder entre senhores, lavradores e escravos, a metrópole e seu domínio em terras

americanas, a formação da sociedade baiana e, por conseguinte, a brasileira, o uso e

substituição da mão de obra escrava indígena pela africana, a importância dos engenhos e do

açúcar, entre outros assuntos43

. Isso fez com que sua obra tenha tanto valor e abrangência e

seja reconhecida como um clássico, servindo para críticas de uns e aclamada por outros, em

função deste ser um olhar de um estrangeiro a falar sobre nossa história.

Segredos Internos marca uma mudança historiográfica sobre a colônia e, no tocante

aos índios, observa-os integrados à economia açucareira. As perspectivas de trabalho e da

41ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial: novos súditos cristãos

do império português. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, 2000, p. 11. 42 POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, SP:

EDUSC/ ANPOCS, 2003. Resenha de: FERNANDES, João Azevedo. Mana, vol.10, nº. 1, p. 210-213, Rio de

Janeiro, 2004, p. 210-211. 43 OLIVEIRA, Maurício de. Disponível em: <http://maurricio.blogspot.com.br/2006/11/resenha-do-livro-de-

schwartz-stuart-b.html>. Acesso em 08 de outubro de 2015.

23

produção entre índios e portugueses eram divergentes, o que levava à inconstância, aparente

prodigalidade e à falta de interesse pelo lucro, excedentes e poupança chocaram a

sensibilidade europeia. E por mais de uma vez tais atitudes foram difundidas como prova de

irresponsabilidade índia e como sua falta de humanidade44

.

A diferença de comportamento entre índios e europeus, no interior da colônia, foi

motivo para taxá-los de preguiçosos, selvagens, desprovidos de cultura e outros estereótipos

negativos, porém seus objetivos e formas de vida eram bem diferentes, portanto não se

deveria julgá-los com os “olhos do colonizador”. Ao contrário dessa visão, o trabalho trazia

para o centro do palco a atuação dos próprios índios, vítimas de genocídio e etnocídio, sim,

mas também capazes de repensar sua própria história e reconstruí-la, mediante sua inserção

no mundo colonial e nos processos políticos que se desencadeavam a partir das expedições de

apresamento45

.

Recentemente há uma nova discussão no campo da historiografia sobre o nativo. O

debate gira em torno da formação de uma “elite indígena” no período colonial, a partir do

momento em que alguns aborígenes se diferenciavam do restante da aldeia e conseguiam

alguns benefícios para si em troca de serviços prestados. No decorrer deste trabalho,

apresentarei alguns documentos que mostram alguns casos vivenciados na capitania do

Maranhão.

Nesse sentido, as autoridades coloniais tentavam transformar os índios em vassalos

portugueses, e diversas medidas foram tomadas para “civilizá-los”. A formação de uma elite

indígena deve ser entendida neste contexto, na medida em que esses indivíduos serviam como

elo entre os anseios da Coroa (representada pelas autoridades portuguesas) e os demais índios.

Para o êxito da colonização era imprescindível estabelecer alianças com os nativos,

principalmente, para a facilitação no acesso à mão de obra e para o próprio avanço da

conquista das áreas ainda não colonizadas. Eram importantes como elementos da

administração e governo das vilas ― antigos aldeamentos indígenas. Ou seja, apesar de

inseridos no mundo colonial, os índios puderam adaptar as políticas indigenistas em favor dos

seus interesses46

.

Essa concepção de que os índios adaptados a essa nova conjuntura souberam atender e

recorrer aos seus próprios interesses, buscando alguns benefícios em decorrência de serviços

44 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, trad. Laura Teixeira

Motta, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 22. 45

POMPA, Cristina. Os índios, entre a antropologia e a história: a obra de John Manuel Monteiro. BIB, São

Paulo, nº 74, 2º semestre de 2012 (publicada em julho de 2014), p. 61-79, p. 67. 46 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-

1798). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 5.

24

prestados e fidelidade que vários deles tiveram com as autoridades, é um ponto crucial para

este estudo. Esses nativos eram principalmente as lideranças indígenas locais, também

chamados de índios principais, e correspondiam, naquele contexto, a uma multiplicidade de

papéis que iam desde aliados militares de grandes prestígios nos primeiros anos da conquista,

até simples chefes de grupos que não faziam mais do que gerenciar o processo de repartição

dos trabalhadores indígenas sob seu comando. Entretanto, esta suposta “elite indígena” estava

mais para intermediários culturais do que para aliados políticos. Cumpriam a sua função e

defendiam seus interesses e de seus grupos. Usavam estratégias políticas variadas para se

fazerem ouvir ou para conseguir benesses47

. Lembrando que essas benesses poderiam se tratar

de vestimentas a até rendimentos monetários (essa questão será abordada mais

detalhadamente no segundo capítulo deste trabalho).

Muitos líderes foram forjados pelas autoridades coloniais, mas somente conseguiam

ser reconhecidas com êxito no grupo se, de alguma forma, cumprissem seu papel tradicional

de liderança. Não fosse assim, não teriam razão para existir. O jogo era complexo e a nova

ordem colonial impunha novos tipos de práticas. Ser Principal era constituir-se como fronteira

e como ponte entre dois mundos48

.

Como foi colocado durante este primeiro capítulo, a forma de olhar o indígena passou

por profundas mudanças, graças ao interesse de alguns autores em investigar, revisionar,

problematizar e elaborar uma nova história sobre a atuação histórica desses sujeitos. Se antes

eram vistos como figurantes, agora são compreendidos como atores e agentes históricos.

Porém, a escassez de pesquisas sobre o tema sugere que esse caminho deve continuar a ser

percorrido, pois ainda há muito que se conhecer do papel desempenhado por esses povos,

principalmente no Maranhão, onde ainda há muita carência de estudos por parte dos

historiadores.

47

CARVALHO Jr, Almir Diniz. Principais indígenas na América Portuguesa. Comunicação corresponde a uma

parte de um item do capítulo “Índios Cristãos” da tese de doutorado intitulada: Índios Cristãos: a conversão dos

gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769), Campinas: Tese de Doutorado, 2005, p. 8. 48 Idem.

25

2. UM DOMÍNIO, DOIS ESTADOS, UM PROTAGONISTA NA CONQUISTA

Após identificar as formas como a historiografia tradicional e revisionista elaborou e

moldou visões sobre o nativo brasileiro e chamar atenção para as críticas a respeito das

representações desses sujeitos, agora localizarei o leitor acerca da espacialidade a qual as

minhas reflexões se reportam para que entendamos as especificidades históricas às quais me

refiro.

Por força das especificidades geo-políticas, o domínio português na América foi

dividido em dois Estados: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará49

. O

Estado do Maranhão e Grão-Pará compreendia uma vasta área que correspondem aos atuais

Estados do Ceará e Amazônia brasileira, se caracterizava por uma realidade singular em

relação às outras partes da América portuguesa. Esse território foi marcado pela importância

da mão de obra indígena e por uma economia na qual se interconectavam atividades

extrativistas (principalmente a coleta das chamadas drogas do sertão) e a lavoura (sobretudo

de açúcar, tabaco, cacau, mandioca e farinha)50

. Além da importância da mão de obra

indígena na região, identificarei a participação do nativo – através da documentação – de

várias formas em conflitos, resistências, negociações, alianças, pedidos de benefícios,

catequese, entre outras.

A fim de observar essas especificidades desse território, bem como a participação

indígena, realizei um levantamento temático e documental a respeito das atividades indígenas

no período do século XVII a partir dos manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)

e dos Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís, ambos correspondentes à capitania do

Maranhão. Em seguida fiz um levantamento dos vários temas referentes aos nativos nos

documentos do AHU entre os anos de 1614 a 1699 e cataloguei os manuscritos da Câmara

para o ano de 1646 e 1657. Posteriormente, mapeei as tipologias das atividades indígenas na

conquista e dominação portuguesa do Estado do Maranhão e Grão-Pará, os quais apresento

neste capítulo51

.

A essencialidade desses documentos consiste na quantidade de informações a respeito

das comunicações entre a capitania e o reino, e vice versa, bem como o entendimento da vida

49 Para uma abordagem da cartografia política do Maranhão e Grão-Pará ver CORRÊA, Helidacy Maria Muniz

Corrêa. Cartografia política da reconfiguração espacial do Maranhão e Grão-Pará: conexões e interconexões.

Revista Outros Tempos, vol. 11, n.17, 2014, p. 18-34. 50 CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicados Clamores”: queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século

XVII). Projeto História, São Paulo, n.33, p. 159-178, dez. 2006, p. 160. 51 Para a formulação das tipologias me inspirei em outra base “O Bom Governo das Gentes: hierarquias sociais e

representação segundo a „política católica‟, do século XVI ao XVIII”, coordenado pelos professores Drs. João

Fragoso (UFRJ) e Jean-Fréderic Schaub (EHESS) na qual trabalhei, a convite da profesora Helidacy Corrêa.

26

cotidiana na região e as deliberações das autoridades locais, como no caso dos documentos da

Câmara de São Luís.

2.1 Os índios na documentação do AHU

O levantamento documental e temático a respeito das atividades indígenas no período

colonial foi realizado a partir dos manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),

digitalizados pelo projeto Resgate, e dos Livros de Acórdãos da Câmara e correspondem à

capitania do Maranhão.

A metodologia adotada consistiu-se na reunião de dados, seguida de análise

qualitativa. Primeiro selecionei vários temas referentes aos nativos nos documentos do AHU,

entre os anos de 1614 a 1699. Devido à quantidade de manuscritos referentes aos indígenas e

pelo estado dos documentos, esse levantamento foi feito a partir dos verbetes dos documentos

encontrados no catálogo de documentos avulsos referentes à capitania do Maranhão existentes

no Arquivo Histórico Ultramarino. Assim, apresento a seguir os dados quantitativos e

qualitativos resultantes dessa investigação.

Os manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino que trabalhei correspondem a cartas

régias, autos, requerimentos, ofícios, memoriais, consultas, cartas de provisão, decretos,

advertências, alvarás, certidões e pareceres, enviados ou recebidos entre a capitania do

Maranhão e o Conselho Ultramarino52

.

Do corpus documental pesquisado, foram coligidos 78 documentos que abordam

assuntos referentes aos indígenas classificados com as seguintes tipologias: Administração de

aldeias/ Religiosos; Escravidão; Alianças; Conflitos/ Resistência; e Diversos.

A tipologia “Administração de aldeias” aparece relacionada às ações catequéticas dos

religiosos, bem como à organização da vida nas aldeias. Por sua vez, o tema “Alianças”

revela uma dimensão negocial da ação indígena no processo conquistador, principalmente no

estabelecimento de acordos e pedidos de mercês por parte de lideranças indígenas. Por outro

lado, a tipologia “Escravidão” engloba assuntos referentes à liberdade, serviços e outras

situações relacionais. A temática “Conflitos/resistência” apresenta as tensões deflagradas

entre índios, colonos e religiosos. Apesar de esses temas serem recorrentes na documentação

pesquisada, outros apareceram associados, em menor proporção, como por exemplo, a

52 Instalado em 1643, o Conselho Ultramarino, segundo Sérgio Buarque de Holanda, figurava o órgão

centralizador nas relações entre Portugal e as colônias. Caberia discutir, aconselhar – e muitas vezes, na prática a

deliberar – sobre tudo o que diz respeito à política e à administração do Brasil. HOLANDA, Sérgio Buarque de.

A Época Colonial, Administração, Economia e Sociedade, 7ª ed. (t. I, vol. 2 da coleção História Geral da

Civilização Brasileira. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993, p. 14.

