universidade estadual de santa cruz - uesc … · para responder à questão de pesquisa definimos...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA/ - PPGE MESTRADO PROFISSIONAL IVANEIDE DAMASCENO DO NASCIMENTO GOMES LITERATURA BRASILEIRA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO MÉDIO: a interpretação do aluno ILHÉUS-BAHIA 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

FORMAO DE PROFESSORES DA EDUCAO BSICA/ - PPGE MESTRADO PROFISSIONAL

IVANEIDE DAMASCENO DO NASCIMENTO GOMES

LITERATURA BRASILEIRA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO

MDIO: a interpretao do aluno

ILHUS-BAHIA 2015

IVANEIDE DAMASCENO DO NASCIMENTO GOMES

LITERATURA BRASILEIRA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO MDIO: a interpretao do aluno

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Formao de Professores da Educao Bsica da Universidade Estadual de Santa Cruz como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Formao de Professores da Educao Bsica. Linha de Pesquisa: Polticas Educacionais. Orientadora: Prof Dr Rachel de Oliveira.

ILHUS-BAHIA 2015

G868 Gomes, Ivaneide Damasceno do Nascimento.

Literatura brasileira e afro-brasileira no ensino : a interpreta-

o do aluno / Ivaneide Damasceno do Nascimento Gomes.

Ilhus : UESC, 2015.

153f.

Orientadora : Rachel de Oliveira

Dissertao (Mestrado) Universidade Estadual de Santa

Cruz. Programa de Ps-graduao em Formao de Professo-

res da Educao Bsica.

Inclui referncias e apndices.

1. Literatura brasileira Histria e crtica. 2. Literatura afro- brasileira Ensino mdio - Jequi (BA). 3. Preconceito racial.

4. Etinicismo na literatura. I. Oliveira, Rachel de. II. Ttulo.

CDD 869.09

Aos meus pais, Eduardo (in memoriam) e Ana, incentivadores

das minhas escolhas.

Ao Roberto, companheiro querido e sempre presente.

prof Rachel, pelo crescimento intelectual proporcionado e

pelo fortalecimento do meu pertencimento tnico.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a Deus, a quem devo a minha existncia.

minha me, Ana Maria Damasceno do Nascimento e ao meu irmo Everton

Damasceno Freire, pela fora, f, pelo amor, pelo apoio constante e incansvel.

Ao meu esposo Roberto lvares Gomes, por tudo...

s minhas filhas Roberta e Marina, vocs so o meu maior tesouro.

minha prima Valquria, pelo carinho incondicional.

s minhas tias Maria Pereira Damasceno e Paula Pereira Damasceno, pelo carinho,

pela pacincia e pelo confiana em meus projetos.

minha amiga Ana Cludia, por sempre estar presente nos momentos mais difceis

da minha caminhada.

professora Rachel de Oliveira, obrigada por ter me escolhido, por ter confiado em

mim, pelo percurso de conhecimento que tive a oportunidade de experimentar em sua

companhia, e pelo fortalecimento do meu pertencimento tnico-racial.

s minhas amigas irms, Mariza, Marcelina, Raidalva e Cristiane, pela pacincia pelas

ausncias nestes dois anos de percurso e por ainda considerar-me amiga e irm.

minha querida amiga Leslie Barreto, pelo apoio como amiga e como professora da

turma do ensino mdio, onde se deu a pesquisa.

Maria Rita Santos, pelo apoio para a finalizao deste trabalho e pela grata surpresa

de nos descobrirmos amigas de longas datas.

Ao professor Jos Jackson e professora Flvia, pela leitura atenciosa, pelas

observaes, questionamentos e sugestes, contribuies estas que enriqueceram o

meu trabalho.

Aos jovens participantes do dilogo, pela disponibilidade e pela pacincia para o

debate em torno das questes tnico-raciais.

professora Martha Lira e professora Nadirce Lucena, por estarem dizendo sempre,

para eu ir mais longe.

A Dona Lcia, me querida que me acolheu em Salobrinho, durante as minhas aulas

no mestrado.

Aos professores do PPGE, pelo conhecimento proporcionado. Em especial,

professora Jeanes Martins Larchert pelo carinho e pelas palavras de apoio nos

momentos mais difceis durante as aulas do mestrado.

Mayana Kamiya pela pacincia ao nos receber na secretaria do colegiado para

dirimir as nossas dvidas.

Aos meus colegas de turma, pelo aprendizado constante.

minha querida amiga Darluce Andrade de Queiroz, pelos momentos preciosos de

aprendizagem e de fora durante as aulas do mestrado.

s amigas Rosilane Maciel, Jackeline Santana e Kildria Gigante, pela amizade, pelas

orientaes e pelo apoio durante os momentos mais difceis nesta caminhada.

s professoras Dbora Souza e Williane Coroa pelas orientaes preciosas para o

pr-projeto com o qual concorri ao mestrado.

A todos os meus amigos e amigas que sempre acreditaram que eu poderia ir mais

longe.

Enfim, a todos e a todas que direta e indiretamente contriburam para que este

momento se tornasse realidade.

A minha rebeldia contra toda espcie de discriminao, da mais

explcita e gritante mais sub-reptcia e hipcrita, no menos

ofensiva e imoral, me acompanha desde minha infncia. Desde

a mais tenra idade que reajo, quase instintivamente, contra toda

palavra, todo gesto, todo sinal de discriminao racial. Como

tambm de discriminao contra os pobres que, bem mais tarde,

se definia contra a discriminao de classe (FREIRE, 2014, p.

199).

RESUMO

Esta dissertao intitulada Literatura Brasileira e Afro-Brasileira no Ensino Mdio: a interpretao do aluno tem como pressuposto problematizar a importncia da literatura afro-brasileira para o desvelamento do pertencimento tnico-racial de estudantes do ensino mdio. A investigao centrou-se na seguinte questo de pesquisa: Que potencialidades de pertencimento tnico-racial se apresentam, no desenvolvimento do processo de pesquisa-ao existencial, tomando a literatura afro-brasileira como contedo das aulas de literatura brasileira, em uma turma do ensino mdio? Para responder questo de pesquisa definimos como objetivo geral: Investigar as possibilidades de desvelamento do pertencimento tnico por meio do dilogo sobre literatura afro-brasileira e objetivos especficos: Observar e descrever o posicionamento dos(as) estudantes frente aos novos contedos sobre a histria e a literatura afro-brasileira e identificar categorias freirianas envolvidas no dilogo entre a pesquisadora e os(as)estudantes. Os sujeitos da pesquisa so 30 jovens da 3 srie do ensino mdio, estudantes do turno vespertino, de uma escola situada no municpio de Jequi-BA. Neste estudo, seguimos a vertente da pesquisa-ao existencial proposta por Ren Barbier acrescentando os fundamentos tericos e metodolgicos propostos por Paulo Freire na obra Pedagogia do Oprimido. A pesquisa teve como lcus da recolha de dados, os dilogos entre a pesquisadora e os estudantes, ocorridos nos meses de abril, maio e junho de 2015. Os dados construdos foram analisados a partir do desvelamento das categorias freirianas evidenciadas nas falas dos sujeitos da pesquisa. Para construo do trabalho, apresentamos, inicialmente, a perspectiva de diferentes estudiosos sobre literatura brasileira e afro-brasileira e confrontamos com os pressupostos terico-metodolgicos contidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, publicadas em 2004. Abordamos alguns conceitos como branqueamento, desigualdade social, relaes tnico - raciais para que pudssemos compreender o processo de construo do modelo de representao social moldado para o pas. Utilizamos tambm os pressupostos tericos contidos nas obras dos estudiosos: Bento (2002), Gomes (1997, 2010, 2011), Munanga (2008), Silva (2010), entre outros, todos com estreita ligao com as DCNERER. Os resultados e concluses desta pesquisa permitem afirmar que a insero da literatura afro-brasileira nas aulas de literatura brasileira, no ensino mdio, como prtica de uma educao para as relaes tnico-raciais, pode contribuir para o desvelamento do pertencimento tnico-racial, bem como para o desenvolvimento do sentimento de alteridade entre os estudantes. Palavras-chave: Literatura. Literatura Afro-Brasileira. Pertencimento tnico. Preconceito Racial. Pesquisa-ao Existencial. Abordagem Freiriana.

ABSTRACT

This dissertation entitled Literatura Brasileira e Afro-Brasileira no Ensino Mdio: a interpretao do aluno (Brazilian literature and afro-brazilian in high school : the interpretation of students) has as main presupposes problematizing the importance of african - Brazilian literature for the ethnic -racial belonging of high school students unveiling. The investigation focused on the following research question: What ethnic-racial belonging potential present in the development of existential action research process , taking the african -Brazilian literature as content of Brazilian literature classes in a school class medium? To answer the research question defined as general objective : To investigate the unveiling possibilities of ethnic belonging through on african - Brazilian literature and specific objectives dialogue: Observe and describe the position of ( the ) students face the new content about the history and the african - Brazilian literature and identify freireanas categories involved in the dialogue between the researcher and (as) students. The subjects are 30 students of the 3rd year of high school, students in the afternoon shift, from a school in the municipality of Jequi -BA. In this study , we follow the slope of existential action research proposed by Ren Barbier adding the theoretical and methodological foundations proposed by Paulo Freire in the book " Pedagogy of the Oppressed " . The research had the locus of data collection , the dialogue between the researcher and the students , occurred in April , May and June 2015. Data were analyzed from the unveiling of freireanas categories highlighted in the statements of the research subjects. For construction work , we present initially , the prospect of different scholars on Brazilian literature and african -Brazilian and confront the -metodolgicos theoretical assumptions contained in the National Curriculum Guidelines for the Education of Racial-Ethnic Relations and the Teaching of History and Culture African -Brazilian and African (NCGEERR), published in 2004 . We address some concepts such as bleaching, social inequality , ethnic- racial relations so that we could understand the construction process of the social representation model molded to the parents. We also use the theoretical assumptions contained in the works of scholars : BENTO (2002 ) , GOMES (1997 , 2010, 2011 ), MUNANGA (2008 ) , SILVA ( 2010) , among others, all with close collaboration with the NCGEERR . The results and conclusions of this study allow us to state that the insertion of african - Brazilian literature in Brazilian literature classes in high school as a practical education for ethnic-racial relations can contribute to better understand the ethnic -racial belonging and the development the feeling of otherness among students. Key-words: Literature. Afro-Brazilian Literature. Ethnic Belonging . Racial Prejudice. Existential Action Research. Approach Freirian.