27

condição geral dos índios, cobrança de tributos, dentre outros. Não é possível afirmar que se

trata de situais excepcionais. Contudo, como o critério aqui adotado para nomeação das

tipologias foi a recorrência dos temas na documentação, decidimos inseri-los na categoria

“diversos”, conforme indico no seguinte gráfico:

De 100% dos documentos que tratavam especificamente sobre índios, identifiquei

36% referidos à Administração de aldeias/religiosos. A escolha da união desses dois assuntos

para o mesmo tema se justifica pela estreita relação entre ambos, pois, em boa parte dos casos,

os administradores das aldeias eram os próprios religiosos. Podemos observar isso nos

constantes conflitos durante o século XVII entre jesuítas e colonos, ambos buscando obter o

poder temporal da administração dos indígenas, principalmente os aldeados53

.

Considero nessa temática Administração de aldeias/ religiosos documentos que falem

sobre a organização ou administração de algum aldeamento de índios, sejam eles gerenciados

por colonos ou religiosos. Nessa parte, encontro questões relativas à nomeação ou pedidos de

53 Rafael Chambouleyrom fala sobre dois conflitos ocorridos na capitania do Maranhão nos anos de 1661 e 1684,

entre colonos e religiosos. A primeira delas iniciou-se na cidade de São Luís e, pouco depois, espalhou-se para a

capitania do Pará. A segunda, mais conhecida como “revolta de Beckman”, ocorreu somente em São Luís. Os

rebeldes de 1661 e 1684 queixavam-se dos padres jesuítas e das leis de 1655 e de 1680 pelas restrições impostas

ao uso de escravos indígenas e trabalhadores índios livres. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicados

Clamores”: queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII). Projeto História, São Paulo, n.33, p. 159-

178, dez. 2006, p. 160.

36%

23%

22%

10%

9%

Tipologia dos assuntos indígenas do AHU 1614-1699

Administração de aldeias /

Religiosos

Escravidão

Alianças

Diversos

Conflitos / Resistência

28

administração das aldeias indígenas, bem como problemas na administração, casos de colonos

ou religiosos pedindo para formar aldeamentos.

Há também manuscritos onde se trata sobre catequização, doutrinação dos índios,

dificuldade dos religiosos em catequizá-los, queixa do governador em relação aos párocos e

religiosos que se encontravam no Estado. Podemos perceber nessa parte o quanto os jesuítas

desejavam administrar os nativos, livres ou aldeados, tanto para disporem de seus serviços,

como para expansão da fé católica na região.

Formado por 23%, o tema da Escravidão reúne uma vasta documentação relacionada à

escravidão indígena e outros assuntos que estavam diretamente ligados a essa prática, como o

estabelecimento de liberdade a indígenas, resgates, solicitações de serviços, entre outros.

Então encontramos solicitações para utilização dos serviços indígenas, pagamentos aos índios

forros54

por trabalho realizado, casos de cativeiros indígenas no Pará e Maranhão, a prática de

resgates na região, este tema não será aprofundado agora, pois é objeto de análise do terceiro

capítulo.

Em seguida, encontrei 22% de assuntos relacionados a Alianças. Esse tema está

intimamente ligado a três assuntos: lideranças indígenas, solicitação e concessão de mercês;

pois nos casos de alianças entre índios e colonos, bem como de nativos que requerem

benefícios das autoridades, como mercês,55

são justamente os índios principais (líderes

indígenas) das aldeias os envolvidos na negociação do processo de conquista e ocupação, em

que solicitam benesses devido a serviços prestados.

As alianças entre indígenas e colonizadores ocorreram, na maioria dos casos,

motivadas pelos portugueses para a facilitação ao acesso à mão de obra indígena. Porém, com

o avanço da colonização, o nativo foi visto também como um aliado que poderia servir de

ajuda na defesa do território, nos casos de guerra contra invasores, tendo em vista que durante

o século XVII o território foi alvo de invasões francesas e holandesas.

Em um dos manuscritos consultados, há um requerimento de oficiais da câmara e

procuradores do povo da cidade de São Luís do Maranhão ao rei, em que solicitam que se lhe

54 É preciso esclarecer que quando se fala de índios “forros”, pelo menos para o caso do Estado do Maranhão e

Grão-Pará, refere-se a índios livres e não libertos. A diferenciação dessas categorias, no Maranhão e Pará ainda merece ser mais aprofundada. CHAMBOULEYRON, Rafael; BOMBARDI, Fernanda Aires. Descimentos

privados de índios na Amazônia colonial (séculos XVII e XVIII). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p.

601-623, 2011, p. 601. 55 A economia de mercês era caracterizada por uma cadeia de obrigações recíprocas e assimétricas entre o rei e o

súdito, produzindo um verdadeiro círculo vicioso: serviço (feito pelo vassalo), pedido, concessão (papel do rei),

recebimento e manifestação de agrado. Tratava-se de uma prática baseada na ideia de justiça distributiva –

prêmio e castigo –, na qual devia existir certa equidade entre o serviço prestado e remuneração recebida.

OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-

1789). Lisboa: Estar, 2001, p. 22.

29

passem as ordens necessárias ao governador do Estado para que este desloque uma das aldeias

de índios do Pará para o rio Munim, no Maranhão, devido à necessidade de defender as terras,

e das grandes vantagens no plantio da cana-de-açúcar56

. A necessidade de aliança com os

índios decorria da defesa do território e, ao mesmo tempo, da preocupação com o

aproveitamento da terra, que poderia favorecer a economia da região. De fato, as diversas

atividades executadas pelos índios dependeram, sobretudo, da capacidade dos povoadores de

estabelecer e fortalecer alianças com os nativos57

.

Ainda nessa temática, há cartas régias sobre pedidos de mercês para índios, consultas

ao Conselho Ultramarino com pedidos de Hábitos da Ordem de Cristo e de vestuários, bem

como solicitação de ajuda de custo para viagens de índios principais ao reino. Além desses,

existem documentos que mencionam índios principais de aldeias, e também alianças entre

europeus e índios. Nesse caso, estão enquadradas as cartas com pedidos de reconhecimento de

índio principal; requerimento de ofertas a índios principais com intenção de firmarem

alianças; carta da câmara sobre a expulsão dos holandeses com a ajuda dos índios da região,

assim como ajuda de nativos na descoberta de algumas riquezas; além de alvarás sobre

permissão de casamentos dos aborígenes com portugueses.

Esse tema demonstra o quanto o processo colonizador do Maranhão e Grão-Pará

dependeu dos acordos feitos com os nativos e de uma boa relação com os indígenas. A partir

desse pressuposto se estabeleceram alianças, nas quais os índios serviriam tanto para o

fornecimento de mão de obra, quanto para defesa do território.

Era imprescindível ao colonizador montar uma rede de alianças caso quisesse

estabelecer um controle eficaz sobre o território. Desde cedo, ficou claro aos

portugueses que as “nações de índios” com as quais estabeleceram contato eram

muito diferentes uma das outras e nutriam entre si, muitas vezes, rivalidades

históricas que alimentavam guerras intermináveis. Os portugueses usaram muitas

vezes esses conflitos em seu benefício, procurando fazer aliados e proteger-se dos

inimigos58.

No entanto, é importante considerar que, nessa relação entre portugueses e nativos, os

índios também souberam atender seus próprios interesses, obtendo em alguns casos,

benefícios, pessoais ou para o grupo. Contudo, apesar dessas alianças, não se excluem os

56 AHU_ACL_CU_009, Cx. 4, D. 463. 57 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz Corrêa. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: o

papel da Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do território do Maranhão (1615-1668). Tese

(Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 231. 58 CARVALHO Jr, Almir Diniz. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653-1769).

Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005, p. 40.

30

mecanismos de resistência dos índios, que em alguns momentos moveram muitos conflitos

aos colonizadores.

A política administrativa do Império Ultramarino é marcada pela combinação de uma

política de distribuição de cargos e, portanto, de mercês e privilégios a uma hierarquização de

serviços identificada numa economia política de privilégios, dinâmica que pode reforçar os

laços de sujeição e o sentimento de pertença dos vassalos – sejam eles reinóis ou ultramarinos

– à estrutura política mais ampla do Império, viabilizando melhor o seu governo59

.

Dentro dessas características da política do governo português, destaco dois temas

encontrados nos documentos AHU voltados para os índios. O primeiro relaciona-se à

concessão ou pedido de mercês e benefícios para índios. Este assunto está fortemente ligado a

outro tema: “Lideranças indígenas”, pois geralmente esses pedidos eram feitos pelos índios

principais das aldeias.

A formação de lideranças indígenas já era consolidada no interior dos aldeamentos e,

na maioria das vezes, serviam como intermediários com europeus para facilitação do acesso à

mão de obra indígena livre e também para auxiliar o próprio gerenciamento dos povoados. É

interessante perceber que nesses aldeamentos houve grande influência das sociedades e

instituições: modificaram-se alguns aspectos da hierarquia local e, principalmente, no que se

refere às formas de ascensão social60

.

O processo de oferecimento de mercês aos índios principais começa, efetivamente, no

reinado de Filipe IV. Nesse período, já existe a possibilidade de obtenção de hábitos das

Ordens Militares por índios vassalos. Porém, no reinado de D. João IV, esse tipo de pedido

ganhou dimensões maiores. Assim, alguns dos mais significativos exemplos de agraciamento

de índios aliados datam entre as décadas de 1640 e 165061

.

No mapeamento das tipologias encontradas nos documentos do AHU, pude observar

algumas dessas situações de índios aliados que foram agraciados devido a serviços prestados e

obediência, geralmente estes pedidos eram feitos pelas lideranças indígenas. Este é caso da

Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV, do dia 22 de março de 1646 em que:

Os principais índios das aldeias do Maranhão fizeram petição, pelo procurador, o

Padre Francisco da Costa de Araujo, em que dizem, que eles tem servido Vossa

Mg.de com a fidelidade de leais vassalos [...] do Maranhão, donde mostraram grande

59 GOUVÊA, M. de Fátima Silva. Poder Político e administração na formação do complexo atlântico português

(1645-1808). In: FRAGOSO ET all. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos

XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 289. 60 ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-

1798). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 16. 61 CARDOSO, Alírio Carvalho. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas

fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca,

Salamanca, 2012, p. 290.

31

lealdade e fidelidade, não havendo entre eles rebelião nenhuma, nem traição, sendo

gente tão racional, anos antes arriscando feitos [ilegível] por mgde e [ilegível] aos

maiores perigos, assim animando os o nome português da Mgde cuja nação acima

mais que as outras, achando-se os índios em todas ocasiões de guerra [ilegível] na

campanha, como fora dela, sendo muito vigilantes; e em todas as batalhas, assaltos,

emboscadas, sendo sempre os dianteiros, pelejando em todas elas a peito descoberto,

não temendo suas balas, do que morreram, muitos deles, e quanto mais a guerra

crescia, tanto mais se lhe incendia os ânimos contra inimigos que mal pudera

conseguir a expulsão dos inimigos se eles não foram e a maior parte da vitória que

Deus nos deu, se lhes deve seu esforço e valor. Convém que mgde para conservação

daquele Estado lhes gratifique com algumas mercês o serviço que fizeram para que a

custa delas se animem cada vez mais, e sejam mais leais, verdadeiros62

.

Essas alianças entre brancos e índios, como se observa no manuscrito, são marcadas

pela boa relação, lealdade e fidelidade que mostravam aos portugueses, não levantando

nenhum tipo de rebelião; os índios seriam fortes aliados em caso de guerra contra inimigos,

sempre vigilantes, corajosos e a ajuda dos nativos seria decisiva para os portugueses sairem

vitoriosos.

Ainda nessa consulta, podemos observar que essas alianças poderiam ser

acompanhadas pelo recebimento de benefícios da Coroa Portuguesa pelos índios. É citado um

pedido de mercê do Hábito de Cristo63

e de roupas para se vestirem, juntamente com suas

mulheres, com a justificativa de que eram vassalos obedientes e terem servido às autoridades

reais em todas as necessidades, até em momentos de guerras, como exposto no documento.