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Organizao dos dilogos

Quadro 2 Categorias freirianas referentes s situaes limites

Quadro 3 Categorias freirianas referentes aos atos limites

Quadro 4 Categorias freirianas referentes ao ser mais

Quadro 5 Categorias freirianas referentes superao

SUMRIO

UMA PORTA QUE SE ABRE ................................................................................... 13

1 ITINERRIOS TERICOS .................................................................................... 20

1.1. Literatura Brasileira no Cenrio da Educao ............................................... 21

1.1.1 Literatura Brasileira e Literatura Afro-Brasileira, contextos dissonantes em um

pas dividido em diferentes perspectivas culturais .................................................... 21

1.1.2 A Literatura Brasileira Cannica, uma arte a servio da cultura hegemnica .. 25

1.1.3 Literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira: muitos

conceitos e posicionamentos crticos, um mesmo ideal: a valorizao do eu negro . 31

1.1.4 A literatura afro-brasileira e a Lei 10.639/03 ..................................................... 36

1.1.5 O que os contedos e imagens da literatura afro-brasileira do ensino mdio

oferecem para o debate ............................................................................................ 39

1.2 Uma educao pautada no dilogo: em busca da alteridade ........................ 41

2 PERCURSOS METODOLGICOS ....................................................................... 50

2.1 Fundamentos da pesquisa-ao ...................................................................... 50

2.2 O mtodo em pesquisa-ao ............................................................................ 53

2.2.1 A identificao do problema e a contratualizao ............................................ 53

2.2.2 O planejamento e a realizao em espiral ....................................................... 54

2.2.3 As tcnicas de pesquisa-ao .......................................................................... 54

2.3 A pesquisa-ao e a aproximao com existencialismo ............................... 54

2.4 A pesquisa-ao existencial ............................................................................. 56

2.5 Pesquisa-ao existencial e as categorias frerianas ..................................... 57

2.6 Caminhos da pesquisa ..................................................................................... 61

2.6.1 Uma breve descrio do caminho percorrido durante a pesquisa .................... 61

2.6.2 Dilogos possveis e necessrios .................................................................... 64

3 POSSVEL CHEGAR SUPERAO .............................................................. 77

3.1 Situaes-limite ................................................................................................. 78

3.2 Expresses de atos limite ................................................................................ 97

3.3 O processo do ser mais .................................................................................. 107

3.4 Os processos de superao ........................................................................... 114

4 O DESVELAMENTO DO PERTENCIMENTO TNICO-RACIAL POR MEIO DA

LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: UM DILOGO POSSVEL ........................... 120

REFERNCIAS ....................................................................................................... 129

APNDICES ........................................................................................................... 137

ANEXOS ................................................................................................................. 144

13

UMA PORTA QUE SE ABRE ...

Encontrvamos todos em sala de aula, de uma escola pblica, no municpio de

Jequi-BA, em uma noite do incio de 2013; ramos 39, eu1, professora de lngua

portuguesa e literatura brasileira, eles2, estudantes da 1 srie do ensino mdio3, do

turno noturno; falvamos sobre a importncia da leitura, quando lhes perguntei se

algum j havia lido livros. Todos os presentes responderam que no, ou seja,

ningum naquele ambiente, exceto a professora, havia lido um nico livro; eram

jovens e adultos; todos negros: empregadas domsticas, pedreiros, encarregados,

operrios de fbrica de calados, e seu contato com a escrita literria se restringia s

aulas de literatura.

Desde ento, passei a refletir sobre a importncia da literatura na vida dos

jovens estudantes do ensino mdio, porm algo me inquietava: qual literatura oferecer

a estes estudantes? Porque, em minha trajetria como professora, estou em contato

constante com livros que retratam os negros quase sempre de maneira negativa,

estereotipada. Assim, comecei a pesquisar sobre o assunto.

Quanto minha trajetria como cidad negra, meu pertencimento tnico foi

desvelado de maneira no menos traumtica que muitos outros negros. Passei toda

a minha adolescncia e juventude evitando discutir sobre essa questo, possua uma

imagem to negativa do ser negro, que evitava, por vezes, falar sobre o assunto,

apesar de sofrer com o racismo; ora sendo rejeitada por determinados grupos, ora

sendo lembrada que possua uma pele clara, traos finos, porm, um cabelo ruim.

1 Utilizarei a primeira pessoa do singular, neste trabalho, todas as vezes que fizer referncia minha trajetria profissional como professora da educao bsica. 2 Neste trabalho, usaremos, preferencialmente o genrico masculino para nos referirmos ao masculino e ao feminino. A despeito das polmicas sobre o assunto, acreditamos que a escrita se far mais dinmica e, por conseguinte, mais fluida. 3 Art. 35. O ensino mdio, etapa final da educao bsica, com durao mnima de trs anos, ter como finalidades: I a consolidao e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II a preparao bsica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condies de ocupao ou aperfeioamento posteriores; III o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico; IV a compreenso dos fundamentos cientfico-tecnolgicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prtica, no ensino de cada disciplina. (Lei 9.394/1996)

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Era morena, mas negra no! Era bonita! Se alisasse o cabelo ningum iria perceber

que tinha cabelo ruim! Era descendente de negro, mas tambm de branco e de ndio!

Dindinha Marculina foi pega no lao, era ndia, braba! Dizia a minha me.

Era um misto de confuses sobre o lugar reservado aos que eram

denominados como pardos, morenos; esse pensamento confuso inquietava-me;

primeiro na minha famlia, pois cada membro tinha uma cor diferente. Na famlia

paterna, a maioria era preta; e na materna era uma mistura de no brancos e pardos.

Pretos, apenas uma av materna, um tio e uma tia. Essa gradao de cores deixava-

me cada vez mais confusa. Apesar de a maioria dos meus parentes serem negros e

sofrer com o preconceito racial, tentava aproximar-me da etnia branca.

No fao parte de nenhum movimento social e como falei antes, passei anos

da minha vida sem considerar-me negra; era, at certo ponto, parda, morena. Ser

negro, para mim, era ser desvalorizado; chamar-me de negra, uma ofensa sem

precedentes. Esse modo camuflado de ver-me perante o outro foi mudando ao longo

do tempo. Leituras, novas perspectivas para o pas, novas leituras, esclarecimento,

busca de pertencimento, veio ento inquietao: Bem, se no era negra, branca

tambm no era.

Passei por um perodo de interminveis reflexes. Fui de encontro ao slogan

100% negro, ora, era 100% brasileira! Afinal, era mestia. Militei contra as cotas

raciais. Tanto para o slogan quanto para as cotas raciais, possua internalizado em

mim o discurso do opressor4, era uma oprimida e no me reconhecia como tal.

Abandonei o alisamento nos cabelos por trs vezes. A primeira aos quinze

anos; no queria alisar os cabelos (os alisava desde os sete anos) e era persuadida

por minha me; para a famlia (pai, me, primas) era bonita, mas os cabelos! Um ano

depois, voltei ao alisamento; dessa vez, o alisei por mais tempo, sempre estigmatizada

pela famlia.

Quando passei no vestibular, mais uma vez deixei os cabelos naturais. Por

algum tempo, fui aceita no grupo, mas, prximo nossa formatura, soube por uma

amiga que algumas colegas da turma estavam preocupadas com o meu cabelo:

volume, textura: __No ficaria bem na foto da turma! Outra vez, rendi-me ao

alisamento; abandonei-o pouco tempo depois, mas voltei a alisar as madeixas por

causa dos comentrios da minha famlia e da famlia do meu marido.

4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2003.

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Quando da aprovao da Lei 10.639/03, mais uma vez submetida ao discurso

do opressor, considerei um absurdo a obrigatoriedade da Lei nas escolas e jamais

falei a respeito nem da Literatura, nem da histria do povo negro. O tempo foi

passando, novas leituras, assumi o meu pertencimento e h pouco, deixei os meus

cabelos naturais, dessa vez, para sempre. Sou negra, foi um alvio, uma vontade

imensa de gritar, de bradar, consegui livrar-me, em parte, do discurso do opressor.

Desde ento, leio livros sobre a temtica dos negros, trajetria, mazelas, onde esto,

e quem so os negros brasileiros.

Passei minha infncia e adolescncia, escondendo-me em uma mscara, era

uma pele negra e muitas mscaras brancas5, que no me cabiam. Ficava sempre um

pouco da minha negritude mostra, seja pela vontade de assumir os meus cabelos

crespos, seja pelo fato de no entender direito quem eu era e considerar aviltante o

fato das mulatas do Sargentelli6 se apresentarem, seminuas, da ocasio de eventos

internacionais no Brasil.

Como continuar aceitando, indagava-me, viver em uma sociedade que

discrimina o negro e nega-lhe espaos? Apesar dos avanos, continuamos aqum da

realidade da maioria da populao branca brasileira, mesmo sendo mais de 50% da

populao do pas.

Ainda difcil ser negro neste pas de negros; somos desrespeitados em

nossa dignidade, e muitos de ns no tm o direito cidadania plena. O investimento

em uma educao para as relaes tnico-raciais, o conhecimento e valorizao da

literatura afro-brasileira fazem parte de aes para a mudana no cenrio atual. Um

pas com mais igualdade perpassa pela educao no lar e na escola e por aes

concretas do Estado para que a incluso de negros e negras seja possvel em todas

as instncias da sociedade brasileira. A partir dessa perspectiva e por aturar como

professora no ensino mdio, focalizamos o nosso olhar sobre essa etapa de ensino,

particularmente no ensino de literatura.

Entendemos que o pblico que estuda nas escolas brasileiras diversificado,

formado pelas vrias etnias que compem a sociedade e nas escolas pblicas essa

diversidade se torna ainda maior. Porm, esse aspecto da sociedade brasileira no

5 Cf. Fanon, Franz Peles negras, mscaras brancas. 2008. 6Empresrio da noite carioca que fez sucesso nas duas ltimas dcadas do sculo XX, agenciando mulheres negras para danarem (com roupas minsculas) em eventos nacionais e internacionais, sendo constante a presena dessas mulheres em eventos oficiais de chefes de Estado que visitavam o Brasil. As moas representavam a cultura local.

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levado em considerao, como deveria, na construo dos currculos das escolas,

mesmo depois da modificao do artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educao

Nacional (LDBEN), por meio da Lei 10.639/03; ainda h resistncia quando o assunto

so as relaes tnico-raciais.

Com uma populao estimada em 191 milhes de habitantes (BRASIL, 2010)

o Brasil um pas negro, com 50,7% da sua populao autodeclarada parda e preta.

Entende-se que a escola pblica tambm seja o espao onde essa populao

maioria, portanto, esta escola o lugar adequado para discusses vinculadas s

relaes tnico-raciais.

Se, na maioria dos estados da federao, a escola pblica frequentada por

um nmero considervel de negros e seus descendentes na Bahia, esse nmero

maior, pois este estado concentra um dos maiores contingentes de afro-brasileiros do

pas.

A escola, como espao de formao do educando, contribui para a construo

de valores que o acompanharo em sua trajetria de vida, e o ensino de literatura,

como disciplina do ensino mdio, etapa final da educao bsica, tambm pode

oferecer uma importante contribuio para essa formao.

Durante todo o ensino bsico7, a literatura entra como disciplina obrigatria

apenas no ensino mdio. Atualmente, o conhecimento sobre a literatura brasileira,

sistematizado no livro didtico, precisa estar de acordo com a Lei 10639/03. As obras

destinadas a esta etapa do ensino bsico devem trazer em seu contedo, alm dos

textos literrios moldados a partir da literatura portuguesa, textos da literatura africana

e afro-brasileira.

Mesmo depois de mais de dez anos, a legislao no cumprida em todas as

escolas do pas. O prprio Ministrio da Educao (MEC) admite que difcil reverter

500 anos de racismo em apenas 10 ou 11 anos. Segundo o rgo, parte dos livros

didticos do ensino mdio para 2015 no cumpre a Lei. (NWABASILI, 2014).

7 A Educao Bsica, segundo a Lei 9394/2006, no seu artigo 4, dividida da seguinte forma:

Art. 4 O dever do Estado com educao escolar pblica ser efetivado mediante a garantia de: L Educao bsica obrigatria dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma: (Redao dada pela Lei n 12.796, de 2013).

a) pr-escola; (Includa pela Lei n 12.796, de 2013). b) ensino fundamental; (Includo pela Lei n 12.796 de 2013 c) ensino mdio; (Includo pela Lei n 12.796 de 2013)

II educao infantil gratuita s crianas de at 5 (cinco) anos de idade; (Redao dada pela Lei n 12.796 de 2013)

17

Assim, a literatura brasileira que chega maioria das salas de aula continua

privilegiando uma cultura de vis eurocntrico e excludente. Junta-se a isso o fato de

os professores conviverem com a dificuldade de ministrar aulas de uma disciplina, que

acaba sendo pouco atrativa para os estudantes, muito mais ligados s mdias sociais.

Na minha experincia como professora do ensino mdio da escola pblica,

tenho observado que os estudantes, s vezes, so expostos a uma leitura pouco

identificada com suas vivncias e, at certo ponto, distante de sua realidade. Neste

sentido, a literatura afro-brasileira8, talvez, esteja mais prxima do que vivem os

estudantes das escolas pblicas baianas.

Nossa iniciativa juntar-se a muitos outros estudiosos para acrescentar

estudos e reflexes sobre relaes raciais no espao escolar. Nesta perspectiva,

preocupados com o denominado estado da arte, realizamos um breve levantamento

no site de dissertaes e teses da Capes e no encontramos, no perodo de 2011 a

2014, trabalhos que vinculassem a pesquisa-ao existencial s categorias freirianas

na perspectiva da literatura afro-brasileira, pertencimento tnico e preconceito racial.

Entretanto, mesmo que tivssemos encontrado obras com a mesma configurao,

diferentemente das pesquisas clssicas, a nossa opo metodolgica, no despreza

os resultados dos trabalhos semelhantes, mas tambm no os generaliza, pois na

pesquisa-ao existencial cada experincia nica. Assim, mesmo que os dados j

estejam confirmados por outros pesquisadores, a experincia pode se repetir no

mesmo espao ou em outros. H sempre novas situaes-limite e pontos a superar.

A pesquisa-ao no se preocupa somente em cobrir lacunas tericas, mas em

escutar sensivelmente e buscar solues por meio do dilogo.

Refletindo sobre essa possibilidade, elaboramos este trabalho, considerando

a seguinte questo de pesquisa: Que potencialidades de pertencimento tnico-racial

se apresentam, no desenvolvimento do processo de pesquisa-ao existencial,

tomando a literatura afro-brasileira como contedo das aulas de literatura brasileira,

em uma turma do ensino mdio?

Estabelecemos como objetivo geral: Analisar potencialidades de

pertencimento tnico-racial apresentadas no desenvolvimento do processo de

8 Utilizaremos, com frequncia, a palavra afro-brasileira, de acordo com nomenclatura utilizada pelas DCNERER quando se refere histria e cultura dos descendentes de africanos negros que vivem no Brasil. Africana.

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pesquisa-ao existencial, tomando a literatura afro-brasileira como contedo das

aulas de literatura brasileira.

E como objetivos especficos: Observar e descrever e (re)significar o

posicionamento dos(as) estudantes frente aos novos contedos sobre a histria e a

literatura afro-brasileira. (Re)significar a Literatura por meio dos contedos sobre

histria e literatura afro-brasileira e identificar categorias freirianas envolvidas no

dilogo entre a pesquisadora e os(as)estudantes.

Os sujeitos da pesquisa so 30 jovens do Colgio Polivalente Edivaldo

Boaventura, estudantes da 3 srie de ensino mdio, do turno vespertino, no municpio

de Jequi-Bahia.

Este trabalho est organizado em quatro captulos - distribudos da seguinte

forma: no primeiro, intitulado Itinerrios Tericos abordamos questes ligadas

literatura brasileira, afro-brasileira e educao para as relaes tnico-raciais. No

subitem Iniciamos discorrendo sobre o objetivo desse captulo; a princpio, fazemos

um contraponto entre a literatura cannica e a literatura afro-brasileira, enfatizando,

tambm, como o afro-brasileiro retratado nos livros da literatura brasileira.

Prosseguimos, refletindo sobre o papel da literatura brasileira na difuso da cultura

hegemnica e eurocntrica e a pouca representatividade da populao negra nas

obras dos grandes escritores. Todas essas questes so problematizadas no item 1.1

e subitens 1.1.1 e 1.1.2.

Dentro do mesmo captulo, discutimos sobre as vrias acepes da literatura

afro-brasileira. No subitem 1.1.3, so analisadas as definies de vrios estudiosos

para o termo. No subitem 1.1.4, fazemos um paralelo entre a literatura afro-brasileira

e a Lei 10.639/03. No prximo subitem (1.1.5), discutimos sobre a importncia dos

contedos e imagens da literatura afro-brasileira para o debate em sala de aula,

enfatizando, ainda, os prejuzos gerados pela ausncia desse debate. No subitem

(1.2), discorremos sobre a importncia de uma educao que leve em considerao

a diversidade no espao da sala da aula, a diferena, uma educao pautada no

dilogo. Problematizamos, tambm, sobre as mudanas ocorridas a partir da

promulgao da Constituio de 1988, com avanos para o povo negro, perpassando

pela aprovao da Lei 10639/03 e os entraves para o seu efetivo cumprimento.

Reafirmamos o posicionamento da literatura brasileira perante a literatura afro-

brasileira e destacamos, ainda, a importncia da educao como ao que liberta,

segundo a perspectiva da Pedagogia do Oprimido, acrescentando reflexes

19

importantes para o debate luz das Diretrizes Curriculares para a Educao das

Relaes tnico-Raciais e o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana

(DCNERER).

No segundo captulo, Percursos Metodolgicos, discorremos sobre a

metodologia construda durante a pesquisa, explicitando porque escolhemos a

pesquisa-ao existencial como proposta de pesquisa, fazendo um breve percurso

sobre as particularidades desta. Nos subitens 2.1, 2.2, 2.2.1, 2.2.2, 2.2.3, 2.3 e 2.4

apresentamos os fundamentos e mtodo da pesquisa-ao-existencial. No subitem

2.5, problematizamos a pesquisa-ao existencial e as categorias freirianas e

fechamos o captulo com o item 2.6, caminhos da pesquisa, momento em que fazemos

um breve relato sobre a dinmica e a problematizao dos dilogos estabelecidos

entre a pesquisadora e os estudantes.

No terceiro captulo, Possvel Chegar a Superao, transcrevemos as falas

dos estudantes e as categorias freirianas desveladas durante os dilogos,

consubstanciados nas teorias estudadas.

No ltimo captulo, O Desvelamento do Pertencimento tnico-Racial Por Meio

Da Literatura Afro-Brasileira: um dilogo possvel, discorremos sobre a importncia da

literatura afro-brasileira para o desvelamento do pertencimento tnico-racial dos

estudantes. Entendemos que o dilogo foi a ponte que permitiu os resultados

apresentados, resultados estes que, de certo modo, responderam nossa pergunta

de pesquisa. Acreditamos que o desvelamento do pertencimento tnico-racial faz

parte de um processo de contnua valorizao dos negros e negras e essa valorizao

perpassa pelo conhecimento da sua histria e cultura. Durante a pesquisa se tornou

evidente como a problematizao dessas questes pode ser fundamental no cotidiano

das pessoas, sejam elas negras ou no. Assim, entendemos que os textos da

literatura afro-brasileira, se imbricados numa educao problematizadora e dialgica,

despertam nos educandos a busca pelo ser mais e o respeito s diferenas.

20

1 ITINERRIOS TERICOS

A base terica deste trabalho composta por quatro temas que se

vinculam: literatura; literatura afro-brasileira, pertencimento tnico e preconceito

racial. Tomamos como desafio unir estes campos no apenas para analis-los, mas,

principalmente, para utiliz-los como suporte no dilogo entre os participantes da

pesquisa. Nosso ponto central o debate sobre relaes raciais, na perspectiva das

DCNERER, conforme propem educadores e militantes do Movimento Social

Negro contemporneo. No Brasil no possvel discutir esses assuntos sem fazer

referncia s etnias que compem a nao e sem incluir determinadas nomenclaturas

e/ou conceitos como afro-brasileiros, educao antirracista e outros termos

encontrados ao longo do captulo.