O parecer do Conselho Ultramarino, até certo ponto, mostra-se sensível ao pedido dos

índios principais, indicando ao rei que dê ordem para que se leve os hábitos das três ordens

militares aos índios mais beneméritos. Porém, não encontrei nenhuma confirmação de

recebimento destes hábitos nos documentos consultados.

A prática de conceder ajuda a índios em decorrência de serviços prestados, no

Maranhão e Grão-Pará durante o século XVII, irmana-se com a lógica de dominação

instituída pelo governo português desde o século XVI, face à necessidade de construir

relações de amizade e aliança com lideranças indígenas. O objetivo dessas alianças era

sustentar e sedimentar a hegemonia política e militar lusitana nas possessões americanas. A

luta contra outras nações europeias pelo controle do território ainda persistia naquele século.

Sucedendo os franceses, os holandeses ainda davam trabalho aos estrategistas lusos no

62 AHU. Cx. 02. Doc. 191. 63 Os hábitos de Cristo vêm da Ordem de Cristo que era uma ordem religioso-militar portuguesa sob o controle

da Coroa desde finais do século XV, domínio este consolidado em meados do XVI. A partir deste período, o

hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo – honraria nobilitante acompanhada de um pequeno rendimento

monetário (tença) e importantes privilégios jurídicos e fiscais – passou a carregar o significado de leal e honrado

servidor da monarquia. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, mercê e

venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar/FCT, 2001, p. 151.

32

propósito do domínio definitivo de seu território no além-mar. Portanto, no Maranhão e Grão

Pará, a política de enobrecimento das lideranças indígenas ligava-se ao firme propósito de

conseguir aliados na guerra contra seus inimigos europeus64

.

No Maranhão, precisamente na década de 1640, a estratégia de agraciamento das

lideranças indígenas foi vista, na perspectiva de certas autoridades portuguesas, como parte

essencial da guerra, pois os índios eram essenciais nesses embates contra invasores65

. Assim,

foram inseridos nesse processo dominador, tendo que intermediar e negociar alguns

benefícios para si mesmos, haja vista a importância dos serviços prestados.

Por parte dos portugueses, a política de transformar parcelas significativas dessas

populações em aliados e súditos era, por outro lado, essencial para a consolidação de seu

poder na região. Nesta primeira etapa da implantação do controle político, era necessário um

número importante de guerreiros, aliados militares. A forma que isso se deu foi através de

alianças e cooptação de seus líderes. Os principais passaram a ter uma importância estratégica

fundamental na consolidação dessa política de controle66

.

À atração dos líderes já existentes somava-se, aos poucos, a criação de novas

lideranças indígenas. Estes últimos formados, na grande maioria, no interior das aldeias

missionárias. Por outro lado, os chefes das comunidades, ao adquirirem maior prestígio

político e social e ao serem favorecidos com privilégios concedidos pelas autoridades

administrativas, adquiriam projeção para além do coletivo constituído pelos seus

subordinados. De igual forma, também outros índios, ao tirarem partido da especialização

profissional, tiveram suas possibilidades de ascensão permitidas e favorecidas pela sociedade

luso-brasileira67

, por conta de serviços prestados e fidelidade aos portugueses. Assim, a partir

do contato com os portugueses a própria dinâmica dentro dos aldeamentos gradativamente se

alterou.

A existência de alianças entre índios e colonos não elimina tensões e mecanismos de

resistências indígenas. Por isso, o tema Conflitos/ Resistência, composto de 9% dos

manuscritos, revelam as guerras deflagradas pelos nativos; corsários mortos por índios; e

guerras contra os aborígenes. Contudo, embora existam casos de conflitos movidos pelos

64 CARVALHO Jr, Almir Diniz. Principais indígenas na América Portuguesa. Comunicação corresponde a uma

parte de um item do capítulo “Índios Cristãos” da tese de doutorado intitulada: Índios Cristãos: a conversão dos

gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769), Campinas: Tese de Doutorado, 2005, p. 2 - 3. 65 Idem. 66 CARVALHO Jr, Almir Diniz. Índios cristãos: a conversão dos gentios na Amazônia portuguesa (1653-1769).

Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005, p. 55. 67 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil

na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses, 2000, p. 16.

33

colonos contra os indígenas, em maior número encontram-se os casos de indígenas que

promoveram algum ataque não só aos colonos como também contra os próprios religiosos

devido a maus tratos aos nativos. Neste estudo, esse assunto também está ligado à temática da

escravidão, pois boa parte dos conflitos se dá em razão da manutenção desses índios em

cativeiros.

O processo dominador, as relações entre índios, colonos e religiosos foram marcadas

por muitos conflitos, de ambas as partes, seja pela diferença de interesses quanto pela não

aceitação dos índios ao estabelecimento dos colonos e jesuítas. O que reforça a ideia de que os

indígenas não foram passivos nem tampouco, simplesmente, vítimas da colonização. Estes, de

fato, estiveram integrados ao processo, seja sob forma de resistência, de negociação com

autoridades locais ou de conversão.

Por fim, com 10%, selecionei os assuntos Diversos, documentos que não se encaixam

nos temas acima mencionados, mas que apresentam alguma relação com a presença indígena

na dominação colonial. Dentre eles, manuscritos que tratam da situação geral dos índios da

região, o tratamento que lhes era dispensado e cobrança de tributos aos cativos. Encontrei

também um caso de solicitação de serviços médicos para tratar dos índios e soldados da

Infantaria da Praça do Pará.

Esse caso, em especial, chama atenção para a participação e necessidade de médicos

para dar assistência aos soldados e índios no processo de conquista e ocupação do espaço. Na

carta ao rei, o governador António Albuquerque Coelho de Carvalho alegava que, por falta de

um cirurgião na Infantaria da Praça do Pará, muitos soldados perecem por serem pobres e não

terem quem os acudissem. Para amenizar a situação, o governador pedia a nomeação de

cirurgiões mais capazes para curarem a Infantaria dos índios que se encontravam doentes e

ocupados com serviço para o governador do Estado. O rei pareceu favorável ao pedido e

ordenou que se elegesse um dos cirurgiões que se mostrasse mais capaz a fim de dar

assistência em uma praça de soldados68

.

A seleção quantitativa e qualitativa dos documentos mostra que o papel do índio na

conquista e dominação colonial não se restringiu à escravidão. De fato eles tiveram poder de

negociação, para encontrar meios de atender seus próprios interesses. Os conflitos deflagrados

por eles evidenciam modos de resistência tanto à ação de colonos como dos missionários. E

como eram assuntos relevantes tanto para as autoridades locais e régias, essas questões e seus

desdobramentos chegavam sempre ao reino. Ainda é necessária uma investigação maior para

68 AHU. Cx. 08. Doc. 829.

34

apontar o parecer do reino nessas várias situações, mas é possível avaliar o quanto o indígena

se tornou um tema relevante para a política conquistadora metropolitana, resultando na

completa integração do nativo ao processo colonizador.

2.2 Os índios na Câmara de São Luís

Realizei o mesmo trabalho de levantamento documental com os manuscritos da

Câmara de São Luís relativos aos anos de 1646 a 1657 para, finalmente, identificar as

tipologias das atividades indígenas no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Os Livros de

Acórdãos da Câmara de São Luís69

são documentos muito relevantes para estudo da dinâmica

conquistadora do Maranhão e Grão-Pará.

Compostos de atas municipais e cartas feitas em reuniões dos oficias na Câmara, esses

manuscritos mostram os trâmites burocráticos da instituição, como eleições, posses em

cargos, fiscalizações das atividades mercantis, abastecimento da cidade, mas também revela a

variedade das atividades políticas na vida colonial, nos tratamento de assuntos econômicos,

religiosos e simbólicos, conflitos entre autoridades locais, com moradores da terra e

autoridades reinóis. Em diversas circunstâncias, muitos desses assuntos também se

relacionam à questão dos índios.

As Câmaras municipais eram das mais importantes bases institucionais da política de

dominação do império ultramarino. Por meio delas, firmaram-se vínculos e negociações

indispensáveis à manutenção do vasto império português. Na capitania do Maranhão, a

instituição estava ligada às atividades de conquista, defesa e organização do território, com o

objetivo de consolidar o domínio luso-imperial. Em São Luís, passou a funcionar a partir de

1619. Desse período em diante, a relação entre a municipalidade local e a monarquia

pluricontinental passou a ser mais clara e intensa70

.

No que diz respeito à composição administrativa, as câmaras municipais ultramarinas

apresentavam semelhanças com as da metrópole, porém, as realidades locais de cada região,

69 Esses livros foram encontrados em péssimas condições, em 1682, num velho casarão da Rua da Paz, o acervo

esteve sob a custódia do setor de Pesquisa e Documentação do Projeto Praia Grande, até o ano de 1990, quando uma parte dos livros foi transferida para o Arquivo Público a fim de serem restaurados. Atualmente a coleção de

livros constitui-se de duzentos e seis volumes, compreendendo os séculos XVII, XVIII, XIX e XX, no período

de 1645 a 1973. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. O lugar da memória histórica no Maranhão. In:

MARANHÃO, Secretaria de Estado do; MARANHÃO, Arquivo Público do Estado do. Livros de Acórdãos da

Câmara de São Luís 1645 – 1649. São Luís: Edições SECMA, 2015, p. 19. 70

CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara de

São Luís e a política da monarquia pluricontinental no Maranhão. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio

Carlos Jucá de. Monarquia Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI –

XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, p. 23.

35

conferiam aspectos diversificados quanto às práticas de suas funcionalidades. Desse modo, a

complexidade do aparato institucional do império português “criou matizes e adaptações no

aparato institucional e legal trasladados do reino, colorindo de tons específicos as mesmas

instituições quando adaptadas à realidade das diferentes colônias, quer a ocidente, quer a

oriente” 71

. Em suma, as câmaras, apesar de terem uma estrutura administrativa similar à do

reino, na prática, sua funcionalidade condicionava-se, sobretudo, pelas dinâmicas das

realidades locais.

Assim, os Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís trazem temas que tratam desde

a regulamentação das atividades cotidianas da cidade, tais como: controle de mercancias,

eleições, ofícios mecânicos, festividades, manutenções de prédios públicos, limpezas de ruas,

tributações, cultivos e vendas de terras, escravidão indígena, dentre outros72

. Com o estudo

dessa vasta documentação podemos entender como eram tratados pelas autoridades locais

assuntos cotidianos e conflitos na região.

A fim de observar de que forma a temática do indígena era tratada pelos oficiais de

São Luís, realizei a catalogação de três Livros dos Acórdãos da Câmara de São Luís: 1646-

1649; 1649-1654 e 1654-1657. Após essa catalogação selecionei somente os manuscritos que

tratavam dos indígenas, seguindo a mesma metodologia utilizada nos documentos do AHU.

Em relação à catalogação, pretendo refletir sobre a dinâmica interna da Câmara no tratamento

específico da questão indígena.

A tipologia seguinte refere-se somente aos índios entre os anos de 1646 a 1657 e

correspondem a três livros da Câmara de São Luís, classificadas da maneira seguinte:

71 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João;

BICALHO, M. Fernanda B; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial

portuguesa (séculos XVI-XVII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 193-194. 72 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. O lugar da memória histórica no Maranhão. In: MARANHÃO, Secretaria

de Estado do; MARANHÃO, Arquivo Público do Estado do. Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís 1645 –

1649. São Luís: Edições SECMA, 2015, p. 25.

36

Entre os anos de 1646 a 1657 foram coligidos 364 atas de vereação, cujos assuntos

referem-se exclusivamente aos índios, formando 100%. Desse total, 91% dos documentos

tratavam da Escravidão e os demais assuntos relacionados a essa prática, como os serviços

que fazer às autoridades locais, a liberdade, resgates, entre outros. Há ainda manuscritos que

tratam de temas Diversos, aqui classificados dessa maneira por não estarem diretamente

ligados à escravidão, formando 9%.