Na primeira parte do captulo, colocamos em debate os pressupostos da

literatura brasileira sobre os personagens negros e comparamos aos fundamentos

das denominadas literaturas afro-brasileira e literatura negra, vertentes que surgem

no sculo XX, com a perspectiva de fortalecer a cultura negra, transformar o negro em

protagonista da sua histria e contrariar a tradio literria de subalternidade dessa

populao. Nesta perspectiva, reportamo-nos a escritores como Machado de Assis9,

Fernando Sabino10, Alusio de Azevedo11, Lima Barreto12, Jorge de Lima13, Jos Lins

do Rgo14, Jorge Amado15, entre outros; obras consideradas clssicas e que

compem o currculo escolar, sendo seu contedo exigido nas avaliaes.

9 Escritor do movimento literrio denominado Realismo, foi o mais importante escritor desse perodo da literatura brasileira. Seu romance mais importante foi Dom Casmurro. 10 Cronista da ltima fase do Modernismo ou Ps-Modernismo, para alguns estudiosos. Suas crnicas so publicadas em manuais didticos tanto do ensino mdio, quando do ensino fundamental. 11 Escritor mais importante do movimento literrio denominado Naturalismo. Uma das suas obras mais conhecidas O Cortio. 12 Lima Barreto fez parte do movimento denominado Pr- Modernismo, era crtico ferrenho do modelo de sociedade vigente da sua poca, um dos seus romances mais importantes foi: Triste Fim de Policarpo Quaresma. 13 Jorge de Lima foi poeta da ltima fase do Modernismo, escreveu Essa nega Ful que trata da relao submissa de uma escrava por seu senhor. Oliveira Silveira faz um contraponto interessante com a poesia Outra nega Ful (Cadernos Negros: os melhores poemas, 1998, p.109), empoderando Ful para o enfrentamento ao seu algoz. 14Jos Lins do Rego, importante escritor do Modernismo, faz parte de um grupo de escritores denominados Gerao de Trinta. Entre os seus romances est o romance Menino de Engenho. 15 Jorge Amado tambm faz parte da Gerao do Romance de Trinta, teve vrios de seus romances adaptados para o cinema e televiso. Criou personagens como Gabriela, Tieta do Agreste, entre outos.

21

Pautamos a discusso sobre pertencimento tnico nos seguintes autores: Nilma

Lino Gomes, Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, Kabengele Munanga, entre outros.

No tivemos a pretenso de esgotar o pensamento de nenhum deles, mas de

selecionar as suas contribuies para concretizao deste trabalho. Dessa forma este

itinerrio terico entrecortado por vozes no dissonantes, que se unem a nossa,

embora perceba que a nossa voz esteja transpirando sensibilidade, causada pelo

impacto das leituras e do processo de pesquisa-ao existencial que tem exigido

novas atitudes frente produo de conhecimento.

1.1 Literatura brasileira no cenrio da educao

1.1.1 Literatura Brasileira e Literatura Afro-Brasileira, contextos dissonantes em um pas dividido em diferentes perspectivas culturais

A literatura, dita de modo simplificado, o manusear artstico da palavra, a partir

de uma viso ficcional, constituda e legitimada pela verossimilhana16.

A literatura costuma ser definida, antes de tudo, como linguagem, construo discursiva marcada pela finalidade esttica. Tal posio ancora-se no formalismo inerente ao preceito kantiano da finalidade sem fim da obra de arte. Todavia, outras finalidades, para alm da fruio esttica, so tambm reconhecidas e expressam valores ticos, culturais, polticos e ideolgicos. A linguagem , sem dvida, um dos fatores instituintes da diferena cultural no texto literrio. (DUARTE, 2014, p. 26).

Essa linguagem instituda pelo texto literrio conduz o ser humano a repensar

o mundo, o seu mundo, as suas decises. Tambm faz com que as palavras se

cristalizem, perpetuando-se como registro histrico da realidade vigente de um

determinado perodo, ou um aspecto desse perodo que se pretenda preservar,

manter; depende do ponto de vista de cada escritor, ou seja, [...] a literatura pode ser

a representao de uma viso de mundo, alm de uma tomada de deciso diante

dele. (PROENA FILHO, 2001, p. 9).

Enquanto manifestao artstica os textos literrios tm a funo de recriar a

partir da viso do mundo do autor da obra. Essa viso pode corresponder a

perspectiva de alguns grupos, fortalecendo seus sentimentos e sua origem cultural,

16 Verossimilhana: a caracterstica que o texto literrio tem, de parecer ser verdadeiro; um texto verossmil um texto que se aproxima da verdade, mas uma obra de fico.

22

ao mesmo tempo pode contrariar e at negar o modo de ser de muitas pessoas. A

obra prima da literatura a palavra no seu conjunto de ideias explcitas ou

subliminares.

A literatura utiliza a lngua como um instrumento de comunicao e interao. No est alheia ao seu papel social, sendo, pois, uma manifestao artstica indispensvel para a difuso da cultura e para a democratizao do conhecimento. Um escritor um ser social e, inserido na realidade de um povo, capta situaes e sensaes, recriando a realidade ou transfigurando-a. A literatura pode ser uma fotografia de seu tempo e servir a uma causa poltico-ideolgica ou a uma luta social, sem jamais se desvincular de seu propsito artstico (CASTRO, no paginado).

Dentro dessa tica, plausvel questionar: O que a literatura brasileira diz

sobre seu povo? Qual a imagem construda sobre o papel da mulher, dos brancos,

indgenas e negros? E sendo a literatura uma fotografia de seu tempo podendo

servir a uma causa poltico-ideolgica ou uma luta social, conforme

citamos acima, podemos concluir que ela tem uma determinada funo dentro do

currculo escolar.

Nos textos da literatura brasileira, o negro tem sido representado, quase

sempre, de maneira estereotipada e em muitos casos apenas como objeto de

decorao.

O sujeito tnico branco do discurso bloqueia a humanidade da personagem negra, seja promovendo sua invisibilidade, seja tornando-a mero adereo das personagens brancas ou apetrecho de cenrio natural ou de interior, como uma rvore ou um bicho, um mvel ou qualquer utenslio ou enfeite domstico. Aparece mas no tem funo, no muda nada, e se o faz por mera manifestao instintiva, por um acaso. Por isso tais personagens no tm histria, no tm parentes, surgem como se tivessem origem no nada. A humanidade do negro, se agride a humanidade do branco, porque esta ltima se sustenta sobre as falcias do racismo. (CUTI, 2010, p.89).

Entende-se, dessa maneira, porque ainda hoje to difcil incluir esse

segmento populacional, com os mesmos direitos e prerrogativas do segmento branco,

dentro das narrativas da literatura nacional. Esse ponto de vista relacionado imagem

do negro, essa representao do mundo tem forte vis eurocntrico17, branco.

17 Eurocentrismo , aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaborao sistemtica comeou na Europa Ocidental antes de meados do sculo XVII, [...]. No se trata, em consequncia, de uma categoria que implica toda a histria cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, no se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as pocas, mas a uma especfica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemnica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prvias ou

23

Diante de tal cenrio, construdo pela literatura brasileira e por uma realidade

que perpassa nossas vidas, mesmo nos dias atuais; talvez no cause estranheza a

uma pessoa branca ler a caracterizao que o escritor Monteiro Lobato faz de tia

Nastcia18, por meio da boneca Emlia, em seus livros infantis; mas, ao leitor negro,

sensvel a esta forte estereotipia, causa um grande desconforto. Monteiro Lobato foi

o percursor do modernismo no Brasil, na temtica do negro. No entanto, foi o autor

que mais declaradamente atacou os negros de forma cortante e preconceituosa:

considerava-os ora como animais selvagens, ora como resignados (CASTILHO,

2004, p. 107).

Aspectos de estereotipia relacionados aos personagens negros, tambm esto

presentes na obra de Fernando Sabino, grande cronista brasileiro; um exemplo desse

tipo de linguagem a contida em um texto de uma de suas crnicas, que faz parte da

coleo Para Gostar de Ler, destinada ao pblico juvenil. Ele enftico ao descrever

a personagem principal, Albertina: Chamava-se Albertina, mas era a prpria Nega

Ful: pretinha, retorcida, encabulada [...] (1980, p. 30). E prossegue em outro trecho:

Finalmente o dia da bebedeira. Me apareceu bbada feito um gamb; agarrando-me

pelo brao: [...] (IDEM, p. 34). Albertina descrita como bbada, analfabeta, burra,

irresponsvel e outros adjetivos mais. Em todo o texto, Fernando Sabino no atribui

uma nica caracterstica positiva a Albertina. Em alguns momentos, a compara com

um animal, [...] veio l de sua toca espreguiando: __Eu tava dormindo ... __ e deu

uma risadinha (IDEM, p. 31). Monteiro Lobato escreveu inmeras obras destinadas

ao pblico infantil e Fernando Sabino escreveu um nmero considervel de textos

para jovens e adolescentes. Reflitamos que textos como esses acabam por contribuir

para a depreciao da imagem do povo negro.

Na vida cultural brasileira, a literatura tem sido um elemento importante para a

configurao identitria de setores das classes mais abastadas da sociedade

brasileira, e esse segmento sabe o poder que tem a palavra; tm a conscincia de

que a cultura letrada desenha perfis e normas comportamentais e interage com as

diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo. (QUIJANO, 2005, p. 235). 18 Tia Nastcia era a cozinheira negra do Sitio do Picapau Amarelo, constantemente humilhada pela boneca Emlia, outra personagem do Sitio. Tanto Tia Nastcia, quanto a boneca Emlia, fazem parte da famosa coletnea de livros do escritor Monteiro Lobato, sobre as histrias vividas por diversos personagens, tendo como cenrio o referido sitio. As narrativas comearam a ser lanadas em 1921. Desde ento, tem influenciado crianas de todas as idades, reforando uma imagem negativa do povo negro.

24

culturas populares (SOUZA, 2005, p. 64). Por essa razo, quase tudo o que escrevem

se transforma em normas, que so facilmente internalizadas por fora da arte.

Segundo Bosi (2008, p. 12),

A formao do Brasil Nao-Estado, realizada por obra de uma classe privilegiada, a burguesia latifundiria em um sistema agroexportador e escravista, foi o carro-chefe que regeu os projetos de constituir uma cultura nacional, uma lngua nacional, uma literatura nacional, uma arte nacional etc.

Essa formao tambm foi responsvel por falsear a realidade brasileira no que

diz respeito diversidade, identificando-nos de maneira equivocada, como uma nao

morena, mestia, territrio onde as diferenas eram respeitadas, e as oportunidades

eram iguais para toda a populao. Por meio dessa concepo, estabeleceu-se, no

Brasil, a partir do incio do sculo XX, a ideia de que vivamos em uma nao com

igualdades de direitos para negros e no negros, ou seja, uma democracia racial19

que at os dias atuais causa prejuzos aos negros e seus descendentes, no que diz

respeito igualdade de direitos e incluso em todos os segmentos da sociedade.

Quando se fala de ns/ eles, eu/outro numa perspectiva de incluso e excluso,

talvez seja o caso de refletir sobre o fato dos negros estarem ausentes quase que por

completo dos espaos de prestgio da sociedade brasileira, incluindo neste contexto

a produo literria local. Os descendentes dos africanos se encontram ausentes ou

sub-representados nas grandes narrativas; quando, por acaso, se fazem presentes,

mostram-nos representaes de personagens marginalizados e figuras repletas de

esteretipos, como exemplificamos antes. Quanto ao cnone literrio20, cita poucos

escritores de origem negra, e parte desses grandes escritores21 citados

sobrevalorizaram a ideologia branca em seus textos e parece certo que optaram por

esse caminho para sobreviver em um mundo literrio composto por escritores e

leitores de predominncia no negra e preconceituosa.

19 [...] entre os anos de 1900 e 1950, o Brasil cultivou, com sucesso, uma imagem de si mesmo como a primeira democracia racial do mundo, sendo a convivncia entre brancos e negros, descrita como harmoniosa e igualitria. Essa concepo tornada discurso oficial , na verdade, um mito hoje questionado pelos brasileiros.[...] No Brasil, entretanto, o mito da democracia racial encobre o preconceito e torna muito mais difcil o combate efetivo da injustia para com indivduos e grupos etno-raciais diversos do branco-europeu. Assim, a discriminao opera no nvel dos indivduos e nem sempre identificvel como tal. (FERREIRA, 2009, p. 40-41) 20 Conjunto de livros considerados como referncia em um determinado perodo, estilo ou cultura. 21 Machado de Assis (1839-1908), Cruz de Souza (1861-1898).

25

No Brasil, como em outros pases, os negros e seus descendentes vivem sob

a orientao de um modelo europeu e norte americano que abrange desde o vesturio

at a textura do cabelo passando tambm pelas produes culturais; de um modo

geral, [...] a opresso estende-se vida em toda a sua dimenso. E a, com esse

amplo contedo, que se realiza a literatura (CUTI, 2010, p. 43). sabido que as

imagens construdas sobre o negro na cultura brasileira, inclusive, nesse contexto a

literatura, no se distanciam muito daquelas produzidas em outros espaos

economicamente desenvolvidos a partir da mo-de-obra escrava (FONSECA, 2010,

p.89).

Um trao que diferencia a literatura afro-brasileira da literatura cannica a

valorizao dos traos fsicos, das heranas culturais de povos africanos, um

sentimento positivo de [...] etnicidade que atravessa a textualidade afro-brasileira.

(EVARISTO, 2009, p. 19). Tudo isso refora o sentimento de pertena de homens e

mulheres negras; nesse sentido, a importncia dessa literatura chegar s salas de

aula, principalmente as do ensino mdio das escolas pblicas, visto que l se

concentra uma parcela importante da juventude negra que precisa reforar e dar

visibilidade a sua autoimagem, diante da valorizao exacerbada do bitipo branco

pelos meios de comunicao.

1.1.2 A Literatura Brasileira Cannica, uma arte a servio da cultura hegemnica

A literatura reflete o pensamento de uma poca, de um grupo e com a literatura

brasileira no diferente. Em sua maioria, os textos que fazem parte do cnone

literrio brasileiro esto eivados pela cultura eurocntrica e, por consequncia, a

cultura se torna racista.

Os textos escritos, desde que se formou um arcabouo para o que se denomina

literatura brasileira, foram cunhados por uma elite letrada, destinados a esta mesma

elite que sonhava com o Brasil branco, no qual no havia espao possvel para os

negros e seus descendentes. Isso se tornou cada vez mais definido nas teorias

racistas22 e no to sonhado branqueamento da populao local e a depreciao por

22 Como acontece geralmente na maioria dos pases colonizados, a elite brasileira do fim do sculo XIX e incio do sculo XX foi buscar seus quadros de pensamento na cincia europeia ocidental, tida como desenvolvida, para poder no apenas teorizar e explicar a situao racial do seu Pas, mas tambm sobretudo, propor caminhos para a construo de sua nacionalidade, tida como problemtica por causa da diversidade racial. (MUNANGA, 2008, p.47).

26

parte de muitos escritores de toda descendncia no branca, atravs da conservao

de esteretipos e bloqueios, cerceando, mesmo dentro da fico, os negros e negras

de ascenderem na escala social.

A ideologia do branqueamento alm de causar inferiorizao e a auto-rejeio, a no aceitao do outro assemelhado tnico e a busca do branqueamento, internaliza nas pessoas de pele clara uma imagem negativa do negro, que as leva a dele se afastarem, ao tempo em que veem, na maioria das vezes, com indiferena e insensibilidade a sua situao de penria e o seu extermnio fsico e cultural, atribuindo a ele prprio as causas dessa situao. (SILVA, 2007, p. 97)

Segundo Bento (2002, p. 25),

[...] quando se estuda o branqueamento constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro. Considerando, (ou quia inventando) seu grupo como padro de referncia de toda uma espcie, a elite fez uma apropriao simblica crucial que vem fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriao acaba legitimando sua supremacia econmica poltica e social. O outro lado dessa moeda o investimento na construo de um imaginrio extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua autoestima, culpa-o pela discriminao que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais.

V-se por esse fragmento como esse processo tem prejudicado a populao

negra, em todos os sentidos, a saber: no aspecto fsico; pela cor, pela fisionomia e

pela textura do cabelo; no aspecto social: porque consegue demarcar quais espaos

o negro pode transitar; no aspecto psicolgico: porque este se sente muitas vezes

incapaz de reagir diante da negatividade das situaes impostas ao seu ser,

impingindo-lhe os mais degradantes papis; e desajustamento moral: porque coloca-

o como culpado pelas mazelas da sociedade, julgando-o detentor de padres de

comportamento, em vrios momentos, questionveis, julgando-o, assim, incapaz de

mobilizar-se. Mesmo nos dias atuais, qual o segmento que mais tem a sua cidadania

negada em todos os espaos da sociedade?

Tanto a desvalorizao quanto a invisibilidade foram cristalizadas nas obras da

maioria dos escritores brasileiros de vrias pocas. Para citar alguns, temos Monteiro

Lobato (1882-1948); Jorge de Lima (1893-1953) com a sua eterna nega ful; Alusio

Apesar das diferenas de pontos de vista, a busca de uma identidade tnica nica para o pas tornou-se preocupante para vrios intelectuais desde a primeira Repblica: [...] (MUNANGA, 2008, p. 48). Todos, salvo algumas excees tinham algo em comum: influenciados pelo determinismo biolgico do fim do sculo XIX e incio deste (sculo XX), eles acreditavam na inferioridade das raas no brancas, sobretudo a negra, e na degenerescncia do mestio. (MUNANGA, 2008, p. 49).

27

de Azevedo (1857-1913), ferrenho escravocrata, imortalizando personagens como

Bertoleza (animalizada) e Rita Baiana (sensual e destruidora de lares); Euclides da

Cunha23 (1866-1909), com seu pseudo mestio resultado da juno entre ndios e

brancos.

Negros e negras; elas, eternizadas, muitas vezes como personagens

sedutoras, sexualizadas, depravadas e piv de conflitos matrimoniais: Rita Baiana24,

Ful25, a negra Luza26; infantilizadas: Gabriela27. Eles, descritos como viles e

feiticeiros: Pai-Raiol28, Pai Incio29, o velho Mirigido30; malandros e seres viris, de

inteligncia reduzida: Firmo31, Z Passarinho32. Homens e mulheres eternizados em

personagens construdos para a marginalizao e a violncia, ora fsica, ora

psicolgica, mas sempre como marca simblica de suas existncias. Os textos

cannicos da literatura brasileira souberam dar sua contribuio a esse processo,

institucionalizando situaes que foram cristalizadas em textos amparados em teorias

raciais (O Mulato, O Cortio), consideradas verdades absolutas ao longo do tempo.

Muitos escritores, a partir da metade do sculo XIX, aproveitavam a temtica do negro

para criar esteretipos eficazes e perigosos sobre o afro-brasileiro; entre os quais,

esto o mito do escravo fiel e a imagem do escravo demnio, criados por Joaquim

Manuel de Macedo; a temtica do escravo desprezvel, de Pinheiro Guimares; j o

escritor Bernardo Guimares refora o mito do escravo nobre (a escrava Isaura), que,

por esta razo, muda de cor e da escrava negra vingativa (a escrava Rosa).33

(FONSECA, 2006). E mesmo aps a abolio, a construo da imagem negativa do

negro continua. O negro retratado como monstruoso, ficaram gravadas as imagens

do velho Mirigido, do romance Cazuza, de Viriato Correia34. Assim tambm descrita

23 Escritor do Pr Modernismo, o romance mais importante de sua carreira foi Os Sertes, obra que narra em detalhes a histrica guerra de Canudos. 24 AZEVEDO, Alusio T. G. de. O Cortio. So Paulo: Martin Claret, 2006. 25 LIMA, Jorge de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguillar, 1958, vol.1. 26 RGO, Jos Lins do. Menino de Engenho. So Paulo: Editora Abril, 1983. 27 AMADO, Jorge. Gabriela Cravo e Canela. 85 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. 28 MACEDO, Joaquim M. de. As Vtimas Algozes: Quadros da Escravido. Porto Alegre: Editora Zouk, 2006. 29 ALENCAR, Jos M. de. O Tronco do Ip. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1977. 30 CORREA, Viriato. Cazuza. 23 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. 31 AZEVEDO, Alusio T. G. de. Op. Cit. 32 RGO, Jos Lins do. Fogo. 33 Joaquim Manoel de Macedo e Bernardo Joaquim da Silva Guimares fizeram parte do perodo literrio denominado Romantismo. A obra mais famosa do primeiro escritor A Moreninha e do segundo: A Escrava Isaura; j o mdico e teatrlogo Francisco Pinheiro Guimaraes fez parte do perodo literrio denominado Realismo e sua pea mais famosa foi: Histria de uma Moa Rica. 34 Romancista maranhense da primeira gerao de modernistas, do incio de sculo XX.