A tipologia Escravidão, tal como nos documentos do AHU, refere-se à demanda da

câmara por essa mão de obra para realização de algum tipo de serviço público, seja nas

construções de obras, pesca, como mensageiros, serviços de limpeza ou algum outro trabalho

não especificado. Nos três Livros dos Acórdãos da Câmara de São Luís catalogados é

recorrente a necessidade de indígenas para diversos serviços, revelando a dependência dessa

mão de obra pelos moradores não índios. No Maranhão, o uso dessa mão de obra nativa

predominou por todo século XVII, XVIII, mesmo que em alguns momentos fossem proibidos

por determinadas leis.

Ainda sobre o mesmo tema Escravidão existem atas de vereação que tratam de cartas

régias aos camaristas a respeito do cumprimento da lei do cativeiro dos índios e sobre a

liberdade dos nativos. Vale ressaltar que durante o período de 1646 a 1657 são decretadas

algumas leis, provisões ou alvarás concedendo liberdade aos indígenas ou declarando os casos

que seriam permitidos o cativeiro dos índios. Refiro-me aos alvarás de 10 e 12 de novembro

de 1647 e de 5 e 29 de setembro de 1649, regimento de 12 de setembro de 1652, carta régia de

91%

9%

Escravidão Diversos

0

5

10

15

20

25

Tipologia dos assuntos sobre índios tratados na Câmara de São

Luís: 1646-1657

37

21 de outubro de 1652, provisões de 17 de outubro de 1653 e de 9 de abril 1655, regimento de

14 de abril de 1655 e alvará de 12 de julho de 1656.

Essas leis refletem o quanto a temática da escravidão no Maranhão e Grão-Pará esteve

no centro das discussões metropolitanas, pois a crescente demanda por força de trabalho

nativa, no decorrer da colonização, configurou uma barreira para a Coroa Portuguesa. Esta,

pressionada por colonos, missionários e pela própria ação indígena, se viu obrigada a elaborar

uma vasta legislação no intuito de resolver os problemas explicitados pelos diversos grupos

que constituíam a sociedade colonial por meio de cartas, litígios e ações cotidianas73

.

Além do assunto da liberdade indígena, encontrei manuscritos que mencionam o cargo

de procurador dos índios. Estes serviam de intermédio entre colonizadores e nativos, bem

como porta-voz das necessidades dos últimos. O cargo foi introduzido no Estado do Brasil

desde o século XVI, através do Alvará de 26 de julho de 1596 que determinava:

O governador elegerá com o parecer dos Religiosos o procurador do gentio de cada

povoação que servirá até três anos, e tendo dado satisfação de seu serviço, o poderá

prover por mais tempo (...) e o governador e mais justiças favorecerão as cousas, que

o procurador do gentio requerer, no que com razão, e justiça pode ser 74.

No que diz respeito especificamente ao Estado do Maranhão, o cargo é mencionado na

lei de 09 de abril de 1655, que dispunha sobre os casos válidos de cativeiro indígena.

Recomendava a lei que, ocorrendo dúvidas sobre a legitimidade da escravidão dos índios,

estes fossem assistidos por um procurador nomeado pelas autoridades encarregadas de julgar

as suas demandas, evitando-se, assim as intenções particulares nos julgamentos75

.

Mais tarde, com a lei de 21 de dezembro de 1686, que trata das missões do Maranhão

e Grão-Pará, lei conhecida como Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-

Pará, normatiza-se a forma como se deveria escolher o procurador e o seu pagamento. O

segundo parágrafo afirma que os índios teriam dois procuradores, um na cidade de São Luís e

outro em Belém do Pará. O terceiro parágrafo apresenta que a escolha desses dois

procuradores seria através da recomendação de dois sujeitos para cada um dos ofícios do

Superior das Missões da Companhia de Jesus ao Governo do Estado, que então nomearia um

deles para exercer a função76

.

73 NEVES. Tamyris Monteiro. Entre salvar almas para Deus e gerar lucro para a Fazenda Real: a empresa dos

resgates. Monografia (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2011, p. 21. 74 THOMAS, Georg apud MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza. O Regimento do procurador dos índios no

Maranhão. Revista Outros Tempos, vol. 09, n.14, 2012, p. 222- 231, p. 223. 75

MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza. O Regimento do procurador dos índios no Maranhão. Revista Outros

Tempos, vol. 09, n.14, 2012, p. 222- 231, p. 223. 76 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 131.

38

Para ocupar este oficio de procurador dos índios, era incumbido um morador da região

não índio, eleito pelo governador, depois da indicação de dois nomes pelo Superior das

missões da Companhia. Este atuava como defensor e auxiliar dos índios, assumindo os

interesses indígenas perante as autoridades coloniais. Não exercia nenhuma função

jurisdicional. Limitava-se a recomendar e a encaminhar declarações em nome dos índios à

instância competente, ou seja, ao Governador, ao Ouvidor Geral ou à Junta das Missões77

.

E, como pagamento de sua ocupação, receberiam alguns índios para lhes servir, sendo

até quatro índios no Maranhão e seis no Pará. Tais índios não deveriam ser os mesmos

indefinidamente, mudando-os de acordo com o juízo dos Padres, que o fariam quando lhes

parecesse apropriado. Indicava, ainda, a lei que fosse elaborado um regimento específico para

os Procuradores, que seria feito pelo Superior das Missões com o conselho dos padres

missionários das aldeias e que, depois de passar pelo parecer do governador, deveria ser

confirmado pelo Rei78

.

Porém, nos manuscritos da municipalidade de São Luís, encontrei documentos cujo

teor revela que, um pouco antes da lei para eleição e pagamento do procurador dos índios ser

regularizada pela coroa, na Câmara, já estava sendo eleito um procurador. Todos oficiais se

reuniram na Casa e Belchior de Sá foi chamado para tomar posse do cargo de procurador dos

índios, prometendo “procurar aquilo que fosse bem para serviço de Deus e de sua Majestade e

dos ditos índios e do bem comum” 79

. Essa flexibilidade mostra que algumas medidas eram

tomadas de acordo com a realidade local.

Também existem termos de vereação sobre pedido dos índios principais para que lhe

dessem um procurador, a fim de representá-los, como também a eleição e posse do procurador

dos índios. Há ainda atas em que o procurador dos índios solicita aos nativos que capinem a

praça da cidade, o que evidencia que esse procurador servia de intermédio entre colonos e

nativos, principalmente para solicitar serviços aos índios em nome das autoridades camarárias

caso houvesse o pedido, ou seja, para atender às necessidades dos conquistadores. Nos

documentos da Câmara percebo que a maior parte dos documentos trata desses pedidos para

que o procurador solicite serviços dos índios, o que nos permite destacar que o procurador era

mais um representante da coroa, da conquista e do projeto dominador do que um defensor do

nativo.

77

MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza. O Regimento do procurador dos índios no Maranhão. Revista Outros

Tempos, vol. 09, n.14, 2012, p. 222- 231, p. 223. 78 Ibidem, p. 224. 79 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 27 de setembro de 1653. Fl. 67, APEM.

39

Assim como no acervo do AHU, é recorrente nas atas de vereação da Câmara

documentos sobre os resgates. Os resgates consistiam em expedições feitas ao sertão a fim de

capturar índios prisioneiros de guerras intertribais ou que estavam para serem vítimas de

rituais antropofágicos ou trocados por mercadorias. Seus compradores se encarregavam de

catequizá-los e civilizá-los e poderiam fazer uso dos seus serviços por um determinado

tempo80

.

Na Câmara, esses manuscritos tratam de notícias sobre os índios ou de propostas de

alguma autoridade local para que houvesse essas expedições ou nomeação de pessoas para

participarem dos resgates, bem como de um tesoureiro para o empreendimento. Esta temática

Escravidão, não será aprofundada aqui, pois como esclareço anteriormente, será objeto de

análise do terceiro capítulo.

Por fim, com 9% dos documentos, selecionei os assuntos Diversos que não se

enquadram nos temas anteriores, seja pelo péssimo estado de conservação do documento,

impossibilitando a identificação temática, ou pela natureza irregular dos assuntos, como é o

caso da passagem de índios guajajaras para o Itaqui. Este último se refere à notícia de que

havia chegado à câmara índios guajajaras que teriam deixado sua aldeia para irem ao Itaqui.

Então foi chamado o índio Gonçalo Mendes para confirmar se a notícia era legítima. Cinco

dias depois o nativo apareceu e afirmou que de fato todos tinham passado para o Itaqui, até

mesmo o índio principal com sua família, ficando na aldeia somente alguns velhos. Então o

procurador do conselho, Agostinho Mozinho, solicitou que os índios retornassem a sua aldeia

e que se escrevesse ao padre Manuel Nunes, superior da Companhia de Jesus, sobre o

ocorrido e conforme a sua resposta determinaria o que mais conviesse aos índios81

.

Apesar de não expressar o motivo da saída dos nativos da sua aldeia para outro lugar,

este termo de vereação chama atenção para alguns pontos. Primeiro, o fato de um índio ser

convocado à câmara para relatar o que havia acontecido de fato, ou seja, a palavra deste índio

tinha validade e seria um importante testemunho para relatar a fuga aos camaristas. O segundo

ponto é o que teria os motivado a fugirem de sua aldeia para o Itaqui. Podemos levantar

algumas hipóteses, como a falta de alimentos ou maus tratos que poderiam ter sofrido,

provocando a fuga.

Este documento chama atenção devido à prática recorrente, neste período, de fugas

tanto de indivíduos, como de grupos, uma estratégia de resistência entre os nativos. Também

80 NEVES. Tamyris Monteiro. O Lícito e o Ilícito: A prática dos resgates no Estado do Maranhão na primeira

metade do século XVIII. Revista Estudos Amazônicos, vol. VII, nº 1 (2012), p. 253-273, p. 256. 81 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 5 de novembro de 1654. Fl. 12 a 12 v, APEM.

40

as fugas parecem ter sido uma das causas para a escassez de trabalhadores indígenas ao longo

do século XVII, estando intimamente relacionadas à violência que sofriam82

.

Além disso, o não respeito aos acordos firmados ao se realizar os descimentos e os

abusos de exploração de mão de obra apresentavam-se como importantes fatores

influenciadores da opção dos indígenas pela fuga. Logo, as fugas, juntamente com as guerras

e as bexigas83

, no contexto da Amazônia, acabavam levando à falta de mão de obra indígena

na região84

. As fugas podem ser compreendidas como uma “estratégia coletiva” de defesa

contra a opressão e exploração exacerbada exercida pelos portugueses. De fato, “fuga e

violência estavam comumente associadas”. Isso é comprovado pelos escritos dos missionários

que, frequentemente, queixavam-se dos moradores serem os principais responsáveis pelas

“fugas em massa para os sertões” e de que os índios fugidos formavam aldeias no sertão,

denominadas de “mocambo indígena”85

.

Uma prática recorrente nessas fugas era que muitos grupos indígenas, na ocasião em

que abandonavam uma aldeia, tinham o cuidado de queimá-la antes para que não houvesse

proveito comercial por parte dos portugueses86

. Isso nos mostra que os índios buscavam de

certa forma prejudicá-los de duas maneiras: primeiro com a fuga, afetando o uso de mão de

obra nativa pelos portugueses, e pela prática de queimadas, comprometendo a produção

comercial por parte dos portugueses.

Nessa mesma temática, encontra-se um documento em que o procurador do conselho,

Jorge Sampaio de Carvalho, expõe a notícia de embarcações que partiriam a Portugal com

algumas pessoas acompanhadas de seus escravos gentios da terra. Os oficiais afirmavam que

isso não era bom por conta da grande falta de escravos, então eles notificariam os mestres das

embarcações para que não levassem nenhum índio para a viagem87

.