28

a personagem Boca Torta, que empresta o nome ao ttulo do conto de Monteiro

Lobato, Boca Torta. (FONSECA, 2006).

Essas personagens passeiam pela literatura brasileira, reforando esteretipos

e estigmas sobre os negros; por essa razo: a importncia do contraponto, uma

literatura que mostre o outro lado da histria, com a valorizao da cultura, dos

saberes e das nuances dos negros brasileiros. Para tanto h que se enegrecer a

literatura. (SILVA, 2010a)

A literatura brasileira escrita e lida pelas elites conseguiu manter preconceitos,

falsas crenas, esteretipos que esto bem presentes, mesmo nos dias atuais, e se

tornam cada vez mais evidentes em nossa sociedade medida que negros e negras

ascendem na escala social e passam a frequentar espaos antes destinados apenas

queles que se autodenominam brancos.

Apesar de os textos cannicos trazerem quase sempre imagens negativas

relativas ao povo negro, alguns autores argumentam que critrios como etnia e

identidade no deveriam sobrepor ao critrio da nacionalidade; defendem que a

literatura brasileira nica, no havendo espao para condicionamentos como raa,

gnero, etnia. So comuns as colocaes que a literatura no tem sexo e nem cor,

como se no houvesse vertentes da literatura brasileira a servio de uma literatura

eurocntrica e masculina.

Todavia, no alvorecer do novo milnio, o caso de se indagar a quem serve esse essencialismo. No estaria ele comprometido com o absolutismo de um pensamento que por sculos imps outras essncias tidas tambm como sublimes e absolutas, com a finalidade bsica de perpetuar hierarquias e naturalizar a excluso? (DUARTE, 2005, p. 117).

Na literatura brasileira parece no haver espao, mesmo no sculo XXI, para a

insero da pluralidade de valores estticos, culturais e polticos. Nessa perspectiva,

o segmento negro um territrio cultural posto margem do reconhecimento crtico.

(Duarte, 2005). Ser negro no Brasil plural uma escolha poltica e a respeito da nossa

produo literria, muitos obstculos so visveis, o que acaba por dificultar a

formao de um corpus literrio da afrodescendncia brasileira.

Dessa maneira, uma literatura negra, que tenha como temtica o universo

humano, social, cultural e artstico do povo negro (Ianni, 1988) muito mais difcil de

prosperar nos grandes centros editoriais, no fazendo parte do cnone literrio

brasileiro. lamentvel ter de assinalar que, entre ns, no Brasil, a depreciao da

29

intelectualidade dos negros ainda vigora, o que gera sentimentos, posturas, atitudes

racistas, discriminatrias e, consequentemente, muito sofrimento. (SILVA, 2010a, p.

43).

A literatura como retrato da realidade pode contribuir para a elevao da

autoestima dos educandos. Trata-se de levar em considerao a sua histria, sua

vivncia e retrate seus heris e como lutaram para que a vida fosse melhor. preciso

ter em conta que uma literatura retratando o povo negro de maneira no estereotipada

ainda pouco divulgada, pois parte dos escritores negros que do nfase a esta

literatura no so acolhidos pelas grandes editoras, o que torna a divulgao bem

mais tmida que a dos escritores da temtica eurocntrica.

Tambm no h uma definio clara sobre o perfil tnico de muitos escritores,

pois vrios deles, apesar de serem negros, no se autodenominam como tal, ou os

meios de comunicao no divulgam e, por essa razo, pensa-se que todos os

grandes escritores so brancos, mesmo que muitos deles tenham, tambm,

ascendncia africana.

Tem-se a ideia, no Brasil, que essas pessoas no existam, no fazem parte

do cenrio de poder e por isso ficam isoladas e no so mostradas como tal. Assim,

na literatura transportada para a mdia, notabilizara-se casos emblemticos sobre a

representao negada ao negro, mesmo que este seja a personagem principal do

livro: Gabriela e Tieta, de Jorge Amado; a Escrava Isaura, de Bernardo Guimares.

Parte do contedo das obras cannicas no versam sobre tradies africanas,

nem a vivncia de homens negros e mulheres negras alm do contexto da escravido.

E quando se fala do perodo anterior abolio, os negros so retratados como

personagens pacficas que no lutaram por sua liberdade e quando lutaram, foram

retratados como mal agradecidos e revoltosos contra os donos de engenhos.

Podemos citar como exemplo, personagens que se repetem em vrias obras do

cnone literrio brasileiro: o escravo pacfico, penalizado ou o desagradecido com os

benefcios de ser escravo e ter um senhor amvel.

No que se refere abolio, quase sempre, essa vem retratada como bondade

da princesa e mrito dos abolicionistas brancos. Pouco se fala sobre o papel

fundamental dos prprios negros nas lutas que culminaram no 13 de maio. Sobre o

dia aps a assinatura da Lei, no h narrativa cannica que nos traga a realidade dos

alforriados, nem a reflexo de que a Lei abolia a escravido, mas no conferia direitos

de cidados aos ex-escravizados.

30

A mulher negra, quase no mencionada, quando lhe fazem referncia como

personagem marginal ou inferiorizada, no tem as mesmas oportunidades e vivncias

da personagem branca, ou seja, no h igualdade de tratamento. O negro visto

como o diferente, o inferior e no contexto atual, o extico. Normal ser branco, os

outros fazem parte das mazelas da vida.

[...] A hierarquizao das raas ser a viga mestra da formao discursiva racial predominantemente, atingindo obras dos mais variados nveis de reconhecimento pblico, como, por exemplo, A carne, de Jlio Ribeiro, Cana, de Graa Aranha, Os Sertes, de Euclides da Cunha, e Macunama, de Mrio de Andrade. O sujeito tnico branco constituir, pois, a instancia discursiva que pautar sua performance, tanto na literatura quanto em outras reas da escrita, [...]. Ao constituir-se no discurso, o sujeito tnico branco surge como o guardio da hierarquia racial e promotor do prprio reconhecimento, dentro da formao discursiva racial [...]. (CUTI, 2009, p. 88-89)

Ainda vivemos, at certo ponto, em uma segregao no que se refere aos

textos da literatura brasileira; porm o silncio imposto ao povo negro comea a se

romper, com maior nfase, a partir do incio do sculo XXI, mais de cem anos aps a

abolio. certo que avanamos na conquista de nossos direitos e se sempre houve

uma literatura que nos inscreve como protagonistas da nossa histria, essa literatura

comea a ganhar mais visibilidade nos ltimos tempos.

Todavia, a realidade vivenciada pelo povo negro, no Brasil, continua difcil.

Aboliu-se a escravido, mas no ofereceram direitos de cidados. Onde esto os

negros no Brasil atual? Parte importante dessa populao se encontra diluda nas

profisses de menos prestgio, e nas mais diversas situaes de vulnerabilidade pelo

pas afora35.

H uma literatura de engajamento contando a histria dos descendentes dos

escravizados e ajuda a refletir sobre as mais diversas situaes vivenciadas pelos

negros brasileiros, em poucos espaos de poder e em muitas situaes de risco. Essa

literatura quase sempre chega de forma fragmentada s escolas, os textos literrios

que chegam aos bancos escolares, por meio dos livros didticos, fazem parte de uma

35 Morreram, no Brasil, 146,5% mais negros do que brancos, em 2012.(Fonte: Agncia Brasil, 2015). Do total de pessoas assistidas pelo Bolsa Famlia, 66,4% das famlias so chefiadas por afrodescendentes, contra 26,8% de brancos, na mdia. [...]. (Fonte: IPEA, 2013). Com a populao de rua e usuria de crack no diferente, a maioria dos usurios so pessoas no brancas, um percentual de 80% (Fonte: Agncia Brasil, 2013).

31

literatura elaborada para contribuir com o silenciamento e invisibilidade do povo negro.

Modelo vigente at a promulgao da Lei 10.639/03. Essa realidade est mudando de

maneira progressiva, porm, lenta. Machado de Assis quase nunca reconhecido

como autor negro, mas apenas como presidente da Academia Brasileira de Letras e

como grande escritor do realismo. Lima Barreto muito bem lembrado como o escritor

que enlouqueceu, mas sua literatura de engajamento no problematizada como

literatura afro-brasileira, que tratou da insero do negro na sociedade, suas mazelas,

o preconceito racial e invisibilidade na sociedade brasileira do incio do sculo XX.

Para Ianni (1988, p.93),

So vrias e difceis as operaes ideolgicas que os escritores negros realizam para desanuviar o ambiente, mapear as situaes presentes, resgatar a histria, desvendar a sua matria de criao, formular os seus temas, pesquisar as suas linguagens, alcanar a transparncia na relao do seu eu individual com o seu eu coletivo. A cultura e a ideologia dominantes escondem muito, praticamente tudo: histria incruenta, escravido

aucarada, democracia racial etc.

So muitas as lacunas deixadas pelo modelo de literatura abordado nas salas

de aulas brasileiras. preciso uma reviso minuciosa de como seria a configurao

de uma literatura engajada, que no se pretendesse socializar apenas literatura

eurocntrica, mas, ao lado desta, a literatura afro-brasileira, com os mesmos valores

da literatura dita oficial, uma literatura comprometida tambm com o fortalecimento do

pertencimento tnico de estudantes negros (as) das escolas pblicas, visto que boa

parte da imagem e cultura do nosso pas valorativa para a etnia branca.