Esse documento denota que as embarcações estariam saindo do Maranhão para o reino

levando escravos indígenas, porém, essa mesma ação é proibida pelos oficiais da câmara, por

82 CHAMBOULEYRON, Rafael. Fugas, „corso‟ e bexigas. Escassez de mão de obra indígena na Amazônia

seiscentista. XXIX Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social. Porto, 2009 –

http://web.letras. up.pt/aphes29/data/4th/RafaelChambouleyron_Texto.pdf 83 A partir de meados da década de 1690, começam a se multiplicar queixas sobre a morte de trabalhadores, escravos e livres, decorrente da irrupção de uma terrível epidemia de “bexigas” por todo o Estado. BOMBARDI,

Fernanda Aires; CHAMBOULEYRON, Rafael. Descimentos privados de índios na Amazônia colonial (séculos

XVII e XVIII). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, 2011, p. 601-623, p. 608. 84 Ibidem, p. 620. 85 CHAMBOULEYRON, Rafael. Op. Cit. 86

CARDOSO, Alírio Carvalho. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no antigo

Estado do Maranhão (1607-1653). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas,

Campinas, 2002, p. 62. 87 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 26 de abril de 1653. Fl. 58 v a 60, APEM.

41

conta da falta de escravos. Ainda é necessária uma maior investigação sobre essa prática e os

motivos de se levar índios para Portugal, ao invés de deixá-los na própria capitania.

A partir das tipologias, a primeira coisa a observar é a grande presença de assuntos

referentes aos indígenas na documentação da Câmara de São Luís e do Arquivo Histórico. No

AHU, como foi elencado, há um número mais expressivo, até mesmo pelo maior espaço de

tempo, sendo os da Câmara somente vinte e dois documentos, mas apenas para onze anos. A

partir desse estudo, observei que a vivência do indígena na região do Maranhão e Grão-Pará

foi bem mais dinâmica do que a historiografia clássica apresenta. A documentação e a

historiografia revisionista nos mostram que houve uma variedade de atividades praticadas

pelos índios, como serviços em quase todos os ramos, e os índios foram capazes de solicitar

da Coroa benefícios para si, de promover reações de resistência contra colonos e religiosos,

mas, em alguns casos, de complementaridade com o processo dominador. Isso nos mostra que

os nativos foram de fato sujeitos históricos e sempre estiveram ativos no processo de

dominação.

42

3. “O OURO VERMELHO DA CAPITANIA DO MARANHÃO E OS ORDENAMENTOS

DA NOVA SOCIEDADE”: índios, trabalho, leis e regimentos

Através do levantamento documental e historiográfico sobre o indígena no Maranhão

e Grão–Pará, podemos, de antemão, fazer duas considerações. Em primeiro lugar, a

participação indígena na colonização se deu em vários sentidos, como observamos no capítulo

anterior. Em segundo, essa integração ocorreu, em grande parte, a partir da exploração da sua

força de trabalho. Os nativos, durante esses primeiros anos de conquista, desempenharam

diversos trabalhos, constituindo-se na base da colonização da região durante o século XVII.

Isso se evidencia, principalmente, pela quantidade de assuntos sobre as diferentes formas de

escravidão indígena encontradas nos registros dos livros da Câmara de São Luís do

Maranhão.

Este capítulo pretende fazer um mapeamento das tipologias dos serviços prestados

pelos índios escravos ou livres à Coroa, ou para as autoridades locais do então Estado do

Maranhão e Grão-Pará. Farei ainda uma relação entre esses serviços prestados e as leis

expedidas pela Coroa, na regulamentação do trabalho indígena, no período de 1646 a 1657,

principalmente, no que se refere à manutenção deles como escravos e também à disputa da

administração deles, entre colonos e jesuítas. A escolha desse período se deu em razão dos

manuscritos encontrados, nos Livros de Acórdãos da Câmara de São Luís, especificamente os

de 1646-1649, 1649-1654 e 1654-1657, tratados no capítulo anterior. Dessa forma,

demonstrarei a aplicação ou desdobramentos dessas leis na região e a relação das autoridades

locais com essas diretrizes e com os próprios índios.

3.1 Índios e trabalho no Maranhão

Na vereação de abril de 1653, na Casa da Câmara de São Luís do Maranhão, o

procurador do Conselho, Jorge Sampaio de Carvalho, afirmou aos demais oficiais que chegara

a notícia de que embarcações estariam prontas para partir ao reino e algumas pessoas levariam

seus “escravos gentis da terra” para Portugal. Porém, o procurador do Conselho discordou da

saída dos nativos devido à escassez de mão de obra na Capitania e propôs que a Casa

notificasse os mestres das embarcações para que não levassem nenhum escravo sem

autorização, sob pena a quem não cumprisse a determinação88

. Na referida vereação estavam

presentes o desembargador sindicante, João Cabral de Barros, o ouvidor e provedor da

88 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 26 de abril de 1653. Fl. 58 v a 60, APEM.

43

Fazenda Real, Martinho Moreira, e o “pai dos cristãos”, Agostinho Correa. Este último

declarou aos oficiais da Câmara e ao desembargador que havia encontrado alguns índios

tremembezes. Mencionou a maneira como os nativos eram vindos a essa praça89

e declarou

publicamente que os índios tremembezes foram mal cativos e vendidos, e que era notório que

não deveriam ser trazidos a esta praça dessa forma e vendidos. Então, o desembargador

considerou que os índios foram escravizados indevidamente e decidiu que fosse restituída ou

não a sua liberdade natural, de acordo com as leis régias. Diante da fala do desembargador, no

mesmo dia, o corpo político da câmara julgou os índios e índias livres e desobrigados de

cativeiro, determinando, enfim, pela liberdade natural dos nativos90

.

Apesar de algumas embarcações partirem da capitania com pessoas acompanhadas de

seus escravos indígenas, essas ações eram proibidas, e as embarcações somente poderiam sair

do porto com autorização da Câmara de São Luís. Tal restrição se justificava pela escassez de

mão de obra na terra.

A vereação mencionada trata de uma prática recorrente e fundamental para o

entendimento da sociedade colonial, no Estado do Maranhão e Grão-Pará, durante o século

XVII até meados do XVIII: a escravidão e liberdade dos índios. Nos relatos do padre jesuíta

Antônio Vieira, a coroa portuguesa informa que no Maranhão não havia nem ouro, nem prata

e que a única riqueza da região seriam o “sangue e suor” dos índios que produzem os bens

necessários para remediar a situação dos moradores do Estado do Maranhão91

.

Para entender a importância do trabalho indígena na região é necessário situar o

Maranhão e Grão-Pará a partir de sua lógica interna, em que as formas de produção

econômica e de arregimentação de mão de obra foram conformadas a partir de conjunturas

específicas.

Dessa forma, os indígenas, no século XVI, não só ajudaram na engrenagem do

processo colonizador como foram responsáveis por, praticamente, todas as tarefas mecânicas.

Coletavam drogas do sertão, foram remeiros em canoas que levavam correspondências,

transportavam pessoas e produtos nos rios da capitania e do Estado, foram intérpretes, amas

de leite, trabalharam nas plantações de açúcar, na construção de obras públicas como

pedreiros, oleiros e demais obras religiosas, foram pescadores, construtores de barcos e muitas

89 Em termos militares, praça é a palavra genérica que designava qualquer lugar fortificado com muros, reparos,

baluartes flanqueados, entre outros elementos, em que a população se defendia do inimigo. Assim, existiam as

praças fortes, que eram as cidades bem fortificadas. Porém, o termo praça pode se referir a ofício. Assim, falava-

se em “praça de soldados” ou “sentar praça de soldado” para se referir ao ofício de soldado. BLUTEAU, D.

Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Rio de Janeiro: UERJ, s. d., CD Rom. Tomo VI, p. 666. 90 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 26 de abril de 1653. Fl. 58 v a 60, APEM. 91 VIEIRA, Pe. Antônio apud XIMENDES, Carlos Alberto. Sob a mira da Câmara: viver e trabalhar na cidade

de São Luís (1644-1692). São Luís: Café e Lápis; Editora UEMA, 2013, p. 132.

44

outras atribuições. Serviram de guias, durante as entradas nos sertões, para fazer descimentos,

lutaram nas guerras justas contra tribos inimigas, acompanhavam as tropas de resgate para

buscar novas “peças” e foram peças chaves nas crescentes expedições de apresamentos de

outros índios pelo sertão para solucionar problemas de demandas de mão de obra, durante o

século XVII. Em suma, os índios se constituíam na base propulsora para todo o Estado do

Maranhão e Grão-Pará92

.

Os conquistadores portugueses, em pouco tempo, perceberam que manter o nativo em

“amizade” e “quietação” era uma questão de sobrevivência, uma vez que a maioria das

atividades da vida cotidiana dependia deles, incluindo-se aí desde a própria locomoção entre

as capitanias93

até os mencionados serviços para o “bem comum”, como cuidar da estrutura da

cidade, fazer construções, limpar determinados lugares, auxiliar na comunicação entre os

agentes locais, ou para favorecer no êxito da economia, atuando na pesca e na lavoura.

Por muito tempo na historiografia, o problema da mão de obra foi apontado como

uma das causas da pobreza no Estado do Maranhão. Porém, a mão de obra indígena foi a mais

representativa e mais numerosa àquela época, apesar do uso da mão de obra africana, da

legislação restritiva à escravização dos índios e da resistência que eles ofereciam à sua

sujeição. A predominância da escravidão indígena, por si só, não é argumento suficiente para

explicar a pobreza do Maranhão94

.

Sobre essa questão, há uma corrente historiográfica que busca relativizar essa ideia de

extrema pobreza no Maranhão nos primeiros anos de colonização até meados do século XVII.

Essa visão de “grande abandono” e de uma situação de desamparo no extremo-norte, muito

difundida na historiografia brasileira, está assentada num modelo explicativo no qual o açúcar

é a “chave” para a compreensão do mundo colonial. Com isso, as regiões que não se inseriram

na lógica da expansão do capitalismo comercial foram marginalizadas e tidas pela

historiografia como “periféricas”, sendo, portanto, amputadas de qualquer dinâmica

colonizadora. Ou seja, nessa tese enfatiza-se a inexistência de atividades comerciais no

92 NEVES. Tamyris Monteiro. O Lícito e o Ilícito: A prática dos resgates no Estado do Maranhão na primeira

metade do século XVIII. Revista Estudos Amazônicos, vol. VII, nº 1 (2012), p. 253-273, p. 255. 93 CARDOSO, Alírio Carvalho. Insubordinados, mas sempre devotos: poder local, acordos e conflitos no antigo

Estado do Maranhão (1607-1653). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002, p. 91. 94A pobreza do Maranhão geralmente é justificada, pelo problema da falta de mão de obra na região. A falta do

escravo negro não seria compensada pela escravização do índio que além de ter seu acesso dificultado pelos

jesuítas, seria menos produtivo que o africano. Entretanto Regina Faria contesta essa ideia de que esse trabalho

era improdutivo, a partir de Gorender (1978, p. 132), para quem “[...] os indígenas representavam a mão de obra

predominante nas plantagens até o final do século XVI aproximadamente [...]”. Se deu bons resultados no

Nordeste açucareiro, por que não poderia ter dado também no Maranhão? Por isso só o uso da mão-de-obra

indígena não explica a pobreza do Maranhão. FARIA, Regina H. Martins. Repensando a pobreza no Maranhão:

uma discussão preliminar. In: Ciências Humanas em revista. São Luís: EDUFMA, 2011, p. 17.

45

Maranhão durante o período pré-pombalino, enfatizando-se a predominância de uma

economia exclusivamente de subsistência e extrativismo95

.

Porém, tem-se dado uma maior visibilidade ao comércio interno do Maranhão durante

o século XVII, com a finalidade de relativizar essa noção de pobreza e miséria. Essa tese se

apoia na constatação de uma dinâmica de serviços existentes no Maranhão, antes de 175596

.

Contudo, mesmo tendo o mérito de dar a conhecer a dinâmica interna da economia do

Maranhão seiscentista, essa discussão ainda se prende aos matizes econômicos do Atlântico

Sul97

.

Com a inserção do nativo no processo colonizador do Brasil, foi possível a construção

de grande parte dos fortes, fortalezas, cidades e vilas, ao longo dos rios de todo o Estado do

Maranhão e Grão-Pará, permitiu a coleta do principal recurso econômico da Amazônia no

período, o extrativismo das chamadas “drogas do sertão”, promovendo a interiorização pela

floresta e usufruto do seu profundo conhecimento, favorecendo uma preferência pela mão de

obra em relação à utilização do escravo africano, já que só o índio poderia suprir tais

requisitos98

.

Por outro lado, a inserção do trabalho indígena na colonização influenciou

decisivamente na própria vivência dos nativos, uma vez que promoveu a desorganização

social e o declínio desses povos cada vez que os colonos recorriam ou intensificavam ainda

mais o trabalho forçado na tentativa de construir uma base para economia e sociedade

colonial99

.

Desde o início da colonização do Maranhão e Grão-Pará, o uso da mão de obra

indígena foi constante. A perseguição e escravização desenfreadas aos índios eram

justificadas pelos conquistadores devido à dificuldade financeira pela qual passava a região,

impedindo a elite local de comprar africanos escravizados, bem mais caros que os índios.

95 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz Corrêa. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: o

papel da Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do território do Maranhão (1615-1668). Tese

(Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011, p. 45. 96 XIMENDES, Carlos Alberto. Economia e sociedade maranhense (1612-1755): elementos para uma

reinterpretação. Assis, 1999. f. 141 Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação da

Universidade Estadual Paulista, 1999; FARIA, Regina Helena. Repensando a pobreza do Maranhão (1616-

1755): uma discussão preliminar. Ciências Humanas em Revista / Universidade Federal do Maranhão. Centro de

Ciências Humanas, São Luís, 2003, v. 1, n. 1, p. 7-20. 97 Apesar de o mercado interno de serviços refletir uma importante dinâmica na Conquista, não sugere

necessariamente riquezas nem insere o Maranhão nos patamares das prósperas e vizinhas capitanias de

Pernambuco e Bahia, integradas ao mercado do Atlântico Sul, por exemplo. Constata a existência de uma

dinâmica comercial interna durante o século XVII, sem, contudo, retirar o Maranhão dos quadros de pobreza que

permeavam as capitanias do norte. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz Corrêa. Op. Cit., p. 46. 98

BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 28. 99 MONTEIRO, John Manuel Monteiro. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São

Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 18.

46

Em algumas partes do Brasil, como Bahia e Pernambuco, o problema da mão de obra

havia sido quase completamente resolvido através da maciça importação de escravos, então o

uso da força de trabalho indígena deixa de ser tão recorrente, enquanto as áreas onde

predominava a lavoura de subsistência não permitia a importação do escravo africano, sendo

o nativo a mão de obra mais viável que os colonos podiam fazer uso, como no caso de São

Paulo, Rio, Espírito Santo e Maranhão e Grão-Pará100

. Como trabalhadores, os nativos foram

fundamentais no Estado do Maranhão e Grão-Pará, visto serem a única mão de obra mais

facilmente disponível aos moradores, usados também como guias nas expedições pelos

sertões, na apanha de tartarugas e edificação de fortificações101

.

A questão do acesso à mão de obra indígena foi uma das grandes discussões presentes

nos debates entre os diversos agentes lusos da Amazônia Colonial. Eram os índios que

erigiam os povoamentos que se espraiavam cada vez mais pela região. Por meio deles, se

construíam as moradias dos colonos, os conventos religiosos, a Casa dos oficiais da Câmara;

conformavam-se as expedições de recolhimento de drogas do sertão, de guerra justa, resgate e

descimento; garantia-se a defesa das áreas de fronteira, a partir do estabelecimento de

alianças; produzia-se sal, farinha e pescados, a base alimentar da região, entre outras diversas

atividades. Dessa forma, várias políticas engendradas pelos grupos lusos foram desenvolvidas

para garantir o acesso e controle sobre esses trabalhadores. Aliados a esses interesses,

percebe-se uma constante busca em converter as almas gentílicas à fé cristã e de constituir

esses indígenas em ocupantes e defensores do território a partir do estabelecimento de

aldeamentos e povoados dos portugueses que irão se beneficiar dos nativos por meio do

regime de repartição, no caso dos índios livres, ou por meio dos resgates e guerras justas, no

caso dos escravos102

.

Ao longo da colonização foi comum o rei outorgar cartas em que recomendava o

estabelecimento de alianças com os mais diversos grupos nativos, muitas vezes em detrimento

do uso da força. Essas alianças, na maioria, se estabeleciam por meio de uma recorrente

prática de arregimentação de mão de obra livre na sociedade colonial, os chamados

descimentos indígenas103

.

100 BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 20. 101 MELO, Vanice Siqueira. “Aleivosias, mortes e roubos”: Guerras entre índios e portugueses na Amazônia

colonial (1680-1706). Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2008, p. 17. 102

BOMBARDI, Fernanda Aires. Políticas indígenas e indigenistas: descimentos particulares de índios na

Amazônia colonial (1680-1740). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho

2011, p. 1. 103 Ibidem, p. 2.

47

A partir desse enquadramento situacional, identificam-se duas formas de obtenção dos

nativos para fins de trabalho: por meio da repartição, no caso dos índios livres mediante

descimentos, e, no caso dos índios escravizados, obtidos por meio de resgates e guerras justas.

É necessário entender cada uma dessas práticas. Os descimentos consistiam em expedições

realizadas pelos missionários, com o objetivo de convencer os índios a “descerem” de suas

aldeias de origem para viverem em novos aldeamentos criados pelos portugueses nas

proximidades dos núcleos coloniais, especialmente para esse fim104

. Esses aldeamentos eram

também chamados de “aldeias de repartição”, onde os índios descidos se concentravam,

depois de catequizados eram alugados, distribuídos, ou seja, repartidos, entre os colonos e

missionários para executarem serviços em troca de pagamento por um determinado tempo.

Após isso deveriam ser devolvidos à aldeia. Porém, a prática dos descimentos no Maranhão e

Grão-Pará se alterou havendo também vários descimentos privados105

.

Essa prática que, até finais do século XVII foi obtida mediante a negociação da “paz e

amizade”, cedeu lugar para a introdução paulatina do uso da força direcionada a determinados

grupos indígenas que eram obrigados a se aldear, tanto por missionários quanto por colonos.

Nesse sentido, os descimentos não se configuraram como um mecanismo de obtenção de mão

de obra exclusiva ou prioritária para missionários, como a historiografia defendeu106

. Muito

pelo contrário, estavam intimamente atrelados com os objetivos econômicos e sociais da

Coroa e de moradores.

Já as guerras justas aos indígenas eram permitidas nos casos de guerra defensiva,

quando índios inimigos invadissem as terras do Estado ou quando impedissem a propagação

da doutrina cristã, hostilizando os missionários que entrassem no sertão com o propósito de

pregar o evangelho; e guerra ofensiva, quando houvesse “temor certo e infalível” de que

104 FREIRE, José Ribamar Bessa; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Disponível em:

<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/0039_10.html>. Acesso em 20 de novembro de 2015. 105 Rafael Chambouleyrom defende que em vários momentos a Coroa vislumbrou alternativas para o usufruto da

força de trabalho livre – coetâneas aos poderes e à jurisdição dos clérigos regulares –, mas também como os

moradores souberam apropriar-se das determinações régias para, em determinadas conjunturas, aumentarem o seu acesso aos trabalhadores livres, cuja administração era, em princípio, de exclusividade dos missionários. Por

outro lado, essas alternativas foram também em boa parte construídas a partir das ações dos próprios grupos

indígenas e das articulações que construíram face à expansão dos portugueses pela região e incremento das

necessidades de mão de obra. BOMBARDI, Fernanda Aires; CHAMBOULEYRON, Rafael. Descimentos

privados de índios na Amazônia colonial (séculos XVII e XVIII). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p.

601-623, 2011, p. 602 a 603. 106 BOMBARDI, Fernanda Aires. Políticas indígenas e indigenistas: descimentos particulares de índios na

Amazônia colonial (1680-1740). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho

2011, p. 2.

48

índios inimigos invadiriam as terras portuguesas ou quando praticassem “hostilidades graves

e notórias” contra os colonizadores107

.

A partir desses casos (situações) que permitiam a guerra justa, a escravidão passou a

fundamentar-se na diferença entre indivíduos mansos e “civilizáveis” e indivíduos bravos e

aguerridos; era precisamente no rompimento dessa situação de amizade e paz que residia a

necessidade prática e a justificativa moral para a escravidão108

. Assim, a escravidão era

justificada aos índios que rejeitavam a catequização ou ofereciam qualquer outra forma de

resistência à colonização.

No que diz respeito aos resgates, estes estavam inteiramente relacionados ao uso e

escravização da mão de obra indígena, e consistiam em uma das principais formas de se

escravizar os indígenas, ao lado das guerras justas. Na prática dos resgates, os portugueses

iam aos sertões trocar por mercadorias os índios prisioneiros das guerras intertribais e

somente os nativos aprisionados utilizados em rituais antropofágicos poderiam ser

trocados109

.

Dessa forma, os resgates podem ser considerados uma negociação entre moradores e

outros índios, em troca de mercadorias, de mão de obra sob a alegação de que estava

destinada a ser devorada por seus inimigos que praticavam antropofagia ou vítimas de guerras

intertribais110

. Porém, a aquisição de índios só aconteceria se os compradores os salvassem

dos rituais, se encarregassem de convertê-los e civilizá-los. Assim, teriam o direito de

usufruírem de seu trabalho por um determinado período de tempo: uma vez pago o preço do

resgate, o indivíduo seria pelo menos de direito, livre.111

.

Como foi discutido no capítulo anterior, a temática Escravidão e todos os assuntos que

a norteiam, como os tipos de serviços, casos de liberdade, resgates, guerras justas, leis de

regulamentação dos cativeiros, entre outros, são bem recorrentes na documentação, o que

demonstra o grande uso e a importância da mão de obra para os moradores do Estado do

Maranhão e Grão Pará durante do século XVII.

107 NEVES. Tamyris Monteiro. O Lícito e o Ilícito: A prática dos resgates no Estado do Maranhão na primeira metade do século XVIII. Revista Estudos Amazônicos, vol. VII, nº 1 (2012), p. 253-273, p. 256. 108 MONTEIRO, John Manuel Monteiro. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São

Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 134-135. 109 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000, p. 119. 110

NEVES. Tamyris Monteiro. Op. Cit. 111DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil

na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses, 2000, p. 28.

49

No que diz respeito aos serviços de obras públicas, os documentos revelam que a

participação do indígena no Maranhão e Grão-Pará foi significativa e determinante para o

desenvolvimento da vida local. A vereação de setembro de 1646 mostra uma solicitação do

procurador do Conselho, Belchior Teixeira, ao governador para que lhe mandassem dois

negros forros para começar a consertar a Fonte das Pedras para o bem comum do povo112

. Os

nativos chamados a esse trabalho eram índios forros. Estes, geralmente, recebiam de

pagamentos duas varas de pano pelos serviços prestados.

Da mesma forma, na vereação de outubro de 1650, o então procurador, Pero de

Aguiar, requereu índios para o conserto da Fonte das Pedras, antes da chegada do inverno113

.