1.1.3 Literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira: muitos conceitos e posicionamentos crticos, um mesmo ideal: a valorizao do eu negro

Diante do que foi exposto, por que denominar uma literatura como negra, afro-

brasileira ou afrodescendente, se no denominamos uma literatura branca; no seria

apenas a literatura brasileira? O problema parece simples, mas no . So muitas

as denominaes para essa literatura: literatura negra, literatura afro-brasileira,

literatura negro-brasileira e h ainda aqueles escritores que se assumem como negros

e so sensveis ao problema da excluso dos descendentes de escravos na

32

sociedade brasileira, mas resistem a expresses como: escritor negro, literatura

negra. Para estes escritores, essas expresses acabam rotulando, particularizando

de maneira negativa a sua literatura. Enquanto outros acreditam que essa

particularizao permite destacar aspectos excludos pela generalizao do termo

literatura. Uma literatura que acaba por destacar aspectos negativos do povo negro

em detrimento dos aspectos positivos.

Como discorremos, a literatura brasileira tem vis eurocntrico, o cnone

literrio brasileiro formado por escritores, em sua maioria, brancos. So poucos os

escritores negros que conseguem ultrapassar as barreiras da academia e serem

reconhecidos como grandes escritores da literatura brasileira, mesmo tendo como

referncia o fato de a Academia Brasileira de Letras ter sido fundada por um homem

negro e ter como seu primeiro presidente este mesmo literato, o escritor Machado de

Assis.36 Em um cenrio to desfavorvel, a cultura e histria dos remanescentes da

dispora, a literatura denominada negra vem, como contraponto ao narrar outra

histria, afirmando nas suas entrelinhas o orgulho do pertencimento afro-brasileiro.

Segundo Souza (2005, p.71) falar de literatura afro-brasileira pressupe duas

questes principais: O lugar de quem fala [...], tnico de pertencimento ou de adoo,

sem essencialismos e [...] aliado a isto um debruar-se sobre os arquivos da histria

do negro passada ou presente e ou sobre as culturas de origem africana.

importante emprestar um tom, uma cor literatura brasileira, no com o objetivo de

segregar, mas para reforar o carter ideolgico de uma literatura que tenha como um

dos objetivos contar a histria do povo negro sem esteretipos, nem com o

condicionante da inferiorizao, como tem sido feito pelas diversas obras do cnone

que buscam a superioridade do branco, nos mnimos detalhes.

Deseja-se, assim, no uma literatura negra contaminada pela essencializao,

mas uma literatura engajada que consiga narrar histrias de outra forma, deslocando

o negro para o ncleo da narrativa no como objeto, mas como sujeito de sua prpria

histria. Que esse seja um direito, seja o ethos da histria e que os discursos da

literatura oficial parm de silenciar verdades, muitas vezes incmodas ao pensamento

branco!

36 Para alm da polmica existente sobre o fato do escritor Machado de Assis ter se omitido ou no sobre a escravido no Brasil, o que nos interessa destacar aqui a sua ascendncia negra. No de nosso conhecimento, entretanto, se o escritor se autodenominava negro ou no.

33

Os escritores e as escritoras negros e negras h muito se debruam sobre as

questes pertinentes ao povo negro. Escritores como Luiz Gama (1830-1882), Lima

Barreto (1881-1922), Antnio Cndido Gonalves Crespo (1846-1883), Maria Firmina

dos Reis (1825-1917), Jos do Patrocnio (1853-1905), entre outros, narraram em

seus escritos as vivncias do povo negro; alguns, mesmo antes da abolio da

escravatura, quando escrita e leitura eram habilidades de bem poucos brasileiros. [...]

na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, em 1834, havia nove negros matriculados

e 187 pardos. (KARASCH, 2000, p. 296.). Para exemplificar: Luiz Gama viveu como

escravizado dos 10 aos 18 anos de idade.

Para entendermos o que propomos quando separamos, do conjunto da

literatura brasileira, a literatura afro-brasileira, elencamos os diversos conceitos sobre

literatura afro-brasileira abordados por estudiosos sobre o assunto.

Ianni (1988) usa o termo literatura negra e afirma que o negro o tema principal

desta literatura. Segundo o mesmo autor:

A literatura no s expressa como tambm organiza uma parte importante da conscincia social do negro. Ao lado da poltica, da religio e outras formas de conscincia, ela uma forma singular, privilegiada, de expresso e organizao das condies e possibilidades da conscincia do negro (IANNI, 1988, p. 98).

Duarte (2005, p. 124) aponta para a dimenso da diversidade e contradies

que marcam a presena negra na literatura brasileira. Afirma ainda que esta

diversidade aparece como [...] etnicidade, isto , fora da rbita da natureza e

enquanto assuno de um determinado pertencimento identitrio, para alm dos

condicionantes fenotpicos..

Duarte (2005) traa um paralelo entre dois conceitos de literatura, a saber:

literatura afro-brasileira e literatura negra. Explica as vrias acepes para literatura

negra, dissecando desde os Cadernos Negros37 at a literatura detetivesca de Rubem

37 Segundo Souza ( 2006, p. 11), Os Cadernos Negros [...] ilustram, de forma exemplar, as estratgias empreendidas pelos negros brasileiros para produzir e divulgar um discurso identitrio que almeja interferir na estrutura e no exerccio do poder poltico-cultural. Eles documentam o discurso de uma gerao de escritores negros, nascidos, em sua maioria, por volta dos anos de 1950 e composta de estudantes que militaram ou eram prximos aos partidos e aos movimentos de esquerda e de entidades negras, no fim da dcada de setenta. Desde ento, os escritores organizam-se com o objetivo de tornarem audveis suas vozes de crtica e de protesto, contra os modelos de representao e de tessitura das relaes raciais no Brasil. [...] [...]

34

Fonseca38, mostrando assim o porqu da discordncia do uso do termo para a

literatura em questo. Seguindo a mesma linha de pensamento, o autor faz

indagaes a respeito de quais critrios tornariam a escrita afro-brasileira distinta do

conjunto da literatura brasileira. Em resposta a essas mesmas indagaes, elege

cinco elementos que distinguem a escrita dita afro-brasileira: a temtica a dispora

brasileira, a denncia da escravido, a glorificao de heris negros, discursos que

faam um contraponto com o discurso colonial; o enfoque s tradies culturais ou

religiosas transplantadas para o Brasil; os dramas vividos na contemporaneidade; a

situao de excluso e misria, ou seja, o estigma do dia seguinte abolio.

A autoria: o autor enfatiza que esse o tpico mais controverso entre os trs

escolhidos, mas explica que preciso compreender a autoria no apenas como dado

exterior, [...] mas como uma constante discursiva integrada materialidade da

construo literria (DUARTE, 2005, p. 125).

O ponto de vista: [...] o ponto de vista adotado configura-se em indicador

preciso no apenas da viso de mundo autoral, mas tambm [...] do conjunto de

valores que fundamentam as opes, at mesmo as vocabulares presentes na

representao (DUARTE, 2005, p.127). A Linguagem: o discurso afro-brasileiro

procura romper com escritas e falas do discurso ditado pelo mundo branco. O Pblico:

formar um pblico especfico marcado pela diferena cultural e ansioso com o

sentimento de pertencimento tnico. Parece utpico, mas tarefa a ser empreendida

no sentido de tornar conhecidos novos modelos identitrios para a populao afro-

brasileira. Para esse autor, a interao dinmica desses cinco fatores confere ao

texto literrio status de literatura afro-brasileira em sua plenitude.

H ainda autores como Proena Filho (2004) que acredita no haver espao

para uma literatura negra dentro a literatura brasileira. Ele analisa duas vertentes da

posio do negro nas letras brasileiras: uma que subscreve o negro como objeto

dentro das narrativas e outra que eleva o negro ao status de sujeito da sua prpria

histria. Para ele, em lugar de literatura negra, [...] se defenda a referncia presena

38Para Duarte (2014, p. 24), o texto negro aqui definido como sinnimo de narrativa detetivesca de mistrio e suspense, na linha do ramon noir da indstria editorial. No Brasil, tal vertente faz sucesso com Rubem Fonseca e outros, chegando-se mesmo ao estabelecimento de nuances diferenciadoras entre o conceito de romance negro e romance policial. [...]. O prprio autor faz um recorte de um texto de Rubem Fonseca: Acabamos de dizer que o romance negro se caracteriza pela existncia de um crime, com uma vtima que se sabe logo quem ; e um criminoso, desconhecido; e um detetive, que afinal descobre a identidade desse criminoso. Assim, no existe o crime perfeito, no verdade? (FONSECA, 1992, p. 151).

35

do negro ou da condio negra na literatura brasileira. [...] (PROENA FILHO, 2004,

p. 188). Defesa que tem sido criticada por alguns estudiosos.

Para Cuti (2010), no estamos diante de uma luta ideolgica, mas

terminolgica; ao fazer uso do termo literatura negro-brasileira, o autor argumenta que

esta literatura no faz parte do corpus da literatura africana. O referido autor enftico

ao afirmar que:

Os negro-africanos que no Brasil chegaram escravizados no trouxeram em sua bagagem nenhum romance, livro de contos ou de poesia que pudesse ter servido de base para a continuidade de uma literatura afro no Brasil. Veio, sim, a literatura oral. [...] Os escritores negro-brasileiros fazem literatura escrita. A sua tradio desde Luiz Gama, escrita. Sua produo inerente, um aspecto, uma vertente da literatura brasileira e no africana (CUTI, 2010, p. 45).

Bernd (1987) afirma que falso e ideologicamente negativo conceituar a

literatura negra (assim a autora a intitula) [...] pelo critrio da cor da pele do autor.

Para ela, no h relao entre a cor do autor e a estruturao da sua sensibilidade.

Destaca ainda que o uso da literatura como forma de resistncia constitui num fio

condutor da literatura negra. Segundo a autora, o que legitima uma escritura negra,

[...] uma literatura que se prope a desconstruir o mundo nomeado pelo branco e

erigir a sua prpria cosmogonia [...] so os seguintes elementos:

a) a existncia de uma articulao entre textos dado por um certo modo negro de ver e de sentir o mundo; b) a utilizao de uma linguagem marcada tanto a nvel do vocabulrio quanto dos smbolos usados pelo empenho em resgatar uma memria negra esquecida (BERND, 1987, p. 18).