Porém, o documento não especifica se foram utilizados índios livres ou escravos. Durante

essa etapa da montagem da dominação colonial, no Maranhão e Grão-Pará, todas as vezes que

havia necessidade de construções de obras ou outros serviços na cidade de São Luís, recorria-

se à mão de obra indígena, principalmente, pela baixa presença de africanos escravizados no

início da colonização. Os indígenas também eram responsáveis pela manutenção da capitania,

como limpar a praça que estava cheia de mato. Nesse caso, a câmara de São Luís pedia aos

índios livres para fazê-lo114

. Não há nenhuma referência sobre a forma de pagamento, mas são

notáveis que boa parte dos indígenas utilizados, pelo menos nas obras públicas da capitania,

era os índios livres e deviam receber em varas de pano.

Pensar no trabalho compulsório indígena no Estado do Maranhão e Grão-Pará é

percebê-lo como instrumento que movia a conquista e dominação portuguesa. Para buscar

escravos, entrava-se cada vez mais longe no sertão; ao fazê-lo, mantinha-se contato com as

tribos aliadas e tinha-se oportunidade de alcançar novas alianças com nações indígenas

desconhecidas. Caso a tribo fosse hostil, encontrava-se um motivo para fazer guerra e

conseguir mais cativos115

.

Os ofícios prestados às autoridades locais também se estendiam à comunicação interna

entre as autoridades locais com o envio de cartas ou avisos, como é o caso no qual o

procurador da Câmara, João Gonçalves Trovisco, pediu ao capitão mor, Manoel Pita da

Veiga, que enviasse um aviso ao governador do Estado e Pita da Veiga responde que o

procurador da Câmara podia escrever que mandaria a carta através dos índios116

. Os índios

foram fundamentais no sistema de comunicação como mensageiros de notícias, recados,

112 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 22 de novembro de 1646. Fl. 27 a 27 v. 113 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 15 de outubro de 1650. Fl. 20. 114

Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 13 de maio de 1656. Fl. 43 v. 115 NEVES. Tamyris Monteiro. Entre salvar almas para Deus e gerar lucro para a Fazenda Real: a empresa dos

resgates. Monografia (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2011, p. 13. 116 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 2 de novembro de 1647. Fl. 61 v.

50

cartas e demais papéis, entre as autoridades do Estado do Maranhão e Grão-Pará ou mesmo

das capitanias. Quando se fala no uso da mão de obra indígena, limita-se à participação

indígena nos serviços das obras públicas, lavoura, pesca, e esquecemos que a comunicação

nessa sociedade era, em sua maioria, realizada por meio dos serviços prestados pelos índios.

Em relação à prática dos resgates, assim como a captura e escravização dos indígenas,

eram atividades que rendiam muitos benefícios para os moradores e para a própria Câmara.

Geralmente, sob o argumento de que os moradores passavam por grandes dificuldades

financeiras, na Câmara, o procurador requeria autorização da Casa, o que geralmente era

aceito pelos padres117

, mas também foram denunciados abusos. O procurador Lourenço da

Costa mandou chamar o capitão-mor, Manoel Pita da Veiga, e o ouvidor geral, Pedro de

Andrade Dalpoim, e o procurador e os demais oficiais afirmam que o governador, Francisco

Coelho de Carvalho, em sua vida, abriu os sertões e começou os resgates e que continuam

com eles na capitania do Pará “sem haver respeito à cabeça do Estado”. E, por isso, a câmara

reivindicava participação nos resgates, para utilidade e crescimento de todo o Estado118

.

Existiram vários conflitos entre a capitania do Pará e Maranhão sobre a questão dos

resgates, e a dependência da mão de obra local sempre era uma das justificativas para os

impasses. Na Câmara de São Luís, em maio de 1649, diante da notícia de que estavam para

realizar uns resgates “para o bem e aumento do povo”, o procurador Christovão de Brito

Malheiros solicitou a nomeação de dois vereadores para esse fim119

. No mês seguinte, o

governador geral do Estado, Luís de Magalhães, mandou a câmara nomear dois homens

“beneméritos e de sã consciência” para ir à jornada do Pará e sertão e serem tesoureiros dos

resgates. Então, os oficiais da câmara escolheram os dois tesoureiros120

.

Houve uma variedade de atividades praticadas pelos índios, em quase todos os ramos

(obras públicas, pesca, auxílio na comunicação, remeiros, intérpretes e também na coleta das

drogas do sertão), portanto a mão de obra indígena foi a base da dominação da terra e das

gentes, durante o século XVII. O que ainda está por aprofundar é a intensidade da

participação indígena no processo colonizador da capitania do Maranhão. Vale ressaltar que,

nesse primeiro contato com a documentação, observei que a procura pelos indígenas para se

constituir em força de trabalho foi muito mais diversa do que a literatura clássica tem

informado, compelindo o conquistador para várias expedições de apresamento nos sertões do

extremo norte do Brasil. Com isso, os índios foram inseridos em uma nova sociedade,

117

Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 30 de junho de 1646. Fl. Fl.23 v e Fl.24. 118 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 14 de abril de 1648. Fl. 100 e Fl.101 v. 119 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 10 de maio de 1649. Fl.125 v a Fl. 127. 120 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 13 de junho de 1649. Fl. 128 a Fl. 128 v.

51

mantendo um relacionamento, algumas vezes, de aproximação, noutras, de distanciamento,

rejeição e resistência com os colonos, mediado pela lógica da dominação da sociedade

colonial121

.

3.2 Leis de Regulamentação do trabalho indígena

Neste capítulo, analisarei as leis expedidas pela Coroa portuguesa durante a segunda

metade do século XVII, entre os anos de 1646 a 1657, para perceber o tratamento que as

autoridades portuguesas deram à força de trabalho indígena. Tais leis revelam ser

regulamentações que ora buscavam proteger os índios, ora atendiam aos objetivos de partes

da sociedade colonial.

Desde o início da colonização, os europeus adotaram vários mecanismos para atuarem

sobre o indígena: pelas leis de escravidão e liberdade – e na execução delas, por meio dos

resgates e descimentos –, pela administração das aldeias e do trabalho, pela catequese

religiosa, pelas guerras incessantes e prolongadas que se travaram desde os primeiros tempos

da conquista122

. No que diz respeito às leis de escravidão e liberdade, estas resultam da busca

desenfreada pela mão de obra indígena, levando a vários embates entre índios e brancos e

várias leis e regimentos que buscavam regulamentar o trabalho indígena.

Essas leis vêm fortemente marcadas pelo componente missionário da colonização.

Enquanto o colono enxerga no índio apenas a mão de obra que pode ser colocada a

seu serviço, o missionário vê o índio sob o prisma da conquista espiritual. Outras

razões de Estado, acima do interesse miúdo e imediato do colono, podem

determinar, por sua vez, leis de liberdade dos índios, quase sempre acompanhadas de restrições e limitações123.

A crescente demanda por força de trabalho nativa no decorrer da colonização

configurou numa barreira para a Coroa Portuguesa que, pressionada tanto por colonos e

missionários quanto pela própria ação indígena, se viu obrigada a elaborar uma vasta

legislação no intuito de resolver os problemas explicitados pelos diversos grupos que

constituíam a sociedade colonial por meio de cartas, litígios e ações cotidianas124

.

121 MONTEIRO, John M. “O escravo índio, esse desconhecido”. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.).

Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 140. 122 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 115. 123

BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 20. 124 NEVES. Tamyris Monteiro. Entre salvar almas para Deus e gerar lucro para a Fazenda Real: a empresa dos

resgates. Monografia de conclusão de curso apresentada à Faculdade de História da UFPA. Belém, 2011, p. 21.

52

O Alvará régio de 10 de novembro de 1647 atendeu aos anseios da evangelização. A

lei atendia uma queixa dos missionários que denunciavam a violência praticada pelos colonos.

Estes, na ânsia de exploração do trabalho, sobrecarregavam os índios a tal ponto que, em

poucos dias, ou eles deixavam de realizar as tarefas ou fugiam para ao sertão. Diante de tais

denúncias, a coroa expediu o Alvará, declarando que os gentios eram livres; destituiu

qualquer administração ou administradores sobre os índios, revogando as decisões anteriores;

e que os índios pudessem servir e trabalhar com quem bem lhes parecesse e melhor lhes

pagasse seu trabalho125

.

O prejuízo que se tinha com o “serviço de Deus” quando os nativos eram

administrados por colonos, ou seja, a prática indiscriminada da escravidão indígena

apresentou obstáculos intransponíveis para a catequese, e também arruinava as possibilidades

do incremento demográfico e da atividade comercial126

. Nesse sentido, havia um impasse

entre colonos e jesuítas. Os índios, quando administrados pelos jesuítas, comprometiam as

atividades econômicas e, se fossem administrados pelos colonos, prejudicavam a catequese e

todo o projeto “civilizacional” missionário, incluindo-se nesse “processo civilizador” o uso

dos serviços indígenas pelos religiosos.

Os alvarás de 12 de novembro de 1647 e os de 5 e 29 de setembro de 1649 se referem

ao pagamento e tempo de serviço. Regulamentavam as taxas e o tempo do serviço dos índios;

proibiam que trabalhassem todo o ano em serviço alheio e determinava que se lhes dessem

quatro meses livres para suas roças e culturas127

. Entretanto, na prática diária, os nativos

foram pagos de fato? Realmente deixaram de trabalhar por algum período do ano? Pois como

foi colocado anteriormente, a falta de mão de obra poderia comprometer a economia na

região.

O Regimento de 12 de setembro de 1652, com o título Atribuições Judiciárias do

governador do Estado, apresenta algumas medidas em relação aos serviços realizados pelos

índios, recomendando ao governador a civilização e bom tratamento deles em termos

genéricos128

. Esse regimento cita outro, datado em 7 de março de 1609, no qual continha as

mesmas recomendações.

A lei de 1609 declarava, entre várias medidas, que os índios ficassem livres, sem

distinção alguma entre batizados e não batizados; desobrigava-os da execução de quaisquer

125 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 122. 126

BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 20. 127 LISBOA, João Francisco. Op. Cit. 128 Idem.

53

serviços ou constrangimentos, sem que sua livre vontade os permitisse; pagamento pelo seu

trabalho, como qualquer outra pessoa livre, feito pelos moradores e fazendeiros que usassem

dos seus serviços; autorizava a entrada de religiosos da Companhia de Jesus no sertão, para

domesticá-los, e assegurar sua liberdade, encaminhando-os, no que lhes conviessem, nas

questões referentes à sua salvação, como na vida ordinária e comércio, protegendo-os da

violência com que os capitães, donatários e moradores costumavam trazê-los do sertão;

destinava-lhes um juiz particular; um curador que, sob direção dos padres, defenderia os

interesses dos índios quando estivessem realizando serviços em nome do rei a particulares ou

aos padres e que todos lhes pagariam um salário pelo seu trabalho; os índios cativos

ilegalmente por governadores passados deveriam ser postos em liberdade, ainda que sob

alegação de que foram comprados129

.

Na realidade, a lei de 1609 era mais uma regulamentação que deveria “proteger” os

indígenas. Entretanto, eles continuaram como a principal mão de obra e muitos deles ainda

permaneceram sob o jugo do cativeiro. A lei que poderia favorecer a sua liberdade não teve

eficácia para fazer cumprir suas próprias determinações, continuando os índios a mercê de

moradores e da administração130

. A questão da liberdade dos indígenas atingia frontalmente

os interesses locais. Quando Baltasar de Sousa Pereira, capitão-mor do Maranhão, em 1652,

trouxe da corte uma ordem para libertar os índios que até aquele momento viviam como

escravos, os moradores da capitania se sublevaram e suspenderam a decisão régia, sob a

alegação de que aguardariam outra decisão da corte131

.

A Carta Régia de 21 de outubro de 1652, dirigida ao Padre Antônio Vieira,

favorecendo completamente a administração religiosa sobre os índios – concedendo ampla

autorização para levantar igrejas, estabelecer missões, descer índios ou deixá-los em suas

aldeias, requisitar dos governadores e mais autoridades quaisquer auxílios de índios, guias,

línguas sob a pena dos desobedientes e remissos serem castigados132

– mais uma vez

provocou descontentamento dos moradores, a ponto de exigirem a expulsão dos jesuítas.

Na provisão de 17 de outubro de 1653, em que os procuradores do Estado do

Maranhão revogaram as proibições anteriores com a justificativa de que não teriam nenhuma

utilidade para os moradores e provocava prejuízos para o futuro e que era impossível dar

liberdade para os índios sem distinção. Com isso, regulamentaram-se as condições (dentre as

129 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 118 e 119. 130

BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 35. 131 LISBOA, João Francisco. Op. Cit., p. 122. 132 Idem.

54

quais destacarei as mais relevantes) nas quais os índios permaneceriam como escravos: nos

casos de se recusar a defender a vida do vassalo; impedir a pregação do evangelho; serem

inimigos da Coroa; se faltassem com suas obrigações de índios vassalos; escravos de guerra

justa; seriam permitidas entradas ao sertão, acompanhados de religiosos, para cativeiros

lícitos, justificados pelos religiosos; e, por fim, era proibido aos governadores, capitães-mores

e ministros superiores das duas capitanias de os usarem para lavrar tabaco ou qualquer outra

cultura, bem como ocupar ou repartir índio, exceto para causa pública e aprovada133

.

Na lei há vários motivos para a prática da escravização dos índios e, um deles eram os

casos de guerras justas. As guerras justas eram, sem dúvida, uma das formas de se legalizar a

escravidão, e cabia às autoridades declarar enquanto legítimas ou não a forma de apreensão de

nativo. A capacidade de deliberar sobre este assunto variou ao longo do tempo, sendo um

atributo do rei, mas podendo ser, em determinadas alturas, delegada à pessoa de

governadores, de capitães-mores ou de juntas134

.

A legislação indigenista vigente no período assinalado deste estudo, finais do século

XVII e primeira metade do século XVIII, continha possibilidades de escravizar os índios

através de duas modalidades principais: os resgates e a guerra justa. Contudo, a permissão dos

cativeiros feitos por intermédio das tropas oficiais não impediu que continuassem as

escravizações privadas ilegais. No Estado do Maranhão e Grão-Pará, muitos moradores,

quando iam aos sertões retirar produtos da floresta, aproveitavam para comprar ou sequestrar

alguns índios, que traziam como escravos. A Coroa portuguesa mostrava-se impotente para

punir os violadores de suas leis, restando como solução reforçar as instituições coloniais que

pudessem coibir os abusos na própria região135

.

A finalidade da exploração da mão de obra indígena, de acordo com a lei de 17 de

1653, era determinar que os índios fossem utilizados exclusivamente para os serviços

públicos. Contudo, em uma ata de 30 de fevereiro de 1655, a câmara de São Luís registrou

uma queixa do povo na qual o capitão mor Baltazar de Souza Pereira pretendia realizar uma

133 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 124. 134 Houve guerras ofensivas movidas pelos colonos com um único objetivo de obter escravos, as quais, ao serem

posteriormente declaradas injustas, acabaram por conferir a liberdade aos prisioneiros capturados. Este

julgamento implicava um processo, por vezes moroso, que consistia na inquirição de testemunhos, no pedido de

pareceres e informações e na elaboração de relatórios. Era com base nesses processos que se justificava uma

guerra justa. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte

do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos

Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 28. 135 MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza. O Regimento do procurador dos índios no Maranhão. Revista

Outros Tempos, vol. 09, n.14, 2012, p. 222- 231, p. 223 e 224.

55

entrada ao sertão com religiosos e um particular, encarregado da entrada que deveria ser eleito

de acordo com a lei declarada.

O impasse era em razão da proposta do capitão de ir de encontro à lei de 1653 que

regulamentava que nenhum ministro ou governador deveria usar os índios senão em causas

públicas, e a entrada ao sertão proposta pelo capitão era particular e não pública. Além disso,

o capitão feria a Casa, uma vez que a proposta não tinha a aprovação das autoridades. Com

isso, o corpo político da câmara requeria do capitão mor suspensão da entrada136

.

O Padre Antônio Vieira, em Lisboa, fez um esforço para que o rei alterasse a lei de

1653, até que o rei, após ouvir a junta dos principais teólogos e letrados do reino, expediu a

provisão de 9 de abril de 1655 alterando a lei anterior que, dentre as deliberações, destaca que

as aldeias e índios de todo o Estado fossem governados e, estivessem sob a disciplina dos

religiosos da Companhia; e o Padre Antônio Vieira, como superior de todos, determinasse as

missões, ordenasse as entradas ao sertão, e dispusesse dos índios convertidos à fé pelos

lugares que achassem mais convenientes. Ainda nessa lei, os índios cristãos e aldeados não

podiam ser constrangidos a servir mais que somente seis meses a cada ano, alternados de dois

em dois, pagando-lhes duas varas de pano de algodão por cada mês137

.

Vieira, chegando a Belém, em 5 de outubro de 1653, foi imediatamente convidado

pelo capitão mor para uma missão no Rio Tocantins, destinada a praticar com os índios e

persuadi-los que descessem do sertão e viessem morar junto aos portugueses138

. Aos poucos,

Vieira se deu conta da realidade dos índios da região, pois mesmo sob disciplina dos

religiosos, e devendo ser pagos pelos seus serviços, na realidade, a exploração da mão de obra

sem pagamento continuou e, pelo que pesquisei, o “bom tratamento” aos índios estava longe

de ser cumprido, como podemos observar no relato de Antônio Vieira sobre a entrada:

Aqui será bem que se note que os índios são os que fazem as canoas; as toldam, as

calafetam, os que velejam, os que remam e muitas das vezes levam às costas, e os

que, cansados de remar as noites e os dias inteiros, vão buscar o que comer para eles

e para os portugueses; os que levam as cargas e ainda as arma às costas. Tudo isso

fazem os tristes índios, sem paga alguma mais que o chamaram-lhes cães, ainda são chamados de nomes afrontosos; [...] Jornada139 tem havido em que, dos índios que

partiram, não vararam a metade, porque o puro trabalho e mau trato os mataram 140.

136 Livros de Acórdão da Câmara de São Luís, registro de 30 de fevereiro de 1655. Fl. 21 v. 137 LISBOA, João Francisco. Jornal de Tímon: apontamentos, notícias e observação para servirem a história do

Maranhão. São Luís: Editora Alhambra, s/d. v. I, p. 124. 138 BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no Brasil. São Paulo: Edições

Loyola, 1983, p. 37. 139 Entrada. 140 LEITE, Pe. Serafim apud BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das missões, Políticas indigenistas no

Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p. 37.

56

A lei de 1655, profundamente influenciada por Antônio Vieira, estabeleceu sérios

esforços para acomodar, de um lado, as vantagens materiais dos colonos e, de outro, a

proteção aos índios. Apesar disso, a escravidão particular continuou; em se tratando de índios

prisioneiros de guerra, ela devia, inclusive, ser vitalícia e hereditária. A escravidão dos índios

resgatados, contudo, devia durar somente cinco anos141

. Já a situação dos índios livres mudou,

pois a fiscalização deles, antes atribuída a oficiais, foi designada aos jesuítas. A atuação dos

oficiais era geralmente prejudicial aos “índios forros”, pois compactuavam com os colonos

que os tinham sob guarda, fazendo os índios prestarem serviços aos portugueses por prazos

maiores que os estabelecidos142

.

Embora algumas leis fossem gerais, suas aplicações variaram muito, como mudavam

também as atuações dos índios em relação a elas. É notável que a ação colonizadora

portuguesa se adaptou às condições locais. Um dos maiores exemplos se encontra na vasta

legislação para a regulamentação do trabalho indígena estabelecida durante o período

colonial, na América Portuguesa, resultante da busca desenfreada pela mão de obra e dos

diversos impasses e embates entre autoridades locais, moradores, missionários e o reino na

tentativa de organizar a exploração do trabalho indígena. As formas de coerção, no sentido da

aquisição de trabalhadores indígenas, foram usadas muito além das leis estabelecidas pela

coroa, tanto pelas autoridades locais, quanto pelos particulares. Mesmo depois da introdução,

em larga escala, de escravos africanos, os índios continuaram a ser uma importante fonte de

mão de obra143

. Essa realidade também engloba a capitania Maranhão, pois a exploração do

nativo predominou por todo século XVII e XVIII, mesmo que, em alguns momentos, fosse

proibido por determinadas leis.

141

SOUSA, James O. Mão de obra indígena na Amazônia Colonial. Revista Em Tempo de Histórias, n°. 6.

Brasília, 2002, p. 3. 142 Ibidem, p. 4. 143 Ibidem, p. 3.

57

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste estudo, observei que a vivência do indígena no Estado do Maranhão e

Grão-Pará foi bem mais dinâmica do que a historiografia clássica apresenta. Percebi que os

índios foram capazes de solicitar da Coroa benefícios como rendimentos monetários, hábitos

de ordens militares ou vestimentas devido aos serviços, alianças e lealdades que estabeleciam

com as autoridades reais e locais. Tais práticas foram frequentes durante o século XVII, o que

mostra que os nativos foram, de fato, sujeitos ativos no processo de conquista e dominação e

que as lideranças indígenas tiveram um papel fundamental na intermediação de muitas

solicitações.

A partir do contato maior com os indígenas, as relações entre os próprios nativos se

alteraram. As lideranças indígenas se fortalecem e assumiram outros papéis. A forma de

trabalho do índio também se modificou, tornando-se cada vez mais compulsória, visando aos

benefícios de setores da sociedade colonial. Assim, a identificação e análise das atividades

laborais desempenhadas pelos nativos não só mostra a sua efetiva participação na colonização

do Maranhão como revela uma parte da dinâmica do processo conquistador. Com isso

defendi, ao longo deste estudo, que os trabalhos, as atividades desempenhadas pelos indígenas

na construção do mundo colonial, deram-lhe um papel de protagonista na cena histórica do

Maranhão e Grão-Pará.

Outro ponto essencial a ser considerado é a variedade de atividades praticadas pelos

índios tais como em obras públicas, pesca, auxílio na comunicação, remeiros, intérpretes e

também na coleta das drogas do sertão. Pelo menos nessa região, entendo que a mão de obra

indígena foi a base da colonização durante o século XVII, pois foi às custas das atividades

desempenhadas por eles que o processo de dominação adquiriu impulso, força e regularidade.

O que ainda está por ser investigado é o quanto essa força impulsionou a colonização, ou seja,

o quanto a mão de obra nativa efetivamente participou do processo colonizador do Estado do

Maranhão. Vale ainda ressaltar que, nesse contato com a documentação, observei que a

procura pelos indígenas para se constituir em força de trabalho foi muito mais diversa do que

a literatura clássica tem informado.

Perceber os diferentes tipos de serviços que os nativos prestaram às autoridades locais

ou autoridades régias permite reavaliar a sua participação e importância, além de possibilitar

compreender o papel histórico do índio na conjuntura colonial. É interessante também

observar como a exploração da mão de obra indígena prevaleceu por um longo período, até

58

mesmo após a chegada de africanos escravizados no território do Estado do Maranhão e Grão-

Pará.

Por fim, observo que as leis criadas no período estudado são extremamente oscilantes

e cheias de restrições e o objetivo delas deveria ser a liberdade dos índios. Entretanto eram

sempre criadas algumas exceções que favoreciam a manutenção do cativeiro. Também, o vai

e vem de decisões e as mudanças nas leis refletem a disputa de interesses entre os principais

setores da sociedade colonial interessados na exploração do trabalho indígena, como jesuítas e

colonos. Com isso, a liberdade e o bom tratamento do nativo sempre ficavam em segundo

plano.

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