Fonseca (2006) estabelece conceitos para literatura negra e literatura afro-

brasileira, diferenciando-os conforme o assunto abordado. Para a escritora, a

denominao literatura negra procura [...] se integrar s lutas pela conscientizao

da populao negra, busca dar sentido a processos de formao da identidade de

grupos excludos do modelo social pensando por nossa sociedade [...]. A expresso

[...] literatura afro-brasileira procura assumir as ligaes entre o ato criativo que o

termo literatura indica e a relao dessa criao com a frica [...] seja a frica, bero

da civilizao, seja a frica que legou os escravos trazidos para as Amricas.

(FONSECA, 2006, p. 24).

36

Como se v, h vrias acepes para uma literatura que se quer identificada

com o povo negro, seja ela escrita por negros ou brancos. preciso ressaltar que a

causa negra deve ser o ethos discursivo destes escritos, que o negro precisa se

reconhecer como elemento central desta literatura engajada, plural e sensvel ao

narrar o universo afro-brasileiro que o mundo branco sempre se empenhou em ocultar.

Apesar de tantos obstculos, encontrados desde sempre, esta literatura de grandeza

incomparvel, para os negros, negras e seus descendentes, vem resistindo e tem

produzido grandes obras ao longo dos anos. Contudo, apenas uma parcela nfima

dessas obras faz parte do cnone literrio brasileiro. No corpo deste trabalho,

adotamos a denominao literatura afro-brasileira, seguindo, assim, as orientaes

das DCNERER.

Sabemos que a produo textual da literatura afro-brasileira no homognea.

Ela perpassa todo o universo negro que frtil e diversificado. No h uniformidade

em suas ideias e concepes. H, sim, uma variedade de maneiras de se escrever

sobre o mesmo assunto; devido ao processo de branqueamento pelo qual passou a

populao afro-brasileira. Lidamos com nossa representao enquanto povo nos

enxergando como um pas moreno, mestio (FONSECA, 2006). Talvez se comprove

por meio dessa constatao o fato de existirem tantas denominaes para a nossa

literatura, como elencamos, quando falamos do conceito de literatura escrita pelos

descendentes de escravizados e por no-negros que escrevem tendo como principal

elemento o sujeito negro e sua histria.

Mesmo na contramo da literatura oficial, percebemos a literatura afro-brasileira

se destacando no cenrio nacional, at porque, vrios fatores se confluem, seja a

existncia de uma classe mdia negra sedenta por afirmao identitria, seja pela

existncia de uma legislao que contribui para a exigncia de uma literatura narrando

a histria da outra metade da populao brasileira esquecida nos simulacros da vida

cotidiana entre o invisvel e o marginal.

1.1.4 A literatura afro-brasileira e a Lei 10.639/2003

A educao bsica passou por mudanas importantes desde a promulgao

da Constituio Federal, em 1988. Parte dessas mudanas tem como propsito o

fortalecimento da cidadania brasileira; inclusive a populao negra. Nas duas ltimas

dcadas, leis foram sancionadas e vrias polticas pblicas implementadas com o

37

intuito de oferecer uma resposta s demandas desse segmento da populao. Nessa

direo, polticas curriculares tambm comearam a mudar a imagem da educao

brasileira. Em se tratando dessas polticas, elas constituem um projeto de educao

que busca dar acesso ao conhecimento, fortalecer valores, posturas e atitudes que

formem cidados e garantam a coeso nacional (SILVA, 2010a).

A Lei 10.639/03 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, Lei

9394/96, ao incluir a obrigatoriedade do ensino da Histria e Cultura Afro-Brasileira

em todas as sries do ensino fundamental e mdio da educao bsica. No mbito

federal, tambm foram criadas as DCNERER. Ambas propem novos percursos para

a sociedade democrtica; pressupem tambm que as escolas possam proporcionar

espaos que favoream a tomada de conscincia da construo de nossa identidade

cultural, situando-a em relao com os processos socioculturais do contexto em que

vivemos e da histria do nosso pas, que durante muito tempo conviveu com o estigma

da escravizao, como se essa fosse uma histria nica, contada pelo opressor e

referendada pelo oprimido.

Aps mais de 12 anos de sancionada, no se pode dizer que o cumprimento

da Lei seja uma realidade em todo o pas, nem que os livros didticos tratam de

maneira adequada a histria dos povos descendentes dos escravizados. H ainda

uma resistncia muito grande ao conhecimento dessa cultura e histria e um

desconhecimento por parte de docentes, coordenadores e diretores de escolas, sobre

o assunto. Se antes a literatura afro-brasileira era pouco conhecida e divulgada dentro

dos espaos escolares, no se pode afirmar que aps a Lei esta realidade tenha

mudado. No espao escolar, ainda h resistncia quando o assunto histria e cultura

afro-brasileira.

A incluso da literatura afro-brasileira nas aulas de literatura perpassa,

tambm, pela importncia que o educador confere ao assunto. Ele, como mediador

do conhecimento, pode, em dilogo com os estudantes, dimensionar a importncia do

debate, fazendo uma ponte entre o dia a dia dos jovens e a temtica dos textos

literrios.

O professor, bem posicionado sobre as questes tnico-raciais e informado

acerca da literatura afro-brasileira, tenha ou no o assunto no livro didtico, dialogar

com seus alunos sobre o tema dentro do espao escolar. O trabalho com os escritores

afro-brasileiros em sala de aula, nas escolas pblicas do ensino mdio, pode levar o

aluno vocao de ser mais, a f em si mesmo e com sua autoestima melhorada e

38

uma viso diferente da importncia do povo negro na sociedade brasileira. Segundo

Freire (2003, p. 102), [...] Quanto mais investigo o saber do povo com ele, tanto mais

nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos

investigando [...].

H uma relao dialtica entre a literatura afro-brasileira e a vivncia de muitos

jovens. Os estudantes, sobretudo os negros, oriundos das escolas pblicas, podem,

por meio do dilogo, entender a sua histria e a histria do outro; o outro, subscrito

nos livros de literatura ou na figura do prprio professor. Por essa razo, necessrio

um cuidado especial ao se abordar essa literatura. Um conhecimento aprofundado

daquilo que se ir falar, para construir pontes em vez de obstculos. Neste momento,

cabe destacar que [...] a literatura no s expressa como tambm organiza uma parte

importante da conscincia social do negro [...] (IANNI, 1988, p. 98). O dilogo comea

a partir do sentimento de pertena, que orienta o educando a ter mais interesse pela

cultura e literatura afro-brasileira, como cidado negro ou apenas como expectador

no negro, em uma relao mtua de aprendizado, em que todos ganham.

Apesar de ainda ser necessrio se avanar, no que diz respeito ao

cumprimento da legislao, faz sentido destacar que, do ponto onde nos

encontrvamos, j avanamos; antes quase no se falava de literatura afro-brasileira,

sequer se sabia da sua existncia39. No contexto atual, h uma tendncia crescente

na discusso sobre o assunto. Muitos cursos superiores de licenciatura j incluem em

seus currculos a formao para as relaes tnico-raciais, o que implica em mudana

de paradigma.

Estamos certos de que a aprovao da Lei um marco para a educao das

relaes tnico-raciais, [...] pois trata-se de uma poltica pblica educacional que

procura atingir a populao escolar de todas as origens raciais e nos vrios nveis e

modalidades de ensino. [...] (ROCHA; SILVA, 2013, p. 65). Visando tambm o

combate ao racismo, essa Lei traz para o centro do debate, no que diz respeito

literatura afro-brasileira, a invisibilidade do negro nas obras cannicas, a

desvalorizao e ocultao da existncia de talentosos escritores de origem afro-

brasileira.

Entendemos que o percurso para o reconhecimento da cultura e histria do

povo negro e seus descendentes, como cultura importante para os cidados

39 No mbito dos anos de escolarizao no ensino mdio, momento em que a Literatura se torna

disciplina do currculo.

39

brasileiros, no tem sido fcil, pois suscita, desde sempre, muita resistncia. Mas,

temos avanado. A Lei permaneceu mais de 20 anos no Congresso Nacional, sua

tramitao comea em 1983 e aprovado h exatos 14 dias do primeiro mandato do

presidente Luiz Incio Lula da Silva. Uma vitria do Movimento Negro do Brasil, para

o qual, o tema da educao sempre foi crucial no enfrentamento ao racismo.

1.1.5 O que os contedos e imagens da literatura afro-brasileira do ensino mdio

oferecem para o debate?

O ensino mdio o fechamento de uma etapa e pode ser a preparao para o

incio de outra. A literatura afro-brasileira inserida nos livros de portugus do ensino

mdio importante, pois, alm de trabalhar a autoestima dos estudantes negros e o

respeito dos estudantes no negros, quebra paradigmas construdos durante sculos

por quem contribuiu para a estigmatizao como etnia inferior e predisposta

marginalidade.

Mas, preciso ressaltar que, diante de tantos modelos estabelecidos durante

anos, dentro das instituies de ensino para a negao da histria dos povos de

origem africana no Brasil, faz-se necessrio um trabalho amplo de formao de

professores e alunos para as questes relacionadas ao pertencimento. A formao

docente para o trato com as relaes tnico-raciais40 importante para que os

educandos formem conscincia crtica acerca de identidade e diferena, contribuindo

assim para a alteridade e o sentimento de pertena. Para as autoras Gomes e

Gonalves (2011, p. 18): [...] A educao escolar, entendida como parte constituinte

do processo de humanizao, socializao e formao, tem, pois, de estar associada

aos processos culturais, construo das identidades de gnero, de raa, de idade,

de escolha sexual, entre outros. [...].

Nesse sentido, importante pensar o papel do educador como formador de

opinio, intelectual orgnico41, porque, parte do corpo docente das escolas pblicas,

40 De acordo com as DCNERER importante explicar que o emprego do termo tnico, na expresso tnico-racial, serve para marcar que as relaes tensas por conta das diferenas na cor da pele e dos traos fisionmicos o so tambm devido raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em viso de mundo, valores e princpios